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9 MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM BAKHTIN Mikhail 12ª Edição 2006 HUCITEC 10 PREFÁCIO No livro publicado com a assinatura de V N Volochínov em Leningrado 19291930 em duas edições sucessivas sob o título de Marksizm i filossófia iaziká Marxismo e Filosofia da Linguagem tudo desde a página de título só pode surpreender Acabouse descobrindo que o livro em questão e várias outras obras publicadas no final dos anos vinte e começo dos anos trinta com o nome de Volochínov como por exemplo um volume sobre a doutrina do freudismo 1927 e alguns ensaios sobre a linguagem na vida e na poesia assim como sobre a estrutura do enunciado foram na verdade escritos por Bakhtin 18951975 autor de obras determinantes sobre a poética de Dostoievski e de Rabelais Ao que parece Bakhtin recusavase a fazer concessões à fraseologia da época e a certos dogmas impostos aos autores Os adeptos e discípulos do pesquisador particularmente Volochínov nascido em 1895 desaparecido pelo fim de 1930 com um pseudônimo escrupulosamente observado e graças a alguns retoques obrigatórios no texto e até no título tentaram um compromisso que permitia preservar o essencial do grande trabalho O que poderia surpreender igualmente aqueles leitores menos avisados da história do obscurantismo que da história do pensamento científico é o completo desaparecimento do próprio nome desse eminente pesquisador de toda a imprensa russa durante quase um quarto de século até 1963 quanto a seu livro sobre a filosofia da linguagem só o vemos mencionado nesse mesmo período em alguns raros estudos lingüísticos do Ocidente Recentemente algumas citações desse livro foram feitas em publicações soviéticas de tiragem insignificante como a coletânea dedicada ao 75o aniversário de Bakhtin cuja edição foi de apenas 1500 exemplares Tártu 1973 A obra em questão é reproduzida na série Janua Linguarum Haia Paris 1972 e traduzida para o inglês Nova Iorque 1973 mas esse trabalho como outras obrasprimas do pensamento teórico 11 russo do mesmo período permanece ainda quase inacessível aos leitores do seu país natal Apesar de toda a singularidade da biografia do livro e de seu autor é pela novidade e originalidade de seu conteúdo que a obra mais surpreende todo leitor de espírito aberto Esse volume cujo subtítulo diz Os problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem antecipa as atuais explorações realizadas no campo da sociolingüística e principalmente consegue preceder as pesquisas semióticas de hoje e fixarlhes novas tarefas de grande envergadura A dialética do signo e do signo verbal em particular que é estudada no livro conserva ou melhor adquire um grande valor sugestivo à luz dos debates semióticos contemporâneos Dostoievski é o herói preferido de Bakhtin e a maneira como ele o define caracteriza ao mesmo tempo e da forma mais justa sua própria metodologia científica Nada lhe parece acabado todo problema permanece aberto sem fornecer a mínima alusão a uma solução definitiva Segundo Bakhtin na estrutura da linguagem todas as noções substanciais formam um sistema inabalável constituído de pares indissolúveis e solidários o reconhecimento e a compreensão a cognição e a troca o diálogo e o monólogo sejam eles enunciados ou internos a interlocução entre o destinador e o destinatário todo signo provido de significação e toda significação associada ao signo a identidade e a variabilidade o universal e o particular o social e o individual a coesão e a divisibilidade a enunciação e o enunciado O que mais desperta a atenção e a criatividade do leitor é a parte final do livro onde o autor discute o papel fundamental e variado da citação patente ou latente em nossos enunciados e interpreta os diversos meios que servem para adaptar esses empréstimos multiformes e contínuos ao contexto do discurso Roman Jakobson 12 INTRODUÇÃO I Bakhtin o homem e seu duplo M M Bakhtin nasceu em 1895 em Oriol numa família da velha nobreza arruinada de um pai empregado de banco Passou sua infância em Oriol e a adolescência em Vílnius e Odessa Estudou na Universidade de Odessa depois na de São Petersburgo de onde saiu diplomado em História e Filologia em 1918 Em 1920 instalouse em Vitebsk onde ocupou diversos cargos de ensino Casouse em 1920 com Helena Okolovitch que foi sua fiel colaboradora durante meio século Bakhtin pertencia a um pequeno círculo de intelectuais e de artistas entre os quais se encontravam Marc Chagall e o musicólogo Sollertinsky amigo íntimo de Chostakovitch Também fazia parte deste círculo um jovem professor do Conservatório de Música de Vitebsk V N Volochínov e ainda P N Medviédiev empregado de uma casa editora Os dois tornaramse alunos amigos devotados e ardorosos admiradores de Bakhtin Este círculo conhecido sob o nome de círculo de Bakhtin foi um cadinho de idéias inovadoras numa época de muita criatividade particularmente nos domínios da arte e das ciências humanas Ainda que contemporâneo dos movimentos formalista e futurista ele não participou de nenhum deles Em 1923 atacado de osteomielite Bakhtin retornou a Petrogrado Impossibilitado de trabalhar regularmente deve ter passado por uma situação material difícil Seus discípulos e admiradores Volochínov e Medviédiev seguiramno a Petrogrado Animados pelo desejo de vir ajudar financeiramente a seu mestre e ao mesmo tempo divulgar suas idéias ofereceram seus nomes a fim de tornar possível a publicação de suas primeiras obras Freidizm O Freudismo Leningrado 1927 e Marxismo e Filosofia da Linguagem Leningrado 1929 saíram sob o nome de Volochínov Formalni métod v literaturoviédenie Kritítcheskoie vvdiénie v sotsiologuítcheskuiu poétiku O Método Formalista 13 Aplicado à Crítica Literária Introdução Crítica à Poética Sociológica que constituiu uma crítica aos formalistas foi publicado em 1928 também em Leningrado sob a assinatura de Medviédiev1 Por que então Bakhtin não os publicou com seu próprio nome Não há dúvidas quanto à paternidade de suas obras O conteúdo se inscreve perfeitamente na linha de suas publicações assinadas e além disso dispomos de testemunhos diretos De qualquer modo na época o segredo foi bem guardado pois Borís Pasternak em uma carta endereçada a Medviédiev manifestou seu entusiasmo e sua admiração pela presumida obra deste último e confessa que jamais pudera imaginar que em Medviédiev se ocultava um tal filósofo Então por que esse jogo de testadeferro Segundo o professor V V Ivánov amigo e aluno de Bakhtin haveria duas espécies de motivos em primeiro lugar Bakhtin teria recusado as modificações impostas pelo editor de caráter intransigente ele teria preferido não publicar do que mudar uma vírgula Volochínov e Medviédiev terseiam então proposto a endossar as modificações A outra ordem de motivos seria mais pessoal e ligada ao caráter de Bakhtin ao seu gosto pela máscara e pelo desdobramento e também parece à sua profunda modéstia científica Ele teria professado que um pensamento verdadeiramente inovador não tem necessidade para assegurar sua duração de ser assinado por seu autor A este respeito o professor Ivánov o compara a Kierkegaard que também se escondeu sob pseudônimos De qualquer forma em 1929 no mesmo ano em que Volochínov assinava Marxismo e Filosofia da Linguagem Bakhtin publicou finalmente um primeiro livro com seu próprio nome Probliemi tvórtchestva Dostoiesvskovo Problemas da Obra de Dostoievski2 Ele dedicará o resto de sua vida de pesquisador à análise estilística e literária Volochínov e Medviédiev desapareceram nos anos trinta Nesta época Bakhtin vivia na fronteira da Sibéria e do Casa quistão em Kustanai Sempre ensinando começou a compor sua monografia sobre Rabelais Em 1936 foi nomeado para o Insti 1 Esta terceira obra foi reeditada em 1971 na revista Trudi po znákovim sistiemam Trabalhos sobre Sistemas de Signos Universidade de Tártu 1971 As outras duas nunca mais foram reimpressas Mouton Haia publicou em 1972 um facsímile da edição de 1929 do Marxismo e a Filosofia da Linguagem 2 Tradução francesa sob o título Problèmes de la Poétique de Dostoïevski Lausanne LÂge dHomme 1970 14 tuto Pedagógico de Saransk Em 1937 instalouse não muito longe de Moscou em Kímri onde viveu uma vida apagada até 1945 ensinando no colégio local e participando dos trabalhos do Instituto de Literatura da Academia de Ciências da URSS Aí defendeu sua tese sobre Rabelais em 1946 De 1945 a 1961 data de sua aposentadoria ensina de novo em Saransk terminando sua carreira na universidade desta cidade A partir de 1963 começou a gozar de uma certa notoriedade sobretudo após a reedição de sua obra sobre Dostoievski 1963 e de sua tese sobre Rabelais Tvórtchestvo François Rabelais i naródnaia kultura sriednevekóvia i Renessansa A Obra de François Rabelais e a Cultura Popular da Idade Média e da Renascença Moscou 19653 Em 1969 instalouse em Moscou onde publicou contribuições nas revistas Vopróssi literaturi Questões de Literatura e Kontiekst Contexto Morreu em Moscou em 1975 após uma longa doença II Marxismo e Filosofia da Linguagem É difícil afirmar com exatidão quais as partes do texto que se devem a Volochínov Sempre segundo o professor Ivánov que deve a informação ao próprio Bakhtin o título e certas partes do texto ligadas à escolha deste título são de Volochínov Não se poderia evidentemente colocar em questão as convicções marxistas de Bakhtin o livro é marxista do começo ao fim Todavia como sublinha Jakobson em seu prefácio o título não deixa de surpreender pois o conteúdo do livro é muito mais rico do que a capa deixa entrever Bakhtin expõe bem a necessidade de uma abordagem marxista da filosofia da linguagem mas ele aborda ao mesmo tempo praticamente todos os domínios das ciências humanas por exemplo a psicologia cognitiva a etnologia a pedagogia das línguas a comunicação a estilística a crítica literária e coloca de passagem os fundamentos da semiologia moderna Aliás ele possui de todos esses domínios uma visão notavelmente unitária e muito avançada em relação a seu tempo Contudo e nesse aspecto o subtítulo Tentativa de aplicação do método sociológico em lingüística é muito revelador tratase principalmente de um livro sobre as relações entre linguagem e 3 Tradução francesa sob o título François Rabelais et la Culture Populaire sous la Renaissance Gallimard 1970 15 sociedade colocado sob o signo da dialética do signo enquanto efeito das estruturas sociais Sendo o signo e a enunciação de natureza social em que medida a linguagem determina a consciência a atividade mental em que medida a ideologia determina a linguagem Tais são as questões que constituem o fio condutor do livro Bakhtin foi o primeiro a abordar essas questões que a humanidade se colocou muitas vezes antes dele numa perspectiva marxista Portanto é indispensável situar sua reflexão em relação ao problema fundamental que foi suscitado pela aplicação da análise marxista à língua a língua é uma superestrutura e conseqüentemente em relação à controvérsia da lingüística soviética em torno desta questão controvérsia à qual Stálin pôs fim em 1950 com A Propósito do Marxismo em Lingüística4 Ao mesmo tempo é preciso notar que por sua crítica a Saussure o representante mais eminente do que Bakhtin chamou o objetivismo abstrato e aos excessos do estruturalismo nascente ele antecede de quase cinqüenta anos as orientações da lingüística moderna Veremos que os dois aspectos se confundem Bakhtin coloca em primeiro lugar a questão dos dados reais da lingüística da natureza real dos fatos da língua A língua é como para Saussure um fato social cuja existência se funda nas necessidades da comunicação Mas ao contrário da lingüística unificante de Saussure e de seus herdeiros que faz da língua um objeto abstrato ideal que se consagra a ela como sistema sincrônico homogêneo e rejeita suas manifestações a fala individuais Bakhtin por sua vez valoriza justamente a fala a enunciação e afirma sua natureza social não individual a fala está indissoluvelmente ligada às condições da comunicação que por sua vez estão sempre ligadas às estruturas sociais Se a fala é o motor das transformações lingüísticas ela não concerne os indivíduos com efeito a palavra é a arena onde se confrontam aos valores sociais contraditórios os conflitos da língua refletem os conflitos de classe no interior mesmo do sistema comunidade semiótica e classe social não se recobrem A comunicação verbal inseparável das outras formas de comuni cação implica conflitos relações de dominação e de resis tência adaptação ou resistência à hierarquia utilização da língua pela classe dominante para reforçar seu poder etc Na medida em que às diferenças de classe correspondem diferenças de registro 4 Tradução francesa das Editions de la Nouvelle Critique 1950 16 ou mesmo de sistema assim a língua sagrada dos padres o terrorismo verbal da classe culta etc esta relação fica ainda mais evidente mas Bakhtin se interessa primeiramente pelos conflitos no interior de um mesmo sistema Todo signo é ideológico a ideologia é um reflexo das estruturas sociais assim toda modificação da ideologia encadeia uma modificação da língua A evolução da língua obedece a uma dinâmica positivamente conotada ao contrário do que afirma a concepção saussuriana A variação é inerente à língua e reflete variações sociais se efetivamente a evolução por um lado obedece a leis internas reconstrução analógica economia ela é sobretudo regida por leis externas de natureza social O signo dialético dinâmico vivo opõese ao sinal inerte que advém da análise da língua como sistema sincrônico abstrato É o que leva Bakhtin a atacar a noção de sincronia E o surpreendente é que Bakhtin não critica Saussure em nome da teoria marxista largamente proclamada ele o critica no interior do seu próprio domínio isto é encontra a falha no sistema de oposição línguafala sincroniadiacronia No plano científico objetivo o sistema sincrônico é uma ficção com efeito em nenhum momento o sistema está realmente em equilíbrio e isto todos os lingüistas admitem Mas para o locutor ouvinte ingênuo usuário da língua esta não é tampouco um sistema estável e abstrato de sinais constantemente iguais a si mesmos e isolados por procedimentos de análise distribucional Ao contrário a forma lingüística é sempre percebida como um signo mutável A entonação expressiva a modalidade apreciativa sem a qual não haveria enunciação o conteúdo ideológico o relacionamento com uma situação social determinada afetam a significação O valor novo do signo relativamente a um tema sempre novo é a única realidade para o locutorouvinte Só a dialética pode resolver a contradição aparente entre a unicidade e a pluralidade da significação O objetivismo abstrato favorece arbitrariamente a unicidade a fim de poder prender a palavra em um dicionário O signo é por natureza vivo e móvel plurivalente a classe dominante tem interesse em torná lo monovalente Tratase justamente de uma crítica ao distribucionalismo neutro Segundo Bakhtin a lingüística saussuriana o objetivismo abstrato que pensa estar afastada dos procedimentos da filologia na realidade apenas os perpetua Daí a crítica implícita da noção de corpus prática reducionista que tende a reificar a lingua gem Toda enunciação fazendo parte de um processo de comu nicação ininterrupto é um elemento do diálogo no sentido amplo 17 do termo englobando as produções escritas O corpus transforma as enunciações em monólogos Nesse sentido o procedimento dos lingüistas é o mesmo que o dos filólogos Donde a idéia sempre reiterada de que o corpus fundamento da lingüística descritiva e funcionalista leva ao descritivismo abstrato e faz do signo um sinal análise distribucional estabelecimento de classes de contexto e de classes de unidade que fornecem implicitamente uma norma mesmo se o método se pretende objetivo e não normativo pelo fato de se abster de evocar regras de caráter prescritivo Os imperativos pedagógicos não deixam de ter influência sobre a prática do lingüista na medida em que se procura transmitir um objetolíngua tão homogêneo quanto possível Bakhtin coloca igualmente em evidência a inadequação de todos os procedimentos de análise lingüística fonéticos morfológicos e sintáticos para dar conta da enunciação completa seja ela uma palavra uma frase ou uma seqüência de frases A enunciação compreendida como uma réplica do diálogo social é a unidade de base da língua tratase de discurso interior diálogo consigo mesmo ou exterior Ela é de natureza social portanto ideológica Ela não existe fora de um contexto social já que cada locutor tem um horizonte social Há sempre um interlocutor ao menos potencial O locutor pensa e se exprime para um auditório social bem definido A filosofia marxista da linguagem deve colocar como base de sua doutrina a enunciação como realidade da língua e como estrutura sócioideológica O signo e a situação social estão indissoluvelmente ligados Ora todo signo é ideológico Os sistemas semióticos servem para exprimir a ideologia e são portanto modelados por ela A palavra é o signo ideológico por excelência ela registra as menores variações das relações sociais mas isso não vale somente para os sistemas ideológicos constituídos já que a ideologia do cotidiano que se exprime na vida corrente é o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas Se a língua é determinada pela ideologia a consciência portanto o pensamento a atividade mental que são condicionados pela linguagem são modelados pela ideologia Contudo todas estas relações são interrelações recíprocas orientadas é verdade mas sem excluir uma contraação O psiquismo e a ideologia estão em interação dialética constante Eles têm como terreno comum o signo ideológico O signo ideológico vive graças à sua reali zação no psiquismo e reciprocamente a realização psíquica vive do suporte ideológico A questão exige mais que um trata 18 mento esquemático Na verdade a distinção essencial que Bakhtin faz é entre a atividade mental do eu não modelada ideologicamente próxima da reação fisiológica do animal característica do indivíduo pouco socializado e a atividade mental do nós forma superior que implica a consciência de classe O pensamento não existe fora de sua expressão potencial e por conseqüência fora da orientação social desta expressão e do próprio pensamento Também não se pode tratar esquematicamente a questão da língua como superestrutura Nos anos 20 no momento em que Bakhtin compõe sua obra duas tendências se confrontam em lingüística o formalismo e o sociologismo dito vulgar o marrismo Nicolau Marr leva a suas últimas conseqüências a assimilação da língua a uma superestrutura existência de línguas de classe e de gramáticas de classe independentes e teoria da evo lução por saltos é difícil confirmar essa teoria nos fatos a toda revolução na base deveria corresponder uma tão pronta evo lução da língua Tal é em todo caso a imagem sem dúvida parcialmente deformada que se pode fazer da teoria de Marr a partir da controvérsia de 1950 Bakhtin por sua vez insiste sobre a noção de processo ininterrupto Para ele a palavra veicula de maneira privilegiada a ideologia a ideologia é uma superestrutura as transformações sociais da base refletemse na ideologia e portanto na língua que as veicula A palavra serve como indicador das mudanças Bakhtin não afirma jamais que a língua é uma superestrutura no sentido estrito definido por Marr o qual acarretará em 1950 a inapelável condenação stalinista a base e as superestruturas estão sempre em interação Em compensação ele afirma claramente que a língua não é assimilável a um instrumento de produção Ora é precisamente esta assimilação que será formulada por Stálin numa tentativa de dar uma imagem unificante homogênea neutra da língua em relação à luta de classes o que o leva paradoxalmente a uma posição própria do objetvismo abstrato Sabemos sobre que motivações de política interna a questão das línguas nacionais na URSS repousava sua argumentação Bakhtin denuncia o perigo de toda sistematização ou formalização exagerada das novas teorias um sistema que estanca perde sua vitalidade seu dinamismo dialético A acusação poderia se dirigir tanto a Marr como a Stálin Bakhtin define a língua como expressão das relações e lutas sociais veiculando e sofrendo o efeito desta luta servindo ao mesmo tempo de instrumento e de material Como sua obra permaneceu 19 desconhecida tanto do público soviético como do público ocidental só o confronto de posições extremas reteve a atenção Todos aqueles que tinham escrúpulos em considerar a língua como uma superestrutura suspiraram aliviados em 1950 e pro curaram esquecer a relação da língua com as estruturas sociais até uma época muito recente com a emergência da sociolin güística como lingüística e não como variante periférica ou meramente anedótica5 Na terceira parte do livro consagrada ao estudo da transmissão do discurso de outrem Bakhtin fez uma aplicação prática das teses desenvolvidas nas duas primeiras Dessa forma busca demonstrar a natureza social e não individual das variações estilísticas Com efeito a maneira de integrar o discurso de outrem no contexto narrativo reflete as tendências sociais da interação verbal numa época e num grupo social dado Apóiase para firmar sua tese em citações extraídas de Púchkin Dostoievski Zola Thomas Mann isto é de obras individuais que ele insere no contexto da época e portanto da orientação social que aí se manifesta Aborda igualmente o papel do narrador que toma o lugar do autor da narrativa com as interferências que isso implica Esta é certamente uma de suas contribuições mais originais Não há para ele fronteira clara entre gramática e estilística O discurso indireto constitui um discurso encaixado no interior do qual se manifesta uma interação dinâmica A passagem do estilo direto ao estilo indireto não se faz de maneira mecânica isto lhe dá a oportunidade de criticar os exercícios escolares estruturais crítica que permanece totalmente pertinente hoje em dia Essa passagem implica análise e reformulação completa acompanhadas de um deslocamento eou de um entrecruzamento dos acentos apreciativos modalidade A análise estilística parte integrante da lingüística aparece como a preocupação essencial de Bakhtin A lingüística como ao que 5 Ver a este respeito na França as posições de Cohen Mounin Marcellesi Gardin Dubois Calvet Encrevé etc Eu citaria simplesmente Marcel Cohen É preciso ver em que medida a linguagem assim como a ciência vai dar na superestrutura por certos aspectos de seu emprego ligandose a instituições propriamente ditas ou a elementos ideológicos Matériaux pour une Sociologie du Langage Maspero 1956 20 parece para Saussure6 surge como o instrumento privilegiado e indispensável para levar a bom termo os trabalhos de análise literária que ocuparão a maior parte de sua vida Como Saussure ele é em vários aspectos um homem do século XIX um homem de gabinete de cultura enciclopédica um verdadeira nãoespecialista É entre pessoas assim que freqüentemente encontramos os melhores especialistas de uma disciplina Bibliografia V V Ivánov O Bakhtine i semiotike Bakhtin e a Semiótica in Rossía Rússia 1 Nápoles 1975 Znatchénie idiéi Bakhtina o znákie viskazivánie i dialóguie dliá sovremiénnoi semiotiki A Significação das Idéias de Bakhtin sobre o Signo a Enunciação e o Diálogo para a Semiótica Moderna in Trúdi po znákovim sistiemam Trabalhos sobre Sistemas de Signos Universidade de Tártu 1973 Ver também Ótcheki po istorii semiotiki v SSSR Ensaios para uma História da Semiótica na URSS Moscou 1976 Marina Yaguello 6 Ver L J Calvet Pour et contre Saussure Payot 1976 21 SUMÁRIO NOTA DOS TRADUTORES 7 PREFÁCIO Roman Kakobson 9 INTRODUÇÃO 11 PRÓLOGO 25 PRIMEIRA PARTE A FILOSOFIA DA LINGUAGEM E SUA IMPORTÂNCIA PARA O MARXISMO Capítulo 1 Estudo das Ideologias e Filosofia da Linguagem 31 A ciência das ideologias e a filosofia dalinguagem O problema do signo ideológico O signo ideológico e a consciência A palavra como signo ideológico por excelência A neutralidade ideológica da palavra A propriedade da palavra de ser um signo interior Conclusões Capítulo 2 Relação entre as Infraestrutura e as Superes truturas 39 Por quê razão é inadmissível aplicar a categoria da causalidade mecanicista à ciência da ideologia A evolução da sociedade e a da palavra Expressão semiótica da psicologia social Dialetologia social Formas da comunicação verbal e formas dos signos Tema do signo Luta de classes e dialética do signo Capítulo 3 Filosofia da Linguagem e Psicologia Objetiva 48 Problema da descrição objetiva do psiquismo Estudo da psicologia cognitiva e interpretativa Dilthey Realidade semiótica do psiquismo Ponto de vista da psicologia funcionalista Psicologismo e antipsicologismo Especificidade do signo interior discurso interior Problema da introspecção Natureza sócioeconômica do psiquismo Conclusões SEGUNDA PARTE PARA UMA FILOSOFIA MARXISTA DA LINGUAGEM Capítulo 4 Duas Orientações do Pensamento Filosófico Lingüístico 69 Problema da realidade concreta da linguagem Princípios fundamentais da primeira orientação do pensamento filosó ficolingüístico o subjetivismo individualista e seus representantes Princípios fundamentais da segunda orien 22 tação do pensamento filosóficolingüístico objetivismo abstrato Raízes históricas da segunda orientação Representantes contemporâneos do objetivismo abstrato Conclusões Capítulo 5 Língua Fala e Enunciação 90 A língua enquanto sistema de formas sujeitas a uma norma é objetiva A língua como sistema de normas e o ponto de vista real da consciência do locutor Que realidade lingüística está na base do sistema da língua Problema da palavra estrangeira Erros do objetivismo abstrato Conclusões Capítulo 6 A Interação Verbal 110 Teoria da expressão do subjetivismo individualista Crítica da teoria da expressão Estrutura sociológica da atividade mental e de sua expressão Problema da ideologia na vida cotidiana A fala como base da evolução da língua A enunciação completa e suas formas Capítulo 7 Tema e Significação na Língua 128 Tema e significação Problema da apreensão ativa Apreciação e significação Dialética da significação TERCEIRA PARTE PARA UMA HISTÓRIA DAS FORMAS DA ENUNCIAÇÃO NAS CONSTRUÇÕES SINTÁTICAS Tentativa de Aplicação do Método Sociológico aos Problemas Sintáticos Capítulo 8 Teoria da Enunciação e Problemas Sintáticos 139 Significação dos problemas sintáticos Categorias sintáticas e enunciações completas Problema dos parágrafos Problemas das formas de transmissão do discurso de outrem Capítulo 9 O Discurso de Outrem 144 Apresentação do problema Determinação do discurso de outrem Problema da apreensão ativa do discurso vinculado ao problema do diálogo Dinâmica da interrelação do contexto narrativo e do discurso citado O estilo linear em matéria de transmissão do discurso de outrem em relação ao estilo pictórico Capítulo 10 Discurso Indireto Discurso Direto e suas variantes 155 Esquemas e variantes Gramática e estilística Caracteres gerais da transmissão do discurso de outrem na língua russa Esquema do discurso indireto Variante analisadora do conteúdo do discurso indireto Esquema do discurso direto Discurso direto preparado Discurso direto esvaziado Discurso direto antecipado dissemi nado oculto Fenômeno da interferência verbal Interrogações retóricas e exclamações Discurso direto de substituição Discurso indireto livre 23 Capítulo 11 Discurso Indireto Livre em Francês Alemão e Russo 174 Discurso indireto livre em francês Teoria de Tobler Teoria de Kalepky Teoria de Bally Crítica do objetivismo abstrato hipostático de Bally Bally e os vosslerianos Discurso indireto livre em alemão Teoria de Eugen Lerch Teoria de Lerch Teoria de Lorck sobre o papel da imaginação na língua Teoria de Gertraud Lerch O discurso citado em francês antigo Na época do Renascimento Discurso indireto livre em La Fontaine e La Bruyère Discurso indireto livre segundo Vossler Aparição do discurso indireto livre em alemão Crítica do subjetivismo hipostatizante dos vosslerianos 24 PRÓLOGO Não existe atualmente uma única análise marxista no domínio da filosofia da linguagem Nem sequer há nos trabalhos marxistas relativos a outras questões próximas daquelas da linguagem alguma formulação a respeito desta que seja um pouco precisa e desenvolvida Portanto a problemática de nosso trabalho que desbrava de certa forma um terreno ainda virgem só pode evidentemente situarse num nível bastante modesto Não se trata de uma análise marxista sistemática e definitiva dos problemas básicos da filosofia da linguagem Tal análise só poderia resultar de um trabalho coletivo de grande fôlego De nossa parte tivemos que nos restringir à simples tarefa de esboçar as orientações de base que uma reflexão aprofundada sobre a linguagem deveria seguir e os procedimentos metodológicos a partir dos quais essa reflexão deve estabelecerse para abordar os problemas concretos da lingüística A atual inexistência na literatura marxista de uma descrição definitiva e universalmente reconhecida da realidade específica dos problemas ideológicos tornou nossa tarefa particularmente complexa Na maioria dos casos esses problemas são percebidos como manifestações da consciência isto é como fenômenos de natureza psicológica Uma tal concepção constituiu um grande obstáculo ao estudo correto dos aspectos específicos dos fenômenos ideológicos os quais não podem de forma alguma ser reduzidos às particularidades da consciência e do psiquismo Por isso o papel da língua como realidade material específica da criação ideológica não pôde ser justamente apreciado É preciso acrescentar a isso que categorias do tipo mecani cista implantaramse solidamente em todos os domínios a respeito dos quais os pais fundadores Marx e Engels pouco ou nada disseram Esses domínios portanto encontramse com respeito ao essencial no estádio do materialismo mecanicista prédialético Todos os domínios da ciência das ideologias achamse atualmente ainda dominados pela categoria da causalidade mecanicista Além 25 disso persiste ainda a concepção positivista do empirismo que se inclina diante do fato entendido não dialeticamente mas como algo intangível e imutável Praticamente o espírito filosófico do marxismo ainda não penetrou nesses domínios Por essas razões foinos quase totalmente impossível encontrar apoio em resultados precisos e positivos que tivessem sido obtidos pelas outras ciências que se relacionam com a ideologia Mesmo a crítica literária que graças a Plekhánov é todavia a mais desenvolvida dessas ciências nada pôde fornecer de útil a nossa objeto de estudo Este livro apresentase essencialmente como um trabalho de pesquisa mas tentamos conferirlhe uma forma acessível ao grande público Na primeira parte de nosso trabalho tentamos mostrar a importância dos problemas da filosofia da linguagem para o marxismo em seu conjunto Essa importância não tem sido como dissemos suficientemente apreciada E no entanto os problemas da filosofia da linguagem situamse no ponto de convergência de uma série de domínios essenciais para a concepção marxista do mundo e de alguns domínios que têm interessado muito atualmente nossa opinião pública Convém acrescentar que nesses últimos anos os problemas fundamentais da filosofia da linguagem adquiriram uma acuidade e uma importância excepcionais Podese dizer que a filosofia burguesa contemporânea está se desenvolvendo sob o signo da palavra E essa nova orientação do pensamento filosófico do Ocidente está ainda só nos seus primeiros passos A palavra e sua situação no sistema são a parada de uma luta inflamada somente comparável àquela que na Idade Média opôs realistas nominalistas e conceitualistas Na realidade no realismo dos fenomenólogos e no conceitualismo dos neokantianos assistimos numa certa medida a um renascimento da tradição das escolas filosóficas medievais Na lingüística propriamente dita após a era positivista marcada pela recusa de qualquer teorização dos problemas científicos a que se adiciona uma hostilidade por parte dos positivistas retardatários em relação aos problemas de visão do mundo assistese a uma nítida tomada de consciência dos fundamentos filosóficos dessa ciência e de suas relações com os outros domínios do conhecimento E isso serviu para denunciar a crise que a lingüística atravessa na sua incapacidade de resolver seus problemas de modo satisfatório 26 Indicar o lugar dos problemas da filosofia da linguagem dentro do conjunto da visão marxista do mundo este é o objetivo de nossa primeira parte É por isso que ela não contém demonstrações e não propõe conclusões definitivas Seu interesse está mais voltado para a relação entre os problemas do que para a relação entre os fatos estudados A segunda parte tenta resolver o problema fundamental da filo sofia da linguagem ou seja o problema da natureza real dos fenômenos lingüísticos Esse problema constitui o eixo em torno do qual giram todas as questões essenciais do pensa mento filosóficolingüístico contemporâneo Problemas tão fundamentais quanto o da evolução da língua da interação verbal da compreensão o problema da significação e muitos outros ainda estão estreitamente vinculados a esse problema central Evidentemente apenas esboçamos as principais vias que conduzem à sua resolução Toda uma série de questões permanece em suspenso Toda uma série de direções de pesquisa indicadas no começo permanece inexplorada Mas não poderia ser de outro modo num pequeno livro que pela primeira vez tenta abordar esses problemas de um ponto de vista marxista Na última parte de nosso trabalho é realizado um estudo concreto de uma questão de sintaxe A idéia diretiva de toda nossa pesquisa o papel produtivo e a natureza social da enunciação requer exemplos concretos que a sustentem é indispensável mostrar sua importância não só no plano geral da visão do mundo e para as questões básicas da filosofia da linguagem mas também para todas as questões da lingüística por mais particulares que sejam Se essa idéia é realmente justa e fecunda ela deve poder ser aplicada em todos os níveis Mas o tema da terceira parte a questão do discurso citado tem ele mesmo uma significação profunda que vai muito além do quadro da sintaxe Vários aspectos essenciais da criação literária o discurso do herói a estruturação do herói de maneira geral o Skaz a estilização a paródia nada mais são do que refrações diversas do discurso de outrem É portanto indispensável compreender esse tipo de discurso e as regras sociológicas que o regem para analisar de maneira fecunda os aspectos da criação literária acima citados Narrativa em primeira pessoa freqüentemente num estilo popular V tradução francesa de La Poétique de Dostoïevski Paris Seuil 1970 p 243 NT 27 A questão tratada na terceira parte não foi objeto de nenhum estudo na literatura lingüística Por exemplo o discurso indireto livre que Púchkin já utilizava não foi mencionado nem descrito por ninguém Também nunca foram estudadas as variantes muito diferentes do discurso direto e do discurso indireto Portanto a orientação de nosso trabalho vai do geral ao particular do abstrato ao concreto das questões de filosofia geral às questões de lingüística geral a partir disso abordamos finalmente uma questão específica que diz respeito tanto à gramática sintaxe quanto à estilística 28 PRIMEIRA PARTE A FILOSOFIA DA LINGUAGEM E SUA IMPORTÂNCIA PARA O MARXISMO 29 CAPÍTULO 1 ESTUDO DAS IDEOLOGIAS E FILOSOFIA DA LINGUAGEM Os problemas da filosofia da linguagem adquiriram recentemente uma atualidade e uma importância excepcionais para o marxismo Na maioria dos setores mais importantes de seu desenvolvimento científico o método marxista vai diretamente de encontro a esses problemas e não pode avançar de maneira eficaz sem submetêlos a um exame específico e encontrarlhes uma solução Para começar as bases de uma teoria marxista da criação ideológica as dos estudos sobre o conhecimento científico a literatura a religião a moral etc estão estreitamente ligadas aos problemas de filosofia da linguagem Um produto ideológico faz parte de uma realidade natural ou social como todo corpo físico instrumento de produção ou produto de consumo mas ao contrário destes ele também reflete e refrata uma outra realidade que lhe é exterior Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo Em outros termos tudo que é ideológico é um signo Sem signos não existe ideologia Um corpo físico vale por si próprio não significa nada e coincide inteiramente com sua própria natureza Neste caso não se trata de ideologia No entanto todo corpo físico pode ser percebido como símbolo é o caso por exemplo da simbolização do princípio de inércia e de necessidade na natureza determinismo por um determinado objeto único E toda imagem artísticosimbólica ocasionada por um objeto físico particular já é um produto ideológico Convertese assim em signo o objeto físico o qual sem deixar de fazer parte da realidade material passa a refletir e a refratar numa certa medida uma outra realidade O mesmo se dá com um instrumento de produção Em si mesmo um instrumento não possui um sentido preciso mas apenas uma função desempenhar este ou aquele papel na pro 30 dução E ele desempenha essa função sem refletir ou representar alguma outra coisa Todavia um instrumento pode ser convertido em signo ideológico é o caso por exemplo da foice e do martelo como emblema da União Soviética A foice e o martelo possuem aqui um sentido puramente ideológico Todo instrumento de produção pode da mesma forma se revestir de um sentido ideológico os instrumentos utilizados pelo homem préhistórico eram cobertos de representações simbólicas e de ornamentos isto é de signos Nem por isso o instrumento assim tratado tornase ele próprio um signo Por outro lado é possível dar ao instrumento uma forma artística que assegure uma adequação harmônica da forma à função na produção Nesse caso produzse uma espécie de aproximação máxima quase uma fusão entre o signo e o instrumento Mas mesmo aqui ainda discernimos uma linha de demarcação conceitual o instrumento enquanto tal não se torna signo e o signo enquanto tal não se torna instrumento de produção Qualquer produto de consumo pode da mesma forma ser transformado em signo ideológico O pão e o vinho por exemplo tornamse símbolos religiosos no sacramento cristão da comunhão Mas o produto de consumo enquanto tal não é de maneira alguma um signo Os produtos de consumo assim como os instrumentos podem ser associados a signos ideológicos mas essa associação não apaga a linha de demarcação existente entre eles O pão possui uma forma particular que não é apenas justificável pela sua função de produto de consumo essa forma possui também um valor mesmo que primitivo de signo ideológico por exemplo o pão com a forma de número oito ou de uma roseta Portanto ao lado dos fenômenos naturais do material tecnológico e dos artigos de consumo existe um universo particular o universo de signos Os signos também são objetos naturais específicos e como vimos todo produto natural tecnológico ou de consumo pode tornar se signo e adquirir assim um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades Um signo não existe apenas como parte de uma realidade ele também reflete e refrata uma outra Ele pode distorcer essa realidade serlhe fiel ou apreendêla de um ponto de vista específico etc Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica isto é se é verdadeiro falso correto justificado bom etc O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos são mutuamente correspondentes Ali onde o signo se encontra encontrase também o ideológico Tudo que é ideológico possui um valor semiótico 31 No domínio dos signos isto é na esfera ideológica existem diferenças profundas pois este domínio é ao mesmo tempo o da representação do símbolo religioso da fórmula científica e da forma jurídica etc Cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida social É seu caráter semiótico que coloca todos os fenômenos ideológicos sob a mesma definição geral Cada signo ideológico é não apenas um reflexo uma sombra da realidade mas também um fragmento material dessa realidade Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material seja como som como massa física como cor como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer Nesse sentido a realidade do signo é totalmente objetiva e portanto passível de um estudo metodologicamente unitário e objetivo Um signo é um fenômeno do mundo exterior O próprio signo e todos os seus efeitos todas as ações reações e novos signos que ele gera no meio social circundante aparecem na experiência exterior Este é um ponto de suma importância No entanto por mais elementar e evidente que ele possa parecer o estudo das ideologias ainda não tirou todas as conseqüências que dele decorrem A filosofia idealista e a visão psicologista da cultura situam a ideologia na consciência1 Afirmam que a ideologia é um fato de consciência e que o aspecto exterior do signo é simplesmente um revestimento um meio técnico de realização do efeito interior isto é da compreensão O idealismo e o psicologismo esquecem 1 Notemos que sobre esse ponto é possível detectar uma mudança de perspectiva no neokantismo moderno Estou pensando no recente livro de Ernst Cassirer Philosophie der symbolischen Formen vol I 1923 Embora continue se situando no terreno da consciência Cassirer considera que seu traço dominante é a representação Cada elemento de consciência representa alguma coisa é o suporte de uma função simbólica O todo existe nas suas partes mas uma parte só é compreensível no todo Segundo Cassirer a idéia é tão sensorial quanto a matéria no entanto o aspecto sensorial introduzido aqui é o do signo simbólico é uma sensorialidade representativa 32 que a própria compreensão não pode manifestarse senão através de um material semiótico por exemplo o discurso interior que o signo se opõe ao signo que a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos Afinal compreender um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos em outros termos a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos E essa cadeia de criatividade e de compreensão ideológicas deslocandose de signo em signo para um novo signo é única e contínua de um elo de natureza semiótica e portanto também de natureza material passamos sem interrupção para um outro elo de natureza estritamente idêntica Em nenhum ponto a cadeia se quebra em nenhum ponto ela penetra a existência interior de natureza não material e não corporificada em signos Essa cadeia ideológica estendese de consciência individual em consciência individual ligando umas às outras Os signos só emergem decididamente do processo de interação entre uma consciência individual e uma outra E a própria consciência individual está repleta de signos A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico semiótico e conseqüentemente somente no processo de interação social Apesar de suas profundas diferenças metodológicas a filosofia idealista e o psicologismo em matéria de cultura cometem ambos o mesmo erro fundamental Situando a ideologia na consciência eles transformam o estudo das ideologias em estudo da consciência e de suas leis pouco importa que isso seja feito em termos transcendentais ou em termos empíricopsicológicos Esse erro não só é responsável por uma confusão metodológica acerca da interrelação entre domínios diferentes do conhecimento como também por uma distorção radical da realidade estudada A criação ideológica ato material e social é introduzida à força no quadro da consciência individual Esta por sua vez é privada de qualquer suporte na realidade Tornase tudo ou nada Para o idealismo ela tornouse tudo situada em algum lugar acima da existência e determinandoa De fato na teoria idealista essa soberana do universo é a mera hipóstase de um vínculo abstrato entre as formas e as categorias mais gerais da criação ideológica Para o positivismo psicologista ao contrário a consciência se reduz a nada simples conglomerado de reações psicofisiológicas fortuitas que por milagre resulta numa criação ideológica significante e unificada 33 A regularidade social objetiva da criação ideológica quan do indevidamente interpretada como estando em conformidade com as leis da consciência individual deve inevitavelmente ser excluída de seu verdadeiro lugar na existência e transportada quer para a empíreo supraexistencial do transcendentalismo quer para os recônditos présociais do organismo psicofisiológico biológico No entanto o ideológico enquanto tal não pode ser explicado em termos de raízes supra ou infrahumanas Seu verdadeiro lugar é o material social particular de signos criados pelo homem Sua especificidade reside precisamente no fato de que ele se situa entre indivíduos organizados sendo o meio de sua comunicação Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual Ainda assim tratase de um terreno que não pode ser chamado de natural no sentido usual da palavra2 não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados que formem um grupo uma unidade social só assim um sistema de signos pode constituirse A consciência individual não só nada pode explicar mas ao contrário deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social A consciência individual é um fato sócioideológico Enquanto esse fato e todas as suas conseqüências não forem devidamente reconhecidas não será possível construir nem uma psicologia objetiva nem um estudo objetivo das ideologias É justamente o problema da consciência que criou as maiores dificuldades e gerou a formidável confusão que encontramos em todas as discussões relativas tanto à psicologia quanto ao estudo das ideologias De maneira geral a consciência tornouse o asylum ignorantiae de todo edifício filosófico Foi transformada em depósito de todos os problemas não resolvidos de todos os resíduos objetivamente irredutíveis Ao invés de se buscar uma definição objetiva da consciência esta foi usada para tornar subjetivas e fluidas certas noções até então sólidas e objetivas A única definição objetiva possível da consciência é de ordem sociológica A consciência não pode derivar diretamente da natureza como tentaram e ainda tentam mostrar o materialismo mecanicista ingênuo e a psicologia contemporânea sob suas diferentes formas 2 A sociedade evidentemente é também uma parte da natureza mas uma parte que é qualitativamente distinta e separada dela e que possui seu próprio sistema de leis específicas 34 biológica behaviorista etc A ideologia não pode derivar da consciência como pretendem o idealismo e o positivis mo psicologista A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais Os signos são o alimento da consciência individual a maté ria de seu desenvolvimento e ela reflete sua lógica e suas leis A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica da interação semiótica de um grupo social Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico não sobra nada A imagem a palavra o gesto significante etc constituem seu único abrigo Fora desse material há apenas o simples ato fisiológico não esclarecido pela consciência desprovido do sentido que os signos lhe conferem Tudo o que dissemos acima conduz ao seguinte princípio metodológico o estudo das ideologias não depende em nada da psicologia e não tem nenhuma necessidade dela Como veremos é antes o contrário que é verdadeiro a psicologia objetiva deve se apoiar no estudo das ideologias A realidade dos fenômenos ideológicos é a realidade objetiva dos signos sociais As leis dessa realidade são as leis da comunicação semiótica e são diretamente determinadas pelo conjunto das leis sociais e econômicas A realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base econômica A consciência individual não é o arquiteto dessa superestrutura ideológica mas apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos Preliminarmente portanto separando os fenômenos ideológicos da consciência individual nós os ligamos às condições e às formas da comunicação social A existência do signo nada mais é do que a materialização dessa comunicação É nisso que consiste a natureza de todos os signos ideológicos Mas esse espaço semiótico e esse papel contínuo da comuni cação social como fator condicionante não aparecem em nenhum lugar de maneira mais clara e completa do que na linguagem A palavra é o fenômeno ideológico por excelência A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função nada que não tenha sido gerado por ela A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social O valor exemplar a representatividade da palavra como fenômeno ideológico e a excepcional nitidez de sua estrutura semiótica já deveriam nos fornecer razões suficientes para colocarmos a palavra em primeiro plano no estudo das ideologias É precisamente na 35 palavra que melhor se revelam as formas básicas as formas ideológicas gerais da comunicação semiótica Mas a palavra não é somente o signo mais puro mais indica tivo é também um signo neutro Cada um dos demais sistemas de signos é específico de algum campo particular da criação ideológica Cada domínio possui seu próprio material ideológico e formula signos e símbolos que lhe são específicos e que não são aplicáveis a outros domínios O signo então é criado por uma função ideológica precisa e permanece inseparável dela A palavra ao contrário é neutra em relação a qualquer função ideológica específica Pode preencher qualquer espécie de função ideológica estética científica moral religiosa Além disso existe uma parte muito importante da comunicação ideológica que não pode ser vinculada a uma esfera ideológica particular tratase da comunicação na vida cotidiana Esse tipo de comunicação é extraordinariamente rica e importante Por um lado ela está diretamente vinculada aos processos de produção e por outro lado diz respeito às esferas das diversas ideologias especializadas e formalizadas Trataremos no próximo capítulo com maior detalhe desse domínio especial que é a ideologia do cotidiano Por ora notemos apenas que o material privilegiado da comunicação na vida cotidiana é a palavra É justamente nesse domínio que a conversação e suas formas discursivas se situam Há uma outra propriedade da palavra que é da maior importância e que a torna o primeiro meio da consciência individual Embora a realidade da palavra como a de qualquer signo resulte do consenso entre os indivíduos uma palavra é ao mesmo tempo produzida pelos próprios meios do organismo individual sem nenhum recurso a uma aparelhagem qualquer ou a alguma outra espécie de material extracorporal Isso determinou o papel da palavra como material semiótico da vida interior da consciência discurso interior Na verdade a consciência não poderia se desenvolver se não dispusesse de um material flexível veiculável pelo corpo E a palavra constitui exatamente esse tipo de material A palavra é por assim dizer utilizável como signo interior pode funcionar como signo sem expressão externa Por isso o problema da consciência individual como problema da palavra interior em geral constitui um dos problemas fundamentais da filosofia da linguagem É claro que esse problema não pode ser abordado corretamente se se recorre aos conceitos usuais de palavra e de língua tais como foram definidos pela lingüística e pela filosofia da lingua gem nãosociológicas É preciso fazer uma análise profunda e aguda 36 da palavra como signo social para compreender seu funciona mento como instrumento da consciência É devido a esse pa pel excepcional de instrumento da consciência que a palavra funciona como elemento essencial que acompanha toda criação ideológica seja ela qual for A palavra acompanha e comenta todo ato ideoló gico Os processos de compreensão de todos os fenômenos ideológicos um quadro uma peça musical um ritual ou um comportamento humano não podem operar sem a participação do discurso interior Todas as manifestações da criação ideológica todos os signos nãoverbais banhamse no discurso e não podem ser nem totalmente isoladas nem totalmente separadas dele Isso não significa obviamente que a palavra possa suplantar qualquer outro signo ideológico Nenhum dos signos ideoló gicos específicos fundamentais é inteiramente substituível por palavras É impossível em última análise exprimir em palavras de modo adequado uma composição musical ou uma representação pictórica Um ritual religioso não pode ser inteiramente substituído por palavras Nem sequer existe um substituto verbal realmente adequado para o mais simples gesto humano Negar isso conduz ao racionalismo e ao simplismo mais grosseiros Todavia embora nenhum desses signos ideológicos seja substituível por palavras cada um deles ao mesmo tempo se apóia nas palavras e é acompanhado por elas exatamente como no caso do canto e de seu acompanhamento musical Nenhum signo cultural quando compreendido e dotado de um sentido permanece isolado tornase parte da unidade da consciência verbalmente constituída A consciência tem o poder de abordálo verbalmente Assim ondas crescentes de ecos e ressonâncias verbais como as ondulações concêntricas à superfície das águas moldam por assim dizer cada um dos signos ideológicos Toda refração ideológica do ser em processo de formação seja qual for a natureza de seu material significante é acompanhado de uma refração ideológica verbal como fenômeno obrigatoriamente concomitante A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação Todas as propriedades da palavra que acabamos de examinar sua pureza semiótica sua neutralidade ideológica sua implicação na comunicação humana ordinária sua possibilidade de interiorização e finalmente sua presença obrigatória como fenômeno acompanhante em todo ato consciente todas essas propriedades fazem dela o objeto fundamental do estudo das ideologias As leis da refração ideológica da existência em signos e em consciência suas formas e seus 37 mecanismos devem ser estudados antes de mais nada a partir desse material que é a palavra A única maneira de fazer com que o método sociológico marxista dê conta de todas as profundidades e de todas as sutilezas das estruturas ideológicas imanentes consiste em partir da filosofia da linguagem concebida como filosofia do signo ideológico E essa base de partida deve ser traçada e elaborada pelo próprio marxismo 38 CAPÍTULO 2 A RELAÇÃO ENTRE A INFRAESTRUTURA E AS SUPERESTRUTURAS Um dos problemas fundamentais do marxismo o das relações entre a infraestrutura e as superestruturas achase intimamente ligado em muitos de seus principais aspectos aos problemas da filosofia da linguagem O marxismo só tem pois a ganhar com a resolução ou pelo menos com o tratamento ainda que não muito aprofundado destas questões Sempre que se coloca a questão de saber como a infraestrutura determina a ideologia encontramos a seguinte resposta que embora justa mostrase por demais genérica e por isso ambígua a causalidade Se for necessário entender por causalidade a mecanicista como tem sido entendida até hoje pela corrente positivista da escola naturalista então uma tal resposta se revela radicalmente mentirosa e contraditória com os próprios fundamentos do materialismo dialético A esfera de aplicação da categoria de causalidade mecanicista é extremamente limitada mesmo nas ciências naturais ela se reduz cada vez mais à medida que o materialismo dialético alarga seu campo de aplicação e aprofunda suas teses Está fora de questão a fortiori aplicar esta categoria inerte aos problemas fundamentais do materialismo histórico ou a qualquer ciência das ideologias A explicitação de uma relação entre a infraestrutura e um fenômeno isolado qualquer destacado de seu contexto ideoló gico completo e único não apresenta nenhum valor cognitivo Antes de mais nada é impossível estabelecer o sentido de uma dada transformação ideológica no contexto da ideologia correspondente considerando que toda esfera ideológica se apre senta como um conjunto único e indivisível cujos elementos sem exceção reagem a uma transformação da infraestrutura Eis porque toda explicação deve ter em conta a diferença quantitativa entre as esferas de influência recíproca e seguir passo a passo todas as etapas da transformação Apenas sob esta condição a análise desembo 39 cará não na convergência superficial de dois fenômenos fortuitos e situados em planos diferentes mas num processo de evolução social realmente dialético que procede da infraestrutura e vai tomar forma nas superestruturas Ignorar a especificidade do material semióticoideológico é reduzir o fenômeno ideológico é tomar em consideração e explicar apenas seu valor denotativo racional por exemplo o sentido diretamente representativo de uma dada obra literária Rúdin o homem supérfluo componente este colocado então em relação com a infra estrutura aqui o empobrecimento da nobreza donde o tema homem supérfluo na literatura ou então ao contrário é isolar apenas o componente superficial técnico do fenômeno ideológico exemplo a técnica arquitetônica ou ainda a técnica dos colorantes químicos e neste caso este componente deduzse diretamente do nível técnico da produção Tanto um quanto outro método de dedução da ideologia a partir da infraestrutura passam à margem da substância do fenômeno ideológico Mesmo se a correspondência estabelecida for justa mesmo se o homem supérfluo tiver efetivamente aparecido na literatura em correlação com a decadência econômica da nobreza em primeiro lugar disto não decorre em absoluto que os reveses econômicos correspondentes engendrem por um fenômeno de causalidade mecanicista homens supérfluos nas páginas dos romances a futilidade de uma tal suposição é absolutamente evidente em segundo lugar esta correspondência não tem nenhum valor cognitivo enquanto não se explicitarem o papel específico do homem supérfluo na estrutura da obra romanesca e o papel específico do romance no conjunto da vida social Não parece evidente que entre a transformação da estrutura econômi ca e o aparecimento do homem supérfluo no romance existe um longo percurso que passa por uma série de esferas qualitati vamente diferenciadas estando cada uma delas dotada de um con junto de regras específicas e de um caráter próprio Não parece evi Título de um célebre romance de Turguiéniev que constitui a confissão de toda uma geração a dos anos 1830 conhecida na história russa pelo nome de geração idealista e marcada pela sua incapacidade de agir Dela podemos aproximar os personagens Oblómov em Oblómov de IA Gontcharov Deltov em De quem é a Culpa de A I Herzen e Bazárov em Pais e Filhos de Turguiéniev NdTf 40 dente que o homem supérfluo não surgiu no romance de for ma independente e sem qualquer ligação com os outros ele mentos constitutivos do romance Bem ao contrário o romance no seu conjunto reestruturouse como um todo único orgânico subme tido a suas próprias leis específicas Portanto reestruturamse tam bém todos os outros elementos do romance sua composição seu estilo Mas esta reestruturação do romance completouse também em estreita ligação com as demais transformações no conjunto da literatura O problema da relação recíproca entre a infraestrutura e as superestruturas problema dos mais complexos e que exige para sua resolução fecunda um volume enorme de materiais preliminares pode justamente ser esclarecido em larga escala pelo estudo do material verbal De fato a essência deste problema naquilo que nos interessa ligase à questão de saber como a realidade a infraestrutura determina o signo como o signo reflete e refrata a realidade em transformação As características da palavra enquanto signo ideológico tais como foram ressaltadas no primeiro capítulo fazem dela um dos mais adequados materiais para orientar o problema no plano dos princípios Não é tanto a pureza semiótica da palavra que nos interessa na relação em questão mas sua ubiqüidade social Tanto é verdade que a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos nas relações de colaboração nas de base ideológica nos encontros fortuitos da vida cotidiana nas relações de caráter político etc As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais mesmo daquelas que apenas despontam que ainda não tomaram forma que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas mais efêmeras das mudanças sociais O que chamamos de psicologia do corpo social e que constitui segundo a teoria de Plekhánov e da maioria dos marxistas uma espécie de elo de ligação entre a estrutura sóciopolítica e a ideo logia no sentido estrito do termo ciência arte etc reali 41 zase materializase sob a forma de interação verbal Se conside rada fora deste processo real de comunicação e de interação ver bal ou mais genericamente semiótica a psicologia do corpo so cial se transforma num conceito metafísico ou mítico a alma coletiva o inconsciente coletivo o espírito do povo etc A psicologia do corpo social não se situa em nenhum lugar interior na alma dos indivíduos em situação de comunicação ela é pelo contrário inteiramente exteriorizada na palavra no gesto no ato Nada há nela de inexprimível de interiorizado tudo está na superfície tudo está na troca tudo está no material principalmente no material verbal As relações de produção e a estrutura sóciopolítica que delas diretamente deriva determinam todos os contatos verbais possíveis entre indivíduos todas as formas e os meios de comunicação verbal no trabalho na vida política na criação ideológica Por sua vez das condições formas e tipos da comunicação verbal derivam tanto as formas como os temas dos atos de fala A psicologia do corpo social é justamente o meio ambiente inicial dos atos de fala de toda espécie e é neste elemento que se acham submersas todas as formas e aspectos da criação ideológica ininterrupta as conversas de corredor as trocas de opinião no teatro e no concerto nas diferentes reuniões sociais as trocas puramente fortuitas o modo de reação verbal face às realidades da vida e aos acontecimentos do diaadia o discurso interior e a consciência auto referente a regulamentação social etc A psicologia do corpo social se manifesta essencialmente nos mais diversos aspectos da enunciação sob a forma de diferentes modos de discurso sejam eles interiores ou exteriores Este campo não foi objeto de nenhum estudo até hoje Todas estas manifestações verbais estão por certo ligadas aos demais tipos de manifestação e de interação de natureza semiótica à mímica à linguagem gestual aos gestos condicionados etc Estas formas de interação verbal achamse muito estreitamente vinculadas às condições de uma situação social dada e reagem de maneira muito sensível a todas as flutuações da atmosfera social Assim é que no seio desta psicologia do corpo social materializada na palavra acumulamse mudanças e deslocamentos quase imperceptíveis que mais tarde encontram sua expressão nas produções ideológicas acabadas Do que até agora foi dito podemos deduzir o seguinte que a psicologia do corpo social deve ser estudada de dois pontos de vista 42 diferentes primeiramente do ponto de vista do conteúdo dos temas que aí se encontram atualizados num dado momento do tempo e em segundo lugar do ponto de vista dos tipos e formas de discurso através dos quais estes temas tomam forma são comentados se realizam são experimentados são pensados etc Até o presente o estudo da psicologia do corpo social se limitava ao primeiro ponto de vista ou seja à explicitação única da temática nela contida E mais a própria questão de saber onde buscar documentos objetivos isto é a expressão materializada da psicologia do corpo social nem mesmo se colocava com toda sua clareza Aí então os conceitos de consciência psiquismo e mundo interior desempenharam um papel deplorável suprimindo a necessidade de pesquisar as formas materiais precisas da expressão da psicologia do corpo social No entanto esta questão das formas concretas tem uma significação imediata Não se trata é claro nem das fontes de nosso conhecimento da psicologia do corpo social numa ou noutra época por exemplo memórias cartas obras literárias nem das fontes de nossa compreensão do espírito da época Tratase muito precisamente das próprias formas de concretização deste espírito isto é das formas da comunicação no contexto da vida e através de signos A tipologia destas formas é um dos problemas vitais para o marxismo Mais tarde em conexão com o problema da enunciação e do diálogo abordaremos também o problema dos gêneros lingüísticos A este respeito faremos simplesmente a seguinte observação cada época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comunicação sócioideológica A cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gênero isto é a cada forma de discurso social corresponde um grupo de temas Entre as formas de comunicação por exemplo relações entre colaboradores num contexto puramente técnico a forma de enunciação respostas curtas na linguagem de negócios e enfim o tema existe uma unidade orgânica que nada poderia destruir Eis porque a classificação das formas de enunciação deve apoiarse sobre uma classificação das formas da comunicação verbal Estas últimas são inteiramente determinadas pelas relações de produção e pela estrutura sóciopolítica Uma análise mais minuciosa revelaria a importância incomensurável do componente hierárquico no processo de interação verbal a influência poderosa que exerce a organização hierarquizada das relações sociais sobre as formas de enunciação O respeito às regras da etiqueta do bemfalar e as demais formas de adaptação da enunciação à organização 43 hierarquizada da sociedade têm uma importância imensa no processo de explicitação dos principais modos de comportamento1 Todo signo como sabemos resulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação Razão pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece Uma modificação destas formas ocasiona uma modificação do signo É justamente uma das tarefas da ciência das ideologias estudar esta evolução social do signo lingüístico Só esta abordagem pode dar uma expressão concreta ao problema da mútua influência do signo e do ser é apenas sob esta condição que o processo de determinação causal do signo pelo ser aparece como uma verdadeira passagem do ser ao signo como um processo de refração realmente dialético do ser no signo Para tanto é indispensável observar as seguintes regras metodológicas 1 Não separar a ideologia da realidade material do signo colocandoa no campo da consciência ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível 2 Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social entendendose que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organizada e que não tem existência fora deste sistema a não ser como objeto físico 3 Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material infraestrutura Realizandose no processo da relação social todo signo ideológico e portanto também o signo lingüístico vêse marcado pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinados Até agora tratamos da forma do signo enquanto determinado pelas formas da interação social Iremos agora abordar um outro aspecto o do conteúdo do signo e do índice de valor que afeta todo conteúdo A cada etapa do desenvolvimento da sociedade encontramse grupos de objetos particulares e limitados que se tornam objeto da 1 O problema dos registros da língua familiar só começou a chamar a atenção dos lingüistas e filósofos bem recentemente 44 atenção do corpo social e que por causa disso tomam um valor particular Só este grupo de objetos dará origem a signos Leo Spitzer num artigo intitulado Italienische Umgangsprache 1922 foi um dos primeiros a abordar este problema de forma séria embora destituída de critérios sociológicos Ele será citado adiante juntamente com seus precursores e imitadores tornarseá um elemento da comunicação por signos Como se pode determinar este grupo de objetos valorizados Para que o objeto pertencente a qualquer esfera da realidade entre no horizonte social do grupo e desencadeie uma reação semióticoideológica é indispensável que ele esteja ligado às condições sócioeconômicas essenciais do referido grupo que concerne de alguma maneira às bases de sua existência material Evidentemente o arbítrio individual não poderia desempenhar aqui papel algum já que o signo se cria entre indivíduos no meio social é portanto indispensável que o objeto adquira uma significação interindividual somente então é que ele poderá ocasionar a formação de um signo Em outras palavras não pode entrar no domínio da ideologia tomar forma e aí deitar raízes senão aquilo que adquiriu um valor social É por isso que todos os índices de valor com caracterís ticas ideológicas ainda que realizados pela voz dos indivíduos por exemplo na palavra ou de modo mais geral por um orga nismo individual constituem índices sociais de valor com pre tensões ao consenso social e apenas em nome deste consenso é que eles se exteriorizam no material ideológico Admitamos chamar a realidade que dá lugar à formação de um signo de tema do signo Cada signo constituído possui seu tema Assim cada manifestação verbal tem seu tema2 O tema ideológico possui sempre um índice de valor social Por certo todos estes índices sociais de valor dos temas ideológicos chegam igualmente à consciência individual que como sabemos é toda ideologia Aí eles se tornam de certa forma índices individuais de valor na medida em que a consciência individual os absorve como sendo seus mas sua fonte não se encontra na consciência individual 2 A relação do tema com a semântica das palavras individuais que constituem a enunciação será retomada adiante em seus pormenores 45 O índice de valor é por natureza interindividual O grito do animal enquanto pura reação de um organismo individual à dor é despido de índice de valor É um fenômeno puramente natural O grito não depende da atmosfera social razão pela qual ele não recebe sequer o esboço de uma formalização semiótica O tema e a forma do signo ideológico estão indissoluvelmente ligados e não podem por certo diferenciarse a não ser abstratamente Tanto é verdade que em última análise são as mesmas forças e as mesmas condições que dão vida a ambos Afinal são as mesmas condições econômicas que associam um novo elemento da realidade ao horizonte social que o tornam socialmente pertinente e são as mesmas forças que criam as formas da comunicação ideológica cognitiva artística religiosa etc as quais determinam por sua vez as formas da expressão semiótica Assim os temas e as formas da criação ideológica crescem juntos e constituem no fundo as duas facetas de uma só e mesma coisa Este processo de integração da realidade na ideologia o nascimento dos temas e das formas se tornam mais facilmente observáveis no plano da palavra Este processo de transformação ideológica refletiuse na língua em grande escala no mundo e na história é ele objeto de estudo da paleontologia das significações lingüísticas que põe em evidência a integração de planos da realidade ainda não diferenciados no horizonte social dos homens préhistóricos Sucede o mesmo em escala mais reduzida na época contemporânea já que a palavra como sabemos reflete sutilmente as mais imperceptíveis alterações da existência social O ser refletido no signo não apenas nele se reflete mas também se refrata O que é que determina esta refração do ser no signo ideológico O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica ou seja a luta de classes Classe social e comunidade semiótica não se confundem Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um único e mesmo código ideológico de comunicação Assim classes sociais diferentes servemse de uma só e mesma língua Conseqüentemente em todo signo ideológico confrontamse índices de valor contraditórios O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior importância Na verdade é este entrecruzamento dos índices de 46 valor que torna o signo vivo e móvel capaz de evoluir O signo se subtraído às tensões da luta social se posto à margem da luta de classes irá infalivelmente debilitarse degenerará em alegoria tornar seá objeto de estudo dos filólogos e não será mais um instrumento racional e vivo para a sociedade A memória da história da humanidade está cheia destes signos ideológicos defuntos incapazes de constituir uma arena para o confronto dos valores sociais vivos Somente na medida em que o filólogo e o historiador conservam a sua memória é que subsistem ainda neles alguns lampejos de vida Mas aquilo mesmo que torna o signo ideológico vivo e dinâmico faz dele um instrumento de refração e de deformação do ser A classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava a fim de tornar o signo monovalente Na realidade todo signo ideológico vivo tem como Jano duas faces Toda crítica viva pode tornarse elogio toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária Nas condições habituais da vida social esta contradição oculta em todo signo ideológico não se mostra à descoberta porque na ideologia dominante estabelecida o signo ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta por assim dizer estabilizar o estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como sendo válida hoje em dia Donde o caráter refratário e deformador do signo ideológico nos limites da ideologia dominante É assim que se apresenta o problema da relação entre a infra estrutura e as superestruturas Nós apenas tomamos em consideração a concretização de alguns dos aspectos deste problema e tentamos traçar o caminho que uma pesquisa fecunda neste terreno deve seguir Era essencial mostrar o lugar da filosofia da linguagem dentro desta problemática O estudo do signo lingüístico permite observar mais facilmente e de forma mais profunda a continuidade do processo dialético de evolução que vai da infraestrutura às superestruturas É no terreno da filosofia da linguagem que se torna mais fácil extirpar pela raiz a explicação pela causalidade mecanicista dos fenômenos ideológicos 47 CAPÍTULO 3 FILOSOFIA DA LINGUAGEM E PSICOLOGIA OBJETIVA Uma das tarefas mais essenciais e urgentes do marxismo é constituir uma psicologia verdadeiramente objetiva No entanto seus fundamentos não devem ser nem fisiológicos nem biológicos mas SOCIOLÓGICOS De fato o marxismo encontrase frente a uma árdua tarefa a procura de uma abordagem objetiva porém refinada e flexível do psiquismo subjetivo consciente do homem que em geral é analisado pelos métodos de introspecção Nem a biologia nem a fisiologia estão em condições de resolver esse problema A consciência constitui um fato sócioideológico não acessível a métodos tomados de empréstimo à fisiologia ou às ciências naturais É impossível reduzir o funcionamento da consciência a alguns processos que se desenvolvem no interior do campo fechado de um organismo vivo Os processos que no essencial determinam o conteúdo do psiquismo desenvolvemse não no organismo mas fora dele ainda que o organismo individual participe deles O psiquismo subjetivo do homem não constitui um objeto de análise para as ciências naturais como se se tratasse de uma coisa ou de um processo natural O psiquismo subjetivo é o objeto de uma análise ideológica de onde se depreende uma interpretação sócioideológica O fenômeno psíquico uma vez compreendido e interpretado é explicável exclusivamente por fatores sociais que determinam a vida concreta de um dado indivíduo nas condições do meio social1 1 Um esboço popular dos modernos problemas da psicologia encontrase em nosso livro Freidizm kritítcheskoie ótcherk Freudismo Esboço Crítico MoscouLeningrado 1927 Ver cap 2 Duas Orientações da Psicologia Contemporânea 48 O primeiro e principal problema que se coloca a partir dessa ótica é o da apreensão objetiva da vivência interior É indispensável integrar a vivência interior na unidade da vivência exterior objetiva Que tipo de realidade pertence ao psiquismo subjetivo A realidade do psiquismo interior é a do signo Sem material semiótico não se pode falar em psiquismo Podese falar de processos fisiológicos de processos do sistema nervoso mas não de processo do psiquismo subjetivo uma vez que ele é um traço particular do ser radicalmente diferente tanto dos processos fisiológicos que se desenrolam no organismo quanto da realidade exterior ao organismo realidade à qual o psiquismo reage e que ele reflete de uma maneira ou de outra Por natureza o psiquismo subjetivo localizase no limite do organismo e do mundo exterior vamos dizer na fronteira dessas duas esferas da realidade É nessa região limítrofe que se dá o encontro entre o organismo e o mundo exterior mas este encontro não é físico o organismo e o mundo encontramse no signo A atividade psíquica constitui a expressão semiótica do contato entre o organismo e o meio exterior Eis porque o psiquismo interior não deve ser analisado como uma coisa ele não pode ser compreendido e analisado senão como um signo A idéia de uma psicologia de análise e de interpretação é muito antiga e sua história é muito instrutiva É sintomático que nos últimos tempos em ligação com as exigências metodológicas das ciências humanas isto é das ciências que se ocupam das ideologias ele tenha sido objeto de argumentações mais profundas Um dos seus defensores mais ardentes e bem fundamentados foi Wihelm Dilthey Para ele a atividade psíquica não se define em termos de existência como se diria para uma coisa mas em termos de significação Se perdermos de vista esta significação se tentarmos alcançar a realidade pura da atividade mental na realidade encontramonos segundo Dilthey diante de um processo fisiológico do organismo perdemos de vista a atividade mental Da mesma maneira que se nós perdemos de vista a significação da palavra perdemos a própria palavra que fica assim reduzida à sua realidade física acompanhada do processo fisiológico de sua produção O que faz da palavra uma palavra é sua significação O que faz da atividade psíquica uma atividade psíquica é da mesma forma sua significação Se abstrairmos a significação perdemos ao mesmo tempo a própria substância da vida psíquica interior É por isso que o objetivo da psicologia não poderia ser explicar os fenômenos psíquicos pela causalidade como se fossem análogos aos processos físicos ou fisiológicos Assim a tarefa da 49 psicologia consiste em descrever com discernimento dissecar e explicar a vida psíquica como se se tratasse de um documento submetido à análise do filólogo Segundo Dilthey somente uma psicologia descritiva e explicativa deste tipo pode servir de base às ciências humanas ou às ciências do espírito como eles as chama2 As idéias de Dilthey revelaramse muito fecundas e continuam a ter em nossos dias numerosos adeptos entre os pesquisadores em ciências humanas Podese dizer que a quase totalidade dos eruditos alemães contemporâneos que se ocupam da filosofia estão alguns mais outros menos sob a influência das idéias de W Dilthey3 A teoria de Wilhelm Dilthey formouse sobre um terreno idealista e seus seguidores permaneceram neste terreno A idéia de uma psicologia de análise e de interpretação está estreitamente ligada às premissas idealistas do pensamento e a muitos aparece como uma idéia especificamente idealista Realmente a partir da forma pela qual a psicologia interpretativa foi criada e se desenvolveu até o presente ela é idealista e portanto inaceitável para o materialismo dialético Mas o mais inaceitável é a primazia metodológica da psicologia sobre a ideologia Segundo a visão de Dilthey e dos outros representantes da psicologia interpretativa ela deve ser a base de todas as ciências humanas A ideologia é explicada em termos da psicologia como a sua expressão e materialização e não o inverso É verdade que se diz haver entre o psiquismo e a ideologia uma proximidade um denominador comum a significação que os distingue do resto da realidade mas afirmase que é a psicologia não a ideologia que dá o tom dessa aproximação Por sua vez nas idéias de Dilthey e outros não se leva em conta o caráter social do signo E finalmente e isto constitui o proton pseudos a primeira mentira de toda sua concepção não se compreende o vínculo indispensável entre o signo e a significação Não se percebe a natureza específica do signo 2 Ver a este propósito o artigo em língua russa de Frischeizen Keller em Logos 19121913 vol 1 e 2 3 Sobre a influência de Dilthey enquanto iniciador dessa corrente ver Oskar Wahlzehl Wilhelm Hundolf Emil Ehrmattinger e outros Citaremos apenas os representantes mais significativos das ciências humanas na Alemanha contemporânea 50 Na verdade a relação entre atividade mental e palavra em Dilthey não passa de uma analogia destinada a esclarecer uma idéia e além disso só muito raramente a encontramos em sua obra Ele está muito distante de extrair desta comparação as conclusões que se impõem Por outro lado não é o psiquismo que ele explica com a ajuda do signo mas ao contrário como bom idealista é o signo que ele explica através do psiquismo O signo só se torna signo em Dilthey na medida em que serve para expressar a vida interior Esta última confere ao signo uma significação que lhe é inerente Aqui a construção de Dilthey encarna uma tendência comum ao conjunto da corrente idealista que consiste em privar de todo sentido de toda significação o mundo material em benefício de um espírito fora do tempo e do espaço Se a atividade mental tem uma significação se ela não é apenas uma realidade isolada em relação a esse aspecto Dilthey tem razão então obrigatoriamente a atividade mental deve manifestarse no terreno semiótico Tanto isso é verdade que a significação só pode pertencer ao signo sem o que ela se torna uma ficção A significação constitui a expressão da relação do signo como realidade isolada com uma outra realidade por ela substituível representável simbolizável A significação é a função do signo eis porque é impossível representar a significação enquanto propriedade puramente relacional funcional à parte do signo como algo independente particular Isso é tão exeqüível como considerar a significação da palavra cavalo como sendo o cavalo particular que tenho diante dos meus olhos Se assim fosse seria possível tendo comido uma maçã dizer que se comeu não uma maçã mas a significação da palavra maçã O signo é uma unidade material discreta mas a significação não é uma coisa e não pode ser isolada do signo como se fosse uma realidade independente tendo uma existência à parte do signo É por isso que se a atividade mental tem um sentido se ela pode ser compreendida e explicada ela deve ser analisada por intermédio do signo real e tangível É preciso insistir sobre o fato de que não somente a atividade mental é expressa exteriormente com a ajuda do signo assim como nos expressamos para os outros por palavras mímica ou qualquer outro meio mas ainda que para o próprio indivíduo ela só existe sob a forma de signos Fora deste material semiótico a atividade interior enquanto tal não existe Nesse sentido toda atividade mental é exprimível isto é constitui uma expressão potencial Todo pensamento toda emoção todo 51 movimento voluntário são exprimíveis A função expressiva não pode ser separada da atividade mental sem que se altere a própria natureza desta4 Assim não existe um abismo entre a atividade psíquica interior e sua expressão não há ruptura qualitativa de uma esfera da realidade à outra A passagem da atividade mental interior à sua expressão exterior ocorre no quadro de um mesmo domínio qualitativo e se apresenta como uma mudança quantitativa É verdade que correntemente no curso do processo de expressão exterior operase a passagem de um código a um outro por exemplo código mímicocódigo lingüístico mas o conjunto do processo não escapa do quadro da expressão semiótica O que constitui o material semiótico do psiquismo Todo gesto ou processo do organismo a respiração a circulação do sangue os movimentos do corpo a articulação o discurso interior a mímica a reação aos estímulos exteriores por exemplo a luz resumindo tudo que ocorre no organismo pode tornarse material para a expressão da atividade psíquica posto que tudo pode adquirir um valor semiótico tudo pode tornarse expressivo É verdade que nem todos estes elementos têm igual valor Para um psiquismo relativamente desenvolvido diferenciado um ma terial semiótico refinado e flexível é indispensável e por sua vez é preciso que esse material se preste a uma formalização e a uma diferenciação no meio social no processo de expressão ex terior É por isso que a palavra o discurso interior se revela como o material semiótico privilegiado do psiquismo É verdade que o discurso interior se entrecruza com uma massa de outras reações gestuais com valor semiótico Mas a palavra se apresenta como o fundamento a base da vida interior A exclu são da palavra reduziria o psiquismo a quase nada enquanto que a exclusão de todos os outros movimentos expressivos a diminuiriam muito pouco Se não nos voltássemos para a função semiótica do dis curso interior e para todos os outros movimentos expressivos que formam o psiquismo nós estaríamos diante de um pro cesso fisiológico puro desenvolvendose nos limites do orga 4 A idéia de valor expressivo de todas as manifestações da consciência não é estranha ao neokantismo Ao lado dos trabalhos 52 nismo individual Para o fisiólogo tal abstração é legítima e mesmo já citados de Cassirer sobre o caráter expressivo da consciência a consciência enquanto movimento expressivo podese citar o sistema formulado por Herman Cohen na terceira parte de Aesthetik des reinen Gefühls Contudo a idéia tal como está ali apresentada não permite conclusões corretas A essência da consciência permanece apesar de tudo para além dos limites da existência indispensável só interessa a ele o processo fisiológico e seu mecanismo Contudo mesmo para o fisiólogo como para o biólogo é importante levar em conta a função semiótica expressiva e portanto a função social dos processos fisiológicos correspondentes Sem isso ele não compreenderá seu papel biológico no conjunto do funcionamento do organismo Nesse ponto mesmo o biólogo não pode excluir o ponto de vista do sociólogo ele precisa considerar que o organismo humano não pertence a um meio natural abstrato mas faz parte integrante de um meio social específico Porém uma vez considerada a função semiótica dos processos fisiológicos correspondentes o fisiólogo centrase na observação de seus mecanismos puramente fisiológicos por exemplo o mecanismo dos reflexos condicionados e ele abstrai completamente suas significações ideológicas mutáveis que se subordinam a leis sócio históricas Em suma o conteúdo do psiquismo não lhes interessa Ora é justamente o conteúdo do psiquismo tomado em sua relação com o organismo individual que constitui o objeto da psicologia Uma ciência digna desta denominação não tem e não pode ter outro objeto Alguns afirmam que o conteúdo do psiquismo não é o objeto da psicologia este objeto seria somente a função deste conteúdo no psiquismo individual Este é o ponto de vista da chamada psicologia funcionaista5 Segundo a doutrina dessa escola a atividade mental contém duas facetas Primeiramente há o conteúdo da atividade mental Sua natureza não é psíquica O que está em jogo é ou um fenômeno físico em que a experiência se focaliza por exemplo um objeto da percepção ou um conteúdo cognitivo com seu próprio 5 Os representantes mais significativos da psicologia funcionalista são Stumpf e Meineng A psicologia funcionalista foi fundada por Franz Brentano Na atualidade ela constitui incontestavelmente a principal corrente da reflexão psicológica na Alemanha ainda que não seja na sua forma mais clássica 53 sistema de leis ou ainda uma apreciação ética etc Esse aspecto objetivo orientado da atividade interior é uma propriedade da natureza da cultura ou da história e conseqüentemente é da competência das disciplinas científicas correspondentes e não da psicologia A outra faceta da atividade mental é a função de qualquer conteúdo objetivo dentro do sistema fechado da vida psíquica individual Desta maneira o objeto da psicologia é a atividade mental efetivada ou em vias de efetivarse a propósito de todo con teúdo extrapsíquico Em outras palavras o objeto da psicologia funcionalista não é o quê mas o como da atividade mental Assim por exemplo o conteúdo de um processo de pensamento qualquer o seu quê não é psíquico e depende da competência do lógico do teórico do conhecimento gnosiólogo ou do matemático se se trata do pensamento matemático O psicólogo mesmo só estuda o como dos processos de pensamento com seus vários conteúdos objetivos lógicos matemáticos e outros nas condições de um dado psiquismo subjetivo Não nos ocuparemos aqui das divergências por vezes substanciais existentes entre os adeptos desta escola ou de tendências próximas acerca do entendimento da função psíquica Para a tarefa que nos fixamos uma exposição dos princípios de base é o suficiente Ela nos permitirá esclarecer nossa concepção do psiquismo e em que a resolução do problema da psicologia é importante para a filosofia do signo a filosofia da linguagem A psicologia funcionalista formouse e desenvolveuse também sobre as bases do idealismo Mas em alguns de seus aspectos ela se mostra diametralmente oposta à psicologia interpretativa de Dilthey De fato se Dilthey se esforça por levar de alguma forma o psiquismo e a ideologia a um denominador comum a significação a psicologia funcionalista ao contrário tenta traçar uma fronteira de princípio das mais rígidas entre o psiquismo e a ideologia e isto no interior mesmo do psiquismo Tudo o que é significante encontrase no final das contas excluído do campo psíquico na medida em que tudo que é psíquico encontrase subordinado ao funcionamento puro e simples de conteúdos objetivos isolados formando uma espécie de constelação individual denominada alma individual Se é preciso falar aqui de primazia é certo que na psicologia funcionalista ao contrário da psicologia interpretativa é a ideologia que tem a primazia sobre o psiquismo Podese perguntar agora qual é a natureza da função psí quica Seu tipo de existência Não encontramos a resposta 54 clara e satisfatória a essa questão junto aos adeptos da psico logia funcionalista Nesse ponto faltalhes clareza não se encon tra unidade nem acordo Mas há um ponto sobre o qual eles são unânimes a função psíquica não pode ser assimilada a um processo fisiológico qualquer Assim sendo a compo nente psicológica é nitidamente demarcada em relação à compo nente fisiológica Mas saber que tipo de entidade é essa a psíquica é algo que permanece obscuro assim como o problema da realidade dos fenômenos ideológicos A única instância em que os funcionalistas fornecem uma res posta clara é quando a atividade mental se exerce sobre objetos naturais à função psíquica opõese aqui um ser natural físico uma árvore a terra uma pedra etc Mas qual forma pode tomar o ser ideológico frente à função psíquica A forma de um conceito lógico de um valor ético de uma obra de arte etc A maior parte dos representantes da psicologia funcionalista se atém a perspectivas idealistas essencialmente kantianas acerca desse problema6 Ao lado do psiquismo individual e da consciência subjetiva individual eles reservam um lugar à consciência global à consciência transcendental ao sujeito puramente gnosiológico etc É neste contexto transcendental que eles localizam o fenômeno ideológico por oposição à função psíquica individual7 Assim o problema da realidade ideológica fica sem solução nos quadros da psicologia funcionalista Decorre dessa falta de compreensão do signo ideológico e da natureza específica de sua existência que os próprios problemas do psiquismo permanecem insolúveis Eles não serão resolvidos enquanto não se resolva o problema da ideologia Estas duas questões estão indissoluvelmente ligadas As histórias da psicologia e das ciências ligadas à ideologia a lógica a teoria do conhecimento a estética as ciências humanas etc são as de uma luta incessante de uma delimitação recíproca de fronteiras e de uma mútua absorção 6 Atualmente encontramse ao lado dos funcionalistas e repartindo o mesmo terreno os fenomenólogos cujos princípios filosóficos gerais devem muito a Franz Brentano 7 Como os fenomenólogos eles conferem às noções ideológicas um estatuto ontológico postulando a existência de uma esfera autônoma do ser ideal 55 Tudo se passa como se houvesse uma alternância periódica entre o psicologismo espontaneísta absorvendo todas as ciências de orientação ideológica e um antipsicologismo agudo esvaziando o psiquismo de seu conteúdo e conduzindoo a um lugar vazio puramente formal como na psicologia funcionalista ou ainda a um simples fisiologismo Nesse ínterim a ideologia privada pelo antipsicologismo de seu lugar habitual no ser isto é no psiquismo não encontra seu lugar em parte alguma e se vê obrigada a emigrar da realidade para as alturas transcendentais No começo do século XX tivemos uma vaga poderosa em bora não a primeira da história longe disso de antipsicologismo No curso dos dois primeiros decênios do século pudemos assis tir a eventos filosóficos e metodológicos da mais alta impor tância os trabalhos fundamentais de Husserl8 principal representante do antipsicologismo contemporâneo os trabalhos de seus discípulos os intencionalistas fenomenólogos a guinada brutalmente antipsicológica dos defensores contemporâneos do neokantismo das escolas de Marburg e Freiburg9 a exclusão do psicologismo de todos os domínios do conhecimento inclusive da própria psicologia Atualmente a vaga de antipsicologismo está em vias de refluir e uma nova onda aparentemente muito poderosa de psicologismo se prepara para substituíla A variedade de psicologismo em moda denominase Filosofia Existencial Sob esta etiqueta o psicologismo mais desenfreado retoma aceleradamente todas as posições que teve de abandonar há pouco tempo nas esferas da filosofia e das ciências 8 Ver o vol I de Logische Untersuchungen Investigações Lógicas tradução russa de 1910 que constitui por assim dizer a bíblia do antipsicologismo contemporâneo assim como seu artigo A Filosofia como Ciência do Rigor in Logos 1911 1912 vol 1 9 Ver por exemplo o artigo muito instrutivo de Rickert principal representante da escola de Freiburg Duas Abordagens sobre a Teoria do Conhecimento na compilação Idéias Novas em Filosofia no 7 1913 Nesta publicação Rickert sob a influência de Husserl traduz na linguagem do antipsicologismo sua concepção originalmente psicologista acerca da teoria do conhecimento Esse artigo esclarece as relações do neokantismo com o movimento antipsicologista 56 ligadas à ideologia10 Esta vaga de psicologismo não traz consigo nenhuma definição nova da realidade psíquica O psicologismo mais recente ao contrário da vaga anterior segunda metade do século XIX de natureza positivoempirista o representante mais típico é Wundt tende a comentar o ser interior a esfera da atividade mental de maneira metafísica Desse modo a alternância do psicologismo e do antipsico logismo não desembocou numa síntese dialética A filosofia burgue sa até o presente não soube solucionar de maneira apropriada nem o problema da psicologia nem o da ideologia Os dois problemas devem ser tratados conjuntamente Nós afirmamos que uma só e mesma chave nos dá o acesso objetivo às duas esferas Esta chave é a filosofia do signo a filosofia da palavra enquanto signo ideológico por excelência O signo ideológico é o território comum tanto do psiquismo quanto da ideologia é um território concreto sociológico e significante É sobre este território que se deve operar a delimitação das fronteiras entre a psicologia e a ideologia O psiquismo não deve ser uma réplica do universo e este não deve servir como simples indicação cênica acompanhando o monólogo psíquico Mas se a realidade do psiquismo é uma realidade semiótica como delimitar a fronteira entre o psiquismo subjetivo individual e a ideologia em sentido estrito já que esta se apresenta igualmente como uma realidade semiótica De momento apenas indicamos um 10 Encontramos um panorama completo da filosofia existencial panorama é verdade tendencioso e algo ultrapassado no livro de Rickert A Filosofia Existencial Academia 1921 O livro de Spranger Lebensformen exerceu uma influência enorme sobre as ciências humanas Hoje em dia todos os representantes mais importantes da crítica literária e da lingüística alemãs encontramse de uma forma ou de outra sob a influência da filosofia existencial Citaremos Ehrmattinger Das Dichterische Kunstwerk 1921 Hundolf seus livros sobre Goethe e sobre Georg 19161925 Hefele Das Wesen der Dichtung 1923 Wahlzehl Gehalt und Form in Dichteris che Kunstwerk 1923 Vossler e os vosslerianos etc Mais adiante teremos algo a dizer sobre alguns destes estudiosos 57 território comum É indispensável agora traçar no interior deste território uma fronteira adequada O fundo deste problema remete à determinação da natureza do signo interior nos limites do corpo que é acessível em sua realidade imediata à introspecção Do ponto de vista do con teúdo ideológico propriamente dito não seria possível estabe lecer uma fronteira entre o psíquico e o ideológico Todo con teúdo ideológico sem exceção qualquer que seja o código pelo qual ele é veiculado pode ser compreendido e em conseqüência psiquicamente assimilado isto é ele pode ser produzido por intermédio do signo interior Por outro lado todo fenômeno ideológico ao longo do processo de sua criação passa pelo psiquismo como por uma instância obrigatória Repetindo todo signo ideológico exterior qualquer que seja sua natureza banhase nos signos interiores na consciência Ele nasce deste oceano de signos interiores e aí continua a viver pois a vida do signo exterior é constituída por um processo sempre renovado de compreensão de emoção de assimilação isto é por uma integração reiterada no contexto interior É por esse motivo que do ponto de vista do conteúdo não há fronteira a priori entre o psiquismo e a ideologia Há apenas uma diferença de grau no estágio do desenvolvimento interior o elemento ideológico ainda não exteriorizado sob a forma de mate rial ideológico é apenas um elemento confuso Ele não pode aperfeiçoarse diferenciarse afirmarse a não ser no processo de expressão ideológica A intenção vale sempre menos do que a realização mesmo falha O pensamento que só existe no contexto de minha consciência e não é reforçado no contexto da ciência como sistema ideológico coerente é apenas um pensamento obscuro e inacabado Mas no contexto de minha consciência esse pensa mento pouco a pouco toma forma apoiandose no sistema ideo lógico pois ele próprio foi engendrado pelos signos ideológicos que assimilei anteriormente Uma vez mais não há aqui diferença qualitativa Os processos cognitivos provenientes de livros e do discurso dos outros e os que se desenvolvem em minha mente pertencem à mesma esfera da realidade e as diferenças que existem apesar de tudo entre a mente e os livros não dizem respeito ao conteúdo do processo cognitivo O que complica mais o problema da delimitação do psíquico e do ideológico é o conceito do individual Aceitase geralmente uma correlação entre o individual e o social De onde se extrai a conclusão de que o psiquismo é individual e a ideologia social 58 Esta concepção revelase radicalmente falsa Social está em correlação com natural não se trata aí do indivíduo en quanto pessoa mas do indivíduo biológico natural O indi víduo enquanto detentor dos conteúdos de sua consciência en quanto autor dos seus pensamentos enquanto persona lidade responsável por seus pensamentos e por seus dese jos apresentase como um fenômeno puramente sócioideoló gico Esta é a razão porque o conteúdo do psiquismo individual é por natureza tão social quanto a ideologia e por sua vez a pró pria etapa em que o indivíduo se conscientiza de sua individualidade e dos direitos que lhe pertencem é ideológica histórica e internamente condicionada por fatores sociológicos11 Todo signo é social por natureza tanto o exterior quanto o interior Para evitar os malentendidos convém sempre estabelecer uma distinção rígida entre o conceito de indivíduo natural isolado não associado ao mundo social tal como o conhece e estuda o biólogo e o conceito de individualidade que já se apresenta como uma superestrutura ideológica semiótica que se coloca acima do indivíduo natural e é por conseqüência social Estas duas acepções da palavra individualidade o indi víduo natural e a personalidade são habitualmente confundidas o que faz com que se contaste geralmente na reflexão da maior parte dos filósofos e psicólogos um quaternio terminorum ora se considera uma acepção ora ela é substituída pela outra Se o conteúdo do psiquismo individual é tão social quanto a ideologia por outro lado as manifestações ideológicas são tão individuais no sentido ideológico deste termo quanto psíquicas Todo produto da ideologia leva consigo o selo de individualidade do seu ou dos seus criadores mas este próprio selo é tão social quanto todas as outras particularidades e signos distintivos das manifestações ideológicas Assim todo signo inclusive o da individualidade é social O que constitui a diferença entre o signo interior e o signo exterior entre o psíquico e o ideológico A significação realizada por meio do movimento interior é dirigida ao próprio organismo a um indivíduo 11 Na última parte deste trabalho veremos que os direitos do autor sobre seu próprio discurso são relativos e marcados ideologicamente e que a língua demora muito tempo para elaborar formas próprias para exprimir claramente os aspectos individuais do discurso 59 dado e determinase antes de tudo no contexto de sua individualidade Neste ponto as afirmações dos representantes da escola funcionalista contêm uma parcela de verdade Não se pode deixar de distinguir a natureza específica do psiquismo da natureza dos sistemas ideológicos Mas o caráter específico da entidade psíquica é inteiramente compatível com uma concepção ideológico sociológica do psiquismo De fato como já dissemos todo pensamento de caráter cogni tivo materializase em minha consciência em meu psiquismo apoiandose no sistema ideológico de conhecimento que lhe for apropriado Nesse sentido meu pensamento desde a origem pertence ao sistema ideológico e é subordinado a suas leis Mas ao mesmo tempo ele também pertence a um outro sistema único e igualmente possuidor de suas próprias leis específicas o sistema do meu psiquismo O caráter único desse sistema não é determinado somente pela unicidade de meu organismo biológico mas pela totalidade das condições vitais e sociais em que esse organismo se encontra colocado Desse modo o psicólogo adotará para estudar meu pensamento uma abordagem orientada para essa unicidade orgânica de minha individualidade e para essas condições específicas de minha existência O ideólogo ao contrário não se interessará por esse pensamento a não ser que ele esteja inscrito de maneira objetiva no sistema do conhecimento O sistema do psiquismo determinado por fatores orgânicos e biográficos no sentido amplo do termo não reflete de maneira alguma somente o ponto de vista da psicologia É certo que neste último caso tratase de uma unidade real como é real a totalidade das condições que determinam a vida do indivíduo Quanto mais estreitamente ligado à unicidade do sistema psíquico o signo interior estiver e quanto mais fortemente determinado pelo componente biológico e biográfico mais ele se distanciará de uma expressão ideológica bem definida Em compensação na medida em que é realizado e formalizado ideologicamente ele libertase por assim dizer do contexto psíquico que o paralisa É isso que determina a diferença entre os processos de compreensão do signo interior isto é da atividade mental e do signo exterior puramente ideológico No primeiro caso compreender significa relacionar um signo interior qualquer com a unicidade dos outros signos interiores isto é apreendêlo no contexto de um certo psiquismo No segundo caso tratase de apreender um dado signo no contexto ideológico correspondente É verdade que mesmo no primeiro caso é indispensável levar em consideração o significado puramente ideológico 60 desta atividade mental sem compreender o conteúdo semântico puro e simples de um pensamento o psicólogo não pode determinarlhe um lugar no contexto do psiquismo em questão Se ele abstrai o conteúdo semântico desse pensamento ele não lidará mais com um pensamento com signos mas com um simples processo fisiológico de realização de um certo pensamento de um certo signo no organismo Por essa razão a psicologia cognitiva deve apoiarse em uma teoria do conhecimento e na lógica enquanto que a psicologia em seu conjunto deve apoiarse na ciência das ideologias e não o contrário É preciso dizer que toda expressão semiótica exterior por exemplo a enunciação pode assumir duas orientações ou em direção ao sujeito ou a partir dele em direção à ideologia No primeiro caso a enunciação tem por objetivo traduzir em signos exteriores os signos interiores e exigir do interlocutor que ele os relacione a um contexto interior o que constitui um ato de compreensão puramente psicológico No outro caso o que se re quer é uma compreensão ideológica objetiva e concreta da enun ciação12 É assim que delimitamos o psíquico e o ideológi co13 Como se oferecem à nossa observação ao nosso estudo o psiquismo os signos interiores Em sua forma pura o signo interior isto é a atividade mental é acessível apenas à introspecção Pode mos perguntarnos se ela ameaça a unicidade da experiência exte rior objetiva Isso não acontece se a natureza do psiquismo 12 As enunciações do primeiro tipo podem ser de duas espécies podem servir para informar a respeito do vivido Eu estou alegre ou então para exprimilo diretamente Hurra Há ainda a possibilidade de varia ções intermediárias Estou tão alegre com uma entoação expri mindo grande alegria A distinção entre esses diferentes aspectos é muito importante para o psicólogo e para o ideólogo No primeiro caso não há expressão direta da impressão vivida e conseqüentemente não há realização do signo interior Temos aqui um resultado da autoobser vação por assim dizer a tradução do signo em signo No segundo caso a autoobservação que se exerce sobre a experiência interior abre um caminho para o exterior e tornase objeto da observação exterior é verdade que nesse caso operase uma mudança de forma No terceiro caso intermediário o resultado da autoobservação adquire a coloração do signo interior abrindo caminho para o exterior 13 Expusemos nossa concepção do conteúdo do psiquismo e da ideologia em Freidizm cf o capítulo Conteúdo do Psiquismo como Ideologia 61 e da própria introspecção for corretamente compreendida14 Na realidade o objeto da introspecção é o signo interior que pode também por sua natureza ser signo exterior O discurso inte rior pode igualmente ser exteriorizado Durante o processo de autoexplicitação o resultado da introspecção deve obrigatoria mente exprimirse sob uma forma exterior ou em todo caso aproximarse o máximo possível do estado de expres são exterior A introspecção enquanto tal segue uma orientação que vai do signo interior ao signo exterior Por isso a própria introspecção é dotada de um caráter expressivo Ela constitui para o indivíduo a compreensão de seu próprio signo interior É isso que a distingue da observação de um objeto ou de qualquer processo físico A atividade mental não é visível nem pode ser percebida diretamente mas em compensação é compreensível O que significa que durante o processo de autoobservação a atividade mental é recolocada no contexto de outros signos compreensíveis O signo deve ser esclarecido por outros signos A introspecção constitui um ato de compreensão e por isso efetuase inevitavelmente com uma certa tendência ideo lógica Desse modo ela serve os interesses da psicologia quando apreende uma certa atividade mental no contexto dos outros signos interiores e de maneira a favorecer a unicidade da vida psíquica Nesse caso a introspecção esclarece os signos interiores com a ajuda do sistema cognitivo dos signos psicológicos ela esclarece e diferencia a atividade mental e tende assim a forne cer uma explicação psicológica satisfatória dessa atividade É des se tipo a tarefa que se designa à cobaia que participa de uma experiência psicológica As declarações da cobaia constituem uma explicação psicológica ou ao menos um esboço de expli cação Mas a introspecção pode também ser orientada diferentemente e tender para uma autoobjetivação ética de costumes Nesse caso o signo interior é integrado num sistema de apreciações e normas éticas é compreendido e explicado sob esse ângulo A introspecção como os processos cognitivos pode tomar outros caminhos Mas sempre em todas as condições a introspecção se esforça por explicitar ativamente o signo interior para leválo a um maior grau de clareza semiótica O processo atinge seus limites assim que o objeto da instrospecção tornase perfeitamente compreensível 14 Esta ameaça se realizaria se a realidade do psiquismo fosse uma realidade de coisa e não uma realidade semiótica 62 assim que ele se torna igualmente objeto da observação exterior de caráter ideológico sob uma forma semiótica Desta maneira a introspecção enquanto conceito ideológico está integrada na unicidade da experiência objetiva É preciso acrescentar ainda o que segue na análise de um caso concreto é impossível traçar uma fronteira precisa entre os signos interiores e exteriores entre a introspecção e a observação exterior que fornece um comentário ininterrupto tanto semiótico quanto concreto a respeito dos signos interiores na medida em que eles são decodificados O comentário concreto ocorre sempre A compreensão de cada signo interior ou exterior efetuase em ligação estreita com a situação em que ele toma forma Esta situação mesmo no caso da introspecção apresentase como a totalidade dos fatos que constituem a experiência exterior que acompanha e esclarece todo signo interior Essa situação é sempre uma situação social A orientação da atividade mental no interior da alma a introspecção não pode ser separada da realidade de sua orienta ção numa situação social dada E é por essa razão que um aprofundamento da introspecção só é possível quando constantemente vinculado a um aprofundamento da compreensão da orientação social Abstrair essa orientação levaria ao enfraquecimento completo da atividade mental como acontece quando se abstrai sua natureza semiótica Nós veremos mais adiante de maneira detalhada que o signo e a situação social em que se insere estão indissoluvelmente ligados O signo não pode ser separado da situação social sem ver alterada sua natureza semiótica O problema do signo interior constitui um dos problemas essen ciais da filosofia da linguagem pois o signo interior por excelência é a palavra o discurso interior O problema do discurso interior como todos os problemas examinados neste capítulo é de natureza filosófica Ele se encontra no cruzamento dos caminhos da psicologia e das ciências ligadas à ideologia Metodologicamente ele só pode ser resolvido no terreno da filosofia da linguagem enquanto filosofia do signo Como definir a palavra no seu papel de signo interior Sob que forma se realiza o discurso interior Quais são seus laços com a situação social Como ele se relaciona com a enunciação Que métodos empregar para descobrir ou para captar durante o vôo por assim dizer o discurso interior Somente uma elaborada filosofia da linguagem pode responder a essas questões Tomemos por exemplo a segunda questão sob que formas se realiza o discurso interior De imediato podese dizer que nenhuma 63 das categorias elaboradas pela lingüística para analisar as formas da língua exteriorizada da fala lexicologia gramática fonética é aplicável ao discurso interior e supondo que fossem elas deveriam ser radicalmente redefinidas Uma análise mais aprofundada revelaria que as formas mínimas do discurso interior são constituídas por monólogos completos análogos a parágrafos ou então por enunciações completas Mas elas assemelhamse ainda mais às réplicas de um diálogo Não é por acaso que os pensadores da Antiguidade já concebiam o dis curso interior como um diálogo interior Essas unidades pres tamse muito pouco a uma análise sob a forma de consti tuintes gramaticais a rigor em certos casos isso é possível mas com grandes precauções e não existe entre elas assim como entre as réplicas de um diálogo laços gramaticais são laços de uma outra ordem que as regem Essas unidades do discurso interior que poderiam ser chamadas impressões globais de enunciações15 estão ligadas uma à outra e sucedemse uma à outra não segundo as regras da lógica ou da gramática mas segundo leis de convergên cia apreciativa emocional de concatenação de diálogos etc e numa estreita dependência das condições históricas da situação social e de todo o curso pragmático da existência16 Somente a 15 O termo foi emprestado de Gompertz Weltanschauungslehre Parece que o primeiro a utilizálo foi Otto Weinninger A impressão total é uma impressão ainda não isolada do objeto total e que de qualquer modo oferece uma impressão do todo que precede e lança os fundamentos da cognição clara do objeto Por exemplo algumas vezes nos vemos na impossibilidade de lembrar uma palavra ou um nome ainda que os tenhamos na ponta da língua o que significa que nós já temos uma impressão global deles mas que eles não podem se esboçar numa representação concreta e diferenciada As impressões globais segundo Gompertz desempenham um grande papel nos processos cognitivos Elas constituem equivalentes psíquicos das formas do todo e lhe conferem sua unicidade 16 A distinção corrente entre os diferentes tipos de discurso interiorvisual auditivo e motor não é relevante para nossas 64 explicitação das formas que as enunciações completas tomam e em particular as formas do discurso dialogado pode esclarecer as formas do discurso interior e a lógica particular do itinerário que elas seguem na vida interior É preciso deixar claro que todos os problemas do discurso interior que mencionamos estão fora dos limites de nossa pesquisa Atualmente ainda é impossível tratálos de maneira satisfatória Antes de tudo seria preciso reunir um imenso corpus de dados e esclarecer outros problemas elementares e fundamentais da filosofia da linguagem em particular os problemas da enunciação Nós pensamos que é dessa maneira que se pode resolver o problema da delimitação de fronteiras entre o psíquico e o ideológico sobre o território único que os engloba o do signo ideológico Essa abordagem nos permite igualmente eliminar de maneira dialética a contradição entre o psicologismo e o antipsicologismo O antipsicologismo tem razão em recusar a dedução do ideológico a partir do psiquismo Ao contrário é o psíquico que deve ser deduzido da ideologia A psicologia deve apoiarse na ciência das ideologias Originariamente a palavra deve ter nascido e se desenvolvido no curso do processo de socialização dos indivíduos para ser em seguida integrada ao organismo individual e tornarse fala interior Contudo o psicologismo também tem razão não há signo exterior sem signo interior O signo exterior incapaz de penetrar no contexto dos signos interiores isto é incapaz de ser compreendido e experimentado cessa de ser um signo transformase em uma coisa física O signo ideológico tem vida na medida em que ele se realiza no psiquismo e reciprocamente a realização psíquica vive do suporte ideológico A atividade psíquica é uma passagem do interior para o exterior para o signo ideológico o processo é inverso O psíquico goza de extraterritorialidade em relação ao organismo É o social infiltrado no organismo do indivíduo E tudo que é ideológico é extraterritorial no domínio sócioeconômico pois o signo ideológico situado fora do organismo deve penetrar no mundo interior para realizar sua natureza semiótica Desta maneira existe entre o psiquismo e a ideologia uma interação dialética indissolúvel o psiquismo se oblitera se destrói considerações aqui No quadro de cada um desses tipos o discurso se desenrola sob a forma de impressões globais visuais auditivas e motoras 65 para se tornar ideologia e viceversa O signo interior deve libertarse de sua absorção pelo contexto psíquico biológico e biográfico ele deve parar de ser experimentado subjetivamente para se tornar signo ideológico O signo ideológico deve integrarse no domínio dos signos interiores subjetivos deve ressoar tonalidades subjetivas para permanecer um signo vivo e evitar o estatuto honorífico de uma incompreensível relíquia de museu Essa interação dialética dos signos interior e exterior do psiquis mo e da ideologia muitas vezes atraiu a atenção dos pensa dores contudo ela não foi compreendida de maneira corre ta até o presente nem descrita de maneira adequada Sua aná lise mais profunda e interessante foi feita há algum tempo pelo fale cido filósofo e sociólogo Georges Simmel Ele viu essa intera ção sob um aspecto que é característico de todo pensamento burguês contemporâneo isto é como uma tragédia cultural ou mais exatamente como uma tragédia da faculdade criadora da personalidade subjetiva Segundo ele a personalidade criadora se autodestrói assim como sua subjetividade e seu caráter pessoal no produto objetivo que ela própria cria O nascimento de um valor cultural objetivo custa a morte da alma subjetiva Não entraremos aqui no detalhe da análise que Simmel faz desse problema análise que contém várias observações justas e interessantes17 Nós assinalaremos apenas o defeito principal de sua concepção Para ele entre o psiquismo e a ideologia existe um fosso intransponível Ele não admite um signo que remetendo à realidade seja comum ao psiquismo e à ideologia Ainda mais mesmo sendo sociólogo ele subestima a natureza totalmente social tanto da realidade psíquica quanto da realidade ideológica E contudo uma e outra realidades se apresentam como refrações de um único e mesmo ser sócioeconômico O resultado é que a contradição dialética viva 17 Podese encontrar em tradução russa duas publicações de Simmel consagradas a esta questão A Tragédia Cultural em Logos 19111912 vols 2 e 3 e Os Conflitos da Cultura Contemporânea em Elementos do Conhecimento 1923 Petrogrado publicado sob a forma de volume separado com um prefácio do professor Sviatlovski Seu último livro tratando da mesma questão do ponto de vista da filosofia existencial intitulase Lebensanschauung 1919 Esta idéia constitui o leitmotiv da Vida de Goethe do mesmo Simmel e em parte de seus trabalhos sobre Nietzsche Schopenhauer Rembrandt e Michelangelo Ele coloca na base de sua tipologia das individualidades criadoras os diferentes modos de solucionar este conflito entre a alma e sua objetivação criadora através das produções culturais 66 entre o psiquismo e o ser tornase para Simmel uma antinomia estática inerte uma tragédia e ele luta em vão para superar esta antinomia inevitável recorrendo a uma dinâmica do processo existencial impregnado de metafísica Somente o recurso ao monismo materialista pode trazer uma solução dialética a todas as contradições dessa ordem De outro modo seríamos obrigados ou a ignorar as contradições a fechar os olhos ou a transformálas em antinomias sem saída em impasses trágicos18 Em suma em toda enunciação por mais insignificante que seja renovase sem cessar essa síntese dialética viva entre o psíquico e o ideológico entre a vida interior e a vida exterior Em todo ato de fala a atividade mental subjetiva se dissolve no fato objetivo da enunciação realizada enquanto que a palavra enunciada se subjetiva no ato de descodificação que deve cedo ou tarde provocar uma codificação em forma de réplica Sabemos que cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória A palavra revelase no momento de sua expressão como o produto da interação viva das forças sociais É assim que o psiquismo e a ideologia se impregnam mutuamente no processo único e objetivo das relações sociais 18 Na literatura filosófica russa os problemas de objetivação do psiquismo subjetivo através das produções ideológicas e da condições e conflitos que daí resultam são tratados particularmente por Fiódor Stióppun ver seus trabalhos em Logos 19111912 vol 24 Ele também vê esses sob um prisma trágico e mesmo místico Não consegue colocálos no plano da realidade material objetiva que é contudo o único onde eles poderiam encontrar uma resolução fecunda e sadiamente dialética 67 SEGUNDA PARTE PARA UMA FILOSOFIA MARXISTA DA LINGUAGEM 68 CAPÍTULO 4 DAS ORIENTAÇÕES DO PENSAMENTO FILOSÓFICOLINGÜÍSTICO No que consiste o objeto da filosofia da linguagem Onde podemos encontrar tal objeto Qual é a sua natureza concreta Que metodologia adotar para estudálo Na parte introdutória de nosso estudo estas questões concretas não foram abordadas Nós falamos da filosofia da linguagem da palavra Mas o que é a linguagem O que é a palavra Não se trata evidentemente de formular perfeitas definições destes conceitos de base Uma tal formulação só poderia mesmo ser realizada no fim e não no início de nossa pesquisa supondose que uma definição científica possa alguma vez ser considerada como perfeita No início de nosso itinerário convém propor ao invés de definições diretrizes metodológicas é indispensável antes de mais nada conquistar o objeto real de nossa pesquisa é indispensável isolálo de seu contexto e delimitar previamente suas fronteiras No início do trabalho heurístico não é tanto a inteligência que procura construindo fórmulas e definições mas os olhos e as mãos esforçandose por captar a natureza real do objeto acontece que em nosso caso os olhos e as mãos se encontram numa posição difícil os olhos nada vêem as mãos nada podem tocar é o ouvido que aparentemente mais bem situado tem a pretensão de escutar a palavra de ouvir a linguagem E com efeito as seduções do empirismo fonético superficial são muito fortes na lingüística O estudo da face sonora do signo lingüístico nela ocupa um lugar proporcionalmente exagerado Tal estudo muitas vezes determina o tom nessa disciplina e na maioria dos casos é feito sem nenhum vínculo com a natureza real da linguagem enquanto código 69 ideológico1 O problema da explicitação do objeto real da filosofia da linguagem está longe de ser resolvido Toda vez que procuramos delimitar o objeto de pesquisa remetêlo a um complexo objetivo material compacto bem definido e observável nós perdemos a própria essência do objeto estudado sua natureza semiótica e ideológica Se isolarmos o som enquanto fenômeno puramente acústico perderemos a linguagem como objeto específico O som concerne totalmente à competência dos físicos Se ligarmos o processo fisiológico da produção do som ao processo de percepção sonora nem por isso estaremos nos aproximando de nosso objetivo Se associarmos a atividade mental os signos interiores do locutor e do ouvinte estaremos em presença de dois processos psicofísicos ocorrendo em dois sujeitos psicofisiologicamente diferentes e de um único complexo sonoro físico realizandose na natureza segundo as leis da física A linguagem como objeto específico ainda não a teremos encontrado E contudo já lançamos mão de três esferas da realidade física fisiológica e psicológica do que resultou até que de modo satisfatório um conjunto complexo de numerosos elementos Mas este complexo é privado de alma seus diferentes elementos estão alinhados ao invés de estarem unidos por um conjunto de regras internas que lhe atribuiria vida e faria dele justamente um fato lingüístico O que mais deve ser acrescentado a este conjunto já tão complexo É preciso fundamentalmente inserilo num complexo mais amplo e que o engloba ou seja na esfera única da relação social organi zada Assim como para observar o processo de combustão con vém colocar o corpo no meio atmosférico da mesma forma para observar o fenômeno da linguagem é preciso situar os sujeitos emissor e receptor do som bem como o próprio som no meio social Com efeito é indispensável que o locutor e o ouvinte pertençam à mesma comunidade lingüística a uma sociedade claramente organizada E mais é indispensável que estes dois indivíduos estejam integrados na unicidade da situação social imediata quer dizer que tenham uma relação de pessoa para 1 Isto diz respeito sobretudo à fonética experimental que não estuda de fato os sons da língua mas sim os sons produzidos pelos órgãos da fonação e captados pelo ouvido independentemente de 70 pessoa sobre um terreno bem definido É apenas sobre este terreno preciso que a troca lingüística se torna possível um terreno de acordo ocasional não se presta a isso mesmo que haja comunhão de espírito Portanto a unicidade do meio social e a do contexto social imediato são condições absolutamente indispensáveis para que o complexo seu lugar no sistema da língua e na construção das enunciações Por outro lado a ciência fonética tenta a custo reunir com vistas a seu estudo imensos corpora de dados sem no entanto se valer de uma metodologia de classificação físicopsíquicofisiológico que definimos possa ser vinculado à língua à fala possa tornarse um fato de linguagem Dois organismos biológicos postos em presença num meio puramente natural não produzirão um ato de fala Mas como resultado desta análise o objeto de nossa pesquisa ao invés de verse reduzido como seria desejável viuse consideravelmente ampliado e tornado ainda mais complexo Com efeito o meio social organizado no qual inserimos nosso complexo físicopsíquicofisiológico e a situação de troca social mais imediata apresentam por si só complicações extraordinárias comportam relações de diversas naturezas e de múltiplas facetas e dentre estas relações nem todas são necessárias à compreensão dos fatos lingüísticos nem todas são elementos constitutivos da linguagem Em suma o conjunto deste complicado sistema de fenômenos e de relações de processos etc necessita uma redução a um denominador comum Todas as suas linhas devem reunirse num centro único o passe de mágica que constitui o processo lingüístico Na parte precedente expusemos o problema da linguagem ou seja pusemos em evidência o problema enquanto tal e as dificuldades que ele encerra Que soluções a filosofia da linguagem e a lingüística geral já trouxeram para este problema Que marcos já colocaram no caminho de sua resolução que nos possam orientar Não temos aqui a intenção de fazer um histórico completo da filosofia da linguagem e da lingüística geral nem mesmo de apresentar sua situação atual Limitarnosemos a uma análise geral das linhas mestras do pensamento filosófico e lingüístico dos tempos atuais2 2 Não existem atualmente obras especializadas em história da filosofia da linguagem Encontramse pesquisas fundamentais apenas no que diz respeito à filosofia da linguagem e à lingüística na antigüidade como por exemplo Steindahl Gerschichte der Sprachwissenschaft bei den Griechen und Römern 71 Na filosofia da linguagem e nas divisões metodológicas correspondentes da lingüística geral encontramonos em presença de duas orientações principais no que concerne à resolução de nosso problema que consiste em isolar e delimitar a linguagem como objeto de estudo específico Isto acarreta por suposto uma distinção radical entre estas duas orientações para todas as demais questões que se colocam em lingüística Chamaremos a primeira orientação de subjetivismo idealista e a segunda de objetivismo abstrato3 A primeira tendência interessase pelo ato da fala de criação individual como fundamento da língua no sentido de toda atividade de linguagem sem exceção O psiquismo individual constitui a fonte da língua As leis da criação lingüística sendo a língua uma evolução ininterrupta uma criação contínua são as leis da psicologia individual e são elas que devem ser estudadas pelo lingüista e pelo filósofo da linguagem Esclarecer o fenômeno lingüístico significa reduzilo a um ato significativo por vezes mesmo racional de criação individual O restante da tarefa do lingüista não tem senão um caráter preliminar construtivo descritivo 1890 No que concerne à história européia só se encontram monografias de diferentes filósofos e lingüistas sobre Humboldt Wundt Marty etc Voltaremos a tratar disso mais tarde O único esboço atual relativamente sério de história da filosofia da linguagem e da lingüística achase no livro de Ernst Cassirer A Filosofia das Formas Simbólicas I A Linguagem cap 1o O Problema da Linguagem na História da Filosofia Em língua russa encontraremos um esboço breve mais sério da situação atual da lingüística e da filosofia da linguagem no artigo de R Schor Krizis sovremiénnoi lingvistiki A Crise da Lingüística Contemporânea in Iafetítcheski sbórnik Coletânea Jafética V 1927 p 3271 M N Peterson por sua vez num artigo intitulado Iazík kak sotsialnoie iavliénie A Língua como Manifestação Social in Utchiónie zapíski Instituta iaziká i literaturi Anais Científicos do Instituto de Língua e Literatura 1927 Moscou p 321 dá uma visão de conjunto apesar de muito incompleta dos trabalhos lingüísticos que comportam uma abordagem sociológica Não citaremos trabalhos sobre a história da lingüística 3 Os dois termos como quase sempre ocorre com este tipo de denominação estão longe de recobrir todo o conteúdo e a complexidade das orientações definidas Veremos que a denominação da primeira orientação é particularmente inadequada Mas não conseguimos encontrar uma melhor 72 classificatório e limitase simplesmente a preparar a explicação exaustiva do fato lingüístico como proveniente de um ato de criação individual ou então a servir a finalidades práticas de aquisição de uma língua dada A língua é deste ponto de vista análoga às outras manifestações ideológicas em particular às do domínio da arte e da estética As posições fundamentais da primeira tendência quanto à língua podem ser sintetizadas nas quatro seguintes proposições 1 A língua é uma atividade um processo criativo ininterrupto de construção energia que se materializa sob a forma de atos individuais de fala 2 As leis da criação lingüística são essencialmente as leis da psicologia individual 3 A criação lingüística é uma criação significativa análoga à criação artística 4 A língua enquanto produto acabado ergon enquanto sistema estável léxico gramática fonética apresentase como um depósito inerte tal como a lava fria da criação lingüística abstratamente construída pelos lingüistas com vistas à sua aquisição prática como instrumento pronto para ser usado Wilhelm Humboldt foi um dos mais notórios representantes desta primeira tendência4 foi quem estabeleceu seus fundamentos A influência do poderoso pensamento humboldtiano ultrapassa em muito os limites da tendência que acabamos de descrever Podese dizer que toda a lingüística após ele e até nossos dias encontrase sob sua influência determinante O pensamento humboldtiano não se encaixa integralmente no quadro das quatro proposições enunciadas ele é mais amplo mais complexo e apresenta mais contradições razão pela qual Humboldt pôde tornarse o iniciador de diferentes correntes profundamente divergentes entre si Contudo o núcleo fundamental das idéias humboldtianas constitui a expressão mais forte e mais profunda das tendências essenciais da primeira escola que acabamos de definir5 Na literatura lingüística russa o representante mais próximo desta escola é A A Potebniá e seu grupo de discípulos6 4 Hamann e Herder o precederam nesta direção 5 Humboldt expôs suas idéias sobre a filosofia da linguagem em Ueber die Verschiedeheiten des Menschlichen Sprachbaues in Vorstudie zur Einleitungozum Kawiwerk gesam Schriften AkademieAusgabe Bd VI Há uma grande quantidade de trabalhos sobre Humboldt Citaremos o Wilhelm von Humboldt de R Heim e entre as obras mais recentes o livro de Spranger com o mesmo título Berlim 1909 Sobre Humboldt e sua influência sobre a lingüística 73 Os adeptos mais tardios da primeira tendência não atingiram estes a profundidade das idéias e a síntese filosófica de Humboldt Esta escola de pensamento viuse consideravelmente enfraquecida particularmente pelo fato de sua assimilação a um modo de pensamento positivista e superficialmente empirista Em Steintahl já não se encontra mais a amplitude de Humboldt Em compensação percebese um grande esforço de precisão e de sistematização metodológica Também para Steintahl o psiquismo individual constitui a fonte da língua enquanto que as leis do desenvolvimento lingüístico são leis psicológicas7 No psicologismo empirista de Wundt e discípulos não se encontram mais os fundamentos da primeira escola a não ser sob forma bastante atenuada A doutrina de Wundt resumese no seguinte todos os fatos de língua sem exceção prestamse a uma explicação fundada na psicologia individual sobre uma base voluntarista8 É verdade que Wundt assim como Steintahl considere a língua como uma emanação da psicologia dos povos Völker psychologie ou russa citemos B Engelhardt A N Vesselovsky Petrograd 1922 Recentemente foi editado um estudo muito bom e lingüística russa citemos B Engelhardt A N Vesselovski Petrointeressante de G Spätt Vnútrennai forma slóva etiúdi i variatsii na tiému Gumboldta A Linguagem Interior Estudos e Variações sobre o Tema de Humboldt O autor tenta encontrar as raízes profundas do pensamento humboldtiano camufladas nas interpretações tradicionais há várias tradições de interpretação de Humboldt A concepção de Spätt muito subjetiva mostra uma vez mais como o pensamento de Humboldt é complexo e cheio de contradições ele se presta a variantes muito livres 6 Sua principal obra filosófica é Misl i iazík Pensamento e Linguagem Cracóvia 1905 reeditado pela Academia de Ciências da Ucrânia Os discípulos de Potebniá que constituem a escola de Kharkov publicaram em intervalos irregulares uma revista intitulada Vopróssi teorii i psikhológuii tvórtchestva Problemas da Teoria e da Psicologia da Criação onde encontramos as obras póstumas do próprio Potebniá e artigos de seus alunos a seu respeito A principal obra de Potebniá expõe as idéias de Humboldt 7 Na base da concepção de Steintahl está a teoria psicológica de Herbart que tenta elaborar todos os dados do psiquismo humano a partir dos elementos dotados de uma representação e vinculados por laços associativos 8 O voluntarismo postula o livrearbítrio na base do psiquismo 74 psicologia étnica9 Entretanto a psicologia wundtiana dos povos é constituída pela soma dos psiquismos separados dos indivíduos Para ele apenas estes últimos têm acesso à realidade na sua totalidade Toda as suas explicações dos fatos de língua de mitologia e de religião se ligam a explicações puramente psicológicas Wundt não reconhece a existência de um conjunto de leis específicas puramente sociológicas inerentes a todo signo ideológico e não redutíveis a algumas leis psicológicas individuais Atualmente a primeira tendência da filosofia da linguagem tendo rejeitado as vias do positivismo está a caminho de desa brochar novamente e de alargar a visão destes problemas na escola de Vossler Esta última conhecida por Idealistiche Neuphilologie constitui incontestavelmente uma das orientações mais fecundas do pensamento filosóficolingüístico contemporâneo A contribuição positiva original de seus discípulos à lingüística em romanística e germanística é também muito importante Basta lembrar ao lado do próprio Vossler discípulos tais como Leo Spitzer Lorek Lerch etc Iremos citar cada um deles em várias oportunidades O conjunto da concepção lingüísticofilosófica de Vossler e de sua escola pode ser resumido corretamente pela apresentação que fizemos das quatro proposições fundamentais da primeira escola O que caracteriza primordialmente a escola de Vossler é a negação categórica e de princípio do positivismo lingüístico que não consegue ver mais além das formas lingüísticas em particular as fonéticas as que são positivas e do ato psicofisiológico que as engendra10 Donde o aparecimento em primeiro plano do 9 O termo psicologia étnica foi proposto por G Spätt para substituir o termo calcado no alemão Völker Psychologie ou seja psicologia dos povos Esta última expressão de fato não é satisfatória e a expressão proposta por Spätt parecenos bem melhor Ver G Spätt Vvdiénie v etnítcheskuiu psikhológuiu Introdução à Psicologia Étnica edições da Academia Estatal de Artes e Ciências Moscou 1927 Encontramos neste livro uma crítica de base do pensamento de Wundt mas a construção proposta como alternativa por Spätt tampouco é aceitável 10 O primeiro livro de Vossler no qual ele expõe os fundamentos de sua filosofia Positivismus und Idealismus in 75 componente ideológico significante da língua O motor principal da criação é o gosto lingüístico variedade particular do gosto artístico O gosto lingüístico é justamente esta verdade lingüística absoluta que dá vida à língua e que o lingüista se esforça por descobrir em cada fato de língua a fim de darlhe uma explicação adequada Só pode ter pretensões a um caráter científico diz Vossler uma história da língua que examine toda a hierarquia causal pragmática com a única finalidade de aí descobrir uma ordem estética a fim de que o pensamento lingüístico a verdade lingüística o gosto lingüístico ou como diz Humboldt a forma interior da língua através de suas transformações condicionadas por fatores físicos psíquicos políticos econômicos e culturais em geral tornemse claros e compreensíveis11 Assim é que para Vossler os fatores que determinam de uma forma ou de outra os fatos de língua físicos políticos econômicos etc não possuem significação direta para o lingüista só importa para este o sentido artístico de um dado fato de língua Eis a concepção que ele tem da língua uma concepção puramente estética A própria idéia de língua diz ele é por essência uma idéia poética a verdade da língua é de natureza artística é o Belo dotado de Sentido12 Compreendese que não é um sistema lingüístico acabado no sentido da totalidade dos traços fônicos gramaticais e outros mas sim o ato de criação individual da fala Sprache als Rede que será para Vossler o fenômeno essencial a realidade essencial da língua Seguese que em todo ato de fala o importante do ponto de vista da evolução da língua não são as formas gramaticais estáveis efetivas e comuns a todas as demais enunciações da língua em questão mas sim a realização estilística e a modificação das formas abstratas da língua de caráter individual e que dizem respeito apenas a esta enunciação Só essa individualização estilística da língua na enunciação concreta é histórica e realmente produtiva É nela que tem lugar a evolução da língua logo dissimulada pela formalização gramatical Todo fato gramatical foi a princípio fato estilístico É a isto que se liga a idéia vossleriana da primazia do estilístico sobre o der Sprachwissenchaft Heidelberg 1904 é consagrado à crítica do positivismo em lingüística 11 Grammatika i istoria iaziká Gramática e História da Língua In Logos vol 1 1910 p 170 12 Ibid p 167 76 gramatical13 A maior parte das pesquisas lingüísticas inspiradas na doutrina de Vossler se situa na fronteira entre a lingüística no sentido estrito e a estilística Em toda forma lingüística os vosslerianos se empenham com afinco em descobrir raízes ideológicas significantes14 Entre os representantes contemporâneos da primeira orientação da filosofia da linguagem convém citar ainda o filósofo e crítico literário Benedetto Croce em razão de sua grande influência sobre o pensamento filosófico lingüístico e sobre a crítica literária na Europa As idéias de Benedetto Croce são em muitos aspectos próximas às de Vossler Para ele também a língua constitui um fenômeno estético A base o termochave de sua concepção da língua é a palavra expressão Toda expressão é em princípio de natureza artística Daí a lingüística como ciência da expressão por excelência 13 Nós voltaremos mais tarde à crítica desta idéia 14 Os principais trabalhos filosóficolingüísticos de Vossler surgidos depois do livro citado estão reunidos na coletânea Philosophie der Sprache 1920 Tratase da última publicação de Vossler Ela dá uma idéia completa de suas concepções em filosofia e em lingüística geral Entre os trabalhos lingüísticos característicos do método vossleriano citemos Frankreichs Kultur im Spiegel seiner Sprachentwicklung 1913 O leitor encontrará uma bibliografia completa de Vossler até 1922 na coletânea Idealistiche Neuphilologie Festschrift für Karl Vossler que lhe é consagrada 1922 Em língua russa podem se ler dois artigos sobre ele o artigo já citado e também Otnochénie istorii iazikóv k istorii literaturi A Relação entre a História das Línguas e a História da Literatura in Logos 19121913 vol III Os dois artigos dão uma idéia das bases da teoria de Vossler As posições de Vossler e de seus discípulos nunca foram discutidas na literatura lingüística russa Delas encontramos apenas uma menção no artigo de Jirmunsky sobre a crítica literária contemporânea na Alemanha Poética volume III 1927 Academia R Schor no esboço por nós citado só menciona Vossler no prefácio Mais adiante iremos falar dos trabalhos dos seguidores de Vossler que apresentam um interesse filosófico e metodológico 77 coincidir com a estética Seguese que para Croce o ato de fala individual constitui igualmente o fenômeno de base da língua15 Passemos à definição da segunda orientação do pensa mento filosóficolingüístico Segundo esta tendência o centro organizador de todos os fatos da língua o que faz dela o objeto de uma ciência bem definida situase ao contrário no sis tema lingüístico a saber o sistema das formas fonéticas gramaticais e lexicais da língua Enquanto que para a primeira orientação a língua constitui um fluxo ininterrupto de atos de fala onde nada permanece estável nada conserva sua identidade para a segunda orientação a língua é um arcoíris imóvel que domina este fluxo Cada enunciação cada ato de criação individual é único e não reiterável mas em cada enunciação encontramse elementos idênticos aos de outras enunciações no seio de um determinado grupo de locutores São justamente estes traços idênticos que são assim normativos para todas as enunciações traços foné ticos gramaticais e lexicais que garantem a unicidade de uma dada língua e sua compreensão por todos os locutores de uma mesma comunidade Se tomarmos um som qualquer da língua por exemplo o fone ma a na palavra ráduga arcoíris o som produzido pelo aparelho articulatório fisiológico do organismo individual é um som individual e único próprio de cada sujeito falante Quan tas forem as pessoas a pronunciar a palavra ráduga quantos serão os a particulares desta palavra ainda que o ouvido não queira nem possa captar esta particularidade O som fisiológico ou seja o som produzido pelo aparelho fisiológico individual é no final das contas tão único quanto é única a impressão digital de um indivíduo dado tão único como a composição química individual do sangue de cada pessoa embora a ciência não seja ainda capaz de definir fórmulas individuais do sangue 15 Podese encontrar em russo a primeira parte de A Estética de Benedetto Croce A Estética Como Ciência da Expressão e Como Elemento de Lingüística Geral Moscou 1920 Aí já se encontram as considerações gerais de Croce sobre a língua e a lingüística 78 Entretanto será que estas particularidades individuais do som a condicionadas digamos pela forma única da língua órgão do palato e dos dentes dos sujeitos falantes admitamos que possamos igualmente captar e fixar todas estas particularidades são essenciais do ponto de vista da língua Evidente que elas não apresentam qualquer interesse O que é essencial é a identidade normativa deste som em todas as instâncias em que se pronuncia a palavra ráduga E esta identidade normativa constitui justamente posto que não existe identidade de fato a unicidade do sistema fonético da língua neste quadro sincrônico e garante a compreensão da palavra por todos os membros da comunidade lingüística Este fonema a identificado por referência a uma norma constitui portanto um fato de língua um objeto científico da lingüística Isto se estende legitimamente a todos os outros elementos da língua Em toda parte encontraremos a mesma identi dade normativa das formas lingüísticas por exemplo os esque mas sintáticos ao lado da realização única e não reiterável da aplicação individual de uma forma dada no ato de fala única O primeiro fato é parte integrante do sistema da língua o segundo se refere aos processos individuais da fala condicionados do ponto de vista da língua como sistema por fatores contin gentes fisiológicos e subjetivopsicológicos dos quais não pode mos inteirarnos com precisão É claro que o sistema lingüístico no sentido acima definido é completamente independente de todo ato de criação individual de toda intenção ou desígnio Do ponto de vista da segunda orientação não se poderia falar de uma criação refletida da língua pelo sujeito falante16 A língua opõese ao indivíduo enquanto norma indestrutível peremptória que o indivíduo só pode aceitar como tal No caso em que o indivíduo não integrasse nenhuma forma lingüística enquanto norma peremptória esta forma deixa O termo fonologia ainda não é usado Lembremos que esta obra é anterior aos trabalhos do Círculo Fonológico de Praga NdTfr 16 Entretanto como veremos no terreno do racionalismo tal qual o descrevemos os fundamentos da segunda orientação do pensamento filosóficolingüístico são inteiramente compatíveis com a idéia de uma língua universal racional artificialmente criada 79 ria então de existir para ele como forma da língua para tornarse simples potencial de seu aparelho psicofísico individual O indi víduo recebe da comunidade lingüística um sistema já constituído e qualquer mudança no interior deste sistema ultrapassa os limites de sua consciência individual O ato individual de emissão de todo e qualquer som só se torna ato lingüístico na medida em que se ligue a um sistema lingüístico imutável num determinado momento de sua história e peremptório para o indivíduo Quais são pois as leis que governam este sistema interno da língua Elas são puramente imanentes e específicas irredutíveis a leis ideológicas artísticas ou a quaisquer outras Todas as formas da língua consideradas num momento preciso ou seja do ponto de vista sincrônico são indispensáveis umas às outras completamse mutuamente e fazem da língua um sistema estruturado que obedece a leis lingüísticas específicas Estas leis lingüísticas específicas à diferença das leis ideológicas que se referem a processos cognitivos à criação artísticas etc não podem depender da consciência individual Um tal sistema o indivíduo tem que tomálo e assimilálo no seu conjunto tal como ele é Não há lugar aqui para quaisquer distinções ideológicas de caráter apreciativo é pior é melhor belo ou repugnante etc Na verdade só existe um critério lingüístico está certo ou errado além do mais por correção lingüística devese entender apenas a conformidade a uma dada norma do sistema normativo da língua Não se poderia por conseguinte falar em gosto lingüístico nem em verdade lingüística Do ponto de vista do indivíduo as leis lingüísticas são arbitrárias isto é privadas de uma justificação natural ou ideológica por exemplo artístico Assim entre a face fonética da palavra e seu sentido não há nem uma conexão natural nem uma correspondência de natureza artística Se a língua como conjunto de formas é independente de todo impulso criador e de toda ação individual seguese ser ela o produto de uma criação coletiva um fenômeno social e portanto como toda instituição social normativa para cada indivíduo Entretanto o sistema lingüístico único e sincronicamente imutável transformase evolui no processo de evolução histórica de uma determinada comunidade lingüística posto que a identidade normativa do fonema tal qual nós a estabelecemos é diferente nas diferentes épocas da evolução de uma língua Em poucas palavras a língua tem sua história Como podemos pensar esta história do ponto de vista da segunda orientação Para esta segunda orientação do pensamento filosóficolingüístico o fato mais significativo é o fosso que separa a história do sis 80 tema lingüístico em questão da abordagem não histórica sincrônica A argumentação fundamental da segunda orientação faz deste fosso dialético um fosso intransponível Entre a lógica que governa o sistema de formas lingüísticas num determinado momento da história e a lógica ou antes a ausência de lógica da evolução histórica destas formas nada pode haver de comum São duas lógicas diferentes Ou melhor se nós reconhecemos uma como sendo lógica então a outra deve ser definida como alógica isto é como a negação pura e simples da lógica estabelecida Na verdade as formas que constituem o sistema lingüístico são mutuamente dependentes e completamse como elementos de uma só e mesma fórmula matemática A mudança de um dos elementos do sistema cria um novo sistema assim como a mudança de um dos elementos da fórmula cria uma nova fórmula A relação e as regras que governam as ligações entre os elementos de uma dada fórmula não se estendem nem poderiam se estender para a relação entre o sistema ou a fórmula em questão e um outro sistema ou outra fórmula que a eles se seguissem Podemos utilizar aqui uma analogia grosseira mas que exprime entretanto com suficiente exatidão as relações que a segunda orientação do pensamento filosóficolingüístico mantém com a história da língua Comparemos o sistema da língua com a fórmula de resolução do binômio de Newton Esta fórmula é regida por regras bem estritas que subordinam todos os elementos e os tornam imutáveis Suponhamos que um aluno utilizando esta fórmula se engane que por exemplo ele confunda os sinais de mais e menos ou os expoentes Disto resultaria uma nova fórmula com suas regras internas esta fórmula por certo não mais convém à resolução do binômio de Newton mas isto não tem importância para efeitos de nossa analogia Entre a primeira e a segunda fórmulas já não existe mais relação matemática análoga à que rege as relações internas de cada fórmula Na língua as coisas se passam do mesmo modo As relações sistemáticas que existem entre duas formas lingüísticas no sistema em sincronia nada têm de comum com as relações que unem qualquer destas formas à sua imagem transformada no estágio posterior da evolução histórica da língua O germânico de antes do século XVI conjugava ich was wir waren O alemão contemporâneo conjuga ich war wir waren ich was transformouse pois em ich war Entre as formas ich was wir waren e ich war wir waren existe uma ligação lingüística sistemática os termos se completam mutuamente Eles se ligam e são complemen tares particularmente como formas do singular e plural da primeira 81 pessoa na conjugação de um único e mesmo verbo Entre ich war wir waren de um lado e ich was séculos XV e XVI ich war contemporâneo de outro existe uma relação diferente que nada tem de comum com a primeira A forma ich war formouse por analogia a wir waren No lugar de ich was nós indivíduos separados viemos a criar ich war17 sob influência de wir waren O fenômeno tornouse fenômeno de massa e o resultado foi que de um erro individual originouse uma norma lingüística Desta maneira entre as duas relações 1o ich was wir waren no quadro sincrônico digamos do século XV ou então ich war wir waren no quadro sincrônico do século XIX e 2o ich was ich war wir waren na qualidade de fator determinante da nova forma analógica existem diferenças bem profundas no plano dos princípios A primeira relação sincrônica é regida por combinações lingüísticas sistemáticas entre elementos interdependentes e complementares Esta relação opõese ao indivíduo na sua qualidade de norma peremptória A segunda relação histórica ou diacrônica está submetida às suas próprias leis particulares mais precisamente às leis do erro analógico A lógica da história da língua é a lógica dos erros individuais ou dos desvios A passagem de ich was a ich war se efetua fora do campo da consciência individual A passagem é involuntária e passa desapercebida e esta é a condição de sua realização A cada época só pode corresponder uma única norma lingüística ou ich was ou ich war Fora da norma só há lugar para a transgressão mas não para uma outra norma contraditória razão pela qual não poderia existir tragédia lingüística Se a transgressão não é percebida como tal e por isso mesmo não é corrigida e se existe um terreno favorável para a generalização do erro no caso considerado este terreno favorável é a analogia então este desvio tornase a nova norma lingüística Assim entre a lógica da língua como sistema de formas e a lógica da sua evolução histórica não há nenhum vínculo nada de comum As duas esferas são regidas por leis completamente diferentes por fatores heterogêneos O que torna a língua significante e coerente no quadro sincrônico é excluído e inútil no quadro diacrônico O 17 Os ingleses utilizam ainda I was 82 presente da língua e sua história não se entendem entre si são ambos incapazes de se entenderem Assinalamos a divergência bem profunda que existe justamente sob este aspecto entre a primeira e a segunda orientação da filosofia da linguagem Para a primeira orientação a essência da língua está precisamente na sua história A lógica da língua não é absolutamente a da repetição de formas identificadas a uma norma mas sim uma renovação constante a individualização das formas em enunciações estilisticamente únicas e não reiteráveis A realidade da língua constitui também sua evolução Entre um momento particular da vida de uma língua e sua história se estabelece uma comunhão total As mesmas motivações ideológicas reinam numa e noutra parte Como diria Vossler o gosto lingüístico cria a unicidade da língua num momento dado Ele cria e garante da mesma maneira a unicidade da evolução histórica da língua A passagem de uma forma histórica a outra se efetua essencialmente nos limites da consciência individual posto que também como sabemos toda forma gramatical foi na origem para Vossler uma forma estilística livre A diferença entre as duas orientações fica muito bem ilustrada pela seguinte as formas normativas responsáveis pelo imobilismo do sistema lingüístico ergon não eram para a primeira orientação senão resíduos deteriorados da evolução lingüística da verdadeira substância da língua tornada viva pelo ato de criação individual e único Para a segunda orientação é justamente este sistema de formas normativas que se torna a substância da língua A refração e a variação de caráter individual e criador das formas lingüísticas não constituem mais que detritos da vida da língua mais exatamente do imobilismo fenomenal desta harmônicos inúteis e intangíveis do tom fundamentalmente estável das formas lingüísticas Nós podemos sintetizar o essencial das considerações da segunda orientação nas seguintes proposições 1 A língua é um sistema estável imutável de formas lingüísticas submetidas a uma norma fornecida tal qual à consciência individual e peremptória para esta 2 As leis da língua são essencialmente leis lingüísticas específicas que estabelecem ligações entre os signos lingüísticos no interior de um sistema fechado Estas leis são objetivas relativamente a toda consciência subjetiva 3 As ligações lingüísticas específicas nada têm a ver com valores ideológicos artísticos cognitivos ou outros Não se encontra na base dos fatos lingüísticos nenhum motor ideológico Entre a palavra 83 e seu sentido não existe vínculo natural e compreensível para a consciência nem vínculo artístico 4 Os atos individuais de fala constituem do ponto de vista da língua simples refrações ou variações fortuitas ou mesmo deformações das formas normativas Mas são justamente estes atos individuais de fala que explicam a mudança histórica das formas da língua enquanto tal a mudança é do ponto de vista do sistema irracional e mesmo desprovida de sentido Entre o sistema da língua e sua história não existe nem vínculo nem afinidade de motivos Eles são estranhos entre si O leitor terá notado que as quatro proposições que resumem a segunda orientação do pensamento filosóficolingüístico constituem a antítese das quatro proposições correspondentes da primeira orientação O traçado histórico da segunda orientação é bem mais difícil de ser feito Aí não encontramos no início de nossa era representante ou teórico cuja estatura possa se comparar à de Humboldt É preciso procurar as raízes desta orientação no racionalismo dos séculos XVII e XVIII Tais raízes mergulham no solo fértil do cartesianismo18 Foi Leibniz quem exprimiu pela primeira vez estas idéias de forma clara na sua teoria da gramática universal A idéia de uma língua convencional arbitrária é caracterís tica de toda corrente racionalista bem como o paralelo estabele cido entre o código lingüístico e o código matemático Ao espí rito orientado para a matemática dos racionalistas o que interessa não é a relação do signo com a realidade por ele refletida ou com o indivíduo que o engendra mas a relação de signo para signo no interior de um sistema fechado e não obstante aceito e inte grado Em outras palavras só lhes interessa a lógica interna do próprio sistema de signos este é considerado assim como 18 Não resta qualquer dúvida de que um elo interno une em profundidade a segunda orientação ao pensamento cartesiano e à visão geral do mundo do neoclassicismo com seu culto da forma fixa racional e imutável O próprio Descartes não publicou nada sobre a filosofia da linguagem mas encontramos na sua correspondência observações características Ver a este respeito o capítulo já citado no livro de Cassirer 84 na lógica independentemente por completo das significa ções ideológicas que a ele se ligam Os racionalistas também se inclinam a levar em conta o ponto de vista do receptor mas nunca o do locutor enquanto sujeito que exprime sua vida interior já que o signo matemático é menos passível do que qualquer outro de ser interpretado como a expressão do psiquismo individual ora o signo matemático era para os racionalistas o signo por excelência o modelo semiótico inclusive para a língua São precisamente estas idéias que se acham claramente expressas no conceito leibniziano da gramática universal19 Convém aqui assinalar que a primazia do ponto de vista do receptor sobre o do locutor é uma constante da segunda orientação Por isso mesmo em função do terreno escolhido por esta última o problema da expressão não é nunca abordado nem por conseguinte o da evolução do pensamento e do psiquismo subjetivo tal como ele transpira através da palavra o que é uma das principais preocupações da primeira orientação A idéia da língua como sistema de signos arbitrários e convencionais essencialmente racionais foi elaborada de forma simplificada já no século XVIII pelos filósofos do Século das Luzes As idéias que constituem o objetivismo abstrato vieram à luz primeiramente na França e ainda encontram aí seu terreno preferido20 Sem nos determos nas etapas intermediárias do desenvolvimento destas idéias passaremos imediatamente para a caracterização desta segunda orientação na época contemporânea A chamada escola de Genebra com Ferdinand de Saussure mostrase como a mais brilhante expressão do objetivismo abstrato em nosso tempo Os representantes desta escola particularmente Charles Bally estão entre os maiores lingüistas contemporâneos Saussure deu a todas as idéias da segunda orientação uma clareza e uma precisão admiráveis Suas formulações dos conceitos de base da lingüística tornaramse clássicas E mais ele levou todas suas reflexões a seu termo dotando assim os traços essenciais do objetivismo abstrato de uma limpidez e 19 Podemos familiarizarnos com estas considerações de Leibniz lendo a obra fundamental de Cassirer Leibniz System in seinem Wiessenschaftlichen Grundlagen Marburg 1902 20 É interessante notar que ao contrário da primeira a segunda orientação desenvolveuse e continua a desenvolverse na Alemanha 85 de um rigor excepcionais A pouca audiência que a escola de Vossler tem na Rússia corresponde inversamente à popularidade e influência de que a de Saussure aí goza Podemos dizer que a maioria dos representantes de nosso pensamento lingüístico se acha sob a influência determinante de Sausurre e de seus discípulos Bally e Sechehaye21 Nós nos deteremos um pouco mais longamente nas concepções de Sausurre dada a imensa importância de seus fundamentos teóricos para toda a segunda orientação e para a lingüística russa Mas aí também limitarnosemos às posições filosóficolingüísticas de base22 Sausurre parte do princípio de uma tríplice distinção le langage la langue como sistema de formas e o ato da enunciação individual la parole A língua la langue e a fala la parole são os elementos constitutivos da linguagem compreendida como a totalidade sem exceção de todas as manifestações físicas fisiológicas e psíquicas 21 O livro de R Schor Iazík i óbchtchestvo Linguagem e Sociedade Moscou 1926 situase no espírito da escola de Gene bra Schor nele faz uma viva apologia das idéias fundamentais De Saussure como também no artigo já citado A Crise da Lingüística Contemporânea Vinogradov se situa também como um êmulo da escola de Genebra Duas escolas lingüísticas russas a escola de Fortunátov e a de Kazan Kruchevski e Baudouin de Courtenay que constituem uma expressão brilhante do formalismo em lingüística inseremse perfeitamente no quadro da segunda orientação tal como a esboçamos 22 A obra teórica fundamental de Saussure publicada depois de sua morte por seus discípulos intitulase Curso de Lingüística Geral 1916 Nós a citaremos aqui na edição de 1922 É de causar admiração o fato de que este livro tendo em conta sua enorme influência nunca tenha sido traduzido para o russo Podemos encontrar uma breve apresentação das idéias de Saussure no artigo já indicado de Schor e no artigo de Peterson Óbchtchaia lingvistika Lingüística Geral in Petchát i revoliútsia Imprensa e Revolução 1923 vol 6 86 que entram em jogo na comunicação lingüística A linguagem não pode ser segundo Saussure o objeto da lingüística Considerada em si mesma faltalhe unidade interna e leis independentes autônomas Ela é compósita heterogênea É difícil não se perder em sua composição contraditória É impossível se permanecermos no terreno da linguagem fazer uma descrição dos fatos da língua A linguagem não pode ser o ponto de partida de uma análise lingüística Qual é pois o caminho metodológico correto que Saussure nos propõe para explicitar o objeto específico da lingüística A ele a palavra Não há no nosso entender senão uma solução para todas estas dificuldades tratase das contradições internas da linguagem como ponto de partida de sua análise é preciso antes de tudo instalarse no terreno da língua e tomála como norma de todas as demais manifestações da linguagem Com efeito em meio a tantas dualidades só a língua parece suscetível de uma definição autô noma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito F de Saussure Cours de linguistique générale p 24 itálicos de Saussure Qual é pois segundo Saussure a distinção de princípio entre língua e linguagem Tomada como um todo a linguagem é multiforne e heteróclita participando de diversos domínios tanto do físico quanto do filosófico e do psíquico ela pertence ainda ao domínio individual e ao domínio social ela não se deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos humanos porque não se sabe como isolar sua unidade Todas as citações francesas do livro estão em francês no texto original Lembremos que iazík em russo designa a linguagem a língua e a língua enquanto órgão e que rietch em russo designa a fala a língua a linguagem o discurso Traduziuse iazík ora por linguagem como no título ora por língua Entretanto para suprimir a ambigüidade Bakhtin forjou um substantivo composto iazíkrietch a linguagem que ele opôs a iazík kak sistiema form A Língua como sistema de formas e a viskazivánie a enunciação do ato de fala NdTfr 87 A língua ao contrário é um todo em si mesma e um princípio de classificação A partir do momento em que lhe atribuímos o maior destaque entre os fatos da linguagem introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação Op cit p 25 Assim para Saussure é indispensável partir da língua como sistema de formas cuja identidade se refira a uma norma e esclarecer todos os fatos de linguagem como referência a suas formas estáveis e autônomas autoregulamentadas Tendo distinguido a língua da linguagem no sentido da totalidade absoluta das manifestações lingüísticas Saussure vai em seguida distinguir a língua dos atos individuais de enunciação isto é da fala Separandose a língua da fala separase ao mesmo tempo em primeiro lugar o que é social do que é individual em segundo lugar o que é essencial do que é acessório e relativamente acidental A língua não é função do sujeito falante ela é um produto que o indivíduo registra passivamente ela não supõe nunca premeditação e a reflexão aí só intervém para a atividade de classificação de que nos ocuparemos A fala é ao contrário um ato individual de vontade e de inteligência no interior do qual convém distinguir primeiramente as combinações pelas quais o sujeito falante utiliza o código da língua para exprimir seu pensamento pessoal em segundo lugar o mecanismo psicofísico que lhe permite exteriorizar estas combinações Op cit p 30 A fala tal como Saussure a entende não poderia ser objeto da lingüística23 Na fala os elementos que concernem à lingüística são constituídos apenas pelas formas normativas da língua que aí se manifestam Todo o resto é acessório e acidental 23 Saussure na verdade admite a possibilidade de uma outra lingüística a da fala mas ele não diz em que poderia ela consistir Eis o que ele escreve a respeito Há que se escolher entre dois caminhos impossíveis de serem seguidos ao mesmo tempo eles devem ser trilhados separadamente Podese a rigor conservar o nome de lingüística da fala Mas não se deverá confundila com a lingüística propriamente dita aquela em que a língua é o único objeto Op cit p 39 88 Destaquemos esta tese fundamental de Saussure a língua se opõe à fala como o social ao individual A fala é assim absolutamente individual Nisto consiste como veremos o proton pseudos de Saussure e de toda tendência do objetivismo abstrato O ato individual de falaenunciação rechaçado decisivamente para os confins da lingüística aí encontra todavia um lugar como fator indispensável da história da língua24 Esta última de acordo com o espírito de toda a segunda orientação opõese rigorosamente à língua como sistema sincrônico para Saussure Na história da língua a fala com seu caráter individual e acidental é soberana razão pela qual é regida por leis completamente diferentes das que regem o sistema da língua Assim é que o fenômeno sincrônico nada tem de comum com o diacrônico p 129 A lingüística sincrônica irá se ocupar das relações lógicas e psicológicas que unem termos coexistentes e formadores de um sistema tal como eles são percebidos pela mesma consciência coletiva A lingüística diacrônica estudará ao contrário as relações que unem termos sucessivos não percebidos por uma mesma consciência e que se substituem uns aos outros sem formar sistema entre si Op cit p 140 itálicos de Saussure Estas idéias de Sausurre sobre a história são bem características do espírito racionalista que reina até hoje na segunda orientação do pensamento filosóficolingüístico e para o qual a história é um domínio irracional que corrompe a pureza lógica do sistema lingüístico Saussure e sua escola não estão sozinhos no pináculo do objetivismo abstrato contemporâneo Ao lado deles nós vemos ascender uma outra escola a escola sociológica de Durkheim Nela encontramos uma figura de lingüista como a de Meillet Nós não nos deteremos numa descrição de suas concepções25 Elas se inserem perfeitamente no quadro dos fundamentos já apresentados da segunda orientação Também para Meillet não é a qualidade de processo mas a de sistema estável de normas lingüísticas que faz da língua um 24 Saussure diz Tudo o que é diacrônico na língua só o é através da fala É na fala que se encontra o germe de todas as mudanças Op cit p 138 25 M N Peterson expõe as idéias de Meillet relacionandoas com os fundamentos do método sociológico de Durkheim no artigo já citado A Língua Como Manifestação Social Ver a bibliografia aí contida 89 fenômeno social O fato de oporse a língua do exterior à consciência individual e mais o seu caráter coercitivo constituem para ele os traços sociais fundamentais da língua Não iremos discorrer sobre as inúmeras escolas e tendências da lingüística que não entram no quadro das duas orientações aqui definidas Falaremos um pouco entretanto a respeito dos neogramáticos cujo movimento constitui uma das mais importantes manifestações da lingüística na segunda metade do século XIX Por algumas de suas posições os neogramáticos mostram um certo parentesco com a segunda orientação da qual eles realçam o componente menor o fisiológico O indivíduo criador da língua é essencialmente para eles um ser fisiológico Por outro lado no terreno psicofisiológico os neogramáticos tentaram construir leis lingüísticas calcadas nas ciências naturais ou seja leis imutáveis completamente privadas do livre arbítrio dos indivíduos locutores Donde a idéia neogramática das leis fonéticas Lautgesetze26 Em lingüística como em toda ciência específica existem essencialmente duas maneiras de se livrar do penoso trabalho que uma reflexão filosófica séria fundada sobre princípios exige A primeira consiste em erigir logo de saída todos os princípios em axiomas academicismo eclético a outra consiste em descartar todos os princípios e proclamar o fato factum como fundamento e critério último de todo ato cognitivo positivismo acadêmico O efeito filosófico que resulta destes dois procedimentos para se livrar da filosofia é o mesmo já que no segundo caso podem caber no saco onde se lê Fato todos os princípios possíveis e imagináveis A escolha de uma modalidade ou de outra depende inteiramente do temperamento do pesquisador os ecléticos são mais relaxados os positivistas mais exigentes Encontramse em lingüística numerosas produções e mesmo escolas inteiras escolas no sentido de estudo científicotécnico que se dispensam da tarefa de seguir uma orientação filosóficolingüística Mas elas não entram evidentemente no quadro de nossa apresentação Existem por fim alguns lingüistas e filósofos não mencionados aqui como Otto Dietrich e Anton Marty e que 26 Os principais trabalhos da tendência neogramática são Osthoff Das physiologische und psychologische Moment in der sprachlichen Formenbildung Berlim 1879 Brugmann e Delbrück Grundriss der vergleichenden Grammatik der indogermanischen Sprachen cinco volumes 1886 O programa dos neogramáticos está exposto no prefácio do livro de Osthoff e Brugmann Morphologische Untersuchungen Leipzig 1878 90 citaremos adiante quando analisarmos os problemas da interação lingüística e da significação Colocamos no início do capítulo o problema da explicitação e da delimitação da língua como objeto específico de pesquisa Tentamos descobrir as balizas já colocadas no caminho da resolução deste problema pelas tendências do pensamento filosóficolingüístico que nos precederam Por fim achamonos diante de duas categorias de sinalizações colocadas em direções diametralmente opostas De um lado as teses do subjetivismo individualista e de outro as antíteses do objetivismo abstrato Mas o que é que se revela como o verdadeiro núcleo da realidade lingüística O ato individual da fala a enunciação ou o sistema da língua E qual é pois o modo de existência da realidade lingüística Evolução criadora ininterrupta ou imutabilidade de normas idênticas a si mesmas 91 CAPÍTULO 5 LÍNGUA FALA E ENUNCIAÇÃO No capítulo precedente tentamos representar de maneira totalmente objetiva as duas orientações do pensamento filosófico lingüístico Agora devemos submetêlas a uma análise crítica em profundidade Isso feito estaremos em condições de responder à questão colocada no fim do Capítulo 4 Comecemos pela crítica da segunda orientação a do objetivismo abstrato Coloquemonos primeiro a seguinte questão em que medida um sistema de normas imutáveis isto é um sistema de língua segundo os representantes da segunda orientação conformase à realidade Evidentemente nenhum dos representantes do objetivismo abstrato confere ao sistema lingüístico um caráter de realidade material eterna Esse sistema exprimese efetivamente em coisas materiais em signos mas enquanto sistema de formas normativas sua realidade repousa na sua qualidade de norma social Os representantes dessa orientação acentuam constantemente que o sistema lingüístico constitui um fato objetivo externo à consciência individual e independente desta e isto representa uma de suas posições fundamentais E no entanto é só para a consciência individual e do ponto de vista dela que a língua se apresenta como sistema de normas rígidas e imutáveis Na verdade se fizermos abstração da consciência individual subjetiva e lançarmos sobre a língua um olhar verdadeiramente objetivo um olhar digamos oblíquo ou melhor de cima não encontraremos nenhum indício de um sistema de normas imutáveis Pelo contrário depararemos com a evolução ininterrupta das normas da língua De um ponto de vista realmente objetivo percebendo a língua de um modo completamente diferente daquele como ela apareceria para um certo indivíduo num dado momento do tempo a língua apresentase como uma corrente evolutiva ininterrupta Para o observador que enfoca a língua de cima o lapso 92 de tempo em cujos limites é possível construir um sistema sincrônico não passa de uma ficção Assim de um ponto de vista objetivo o sistema sincrônico não corresponde a nenhum momento efetivo do processo de evolução da língua E na verdade para o historiador da língua que adota um ponto de vista diacrônico o sistema sincrônico não constitui uma realidade ele apenas serve de escala convencional para registrar os desvios que se produzem a cada momento no tempo O sistema sincrônico da língua só existe do ponto de vista da consciência subjetiva do locutor de uma dada comunidade lingüística num dado momento da história Objetivamente esse sistema não existe em nenhum verdadeiro momento da história Podemos admitir que no momento em que César escrevia suas obras a língua latina constituía para ele um sistema imutável e incontestável de normas fixas mas para o historiador da língua latina naquele mesmo momento em que César escrevia produziase um processo contínuo de transformação lingüística mesmo se o historiador não for capaz de registrar essas transformações Todo sistema de normas sociais encontrase numa posição aná loga somente existe relacionado à consciência subjetiva dos indivíduos que participam da coletividade regida por essas normas São assim os sistemas de normas morais jurídicas estéticas tais normas realmente existem etc Certamente essas normas variam Diferem pelo grau de coerção que exercem pela extensão de sua escala social pelo grau de significação social que é função de sua relação mais ou menos próxima com a infraestrutura etc Mas enquanto normas a natureza de sua existência permanece a mesma só existem relativamente à consciência subjetiva dos indivíduos de uma dada comunidade Seguese então que essa relação entre a consciência subjetiva e a língua como sistema objetivo de normas incontestáveis seja desprovida de qualquer objetividade Não evidentemente Compreendida corretamente essa relação pode ser considerada um fato objetivo Dizer que a língua como sistema de normas imutáveis e incontestáveis possui uma existência objetiva é cometer um grave erro Mas exprimese uma relação perfeitamente objetiva quando se diz que a língua constitui relativamente à consciência individual um sistema de normas imutáveis que este é o modo de existência da língua para todo membro de uma comunidade lingüística dada Se o próprio fato está correta mente estabelecido se é realmente verdade que a língua se apresenta para a consciência do locutor como um sistema de normas fixas 93 e imutáveis é uma outra questão que por enquanto será deixada em aberto Em todo caso nosso alvo é poder estabelecer uma certa relação objetiva Qual a posição dos partidários do objetivismo abstrato com relação a esse ponto Afirmam eles que a língua é um sistema de normas fixas objetivas e incontestáveis ou percebem que este é apenas o modo de existência da língua para a consciência subjetiva dos locutores de uma dada comunidade A melhor resposta a essa questão é a seguinte a maioria dos partidários do objetivismo abstrato tende a afirmar a realidade e a objetividade imediatas da língua como sistema de formas normativas Para esses representantes da segunda orientação o objetivismo abstrato tornase simplesmente hipostático Outros representantes da mesma orientação Meillet por exemplo são mais críticos e percebem a natureza abstrata e convencional do sistema lingüístico No entanto nenhum dos objetivistas abstratos chegou a compreender de maneira clara e precisa o funcionamento intrínseco da língua como sistema objetivo Na maioria dos casos eles oscilam entre as duas acepções que a palavra objetivo possui quando aplicada ao sistema lingüístico a acepção por assim dizer entre aspas expressando o ponto de vista da consciência subjetiva do locutor e a acepção sem aspas objetivo no sentido próprio Até Saussure procede dessa maneira Ele não resolve a questão claramente Devemos agora perguntarnos se a língua existe realmente para a consciência subjetiva do locutor unicamente como sistema objetivo de formas normativas e intocáveis O objetivismo abstrato captou corretamente o ponto de vista da consciência subjetiva do locutor É realmente este o modo de existência da língua na consciência lingüística subjetiva A essa questão somos obrigados a responder pela negativa A consciência subjetiva do locutor não se utiliza da língua como de um sistema de formas normativas Tal sistema é uma mera abstração produzida com dificuldade por procedimentos cognitivos bem determinados O sistema lingüístico é o produto de uma reflexão sobre a língua reflexão que não procede da consciência do locutor nativo e que não serve aos propósitos imediatos da comunicação Na realidade o locutor servese da língua para suas necessidades enunciativas concretas para o locutor a construção da língua está orientada no sentido da enunciação da fala Tratase para ele de utilizar as formas normativas admitamos por enquanto a legitimidade destas num dado contexto concreto Para ele o centro de gravidade da língua não reside na conformidade à norma da forma 94 utilizada mas na nova significação que essa forma adquire no contexto O que importa não é o aspecto da forma lingüística que em qualquer caso em que esta é utilizada permanece sempre idêntico Não para o locutor o que importa é aquilo que permite que a forma lingüística figure num dado contexto aquilo que a torna um signo adequado às condições de uma situação concreta dada Para o locutor a forma lingüística não tem importância enquanto sinal estável e sempre igual a si mesmo mas somente enquanto signo sempre variável e flexível Este é o ponto de vista do locutor Mas o locutor também deve levar em consideração o ponto de vista do receptor Seria aqui que a norma lingüística entraria em jogo Não também não é exatamente assim É impossível reduzirse o ato de descodificação ao reconhecimento de uma forma lingüística utilizada pelo locutor como forma familiar conhecida modo como reconhecemos por exemplo um sinal ao qual não estamos suficientemente habituados ou uma forma de uma língua que conhecemos mal Não o essencial na tarefa de descodificação não consiste em reconhecer a forma utilizada mas compreendêla num contexto concreto preciso compreender sua significação numa enunciação particular Em suma tratase de perceber seu caráter de novidade e não somente sua conformidade à norma Em outros termos o receptor pertencente à mesma comunidade lingüística também considera a forma lingüística utilizada como um signo variável e flexível e não como um sinal imutável e sempre idêntico a si mesmo O processo de descodificação compreensão não deve em nenhum caso ser confundido com o processo de identifi cação Tratase de dois processos profundamente distintos O signo é descodificado só o sinal é identificado O sinal é uma entidade de conteúdo imutável ele não pode substituir nem refletir nem refratar nada constitui apenas um instrumento técnico para designar este ou aquele objeto preciso e imutável ou este ou aquele acontecimento igualmente preciso e imutável1 O sinal 1 Karl Bühler no seu artigo Vom Wesem der Syntax in Festschrift für Karl Vossler p 6169 estabelece distinções interessantes e astuciosas entre de um lado o sinal e suas combinações no domínio marítimo por exemplo e de outro a forma lingüística e suas combinações em conexão com os problemas de sintaxe 95 não pertence ao domínio da ideologia ele faz parte do mundo dos objetos técnicos dos instrumentos de produção no sentido amplo do termo Mais distantes ainda da ideologia estão os sinais com os quais trabalha a reflexologia Esses sinais considerados em relação ao organismo que os recebe isto é ao organismo sobre o qual eles incidem nada têm a ver com as técnicas de produção Nesse caso não são mais sinais mas estímulos de uma espécie particular Só se tornam instrumentos de produção nas mãos do experimentador Somente um concurso infeliz de circunstâncias e as inextirpáveis práticas da reflexão mecanicista puderam induzir certos pesquisadores a fazer desses sinais praticamente a chave da compreensão da linguagem e do psiquismo humano do discurso interior Enquanto uma forma lingüística for apenas um sinal e for percebida pelo receptor somente como tal ela não terá para ele nenhum valor lingüístico A pura sinalidade não existe mesmo nas primeiras fases da aquisição da linguagem Até mesmo ali a forma é orientada pelo contexto já constitui um signo embora o componente de sinalidade e de identificação que lhe é corre lata seja real Assim o elemento que torna a forma lingüística um signo não é sua identidade como sinal mas sua mobilidade específica da mesma forma que aquilo que constitui a descodificação da forma lingüística não é o reconhecimento do sinal mas a compreensão da palavra no seu sentido particular isto é a apreensão da orientação que é conferida à palavra por um contexto e uma situação precisos uma orientação no sentido da evolução e não do imobilismo2 Disso não se conclui que o componente de sinalidade e seu correlato a identificação não existam na língua Existem mas não como constituintes da língua como tal O componente de sinalidade é dialeticamente deslocado absorvido pela nova qualidade do signo isto é da língua como tal Na língua materna isto é precisamente para os membros de uma comunidade lingüística dada o sinal e o reconhecimento estão dialeticamente apagados No processo de assimilação de uma língua estrangeira sentese a sinalidade e o reconhecimento que não foram ainda dominados a língua ainda não se tornou língua A assimilação ideal de uma língua dáse quando o 2 Veremos mais adiante que é justamente a compreensão no sentido próprio a compreensão da evolução que se acha na base da resposta isto é da interação verbal É impossível delimitar de modo estrito o ato de compreensão e a resposta Todo ato de compreensão é uma resposta na medida em que ele introduz o objeto da compreensão num novo contexto o contexto potencial da resposta 96 sinal é completamente absorvido pelo signo e o reconhecimento pela compreensão3 Assim na prática viva da língua a consciência lingüística do locutor e do receptor nada tem a ver com um sistema abstrato de formas normativas mas apenas com a linguagem no sentido de conjunto dos contextos possíveis de uso de cada forma particular Para o falante nativo a palavra não se apresenta como um item de dicionário mas como parte das mais diversas enunciações dos locutores A B ou C de sua comunidade e das múltiplas enunciações de sua própria prática lingüística Para que se passe a perceber a palavra como uma forma fixa pertencente ao sistema lexical de uma língua dada como uma palavra de dicionário é preciso que se adote uma orientação particular e específica É por isso que os membros de uma comunidade lingüística normalmente não percebem nunca o caráter coercitivo das normas lingüísticas A significação normativa da forma lingüística só se deixa perceber nos momentos de conflito momentos raríssimos e não característicos do uso da língua para o homem contemporâneo eles estão quase exclusivamente associados à expressão escrita Cumpre ainda acrescentar aqui uma observação extremamente importante a consciência lingüística dos sujeitos falantes não tem o que fazer com a forma lingüística enquanto tal nem com a própria língua como tal De fato a forma lingüística como acabamos de mostrar sempre se apresenta aos locutores no contexto de enunciações precisas o que implica sempre um contexto ideológico preciso Na realidade não são palavras o que pronunciamos ou escutamos mas verdades ou mentiras coisas boas ou más importantes ou triviais agradáveis ou desagradáveis etc A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida O critério de correção só se aplica à enunciação em situa ções anormais ou particulares por exemplo no estudo de uma língua 3 O ponto de vista que defendemos embora careça de uma sustentação teóri ca constitui na prática a base de todos os métodos eficazes de ensino de lín guas vivas estrangeiras O essencial desses métodos é familiarizar o aprendiz com cada forma da língua inserida num contexto e numa situação concre tas Assim uma palavra nova só é introduzida mediante uma série de 97 contextos em que ela figure O que faz com que o fator de reconhecimento da palavra normativa seja logo de início associado e dialeticamente integrado aos fatores de mutabilidade contextual de diferença e de novidade A palavra isolada de seu contexto inscrita num caderno e apreendida por associação com seu equivalente russo tornase por assim dizer sinal tornase uma coisa única e no processo de compreensão o fator de reconhecimento adquire um peso muito forte Em suma um método eficaz e correto de ensino prático exige que a forma seja assimilada não no sistema abstrato da língua isto é como uma forma sempre idêntica a si mesma mas na estrutura concreta da enunciação como um signo flexível e variável estrangeira Em condições normais o critério de correção lingüística cede lugar ao critério puramente ideológico importanos menos a correção da enunciação do que seu valor de verdade ou de mentira seu caráter poético ou vulgar etc4 A língua no seu uso prático é inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida Para se separar abstratamente a língua de seu conteúdo ideológico ou vivencial é preciso elaborar procedimentos particulares não condicionados pelas motivações da consciência do locutor Se à maneira de alguns representantes da segunda orientação fizermos dessa separação abstrata um princípio se concedermos um estatuto separado à forma lingüística vazia de ideologia só encontraremos sinais e não mais signos da linguagem A separação da língua de seu conteúdo ideológico constitui um dos erros mais grosseiros do objetivismo abstrato Assim a língua para a consciência dos indivíduos que a falam de maneira alguma se apresenta como um sistema de formas normativas O sistema lingüístico tal como é construído pelo objetivismo abstrato não é diretamente acessível à consciência do sujeito falante definido por sua prática viva de comunicação social No que consiste então esse sistema É claro desde o começo que esse sistema resulta de uma análise abstrata que ele se compõe de elementos abstratamente isolados das unidades reais da cadeia verbal das enunciações Todo procedimento abstrato para se legitimar deve ser justificado por um propósito teórico e prático preciso Uma abstração pode ser fecunda ou estéril útil para certos fins e determinadas tarefas e não para outras 4 Por isso como veremos não podemos concordar com Vossler quanto à existência de um gosto lingüístico específico e determinado que não se confunda a cada momento com um gosto ideológico particular artístico cognitivo ético etc 98 Quais são então as metas da análise lingüística abstrata que conduz ao sistema sincrônico da língua E de que ponto de vista esse sistema se revela produtivo e necessário Na base dos métodos de reflexão lingüística que levam à postulação da língua como sistema de formas normativas estão os procedimentos práticos e teóricos elaborados para o estudo das línguas mortas que se conservaram em documentos escritos É preciso salientar com insistência que essa abordagem filológica foi determinante para o pensamento lingüístico do mundo europeu Esse pensamento nasceu e nutriuse dos cadáveres dessas línguas escritas Quase todas as abordagens fundamentais e as práticas desse pensamento foram elaboradas no processo de ressurreição desses cadáveres O filo logismo é um traço inevitável de toda a lingüística européia condicionada pelas vicissitudes históricas que presidiram ao seu nascimento e seu desenvolvimento Por mais que voltemos os olhos ao passado para traçar a história das categorias e dos métodos lingüísticos sempre encontraremos filólogos Os alexandrinos eram filólogos assim como os romanos e os gregos Aristóteles é um exemplo típico Também a Índia possuía seus filólogos Podemos dizer que a lingüística surgiu quando e onde surgiram exigências filológicas Os imperativos da filologia engendraram a lingüística acalentaramna e deixaram dentro de suas fraldas a flauta da filologia Essa flauta tem por função despertar os mortos Mas essa flauta carece da potência necessária para dominar a fala viva com sua evolução permanente Nicolau Marr salienta muito corretamente essa essência filológica do pensamento lingüístico indoeuropeu A lingüística indoeuropéia dispondo já há muito tempo de um objeto de investigação estabelecido e completamente formado a saber as línguas indoeuropéias das épocas históricas e além do mais tirando todas as suas conclusões das formas petrificadas das línguas escritas favorecendo entre estas as línguas mortas foi com toda evidência incapaz de descrever o processo de aparição da linguagem em geral e a origem das diferentes formas que ela adquire5 Ou ainda O que gera os maiores obstáculos ao estudo da linguagem primitiva não é a dificuldade das pesquisas enquanto tal nem a 5 N Marr Po etapam iafetícheskoi teórit As Etapas da Teoria Jafética 1926 p 269 99 insuficiência de dados sólidos é nosso modo de pensamento científico forjado por uma visão do mundo tradicionalmente filológica e pela história da cultura esse pensamento não foi nutrido por uma concepção etnolingüística da fala viva por suas formas que ela adquire6 Essas palavras de N Marr parecemnos justas não apenas no que tange aos estudos indoeuropeus que forneceram o tom a toda a lingüística contemporânea mas também no que respeita à lingüística toda tal como a conhecemos pela história Em toda par te a lingüística é filha da filologia Submetida aos imperativos desta a lingüística sempre se apoiou em enunciações constitutivas de monólogos fechados por exemplo em inscrições em monumentos antigos considerandoas como a realidade mais imediata A lingüística elaborou seus métodos e categorias trabalhando com monólogos mortos ou melhor com um corpus de enunciações desse tipo cujo único ponto comum é o uso da mesma língua E no entanto a enunciação monológica já é uma abstração embora seja uma abstração do tipo natural Toda enunciação monológica inclusive uma inscrição num monumento constitui um elemento inalienável da comunicação verbal Toda enunciação mesmo na forma imobilizada da escrita é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam trava uma polêmica com elas conta com as reações ativas da compreensão antecipaas Cada inscrição constitui uma parte inalienável da ciência ou da literatura ou da vida política Uma inscrição como toda enunciação monológica é produzida para ser compreendida é orientada para uma leitura no contexto da vida científica ou da realidade literária do momento isto é no contexto do processo ideológico do qual ela é parte integrante O filólogolingüista desvinculaa dessa esfera real apreendea como um todo isolado que se basta a si mesmo e não lhe aplica uma compreensão ideológica ativa e sim ao contrário uma compreensão totalmente passiva que não comporta nem o esboço de uma resposta como seria exigido por qualquer espécie autêntica de compreensão O filólogo contentase em tomar essa inscrição isolada como um documento de linguagem e em comparála com outras inscrições no quadro geral de uma língua dada É nesse processo de comparação e 6 Ibid p 94 100 de mútua correlação das enunciações de uma dada língua que os métodos e as categorias do pensamento lingüístico se constituíram Uma língua morta apresentase claramente como uma lín gua estrangeira para o lingüista que a estuda Por isso é impos sível afirmar que o sistema das categorias lingüísticas constitui o produto da reflexão epistemológica do locutor de uma língua dada Não se trata de uma reflexão sobre a percepção que o locutor nativo tem de sua própria língua tratase antes da reflexão de uma consciência que luta para abrir caminho no mundo misterioso de uma língua estrangeira A compreensão inevitavelmente passiva do filólogolingüista projetase sobre a própria inscrição sobre o objeto do estudo lingüís tico como se essa inscrição tivesse sido concebida desde a origem para ser apreendida dessa maneira como se ela tivesse sido escrita para os filólogos Disso resulta uma teoria completamente falsa da compreensão que está na base não só dos métodos de interpretação lingüística dos textos mas também de toda a semasiologia européia Toda a sua posição em relação ao sentido e ao tema da palavra está impregnada dessa falsa concepção da compreensão como ato passivo compreensão da palavra que exclui de antemão e por princípio qualquer réplica ativa Veremos mais adiante que esse tipo de compreensão que exclui de antemão qualquer resposta nada tem a ver com a compreensão da linguagem Essa última confundese com uma tomada de posição ativa a propósito do que é dito e compreendido A compreensão passiva caracterizase justamente por uma nítida percepção do componente normativo do signo lingüístico isto é pela percepção do signo como objetosinal correlativamente o reconhecimento predomina sobre a compreensão Assim é a língua mortaescritaestrangeira que serve de base à concepção da língua que emana da reflexão lingüística A enunciação isoladafechadamonológica desvinculada de seu contexto lingüístico e real à qual se opõe não uma resposta potencial ativa mas a compreensão passiva do filólogo este é o dado último e o ponto de partida da reflexão lingüística Originada no processo de aquisição de uma língua estrangeira num propósito de investigação científica a reflexão lingüística serviu também a outros propósitos não mais de pesquisa mas de ensino não se trata mais de decifrar uma língua mas uma vez essa língua decifrada de ensinála As inscrições extraídas de documentos 101 heurísticos transformamse em exemplos escolares em clássicos da língua O segundo problema fundamental da lingüística criar o instrumental indispensável para a aquisição da língua decifrada codificar essa língua no propósito de adaptála às necessidades da transmissão escolar marcou profundamente o pensamento lingüístico A fonética a gramática o léxico essas três divisões do sistema da língua os três centros organizadores das categorias lingüísticas formaramse em função das duas tarefas atribuídas à lingüística uma heurística e a outra pedagógica O que é um filólogo Independentemente das diferenças pro fundas de ordem cultural e histórica que separam os sacer dotes hindus dos lingüistas contemporâneos o filólogo sempre e em toda parte é o adivinho que tenta decifrar o mistério de letras e de palavras estrangeiras e o mestre que transmite aquilo que decifrou ou herdou da tradição Os sacerdotes foram sempre e em toda parte os primeiros filólogos e os primeiros lingüistas A história não conhece nenhum povo cujas escrituras sagradas ou tradições não tenham sido numa certa medida redigidas numa língua estrangeira e incompreensível para o profano Decifrar o mistério das escrituras sagradas foi justamente a tarefa dos sacerdoteslingüistas É também sobre esse terreno que desde os tempos mais remotos a filosofia da linguagem se desenvolveu o ensino védico da palavra o ensino dos logos dos antigos pensadores gregos e a filosofia bíblica da palavra Para compreender esses filosofemas convém não perder de vista o fato de que eles são filosofemas de palavras estrangeiras Suponhamos um povo que só disponha de sua língua materna um povo para o qual a palavra só possa ser a da língua nativa e que não esteja exposto à palavra estrangeira críptica esse povo jamais teria criado tais filosofemas7 Tratase de um fato surpreendente desde a mais remota antiguidade até nossos dias a filosofia da palavra e a 7 Na religião védica a palavra sagrada no uso que dela faz o iniciado o sacerdote consagrado tornase soberano do Ser dos deuses e dos homens O sacerdote onisciente definese aqui como aquele que dispõe da palavra e é nisso que repousa seu poder A doutrina correspondente já se encontra no Rig Veda O filosofema do logos na Grécia antiga e a doutrina alexandrina do logos são universalmente conhecidos 102 reflexão lingüística fundamentamse especificamente na apreensão da palavra estrangeira e nos problemas que a língua estrangeira apresenta para a consciência a saber o deciframento e a transmissão do que foi decifrado Na sua reflexão sobre a linguagem o sacerdote védico e o lingüistafilólogo contemporâneo deixamse fascinar e subjugar por um único e idêntico fenômeno o da palavra estrangeira críptica A palavra da língua nativa é percebida de modo total mente diverso ela não é habitualmente percebida como uma pala vra carregada de todas aquelas categorias que ela engendrou na reflexão lingüística e que engendrava na reflexão filosófico religiosa da antiguidade A palavra nativa é percebida como um irmão como uma roupa familiar ou melhor como a atmosfera na qual habitualmente se vive e se respira Ela não apresenta nenhum misté rio Só pode apresentar algum na boca de um estrangeiro dupla mente estrangeiro por sua posição hierárquica e se trata por exemplo de um chefe ou de um sacerdote mas nesse a palavra muda de natureza transformase exteriormente ou desprendese de seu uso cotidiano tornase tabu na vida ordinária ou então arcaízase isto se a palavra em questão já não for desde a origem uma palavra estrangeira na boca de algum chefeconquistador É somente nessas condições que a Palavra nasce incipit philosophia incipit philologia O fato de que a lingüística e a filologia estejam voltadas para a palavra estrangeira não é produto do acaso ou de uma escolha arbitrária da parte dessas duas ciências Não essa orientação reflete o imenso papel histórico que a palavra estrangeira desempenhou no processo de formação de todas as civilizações da história Esse papel foi conferido à palavra estrangeira em todas as esferas da criação ideológica desde a estrutura sóciopolítica até o código de boas maneiras A palavra estrangeira foi efetivamente o veículo da civilização da cultura da religião da organização política os sumérios em relação aos semitas babilônicos os jaféticos em relação aos helenos Roma o cristianismo em relação aos eslavos do leste etc Esse grandioso papel organizador da palavra estrangeira palavra que transporta consigo forças e estruturas estrangeiras e que algumas vezes é encontrada por um jovem povo conquistador no território invadido de uma cultura antiga e poderosa cultura que então escraviza por assim dizer do seu túmulo a consciência ideológica do povo invasor fez com que na consciência histórica dos povos a palavra estrangeira se fundisse com a idéia de poder de 103 força de santidade de verdade e obrigou a reflexão lingüística a voltarse de maneira privilegiada para seu estudo E no entanto a filosofia da linguagem e a lingüística até hoje ainda não se conscientizaram do imenso papel ideológico da palavra estrangeira A lingüística continua escravizada por ela Representa por assim dizer a última onda trazida pelas águas outrora criativas e vivas da palavra estrangeira a última peripécia de sua carreira ditatorial e geradora de cultura Esta é a razão pela qual a lingüística ela própria produto da palavra estrangeira está ainda longe de alcançar uma compreensão correta do papel dessa palavra na história da língua e da consciência lingüística Pelo contrário os estudos indoeuropeus elaboraram categorias de análise da história da língua que excluem completamente qualquer apreciação correta desse papel Entretanto esse papel como vimos é imenso A idéia do cruzamento de línguas da interferência lingüís tica como fator essencial da evolução das línguas foi avançada com toda clareza por Nicolau Marr Ele também reconheceu esse fator como fundamental para a resolução do problema da origem da linguagem A interferência em geral como fator que provoca a aparição de formas e de tipos lingüísticos diferentes é a fonte da formação de novas espécies isso é observado e apontado em todas as línguas jaféticas e esse é um dos resultados mais bem sucedidos da lingüística jafética O fato é que não existe nenhuma língua onomatopaica primitiva comum a todos os povos e como veremos tal língua jamais existiu nem poderia ter existido A língua é uma criação da sociedade oriunda da intercomunicação entre os povos provocada por imperativos econômicos constitui um subproduto da comunicação social que implica sempre populações numerosas8 No seu artigo intitulado Sobre a Origem da Linguagem ele diz o seguinte Em suma a concepção que a assim chamada cultura nacional possui dessa ou daquela língua como língua nativa de massa de toda a população é anticientífica e irrealista Por enquanto a idéia de uma língua nacional comum a todas as castas a todas as classes é uma ficção Ou melhor assim como a estratificação da sociedade durante as primeiras 8 N Marr Po etapam iafetítcheskoi teórii As Etapas da Teoria Jafética p 268 104 fases de desenvolvimento procede das tribos isto é na realidade de formações tribais que nem por isso são simples por via de cruzamento assim também as línguas tribais concretas e a fortiori as línguas nacionais representam tipos cruzados de línguas cruzamentos constituídos de elementos simples cuja associação está na base de qualquer língua A análise paleontológica da linguagem humana não vai além da definição desses elementos tribais mas a teoria jafética ajusta esses elementos de maneira tão direta e decisiva que a questão da origem da linguagem fica reduzida à questão do surgimento desses elementos que nada mais são do que as denominações tribais9 Os problemas da significação da palavra e da origem da lingua gem fogem do quadro de nossa pesquisa Não examinaremos aqui a teoria da palavra estrangeira dos antigos10 e limitarnosemos a esboçar as categorias provenientes da palavra estrangeira que serviram de base ao objetivismo abstrato resumiremos assim o exposto acima e completaremos essa exposição por uma série de pontos essenciais 1 Nas formas lingüísticas o fator normativo e estável prevalece sobre o caráter mutável 2 O abstrato prevalece sobre o concreto 3 O sistemático abstrato prevalece sobre a verdade histórica 4 As formas dos elementos prevalecem sobre as do conjunto 5 A reificação do elemento lingüístico isolado substitui a dinâmica da fala 6 Univocidade da palavra mais do que polisemia e plurivalência vivas 7 Representação da linguagem como um produto acabado que se transmite de geração a geração 8 Incapacidade de compreender o processo gerativo interno da língua Consideremos brevemente cada uma dessas particularidades da reflexão dominada pela palavra estrangeira 9 Ibid p 315316 10 Assim a percepção que o homem préhistórico tem do caráter má gico da palavra é fortemente marcada pela palavra estran 105 1 A primeira dispensa qualquer explicação Já mostramos que a compreensão que o indivíduo tem de sua língua não está orientada para a identificação de elementos normativos do discurso mas para a apreciação de sua nova qualidade contextual A construção de um sistema de formas submetidas a uma norma é uma etapa indispensável e importante no processo de deciframento e de transmissão de uma língua estrangeira 2 O segundo ponto fica também bastante claro à luz do que já expusemos A enunciação monológica fechada constitui de fato uma abstração A concretização da palavra só é possível com a inclusão dessa palavra no contexto histórico real de sua realização primitiva Na enunciação monológica isolada os fios que ligam a palavra a toda a evolução histórica concreta foram cortados 3 O formalismo e o sistematismo constituem os traços típicos de toda reflexão que se exerce sobre um objeto acabado por assim dizer estagnado Essa última particularidade manifestase de diferentes maneiras De modo característico é o pensamento alheio que é habitualmente se não exclusivamente sistematizado geira Estamos pensando aqui na totalidade dos fenômenos com ela relacionados Os criadores iniciadores de novas correntes ideológicas nunca sentem necessidade de formalizar sistematicamente A sistemati zação aparece quando nos sentimos sob a dominação de um pensamento autoritário aceito como tal É preciso que a época de criatividade acabe só aí é que então começa a sistematização formalização é o trabalho dos herdeiros e dos epígonos domi nados pela palavra alheia que parou de ressoar A orientação da corrente em evolução nunca pode ser formalizada e sistemati zada Esta é a razão pela qual o pensamento gramatical formalista e sistematizante desenvolveuse com toda plenitude e vigor no campo das línguas mortas e ainda somente nos casos em que essas lín guas perderam até certo ponto sua influência e seu caráter autori tário sagrado A reflexão lingüística de caráter formalsistemático foi inevitavelmente coagida a adotar em relação às línguas vivas uma posição conservadora e acadêmica isto é a tratar a língua viva como se fosse algo acabado o que implica uma atitude hostil em relação a todas as inovações lingüísticas A reflexão lingüística de caráter formalsistemático é incompatível com uma aborda gem histórica e viva da língua Do ponto de vista do sistema a 106 história apresentase sempre como uma série de destruições devidas ao acaso 4 A lingüística como vimos está voltada para o estudo da enunciação monológica isolada Estudamse documentos históricos em relação aos quais o filólogo adota uma atitude de compreensão passiva Assim todo o trabalho desenvolvese nos limites de uma dada enunciação Os próprios limites da enunciação como uma entidade total são pouco percebidos O trabalho de pesquisa reduzse ao estudo das relações imanentes no interior do terreno da enunciação Todos os problemas daquilo que se poderia chamar de política externa da enunciação ficam excluídos do campo da observação Conseqüentemente todas as relações que ultrapassam os limites da enunciação monológica constituem um todo que é ignorado pela reflexão lingüística Esta na verdade não ousa ir além dos elementos constitutivos da enunciação monológica Seu alcance máximo é a frase complexa o período A estrutura da enunciação completa é algo cujo estudo a lingüística deixa para outras disciplinas a retórica e a poética Ela própria é incapaz de abordar as formas de composição do todo Eis porque de maneira geral não há relação nem transição progressiva alguma entre as formas dos elementos constituintes da enunciação e as formas do todo no qual ela se insere Existe um abismo entre a sintaxe e os problemas de composição do discurso Isso é totalmente inevitável pois as formas que constituem uma enunciação completa só podem ser percebidas e compreendidas quando relacionadas com outras enunciações completas pertencentes a um único e mesmo domínio ideólogico Assim as formas de uma enunciação literária de uma obra literária só podem ser apreendidas na unicidade da vida literária em conexão permanente com outras espécies de formas literárias Se encerrarmos a obra literária na unicidade da língua como sistema se a estudarmos como um monumento lingüístico destruiremos o acesso a suas formas como formas da literatura como um todo Existe um abismo entre as duas abordagens a que refere a obra ao sistema lingüístico e aquela que a refere à unicidade concreta da vida literária Esse abismo é intransponível sobre a base do objetivismo abstrato 5 A forma lingüística somente constitui um elemento abstratamente isolado do todo dinâmico da fala da enunciação Bem entendido essa abstração revelase legítima quando serve a determinados objetivos lingüísticos Entretanto o objetivismo abstrato dota a forma lingüística de uma substância própria tornaa um elemento realmente isolável capaz de assumir uma existência 107 histórica separada independente11 Isso é perfeitamente compreensível já que se nega ao sistema como um todo o direito ao desenvolvimento histórico A enunciação como um todo não existe para a lingüística Conseqüentemente apenas subsistem os elementos do sistema isto é as formas lingüísticas isoladas Somente elas podem suportar o choque da história Assim a história da língua tornase a história das formas lingüísticas separadas fonética morfologia etc que se desenvolvem independentemente do sistema como um todo e sem qualquer referência à enunciação concreta12 A propósito da história da língua tal como a concebe o objetivismo abstrato Vossler com razão diz o seguinte Podese comparar grosseiramente a história da língua tal como a concebe a gramática histórica com a história do vestuário essa última não é um reflexo da concepção de mundo ou do gosto de uma época ela fornecenos listas cronológicas e geograficamente ordenadas de botões alfinetes chapéus e fitas Em gramática histórica esses botões e essas cifras chamamse por exemplo e aberto e fechado t surdo ou d sonoro etc13 6 O sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto De fato há tantas significações possíveis quantos contextos 11 Não se deve esquecer que o objetivismo abstrato em sua nova versão reflete a posição da palavra estrangeira no estágio em que ela já perdeu numa larga medida seu caráter autoritário e sua força produtiva Além disso a especificidade da apreensão da palavra estrangeira é atenuada no objetivismo abstrato devido ao fato de que todas as categorias fundamentais do pensamento dessa escola foram estendidas às línguas vivas e nativas Com efeito a lingüística estuda as línguas vivas como se fossem mortas e a língua nativa como se fosse estrangeira Essa é a razão pela qual o sistema construído pelo objetivismo abstrato difere dos filosofemas da palavra estrangeira elaborados pelos antigos 12 A enunciação constitui apenas o meio neutro no qual se opera a transformação das formas da língua 13 Cf o artigo de Vossler já citado Gramática e História da Língua p 170 108 possíveis14 No entanto nem por isso a palavra deixa de ser una Ela não se desagrega em tantas palavras quantos forem os contextos nos quais ela pode se inserir Evidentemente essa unicidade da palavra não é somente assegurada pela unicidade de sua composição fonética há também uma unicidade inerente a todas as suas significações Como conciliar a polissemia da palavra com sua unicidade É assim que podemos formular de modo grosseiro e elementar o problema fundamental da semântica Esse problema só pode ser resolvido pela dialética Que procedimentos são empregados pelo objetivismo abstrato Ele salienta o fator de unicidade da palavra em detrimento da pluralidade de suas significações Essa pluralidade é percebida como análoga a harmônicos ocasionais de um único e mesmo significado estável e firme A atitude do lingüista é diametralmente oposta à atitude da viva compreensão que caracteriza os falantes empenhados num processo de comunicação verbal Quando o filólogolingüista alinha os contextos possíveis de uma palavra dada ele acentua o fator de conformidade à norma o que lhe importa é extrair desses contextos dispostos lado a lado uma determinação descontextualizada para poder encerrar a palavra num dicionário Esse processo de isolamento da palavra de estabilização de sua significação fora de todo contexto é reforçado ainda mais pela justaposição de línguas isto é pela procura da palavra para lela numa língua diferente A pesquisa lingüística constrói a significação a partir do ponto de convergência de pelo menos duas línguas Esse trabalho do lingüista tornase ainda mais complicado pelo fato de que ele cria a ficção de um recorte único da realidade que se reflete na língua É o objeto único sempre idêntico a si próprio que garante a unicidade do sentido A ficção da palavra como decalque da realidade ajuda ainda mais a congelar sua significação Sobre essa base a associação dialética de unicidade e de pluralidade tornase impossível Mencionaremos ainda um outro erro grave de objetivismo abstrato para seus adeptos os diferentes contextos em que aparece uma palavra qualquer estão num único e mesmo plano Esses contextos dão origem a uma série de enunciações fechadas que têm significado próprio e apontam todas para uma mesma direção Na realidade as coisas são bem diferentes os contextos possíveis de uma 14 Não nos preocuparemos por enquanto em distinguir a significação e o tema Essa distinção será o objeto do Cap 7 109 única e mesma palavra são freqüentemente opostos As réplicas de um diálogo são um exemplo clássico disso Ali uma única e mesma palavra pode figurar em dois contextos mutuamente conflitantes É evidente que o diálogo constitui um caso particularmente evidente e ostensivo de contextos diversamente orientados Podese no entanto dizer que toda enunciação efetiva seja qual for a sua forma contém sempre com maior ou menor nitidez a indicação de um acordo ou de um desacordo com alguma coisa Os contextos não estão simplesmente justapostos como se fossem indiferentes uns aos outros encontramse numa situação de interação e de conflito tenso e ininterrupto A mudança do acento avaliativo da palavra em função do contexto é totalmente ignorada pela lingüística e não encontra nenhuma repercussão na sua doutrina da unicidade da significação Embora os acentos avaliativos sejam privados de substância é a pluralidade de acentos que dá vida à palavra O problema de pluriacentuação deve ser estreitamente relacionado com o da polissemia Só assim é que ambos os problemas poderão ser resolvidos Ora é impossível estabelecer essa vinculação a partir dos princípios do objetivismo abstrato A lingüística se desembaraça dos acentos avaliativos ao mesmo tempo que da enunciação da fala15 7 Para o objetivismo abstrato a língua como produto acabado transmitese de geração a geração Evidentemente é de um ângulo metafórico que os adeptos da segunda orientação entendem essa transmissão da língua como herança de um objeto mas essa comparação não constitui para eles apenas uma metáfora Configurando o sistema da língua e tratando as línguas vivas como se fossem mortas e estrangeiras o objetivismo abstrato coloca a língua fora do fluxo da comunicação verbal Esse fluxo avança continuamente enquanto a língua como uma bola pula de geração para geração Entretanto a língua é inseparável desse fluxo e avança junta mente com ele Na verdade a língua não se transmite ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada eles penetram na corrente da comunicação verbal ou melhor so mente quando mergulham nessa corrente é que sua cons ciência desperta e começa a operar É apenas no processo de aqui sição de uma língua estrangeira que a consciência já consti 15 As posições aqui expressas serão fundamentadas no Capítulo 7 110 tuída graças à língua materna se confronta com uma língua toda pronta que só lhe resta assimilar Os sujeitos não adquirem sua língua materna é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência16 8 O objetivismo abstrato como vimos não sabe ligar a exis tência da língua na sua abstrata dimensão sincrônica com sua evolução Para a consciência do locutor a língua existe como sistema de formas sujeitas a normas e só para o historiador é que ela existe como processo evolutivo O que exclui a possibili dade de associação ativa da consciência do locutor com o pro cesso de evolução histórica Tornase assim impossível a con junção dialética entre necessidade e liberdade e até por assim dizer a responsabilidade lingüística Assentase aqui o reino de uma concepção puramente mecanicista da necessidade no domínio da língua Não há dúvida de que esse traço do objetivismo abstrato está ligado à irresponsável fixação dessa escola nas línguas mortas Só nos resta tirar as conclusões de nossa análise crítica do objetivismo abstrato O problema que colocamos no começo do quarto capítulo o da realidade dos fenômenos lingüísticos como objeto de estudo específico e único é solucionado de maneira incorreta A língua como sistema de formas que remetem a uma norma não passa de uma abstração que só pode ser demonstrada no plano teórico e prático do ponto de vista do deciframento de uma língua morta e do seu ensino Esse sistema não pode servir de base para a compreensão e explicação dos fatos lingüísticos enquanto fatos vivos e em evolução Ao contrário ele nos distancia da realidade evolutiva e viva da língua e de suas funções sociais embora os adeptos do objetivismo abstrato tenham pretensões quanto à significação sociológica de seus pontos de vista Na base dos fundamentos teóricos do objetivismo abstrato estão as premissas de uma visão do mundo racionalista e mecanicista as menos favoráveis a uma concepção correta da história ora a língua é um fenômeno puramente histórico Seriam os princípios fundamentais da primeira orientação a do subjetivismo individualista os corretos Não teria o subjetivismo 16 O processo pelo qual a criança assimila sua língua materna é um processo de integração progressiva da criança na comunicação verbal À medida que essa integração se realiza sua consciência é formada e adquire seu conteúdo 111 individualista conseguido tocar de perto a verdadeira natureza da linguagem Ou a verdade estaria no meiotermo entre as teses do subjetivismo individualista e as antíteses do objetivismo abstrato constituindo um compromisso entre as duas orientações Acreditamos que aqui como em qualquer lugar a verdade não se encontra exatamente no meio num compromisso entre a tese e a antítese a verdade encontrase além mais longe manifesta uma idêntica recusa tanto da tese como da antítese e constitui uma síntese dialética As teses da primeira orientação como veremos no capítulo seguinte não resistem à crítica mais do que as da segunda Queremos agora chamar a atenção para o seguinte ao considerar que só o sistema lingüístico pode dar conta dos fatos da língua o objetivo abstrato rejeita a enunciação o ato de fala como sendo individual Como dissemos é esse o proton pseudos a primeira mentira do objetivismo abstrato O subjetivismo individualista ao contrário só leva em consideração a fala Mas ele também considera o ato de fala como individual e é por isso que tenta explicálo a partir das condições da vida psíquica individual do sujeito falante E esse é o seu proton pseudos Na realidade o ato de fala ou mais exatamente seu produto a enunciação não pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo não pode ser explicado a partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante A enunciação é de natureza social Cabenos firmar essa tese no próximo capítulo 112 CAPÍTULO 6 A INTERAÇÃO VERBAL A segunda orientação do pensamento filosóficolingüístico ligase como vimos ao Racionalismo e ao Neoclassicismo A primeira orientação a do subjetivismo individualista está ligada ao Romantismo O Romantismo foi em grande medida uma reação contra a palavra estrangeira e o domínio que ela exerceu sobre as categorias do pensamento Mais particularmente o Romantismo foi uma reação contra a última reincidência do poder cultural da palavra estrangeira as épocas do Renascimento e do Classicismo Os românticos foram os primeiros filólogos da língua materna os primeiros a tentar reorganizar totalmente a reflexão lingüística sobre a base da atividade mental em língua materna considerada como meio de desenvolvimento da consciência e do pensamento É verdade contudo que os românticos permaneceram filólogos no sentido estrito do termo Estava além de suas forças com certeza reestruturar uma maneira de pensar sobre a língua que se formara e mantivera durante séculos Não obstante foram introduzidas naquela reflexão novas categorias e elas é que deram à primeira orientação suas características específicas É sintomático que mesmo os representantes recentes do subjetivismo individualista sejam especialistas em línguas modernas principalmente românicas Vossler Leo Spitzer Lorck e outros Entretanto o subjetivismo individualista apóiase também sobre a enunciação monológica como ponto de partida da sua reflexão sobre a língua É verdade que seus representantes não abordaram a enunciação monológica do ponto de vista do filólogo de compreensão passiva mas sim de dentro do ponto de vista da pessoa que fala exprimindose Como se apresenta a enunciação monológica do ponto de vista do subjetivismo individualista Vimos que ela se apresenta como um ato puramente individual como uma expressão da consciência 113 individual de seus desejos suas intenções seus impulsos criadores seus gostos etc A categoria da expressão é aquela categoria geral de nível superior que engloba o ato de fala a enunciação Mas o que é afinal a expressão Sua mais simples e mais grosseira definição é tudo aquilo que tendo se formado e determinado de alguma maneira no psiquismo do indivíduo exteriorizase objetivamente para outrem com a ajuda de algum código de signos exteriores A expressão comporta portanto duas facetas o conteúdo interior e sua objetivação exterior para outrem ou também para si mesmo Toda teoria da expressão por mais refinadas e complexas que sejam as formas que ela pode assumir deve levar em conta inevitavelmente essas duas facetas todo o ato expressivo movese entre elas Conseqüentemente a teoria da expressão deve admitir que o conteúdo a exprimir pode constituirse fora da expressão que ele começa a existir sob uma certa forma para passar em seguida a uma outra Pois se não fosse assim se o conteúdo a exprimir existisse desde a origem sob a forma de expressão se houvesse entre o conteúdo e a expressão uma passagem quantitativa no sentido de um esclarecimento de uma diferenciação etc então toda a teoria da expressão cairia por terra A teoria da expressão supõe inevitavelmente um certo dualismo entre o que é interior e o que é exterior com primazia explícita do conteúdo interior já que todo ato de objetivação expressão procede do interior para o exterior Suas fontes são interiores Não é por acaso que a teoria do subjetivismo individualista como todas as teorias da expressão só se pôde desenvolver sobre um terreno idealista e espiritualista Tudo que é essencial é interior o que é exterior só se torna essencial a título de receptáculo do conteúdo interior de meio de expressão do espírito É verdade que exteriorizandose o conteúdo interior muda de aspecto pois é obrigado a apropriarse do material exterior que dispõe de suas próprias regras estranhas ao pensamento interior No curso do processo de dominar o material de submetêlo de transformálo em meio obediente da expressão o conteúdo da atividade verbal a exprimir muda de natureza e é forçado a um certo compromisso Por isso o idealismo que deu origem a todas as teorias da expressão engendrou igualmente teorias que rejeitam completamente a expressão considerada como deformação da pureza 114 do pensamento interior1 Em todo caso todas as forças criadoras e organizadoras da expressão estão no interior O exterior constitui apenas o material passivo do que está no interior Basicamente a expressão se constrói no interior sua exteriorização não é senão a sua tradução Disso resulta que a compreensão o comentário e a explicação do fato ideológico devem dirigirse para o interior isto é fazer o caminho inverso do da expressão procedendo da objetivação exterior a explicação deve infiltrarse até as suas raízes formadoras internas Essa é a concepção da expressão no subjetivismo individualista A teoria da expressão que serve de fundamento à primeira orientação do pensamento filosóficolingüístico é radicalmente falsa O conteúdo a exprimir e sua objetivação externa são criados como vimos a partir de um único e mesmo material pois não existe atividade mental sem expressão semiótica Conseqüentemente é preciso eliminar de saída o princípio de uma distinção qualitativa entre o conteúdo interior e a expressão exterior Além disso o centro organizador e formador não se situa no interior mas no exterior Não é a atividade mental que organiza a expressão mas ao contrário é a expressão que organiza a atividade mental que a modela e determina sua orientação Qualquer que seja o aspecto da expressãoenunciação considerado ele será determinado pelas condições reais da enunciação em questão isto é antes de tudo pela situação social mais imediata Com efeito a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e mesmo que não haja um interlocutor real este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor A palavra dirigese a um interlocutor ela é função da pessoa desse interlocutor variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não se esta for inferior ou superior na hierarquia social se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos pai mãe marido etc Não pode haver interlocutor abstrato não teríamos linguagem comum com tal interlocutor nem no sentido próprio nem no figurado Se algumas vezes temos a pretensão de pensar e de exprimirnos urbi et orbi na realidade é claro que vemos a cidade e o mundo através do prisma 1 O pensamento expresso pela palavra é uma mentira Tiutchev Oh se pelo menos alguém pudesse exprimir a alma sem palavras Fiet Essas duas declarações são típicas do romantismo idealista 115 do meio social concreto que nos engloba Na maior parte dos casos é preciso supor além disso um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a criação ideológica do grupo social e da época a que pertencemos um horizonte contemporâneo da nossa literatura da nossa ciência da nossa moral do nosso direito O mundo interior e a reflexão de cada indivíduo têm um auditório social próprio bem estabelecido em cuja atmosfera se constroem suas deduções interiores suas motivações apreciações etc Quanto mais aculturado for o indivíduo mais o auditório em questão se aproximará do auditório médio da criação ideológica mas em todo caso o interlocutor ideal não pode ultrapassar as fronteiras de uma classe e de uma época bem definidas Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma importância muito grande Na realidade toda palavra comporta duas faces Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém como pelo fato de que se dirige para alguém Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro Através da palavra definome em relação ao outro isto é em última análise em relação à coletividade A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros Se ela se apóia sobre mim numa extremidade na outra apóiase sobre o meu interlocutor A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor Mas como se define o locutor Com efeito se a palavra não lhe pertence totalmente uma vez que ela se situa numa espécie de zona fronteiriça cabelhe contudo uma boa metade Em um determinado momento o locutor é incontestavelmente o único dono da palavra que é então sua propriedade inalienável É o instante do ato fisiológico de materialização da palavra Mas a categoria da propriedade não é aplicável a esse ato na medida em que ele é puramente fisiológico Se ao contrário considerarmos não o ato físico de materialização do som mas a materialização da palavra como signo então a questão da propriedade tornarseá bem mais complexa Deixando de lado o fato de que a palavra como signo é extraído pelo locutor de um estoque social de signos disponíveis a própria realização deste signo social na enunciação concreta é inteiramente determinada pelas relações sociais A individualização estilística da enunciação de que falam os vosslerianos constitui justamente este reflexo da inter relação social em cujo contexto se constrói uma determinada enunciação A situação social mais imediata e o meio social mais 116 amplo determinam completamente e por assim dizer a partir do seu próprio interior a estrutura da enunciação Na verdade qualquer que seja a enunciação considerada mesmo que não se trate de uma informação factual a comunicação no sentido estrito mas da expressão verbal de uma necessidade qualquer por exemplo a fome é certo que ela na sua totalidade é socialmente dirigida Antes de mais nada ela é determinada da maneira mais imediata pelos participantes do ato de fala explícitos ou implícitos em ligação com uma situação bem precisa a situação dá forma à enunciação impondolhe esta ressonância em vez daquela por exemplo a exigência ou a solicitação a afirmação de direitos ou a prece pedindo graça um estilo rebuscado ou simples a segurança ou a timidez etc A situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação Os estratos mais profundos da sua estrutura são determinados pelas pressões sociais mais substanciais e duráveis a que está submetido o locutor Se tomamos a enunciação no estágio inicial de seu desenvolvimento na alma não se mudará a essência das coisas já que a estrutura da atividade mental é tão social como a da sua objetivação exterior O grau de consciência de clareza de acabamento formal da atividade mental é diretamente proporcional ao seu grau de orientação social Na verdade a simples tomada de consciência mesmo confusa de uma sensação qualquer digamos a fome pode dispensar uma expressão exterior mas não dispensa uma expressão ideológica tanto isso é verdade que toda tomada de consciência implica discurso interior entoação interior e estilo interior ainda que rudimentares A tomada de consciência da fome pode ser acompanhada de deprecação de raiva de lamento ou de indignação Enumeramos aqui apenas os matizes mais grosseiros e mais marcados da entoação interior na realidade a atividade mental pode ser marcada por entoações sutis e complexas A expressão exterior na maior parte dos casos apenas prolonga e esclarece a orientação tomada pelo discurso interior e as entoações que ele contém De que maneira será marcada a sensação interior da fome Isso depende ao mesmo tempo da situação imediata em que se situa a percepção e da situação social da pessoa faminta em geral Com efeito essas são as condições que determinam o contexto apreciativo o ângulo social em que será recebida a sensação da fome O contexto social imediato determina quais serão os ouvintes possíveis amigos ou inimigos para os quais serão orientadas a consciência e a sensação da fome as imprecações serão lan 117 çadas contra a natureza ingrata contra si mesmo a sociedade um grupo social determinado um certo indivíduo Claro é preciso distinguir graus na consciência na clareza e na diferenciação dessa orientação social da experiência mental Mas é certo que sem uma orientação social de caráter apreciativo não há atividade mental Mesmo os gritos de um recémnascido são orientados para a mãe Podese descrever a fome acrescentandose um apelo à revolta à agitação nesse caso a atividade mental será estruturada em função de um apelo potencial a fim de provocar a agitação a tomada de consciência pode tomar a forma do protesto etc Na relação com um ouvinte potencial e algumas vezes distintamente percebido podemse distinguir dois pólos dois limites dentro dos quais se realiza a tomada de consciência e a elaboração ideológica A atividade mental oscila de um a outro Por convenção chamemos esses dois pólos atividade mental do eu e atividade mental do nós Na verdade a atividade mental do eu tende para a autoeliminação à medida que se aproxima do seu limite perde a sua modelagem ideológica e conseqüentemente seu grau de consciência aproximandose assim da reação fisiológica do animal A atividade mental dilapida então o seu potencial seu esboço de orientação social e perde portanto sua representação verbal Atividades mentais isoladas ou mesmo seqüências inteiras podem tender para o pólo do eu prejudicando assim sua clareza e sua modelagem ideológica e dando provas de que a consciência foi incapaz de enraizarse socialmente2 A atividade mental do nós não é uma atividade de caráter primitivo gregário é uma atividade diferenciada Melhor ainda a diferenciação ideológica o crescimento do grau de consciência são diretamente proporcionais à firmeza e à estabilidade da orientação social Quanto mais forte mais bem organizada e diferenciada for a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta mais distinto e complexo será o seu mundo interior A atividade mental do nós permite diferentes graus e diferentes tipos de modelagem ideológica 2 Sobre a possibilidade de uma série de experiências sexuais humanas escaparem ao contexto social com perda concomitante da verbalização da experiência ver Freidizm Op cit p 135 136 118 Suponhamos que o homem faminto tome consciência da sua fome no meio de uma multidão heteróclita de pessoas igualmente famintas cuja situação se deve ao acaso desafortunados mendigos etc A atividade mental desse indivíduo isolado sem classe terá uma coloração específica e tenderá para formas ideológicas determinadas cuja gama pode ser bastante extensa a resignação a vergonha o sentimento de dependência e muitas outras tonalidades tingirão a sua atividade mental As formas ideológicas correspondentes isto é o resultado dessa atividade mental serão conforme o caso ou o protesto individualista do mendigo ou a resignação mística do penitente Suponhamos agora que o faminto pertença a uma coletividade onde a fome não se deve ao acaso onde ela é uma realidade coletiva mas onde entretanto não existe vínculo material sólido entre os famintos de forma que cada um deles passa fome isoladamente É essa freqüentemente a situação dos camponeses A coletividade o mir sente a fome mas os seus membros estão materialmente isolados não estão ligados por uma economia comum cada um suporta a fome no pequeno mundo fechado de sua própria exploração Em tais condições predominará uma consciência da fome feita de resignação mas desprovida de sentimento de vergonha ou de humilhação cada um diz a si próprio Já que todos sofrem em silêncio eu também o farei É sobre um tal terreno que se desenvolvem os sistemas filosóficos e religiosos fundados sobre o fatalismo e a resignação na adversidade os primeiros cristãos os tolstoianos etc De maneira completamente diferente será experimentada a fome pelos membros de uma coletividade unida por vínculos materiais objetivos batalhão de soldados operários reunidos no interior da usina trabalhadores numa grande propriedade agrícola de tipo capitalista enfim toda uma classe social desde que nela tenha amadurecido a noção de classe para si Nesse caso dominarão na atividade mental as tonalidades do protesto ativo e seguro de si mesmo não haverá lugar para uma mentalidade resignada e submissa É aí que se encontra o terreno mais favorável para um desenvolvimento nítido e ideologicamente bem formado da atividade mental3 Organismo de propriedade coletiva rural antes da revolução de 1917 NdTfr 3 Dados interessantes sobre a expressão da fome podem ser encontrados nas obras de um célebre lingüista contemporâneo 119 Todos os tipos de atividade mental que examinamos com suas inflexões principais geram modelos e formas de enunciações correspondentes Em todos os casos a situação social determina que modelo que metáfora que forma de enunciação servirá para exprimir a fome a partir das direções inflexivas da experiência É preciso classificar à parte a atividade mental para si Ela distinguese claramente da atividade mental do eu que definimos acima A atividade mental individualista é perfeitamente diferencia da e definida O individualismo é uma forma ideológica particular da atividade mental do nós da classe burguesa encontrase um tipo análogo na classe feudal aristocrática A atividade mental de tipo individualista caracterizase por uma orientação social sólida e afirmada Não é do interior do mais profundo da personalidade que se tira a confiança individualista em si a consciência do próprio valor mas do exterior tratase da explicitação ideológica do meu status social da defesa pela lei e por toda a estrutura da sociedade de um bastião objetivo a minha posição econômica individual A personalidade individual é tão socialmente estruturada como a atividade mental de tipo coletivista a explicitação ideológica de uma situação econômica complexa e estável projetase na alma individual Mas a contradição interna que está inscrita nesse tipo de atividade mental do nós assim como na estrutura social correspondente cedo ou tarde destruirá sua modelagem ideológica Encontrase uma estrutura análoga na atividade mental para si isolada a capacidade e a força de sentirse no seu direito enquanto indivíduo isolado atitude cultivada em particular por Romain Rolland e em parte igualmente por Tolstói O orgulho que esta posição solitária implica apóiase igualmente sobre o nós Essa variante da atividade mental do nós é característica da intelligentsia ocidental contemporânea As palavras de Tolstói afirmando que existe um pensamento para si e um pensamento para o público implicam uma confrontação entre duas concepções de público Esse para si tolstoiano na realidade apenas indica uma concepção social membro da escola de Vossler Leo Spitzer Italienische Kriegsgefangenenbriefe e Die Umschreibungen des Begriffes Hunger O problema fundamental exposto é a adaptação flexível da palavra e da representação às condições de uma situação excepcional Falta ao autor contudo uma abordagem sociológica genuína 120 do ouvinte que lhe é própria O pensamento não existe fora de sua expressão potencial e conseqüentemente fora da orientação social dessa expressão e o próprio pensamento Assim a personalidade que se exprime apreendida por assim dizer do interior revelase um produto total da interrelação social A atividade mental do sujeito constitui da mesma forma que a expressão exterior um território social Em conseqüência todo o itinerário que leva da atividade mental o conteúdo a exprimir à sua objetivação externa a enunciação situase completamente em território social Quando a atividade mental se realiza sob a forma de uma enunciação a orientação social à qual ela se submete adquire maior complexidade graças à exigência de adaptação ao contexto social imediato do ato de fala e acima de tudo aos interlocutores concretos Tudo isso lança uma nova luz sobre o problema da consciência e da ideologia Fora de sua objetivação de sua realização num material determinado o gesto a palavra o grito a consciência é uma ficção Não é senão uma construção ideológica incorreta criada sem considerar os dados concretos da expressão social Mas enquanto expressão material estruturada através da palavra do signo do desenho da pintura do som musical etc a consciência constitui um fato objetivo e uma força social imensa É preciso notar que essa consciência não se situa acima do ser e não pode determinar a sua constituição uma vez que ela é ela mesma uma parte do ser uma das suas forças e é por isso que a consciência tem uma existência real e representa um papel na arena do ser Enquanto a consciência permanece fechada na cabeça do ser consciente com uma expressão embrionária sob a forma de discurso interior o seu estado é apenas de esboço o seu raio de ação ainda limitado Mas assim que passou por todas as etapas da objetivação social que entrou no poderoso sistema da ciência da arte da moral e do direito a consciência tornase uma força real capaz mesmo de exercer em retorno uma ação sobre as bases econômicas da vida social Certo essa força materializase em organizações sociais determinadas reforçase por uma expressão ideológica sólida a ciência a arte etc mas mesmo sob a forma original confusa do pensamento que acaba de nascer podese já falar de fato social e não de ato individual interior A atividade mental tende desde a origem para uma expres são externa plenamente realizada Mas pode acontecer também que ela seja bloqueada freada nesse último caso a atividade mental desemboca numa expressão inibida não nos ocuparemos aqui do problema muito complexo das causas e condições 121 do bloqueio Uma vez materializada a expressão exerce um efeito reversivo sobre a atividade mental ela põese então a estru turar a vida interior a darlhe uma expressão ainda mais definida e mais estável Essa ação reversiva da expressão bem formada sobre a ativi dade mental isto é a expressão interior tem uma importância enorme que deve ser sempre considerada Podese dizer que não é tanto a expressão que se adapta ao nosso mundo interior mas o nosso mundo interior que se adapta às possibilidades de nossa expressão aos seus caminhos e orientações possíveis Chamaremos a totalidade da atividade mental centrada sobre a vida cotidiana assim como a expressão que a ela se liga ideologia do cotidiano para distinguila dos sistemas ideológicos constituídos tais como a arte a moral o direito etc A ideologia do cotidiano constitui o domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada num sistema que acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e cada um dos nossos estados de consciência Considerando a natureza sociológica da estrutura da expressão e da atividade mental podemos dizer que a ideologia do cotidiano corresponde no essencial àquilo que se designa na literatura marxista sob o nome de psicologia social Nesse contexto particular preferimos evitar o termo psicologia pois importanos apenas o conteúdo do psiquismo e da consciência ora esse conteúdo é totalmente ideológico sendo determinado por fatores não individuais e orgânicos biológicos fisiológicos mas puramente sociológicos O fator individual orgânico não é pertinente para a compreensão das forças criadoras e vivas essenciais do conteúdo da consciência Os sistemas ideológicos constituídos da moral social da ciência da arte e da religião cristalizamse a partir da ideologia do cotidiano exercem por sua vez sobre esta em retorno uma forte influência e dão assim normalmente o tom a essa ideologia Mas ao mesmo tempo esses produtos ideológicos constituídos conservam constantemente um elo orgânico vivo com a ideologia do cotidiano alimentamse de sua seiva pois fora dela morrem assim como morrem por exemplo a obra literária acabada ou a idéia cognitiva se não são submetidas a uma avaliação crítica viva Ora essa avaliação crítica que é a única razão de ser de toda produção ideológica opera se na língua da ideologia do cotidiano Esta coloca a obra numa situação social determinada A obra estabelece assim vínculos com o conteúdo total da consciência dos indivíduos receptores e só é apreendida no contexto dessa consciência que lhe é contemporânea A obra é interpretada no espírito desse conteúdo da consciência dos 122 indivíduos receptores e recebe dela uma nova luz É nisso que reside a vida da obra ideológica Em cada época de sua existência histórica a obra é levada a estabelecer contatos estreitos com a ideologia cambiante do cotidiano a impregnarse dela a alimentarse da seiva nova secretada É apenas na medida em que a obra é capaz de estabelecer um tal vínculo orgânico e ininterrupto com a ideologia do cotidiano de uma determinada época que ela é capaz de viver nesta época é claro nos limites de um grupo social determinado Rompido esse vínculo ela cessa de existir pois deixa de ser apreendida como ideologicamente significante Na ideologia do cotidiano é preciso distinguir vários níveis determinados pela escala social que serve para medir a atividade mental e a expressão e pelas forças sociais em relação às quais eles devem diretamente orientarse O horizonte no qual esta ou aquela atividade mental ou expressão se materializa pode ser como vimos mais ou menos amplo O pequeno mundo da atividade mental pode ser limitado e confuso sua orientação social pode ser acidental pouco durável e pertinente apenas no quadro da reunião fortuita e por tempo limitado de algumas pessoas É claro mesmo essas atividades mentais ocasionais têm uma coloração sociológica e ideológica mas situamse já na fronteira do normal e do patológico A atividade mental fortuita permanece isolada da vida espiritual dos indivíduos Ela não é capaz de consolidarse e de encontrar uma expressão completa e diferenciada Pois se ela não é dotada de um auditório social determinado sobre que bases poderia diferenciarse e tomar uma forma acabada A fixação de uma atividade mental como essa é ainda mais impossível por escrito e a fortiori sob forma impressa A atividade mental nascida de uma situação fortuita não tem a menor chance de adquirir uma força e uma ação duráveis no plano social Esse tipo de atividade mental constitui o nível inferior aquele que desliza e muda mais rapidamente na ideologia do cotidiano Conseqüentemente colocaremos nesse nível todas as atividades mentais e pensamentos confusos e informes que se acendem e apagam na nossa alma assim como as palavras fortuitas ou inúteis Estamos diante de abortos da orientação social incapazes de viver comparáveis a romances sem heróis ou a representações sem espectadores São privados de toda lógica ou unicidade É extremamente difícil perceber nesses farrapos ideológicos leis sociológicas No nível inferior da ideologia do cotidiano só se apreendem regras estatísticas é apenas a partir de uma grande massa de produtos dessa ordem que se podem descobrir as grandes linhas de 123 uma ordem sócioeconômica Claro na prática é impossível descobrir as premissas sócioeconômicas de uma atividade mental ou de uma expressão isoladas Os níveis superiores da ideologia do cotidiano que estão em contato direto com os sistemas ideológicos são substanciais e têm um caráter de responsabilidade e de criatividade São mais mó veis e sensíveis que as ideologias constituídas São capazes de repercutir as mudanças da infraestrutura sócioeconômica mais rápida e mais distintamente Aí justamente é que se acumu lam as energias criadoras com cujo auxílio se efetuam as revisões parciais ou totais dos sistemas ideológicos Logo que aparecem as novas forças sociais encontram sua primeira expressão e sua elaboração ideológica nesses níveis superiores da ideologia do cotidiano antes que consigam invadir a arena da ideologia oficial constituída É claro no decorrer da luta no curso do processo de infiltração progressiva nas instituições ideológicas a imprensa a literatura a ciência essas novas correntes da ideologia do cotidiano por mais revolucionárias que sejam submetemse à influência dos sistemas ideológicos estabelecidos e assimilam parcialmente as formas práticas e abordagens ideológicas neles acumulados O que se chama habitualmente individualidade criadora constitui a expressão do núcleo central sólido e durável da orientação social do indivíduo Aí situaremos principalmente os estratos superiores mais bem formados do discurso interior ideologia do cotidiano onde cada representação e inflexão passou pelo estágio da expressão de alguma forma sofreu a prova da expressão externa Aí situaremos igualmente as palavras as entoações e os movimentos interiores que passaram com sucesso pela prova da expressão externa numa escala social mais ou menos ampla e adquiriram por assim dizer um grande polimento e lustro social pelo efeito das reações e réplicas pela rejeição ou apoio do auditório social Certamente nos níveis inferiores da ideologia do cotidiano o fator biográfico e biológico tem um papel importante mas à medida que a enunciação se integra no sistema ideológico decresce a importância desse fator Conseqüentemente se as explicações de caráter biológico e biográfico têm algum valor nos níveis superiores o seu papel é extremamente modesto Aqui o método sociológico objetivo tem total primazia Assim a teoria da expressão subjacente ao subjeti vismo individualista deve ser completamente rejeitada O centro organizador de toda enunciação de toda expressão não 124 é interior mas exterior está situado no meio social que envolve o indivíduo Só o grito inarticulado de um animal procede do inte rior do aparelho fisiológico do indivíduo isolado É uma reação fisiológica pura e não ideologicamente marcada Pelo contrário a enunciação humana mais primitiva ainda que realizada por um organismo individual é do ponto de vista do seu conteúdo de sua significação organizada fora do indivíduo pelas condições extraorgânicas do meio social A enun ciação enquanto tal é um puro produto da interação social quer se trate de um ato de fala determinado pela situação imediata ou pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das condi ções de vida de uma determinada comunidade lingüística A enunciação individual a parole contrariamente à teoria do objetivismo abstrato não é de maneira alguma um fato indivi dual que pela sua individualidade não se presta à análise socio lógica Com efeito se assim fosse nem a soma desses atos individuais nem as características abstratas comuns a todos esses atos individuais as formas normativamente idênticas poderiam gerar um produto social O subjetivismo individualista tem razão em sustentar que as enunciações isoladas constituem a substância real da língua e que a elas está reservada a função criativa na língua Mas está errado quando ignora e é incapaz de compreender a natureza social da enunciação e quando tenta deduzir esta última do mundo interior do locutor enquanto expressão desse mundo interior A estrutura da enunciação e da atividade mental a exprimir são de natureza social A elaboração estilística da enunciação é de natureza sociológica e a própria cadeia verbal à qual se reduz em última análise a realidade da língua é social Cada elo dessa cadeia é social assim como toda a dinâmica da sua evolução O subjetivismo individualista tem toda a razão quando diz que não se pode isolar uma forma lingüística do seu conteúdo ideológico Toda palavra é ideológica e toda utilização da língua está ligada à evolução ideológica Está errado quando diz que esse conteúdo ideológico pode igualmente ser deduzido das condições do psiquismo individual O subjetivismo individualista está errado em tomar da mesma maneira que o objetivismo abstrato a enunciação monológica como seu ponto de partida básico É verdade que alguns vosslerianos começaram a abordar o problema do diálogo o que os leva a uma compreensão mais justa da interação verbal Citaremos por exemplo o livro de Leo Spitzer Italienische Umgangsprache 125 onde se encontra uma tentativa de análise das formas de italiano utilizado na conversação em estreita ligação com as condições de utilização e sobretudo com a situação social do interlocutor4 O método de Leo Spitzer contudo é psicológicodescritivo Ele não tira de sua análise nenhuma conclusão sociológica coerente A enunciação monológica permanece a base da realidade lingüística para os vosslerianos Otto Dietrich colocou com grande clareza o problema da interação verbal5 Toma como ponto de partida a crítica da teoria de enunciação como meio de expressão Para ele a função central da linguagem não é a expressão mas a comunicação Isso o leva a considerar o papel do ouvinte O par locutorouvinte constitui para Dietrich a condição necessária da linguagem Contudo ele partilha essencialmente as premissas psicológicas do subjetivismo individualista Além disso as pesquisas de Dietrich são desprovidas de qualquer base sociológica bem definida Agora estamos em condições de responder às questões que colocamos no início do quarto capítulo A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada nem pelo ato psicofisiológico de sua produção mas pelo fenômeno social da interação verbal realizada através da enunciação ou das enunciações A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua O diálogo no sentido estrito do termo não constitui é claro senão uma das formas é verdade que das mais importantes da interação verbal Mas podese compreender a palavra diálogo num sentido amplo isto é não apenas como a comunicação em voz alta de pessoas colocadas face a face mas toda comunicação verbal de qualquer tipo que seja 4 A esse respeito a própria construção do livro é sintomática Ele dividese em quatro partes cujos títulos são I Formas de Introdução do Diálogo II Locutor e Interlocutor a Cortesia Para com o Parceiro b Economia e Desperdício da Expressão c Imbricação de Fala e Réplica III Locutor e Situação IV Fim do Diálogo Hermann Wunderlich precedeu Spitzer na direção do estudo da língua da conversação corrente nas condições reais da comunicação Cf seu livro Unsere Umgangsprache 1894 5 Ver Die Probleme der Sprachpsychologie 1914 126 O livro isto é o ato de fala impresso constitui igualmente um elemento da comunicação verbal Ele é objeto de discussões ativas sob a forma de diálogo e além disso é feito para ser apreendido de maneira ativa para ser estudado a fundo comentado e criticado no quadro do discurso interior sem contar as reações impressas institucionalizadas que se encontram nas diferentes esferas da comunicação verbal críticas resenhas que exercem influência sobre os trabalhos posteriores etc Além disso o ato de fala sob a forma de livro é sempre orientado em função das intervenções anteriores na mesma esfera de atividade tanto as do próprio autor como as de outros autores ele decorre portanto da situação particular de um problema científico ou de um estilo de produção literária Assim o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala ele responde a alguma coisa refuta confirma antecipa as respostas e objeções potenciais procura apoio etc Qualquer enunciação por mais significativa e completa que seja constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta concernente à vida cotidiana à literatura ao conhecimento à política etc Mas essa comunicação verbal ininterrupta constitui por sua vez apenas um momento na evolução contínua em todas as direções de um grupo social determinado Um importante problema decorre daí o estudo das relações entre a interação concreta e a situação extralingüística não só a situa ção imediata mas também através dela o contexto social mais amplo Essas relações tomam formas diversas e os diversos elementos da situação recebem em ligação com uma ou outra forma uma significação diferente assim os elos que se estabelecem com os diferentes elementos de uma situação de comunicação artís tica diferem dos de uma comunicação científica A comuni cação verbal não poderá jamais ser compreendida e explicada fora desse vínculo com a situação concreta A comunicação verbal entrelaçase inextricavelmente aos outros tipos de comunicação e cresce com eles sobre o terreno comum da situação de produção Não se pode evidentemente isolar a comunicação verbal dessa comunicação global em perpétua evolução Graças a esse vínculo concreto com a situação a comunicação verbal é sempre acompanhada por atos sociais de caráter não verbal gestos do trabalho atos simbólicos de um ritual cerimônias etc dos quais ela é muitas vezes apenas o complemento desempenhando um papel meramente auxiliar 127 A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes Disso decorre que a ordem metodológica para o estudo da língua deve ser o seguinte 1 As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza 2 As formas das distintas enunciações dos atos de fala isolados em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos isto é as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal 3 A partir daí exame das formas da língua na sua interpretação lingüística habitual É nessa mesma ordem que se desenvolve a evolução real da língua as relações sociais evoluem em função das infraestruturas depois a comunicação e a interação verbais evoluem no quadro das relações sociais as formas dos atos de fala evoluem em conseqüência da interação verbal e o processo de evolução refletese enfim na mudança das formas da língua De tudo o que dissemos decorre que o problema das formas da enunciação considerada como um todo adquire uma enorme importância Já indicamos que o que falta à lingüística contempo rânea é uma abordagem da enunciação em si Sua análise não ultrapassa a segmentação em constituintes imediatos E no entanto as unidades reais da cadeia verbal são as enunciações Mas justamente para estudar as formas dessas unidades convém não separálas do curso histórico das enunciações Enquanto um todo a enunciação só se realiza no curso da comunicação verbal pois o todo é determinado pelos seus limites que se configuram pelos pontos de contato de uma determinada enunciação com o meio extraverbal e verbal isto é as outras enunciações A primeira palavra e a última o começo e o fim de uma enunciação permitemnos já colocar o problema do todo O processo da fala compreendida no sentido amplo como processo de atividade de linguagem tanto exterior como interior é ininterrupto não tem começo nem fim A enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites o discurso interior As dimensões e as formas dessa ilha são determinadas pela situação da enunciação e por seu auditório A situação e o auditório obrigam o discurso interior a realizarse em uma expressão exterior definida que se insere diretamente no contexto não verbalizado da vida corrente e nele se amplia pela ação pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros 128 participantes na situação de enunciação Uma questão completa a exclamação a ordem o pedido são enunciações completas típicas da vida corrente Todas particularmente as ordens os pedidos exigem um complemento extraverbal assim como um início não verbal Esses tipos de discursos menores da vida cotidiana são modelados pela fricção da palavra contra o meio extraverbal e contra a palavra do outro Assim a forma da ordem é determinada pelos obstáculos que ela pode encontrar o grau de submissão do receptor etc A modelagem das enunciações responde aqui a particularidades fortuitas e não reiteráveis das situações da vida corrente Só se pode falar de fórmulas específicas de estereótipos no discurso da vida cotidiana quando existem formas de vida em comum relativamente regularizadas reforçadas pelo uso e pelas circunstâncias Assim encontramse tipos particulares de fórmulas estereotipadas servindo às necessidades da conversa de salão fútil e que não cria nenhuma obrigação em que todos os participantes são familiares uns aos outros e onde a diferença principal é entre homens e mulheres Encontramse elaboradas formas particulares de palavrasalusões de subentendidos de reminiscências de pequenos incidentes sem nenhuma importância etc Um outro tipo de fórmula elaborase na conversa entre marido e mulher entre irmão e irmã Pessoas inteiramente estranhas umas às outras e reunidas por acaso numa fila numa entidade qualquer começam constroem e terminam suas declarações e suas réplicas de maneira completamente diferente Encontramse ainda outros tipos nos serões no campo nas quermesses populares na cidade na conversa dos operários à hora do almoço etc Toda situação inscrita duravelmente nos costumes possui um auditório organizado de uma certa maneira e conseqüentemente um certo repertório de pequenas fórmulas correntes A fórmula estereotipada adaptase em qualquer lugar ao canal de interação social que lhe é reservado refletindo ideologicamente o tipo a estrutura os objetivos e a composição social do grupo As fórmulas da vida corrente fazem parte do meio social são elementos da festa dos lazeres das relações que se travam no hotel nas fábricas etc Elas coincidem com esse meio são por ele delimitadas e determinadas em todos os aspectos Assim encontramse diferentes formas de construção de enunciações nos lugares de produção de trabalho e nos meios de comércio No que se refere às formas da comunicação ideológica no sentido preciso do termo as formas das declarações políticas atos políticos leis decretos manifestos etc e as formas das enunciações poéticas tratados científicos etc todas 129 elas foram objeto de pesquisas especializadas em retórica e poética Mas como vimos essas pesquisas estiveram completamente divorciadas de um lado do problema da linguagem e do outro do problema da comunicação social6 Uma análise fecunda das formas do conjunto de enunciações como unidades reais na cadeia verbal só é possível de uma perspectiva que encare a enunciação individual como um fenômeno puramente sociológico A filosofia marxista da linguagem deve justamente colocar como base de sua doutrina a enunciação como realidade da linguagem e como estrutura sócioideológica Após ter mostrado a estrutura sociológica da enunciação voltemos agora às duas orientações do pensamento filosóficolingüístico para tirar conclusões definitivas A lingüística moscovita R Schor que pertence à segunda orientação do pensamento filosóficolingüístico objetivismo abstrato termina com as seguintes palavras um breve esboço da situação da lingüística contemporânea A língua não é uma coisa ergon mas antes uma atividade natural e congênita do homem energeia proclamava a investi gação lingüística romântica do século XIX É algo completamente diferente que diz a lingüística teórica contemporânea A língua não é uma atividade individual energeia mas um legado históricocultural da humanidade ergon7 Essa conclusão espantanos por sua parcialidade e seu apriorismo No plano dos fatos ela é completamente falsa Com efeito a escola de Vossler ligase igualmente à lingüística teórica contemporânea sendo na Alemanha atual um dos movimentos mais fortes do pensamento lingüístico É inadmissível reduzir a lingüística a apenas uma das suas orientações No plano da teoria é preciso refutar tanto a tese quanto a antítese apresentadas por Schor Com efeito nem uma nem outra dão conta da verdadeira natureza da língua 6 Sobre o tópico da disjunção de uma obra de arte literária das condições da comunicação artística e a resultante inércia da obra ver nosso estudo Slóvo v jízni i slóvo v poézii A Palavra na Vida e a Palavra na Poesia Zvesdá Estrela Editora do Estado 6 1926 NdTam 7 Artigo já citado de Schor Krizis sovremiénnoi lingvistiki A Crise da Lingüística Contemporânea p 71 130 Vamos tentar formular nosso próprio ponto de vista com as seguintes proposições 1 A língua como sistema estável de formas normativamente idênticas é apenas uma abstração científica que só pode servir a certos fins teóricos e práticos particulares Essa abstração não dá conta de maneira adequada da realidade concreta da língua 2 A língua constitui um processo de evolução ininterrupto que se realiza através da interação verbal social dos locutores 3 As leis da evolução lingüística não são de maneira alguma as leis da psicologia individual mas também não podem ser divorciadas da atividade dos falantes As leis da evolução lingüística são essencialmente leis sociológicas 4 A criatividade da língua não coincide com a criatividade artística nem com qualquer outra forma de criatividade ideológica específica Mas ao mesmo tempo a criatividade da língua não pode ser compreendida independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que a ela se ligam A evolução da língua como toda evolução histórica pode ser percebida como uma necessidade cega de tipo mecanicista mas também pode tornarse uma necessidade de funcionamento livre uma vez que alcançou a posição de uma necessidade consciente e desejada 5 A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social A enunciação como tal só se torna efetiva entre falantes O ato de fala individual no sentido estrito do termo individual é uma contradictio in adjecto 131 CAPÍTULO 7 TEMA E SIGNIFICAÇÃO NA LÍNGUA O problema da significação é um dos mais difíceis da lingüística As tentativas de resolução desse problema têm revelado o estreito solilóquio da ciência lingüística com particular clareza Com efeito a teoria que se apóia sobre uma compreensão passiva não nos dá os meios de abordar os fundamentos e as características essenciais da significação lingüística Dentro dos limites da nossa investigação limitarnosemos a um exame muito breve e superficial dessa questão Procuraremos simplesmente traçar as grandes linhas de uma investigação produtiva nesse campo Um sentido definido e único uma significação unitária é uma propriedade que pertence a cada enunciação como um todo Vamos chamar o sentido da enunciação completa o seu tema1 O tema deve ser único Caso contrário não teríamos nenhuma base para definir a enunciação O tema da enunciação é na verdade assim como a própria enunciação individual e não reiterável Ele se apresenta como a expressão de uma situação histórica concreta que deu origem à enunciação A enunciação Que horas são tem um sentido diferente cada vez que é usada e também conseqüentemente na nossa terminologia um outro tema que depende da situação histórica concreta histórica numa escala microscópica em que é pronunciada e da qual constitui na verdade um elemento 1 Esse termo é naturalmente sujeito a dúvidas Para nós o termo tema cobre igualmente sua realização é por isso que ele não deve ser confundido com o tema de uma obra de arte O conceito de unidade temática é o que estaria mais próximo do nosso 132 Concluise que o tema da enunciação é determinado não só pelas formas lingüísticas que entram na composição as palavras as formas morfológicas ou sintáticas os sons as entoações mas igualmente pelos elementos não verbais da situação Se perdermos de vista os elementos da situação estaremos tão pouco aptos a compreender a enunciação como se perdêssemos suas palavras mais importantes O tema da enunciação é concreto tão con creto como o instante histórico ao qual ela pertence Somente a enunciação tomada em toda a sua amplitude concreta como fenômeno histórico possui um tema Isto é o que se entende por tema da enunciação Entretanto se nos limitássemos ao caráter não reiterável e historicamente único de cada enunciação concreta estaríamos sendo medíocres dialéticos Além do tema ou mais exatamente no interior dele a enunciação é igualmente dotada de uma significação Por significação diferentemente do tema entendemos os elementos da enunciação que são reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos Naturalmente esses elementos são abstratos fundados sobre uma convenção eles não têm existência concreta independente o que não os impede de formar uma parte inalienável indispensável da enunciação O tema da enunciação é na essência irredutível a análise A significação da enunciação ao contrário pode ser analisada em um conjunto de significações ligadas aos elementos lingüísticos que a compõem O tema da enunciação Que horas são tomado em ligação indissolúvel com a situação histórica concreta não pode ser segmentado A significação da enunciação Que horas são é idêntica em todas as instâncias históricas em que é pronunciada ela se compõe das significações de todas as palavras que fazem parte dela das formas de suas relações morfológicas e sintáticas da entoação interrogativa etc O tema é um sistema de signos dinâmico e complexo que pro cura adaptarse adequadamente às condições de um dado momento da evolução O tema é uma reação da consciência em devir ao ser em devir A significação é um aparato técnico para a realização do tema Bem entendido é impossível traçar uma fronteira me cânica absoluta entre a significação e o tema Não há tema sem significação e viceversa Além disso é impossível designar a significação de uma palavra isolada por exemplo no processo de ensinar uma língua estrangeira sem fazer dela o elemento de um tema isto é sem construir uma enunciação um exem plo Por outro lado o tema deve apoiarse sobre uma certa estabilidade da significação caso contrário ele perderia seu elo com 133 o que precede e o que segue ou seja ele perderia em suma o seu sentido O estudo das línguas dos povos primitivos e a paleontologia contemporânea das significações levamnos a uma conclusão acerca da chamada complexidade do pensamento primitivo O homem pré histórico usava uma mesma e única palavra para designar manifestações muito diversas que do nosso ponto de vista não apresentam nenhum elo entre si Além disso uma mesma e única palavra podia designar conceitos diametralmente opostos o alto e o baixo a terra e o céu o bem e o mal etc É suficiente dizer diz Nicolau Marr que a paleontologia lingüística contemporânea nos dá a possibilidade de aceder graças às suas investigações às épocas em que as tribos só tinham à sua disposição uma única palavra para cobrir todas as significações de que a humanidade tinha consciência2 Mas perguntarseá será que uma palavra onisignificante é realmente uma palavra Sim é precisamente uma palavra Diremos ainda mais que se um complexo sonoro qualquer comportasse uma única significação inerte e imutável então esse complexo não seria uma palavra não seria um signo mas apenas um sinal3 A multiplicidade das significações é o índice que faz de uma palavra uma palavra Em relação à palavra onisignificante de que falava Marr podemos dizer o seguinte tal palavra de fato não tem praticamente significado é um tema puro Sua significação é inseparável da situação concreta em que se realiza Sua significação é diferente a cada vez de acordo com a situação Dessa maneira o tema absorve dissolve em si a significação não lhe deixando a possibilidade de estabilizarse e consolidarse Mas à medida que a linguagem se desenvolveu que o seu estoque de complexos sonoros aumentou as significações começaram a estabilizarse segundo as 2 As Etapas da Teoria Jafética loc cit p 278 3 Deduzse daqui claramente que mesmo a palavra da época mais recuada da humanidade de que fala Marr não se assemelha em nada ao sinal ao qual alguns investigadores procuram reduzir a linguagem Afinal um sinal que significasse tudo seria muito pouco capaz de desempenhar a função de sinal A capacidade de um sinal adaptarse às condições mutáveis de uma situação é muito pequena Na verdade mudança num sinal significa substituição de um sinal por outro 134 linhas que eram básicas e mais freqüentes na vida da comunidade para a utilização temática dessa ou daquela palavra O tema como dissemos é um atributo apenas da enuncia ção completa ele pode pertencer a uma palavra isolada somente se essa palavra opera como uma enunciação global Assim por exemplo a palavra onisignificante de Marr sempre opera como uma enunciação completa e não tem significações fixas precisa mente por isso Por outro lado a significação pertence a um elemento ou conjunto de elementos na sua relação com o todo É claro que se abstrairmos por completo essa relação com o todo isto é com a enunciação perderemos a significação É por isso que não se pode traçar uma fronteira clara entre o tema e a significação A maneira mais correta de formular a interrelação do tema e da significação é a seguinte o tema constitui o estágio superior real da capacidade lingüística de significar De fato apenas o tema significa de maneira determinada A significação é o estágio inferior da capacidade de significar A significação não quer dizer nada em si mesma ela é apenas um potencial uma possibilidade de significar no interior de um tema concreto A investigação da significação de um ou outro elemento lingüístico pode segundo a definição que demos orientarse para duas direções para o estágio superior o tema nesse caso tratarseia da investigação da significação contextual de uma dada palavra nas condições de uma enunciação concreta Ou então ela pode tender para o estágio inferior o da significação nesse caso será a investigação da significação da palavra no sistema da língua ou em outros termos a investigação da palavra dicionarizada Para constituir uma ciência sólida da significação é impor tante distinguir bem entre o tema e a significação e compreender bem a sua interrelação Até o momento ninguém compreendeu a importância dessa conduta Tais distinções como as que se estabelecem entre o sentido usual e ocasional de uma palavra entre o seu sentido central e os laterais entre denotação e conotação etc são fundamentalmente insatisfatórias A tendência básica subjacente a todas essas discriminações de atribuir maior valor ao aspecto central usual da significação pressupondo que esse aspecto realmente existe e é estável é completamente falaciosa Além disso ela deixaria o tema inexplicado uma vez que ele de maneira nenhuma poderia ser reduzido à condição de significação ocasional ou lateral das palavras A distinção entre tema e significação adquire particular clareza em conexão com o problema da compreensão que abordaremos 135 brevemente aqui Já tivemos a ocasião de mencionar o modo de compreensão passiva próprio dos filólogos que exclui a priori qualquer resposta Qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo deve conter já o germe de uma resposta Só a compreensão ativa nos permite apreender o tema pois a evolução não pode ser apreendida senão com a ajuda de um outro processo evolu tivo Compreender a enunciação de outrem significa orientar se em relação a ela encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender fazemos corresponder uma série de palavras nossas formando uma réplica Quanto mais numerosas e substanciais forem mais profunda e real é a nossa compreensão Assim cada um dos elementos significativos isoláveis de uma enunciação e a enunciação toda são transferidos nas nossas mentes para um outro contexto ativo e responsivo A compreensão é uma forma de diálogo ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo Compreender é opor a palavra do locutor uma contrapalavra Só na compreensão de uma língua estrangeira é que se procura encontrar para cada pala vra uma palavra equivalente na própria língua É por isso que não tem sentido dizer que a significação pertence a uma palavra enquanto tal Na verdade a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores isto é ela só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva A significação não está na palavra nem na alma do falante assim como também não está na alma do interlocutor Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um determinado complexo sonoro É como uma faísca elétrica que só se produz quando há contato dos dois pólos opostos Aqueles que ignoram o tema que só é acessível a um ato de compreensão ativa e responsiva e que procurando definir o sentido de uma palavra atingem o seu valor inferior sempre estável e idêntico a si mesmo é como se quisessem acender uma lâmpada depois de terem cortado a corrente Só a corrente da comunicação verbal fornece à palavra a luz da sua significação Passemos agora ao problema da interrelação entre a apreciação e a significação cujo papel é muito importante na ciência das significações Toda palavra usada na fala real possui não apenas tema e significação no sentido objetivo de conteúdo desses termos mas também um acento de valor ou apreciativo isto é quando um conteúdo objetivo é expresso dito ou escrito pela fala viva ele é 136 sempre acompanhado por um acento apreciativo determinado Sem acento apreciativo não há palavra Em que consiste esse acento e qual é a sua relação com a face objetiva da significação O nível mais óbvio que é ao mesmo tempo o mais superficial da apreciação social contida na palavra é transmitido através da entoação expressiva Na maioria dos casos a entoação é determinada pela situação imediata e freqüentemente por suas circunstâncias mais efêmeras Eis aqui um caso clássico de utilização da entoação no discurso familiar No Diário de um Escritor Dostoievski conta1 Certa vez num domingo já perto da noite eu tive ocasião de caminhar ao lado de um grupo de seis operários embriagados e subitamente me dei conta de que é possível exprimir qualquer pensamento qualquer sensação e mesmo raciocínios profundos através de um só e único substantivo por mais simples que seja Dostoievski está pensando aqui numa palavrinha censurada de largo uso Eis o que aconteceu Primeiro um desses homens pronuncia com clareza e energia esse substantivo para exprimir a respeito de alguma coisa que tinha sido dita antes a sua contestação mais desdenhosa Um outro lhe responde repetindo o mesmo substantivo mas com um tom e uma significação completamente diferentes para contrariar a negação do primeiro O terceiro começa bruscamente a irritarse com o primeiro intervém brutalmente e com paixão na conversa e lançalhe o mesmo substantivo que toma agora o sentido de uma injúria Nesse momento o segundo intervém novamente para injuriar o terceiro que o ofendera O quê há cara quem tá pensando que é a gente tá conversando tranqüilo e aí vem você e começa a bronquear Só que esse pensamento ele o exprime pela mesma palavrinha mágica de antes que designa de maneira tão simples um certo objeto ao mesmo tempo ele levanta o braço e bate no ombro do companheiro Mas eis que o quarto o mais jovem do grupo que se calara até então e que aparentemente acabara de encontrar a solução do problema que estava na origem da disputa exclama com um tom entusiasmado levantando a mão Eureka Achei achei é isso que vocês pensam Não nada de Eureka nada de Achei Ele simplesmente repete o mesmo substantivo banido do dicionário uma 1 Pólnoie sobránie sotchiniénii F M Dostoievskovo Obras Completas de F M Dostoievski 1906 tomo 9 p 274275 137 única palavra mas com um tom de exclamação arrebatada com êxtase aparentemente excessivo pois o sexto homem o mais carrancudo e mais velho dos seis olhao de lado e arrasa num instante o entusiasmo do jovem repetindo com uma imponente voz de baixo e num tom rabugento sempre a mesma palavra interdita na presença de damas para significar claramente Não vale a pena arrebentar a garganta já compreendemos Assim sem pronunciar uma única outra palavra eles repetiram seis vezes seguidas sua palavra preferida um depois do outro e se fizeram compreender perfeitamente As seis falas dos operários são todas diferentes apesar do fato de todas consistirem de uma mesma e única palavra Essa palavra de fato só constitui um suporte da entoação A conversa é conduzida por meio de entoações que exprimem as apreciações dos interlocutores Essas apreciações assim como as entoações correspondentes são inteiramente determinadas pela situação social imediata em cujo quadro se desenvolve a conversa é por isso que elas não têm necessidade de um suporte concreto No registro familiar a entoação às vezes não tem nada a ver com o conteúdo do discurso O material entoativo acumulado interiormente encontra muitas vezes uma saída em construções lingüísticas que não são absolutamente adaptadas à entoação em questão Mais ainda a entoação não se integra no conteúdo intelectual objetivo da construção Quando exprimimos os nossos sentimentos damos muitas vezes a uma palavra que veio à mente por acaso uma entoação expressiva e profunda Ora freqüentemente tratase de uma interjeição ou de uma locução vazias de sentido Quase todas as pessoas têm as suas interjeições e locuções favoritas podese utilizar correntemente uma palavra de carga semântica muito grande para resolver de forma puramente entoativa situações ou crises da vida cotidiana sejam elas menores ou graves Encontramse servindo de válvulas de segurança entoativa expressões como pois é pois é sei sei é é pois não pois não etc A reduplicação habitual dessas palavrinhas isto é o alongamento artificial da representação sonora com o fim de dar à entoação acumulada uma escapatória é muito característica Podese é claro pronunciar a mesma palavrinha favorita com uma infinidade de entoações diferentes conforme as diferentes situações ou disposições que podem ocorrer na vida Em todos esses casos o tema que é uma propriedade de cada enunciação cada uma das enunciações dos seis operários tinha um tema próprio realizase completa e exclusivamente atra vés da entoação expressiva sem ajuda da significação das palavras ou da articulação gramatical Os acentos apreciativos dessa ordem e 138 as entoações correspondentes não podem ultrapassar os limites estreitos da situação imediata e de um pequeno círculo social íntimo Podemos qualificálos como auxiliares marginais das significações lingüísticas Entretanto nem todos os julgamentos de valor são como esses Em qualquer enunciação por maior que seja amplitude do seu espectro semântico e da audiência social de que goza uma enorme importância pertence à apreciação É verdade que a entoação não traduz adequadamente o valor apreciativo esse serve antes de mais nada para orientar a escolha e a distribuição dos elementos mais carregados de sentido da enunciação Não se pode construir uma enunciação sem modalidade apreciativa Toda enun ciação compreende antes de mais nada uma orientação apreciativa É por isso que na enunciação viva cada elemento contém ao mes mo tempo um sentido e uma apreciação Apenas os elementos abstratos considerados no sistema da língua e não na estrutura da enunciação se apresentam destituídos de qualquer valor apreciativo Por causa da construção de um sistema lingüístico abstrato os lingüistas chegaram a separar o apreciativo do significativo e a considerar o apreciativo como um elemento marginal da significação como a expressão de uma relação individual entre o locutor e o objeto do seu discurso4 Um lingüista russo G Spätt fala da apreciação como de um valor conotativo da palavra Ele procura estabelecer uma distinção entre a significação objetiva denotativa e a conotação apreciativa que ele coloca em esferas diferentes da realidade Esse tipo de demarcação entre o denotativo e o apreciativo parecenos completamente ilegítimo ela se fundamenta sobre o fato de que as funções mais profundas da apreciação não são perceptíveis na superfície do discurso E no entanto a significação objetiva formase graças à apreciação ela indica que uma determinada significação objetiva entrou no horizonte dos interlocutores tanto no horizonte imediato como no horizonte social mais amplo de um dado grupo social Além disso é à apreciação que se deve o papel criativo nas mudanças de significação A mudança de significação é sempre no final das contas uma reavaliação o deslocamento de uma palavra determinada 4 É assim que Anton Marty define a apreciação depois de ter efetuado a análise mais sutil e detalhada das significações das palavras V A Marty Untersuchungen zur Grundlegung der allgemeinen Grammatik und Sprachphilosophie Halle 1908 139 de um contexto apreciativo para outro A palavra ou é elevada a um nível superior ou abaixada a um inferior Isolar a significação da apreciação inevitavelmente destitui a primeira de seu lugar na evolução social viva onde ela está sempre entrelaçada com a apreciação e tornaa um objeto ontológico transformaa num ser ideal divorciado da evolução histórica É justamente para compreender a evolução histórica do tema e das significações que o compõem que é indispensável levar em conta a apreciação social A evolução semântica na língua é sempre ligada à evolução do horizonte apreciativo de um dado grupo social e a evolução do horizonte apreciativo no sentido da totalidade de tudo que tem sentido e importância aos olhos de um determinado grupo é inteiramente determinada pela expansão da infraestrutura econômica À medida que a base econômica se expande ela promove uma real expansão no escopo de existência que é acessível compreensível e vital para o homem O criador de gado préhistórico não tinha preocupações não havia muita coisa que realmente o tocasse O homem do fim da era capitalista está diretamente relacionado com todas as coisas seus interesses atingem os cantos mais remotos da terra e mesmo as mais distantes estrelas Esse alargamento do horizonte apreciativo efetuase de maneira dialética Os novos aspectos da existência que foram integrados no círculo do interesse social que se tornaram objetos da fala e da emoção humana não coexistem pacificamente com os elementos que se integraram à existência antes deles pelo contrário entram em luta com eles submetemnos a uma reavaliação fazemnos mudar de lugar no interior da unidade do horizonte apreciativo Essa evolução dialética refletese na evolução semântica Uma nova significação se descobre na antiga e através da antiga mas a fim de entrar em contradição com ela e de reconstruíla O resultado é uma luta incessante dos acentos em cada área semântica da existência Não há nada na composição do sentido que possa colocarse acima da evolução que seja independente do alargamento dialético do horizonte social A sociedade em transformação alargase para integrar o ser em transformação Nada pode permanecer estável nesse processo É por isso que a significação elemento abstrato igual a si mesmo é absorvida pelo tema e dilacerada por suas contradições vivas para retornar enfim sob a forma de uma nova significação com uma estabilidade e uma identidade igualmente provisórias 140 TERCEIRA PARTE PARA UMA HISTÓRIA DAS FORMAS DA ENUNCIAÇÃO NAS CONSTRUÇÕES SINTÁTICAS Tentativa de aplicação do método sociológico aos problemas sintáticos 141 CAPÍTULO 8 TEORIA DA ENUNCIAÇÃO E PROBLEMAS SINTÁTICOS Não há abordagem fecunda dos problemas sintáticos que se fundamente sobre os princípios e métodos tradicionais da lingüística particularmente os do objetivismo abstrato onde tais métodos e princípios encontraram sua expressão mais clara e conseqüente As categorias de base do pensamento lingüístico contemporâneo que foram elaboradas principalmente a partir da lingüística comparada das línguas indoeuropéias são de ponta a ponta fonéticas e morfológicas Esse pensamento que se nutriu de fonética e de morfologia só é capaz de ver os outros fenômenos da língua através das lentes das formas fonéticas e morfológicas Ele procura ver os problemas de sintaxe da mesma maneira o que leva a fazer deles problemas de morfologia1 Por isso a sintaxe encontrase em má situação fato que a maior parte dos pesquisadores das línguas indoeuropéias reconhece de boa vontade Compreendese perfeitamente isso se se recordam as características fundamentais da apreensão das línguas mortas governada originariamente pelos fins de deciframento dessas línguas e de seu ensino2 1 Essa tendência oculta de tratar a sintaxe como a morfologia tem como conseqüência que a reflexão escolástica reina na sintaxe mais do que em qualquer outra parte da lingüística 2 É preciso acrescentar a isso os fins particulares da lingüística comparada o estabelecimento do parentesco das línguas e de sua hierarquia genética Tais fins reforçam ainda mais o lugar privilegiado da fonética na reflexão lingüística Infelizmente não pudemos no âmbito deste trabalho tocar nos problemas da lingüística comparada apesar da sua enorme importância para a filosofia da linguagem e o lugar que ela ocupa na investigação lingüística contemporânea Tratase de um problema muito 142 Entretanto os problemas de sintaxe são da maior importância para a compreensão da língua e de sua evolução considerandose que de todas as formas da língua as formas sintáticas são as que mais se aproximam das formas concretas da enunciação dos atos de fala Todas as análises sintáticas do discurso constituem análises do corpo vivo da enunciação portanto é ainda mais difícil trazêlas a um sistema abstrato da língua As formas sintáticas são mais concretas que as formas morfológicas ou fonéticas e são mais estreitamente ligadas às condições reais da fala É por isso que na nossa reflexão sobre os fatos vivos da língua demos justamente prioridade às formas sintáticas sobre as formas morfológicas ou fonéticas Mas como também já deixamos claro um estudo fecundo das formas sintáticas só é possível no quadro da elaboração de uma teoria da enunciação Enquanto a enunciação como um todo permanecer terra incógnita para o lingüista está fora de questão falar de uma compreensão real concreta não escolástica das formas sintáticas Já dissemos que a enunciação completa ocupa uma posição bem pobre na lingüística Podese mesmo dizer que o pensamento lingüístico perdeu sem esperança de reavêla a percepção da fala como um todo O lingüista sentese mais à vontade quando opera no centro de uma unidade frasal Quanto mais ele se aproxima das fronteiras do discurso da enunciação completa menos segura é a sua posição Nenhuma das categorias lingüísticas convém à determinação do todo Com efeito as categorias lingüísticas tais como são só são aplicáveis no interior do território da enunciação Assim as categorias morfológicas só têm sentido no interior da enun ciação elas deixam de ser úteis quando se trata de definir o todo O mesmo se dá com as categorias sintáticas por exemplo a oração a categoria oração é meramente uma definição da oração como uma unidade dentro de uma enunciação mas de nenhuma maneira como entidade global Para convencerse da elementaridade fundamental de todas as categorias lingüísticas basta tomar a enunciação com pleta relativamente falando aliás já que toda enunciação faz parte do processo verbal constituída por uma única palavra Se apli carmos todas as categorias usadas pelos lingüistas a essa palavra fica evidente que essas categorias definem a palavra exclusi vamente em termos de um elemento potencial da fala e que nenhuma complexo e para tratálo ainda que superficialmente seria preciso alargar consideravelmente o âmbito deste livro 143 engloba a enunciação completa O elemento suplementar que faz dessa palavra uma enunciação completa permanece inacessível a todas as categorizações ou determinações lingüísticas quaisquer que sejam A expansão dessa palavra até uma oração completa com todos os seus constituintes de acordo com a prescrição não afirmado mas subentendido sempre nos dará apenas uma oração e de maneira nenhuma uma enunciação Não importa que categoria lingüística tentássemos aplicar a essa oração jamais encontraríamos aquilo que justamente a converte em uma enunciação completa Dessa maneira se ficarmos nos limites das categorias gramaticais efetivas da lingüística contemporânea jamais poremos a mão sobre a inacessível enunciação completa As categorias da língua puxamnos obstinadamente da enunciação e de sua estrutura para o sistema abstrato da língua Na verdade essa falha da definição lingüística aplicase não apenas à enunciação como um todo mas até mesmo às unidades dentro de uma enunciação monológica com alguma pretensão a serem consideradas unidades completas Isso acontece com os parágrafos que podem ser separados uns dos outros por alíneas A composição sintática dos parágrafos é extremamente variada Eles podem conter desde uma única palavra até um grande número de orações complexas Dizer que um parágrafo deve conter a expressão de um pensamento completo não leva a nada O que é preciso afinal é uma definição do ponto de vista da linguagem e em nenhuma circunstância pode a noção de pensamento completo ser considerada como uma definição lingüística Se é verdade como acreditamos que as definições lingüísticas não podem ser completamente divorciadas das definições ideológicas também elas não podem ser usadas para substituir uma à outra Penetrando mais fundo na essência lingüística dos parágrafos convencernosemos de que em certos aspectos essenciais eles são análogos às réplicas de um diálogo Tratase de qualquer forma de diálogos viciados trabalhados no corpo de uma enunciação monológica Na base da divisão do discurso em partes denominadas parágrafos na sua forma escrita encontrase o ajustamento às reações previstas do ouvinte ou do leitor Quanto mais fraco o ajustamento ao ouvinte e a consideração das suas reações menos organizado no que diz respeito aos parágrafos será o discurso Os tipos clássicos de parágrafo são pergunta e resposta o autor faz as perguntas e dá as respostas suplementação antecipação de 144 possíveis objeções exposição de aparentes incoerências ou contradições no próprio discurso etc3 É particularmente comum tomar como objeto de discussão o próprio discurso ou parte dele por exemplo o parágrafo precedente Nesse caso a atenção do falante transferese do objeto do discurso para o próprio discurso reflexão sobre o próprio discurso Essa mudança de pólo de interesse do discurso é condicionada pela atenção do ouvinte Se o discurso ignorasse totalmente o destinatário um tipo impossível de discurso é claro a possibilidade de decompôlo em constituintes seria próxima de zero Naturalmente não nos ocupamos aqui de certos tipos especiais de divisão condicionados pelos objetivos e fins particulares de domínios ideológicos específicos por exemplo a divisão estrófica do discurso em verso ou as análises puramente lógicas do tipo premissasconclusões teseantítese etc Apenas o estudo das formas da comunicação verbal e das formas correspondentes da enunciação completa pode lançar luz sobre o sistema dos parágrafos e todos os problemas aná logos Enquanto a lingüística orientar suas pesquisas para a enunciação monológica isolada ela permanecerá incapaz de abor dar essas questões em profundidade A elucidação dos problemas mais elementares da sintaxe só é possível também sobre a base da comunicação verbal Todas as categorias básicas da lingüís tica deveriam ser cuidadosamente reexaminadas nesse sentido O interesse recentemente manifestado em sintaxe pela entoação e as tentativas correlatas de renovar a determinação das unidades sintáticas por meio da consideração mais sutil e diferenciada da entoação parecemnos pouco fecundos Só se tornarão produtivos se forem combinados com uma compreensão adequada das bases da comunicação verbal 3 Apenas esboçamos aqui o problema dos parágrafos Nossas afirmações podem parecer dogmáticas uma vez que as apresentamos sem prova e não as sustentamos com materiais ad hoc Além disso simplificamos o problema Nos textos escritos a alínea que assinala os parágrafos permite decompor o discurso monológico de diversas maneiras Mencionamos aqui apenas um desses tipos uma forma de divisão que leva decisivamente em conta o destinatário e sua ativa compreensão 145 Os capítulos seguintes do nosso estudo são precisa mente consagrados a um problema específico de sintaxe Algu mas vezes é extremamente importante expor um fenômeno bem conhecido e aparentemente bem estudado a uma luz nova reformulandoo como problema isto é iluminando novos aspectos dele através de uma série de questões bem orientadas Isso é particularmente útil nos domínios em que a pesquisa desaba sob o peso de uma massa de descrições e de classificações meticulosas e detalhadas mas destituídas de qualquer orientação Uma problematização renovada pode colocar em evidência um caso aparentemente limitado e de interesse secundário como um fenômeno cuja importância é fundamental para todo o campo de estudo Podese assim graças a um problema bem colocado trazer à luz um potencial metodológico oculto Acreditamos que um fenômeno assim altamente produtivo nodal mesmo é o do discurso citado isto é os esquemas lingüísticos discurso direto discurso indireto discurso indireto livre as modificações desses esquemas e as variantes dessas modificações que encontramos na língua e que servem para a transmissão das enunciações de outrem e para a integração dessas enunciações enquanto enunciações de outrem num contexto monológico coerente O interesse metodológico excepcional que apresentam esses fatos ainda não foi apreciado na sua justa medida Ninguém foi capaz de discernir nessa questão de sintaxe à primeira vista secundária os problemas de enorme significação que ela coloca para a lingüística4 e foi justamente a orientação sociológica que tomou o interesse científico pela língua que permitiu descobrir toda a significação metodológica e o aspecto revelador desses fatos Dotar de uma orientação sociológica o fenômeno de transmissão da palavra de outrem tal é o problema a que nos vamos consagrar agora Através desses problema tentaremos traçar os caminhos do método sociológico em lingüística Não temos a pretensão de fazer grandes deduções positivas de caráter histórico Os materiais que recolhemos são suficientes para expor o problema e mostrar até que ponto é indispensável orientálo sociologicamente mas eles estão longe de ser suficientes para tirar generalizações históricas de grande 4 Pechkovski por exemplo só dedica quatro páginas à questão na sua Sintaxe Ver A M Pechkovski Rússki sintaksis v naútchnom osvechtchénie A Sintaxe Russa à Luz da Ciência 2a ed Moscou 1920 p 465468 3a ed p 552555 146 porte Tais generalizações quando ocorrem são de caráter meramente provisório e hipotético 147 CAPÍTULO 9 O DISCURSO DE OUTREM O discurso citado é o discurso no discurso a enunciação na enunciação mas é ao mesmo tempo um discurso sobre o discurso uma enunciação sobre a enunciação Aquilo de que nós falamos é apenas o conteúdo do discurso o tema de nossas palavras Um exemplo de um tema que é apenas um tema seria por exemplo a natureza o homem a oração subordinada um dos temas da sintaxe Mas o discurso de outrem constitui mais do que o tema do discurso ele pode entrar no discurso e na sua construção sintática por assim dizer em pessoa como uma unidade integral da construção Assim o discurso citado conserva sua autonomia estrutural e semântica sem nem por isso alterar a trama lingüística do contexto que o integrou Ainda mais a enunciação citada tratada apenas como um tema do discurso só pode ser caracterizada superficialmente Para penetrar completamente no seu conteúdo é indispensável integrálo na construção do discurso Se nos limitarmos ao tratamento do discurso citado em termos temáticos poderemos responder às questões Como e De que falava Fulano mas O que dizia ele só pode ser descoberto através da transmissão das suas palavras mesmo que só sob a forma de discurso indireto Entretanto quando passa a unidade estrutural do discurso narrativo no qual se integra por si a enunciação citada passa a constituir ao mesmo tempo um tema do discurso narrativo Faz parte integrante de sua unicidade temática na qualidade de enunciação citada uma enunciação com seu próprio tema o tema autônomo então tornase o tema de um tema O discurso citado é visto pelo falante como a enunciação de uma outra pessoa completamente independente na origem dotada de uma construção completa e situada fora do contexto narrativo É a partir dessa existência autônoma que o discurso de outrem passa para o 148 contexto narrativo conservando o seu conteúdo e ao menos rudimentos da sua integridade lingüística e da sua autonomia estrutural primitivas A enunciação do narrador tendo integrado na sua composição uma outra enunciação elabora regras sintáticas estilísticas e composicionais para assimilála parcialmente para associála à sua própria unidade sintática estilística e composicional embora conservando pelo menos sob uma forma rudimentar a autonomia primitiva do discurso de outrem sem o que ele não poderia ser completamente apreendido Nas línguas modernas certas variantes do discurso indireto em particular o discurso indireto livre têm uma tendência inerente a transferir a enunciação citada do domínio da construção lingüística ao plano temático de conteúdo Entretanto mesmo assim a diluição da palavra citada no contexto narrativo não se efetua e não poderia efetuarse completamente não somente o conteúdo semântico mas também a estrutura da enunciação citada permanecem relativamente estáveis de tal forma que a substância do discurso do outro permanece palpável como um todo autosuficiente Manifestase assim nas formas de transmissão do discurso de outrem uma relação ativa de uma enunciação a outra e isso não no plano temático mas através de construções estáveis da própria língua Esse fenômeno da reação da palavra à palavra é contudo radicalmente diferente do que se passa no diálogo Aí as réplicas são gramaticalmente separadas e não são integradas num contexto único Com efeito não existem formas sintáticas com a função de construir a unidade do diálogo Se o diálogo se apresenta no contexto do discurso narrativo estamos simplesmente diante de um caso de discurso direto isto é uma das variantes do fenômeno de que estamos tratando O problema do diálogo começa a chamar cada vez mais a atenção dos lingüistas e algumas vezes tornase mesmo o centro das preocupações em lingüística1 Isso é perfeitamente compreensível 1 Na literatura lingüística russa só se encontra um estudo consagrado ao problema do diálogo L P Iakubinski O dialoguítcheskoi rietchi Sobre o Discurso Dialogado in Rússkaia rietch A Fala Russa Petrogrado 1923 No livro de V Vinogradov Poézia Ánni Akhmátovoi A Poesia de Ana Akhmátova Leningrado 1925 ver o capítulo Os Gestos do Diálogo encontramse observações interessantes de cárater 149 pois como sabemos a unidade real da língua que é realizada na fala Sprache als Rede não é a enunciação monológica indivi dual e isolada mas a interação de pelo menos duas enunciações isto é o diálogo O estudo fecundo do diálogo pressupõe entretanto uma investigação mais profunda das formas usadas na citação do discurso uma vez que essas formas refletem tendências básicas e constantes da recepção ativa do discurso de outrem e é essa recepção afinal que é fundamental também para o diálogo Como na realidade apreendemos o discurso de outrem Como o receptor experimenta a enunciação de outrem na sua consciência que se exprime por meio do discurso interior Como é o discurso ativamente absorvido pela consciência e qual a influência que ele tem sobre a orientação das palavras que o receptor pronunciará em seguida Encontramos justamente nas formas do discurso citado um documento objetivo que esclarece esse problema Esse documento quando sabemos lêlo dános indicações não sobre os processos subjetivopsicológicos passageiros e fortuitos que se passam na alma do receptor mas sobre as tendências sociais estáveis características da apreensão ativa do discurso de outrem que se manifestam nas formas da língua O mecanismo desse processo não se situa na alma individual mas na sociedade que escolhe e gramaticaliza isto é associa às estruturas gramaticais da língua apenas os elementos da apreensão ativa apreciativa da enunciação de outrem que são socialmente pertinentes e constantes e que por conseqüência têm seu fundamento na existência econômica de uma comunidade lingüística dada Naturalmente há diferenças essenciais entre a recepção ativa da enunciação de outrem e sua transmissão no interior de um contexto É conveniente levar isso em conta Toda transmissão particularmente sob forma escrita tem seu fim específico narrativa processos legais polêmica científica etc Além disso a transmissão leva em conta uma terceira pessoa a pessoa a quem estão sendo transmitidas as enunciações citadas Essa orientação para uma terceira pessoa é de primordial importância ela reforça a influência das forças sociais organizadas sobre o modo de apreensão do discurso Numa situação real de diálogo quando respondemos a um interlocutor semilingüístico e semiestilístico Os lingüistas alemães da escola de Vossler trabalham ativamente na atualidade sobre o diálogo ver especialmente Gertraud Lerch Die uneigentliche direkte Rede Festschrift für Karl Vossler 1922 150 habitualmente não retomamos no nosso discurso as próprias palavras que ele pronunciou Só o fazemos em casos excepcionais para afirmar que compreendemos corretamente para apanhar o interlocutor com suas próprias palavras etc É preciso levar em conta todas essas características da situação de transmissão Mas isso não altera em nada a essência do problema As condições de transmissão e suas finalidades apenas contribuem para a realização daquilo que já está inscrito nas tendências da apreensão ativa no quadro do discurso interior ora essas últimas só podem desenvolverse por sua vez dentro dos limites das formas existentes numa determinada língua para transmitir o discurso Estamos bem longe é claro de afirmar que as formas sintáticas por exemplo as do discurso direto ou indireto exprimem de maneira direta e imediata as tendências e as formas da apreensão ativa e apreciativa da enunciação de outrem É evidente que o processo não se realiza diretamente sob a forma de discurso direto ou indireto Essas formas são apenas esquemas padronizados para citar o discurso Mas esses esquemas e suas variantes só podem ter surgido e tomado forma de acordo com as tendências dominantes da apreensão do discurso de outrem além disso na medida em que esses esquemas assumiram uma forma e uma função na língua eles exercem uma influência reguladora estimulante ou inibidora sobre o desenvolvimento das tendências da apreensão apreciativa cujo campo de ação é justamente definido por essas formas A língua não é o reflexo das hesitações subjetivopsicológicas mas das relações sociais estáveis dos falantes Conforme a lín gua conforme a época ou os grupos sociais conforme o contexto apresente tal ou qual objetivo específico vêse dominar ora uma forma ora outra ora uma variante ora outra O que isso atesta é a relativa força ou fraqueza daquelas tendências na interorien tação social de uma comunidade de falantes das quais as pró prias formas lingüísticas são cristalizações estabilizadas e antigas Se em certas condições bem determinadas uma forma qualquer se encontra relegada a segundo plano por exemplo certas variantes do discurso indireto no romance russo contemporâneo que são justamente de tipo racionalista dogmático isso testemunha então a favor do fato de que as tendências dominantes da compreensão e da apreciação da enunciação de outrem têm dificuldade em manifestarse sob essas formas pois estas últimas as freiam não lhes deixando campo suficiente 151 Toda a essência da apreensão apreciativa da enunciação de outrem tudo o que pode ser ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso interior Aquele que apreende a enun ciação de outrem não é um ser mudo privado da palavra mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores Toda a sua ativi dade mental o que se pode chamar o fundo perceptivo é mediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a junção com o discurso apreendido do exterior A palavra vai à palavra É no quadro do discurso interior que se efetua a apreensão da enunciação de outrem sua compreensão e sua apreciação isto é a orientação ativa do falante Esse processo efetuase em dois planos de um lado a enunciação de outrem é recolocada no contexto de comentário efetivo que se confunde em parte com o que se chama o fundo perceptivo da palavra na situação interna e externa um elo se estabelece com a expressão facial etc Ao mesmo tempo preparase a réplica Gegenrede Essas duas operações a réplica interior e o comentário efetivo2 são naturalmente organicamente fundidos na unidade da apreensão ativa e não são isoláveis senão de maneira abstrata Os dois planos da apreensão exprimemse objetivamse no contexto narrativo que engloba o discurso citado Qualquer que seja a orientação funcional de um determinado contexto quer se trate de uma obra literária de um artigo polêmico da defesa de um advogado etc nele discerniremos claramente essas duas tendências o comentário efetivo de um lado e a réplica de outro Habitualmente um dos dois é dominante O discurso citado e o contexto narrativo unemse por relações dinâmicas complexas e tensas É impossível compreender qualquer forma de discurso citado sem leválas em conta O erro fundamental dos pesquisadores que já se debruçaram sobre as formas de transmissão do discurso de outrem é têlo sistematicamente divorciado do contexto narrativo Daí o caráter estático das pesquisas nesse campo o que se aplica igualmente a todas as investigações em sintaxe No entanto o objeto verdadeiro da pesquisa deve ser justamente a interação dinâmica dessas duas dimensões o discurso a transmitir e aquele que serve para transmiti lo Na verdade eles só têm uma existência real só se formam e vivem através dessa interrelação e não de maneira isolada O discurso citado e o contexto de transmissão são somente os termos de uma interrelação dinâmica Essa dinâmica por sua vez reflete a dinâmica 2 O termo é emprestado de L P Jakubinski cf loc cit 152 da interrelação social dos indivíduos na comunicação ideológica verbal Tratase naturalmente de tendências essenciais e constantes dessa comunicação Em que direção pode desenvolverse a dinâmica da interrelação entre o discurso narrativo e o discurso citado Estamos diante de duas orientações principais Primeiramente a tendência fundamental da reação ativa ao discurso de outrem pode visar à conservação da sua integridade e autenticidade A língua pode esforçarse por delimitar o discurso citado com fronteiras nítidas e estáveis Nesse caso os esquemas lingüísticos e suas variantes têm a função de isolar mais clara e mais estritamente o discurso citado de protegêlo de infiltração pelas entoações próprias ao autor de simplificar e consolidar suas características lingüísticas individuais Essa é a primeira orientação convém discernir claramente nesse quadro até que ponto a apreensão social do discurso de outrem é diferenciada numa determinada comunidade lingüística até que ponto as expressões as particularidades estilísticas do discurso a coloração lexical etc são distintamente percebidas e têm uma significação social Pode ser que o discurso de outrem seja recebido como um único bloco de comportamento social como uma tomada de posição inanalisável do falante e nesse caso apenas o o quê do discurso é apreendido enquanto o como fica fora do campo de compreensão Esse tipo de apreensão e de transmissão do discurso de outrem lingüisticamente despersonalizado e preocupado com o sentido objetivo domina em francês antigo e medieval nesse último caso constatase um desenvolvimento importante das variantes do discurso indireto sem sujeito aparente3 Encontramos esse mesmo tipo nos documentos russos antigos embora neles falte quase completamente o esquema do discurso indireto O tipo dominante nesse caso é o do discurso direto com sujeito não aparente no sentido lingüístico4 3 Sobre algumas particularidades do antigo francês nessa área ver mais adiante Sobre o discurso citado em francês medieval ver Gertraud Lerch Die uneigentliche direkte Rede in Festschrift für Karl Vossler 1922 p 122 ss Ver igualmente Karl Vossler Frankreichs Kultur im Spiegel seiner Sprachentwicklung 1913 4 Por exemplo na Canção da Batalha de Igor célebre epopéia russa do século XII anônima que constitui o primeiro documento escrito em língua russa sic NdTfr não há um único exemplo de discurso indireto apesar da utilização abundante da palavra de outrem nesse documento Encontrase muito raramente o discurso indireto nos anais da Idade Média O discurso de outrem é 153 No quadro da primeira orientação convém discernir igualmente o grau de firmeza ideológica o grau de autoritarismo e de dogma tismo que acompanha a apreensão do discurso Quanto mais dogmática for a palavra menos a apreensão apreciativa admitirá a passagem do verdadeiro ao falso do bem ao mal e mais impes soais serão as formas de transmissão do discurso de outrem Na verdade dentro de uma situação em que todos os julga mentos sociais de valor são divididos em alternativas nítidas e distintas não há lugar para uma atitude positiva e atenta a todos os componentes individualizantes da enunciação de outrem Um dogma tismo autoritário como esse é característico dos textos escritos em francês medieval e em russo antigo O século XVII na França e o XVIII na Rússia caracterizamse por um tipo racionalista de dogmatismo que trata de maneira semelhante embora com orientações diferentes o componente individual do discurso No quadro do dogmatismo racionalista dominam as variantes analisadoras do conteúdo do discurso indireto e as variantes retóricas do discurso direto5 As fronteiras que separam o discurso citado do resto da enunciação são nítidas e invioláveis Podemos chamar essa primeira orientação na qual se move o dinamismo da interorientação entre o discurso narrativo e o discurso citado o estilo linear der lineare Stil de citação do discurso de outrem tomando o termo emprestado do crítico de arte Wölfflin A tendência principal do estilo linear é criar contornos exteriores nítidos à volta do discurso citado correspondendo a uma fraqueza do fator individual interno Nos casos em que existe completa homogeneidade estilística de todo o texto o autor e suas personagens falam a mesma língua o discurso cons truído como sendo o de outrem atinge um sobriedade e uma plasticidade máximas Na segunda orientação da dinâmica da interrelação da enunciação e do discurso citado observamos processos de natu reza exatamente oposta A língua elabora meios mais sutis e mais versáteis para permitir ao autor infiltrar suas réplicas e seus comentários no discurso de outrem O contexto narrativo esforçase por desfazer a estrutura compacta e fechada do sempre introduzido sob a forma de massa compacta fechada e pouco individualizada 5 O discurso indireto é quase inexistente na literatura russa da época clássica 154 discurso citado por absorvêlo e apagar as suas fronteiras Pode mos chamar esse estilo de transmissão do discurso de outrem o estilo pictórico Sua tendência é atenuar os contornos exteriores nítidos da palavra de outrem Além disso o próprio discurso é bem mais individualizado Os diferentes aspectos da enun ciação podem ser sutilmente postos em evidência Não é apenas o seu sentido objetivo que é apreendido a asserção que está nela contida mas também todas as particularidades lingüísticas da sua realização verbal Encontrase igualmente no quadro dessa segunda orientação uma variedade de tipos O narrador pode deliberadamente apagar as fronteiras do discurso citado a fim de colorilo com as suas entoações o seu humor a sua ironia o seu ódio com o seu encantamento ou o seu desprezo Esse tipo é característico da época do Renascimento especialmente em francês do fim do século XVIII e de quase todo o século XIX O dogmatismo autoritário e racionalista tende a desaparecer completamente nesse caso O que domina é um certo relativismo das apreciações sociais o que é muito favorável a uma apreensão positiva e intuitiva de todos os matizes lingüísticos individuais do pensamento das opiniões dos sentimentos É sobre esse terreno que se desenvolve a corrente decorativa no tratamento do discurso citado que leva algumas vezes a negligenciar o significado de uma enunciação em favor da sua cor por exemplo na escola natural russa De fato no próprio Gogol a fala das personagens às vezes perde todo o seu sentido objetivo tornandose objeto decorativo da mesma forma que o vestuário a aparência a mobília etc Mas existe também um outro tipo em que a dominante do discurso é deslocada para o discurso citado esse tornase por isso mais forte e mais ativo que o contexto narrativo que o enquadra Dessa maneira o discurso citado é que começa a dissolver por assim dizer o contexto narrativo Esse último perde a grande objetividade que lhe é normalmente inerente em relação ao discurso citado nessas condições o contexto narrativo começa a ser percebido e mesmo a reconhecerse como subjetivo como fala de outra pessoa Nas obras literárias isso é muitas vezes composicionalmente expresso pelo aparecimento de um narrador que substitui o autor propriamente dito O discurso do narrador é tão individualizado tão colorido e tão desprovido de autoritarismo ideológico como o discurso das personagens A posição do narrador é fluida e na maioria dos casos ele usa a linguagem das personagens representadas na obra Ele não pode opor às suas posições subjetivas um mundo mais autoritário e 155 mais objetivo Essa é a natureza da narração em Dostoievski Andriéi Biéli Remízov Sologub e nos romancistas russos contemporâneos6 Se a ofensiva do contexto narrativo contra o discurso citado traz a marca de um idealismo ou de um coletivismo discretos no que diz respeito à apreensão do discurso de outrem a decomposição do contexto narrativo testemunha uma posição de individualismo relativista na apreensão do discurso Neste último à enunciação citada subjetiva opõese um contexto narrativo que comenta e replica e que se reconhece como igualmente subjetivo Toda a segunda orientação caracterizase por um desenvolvi mento notável dos modelos mistos de transmissão do discurso o discurso indireto sem sujeito aparente e particularmente o discur so indireto livre que é a forma última de enfraquecimento das fronteiras do discurso citado Ainda entre as variantes do dis curso direto e indireto predominam aquelas que possuem maior flexibilidade e são mais permeáveis às tendências do contexto por Dolinin I 1923 p 239241 a semelhança entre a linguagem do narrador e a linguagem do herói já tinha sido notada por Bielínski B M Engelhardt observa muito corretamente que não se encontra nenhuma descrição por assim dizer objetiva do mundo exterior em Dostoievski Devido a esse fato gerouse na obra de arte literária uma multiestratificação da realidade que levou a uma dissolução típica do ser no caso dos sucessores de Dostoievski Engelhardt observa essa dissolução do ser no Miélki bies O Diabinho de Sologub e no Peterburg de A Biéli Ver B M Engelhardt Ideologuítcheski roman Dostoievskovo O Romance Ideológico de Dostoievski Dostoievski ed por Dolinin II 1925 p 94 Eis como Bally define o estilo de Zola Personne plus 6 Há uma literatura bastante vasta sobre o papel do narrador na epopéia A obra básica até o presente é a de K Friedmann Die Rolle des Erzählers in der Epek 1910 Na Rússia foram os formalistas que despertaram o interesse pelo problema do narrador V V Vinogradov define o dis curso do narrador em Gógol como ziguezagueando do autor para as personagens cf Gógol i naturálnaia chkola Gógol e a Escola Natural De acordo com Vinogradov o estilo do narrador de Dostoievski em Dvóinik O Duplo ocupa uma posição semelhante em relação ao estilo do herói Goliádkin Ver Stil peterbúrgskoi poemi Dvóinik O Estilo do Poema de Petersburgo O Duplo Dostoievski editado 156 que Zola na usé et abusé du procédé qui consiste à faire passer tous les événements par le cerveau de ses personnages à ne décrire les paysages que par leurs yeux à nénoncer des idées personelles que par leur bouche Dans ses derniers romans ce nest plus une manière cest un tic cest une obsession Dans Rome pas un coin de la ville éternelle pas une scène quil ne voie par les yeux de son abbé pas une idée sur la religion quil ne formule par son intermédiaire apud E Lorck Die Erlebte Rede p 64 Ninguém como Zola usou e abusou do procedimento que consiste em fazer passar todos os acontecimentos pela cabeça de suas personagens em não descrever as paisagens a não ser pelos seus olhos em só anunciar as idéias pessoais pela sua boca Nos seus últimos romances não se trata mais de uma maneira é um tique é uma obsessão Em Roma não há um canto da cidade eterna uma cena que ele não veja pelos olhos do seu abade uma idéia sobre a religião que não seja formulada por seu intermediário Um artigo interessante dedicado ao problema do narrador é o de Iliá Gruzdiev O priiómakh khudójestvennovo povestvovánia Os Procedimentos da Narração Literária in Zapíski Peredvíjnovo Teatra Notas do Teatro Ambulante Petrogrado 1922 no 40 41 42 Entretanto nenhum desses trabalhos aborda o problema da transmissão do discurso da perspectiva da lingüística narrativo por exemplo o discurso direto disperso as formas de discurso indireto analíticas da textura do discurso etc O exame de todas essas tendências da apreensão ativa do discurso citado deve levar em conta todas as particularidades dos fenômenos lingüísticos em estudo O fim que o contexto narrativo procura alcançar é particularmente importante A esse respeito o discurso literário transmite com muito mais sutileza que os outros todas as transformações na inteorientação sócioverbal O discurso retórico diferentemente do discurso literário pela própria natureza da sua orientação não é tão livre na sua maneira de tratar as palavras de outrem Ele tem de forma inerente um sentimento agudo dos direitos de propriedade da palavra e uma preocupação exagerada com a autenticidade A linguagem judicial intrinsecamente assume uma discrepância nítida entre o subjetivismo verbal das partes num processo e a objetividade do julgamento A retórica política é análoga É importante determinar o peso específico dos discursos retórico judicial ou político na consciência lingüística de um dado grupo social numa determinada época Além disso é importante levar sempre em conta a posição que um discurso a ser citado ocupa na hierarquia social de valores Quanto mais forte for o sentimento de eminência hierárquica na enunciação de outrem mais claramente definidas serão as suas fronteiras e menos acessível será ela à penetração por tendências exteriores de réplica e comentário Assim por exemplo no interior do quadro do neoclassicismo nos gêneros 157 menores observamse desvios consideráveis do estilo linear racionalista e dogmático de transmitir a palavra de outrem É sintomático que o discurso indireto livre tenha atingido o seu primeiro desenvolvimento importante precisamente aí nas fábulas e contos de La Fontaine Para resumir o que acabamos de dizer sobre as tendências possíveis da interrelação dinâmica do discurso citado e do contexto narrativo podemos propor a seguinte seqüência cronológica 1 Dogmatismo autoritário caracterizado pelo estilo linear impessoal e monumental de transmitir a fala de outrem na Idade Média 2 Dogmatismo racionalista com seu estilo linear ainda mais pronunciado nos séculos XVII e XVIII 3 Individualismo realista e crítico com seu estilo pictórico e sua tendência para infiltrar o discurso citado com as réplicas e os comentários do autor fim do século XVIII e começo do XIX e finalmente 4 Individualismo relativista com a sua diluição do contexto narrativo época contemporânea A língua existe não por si mesma mas somente em conjunção com a estrutura individual de uma enunciação concreta É apenas através da enunciação que a língua toma contato com a comunicação imbui se do seu poder vital e tornase uma realidade As condições da comunicação verbal suas formas e seus métodos de diferenciação são determinados pelas condições sociais e econômicas da época As condições mutáveis da comunicação sócioverbal precisamente são determinantes para as mudanças de formas que observamos no que concerne à transmissão do discurso de outrem Além disso aventuramonos mesmo a dizer que nas formas pelas quais a língua registra as impressões do discurso de outrem e da personalidade do locutor os tipos de comunicação sócioideológica em transformação no curso da história manifestamse com um relevo especial 158 CAPÍTULO 10 DISCURSO INDIRETO DISCURSO DIRETO E SUAS VARIANTES Estabelecemos as tendências fundamentais da dinâmica da orientação recíproca do discurso citado e do discurso narrativo Essa dinâmica encontra sua expressão lingüística concreta nos esquemas de transmissão do discurso de outrem e nas variantes dos esquemas de base que constituem de alguma forma os indicadores da relação de força que se estabelece entre o contexto narrativo e o discurso citado num determinado momento do desenvolvimento da língua Vamos agora fazer uma breve caracterização dos esquemas e de suas principais variantes do ponto de vista das tendências que indicamos Antes de mais nada é preciso dizer algumas palavras acerca da relação entre as variantes e o esquema de base Podese comparála à relação entre a realidade viva do ritmo e a abstração que constitui a métrica O esquema só se realiza sob a forma de uma variante específica É nas variantes que se acumulam as mudanças no curso dos séculos e dos decênios e que se estabilizam os novos hábitos da orientação ativa em relação ao discurso de outrem os quais se fixam em seguida sob a forma de representações lingüísticas duráveis nos esquemas sintáticos As variantes se encontram na fronteira da gramática e da estilística Algumas vezes pode haver controvérsia quanto a saber se uma forma de transmissão do discurso de outrem constitui um esquema de base ou uma variante se se trata de uma questão de gramática ou de estilística Houve por exemplo uma controvérsia dessa ordem a respeito do discurso indireto livre em francês e em alemão entre Bally por um lado e Kalepky e Lorck por outro Bally recusavase a reconhecer no discurso indireto livre um legítimo esquema sintático e viao como uma simples variante estilís tica Do nosso ponto de vista é impossível estabelecer uma fron teira estrita entre a gramática e a estilística entre o esquema gramatical 159 e sua variante estilística Essa fronteira é instável na própria vida da língua onde algumas formas se encontram num processo de gramaticalização enquanto outras estão em vias de desgramaticalização e essas formas ambíguas esses casos limítrofes é que apresentam maior interesse para o lingüista é justamente neles que se podem captar as tendências da evolução da língua1 Limitaremos nossa caracterização dos esquemas dos discursos direto e indireto à língua literária russa Mesmo assim não tentaremos enumerar todas as suas variantes possíveis Interessanos exclusivamente o aspecto metodológico da questão Os esquemas sintáticos de transmissão do discurso de outrem são como se sabe muito pouco desenvolvidos na língua russa Além do discurso indireto livre que é desprovido de marcas sintáticas claras como ocorre também em alemão há dois esquemas o discurso direto e o discurso indireto Mas não existem entre esses dois esquemas diferenças notáveis como acontece em outras línguas As marcas do discurso indireto são fracas e durante a conversa podem ser facilmente confundidas com as do discurso direto2 1 Ouvese freqüentemente criticar Vossler e os vosslerianos porque eles se ocupam mais de estilística do que de lingüística propriamente dita Na realidade a escola de Vossler se interessa por problemas que estão nos limites das duas disciplinas porque compreendeu a sua importância metodológica e heurística e nós vemos nisso razão para admirála Infelizmente os vosslerianos como sabemos colocam em primeiro plano os fatores subjetivos psicológicos e os dados estilísticos individuais quando tentam explicar esses fenômenos 2 Em muitas outras línguas o discurso indireto se distingue claramente do discurso direto pela sintaxe pelo emprego dos tempos dos modos das conjunções dos anafóricos etc de tal forma que ele constitui um esquema complexo de transmissão indireta do discurso Em russo entretanto mesmo aquelas poucas marcas distintivas que mencionamos há pouco freqüentemente perdem seu efeito de modo que o discurso indireto se confunde com o direto Óssip por exemplo no Revisor O Inspetor Geral de Gógol diz O albergueiro disse que eu não sirvo de comer enquanto você não tiver pagado sua 160 A ausência de consecutio temporum e a não utilização do subjuntivo priva o discurso indireto em russo de identidade própria e não cria um terreno favorável para o desenvolvimento amplo de variantes importantes e interessantes do nosso ponto de vista Na verdade somos obrigados a afirmar a predominância absoluta do discurso direto em russo Não houve na história da língua russa nenhum período cartesiano racionalista durante o qual o contexto narrativo racional seguro de si mesmo e objetivo analisasse e decompusesse o conteúdo objetivo do discurso de outrem e criasse assim variantes complexas e interessantes do discurso indireto Todas essas particularidades da língua russa criam uma situa ção extremamente favorável a um estilo pictórico de transmissão do discurso de outrem embora digase de passagem bastante frouxo e flácido isto é sem a percepção de limites e oposições a ultra passar que se sente em outras línguas O que domina é um modo de interação e de interpenetração extremamente fácil do discurso narrativo e do discurso citado Isso está relacionado com o papel pouco significativo que a retórica desempenhou na história da língua literária russa marcada por um estilo linear de transmissão das palavras de outrem comportando entoações pouco sutis e claramente unívocas Vamos expor inicialmente as características do discurso indireto que constitui o esquema menos elaborado na língua russa Começaremos por uma pequena crítica a A M Pechkovski Depois de observar que as nossas formas de discurso indireto são pouco elaboradas ele faz a seguinte declaração que nos parece um pouco deslocada Para convencerse de que o discurso indireto é estranho à língua russa basta apenas tentar transpor qualquer trecho em discurso direto mesmo uma simples afirmação para discurso indireto Por exemplo O Asno abaixando sua cabeça até o chão diz ao Rouxinol que nada mal que sem brincadeira é bonito ouvilo cantar mas que pena que ele não conhece o Galo deles que ele poderia dar uma boa melhorada no seu canto se tomasse algumas lições com ele3 conta Exemplo tirado de Pechkovski A Sintaxe Russa 3a ed p 553 com itálicos de Pechkovski 3 Ibid p 554 O trecho de discurso direto que Pechkovski usa para o seu exemplo é tirado da conhecida fábula de Ivan 161 Se Pechkovski tivesse feito a mesma experiência de transpor mecanicamente o discurso direto para indireto em francês ob servando apenas as regras gramaticais teria chegado exatamente às mesmas conclusões Se por exemplo ele tivesse tentado passar para formas de discurso indireto o discurso direto ou mesmo indi reto livre que La Fontaine usa em suas fábulas a última forma é muito usada por ele os resultados obtidos teriam sido tão gramaticalmente corretos e estilisticamente inadequados como no exemplo russo E isso teria acontecido apesar do fato de ser o discurso indireto livre muito próximo do discurso indireto em francês as mesmas mudanças de tempo e de pessoa ocorrem em ambos Toda uma série de palavras de expressões de maneiras de dizer que convêm perfeitamente ao discurso direto e indireto livre parecerão completamente estranhos se forem transpostos para o discurso indireto Pechkovski comete um erro típico de um gramático A transposição palavra por palavra por procedimentos puramente gramaticais de um esquema para outro sem fazer as modificações estilísticas correspondentes é nada mais que um método escolar de exercícios gramaticais pedagogicamente mau e inadmissível Esse tipo de aplicação dos esquemas não tem nada a ver com a sua utilização viva na língua Os esquemas exprimem uma tendência à apreensão ativa do discurso de outrem Cada esquema recria à sua maneira a enunciação dandolhe assim uma orientação particular especí fica Se a língua num determinado estágio do seu desenvol vimento percebe a enunciação de outrem como um todo com pacto inanalisável imutável e impenetrável ela não compor tará nenhum outro esquema além do esquema primitivo e inerte do discurso direto o estilo monumental É exatamente Krylov O Asno e o Rouxinol Na fábula o Asno diz ao Rouxinol depois que este demonstrou a sua arte Nada mal Sem brincadeira é bonito ouvilo cantar Mas que pena que você não conhece o nosso Galo Você poderia dar uma boa melhorada no seu canto se tomasse algumas lições com ele Pechkovski faz uma transposição puramente mecânica desse trecho para o discurso indireto O resultado é estranho na verdade impossível A tradução procura dar uma idéia desse resultado NdTam 162 essa concepção da imutabilidade da enunciação de outrem e abso luta literalidade da sua transmissão que Pechkovski adota na sua experiência mas ao mesmo tempo ele procura aplicar o esquema do discurso indireto O resultado obtido não prova em absoluto que o discurso indireto é estranho à língua russa Ao contrário prova que apesar do pequeno grau de desenvol vimento do esquema indireto em russo ele é suficien temente caracterizado para impedir a transposição literal de um enunciado qualquer em discurso livre4 A singular experiência efetuada por Pechkovski evidencia sua total ignorância da significação lingüística própria do discurso indireto Essa significação reside na transmissão analítica do discurso de outrem O emprego do discurso indireto ou de uma de suas variantes implica uma análise da enunciação simultânea ao ato de transposição e inseparável dele Variam apenas o grau e a orientação da análise A tendência analítica do discurso indireto manifestase principalmente pelo fato de que os elementos emocionais e afetivos do discurso não são literalmente transpostos ao discurso indireto na medida em que não são expressos no conteúdo mas nas formas da enunciação Antes de entrar numa construção indireta eles passam de formas de discurso a conteúdo ou então encontramse transpostos na proposição principal como um comentário do verbum dicendi Por exemplo a enunciação direta Muito bem Que grande realização não pode ser transposta para discurso indireto da seguinte maneira Ele disse que muito bem e que grande realização Ao contrário esperamos ou Ele disse que estava muito bem e que era uma grande realização ou Ele disse entusiasmado que estava bem e que era uma grande realização As abreviações elipses etc possíveis no discurso direto por motivos emocionais e afetivos não são admissíveis no discurso indireto por causa da sua tendência analítica Esses elementos só entram na sua construção sob uma forma completa e elaborada No exemplo de Pechkovski a exclamação do Asno Nada mal não pode ser diretamente integrada no discurso indireto sob a forma Ele diz que nada mal mas apenas como Ele diz que não estava mal ou mesmo Ele diz que o rouxinol não cantava mal Da mesma forma sem brincadeira não pode ser mecanicamente transposto 4 O erro de Pechkovski que analisamos aqui mostra uma vez mais até que ponto é metodologicamente prejudicial divorciar a gramática da estilística 163 para o discurso indireto nem Que pena que você não conhece pode ser transposto como mas que pena que ele não conhece É óbvio que a mesma impossibilidade de uma transposição mecânica do discurso direto para o indireto também se aplica à forma original de qualquer construção ou características de acentuação que o falante usou para expressar suas intenções Assim as peculiaridades de construção e de entoação dos enunciados interrogativos exclamativos ou imperativos não se conservam no discurso indireto aparecendo apenas no conteúdo O discurso indireto ouve de forma diferente o discurso de outrem ele integra ativamente e concretiza na sua transmissão outros elementos e matizes que os outros esquemas deixam de lado Por isso transposição literal palavra por palavra da enun ciação construída segundo um outro esquema só é possível nos casos em que a enunciação direta já se apresenta na origem como uma forma algo analítica isso naturalmente dentro dos limites das possibilidades analíticas do discurso direto A análise é a alma do discurso indireto Se examinarmos de mais perto a experiência de Pechkovski observaremos que a coloração lexical de palavras tais como nada mal e dar uma boa melhorada não são totalmente compatíveis com o espírito analítico que caracteriza o discurso indireto São expressões muito coloridas elas não só transmitem o exato significado do que foi dito mas também sugerem a maneira de falar individual ou tipológica do Asno enquanto personagem Poderíamos preferir substituílos por sinônimos bem ou fazer progressos ou se quiséssemos conserválas na construção indireta iríamos pôlas entre aspas pelo menos Se fôssemos ler o resultado em voz alta leríamos as expressões entre aspas de maneira diferente para dar a entender através da nossa entoação que elas são tomadas diretamente do discurso de outra pessoa e que nós queremos manter distância Mas aqui entramos no cerne do problema isto é na necessidade de distinguir as duas orientações que pode tomar a tendência analítica no discurso indireto e as duas variantes principais correspondentes De fato a análise envolvida numa construção de discurso indireto pode seguir em duas direções ou mais precisamente pode dirigir a atenção para dois objetos fundamentalmente diferentes A enunciação de outrem pode ser apreendida como uma tomada de posição com conteúdo semântico preciso por parte do falante e nesse caso através da construção indireta transpõese de maneira analítica sua composição objetiva exata o que disse o falante Assim no exemplo 164 considerado é possível transmitir exatamente o sentido objetivo da apreciação do canto do Rouxinol pelo Asno Mas podese também apreender e transmitir de forma analítica a enunciação de outrem enquanto expressão que caracteriza não só o objeto do discurso que é de fato menor mas ainda o próprio falante sua maneira de falar individual ou tipológica ou ambas seu estado de espírito expresso não no conteúdo mas nas formas do discurso por exemplo a fala entrecortada a escolha da ordem das palavras a entoação expressiva etc sua capacidade ou incapacidade de exprimirse bem etc Esses dois objetos de análise da transmissão indireta são pro funda e fundamentalmente diferentes Num caso o sentido é decomposto em constituintes semânticos em elementos obje tivos no outro a própria enunciação enquanto tal é analisada em níveis lingüísticoestilísticos A segunda tendência levada ao seu extremo lógico corresponderia a uma análise lingüística técnica do estilo Entretanto simultaneamente com o que poderia parecer uma análise estilística operase também nesse tipo de transmissão indireta uma análise objetiva do discurso de outrem disso resulta portanto uma decomposição analítica do sentido objetivo do mesmo modo que da sua forma de representação verbal Vamos chamar a primeira variante de discurso indireto analisador do conteúdo e a segunda de discurso indireto analisador da expressão A variante analisadora do conteúdo apreende a enunciação de outrem no plano meramente temático e permanece surda e indiferente a tudo que não tenha significação temática Os aspectos da construção verbal formal que têm uma signi ficação temática isto é que são necessários à compreensão da posi ção semântica do falante são transformados de maneira temática no exemplo citado a construção exclamativa e a expressão de entusiasmo podem ser transmitidas pela palavra muito ou então são integrados no contexto narrativo como uma característica formulada pelo autor A variante analisadora do conteúdo abre grandes possibilidades às tendências à réplica e ao comentário no contexto narrativo ao mesmo tempo que conserva uma distância nítida e estrita entre as palavras do narrador e as palavras citadas Graças a isso ela constitui um instrumento perfeito de transmissão do discurso de outrem em estilo linear A tendência a tematizar o discurso de outrem é incontestavelmente inerente a essa variante e assim ela preserva a integridade e a autonomia da enunciação não tanto em termos sintáticos mas em termos semânticos vimos como uma construção expressiva numa enunciação a ser citada pode ser tematizada Esses 165 resultados contudo só são obtidos ao preço de uma certa despersonalização do discurso citado A variante analisadora do conteúdo só pode desenvolverse de maneira razoavelmente ampla e substancial num contexto enunciador suficientemente racional e dogmático no qual de qualquer forma se manifesta um forte interesse pelo conteúdo semântico e onde o autor afirma através de suas próprias palavras com sua própria personalidade uma posição de forte conteúdo semântico Quando isso não ocorre quando ou a própria linguagem do autor é ela mesma cheia de cor e individualizada ou quando a fala é passada diretamente a algum narrador de mesma envergadura essa variante terá apenas uma significação secundária e ocasional como acontece por exemplo em Gógol Dostoievski e muitos outros De uma maneira geral essa variante é pouco desenvolvida em russo Ela é encontrada essencialmente nos contextos epistemoló gicos ou retóricos de natureza científica filosófica política etc nos quais o autor é levado a expor as opiniões de outrem sobre um determinado assunto a opôlas e delimitálas Ela é rara na expressão literária Só adquire uma certa importância naqueles autores que não hesitam em dar às suas palavras uma orientação e um peso semânticos como por exemplo em Turguiéniev e particularmente em Tolstói Mas mesmo aí não encontramos a riqueza e a variedade que essa variante desenvolveu em francês e em alemão Passemos à variante analisadora da expressão Ela integra na construção indireta as palavras e as maneiras de dizer do discurso de outrem que caracterizam a sua configuração subjetiva e estilística enquanto expressão Essas palavras e maneiras de dizer são introduzidas de tal forma que sua especificidade sua subjetividade seu caráter típico são claramente percebidos Na maioria das vezes elas são colocadas abertamente entre aspas Aqui estão quatro exemplos 1 A respeito do morto Grigori declarou fazendo o sinal da cruz que o tipo tinha qualidades mas que era estúpido e arrasado pela doença e pior ainda que ele era um descrente e que tinha sido Fiódor Pávlovitch e seu filho mais velho que lhe tinham ensinado essa descrença Dostoievski Os Irmãos Karamázov Nesse exemplo e nos que seguem é o autor quem grifa NdTfr 166 2 A mesma coisa aconteceu também com os poloneses eles chegaram com uma demonstração de orgulho e independência Afirmaram em alta voz que em primeiro lugar estavam a serviço da Coroa e que o senhor Mitia oferecera 3000 rublos para comprar a honra deles e que eles tinham visto com seus próprios olhos largas somas de dinheiro nas mãos deles Ibid 3 Krassótkin negou orgulhosamente a acusação dando a enten der que seria realmente uma vergonha nos dias que correm brincar de cavalinho com os meninos da sua idade todos com 13 anos mas que ele fizera isso pelos garotos porque ele os amava e não reconhecia a ninguém o direito de contestar os seus sentimentos Ibid 4 Ele encontrou Nastasia Filíppovna num estado próximo da completa loucura dava gritos tremia berrava que Rogójin estava escondido no jardim na sua própria casa que ela acabava de vêlo que ele ia matála cortarlhe a garganta Dostoievski O Idiota Aqui a construção de discurso indireto retém a entoação expressiva da mensagem original As palavras e expressões de outrem integrados no discurso indi reto e percebidos na sua especificidade particularmente quando são postos entre aspas sofrem um estranhamento para usar a linguagem dos formalistas um estranhamento que se dá justamente na direção que convém às necessidades do autor elas adquirem relevo sua coloração se destaca mais claramente mas ao mesmo tempo elas se acomodam aos matizes da atitude do autor sua ironia humor etc Convém distinguir essa variante do discurso indireto dos casos de passagem do discurso indireto ao direto sem modificações se bem que suas funções sejam praticamente idênticas quando o Um exemplo em português de Eça de Queirós Fatigou então Amaro toda uma semana com uma ternura pueril Lembravalhe cada meia hora que era o papá do seu Carlinhos O Crime do Padre Amaro Outro exemplo este de Fialho de Almeida perguntando se estava por lá um rapazote a modos encorpado barba nenhuma uma cicatriz no queixo dum carbúnculo o filho dela O País das Uvas NdT 167 discurso direto continua o indireto a subjetividade do discurso aparece com maior nitidez e no sentido que convém ao autor Por exemplo 1 Trífon Boríssovitch tentou como pôde ser evasivo mas depois de ter sido questionado pelos camponeses acabou confes sando que tinha achado a nota de cem rublos acrescentou somente que ele tinha no mesmo momento devolvido tudo escrupulosamente a Dmitri Fiódorovitch palavra de honra só que vocês vêem o cavalheiro como estava naquele momento completamente bêbado não consegue lembrarse Dostoievski Os Irmãos Karamázov 2 Apesar de todo o respeito devido à memória do seu finado Bárin ele declarou entre outras coisas que este fora negligente com Mitia e que não educava bem as crianças Sem mim o menino teria sido comido vivo pelos piolhos acrescentou ele recordando episódios da infância de Mitia Ibid Tal ocorrência em que o discurso direto é preparado pelo indireto e emerge como que de dentro dele como as esculturas de Rodin em que a figura só parcialmente emerge da pedra é uma das inumeráveis variantes do discurso direto tratado pictoricamente Essa é portanto a natureza da variante analisadora da expressão do discurso indireto Ela cria efeitos pictóricos extremamente originais na transmissão do discurso citado Essa variante supõe um alto grau de individualização da enunciação citada na consciência lingüística e a capacidade de perceber com discriminação as representa ções lingüísticas da enunciação delas extraindo o seu sentido objetivo Isso é incompatível com a apreensão autoritária ou racionalista da enunciação de outrem Enquanto procedi mento estilístico essa variante só pode enraizarse na língua sobre Um exemplo de Eça de Queirós Havia e o pároco leulhe então em confidência uma carta que tinha ao lado Era do cônego que escrevia da Vieira dizendo que a São Joaneira tinha já trinta banhos e queria voltar Eu acrescentava perco quase todas as manhãs três quatro banhos de propósito para os espaçar e dar tempo porque cá a minha mulher já sabe que eu sem os meus cinqüenta não vai Op cit NdT 168 o terreno do individualismo crítico e realista ao passo que a variante analisadora do conteúdo é justamente característica do individua lismo racionalista Na história da língua russa esse último perío do é praticamente inexistente E isso explica a absoluta predomi nância da variante analisadora da expressão sobre a variante analisadora do conteúdo em russo Além disso a ausência de consecutio temporum em russo é muito favorável ao desenvolvimento daquela tendência Vemos assim que as nossas duas variantes embora unidas por uma tendência analítica geral do esquema exprimem contudo abordagens lingüísticas divergentes do discurso de outrem e da personalidade do falante Para a primeira variante a personalidade do falante só existe enquanto ocupa uma posição semântica determinada cognitiva ética moral de forma de vida e fora dessa posição transmitida de maneira estritamente objetiva ela não existe para o transmissor Não há aqui condições para que a individualidade do falante se cristalize numa imagem O oposto é verdadeiro em relação à segunda variante na qual a individualidade do falante é apresentada como maneira subjetiva individual ou tipológica como modo de pensar e falar o que implica ao mesmo tempo um julgamento de valor do autor sobre esse modo Aqui a individualidade do falante se cristaliza ao ponto de formar uma imagem Em russo podese ainda mencionar uma terceira variante bas tante importante da construção indireta Ela é essencialmente utilizada para a transmissão do discurso interior dos pensamentos e sentimentos da personagem Ela trata o discurso de outrem com bastante liberdade abreviao indicando freqüentemente apenas os seus temas e suas dominantes por isso pode ser chamado impressionista A entoação do autor flutua livre e facilmente sobre a sua estrutura fluída Eis um exemplo clássico dessa variante impressionista tirado do Cavaleiro de Bronze de Púchkin Em que pensava ele Que era pobre que precisava tentar conquistar a independência e o respeito pelo esforço que Deus bem podia lhe ter concedido um pouco mais de inteligência e de dinheiro Pois não existem aqueles afortunados preguiçosos estúpidos para quem a vida é uma moleza Que ele estivera em serviço durante dois anos ao todo pensava também que o tempo não estava melhorando que o rio continuava subindo que as pontes sobre o Neva estariam muito provavelmente levantadas e que ele estaria dois ou três dias separado da sua Paracha 169 Observamos por esse exemplo que a variante impressionista do discurso indireto se encontra a meio caminho entre a variante analisadora do conteúdo e a variante analisadora da expressão Em alguns momentos operase uma análise objetiva bem nítida Algumas das palavras e das maneiras de dizer originaramse claramente na mente do herói Eugênio embora não se enfatize a sua especificidade Mas o que se percebe mais é a ironia do autor sua acentuação a atividade empregada para organizar e abreviar o conteúdo a expressar Passemos agora ao esquema do discurso direto que é muito bem elaborado na língua literária russa e possui uma imensa variedade de modificações Desde os blocos maciços inertes indecomponíveis do discurso direto tal como é encontrado nos textos russos antigos até aos procedimentos flexíveis e freqüentemente ambíguos utilizados para inserir o discurso direto no seu contexto na língua contemporânea desenrolase o longo e instrutivo caminho do seu desenvolvimento histórico Mas absternosemos não só de examinar essa caminhada histórica como também de fazer uma descrição sincrônica das variantes efetivas do discurso direto na língua literária Limitarnos emos simplesmente àquelas variantes nas quais se efetua uma troca de entoações nas quais se constata um estágio recíproco entre o discurso narrativo e o discurso citado Além disso não nos interessaremos tanto pelos casos em que o discurso narrativo avança contra a enunciação citada contaminandoa com suas entoações próprias como por aqueles em que ao contrário as palavras citadas espalham se e enxameiam por todo o contexto narrativo tornandoo flexível e ambíguo Aliás não é sempre possível diferenciar os dois casos muitas vezes o contágio revelase justamente recíproco A primeira orientação da interrelação dinâmica caracterizada pela imposição do autor pode ser chamada discurso direto preparado5 5 Não nos ocuparemos aqui dos procedimentos mais primitivos de que dispõe o autor para replicar ao discurso direto e comentá lo a utilização do itálico que equivale a um deslocamento de acento a inserção aqui e ali de observações e conclusões entre parênteses ou mesmo simplesmente o ponto de exclamação de interrogação o sic etc Para atenuar a inércia do discurso direto outro procedimento muito eficaz consiste nas várias 170 O caso do discurso direto que emerge do indireto que já expusemos pertence a essa categoria Uma ocorrência particularmente interessante e de largo uso dessa variante é a emergência do discurso direto de dentro do indireto livre Como a natureza deste último é meio narrativa meio transmissora da pala vra de outrem ele já prepara a percepção do discurso direto Os temas básicos do discurso direto que virá são antecipados pelo contexto e coloridos pelas entoações do autor Dessa maneira as fronteiras da enunciação de outrem são bastante enfraquecidas A descrição do estado de espírito do príncipe Míchkin às beiras de um ataque epiléptico em O Idiota de Dostoievski constitui um exemplo clássico dessa variante Ela cobre na verdade quase todo o quinto capítulo da segunda parte dessa obra encontramse aí também magníficos exemplos de discurso indireto livre Aqui o discurso direto do príncipe só ecoa no seu mundo pessoal pois a narrativa é conduzida pelo autor dentro dos limites do horizonte do príncipe O discurso citado destacase sobre um fundo per ceptivo que pertence metade ao autor e metade ao herói Entretanto fica perfeitamente claro para nós que uma infiltração profunda das entoações do autor no discurso direto é quase sempre acompanhada por um enfraquecimento da objetividade do contexto narrativo Outra modificação na mesma direção pode ser denomi nada discurso direto esvaziado O contexto narrativo aqui é cons truído de tal forma que a caracterização objetiva do herói feita pelo autor lança espessas sombras sobre o seu discurso direto As apreciações e o valor emocional de que sua representação obje tiva está carregada transmitemse às palavras do herói O peso semântico das palavras citadas diminui mas em compensação sua significação caracterizadora se reforça da mesma forma que sua tonalidade ou seu valor típico De maneira semelhante quando reconhecemos uma personagem cômica no palco por seu estilo de maquilagem sua roupa e sua atitude geral já estamos prontos a rir mesmo antes de apreender o sentido de suas palavras É assim que se apresenta na maior parte das vezes o discurso direto em Gógol e nos representantes da chamada escola natural Na sua primeira obra Dostoievski precisamente esforçouse por dar vida a esse discurso direto particularizado possibilidades de colocação do verbo introdutor associado por vezes a observações réplicas e comentários 171 A preparação do discurso citado e a antecipação de seu tema e de seus valores e inflexões na narração pode de tal forma colorir o contexto narrativo com as tonalidades do herói que ele termina por assemelharse ao discurso citado embora conservando as entoações próprias ao autor Conduzir a narrativa exclusiva mente dentro dos limites da ótica do herói o que como vimos Bally reprova em Zola não somente de um ponto de vista espácio temporal mas também do ponto de vista dos valores e entoações cria um tipo extremamente original de pano de fundo perceptivo para as enunciações citadas Dános o direito de falar de uma variante especial o discurso citado antecipado e disseminado oculto no contexto narrativo e aparecendo realmente no discurso direto do herói Essa variante é muito utilizada na prosa contempo rânea particularmente em Andriéi Biéli e nos escritores que sofre ram a sua influência por exemplo no Nicolau Kurbov de Ehrenburg Os exemplos clássicos entretanto devem ser procurados na primeira e segunda fase de Dostoievski na sua última fase essa variante é encontrada com menos freqüência Vamos deternos na análise da sua Skiviérni anekdot Uma História Desagradável Toda a narrativa poderia ser posta entre aspas como se fosse de um narrador embora isso não seja marcado temática ou composicionalmente Mas no interior da narrativa praticamente cada epíteto cada definição ou julgamento de valor poderiam também estar entre aspas como se tivessem saído da consciência de uma ou outra das personagens Eis uma passagem curta tirada do começo da narrativa Naquele tempo numa noite de inverno clara e gelada por volta da meianoite três cavalheiros extremamente respeitáveis estavam sentados num aposento confortável e até mesmo luxuosamente arrumado numa soberba casa de dois andares situada em São Petersburgo e estavam ocupados em uma conversa séria e de alto nível sobre um assunto extremamente interessante Eles estavam sentados à volta de uma mesinha cada um numa soberba poltrona macia e durante as pausas na conversa eles confortavelmente bebericavam champanha Se fizéssemos abstração do notável e complexo jogo de entoações nessa passagem seríamos levados a considerála como muito medíocre e mesmo nula do ponto de vista estilístico De fato nas poucas linhas da descrição encontrase duas vezes e epíteto 172 soberbo duas vezes confortável e os outros epítetos são luxuoso séria alto nível e extremamente interessante Um estilo como esse só poderia merecer uma condenação severa se considerássemos que ele emana seriamente do autor como em Turguiéniev ou Tolstói ou mesmo do narrador mas dele apenas como na narrativa monolítica em primeira pessoa Entretanto é impossível considerar esse trecho dessa forma Cada um desses qualificativos medíocres pálidos vazios de sentido constitui uma arena em que se defrontam e lutam duas entoações dois pontos de vista dois discursos Vamos examinar ainda alguns excertos em que se encontra caracterizado o dono da casa o conselheiro secreto Nikíforov Duas palavras acerca dele começara sua carreira como pequeno funcionário seguira sua rotinazinha tranqüilamente durante quarenta e cinco anos ininterruptos Detestava particularmente a desordem e o entusiasmo considerava a sua desordem a de uma certa mulher como um fato de costumes e pelo fim da sua vida enterrarase completamente num conforto suave e preguiçoso e num isolamento sistemático Sua aparência exterior era extremamente correta e bem cuidada ele parecia mais jovem do que era conservarase bem e prometia viver ainda por muito tempo tinha maneiras de um perfeito cavalheiro Seu emprego era bastante confortável ele era o chefe de alguma coisa e dava a sua assinatura de vez em quando Em uma palavra era considerado um homem decididamente superior Ele tinha uma única paixão ou melhor dizendo um único desejo ardente o de possuir sua própria casa uma casa de nobre não de burguês Seu desejo finalmente se realizara Vemos agora claramente de onde vêm esses epítetos medíocres e sem originalidade mas que têm e quanto classe na passa gem citada Eles saíram da mente do general evocam o seu peque no conforto sua pequena casa particular sua situação seu grau enfim a consciência do conselheiro secreto Nikíforov um ho mem bemsucedido Eles poderiam ter sido postos entre aspas como o discurso citado de Nikíforov Mas não pertencem só a ele Afinal de contas a história está sendo contada por um narrador que parecia ser solidário com os generais que lhes faz reverências adota a atitude deles em todas as coisas fala a sua língua mas ao mesmo tempo provocativamente excedese expondo todas as suas enunciações reais e potenciais à ironia e desprezo do autor Por cada um desses epítetos banais o autor através do seu narrador ironiza o 173 seu herói e tornao ridículo É isso que cria o complexo jogo de entoações na passagem citada um jogo de entoações que a leitura em voz alta dificilmente permite reproduzir A seqüência da narrativa é inteiramente construída em função da perspectiva da outra personagem principal Pralinski Ela é toda semeada de epítetos de apreciações dessa personagem que constituem o seu discurso oculto e é sobre esse fundo impregnado da ironia do autor que se destaca o seu discurso direto efetivo entre aspas discurso tanto exterior como interior Assim praticamente cada palavra dessa narrativa pertence simultaneamente do ponto de vista da sua expressividade da sua tonalidade emocional do seu relevo na frase a dois contextos que se entrecruzam a dois discursos o discurso do autornarrador irônico gozador e o da personagem que não tem nada de irônico É essa simultânea participação de dois discursos diferentemente orientados na sua expressão que explica a particularidade das construções de frases as rupturas de sintaxe e a particularidade do estilo Nos limites de um único desses discursos a frase seria construída de outra maneira e outro seria o estilo Estamos em presença de um exemplo típico de um fenômeno lingüístico raramente estudado as interferências de discurso Em russo esse fenômeno da interferência de discurso se realiza parcialmente no quadro da variante analisadora da expressão do discurso indireto nos casos relativamente raros em que o discurso indireto conserva não apenas palavras e expressões isoladas mas também a estrutura expressiva da enunciação citada Era esse o caso no nosso quarto exemplo em que a construção exclamativa da enunciação direta passou para o discurso indireto embora numa forma enfraquecida Resulta disso uma certa discordância entre a entoação calmamente narrativa conforme às leis de transmissão analítica do autor e a entoação histérica excitada da heroína às beiras da loucura Daí o caráter deformado da configuração sintática dessa frase que serve a dois senhores pertencendo ao mesmo tempo a dois discursos O discurso indireto entretanto não fornece as Um exemplo em português Passeia às vezes pelas ruas centrais do Porto ao cair da tarde uma estranha figura A bem dizer duas estranhas figuras Porque menina Olímpia nunca deixou de ter criada aliás sempre a mesma e a sua criada a acompanha nessas lentas digressões Lentas Não só lentas lentas e solenes majestosas sistematizadas rituais quer pelo ar de menina Olímpia quando passeia quer pela ordem a que submete esses passeios José Régio Menina Olímpia e a Sua Criada Belarmina in História de Mulheres NdT 174 condições para a constituição de nada que se assemelhe a uma expressão estilística distinta e duradoura desse fenômeno de interferência de discurso O discurso indireto livre constitui o caso mais importante e sintaticamente mais bem fixado pelo menos em francês de convergência interferente de dois discursos com diversa orientação do ponto de vista da entoação Dada a sua excepcional importância vamos consagrarlhe todo o próximo capítulo Isso nos dará a oportunidade de examinar o estado dessa questão na lingüística romântica e germânica A controvérsia corrente sobre o discurso indireto livre as opiniões enunciadas a seu respeito particularmente na escola de Vossler apresentam um grande interesse metodológico e devem portanto ser submetidas à nossa análise crítica Ainda dentro dos objetivos do presente capítulo vamos examinar alguns fatos aparentados em russo ao discurso indireto livre e que provavelmente podem ter servido de base para o seu surgimento e sua formação Nós nos interessamos até o momento apenas pelas variantes com duplo sentido com duas faces do discurso direto tal como é utilizado na literatura e por isso é que não tocamos numa das suas variantes lineares mais importantes o discurso direto retórico Essa variante de valor persuasivo com suas diversas variações tem grande significação sociológica Não podemos demorarnos nessas formas mas vamos dar atenção a algumas manifestações associadas com a retórica Há nas relações sociais aquilo que é chamado a pergunta retórica ou a exclamação retórica Alguns casos desse fenômeno são especialmente interessantes por causa do problema da sua locali zação contextual Eles situamse de alguma forma na própria fronteira do discurso narrativo e do discurso citado usual mente discurso interior e entram muitas vezes diretamente em um ou outro discurso Assim podem ser interpretados como uma pergunta ou exclamação da parte do autor mas também ao mesmo tempo como pergunta ou exclamação da parte da personagem dirigida a si mesma Eis um exemplo de pergunta Mas quem então à luz da lua em meio a um silêncio profundo caminha com passos furtivos O Russo bruscamente percebeu Diante dos seus olhos fazendolhe uma saudação terna e muda está uma jovem circassiana Ele olhaa em silêncio e pensa É um sonho 175 ilusório o jogo mentiroso dos meus sentidos fatigados Púchkin O Prisioneiro do Cáucaso As últimas palavras interiores do herói respondem de alguma forma à pergunta retórica do autor e esta última pode ser analisada como pergunta do herói no seu próprio discurso interior Eis um exemplo de exclamação Tudo acabou disse o som terrível a natureza diante dele revelou se Adeus liberdade sagrada Ele é um escravo Ibid Uma ocorrência particularmente freqüente em prosa é o caso em que uma pergunta como O que fazer introduz as deliberações interiores do herói ou a narrativa de suas ações constituindo essa questão ao mesmo tempo uma pergunta do autor e a do herói que se encontra em uma situação difícil Entretanto nesse tipo de pergunta e de exclamação é a atitude ativa do autor que predomina é por isso que elas não são colocadas entre aspas O autor em pessoa fica aqui na frente da cena substitui o seu herói servindolhe de portavoz Eis um exemplo Apoiandose sobre suas lanças os cossacos observam o curso sombrio do rio enquanto ocultos pelo nevoeiro um bandido e sua arma passam flutuando O que pensam vocês cossacos Recordam batalhas de anos passados Adeus livres aldeias fronteiriças casa paterna tranqüilo Don guerra e jovens bonitas O inimigo oculto alcançou nossas margens a flecha deixa o cartaz assobia e o cossaco tomba ensagüentado da barricada Ibid Aqui o autor se apresenta no lugar do seu herói diz em seu lugar o que ele poderia ou deveria dizer o que convém dizer Púchkin diz adeus à pátria pelo cossaco o que o cossaco não pode fazer naturalmente Esse tomar a palavra em nome de outro já está muito próximo do discurso indireto livre Vamos denominar esse caso discurso direto substituído Naturalmente uma tal substituição supõe um paralelismo de entoações correndo na mesma direção a entoação do discurso do autor e o discurso substituído do herói o que ele poderia ou deveria pronunciar e do qual o autor se encarrega por isso não há nenhuma interferência nesse caso Quando há solidariedade total entre autor e herói nos limites de um contexto retoricamente construído no que concerne às apreciações e entoações a retórica do autor e a do herói podem eventualmente sobreporse uma à outra suas vozes então fundemse e criamse 176 longos períodos que pertencem simultaneamente a narrativa do autor e ao discurso interior por vezes mesmo exterior do herói Resulta disso um fenômeno que não se pode praticamente mais distinguir do discurso indireto livre Nele só falta a interferência Foi sobre a base da retórica byroniana do jovem Púchkin que se constituiu pela primeira vez ao que parece o discurso indireto livre Em O Prisioneiro do Cáucaso o autor é completamente solidário de seu herói nas suas apreciações e entoações A narrativa é construída na tonalidade do herói o discurso do herói na tonalidade do autor Encontramos o seguinte caso por exemplo Lá embaixo alinhamse os cimos idênticos das colinas entre elas um caminho isolado perdese ao longe sinistro O jovem peito do prisioneiro estava agitado por pensamentos opressivos O caminho longínquo leva à Rússia onde ele passou sua ardente juventude tão orgulhosa e sem cuidados onde ele conheceu as primeiras alegrias onde encontrou tanta beleza onde passara tanto sofrimento onde destruíra toda esperança toda alegria e desejo por sua vida agitada Aprendeu a conhecer as pessoas e o mundo conheceu o preço de uma vida incerta No coração dos homens encontrou a traição nas aspirações amorosas um sonho insensato Liberdade Apenas por ti ele prosseguia na sua busca neste mundo sublunar Tudo passou ele não vê nada no mundo que possa trazerlhe a esperança E vós últimos sonhos vós também lhe escapais Ele é um escravo Ibid Aqui são claramente os pensamentos opressivos do próprio prisioneiro que são expressos Tratase do seu discurso embora formalmente dito pelo autor Se substituirmos o pronome pessoal ele por eu e mudarmos as formas verbais correspondentes não resultará nenhuma incoerência ou dissonância estilística ou outra qualquer É sintomático que esse discurso contenha após trofes na segunda pessoa à liberdade aos sonhos que acentuam ainda mais a identificação do autor com o herói Do ponto de vista estilístico e semântico esse discurso do herói não se distingue em nada do discurso retórico direto que ele pronuncia na segunda parte do poema Esqueceme eu não sou digno do teu amor dos teus anseios Sem embriaguez sem desejos eu definho vítima das paixões Por que não apareceste mais cedo aos meus olhos quando eu cria na esperança e nos sonhos embriagadores Muito tarde Estou morto para a felicidade as miragens da esperança já se dissiparam Ibid 177 Todos os autores que escreveram sobre o discurso indireto livre exceto talvez unicamente Bally reconheceriam no nosso exemplo um espécimen genuíno Nós contudo inclinamonos a considerar que se trata de um discurso por substituição É verdade que daí ao discurso indireto livre só há um passo E Puchkin deu esse passo quando se separou de seus heróis opondolhes um contexto narrativo mais objetivo marcado por suas próprias apreciações e entoações No exemplo que utilizamos falta a interferência entre o discurso narrativo e o discurso citado e conseqüentemente os índices gramaticais e sintáticos que caracterizam o discurso indireto livre para distinguilo do contexto narrativo circundante Com efeito nesse caso preciso identificamos o discurso do prisioneiro graças a índices puramente semânticos Não percebemos aqui a convergência de dois discursos diferentemente orientados não percebemos a flexibilidade do discurso citado que resiste por trás da transmissão pelo autor Para mostrar afinal o que é realmente o discurso indireto livre forneceremos um notável exemplo tirado de Poltava de Púchkin Terminaremos com ele este capítulo Mas ele Kotchubei escondeu no fundo do seu coração uma cólera temerária Na sua dor privado de forças seus pensamentos voltamse agora para o túmulo Não quer mal a Mazepa sua filha é a única culpa Mas a ela também perdoa que ela responda diante de Deus o ter esquecido o céu e a lei o ter lançado a vergonha sobre a família Entretanto com seu olhar de água ele procura no círculo dos seus familiares companheiros audazes inquebrantáveis incorruptíveis Transcrevemos a seguir uma citação que Mattoso Câmara Jr usa para exemplificar o emprego do discurso indireto livre em Machado de Assis Minha mãe foi achálo à beira do poço e intimoulhe que vivesse Que maluquice era aquela de parecer que ia ficar desgraçado por causa de uma gratificação menos e perder um emprego interino Não senhor devia ser homem pai de família imitar a mulher e a filha D Casmurro p 48 apud Mattoso Câmara Jr O Estilo Indireto Livre em Machado de Assis in Miscelânea de Estudos em Honra de Antenor Nascentes Rio 1941 p 22 Os grifos são de Mattoso NdT 178 CAPÍTULO 11 DISCURSO INDIRETO LIVRE EM FRANCÊS ALEMÃO E RUSSO Diferentes autores propuseram diferentes termos para designar o fenômeno do discurso indireto livre De fato cada um daqueles que escreveram sobre esse assunto propuseram seu próprio termo Nós temos usado e continuaremos a fazêlo o termo de Gertraud Lerch Uneigentliche direkte Rede como o mais neutro de todos os termos propostos e o que implica o mínimo de teorização Na sua aplicação ao russo e ao alemão esse termo é irrepreensível É apenas em francês que o seu uso pode levantar dúvidas1 Na verdade o termo alemão usado por G Lerch conservase mais fielmente na tradução norteamericana que usa quasi direct discourse do que no discurso indireto livre que a tradução francesa adota e que nós também temos empregado A nossa escolha devese ao fato de termos preferido manter a expressão que já se firmou na literatura especializada em português em vez de introduzir uma nova Vejase por exemplo Mattoso Câmara Jr O Discurso Indireto Livre em Machado de Assis Op cit p 1930 NdT 1 Eis aqui alguns exemplos de discurso indireto livre em francês 1 Il protesta Son père la haïssait Em discurso direto seria Il protesta et sécria Mon père te hait Em discurso indireto Il protesta et sécria que son père la haïssait Em discurso indireto livre Il protesta Son père sécriattil la haïssait Exemplo de Balzac citado por G Lerch 179 A primeira menção desse fenômeno como um forma espe cial de citação do discurso ao lado do discurso direto e indireto devese a Tobler em 1887 Zeitschrift für Romanische Philologie XI 437 Tobler definiu o discurso indireto livre como uma peculiar mistura de discurso direto e indireto eigentümliche Mischung direkter und indirekter Rede Essa forma mista segundo Tobler deriva o seu tom e a ordem das palavras do discurso direto e os tempos verbais e pessoas do discurso indireto Como uma mera descrição essa definição é aceitável De fato do ponto de vista superficial da descrição comparativa de propriedades Tobler indicou corretamente as semelhanças e diferenças entre a forma em questão e os discursos direto e indireto Mas a palavra mistura parecenos totalmente inaceitável aqui uma vez que implica uma explicação de tipo genético formado de uma mistura de o que dificilmente pode ser provado Mesmo do ponto de vista estritamente descritivo o termo é inexato já que não nos encontramos diante de uma simples mistura mecânica da soma aritmética de duas formas mas antes de uma tendência completamente nova positiva na apreensão ativa da enunciação de outrem de uma orientação particular da interação do discurso narrativo e do discurso citado Tobler permanece insensível a essa dinâmica e registra apenas os índices abstratos que aparecem nos esquemas Essa é portanto a definição de Tobler Mas como explica ele a aparição dessa forma O falante contando fatos passados introduz a enunciação de um terceiro sob uma forma independente da narrativa isto é na forma que ela teve no passado Fazendo isso o falante transforma o presente da enunciação em imperfeito para mostrar que a 2 Tout le jour il avait loeil au guet et la nuit si quelque chat faisait du bruit le chat prenait largent La Fontaine 3 En vain il le colonel parla de la sauvagerie du pays et de la difficulté pour une femme dy voyager elle miss Lydia ne craignait rien elle aimait pardessus tout à voyager à cheval elle se faisait une fête de coucher au bivac elle menaçait daller en Asie Mineure Bref elle avait réponse à tout car jamais Anglaise navait été en Corse donc elle devait y aller P Mérimée Colomba 180 enunciação é contemporânea dos acontecimentos relatados Depois ele realiza outras transformações das formas pessoais do verbo dos pronomes para que não se pense que se trata da enunciação do próprio narrador 4 Resté seul dans lembrasure de la fenêtre le cardinal sy tint immobile un instant encore Et ses bras frémissants se tendirent en un geste dimploration O Dieu puisque ce médecin sen allait ainsi heureux de sauver lembarras de son impuissance ô Dieu que ne faisiezvous un miracle pour montrer léclat de votre pouvoir sans bornes Un miracle un miracle Il le demandait du fond de sons âme de croyant Zola Rome Os exemplos 3 e 4 são citados e discutidos por Kalepky e Lorck Essa explicação de Tobler fundase sobre um esquema incorreto mas muito difundido na velha escola lingüística isto é se o falante tivesse consciente e premeditadamente planejado introduzir a nova forma quais teriam sido o seu raciocínio e a sua motivação Mas mesmo admitindo que esse esquema fosse aceitável as motivações do falante de Tobler não são nem muito convincentes nem muito claras se ele quer conservar à enunciação a autonomia que ela teve no passado não seria melhor simplesmente transmitila sob a forma de discurso direto Não haveria então nenhuma dúvida de que a enunciação se reporta ao passado e pertence ao herói não ao narrador ou ainda se se escolhe o imperfeito e a terceira pessoa não seria mais simples utilizar uma vez a forma do discurso indireto O problema é que o que é básico na nossa forma a interrelação completamente nova entre o discurso narrativo e o discurso citado é exatamente o que os motivos de Tobler não conseguem explicar Para ele tratase simplesmente de duas formas velhas das quais ele quer obter de qualquer forma uma nova Na nossa opinião o que pode na melhor das hipóteses ser explicado por esse tipo de argumento sobre as motivações do falante é meramente o uso em uma ou outra concreta ocorrência de uma forma já existente mas em nenhuma circunstância poderá explicar a criação de uma nova forma lingüística A expressão plena e íntegra das motivações e intenções do falante é limitada de um lado pelas possibilidades gramaticais efetivas e de outro pelas condições da comunicação sócioverbal predominantes num determinado grupo Essas possibilidades e condições são dadas e delimitam o horizonte lingüístico do falante Ele não poderia por si só alargálo 181 Não importa quais sejam as intenções que o falante pre tenda transmitir quais os erros que ele cometa como ele analise as formas mistureas ou combineas ele nunca criará um novo esquema lingüístico nem uma nova tendência na comunicação sócioverbal As suas intenções subjetivas terão um caráter criativo apenas quando houver nelas alguma coisa que coincida com tendências na comunicação sócioverbal dos falantes em processo de formação de evolução e essas tendências dependem de fatores sócio econômicos Para que se constituísse essa forma de percepção completamente nova do discurso de outrem que encontrou sua expressão no discurso indireto livre foi preciso que se produzisse alguma mudança alguma comoção no interior as relações sócio verbais e da orientação recíproca das enunciações Uma vez constituída essa forma começa a integrar o círculo das possibilidades lingüísticas dentro de cujos limites apenas podem determinarse motivarse e realizarse de maneira produtiva as intenções verbais individuais dos falantes Passemos agora a Kalepky que igualmente estudou o discurso indireto livre Zeitschrift für Romanische Philologie 1899 p 491513 Ele reconheceu o discurso indireto livre como uma forma completamente autônoma de citação do discurso de outrem e definiuo como um discurso oculto ou velado verschleierte Rede A significação lingüística dessa forma reside no fato de que é preciso adivinhar quem tem a palavra A análise de Kalepky constitui incontestavelmente um grande passo à frente no estudo do nosso problema Em lugar da combinação mecanicista das propriedades abstratas de dois esquemas sintáticos ele esforçase por apreender uma nova orientação estilística positiva dessa forma Kalepky também interpretou corretamente a dualidade do discurso indireto livre Entretanto definiua impropriamente É impossível estar de acordo com ele quando diz que nos encon tramos em presença de um discurso mascarado e que apenas o fato de ter que identificar o falante é que dá interesse a esse recurso gramatical É evidente que ninguém fundamenta o ato de compreensão em reflexões gramaticais abstratas Fica imediatamente claro a qualquer um que de acordo com o sentido é o herói que fala As dificuldades só são levantadas pelo gramático Além disso nossa forma não oferece de modo algum um dilema do tipo ou ou ao contrário o que faz dela uma forma específica é o fato de o herói e o autor exprimiremse conjuntamente de nos limites de uma mesma e única construção ouviremse ressoar as entoações de 182 duas vozes diferentes Já vimos que as estruturas da língua se prestam igualmente ao fenômeno da camuflagem prolongada do discurso de outrem Vimos que a ação camuflada desse discurso citado encaixado no contexto narrativo está na origem de um fenômeno gramatical e estilístico específico Mas tratase aí de uma outra variante do discurso citado O discurso indireto livre funciona de rosto descoberto embora tenha duas faces como Jano A insuficiência metodológica principal de Kalepky reside no fato de que ele explica o fenômeno lingüístico que nos ocupa nos limites da consciência individual procura suas raízes psíquicas e seus efeitos subjetivoestéticos Retornaremos à crítica dos fundamentos dessa abordagem quando examinarmos as posições dos vosslerianos Lorck E Lerch G Lerch Foi em 1912 que Bally se manifestou sobre essa questão Germanischromanische Monatsschrift IV 549 ss 597 ss Em 1914 em resposta à polêmica levantada por Kalepky ele voltou ao problema em um artigo sobre os seus fundamentos intitulado Figures de Pensée et Formes Linguistiques GrM IV 1914 405 ss 546 ss A substância da posição de Bally resumese no seguinte ele considera o discurso indireto livre como uma variedade nova tardia da forma clássica do discurso indireto Essa variante se formou segundo ele da seguinte maneira il disait quil était malade il disait il était malade il était malade disaitil2 A queda da conjunção que explicase segundo Bally por uma tendência mais recente própria da língua a preferir as combinações paratáticas das proposições às hipotáticas Mais adiante Bally indica que essa variedade do discurso indi reto que ele chama de style indirect libre não constitui uma forma fixada mas está ao contrário em plena evolução tendendo para a forma do discurso direto que constitui o seu limite extre mo Nos casos mais característicos segundo Bally chega a ser difícil determinar onde termina o style indirect libre e onde começa o discours direct Ele considera ser esse o caso no exemplo tirado de Zola que citamos anteriormente Quando o cardeal se dirige a Deus O Dieu que me faisiezvous un miracle o índice do discurso indireto imperfectum é usado simultanea mente com a segunda pessoa como no discurso direto Em 2 A forma intermediária constitui naturalmente uma ficção lingüística 183 alemão Bally vê uma forma análoga ao style indirect libre no style indirect du second type com elisão da conjunção e ordem das palavras do discurso direto Bally estabelece uma discriminação estrita entre as formas lingüísticas e as figuras de pensamento Esse último termo recobre os meios de expressão que são ilógicos do ponto de vista da língua nos quais a relação normal entre o signo lingüístico e sua significação habitual é anulada As figuras de pensamento não podem ser reconhecidas como fenômenos lingüísticos no sen tido estrito do termo com efeito não existem índices lingüís ticos claros e estáveis servindo à sua expressão Pelo contrário os índices lingüísticos correspondentes têm justamente uma significação no sistema da língua diferente daquela que lhes dão as figuras de pensamento Bally relaciona o discurso indireto livre nas suas formas puras a essas figuras de pensamento Com efeito do ponto de vista estritamente gramatical tratase do discurso do autor conforme o sentido é o do herói Mas esse conforme o sentido não é representado por nenhum signo lingüístico particular Estamos pois diante de um fenômeno extralingüístico Essas são as grandes linhas da teoria de Bally Esse lingüista é na nossa época o representante mais destacado do objetivismo abstrato em lingüística Bally hipostasia e torna vivas as formas da língua extraídas graças a uma abstração das ocorrências concretas de discurso na prática cotidiana na literatura nas ciências etc A finalidade dessa abstração dos lingüistas é como mostramos decifrar e em seguida ensinar as línguas estrangeiras mortas Ora eis que vem Bally e dá vida e movimento e essas abstrações lingüísticas o esquema do discurso indireto põese a tender para o esquema do discurso direto o discurso indireto livre constituise em favor dessa passagem Um papel criador é atribuído à queda da conjunção que e do verbo introdutor do discurso citado na constituição dessa nova forma Na realidade não há no sistema de língua abstrata em que se colocam as formas lingüísticas de Bally movimento vida realização A vida começa apenas no momento em que uma enunciação encontra outra isto é quando começa a interação verbal mesmo que não seja direta de pessoa a pessoa mas mediatizada pela literatura3 3 Sobre as formas imediatas e mediatizadas da interação verbal ver o artigo já citado de Iakubinski 184 Uma forma abstrata não tem orientação a orientação recíproca de duas enunciações só muda à medida que muda a apreensão ativa pela consciência lingüística da personalidade que fala na base da sua autonomia semânticoideológica da sua individua lidade verbal A queda da conjunção que não serve para aproximar duas formas abstratas mas para aproximar duas enunciações em toda a plenitude de sua significação Como se uma comporta se abrisse para permitir às entoações do autor que escoem livremente no discurso citado A ruptura metodológica entre as formas lingüísticas e as figuras de pensamento entre langue e parole também resulta do mesmo objetivismo hipostásico De fato as formas lingüísticas como as compreende Bally existem apenas nas gramáticas e nos dicionários onde a sua existência é totalmente legítima mas na realidade viva da língua elas estão profundamente imersas naquilo que do abstrato ponto de vista gramatical é o elemento irracional das figuras de pensée Bally está igualmente errado quando compara a construção alemã do segundo tipo ao discurso indireto livre francês4 Tratase de um erro muito sintomático Do ponto de vista gramatical abstrato a analogia é incontestável mas do ponto de vista das tendências sócioverbais a aproximação não resiste à crítica Com efeito uma única e mesma tendência sócioverbal determinada pelas mesmas condições sócioeconômicas pode manifestarse em diferentes línguas de acordo com sua estrutura gramatical por índices de superfície completamente diferentes Em cada língua o esquema que se revela mais flexível no aspecto em questão é que se põe a evoluir numa determinada direção É esse o caso do discurso indireto em francês do discurso direto em russo e em alemão Passemos agora ao exame do ponto de vista dos vosslerianos Esses lingüistas deslocam o centro de interesse de sua investigação da gramática à estilística e à psicologia das formas lingüísticas às formas de pensamento Como sabemos eles divergem profundamente de Bally no tocante aos princípios Na sua crítica às posições do lingüista genebrino Lorck servindose da terminologia humboldtiana opõe à concepção de língua de Bally como ergon a sua Os dois termos estão em francês no texto NdTf 4 Kalepky notou esse erro de Bally que o corrigiu parcialmente no seu segundo estudo 185 própria concepção como energeia Assim as premissas básicas do subjetivismo individualista opõemse diretamente ao ponto de vista de Bally Entram em cena agora novos fatores para explicar o discurso indireto livre a efetividade na língua a imaginação a sensibilidade o gosto lingüístico etc5 No mesmo ano 1914 ano da polêmica KalepkyBally Eugen Lerch igualmente tornou público seu ponto de vista sobre o discurso indireto livre GrM VI 470 Ele definiuo como discurso enquanto fato Rede als Tatsache O discurso de outrem é transmitido dessa forma como se seu conteúdo fosse um fato relatado pelo próprio autor Comparando os discursos direto indireto e indireto livre do ponto de vista da realidade expressa no seu conteúdo Lerch chega à conclusão de que o discurso indireto livre é o mais próximo da realidade Ele prefereo também do ponto de vista estilístico ao discurso indireto por causa do efeito vívido e concreto que produz Essa é a definição de Lerch E Lorck publicou em 1921 investigações semelhantes sobre o discurso indireto livre num livro intitulado Die Erlebte Rede O Discurso Vivido O livro é dedicado a Vossler Nele Lorck faz também um histórico da questão Lorck define o discurso indireto livre como discurso vivido Zeite wissen und er würde einen Skandal geben eine laute schreckliche Katastrophe so guter Laune der Ordinarius auch sein mochte Die Sekunden dehnten sich martevoll Buddenbrook Jetzt sagte er Buddenbrook Edgarsagte Doktor Mantelsack Ibid 5 Antes de passar à análise da posição dos vosslerianos daremos três exemplos de discurso indireto livre em alemão 1 Der Konsul ging die Hände auf dem Rücken umher und bewegte nervõs die Schultern Er hatte keine Zeit Er war bei Gott überhäuft Sie sollte sich gedulden und sich gefälligst noch fünfzigmal besinnen Thomas Mann os Buddenbrooks 2 Herrn Gosch ging es schlecht mit einer schönen und grossen Armbewegung wies er die Annahme zurück er könne zu den Glücklichen gehören Das beschwerliche Greisenalter nahte heran es war da wie gesagt seine Grube war geschaufelt Er könnte abends kaum noch sein Glas Grog zum Munde führen ohne die Hälfte zu verschütten so machte der Teufel seinen Arm zittern Da nützte kein Fluchen Der Wille triumphierte nicht mehr Ibid 3 Num kreutzte Doktor Mantelsack im Stehen die Beine und blätterte in sei nem Notizbuch Hanno Buddenbrook sass vornüber gebeugt und range un ter dem Tisch die Hände Das B der Buchstabe B war an der Reihe Gleich würde sein Name ertönen er würde aufstehen und nicht eine 186 Ressalta claramente desses exemplos que o discurso indireto livre é inteiramente análogo em termos gramaticais ao russo 1 O Cônsul as mãos às costas ficou passeando e movendo nervosamente os ombros Ele não tinha tempo Estava assoberbado por Deus Ela devia ter paciência e por favor pensar mais cinqüenta vezes 2 As coisas iam mal para o Senhor Gosch com um belo e largo movimento de braço ele recusou a hipótese de que pudesse pertencer aos felizes A incômoda velhice se aproximava estava ali sua cova como se disse estava aberta À noite ele mal podia levar o copo de grogue à boca sem derramar a metade de tanto que o diabo fazia seu braço tremer Aí nenhuma maldição adiantava A vontade já não triunfava mais 3 Aí o Doutor Mantelsack em pé cruzou as pernas e folheou seu livro de anotações Hanno Buddenbrook inclinouse para a frente e torceu as mãos sob a mesa O B tinha chegado a vez do B Logo soaria seu nome e ele daria um vexame uma catástrofe ruidosa e terrível por mais bem humorado que o Professor estivesse Os segundos se alongavam como um martírio Buddenbrook Agora ele dizia Buddenbrook Edgar disse o Doutor Mantelsack Obs Em alemão o discurso indireto indirekte Rede é dado por formas especiais o Conjuntivo I e o Conjuntivo II O primeiro assinala a postura pessoal de quem fala ou escreve a respeito da mensagem de uma terceira pessoa acentuando que comunica a expressão de outrem Usase o Conjuntivo II quando o Conjuntivo I e o Presente têm formas iguais NdT erlebte Rede em contraste com o discurso direto ou discurso repetido gesprochene Rede e com o indireto ou discurso relatado berichtete Rede Lorck expõe sua definição da seguinte maneira Imagi nemos Fausto em cena recitando seu monólogo Habe nun ach Philosophie Juristerei durchaus studiert mit heissem Bemühn O que o herói diz na primeira pessoa um membro do auditório vivencia na terceira E essa transposição que ocorre nas profundezas da atividade mental no ato de apreensão estilisticamente nivela o discurso apreendido à narrativa Se o ouvinte quiser em seguida relatar a um terceiro o discurso de Fausto por ele ouvido e apreendido transmitiloá ou palavra por palavra sob a forma direta Habe nun ach Philosophie ou indireta Faust dass er leiderou er hat leider Mas se ele quiser reviver para si mesmo na sua alma a impressão vívida deixada pela cena que apreendeu evocálaá da forma seguinte Faust hat nun ach Estudei ai Filosofia Leis a fundo com ardente esforço 187 Philosophie ou então ainda já que se trata de impressões passadas Faust hatte nun ach Desta maneira segundo Lorck o discurso indireto livre constitui uma forma direta de representação da apreensão do discurso de outrem do vívido efeito produzido por este por isso convém mal à retransmissão do discurso a uma terceira pessoa Com efeito nessa hipótese a natureza dos fatos relatados seria alterada e ficaria a impressão de que a pessoa fala consigo mesma ou é vítima de alucinações Portanto como seria de esperar o discurso indireto livre não é utilizado na conversação e serve apenas às representações de tipo literário Aí o seu valor estilístico é imenso Na realidade para o artista no processo de criação os seus fantasmas constituem a própria realidade ele não só os vê como também os escuta Ele não lhes dá a palavra como no discurso direto ele os ouve falar E essa impressão viva produzida por vozes ouvidas como em sonho só pode ser diretamente transmitida sob a forma de discurso indireto livre É a forma por excelência do imaginário Por isso essa voz ressoou pela primeira vez no mundo maravilhoso de La Fontaine por isso essa forma constitui um procedimento tão caro a escritores como Balzac e mais particularmente Flaubert que são capazes de imergir e perderse totalmente no mundo criado por sua imaginação É também unicamente à imaginação do leitor que o escritor se dirige quando usa essas formas O que ele procura não é relatar um fato qualquer ou um produto do seu pensamento mas comunicar suas impressões despertar na alma do leitor imagens e representações vívidas Ele não se dirige à razão mas à imagi nação Apenas a inteligência que raciocina e analisa pode tomar a posição de que o autor é quem fala no discurso indireto livre para a imaginação viva é o herói que fala A imaginação é a mãe dessa forma A idéia fundamental de Lorck que ele desenvolve também nos seus outros trabalhos6 se reduz ao fato de que na língua o papel criador pertence não à razão mas justamente à imaginação Somente as formas já criadas pela imaginação firmemente constituídas fixadas e por isso abandonadas pela alma viva desta Fausto ai estudou Filosofia Fausto ai estudara 6 E Lorck Passé défini imparfait passé indéfini Eine grammatischpsychologische Studie von E Lerch 188 última entram no domínio regido pela razão esta não cria nada por si só A língua segundo Lorck não é um ser acabado ergon mas um devir permanente e um acontecimento vivo energeia Não se trata de um meio ou de um instrumento que serve para atingir fins exteriores a ele mas de um organismo vivo funcionando em si e para si E essa autosuficiência criadora da língua manifestase na imaginação lingüística A imaginação sentese no seu elemento no seio da língua é o seu elemento vital nativo A língua não constitui para a imaginação um meio ela é a carne da sua carne e o sangue do seu sangue A imaginação contentase de brincar com a língua por prazer Um autor como Bally aborda a língua do ponto de vista da razão e por isso é incapaz de compreender aquelas formas que ainda estão vivas nas quais bate ainda o pulso da evolução que não foram ainda transformadas em um instrumento para o raciocínio Por isso é que Bally não conseguiu apreender a especificidade do discurso indireto livre e não tendo encontrado nele uma identidade compatível com a lógica excluiuo da língua É do ponto de vista da imaginação que Lorck tenta compreender e explicar a forma do imperfeito no discurso indireto livre Lorck distingue o DéfiniDenkakt e o ImparfaitDenkakt Esses atos não se distinguem pelo conteúdo de pensamento mas pela própria forma de sua realização Com o défini o nosso olhar orientase para o exterior para o mundo dos objetos e con teúdos que o pensamento já apreendeu com o imperfeito para o interior para o mundo do pensamento em devir e em processo de constituição Os définiDenkakten têm um caráter de constatação factual os imparfaitDenkakten um caráter de reflexão e de impressão mental em processo de desenvolvimento A imaginação reconstitui neles o passado vivo Lorck analisa o seguinte exemplo LIrlande poussa un grand cri de soulagement mais la Chambre des Lords six jours plus tard repoussait le Bil Gladstone tombait Revue des Deux Mondes mai 1980 p 19 Se diz Lorck substituirmos os dois imperfeitos pelo pas sado definido perceberemos claramente a diferença Gladstone A Irlanda soltou um grande grito de alívio mas a Câmara dos Lordes seis dias mais tarde rejeitava o Bill Gladstone caíaNdT 189 tombait é colorido por uma tonalidade emocional enquanto Gladstone tomba soa como uma informação seca e pura mente factual No primeiro caso o pensamento parece demo rarse sobre o seu objeto e sobre si mesmo mas aqui o que invade a consciência não é a imagem de Gladstone caindo mas o senti mento da gravidade do acontecimento que se produziu As coisas apresentamse diferentemente no caso de la Chambre des Lords repoussait le Bill Aqui há como uma anteci pação dramática das conseqüências do acontecimento o imper feito em repoussait exprime uma expectativa ansiosa Para apreender bem todos os matizes do estado de espírito do falante é suficiente pronunciar essa frase em voz alta A última sílaba de repoussait é pronunciada num tom mais alto exprimindo a ansiedade e a expectativa Gladstone tombait vem de alguma forma aliviar e acalmar essa angústia Nos dois casos o emprego do imperfeito é marcado pelo sentimento e estimula a imaginação Ele evoca e reconstitui a ação relatada em vez de simples mente constatála Essa é a significação do imperfeito no discurso indireto livre O definido seria incompatível com a atmos fera criada por essa forma Tal é a teoria de Lorck Ele mesmo define a sua análise como uma investigação no domínio da alma da língua Sprachseele Segundo ele esse domínio Das Gebiet der Sprachseelenforschung foi explorado pela primeira vez por K Vossler Lorck apenas segue o caminho aberto por este Lorck examinou a questão nas suas dimensões estáticas psicológicas Numa publicação de 1922 Gertraud Lerch sempre com as mesmas bases vosslerianas tenta dar ao discurso indireto livre uma larga perspectiva histórica Encontrase na sua investigação toda uma série de observações de grande valor Por isso vamos deternos mais longamente nela Em Lerch é a sensibilidade simpatizante Einfühlung que desempenha o papel que tinha a imaginação em Lorck O discurso indireto livre dá à sensibilidade sua expressão mais adequada As formas dos discursos direto e indireto são condicionados por um verbo introdutório disse pensou etc Dessa maneira o autor joga sobre o herói a responsabilidade daquilo que é dito Pelo contrário no discurso indireto livre graças à omissão do verbo introdutório o autor apresenta a enunciação do herói como se ele mesmo se encarregasse dela como se se tratasse de fatos e não simplesmente de pensamentos ou de palavras Isso só é possível diz Lerch se o escritor se associa 190 com toda a sua sensibilidade aos produtos de sua própria imaginação se ele se identifica completamente com eles Quais são as origens históricas dessa forma Quais são as condições históricas indispensáveis ao seu desenvolvimento No francês antigo as estruturas psicológicas estavam longe de distinguirse tão rigorosamente das estruturas gramaticais como hoje As combinações paratáticas e hipotáticas mistura vamse de diversas maneiras A pontuação estava ainda em esboço Por isso não havia ainda fronteiras rígidas entre os discur sos direto e indireto O narrador não sabe ainda separar as representações de sua imaginação do seu eu pessoal Ele parti cipa por dentro dos atos e das palavras dos seus heróis colocase como seu intercessor e defensor Ainda não aprendeu a transmitir o discurso de outrem na sua forma exterior e palavra por palavra abstendose de qualquer intervenção pessoal O temperamento francês antigo estava ainda longe da observação imparcial descompromissada e do julgamento objetivo Entretanto essa diluição do autor nos seus heróis não é simplesmente o resultado de uma escolha deliberada era também uma necessidade Ele não tinha à sua disposição formas claras e lógicas que permitissem uma delimitação estrita E é sobre a base dessa insuficiência gramatical e não como procedimento estilístico livre que se vê aparecer em francês antigo o discurso indireto livre Ele resulta portanto meramente da incapacidade do autor de separar gramaticalmente seu ponto de vista sua posição dos de seus heróis7 Pelo fim da Idade Média em francês medieval essa imersão do autor nos sentimentos experimentados por seus heróis não tem mais lugar Encontrase muito raramente o presente histórico entre os historiadores dessa época e o ponto de vista do narrador distinguese claramente do das personagens representadas O sentimento cede lugar à razão A transmissão do discurso de outrem tornase impessoal e sem cor e a voz do narrador abafa a do enunciador A esse período de despersonalização sucede o individualismo fortemente marcado do Renascimento A intuição desempenha novamente um papel na transmissão do discurso de outrem O narrador tenta de novo aproximarse do seu herói estabelecer com ele relações mais íntimas Esse estilo é caracterizado pela sucessão 7 Eis um exemplo curioso tirado de Eulalia sequenz segunda metade do século IX 191 flexível e livre psicologicamente colorida e caprichosa dos tempos e dos modos No século XVII em contraposição ao irracionalismo lingüístico do Renascimento começam a constituirse regras rígidas de emprego dos tempos e dos modos no discurso indireto particularmente graças a Houdin 1932 Estabelecese um equilíbrio harmonioso entre as faces objetiva e subjetiva do pensamento entre a análise objetiva e a expressão das atitudes pessoais Isso não se efetua sem pressões por parte da Academia Francesa Como procedimento estilístico livre e consciente o discurso indireto livre só podia aparecer depois da criação graças à intro dução da concordância dos tempos de um contexto gramatical no qual pudesse destacarse claramente Ele aparece primeiro em La Fontaine e conserva nele o equilíbrio característico de neoclassicismo entre o subjetivo e o objetivo A omissão do verbo introdutório indica a identificação do narrador ao herói quanto à utilização do imperfeito contrastando com o presente do discurso direto e à escolha do pronome correspondente ao discurso indireto indicam que o narrador conserva sua posição autônoma que ele não se dissolve totalmente na ativi dade mental do seu herói Ellent adunet lo suon element melz sostendreit les empedementz quelle perdesse sa Virginitet Poros furer morte a grande honestet Ela junta sua energia ela prefere a tortura a perder sua virgindade Assim ela morreu com grande honra Aqui diz Lerch a determinação firme e inquebrantável da santa se funde klingt zusammen com o apoio ardente que lhe dá o autor Esse procedimento convinha particularmente ao fabulista La Fontaine na medida em que rompe o dualismo da análise abstrata e da impressão imediata aliandoas harmoniosamente O discurso indireto é muito analítico e inerte Quanto ao discurso direto mesmo teatralizando o discurso citado não lhe fornece ao mesmo tempo o cenário o meio emocional e espiritual de que tem necessidade para ser apreendido Se La Fontaine utilizando esse procedimento indica que ele simpatiza profundamente com suas personagens La Bruyère tira dele efeitos satíricos contundentes Ele não representa seus caracteres num país imaginário e seu humor não é nada suave Ele exprime por meio do discurso indireto livre seu conflito interno com eles sua 192 superioridade sobre eles Ele se destaca das criaturas que representa A pseudoobjetividade de La Bruyère serve para refratar ironicamente todas as suas representações Esse procedimento adquire um caráter ainda mais complexo em Flaubert Este dardeja seu olhar implacável justamente sobre aquilo que acha repugnante e odioso mas mesmo nesse caso é capaz de jogar com toda a sua sensibilidade de identificarse com o odioso e o repugnante O discurso indireto livre em Flaubert tornase tão ambivalente e tão incoerente como sua própria atitude em relação a si mesmo e às suas criações sua posição interior balança entre o amor e o ódio O discurso indireto livre que permite ao mesmo tempo identificarse com as próprias criações e conservar a autonomia a distância em relação a elas é extremamente favorável à expressão desse amoródio pelos heróis Essas são as observações de Gertraud Lerch que nos interessam Ao esboço histórico do desenvolvimento do discurso indireto livre em francês podemos acrescentar alguns dados tomados de Eugen Lerch quanto à época em que essa construção apareceu em alemão Ela aí nasceu muito tardiamente é encontrada pela primeira vez em Thomas Mann nOs Buddenbrooks 1901 aparentemente sob a influência direta de Zola Tratase da epopéia de uma família contada com muita emoção pelo narrador que simples membro do clã dos Buddenbrook evoca na sua memória e faz reviver toda a história desse clã Acrescentaremos de nossa parte que no seu último romance A Montanha Mágica 1924 ele faz um uso ainda mais sutil e profundo desse procedimento De nosso conhecimento não existe nenhum estudo mais substancial ou mais recente sobre essa questão Passemos portanto à análise das perspectivas de Lorck e de Lerch Ao objetivismo hipostático de Bally opõese nos trabalhos de Lorck e Lerch um subjetivismo individualista conseqüente e claramente expresso A alma da língua manifestase primeiro na consciência crítica subjetiva individual dos falantes A língua torna se em todas as suas manifestações a expressão de forças psíquicas individuais e de intenções dotadas de significações individuais A evolução da língua confundese com a evolução do pensamento e da alma dos falantes O subjetivismo individualista dos vosslerianos aplicado ao nosso fenômeno concreto é tão inaceitável como o objetivismo abstrato de Bally Na realidade a personalidade do falante sua atividade mental suas motivações subjetivas suas intenções seus desígnios 193 conscientemente estilísticos não existem fora de sua materialização objetiva na língua É claro que fora da sua expressão lingüística mesmo que só no discurso interior a personalidade não existe nem para si mesma nem para os outros Ela só pode perceber clara e conscientemente alguma coisa na sua alma com a condição de dispor de um material objetivo de apoio de elementos materiais que iluminam a consciência sob a forma de palavras constituídas de julgamentos de valor e de entoações A personalidade subjetiva interior com a consciência de si que lhe é própria não existe como um fato material que sirva de apoio a uma explicação de tipo causalista mas como um ideologema A personalidade com todas as suas intenções subjetivas com todas as suas profundezas interiores não é mais que um ideologema Ora o ideologema permanece informe e instável enquanto não for determinado graças aos produtos mais estáveis e elaborados da criação ideológica Portanto não há nenhum sentido em querer explicar algum fenômeno ou forma ideológica com o auxílio de fatores ou de intenções subjetivas psíquicas isso significaria explicar um ideologema por outro ideologema servindo o mais informe e instável dos dois para explicar o mais claro e mais elaborado É a língua que ilumina a personalidade interior e a consciência que as cria diferencia e aprofunda e não o contrário O devir da personalidade situase na língua não tanto é verdade nas suas formas abstratas mas nos seus temas ideológicos A personalidade é do ponto de vista do seu conteúdo subje tivo interior o tema da língua esse tema desenvolvese e varia no quadro de estruturas lingüísticas mais estáveis Por conseqüência não é a palavra que constitui a expressão da personalidade interior mas ao contrário esta última constitui uma palavra contida ou interiorizada A palavra é a expressão da comunicação social da interação social de personalidades definidas de produtores E as condições materiais da socialização determinam a orientação temática e constitutiva da personalidade interior numa época e num meio determinados Como tomará ela consciência de si mesma Até que ponto será essa consciência de si rica e segura Como motivará e apreciará os seus atos Tudo isso depende igualmente das condições da socialização A evolução da consciência individual dependerá da evolução da língua nas estruturas tanto gramaticais como concretamente ideológicas A personalidade evolui ao mesmo tempo que a língua compreendida global e concretamente pois ela é um dos seus temas mais importantes e profundos Quanto à evolução da língua é um elemento da evolução da comunicação social inseparável dessa comunicação e de suas bases materiais A base 194 material determina a estratificação da sociedade sua estrutura sócio política e distribui hierarquicamente os indivíduos que nela se encontram em relação de interação Tais são os fatores que geram o lugar o momento as condições as formas os meios da comunicação verbal Esta determina por sua vez os destinos da enunciação individual num determinado momento da evolução da língua seu grau de resistência às influências o grau de diferenciação dos diversos aspectos que nela se percebem a natureza de sua individualização semânticoverbal E tudo isso exprimese primeiro nas construções estáveis da língua tanto nos seus esquemas como nas suas variantes Aqui a personalidade do falante existe não como um tema amorfo mas como uma construção mais estável na verdade essa construção é indissoluvelmente ligada a um conteúdo temático particular que lhe corresponde exatamente Assim nas formas de transmissão do discurso a própria língua reage à personalidade como suporte da palavra Mas o que fazem os vosslerianos Eles dão apenas uma tematização vaga do reflexo mais estável da estrutura da personalidade que fala traduzem para a linguagem das motivações individuais por mais sutis e sinceras que sejam os acontecimentos da evolução social os acontecimentos da história Eles relacionam a ideologia à ideologia Mas os fatores materiais objetivos dessas ideologias as formas da língua e as motivações subjetivas que estão subjacentes à sua utilização ficam fora do seu campo de investigação Não afirmamos que esse trabalho de ideologização da ideologia seja completamente inútil Ao contrário algumas vezes é útil tematizar uma construção formal para aceder mais facilmente às suas raízes objetivas que constituem um fundo comum A vivacidade e a acuidade que os idealistas da escola de Vossler introduzem na lingüística favorecem o esclarecimento de certos aspectos da língua que o objetivismo abstrato tornara inertes e opacos E por isso devemos estarlhes reconhecidos Eles estimularam e reavivaram a alma ideológica da língua que tomara com alguns lingüistas o aspecto de uma natureza morta Mas eles não chegaram a uma explicação correta objetiva da língua Abordaram a dinâmica da história mas não sou beram explicála Interessaramse pelos seus aspectos super ficiais pela agitação e pelo movimento perpétuo que a agitam mas não pelas forças que a animam na profundidade É sintomático que Lorck numa carta a Eugen Lerch publicada em apêndice ao seu livro chegue à seguinte inesperada confirmação Tendo descrito a decadência e a esclerose intelectualista da língua francesa acrescenta 195 Ela só tem uma única possibilidade de renovação o proletariado deve tomar a palavra em lugar da burguesia Für sie gibt es nur eine Möglichkeit der Verjügung anstelle des Bourgeois muss der Proletarier zu Worte kommem Como conciliar isso com o papel excepcionalmente criador da imaginação na língua Terá o proletário uma imaginação de tal forma desenvolvida então Naturalmente é outra coisa que Lorck tem em vista Ele quer dizer sem dúvida que o proleta riado trará consigo novas formas de comunicação sócioverbal de interação verbal dos falantes e todo um novo mundo de inte ração verbal e de entoações sociais Trará consigo uma nova concepção lingüística da personalidade que fala da própria palavra da verdade lingüística Provavelmente era qualquer coisa assim que Lorck tinha em vista fazendo essa afirmação Mas não se encontra nenhum vestígio dela na sua teoria Quanto à imaginação o burguês tem tanta quanto o proletário E ainda por cima tem mais lazer para se servir dela O subjetivismo individualista de Lorck aplicado ao nosso problema concreto manifestase na incapacidade que tem a sua concepção de refletir a dinâmica da interrelação entre o discurso narrativo e o discurso citado O discurso indireto livre longe de transmitir uma impressão passiva produzida pela enunciação de outrem exprime uma orientação ativa que não se limita meramente à passagem da primeira à terceira pessoa mas introduz na enunciação citada suas próprias entoações que entram então em contato com as entoações da palavra citada interferindo nela Nem mesmo podemos concordar com Lorck na sua afirmação de que a forma do discurso direto simples está mais próxima da apreensão e da assimilação direta do discurso de outrem Cada forma de transmissão do discurso de outrem apreende à sua maneira a palavra do outro e assimilaa de forma ativa Gertraud Lerch fica muito próxima da compreensão dessa dinâmica mas expressaa em termos de psicologia subjetiva Ambos os autores portanto esforçamse por tornar plano um fenômeno tridimensional por assim dizer No fenômeno lingüístico objetivo do discurso indireto livre temos uma combinação não de empatia e distanciamento dentro dos limites da alma individual mas das entoações da personagem empatia e das entoações do autor distanciamento dentro dos limites de uma mesma e única construção lingüística Lorck e Lerch não levam em conta nem um nem outro um elemento extremamente importante para a compreensão 196 do fenômeno em causa o julgamento de valor inerente a toda pala vra viva revelado pela acentuação e pela entoação expressiva da enunciação O sentido do discurso não existe fora de sua acentuação e entoação vivas No discurso indireto livre identificamos a palavra citada não tanto graças ao sentido considerado isoladamente mas antes de mais nada graças às entoações e acentuações próprias do herói graças à orientação apreciativa do discurso Nós percebemos que os acentos e as entoações do autor estão senão interrompidos por esses julgamentos de valor de outra pessoa E é isso como sabemos que distingue o discurso indireto livre do discurso substituído no qual nenhum acento novo aparece em relação ao contexto narrativo Vamos agora voltar aos procedimentos utilizados em russo para o discurso indireto livre Eis um exemplo bastante característico tirado de Poltava de Púchkin Mazepa simulando dor levanta para o tsar um olhar sub misso Deus sabe e todo o mundo é testemunha Ele o infeliz Hétman serviu o tsar com coração fiel durante vinte anos ele curvase sob o peso de sua imensa misericórdia está enlevado por ela Oh como o ódio é insano e cego É possível que ele agora às portas da tumba vá começar a aprender a traição e a manchar o seu bom nome Não foi ele que recusou com indignação ajuda a Estanislau que envergonhado recusou a coroa da Ucrânia e enviou ao tsar por consciência do dever o texto do acordo e as cartas secretas Não ficou ele surdo às objurgações do cã e do sultão de Tsáregrad Ardendo de entusiasmo ele estava feliz de combater os inimigos do Tsar Branco com sua inteligência e seu sabre ele não poupou nem dificulda des nem a própria vida e agora o inimigo odioso ousa lançar a vergonha sobre os seus cabelos brancos E quem Iskra Kotchubei os mesmos que foram seus amigos durante tanto tempo E com lágrimas sedentas de sangue com fria impertinência o ímpio reclama a execução deles A punição de quem velho inexorável De quem pois roubou ele a filha Mas friamente ele abafa o murmúrio enfraquecido do seu coração Nesse extrato de um lado a sintaxe e o estilo são determinados pelas tonalidades da humildade do lamento deplorável de Mazepa de outro essa súplica lacrimosa subordinase à orientação apreciativa do contexto do autor aos seus acentos narrativos que são aqui impregnados de uma tonalidade de indignação que se revela mais 197 tarde na questão retórica A punição de quem velho inexorável De quem pois roubou ele a filha Seria perfeitamente possível transmitir a entoação dupla de cada palavra lendo esse extrato em voz alta isto é pôr em evidência com indignação a hipocrisia de Mazepa pela própria leitura da sua lamentação Estamos aqui diante de um caso muito simples que comporta entoações retóricas bastante elementares e claras Na maior parte dos casos porém e especialmente naquela área em que o discurso indireto livre se tornou um recurso de emprego maciço a área da nova ficção em prosa a transmissão oral da interferência apreciativa seria impossível Além disso o próprio desenvolvimento do discurso indireto livre está ligado à adoção pelos grandes gêneros literários em prosa de um registro mudo ou seja para leitura silenciosa Apenas a adaptação da prosa à leitura silenciosa tornou possível a superposição dos planos e a complexidade intransmissível oralmente das estruturas entoativas tão características da literatura moderna Um exemplo desse tipo de interferência de dois discursos que não pode ser adequadamente transmitida pela leitura em voz alta é a seguinte passagem tirada de O Idiota de Dostoievski E por que então o príncipe agora não se aproximou dele de Rogójin Por que ao contrário se afastou como se não o tivesse visto embora seus olhos tivessem se encontrado Sim seus olhos se encontraram e eles se haviam olhado Não queria ele há pouco tempo tomálo pela mão para irem juntos lá Não queria ele ir amanhã à sua casa para lhe contar que estivera na casa dela Não havia ele renunciado ao seu demônio no caminho para lá quando a alegria subitamente inundara sua alma Ou havia realmente alguma coisa em Rogójin isto é no Rogójin de hoje no conjunto de suas palavras gestos comportamento olhares que pudesse justificar os terríveis pressentimentos do prín cipe e as insinuações revoltantes do seu demônio Havia nisso qualquer coisa que parecia evidente mas que era difícil de analisar e relatar Era impossível explicar as suas causas mas apesar da sua inverossimilhança e sua impossibilidade essa coisa qualquer deixava uma impressão clara e incontestável que fazia nascer uma certeza completa Mas que certeza Oh como a baixeza desta certeza desse vil pressentimento fazia sofrer o príncipe desmesuradamente e como ele se incriminava 198 Abordaremos aqui em poucas palavras um problema muito importante e interessante o da realização sonora do discurso de outrem apresentado pelo contexto narrativo O que torna difícil a busca de uma entoação expressiva conveniente é a passagem constante do horizonte apreciativo do autor ao do herói e viceversa Em que casos e dentro de que limites pode um autor pôr em cena uma personagem Por encenação absoluta entendemos não apenas a mudança da entoação expressiva mudança essa que é possível nos limites de uma única e mesma voz de uma única consciência mas também a mudança de voz no sentido da totalidade de propriedades que a caracterizam a mudança de persona máscara no sentido da totalidade de propriedades que constituem a mímica e a expressão facial e finalmente a completa consistência dessa voz e dessa persona durante toda a representação do papel Afinal dentro desse mundo individual e fechado em si mesmo não pode mais haver nenhuma infiltração das entoações do autor Como resultado da autoconsistência da voz e da persona de outrem não há possibilidade para a gradação na mudança do contexto narrativo para o discurso citado e viceversa O discurso citado começará a soar como no teatro onde não há contexto narrativo e onde as réplicas do herói opõemse as réplicas gramaticalmente dissociadas de outras personagens Assim as relações entre o discurso citado e o contexto narrativo através da encenação absoluta tomam uma forma análoga às relações entre linhas alternadas no diálogo Por causa disso o autor colocase no mesmo nível que sua personagem e sua relação toma a aparência de um diálogo Decorre inevitavelmente disso que só é possível encenar totalmente o discurso citado na leitura em voz alta de uma obra de ficção em casos muitos raros De outra for ma levantase um inevitável conflito com as intenções esté ticas básicas do contexto Não é preciso dizer que nesses casos raríssimos só pode tratarse de variantes lineares e moderada mente pictóricas da construção do discurso direto Mas se o discurso direto é entrecortado por observações do autor que valem como réplicas ou então se matizes muito fortes do contexto narrativo apreciativo a ele se acrescentam já não é mais possível a encenação total Uma encenação parcial é contudo possível sem excesso no jogo teatral que permite operar transições entoativas graduais entre o discurso narrativo e o discurso citado em alguns casos quando se está diante de variantes ambivalentes podemse conciliar numa única voz todas as entoações É verdade que isso só é possível nos casos análogos àqueles que apresentamos As perguntas e exclamações 199 retóricas freqüentemente têm apenas a função de anunciar uma mudança de tom Restanos tirar as conclusões de nossa análise do discurso indireto livre e ao mesmo tempo as de toda a terceira parte do nosso trabalho Seremos breve tudo que é essencial encontrase no próprio texto e procuraremos evitar as repetições Examinamos as formas mais importantes de transmissão do discurso de outrem não demos descrições gramaticais abstratas procuramos ao invés encontrar nessas formas documentos que mostram como a língua numa ou noutra época do seu desenvolvimento apreende a palavra de outrem e a personalidade do falante Além disso jamais perdemos de vista o fato de que as vicissitudes da enunciação e da personalidade do falante na língua refletem as vicissitudes sociais da interação verbal da comunicação ideológica verbal nas suas tendências principais A palavra como fenômeno ideológico por excelência está em evolução constante reflete fielmente todas as mudanças e alterações sociais O destino da palavra é o da sociedade que fala Mas há vários caminhos para estudar a evolução dialética da palavra Podese estudar a evolução semântica isto é a história da ideologia no sentido exato do termo a história do conhecimento isto é a evolução da verdade uma vez que a verdade só é eterna enquanto evolução eterna da verdade a história da literatura como evolução da verdade na arte Esse é o primeiro caminho Mas há um outro estreitamente ligado ao primeiro em ininterrupta simbiose com ele é o estudo da evolução da própria língua como material ideológico como meio onde se reflete ideologicamente a existência uma vez que a reflexão da refração da existência na consciência humana só se efetua na palavra e através dela É impossível evidentemente estudar a evolução da língua dissociandoa completamente do ser social que nela se refrata e das condições sócioeconômicas refratantes Não se pode estudar a evolução da palavra dissociandoa da evolução da verdade em ge ral e da verdade na arte tais como são expressas na palavra pela sociedade humana para a qual existem Esses dois caminhos em permanente interação um com o outro levam ao estudo da reflexão da refração da evolução da natureza e da história na evolução da palavra O terceiro caminho é o estudo da reflexão da evolução social da palavra na própria palavra Esse caminho se subdivide em dois ramos a história da filosofia da palavra e a história da palavra na palavra É nessa última perspectiva que se situa o nosso trabalho 200 Estamos perfeitamente consciente de suas insuficiências mas esperamos que a maneira de colocar o problema da palavra na palavra tenha uma pertinência real A história da verdade a história da verdade na arte e a história da língua têm muito a ganhar do estudo das refrações de sua manifestação essencial a enunciação concreta nas estruturas da própria língua Acrescentaremos algumas palavras de conclusão sobre o discurso indireto livre e as tendências sociais que ele exprime O aparecimento e desenvolvimento do discurso indireto livre devem ser estudados em estreita ligação com o desenvolvimento das outras variantes expressivas dos discursos direto e indireto Teremos então a prova de que ele tem um lugar importante no desenvolvimento das línguas européias contemporâneas que ele implica uma reviravolta importante no destino social da enunciação A vitória de formas extremas do estilo pictórico no discurso citado não pode naturalmente ser explicada em termos de fatores psicológicos ou das intenções estilísticas individuais do artista mas sim em termos da subjetivização profunda generalizada da palavra enunciação ideológica Esta não é mais um monumento nem mesmo um simples documento que atesta a existência de um conteúdo semântico substancial ela só é percebida como a expressão de um estado subjetivo fortuito Na consciência lingüística as representações idiossincráticas individualizantes tomaram tal autonomia dentro da enunciação que elas obstruíram e relativizaram completamente o seu núcleo semântico e o ponto de vista social responsável que nelas se exprime É como se não se levasse mais a sério o conteúdo semântico da enunciação A palavra categórica a palavra assumida a palavra assertiva só existe nos contextos científicos Em todas as outras áreas da criação verbal é a ficção que domina e não mais a asserção Toda a atividade verbal consiste então em distribuir a palavra de outrem e a palavra que parece ser a de outrem Mesmo as ciências humanas desenvolveram uma tendência a substituir afirmações responsáveis acerca de um problema por uma descrição do estado atual das pesquisas na área incluindo cálculo e adução indutiva do ponto de vista geralmente admitido nos nossos dias esse procedimento é mesmo algumas vezes considerado a melhor solução possível de um problema Em tudo isso manifesta se a alarmante instabilidade e a incerteza da palavra ideológica O discurso literário retórico filosófico e o das ciências humanas tornamse o reino das opiniões das opiniões notórias e mesmo nessas opiniões não é tanto o quê mas o como individual ou 201 típico da opinião em causa que ocupa o primeiro plano Esse processo que afeta o destino da palavra na Europa burguesa contemporânea e aqui na União Soviética no nosso caso até tempos muito recentes pode ser caracterizado como uma reificação da palavra como uma deterioração do valor temático da palavra Os ideológicos desse processo tanto aqui como na Europa Ocidental são os movimentos formalistas em poética lingüística e filosofia da linguagem Não é preciso mencionar aqui quais são os fatores sociais subjacentes que explicam esse processo nem repetir a bem fundamentada afirmativa de Lorck acerca dos únicos caminhos possíveis para a renovação da palavra ideológica a palavra com seu tema intacto a palavra penetrada por uma apreciação social segura e categórica a palavra que realmente significa e é responsável por aquilo que diz
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Texto de pré-visualização
9 MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM BAKHTIN Mikhail 12ª Edição 2006 HUCITEC 10 PREFÁCIO No livro publicado com a assinatura de V N Volochínov em Leningrado 19291930 em duas edições sucessivas sob o título de Marksizm i filossófia iaziká Marxismo e Filosofia da Linguagem tudo desde a página de título só pode surpreender Acabouse descobrindo que o livro em questão e várias outras obras publicadas no final dos anos vinte e começo dos anos trinta com o nome de Volochínov como por exemplo um volume sobre a doutrina do freudismo 1927 e alguns ensaios sobre a linguagem na vida e na poesia assim como sobre a estrutura do enunciado foram na verdade escritos por Bakhtin 18951975 autor de obras determinantes sobre a poética de Dostoievski e de Rabelais Ao que parece Bakhtin recusavase a fazer concessões à fraseologia da época e a certos dogmas impostos aos autores Os adeptos e discípulos do pesquisador particularmente Volochínov nascido em 1895 desaparecido pelo fim de 1930 com um pseudônimo escrupulosamente observado e graças a alguns retoques obrigatórios no texto e até no título tentaram um compromisso que permitia preservar o essencial do grande trabalho O que poderia surpreender igualmente aqueles leitores menos avisados da história do obscurantismo que da história do pensamento científico é o completo desaparecimento do próprio nome desse eminente pesquisador de toda a imprensa russa durante quase um quarto de século até 1963 quanto a seu livro sobre a filosofia da linguagem só o vemos mencionado nesse mesmo período em alguns raros estudos lingüísticos do Ocidente Recentemente algumas citações desse livro foram feitas em publicações soviéticas de tiragem insignificante como a coletânea dedicada ao 75o aniversário de Bakhtin cuja edição foi de apenas 1500 exemplares Tártu 1973 A obra em questão é reproduzida na série Janua Linguarum Haia Paris 1972 e traduzida para o inglês Nova Iorque 1973 mas esse trabalho como outras obrasprimas do pensamento teórico 11 russo do mesmo período permanece ainda quase inacessível aos leitores do seu país natal Apesar de toda a singularidade da biografia do livro e de seu autor é pela novidade e originalidade de seu conteúdo que a obra mais surpreende todo leitor de espírito aberto Esse volume cujo subtítulo diz Os problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem antecipa as atuais explorações realizadas no campo da sociolingüística e principalmente consegue preceder as pesquisas semióticas de hoje e fixarlhes novas tarefas de grande envergadura A dialética do signo e do signo verbal em particular que é estudada no livro conserva ou melhor adquire um grande valor sugestivo à luz dos debates semióticos contemporâneos Dostoievski é o herói preferido de Bakhtin e a maneira como ele o define caracteriza ao mesmo tempo e da forma mais justa sua própria metodologia científica Nada lhe parece acabado todo problema permanece aberto sem fornecer a mínima alusão a uma solução definitiva Segundo Bakhtin na estrutura da linguagem todas as noções substanciais formam um sistema inabalável constituído de pares indissolúveis e solidários o reconhecimento e a compreensão a cognição e a troca o diálogo e o monólogo sejam eles enunciados ou internos a interlocução entre o destinador e o destinatário todo signo provido de significação e toda significação associada ao signo a identidade e a variabilidade o universal e o particular o social e o individual a coesão e a divisibilidade a enunciação e o enunciado O que mais desperta a atenção e a criatividade do leitor é a parte final do livro onde o autor discute o papel fundamental e variado da citação patente ou latente em nossos enunciados e interpreta os diversos meios que servem para adaptar esses empréstimos multiformes e contínuos ao contexto do discurso Roman Jakobson 12 INTRODUÇÃO I Bakhtin o homem e seu duplo M M Bakhtin nasceu em 1895 em Oriol numa família da velha nobreza arruinada de um pai empregado de banco Passou sua infância em Oriol e a adolescência em Vílnius e Odessa Estudou na Universidade de Odessa depois na de São Petersburgo de onde saiu diplomado em História e Filologia em 1918 Em 1920 instalouse em Vitebsk onde ocupou diversos cargos de ensino Casouse em 1920 com Helena Okolovitch que foi sua fiel colaboradora durante meio século Bakhtin pertencia a um pequeno círculo de intelectuais e de artistas entre os quais se encontravam Marc Chagall e o musicólogo Sollertinsky amigo íntimo de Chostakovitch Também fazia parte deste círculo um jovem professor do Conservatório de Música de Vitebsk V N Volochínov e ainda P N Medviédiev empregado de uma casa editora Os dois tornaramse alunos amigos devotados e ardorosos admiradores de Bakhtin Este círculo conhecido sob o nome de círculo de Bakhtin foi um cadinho de idéias inovadoras numa época de muita criatividade particularmente nos domínios da arte e das ciências humanas Ainda que contemporâneo dos movimentos formalista e futurista ele não participou de nenhum deles Em 1923 atacado de osteomielite Bakhtin retornou a Petrogrado Impossibilitado de trabalhar regularmente deve ter passado por uma situação material difícil Seus discípulos e admiradores Volochínov e Medviédiev seguiramno a Petrogrado Animados pelo desejo de vir ajudar financeiramente a seu mestre e ao mesmo tempo divulgar suas idéias ofereceram seus nomes a fim de tornar possível a publicação de suas primeiras obras Freidizm O Freudismo Leningrado 1927 e Marxismo e Filosofia da Linguagem Leningrado 1929 saíram sob o nome de Volochínov Formalni métod v literaturoviédenie Kritítcheskoie vvdiénie v sotsiologuítcheskuiu poétiku O Método Formalista 13 Aplicado à Crítica Literária Introdução Crítica à Poética Sociológica que constituiu uma crítica aos formalistas foi publicado em 1928 também em Leningrado sob a assinatura de Medviédiev1 Por que então Bakhtin não os publicou com seu próprio nome Não há dúvidas quanto à paternidade de suas obras O conteúdo se inscreve perfeitamente na linha de suas publicações assinadas e além disso dispomos de testemunhos diretos De qualquer modo na época o segredo foi bem guardado pois Borís Pasternak em uma carta endereçada a Medviédiev manifestou seu entusiasmo e sua admiração pela presumida obra deste último e confessa que jamais pudera imaginar que em Medviédiev se ocultava um tal filósofo Então por que esse jogo de testadeferro Segundo o professor V V Ivánov amigo e aluno de Bakhtin haveria duas espécies de motivos em primeiro lugar Bakhtin teria recusado as modificações impostas pelo editor de caráter intransigente ele teria preferido não publicar do que mudar uma vírgula Volochínov e Medviédiev terseiam então proposto a endossar as modificações A outra ordem de motivos seria mais pessoal e ligada ao caráter de Bakhtin ao seu gosto pela máscara e pelo desdobramento e também parece à sua profunda modéstia científica Ele teria professado que um pensamento verdadeiramente inovador não tem necessidade para assegurar sua duração de ser assinado por seu autor A este respeito o professor Ivánov o compara a Kierkegaard que também se escondeu sob pseudônimos De qualquer forma em 1929 no mesmo ano em que Volochínov assinava Marxismo e Filosofia da Linguagem Bakhtin publicou finalmente um primeiro livro com seu próprio nome Probliemi tvórtchestva Dostoiesvskovo Problemas da Obra de Dostoievski2 Ele dedicará o resto de sua vida de pesquisador à análise estilística e literária Volochínov e Medviédiev desapareceram nos anos trinta Nesta época Bakhtin vivia na fronteira da Sibéria e do Casa quistão em Kustanai Sempre ensinando começou a compor sua monografia sobre Rabelais Em 1936 foi nomeado para o Insti 1 Esta terceira obra foi reeditada em 1971 na revista Trudi po znákovim sistiemam Trabalhos sobre Sistemas de Signos Universidade de Tártu 1971 As outras duas nunca mais foram reimpressas Mouton Haia publicou em 1972 um facsímile da edição de 1929 do Marxismo e a Filosofia da Linguagem 2 Tradução francesa sob o título Problèmes de la Poétique de Dostoïevski Lausanne LÂge dHomme 1970 14 tuto Pedagógico de Saransk Em 1937 instalouse não muito longe de Moscou em Kímri onde viveu uma vida apagada até 1945 ensinando no colégio local e participando dos trabalhos do Instituto de Literatura da Academia de Ciências da URSS Aí defendeu sua tese sobre Rabelais em 1946 De 1945 a 1961 data de sua aposentadoria ensina de novo em Saransk terminando sua carreira na universidade desta cidade A partir de 1963 começou a gozar de uma certa notoriedade sobretudo após a reedição de sua obra sobre Dostoievski 1963 e de sua tese sobre Rabelais Tvórtchestvo François Rabelais i naródnaia kultura sriednevekóvia i Renessansa A Obra de François Rabelais e a Cultura Popular da Idade Média e da Renascença Moscou 19653 Em 1969 instalouse em Moscou onde publicou contribuições nas revistas Vopróssi literaturi Questões de Literatura e Kontiekst Contexto Morreu em Moscou em 1975 após uma longa doença II Marxismo e Filosofia da Linguagem É difícil afirmar com exatidão quais as partes do texto que se devem a Volochínov Sempre segundo o professor Ivánov que deve a informação ao próprio Bakhtin o título e certas partes do texto ligadas à escolha deste título são de Volochínov Não se poderia evidentemente colocar em questão as convicções marxistas de Bakhtin o livro é marxista do começo ao fim Todavia como sublinha Jakobson em seu prefácio o título não deixa de surpreender pois o conteúdo do livro é muito mais rico do que a capa deixa entrever Bakhtin expõe bem a necessidade de uma abordagem marxista da filosofia da linguagem mas ele aborda ao mesmo tempo praticamente todos os domínios das ciências humanas por exemplo a psicologia cognitiva a etnologia a pedagogia das línguas a comunicação a estilística a crítica literária e coloca de passagem os fundamentos da semiologia moderna Aliás ele possui de todos esses domínios uma visão notavelmente unitária e muito avançada em relação a seu tempo Contudo e nesse aspecto o subtítulo Tentativa de aplicação do método sociológico em lingüística é muito revelador tratase principalmente de um livro sobre as relações entre linguagem e 3 Tradução francesa sob o título François Rabelais et la Culture Populaire sous la Renaissance Gallimard 1970 15 sociedade colocado sob o signo da dialética do signo enquanto efeito das estruturas sociais Sendo o signo e a enunciação de natureza social em que medida a linguagem determina a consciência a atividade mental em que medida a ideologia determina a linguagem Tais são as questões que constituem o fio condutor do livro Bakhtin foi o primeiro a abordar essas questões que a humanidade se colocou muitas vezes antes dele numa perspectiva marxista Portanto é indispensável situar sua reflexão em relação ao problema fundamental que foi suscitado pela aplicação da análise marxista à língua a língua é uma superestrutura e conseqüentemente em relação à controvérsia da lingüística soviética em torno desta questão controvérsia à qual Stálin pôs fim em 1950 com A Propósito do Marxismo em Lingüística4 Ao mesmo tempo é preciso notar que por sua crítica a Saussure o representante mais eminente do que Bakhtin chamou o objetivismo abstrato e aos excessos do estruturalismo nascente ele antecede de quase cinqüenta anos as orientações da lingüística moderna Veremos que os dois aspectos se confundem Bakhtin coloca em primeiro lugar a questão dos dados reais da lingüística da natureza real dos fatos da língua A língua é como para Saussure um fato social cuja existência se funda nas necessidades da comunicação Mas ao contrário da lingüística unificante de Saussure e de seus herdeiros que faz da língua um objeto abstrato ideal que se consagra a ela como sistema sincrônico homogêneo e rejeita suas manifestações a fala individuais Bakhtin por sua vez valoriza justamente a fala a enunciação e afirma sua natureza social não individual a fala está indissoluvelmente ligada às condições da comunicação que por sua vez estão sempre ligadas às estruturas sociais Se a fala é o motor das transformações lingüísticas ela não concerne os indivíduos com efeito a palavra é a arena onde se confrontam aos valores sociais contraditórios os conflitos da língua refletem os conflitos de classe no interior mesmo do sistema comunidade semiótica e classe social não se recobrem A comunicação verbal inseparável das outras formas de comuni cação implica conflitos relações de dominação e de resis tência adaptação ou resistência à hierarquia utilização da língua pela classe dominante para reforçar seu poder etc Na medida em que às diferenças de classe correspondem diferenças de registro 4 Tradução francesa das Editions de la Nouvelle Critique 1950 16 ou mesmo de sistema assim a língua sagrada dos padres o terrorismo verbal da classe culta etc esta relação fica ainda mais evidente mas Bakhtin se interessa primeiramente pelos conflitos no interior de um mesmo sistema Todo signo é ideológico a ideologia é um reflexo das estruturas sociais assim toda modificação da ideologia encadeia uma modificação da língua A evolução da língua obedece a uma dinâmica positivamente conotada ao contrário do que afirma a concepção saussuriana A variação é inerente à língua e reflete variações sociais se efetivamente a evolução por um lado obedece a leis internas reconstrução analógica economia ela é sobretudo regida por leis externas de natureza social O signo dialético dinâmico vivo opõese ao sinal inerte que advém da análise da língua como sistema sincrônico abstrato É o que leva Bakhtin a atacar a noção de sincronia E o surpreendente é que Bakhtin não critica Saussure em nome da teoria marxista largamente proclamada ele o critica no interior do seu próprio domínio isto é encontra a falha no sistema de oposição línguafala sincroniadiacronia No plano científico objetivo o sistema sincrônico é uma ficção com efeito em nenhum momento o sistema está realmente em equilíbrio e isto todos os lingüistas admitem Mas para o locutor ouvinte ingênuo usuário da língua esta não é tampouco um sistema estável e abstrato de sinais constantemente iguais a si mesmos e isolados por procedimentos de análise distribucional Ao contrário a forma lingüística é sempre percebida como um signo mutável A entonação expressiva a modalidade apreciativa sem a qual não haveria enunciação o conteúdo ideológico o relacionamento com uma situação social determinada afetam a significação O valor novo do signo relativamente a um tema sempre novo é a única realidade para o locutorouvinte Só a dialética pode resolver a contradição aparente entre a unicidade e a pluralidade da significação O objetivismo abstrato favorece arbitrariamente a unicidade a fim de poder prender a palavra em um dicionário O signo é por natureza vivo e móvel plurivalente a classe dominante tem interesse em torná lo monovalente Tratase justamente de uma crítica ao distribucionalismo neutro Segundo Bakhtin a lingüística saussuriana o objetivismo abstrato que pensa estar afastada dos procedimentos da filologia na realidade apenas os perpetua Daí a crítica implícita da noção de corpus prática reducionista que tende a reificar a lingua gem Toda enunciação fazendo parte de um processo de comu nicação ininterrupto é um elemento do diálogo no sentido amplo 17 do termo englobando as produções escritas O corpus transforma as enunciações em monólogos Nesse sentido o procedimento dos lingüistas é o mesmo que o dos filólogos Donde a idéia sempre reiterada de que o corpus fundamento da lingüística descritiva e funcionalista leva ao descritivismo abstrato e faz do signo um sinal análise distribucional estabelecimento de classes de contexto e de classes de unidade que fornecem implicitamente uma norma mesmo se o método se pretende objetivo e não normativo pelo fato de se abster de evocar regras de caráter prescritivo Os imperativos pedagógicos não deixam de ter influência sobre a prática do lingüista na medida em que se procura transmitir um objetolíngua tão homogêneo quanto possível Bakhtin coloca igualmente em evidência a inadequação de todos os procedimentos de análise lingüística fonéticos morfológicos e sintáticos para dar conta da enunciação completa seja ela uma palavra uma frase ou uma seqüência de frases A enunciação compreendida como uma réplica do diálogo social é a unidade de base da língua tratase de discurso interior diálogo consigo mesmo ou exterior Ela é de natureza social portanto ideológica Ela não existe fora de um contexto social já que cada locutor tem um horizonte social Há sempre um interlocutor ao menos potencial O locutor pensa e se exprime para um auditório social bem definido A filosofia marxista da linguagem deve colocar como base de sua doutrina a enunciação como realidade da língua e como estrutura sócioideológica O signo e a situação social estão indissoluvelmente ligados Ora todo signo é ideológico Os sistemas semióticos servem para exprimir a ideologia e são portanto modelados por ela A palavra é o signo ideológico por excelência ela registra as menores variações das relações sociais mas isso não vale somente para os sistemas ideológicos constituídos já que a ideologia do cotidiano que se exprime na vida corrente é o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas Se a língua é determinada pela ideologia a consciência portanto o pensamento a atividade mental que são condicionados pela linguagem são modelados pela ideologia Contudo todas estas relações são interrelações recíprocas orientadas é verdade mas sem excluir uma contraação O psiquismo e a ideologia estão em interação dialética constante Eles têm como terreno comum o signo ideológico O signo ideológico vive graças à sua reali zação no psiquismo e reciprocamente a realização psíquica vive do suporte ideológico A questão exige mais que um trata 18 mento esquemático Na verdade a distinção essencial que Bakhtin faz é entre a atividade mental do eu não modelada ideologicamente próxima da reação fisiológica do animal característica do indivíduo pouco socializado e a atividade mental do nós forma superior que implica a consciência de classe O pensamento não existe fora de sua expressão potencial e por conseqüência fora da orientação social desta expressão e do próprio pensamento Também não se pode tratar esquematicamente a questão da língua como superestrutura Nos anos 20 no momento em que Bakhtin compõe sua obra duas tendências se confrontam em lingüística o formalismo e o sociologismo dito vulgar o marrismo Nicolau Marr leva a suas últimas conseqüências a assimilação da língua a uma superestrutura existência de línguas de classe e de gramáticas de classe independentes e teoria da evo lução por saltos é difícil confirmar essa teoria nos fatos a toda revolução na base deveria corresponder uma tão pronta evo lução da língua Tal é em todo caso a imagem sem dúvida parcialmente deformada que se pode fazer da teoria de Marr a partir da controvérsia de 1950 Bakhtin por sua vez insiste sobre a noção de processo ininterrupto Para ele a palavra veicula de maneira privilegiada a ideologia a ideologia é uma superestrutura as transformações sociais da base refletemse na ideologia e portanto na língua que as veicula A palavra serve como indicador das mudanças Bakhtin não afirma jamais que a língua é uma superestrutura no sentido estrito definido por Marr o qual acarretará em 1950 a inapelável condenação stalinista a base e as superestruturas estão sempre em interação Em compensação ele afirma claramente que a língua não é assimilável a um instrumento de produção Ora é precisamente esta assimilação que será formulada por Stálin numa tentativa de dar uma imagem unificante homogênea neutra da língua em relação à luta de classes o que o leva paradoxalmente a uma posição própria do objetvismo abstrato Sabemos sobre que motivações de política interna a questão das línguas nacionais na URSS repousava sua argumentação Bakhtin denuncia o perigo de toda sistematização ou formalização exagerada das novas teorias um sistema que estanca perde sua vitalidade seu dinamismo dialético A acusação poderia se dirigir tanto a Marr como a Stálin Bakhtin define a língua como expressão das relações e lutas sociais veiculando e sofrendo o efeito desta luta servindo ao mesmo tempo de instrumento e de material Como sua obra permaneceu 19 desconhecida tanto do público soviético como do público ocidental só o confronto de posições extremas reteve a atenção Todos aqueles que tinham escrúpulos em considerar a língua como uma superestrutura suspiraram aliviados em 1950 e pro curaram esquecer a relação da língua com as estruturas sociais até uma época muito recente com a emergência da sociolin güística como lingüística e não como variante periférica ou meramente anedótica5 Na terceira parte do livro consagrada ao estudo da transmissão do discurso de outrem Bakhtin fez uma aplicação prática das teses desenvolvidas nas duas primeiras Dessa forma busca demonstrar a natureza social e não individual das variações estilísticas Com efeito a maneira de integrar o discurso de outrem no contexto narrativo reflete as tendências sociais da interação verbal numa época e num grupo social dado Apóiase para firmar sua tese em citações extraídas de Púchkin Dostoievski Zola Thomas Mann isto é de obras individuais que ele insere no contexto da época e portanto da orientação social que aí se manifesta Aborda igualmente o papel do narrador que toma o lugar do autor da narrativa com as interferências que isso implica Esta é certamente uma de suas contribuições mais originais Não há para ele fronteira clara entre gramática e estilística O discurso indireto constitui um discurso encaixado no interior do qual se manifesta uma interação dinâmica A passagem do estilo direto ao estilo indireto não se faz de maneira mecânica isto lhe dá a oportunidade de criticar os exercícios escolares estruturais crítica que permanece totalmente pertinente hoje em dia Essa passagem implica análise e reformulação completa acompanhadas de um deslocamento eou de um entrecruzamento dos acentos apreciativos modalidade A análise estilística parte integrante da lingüística aparece como a preocupação essencial de Bakhtin A lingüística como ao que 5 Ver a este respeito na França as posições de Cohen Mounin Marcellesi Gardin Dubois Calvet Encrevé etc Eu citaria simplesmente Marcel Cohen É preciso ver em que medida a linguagem assim como a ciência vai dar na superestrutura por certos aspectos de seu emprego ligandose a instituições propriamente ditas ou a elementos ideológicos Matériaux pour une Sociologie du Langage Maspero 1956 20 parece para Saussure6 surge como o instrumento privilegiado e indispensável para levar a bom termo os trabalhos de análise literária que ocuparão a maior parte de sua vida Como Saussure ele é em vários aspectos um homem do século XIX um homem de gabinete de cultura enciclopédica um verdadeira nãoespecialista É entre pessoas assim que freqüentemente encontramos os melhores especialistas de uma disciplina Bibliografia V V Ivánov O Bakhtine i semiotike Bakhtin e a Semiótica in Rossía Rússia 1 Nápoles 1975 Znatchénie idiéi Bakhtina o znákie viskazivánie i dialóguie dliá sovremiénnoi semiotiki A Significação das Idéias de Bakhtin sobre o Signo a Enunciação e o Diálogo para a Semiótica Moderna in Trúdi po znákovim sistiemam Trabalhos sobre Sistemas de Signos Universidade de Tártu 1973 Ver também Ótcheki po istorii semiotiki v SSSR Ensaios para uma História da Semiótica na URSS Moscou 1976 Marina Yaguello 6 Ver L J Calvet Pour et contre Saussure Payot 1976 21 SUMÁRIO NOTA DOS TRADUTORES 7 PREFÁCIO Roman Kakobson 9 INTRODUÇÃO 11 PRÓLOGO 25 PRIMEIRA PARTE A FILOSOFIA DA LINGUAGEM E SUA IMPORTÂNCIA PARA O MARXISMO Capítulo 1 Estudo das Ideologias e Filosofia da Linguagem 31 A ciência das ideologias e a filosofia dalinguagem O problema do signo ideológico O signo ideológico e a consciência A palavra como signo ideológico por excelência A neutralidade ideológica da palavra A propriedade da palavra de ser um signo interior Conclusões Capítulo 2 Relação entre as Infraestrutura e as Superes truturas 39 Por quê razão é inadmissível aplicar a categoria da causalidade mecanicista à ciência da ideologia A evolução da sociedade e a da palavra Expressão semiótica da psicologia social Dialetologia social Formas da comunicação verbal e formas dos signos Tema do signo Luta de classes e dialética do signo Capítulo 3 Filosofia da Linguagem e Psicologia Objetiva 48 Problema da descrição objetiva do psiquismo Estudo da psicologia cognitiva e interpretativa Dilthey Realidade semiótica do psiquismo Ponto de vista da psicologia funcionalista Psicologismo e antipsicologismo Especificidade do signo interior discurso interior Problema da introspecção Natureza sócioeconômica do psiquismo Conclusões SEGUNDA PARTE PARA UMA FILOSOFIA MARXISTA DA LINGUAGEM Capítulo 4 Duas Orientações do Pensamento Filosófico Lingüístico 69 Problema da realidade concreta da linguagem Princípios fundamentais da primeira orientação do pensamento filosó ficolingüístico o subjetivismo individualista e seus representantes Princípios fundamentais da segunda orien 22 tação do pensamento filosóficolingüístico objetivismo abstrato Raízes históricas da segunda orientação Representantes contemporâneos do objetivismo abstrato Conclusões Capítulo 5 Língua Fala e Enunciação 90 A língua enquanto sistema de formas sujeitas a uma norma é objetiva A língua como sistema de normas e o ponto de vista real da consciência do locutor Que realidade lingüística está na base do sistema da língua Problema da palavra estrangeira Erros do objetivismo abstrato Conclusões Capítulo 6 A Interação Verbal 110 Teoria da expressão do subjetivismo individualista Crítica da teoria da expressão Estrutura sociológica da atividade mental e de sua expressão Problema da ideologia na vida cotidiana A fala como base da evolução da língua A enunciação completa e suas formas Capítulo 7 Tema e Significação na Língua 128 Tema e significação Problema da apreensão ativa Apreciação e significação Dialética da significação TERCEIRA PARTE PARA UMA HISTÓRIA DAS FORMAS DA ENUNCIAÇÃO NAS CONSTRUÇÕES SINTÁTICAS Tentativa de Aplicação do Método Sociológico aos Problemas Sintáticos Capítulo 8 Teoria da Enunciação e Problemas Sintáticos 139 Significação dos problemas sintáticos Categorias sintáticas e enunciações completas Problema dos parágrafos Problemas das formas de transmissão do discurso de outrem Capítulo 9 O Discurso de Outrem 144 Apresentação do problema Determinação do discurso de outrem Problema da apreensão ativa do discurso vinculado ao problema do diálogo Dinâmica da interrelação do contexto narrativo e do discurso citado O estilo linear em matéria de transmissão do discurso de outrem em relação ao estilo pictórico Capítulo 10 Discurso Indireto Discurso Direto e suas variantes 155 Esquemas e variantes Gramática e estilística Caracteres gerais da transmissão do discurso de outrem na língua russa Esquema do discurso indireto Variante analisadora do conteúdo do discurso indireto Esquema do discurso direto Discurso direto preparado Discurso direto esvaziado Discurso direto antecipado dissemi nado oculto Fenômeno da interferência verbal Interrogações retóricas e exclamações Discurso direto de substituição Discurso indireto livre 23 Capítulo 11 Discurso Indireto Livre em Francês Alemão e Russo 174 Discurso indireto livre em francês Teoria de Tobler Teoria de Kalepky Teoria de Bally Crítica do objetivismo abstrato hipostático de Bally Bally e os vosslerianos Discurso indireto livre em alemão Teoria de Eugen Lerch Teoria de Lerch Teoria de Lorck sobre o papel da imaginação na língua Teoria de Gertraud Lerch O discurso citado em francês antigo Na época do Renascimento Discurso indireto livre em La Fontaine e La Bruyère Discurso indireto livre segundo Vossler Aparição do discurso indireto livre em alemão Crítica do subjetivismo hipostatizante dos vosslerianos 24 PRÓLOGO Não existe atualmente uma única análise marxista no domínio da filosofia da linguagem Nem sequer há nos trabalhos marxistas relativos a outras questões próximas daquelas da linguagem alguma formulação a respeito desta que seja um pouco precisa e desenvolvida Portanto a problemática de nosso trabalho que desbrava de certa forma um terreno ainda virgem só pode evidentemente situarse num nível bastante modesto Não se trata de uma análise marxista sistemática e definitiva dos problemas básicos da filosofia da linguagem Tal análise só poderia resultar de um trabalho coletivo de grande fôlego De nossa parte tivemos que nos restringir à simples tarefa de esboçar as orientações de base que uma reflexão aprofundada sobre a linguagem deveria seguir e os procedimentos metodológicos a partir dos quais essa reflexão deve estabelecerse para abordar os problemas concretos da lingüística A atual inexistência na literatura marxista de uma descrição definitiva e universalmente reconhecida da realidade específica dos problemas ideológicos tornou nossa tarefa particularmente complexa Na maioria dos casos esses problemas são percebidos como manifestações da consciência isto é como fenômenos de natureza psicológica Uma tal concepção constituiu um grande obstáculo ao estudo correto dos aspectos específicos dos fenômenos ideológicos os quais não podem de forma alguma ser reduzidos às particularidades da consciência e do psiquismo Por isso o papel da língua como realidade material específica da criação ideológica não pôde ser justamente apreciado É preciso acrescentar a isso que categorias do tipo mecani cista implantaramse solidamente em todos os domínios a respeito dos quais os pais fundadores Marx e Engels pouco ou nada disseram Esses domínios portanto encontramse com respeito ao essencial no estádio do materialismo mecanicista prédialético Todos os domínios da ciência das ideologias achamse atualmente ainda dominados pela categoria da causalidade mecanicista Além 25 disso persiste ainda a concepção positivista do empirismo que se inclina diante do fato entendido não dialeticamente mas como algo intangível e imutável Praticamente o espírito filosófico do marxismo ainda não penetrou nesses domínios Por essas razões foinos quase totalmente impossível encontrar apoio em resultados precisos e positivos que tivessem sido obtidos pelas outras ciências que se relacionam com a ideologia Mesmo a crítica literária que graças a Plekhánov é todavia a mais desenvolvida dessas ciências nada pôde fornecer de útil a nossa objeto de estudo Este livro apresentase essencialmente como um trabalho de pesquisa mas tentamos conferirlhe uma forma acessível ao grande público Na primeira parte de nosso trabalho tentamos mostrar a importância dos problemas da filosofia da linguagem para o marxismo em seu conjunto Essa importância não tem sido como dissemos suficientemente apreciada E no entanto os problemas da filosofia da linguagem situamse no ponto de convergência de uma série de domínios essenciais para a concepção marxista do mundo e de alguns domínios que têm interessado muito atualmente nossa opinião pública Convém acrescentar que nesses últimos anos os problemas fundamentais da filosofia da linguagem adquiriram uma acuidade e uma importância excepcionais Podese dizer que a filosofia burguesa contemporânea está se desenvolvendo sob o signo da palavra E essa nova orientação do pensamento filosófico do Ocidente está ainda só nos seus primeiros passos A palavra e sua situação no sistema são a parada de uma luta inflamada somente comparável àquela que na Idade Média opôs realistas nominalistas e conceitualistas Na realidade no realismo dos fenomenólogos e no conceitualismo dos neokantianos assistimos numa certa medida a um renascimento da tradição das escolas filosóficas medievais Na lingüística propriamente dita após a era positivista marcada pela recusa de qualquer teorização dos problemas científicos a que se adiciona uma hostilidade por parte dos positivistas retardatários em relação aos problemas de visão do mundo assistese a uma nítida tomada de consciência dos fundamentos filosóficos dessa ciência e de suas relações com os outros domínios do conhecimento E isso serviu para denunciar a crise que a lingüística atravessa na sua incapacidade de resolver seus problemas de modo satisfatório 26 Indicar o lugar dos problemas da filosofia da linguagem dentro do conjunto da visão marxista do mundo este é o objetivo de nossa primeira parte É por isso que ela não contém demonstrações e não propõe conclusões definitivas Seu interesse está mais voltado para a relação entre os problemas do que para a relação entre os fatos estudados A segunda parte tenta resolver o problema fundamental da filo sofia da linguagem ou seja o problema da natureza real dos fenômenos lingüísticos Esse problema constitui o eixo em torno do qual giram todas as questões essenciais do pensa mento filosóficolingüístico contemporâneo Problemas tão fundamentais quanto o da evolução da língua da interação verbal da compreensão o problema da significação e muitos outros ainda estão estreitamente vinculados a esse problema central Evidentemente apenas esboçamos as principais vias que conduzem à sua resolução Toda uma série de questões permanece em suspenso Toda uma série de direções de pesquisa indicadas no começo permanece inexplorada Mas não poderia ser de outro modo num pequeno livro que pela primeira vez tenta abordar esses problemas de um ponto de vista marxista Na última parte de nosso trabalho é realizado um estudo concreto de uma questão de sintaxe A idéia diretiva de toda nossa pesquisa o papel produtivo e a natureza social da enunciação requer exemplos concretos que a sustentem é indispensável mostrar sua importância não só no plano geral da visão do mundo e para as questões básicas da filosofia da linguagem mas também para todas as questões da lingüística por mais particulares que sejam Se essa idéia é realmente justa e fecunda ela deve poder ser aplicada em todos os níveis Mas o tema da terceira parte a questão do discurso citado tem ele mesmo uma significação profunda que vai muito além do quadro da sintaxe Vários aspectos essenciais da criação literária o discurso do herói a estruturação do herói de maneira geral o Skaz a estilização a paródia nada mais são do que refrações diversas do discurso de outrem É portanto indispensável compreender esse tipo de discurso e as regras sociológicas que o regem para analisar de maneira fecunda os aspectos da criação literária acima citados Narrativa em primeira pessoa freqüentemente num estilo popular V tradução francesa de La Poétique de Dostoïevski Paris Seuil 1970 p 243 NT 27 A questão tratada na terceira parte não foi objeto de nenhum estudo na literatura lingüística Por exemplo o discurso indireto livre que Púchkin já utilizava não foi mencionado nem descrito por ninguém Também nunca foram estudadas as variantes muito diferentes do discurso direto e do discurso indireto Portanto a orientação de nosso trabalho vai do geral ao particular do abstrato ao concreto das questões de filosofia geral às questões de lingüística geral a partir disso abordamos finalmente uma questão específica que diz respeito tanto à gramática sintaxe quanto à estilística 28 PRIMEIRA PARTE A FILOSOFIA DA LINGUAGEM E SUA IMPORTÂNCIA PARA O MARXISMO 29 CAPÍTULO 1 ESTUDO DAS IDEOLOGIAS E FILOSOFIA DA LINGUAGEM Os problemas da filosofia da linguagem adquiriram recentemente uma atualidade e uma importância excepcionais para o marxismo Na maioria dos setores mais importantes de seu desenvolvimento científico o método marxista vai diretamente de encontro a esses problemas e não pode avançar de maneira eficaz sem submetêlos a um exame específico e encontrarlhes uma solução Para começar as bases de uma teoria marxista da criação ideológica as dos estudos sobre o conhecimento científico a literatura a religião a moral etc estão estreitamente ligadas aos problemas de filosofia da linguagem Um produto ideológico faz parte de uma realidade natural ou social como todo corpo físico instrumento de produção ou produto de consumo mas ao contrário destes ele também reflete e refrata uma outra realidade que lhe é exterior Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo Em outros termos tudo que é ideológico é um signo Sem signos não existe ideologia Um corpo físico vale por si próprio não significa nada e coincide inteiramente com sua própria natureza Neste caso não se trata de ideologia No entanto todo corpo físico pode ser percebido como símbolo é o caso por exemplo da simbolização do princípio de inércia e de necessidade na natureza determinismo por um determinado objeto único E toda imagem artísticosimbólica ocasionada por um objeto físico particular já é um produto ideológico Convertese assim em signo o objeto físico o qual sem deixar de fazer parte da realidade material passa a refletir e a refratar numa certa medida uma outra realidade O mesmo se dá com um instrumento de produção Em si mesmo um instrumento não possui um sentido preciso mas apenas uma função desempenhar este ou aquele papel na pro 30 dução E ele desempenha essa função sem refletir ou representar alguma outra coisa Todavia um instrumento pode ser convertido em signo ideológico é o caso por exemplo da foice e do martelo como emblema da União Soviética A foice e o martelo possuem aqui um sentido puramente ideológico Todo instrumento de produção pode da mesma forma se revestir de um sentido ideológico os instrumentos utilizados pelo homem préhistórico eram cobertos de representações simbólicas e de ornamentos isto é de signos Nem por isso o instrumento assim tratado tornase ele próprio um signo Por outro lado é possível dar ao instrumento uma forma artística que assegure uma adequação harmônica da forma à função na produção Nesse caso produzse uma espécie de aproximação máxima quase uma fusão entre o signo e o instrumento Mas mesmo aqui ainda discernimos uma linha de demarcação conceitual o instrumento enquanto tal não se torna signo e o signo enquanto tal não se torna instrumento de produção Qualquer produto de consumo pode da mesma forma ser transformado em signo ideológico O pão e o vinho por exemplo tornamse símbolos religiosos no sacramento cristão da comunhão Mas o produto de consumo enquanto tal não é de maneira alguma um signo Os produtos de consumo assim como os instrumentos podem ser associados a signos ideológicos mas essa associação não apaga a linha de demarcação existente entre eles O pão possui uma forma particular que não é apenas justificável pela sua função de produto de consumo essa forma possui também um valor mesmo que primitivo de signo ideológico por exemplo o pão com a forma de número oito ou de uma roseta Portanto ao lado dos fenômenos naturais do material tecnológico e dos artigos de consumo existe um universo particular o universo de signos Os signos também são objetos naturais específicos e como vimos todo produto natural tecnológico ou de consumo pode tornar se signo e adquirir assim um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades Um signo não existe apenas como parte de uma realidade ele também reflete e refrata uma outra Ele pode distorcer essa realidade serlhe fiel ou apreendêla de um ponto de vista específico etc Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica isto é se é verdadeiro falso correto justificado bom etc O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos são mutuamente correspondentes Ali onde o signo se encontra encontrase também o ideológico Tudo que é ideológico possui um valor semiótico 31 No domínio dos signos isto é na esfera ideológica existem diferenças profundas pois este domínio é ao mesmo tempo o da representação do símbolo religioso da fórmula científica e da forma jurídica etc Cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida social É seu caráter semiótico que coloca todos os fenômenos ideológicos sob a mesma definição geral Cada signo ideológico é não apenas um reflexo uma sombra da realidade mas também um fragmento material dessa realidade Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material seja como som como massa física como cor como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer Nesse sentido a realidade do signo é totalmente objetiva e portanto passível de um estudo metodologicamente unitário e objetivo Um signo é um fenômeno do mundo exterior O próprio signo e todos os seus efeitos todas as ações reações e novos signos que ele gera no meio social circundante aparecem na experiência exterior Este é um ponto de suma importância No entanto por mais elementar e evidente que ele possa parecer o estudo das ideologias ainda não tirou todas as conseqüências que dele decorrem A filosofia idealista e a visão psicologista da cultura situam a ideologia na consciência1 Afirmam que a ideologia é um fato de consciência e que o aspecto exterior do signo é simplesmente um revestimento um meio técnico de realização do efeito interior isto é da compreensão O idealismo e o psicologismo esquecem 1 Notemos que sobre esse ponto é possível detectar uma mudança de perspectiva no neokantismo moderno Estou pensando no recente livro de Ernst Cassirer Philosophie der symbolischen Formen vol I 1923 Embora continue se situando no terreno da consciência Cassirer considera que seu traço dominante é a representação Cada elemento de consciência representa alguma coisa é o suporte de uma função simbólica O todo existe nas suas partes mas uma parte só é compreensível no todo Segundo Cassirer a idéia é tão sensorial quanto a matéria no entanto o aspecto sensorial introduzido aqui é o do signo simbólico é uma sensorialidade representativa 32 que a própria compreensão não pode manifestarse senão através de um material semiótico por exemplo o discurso interior que o signo se opõe ao signo que a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos Afinal compreender um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos em outros termos a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos E essa cadeia de criatividade e de compreensão ideológicas deslocandose de signo em signo para um novo signo é única e contínua de um elo de natureza semiótica e portanto também de natureza material passamos sem interrupção para um outro elo de natureza estritamente idêntica Em nenhum ponto a cadeia se quebra em nenhum ponto ela penetra a existência interior de natureza não material e não corporificada em signos Essa cadeia ideológica estendese de consciência individual em consciência individual ligando umas às outras Os signos só emergem decididamente do processo de interação entre uma consciência individual e uma outra E a própria consciência individual está repleta de signos A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico semiótico e conseqüentemente somente no processo de interação social Apesar de suas profundas diferenças metodológicas a filosofia idealista e o psicologismo em matéria de cultura cometem ambos o mesmo erro fundamental Situando a ideologia na consciência eles transformam o estudo das ideologias em estudo da consciência e de suas leis pouco importa que isso seja feito em termos transcendentais ou em termos empíricopsicológicos Esse erro não só é responsável por uma confusão metodológica acerca da interrelação entre domínios diferentes do conhecimento como também por uma distorção radical da realidade estudada A criação ideológica ato material e social é introduzida à força no quadro da consciência individual Esta por sua vez é privada de qualquer suporte na realidade Tornase tudo ou nada Para o idealismo ela tornouse tudo situada em algum lugar acima da existência e determinandoa De fato na teoria idealista essa soberana do universo é a mera hipóstase de um vínculo abstrato entre as formas e as categorias mais gerais da criação ideológica Para o positivismo psicologista ao contrário a consciência se reduz a nada simples conglomerado de reações psicofisiológicas fortuitas que por milagre resulta numa criação ideológica significante e unificada 33 A regularidade social objetiva da criação ideológica quan do indevidamente interpretada como estando em conformidade com as leis da consciência individual deve inevitavelmente ser excluída de seu verdadeiro lugar na existência e transportada quer para a empíreo supraexistencial do transcendentalismo quer para os recônditos présociais do organismo psicofisiológico biológico No entanto o ideológico enquanto tal não pode ser explicado em termos de raízes supra ou infrahumanas Seu verdadeiro lugar é o material social particular de signos criados pelo homem Sua especificidade reside precisamente no fato de que ele se situa entre indivíduos organizados sendo o meio de sua comunicação Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual Ainda assim tratase de um terreno que não pode ser chamado de natural no sentido usual da palavra2 não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados que formem um grupo uma unidade social só assim um sistema de signos pode constituirse A consciência individual não só nada pode explicar mas ao contrário deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social A consciência individual é um fato sócioideológico Enquanto esse fato e todas as suas conseqüências não forem devidamente reconhecidas não será possível construir nem uma psicologia objetiva nem um estudo objetivo das ideologias É justamente o problema da consciência que criou as maiores dificuldades e gerou a formidável confusão que encontramos em todas as discussões relativas tanto à psicologia quanto ao estudo das ideologias De maneira geral a consciência tornouse o asylum ignorantiae de todo edifício filosófico Foi transformada em depósito de todos os problemas não resolvidos de todos os resíduos objetivamente irredutíveis Ao invés de se buscar uma definição objetiva da consciência esta foi usada para tornar subjetivas e fluidas certas noções até então sólidas e objetivas A única definição objetiva possível da consciência é de ordem sociológica A consciência não pode derivar diretamente da natureza como tentaram e ainda tentam mostrar o materialismo mecanicista ingênuo e a psicologia contemporânea sob suas diferentes formas 2 A sociedade evidentemente é também uma parte da natureza mas uma parte que é qualitativamente distinta e separada dela e que possui seu próprio sistema de leis específicas 34 biológica behaviorista etc A ideologia não pode derivar da consciência como pretendem o idealismo e o positivis mo psicologista A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais Os signos são o alimento da consciência individual a maté ria de seu desenvolvimento e ela reflete sua lógica e suas leis A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica da interação semiótica de um grupo social Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico não sobra nada A imagem a palavra o gesto significante etc constituem seu único abrigo Fora desse material há apenas o simples ato fisiológico não esclarecido pela consciência desprovido do sentido que os signos lhe conferem Tudo o que dissemos acima conduz ao seguinte princípio metodológico o estudo das ideologias não depende em nada da psicologia e não tem nenhuma necessidade dela Como veremos é antes o contrário que é verdadeiro a psicologia objetiva deve se apoiar no estudo das ideologias A realidade dos fenômenos ideológicos é a realidade objetiva dos signos sociais As leis dessa realidade são as leis da comunicação semiótica e são diretamente determinadas pelo conjunto das leis sociais e econômicas A realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base econômica A consciência individual não é o arquiteto dessa superestrutura ideológica mas apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos Preliminarmente portanto separando os fenômenos ideológicos da consciência individual nós os ligamos às condições e às formas da comunicação social A existência do signo nada mais é do que a materialização dessa comunicação É nisso que consiste a natureza de todos os signos ideológicos Mas esse espaço semiótico e esse papel contínuo da comuni cação social como fator condicionante não aparecem em nenhum lugar de maneira mais clara e completa do que na linguagem A palavra é o fenômeno ideológico por excelência A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função nada que não tenha sido gerado por ela A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social O valor exemplar a representatividade da palavra como fenômeno ideológico e a excepcional nitidez de sua estrutura semiótica já deveriam nos fornecer razões suficientes para colocarmos a palavra em primeiro plano no estudo das ideologias É precisamente na 35 palavra que melhor se revelam as formas básicas as formas ideológicas gerais da comunicação semiótica Mas a palavra não é somente o signo mais puro mais indica tivo é também um signo neutro Cada um dos demais sistemas de signos é específico de algum campo particular da criação ideológica Cada domínio possui seu próprio material ideológico e formula signos e símbolos que lhe são específicos e que não são aplicáveis a outros domínios O signo então é criado por uma função ideológica precisa e permanece inseparável dela A palavra ao contrário é neutra em relação a qualquer função ideológica específica Pode preencher qualquer espécie de função ideológica estética científica moral religiosa Além disso existe uma parte muito importante da comunicação ideológica que não pode ser vinculada a uma esfera ideológica particular tratase da comunicação na vida cotidiana Esse tipo de comunicação é extraordinariamente rica e importante Por um lado ela está diretamente vinculada aos processos de produção e por outro lado diz respeito às esferas das diversas ideologias especializadas e formalizadas Trataremos no próximo capítulo com maior detalhe desse domínio especial que é a ideologia do cotidiano Por ora notemos apenas que o material privilegiado da comunicação na vida cotidiana é a palavra É justamente nesse domínio que a conversação e suas formas discursivas se situam Há uma outra propriedade da palavra que é da maior importância e que a torna o primeiro meio da consciência individual Embora a realidade da palavra como a de qualquer signo resulte do consenso entre os indivíduos uma palavra é ao mesmo tempo produzida pelos próprios meios do organismo individual sem nenhum recurso a uma aparelhagem qualquer ou a alguma outra espécie de material extracorporal Isso determinou o papel da palavra como material semiótico da vida interior da consciência discurso interior Na verdade a consciência não poderia se desenvolver se não dispusesse de um material flexível veiculável pelo corpo E a palavra constitui exatamente esse tipo de material A palavra é por assim dizer utilizável como signo interior pode funcionar como signo sem expressão externa Por isso o problema da consciência individual como problema da palavra interior em geral constitui um dos problemas fundamentais da filosofia da linguagem É claro que esse problema não pode ser abordado corretamente se se recorre aos conceitos usuais de palavra e de língua tais como foram definidos pela lingüística e pela filosofia da lingua gem nãosociológicas É preciso fazer uma análise profunda e aguda 36 da palavra como signo social para compreender seu funciona mento como instrumento da consciência É devido a esse pa pel excepcional de instrumento da consciência que a palavra funciona como elemento essencial que acompanha toda criação ideológica seja ela qual for A palavra acompanha e comenta todo ato ideoló gico Os processos de compreensão de todos os fenômenos ideológicos um quadro uma peça musical um ritual ou um comportamento humano não podem operar sem a participação do discurso interior Todas as manifestações da criação ideológica todos os signos nãoverbais banhamse no discurso e não podem ser nem totalmente isoladas nem totalmente separadas dele Isso não significa obviamente que a palavra possa suplantar qualquer outro signo ideológico Nenhum dos signos ideoló gicos específicos fundamentais é inteiramente substituível por palavras É impossível em última análise exprimir em palavras de modo adequado uma composição musical ou uma representação pictórica Um ritual religioso não pode ser inteiramente substituído por palavras Nem sequer existe um substituto verbal realmente adequado para o mais simples gesto humano Negar isso conduz ao racionalismo e ao simplismo mais grosseiros Todavia embora nenhum desses signos ideológicos seja substituível por palavras cada um deles ao mesmo tempo se apóia nas palavras e é acompanhado por elas exatamente como no caso do canto e de seu acompanhamento musical Nenhum signo cultural quando compreendido e dotado de um sentido permanece isolado tornase parte da unidade da consciência verbalmente constituída A consciência tem o poder de abordálo verbalmente Assim ondas crescentes de ecos e ressonâncias verbais como as ondulações concêntricas à superfície das águas moldam por assim dizer cada um dos signos ideológicos Toda refração ideológica do ser em processo de formação seja qual for a natureza de seu material significante é acompanhado de uma refração ideológica verbal como fenômeno obrigatoriamente concomitante A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação Todas as propriedades da palavra que acabamos de examinar sua pureza semiótica sua neutralidade ideológica sua implicação na comunicação humana ordinária sua possibilidade de interiorização e finalmente sua presença obrigatória como fenômeno acompanhante em todo ato consciente todas essas propriedades fazem dela o objeto fundamental do estudo das ideologias As leis da refração ideológica da existência em signos e em consciência suas formas e seus 37 mecanismos devem ser estudados antes de mais nada a partir desse material que é a palavra A única maneira de fazer com que o método sociológico marxista dê conta de todas as profundidades e de todas as sutilezas das estruturas ideológicas imanentes consiste em partir da filosofia da linguagem concebida como filosofia do signo ideológico E essa base de partida deve ser traçada e elaborada pelo próprio marxismo 38 CAPÍTULO 2 A RELAÇÃO ENTRE A INFRAESTRUTURA E AS SUPERESTRUTURAS Um dos problemas fundamentais do marxismo o das relações entre a infraestrutura e as superestruturas achase intimamente ligado em muitos de seus principais aspectos aos problemas da filosofia da linguagem O marxismo só tem pois a ganhar com a resolução ou pelo menos com o tratamento ainda que não muito aprofundado destas questões Sempre que se coloca a questão de saber como a infraestrutura determina a ideologia encontramos a seguinte resposta que embora justa mostrase por demais genérica e por isso ambígua a causalidade Se for necessário entender por causalidade a mecanicista como tem sido entendida até hoje pela corrente positivista da escola naturalista então uma tal resposta se revela radicalmente mentirosa e contraditória com os próprios fundamentos do materialismo dialético A esfera de aplicação da categoria de causalidade mecanicista é extremamente limitada mesmo nas ciências naturais ela se reduz cada vez mais à medida que o materialismo dialético alarga seu campo de aplicação e aprofunda suas teses Está fora de questão a fortiori aplicar esta categoria inerte aos problemas fundamentais do materialismo histórico ou a qualquer ciência das ideologias A explicitação de uma relação entre a infraestrutura e um fenômeno isolado qualquer destacado de seu contexto ideoló gico completo e único não apresenta nenhum valor cognitivo Antes de mais nada é impossível estabelecer o sentido de uma dada transformação ideológica no contexto da ideologia correspondente considerando que toda esfera ideológica se apre senta como um conjunto único e indivisível cujos elementos sem exceção reagem a uma transformação da infraestrutura Eis porque toda explicação deve ter em conta a diferença quantitativa entre as esferas de influência recíproca e seguir passo a passo todas as etapas da transformação Apenas sob esta condição a análise desembo 39 cará não na convergência superficial de dois fenômenos fortuitos e situados em planos diferentes mas num processo de evolução social realmente dialético que procede da infraestrutura e vai tomar forma nas superestruturas Ignorar a especificidade do material semióticoideológico é reduzir o fenômeno ideológico é tomar em consideração e explicar apenas seu valor denotativo racional por exemplo o sentido diretamente representativo de uma dada obra literária Rúdin o homem supérfluo componente este colocado então em relação com a infra estrutura aqui o empobrecimento da nobreza donde o tema homem supérfluo na literatura ou então ao contrário é isolar apenas o componente superficial técnico do fenômeno ideológico exemplo a técnica arquitetônica ou ainda a técnica dos colorantes químicos e neste caso este componente deduzse diretamente do nível técnico da produção Tanto um quanto outro método de dedução da ideologia a partir da infraestrutura passam à margem da substância do fenômeno ideológico Mesmo se a correspondência estabelecida for justa mesmo se o homem supérfluo tiver efetivamente aparecido na literatura em correlação com a decadência econômica da nobreza em primeiro lugar disto não decorre em absoluto que os reveses econômicos correspondentes engendrem por um fenômeno de causalidade mecanicista homens supérfluos nas páginas dos romances a futilidade de uma tal suposição é absolutamente evidente em segundo lugar esta correspondência não tem nenhum valor cognitivo enquanto não se explicitarem o papel específico do homem supérfluo na estrutura da obra romanesca e o papel específico do romance no conjunto da vida social Não parece evidente que entre a transformação da estrutura econômi ca e o aparecimento do homem supérfluo no romance existe um longo percurso que passa por uma série de esferas qualitati vamente diferenciadas estando cada uma delas dotada de um con junto de regras específicas e de um caráter próprio Não parece evi Título de um célebre romance de Turguiéniev que constitui a confissão de toda uma geração a dos anos 1830 conhecida na história russa pelo nome de geração idealista e marcada pela sua incapacidade de agir Dela podemos aproximar os personagens Oblómov em Oblómov de IA Gontcharov Deltov em De quem é a Culpa de A I Herzen e Bazárov em Pais e Filhos de Turguiéniev NdTf 40 dente que o homem supérfluo não surgiu no romance de for ma independente e sem qualquer ligação com os outros ele mentos constitutivos do romance Bem ao contrário o romance no seu conjunto reestruturouse como um todo único orgânico subme tido a suas próprias leis específicas Portanto reestruturamse tam bém todos os outros elementos do romance sua composição seu estilo Mas esta reestruturação do romance completouse também em estreita ligação com as demais transformações no conjunto da literatura O problema da relação recíproca entre a infraestrutura e as superestruturas problema dos mais complexos e que exige para sua resolução fecunda um volume enorme de materiais preliminares pode justamente ser esclarecido em larga escala pelo estudo do material verbal De fato a essência deste problema naquilo que nos interessa ligase à questão de saber como a realidade a infraestrutura determina o signo como o signo reflete e refrata a realidade em transformação As características da palavra enquanto signo ideológico tais como foram ressaltadas no primeiro capítulo fazem dela um dos mais adequados materiais para orientar o problema no plano dos princípios Não é tanto a pureza semiótica da palavra que nos interessa na relação em questão mas sua ubiqüidade social Tanto é verdade que a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos nas relações de colaboração nas de base ideológica nos encontros fortuitos da vida cotidiana nas relações de caráter político etc As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais mesmo daquelas que apenas despontam que ainda não tomaram forma que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas mais efêmeras das mudanças sociais O que chamamos de psicologia do corpo social e que constitui segundo a teoria de Plekhánov e da maioria dos marxistas uma espécie de elo de ligação entre a estrutura sóciopolítica e a ideo logia no sentido estrito do termo ciência arte etc reali 41 zase materializase sob a forma de interação verbal Se conside rada fora deste processo real de comunicação e de interação ver bal ou mais genericamente semiótica a psicologia do corpo so cial se transforma num conceito metafísico ou mítico a alma coletiva o inconsciente coletivo o espírito do povo etc A psicologia do corpo social não se situa em nenhum lugar interior na alma dos indivíduos em situação de comunicação ela é pelo contrário inteiramente exteriorizada na palavra no gesto no ato Nada há nela de inexprimível de interiorizado tudo está na superfície tudo está na troca tudo está no material principalmente no material verbal As relações de produção e a estrutura sóciopolítica que delas diretamente deriva determinam todos os contatos verbais possíveis entre indivíduos todas as formas e os meios de comunicação verbal no trabalho na vida política na criação ideológica Por sua vez das condições formas e tipos da comunicação verbal derivam tanto as formas como os temas dos atos de fala A psicologia do corpo social é justamente o meio ambiente inicial dos atos de fala de toda espécie e é neste elemento que se acham submersas todas as formas e aspectos da criação ideológica ininterrupta as conversas de corredor as trocas de opinião no teatro e no concerto nas diferentes reuniões sociais as trocas puramente fortuitas o modo de reação verbal face às realidades da vida e aos acontecimentos do diaadia o discurso interior e a consciência auto referente a regulamentação social etc A psicologia do corpo social se manifesta essencialmente nos mais diversos aspectos da enunciação sob a forma de diferentes modos de discurso sejam eles interiores ou exteriores Este campo não foi objeto de nenhum estudo até hoje Todas estas manifestações verbais estão por certo ligadas aos demais tipos de manifestação e de interação de natureza semiótica à mímica à linguagem gestual aos gestos condicionados etc Estas formas de interação verbal achamse muito estreitamente vinculadas às condições de uma situação social dada e reagem de maneira muito sensível a todas as flutuações da atmosfera social Assim é que no seio desta psicologia do corpo social materializada na palavra acumulamse mudanças e deslocamentos quase imperceptíveis que mais tarde encontram sua expressão nas produções ideológicas acabadas Do que até agora foi dito podemos deduzir o seguinte que a psicologia do corpo social deve ser estudada de dois pontos de vista 42 diferentes primeiramente do ponto de vista do conteúdo dos temas que aí se encontram atualizados num dado momento do tempo e em segundo lugar do ponto de vista dos tipos e formas de discurso através dos quais estes temas tomam forma são comentados se realizam são experimentados são pensados etc Até o presente o estudo da psicologia do corpo social se limitava ao primeiro ponto de vista ou seja à explicitação única da temática nela contida E mais a própria questão de saber onde buscar documentos objetivos isto é a expressão materializada da psicologia do corpo social nem mesmo se colocava com toda sua clareza Aí então os conceitos de consciência psiquismo e mundo interior desempenharam um papel deplorável suprimindo a necessidade de pesquisar as formas materiais precisas da expressão da psicologia do corpo social No entanto esta questão das formas concretas tem uma significação imediata Não se trata é claro nem das fontes de nosso conhecimento da psicologia do corpo social numa ou noutra época por exemplo memórias cartas obras literárias nem das fontes de nossa compreensão do espírito da época Tratase muito precisamente das próprias formas de concretização deste espírito isto é das formas da comunicação no contexto da vida e através de signos A tipologia destas formas é um dos problemas vitais para o marxismo Mais tarde em conexão com o problema da enunciação e do diálogo abordaremos também o problema dos gêneros lingüísticos A este respeito faremos simplesmente a seguinte observação cada época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comunicação sócioideológica A cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gênero isto é a cada forma de discurso social corresponde um grupo de temas Entre as formas de comunicação por exemplo relações entre colaboradores num contexto puramente técnico a forma de enunciação respostas curtas na linguagem de negócios e enfim o tema existe uma unidade orgânica que nada poderia destruir Eis porque a classificação das formas de enunciação deve apoiarse sobre uma classificação das formas da comunicação verbal Estas últimas são inteiramente determinadas pelas relações de produção e pela estrutura sóciopolítica Uma análise mais minuciosa revelaria a importância incomensurável do componente hierárquico no processo de interação verbal a influência poderosa que exerce a organização hierarquizada das relações sociais sobre as formas de enunciação O respeito às regras da etiqueta do bemfalar e as demais formas de adaptação da enunciação à organização 43 hierarquizada da sociedade têm uma importância imensa no processo de explicitação dos principais modos de comportamento1 Todo signo como sabemos resulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação Razão pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece Uma modificação destas formas ocasiona uma modificação do signo É justamente uma das tarefas da ciência das ideologias estudar esta evolução social do signo lingüístico Só esta abordagem pode dar uma expressão concreta ao problema da mútua influência do signo e do ser é apenas sob esta condição que o processo de determinação causal do signo pelo ser aparece como uma verdadeira passagem do ser ao signo como um processo de refração realmente dialético do ser no signo Para tanto é indispensável observar as seguintes regras metodológicas 1 Não separar a ideologia da realidade material do signo colocandoa no campo da consciência ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível 2 Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social entendendose que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organizada e que não tem existência fora deste sistema a não ser como objeto físico 3 Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material infraestrutura Realizandose no processo da relação social todo signo ideológico e portanto também o signo lingüístico vêse marcado pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinados Até agora tratamos da forma do signo enquanto determinado pelas formas da interação social Iremos agora abordar um outro aspecto o do conteúdo do signo e do índice de valor que afeta todo conteúdo A cada etapa do desenvolvimento da sociedade encontramse grupos de objetos particulares e limitados que se tornam objeto da 1 O problema dos registros da língua familiar só começou a chamar a atenção dos lingüistas e filósofos bem recentemente 44 atenção do corpo social e que por causa disso tomam um valor particular Só este grupo de objetos dará origem a signos Leo Spitzer num artigo intitulado Italienische Umgangsprache 1922 foi um dos primeiros a abordar este problema de forma séria embora destituída de critérios sociológicos Ele será citado adiante juntamente com seus precursores e imitadores tornarseá um elemento da comunicação por signos Como se pode determinar este grupo de objetos valorizados Para que o objeto pertencente a qualquer esfera da realidade entre no horizonte social do grupo e desencadeie uma reação semióticoideológica é indispensável que ele esteja ligado às condições sócioeconômicas essenciais do referido grupo que concerne de alguma maneira às bases de sua existência material Evidentemente o arbítrio individual não poderia desempenhar aqui papel algum já que o signo se cria entre indivíduos no meio social é portanto indispensável que o objeto adquira uma significação interindividual somente então é que ele poderá ocasionar a formação de um signo Em outras palavras não pode entrar no domínio da ideologia tomar forma e aí deitar raízes senão aquilo que adquiriu um valor social É por isso que todos os índices de valor com caracterís ticas ideológicas ainda que realizados pela voz dos indivíduos por exemplo na palavra ou de modo mais geral por um orga nismo individual constituem índices sociais de valor com pre tensões ao consenso social e apenas em nome deste consenso é que eles se exteriorizam no material ideológico Admitamos chamar a realidade que dá lugar à formação de um signo de tema do signo Cada signo constituído possui seu tema Assim cada manifestação verbal tem seu tema2 O tema ideológico possui sempre um índice de valor social Por certo todos estes índices sociais de valor dos temas ideológicos chegam igualmente à consciência individual que como sabemos é toda ideologia Aí eles se tornam de certa forma índices individuais de valor na medida em que a consciência individual os absorve como sendo seus mas sua fonte não se encontra na consciência individual 2 A relação do tema com a semântica das palavras individuais que constituem a enunciação será retomada adiante em seus pormenores 45 O índice de valor é por natureza interindividual O grito do animal enquanto pura reação de um organismo individual à dor é despido de índice de valor É um fenômeno puramente natural O grito não depende da atmosfera social razão pela qual ele não recebe sequer o esboço de uma formalização semiótica O tema e a forma do signo ideológico estão indissoluvelmente ligados e não podem por certo diferenciarse a não ser abstratamente Tanto é verdade que em última análise são as mesmas forças e as mesmas condições que dão vida a ambos Afinal são as mesmas condições econômicas que associam um novo elemento da realidade ao horizonte social que o tornam socialmente pertinente e são as mesmas forças que criam as formas da comunicação ideológica cognitiva artística religiosa etc as quais determinam por sua vez as formas da expressão semiótica Assim os temas e as formas da criação ideológica crescem juntos e constituem no fundo as duas facetas de uma só e mesma coisa Este processo de integração da realidade na ideologia o nascimento dos temas e das formas se tornam mais facilmente observáveis no plano da palavra Este processo de transformação ideológica refletiuse na língua em grande escala no mundo e na história é ele objeto de estudo da paleontologia das significações lingüísticas que põe em evidência a integração de planos da realidade ainda não diferenciados no horizonte social dos homens préhistóricos Sucede o mesmo em escala mais reduzida na época contemporânea já que a palavra como sabemos reflete sutilmente as mais imperceptíveis alterações da existência social O ser refletido no signo não apenas nele se reflete mas também se refrata O que é que determina esta refração do ser no signo ideológico O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica ou seja a luta de classes Classe social e comunidade semiótica não se confundem Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um único e mesmo código ideológico de comunicação Assim classes sociais diferentes servemse de uma só e mesma língua Conseqüentemente em todo signo ideológico confrontamse índices de valor contraditórios O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior importância Na verdade é este entrecruzamento dos índices de 46 valor que torna o signo vivo e móvel capaz de evoluir O signo se subtraído às tensões da luta social se posto à margem da luta de classes irá infalivelmente debilitarse degenerará em alegoria tornar seá objeto de estudo dos filólogos e não será mais um instrumento racional e vivo para a sociedade A memória da história da humanidade está cheia destes signos ideológicos defuntos incapazes de constituir uma arena para o confronto dos valores sociais vivos Somente na medida em que o filólogo e o historiador conservam a sua memória é que subsistem ainda neles alguns lampejos de vida Mas aquilo mesmo que torna o signo ideológico vivo e dinâmico faz dele um instrumento de refração e de deformação do ser A classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava a fim de tornar o signo monovalente Na realidade todo signo ideológico vivo tem como Jano duas faces Toda crítica viva pode tornarse elogio toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária Nas condições habituais da vida social esta contradição oculta em todo signo ideológico não se mostra à descoberta porque na ideologia dominante estabelecida o signo ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta por assim dizer estabilizar o estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como sendo válida hoje em dia Donde o caráter refratário e deformador do signo ideológico nos limites da ideologia dominante É assim que se apresenta o problema da relação entre a infra estrutura e as superestruturas Nós apenas tomamos em consideração a concretização de alguns dos aspectos deste problema e tentamos traçar o caminho que uma pesquisa fecunda neste terreno deve seguir Era essencial mostrar o lugar da filosofia da linguagem dentro desta problemática O estudo do signo lingüístico permite observar mais facilmente e de forma mais profunda a continuidade do processo dialético de evolução que vai da infraestrutura às superestruturas É no terreno da filosofia da linguagem que se torna mais fácil extirpar pela raiz a explicação pela causalidade mecanicista dos fenômenos ideológicos 47 CAPÍTULO 3 FILOSOFIA DA LINGUAGEM E PSICOLOGIA OBJETIVA Uma das tarefas mais essenciais e urgentes do marxismo é constituir uma psicologia verdadeiramente objetiva No entanto seus fundamentos não devem ser nem fisiológicos nem biológicos mas SOCIOLÓGICOS De fato o marxismo encontrase frente a uma árdua tarefa a procura de uma abordagem objetiva porém refinada e flexível do psiquismo subjetivo consciente do homem que em geral é analisado pelos métodos de introspecção Nem a biologia nem a fisiologia estão em condições de resolver esse problema A consciência constitui um fato sócioideológico não acessível a métodos tomados de empréstimo à fisiologia ou às ciências naturais É impossível reduzir o funcionamento da consciência a alguns processos que se desenvolvem no interior do campo fechado de um organismo vivo Os processos que no essencial determinam o conteúdo do psiquismo desenvolvemse não no organismo mas fora dele ainda que o organismo individual participe deles O psiquismo subjetivo do homem não constitui um objeto de análise para as ciências naturais como se se tratasse de uma coisa ou de um processo natural O psiquismo subjetivo é o objeto de uma análise ideológica de onde se depreende uma interpretação sócioideológica O fenômeno psíquico uma vez compreendido e interpretado é explicável exclusivamente por fatores sociais que determinam a vida concreta de um dado indivíduo nas condições do meio social1 1 Um esboço popular dos modernos problemas da psicologia encontrase em nosso livro Freidizm kritítcheskoie ótcherk Freudismo Esboço Crítico MoscouLeningrado 1927 Ver cap 2 Duas Orientações da Psicologia Contemporânea 48 O primeiro e principal problema que se coloca a partir dessa ótica é o da apreensão objetiva da vivência interior É indispensável integrar a vivência interior na unidade da vivência exterior objetiva Que tipo de realidade pertence ao psiquismo subjetivo A realidade do psiquismo interior é a do signo Sem material semiótico não se pode falar em psiquismo Podese falar de processos fisiológicos de processos do sistema nervoso mas não de processo do psiquismo subjetivo uma vez que ele é um traço particular do ser radicalmente diferente tanto dos processos fisiológicos que se desenrolam no organismo quanto da realidade exterior ao organismo realidade à qual o psiquismo reage e que ele reflete de uma maneira ou de outra Por natureza o psiquismo subjetivo localizase no limite do organismo e do mundo exterior vamos dizer na fronteira dessas duas esferas da realidade É nessa região limítrofe que se dá o encontro entre o organismo e o mundo exterior mas este encontro não é físico o organismo e o mundo encontramse no signo A atividade psíquica constitui a expressão semiótica do contato entre o organismo e o meio exterior Eis porque o psiquismo interior não deve ser analisado como uma coisa ele não pode ser compreendido e analisado senão como um signo A idéia de uma psicologia de análise e de interpretação é muito antiga e sua história é muito instrutiva É sintomático que nos últimos tempos em ligação com as exigências metodológicas das ciências humanas isto é das ciências que se ocupam das ideologias ele tenha sido objeto de argumentações mais profundas Um dos seus defensores mais ardentes e bem fundamentados foi Wihelm Dilthey Para ele a atividade psíquica não se define em termos de existência como se diria para uma coisa mas em termos de significação Se perdermos de vista esta significação se tentarmos alcançar a realidade pura da atividade mental na realidade encontramonos segundo Dilthey diante de um processo fisiológico do organismo perdemos de vista a atividade mental Da mesma maneira que se nós perdemos de vista a significação da palavra perdemos a própria palavra que fica assim reduzida à sua realidade física acompanhada do processo fisiológico de sua produção O que faz da palavra uma palavra é sua significação O que faz da atividade psíquica uma atividade psíquica é da mesma forma sua significação Se abstrairmos a significação perdemos ao mesmo tempo a própria substância da vida psíquica interior É por isso que o objetivo da psicologia não poderia ser explicar os fenômenos psíquicos pela causalidade como se fossem análogos aos processos físicos ou fisiológicos Assim a tarefa da 49 psicologia consiste em descrever com discernimento dissecar e explicar a vida psíquica como se se tratasse de um documento submetido à análise do filólogo Segundo Dilthey somente uma psicologia descritiva e explicativa deste tipo pode servir de base às ciências humanas ou às ciências do espírito como eles as chama2 As idéias de Dilthey revelaramse muito fecundas e continuam a ter em nossos dias numerosos adeptos entre os pesquisadores em ciências humanas Podese dizer que a quase totalidade dos eruditos alemães contemporâneos que se ocupam da filosofia estão alguns mais outros menos sob a influência das idéias de W Dilthey3 A teoria de Wilhelm Dilthey formouse sobre um terreno idealista e seus seguidores permaneceram neste terreno A idéia de uma psicologia de análise e de interpretação está estreitamente ligada às premissas idealistas do pensamento e a muitos aparece como uma idéia especificamente idealista Realmente a partir da forma pela qual a psicologia interpretativa foi criada e se desenvolveu até o presente ela é idealista e portanto inaceitável para o materialismo dialético Mas o mais inaceitável é a primazia metodológica da psicologia sobre a ideologia Segundo a visão de Dilthey e dos outros representantes da psicologia interpretativa ela deve ser a base de todas as ciências humanas A ideologia é explicada em termos da psicologia como a sua expressão e materialização e não o inverso É verdade que se diz haver entre o psiquismo e a ideologia uma proximidade um denominador comum a significação que os distingue do resto da realidade mas afirmase que é a psicologia não a ideologia que dá o tom dessa aproximação Por sua vez nas idéias de Dilthey e outros não se leva em conta o caráter social do signo E finalmente e isto constitui o proton pseudos a primeira mentira de toda sua concepção não se compreende o vínculo indispensável entre o signo e a significação Não se percebe a natureza específica do signo 2 Ver a este propósito o artigo em língua russa de Frischeizen Keller em Logos 19121913 vol 1 e 2 3 Sobre a influência de Dilthey enquanto iniciador dessa corrente ver Oskar Wahlzehl Wilhelm Hundolf Emil Ehrmattinger e outros Citaremos apenas os representantes mais significativos das ciências humanas na Alemanha contemporânea 50 Na verdade a relação entre atividade mental e palavra em Dilthey não passa de uma analogia destinada a esclarecer uma idéia e além disso só muito raramente a encontramos em sua obra Ele está muito distante de extrair desta comparação as conclusões que se impõem Por outro lado não é o psiquismo que ele explica com a ajuda do signo mas ao contrário como bom idealista é o signo que ele explica através do psiquismo O signo só se torna signo em Dilthey na medida em que serve para expressar a vida interior Esta última confere ao signo uma significação que lhe é inerente Aqui a construção de Dilthey encarna uma tendência comum ao conjunto da corrente idealista que consiste em privar de todo sentido de toda significação o mundo material em benefício de um espírito fora do tempo e do espaço Se a atividade mental tem uma significação se ela não é apenas uma realidade isolada em relação a esse aspecto Dilthey tem razão então obrigatoriamente a atividade mental deve manifestarse no terreno semiótico Tanto isso é verdade que a significação só pode pertencer ao signo sem o que ela se torna uma ficção A significação constitui a expressão da relação do signo como realidade isolada com uma outra realidade por ela substituível representável simbolizável A significação é a função do signo eis porque é impossível representar a significação enquanto propriedade puramente relacional funcional à parte do signo como algo independente particular Isso é tão exeqüível como considerar a significação da palavra cavalo como sendo o cavalo particular que tenho diante dos meus olhos Se assim fosse seria possível tendo comido uma maçã dizer que se comeu não uma maçã mas a significação da palavra maçã O signo é uma unidade material discreta mas a significação não é uma coisa e não pode ser isolada do signo como se fosse uma realidade independente tendo uma existência à parte do signo É por isso que se a atividade mental tem um sentido se ela pode ser compreendida e explicada ela deve ser analisada por intermédio do signo real e tangível É preciso insistir sobre o fato de que não somente a atividade mental é expressa exteriormente com a ajuda do signo assim como nos expressamos para os outros por palavras mímica ou qualquer outro meio mas ainda que para o próprio indivíduo ela só existe sob a forma de signos Fora deste material semiótico a atividade interior enquanto tal não existe Nesse sentido toda atividade mental é exprimível isto é constitui uma expressão potencial Todo pensamento toda emoção todo 51 movimento voluntário são exprimíveis A função expressiva não pode ser separada da atividade mental sem que se altere a própria natureza desta4 Assim não existe um abismo entre a atividade psíquica interior e sua expressão não há ruptura qualitativa de uma esfera da realidade à outra A passagem da atividade mental interior à sua expressão exterior ocorre no quadro de um mesmo domínio qualitativo e se apresenta como uma mudança quantitativa É verdade que correntemente no curso do processo de expressão exterior operase a passagem de um código a um outro por exemplo código mímicocódigo lingüístico mas o conjunto do processo não escapa do quadro da expressão semiótica O que constitui o material semiótico do psiquismo Todo gesto ou processo do organismo a respiração a circulação do sangue os movimentos do corpo a articulação o discurso interior a mímica a reação aos estímulos exteriores por exemplo a luz resumindo tudo que ocorre no organismo pode tornarse material para a expressão da atividade psíquica posto que tudo pode adquirir um valor semiótico tudo pode tornarse expressivo É verdade que nem todos estes elementos têm igual valor Para um psiquismo relativamente desenvolvido diferenciado um ma terial semiótico refinado e flexível é indispensável e por sua vez é preciso que esse material se preste a uma formalização e a uma diferenciação no meio social no processo de expressão ex terior É por isso que a palavra o discurso interior se revela como o material semiótico privilegiado do psiquismo É verdade que o discurso interior se entrecruza com uma massa de outras reações gestuais com valor semiótico Mas a palavra se apresenta como o fundamento a base da vida interior A exclu são da palavra reduziria o psiquismo a quase nada enquanto que a exclusão de todos os outros movimentos expressivos a diminuiriam muito pouco Se não nos voltássemos para a função semiótica do dis curso interior e para todos os outros movimentos expressivos que formam o psiquismo nós estaríamos diante de um pro cesso fisiológico puro desenvolvendose nos limites do orga 4 A idéia de valor expressivo de todas as manifestações da consciência não é estranha ao neokantismo Ao lado dos trabalhos 52 nismo individual Para o fisiólogo tal abstração é legítima e mesmo já citados de Cassirer sobre o caráter expressivo da consciência a consciência enquanto movimento expressivo podese citar o sistema formulado por Herman Cohen na terceira parte de Aesthetik des reinen Gefühls Contudo a idéia tal como está ali apresentada não permite conclusões corretas A essência da consciência permanece apesar de tudo para além dos limites da existência indispensável só interessa a ele o processo fisiológico e seu mecanismo Contudo mesmo para o fisiólogo como para o biólogo é importante levar em conta a função semiótica expressiva e portanto a função social dos processos fisiológicos correspondentes Sem isso ele não compreenderá seu papel biológico no conjunto do funcionamento do organismo Nesse ponto mesmo o biólogo não pode excluir o ponto de vista do sociólogo ele precisa considerar que o organismo humano não pertence a um meio natural abstrato mas faz parte integrante de um meio social específico Porém uma vez considerada a função semiótica dos processos fisiológicos correspondentes o fisiólogo centrase na observação de seus mecanismos puramente fisiológicos por exemplo o mecanismo dos reflexos condicionados e ele abstrai completamente suas significações ideológicas mutáveis que se subordinam a leis sócio históricas Em suma o conteúdo do psiquismo não lhes interessa Ora é justamente o conteúdo do psiquismo tomado em sua relação com o organismo individual que constitui o objeto da psicologia Uma ciência digna desta denominação não tem e não pode ter outro objeto Alguns afirmam que o conteúdo do psiquismo não é o objeto da psicologia este objeto seria somente a função deste conteúdo no psiquismo individual Este é o ponto de vista da chamada psicologia funcionaista5 Segundo a doutrina dessa escola a atividade mental contém duas facetas Primeiramente há o conteúdo da atividade mental Sua natureza não é psíquica O que está em jogo é ou um fenômeno físico em que a experiência se focaliza por exemplo um objeto da percepção ou um conteúdo cognitivo com seu próprio 5 Os representantes mais significativos da psicologia funcionalista são Stumpf e Meineng A psicologia funcionalista foi fundada por Franz Brentano Na atualidade ela constitui incontestavelmente a principal corrente da reflexão psicológica na Alemanha ainda que não seja na sua forma mais clássica 53 sistema de leis ou ainda uma apreciação ética etc Esse aspecto objetivo orientado da atividade interior é uma propriedade da natureza da cultura ou da história e conseqüentemente é da competência das disciplinas científicas correspondentes e não da psicologia A outra faceta da atividade mental é a função de qualquer conteúdo objetivo dentro do sistema fechado da vida psíquica individual Desta maneira o objeto da psicologia é a atividade mental efetivada ou em vias de efetivarse a propósito de todo con teúdo extrapsíquico Em outras palavras o objeto da psicologia funcionalista não é o quê mas o como da atividade mental Assim por exemplo o conteúdo de um processo de pensamento qualquer o seu quê não é psíquico e depende da competência do lógico do teórico do conhecimento gnosiólogo ou do matemático se se trata do pensamento matemático O psicólogo mesmo só estuda o como dos processos de pensamento com seus vários conteúdos objetivos lógicos matemáticos e outros nas condições de um dado psiquismo subjetivo Não nos ocuparemos aqui das divergências por vezes substanciais existentes entre os adeptos desta escola ou de tendências próximas acerca do entendimento da função psíquica Para a tarefa que nos fixamos uma exposição dos princípios de base é o suficiente Ela nos permitirá esclarecer nossa concepção do psiquismo e em que a resolução do problema da psicologia é importante para a filosofia do signo a filosofia da linguagem A psicologia funcionalista formouse e desenvolveuse também sobre as bases do idealismo Mas em alguns de seus aspectos ela se mostra diametralmente oposta à psicologia interpretativa de Dilthey De fato se Dilthey se esforça por levar de alguma forma o psiquismo e a ideologia a um denominador comum a significação a psicologia funcionalista ao contrário tenta traçar uma fronteira de princípio das mais rígidas entre o psiquismo e a ideologia e isto no interior mesmo do psiquismo Tudo o que é significante encontrase no final das contas excluído do campo psíquico na medida em que tudo que é psíquico encontrase subordinado ao funcionamento puro e simples de conteúdos objetivos isolados formando uma espécie de constelação individual denominada alma individual Se é preciso falar aqui de primazia é certo que na psicologia funcionalista ao contrário da psicologia interpretativa é a ideologia que tem a primazia sobre o psiquismo Podese perguntar agora qual é a natureza da função psí quica Seu tipo de existência Não encontramos a resposta 54 clara e satisfatória a essa questão junto aos adeptos da psico logia funcionalista Nesse ponto faltalhes clareza não se encon tra unidade nem acordo Mas há um ponto sobre o qual eles são unânimes a função psíquica não pode ser assimilada a um processo fisiológico qualquer Assim sendo a compo nente psicológica é nitidamente demarcada em relação à compo nente fisiológica Mas saber que tipo de entidade é essa a psíquica é algo que permanece obscuro assim como o problema da realidade dos fenômenos ideológicos A única instância em que os funcionalistas fornecem uma res posta clara é quando a atividade mental se exerce sobre objetos naturais à função psíquica opõese aqui um ser natural físico uma árvore a terra uma pedra etc Mas qual forma pode tomar o ser ideológico frente à função psíquica A forma de um conceito lógico de um valor ético de uma obra de arte etc A maior parte dos representantes da psicologia funcionalista se atém a perspectivas idealistas essencialmente kantianas acerca desse problema6 Ao lado do psiquismo individual e da consciência subjetiva individual eles reservam um lugar à consciência global à consciência transcendental ao sujeito puramente gnosiológico etc É neste contexto transcendental que eles localizam o fenômeno ideológico por oposição à função psíquica individual7 Assim o problema da realidade ideológica fica sem solução nos quadros da psicologia funcionalista Decorre dessa falta de compreensão do signo ideológico e da natureza específica de sua existência que os próprios problemas do psiquismo permanecem insolúveis Eles não serão resolvidos enquanto não se resolva o problema da ideologia Estas duas questões estão indissoluvelmente ligadas As histórias da psicologia e das ciências ligadas à ideologia a lógica a teoria do conhecimento a estética as ciências humanas etc são as de uma luta incessante de uma delimitação recíproca de fronteiras e de uma mútua absorção 6 Atualmente encontramse ao lado dos funcionalistas e repartindo o mesmo terreno os fenomenólogos cujos princípios filosóficos gerais devem muito a Franz Brentano 7 Como os fenomenólogos eles conferem às noções ideológicas um estatuto ontológico postulando a existência de uma esfera autônoma do ser ideal 55 Tudo se passa como se houvesse uma alternância periódica entre o psicologismo espontaneísta absorvendo todas as ciências de orientação ideológica e um antipsicologismo agudo esvaziando o psiquismo de seu conteúdo e conduzindoo a um lugar vazio puramente formal como na psicologia funcionalista ou ainda a um simples fisiologismo Nesse ínterim a ideologia privada pelo antipsicologismo de seu lugar habitual no ser isto é no psiquismo não encontra seu lugar em parte alguma e se vê obrigada a emigrar da realidade para as alturas transcendentais No começo do século XX tivemos uma vaga poderosa em bora não a primeira da história longe disso de antipsicologismo No curso dos dois primeiros decênios do século pudemos assis tir a eventos filosóficos e metodológicos da mais alta impor tância os trabalhos fundamentais de Husserl8 principal representante do antipsicologismo contemporâneo os trabalhos de seus discípulos os intencionalistas fenomenólogos a guinada brutalmente antipsicológica dos defensores contemporâneos do neokantismo das escolas de Marburg e Freiburg9 a exclusão do psicologismo de todos os domínios do conhecimento inclusive da própria psicologia Atualmente a vaga de antipsicologismo está em vias de refluir e uma nova onda aparentemente muito poderosa de psicologismo se prepara para substituíla A variedade de psicologismo em moda denominase Filosofia Existencial Sob esta etiqueta o psicologismo mais desenfreado retoma aceleradamente todas as posições que teve de abandonar há pouco tempo nas esferas da filosofia e das ciências 8 Ver o vol I de Logische Untersuchungen Investigações Lógicas tradução russa de 1910 que constitui por assim dizer a bíblia do antipsicologismo contemporâneo assim como seu artigo A Filosofia como Ciência do Rigor in Logos 1911 1912 vol 1 9 Ver por exemplo o artigo muito instrutivo de Rickert principal representante da escola de Freiburg Duas Abordagens sobre a Teoria do Conhecimento na compilação Idéias Novas em Filosofia no 7 1913 Nesta publicação Rickert sob a influência de Husserl traduz na linguagem do antipsicologismo sua concepção originalmente psicologista acerca da teoria do conhecimento Esse artigo esclarece as relações do neokantismo com o movimento antipsicologista 56 ligadas à ideologia10 Esta vaga de psicologismo não traz consigo nenhuma definição nova da realidade psíquica O psicologismo mais recente ao contrário da vaga anterior segunda metade do século XIX de natureza positivoempirista o representante mais típico é Wundt tende a comentar o ser interior a esfera da atividade mental de maneira metafísica Desse modo a alternância do psicologismo e do antipsico logismo não desembocou numa síntese dialética A filosofia burgue sa até o presente não soube solucionar de maneira apropriada nem o problema da psicologia nem o da ideologia Os dois problemas devem ser tratados conjuntamente Nós afirmamos que uma só e mesma chave nos dá o acesso objetivo às duas esferas Esta chave é a filosofia do signo a filosofia da palavra enquanto signo ideológico por excelência O signo ideológico é o território comum tanto do psiquismo quanto da ideologia é um território concreto sociológico e significante É sobre este território que se deve operar a delimitação das fronteiras entre a psicologia e a ideologia O psiquismo não deve ser uma réplica do universo e este não deve servir como simples indicação cênica acompanhando o monólogo psíquico Mas se a realidade do psiquismo é uma realidade semiótica como delimitar a fronteira entre o psiquismo subjetivo individual e a ideologia em sentido estrito já que esta se apresenta igualmente como uma realidade semiótica De momento apenas indicamos um 10 Encontramos um panorama completo da filosofia existencial panorama é verdade tendencioso e algo ultrapassado no livro de Rickert A Filosofia Existencial Academia 1921 O livro de Spranger Lebensformen exerceu uma influência enorme sobre as ciências humanas Hoje em dia todos os representantes mais importantes da crítica literária e da lingüística alemãs encontramse de uma forma ou de outra sob a influência da filosofia existencial Citaremos Ehrmattinger Das Dichterische Kunstwerk 1921 Hundolf seus livros sobre Goethe e sobre Georg 19161925 Hefele Das Wesen der Dichtung 1923 Wahlzehl Gehalt und Form in Dichteris che Kunstwerk 1923 Vossler e os vosslerianos etc Mais adiante teremos algo a dizer sobre alguns destes estudiosos 57 território comum É indispensável agora traçar no interior deste território uma fronteira adequada O fundo deste problema remete à determinação da natureza do signo interior nos limites do corpo que é acessível em sua realidade imediata à introspecção Do ponto de vista do con teúdo ideológico propriamente dito não seria possível estabe lecer uma fronteira entre o psíquico e o ideológico Todo con teúdo ideológico sem exceção qualquer que seja o código pelo qual ele é veiculado pode ser compreendido e em conseqüência psiquicamente assimilado isto é ele pode ser produzido por intermédio do signo interior Por outro lado todo fenômeno ideológico ao longo do processo de sua criação passa pelo psiquismo como por uma instância obrigatória Repetindo todo signo ideológico exterior qualquer que seja sua natureza banhase nos signos interiores na consciência Ele nasce deste oceano de signos interiores e aí continua a viver pois a vida do signo exterior é constituída por um processo sempre renovado de compreensão de emoção de assimilação isto é por uma integração reiterada no contexto interior É por esse motivo que do ponto de vista do conteúdo não há fronteira a priori entre o psiquismo e a ideologia Há apenas uma diferença de grau no estágio do desenvolvimento interior o elemento ideológico ainda não exteriorizado sob a forma de mate rial ideológico é apenas um elemento confuso Ele não pode aperfeiçoarse diferenciarse afirmarse a não ser no processo de expressão ideológica A intenção vale sempre menos do que a realização mesmo falha O pensamento que só existe no contexto de minha consciência e não é reforçado no contexto da ciência como sistema ideológico coerente é apenas um pensamento obscuro e inacabado Mas no contexto de minha consciência esse pensa mento pouco a pouco toma forma apoiandose no sistema ideo lógico pois ele próprio foi engendrado pelos signos ideológicos que assimilei anteriormente Uma vez mais não há aqui diferença qualitativa Os processos cognitivos provenientes de livros e do discurso dos outros e os que se desenvolvem em minha mente pertencem à mesma esfera da realidade e as diferenças que existem apesar de tudo entre a mente e os livros não dizem respeito ao conteúdo do processo cognitivo O que complica mais o problema da delimitação do psíquico e do ideológico é o conceito do individual Aceitase geralmente uma correlação entre o individual e o social De onde se extrai a conclusão de que o psiquismo é individual e a ideologia social 58 Esta concepção revelase radicalmente falsa Social está em correlação com natural não se trata aí do indivíduo en quanto pessoa mas do indivíduo biológico natural O indi víduo enquanto detentor dos conteúdos de sua consciência en quanto autor dos seus pensamentos enquanto persona lidade responsável por seus pensamentos e por seus dese jos apresentase como um fenômeno puramente sócioideoló gico Esta é a razão porque o conteúdo do psiquismo individual é por natureza tão social quanto a ideologia e por sua vez a pró pria etapa em que o indivíduo se conscientiza de sua individualidade e dos direitos que lhe pertencem é ideológica histórica e internamente condicionada por fatores sociológicos11 Todo signo é social por natureza tanto o exterior quanto o interior Para evitar os malentendidos convém sempre estabelecer uma distinção rígida entre o conceito de indivíduo natural isolado não associado ao mundo social tal como o conhece e estuda o biólogo e o conceito de individualidade que já se apresenta como uma superestrutura ideológica semiótica que se coloca acima do indivíduo natural e é por conseqüência social Estas duas acepções da palavra individualidade o indi víduo natural e a personalidade são habitualmente confundidas o que faz com que se contaste geralmente na reflexão da maior parte dos filósofos e psicólogos um quaternio terminorum ora se considera uma acepção ora ela é substituída pela outra Se o conteúdo do psiquismo individual é tão social quanto a ideologia por outro lado as manifestações ideológicas são tão individuais no sentido ideológico deste termo quanto psíquicas Todo produto da ideologia leva consigo o selo de individualidade do seu ou dos seus criadores mas este próprio selo é tão social quanto todas as outras particularidades e signos distintivos das manifestações ideológicas Assim todo signo inclusive o da individualidade é social O que constitui a diferença entre o signo interior e o signo exterior entre o psíquico e o ideológico A significação realizada por meio do movimento interior é dirigida ao próprio organismo a um indivíduo 11 Na última parte deste trabalho veremos que os direitos do autor sobre seu próprio discurso são relativos e marcados ideologicamente e que a língua demora muito tempo para elaborar formas próprias para exprimir claramente os aspectos individuais do discurso 59 dado e determinase antes de tudo no contexto de sua individualidade Neste ponto as afirmações dos representantes da escola funcionalista contêm uma parcela de verdade Não se pode deixar de distinguir a natureza específica do psiquismo da natureza dos sistemas ideológicos Mas o caráter específico da entidade psíquica é inteiramente compatível com uma concepção ideológico sociológica do psiquismo De fato como já dissemos todo pensamento de caráter cogni tivo materializase em minha consciência em meu psiquismo apoiandose no sistema ideológico de conhecimento que lhe for apropriado Nesse sentido meu pensamento desde a origem pertence ao sistema ideológico e é subordinado a suas leis Mas ao mesmo tempo ele também pertence a um outro sistema único e igualmente possuidor de suas próprias leis específicas o sistema do meu psiquismo O caráter único desse sistema não é determinado somente pela unicidade de meu organismo biológico mas pela totalidade das condições vitais e sociais em que esse organismo se encontra colocado Desse modo o psicólogo adotará para estudar meu pensamento uma abordagem orientada para essa unicidade orgânica de minha individualidade e para essas condições específicas de minha existência O ideólogo ao contrário não se interessará por esse pensamento a não ser que ele esteja inscrito de maneira objetiva no sistema do conhecimento O sistema do psiquismo determinado por fatores orgânicos e biográficos no sentido amplo do termo não reflete de maneira alguma somente o ponto de vista da psicologia É certo que neste último caso tratase de uma unidade real como é real a totalidade das condições que determinam a vida do indivíduo Quanto mais estreitamente ligado à unicidade do sistema psíquico o signo interior estiver e quanto mais fortemente determinado pelo componente biológico e biográfico mais ele se distanciará de uma expressão ideológica bem definida Em compensação na medida em que é realizado e formalizado ideologicamente ele libertase por assim dizer do contexto psíquico que o paralisa É isso que determina a diferença entre os processos de compreensão do signo interior isto é da atividade mental e do signo exterior puramente ideológico No primeiro caso compreender significa relacionar um signo interior qualquer com a unicidade dos outros signos interiores isto é apreendêlo no contexto de um certo psiquismo No segundo caso tratase de apreender um dado signo no contexto ideológico correspondente É verdade que mesmo no primeiro caso é indispensável levar em consideração o significado puramente ideológico 60 desta atividade mental sem compreender o conteúdo semântico puro e simples de um pensamento o psicólogo não pode determinarlhe um lugar no contexto do psiquismo em questão Se ele abstrai o conteúdo semântico desse pensamento ele não lidará mais com um pensamento com signos mas com um simples processo fisiológico de realização de um certo pensamento de um certo signo no organismo Por essa razão a psicologia cognitiva deve apoiarse em uma teoria do conhecimento e na lógica enquanto que a psicologia em seu conjunto deve apoiarse na ciência das ideologias e não o contrário É preciso dizer que toda expressão semiótica exterior por exemplo a enunciação pode assumir duas orientações ou em direção ao sujeito ou a partir dele em direção à ideologia No primeiro caso a enunciação tem por objetivo traduzir em signos exteriores os signos interiores e exigir do interlocutor que ele os relacione a um contexto interior o que constitui um ato de compreensão puramente psicológico No outro caso o que se re quer é uma compreensão ideológica objetiva e concreta da enun ciação12 É assim que delimitamos o psíquico e o ideológi co13 Como se oferecem à nossa observação ao nosso estudo o psiquismo os signos interiores Em sua forma pura o signo interior isto é a atividade mental é acessível apenas à introspecção Pode mos perguntarnos se ela ameaça a unicidade da experiência exte rior objetiva Isso não acontece se a natureza do psiquismo 12 As enunciações do primeiro tipo podem ser de duas espécies podem servir para informar a respeito do vivido Eu estou alegre ou então para exprimilo diretamente Hurra Há ainda a possibilidade de varia ções intermediárias Estou tão alegre com uma entoação expri mindo grande alegria A distinção entre esses diferentes aspectos é muito importante para o psicólogo e para o ideólogo No primeiro caso não há expressão direta da impressão vivida e conseqüentemente não há realização do signo interior Temos aqui um resultado da autoobser vação por assim dizer a tradução do signo em signo No segundo caso a autoobservação que se exerce sobre a experiência interior abre um caminho para o exterior e tornase objeto da observação exterior é verdade que nesse caso operase uma mudança de forma No terceiro caso intermediário o resultado da autoobservação adquire a coloração do signo interior abrindo caminho para o exterior 13 Expusemos nossa concepção do conteúdo do psiquismo e da ideologia em Freidizm cf o capítulo Conteúdo do Psiquismo como Ideologia 61 e da própria introspecção for corretamente compreendida14 Na realidade o objeto da introspecção é o signo interior que pode também por sua natureza ser signo exterior O discurso inte rior pode igualmente ser exteriorizado Durante o processo de autoexplicitação o resultado da introspecção deve obrigatoria mente exprimirse sob uma forma exterior ou em todo caso aproximarse o máximo possível do estado de expres são exterior A introspecção enquanto tal segue uma orientação que vai do signo interior ao signo exterior Por isso a própria introspecção é dotada de um caráter expressivo Ela constitui para o indivíduo a compreensão de seu próprio signo interior É isso que a distingue da observação de um objeto ou de qualquer processo físico A atividade mental não é visível nem pode ser percebida diretamente mas em compensação é compreensível O que significa que durante o processo de autoobservação a atividade mental é recolocada no contexto de outros signos compreensíveis O signo deve ser esclarecido por outros signos A introspecção constitui um ato de compreensão e por isso efetuase inevitavelmente com uma certa tendência ideo lógica Desse modo ela serve os interesses da psicologia quando apreende uma certa atividade mental no contexto dos outros signos interiores e de maneira a favorecer a unicidade da vida psíquica Nesse caso a introspecção esclarece os signos interiores com a ajuda do sistema cognitivo dos signos psicológicos ela esclarece e diferencia a atividade mental e tende assim a forne cer uma explicação psicológica satisfatória dessa atividade É des se tipo a tarefa que se designa à cobaia que participa de uma experiência psicológica As declarações da cobaia constituem uma explicação psicológica ou ao menos um esboço de expli cação Mas a introspecção pode também ser orientada diferentemente e tender para uma autoobjetivação ética de costumes Nesse caso o signo interior é integrado num sistema de apreciações e normas éticas é compreendido e explicado sob esse ângulo A introspecção como os processos cognitivos pode tomar outros caminhos Mas sempre em todas as condições a introspecção se esforça por explicitar ativamente o signo interior para leválo a um maior grau de clareza semiótica O processo atinge seus limites assim que o objeto da instrospecção tornase perfeitamente compreensível 14 Esta ameaça se realizaria se a realidade do psiquismo fosse uma realidade de coisa e não uma realidade semiótica 62 assim que ele se torna igualmente objeto da observação exterior de caráter ideológico sob uma forma semiótica Desta maneira a introspecção enquanto conceito ideológico está integrada na unicidade da experiência objetiva É preciso acrescentar ainda o que segue na análise de um caso concreto é impossível traçar uma fronteira precisa entre os signos interiores e exteriores entre a introspecção e a observação exterior que fornece um comentário ininterrupto tanto semiótico quanto concreto a respeito dos signos interiores na medida em que eles são decodificados O comentário concreto ocorre sempre A compreensão de cada signo interior ou exterior efetuase em ligação estreita com a situação em que ele toma forma Esta situação mesmo no caso da introspecção apresentase como a totalidade dos fatos que constituem a experiência exterior que acompanha e esclarece todo signo interior Essa situação é sempre uma situação social A orientação da atividade mental no interior da alma a introspecção não pode ser separada da realidade de sua orienta ção numa situação social dada E é por essa razão que um aprofundamento da introspecção só é possível quando constantemente vinculado a um aprofundamento da compreensão da orientação social Abstrair essa orientação levaria ao enfraquecimento completo da atividade mental como acontece quando se abstrai sua natureza semiótica Nós veremos mais adiante de maneira detalhada que o signo e a situação social em que se insere estão indissoluvelmente ligados O signo não pode ser separado da situação social sem ver alterada sua natureza semiótica O problema do signo interior constitui um dos problemas essen ciais da filosofia da linguagem pois o signo interior por excelência é a palavra o discurso interior O problema do discurso interior como todos os problemas examinados neste capítulo é de natureza filosófica Ele se encontra no cruzamento dos caminhos da psicologia e das ciências ligadas à ideologia Metodologicamente ele só pode ser resolvido no terreno da filosofia da linguagem enquanto filosofia do signo Como definir a palavra no seu papel de signo interior Sob que forma se realiza o discurso interior Quais são seus laços com a situação social Como ele se relaciona com a enunciação Que métodos empregar para descobrir ou para captar durante o vôo por assim dizer o discurso interior Somente uma elaborada filosofia da linguagem pode responder a essas questões Tomemos por exemplo a segunda questão sob que formas se realiza o discurso interior De imediato podese dizer que nenhuma 63 das categorias elaboradas pela lingüística para analisar as formas da língua exteriorizada da fala lexicologia gramática fonética é aplicável ao discurso interior e supondo que fossem elas deveriam ser radicalmente redefinidas Uma análise mais aprofundada revelaria que as formas mínimas do discurso interior são constituídas por monólogos completos análogos a parágrafos ou então por enunciações completas Mas elas assemelhamse ainda mais às réplicas de um diálogo Não é por acaso que os pensadores da Antiguidade já concebiam o dis curso interior como um diálogo interior Essas unidades pres tamse muito pouco a uma análise sob a forma de consti tuintes gramaticais a rigor em certos casos isso é possível mas com grandes precauções e não existe entre elas assim como entre as réplicas de um diálogo laços gramaticais são laços de uma outra ordem que as regem Essas unidades do discurso interior que poderiam ser chamadas impressões globais de enunciações15 estão ligadas uma à outra e sucedemse uma à outra não segundo as regras da lógica ou da gramática mas segundo leis de convergên cia apreciativa emocional de concatenação de diálogos etc e numa estreita dependência das condições históricas da situação social e de todo o curso pragmático da existência16 Somente a 15 O termo foi emprestado de Gompertz Weltanschauungslehre Parece que o primeiro a utilizálo foi Otto Weinninger A impressão total é uma impressão ainda não isolada do objeto total e que de qualquer modo oferece uma impressão do todo que precede e lança os fundamentos da cognição clara do objeto Por exemplo algumas vezes nos vemos na impossibilidade de lembrar uma palavra ou um nome ainda que os tenhamos na ponta da língua o que significa que nós já temos uma impressão global deles mas que eles não podem se esboçar numa representação concreta e diferenciada As impressões globais segundo Gompertz desempenham um grande papel nos processos cognitivos Elas constituem equivalentes psíquicos das formas do todo e lhe conferem sua unicidade 16 A distinção corrente entre os diferentes tipos de discurso interiorvisual auditivo e motor não é relevante para nossas 64 explicitação das formas que as enunciações completas tomam e em particular as formas do discurso dialogado pode esclarecer as formas do discurso interior e a lógica particular do itinerário que elas seguem na vida interior É preciso deixar claro que todos os problemas do discurso interior que mencionamos estão fora dos limites de nossa pesquisa Atualmente ainda é impossível tratálos de maneira satisfatória Antes de tudo seria preciso reunir um imenso corpus de dados e esclarecer outros problemas elementares e fundamentais da filosofia da linguagem em particular os problemas da enunciação Nós pensamos que é dessa maneira que se pode resolver o problema da delimitação de fronteiras entre o psíquico e o ideológico sobre o território único que os engloba o do signo ideológico Essa abordagem nos permite igualmente eliminar de maneira dialética a contradição entre o psicologismo e o antipsicologismo O antipsicologismo tem razão em recusar a dedução do ideológico a partir do psiquismo Ao contrário é o psíquico que deve ser deduzido da ideologia A psicologia deve apoiarse na ciência das ideologias Originariamente a palavra deve ter nascido e se desenvolvido no curso do processo de socialização dos indivíduos para ser em seguida integrada ao organismo individual e tornarse fala interior Contudo o psicologismo também tem razão não há signo exterior sem signo interior O signo exterior incapaz de penetrar no contexto dos signos interiores isto é incapaz de ser compreendido e experimentado cessa de ser um signo transformase em uma coisa física O signo ideológico tem vida na medida em que ele se realiza no psiquismo e reciprocamente a realização psíquica vive do suporte ideológico A atividade psíquica é uma passagem do interior para o exterior para o signo ideológico o processo é inverso O psíquico goza de extraterritorialidade em relação ao organismo É o social infiltrado no organismo do indivíduo E tudo que é ideológico é extraterritorial no domínio sócioeconômico pois o signo ideológico situado fora do organismo deve penetrar no mundo interior para realizar sua natureza semiótica Desta maneira existe entre o psiquismo e a ideologia uma interação dialética indissolúvel o psiquismo se oblitera se destrói considerações aqui No quadro de cada um desses tipos o discurso se desenrola sob a forma de impressões globais visuais auditivas e motoras 65 para se tornar ideologia e viceversa O signo interior deve libertarse de sua absorção pelo contexto psíquico biológico e biográfico ele deve parar de ser experimentado subjetivamente para se tornar signo ideológico O signo ideológico deve integrarse no domínio dos signos interiores subjetivos deve ressoar tonalidades subjetivas para permanecer um signo vivo e evitar o estatuto honorífico de uma incompreensível relíquia de museu Essa interação dialética dos signos interior e exterior do psiquis mo e da ideologia muitas vezes atraiu a atenção dos pensa dores contudo ela não foi compreendida de maneira corre ta até o presente nem descrita de maneira adequada Sua aná lise mais profunda e interessante foi feita há algum tempo pelo fale cido filósofo e sociólogo Georges Simmel Ele viu essa intera ção sob um aspecto que é característico de todo pensamento burguês contemporâneo isto é como uma tragédia cultural ou mais exatamente como uma tragédia da faculdade criadora da personalidade subjetiva Segundo ele a personalidade criadora se autodestrói assim como sua subjetividade e seu caráter pessoal no produto objetivo que ela própria cria O nascimento de um valor cultural objetivo custa a morte da alma subjetiva Não entraremos aqui no detalhe da análise que Simmel faz desse problema análise que contém várias observações justas e interessantes17 Nós assinalaremos apenas o defeito principal de sua concepção Para ele entre o psiquismo e a ideologia existe um fosso intransponível Ele não admite um signo que remetendo à realidade seja comum ao psiquismo e à ideologia Ainda mais mesmo sendo sociólogo ele subestima a natureza totalmente social tanto da realidade psíquica quanto da realidade ideológica E contudo uma e outra realidades se apresentam como refrações de um único e mesmo ser sócioeconômico O resultado é que a contradição dialética viva 17 Podese encontrar em tradução russa duas publicações de Simmel consagradas a esta questão A Tragédia Cultural em Logos 19111912 vols 2 e 3 e Os Conflitos da Cultura Contemporânea em Elementos do Conhecimento 1923 Petrogrado publicado sob a forma de volume separado com um prefácio do professor Sviatlovski Seu último livro tratando da mesma questão do ponto de vista da filosofia existencial intitulase Lebensanschauung 1919 Esta idéia constitui o leitmotiv da Vida de Goethe do mesmo Simmel e em parte de seus trabalhos sobre Nietzsche Schopenhauer Rembrandt e Michelangelo Ele coloca na base de sua tipologia das individualidades criadoras os diferentes modos de solucionar este conflito entre a alma e sua objetivação criadora através das produções culturais 66 entre o psiquismo e o ser tornase para Simmel uma antinomia estática inerte uma tragédia e ele luta em vão para superar esta antinomia inevitável recorrendo a uma dinâmica do processo existencial impregnado de metafísica Somente o recurso ao monismo materialista pode trazer uma solução dialética a todas as contradições dessa ordem De outro modo seríamos obrigados ou a ignorar as contradições a fechar os olhos ou a transformálas em antinomias sem saída em impasses trágicos18 Em suma em toda enunciação por mais insignificante que seja renovase sem cessar essa síntese dialética viva entre o psíquico e o ideológico entre a vida interior e a vida exterior Em todo ato de fala a atividade mental subjetiva se dissolve no fato objetivo da enunciação realizada enquanto que a palavra enunciada se subjetiva no ato de descodificação que deve cedo ou tarde provocar uma codificação em forma de réplica Sabemos que cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória A palavra revelase no momento de sua expressão como o produto da interação viva das forças sociais É assim que o psiquismo e a ideologia se impregnam mutuamente no processo único e objetivo das relações sociais 18 Na literatura filosófica russa os problemas de objetivação do psiquismo subjetivo através das produções ideológicas e da condições e conflitos que daí resultam são tratados particularmente por Fiódor Stióppun ver seus trabalhos em Logos 19111912 vol 24 Ele também vê esses sob um prisma trágico e mesmo místico Não consegue colocálos no plano da realidade material objetiva que é contudo o único onde eles poderiam encontrar uma resolução fecunda e sadiamente dialética 67 SEGUNDA PARTE PARA UMA FILOSOFIA MARXISTA DA LINGUAGEM 68 CAPÍTULO 4 DAS ORIENTAÇÕES DO PENSAMENTO FILOSÓFICOLINGÜÍSTICO No que consiste o objeto da filosofia da linguagem Onde podemos encontrar tal objeto Qual é a sua natureza concreta Que metodologia adotar para estudálo Na parte introdutória de nosso estudo estas questões concretas não foram abordadas Nós falamos da filosofia da linguagem da palavra Mas o que é a linguagem O que é a palavra Não se trata evidentemente de formular perfeitas definições destes conceitos de base Uma tal formulação só poderia mesmo ser realizada no fim e não no início de nossa pesquisa supondose que uma definição científica possa alguma vez ser considerada como perfeita No início de nosso itinerário convém propor ao invés de definições diretrizes metodológicas é indispensável antes de mais nada conquistar o objeto real de nossa pesquisa é indispensável isolálo de seu contexto e delimitar previamente suas fronteiras No início do trabalho heurístico não é tanto a inteligência que procura construindo fórmulas e definições mas os olhos e as mãos esforçandose por captar a natureza real do objeto acontece que em nosso caso os olhos e as mãos se encontram numa posição difícil os olhos nada vêem as mãos nada podem tocar é o ouvido que aparentemente mais bem situado tem a pretensão de escutar a palavra de ouvir a linguagem E com efeito as seduções do empirismo fonético superficial são muito fortes na lingüística O estudo da face sonora do signo lingüístico nela ocupa um lugar proporcionalmente exagerado Tal estudo muitas vezes determina o tom nessa disciplina e na maioria dos casos é feito sem nenhum vínculo com a natureza real da linguagem enquanto código 69 ideológico1 O problema da explicitação do objeto real da filosofia da linguagem está longe de ser resolvido Toda vez que procuramos delimitar o objeto de pesquisa remetêlo a um complexo objetivo material compacto bem definido e observável nós perdemos a própria essência do objeto estudado sua natureza semiótica e ideológica Se isolarmos o som enquanto fenômeno puramente acústico perderemos a linguagem como objeto específico O som concerne totalmente à competência dos físicos Se ligarmos o processo fisiológico da produção do som ao processo de percepção sonora nem por isso estaremos nos aproximando de nosso objetivo Se associarmos a atividade mental os signos interiores do locutor e do ouvinte estaremos em presença de dois processos psicofísicos ocorrendo em dois sujeitos psicofisiologicamente diferentes e de um único complexo sonoro físico realizandose na natureza segundo as leis da física A linguagem como objeto específico ainda não a teremos encontrado E contudo já lançamos mão de três esferas da realidade física fisiológica e psicológica do que resultou até que de modo satisfatório um conjunto complexo de numerosos elementos Mas este complexo é privado de alma seus diferentes elementos estão alinhados ao invés de estarem unidos por um conjunto de regras internas que lhe atribuiria vida e faria dele justamente um fato lingüístico O que mais deve ser acrescentado a este conjunto já tão complexo É preciso fundamentalmente inserilo num complexo mais amplo e que o engloba ou seja na esfera única da relação social organi zada Assim como para observar o processo de combustão con vém colocar o corpo no meio atmosférico da mesma forma para observar o fenômeno da linguagem é preciso situar os sujeitos emissor e receptor do som bem como o próprio som no meio social Com efeito é indispensável que o locutor e o ouvinte pertençam à mesma comunidade lingüística a uma sociedade claramente organizada E mais é indispensável que estes dois indivíduos estejam integrados na unicidade da situação social imediata quer dizer que tenham uma relação de pessoa para 1 Isto diz respeito sobretudo à fonética experimental que não estuda de fato os sons da língua mas sim os sons produzidos pelos órgãos da fonação e captados pelo ouvido independentemente de 70 pessoa sobre um terreno bem definido É apenas sobre este terreno preciso que a troca lingüística se torna possível um terreno de acordo ocasional não se presta a isso mesmo que haja comunhão de espírito Portanto a unicidade do meio social e a do contexto social imediato são condições absolutamente indispensáveis para que o complexo seu lugar no sistema da língua e na construção das enunciações Por outro lado a ciência fonética tenta a custo reunir com vistas a seu estudo imensos corpora de dados sem no entanto se valer de uma metodologia de classificação físicopsíquicofisiológico que definimos possa ser vinculado à língua à fala possa tornarse um fato de linguagem Dois organismos biológicos postos em presença num meio puramente natural não produzirão um ato de fala Mas como resultado desta análise o objeto de nossa pesquisa ao invés de verse reduzido como seria desejável viuse consideravelmente ampliado e tornado ainda mais complexo Com efeito o meio social organizado no qual inserimos nosso complexo físicopsíquicofisiológico e a situação de troca social mais imediata apresentam por si só complicações extraordinárias comportam relações de diversas naturezas e de múltiplas facetas e dentre estas relações nem todas são necessárias à compreensão dos fatos lingüísticos nem todas são elementos constitutivos da linguagem Em suma o conjunto deste complicado sistema de fenômenos e de relações de processos etc necessita uma redução a um denominador comum Todas as suas linhas devem reunirse num centro único o passe de mágica que constitui o processo lingüístico Na parte precedente expusemos o problema da linguagem ou seja pusemos em evidência o problema enquanto tal e as dificuldades que ele encerra Que soluções a filosofia da linguagem e a lingüística geral já trouxeram para este problema Que marcos já colocaram no caminho de sua resolução que nos possam orientar Não temos aqui a intenção de fazer um histórico completo da filosofia da linguagem e da lingüística geral nem mesmo de apresentar sua situação atual Limitarnosemos a uma análise geral das linhas mestras do pensamento filosófico e lingüístico dos tempos atuais2 2 Não existem atualmente obras especializadas em história da filosofia da linguagem Encontramse pesquisas fundamentais apenas no que diz respeito à filosofia da linguagem e à lingüística na antigüidade como por exemplo Steindahl Gerschichte der Sprachwissenschaft bei den Griechen und Römern 71 Na filosofia da linguagem e nas divisões metodológicas correspondentes da lingüística geral encontramonos em presença de duas orientações principais no que concerne à resolução de nosso problema que consiste em isolar e delimitar a linguagem como objeto de estudo específico Isto acarreta por suposto uma distinção radical entre estas duas orientações para todas as demais questões que se colocam em lingüística Chamaremos a primeira orientação de subjetivismo idealista e a segunda de objetivismo abstrato3 A primeira tendência interessase pelo ato da fala de criação individual como fundamento da língua no sentido de toda atividade de linguagem sem exceção O psiquismo individual constitui a fonte da língua As leis da criação lingüística sendo a língua uma evolução ininterrupta uma criação contínua são as leis da psicologia individual e são elas que devem ser estudadas pelo lingüista e pelo filósofo da linguagem Esclarecer o fenômeno lingüístico significa reduzilo a um ato significativo por vezes mesmo racional de criação individual O restante da tarefa do lingüista não tem senão um caráter preliminar construtivo descritivo 1890 No que concerne à história européia só se encontram monografias de diferentes filósofos e lingüistas sobre Humboldt Wundt Marty etc Voltaremos a tratar disso mais tarde O único esboço atual relativamente sério de história da filosofia da linguagem e da lingüística achase no livro de Ernst Cassirer A Filosofia das Formas Simbólicas I A Linguagem cap 1o O Problema da Linguagem na História da Filosofia Em língua russa encontraremos um esboço breve mais sério da situação atual da lingüística e da filosofia da linguagem no artigo de R Schor Krizis sovremiénnoi lingvistiki A Crise da Lingüística Contemporânea in Iafetítcheski sbórnik Coletânea Jafética V 1927 p 3271 M N Peterson por sua vez num artigo intitulado Iazík kak sotsialnoie iavliénie A Língua como Manifestação Social in Utchiónie zapíski Instituta iaziká i literaturi Anais Científicos do Instituto de Língua e Literatura 1927 Moscou p 321 dá uma visão de conjunto apesar de muito incompleta dos trabalhos lingüísticos que comportam uma abordagem sociológica Não citaremos trabalhos sobre a história da lingüística 3 Os dois termos como quase sempre ocorre com este tipo de denominação estão longe de recobrir todo o conteúdo e a complexidade das orientações definidas Veremos que a denominação da primeira orientação é particularmente inadequada Mas não conseguimos encontrar uma melhor 72 classificatório e limitase simplesmente a preparar a explicação exaustiva do fato lingüístico como proveniente de um ato de criação individual ou então a servir a finalidades práticas de aquisição de uma língua dada A língua é deste ponto de vista análoga às outras manifestações ideológicas em particular às do domínio da arte e da estética As posições fundamentais da primeira tendência quanto à língua podem ser sintetizadas nas quatro seguintes proposições 1 A língua é uma atividade um processo criativo ininterrupto de construção energia que se materializa sob a forma de atos individuais de fala 2 As leis da criação lingüística são essencialmente as leis da psicologia individual 3 A criação lingüística é uma criação significativa análoga à criação artística 4 A língua enquanto produto acabado ergon enquanto sistema estável léxico gramática fonética apresentase como um depósito inerte tal como a lava fria da criação lingüística abstratamente construída pelos lingüistas com vistas à sua aquisição prática como instrumento pronto para ser usado Wilhelm Humboldt foi um dos mais notórios representantes desta primeira tendência4 foi quem estabeleceu seus fundamentos A influência do poderoso pensamento humboldtiano ultrapassa em muito os limites da tendência que acabamos de descrever Podese dizer que toda a lingüística após ele e até nossos dias encontrase sob sua influência determinante O pensamento humboldtiano não se encaixa integralmente no quadro das quatro proposições enunciadas ele é mais amplo mais complexo e apresenta mais contradições razão pela qual Humboldt pôde tornarse o iniciador de diferentes correntes profundamente divergentes entre si Contudo o núcleo fundamental das idéias humboldtianas constitui a expressão mais forte e mais profunda das tendências essenciais da primeira escola que acabamos de definir5 Na literatura lingüística russa o representante mais próximo desta escola é A A Potebniá e seu grupo de discípulos6 4 Hamann e Herder o precederam nesta direção 5 Humboldt expôs suas idéias sobre a filosofia da linguagem em Ueber die Verschiedeheiten des Menschlichen Sprachbaues in Vorstudie zur Einleitungozum Kawiwerk gesam Schriften AkademieAusgabe Bd VI Há uma grande quantidade de trabalhos sobre Humboldt Citaremos o Wilhelm von Humboldt de R Heim e entre as obras mais recentes o livro de Spranger com o mesmo título Berlim 1909 Sobre Humboldt e sua influência sobre a lingüística 73 Os adeptos mais tardios da primeira tendência não atingiram estes a profundidade das idéias e a síntese filosófica de Humboldt Esta escola de pensamento viuse consideravelmente enfraquecida particularmente pelo fato de sua assimilação a um modo de pensamento positivista e superficialmente empirista Em Steintahl já não se encontra mais a amplitude de Humboldt Em compensação percebese um grande esforço de precisão e de sistematização metodológica Também para Steintahl o psiquismo individual constitui a fonte da língua enquanto que as leis do desenvolvimento lingüístico são leis psicológicas7 No psicologismo empirista de Wundt e discípulos não se encontram mais os fundamentos da primeira escola a não ser sob forma bastante atenuada A doutrina de Wundt resumese no seguinte todos os fatos de língua sem exceção prestamse a uma explicação fundada na psicologia individual sobre uma base voluntarista8 É verdade que Wundt assim como Steintahl considere a língua como uma emanação da psicologia dos povos Völker psychologie ou russa citemos B Engelhardt A N Vesselovsky Petrograd 1922 Recentemente foi editado um estudo muito bom e lingüística russa citemos B Engelhardt A N Vesselovski Petrointeressante de G Spätt Vnútrennai forma slóva etiúdi i variatsii na tiému Gumboldta A Linguagem Interior Estudos e Variações sobre o Tema de Humboldt O autor tenta encontrar as raízes profundas do pensamento humboldtiano camufladas nas interpretações tradicionais há várias tradições de interpretação de Humboldt A concepção de Spätt muito subjetiva mostra uma vez mais como o pensamento de Humboldt é complexo e cheio de contradições ele se presta a variantes muito livres 6 Sua principal obra filosófica é Misl i iazík Pensamento e Linguagem Cracóvia 1905 reeditado pela Academia de Ciências da Ucrânia Os discípulos de Potebniá que constituem a escola de Kharkov publicaram em intervalos irregulares uma revista intitulada Vopróssi teorii i psikhológuii tvórtchestva Problemas da Teoria e da Psicologia da Criação onde encontramos as obras póstumas do próprio Potebniá e artigos de seus alunos a seu respeito A principal obra de Potebniá expõe as idéias de Humboldt 7 Na base da concepção de Steintahl está a teoria psicológica de Herbart que tenta elaborar todos os dados do psiquismo humano a partir dos elementos dotados de uma representação e vinculados por laços associativos 8 O voluntarismo postula o livrearbítrio na base do psiquismo 74 psicologia étnica9 Entretanto a psicologia wundtiana dos povos é constituída pela soma dos psiquismos separados dos indivíduos Para ele apenas estes últimos têm acesso à realidade na sua totalidade Toda as suas explicações dos fatos de língua de mitologia e de religião se ligam a explicações puramente psicológicas Wundt não reconhece a existência de um conjunto de leis específicas puramente sociológicas inerentes a todo signo ideológico e não redutíveis a algumas leis psicológicas individuais Atualmente a primeira tendência da filosofia da linguagem tendo rejeitado as vias do positivismo está a caminho de desa brochar novamente e de alargar a visão destes problemas na escola de Vossler Esta última conhecida por Idealistiche Neuphilologie constitui incontestavelmente uma das orientações mais fecundas do pensamento filosóficolingüístico contemporâneo A contribuição positiva original de seus discípulos à lingüística em romanística e germanística é também muito importante Basta lembrar ao lado do próprio Vossler discípulos tais como Leo Spitzer Lorek Lerch etc Iremos citar cada um deles em várias oportunidades O conjunto da concepção lingüísticofilosófica de Vossler e de sua escola pode ser resumido corretamente pela apresentação que fizemos das quatro proposições fundamentais da primeira escola O que caracteriza primordialmente a escola de Vossler é a negação categórica e de princípio do positivismo lingüístico que não consegue ver mais além das formas lingüísticas em particular as fonéticas as que são positivas e do ato psicofisiológico que as engendra10 Donde o aparecimento em primeiro plano do 9 O termo psicologia étnica foi proposto por G Spätt para substituir o termo calcado no alemão Völker Psychologie ou seja psicologia dos povos Esta última expressão de fato não é satisfatória e a expressão proposta por Spätt parecenos bem melhor Ver G Spätt Vvdiénie v etnítcheskuiu psikhológuiu Introdução à Psicologia Étnica edições da Academia Estatal de Artes e Ciências Moscou 1927 Encontramos neste livro uma crítica de base do pensamento de Wundt mas a construção proposta como alternativa por Spätt tampouco é aceitável 10 O primeiro livro de Vossler no qual ele expõe os fundamentos de sua filosofia Positivismus und Idealismus in 75 componente ideológico significante da língua O motor principal da criação é o gosto lingüístico variedade particular do gosto artístico O gosto lingüístico é justamente esta verdade lingüística absoluta que dá vida à língua e que o lingüista se esforça por descobrir em cada fato de língua a fim de darlhe uma explicação adequada Só pode ter pretensões a um caráter científico diz Vossler uma história da língua que examine toda a hierarquia causal pragmática com a única finalidade de aí descobrir uma ordem estética a fim de que o pensamento lingüístico a verdade lingüística o gosto lingüístico ou como diz Humboldt a forma interior da língua através de suas transformações condicionadas por fatores físicos psíquicos políticos econômicos e culturais em geral tornemse claros e compreensíveis11 Assim é que para Vossler os fatores que determinam de uma forma ou de outra os fatos de língua físicos políticos econômicos etc não possuem significação direta para o lingüista só importa para este o sentido artístico de um dado fato de língua Eis a concepção que ele tem da língua uma concepção puramente estética A própria idéia de língua diz ele é por essência uma idéia poética a verdade da língua é de natureza artística é o Belo dotado de Sentido12 Compreendese que não é um sistema lingüístico acabado no sentido da totalidade dos traços fônicos gramaticais e outros mas sim o ato de criação individual da fala Sprache als Rede que será para Vossler o fenômeno essencial a realidade essencial da língua Seguese que em todo ato de fala o importante do ponto de vista da evolução da língua não são as formas gramaticais estáveis efetivas e comuns a todas as demais enunciações da língua em questão mas sim a realização estilística e a modificação das formas abstratas da língua de caráter individual e que dizem respeito apenas a esta enunciação Só essa individualização estilística da língua na enunciação concreta é histórica e realmente produtiva É nela que tem lugar a evolução da língua logo dissimulada pela formalização gramatical Todo fato gramatical foi a princípio fato estilístico É a isto que se liga a idéia vossleriana da primazia do estilístico sobre o der Sprachwissenchaft Heidelberg 1904 é consagrado à crítica do positivismo em lingüística 11 Grammatika i istoria iaziká Gramática e História da Língua In Logos vol 1 1910 p 170 12 Ibid p 167 76 gramatical13 A maior parte das pesquisas lingüísticas inspiradas na doutrina de Vossler se situa na fronteira entre a lingüística no sentido estrito e a estilística Em toda forma lingüística os vosslerianos se empenham com afinco em descobrir raízes ideológicas significantes14 Entre os representantes contemporâneos da primeira orientação da filosofia da linguagem convém citar ainda o filósofo e crítico literário Benedetto Croce em razão de sua grande influência sobre o pensamento filosófico lingüístico e sobre a crítica literária na Europa As idéias de Benedetto Croce são em muitos aspectos próximas às de Vossler Para ele também a língua constitui um fenômeno estético A base o termochave de sua concepção da língua é a palavra expressão Toda expressão é em princípio de natureza artística Daí a lingüística como ciência da expressão por excelência 13 Nós voltaremos mais tarde à crítica desta idéia 14 Os principais trabalhos filosóficolingüísticos de Vossler surgidos depois do livro citado estão reunidos na coletânea Philosophie der Sprache 1920 Tratase da última publicação de Vossler Ela dá uma idéia completa de suas concepções em filosofia e em lingüística geral Entre os trabalhos lingüísticos característicos do método vossleriano citemos Frankreichs Kultur im Spiegel seiner Sprachentwicklung 1913 O leitor encontrará uma bibliografia completa de Vossler até 1922 na coletânea Idealistiche Neuphilologie Festschrift für Karl Vossler que lhe é consagrada 1922 Em língua russa podem se ler dois artigos sobre ele o artigo já citado e também Otnochénie istorii iazikóv k istorii literaturi A Relação entre a História das Línguas e a História da Literatura in Logos 19121913 vol III Os dois artigos dão uma idéia das bases da teoria de Vossler As posições de Vossler e de seus discípulos nunca foram discutidas na literatura lingüística russa Delas encontramos apenas uma menção no artigo de Jirmunsky sobre a crítica literária contemporânea na Alemanha Poética volume III 1927 Academia R Schor no esboço por nós citado só menciona Vossler no prefácio Mais adiante iremos falar dos trabalhos dos seguidores de Vossler que apresentam um interesse filosófico e metodológico 77 coincidir com a estética Seguese que para Croce o ato de fala individual constitui igualmente o fenômeno de base da língua15 Passemos à definição da segunda orientação do pensa mento filosóficolingüístico Segundo esta tendência o centro organizador de todos os fatos da língua o que faz dela o objeto de uma ciência bem definida situase ao contrário no sis tema lingüístico a saber o sistema das formas fonéticas gramaticais e lexicais da língua Enquanto que para a primeira orientação a língua constitui um fluxo ininterrupto de atos de fala onde nada permanece estável nada conserva sua identidade para a segunda orientação a língua é um arcoíris imóvel que domina este fluxo Cada enunciação cada ato de criação individual é único e não reiterável mas em cada enunciação encontramse elementos idênticos aos de outras enunciações no seio de um determinado grupo de locutores São justamente estes traços idênticos que são assim normativos para todas as enunciações traços foné ticos gramaticais e lexicais que garantem a unicidade de uma dada língua e sua compreensão por todos os locutores de uma mesma comunidade Se tomarmos um som qualquer da língua por exemplo o fone ma a na palavra ráduga arcoíris o som produzido pelo aparelho articulatório fisiológico do organismo individual é um som individual e único próprio de cada sujeito falante Quan tas forem as pessoas a pronunciar a palavra ráduga quantos serão os a particulares desta palavra ainda que o ouvido não queira nem possa captar esta particularidade O som fisiológico ou seja o som produzido pelo aparelho fisiológico individual é no final das contas tão único quanto é única a impressão digital de um indivíduo dado tão único como a composição química individual do sangue de cada pessoa embora a ciência não seja ainda capaz de definir fórmulas individuais do sangue 15 Podese encontrar em russo a primeira parte de A Estética de Benedetto Croce A Estética Como Ciência da Expressão e Como Elemento de Lingüística Geral Moscou 1920 Aí já se encontram as considerações gerais de Croce sobre a língua e a lingüística 78 Entretanto será que estas particularidades individuais do som a condicionadas digamos pela forma única da língua órgão do palato e dos dentes dos sujeitos falantes admitamos que possamos igualmente captar e fixar todas estas particularidades são essenciais do ponto de vista da língua Evidente que elas não apresentam qualquer interesse O que é essencial é a identidade normativa deste som em todas as instâncias em que se pronuncia a palavra ráduga E esta identidade normativa constitui justamente posto que não existe identidade de fato a unicidade do sistema fonético da língua neste quadro sincrônico e garante a compreensão da palavra por todos os membros da comunidade lingüística Este fonema a identificado por referência a uma norma constitui portanto um fato de língua um objeto científico da lingüística Isto se estende legitimamente a todos os outros elementos da língua Em toda parte encontraremos a mesma identi dade normativa das formas lingüísticas por exemplo os esque mas sintáticos ao lado da realização única e não reiterável da aplicação individual de uma forma dada no ato de fala única O primeiro fato é parte integrante do sistema da língua o segundo se refere aos processos individuais da fala condicionados do ponto de vista da língua como sistema por fatores contin gentes fisiológicos e subjetivopsicológicos dos quais não pode mos inteirarnos com precisão É claro que o sistema lingüístico no sentido acima definido é completamente independente de todo ato de criação individual de toda intenção ou desígnio Do ponto de vista da segunda orientação não se poderia falar de uma criação refletida da língua pelo sujeito falante16 A língua opõese ao indivíduo enquanto norma indestrutível peremptória que o indivíduo só pode aceitar como tal No caso em que o indivíduo não integrasse nenhuma forma lingüística enquanto norma peremptória esta forma deixa O termo fonologia ainda não é usado Lembremos que esta obra é anterior aos trabalhos do Círculo Fonológico de Praga NdTfr 16 Entretanto como veremos no terreno do racionalismo tal qual o descrevemos os fundamentos da segunda orientação do pensamento filosóficolingüístico são inteiramente compatíveis com a idéia de uma língua universal racional artificialmente criada 79 ria então de existir para ele como forma da língua para tornarse simples potencial de seu aparelho psicofísico individual O indi víduo recebe da comunidade lingüística um sistema já constituído e qualquer mudança no interior deste sistema ultrapassa os limites de sua consciência individual O ato individual de emissão de todo e qualquer som só se torna ato lingüístico na medida em que se ligue a um sistema lingüístico imutável num determinado momento de sua história e peremptório para o indivíduo Quais são pois as leis que governam este sistema interno da língua Elas são puramente imanentes e específicas irredutíveis a leis ideológicas artísticas ou a quaisquer outras Todas as formas da língua consideradas num momento preciso ou seja do ponto de vista sincrônico são indispensáveis umas às outras completamse mutuamente e fazem da língua um sistema estruturado que obedece a leis lingüísticas específicas Estas leis lingüísticas específicas à diferença das leis ideológicas que se referem a processos cognitivos à criação artísticas etc não podem depender da consciência individual Um tal sistema o indivíduo tem que tomálo e assimilálo no seu conjunto tal como ele é Não há lugar aqui para quaisquer distinções ideológicas de caráter apreciativo é pior é melhor belo ou repugnante etc Na verdade só existe um critério lingüístico está certo ou errado além do mais por correção lingüística devese entender apenas a conformidade a uma dada norma do sistema normativo da língua Não se poderia por conseguinte falar em gosto lingüístico nem em verdade lingüística Do ponto de vista do indivíduo as leis lingüísticas são arbitrárias isto é privadas de uma justificação natural ou ideológica por exemplo artístico Assim entre a face fonética da palavra e seu sentido não há nem uma conexão natural nem uma correspondência de natureza artística Se a língua como conjunto de formas é independente de todo impulso criador e de toda ação individual seguese ser ela o produto de uma criação coletiva um fenômeno social e portanto como toda instituição social normativa para cada indivíduo Entretanto o sistema lingüístico único e sincronicamente imutável transformase evolui no processo de evolução histórica de uma determinada comunidade lingüística posto que a identidade normativa do fonema tal qual nós a estabelecemos é diferente nas diferentes épocas da evolução de uma língua Em poucas palavras a língua tem sua história Como podemos pensar esta história do ponto de vista da segunda orientação Para esta segunda orientação do pensamento filosóficolingüístico o fato mais significativo é o fosso que separa a história do sis 80 tema lingüístico em questão da abordagem não histórica sincrônica A argumentação fundamental da segunda orientação faz deste fosso dialético um fosso intransponível Entre a lógica que governa o sistema de formas lingüísticas num determinado momento da história e a lógica ou antes a ausência de lógica da evolução histórica destas formas nada pode haver de comum São duas lógicas diferentes Ou melhor se nós reconhecemos uma como sendo lógica então a outra deve ser definida como alógica isto é como a negação pura e simples da lógica estabelecida Na verdade as formas que constituem o sistema lingüístico são mutuamente dependentes e completamse como elementos de uma só e mesma fórmula matemática A mudança de um dos elementos do sistema cria um novo sistema assim como a mudança de um dos elementos da fórmula cria uma nova fórmula A relação e as regras que governam as ligações entre os elementos de uma dada fórmula não se estendem nem poderiam se estender para a relação entre o sistema ou a fórmula em questão e um outro sistema ou outra fórmula que a eles se seguissem Podemos utilizar aqui uma analogia grosseira mas que exprime entretanto com suficiente exatidão as relações que a segunda orientação do pensamento filosóficolingüístico mantém com a história da língua Comparemos o sistema da língua com a fórmula de resolução do binômio de Newton Esta fórmula é regida por regras bem estritas que subordinam todos os elementos e os tornam imutáveis Suponhamos que um aluno utilizando esta fórmula se engane que por exemplo ele confunda os sinais de mais e menos ou os expoentes Disto resultaria uma nova fórmula com suas regras internas esta fórmula por certo não mais convém à resolução do binômio de Newton mas isto não tem importância para efeitos de nossa analogia Entre a primeira e a segunda fórmulas já não existe mais relação matemática análoga à que rege as relações internas de cada fórmula Na língua as coisas se passam do mesmo modo As relações sistemáticas que existem entre duas formas lingüísticas no sistema em sincronia nada têm de comum com as relações que unem qualquer destas formas à sua imagem transformada no estágio posterior da evolução histórica da língua O germânico de antes do século XVI conjugava ich was wir waren O alemão contemporâneo conjuga ich war wir waren ich was transformouse pois em ich war Entre as formas ich was wir waren e ich war wir waren existe uma ligação lingüística sistemática os termos se completam mutuamente Eles se ligam e são complemen tares particularmente como formas do singular e plural da primeira 81 pessoa na conjugação de um único e mesmo verbo Entre ich war wir waren de um lado e ich was séculos XV e XVI ich war contemporâneo de outro existe uma relação diferente que nada tem de comum com a primeira A forma ich war formouse por analogia a wir waren No lugar de ich was nós indivíduos separados viemos a criar ich war17 sob influência de wir waren O fenômeno tornouse fenômeno de massa e o resultado foi que de um erro individual originouse uma norma lingüística Desta maneira entre as duas relações 1o ich was wir waren no quadro sincrônico digamos do século XV ou então ich war wir waren no quadro sincrônico do século XIX e 2o ich was ich war wir waren na qualidade de fator determinante da nova forma analógica existem diferenças bem profundas no plano dos princípios A primeira relação sincrônica é regida por combinações lingüísticas sistemáticas entre elementos interdependentes e complementares Esta relação opõese ao indivíduo na sua qualidade de norma peremptória A segunda relação histórica ou diacrônica está submetida às suas próprias leis particulares mais precisamente às leis do erro analógico A lógica da história da língua é a lógica dos erros individuais ou dos desvios A passagem de ich was a ich war se efetua fora do campo da consciência individual A passagem é involuntária e passa desapercebida e esta é a condição de sua realização A cada época só pode corresponder uma única norma lingüística ou ich was ou ich war Fora da norma só há lugar para a transgressão mas não para uma outra norma contraditória razão pela qual não poderia existir tragédia lingüística Se a transgressão não é percebida como tal e por isso mesmo não é corrigida e se existe um terreno favorável para a generalização do erro no caso considerado este terreno favorável é a analogia então este desvio tornase a nova norma lingüística Assim entre a lógica da língua como sistema de formas e a lógica da sua evolução histórica não há nenhum vínculo nada de comum As duas esferas são regidas por leis completamente diferentes por fatores heterogêneos O que torna a língua significante e coerente no quadro sincrônico é excluído e inútil no quadro diacrônico O 17 Os ingleses utilizam ainda I was 82 presente da língua e sua história não se entendem entre si são ambos incapazes de se entenderem Assinalamos a divergência bem profunda que existe justamente sob este aspecto entre a primeira e a segunda orientação da filosofia da linguagem Para a primeira orientação a essência da língua está precisamente na sua história A lógica da língua não é absolutamente a da repetição de formas identificadas a uma norma mas sim uma renovação constante a individualização das formas em enunciações estilisticamente únicas e não reiteráveis A realidade da língua constitui também sua evolução Entre um momento particular da vida de uma língua e sua história se estabelece uma comunhão total As mesmas motivações ideológicas reinam numa e noutra parte Como diria Vossler o gosto lingüístico cria a unicidade da língua num momento dado Ele cria e garante da mesma maneira a unicidade da evolução histórica da língua A passagem de uma forma histórica a outra se efetua essencialmente nos limites da consciência individual posto que também como sabemos toda forma gramatical foi na origem para Vossler uma forma estilística livre A diferença entre as duas orientações fica muito bem ilustrada pela seguinte as formas normativas responsáveis pelo imobilismo do sistema lingüístico ergon não eram para a primeira orientação senão resíduos deteriorados da evolução lingüística da verdadeira substância da língua tornada viva pelo ato de criação individual e único Para a segunda orientação é justamente este sistema de formas normativas que se torna a substância da língua A refração e a variação de caráter individual e criador das formas lingüísticas não constituem mais que detritos da vida da língua mais exatamente do imobilismo fenomenal desta harmônicos inúteis e intangíveis do tom fundamentalmente estável das formas lingüísticas Nós podemos sintetizar o essencial das considerações da segunda orientação nas seguintes proposições 1 A língua é um sistema estável imutável de formas lingüísticas submetidas a uma norma fornecida tal qual à consciência individual e peremptória para esta 2 As leis da língua são essencialmente leis lingüísticas específicas que estabelecem ligações entre os signos lingüísticos no interior de um sistema fechado Estas leis são objetivas relativamente a toda consciência subjetiva 3 As ligações lingüísticas específicas nada têm a ver com valores ideológicos artísticos cognitivos ou outros Não se encontra na base dos fatos lingüísticos nenhum motor ideológico Entre a palavra 83 e seu sentido não existe vínculo natural e compreensível para a consciência nem vínculo artístico 4 Os atos individuais de fala constituem do ponto de vista da língua simples refrações ou variações fortuitas ou mesmo deformações das formas normativas Mas são justamente estes atos individuais de fala que explicam a mudança histórica das formas da língua enquanto tal a mudança é do ponto de vista do sistema irracional e mesmo desprovida de sentido Entre o sistema da língua e sua história não existe nem vínculo nem afinidade de motivos Eles são estranhos entre si O leitor terá notado que as quatro proposições que resumem a segunda orientação do pensamento filosóficolingüístico constituem a antítese das quatro proposições correspondentes da primeira orientação O traçado histórico da segunda orientação é bem mais difícil de ser feito Aí não encontramos no início de nossa era representante ou teórico cuja estatura possa se comparar à de Humboldt É preciso procurar as raízes desta orientação no racionalismo dos séculos XVII e XVIII Tais raízes mergulham no solo fértil do cartesianismo18 Foi Leibniz quem exprimiu pela primeira vez estas idéias de forma clara na sua teoria da gramática universal A idéia de uma língua convencional arbitrária é caracterís tica de toda corrente racionalista bem como o paralelo estabele cido entre o código lingüístico e o código matemático Ao espí rito orientado para a matemática dos racionalistas o que interessa não é a relação do signo com a realidade por ele refletida ou com o indivíduo que o engendra mas a relação de signo para signo no interior de um sistema fechado e não obstante aceito e inte grado Em outras palavras só lhes interessa a lógica interna do próprio sistema de signos este é considerado assim como 18 Não resta qualquer dúvida de que um elo interno une em profundidade a segunda orientação ao pensamento cartesiano e à visão geral do mundo do neoclassicismo com seu culto da forma fixa racional e imutável O próprio Descartes não publicou nada sobre a filosofia da linguagem mas encontramos na sua correspondência observações características Ver a este respeito o capítulo já citado no livro de Cassirer 84 na lógica independentemente por completo das significa ções ideológicas que a ele se ligam Os racionalistas também se inclinam a levar em conta o ponto de vista do receptor mas nunca o do locutor enquanto sujeito que exprime sua vida interior já que o signo matemático é menos passível do que qualquer outro de ser interpretado como a expressão do psiquismo individual ora o signo matemático era para os racionalistas o signo por excelência o modelo semiótico inclusive para a língua São precisamente estas idéias que se acham claramente expressas no conceito leibniziano da gramática universal19 Convém aqui assinalar que a primazia do ponto de vista do receptor sobre o do locutor é uma constante da segunda orientação Por isso mesmo em função do terreno escolhido por esta última o problema da expressão não é nunca abordado nem por conseguinte o da evolução do pensamento e do psiquismo subjetivo tal como ele transpira através da palavra o que é uma das principais preocupações da primeira orientação A idéia da língua como sistema de signos arbitrários e convencionais essencialmente racionais foi elaborada de forma simplificada já no século XVIII pelos filósofos do Século das Luzes As idéias que constituem o objetivismo abstrato vieram à luz primeiramente na França e ainda encontram aí seu terreno preferido20 Sem nos determos nas etapas intermediárias do desenvolvimento destas idéias passaremos imediatamente para a caracterização desta segunda orientação na época contemporânea A chamada escola de Genebra com Ferdinand de Saussure mostrase como a mais brilhante expressão do objetivismo abstrato em nosso tempo Os representantes desta escola particularmente Charles Bally estão entre os maiores lingüistas contemporâneos Saussure deu a todas as idéias da segunda orientação uma clareza e uma precisão admiráveis Suas formulações dos conceitos de base da lingüística tornaramse clássicas E mais ele levou todas suas reflexões a seu termo dotando assim os traços essenciais do objetivismo abstrato de uma limpidez e 19 Podemos familiarizarnos com estas considerações de Leibniz lendo a obra fundamental de Cassirer Leibniz System in seinem Wiessenschaftlichen Grundlagen Marburg 1902 20 É interessante notar que ao contrário da primeira a segunda orientação desenvolveuse e continua a desenvolverse na Alemanha 85 de um rigor excepcionais A pouca audiência que a escola de Vossler tem na Rússia corresponde inversamente à popularidade e influência de que a de Saussure aí goza Podemos dizer que a maioria dos representantes de nosso pensamento lingüístico se acha sob a influência determinante de Sausurre e de seus discípulos Bally e Sechehaye21 Nós nos deteremos um pouco mais longamente nas concepções de Sausurre dada a imensa importância de seus fundamentos teóricos para toda a segunda orientação e para a lingüística russa Mas aí também limitarnosemos às posições filosóficolingüísticas de base22 Sausurre parte do princípio de uma tríplice distinção le langage la langue como sistema de formas e o ato da enunciação individual la parole A língua la langue e a fala la parole são os elementos constitutivos da linguagem compreendida como a totalidade sem exceção de todas as manifestações físicas fisiológicas e psíquicas 21 O livro de R Schor Iazík i óbchtchestvo Linguagem e Sociedade Moscou 1926 situase no espírito da escola de Gene bra Schor nele faz uma viva apologia das idéias fundamentais De Saussure como também no artigo já citado A Crise da Lingüística Contemporânea Vinogradov se situa também como um êmulo da escola de Genebra Duas escolas lingüísticas russas a escola de Fortunátov e a de Kazan Kruchevski e Baudouin de Courtenay que constituem uma expressão brilhante do formalismo em lingüística inseremse perfeitamente no quadro da segunda orientação tal como a esboçamos 22 A obra teórica fundamental de Saussure publicada depois de sua morte por seus discípulos intitulase Curso de Lingüística Geral 1916 Nós a citaremos aqui na edição de 1922 É de causar admiração o fato de que este livro tendo em conta sua enorme influência nunca tenha sido traduzido para o russo Podemos encontrar uma breve apresentação das idéias de Saussure no artigo já indicado de Schor e no artigo de Peterson Óbchtchaia lingvistika Lingüística Geral in Petchát i revoliútsia Imprensa e Revolução 1923 vol 6 86 que entram em jogo na comunicação lingüística A linguagem não pode ser segundo Saussure o objeto da lingüística Considerada em si mesma faltalhe unidade interna e leis independentes autônomas Ela é compósita heterogênea É difícil não se perder em sua composição contraditória É impossível se permanecermos no terreno da linguagem fazer uma descrição dos fatos da língua A linguagem não pode ser o ponto de partida de uma análise lingüística Qual é pois o caminho metodológico correto que Saussure nos propõe para explicitar o objeto específico da lingüística A ele a palavra Não há no nosso entender senão uma solução para todas estas dificuldades tratase das contradições internas da linguagem como ponto de partida de sua análise é preciso antes de tudo instalarse no terreno da língua e tomála como norma de todas as demais manifestações da linguagem Com efeito em meio a tantas dualidades só a língua parece suscetível de uma definição autô noma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito F de Saussure Cours de linguistique générale p 24 itálicos de Saussure Qual é pois segundo Saussure a distinção de princípio entre língua e linguagem Tomada como um todo a linguagem é multiforne e heteróclita participando de diversos domínios tanto do físico quanto do filosófico e do psíquico ela pertence ainda ao domínio individual e ao domínio social ela não se deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos humanos porque não se sabe como isolar sua unidade Todas as citações francesas do livro estão em francês no texto original Lembremos que iazík em russo designa a linguagem a língua e a língua enquanto órgão e que rietch em russo designa a fala a língua a linguagem o discurso Traduziuse iazík ora por linguagem como no título ora por língua Entretanto para suprimir a ambigüidade Bakhtin forjou um substantivo composto iazíkrietch a linguagem que ele opôs a iazík kak sistiema form A Língua como sistema de formas e a viskazivánie a enunciação do ato de fala NdTfr 87 A língua ao contrário é um todo em si mesma e um princípio de classificação A partir do momento em que lhe atribuímos o maior destaque entre os fatos da linguagem introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação Op cit p 25 Assim para Saussure é indispensável partir da língua como sistema de formas cuja identidade se refira a uma norma e esclarecer todos os fatos de linguagem como referência a suas formas estáveis e autônomas autoregulamentadas Tendo distinguido a língua da linguagem no sentido da totalidade absoluta das manifestações lingüísticas Saussure vai em seguida distinguir a língua dos atos individuais de enunciação isto é da fala Separandose a língua da fala separase ao mesmo tempo em primeiro lugar o que é social do que é individual em segundo lugar o que é essencial do que é acessório e relativamente acidental A língua não é função do sujeito falante ela é um produto que o indivíduo registra passivamente ela não supõe nunca premeditação e a reflexão aí só intervém para a atividade de classificação de que nos ocuparemos A fala é ao contrário um ato individual de vontade e de inteligência no interior do qual convém distinguir primeiramente as combinações pelas quais o sujeito falante utiliza o código da língua para exprimir seu pensamento pessoal em segundo lugar o mecanismo psicofísico que lhe permite exteriorizar estas combinações Op cit p 30 A fala tal como Saussure a entende não poderia ser objeto da lingüística23 Na fala os elementos que concernem à lingüística são constituídos apenas pelas formas normativas da língua que aí se manifestam Todo o resto é acessório e acidental 23 Saussure na verdade admite a possibilidade de uma outra lingüística a da fala mas ele não diz em que poderia ela consistir Eis o que ele escreve a respeito Há que se escolher entre dois caminhos impossíveis de serem seguidos ao mesmo tempo eles devem ser trilhados separadamente Podese a rigor conservar o nome de lingüística da fala Mas não se deverá confundila com a lingüística propriamente dita aquela em que a língua é o único objeto Op cit p 39 88 Destaquemos esta tese fundamental de Saussure a língua se opõe à fala como o social ao individual A fala é assim absolutamente individual Nisto consiste como veremos o proton pseudos de Saussure e de toda tendência do objetivismo abstrato O ato individual de falaenunciação rechaçado decisivamente para os confins da lingüística aí encontra todavia um lugar como fator indispensável da história da língua24 Esta última de acordo com o espírito de toda a segunda orientação opõese rigorosamente à língua como sistema sincrônico para Saussure Na história da língua a fala com seu caráter individual e acidental é soberana razão pela qual é regida por leis completamente diferentes das que regem o sistema da língua Assim é que o fenômeno sincrônico nada tem de comum com o diacrônico p 129 A lingüística sincrônica irá se ocupar das relações lógicas e psicológicas que unem termos coexistentes e formadores de um sistema tal como eles são percebidos pela mesma consciência coletiva A lingüística diacrônica estudará ao contrário as relações que unem termos sucessivos não percebidos por uma mesma consciência e que se substituem uns aos outros sem formar sistema entre si Op cit p 140 itálicos de Saussure Estas idéias de Sausurre sobre a história são bem características do espírito racionalista que reina até hoje na segunda orientação do pensamento filosóficolingüístico e para o qual a história é um domínio irracional que corrompe a pureza lógica do sistema lingüístico Saussure e sua escola não estão sozinhos no pináculo do objetivismo abstrato contemporâneo Ao lado deles nós vemos ascender uma outra escola a escola sociológica de Durkheim Nela encontramos uma figura de lingüista como a de Meillet Nós não nos deteremos numa descrição de suas concepções25 Elas se inserem perfeitamente no quadro dos fundamentos já apresentados da segunda orientação Também para Meillet não é a qualidade de processo mas a de sistema estável de normas lingüísticas que faz da língua um 24 Saussure diz Tudo o que é diacrônico na língua só o é através da fala É na fala que se encontra o germe de todas as mudanças Op cit p 138 25 M N Peterson expõe as idéias de Meillet relacionandoas com os fundamentos do método sociológico de Durkheim no artigo já citado A Língua Como Manifestação Social Ver a bibliografia aí contida 89 fenômeno social O fato de oporse a língua do exterior à consciência individual e mais o seu caráter coercitivo constituem para ele os traços sociais fundamentais da língua Não iremos discorrer sobre as inúmeras escolas e tendências da lingüística que não entram no quadro das duas orientações aqui definidas Falaremos um pouco entretanto a respeito dos neogramáticos cujo movimento constitui uma das mais importantes manifestações da lingüística na segunda metade do século XIX Por algumas de suas posições os neogramáticos mostram um certo parentesco com a segunda orientação da qual eles realçam o componente menor o fisiológico O indivíduo criador da língua é essencialmente para eles um ser fisiológico Por outro lado no terreno psicofisiológico os neogramáticos tentaram construir leis lingüísticas calcadas nas ciências naturais ou seja leis imutáveis completamente privadas do livre arbítrio dos indivíduos locutores Donde a idéia neogramática das leis fonéticas Lautgesetze26 Em lingüística como em toda ciência específica existem essencialmente duas maneiras de se livrar do penoso trabalho que uma reflexão filosófica séria fundada sobre princípios exige A primeira consiste em erigir logo de saída todos os princípios em axiomas academicismo eclético a outra consiste em descartar todos os princípios e proclamar o fato factum como fundamento e critério último de todo ato cognitivo positivismo acadêmico O efeito filosófico que resulta destes dois procedimentos para se livrar da filosofia é o mesmo já que no segundo caso podem caber no saco onde se lê Fato todos os princípios possíveis e imagináveis A escolha de uma modalidade ou de outra depende inteiramente do temperamento do pesquisador os ecléticos são mais relaxados os positivistas mais exigentes Encontramse em lingüística numerosas produções e mesmo escolas inteiras escolas no sentido de estudo científicotécnico que se dispensam da tarefa de seguir uma orientação filosóficolingüística Mas elas não entram evidentemente no quadro de nossa apresentação Existem por fim alguns lingüistas e filósofos não mencionados aqui como Otto Dietrich e Anton Marty e que 26 Os principais trabalhos da tendência neogramática são Osthoff Das physiologische und psychologische Moment in der sprachlichen Formenbildung Berlim 1879 Brugmann e Delbrück Grundriss der vergleichenden Grammatik der indogermanischen Sprachen cinco volumes 1886 O programa dos neogramáticos está exposto no prefácio do livro de Osthoff e Brugmann Morphologische Untersuchungen Leipzig 1878 90 citaremos adiante quando analisarmos os problemas da interação lingüística e da significação Colocamos no início do capítulo o problema da explicitação e da delimitação da língua como objeto específico de pesquisa Tentamos descobrir as balizas já colocadas no caminho da resolução deste problema pelas tendências do pensamento filosóficolingüístico que nos precederam Por fim achamonos diante de duas categorias de sinalizações colocadas em direções diametralmente opostas De um lado as teses do subjetivismo individualista e de outro as antíteses do objetivismo abstrato Mas o que é que se revela como o verdadeiro núcleo da realidade lingüística O ato individual da fala a enunciação ou o sistema da língua E qual é pois o modo de existência da realidade lingüística Evolução criadora ininterrupta ou imutabilidade de normas idênticas a si mesmas 91 CAPÍTULO 5 LÍNGUA FALA E ENUNCIAÇÃO No capítulo precedente tentamos representar de maneira totalmente objetiva as duas orientações do pensamento filosófico lingüístico Agora devemos submetêlas a uma análise crítica em profundidade Isso feito estaremos em condições de responder à questão colocada no fim do Capítulo 4 Comecemos pela crítica da segunda orientação a do objetivismo abstrato Coloquemonos primeiro a seguinte questão em que medida um sistema de normas imutáveis isto é um sistema de língua segundo os representantes da segunda orientação conformase à realidade Evidentemente nenhum dos representantes do objetivismo abstrato confere ao sistema lingüístico um caráter de realidade material eterna Esse sistema exprimese efetivamente em coisas materiais em signos mas enquanto sistema de formas normativas sua realidade repousa na sua qualidade de norma social Os representantes dessa orientação acentuam constantemente que o sistema lingüístico constitui um fato objetivo externo à consciência individual e independente desta e isto representa uma de suas posições fundamentais E no entanto é só para a consciência individual e do ponto de vista dela que a língua se apresenta como sistema de normas rígidas e imutáveis Na verdade se fizermos abstração da consciência individual subjetiva e lançarmos sobre a língua um olhar verdadeiramente objetivo um olhar digamos oblíquo ou melhor de cima não encontraremos nenhum indício de um sistema de normas imutáveis Pelo contrário depararemos com a evolução ininterrupta das normas da língua De um ponto de vista realmente objetivo percebendo a língua de um modo completamente diferente daquele como ela apareceria para um certo indivíduo num dado momento do tempo a língua apresentase como uma corrente evolutiva ininterrupta Para o observador que enfoca a língua de cima o lapso 92 de tempo em cujos limites é possível construir um sistema sincrônico não passa de uma ficção Assim de um ponto de vista objetivo o sistema sincrônico não corresponde a nenhum momento efetivo do processo de evolução da língua E na verdade para o historiador da língua que adota um ponto de vista diacrônico o sistema sincrônico não constitui uma realidade ele apenas serve de escala convencional para registrar os desvios que se produzem a cada momento no tempo O sistema sincrônico da língua só existe do ponto de vista da consciência subjetiva do locutor de uma dada comunidade lingüística num dado momento da história Objetivamente esse sistema não existe em nenhum verdadeiro momento da história Podemos admitir que no momento em que César escrevia suas obras a língua latina constituía para ele um sistema imutável e incontestável de normas fixas mas para o historiador da língua latina naquele mesmo momento em que César escrevia produziase um processo contínuo de transformação lingüística mesmo se o historiador não for capaz de registrar essas transformações Todo sistema de normas sociais encontrase numa posição aná loga somente existe relacionado à consciência subjetiva dos indivíduos que participam da coletividade regida por essas normas São assim os sistemas de normas morais jurídicas estéticas tais normas realmente existem etc Certamente essas normas variam Diferem pelo grau de coerção que exercem pela extensão de sua escala social pelo grau de significação social que é função de sua relação mais ou menos próxima com a infraestrutura etc Mas enquanto normas a natureza de sua existência permanece a mesma só existem relativamente à consciência subjetiva dos indivíduos de uma dada comunidade Seguese então que essa relação entre a consciência subjetiva e a língua como sistema objetivo de normas incontestáveis seja desprovida de qualquer objetividade Não evidentemente Compreendida corretamente essa relação pode ser considerada um fato objetivo Dizer que a língua como sistema de normas imutáveis e incontestáveis possui uma existência objetiva é cometer um grave erro Mas exprimese uma relação perfeitamente objetiva quando se diz que a língua constitui relativamente à consciência individual um sistema de normas imutáveis que este é o modo de existência da língua para todo membro de uma comunidade lingüística dada Se o próprio fato está correta mente estabelecido se é realmente verdade que a língua se apresenta para a consciência do locutor como um sistema de normas fixas 93 e imutáveis é uma outra questão que por enquanto será deixada em aberto Em todo caso nosso alvo é poder estabelecer uma certa relação objetiva Qual a posição dos partidários do objetivismo abstrato com relação a esse ponto Afirmam eles que a língua é um sistema de normas fixas objetivas e incontestáveis ou percebem que este é apenas o modo de existência da língua para a consciência subjetiva dos locutores de uma dada comunidade A melhor resposta a essa questão é a seguinte a maioria dos partidários do objetivismo abstrato tende a afirmar a realidade e a objetividade imediatas da língua como sistema de formas normativas Para esses representantes da segunda orientação o objetivismo abstrato tornase simplesmente hipostático Outros representantes da mesma orientação Meillet por exemplo são mais críticos e percebem a natureza abstrata e convencional do sistema lingüístico No entanto nenhum dos objetivistas abstratos chegou a compreender de maneira clara e precisa o funcionamento intrínseco da língua como sistema objetivo Na maioria dos casos eles oscilam entre as duas acepções que a palavra objetivo possui quando aplicada ao sistema lingüístico a acepção por assim dizer entre aspas expressando o ponto de vista da consciência subjetiva do locutor e a acepção sem aspas objetivo no sentido próprio Até Saussure procede dessa maneira Ele não resolve a questão claramente Devemos agora perguntarnos se a língua existe realmente para a consciência subjetiva do locutor unicamente como sistema objetivo de formas normativas e intocáveis O objetivismo abstrato captou corretamente o ponto de vista da consciência subjetiva do locutor É realmente este o modo de existência da língua na consciência lingüística subjetiva A essa questão somos obrigados a responder pela negativa A consciência subjetiva do locutor não se utiliza da língua como de um sistema de formas normativas Tal sistema é uma mera abstração produzida com dificuldade por procedimentos cognitivos bem determinados O sistema lingüístico é o produto de uma reflexão sobre a língua reflexão que não procede da consciência do locutor nativo e que não serve aos propósitos imediatos da comunicação Na realidade o locutor servese da língua para suas necessidades enunciativas concretas para o locutor a construção da língua está orientada no sentido da enunciação da fala Tratase para ele de utilizar as formas normativas admitamos por enquanto a legitimidade destas num dado contexto concreto Para ele o centro de gravidade da língua não reside na conformidade à norma da forma 94 utilizada mas na nova significação que essa forma adquire no contexto O que importa não é o aspecto da forma lingüística que em qualquer caso em que esta é utilizada permanece sempre idêntico Não para o locutor o que importa é aquilo que permite que a forma lingüística figure num dado contexto aquilo que a torna um signo adequado às condições de uma situação concreta dada Para o locutor a forma lingüística não tem importância enquanto sinal estável e sempre igual a si mesmo mas somente enquanto signo sempre variável e flexível Este é o ponto de vista do locutor Mas o locutor também deve levar em consideração o ponto de vista do receptor Seria aqui que a norma lingüística entraria em jogo Não também não é exatamente assim É impossível reduzirse o ato de descodificação ao reconhecimento de uma forma lingüística utilizada pelo locutor como forma familiar conhecida modo como reconhecemos por exemplo um sinal ao qual não estamos suficientemente habituados ou uma forma de uma língua que conhecemos mal Não o essencial na tarefa de descodificação não consiste em reconhecer a forma utilizada mas compreendêla num contexto concreto preciso compreender sua significação numa enunciação particular Em suma tratase de perceber seu caráter de novidade e não somente sua conformidade à norma Em outros termos o receptor pertencente à mesma comunidade lingüística também considera a forma lingüística utilizada como um signo variável e flexível e não como um sinal imutável e sempre idêntico a si mesmo O processo de descodificação compreensão não deve em nenhum caso ser confundido com o processo de identifi cação Tratase de dois processos profundamente distintos O signo é descodificado só o sinal é identificado O sinal é uma entidade de conteúdo imutável ele não pode substituir nem refletir nem refratar nada constitui apenas um instrumento técnico para designar este ou aquele objeto preciso e imutável ou este ou aquele acontecimento igualmente preciso e imutável1 O sinal 1 Karl Bühler no seu artigo Vom Wesem der Syntax in Festschrift für Karl Vossler p 6169 estabelece distinções interessantes e astuciosas entre de um lado o sinal e suas combinações no domínio marítimo por exemplo e de outro a forma lingüística e suas combinações em conexão com os problemas de sintaxe 95 não pertence ao domínio da ideologia ele faz parte do mundo dos objetos técnicos dos instrumentos de produção no sentido amplo do termo Mais distantes ainda da ideologia estão os sinais com os quais trabalha a reflexologia Esses sinais considerados em relação ao organismo que os recebe isto é ao organismo sobre o qual eles incidem nada têm a ver com as técnicas de produção Nesse caso não são mais sinais mas estímulos de uma espécie particular Só se tornam instrumentos de produção nas mãos do experimentador Somente um concurso infeliz de circunstâncias e as inextirpáveis práticas da reflexão mecanicista puderam induzir certos pesquisadores a fazer desses sinais praticamente a chave da compreensão da linguagem e do psiquismo humano do discurso interior Enquanto uma forma lingüística for apenas um sinal e for percebida pelo receptor somente como tal ela não terá para ele nenhum valor lingüístico A pura sinalidade não existe mesmo nas primeiras fases da aquisição da linguagem Até mesmo ali a forma é orientada pelo contexto já constitui um signo embora o componente de sinalidade e de identificação que lhe é corre lata seja real Assim o elemento que torna a forma lingüística um signo não é sua identidade como sinal mas sua mobilidade específica da mesma forma que aquilo que constitui a descodificação da forma lingüística não é o reconhecimento do sinal mas a compreensão da palavra no seu sentido particular isto é a apreensão da orientação que é conferida à palavra por um contexto e uma situação precisos uma orientação no sentido da evolução e não do imobilismo2 Disso não se conclui que o componente de sinalidade e seu correlato a identificação não existam na língua Existem mas não como constituintes da língua como tal O componente de sinalidade é dialeticamente deslocado absorvido pela nova qualidade do signo isto é da língua como tal Na língua materna isto é precisamente para os membros de uma comunidade lingüística dada o sinal e o reconhecimento estão dialeticamente apagados No processo de assimilação de uma língua estrangeira sentese a sinalidade e o reconhecimento que não foram ainda dominados a língua ainda não se tornou língua A assimilação ideal de uma língua dáse quando o 2 Veremos mais adiante que é justamente a compreensão no sentido próprio a compreensão da evolução que se acha na base da resposta isto é da interação verbal É impossível delimitar de modo estrito o ato de compreensão e a resposta Todo ato de compreensão é uma resposta na medida em que ele introduz o objeto da compreensão num novo contexto o contexto potencial da resposta 96 sinal é completamente absorvido pelo signo e o reconhecimento pela compreensão3 Assim na prática viva da língua a consciência lingüística do locutor e do receptor nada tem a ver com um sistema abstrato de formas normativas mas apenas com a linguagem no sentido de conjunto dos contextos possíveis de uso de cada forma particular Para o falante nativo a palavra não se apresenta como um item de dicionário mas como parte das mais diversas enunciações dos locutores A B ou C de sua comunidade e das múltiplas enunciações de sua própria prática lingüística Para que se passe a perceber a palavra como uma forma fixa pertencente ao sistema lexical de uma língua dada como uma palavra de dicionário é preciso que se adote uma orientação particular e específica É por isso que os membros de uma comunidade lingüística normalmente não percebem nunca o caráter coercitivo das normas lingüísticas A significação normativa da forma lingüística só se deixa perceber nos momentos de conflito momentos raríssimos e não característicos do uso da língua para o homem contemporâneo eles estão quase exclusivamente associados à expressão escrita Cumpre ainda acrescentar aqui uma observação extremamente importante a consciência lingüística dos sujeitos falantes não tem o que fazer com a forma lingüística enquanto tal nem com a própria língua como tal De fato a forma lingüística como acabamos de mostrar sempre se apresenta aos locutores no contexto de enunciações precisas o que implica sempre um contexto ideológico preciso Na realidade não são palavras o que pronunciamos ou escutamos mas verdades ou mentiras coisas boas ou más importantes ou triviais agradáveis ou desagradáveis etc A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida O critério de correção só se aplica à enunciação em situa ções anormais ou particulares por exemplo no estudo de uma língua 3 O ponto de vista que defendemos embora careça de uma sustentação teóri ca constitui na prática a base de todos os métodos eficazes de ensino de lín guas vivas estrangeiras O essencial desses métodos é familiarizar o aprendiz com cada forma da língua inserida num contexto e numa situação concre tas Assim uma palavra nova só é introduzida mediante uma série de 97 contextos em que ela figure O que faz com que o fator de reconhecimento da palavra normativa seja logo de início associado e dialeticamente integrado aos fatores de mutabilidade contextual de diferença e de novidade A palavra isolada de seu contexto inscrita num caderno e apreendida por associação com seu equivalente russo tornase por assim dizer sinal tornase uma coisa única e no processo de compreensão o fator de reconhecimento adquire um peso muito forte Em suma um método eficaz e correto de ensino prático exige que a forma seja assimilada não no sistema abstrato da língua isto é como uma forma sempre idêntica a si mesma mas na estrutura concreta da enunciação como um signo flexível e variável estrangeira Em condições normais o critério de correção lingüística cede lugar ao critério puramente ideológico importanos menos a correção da enunciação do que seu valor de verdade ou de mentira seu caráter poético ou vulgar etc4 A língua no seu uso prático é inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida Para se separar abstratamente a língua de seu conteúdo ideológico ou vivencial é preciso elaborar procedimentos particulares não condicionados pelas motivações da consciência do locutor Se à maneira de alguns representantes da segunda orientação fizermos dessa separação abstrata um princípio se concedermos um estatuto separado à forma lingüística vazia de ideologia só encontraremos sinais e não mais signos da linguagem A separação da língua de seu conteúdo ideológico constitui um dos erros mais grosseiros do objetivismo abstrato Assim a língua para a consciência dos indivíduos que a falam de maneira alguma se apresenta como um sistema de formas normativas O sistema lingüístico tal como é construído pelo objetivismo abstrato não é diretamente acessível à consciência do sujeito falante definido por sua prática viva de comunicação social No que consiste então esse sistema É claro desde o começo que esse sistema resulta de uma análise abstrata que ele se compõe de elementos abstratamente isolados das unidades reais da cadeia verbal das enunciações Todo procedimento abstrato para se legitimar deve ser justificado por um propósito teórico e prático preciso Uma abstração pode ser fecunda ou estéril útil para certos fins e determinadas tarefas e não para outras 4 Por isso como veremos não podemos concordar com Vossler quanto à existência de um gosto lingüístico específico e determinado que não se confunda a cada momento com um gosto ideológico particular artístico cognitivo ético etc 98 Quais são então as metas da análise lingüística abstrata que conduz ao sistema sincrônico da língua E de que ponto de vista esse sistema se revela produtivo e necessário Na base dos métodos de reflexão lingüística que levam à postulação da língua como sistema de formas normativas estão os procedimentos práticos e teóricos elaborados para o estudo das línguas mortas que se conservaram em documentos escritos É preciso salientar com insistência que essa abordagem filológica foi determinante para o pensamento lingüístico do mundo europeu Esse pensamento nasceu e nutriuse dos cadáveres dessas línguas escritas Quase todas as abordagens fundamentais e as práticas desse pensamento foram elaboradas no processo de ressurreição desses cadáveres O filo logismo é um traço inevitável de toda a lingüística européia condicionada pelas vicissitudes históricas que presidiram ao seu nascimento e seu desenvolvimento Por mais que voltemos os olhos ao passado para traçar a história das categorias e dos métodos lingüísticos sempre encontraremos filólogos Os alexandrinos eram filólogos assim como os romanos e os gregos Aristóteles é um exemplo típico Também a Índia possuía seus filólogos Podemos dizer que a lingüística surgiu quando e onde surgiram exigências filológicas Os imperativos da filologia engendraram a lingüística acalentaramna e deixaram dentro de suas fraldas a flauta da filologia Essa flauta tem por função despertar os mortos Mas essa flauta carece da potência necessária para dominar a fala viva com sua evolução permanente Nicolau Marr salienta muito corretamente essa essência filológica do pensamento lingüístico indoeuropeu A lingüística indoeuropéia dispondo já há muito tempo de um objeto de investigação estabelecido e completamente formado a saber as línguas indoeuropéias das épocas históricas e além do mais tirando todas as suas conclusões das formas petrificadas das línguas escritas favorecendo entre estas as línguas mortas foi com toda evidência incapaz de descrever o processo de aparição da linguagem em geral e a origem das diferentes formas que ela adquire5 Ou ainda O que gera os maiores obstáculos ao estudo da linguagem primitiva não é a dificuldade das pesquisas enquanto tal nem a 5 N Marr Po etapam iafetícheskoi teórit As Etapas da Teoria Jafética 1926 p 269 99 insuficiência de dados sólidos é nosso modo de pensamento científico forjado por uma visão do mundo tradicionalmente filológica e pela história da cultura esse pensamento não foi nutrido por uma concepção etnolingüística da fala viva por suas formas que ela adquire6 Essas palavras de N Marr parecemnos justas não apenas no que tange aos estudos indoeuropeus que forneceram o tom a toda a lingüística contemporânea mas também no que respeita à lingüística toda tal como a conhecemos pela história Em toda par te a lingüística é filha da filologia Submetida aos imperativos desta a lingüística sempre se apoiou em enunciações constitutivas de monólogos fechados por exemplo em inscrições em monumentos antigos considerandoas como a realidade mais imediata A lingüística elaborou seus métodos e categorias trabalhando com monólogos mortos ou melhor com um corpus de enunciações desse tipo cujo único ponto comum é o uso da mesma língua E no entanto a enunciação monológica já é uma abstração embora seja uma abstração do tipo natural Toda enunciação monológica inclusive uma inscrição num monumento constitui um elemento inalienável da comunicação verbal Toda enunciação mesmo na forma imobilizada da escrita é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam trava uma polêmica com elas conta com as reações ativas da compreensão antecipaas Cada inscrição constitui uma parte inalienável da ciência ou da literatura ou da vida política Uma inscrição como toda enunciação monológica é produzida para ser compreendida é orientada para uma leitura no contexto da vida científica ou da realidade literária do momento isto é no contexto do processo ideológico do qual ela é parte integrante O filólogolingüista desvinculaa dessa esfera real apreendea como um todo isolado que se basta a si mesmo e não lhe aplica uma compreensão ideológica ativa e sim ao contrário uma compreensão totalmente passiva que não comporta nem o esboço de uma resposta como seria exigido por qualquer espécie autêntica de compreensão O filólogo contentase em tomar essa inscrição isolada como um documento de linguagem e em comparála com outras inscrições no quadro geral de uma língua dada É nesse processo de comparação e 6 Ibid p 94 100 de mútua correlação das enunciações de uma dada língua que os métodos e as categorias do pensamento lingüístico se constituíram Uma língua morta apresentase claramente como uma lín gua estrangeira para o lingüista que a estuda Por isso é impos sível afirmar que o sistema das categorias lingüísticas constitui o produto da reflexão epistemológica do locutor de uma língua dada Não se trata de uma reflexão sobre a percepção que o locutor nativo tem de sua própria língua tratase antes da reflexão de uma consciência que luta para abrir caminho no mundo misterioso de uma língua estrangeira A compreensão inevitavelmente passiva do filólogolingüista projetase sobre a própria inscrição sobre o objeto do estudo lingüís tico como se essa inscrição tivesse sido concebida desde a origem para ser apreendida dessa maneira como se ela tivesse sido escrita para os filólogos Disso resulta uma teoria completamente falsa da compreensão que está na base não só dos métodos de interpretação lingüística dos textos mas também de toda a semasiologia européia Toda a sua posição em relação ao sentido e ao tema da palavra está impregnada dessa falsa concepção da compreensão como ato passivo compreensão da palavra que exclui de antemão e por princípio qualquer réplica ativa Veremos mais adiante que esse tipo de compreensão que exclui de antemão qualquer resposta nada tem a ver com a compreensão da linguagem Essa última confundese com uma tomada de posição ativa a propósito do que é dito e compreendido A compreensão passiva caracterizase justamente por uma nítida percepção do componente normativo do signo lingüístico isto é pela percepção do signo como objetosinal correlativamente o reconhecimento predomina sobre a compreensão Assim é a língua mortaescritaestrangeira que serve de base à concepção da língua que emana da reflexão lingüística A enunciação isoladafechadamonológica desvinculada de seu contexto lingüístico e real à qual se opõe não uma resposta potencial ativa mas a compreensão passiva do filólogo este é o dado último e o ponto de partida da reflexão lingüística Originada no processo de aquisição de uma língua estrangeira num propósito de investigação científica a reflexão lingüística serviu também a outros propósitos não mais de pesquisa mas de ensino não se trata mais de decifrar uma língua mas uma vez essa língua decifrada de ensinála As inscrições extraídas de documentos 101 heurísticos transformamse em exemplos escolares em clássicos da língua O segundo problema fundamental da lingüística criar o instrumental indispensável para a aquisição da língua decifrada codificar essa língua no propósito de adaptála às necessidades da transmissão escolar marcou profundamente o pensamento lingüístico A fonética a gramática o léxico essas três divisões do sistema da língua os três centros organizadores das categorias lingüísticas formaramse em função das duas tarefas atribuídas à lingüística uma heurística e a outra pedagógica O que é um filólogo Independentemente das diferenças pro fundas de ordem cultural e histórica que separam os sacer dotes hindus dos lingüistas contemporâneos o filólogo sempre e em toda parte é o adivinho que tenta decifrar o mistério de letras e de palavras estrangeiras e o mestre que transmite aquilo que decifrou ou herdou da tradição Os sacerdotes foram sempre e em toda parte os primeiros filólogos e os primeiros lingüistas A história não conhece nenhum povo cujas escrituras sagradas ou tradições não tenham sido numa certa medida redigidas numa língua estrangeira e incompreensível para o profano Decifrar o mistério das escrituras sagradas foi justamente a tarefa dos sacerdoteslingüistas É também sobre esse terreno que desde os tempos mais remotos a filosofia da linguagem se desenvolveu o ensino védico da palavra o ensino dos logos dos antigos pensadores gregos e a filosofia bíblica da palavra Para compreender esses filosofemas convém não perder de vista o fato de que eles são filosofemas de palavras estrangeiras Suponhamos um povo que só disponha de sua língua materna um povo para o qual a palavra só possa ser a da língua nativa e que não esteja exposto à palavra estrangeira críptica esse povo jamais teria criado tais filosofemas7 Tratase de um fato surpreendente desde a mais remota antiguidade até nossos dias a filosofia da palavra e a 7 Na religião védica a palavra sagrada no uso que dela faz o iniciado o sacerdote consagrado tornase soberano do Ser dos deuses e dos homens O sacerdote onisciente definese aqui como aquele que dispõe da palavra e é nisso que repousa seu poder A doutrina correspondente já se encontra no Rig Veda O filosofema do logos na Grécia antiga e a doutrina alexandrina do logos são universalmente conhecidos 102 reflexão lingüística fundamentamse especificamente na apreensão da palavra estrangeira e nos problemas que a língua estrangeira apresenta para a consciência a saber o deciframento e a transmissão do que foi decifrado Na sua reflexão sobre a linguagem o sacerdote védico e o lingüistafilólogo contemporâneo deixamse fascinar e subjugar por um único e idêntico fenômeno o da palavra estrangeira críptica A palavra da língua nativa é percebida de modo total mente diverso ela não é habitualmente percebida como uma pala vra carregada de todas aquelas categorias que ela engendrou na reflexão lingüística e que engendrava na reflexão filosófico religiosa da antiguidade A palavra nativa é percebida como um irmão como uma roupa familiar ou melhor como a atmosfera na qual habitualmente se vive e se respira Ela não apresenta nenhum misté rio Só pode apresentar algum na boca de um estrangeiro dupla mente estrangeiro por sua posição hierárquica e se trata por exemplo de um chefe ou de um sacerdote mas nesse a palavra muda de natureza transformase exteriormente ou desprendese de seu uso cotidiano tornase tabu na vida ordinária ou então arcaízase isto se a palavra em questão já não for desde a origem uma palavra estrangeira na boca de algum chefeconquistador É somente nessas condições que a Palavra nasce incipit philosophia incipit philologia O fato de que a lingüística e a filologia estejam voltadas para a palavra estrangeira não é produto do acaso ou de uma escolha arbitrária da parte dessas duas ciências Não essa orientação reflete o imenso papel histórico que a palavra estrangeira desempenhou no processo de formação de todas as civilizações da história Esse papel foi conferido à palavra estrangeira em todas as esferas da criação ideológica desde a estrutura sóciopolítica até o código de boas maneiras A palavra estrangeira foi efetivamente o veículo da civilização da cultura da religião da organização política os sumérios em relação aos semitas babilônicos os jaféticos em relação aos helenos Roma o cristianismo em relação aos eslavos do leste etc Esse grandioso papel organizador da palavra estrangeira palavra que transporta consigo forças e estruturas estrangeiras e que algumas vezes é encontrada por um jovem povo conquistador no território invadido de uma cultura antiga e poderosa cultura que então escraviza por assim dizer do seu túmulo a consciência ideológica do povo invasor fez com que na consciência histórica dos povos a palavra estrangeira se fundisse com a idéia de poder de 103 força de santidade de verdade e obrigou a reflexão lingüística a voltarse de maneira privilegiada para seu estudo E no entanto a filosofia da linguagem e a lingüística até hoje ainda não se conscientizaram do imenso papel ideológico da palavra estrangeira A lingüística continua escravizada por ela Representa por assim dizer a última onda trazida pelas águas outrora criativas e vivas da palavra estrangeira a última peripécia de sua carreira ditatorial e geradora de cultura Esta é a razão pela qual a lingüística ela própria produto da palavra estrangeira está ainda longe de alcançar uma compreensão correta do papel dessa palavra na história da língua e da consciência lingüística Pelo contrário os estudos indoeuropeus elaboraram categorias de análise da história da língua que excluem completamente qualquer apreciação correta desse papel Entretanto esse papel como vimos é imenso A idéia do cruzamento de línguas da interferência lingüís tica como fator essencial da evolução das línguas foi avançada com toda clareza por Nicolau Marr Ele também reconheceu esse fator como fundamental para a resolução do problema da origem da linguagem A interferência em geral como fator que provoca a aparição de formas e de tipos lingüísticos diferentes é a fonte da formação de novas espécies isso é observado e apontado em todas as línguas jaféticas e esse é um dos resultados mais bem sucedidos da lingüística jafética O fato é que não existe nenhuma língua onomatopaica primitiva comum a todos os povos e como veremos tal língua jamais existiu nem poderia ter existido A língua é uma criação da sociedade oriunda da intercomunicação entre os povos provocada por imperativos econômicos constitui um subproduto da comunicação social que implica sempre populações numerosas8 No seu artigo intitulado Sobre a Origem da Linguagem ele diz o seguinte Em suma a concepção que a assim chamada cultura nacional possui dessa ou daquela língua como língua nativa de massa de toda a população é anticientífica e irrealista Por enquanto a idéia de uma língua nacional comum a todas as castas a todas as classes é uma ficção Ou melhor assim como a estratificação da sociedade durante as primeiras 8 N Marr Po etapam iafetítcheskoi teórii As Etapas da Teoria Jafética p 268 104 fases de desenvolvimento procede das tribos isto é na realidade de formações tribais que nem por isso são simples por via de cruzamento assim também as línguas tribais concretas e a fortiori as línguas nacionais representam tipos cruzados de línguas cruzamentos constituídos de elementos simples cuja associação está na base de qualquer língua A análise paleontológica da linguagem humana não vai além da definição desses elementos tribais mas a teoria jafética ajusta esses elementos de maneira tão direta e decisiva que a questão da origem da linguagem fica reduzida à questão do surgimento desses elementos que nada mais são do que as denominações tribais9 Os problemas da significação da palavra e da origem da lingua gem fogem do quadro de nossa pesquisa Não examinaremos aqui a teoria da palavra estrangeira dos antigos10 e limitarnosemos a esboçar as categorias provenientes da palavra estrangeira que serviram de base ao objetivismo abstrato resumiremos assim o exposto acima e completaremos essa exposição por uma série de pontos essenciais 1 Nas formas lingüísticas o fator normativo e estável prevalece sobre o caráter mutável 2 O abstrato prevalece sobre o concreto 3 O sistemático abstrato prevalece sobre a verdade histórica 4 As formas dos elementos prevalecem sobre as do conjunto 5 A reificação do elemento lingüístico isolado substitui a dinâmica da fala 6 Univocidade da palavra mais do que polisemia e plurivalência vivas 7 Representação da linguagem como um produto acabado que se transmite de geração a geração 8 Incapacidade de compreender o processo gerativo interno da língua Consideremos brevemente cada uma dessas particularidades da reflexão dominada pela palavra estrangeira 9 Ibid p 315316 10 Assim a percepção que o homem préhistórico tem do caráter má gico da palavra é fortemente marcada pela palavra estran 105 1 A primeira dispensa qualquer explicação Já mostramos que a compreensão que o indivíduo tem de sua língua não está orientada para a identificação de elementos normativos do discurso mas para a apreciação de sua nova qualidade contextual A construção de um sistema de formas submetidas a uma norma é uma etapa indispensável e importante no processo de deciframento e de transmissão de uma língua estrangeira 2 O segundo ponto fica também bastante claro à luz do que já expusemos A enunciação monológica fechada constitui de fato uma abstração A concretização da palavra só é possível com a inclusão dessa palavra no contexto histórico real de sua realização primitiva Na enunciação monológica isolada os fios que ligam a palavra a toda a evolução histórica concreta foram cortados 3 O formalismo e o sistematismo constituem os traços típicos de toda reflexão que se exerce sobre um objeto acabado por assim dizer estagnado Essa última particularidade manifestase de diferentes maneiras De modo característico é o pensamento alheio que é habitualmente se não exclusivamente sistematizado geira Estamos pensando aqui na totalidade dos fenômenos com ela relacionados Os criadores iniciadores de novas correntes ideológicas nunca sentem necessidade de formalizar sistematicamente A sistemati zação aparece quando nos sentimos sob a dominação de um pensamento autoritário aceito como tal É preciso que a época de criatividade acabe só aí é que então começa a sistematização formalização é o trabalho dos herdeiros e dos epígonos domi nados pela palavra alheia que parou de ressoar A orientação da corrente em evolução nunca pode ser formalizada e sistemati zada Esta é a razão pela qual o pensamento gramatical formalista e sistematizante desenvolveuse com toda plenitude e vigor no campo das línguas mortas e ainda somente nos casos em que essas lín guas perderam até certo ponto sua influência e seu caráter autori tário sagrado A reflexão lingüística de caráter formalsistemático foi inevitavelmente coagida a adotar em relação às línguas vivas uma posição conservadora e acadêmica isto é a tratar a língua viva como se fosse algo acabado o que implica uma atitude hostil em relação a todas as inovações lingüísticas A reflexão lingüística de caráter formalsistemático é incompatível com uma aborda gem histórica e viva da língua Do ponto de vista do sistema a 106 história apresentase sempre como uma série de destruições devidas ao acaso 4 A lingüística como vimos está voltada para o estudo da enunciação monológica isolada Estudamse documentos históricos em relação aos quais o filólogo adota uma atitude de compreensão passiva Assim todo o trabalho desenvolvese nos limites de uma dada enunciação Os próprios limites da enunciação como uma entidade total são pouco percebidos O trabalho de pesquisa reduzse ao estudo das relações imanentes no interior do terreno da enunciação Todos os problemas daquilo que se poderia chamar de política externa da enunciação ficam excluídos do campo da observação Conseqüentemente todas as relações que ultrapassam os limites da enunciação monológica constituem um todo que é ignorado pela reflexão lingüística Esta na verdade não ousa ir além dos elementos constitutivos da enunciação monológica Seu alcance máximo é a frase complexa o período A estrutura da enunciação completa é algo cujo estudo a lingüística deixa para outras disciplinas a retórica e a poética Ela própria é incapaz de abordar as formas de composição do todo Eis porque de maneira geral não há relação nem transição progressiva alguma entre as formas dos elementos constituintes da enunciação e as formas do todo no qual ela se insere Existe um abismo entre a sintaxe e os problemas de composição do discurso Isso é totalmente inevitável pois as formas que constituem uma enunciação completa só podem ser percebidas e compreendidas quando relacionadas com outras enunciações completas pertencentes a um único e mesmo domínio ideólogico Assim as formas de uma enunciação literária de uma obra literária só podem ser apreendidas na unicidade da vida literária em conexão permanente com outras espécies de formas literárias Se encerrarmos a obra literária na unicidade da língua como sistema se a estudarmos como um monumento lingüístico destruiremos o acesso a suas formas como formas da literatura como um todo Existe um abismo entre as duas abordagens a que refere a obra ao sistema lingüístico e aquela que a refere à unicidade concreta da vida literária Esse abismo é intransponível sobre a base do objetivismo abstrato 5 A forma lingüística somente constitui um elemento abstratamente isolado do todo dinâmico da fala da enunciação Bem entendido essa abstração revelase legítima quando serve a determinados objetivos lingüísticos Entretanto o objetivismo abstrato dota a forma lingüística de uma substância própria tornaa um elemento realmente isolável capaz de assumir uma existência 107 histórica separada independente11 Isso é perfeitamente compreensível já que se nega ao sistema como um todo o direito ao desenvolvimento histórico A enunciação como um todo não existe para a lingüística Conseqüentemente apenas subsistem os elementos do sistema isto é as formas lingüísticas isoladas Somente elas podem suportar o choque da história Assim a história da língua tornase a história das formas lingüísticas separadas fonética morfologia etc que se desenvolvem independentemente do sistema como um todo e sem qualquer referência à enunciação concreta12 A propósito da história da língua tal como a concebe o objetivismo abstrato Vossler com razão diz o seguinte Podese comparar grosseiramente a história da língua tal como a concebe a gramática histórica com a história do vestuário essa última não é um reflexo da concepção de mundo ou do gosto de uma época ela fornecenos listas cronológicas e geograficamente ordenadas de botões alfinetes chapéus e fitas Em gramática histórica esses botões e essas cifras chamamse por exemplo e aberto e fechado t surdo ou d sonoro etc13 6 O sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto De fato há tantas significações possíveis quantos contextos 11 Não se deve esquecer que o objetivismo abstrato em sua nova versão reflete a posição da palavra estrangeira no estágio em que ela já perdeu numa larga medida seu caráter autoritário e sua força produtiva Além disso a especificidade da apreensão da palavra estrangeira é atenuada no objetivismo abstrato devido ao fato de que todas as categorias fundamentais do pensamento dessa escola foram estendidas às línguas vivas e nativas Com efeito a lingüística estuda as línguas vivas como se fossem mortas e a língua nativa como se fosse estrangeira Essa é a razão pela qual o sistema construído pelo objetivismo abstrato difere dos filosofemas da palavra estrangeira elaborados pelos antigos 12 A enunciação constitui apenas o meio neutro no qual se opera a transformação das formas da língua 13 Cf o artigo de Vossler já citado Gramática e História da Língua p 170 108 possíveis14 No entanto nem por isso a palavra deixa de ser una Ela não se desagrega em tantas palavras quantos forem os contextos nos quais ela pode se inserir Evidentemente essa unicidade da palavra não é somente assegurada pela unicidade de sua composição fonética há também uma unicidade inerente a todas as suas significações Como conciliar a polissemia da palavra com sua unicidade É assim que podemos formular de modo grosseiro e elementar o problema fundamental da semântica Esse problema só pode ser resolvido pela dialética Que procedimentos são empregados pelo objetivismo abstrato Ele salienta o fator de unicidade da palavra em detrimento da pluralidade de suas significações Essa pluralidade é percebida como análoga a harmônicos ocasionais de um único e mesmo significado estável e firme A atitude do lingüista é diametralmente oposta à atitude da viva compreensão que caracteriza os falantes empenhados num processo de comunicação verbal Quando o filólogolingüista alinha os contextos possíveis de uma palavra dada ele acentua o fator de conformidade à norma o que lhe importa é extrair desses contextos dispostos lado a lado uma determinação descontextualizada para poder encerrar a palavra num dicionário Esse processo de isolamento da palavra de estabilização de sua significação fora de todo contexto é reforçado ainda mais pela justaposição de línguas isto é pela procura da palavra para lela numa língua diferente A pesquisa lingüística constrói a significação a partir do ponto de convergência de pelo menos duas línguas Esse trabalho do lingüista tornase ainda mais complicado pelo fato de que ele cria a ficção de um recorte único da realidade que se reflete na língua É o objeto único sempre idêntico a si próprio que garante a unicidade do sentido A ficção da palavra como decalque da realidade ajuda ainda mais a congelar sua significação Sobre essa base a associação dialética de unicidade e de pluralidade tornase impossível Mencionaremos ainda um outro erro grave de objetivismo abstrato para seus adeptos os diferentes contextos em que aparece uma palavra qualquer estão num único e mesmo plano Esses contextos dão origem a uma série de enunciações fechadas que têm significado próprio e apontam todas para uma mesma direção Na realidade as coisas são bem diferentes os contextos possíveis de uma 14 Não nos preocuparemos por enquanto em distinguir a significação e o tema Essa distinção será o objeto do Cap 7 109 única e mesma palavra são freqüentemente opostos As réplicas de um diálogo são um exemplo clássico disso Ali uma única e mesma palavra pode figurar em dois contextos mutuamente conflitantes É evidente que o diálogo constitui um caso particularmente evidente e ostensivo de contextos diversamente orientados Podese no entanto dizer que toda enunciação efetiva seja qual for a sua forma contém sempre com maior ou menor nitidez a indicação de um acordo ou de um desacordo com alguma coisa Os contextos não estão simplesmente justapostos como se fossem indiferentes uns aos outros encontramse numa situação de interação e de conflito tenso e ininterrupto A mudança do acento avaliativo da palavra em função do contexto é totalmente ignorada pela lingüística e não encontra nenhuma repercussão na sua doutrina da unicidade da significação Embora os acentos avaliativos sejam privados de substância é a pluralidade de acentos que dá vida à palavra O problema de pluriacentuação deve ser estreitamente relacionado com o da polissemia Só assim é que ambos os problemas poderão ser resolvidos Ora é impossível estabelecer essa vinculação a partir dos princípios do objetivismo abstrato A lingüística se desembaraça dos acentos avaliativos ao mesmo tempo que da enunciação da fala15 7 Para o objetivismo abstrato a língua como produto acabado transmitese de geração a geração Evidentemente é de um ângulo metafórico que os adeptos da segunda orientação entendem essa transmissão da língua como herança de um objeto mas essa comparação não constitui para eles apenas uma metáfora Configurando o sistema da língua e tratando as línguas vivas como se fossem mortas e estrangeiras o objetivismo abstrato coloca a língua fora do fluxo da comunicação verbal Esse fluxo avança continuamente enquanto a língua como uma bola pula de geração para geração Entretanto a língua é inseparável desse fluxo e avança junta mente com ele Na verdade a língua não se transmite ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada eles penetram na corrente da comunicação verbal ou melhor so mente quando mergulham nessa corrente é que sua cons ciência desperta e começa a operar É apenas no processo de aqui sição de uma língua estrangeira que a consciência já consti 15 As posições aqui expressas serão fundamentadas no Capítulo 7 110 tuída graças à língua materna se confronta com uma língua toda pronta que só lhe resta assimilar Os sujeitos não adquirem sua língua materna é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência16 8 O objetivismo abstrato como vimos não sabe ligar a exis tência da língua na sua abstrata dimensão sincrônica com sua evolução Para a consciência do locutor a língua existe como sistema de formas sujeitas a normas e só para o historiador é que ela existe como processo evolutivo O que exclui a possibili dade de associação ativa da consciência do locutor com o pro cesso de evolução histórica Tornase assim impossível a con junção dialética entre necessidade e liberdade e até por assim dizer a responsabilidade lingüística Assentase aqui o reino de uma concepção puramente mecanicista da necessidade no domínio da língua Não há dúvida de que esse traço do objetivismo abstrato está ligado à irresponsável fixação dessa escola nas línguas mortas Só nos resta tirar as conclusões de nossa análise crítica do objetivismo abstrato O problema que colocamos no começo do quarto capítulo o da realidade dos fenômenos lingüísticos como objeto de estudo específico e único é solucionado de maneira incorreta A língua como sistema de formas que remetem a uma norma não passa de uma abstração que só pode ser demonstrada no plano teórico e prático do ponto de vista do deciframento de uma língua morta e do seu ensino Esse sistema não pode servir de base para a compreensão e explicação dos fatos lingüísticos enquanto fatos vivos e em evolução Ao contrário ele nos distancia da realidade evolutiva e viva da língua e de suas funções sociais embora os adeptos do objetivismo abstrato tenham pretensões quanto à significação sociológica de seus pontos de vista Na base dos fundamentos teóricos do objetivismo abstrato estão as premissas de uma visão do mundo racionalista e mecanicista as menos favoráveis a uma concepção correta da história ora a língua é um fenômeno puramente histórico Seriam os princípios fundamentais da primeira orientação a do subjetivismo individualista os corretos Não teria o subjetivismo 16 O processo pelo qual a criança assimila sua língua materna é um processo de integração progressiva da criança na comunicação verbal À medida que essa integração se realiza sua consciência é formada e adquire seu conteúdo 111 individualista conseguido tocar de perto a verdadeira natureza da linguagem Ou a verdade estaria no meiotermo entre as teses do subjetivismo individualista e as antíteses do objetivismo abstrato constituindo um compromisso entre as duas orientações Acreditamos que aqui como em qualquer lugar a verdade não se encontra exatamente no meio num compromisso entre a tese e a antítese a verdade encontrase além mais longe manifesta uma idêntica recusa tanto da tese como da antítese e constitui uma síntese dialética As teses da primeira orientação como veremos no capítulo seguinte não resistem à crítica mais do que as da segunda Queremos agora chamar a atenção para o seguinte ao considerar que só o sistema lingüístico pode dar conta dos fatos da língua o objetivo abstrato rejeita a enunciação o ato de fala como sendo individual Como dissemos é esse o proton pseudos a primeira mentira do objetivismo abstrato O subjetivismo individualista ao contrário só leva em consideração a fala Mas ele também considera o ato de fala como individual e é por isso que tenta explicálo a partir das condições da vida psíquica individual do sujeito falante E esse é o seu proton pseudos Na realidade o ato de fala ou mais exatamente seu produto a enunciação não pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo não pode ser explicado a partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante A enunciação é de natureza social Cabenos firmar essa tese no próximo capítulo 112 CAPÍTULO 6 A INTERAÇÃO VERBAL A segunda orientação do pensamento filosóficolingüístico ligase como vimos ao Racionalismo e ao Neoclassicismo A primeira orientação a do subjetivismo individualista está ligada ao Romantismo O Romantismo foi em grande medida uma reação contra a palavra estrangeira e o domínio que ela exerceu sobre as categorias do pensamento Mais particularmente o Romantismo foi uma reação contra a última reincidência do poder cultural da palavra estrangeira as épocas do Renascimento e do Classicismo Os românticos foram os primeiros filólogos da língua materna os primeiros a tentar reorganizar totalmente a reflexão lingüística sobre a base da atividade mental em língua materna considerada como meio de desenvolvimento da consciência e do pensamento É verdade contudo que os românticos permaneceram filólogos no sentido estrito do termo Estava além de suas forças com certeza reestruturar uma maneira de pensar sobre a língua que se formara e mantivera durante séculos Não obstante foram introduzidas naquela reflexão novas categorias e elas é que deram à primeira orientação suas características específicas É sintomático que mesmo os representantes recentes do subjetivismo individualista sejam especialistas em línguas modernas principalmente românicas Vossler Leo Spitzer Lorck e outros Entretanto o subjetivismo individualista apóiase também sobre a enunciação monológica como ponto de partida da sua reflexão sobre a língua É verdade que seus representantes não abordaram a enunciação monológica do ponto de vista do filólogo de compreensão passiva mas sim de dentro do ponto de vista da pessoa que fala exprimindose Como se apresenta a enunciação monológica do ponto de vista do subjetivismo individualista Vimos que ela se apresenta como um ato puramente individual como uma expressão da consciência 113 individual de seus desejos suas intenções seus impulsos criadores seus gostos etc A categoria da expressão é aquela categoria geral de nível superior que engloba o ato de fala a enunciação Mas o que é afinal a expressão Sua mais simples e mais grosseira definição é tudo aquilo que tendo se formado e determinado de alguma maneira no psiquismo do indivíduo exteriorizase objetivamente para outrem com a ajuda de algum código de signos exteriores A expressão comporta portanto duas facetas o conteúdo interior e sua objetivação exterior para outrem ou também para si mesmo Toda teoria da expressão por mais refinadas e complexas que sejam as formas que ela pode assumir deve levar em conta inevitavelmente essas duas facetas todo o ato expressivo movese entre elas Conseqüentemente a teoria da expressão deve admitir que o conteúdo a exprimir pode constituirse fora da expressão que ele começa a existir sob uma certa forma para passar em seguida a uma outra Pois se não fosse assim se o conteúdo a exprimir existisse desde a origem sob a forma de expressão se houvesse entre o conteúdo e a expressão uma passagem quantitativa no sentido de um esclarecimento de uma diferenciação etc então toda a teoria da expressão cairia por terra A teoria da expressão supõe inevitavelmente um certo dualismo entre o que é interior e o que é exterior com primazia explícita do conteúdo interior já que todo ato de objetivação expressão procede do interior para o exterior Suas fontes são interiores Não é por acaso que a teoria do subjetivismo individualista como todas as teorias da expressão só se pôde desenvolver sobre um terreno idealista e espiritualista Tudo que é essencial é interior o que é exterior só se torna essencial a título de receptáculo do conteúdo interior de meio de expressão do espírito É verdade que exteriorizandose o conteúdo interior muda de aspecto pois é obrigado a apropriarse do material exterior que dispõe de suas próprias regras estranhas ao pensamento interior No curso do processo de dominar o material de submetêlo de transformálo em meio obediente da expressão o conteúdo da atividade verbal a exprimir muda de natureza e é forçado a um certo compromisso Por isso o idealismo que deu origem a todas as teorias da expressão engendrou igualmente teorias que rejeitam completamente a expressão considerada como deformação da pureza 114 do pensamento interior1 Em todo caso todas as forças criadoras e organizadoras da expressão estão no interior O exterior constitui apenas o material passivo do que está no interior Basicamente a expressão se constrói no interior sua exteriorização não é senão a sua tradução Disso resulta que a compreensão o comentário e a explicação do fato ideológico devem dirigirse para o interior isto é fazer o caminho inverso do da expressão procedendo da objetivação exterior a explicação deve infiltrarse até as suas raízes formadoras internas Essa é a concepção da expressão no subjetivismo individualista A teoria da expressão que serve de fundamento à primeira orientação do pensamento filosóficolingüístico é radicalmente falsa O conteúdo a exprimir e sua objetivação externa são criados como vimos a partir de um único e mesmo material pois não existe atividade mental sem expressão semiótica Conseqüentemente é preciso eliminar de saída o princípio de uma distinção qualitativa entre o conteúdo interior e a expressão exterior Além disso o centro organizador e formador não se situa no interior mas no exterior Não é a atividade mental que organiza a expressão mas ao contrário é a expressão que organiza a atividade mental que a modela e determina sua orientação Qualquer que seja o aspecto da expressãoenunciação considerado ele será determinado pelas condições reais da enunciação em questão isto é antes de tudo pela situação social mais imediata Com efeito a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e mesmo que não haja um interlocutor real este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor A palavra dirigese a um interlocutor ela é função da pessoa desse interlocutor variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não se esta for inferior ou superior na hierarquia social se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos pai mãe marido etc Não pode haver interlocutor abstrato não teríamos linguagem comum com tal interlocutor nem no sentido próprio nem no figurado Se algumas vezes temos a pretensão de pensar e de exprimirnos urbi et orbi na realidade é claro que vemos a cidade e o mundo através do prisma 1 O pensamento expresso pela palavra é uma mentira Tiutchev Oh se pelo menos alguém pudesse exprimir a alma sem palavras Fiet Essas duas declarações são típicas do romantismo idealista 115 do meio social concreto que nos engloba Na maior parte dos casos é preciso supor além disso um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a criação ideológica do grupo social e da época a que pertencemos um horizonte contemporâneo da nossa literatura da nossa ciência da nossa moral do nosso direito O mundo interior e a reflexão de cada indivíduo têm um auditório social próprio bem estabelecido em cuja atmosfera se constroem suas deduções interiores suas motivações apreciações etc Quanto mais aculturado for o indivíduo mais o auditório em questão se aproximará do auditório médio da criação ideológica mas em todo caso o interlocutor ideal não pode ultrapassar as fronteiras de uma classe e de uma época bem definidas Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma importância muito grande Na realidade toda palavra comporta duas faces Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém como pelo fato de que se dirige para alguém Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro Através da palavra definome em relação ao outro isto é em última análise em relação à coletividade A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros Se ela se apóia sobre mim numa extremidade na outra apóiase sobre o meu interlocutor A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor Mas como se define o locutor Com efeito se a palavra não lhe pertence totalmente uma vez que ela se situa numa espécie de zona fronteiriça cabelhe contudo uma boa metade Em um determinado momento o locutor é incontestavelmente o único dono da palavra que é então sua propriedade inalienável É o instante do ato fisiológico de materialização da palavra Mas a categoria da propriedade não é aplicável a esse ato na medida em que ele é puramente fisiológico Se ao contrário considerarmos não o ato físico de materialização do som mas a materialização da palavra como signo então a questão da propriedade tornarseá bem mais complexa Deixando de lado o fato de que a palavra como signo é extraído pelo locutor de um estoque social de signos disponíveis a própria realização deste signo social na enunciação concreta é inteiramente determinada pelas relações sociais A individualização estilística da enunciação de que falam os vosslerianos constitui justamente este reflexo da inter relação social em cujo contexto se constrói uma determinada enunciação A situação social mais imediata e o meio social mais 116 amplo determinam completamente e por assim dizer a partir do seu próprio interior a estrutura da enunciação Na verdade qualquer que seja a enunciação considerada mesmo que não se trate de uma informação factual a comunicação no sentido estrito mas da expressão verbal de uma necessidade qualquer por exemplo a fome é certo que ela na sua totalidade é socialmente dirigida Antes de mais nada ela é determinada da maneira mais imediata pelos participantes do ato de fala explícitos ou implícitos em ligação com uma situação bem precisa a situação dá forma à enunciação impondolhe esta ressonância em vez daquela por exemplo a exigência ou a solicitação a afirmação de direitos ou a prece pedindo graça um estilo rebuscado ou simples a segurança ou a timidez etc A situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação Os estratos mais profundos da sua estrutura são determinados pelas pressões sociais mais substanciais e duráveis a que está submetido o locutor Se tomamos a enunciação no estágio inicial de seu desenvolvimento na alma não se mudará a essência das coisas já que a estrutura da atividade mental é tão social como a da sua objetivação exterior O grau de consciência de clareza de acabamento formal da atividade mental é diretamente proporcional ao seu grau de orientação social Na verdade a simples tomada de consciência mesmo confusa de uma sensação qualquer digamos a fome pode dispensar uma expressão exterior mas não dispensa uma expressão ideológica tanto isso é verdade que toda tomada de consciência implica discurso interior entoação interior e estilo interior ainda que rudimentares A tomada de consciência da fome pode ser acompanhada de deprecação de raiva de lamento ou de indignação Enumeramos aqui apenas os matizes mais grosseiros e mais marcados da entoação interior na realidade a atividade mental pode ser marcada por entoações sutis e complexas A expressão exterior na maior parte dos casos apenas prolonga e esclarece a orientação tomada pelo discurso interior e as entoações que ele contém De que maneira será marcada a sensação interior da fome Isso depende ao mesmo tempo da situação imediata em que se situa a percepção e da situação social da pessoa faminta em geral Com efeito essas são as condições que determinam o contexto apreciativo o ângulo social em que será recebida a sensação da fome O contexto social imediato determina quais serão os ouvintes possíveis amigos ou inimigos para os quais serão orientadas a consciência e a sensação da fome as imprecações serão lan 117 çadas contra a natureza ingrata contra si mesmo a sociedade um grupo social determinado um certo indivíduo Claro é preciso distinguir graus na consciência na clareza e na diferenciação dessa orientação social da experiência mental Mas é certo que sem uma orientação social de caráter apreciativo não há atividade mental Mesmo os gritos de um recémnascido são orientados para a mãe Podese descrever a fome acrescentandose um apelo à revolta à agitação nesse caso a atividade mental será estruturada em função de um apelo potencial a fim de provocar a agitação a tomada de consciência pode tomar a forma do protesto etc Na relação com um ouvinte potencial e algumas vezes distintamente percebido podemse distinguir dois pólos dois limites dentro dos quais se realiza a tomada de consciência e a elaboração ideológica A atividade mental oscila de um a outro Por convenção chamemos esses dois pólos atividade mental do eu e atividade mental do nós Na verdade a atividade mental do eu tende para a autoeliminação à medida que se aproxima do seu limite perde a sua modelagem ideológica e conseqüentemente seu grau de consciência aproximandose assim da reação fisiológica do animal A atividade mental dilapida então o seu potencial seu esboço de orientação social e perde portanto sua representação verbal Atividades mentais isoladas ou mesmo seqüências inteiras podem tender para o pólo do eu prejudicando assim sua clareza e sua modelagem ideológica e dando provas de que a consciência foi incapaz de enraizarse socialmente2 A atividade mental do nós não é uma atividade de caráter primitivo gregário é uma atividade diferenciada Melhor ainda a diferenciação ideológica o crescimento do grau de consciência são diretamente proporcionais à firmeza e à estabilidade da orientação social Quanto mais forte mais bem organizada e diferenciada for a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta mais distinto e complexo será o seu mundo interior A atividade mental do nós permite diferentes graus e diferentes tipos de modelagem ideológica 2 Sobre a possibilidade de uma série de experiências sexuais humanas escaparem ao contexto social com perda concomitante da verbalização da experiência ver Freidizm Op cit p 135 136 118 Suponhamos que o homem faminto tome consciência da sua fome no meio de uma multidão heteróclita de pessoas igualmente famintas cuja situação se deve ao acaso desafortunados mendigos etc A atividade mental desse indivíduo isolado sem classe terá uma coloração específica e tenderá para formas ideológicas determinadas cuja gama pode ser bastante extensa a resignação a vergonha o sentimento de dependência e muitas outras tonalidades tingirão a sua atividade mental As formas ideológicas correspondentes isto é o resultado dessa atividade mental serão conforme o caso ou o protesto individualista do mendigo ou a resignação mística do penitente Suponhamos agora que o faminto pertença a uma coletividade onde a fome não se deve ao acaso onde ela é uma realidade coletiva mas onde entretanto não existe vínculo material sólido entre os famintos de forma que cada um deles passa fome isoladamente É essa freqüentemente a situação dos camponeses A coletividade o mir sente a fome mas os seus membros estão materialmente isolados não estão ligados por uma economia comum cada um suporta a fome no pequeno mundo fechado de sua própria exploração Em tais condições predominará uma consciência da fome feita de resignação mas desprovida de sentimento de vergonha ou de humilhação cada um diz a si próprio Já que todos sofrem em silêncio eu também o farei É sobre um tal terreno que se desenvolvem os sistemas filosóficos e religiosos fundados sobre o fatalismo e a resignação na adversidade os primeiros cristãos os tolstoianos etc De maneira completamente diferente será experimentada a fome pelos membros de uma coletividade unida por vínculos materiais objetivos batalhão de soldados operários reunidos no interior da usina trabalhadores numa grande propriedade agrícola de tipo capitalista enfim toda uma classe social desde que nela tenha amadurecido a noção de classe para si Nesse caso dominarão na atividade mental as tonalidades do protesto ativo e seguro de si mesmo não haverá lugar para uma mentalidade resignada e submissa É aí que se encontra o terreno mais favorável para um desenvolvimento nítido e ideologicamente bem formado da atividade mental3 Organismo de propriedade coletiva rural antes da revolução de 1917 NdTfr 3 Dados interessantes sobre a expressão da fome podem ser encontrados nas obras de um célebre lingüista contemporâneo 119 Todos os tipos de atividade mental que examinamos com suas inflexões principais geram modelos e formas de enunciações correspondentes Em todos os casos a situação social determina que modelo que metáfora que forma de enunciação servirá para exprimir a fome a partir das direções inflexivas da experiência É preciso classificar à parte a atividade mental para si Ela distinguese claramente da atividade mental do eu que definimos acima A atividade mental individualista é perfeitamente diferencia da e definida O individualismo é uma forma ideológica particular da atividade mental do nós da classe burguesa encontrase um tipo análogo na classe feudal aristocrática A atividade mental de tipo individualista caracterizase por uma orientação social sólida e afirmada Não é do interior do mais profundo da personalidade que se tira a confiança individualista em si a consciência do próprio valor mas do exterior tratase da explicitação ideológica do meu status social da defesa pela lei e por toda a estrutura da sociedade de um bastião objetivo a minha posição econômica individual A personalidade individual é tão socialmente estruturada como a atividade mental de tipo coletivista a explicitação ideológica de uma situação econômica complexa e estável projetase na alma individual Mas a contradição interna que está inscrita nesse tipo de atividade mental do nós assim como na estrutura social correspondente cedo ou tarde destruirá sua modelagem ideológica Encontrase uma estrutura análoga na atividade mental para si isolada a capacidade e a força de sentirse no seu direito enquanto indivíduo isolado atitude cultivada em particular por Romain Rolland e em parte igualmente por Tolstói O orgulho que esta posição solitária implica apóiase igualmente sobre o nós Essa variante da atividade mental do nós é característica da intelligentsia ocidental contemporânea As palavras de Tolstói afirmando que existe um pensamento para si e um pensamento para o público implicam uma confrontação entre duas concepções de público Esse para si tolstoiano na realidade apenas indica uma concepção social membro da escola de Vossler Leo Spitzer Italienische Kriegsgefangenenbriefe e Die Umschreibungen des Begriffes Hunger O problema fundamental exposto é a adaptação flexível da palavra e da representação às condições de uma situação excepcional Falta ao autor contudo uma abordagem sociológica genuína 120 do ouvinte que lhe é própria O pensamento não existe fora de sua expressão potencial e conseqüentemente fora da orientação social dessa expressão e o próprio pensamento Assim a personalidade que se exprime apreendida por assim dizer do interior revelase um produto total da interrelação social A atividade mental do sujeito constitui da mesma forma que a expressão exterior um território social Em conseqüência todo o itinerário que leva da atividade mental o conteúdo a exprimir à sua objetivação externa a enunciação situase completamente em território social Quando a atividade mental se realiza sob a forma de uma enunciação a orientação social à qual ela se submete adquire maior complexidade graças à exigência de adaptação ao contexto social imediato do ato de fala e acima de tudo aos interlocutores concretos Tudo isso lança uma nova luz sobre o problema da consciência e da ideologia Fora de sua objetivação de sua realização num material determinado o gesto a palavra o grito a consciência é uma ficção Não é senão uma construção ideológica incorreta criada sem considerar os dados concretos da expressão social Mas enquanto expressão material estruturada através da palavra do signo do desenho da pintura do som musical etc a consciência constitui um fato objetivo e uma força social imensa É preciso notar que essa consciência não se situa acima do ser e não pode determinar a sua constituição uma vez que ela é ela mesma uma parte do ser uma das suas forças e é por isso que a consciência tem uma existência real e representa um papel na arena do ser Enquanto a consciência permanece fechada na cabeça do ser consciente com uma expressão embrionária sob a forma de discurso interior o seu estado é apenas de esboço o seu raio de ação ainda limitado Mas assim que passou por todas as etapas da objetivação social que entrou no poderoso sistema da ciência da arte da moral e do direito a consciência tornase uma força real capaz mesmo de exercer em retorno uma ação sobre as bases econômicas da vida social Certo essa força materializase em organizações sociais determinadas reforçase por uma expressão ideológica sólida a ciência a arte etc mas mesmo sob a forma original confusa do pensamento que acaba de nascer podese já falar de fato social e não de ato individual interior A atividade mental tende desde a origem para uma expres são externa plenamente realizada Mas pode acontecer também que ela seja bloqueada freada nesse último caso a atividade mental desemboca numa expressão inibida não nos ocuparemos aqui do problema muito complexo das causas e condições 121 do bloqueio Uma vez materializada a expressão exerce um efeito reversivo sobre a atividade mental ela põese então a estru turar a vida interior a darlhe uma expressão ainda mais definida e mais estável Essa ação reversiva da expressão bem formada sobre a ativi dade mental isto é a expressão interior tem uma importância enorme que deve ser sempre considerada Podese dizer que não é tanto a expressão que se adapta ao nosso mundo interior mas o nosso mundo interior que se adapta às possibilidades de nossa expressão aos seus caminhos e orientações possíveis Chamaremos a totalidade da atividade mental centrada sobre a vida cotidiana assim como a expressão que a ela se liga ideologia do cotidiano para distinguila dos sistemas ideológicos constituídos tais como a arte a moral o direito etc A ideologia do cotidiano constitui o domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada num sistema que acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e cada um dos nossos estados de consciência Considerando a natureza sociológica da estrutura da expressão e da atividade mental podemos dizer que a ideologia do cotidiano corresponde no essencial àquilo que se designa na literatura marxista sob o nome de psicologia social Nesse contexto particular preferimos evitar o termo psicologia pois importanos apenas o conteúdo do psiquismo e da consciência ora esse conteúdo é totalmente ideológico sendo determinado por fatores não individuais e orgânicos biológicos fisiológicos mas puramente sociológicos O fator individual orgânico não é pertinente para a compreensão das forças criadoras e vivas essenciais do conteúdo da consciência Os sistemas ideológicos constituídos da moral social da ciência da arte e da religião cristalizamse a partir da ideologia do cotidiano exercem por sua vez sobre esta em retorno uma forte influência e dão assim normalmente o tom a essa ideologia Mas ao mesmo tempo esses produtos ideológicos constituídos conservam constantemente um elo orgânico vivo com a ideologia do cotidiano alimentamse de sua seiva pois fora dela morrem assim como morrem por exemplo a obra literária acabada ou a idéia cognitiva se não são submetidas a uma avaliação crítica viva Ora essa avaliação crítica que é a única razão de ser de toda produção ideológica opera se na língua da ideologia do cotidiano Esta coloca a obra numa situação social determinada A obra estabelece assim vínculos com o conteúdo total da consciência dos indivíduos receptores e só é apreendida no contexto dessa consciência que lhe é contemporânea A obra é interpretada no espírito desse conteúdo da consciência dos 122 indivíduos receptores e recebe dela uma nova luz É nisso que reside a vida da obra ideológica Em cada época de sua existência histórica a obra é levada a estabelecer contatos estreitos com a ideologia cambiante do cotidiano a impregnarse dela a alimentarse da seiva nova secretada É apenas na medida em que a obra é capaz de estabelecer um tal vínculo orgânico e ininterrupto com a ideologia do cotidiano de uma determinada época que ela é capaz de viver nesta época é claro nos limites de um grupo social determinado Rompido esse vínculo ela cessa de existir pois deixa de ser apreendida como ideologicamente significante Na ideologia do cotidiano é preciso distinguir vários níveis determinados pela escala social que serve para medir a atividade mental e a expressão e pelas forças sociais em relação às quais eles devem diretamente orientarse O horizonte no qual esta ou aquela atividade mental ou expressão se materializa pode ser como vimos mais ou menos amplo O pequeno mundo da atividade mental pode ser limitado e confuso sua orientação social pode ser acidental pouco durável e pertinente apenas no quadro da reunião fortuita e por tempo limitado de algumas pessoas É claro mesmo essas atividades mentais ocasionais têm uma coloração sociológica e ideológica mas situamse já na fronteira do normal e do patológico A atividade mental fortuita permanece isolada da vida espiritual dos indivíduos Ela não é capaz de consolidarse e de encontrar uma expressão completa e diferenciada Pois se ela não é dotada de um auditório social determinado sobre que bases poderia diferenciarse e tomar uma forma acabada A fixação de uma atividade mental como essa é ainda mais impossível por escrito e a fortiori sob forma impressa A atividade mental nascida de uma situação fortuita não tem a menor chance de adquirir uma força e uma ação duráveis no plano social Esse tipo de atividade mental constitui o nível inferior aquele que desliza e muda mais rapidamente na ideologia do cotidiano Conseqüentemente colocaremos nesse nível todas as atividades mentais e pensamentos confusos e informes que se acendem e apagam na nossa alma assim como as palavras fortuitas ou inúteis Estamos diante de abortos da orientação social incapazes de viver comparáveis a romances sem heróis ou a representações sem espectadores São privados de toda lógica ou unicidade É extremamente difícil perceber nesses farrapos ideológicos leis sociológicas No nível inferior da ideologia do cotidiano só se apreendem regras estatísticas é apenas a partir de uma grande massa de produtos dessa ordem que se podem descobrir as grandes linhas de 123 uma ordem sócioeconômica Claro na prática é impossível descobrir as premissas sócioeconômicas de uma atividade mental ou de uma expressão isoladas Os níveis superiores da ideologia do cotidiano que estão em contato direto com os sistemas ideológicos são substanciais e têm um caráter de responsabilidade e de criatividade São mais mó veis e sensíveis que as ideologias constituídas São capazes de repercutir as mudanças da infraestrutura sócioeconômica mais rápida e mais distintamente Aí justamente é que se acumu lam as energias criadoras com cujo auxílio se efetuam as revisões parciais ou totais dos sistemas ideológicos Logo que aparecem as novas forças sociais encontram sua primeira expressão e sua elaboração ideológica nesses níveis superiores da ideologia do cotidiano antes que consigam invadir a arena da ideologia oficial constituída É claro no decorrer da luta no curso do processo de infiltração progressiva nas instituições ideológicas a imprensa a literatura a ciência essas novas correntes da ideologia do cotidiano por mais revolucionárias que sejam submetemse à influência dos sistemas ideológicos estabelecidos e assimilam parcialmente as formas práticas e abordagens ideológicas neles acumulados O que se chama habitualmente individualidade criadora constitui a expressão do núcleo central sólido e durável da orientação social do indivíduo Aí situaremos principalmente os estratos superiores mais bem formados do discurso interior ideologia do cotidiano onde cada representação e inflexão passou pelo estágio da expressão de alguma forma sofreu a prova da expressão externa Aí situaremos igualmente as palavras as entoações e os movimentos interiores que passaram com sucesso pela prova da expressão externa numa escala social mais ou menos ampla e adquiriram por assim dizer um grande polimento e lustro social pelo efeito das reações e réplicas pela rejeição ou apoio do auditório social Certamente nos níveis inferiores da ideologia do cotidiano o fator biográfico e biológico tem um papel importante mas à medida que a enunciação se integra no sistema ideológico decresce a importância desse fator Conseqüentemente se as explicações de caráter biológico e biográfico têm algum valor nos níveis superiores o seu papel é extremamente modesto Aqui o método sociológico objetivo tem total primazia Assim a teoria da expressão subjacente ao subjeti vismo individualista deve ser completamente rejeitada O centro organizador de toda enunciação de toda expressão não 124 é interior mas exterior está situado no meio social que envolve o indivíduo Só o grito inarticulado de um animal procede do inte rior do aparelho fisiológico do indivíduo isolado É uma reação fisiológica pura e não ideologicamente marcada Pelo contrário a enunciação humana mais primitiva ainda que realizada por um organismo individual é do ponto de vista do seu conteúdo de sua significação organizada fora do indivíduo pelas condições extraorgânicas do meio social A enun ciação enquanto tal é um puro produto da interação social quer se trate de um ato de fala determinado pela situação imediata ou pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das condi ções de vida de uma determinada comunidade lingüística A enunciação individual a parole contrariamente à teoria do objetivismo abstrato não é de maneira alguma um fato indivi dual que pela sua individualidade não se presta à análise socio lógica Com efeito se assim fosse nem a soma desses atos individuais nem as características abstratas comuns a todos esses atos individuais as formas normativamente idênticas poderiam gerar um produto social O subjetivismo individualista tem razão em sustentar que as enunciações isoladas constituem a substância real da língua e que a elas está reservada a função criativa na língua Mas está errado quando ignora e é incapaz de compreender a natureza social da enunciação e quando tenta deduzir esta última do mundo interior do locutor enquanto expressão desse mundo interior A estrutura da enunciação e da atividade mental a exprimir são de natureza social A elaboração estilística da enunciação é de natureza sociológica e a própria cadeia verbal à qual se reduz em última análise a realidade da língua é social Cada elo dessa cadeia é social assim como toda a dinâmica da sua evolução O subjetivismo individualista tem toda a razão quando diz que não se pode isolar uma forma lingüística do seu conteúdo ideológico Toda palavra é ideológica e toda utilização da língua está ligada à evolução ideológica Está errado quando diz que esse conteúdo ideológico pode igualmente ser deduzido das condições do psiquismo individual O subjetivismo individualista está errado em tomar da mesma maneira que o objetivismo abstrato a enunciação monológica como seu ponto de partida básico É verdade que alguns vosslerianos começaram a abordar o problema do diálogo o que os leva a uma compreensão mais justa da interação verbal Citaremos por exemplo o livro de Leo Spitzer Italienische Umgangsprache 125 onde se encontra uma tentativa de análise das formas de italiano utilizado na conversação em estreita ligação com as condições de utilização e sobretudo com a situação social do interlocutor4 O método de Leo Spitzer contudo é psicológicodescritivo Ele não tira de sua análise nenhuma conclusão sociológica coerente A enunciação monológica permanece a base da realidade lingüística para os vosslerianos Otto Dietrich colocou com grande clareza o problema da interação verbal5 Toma como ponto de partida a crítica da teoria de enunciação como meio de expressão Para ele a função central da linguagem não é a expressão mas a comunicação Isso o leva a considerar o papel do ouvinte O par locutorouvinte constitui para Dietrich a condição necessária da linguagem Contudo ele partilha essencialmente as premissas psicológicas do subjetivismo individualista Além disso as pesquisas de Dietrich são desprovidas de qualquer base sociológica bem definida Agora estamos em condições de responder às questões que colocamos no início do quarto capítulo A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada nem pelo ato psicofisiológico de sua produção mas pelo fenômeno social da interação verbal realizada através da enunciação ou das enunciações A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua O diálogo no sentido estrito do termo não constitui é claro senão uma das formas é verdade que das mais importantes da interação verbal Mas podese compreender a palavra diálogo num sentido amplo isto é não apenas como a comunicação em voz alta de pessoas colocadas face a face mas toda comunicação verbal de qualquer tipo que seja 4 A esse respeito a própria construção do livro é sintomática Ele dividese em quatro partes cujos títulos são I Formas de Introdução do Diálogo II Locutor e Interlocutor a Cortesia Para com o Parceiro b Economia e Desperdício da Expressão c Imbricação de Fala e Réplica III Locutor e Situação IV Fim do Diálogo Hermann Wunderlich precedeu Spitzer na direção do estudo da língua da conversação corrente nas condições reais da comunicação Cf seu livro Unsere Umgangsprache 1894 5 Ver Die Probleme der Sprachpsychologie 1914 126 O livro isto é o ato de fala impresso constitui igualmente um elemento da comunicação verbal Ele é objeto de discussões ativas sob a forma de diálogo e além disso é feito para ser apreendido de maneira ativa para ser estudado a fundo comentado e criticado no quadro do discurso interior sem contar as reações impressas institucionalizadas que se encontram nas diferentes esferas da comunicação verbal críticas resenhas que exercem influência sobre os trabalhos posteriores etc Além disso o ato de fala sob a forma de livro é sempre orientado em função das intervenções anteriores na mesma esfera de atividade tanto as do próprio autor como as de outros autores ele decorre portanto da situação particular de um problema científico ou de um estilo de produção literária Assim o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala ele responde a alguma coisa refuta confirma antecipa as respostas e objeções potenciais procura apoio etc Qualquer enunciação por mais significativa e completa que seja constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta concernente à vida cotidiana à literatura ao conhecimento à política etc Mas essa comunicação verbal ininterrupta constitui por sua vez apenas um momento na evolução contínua em todas as direções de um grupo social determinado Um importante problema decorre daí o estudo das relações entre a interação concreta e a situação extralingüística não só a situa ção imediata mas também através dela o contexto social mais amplo Essas relações tomam formas diversas e os diversos elementos da situação recebem em ligação com uma ou outra forma uma significação diferente assim os elos que se estabelecem com os diferentes elementos de uma situação de comunicação artís tica diferem dos de uma comunicação científica A comuni cação verbal não poderá jamais ser compreendida e explicada fora desse vínculo com a situação concreta A comunicação verbal entrelaçase inextricavelmente aos outros tipos de comunicação e cresce com eles sobre o terreno comum da situação de produção Não se pode evidentemente isolar a comunicação verbal dessa comunicação global em perpétua evolução Graças a esse vínculo concreto com a situação a comunicação verbal é sempre acompanhada por atos sociais de caráter não verbal gestos do trabalho atos simbólicos de um ritual cerimônias etc dos quais ela é muitas vezes apenas o complemento desempenhando um papel meramente auxiliar 127 A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes Disso decorre que a ordem metodológica para o estudo da língua deve ser o seguinte 1 As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza 2 As formas das distintas enunciações dos atos de fala isolados em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos isto é as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal 3 A partir daí exame das formas da língua na sua interpretação lingüística habitual É nessa mesma ordem que se desenvolve a evolução real da língua as relações sociais evoluem em função das infraestruturas depois a comunicação e a interação verbais evoluem no quadro das relações sociais as formas dos atos de fala evoluem em conseqüência da interação verbal e o processo de evolução refletese enfim na mudança das formas da língua De tudo o que dissemos decorre que o problema das formas da enunciação considerada como um todo adquire uma enorme importância Já indicamos que o que falta à lingüística contempo rânea é uma abordagem da enunciação em si Sua análise não ultrapassa a segmentação em constituintes imediatos E no entanto as unidades reais da cadeia verbal são as enunciações Mas justamente para estudar as formas dessas unidades convém não separálas do curso histórico das enunciações Enquanto um todo a enunciação só se realiza no curso da comunicação verbal pois o todo é determinado pelos seus limites que se configuram pelos pontos de contato de uma determinada enunciação com o meio extraverbal e verbal isto é as outras enunciações A primeira palavra e a última o começo e o fim de uma enunciação permitemnos já colocar o problema do todo O processo da fala compreendida no sentido amplo como processo de atividade de linguagem tanto exterior como interior é ininterrupto não tem começo nem fim A enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites o discurso interior As dimensões e as formas dessa ilha são determinadas pela situação da enunciação e por seu auditório A situação e o auditório obrigam o discurso interior a realizarse em uma expressão exterior definida que se insere diretamente no contexto não verbalizado da vida corrente e nele se amplia pela ação pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros 128 participantes na situação de enunciação Uma questão completa a exclamação a ordem o pedido são enunciações completas típicas da vida corrente Todas particularmente as ordens os pedidos exigem um complemento extraverbal assim como um início não verbal Esses tipos de discursos menores da vida cotidiana são modelados pela fricção da palavra contra o meio extraverbal e contra a palavra do outro Assim a forma da ordem é determinada pelos obstáculos que ela pode encontrar o grau de submissão do receptor etc A modelagem das enunciações responde aqui a particularidades fortuitas e não reiteráveis das situações da vida corrente Só se pode falar de fórmulas específicas de estereótipos no discurso da vida cotidiana quando existem formas de vida em comum relativamente regularizadas reforçadas pelo uso e pelas circunstâncias Assim encontramse tipos particulares de fórmulas estereotipadas servindo às necessidades da conversa de salão fútil e que não cria nenhuma obrigação em que todos os participantes são familiares uns aos outros e onde a diferença principal é entre homens e mulheres Encontramse elaboradas formas particulares de palavrasalusões de subentendidos de reminiscências de pequenos incidentes sem nenhuma importância etc Um outro tipo de fórmula elaborase na conversa entre marido e mulher entre irmão e irmã Pessoas inteiramente estranhas umas às outras e reunidas por acaso numa fila numa entidade qualquer começam constroem e terminam suas declarações e suas réplicas de maneira completamente diferente Encontramse ainda outros tipos nos serões no campo nas quermesses populares na cidade na conversa dos operários à hora do almoço etc Toda situação inscrita duravelmente nos costumes possui um auditório organizado de uma certa maneira e conseqüentemente um certo repertório de pequenas fórmulas correntes A fórmula estereotipada adaptase em qualquer lugar ao canal de interação social que lhe é reservado refletindo ideologicamente o tipo a estrutura os objetivos e a composição social do grupo As fórmulas da vida corrente fazem parte do meio social são elementos da festa dos lazeres das relações que se travam no hotel nas fábricas etc Elas coincidem com esse meio são por ele delimitadas e determinadas em todos os aspectos Assim encontramse diferentes formas de construção de enunciações nos lugares de produção de trabalho e nos meios de comércio No que se refere às formas da comunicação ideológica no sentido preciso do termo as formas das declarações políticas atos políticos leis decretos manifestos etc e as formas das enunciações poéticas tratados científicos etc todas 129 elas foram objeto de pesquisas especializadas em retórica e poética Mas como vimos essas pesquisas estiveram completamente divorciadas de um lado do problema da linguagem e do outro do problema da comunicação social6 Uma análise fecunda das formas do conjunto de enunciações como unidades reais na cadeia verbal só é possível de uma perspectiva que encare a enunciação individual como um fenômeno puramente sociológico A filosofia marxista da linguagem deve justamente colocar como base de sua doutrina a enunciação como realidade da linguagem e como estrutura sócioideológica Após ter mostrado a estrutura sociológica da enunciação voltemos agora às duas orientações do pensamento filosóficolingüístico para tirar conclusões definitivas A lingüística moscovita R Schor que pertence à segunda orientação do pensamento filosóficolingüístico objetivismo abstrato termina com as seguintes palavras um breve esboço da situação da lingüística contemporânea A língua não é uma coisa ergon mas antes uma atividade natural e congênita do homem energeia proclamava a investi gação lingüística romântica do século XIX É algo completamente diferente que diz a lingüística teórica contemporânea A língua não é uma atividade individual energeia mas um legado históricocultural da humanidade ergon7 Essa conclusão espantanos por sua parcialidade e seu apriorismo No plano dos fatos ela é completamente falsa Com efeito a escola de Vossler ligase igualmente à lingüística teórica contemporânea sendo na Alemanha atual um dos movimentos mais fortes do pensamento lingüístico É inadmissível reduzir a lingüística a apenas uma das suas orientações No plano da teoria é preciso refutar tanto a tese quanto a antítese apresentadas por Schor Com efeito nem uma nem outra dão conta da verdadeira natureza da língua 6 Sobre o tópico da disjunção de uma obra de arte literária das condições da comunicação artística e a resultante inércia da obra ver nosso estudo Slóvo v jízni i slóvo v poézii A Palavra na Vida e a Palavra na Poesia Zvesdá Estrela Editora do Estado 6 1926 NdTam 7 Artigo já citado de Schor Krizis sovremiénnoi lingvistiki A Crise da Lingüística Contemporânea p 71 130 Vamos tentar formular nosso próprio ponto de vista com as seguintes proposições 1 A língua como sistema estável de formas normativamente idênticas é apenas uma abstração científica que só pode servir a certos fins teóricos e práticos particulares Essa abstração não dá conta de maneira adequada da realidade concreta da língua 2 A língua constitui um processo de evolução ininterrupto que se realiza através da interação verbal social dos locutores 3 As leis da evolução lingüística não são de maneira alguma as leis da psicologia individual mas também não podem ser divorciadas da atividade dos falantes As leis da evolução lingüística são essencialmente leis sociológicas 4 A criatividade da língua não coincide com a criatividade artística nem com qualquer outra forma de criatividade ideológica específica Mas ao mesmo tempo a criatividade da língua não pode ser compreendida independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que a ela se ligam A evolução da língua como toda evolução histórica pode ser percebida como uma necessidade cega de tipo mecanicista mas também pode tornarse uma necessidade de funcionamento livre uma vez que alcançou a posição de uma necessidade consciente e desejada 5 A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social A enunciação como tal só se torna efetiva entre falantes O ato de fala individual no sentido estrito do termo individual é uma contradictio in adjecto 131 CAPÍTULO 7 TEMA E SIGNIFICAÇÃO NA LÍNGUA O problema da significação é um dos mais difíceis da lingüística As tentativas de resolução desse problema têm revelado o estreito solilóquio da ciência lingüística com particular clareza Com efeito a teoria que se apóia sobre uma compreensão passiva não nos dá os meios de abordar os fundamentos e as características essenciais da significação lingüística Dentro dos limites da nossa investigação limitarnosemos a um exame muito breve e superficial dessa questão Procuraremos simplesmente traçar as grandes linhas de uma investigação produtiva nesse campo Um sentido definido e único uma significação unitária é uma propriedade que pertence a cada enunciação como um todo Vamos chamar o sentido da enunciação completa o seu tema1 O tema deve ser único Caso contrário não teríamos nenhuma base para definir a enunciação O tema da enunciação é na verdade assim como a própria enunciação individual e não reiterável Ele se apresenta como a expressão de uma situação histórica concreta que deu origem à enunciação A enunciação Que horas são tem um sentido diferente cada vez que é usada e também conseqüentemente na nossa terminologia um outro tema que depende da situação histórica concreta histórica numa escala microscópica em que é pronunciada e da qual constitui na verdade um elemento 1 Esse termo é naturalmente sujeito a dúvidas Para nós o termo tema cobre igualmente sua realização é por isso que ele não deve ser confundido com o tema de uma obra de arte O conceito de unidade temática é o que estaria mais próximo do nosso 132 Concluise que o tema da enunciação é determinado não só pelas formas lingüísticas que entram na composição as palavras as formas morfológicas ou sintáticas os sons as entoações mas igualmente pelos elementos não verbais da situação Se perdermos de vista os elementos da situação estaremos tão pouco aptos a compreender a enunciação como se perdêssemos suas palavras mais importantes O tema da enunciação é concreto tão con creto como o instante histórico ao qual ela pertence Somente a enunciação tomada em toda a sua amplitude concreta como fenômeno histórico possui um tema Isto é o que se entende por tema da enunciação Entretanto se nos limitássemos ao caráter não reiterável e historicamente único de cada enunciação concreta estaríamos sendo medíocres dialéticos Além do tema ou mais exatamente no interior dele a enunciação é igualmente dotada de uma significação Por significação diferentemente do tema entendemos os elementos da enunciação que são reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos Naturalmente esses elementos são abstratos fundados sobre uma convenção eles não têm existência concreta independente o que não os impede de formar uma parte inalienável indispensável da enunciação O tema da enunciação é na essência irredutível a análise A significação da enunciação ao contrário pode ser analisada em um conjunto de significações ligadas aos elementos lingüísticos que a compõem O tema da enunciação Que horas são tomado em ligação indissolúvel com a situação histórica concreta não pode ser segmentado A significação da enunciação Que horas são é idêntica em todas as instâncias históricas em que é pronunciada ela se compõe das significações de todas as palavras que fazem parte dela das formas de suas relações morfológicas e sintáticas da entoação interrogativa etc O tema é um sistema de signos dinâmico e complexo que pro cura adaptarse adequadamente às condições de um dado momento da evolução O tema é uma reação da consciência em devir ao ser em devir A significação é um aparato técnico para a realização do tema Bem entendido é impossível traçar uma fronteira me cânica absoluta entre a significação e o tema Não há tema sem significação e viceversa Além disso é impossível designar a significação de uma palavra isolada por exemplo no processo de ensinar uma língua estrangeira sem fazer dela o elemento de um tema isto é sem construir uma enunciação um exem plo Por outro lado o tema deve apoiarse sobre uma certa estabilidade da significação caso contrário ele perderia seu elo com 133 o que precede e o que segue ou seja ele perderia em suma o seu sentido O estudo das línguas dos povos primitivos e a paleontologia contemporânea das significações levamnos a uma conclusão acerca da chamada complexidade do pensamento primitivo O homem pré histórico usava uma mesma e única palavra para designar manifestações muito diversas que do nosso ponto de vista não apresentam nenhum elo entre si Além disso uma mesma e única palavra podia designar conceitos diametralmente opostos o alto e o baixo a terra e o céu o bem e o mal etc É suficiente dizer diz Nicolau Marr que a paleontologia lingüística contemporânea nos dá a possibilidade de aceder graças às suas investigações às épocas em que as tribos só tinham à sua disposição uma única palavra para cobrir todas as significações de que a humanidade tinha consciência2 Mas perguntarseá será que uma palavra onisignificante é realmente uma palavra Sim é precisamente uma palavra Diremos ainda mais que se um complexo sonoro qualquer comportasse uma única significação inerte e imutável então esse complexo não seria uma palavra não seria um signo mas apenas um sinal3 A multiplicidade das significações é o índice que faz de uma palavra uma palavra Em relação à palavra onisignificante de que falava Marr podemos dizer o seguinte tal palavra de fato não tem praticamente significado é um tema puro Sua significação é inseparável da situação concreta em que se realiza Sua significação é diferente a cada vez de acordo com a situação Dessa maneira o tema absorve dissolve em si a significação não lhe deixando a possibilidade de estabilizarse e consolidarse Mas à medida que a linguagem se desenvolveu que o seu estoque de complexos sonoros aumentou as significações começaram a estabilizarse segundo as 2 As Etapas da Teoria Jafética loc cit p 278 3 Deduzse daqui claramente que mesmo a palavra da época mais recuada da humanidade de que fala Marr não se assemelha em nada ao sinal ao qual alguns investigadores procuram reduzir a linguagem Afinal um sinal que significasse tudo seria muito pouco capaz de desempenhar a função de sinal A capacidade de um sinal adaptarse às condições mutáveis de uma situação é muito pequena Na verdade mudança num sinal significa substituição de um sinal por outro 134 linhas que eram básicas e mais freqüentes na vida da comunidade para a utilização temática dessa ou daquela palavra O tema como dissemos é um atributo apenas da enuncia ção completa ele pode pertencer a uma palavra isolada somente se essa palavra opera como uma enunciação global Assim por exemplo a palavra onisignificante de Marr sempre opera como uma enunciação completa e não tem significações fixas precisa mente por isso Por outro lado a significação pertence a um elemento ou conjunto de elementos na sua relação com o todo É claro que se abstrairmos por completo essa relação com o todo isto é com a enunciação perderemos a significação É por isso que não se pode traçar uma fronteira clara entre o tema e a significação A maneira mais correta de formular a interrelação do tema e da significação é a seguinte o tema constitui o estágio superior real da capacidade lingüística de significar De fato apenas o tema significa de maneira determinada A significação é o estágio inferior da capacidade de significar A significação não quer dizer nada em si mesma ela é apenas um potencial uma possibilidade de significar no interior de um tema concreto A investigação da significação de um ou outro elemento lingüístico pode segundo a definição que demos orientarse para duas direções para o estágio superior o tema nesse caso tratarseia da investigação da significação contextual de uma dada palavra nas condições de uma enunciação concreta Ou então ela pode tender para o estágio inferior o da significação nesse caso será a investigação da significação da palavra no sistema da língua ou em outros termos a investigação da palavra dicionarizada Para constituir uma ciência sólida da significação é impor tante distinguir bem entre o tema e a significação e compreender bem a sua interrelação Até o momento ninguém compreendeu a importância dessa conduta Tais distinções como as que se estabelecem entre o sentido usual e ocasional de uma palavra entre o seu sentido central e os laterais entre denotação e conotação etc são fundamentalmente insatisfatórias A tendência básica subjacente a todas essas discriminações de atribuir maior valor ao aspecto central usual da significação pressupondo que esse aspecto realmente existe e é estável é completamente falaciosa Além disso ela deixaria o tema inexplicado uma vez que ele de maneira nenhuma poderia ser reduzido à condição de significação ocasional ou lateral das palavras A distinção entre tema e significação adquire particular clareza em conexão com o problema da compreensão que abordaremos 135 brevemente aqui Já tivemos a ocasião de mencionar o modo de compreensão passiva próprio dos filólogos que exclui a priori qualquer resposta Qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo deve conter já o germe de uma resposta Só a compreensão ativa nos permite apreender o tema pois a evolução não pode ser apreendida senão com a ajuda de um outro processo evolu tivo Compreender a enunciação de outrem significa orientar se em relação a ela encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender fazemos corresponder uma série de palavras nossas formando uma réplica Quanto mais numerosas e substanciais forem mais profunda e real é a nossa compreensão Assim cada um dos elementos significativos isoláveis de uma enunciação e a enunciação toda são transferidos nas nossas mentes para um outro contexto ativo e responsivo A compreensão é uma forma de diálogo ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo Compreender é opor a palavra do locutor uma contrapalavra Só na compreensão de uma língua estrangeira é que se procura encontrar para cada pala vra uma palavra equivalente na própria língua É por isso que não tem sentido dizer que a significação pertence a uma palavra enquanto tal Na verdade a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores isto é ela só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva A significação não está na palavra nem na alma do falante assim como também não está na alma do interlocutor Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um determinado complexo sonoro É como uma faísca elétrica que só se produz quando há contato dos dois pólos opostos Aqueles que ignoram o tema que só é acessível a um ato de compreensão ativa e responsiva e que procurando definir o sentido de uma palavra atingem o seu valor inferior sempre estável e idêntico a si mesmo é como se quisessem acender uma lâmpada depois de terem cortado a corrente Só a corrente da comunicação verbal fornece à palavra a luz da sua significação Passemos agora ao problema da interrelação entre a apreciação e a significação cujo papel é muito importante na ciência das significações Toda palavra usada na fala real possui não apenas tema e significação no sentido objetivo de conteúdo desses termos mas também um acento de valor ou apreciativo isto é quando um conteúdo objetivo é expresso dito ou escrito pela fala viva ele é 136 sempre acompanhado por um acento apreciativo determinado Sem acento apreciativo não há palavra Em que consiste esse acento e qual é a sua relação com a face objetiva da significação O nível mais óbvio que é ao mesmo tempo o mais superficial da apreciação social contida na palavra é transmitido através da entoação expressiva Na maioria dos casos a entoação é determinada pela situação imediata e freqüentemente por suas circunstâncias mais efêmeras Eis aqui um caso clássico de utilização da entoação no discurso familiar No Diário de um Escritor Dostoievski conta1 Certa vez num domingo já perto da noite eu tive ocasião de caminhar ao lado de um grupo de seis operários embriagados e subitamente me dei conta de que é possível exprimir qualquer pensamento qualquer sensação e mesmo raciocínios profundos através de um só e único substantivo por mais simples que seja Dostoievski está pensando aqui numa palavrinha censurada de largo uso Eis o que aconteceu Primeiro um desses homens pronuncia com clareza e energia esse substantivo para exprimir a respeito de alguma coisa que tinha sido dita antes a sua contestação mais desdenhosa Um outro lhe responde repetindo o mesmo substantivo mas com um tom e uma significação completamente diferentes para contrariar a negação do primeiro O terceiro começa bruscamente a irritarse com o primeiro intervém brutalmente e com paixão na conversa e lançalhe o mesmo substantivo que toma agora o sentido de uma injúria Nesse momento o segundo intervém novamente para injuriar o terceiro que o ofendera O quê há cara quem tá pensando que é a gente tá conversando tranqüilo e aí vem você e começa a bronquear Só que esse pensamento ele o exprime pela mesma palavrinha mágica de antes que designa de maneira tão simples um certo objeto ao mesmo tempo ele levanta o braço e bate no ombro do companheiro Mas eis que o quarto o mais jovem do grupo que se calara até então e que aparentemente acabara de encontrar a solução do problema que estava na origem da disputa exclama com um tom entusiasmado levantando a mão Eureka Achei achei é isso que vocês pensam Não nada de Eureka nada de Achei Ele simplesmente repete o mesmo substantivo banido do dicionário uma 1 Pólnoie sobránie sotchiniénii F M Dostoievskovo Obras Completas de F M Dostoievski 1906 tomo 9 p 274275 137 única palavra mas com um tom de exclamação arrebatada com êxtase aparentemente excessivo pois o sexto homem o mais carrancudo e mais velho dos seis olhao de lado e arrasa num instante o entusiasmo do jovem repetindo com uma imponente voz de baixo e num tom rabugento sempre a mesma palavra interdita na presença de damas para significar claramente Não vale a pena arrebentar a garganta já compreendemos Assim sem pronunciar uma única outra palavra eles repetiram seis vezes seguidas sua palavra preferida um depois do outro e se fizeram compreender perfeitamente As seis falas dos operários são todas diferentes apesar do fato de todas consistirem de uma mesma e única palavra Essa palavra de fato só constitui um suporte da entoação A conversa é conduzida por meio de entoações que exprimem as apreciações dos interlocutores Essas apreciações assim como as entoações correspondentes são inteiramente determinadas pela situação social imediata em cujo quadro se desenvolve a conversa é por isso que elas não têm necessidade de um suporte concreto No registro familiar a entoação às vezes não tem nada a ver com o conteúdo do discurso O material entoativo acumulado interiormente encontra muitas vezes uma saída em construções lingüísticas que não são absolutamente adaptadas à entoação em questão Mais ainda a entoação não se integra no conteúdo intelectual objetivo da construção Quando exprimimos os nossos sentimentos damos muitas vezes a uma palavra que veio à mente por acaso uma entoação expressiva e profunda Ora freqüentemente tratase de uma interjeição ou de uma locução vazias de sentido Quase todas as pessoas têm as suas interjeições e locuções favoritas podese utilizar correntemente uma palavra de carga semântica muito grande para resolver de forma puramente entoativa situações ou crises da vida cotidiana sejam elas menores ou graves Encontramse servindo de válvulas de segurança entoativa expressões como pois é pois é sei sei é é pois não pois não etc A reduplicação habitual dessas palavrinhas isto é o alongamento artificial da representação sonora com o fim de dar à entoação acumulada uma escapatória é muito característica Podese é claro pronunciar a mesma palavrinha favorita com uma infinidade de entoações diferentes conforme as diferentes situações ou disposições que podem ocorrer na vida Em todos esses casos o tema que é uma propriedade de cada enunciação cada uma das enunciações dos seis operários tinha um tema próprio realizase completa e exclusivamente atra vés da entoação expressiva sem ajuda da significação das palavras ou da articulação gramatical Os acentos apreciativos dessa ordem e 138 as entoações correspondentes não podem ultrapassar os limites estreitos da situação imediata e de um pequeno círculo social íntimo Podemos qualificálos como auxiliares marginais das significações lingüísticas Entretanto nem todos os julgamentos de valor são como esses Em qualquer enunciação por maior que seja amplitude do seu espectro semântico e da audiência social de que goza uma enorme importância pertence à apreciação É verdade que a entoação não traduz adequadamente o valor apreciativo esse serve antes de mais nada para orientar a escolha e a distribuição dos elementos mais carregados de sentido da enunciação Não se pode construir uma enunciação sem modalidade apreciativa Toda enun ciação compreende antes de mais nada uma orientação apreciativa É por isso que na enunciação viva cada elemento contém ao mes mo tempo um sentido e uma apreciação Apenas os elementos abstratos considerados no sistema da língua e não na estrutura da enunciação se apresentam destituídos de qualquer valor apreciativo Por causa da construção de um sistema lingüístico abstrato os lingüistas chegaram a separar o apreciativo do significativo e a considerar o apreciativo como um elemento marginal da significação como a expressão de uma relação individual entre o locutor e o objeto do seu discurso4 Um lingüista russo G Spätt fala da apreciação como de um valor conotativo da palavra Ele procura estabelecer uma distinção entre a significação objetiva denotativa e a conotação apreciativa que ele coloca em esferas diferentes da realidade Esse tipo de demarcação entre o denotativo e o apreciativo parecenos completamente ilegítimo ela se fundamenta sobre o fato de que as funções mais profundas da apreciação não são perceptíveis na superfície do discurso E no entanto a significação objetiva formase graças à apreciação ela indica que uma determinada significação objetiva entrou no horizonte dos interlocutores tanto no horizonte imediato como no horizonte social mais amplo de um dado grupo social Além disso é à apreciação que se deve o papel criativo nas mudanças de significação A mudança de significação é sempre no final das contas uma reavaliação o deslocamento de uma palavra determinada 4 É assim que Anton Marty define a apreciação depois de ter efetuado a análise mais sutil e detalhada das significações das palavras V A Marty Untersuchungen zur Grundlegung der allgemeinen Grammatik und Sprachphilosophie Halle 1908 139 de um contexto apreciativo para outro A palavra ou é elevada a um nível superior ou abaixada a um inferior Isolar a significação da apreciação inevitavelmente destitui a primeira de seu lugar na evolução social viva onde ela está sempre entrelaçada com a apreciação e tornaa um objeto ontológico transformaa num ser ideal divorciado da evolução histórica É justamente para compreender a evolução histórica do tema e das significações que o compõem que é indispensável levar em conta a apreciação social A evolução semântica na língua é sempre ligada à evolução do horizonte apreciativo de um dado grupo social e a evolução do horizonte apreciativo no sentido da totalidade de tudo que tem sentido e importância aos olhos de um determinado grupo é inteiramente determinada pela expansão da infraestrutura econômica À medida que a base econômica se expande ela promove uma real expansão no escopo de existência que é acessível compreensível e vital para o homem O criador de gado préhistórico não tinha preocupações não havia muita coisa que realmente o tocasse O homem do fim da era capitalista está diretamente relacionado com todas as coisas seus interesses atingem os cantos mais remotos da terra e mesmo as mais distantes estrelas Esse alargamento do horizonte apreciativo efetuase de maneira dialética Os novos aspectos da existência que foram integrados no círculo do interesse social que se tornaram objetos da fala e da emoção humana não coexistem pacificamente com os elementos que se integraram à existência antes deles pelo contrário entram em luta com eles submetemnos a uma reavaliação fazemnos mudar de lugar no interior da unidade do horizonte apreciativo Essa evolução dialética refletese na evolução semântica Uma nova significação se descobre na antiga e através da antiga mas a fim de entrar em contradição com ela e de reconstruíla O resultado é uma luta incessante dos acentos em cada área semântica da existência Não há nada na composição do sentido que possa colocarse acima da evolução que seja independente do alargamento dialético do horizonte social A sociedade em transformação alargase para integrar o ser em transformação Nada pode permanecer estável nesse processo É por isso que a significação elemento abstrato igual a si mesmo é absorvida pelo tema e dilacerada por suas contradições vivas para retornar enfim sob a forma de uma nova significação com uma estabilidade e uma identidade igualmente provisórias 140 TERCEIRA PARTE PARA UMA HISTÓRIA DAS FORMAS DA ENUNCIAÇÃO NAS CONSTRUÇÕES SINTÁTICAS Tentativa de aplicação do método sociológico aos problemas sintáticos 141 CAPÍTULO 8 TEORIA DA ENUNCIAÇÃO E PROBLEMAS SINTÁTICOS Não há abordagem fecunda dos problemas sintáticos que se fundamente sobre os princípios e métodos tradicionais da lingüística particularmente os do objetivismo abstrato onde tais métodos e princípios encontraram sua expressão mais clara e conseqüente As categorias de base do pensamento lingüístico contemporâneo que foram elaboradas principalmente a partir da lingüística comparada das línguas indoeuropéias são de ponta a ponta fonéticas e morfológicas Esse pensamento que se nutriu de fonética e de morfologia só é capaz de ver os outros fenômenos da língua através das lentes das formas fonéticas e morfológicas Ele procura ver os problemas de sintaxe da mesma maneira o que leva a fazer deles problemas de morfologia1 Por isso a sintaxe encontrase em má situação fato que a maior parte dos pesquisadores das línguas indoeuropéias reconhece de boa vontade Compreendese perfeitamente isso se se recordam as características fundamentais da apreensão das línguas mortas governada originariamente pelos fins de deciframento dessas línguas e de seu ensino2 1 Essa tendência oculta de tratar a sintaxe como a morfologia tem como conseqüência que a reflexão escolástica reina na sintaxe mais do que em qualquer outra parte da lingüística 2 É preciso acrescentar a isso os fins particulares da lingüística comparada o estabelecimento do parentesco das línguas e de sua hierarquia genética Tais fins reforçam ainda mais o lugar privilegiado da fonética na reflexão lingüística Infelizmente não pudemos no âmbito deste trabalho tocar nos problemas da lingüística comparada apesar da sua enorme importância para a filosofia da linguagem e o lugar que ela ocupa na investigação lingüística contemporânea Tratase de um problema muito 142 Entretanto os problemas de sintaxe são da maior importância para a compreensão da língua e de sua evolução considerandose que de todas as formas da língua as formas sintáticas são as que mais se aproximam das formas concretas da enunciação dos atos de fala Todas as análises sintáticas do discurso constituem análises do corpo vivo da enunciação portanto é ainda mais difícil trazêlas a um sistema abstrato da língua As formas sintáticas são mais concretas que as formas morfológicas ou fonéticas e são mais estreitamente ligadas às condições reais da fala É por isso que na nossa reflexão sobre os fatos vivos da língua demos justamente prioridade às formas sintáticas sobre as formas morfológicas ou fonéticas Mas como também já deixamos claro um estudo fecundo das formas sintáticas só é possível no quadro da elaboração de uma teoria da enunciação Enquanto a enunciação como um todo permanecer terra incógnita para o lingüista está fora de questão falar de uma compreensão real concreta não escolástica das formas sintáticas Já dissemos que a enunciação completa ocupa uma posição bem pobre na lingüística Podese mesmo dizer que o pensamento lingüístico perdeu sem esperança de reavêla a percepção da fala como um todo O lingüista sentese mais à vontade quando opera no centro de uma unidade frasal Quanto mais ele se aproxima das fronteiras do discurso da enunciação completa menos segura é a sua posição Nenhuma das categorias lingüísticas convém à determinação do todo Com efeito as categorias lingüísticas tais como são só são aplicáveis no interior do território da enunciação Assim as categorias morfológicas só têm sentido no interior da enun ciação elas deixam de ser úteis quando se trata de definir o todo O mesmo se dá com as categorias sintáticas por exemplo a oração a categoria oração é meramente uma definição da oração como uma unidade dentro de uma enunciação mas de nenhuma maneira como entidade global Para convencerse da elementaridade fundamental de todas as categorias lingüísticas basta tomar a enunciação com pleta relativamente falando aliás já que toda enunciação faz parte do processo verbal constituída por uma única palavra Se apli carmos todas as categorias usadas pelos lingüistas a essa palavra fica evidente que essas categorias definem a palavra exclusi vamente em termos de um elemento potencial da fala e que nenhuma complexo e para tratálo ainda que superficialmente seria preciso alargar consideravelmente o âmbito deste livro 143 engloba a enunciação completa O elemento suplementar que faz dessa palavra uma enunciação completa permanece inacessível a todas as categorizações ou determinações lingüísticas quaisquer que sejam A expansão dessa palavra até uma oração completa com todos os seus constituintes de acordo com a prescrição não afirmado mas subentendido sempre nos dará apenas uma oração e de maneira nenhuma uma enunciação Não importa que categoria lingüística tentássemos aplicar a essa oração jamais encontraríamos aquilo que justamente a converte em uma enunciação completa Dessa maneira se ficarmos nos limites das categorias gramaticais efetivas da lingüística contemporânea jamais poremos a mão sobre a inacessível enunciação completa As categorias da língua puxamnos obstinadamente da enunciação e de sua estrutura para o sistema abstrato da língua Na verdade essa falha da definição lingüística aplicase não apenas à enunciação como um todo mas até mesmo às unidades dentro de uma enunciação monológica com alguma pretensão a serem consideradas unidades completas Isso acontece com os parágrafos que podem ser separados uns dos outros por alíneas A composição sintática dos parágrafos é extremamente variada Eles podem conter desde uma única palavra até um grande número de orações complexas Dizer que um parágrafo deve conter a expressão de um pensamento completo não leva a nada O que é preciso afinal é uma definição do ponto de vista da linguagem e em nenhuma circunstância pode a noção de pensamento completo ser considerada como uma definição lingüística Se é verdade como acreditamos que as definições lingüísticas não podem ser completamente divorciadas das definições ideológicas também elas não podem ser usadas para substituir uma à outra Penetrando mais fundo na essência lingüística dos parágrafos convencernosemos de que em certos aspectos essenciais eles são análogos às réplicas de um diálogo Tratase de qualquer forma de diálogos viciados trabalhados no corpo de uma enunciação monológica Na base da divisão do discurso em partes denominadas parágrafos na sua forma escrita encontrase o ajustamento às reações previstas do ouvinte ou do leitor Quanto mais fraco o ajustamento ao ouvinte e a consideração das suas reações menos organizado no que diz respeito aos parágrafos será o discurso Os tipos clássicos de parágrafo são pergunta e resposta o autor faz as perguntas e dá as respostas suplementação antecipação de 144 possíveis objeções exposição de aparentes incoerências ou contradições no próprio discurso etc3 É particularmente comum tomar como objeto de discussão o próprio discurso ou parte dele por exemplo o parágrafo precedente Nesse caso a atenção do falante transferese do objeto do discurso para o próprio discurso reflexão sobre o próprio discurso Essa mudança de pólo de interesse do discurso é condicionada pela atenção do ouvinte Se o discurso ignorasse totalmente o destinatário um tipo impossível de discurso é claro a possibilidade de decompôlo em constituintes seria próxima de zero Naturalmente não nos ocupamos aqui de certos tipos especiais de divisão condicionados pelos objetivos e fins particulares de domínios ideológicos específicos por exemplo a divisão estrófica do discurso em verso ou as análises puramente lógicas do tipo premissasconclusões teseantítese etc Apenas o estudo das formas da comunicação verbal e das formas correspondentes da enunciação completa pode lançar luz sobre o sistema dos parágrafos e todos os problemas aná logos Enquanto a lingüística orientar suas pesquisas para a enunciação monológica isolada ela permanecerá incapaz de abor dar essas questões em profundidade A elucidação dos problemas mais elementares da sintaxe só é possível também sobre a base da comunicação verbal Todas as categorias básicas da lingüís tica deveriam ser cuidadosamente reexaminadas nesse sentido O interesse recentemente manifestado em sintaxe pela entoação e as tentativas correlatas de renovar a determinação das unidades sintáticas por meio da consideração mais sutil e diferenciada da entoação parecemnos pouco fecundos Só se tornarão produtivos se forem combinados com uma compreensão adequada das bases da comunicação verbal 3 Apenas esboçamos aqui o problema dos parágrafos Nossas afirmações podem parecer dogmáticas uma vez que as apresentamos sem prova e não as sustentamos com materiais ad hoc Além disso simplificamos o problema Nos textos escritos a alínea que assinala os parágrafos permite decompor o discurso monológico de diversas maneiras Mencionamos aqui apenas um desses tipos uma forma de divisão que leva decisivamente em conta o destinatário e sua ativa compreensão 145 Os capítulos seguintes do nosso estudo são precisa mente consagrados a um problema específico de sintaxe Algu mas vezes é extremamente importante expor um fenômeno bem conhecido e aparentemente bem estudado a uma luz nova reformulandoo como problema isto é iluminando novos aspectos dele através de uma série de questões bem orientadas Isso é particularmente útil nos domínios em que a pesquisa desaba sob o peso de uma massa de descrições e de classificações meticulosas e detalhadas mas destituídas de qualquer orientação Uma problematização renovada pode colocar em evidência um caso aparentemente limitado e de interesse secundário como um fenômeno cuja importância é fundamental para todo o campo de estudo Podese assim graças a um problema bem colocado trazer à luz um potencial metodológico oculto Acreditamos que um fenômeno assim altamente produtivo nodal mesmo é o do discurso citado isto é os esquemas lingüísticos discurso direto discurso indireto discurso indireto livre as modificações desses esquemas e as variantes dessas modificações que encontramos na língua e que servem para a transmissão das enunciações de outrem e para a integração dessas enunciações enquanto enunciações de outrem num contexto monológico coerente O interesse metodológico excepcional que apresentam esses fatos ainda não foi apreciado na sua justa medida Ninguém foi capaz de discernir nessa questão de sintaxe à primeira vista secundária os problemas de enorme significação que ela coloca para a lingüística4 e foi justamente a orientação sociológica que tomou o interesse científico pela língua que permitiu descobrir toda a significação metodológica e o aspecto revelador desses fatos Dotar de uma orientação sociológica o fenômeno de transmissão da palavra de outrem tal é o problema a que nos vamos consagrar agora Através desses problema tentaremos traçar os caminhos do método sociológico em lingüística Não temos a pretensão de fazer grandes deduções positivas de caráter histórico Os materiais que recolhemos são suficientes para expor o problema e mostrar até que ponto é indispensável orientálo sociologicamente mas eles estão longe de ser suficientes para tirar generalizações históricas de grande 4 Pechkovski por exemplo só dedica quatro páginas à questão na sua Sintaxe Ver A M Pechkovski Rússki sintaksis v naútchnom osvechtchénie A Sintaxe Russa à Luz da Ciência 2a ed Moscou 1920 p 465468 3a ed p 552555 146 porte Tais generalizações quando ocorrem são de caráter meramente provisório e hipotético 147 CAPÍTULO 9 O DISCURSO DE OUTREM O discurso citado é o discurso no discurso a enunciação na enunciação mas é ao mesmo tempo um discurso sobre o discurso uma enunciação sobre a enunciação Aquilo de que nós falamos é apenas o conteúdo do discurso o tema de nossas palavras Um exemplo de um tema que é apenas um tema seria por exemplo a natureza o homem a oração subordinada um dos temas da sintaxe Mas o discurso de outrem constitui mais do que o tema do discurso ele pode entrar no discurso e na sua construção sintática por assim dizer em pessoa como uma unidade integral da construção Assim o discurso citado conserva sua autonomia estrutural e semântica sem nem por isso alterar a trama lingüística do contexto que o integrou Ainda mais a enunciação citada tratada apenas como um tema do discurso só pode ser caracterizada superficialmente Para penetrar completamente no seu conteúdo é indispensável integrálo na construção do discurso Se nos limitarmos ao tratamento do discurso citado em termos temáticos poderemos responder às questões Como e De que falava Fulano mas O que dizia ele só pode ser descoberto através da transmissão das suas palavras mesmo que só sob a forma de discurso indireto Entretanto quando passa a unidade estrutural do discurso narrativo no qual se integra por si a enunciação citada passa a constituir ao mesmo tempo um tema do discurso narrativo Faz parte integrante de sua unicidade temática na qualidade de enunciação citada uma enunciação com seu próprio tema o tema autônomo então tornase o tema de um tema O discurso citado é visto pelo falante como a enunciação de uma outra pessoa completamente independente na origem dotada de uma construção completa e situada fora do contexto narrativo É a partir dessa existência autônoma que o discurso de outrem passa para o 148 contexto narrativo conservando o seu conteúdo e ao menos rudimentos da sua integridade lingüística e da sua autonomia estrutural primitivas A enunciação do narrador tendo integrado na sua composição uma outra enunciação elabora regras sintáticas estilísticas e composicionais para assimilála parcialmente para associála à sua própria unidade sintática estilística e composicional embora conservando pelo menos sob uma forma rudimentar a autonomia primitiva do discurso de outrem sem o que ele não poderia ser completamente apreendido Nas línguas modernas certas variantes do discurso indireto em particular o discurso indireto livre têm uma tendência inerente a transferir a enunciação citada do domínio da construção lingüística ao plano temático de conteúdo Entretanto mesmo assim a diluição da palavra citada no contexto narrativo não se efetua e não poderia efetuarse completamente não somente o conteúdo semântico mas também a estrutura da enunciação citada permanecem relativamente estáveis de tal forma que a substância do discurso do outro permanece palpável como um todo autosuficiente Manifestase assim nas formas de transmissão do discurso de outrem uma relação ativa de uma enunciação a outra e isso não no plano temático mas através de construções estáveis da própria língua Esse fenômeno da reação da palavra à palavra é contudo radicalmente diferente do que se passa no diálogo Aí as réplicas são gramaticalmente separadas e não são integradas num contexto único Com efeito não existem formas sintáticas com a função de construir a unidade do diálogo Se o diálogo se apresenta no contexto do discurso narrativo estamos simplesmente diante de um caso de discurso direto isto é uma das variantes do fenômeno de que estamos tratando O problema do diálogo começa a chamar cada vez mais a atenção dos lingüistas e algumas vezes tornase mesmo o centro das preocupações em lingüística1 Isso é perfeitamente compreensível 1 Na literatura lingüística russa só se encontra um estudo consagrado ao problema do diálogo L P Iakubinski O dialoguítcheskoi rietchi Sobre o Discurso Dialogado in Rússkaia rietch A Fala Russa Petrogrado 1923 No livro de V Vinogradov Poézia Ánni Akhmátovoi A Poesia de Ana Akhmátova Leningrado 1925 ver o capítulo Os Gestos do Diálogo encontramse observações interessantes de cárater 149 pois como sabemos a unidade real da língua que é realizada na fala Sprache als Rede não é a enunciação monológica indivi dual e isolada mas a interação de pelo menos duas enunciações isto é o diálogo O estudo fecundo do diálogo pressupõe entretanto uma investigação mais profunda das formas usadas na citação do discurso uma vez que essas formas refletem tendências básicas e constantes da recepção ativa do discurso de outrem e é essa recepção afinal que é fundamental também para o diálogo Como na realidade apreendemos o discurso de outrem Como o receptor experimenta a enunciação de outrem na sua consciência que se exprime por meio do discurso interior Como é o discurso ativamente absorvido pela consciência e qual a influência que ele tem sobre a orientação das palavras que o receptor pronunciará em seguida Encontramos justamente nas formas do discurso citado um documento objetivo que esclarece esse problema Esse documento quando sabemos lêlo dános indicações não sobre os processos subjetivopsicológicos passageiros e fortuitos que se passam na alma do receptor mas sobre as tendências sociais estáveis características da apreensão ativa do discurso de outrem que se manifestam nas formas da língua O mecanismo desse processo não se situa na alma individual mas na sociedade que escolhe e gramaticaliza isto é associa às estruturas gramaticais da língua apenas os elementos da apreensão ativa apreciativa da enunciação de outrem que são socialmente pertinentes e constantes e que por conseqüência têm seu fundamento na existência econômica de uma comunidade lingüística dada Naturalmente há diferenças essenciais entre a recepção ativa da enunciação de outrem e sua transmissão no interior de um contexto É conveniente levar isso em conta Toda transmissão particularmente sob forma escrita tem seu fim específico narrativa processos legais polêmica científica etc Além disso a transmissão leva em conta uma terceira pessoa a pessoa a quem estão sendo transmitidas as enunciações citadas Essa orientação para uma terceira pessoa é de primordial importância ela reforça a influência das forças sociais organizadas sobre o modo de apreensão do discurso Numa situação real de diálogo quando respondemos a um interlocutor semilingüístico e semiestilístico Os lingüistas alemães da escola de Vossler trabalham ativamente na atualidade sobre o diálogo ver especialmente Gertraud Lerch Die uneigentliche direkte Rede Festschrift für Karl Vossler 1922 150 habitualmente não retomamos no nosso discurso as próprias palavras que ele pronunciou Só o fazemos em casos excepcionais para afirmar que compreendemos corretamente para apanhar o interlocutor com suas próprias palavras etc É preciso levar em conta todas essas características da situação de transmissão Mas isso não altera em nada a essência do problema As condições de transmissão e suas finalidades apenas contribuem para a realização daquilo que já está inscrito nas tendências da apreensão ativa no quadro do discurso interior ora essas últimas só podem desenvolverse por sua vez dentro dos limites das formas existentes numa determinada língua para transmitir o discurso Estamos bem longe é claro de afirmar que as formas sintáticas por exemplo as do discurso direto ou indireto exprimem de maneira direta e imediata as tendências e as formas da apreensão ativa e apreciativa da enunciação de outrem É evidente que o processo não se realiza diretamente sob a forma de discurso direto ou indireto Essas formas são apenas esquemas padronizados para citar o discurso Mas esses esquemas e suas variantes só podem ter surgido e tomado forma de acordo com as tendências dominantes da apreensão do discurso de outrem além disso na medida em que esses esquemas assumiram uma forma e uma função na língua eles exercem uma influência reguladora estimulante ou inibidora sobre o desenvolvimento das tendências da apreensão apreciativa cujo campo de ação é justamente definido por essas formas A língua não é o reflexo das hesitações subjetivopsicológicas mas das relações sociais estáveis dos falantes Conforme a lín gua conforme a época ou os grupos sociais conforme o contexto apresente tal ou qual objetivo específico vêse dominar ora uma forma ora outra ora uma variante ora outra O que isso atesta é a relativa força ou fraqueza daquelas tendências na interorien tação social de uma comunidade de falantes das quais as pró prias formas lingüísticas são cristalizações estabilizadas e antigas Se em certas condições bem determinadas uma forma qualquer se encontra relegada a segundo plano por exemplo certas variantes do discurso indireto no romance russo contemporâneo que são justamente de tipo racionalista dogmático isso testemunha então a favor do fato de que as tendências dominantes da compreensão e da apreciação da enunciação de outrem têm dificuldade em manifestarse sob essas formas pois estas últimas as freiam não lhes deixando campo suficiente 151 Toda a essência da apreensão apreciativa da enunciação de outrem tudo o que pode ser ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso interior Aquele que apreende a enun ciação de outrem não é um ser mudo privado da palavra mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores Toda a sua ativi dade mental o que se pode chamar o fundo perceptivo é mediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a junção com o discurso apreendido do exterior A palavra vai à palavra É no quadro do discurso interior que se efetua a apreensão da enunciação de outrem sua compreensão e sua apreciação isto é a orientação ativa do falante Esse processo efetuase em dois planos de um lado a enunciação de outrem é recolocada no contexto de comentário efetivo que se confunde em parte com o que se chama o fundo perceptivo da palavra na situação interna e externa um elo se estabelece com a expressão facial etc Ao mesmo tempo preparase a réplica Gegenrede Essas duas operações a réplica interior e o comentário efetivo2 são naturalmente organicamente fundidos na unidade da apreensão ativa e não são isoláveis senão de maneira abstrata Os dois planos da apreensão exprimemse objetivamse no contexto narrativo que engloba o discurso citado Qualquer que seja a orientação funcional de um determinado contexto quer se trate de uma obra literária de um artigo polêmico da defesa de um advogado etc nele discerniremos claramente essas duas tendências o comentário efetivo de um lado e a réplica de outro Habitualmente um dos dois é dominante O discurso citado e o contexto narrativo unemse por relações dinâmicas complexas e tensas É impossível compreender qualquer forma de discurso citado sem leválas em conta O erro fundamental dos pesquisadores que já se debruçaram sobre as formas de transmissão do discurso de outrem é têlo sistematicamente divorciado do contexto narrativo Daí o caráter estático das pesquisas nesse campo o que se aplica igualmente a todas as investigações em sintaxe No entanto o objeto verdadeiro da pesquisa deve ser justamente a interação dinâmica dessas duas dimensões o discurso a transmitir e aquele que serve para transmiti lo Na verdade eles só têm uma existência real só se formam e vivem através dessa interrelação e não de maneira isolada O discurso citado e o contexto de transmissão são somente os termos de uma interrelação dinâmica Essa dinâmica por sua vez reflete a dinâmica 2 O termo é emprestado de L P Jakubinski cf loc cit 152 da interrelação social dos indivíduos na comunicação ideológica verbal Tratase naturalmente de tendências essenciais e constantes dessa comunicação Em que direção pode desenvolverse a dinâmica da interrelação entre o discurso narrativo e o discurso citado Estamos diante de duas orientações principais Primeiramente a tendência fundamental da reação ativa ao discurso de outrem pode visar à conservação da sua integridade e autenticidade A língua pode esforçarse por delimitar o discurso citado com fronteiras nítidas e estáveis Nesse caso os esquemas lingüísticos e suas variantes têm a função de isolar mais clara e mais estritamente o discurso citado de protegêlo de infiltração pelas entoações próprias ao autor de simplificar e consolidar suas características lingüísticas individuais Essa é a primeira orientação convém discernir claramente nesse quadro até que ponto a apreensão social do discurso de outrem é diferenciada numa determinada comunidade lingüística até que ponto as expressões as particularidades estilísticas do discurso a coloração lexical etc são distintamente percebidas e têm uma significação social Pode ser que o discurso de outrem seja recebido como um único bloco de comportamento social como uma tomada de posição inanalisável do falante e nesse caso apenas o o quê do discurso é apreendido enquanto o como fica fora do campo de compreensão Esse tipo de apreensão e de transmissão do discurso de outrem lingüisticamente despersonalizado e preocupado com o sentido objetivo domina em francês antigo e medieval nesse último caso constatase um desenvolvimento importante das variantes do discurso indireto sem sujeito aparente3 Encontramos esse mesmo tipo nos documentos russos antigos embora neles falte quase completamente o esquema do discurso indireto O tipo dominante nesse caso é o do discurso direto com sujeito não aparente no sentido lingüístico4 3 Sobre algumas particularidades do antigo francês nessa área ver mais adiante Sobre o discurso citado em francês medieval ver Gertraud Lerch Die uneigentliche direkte Rede in Festschrift für Karl Vossler 1922 p 122 ss Ver igualmente Karl Vossler Frankreichs Kultur im Spiegel seiner Sprachentwicklung 1913 4 Por exemplo na Canção da Batalha de Igor célebre epopéia russa do século XII anônima que constitui o primeiro documento escrito em língua russa sic NdTfr não há um único exemplo de discurso indireto apesar da utilização abundante da palavra de outrem nesse documento Encontrase muito raramente o discurso indireto nos anais da Idade Média O discurso de outrem é 153 No quadro da primeira orientação convém discernir igualmente o grau de firmeza ideológica o grau de autoritarismo e de dogma tismo que acompanha a apreensão do discurso Quanto mais dogmática for a palavra menos a apreensão apreciativa admitirá a passagem do verdadeiro ao falso do bem ao mal e mais impes soais serão as formas de transmissão do discurso de outrem Na verdade dentro de uma situação em que todos os julga mentos sociais de valor são divididos em alternativas nítidas e distintas não há lugar para uma atitude positiva e atenta a todos os componentes individualizantes da enunciação de outrem Um dogma tismo autoritário como esse é característico dos textos escritos em francês medieval e em russo antigo O século XVII na França e o XVIII na Rússia caracterizamse por um tipo racionalista de dogmatismo que trata de maneira semelhante embora com orientações diferentes o componente individual do discurso No quadro do dogmatismo racionalista dominam as variantes analisadoras do conteúdo do discurso indireto e as variantes retóricas do discurso direto5 As fronteiras que separam o discurso citado do resto da enunciação são nítidas e invioláveis Podemos chamar essa primeira orientação na qual se move o dinamismo da interorientação entre o discurso narrativo e o discurso citado o estilo linear der lineare Stil de citação do discurso de outrem tomando o termo emprestado do crítico de arte Wölfflin A tendência principal do estilo linear é criar contornos exteriores nítidos à volta do discurso citado correspondendo a uma fraqueza do fator individual interno Nos casos em que existe completa homogeneidade estilística de todo o texto o autor e suas personagens falam a mesma língua o discurso cons truído como sendo o de outrem atinge um sobriedade e uma plasticidade máximas Na segunda orientação da dinâmica da interrelação da enunciação e do discurso citado observamos processos de natu reza exatamente oposta A língua elabora meios mais sutis e mais versáteis para permitir ao autor infiltrar suas réplicas e seus comentários no discurso de outrem O contexto narrativo esforçase por desfazer a estrutura compacta e fechada do sempre introduzido sob a forma de massa compacta fechada e pouco individualizada 5 O discurso indireto é quase inexistente na literatura russa da época clássica 154 discurso citado por absorvêlo e apagar as suas fronteiras Pode mos chamar esse estilo de transmissão do discurso de outrem o estilo pictórico Sua tendência é atenuar os contornos exteriores nítidos da palavra de outrem Além disso o próprio discurso é bem mais individualizado Os diferentes aspectos da enun ciação podem ser sutilmente postos em evidência Não é apenas o seu sentido objetivo que é apreendido a asserção que está nela contida mas também todas as particularidades lingüísticas da sua realização verbal Encontrase igualmente no quadro dessa segunda orientação uma variedade de tipos O narrador pode deliberadamente apagar as fronteiras do discurso citado a fim de colorilo com as suas entoações o seu humor a sua ironia o seu ódio com o seu encantamento ou o seu desprezo Esse tipo é característico da época do Renascimento especialmente em francês do fim do século XVIII e de quase todo o século XIX O dogmatismo autoritário e racionalista tende a desaparecer completamente nesse caso O que domina é um certo relativismo das apreciações sociais o que é muito favorável a uma apreensão positiva e intuitiva de todos os matizes lingüísticos individuais do pensamento das opiniões dos sentimentos É sobre esse terreno que se desenvolve a corrente decorativa no tratamento do discurso citado que leva algumas vezes a negligenciar o significado de uma enunciação em favor da sua cor por exemplo na escola natural russa De fato no próprio Gogol a fala das personagens às vezes perde todo o seu sentido objetivo tornandose objeto decorativo da mesma forma que o vestuário a aparência a mobília etc Mas existe também um outro tipo em que a dominante do discurso é deslocada para o discurso citado esse tornase por isso mais forte e mais ativo que o contexto narrativo que o enquadra Dessa maneira o discurso citado é que começa a dissolver por assim dizer o contexto narrativo Esse último perde a grande objetividade que lhe é normalmente inerente em relação ao discurso citado nessas condições o contexto narrativo começa a ser percebido e mesmo a reconhecerse como subjetivo como fala de outra pessoa Nas obras literárias isso é muitas vezes composicionalmente expresso pelo aparecimento de um narrador que substitui o autor propriamente dito O discurso do narrador é tão individualizado tão colorido e tão desprovido de autoritarismo ideológico como o discurso das personagens A posição do narrador é fluida e na maioria dos casos ele usa a linguagem das personagens representadas na obra Ele não pode opor às suas posições subjetivas um mundo mais autoritário e 155 mais objetivo Essa é a natureza da narração em Dostoievski Andriéi Biéli Remízov Sologub e nos romancistas russos contemporâneos6 Se a ofensiva do contexto narrativo contra o discurso citado traz a marca de um idealismo ou de um coletivismo discretos no que diz respeito à apreensão do discurso de outrem a decomposição do contexto narrativo testemunha uma posição de individualismo relativista na apreensão do discurso Neste último à enunciação citada subjetiva opõese um contexto narrativo que comenta e replica e que se reconhece como igualmente subjetivo Toda a segunda orientação caracterizase por um desenvolvi mento notável dos modelos mistos de transmissão do discurso o discurso indireto sem sujeito aparente e particularmente o discur so indireto livre que é a forma última de enfraquecimento das fronteiras do discurso citado Ainda entre as variantes do dis curso direto e indireto predominam aquelas que possuem maior flexibilidade e são mais permeáveis às tendências do contexto por Dolinin I 1923 p 239241 a semelhança entre a linguagem do narrador e a linguagem do herói já tinha sido notada por Bielínski B M Engelhardt observa muito corretamente que não se encontra nenhuma descrição por assim dizer objetiva do mundo exterior em Dostoievski Devido a esse fato gerouse na obra de arte literária uma multiestratificação da realidade que levou a uma dissolução típica do ser no caso dos sucessores de Dostoievski Engelhardt observa essa dissolução do ser no Miélki bies O Diabinho de Sologub e no Peterburg de A Biéli Ver B M Engelhardt Ideologuítcheski roman Dostoievskovo O Romance Ideológico de Dostoievski Dostoievski ed por Dolinin II 1925 p 94 Eis como Bally define o estilo de Zola Personne plus 6 Há uma literatura bastante vasta sobre o papel do narrador na epopéia A obra básica até o presente é a de K Friedmann Die Rolle des Erzählers in der Epek 1910 Na Rússia foram os formalistas que despertaram o interesse pelo problema do narrador V V Vinogradov define o dis curso do narrador em Gógol como ziguezagueando do autor para as personagens cf Gógol i naturálnaia chkola Gógol e a Escola Natural De acordo com Vinogradov o estilo do narrador de Dostoievski em Dvóinik O Duplo ocupa uma posição semelhante em relação ao estilo do herói Goliádkin Ver Stil peterbúrgskoi poemi Dvóinik O Estilo do Poema de Petersburgo O Duplo Dostoievski editado 156 que Zola na usé et abusé du procédé qui consiste à faire passer tous les événements par le cerveau de ses personnages à ne décrire les paysages que par leurs yeux à nénoncer des idées personelles que par leur bouche Dans ses derniers romans ce nest plus une manière cest un tic cest une obsession Dans Rome pas un coin de la ville éternelle pas une scène quil ne voie par les yeux de son abbé pas une idée sur la religion quil ne formule par son intermédiaire apud E Lorck Die Erlebte Rede p 64 Ninguém como Zola usou e abusou do procedimento que consiste em fazer passar todos os acontecimentos pela cabeça de suas personagens em não descrever as paisagens a não ser pelos seus olhos em só anunciar as idéias pessoais pela sua boca Nos seus últimos romances não se trata mais de uma maneira é um tique é uma obsessão Em Roma não há um canto da cidade eterna uma cena que ele não veja pelos olhos do seu abade uma idéia sobre a religião que não seja formulada por seu intermediário Um artigo interessante dedicado ao problema do narrador é o de Iliá Gruzdiev O priiómakh khudójestvennovo povestvovánia Os Procedimentos da Narração Literária in Zapíski Peredvíjnovo Teatra Notas do Teatro Ambulante Petrogrado 1922 no 40 41 42 Entretanto nenhum desses trabalhos aborda o problema da transmissão do discurso da perspectiva da lingüística narrativo por exemplo o discurso direto disperso as formas de discurso indireto analíticas da textura do discurso etc O exame de todas essas tendências da apreensão ativa do discurso citado deve levar em conta todas as particularidades dos fenômenos lingüísticos em estudo O fim que o contexto narrativo procura alcançar é particularmente importante A esse respeito o discurso literário transmite com muito mais sutileza que os outros todas as transformações na inteorientação sócioverbal O discurso retórico diferentemente do discurso literário pela própria natureza da sua orientação não é tão livre na sua maneira de tratar as palavras de outrem Ele tem de forma inerente um sentimento agudo dos direitos de propriedade da palavra e uma preocupação exagerada com a autenticidade A linguagem judicial intrinsecamente assume uma discrepância nítida entre o subjetivismo verbal das partes num processo e a objetividade do julgamento A retórica política é análoga É importante determinar o peso específico dos discursos retórico judicial ou político na consciência lingüística de um dado grupo social numa determinada época Além disso é importante levar sempre em conta a posição que um discurso a ser citado ocupa na hierarquia social de valores Quanto mais forte for o sentimento de eminência hierárquica na enunciação de outrem mais claramente definidas serão as suas fronteiras e menos acessível será ela à penetração por tendências exteriores de réplica e comentário Assim por exemplo no interior do quadro do neoclassicismo nos gêneros 157 menores observamse desvios consideráveis do estilo linear racionalista e dogmático de transmitir a palavra de outrem É sintomático que o discurso indireto livre tenha atingido o seu primeiro desenvolvimento importante precisamente aí nas fábulas e contos de La Fontaine Para resumir o que acabamos de dizer sobre as tendências possíveis da interrelação dinâmica do discurso citado e do contexto narrativo podemos propor a seguinte seqüência cronológica 1 Dogmatismo autoritário caracterizado pelo estilo linear impessoal e monumental de transmitir a fala de outrem na Idade Média 2 Dogmatismo racionalista com seu estilo linear ainda mais pronunciado nos séculos XVII e XVIII 3 Individualismo realista e crítico com seu estilo pictórico e sua tendência para infiltrar o discurso citado com as réplicas e os comentários do autor fim do século XVIII e começo do XIX e finalmente 4 Individualismo relativista com a sua diluição do contexto narrativo época contemporânea A língua existe não por si mesma mas somente em conjunção com a estrutura individual de uma enunciação concreta É apenas através da enunciação que a língua toma contato com a comunicação imbui se do seu poder vital e tornase uma realidade As condições da comunicação verbal suas formas e seus métodos de diferenciação são determinados pelas condições sociais e econômicas da época As condições mutáveis da comunicação sócioverbal precisamente são determinantes para as mudanças de formas que observamos no que concerne à transmissão do discurso de outrem Além disso aventuramonos mesmo a dizer que nas formas pelas quais a língua registra as impressões do discurso de outrem e da personalidade do locutor os tipos de comunicação sócioideológica em transformação no curso da história manifestamse com um relevo especial 158 CAPÍTULO 10 DISCURSO INDIRETO DISCURSO DIRETO E SUAS VARIANTES Estabelecemos as tendências fundamentais da dinâmica da orientação recíproca do discurso citado e do discurso narrativo Essa dinâmica encontra sua expressão lingüística concreta nos esquemas de transmissão do discurso de outrem e nas variantes dos esquemas de base que constituem de alguma forma os indicadores da relação de força que se estabelece entre o contexto narrativo e o discurso citado num determinado momento do desenvolvimento da língua Vamos agora fazer uma breve caracterização dos esquemas e de suas principais variantes do ponto de vista das tendências que indicamos Antes de mais nada é preciso dizer algumas palavras acerca da relação entre as variantes e o esquema de base Podese comparála à relação entre a realidade viva do ritmo e a abstração que constitui a métrica O esquema só se realiza sob a forma de uma variante específica É nas variantes que se acumulam as mudanças no curso dos séculos e dos decênios e que se estabilizam os novos hábitos da orientação ativa em relação ao discurso de outrem os quais se fixam em seguida sob a forma de representações lingüísticas duráveis nos esquemas sintáticos As variantes se encontram na fronteira da gramática e da estilística Algumas vezes pode haver controvérsia quanto a saber se uma forma de transmissão do discurso de outrem constitui um esquema de base ou uma variante se se trata de uma questão de gramática ou de estilística Houve por exemplo uma controvérsia dessa ordem a respeito do discurso indireto livre em francês e em alemão entre Bally por um lado e Kalepky e Lorck por outro Bally recusavase a reconhecer no discurso indireto livre um legítimo esquema sintático e viao como uma simples variante estilís tica Do nosso ponto de vista é impossível estabelecer uma fron teira estrita entre a gramática e a estilística entre o esquema gramatical 159 e sua variante estilística Essa fronteira é instável na própria vida da língua onde algumas formas se encontram num processo de gramaticalização enquanto outras estão em vias de desgramaticalização e essas formas ambíguas esses casos limítrofes é que apresentam maior interesse para o lingüista é justamente neles que se podem captar as tendências da evolução da língua1 Limitaremos nossa caracterização dos esquemas dos discursos direto e indireto à língua literária russa Mesmo assim não tentaremos enumerar todas as suas variantes possíveis Interessanos exclusivamente o aspecto metodológico da questão Os esquemas sintáticos de transmissão do discurso de outrem são como se sabe muito pouco desenvolvidos na língua russa Além do discurso indireto livre que é desprovido de marcas sintáticas claras como ocorre também em alemão há dois esquemas o discurso direto e o discurso indireto Mas não existem entre esses dois esquemas diferenças notáveis como acontece em outras línguas As marcas do discurso indireto são fracas e durante a conversa podem ser facilmente confundidas com as do discurso direto2 1 Ouvese freqüentemente criticar Vossler e os vosslerianos porque eles se ocupam mais de estilística do que de lingüística propriamente dita Na realidade a escola de Vossler se interessa por problemas que estão nos limites das duas disciplinas porque compreendeu a sua importância metodológica e heurística e nós vemos nisso razão para admirála Infelizmente os vosslerianos como sabemos colocam em primeiro plano os fatores subjetivos psicológicos e os dados estilísticos individuais quando tentam explicar esses fenômenos 2 Em muitas outras línguas o discurso indireto se distingue claramente do discurso direto pela sintaxe pelo emprego dos tempos dos modos das conjunções dos anafóricos etc de tal forma que ele constitui um esquema complexo de transmissão indireta do discurso Em russo entretanto mesmo aquelas poucas marcas distintivas que mencionamos há pouco freqüentemente perdem seu efeito de modo que o discurso indireto se confunde com o direto Óssip por exemplo no Revisor O Inspetor Geral de Gógol diz O albergueiro disse que eu não sirvo de comer enquanto você não tiver pagado sua 160 A ausência de consecutio temporum e a não utilização do subjuntivo priva o discurso indireto em russo de identidade própria e não cria um terreno favorável para o desenvolvimento amplo de variantes importantes e interessantes do nosso ponto de vista Na verdade somos obrigados a afirmar a predominância absoluta do discurso direto em russo Não houve na história da língua russa nenhum período cartesiano racionalista durante o qual o contexto narrativo racional seguro de si mesmo e objetivo analisasse e decompusesse o conteúdo objetivo do discurso de outrem e criasse assim variantes complexas e interessantes do discurso indireto Todas essas particularidades da língua russa criam uma situa ção extremamente favorável a um estilo pictórico de transmissão do discurso de outrem embora digase de passagem bastante frouxo e flácido isto é sem a percepção de limites e oposições a ultra passar que se sente em outras línguas O que domina é um modo de interação e de interpenetração extremamente fácil do discurso narrativo e do discurso citado Isso está relacionado com o papel pouco significativo que a retórica desempenhou na história da língua literária russa marcada por um estilo linear de transmissão das palavras de outrem comportando entoações pouco sutis e claramente unívocas Vamos expor inicialmente as características do discurso indireto que constitui o esquema menos elaborado na língua russa Começaremos por uma pequena crítica a A M Pechkovski Depois de observar que as nossas formas de discurso indireto são pouco elaboradas ele faz a seguinte declaração que nos parece um pouco deslocada Para convencerse de que o discurso indireto é estranho à língua russa basta apenas tentar transpor qualquer trecho em discurso direto mesmo uma simples afirmação para discurso indireto Por exemplo O Asno abaixando sua cabeça até o chão diz ao Rouxinol que nada mal que sem brincadeira é bonito ouvilo cantar mas que pena que ele não conhece o Galo deles que ele poderia dar uma boa melhorada no seu canto se tomasse algumas lições com ele3 conta Exemplo tirado de Pechkovski A Sintaxe Russa 3a ed p 553 com itálicos de Pechkovski 3 Ibid p 554 O trecho de discurso direto que Pechkovski usa para o seu exemplo é tirado da conhecida fábula de Ivan 161 Se Pechkovski tivesse feito a mesma experiência de transpor mecanicamente o discurso direto para indireto em francês ob servando apenas as regras gramaticais teria chegado exatamente às mesmas conclusões Se por exemplo ele tivesse tentado passar para formas de discurso indireto o discurso direto ou mesmo indi reto livre que La Fontaine usa em suas fábulas a última forma é muito usada por ele os resultados obtidos teriam sido tão gramaticalmente corretos e estilisticamente inadequados como no exemplo russo E isso teria acontecido apesar do fato de ser o discurso indireto livre muito próximo do discurso indireto em francês as mesmas mudanças de tempo e de pessoa ocorrem em ambos Toda uma série de palavras de expressões de maneiras de dizer que convêm perfeitamente ao discurso direto e indireto livre parecerão completamente estranhos se forem transpostos para o discurso indireto Pechkovski comete um erro típico de um gramático A transposição palavra por palavra por procedimentos puramente gramaticais de um esquema para outro sem fazer as modificações estilísticas correspondentes é nada mais que um método escolar de exercícios gramaticais pedagogicamente mau e inadmissível Esse tipo de aplicação dos esquemas não tem nada a ver com a sua utilização viva na língua Os esquemas exprimem uma tendência à apreensão ativa do discurso de outrem Cada esquema recria à sua maneira a enunciação dandolhe assim uma orientação particular especí fica Se a língua num determinado estágio do seu desenvol vimento percebe a enunciação de outrem como um todo com pacto inanalisável imutável e impenetrável ela não compor tará nenhum outro esquema além do esquema primitivo e inerte do discurso direto o estilo monumental É exatamente Krylov O Asno e o Rouxinol Na fábula o Asno diz ao Rouxinol depois que este demonstrou a sua arte Nada mal Sem brincadeira é bonito ouvilo cantar Mas que pena que você não conhece o nosso Galo Você poderia dar uma boa melhorada no seu canto se tomasse algumas lições com ele Pechkovski faz uma transposição puramente mecânica desse trecho para o discurso indireto O resultado é estranho na verdade impossível A tradução procura dar uma idéia desse resultado NdTam 162 essa concepção da imutabilidade da enunciação de outrem e abso luta literalidade da sua transmissão que Pechkovski adota na sua experiência mas ao mesmo tempo ele procura aplicar o esquema do discurso indireto O resultado obtido não prova em absoluto que o discurso indireto é estranho à língua russa Ao contrário prova que apesar do pequeno grau de desenvol vimento do esquema indireto em russo ele é suficien temente caracterizado para impedir a transposição literal de um enunciado qualquer em discurso livre4 A singular experiência efetuada por Pechkovski evidencia sua total ignorância da significação lingüística própria do discurso indireto Essa significação reside na transmissão analítica do discurso de outrem O emprego do discurso indireto ou de uma de suas variantes implica uma análise da enunciação simultânea ao ato de transposição e inseparável dele Variam apenas o grau e a orientação da análise A tendência analítica do discurso indireto manifestase principalmente pelo fato de que os elementos emocionais e afetivos do discurso não são literalmente transpostos ao discurso indireto na medida em que não são expressos no conteúdo mas nas formas da enunciação Antes de entrar numa construção indireta eles passam de formas de discurso a conteúdo ou então encontramse transpostos na proposição principal como um comentário do verbum dicendi Por exemplo a enunciação direta Muito bem Que grande realização não pode ser transposta para discurso indireto da seguinte maneira Ele disse que muito bem e que grande realização Ao contrário esperamos ou Ele disse que estava muito bem e que era uma grande realização ou Ele disse entusiasmado que estava bem e que era uma grande realização As abreviações elipses etc possíveis no discurso direto por motivos emocionais e afetivos não são admissíveis no discurso indireto por causa da sua tendência analítica Esses elementos só entram na sua construção sob uma forma completa e elaborada No exemplo de Pechkovski a exclamação do Asno Nada mal não pode ser diretamente integrada no discurso indireto sob a forma Ele diz que nada mal mas apenas como Ele diz que não estava mal ou mesmo Ele diz que o rouxinol não cantava mal Da mesma forma sem brincadeira não pode ser mecanicamente transposto 4 O erro de Pechkovski que analisamos aqui mostra uma vez mais até que ponto é metodologicamente prejudicial divorciar a gramática da estilística 163 para o discurso indireto nem Que pena que você não conhece pode ser transposto como mas que pena que ele não conhece É óbvio que a mesma impossibilidade de uma transposição mecânica do discurso direto para o indireto também se aplica à forma original de qualquer construção ou características de acentuação que o falante usou para expressar suas intenções Assim as peculiaridades de construção e de entoação dos enunciados interrogativos exclamativos ou imperativos não se conservam no discurso indireto aparecendo apenas no conteúdo O discurso indireto ouve de forma diferente o discurso de outrem ele integra ativamente e concretiza na sua transmissão outros elementos e matizes que os outros esquemas deixam de lado Por isso transposição literal palavra por palavra da enun ciação construída segundo um outro esquema só é possível nos casos em que a enunciação direta já se apresenta na origem como uma forma algo analítica isso naturalmente dentro dos limites das possibilidades analíticas do discurso direto A análise é a alma do discurso indireto Se examinarmos de mais perto a experiência de Pechkovski observaremos que a coloração lexical de palavras tais como nada mal e dar uma boa melhorada não são totalmente compatíveis com o espírito analítico que caracteriza o discurso indireto São expressões muito coloridas elas não só transmitem o exato significado do que foi dito mas também sugerem a maneira de falar individual ou tipológica do Asno enquanto personagem Poderíamos preferir substituílos por sinônimos bem ou fazer progressos ou se quiséssemos conserválas na construção indireta iríamos pôlas entre aspas pelo menos Se fôssemos ler o resultado em voz alta leríamos as expressões entre aspas de maneira diferente para dar a entender através da nossa entoação que elas são tomadas diretamente do discurso de outra pessoa e que nós queremos manter distância Mas aqui entramos no cerne do problema isto é na necessidade de distinguir as duas orientações que pode tomar a tendência analítica no discurso indireto e as duas variantes principais correspondentes De fato a análise envolvida numa construção de discurso indireto pode seguir em duas direções ou mais precisamente pode dirigir a atenção para dois objetos fundamentalmente diferentes A enunciação de outrem pode ser apreendida como uma tomada de posição com conteúdo semântico preciso por parte do falante e nesse caso através da construção indireta transpõese de maneira analítica sua composição objetiva exata o que disse o falante Assim no exemplo 164 considerado é possível transmitir exatamente o sentido objetivo da apreciação do canto do Rouxinol pelo Asno Mas podese também apreender e transmitir de forma analítica a enunciação de outrem enquanto expressão que caracteriza não só o objeto do discurso que é de fato menor mas ainda o próprio falante sua maneira de falar individual ou tipológica ou ambas seu estado de espírito expresso não no conteúdo mas nas formas do discurso por exemplo a fala entrecortada a escolha da ordem das palavras a entoação expressiva etc sua capacidade ou incapacidade de exprimirse bem etc Esses dois objetos de análise da transmissão indireta são pro funda e fundamentalmente diferentes Num caso o sentido é decomposto em constituintes semânticos em elementos obje tivos no outro a própria enunciação enquanto tal é analisada em níveis lingüísticoestilísticos A segunda tendência levada ao seu extremo lógico corresponderia a uma análise lingüística técnica do estilo Entretanto simultaneamente com o que poderia parecer uma análise estilística operase também nesse tipo de transmissão indireta uma análise objetiva do discurso de outrem disso resulta portanto uma decomposição analítica do sentido objetivo do mesmo modo que da sua forma de representação verbal Vamos chamar a primeira variante de discurso indireto analisador do conteúdo e a segunda de discurso indireto analisador da expressão A variante analisadora do conteúdo apreende a enunciação de outrem no plano meramente temático e permanece surda e indiferente a tudo que não tenha significação temática Os aspectos da construção verbal formal que têm uma signi ficação temática isto é que são necessários à compreensão da posi ção semântica do falante são transformados de maneira temática no exemplo citado a construção exclamativa e a expressão de entusiasmo podem ser transmitidas pela palavra muito ou então são integrados no contexto narrativo como uma característica formulada pelo autor A variante analisadora do conteúdo abre grandes possibilidades às tendências à réplica e ao comentário no contexto narrativo ao mesmo tempo que conserva uma distância nítida e estrita entre as palavras do narrador e as palavras citadas Graças a isso ela constitui um instrumento perfeito de transmissão do discurso de outrem em estilo linear A tendência a tematizar o discurso de outrem é incontestavelmente inerente a essa variante e assim ela preserva a integridade e a autonomia da enunciação não tanto em termos sintáticos mas em termos semânticos vimos como uma construção expressiva numa enunciação a ser citada pode ser tematizada Esses 165 resultados contudo só são obtidos ao preço de uma certa despersonalização do discurso citado A variante analisadora do conteúdo só pode desenvolverse de maneira razoavelmente ampla e substancial num contexto enunciador suficientemente racional e dogmático no qual de qualquer forma se manifesta um forte interesse pelo conteúdo semântico e onde o autor afirma através de suas próprias palavras com sua própria personalidade uma posição de forte conteúdo semântico Quando isso não ocorre quando ou a própria linguagem do autor é ela mesma cheia de cor e individualizada ou quando a fala é passada diretamente a algum narrador de mesma envergadura essa variante terá apenas uma significação secundária e ocasional como acontece por exemplo em Gógol Dostoievski e muitos outros De uma maneira geral essa variante é pouco desenvolvida em russo Ela é encontrada essencialmente nos contextos epistemoló gicos ou retóricos de natureza científica filosófica política etc nos quais o autor é levado a expor as opiniões de outrem sobre um determinado assunto a opôlas e delimitálas Ela é rara na expressão literária Só adquire uma certa importância naqueles autores que não hesitam em dar às suas palavras uma orientação e um peso semânticos como por exemplo em Turguiéniev e particularmente em Tolstói Mas mesmo aí não encontramos a riqueza e a variedade que essa variante desenvolveu em francês e em alemão Passemos à variante analisadora da expressão Ela integra na construção indireta as palavras e as maneiras de dizer do discurso de outrem que caracterizam a sua configuração subjetiva e estilística enquanto expressão Essas palavras e maneiras de dizer são introduzidas de tal forma que sua especificidade sua subjetividade seu caráter típico são claramente percebidos Na maioria das vezes elas são colocadas abertamente entre aspas Aqui estão quatro exemplos 1 A respeito do morto Grigori declarou fazendo o sinal da cruz que o tipo tinha qualidades mas que era estúpido e arrasado pela doença e pior ainda que ele era um descrente e que tinha sido Fiódor Pávlovitch e seu filho mais velho que lhe tinham ensinado essa descrença Dostoievski Os Irmãos Karamázov Nesse exemplo e nos que seguem é o autor quem grifa NdTfr 166 2 A mesma coisa aconteceu também com os poloneses eles chegaram com uma demonstração de orgulho e independência Afirmaram em alta voz que em primeiro lugar estavam a serviço da Coroa e que o senhor Mitia oferecera 3000 rublos para comprar a honra deles e que eles tinham visto com seus próprios olhos largas somas de dinheiro nas mãos deles Ibid 3 Krassótkin negou orgulhosamente a acusação dando a enten der que seria realmente uma vergonha nos dias que correm brincar de cavalinho com os meninos da sua idade todos com 13 anos mas que ele fizera isso pelos garotos porque ele os amava e não reconhecia a ninguém o direito de contestar os seus sentimentos Ibid 4 Ele encontrou Nastasia Filíppovna num estado próximo da completa loucura dava gritos tremia berrava que Rogójin estava escondido no jardim na sua própria casa que ela acabava de vêlo que ele ia matála cortarlhe a garganta Dostoievski O Idiota Aqui a construção de discurso indireto retém a entoação expressiva da mensagem original As palavras e expressões de outrem integrados no discurso indi reto e percebidos na sua especificidade particularmente quando são postos entre aspas sofrem um estranhamento para usar a linguagem dos formalistas um estranhamento que se dá justamente na direção que convém às necessidades do autor elas adquirem relevo sua coloração se destaca mais claramente mas ao mesmo tempo elas se acomodam aos matizes da atitude do autor sua ironia humor etc Convém distinguir essa variante do discurso indireto dos casos de passagem do discurso indireto ao direto sem modificações se bem que suas funções sejam praticamente idênticas quando o Um exemplo em português de Eça de Queirós Fatigou então Amaro toda uma semana com uma ternura pueril Lembravalhe cada meia hora que era o papá do seu Carlinhos O Crime do Padre Amaro Outro exemplo este de Fialho de Almeida perguntando se estava por lá um rapazote a modos encorpado barba nenhuma uma cicatriz no queixo dum carbúnculo o filho dela O País das Uvas NdT 167 discurso direto continua o indireto a subjetividade do discurso aparece com maior nitidez e no sentido que convém ao autor Por exemplo 1 Trífon Boríssovitch tentou como pôde ser evasivo mas depois de ter sido questionado pelos camponeses acabou confes sando que tinha achado a nota de cem rublos acrescentou somente que ele tinha no mesmo momento devolvido tudo escrupulosamente a Dmitri Fiódorovitch palavra de honra só que vocês vêem o cavalheiro como estava naquele momento completamente bêbado não consegue lembrarse Dostoievski Os Irmãos Karamázov 2 Apesar de todo o respeito devido à memória do seu finado Bárin ele declarou entre outras coisas que este fora negligente com Mitia e que não educava bem as crianças Sem mim o menino teria sido comido vivo pelos piolhos acrescentou ele recordando episódios da infância de Mitia Ibid Tal ocorrência em que o discurso direto é preparado pelo indireto e emerge como que de dentro dele como as esculturas de Rodin em que a figura só parcialmente emerge da pedra é uma das inumeráveis variantes do discurso direto tratado pictoricamente Essa é portanto a natureza da variante analisadora da expressão do discurso indireto Ela cria efeitos pictóricos extremamente originais na transmissão do discurso citado Essa variante supõe um alto grau de individualização da enunciação citada na consciência lingüística e a capacidade de perceber com discriminação as representa ções lingüísticas da enunciação delas extraindo o seu sentido objetivo Isso é incompatível com a apreensão autoritária ou racionalista da enunciação de outrem Enquanto procedi mento estilístico essa variante só pode enraizarse na língua sobre Um exemplo de Eça de Queirós Havia e o pároco leulhe então em confidência uma carta que tinha ao lado Era do cônego que escrevia da Vieira dizendo que a São Joaneira tinha já trinta banhos e queria voltar Eu acrescentava perco quase todas as manhãs três quatro banhos de propósito para os espaçar e dar tempo porque cá a minha mulher já sabe que eu sem os meus cinqüenta não vai Op cit NdT 168 o terreno do individualismo crítico e realista ao passo que a variante analisadora do conteúdo é justamente característica do individua lismo racionalista Na história da língua russa esse último perío do é praticamente inexistente E isso explica a absoluta predomi nância da variante analisadora da expressão sobre a variante analisadora do conteúdo em russo Além disso a ausência de consecutio temporum em russo é muito favorável ao desenvolvimento daquela tendência Vemos assim que as nossas duas variantes embora unidas por uma tendência analítica geral do esquema exprimem contudo abordagens lingüísticas divergentes do discurso de outrem e da personalidade do falante Para a primeira variante a personalidade do falante só existe enquanto ocupa uma posição semântica determinada cognitiva ética moral de forma de vida e fora dessa posição transmitida de maneira estritamente objetiva ela não existe para o transmissor Não há aqui condições para que a individualidade do falante se cristalize numa imagem O oposto é verdadeiro em relação à segunda variante na qual a individualidade do falante é apresentada como maneira subjetiva individual ou tipológica como modo de pensar e falar o que implica ao mesmo tempo um julgamento de valor do autor sobre esse modo Aqui a individualidade do falante se cristaliza ao ponto de formar uma imagem Em russo podese ainda mencionar uma terceira variante bas tante importante da construção indireta Ela é essencialmente utilizada para a transmissão do discurso interior dos pensamentos e sentimentos da personagem Ela trata o discurso de outrem com bastante liberdade abreviao indicando freqüentemente apenas os seus temas e suas dominantes por isso pode ser chamado impressionista A entoação do autor flutua livre e facilmente sobre a sua estrutura fluída Eis um exemplo clássico dessa variante impressionista tirado do Cavaleiro de Bronze de Púchkin Em que pensava ele Que era pobre que precisava tentar conquistar a independência e o respeito pelo esforço que Deus bem podia lhe ter concedido um pouco mais de inteligência e de dinheiro Pois não existem aqueles afortunados preguiçosos estúpidos para quem a vida é uma moleza Que ele estivera em serviço durante dois anos ao todo pensava também que o tempo não estava melhorando que o rio continuava subindo que as pontes sobre o Neva estariam muito provavelmente levantadas e que ele estaria dois ou três dias separado da sua Paracha 169 Observamos por esse exemplo que a variante impressionista do discurso indireto se encontra a meio caminho entre a variante analisadora do conteúdo e a variante analisadora da expressão Em alguns momentos operase uma análise objetiva bem nítida Algumas das palavras e das maneiras de dizer originaramse claramente na mente do herói Eugênio embora não se enfatize a sua especificidade Mas o que se percebe mais é a ironia do autor sua acentuação a atividade empregada para organizar e abreviar o conteúdo a expressar Passemos agora ao esquema do discurso direto que é muito bem elaborado na língua literária russa e possui uma imensa variedade de modificações Desde os blocos maciços inertes indecomponíveis do discurso direto tal como é encontrado nos textos russos antigos até aos procedimentos flexíveis e freqüentemente ambíguos utilizados para inserir o discurso direto no seu contexto na língua contemporânea desenrolase o longo e instrutivo caminho do seu desenvolvimento histórico Mas absternosemos não só de examinar essa caminhada histórica como também de fazer uma descrição sincrônica das variantes efetivas do discurso direto na língua literária Limitarnos emos simplesmente àquelas variantes nas quais se efetua uma troca de entoações nas quais se constata um estágio recíproco entre o discurso narrativo e o discurso citado Além disso não nos interessaremos tanto pelos casos em que o discurso narrativo avança contra a enunciação citada contaminandoa com suas entoações próprias como por aqueles em que ao contrário as palavras citadas espalham se e enxameiam por todo o contexto narrativo tornandoo flexível e ambíguo Aliás não é sempre possível diferenciar os dois casos muitas vezes o contágio revelase justamente recíproco A primeira orientação da interrelação dinâmica caracterizada pela imposição do autor pode ser chamada discurso direto preparado5 5 Não nos ocuparemos aqui dos procedimentos mais primitivos de que dispõe o autor para replicar ao discurso direto e comentá lo a utilização do itálico que equivale a um deslocamento de acento a inserção aqui e ali de observações e conclusões entre parênteses ou mesmo simplesmente o ponto de exclamação de interrogação o sic etc Para atenuar a inércia do discurso direto outro procedimento muito eficaz consiste nas várias 170 O caso do discurso direto que emerge do indireto que já expusemos pertence a essa categoria Uma ocorrência particularmente interessante e de largo uso dessa variante é a emergência do discurso direto de dentro do indireto livre Como a natureza deste último é meio narrativa meio transmissora da pala vra de outrem ele já prepara a percepção do discurso direto Os temas básicos do discurso direto que virá são antecipados pelo contexto e coloridos pelas entoações do autor Dessa maneira as fronteiras da enunciação de outrem são bastante enfraquecidas A descrição do estado de espírito do príncipe Míchkin às beiras de um ataque epiléptico em O Idiota de Dostoievski constitui um exemplo clássico dessa variante Ela cobre na verdade quase todo o quinto capítulo da segunda parte dessa obra encontramse aí também magníficos exemplos de discurso indireto livre Aqui o discurso direto do príncipe só ecoa no seu mundo pessoal pois a narrativa é conduzida pelo autor dentro dos limites do horizonte do príncipe O discurso citado destacase sobre um fundo per ceptivo que pertence metade ao autor e metade ao herói Entretanto fica perfeitamente claro para nós que uma infiltração profunda das entoações do autor no discurso direto é quase sempre acompanhada por um enfraquecimento da objetividade do contexto narrativo Outra modificação na mesma direção pode ser denomi nada discurso direto esvaziado O contexto narrativo aqui é cons truído de tal forma que a caracterização objetiva do herói feita pelo autor lança espessas sombras sobre o seu discurso direto As apreciações e o valor emocional de que sua representação obje tiva está carregada transmitemse às palavras do herói O peso semântico das palavras citadas diminui mas em compensação sua significação caracterizadora se reforça da mesma forma que sua tonalidade ou seu valor típico De maneira semelhante quando reconhecemos uma personagem cômica no palco por seu estilo de maquilagem sua roupa e sua atitude geral já estamos prontos a rir mesmo antes de apreender o sentido de suas palavras É assim que se apresenta na maior parte das vezes o discurso direto em Gógol e nos representantes da chamada escola natural Na sua primeira obra Dostoievski precisamente esforçouse por dar vida a esse discurso direto particularizado possibilidades de colocação do verbo introdutor associado por vezes a observações réplicas e comentários 171 A preparação do discurso citado e a antecipação de seu tema e de seus valores e inflexões na narração pode de tal forma colorir o contexto narrativo com as tonalidades do herói que ele termina por assemelharse ao discurso citado embora conservando as entoações próprias ao autor Conduzir a narrativa exclusiva mente dentro dos limites da ótica do herói o que como vimos Bally reprova em Zola não somente de um ponto de vista espácio temporal mas também do ponto de vista dos valores e entoações cria um tipo extremamente original de pano de fundo perceptivo para as enunciações citadas Dános o direito de falar de uma variante especial o discurso citado antecipado e disseminado oculto no contexto narrativo e aparecendo realmente no discurso direto do herói Essa variante é muito utilizada na prosa contempo rânea particularmente em Andriéi Biéli e nos escritores que sofre ram a sua influência por exemplo no Nicolau Kurbov de Ehrenburg Os exemplos clássicos entretanto devem ser procurados na primeira e segunda fase de Dostoievski na sua última fase essa variante é encontrada com menos freqüência Vamos deternos na análise da sua Skiviérni anekdot Uma História Desagradável Toda a narrativa poderia ser posta entre aspas como se fosse de um narrador embora isso não seja marcado temática ou composicionalmente Mas no interior da narrativa praticamente cada epíteto cada definição ou julgamento de valor poderiam também estar entre aspas como se tivessem saído da consciência de uma ou outra das personagens Eis uma passagem curta tirada do começo da narrativa Naquele tempo numa noite de inverno clara e gelada por volta da meianoite três cavalheiros extremamente respeitáveis estavam sentados num aposento confortável e até mesmo luxuosamente arrumado numa soberba casa de dois andares situada em São Petersburgo e estavam ocupados em uma conversa séria e de alto nível sobre um assunto extremamente interessante Eles estavam sentados à volta de uma mesinha cada um numa soberba poltrona macia e durante as pausas na conversa eles confortavelmente bebericavam champanha Se fizéssemos abstração do notável e complexo jogo de entoações nessa passagem seríamos levados a considerála como muito medíocre e mesmo nula do ponto de vista estilístico De fato nas poucas linhas da descrição encontrase duas vezes e epíteto 172 soberbo duas vezes confortável e os outros epítetos são luxuoso séria alto nível e extremamente interessante Um estilo como esse só poderia merecer uma condenação severa se considerássemos que ele emana seriamente do autor como em Turguiéniev ou Tolstói ou mesmo do narrador mas dele apenas como na narrativa monolítica em primeira pessoa Entretanto é impossível considerar esse trecho dessa forma Cada um desses qualificativos medíocres pálidos vazios de sentido constitui uma arena em que se defrontam e lutam duas entoações dois pontos de vista dois discursos Vamos examinar ainda alguns excertos em que se encontra caracterizado o dono da casa o conselheiro secreto Nikíforov Duas palavras acerca dele começara sua carreira como pequeno funcionário seguira sua rotinazinha tranqüilamente durante quarenta e cinco anos ininterruptos Detestava particularmente a desordem e o entusiasmo considerava a sua desordem a de uma certa mulher como um fato de costumes e pelo fim da sua vida enterrarase completamente num conforto suave e preguiçoso e num isolamento sistemático Sua aparência exterior era extremamente correta e bem cuidada ele parecia mais jovem do que era conservarase bem e prometia viver ainda por muito tempo tinha maneiras de um perfeito cavalheiro Seu emprego era bastante confortável ele era o chefe de alguma coisa e dava a sua assinatura de vez em quando Em uma palavra era considerado um homem decididamente superior Ele tinha uma única paixão ou melhor dizendo um único desejo ardente o de possuir sua própria casa uma casa de nobre não de burguês Seu desejo finalmente se realizara Vemos agora claramente de onde vêm esses epítetos medíocres e sem originalidade mas que têm e quanto classe na passa gem citada Eles saíram da mente do general evocam o seu peque no conforto sua pequena casa particular sua situação seu grau enfim a consciência do conselheiro secreto Nikíforov um ho mem bemsucedido Eles poderiam ter sido postos entre aspas como o discurso citado de Nikíforov Mas não pertencem só a ele Afinal de contas a história está sendo contada por um narrador que parecia ser solidário com os generais que lhes faz reverências adota a atitude deles em todas as coisas fala a sua língua mas ao mesmo tempo provocativamente excedese expondo todas as suas enunciações reais e potenciais à ironia e desprezo do autor Por cada um desses epítetos banais o autor através do seu narrador ironiza o 173 seu herói e tornao ridículo É isso que cria o complexo jogo de entoações na passagem citada um jogo de entoações que a leitura em voz alta dificilmente permite reproduzir A seqüência da narrativa é inteiramente construída em função da perspectiva da outra personagem principal Pralinski Ela é toda semeada de epítetos de apreciações dessa personagem que constituem o seu discurso oculto e é sobre esse fundo impregnado da ironia do autor que se destaca o seu discurso direto efetivo entre aspas discurso tanto exterior como interior Assim praticamente cada palavra dessa narrativa pertence simultaneamente do ponto de vista da sua expressividade da sua tonalidade emocional do seu relevo na frase a dois contextos que se entrecruzam a dois discursos o discurso do autornarrador irônico gozador e o da personagem que não tem nada de irônico É essa simultânea participação de dois discursos diferentemente orientados na sua expressão que explica a particularidade das construções de frases as rupturas de sintaxe e a particularidade do estilo Nos limites de um único desses discursos a frase seria construída de outra maneira e outro seria o estilo Estamos em presença de um exemplo típico de um fenômeno lingüístico raramente estudado as interferências de discurso Em russo esse fenômeno da interferência de discurso se realiza parcialmente no quadro da variante analisadora da expressão do discurso indireto nos casos relativamente raros em que o discurso indireto conserva não apenas palavras e expressões isoladas mas também a estrutura expressiva da enunciação citada Era esse o caso no nosso quarto exemplo em que a construção exclamativa da enunciação direta passou para o discurso indireto embora numa forma enfraquecida Resulta disso uma certa discordância entre a entoação calmamente narrativa conforme às leis de transmissão analítica do autor e a entoação histérica excitada da heroína às beiras da loucura Daí o caráter deformado da configuração sintática dessa frase que serve a dois senhores pertencendo ao mesmo tempo a dois discursos O discurso indireto entretanto não fornece as Um exemplo em português Passeia às vezes pelas ruas centrais do Porto ao cair da tarde uma estranha figura A bem dizer duas estranhas figuras Porque menina Olímpia nunca deixou de ter criada aliás sempre a mesma e a sua criada a acompanha nessas lentas digressões Lentas Não só lentas lentas e solenes majestosas sistematizadas rituais quer pelo ar de menina Olímpia quando passeia quer pela ordem a que submete esses passeios José Régio Menina Olímpia e a Sua Criada Belarmina in História de Mulheres NdT 174 condições para a constituição de nada que se assemelhe a uma expressão estilística distinta e duradoura desse fenômeno de interferência de discurso O discurso indireto livre constitui o caso mais importante e sintaticamente mais bem fixado pelo menos em francês de convergência interferente de dois discursos com diversa orientação do ponto de vista da entoação Dada a sua excepcional importância vamos consagrarlhe todo o próximo capítulo Isso nos dará a oportunidade de examinar o estado dessa questão na lingüística romântica e germânica A controvérsia corrente sobre o discurso indireto livre as opiniões enunciadas a seu respeito particularmente na escola de Vossler apresentam um grande interesse metodológico e devem portanto ser submetidas à nossa análise crítica Ainda dentro dos objetivos do presente capítulo vamos examinar alguns fatos aparentados em russo ao discurso indireto livre e que provavelmente podem ter servido de base para o seu surgimento e sua formação Nós nos interessamos até o momento apenas pelas variantes com duplo sentido com duas faces do discurso direto tal como é utilizado na literatura e por isso é que não tocamos numa das suas variantes lineares mais importantes o discurso direto retórico Essa variante de valor persuasivo com suas diversas variações tem grande significação sociológica Não podemos demorarnos nessas formas mas vamos dar atenção a algumas manifestações associadas com a retórica Há nas relações sociais aquilo que é chamado a pergunta retórica ou a exclamação retórica Alguns casos desse fenômeno são especialmente interessantes por causa do problema da sua locali zação contextual Eles situamse de alguma forma na própria fronteira do discurso narrativo e do discurso citado usual mente discurso interior e entram muitas vezes diretamente em um ou outro discurso Assim podem ser interpretados como uma pergunta ou exclamação da parte do autor mas também ao mesmo tempo como pergunta ou exclamação da parte da personagem dirigida a si mesma Eis um exemplo de pergunta Mas quem então à luz da lua em meio a um silêncio profundo caminha com passos furtivos O Russo bruscamente percebeu Diante dos seus olhos fazendolhe uma saudação terna e muda está uma jovem circassiana Ele olhaa em silêncio e pensa É um sonho 175 ilusório o jogo mentiroso dos meus sentidos fatigados Púchkin O Prisioneiro do Cáucaso As últimas palavras interiores do herói respondem de alguma forma à pergunta retórica do autor e esta última pode ser analisada como pergunta do herói no seu próprio discurso interior Eis um exemplo de exclamação Tudo acabou disse o som terrível a natureza diante dele revelou se Adeus liberdade sagrada Ele é um escravo Ibid Uma ocorrência particularmente freqüente em prosa é o caso em que uma pergunta como O que fazer introduz as deliberações interiores do herói ou a narrativa de suas ações constituindo essa questão ao mesmo tempo uma pergunta do autor e a do herói que se encontra em uma situação difícil Entretanto nesse tipo de pergunta e de exclamação é a atitude ativa do autor que predomina é por isso que elas não são colocadas entre aspas O autor em pessoa fica aqui na frente da cena substitui o seu herói servindolhe de portavoz Eis um exemplo Apoiandose sobre suas lanças os cossacos observam o curso sombrio do rio enquanto ocultos pelo nevoeiro um bandido e sua arma passam flutuando O que pensam vocês cossacos Recordam batalhas de anos passados Adeus livres aldeias fronteiriças casa paterna tranqüilo Don guerra e jovens bonitas O inimigo oculto alcançou nossas margens a flecha deixa o cartaz assobia e o cossaco tomba ensagüentado da barricada Ibid Aqui o autor se apresenta no lugar do seu herói diz em seu lugar o que ele poderia ou deveria dizer o que convém dizer Púchkin diz adeus à pátria pelo cossaco o que o cossaco não pode fazer naturalmente Esse tomar a palavra em nome de outro já está muito próximo do discurso indireto livre Vamos denominar esse caso discurso direto substituído Naturalmente uma tal substituição supõe um paralelismo de entoações correndo na mesma direção a entoação do discurso do autor e o discurso substituído do herói o que ele poderia ou deveria pronunciar e do qual o autor se encarrega por isso não há nenhuma interferência nesse caso Quando há solidariedade total entre autor e herói nos limites de um contexto retoricamente construído no que concerne às apreciações e entoações a retórica do autor e a do herói podem eventualmente sobreporse uma à outra suas vozes então fundemse e criamse 176 longos períodos que pertencem simultaneamente a narrativa do autor e ao discurso interior por vezes mesmo exterior do herói Resulta disso um fenômeno que não se pode praticamente mais distinguir do discurso indireto livre Nele só falta a interferência Foi sobre a base da retórica byroniana do jovem Púchkin que se constituiu pela primeira vez ao que parece o discurso indireto livre Em O Prisioneiro do Cáucaso o autor é completamente solidário de seu herói nas suas apreciações e entoações A narrativa é construída na tonalidade do herói o discurso do herói na tonalidade do autor Encontramos o seguinte caso por exemplo Lá embaixo alinhamse os cimos idênticos das colinas entre elas um caminho isolado perdese ao longe sinistro O jovem peito do prisioneiro estava agitado por pensamentos opressivos O caminho longínquo leva à Rússia onde ele passou sua ardente juventude tão orgulhosa e sem cuidados onde ele conheceu as primeiras alegrias onde encontrou tanta beleza onde passara tanto sofrimento onde destruíra toda esperança toda alegria e desejo por sua vida agitada Aprendeu a conhecer as pessoas e o mundo conheceu o preço de uma vida incerta No coração dos homens encontrou a traição nas aspirações amorosas um sonho insensato Liberdade Apenas por ti ele prosseguia na sua busca neste mundo sublunar Tudo passou ele não vê nada no mundo que possa trazerlhe a esperança E vós últimos sonhos vós também lhe escapais Ele é um escravo Ibid Aqui são claramente os pensamentos opressivos do próprio prisioneiro que são expressos Tratase do seu discurso embora formalmente dito pelo autor Se substituirmos o pronome pessoal ele por eu e mudarmos as formas verbais correspondentes não resultará nenhuma incoerência ou dissonância estilística ou outra qualquer É sintomático que esse discurso contenha após trofes na segunda pessoa à liberdade aos sonhos que acentuam ainda mais a identificação do autor com o herói Do ponto de vista estilístico e semântico esse discurso do herói não se distingue em nada do discurso retórico direto que ele pronuncia na segunda parte do poema Esqueceme eu não sou digno do teu amor dos teus anseios Sem embriaguez sem desejos eu definho vítima das paixões Por que não apareceste mais cedo aos meus olhos quando eu cria na esperança e nos sonhos embriagadores Muito tarde Estou morto para a felicidade as miragens da esperança já se dissiparam Ibid 177 Todos os autores que escreveram sobre o discurso indireto livre exceto talvez unicamente Bally reconheceriam no nosso exemplo um espécimen genuíno Nós contudo inclinamonos a considerar que se trata de um discurso por substituição É verdade que daí ao discurso indireto livre só há um passo E Puchkin deu esse passo quando se separou de seus heróis opondolhes um contexto narrativo mais objetivo marcado por suas próprias apreciações e entoações No exemplo que utilizamos falta a interferência entre o discurso narrativo e o discurso citado e conseqüentemente os índices gramaticais e sintáticos que caracterizam o discurso indireto livre para distinguilo do contexto narrativo circundante Com efeito nesse caso preciso identificamos o discurso do prisioneiro graças a índices puramente semânticos Não percebemos aqui a convergência de dois discursos diferentemente orientados não percebemos a flexibilidade do discurso citado que resiste por trás da transmissão pelo autor Para mostrar afinal o que é realmente o discurso indireto livre forneceremos um notável exemplo tirado de Poltava de Púchkin Terminaremos com ele este capítulo Mas ele Kotchubei escondeu no fundo do seu coração uma cólera temerária Na sua dor privado de forças seus pensamentos voltamse agora para o túmulo Não quer mal a Mazepa sua filha é a única culpa Mas a ela também perdoa que ela responda diante de Deus o ter esquecido o céu e a lei o ter lançado a vergonha sobre a família Entretanto com seu olhar de água ele procura no círculo dos seus familiares companheiros audazes inquebrantáveis incorruptíveis Transcrevemos a seguir uma citação que Mattoso Câmara Jr usa para exemplificar o emprego do discurso indireto livre em Machado de Assis Minha mãe foi achálo à beira do poço e intimoulhe que vivesse Que maluquice era aquela de parecer que ia ficar desgraçado por causa de uma gratificação menos e perder um emprego interino Não senhor devia ser homem pai de família imitar a mulher e a filha D Casmurro p 48 apud Mattoso Câmara Jr O Estilo Indireto Livre em Machado de Assis in Miscelânea de Estudos em Honra de Antenor Nascentes Rio 1941 p 22 Os grifos são de Mattoso NdT 178 CAPÍTULO 11 DISCURSO INDIRETO LIVRE EM FRANCÊS ALEMÃO E RUSSO Diferentes autores propuseram diferentes termos para designar o fenômeno do discurso indireto livre De fato cada um daqueles que escreveram sobre esse assunto propuseram seu próprio termo Nós temos usado e continuaremos a fazêlo o termo de Gertraud Lerch Uneigentliche direkte Rede como o mais neutro de todos os termos propostos e o que implica o mínimo de teorização Na sua aplicação ao russo e ao alemão esse termo é irrepreensível É apenas em francês que o seu uso pode levantar dúvidas1 Na verdade o termo alemão usado por G Lerch conservase mais fielmente na tradução norteamericana que usa quasi direct discourse do que no discurso indireto livre que a tradução francesa adota e que nós também temos empregado A nossa escolha devese ao fato de termos preferido manter a expressão que já se firmou na literatura especializada em português em vez de introduzir uma nova Vejase por exemplo Mattoso Câmara Jr O Discurso Indireto Livre em Machado de Assis Op cit p 1930 NdT 1 Eis aqui alguns exemplos de discurso indireto livre em francês 1 Il protesta Son père la haïssait Em discurso direto seria Il protesta et sécria Mon père te hait Em discurso indireto Il protesta et sécria que son père la haïssait Em discurso indireto livre Il protesta Son père sécriattil la haïssait Exemplo de Balzac citado por G Lerch 179 A primeira menção desse fenômeno como um forma espe cial de citação do discurso ao lado do discurso direto e indireto devese a Tobler em 1887 Zeitschrift für Romanische Philologie XI 437 Tobler definiu o discurso indireto livre como uma peculiar mistura de discurso direto e indireto eigentümliche Mischung direkter und indirekter Rede Essa forma mista segundo Tobler deriva o seu tom e a ordem das palavras do discurso direto e os tempos verbais e pessoas do discurso indireto Como uma mera descrição essa definição é aceitável De fato do ponto de vista superficial da descrição comparativa de propriedades Tobler indicou corretamente as semelhanças e diferenças entre a forma em questão e os discursos direto e indireto Mas a palavra mistura parecenos totalmente inaceitável aqui uma vez que implica uma explicação de tipo genético formado de uma mistura de o que dificilmente pode ser provado Mesmo do ponto de vista estritamente descritivo o termo é inexato já que não nos encontramos diante de uma simples mistura mecânica da soma aritmética de duas formas mas antes de uma tendência completamente nova positiva na apreensão ativa da enunciação de outrem de uma orientação particular da interação do discurso narrativo e do discurso citado Tobler permanece insensível a essa dinâmica e registra apenas os índices abstratos que aparecem nos esquemas Essa é portanto a definição de Tobler Mas como explica ele a aparição dessa forma O falante contando fatos passados introduz a enunciação de um terceiro sob uma forma independente da narrativa isto é na forma que ela teve no passado Fazendo isso o falante transforma o presente da enunciação em imperfeito para mostrar que a 2 Tout le jour il avait loeil au guet et la nuit si quelque chat faisait du bruit le chat prenait largent La Fontaine 3 En vain il le colonel parla de la sauvagerie du pays et de la difficulté pour une femme dy voyager elle miss Lydia ne craignait rien elle aimait pardessus tout à voyager à cheval elle se faisait une fête de coucher au bivac elle menaçait daller en Asie Mineure Bref elle avait réponse à tout car jamais Anglaise navait été en Corse donc elle devait y aller P Mérimée Colomba 180 enunciação é contemporânea dos acontecimentos relatados Depois ele realiza outras transformações das formas pessoais do verbo dos pronomes para que não se pense que se trata da enunciação do próprio narrador 4 Resté seul dans lembrasure de la fenêtre le cardinal sy tint immobile un instant encore Et ses bras frémissants se tendirent en un geste dimploration O Dieu puisque ce médecin sen allait ainsi heureux de sauver lembarras de son impuissance ô Dieu que ne faisiezvous un miracle pour montrer léclat de votre pouvoir sans bornes Un miracle un miracle Il le demandait du fond de sons âme de croyant Zola Rome Os exemplos 3 e 4 são citados e discutidos por Kalepky e Lorck Essa explicação de Tobler fundase sobre um esquema incorreto mas muito difundido na velha escola lingüística isto é se o falante tivesse consciente e premeditadamente planejado introduzir a nova forma quais teriam sido o seu raciocínio e a sua motivação Mas mesmo admitindo que esse esquema fosse aceitável as motivações do falante de Tobler não são nem muito convincentes nem muito claras se ele quer conservar à enunciação a autonomia que ela teve no passado não seria melhor simplesmente transmitila sob a forma de discurso direto Não haveria então nenhuma dúvida de que a enunciação se reporta ao passado e pertence ao herói não ao narrador ou ainda se se escolhe o imperfeito e a terceira pessoa não seria mais simples utilizar uma vez a forma do discurso indireto O problema é que o que é básico na nossa forma a interrelação completamente nova entre o discurso narrativo e o discurso citado é exatamente o que os motivos de Tobler não conseguem explicar Para ele tratase simplesmente de duas formas velhas das quais ele quer obter de qualquer forma uma nova Na nossa opinião o que pode na melhor das hipóteses ser explicado por esse tipo de argumento sobre as motivações do falante é meramente o uso em uma ou outra concreta ocorrência de uma forma já existente mas em nenhuma circunstância poderá explicar a criação de uma nova forma lingüística A expressão plena e íntegra das motivações e intenções do falante é limitada de um lado pelas possibilidades gramaticais efetivas e de outro pelas condições da comunicação sócioverbal predominantes num determinado grupo Essas possibilidades e condições são dadas e delimitam o horizonte lingüístico do falante Ele não poderia por si só alargálo 181 Não importa quais sejam as intenções que o falante pre tenda transmitir quais os erros que ele cometa como ele analise as formas mistureas ou combineas ele nunca criará um novo esquema lingüístico nem uma nova tendência na comunicação sócioverbal As suas intenções subjetivas terão um caráter criativo apenas quando houver nelas alguma coisa que coincida com tendências na comunicação sócioverbal dos falantes em processo de formação de evolução e essas tendências dependem de fatores sócio econômicos Para que se constituísse essa forma de percepção completamente nova do discurso de outrem que encontrou sua expressão no discurso indireto livre foi preciso que se produzisse alguma mudança alguma comoção no interior as relações sócio verbais e da orientação recíproca das enunciações Uma vez constituída essa forma começa a integrar o círculo das possibilidades lingüísticas dentro de cujos limites apenas podem determinarse motivarse e realizarse de maneira produtiva as intenções verbais individuais dos falantes Passemos agora a Kalepky que igualmente estudou o discurso indireto livre Zeitschrift für Romanische Philologie 1899 p 491513 Ele reconheceu o discurso indireto livre como uma forma completamente autônoma de citação do discurso de outrem e definiuo como um discurso oculto ou velado verschleierte Rede A significação lingüística dessa forma reside no fato de que é preciso adivinhar quem tem a palavra A análise de Kalepky constitui incontestavelmente um grande passo à frente no estudo do nosso problema Em lugar da combinação mecanicista das propriedades abstratas de dois esquemas sintáticos ele esforçase por apreender uma nova orientação estilística positiva dessa forma Kalepky também interpretou corretamente a dualidade do discurso indireto livre Entretanto definiua impropriamente É impossível estar de acordo com ele quando diz que nos encon tramos em presença de um discurso mascarado e que apenas o fato de ter que identificar o falante é que dá interesse a esse recurso gramatical É evidente que ninguém fundamenta o ato de compreensão em reflexões gramaticais abstratas Fica imediatamente claro a qualquer um que de acordo com o sentido é o herói que fala As dificuldades só são levantadas pelo gramático Além disso nossa forma não oferece de modo algum um dilema do tipo ou ou ao contrário o que faz dela uma forma específica é o fato de o herói e o autor exprimiremse conjuntamente de nos limites de uma mesma e única construção ouviremse ressoar as entoações de 182 duas vozes diferentes Já vimos que as estruturas da língua se prestam igualmente ao fenômeno da camuflagem prolongada do discurso de outrem Vimos que a ação camuflada desse discurso citado encaixado no contexto narrativo está na origem de um fenômeno gramatical e estilístico específico Mas tratase aí de uma outra variante do discurso citado O discurso indireto livre funciona de rosto descoberto embora tenha duas faces como Jano A insuficiência metodológica principal de Kalepky reside no fato de que ele explica o fenômeno lingüístico que nos ocupa nos limites da consciência individual procura suas raízes psíquicas e seus efeitos subjetivoestéticos Retornaremos à crítica dos fundamentos dessa abordagem quando examinarmos as posições dos vosslerianos Lorck E Lerch G Lerch Foi em 1912 que Bally se manifestou sobre essa questão Germanischromanische Monatsschrift IV 549 ss 597 ss Em 1914 em resposta à polêmica levantada por Kalepky ele voltou ao problema em um artigo sobre os seus fundamentos intitulado Figures de Pensée et Formes Linguistiques GrM IV 1914 405 ss 546 ss A substância da posição de Bally resumese no seguinte ele considera o discurso indireto livre como uma variedade nova tardia da forma clássica do discurso indireto Essa variante se formou segundo ele da seguinte maneira il disait quil était malade il disait il était malade il était malade disaitil2 A queda da conjunção que explicase segundo Bally por uma tendência mais recente própria da língua a preferir as combinações paratáticas das proposições às hipotáticas Mais adiante Bally indica que essa variedade do discurso indi reto que ele chama de style indirect libre não constitui uma forma fixada mas está ao contrário em plena evolução tendendo para a forma do discurso direto que constitui o seu limite extre mo Nos casos mais característicos segundo Bally chega a ser difícil determinar onde termina o style indirect libre e onde começa o discours direct Ele considera ser esse o caso no exemplo tirado de Zola que citamos anteriormente Quando o cardeal se dirige a Deus O Dieu que me faisiezvous un miracle o índice do discurso indireto imperfectum é usado simultanea mente com a segunda pessoa como no discurso direto Em 2 A forma intermediária constitui naturalmente uma ficção lingüística 183 alemão Bally vê uma forma análoga ao style indirect libre no style indirect du second type com elisão da conjunção e ordem das palavras do discurso direto Bally estabelece uma discriminação estrita entre as formas lingüísticas e as figuras de pensamento Esse último termo recobre os meios de expressão que são ilógicos do ponto de vista da língua nos quais a relação normal entre o signo lingüístico e sua significação habitual é anulada As figuras de pensamento não podem ser reconhecidas como fenômenos lingüísticos no sen tido estrito do termo com efeito não existem índices lingüís ticos claros e estáveis servindo à sua expressão Pelo contrário os índices lingüísticos correspondentes têm justamente uma significação no sistema da língua diferente daquela que lhes dão as figuras de pensamento Bally relaciona o discurso indireto livre nas suas formas puras a essas figuras de pensamento Com efeito do ponto de vista estritamente gramatical tratase do discurso do autor conforme o sentido é o do herói Mas esse conforme o sentido não é representado por nenhum signo lingüístico particular Estamos pois diante de um fenômeno extralingüístico Essas são as grandes linhas da teoria de Bally Esse lingüista é na nossa época o representante mais destacado do objetivismo abstrato em lingüística Bally hipostasia e torna vivas as formas da língua extraídas graças a uma abstração das ocorrências concretas de discurso na prática cotidiana na literatura nas ciências etc A finalidade dessa abstração dos lingüistas é como mostramos decifrar e em seguida ensinar as línguas estrangeiras mortas Ora eis que vem Bally e dá vida e movimento e essas abstrações lingüísticas o esquema do discurso indireto põese a tender para o esquema do discurso direto o discurso indireto livre constituise em favor dessa passagem Um papel criador é atribuído à queda da conjunção que e do verbo introdutor do discurso citado na constituição dessa nova forma Na realidade não há no sistema de língua abstrata em que se colocam as formas lingüísticas de Bally movimento vida realização A vida começa apenas no momento em que uma enunciação encontra outra isto é quando começa a interação verbal mesmo que não seja direta de pessoa a pessoa mas mediatizada pela literatura3 3 Sobre as formas imediatas e mediatizadas da interação verbal ver o artigo já citado de Iakubinski 184 Uma forma abstrata não tem orientação a orientação recíproca de duas enunciações só muda à medida que muda a apreensão ativa pela consciência lingüística da personalidade que fala na base da sua autonomia semânticoideológica da sua individua lidade verbal A queda da conjunção que não serve para aproximar duas formas abstratas mas para aproximar duas enunciações em toda a plenitude de sua significação Como se uma comporta se abrisse para permitir às entoações do autor que escoem livremente no discurso citado A ruptura metodológica entre as formas lingüísticas e as figuras de pensamento entre langue e parole também resulta do mesmo objetivismo hipostásico De fato as formas lingüísticas como as compreende Bally existem apenas nas gramáticas e nos dicionários onde a sua existência é totalmente legítima mas na realidade viva da língua elas estão profundamente imersas naquilo que do abstrato ponto de vista gramatical é o elemento irracional das figuras de pensée Bally está igualmente errado quando compara a construção alemã do segundo tipo ao discurso indireto livre francês4 Tratase de um erro muito sintomático Do ponto de vista gramatical abstrato a analogia é incontestável mas do ponto de vista das tendências sócioverbais a aproximação não resiste à crítica Com efeito uma única e mesma tendência sócioverbal determinada pelas mesmas condições sócioeconômicas pode manifestarse em diferentes línguas de acordo com sua estrutura gramatical por índices de superfície completamente diferentes Em cada língua o esquema que se revela mais flexível no aspecto em questão é que se põe a evoluir numa determinada direção É esse o caso do discurso indireto em francês do discurso direto em russo e em alemão Passemos agora ao exame do ponto de vista dos vosslerianos Esses lingüistas deslocam o centro de interesse de sua investigação da gramática à estilística e à psicologia das formas lingüísticas às formas de pensamento Como sabemos eles divergem profundamente de Bally no tocante aos princípios Na sua crítica às posições do lingüista genebrino Lorck servindose da terminologia humboldtiana opõe à concepção de língua de Bally como ergon a sua Os dois termos estão em francês no texto NdTf 4 Kalepky notou esse erro de Bally que o corrigiu parcialmente no seu segundo estudo 185 própria concepção como energeia Assim as premissas básicas do subjetivismo individualista opõemse diretamente ao ponto de vista de Bally Entram em cena agora novos fatores para explicar o discurso indireto livre a efetividade na língua a imaginação a sensibilidade o gosto lingüístico etc5 No mesmo ano 1914 ano da polêmica KalepkyBally Eugen Lerch igualmente tornou público seu ponto de vista sobre o discurso indireto livre GrM VI 470 Ele definiuo como discurso enquanto fato Rede als Tatsache O discurso de outrem é transmitido dessa forma como se seu conteúdo fosse um fato relatado pelo próprio autor Comparando os discursos direto indireto e indireto livre do ponto de vista da realidade expressa no seu conteúdo Lerch chega à conclusão de que o discurso indireto livre é o mais próximo da realidade Ele prefereo também do ponto de vista estilístico ao discurso indireto por causa do efeito vívido e concreto que produz Essa é a definição de Lerch E Lorck publicou em 1921 investigações semelhantes sobre o discurso indireto livre num livro intitulado Die Erlebte Rede O Discurso Vivido O livro é dedicado a Vossler Nele Lorck faz também um histórico da questão Lorck define o discurso indireto livre como discurso vivido Zeite wissen und er würde einen Skandal geben eine laute schreckliche Katastrophe so guter Laune der Ordinarius auch sein mochte Die Sekunden dehnten sich martevoll Buddenbrook Jetzt sagte er Buddenbrook Edgarsagte Doktor Mantelsack Ibid 5 Antes de passar à análise da posição dos vosslerianos daremos três exemplos de discurso indireto livre em alemão 1 Der Konsul ging die Hände auf dem Rücken umher und bewegte nervõs die Schultern Er hatte keine Zeit Er war bei Gott überhäuft Sie sollte sich gedulden und sich gefälligst noch fünfzigmal besinnen Thomas Mann os Buddenbrooks 2 Herrn Gosch ging es schlecht mit einer schönen und grossen Armbewegung wies er die Annahme zurück er könne zu den Glücklichen gehören Das beschwerliche Greisenalter nahte heran es war da wie gesagt seine Grube war geschaufelt Er könnte abends kaum noch sein Glas Grog zum Munde führen ohne die Hälfte zu verschütten so machte der Teufel seinen Arm zittern Da nützte kein Fluchen Der Wille triumphierte nicht mehr Ibid 3 Num kreutzte Doktor Mantelsack im Stehen die Beine und blätterte in sei nem Notizbuch Hanno Buddenbrook sass vornüber gebeugt und range un ter dem Tisch die Hände Das B der Buchstabe B war an der Reihe Gleich würde sein Name ertönen er würde aufstehen und nicht eine 186 Ressalta claramente desses exemplos que o discurso indireto livre é inteiramente análogo em termos gramaticais ao russo 1 O Cônsul as mãos às costas ficou passeando e movendo nervosamente os ombros Ele não tinha tempo Estava assoberbado por Deus Ela devia ter paciência e por favor pensar mais cinqüenta vezes 2 As coisas iam mal para o Senhor Gosch com um belo e largo movimento de braço ele recusou a hipótese de que pudesse pertencer aos felizes A incômoda velhice se aproximava estava ali sua cova como se disse estava aberta À noite ele mal podia levar o copo de grogue à boca sem derramar a metade de tanto que o diabo fazia seu braço tremer Aí nenhuma maldição adiantava A vontade já não triunfava mais 3 Aí o Doutor Mantelsack em pé cruzou as pernas e folheou seu livro de anotações Hanno Buddenbrook inclinouse para a frente e torceu as mãos sob a mesa O B tinha chegado a vez do B Logo soaria seu nome e ele daria um vexame uma catástrofe ruidosa e terrível por mais bem humorado que o Professor estivesse Os segundos se alongavam como um martírio Buddenbrook Agora ele dizia Buddenbrook Edgar disse o Doutor Mantelsack Obs Em alemão o discurso indireto indirekte Rede é dado por formas especiais o Conjuntivo I e o Conjuntivo II O primeiro assinala a postura pessoal de quem fala ou escreve a respeito da mensagem de uma terceira pessoa acentuando que comunica a expressão de outrem Usase o Conjuntivo II quando o Conjuntivo I e o Presente têm formas iguais NdT erlebte Rede em contraste com o discurso direto ou discurso repetido gesprochene Rede e com o indireto ou discurso relatado berichtete Rede Lorck expõe sua definição da seguinte maneira Imagi nemos Fausto em cena recitando seu monólogo Habe nun ach Philosophie Juristerei durchaus studiert mit heissem Bemühn O que o herói diz na primeira pessoa um membro do auditório vivencia na terceira E essa transposição que ocorre nas profundezas da atividade mental no ato de apreensão estilisticamente nivela o discurso apreendido à narrativa Se o ouvinte quiser em seguida relatar a um terceiro o discurso de Fausto por ele ouvido e apreendido transmitiloá ou palavra por palavra sob a forma direta Habe nun ach Philosophie ou indireta Faust dass er leiderou er hat leider Mas se ele quiser reviver para si mesmo na sua alma a impressão vívida deixada pela cena que apreendeu evocálaá da forma seguinte Faust hat nun ach Estudei ai Filosofia Leis a fundo com ardente esforço 187 Philosophie ou então ainda já que se trata de impressões passadas Faust hatte nun ach Desta maneira segundo Lorck o discurso indireto livre constitui uma forma direta de representação da apreensão do discurso de outrem do vívido efeito produzido por este por isso convém mal à retransmissão do discurso a uma terceira pessoa Com efeito nessa hipótese a natureza dos fatos relatados seria alterada e ficaria a impressão de que a pessoa fala consigo mesma ou é vítima de alucinações Portanto como seria de esperar o discurso indireto livre não é utilizado na conversação e serve apenas às representações de tipo literário Aí o seu valor estilístico é imenso Na realidade para o artista no processo de criação os seus fantasmas constituem a própria realidade ele não só os vê como também os escuta Ele não lhes dá a palavra como no discurso direto ele os ouve falar E essa impressão viva produzida por vozes ouvidas como em sonho só pode ser diretamente transmitida sob a forma de discurso indireto livre É a forma por excelência do imaginário Por isso essa voz ressoou pela primeira vez no mundo maravilhoso de La Fontaine por isso essa forma constitui um procedimento tão caro a escritores como Balzac e mais particularmente Flaubert que são capazes de imergir e perderse totalmente no mundo criado por sua imaginação É também unicamente à imaginação do leitor que o escritor se dirige quando usa essas formas O que ele procura não é relatar um fato qualquer ou um produto do seu pensamento mas comunicar suas impressões despertar na alma do leitor imagens e representações vívidas Ele não se dirige à razão mas à imagi nação Apenas a inteligência que raciocina e analisa pode tomar a posição de que o autor é quem fala no discurso indireto livre para a imaginação viva é o herói que fala A imaginação é a mãe dessa forma A idéia fundamental de Lorck que ele desenvolve também nos seus outros trabalhos6 se reduz ao fato de que na língua o papel criador pertence não à razão mas justamente à imaginação Somente as formas já criadas pela imaginação firmemente constituídas fixadas e por isso abandonadas pela alma viva desta Fausto ai estudou Filosofia Fausto ai estudara 6 E Lorck Passé défini imparfait passé indéfini Eine grammatischpsychologische Studie von E Lerch 188 última entram no domínio regido pela razão esta não cria nada por si só A língua segundo Lorck não é um ser acabado ergon mas um devir permanente e um acontecimento vivo energeia Não se trata de um meio ou de um instrumento que serve para atingir fins exteriores a ele mas de um organismo vivo funcionando em si e para si E essa autosuficiência criadora da língua manifestase na imaginação lingüística A imaginação sentese no seu elemento no seio da língua é o seu elemento vital nativo A língua não constitui para a imaginação um meio ela é a carne da sua carne e o sangue do seu sangue A imaginação contentase de brincar com a língua por prazer Um autor como Bally aborda a língua do ponto de vista da razão e por isso é incapaz de compreender aquelas formas que ainda estão vivas nas quais bate ainda o pulso da evolução que não foram ainda transformadas em um instrumento para o raciocínio Por isso é que Bally não conseguiu apreender a especificidade do discurso indireto livre e não tendo encontrado nele uma identidade compatível com a lógica excluiuo da língua É do ponto de vista da imaginação que Lorck tenta compreender e explicar a forma do imperfeito no discurso indireto livre Lorck distingue o DéfiniDenkakt e o ImparfaitDenkakt Esses atos não se distinguem pelo conteúdo de pensamento mas pela própria forma de sua realização Com o défini o nosso olhar orientase para o exterior para o mundo dos objetos e con teúdos que o pensamento já apreendeu com o imperfeito para o interior para o mundo do pensamento em devir e em processo de constituição Os définiDenkakten têm um caráter de constatação factual os imparfaitDenkakten um caráter de reflexão e de impressão mental em processo de desenvolvimento A imaginação reconstitui neles o passado vivo Lorck analisa o seguinte exemplo LIrlande poussa un grand cri de soulagement mais la Chambre des Lords six jours plus tard repoussait le Bil Gladstone tombait Revue des Deux Mondes mai 1980 p 19 Se diz Lorck substituirmos os dois imperfeitos pelo pas sado definido perceberemos claramente a diferença Gladstone A Irlanda soltou um grande grito de alívio mas a Câmara dos Lordes seis dias mais tarde rejeitava o Bill Gladstone caíaNdT 189 tombait é colorido por uma tonalidade emocional enquanto Gladstone tomba soa como uma informação seca e pura mente factual No primeiro caso o pensamento parece demo rarse sobre o seu objeto e sobre si mesmo mas aqui o que invade a consciência não é a imagem de Gladstone caindo mas o senti mento da gravidade do acontecimento que se produziu As coisas apresentamse diferentemente no caso de la Chambre des Lords repoussait le Bill Aqui há como uma anteci pação dramática das conseqüências do acontecimento o imper feito em repoussait exprime uma expectativa ansiosa Para apreender bem todos os matizes do estado de espírito do falante é suficiente pronunciar essa frase em voz alta A última sílaba de repoussait é pronunciada num tom mais alto exprimindo a ansiedade e a expectativa Gladstone tombait vem de alguma forma aliviar e acalmar essa angústia Nos dois casos o emprego do imperfeito é marcado pelo sentimento e estimula a imaginação Ele evoca e reconstitui a ação relatada em vez de simples mente constatála Essa é a significação do imperfeito no discurso indireto livre O definido seria incompatível com a atmos fera criada por essa forma Tal é a teoria de Lorck Ele mesmo define a sua análise como uma investigação no domínio da alma da língua Sprachseele Segundo ele esse domínio Das Gebiet der Sprachseelenforschung foi explorado pela primeira vez por K Vossler Lorck apenas segue o caminho aberto por este Lorck examinou a questão nas suas dimensões estáticas psicológicas Numa publicação de 1922 Gertraud Lerch sempre com as mesmas bases vosslerianas tenta dar ao discurso indireto livre uma larga perspectiva histórica Encontrase na sua investigação toda uma série de observações de grande valor Por isso vamos deternos mais longamente nela Em Lerch é a sensibilidade simpatizante Einfühlung que desempenha o papel que tinha a imaginação em Lorck O discurso indireto livre dá à sensibilidade sua expressão mais adequada As formas dos discursos direto e indireto são condicionados por um verbo introdutório disse pensou etc Dessa maneira o autor joga sobre o herói a responsabilidade daquilo que é dito Pelo contrário no discurso indireto livre graças à omissão do verbo introdutório o autor apresenta a enunciação do herói como se ele mesmo se encarregasse dela como se se tratasse de fatos e não simplesmente de pensamentos ou de palavras Isso só é possível diz Lerch se o escritor se associa 190 com toda a sua sensibilidade aos produtos de sua própria imaginação se ele se identifica completamente com eles Quais são as origens históricas dessa forma Quais são as condições históricas indispensáveis ao seu desenvolvimento No francês antigo as estruturas psicológicas estavam longe de distinguirse tão rigorosamente das estruturas gramaticais como hoje As combinações paratáticas e hipotáticas mistura vamse de diversas maneiras A pontuação estava ainda em esboço Por isso não havia ainda fronteiras rígidas entre os discur sos direto e indireto O narrador não sabe ainda separar as representações de sua imaginação do seu eu pessoal Ele parti cipa por dentro dos atos e das palavras dos seus heróis colocase como seu intercessor e defensor Ainda não aprendeu a transmitir o discurso de outrem na sua forma exterior e palavra por palavra abstendose de qualquer intervenção pessoal O temperamento francês antigo estava ainda longe da observação imparcial descompromissada e do julgamento objetivo Entretanto essa diluição do autor nos seus heróis não é simplesmente o resultado de uma escolha deliberada era também uma necessidade Ele não tinha à sua disposição formas claras e lógicas que permitissem uma delimitação estrita E é sobre a base dessa insuficiência gramatical e não como procedimento estilístico livre que se vê aparecer em francês antigo o discurso indireto livre Ele resulta portanto meramente da incapacidade do autor de separar gramaticalmente seu ponto de vista sua posição dos de seus heróis7 Pelo fim da Idade Média em francês medieval essa imersão do autor nos sentimentos experimentados por seus heróis não tem mais lugar Encontrase muito raramente o presente histórico entre os historiadores dessa época e o ponto de vista do narrador distinguese claramente do das personagens representadas O sentimento cede lugar à razão A transmissão do discurso de outrem tornase impessoal e sem cor e a voz do narrador abafa a do enunciador A esse período de despersonalização sucede o individualismo fortemente marcado do Renascimento A intuição desempenha novamente um papel na transmissão do discurso de outrem O narrador tenta de novo aproximarse do seu herói estabelecer com ele relações mais íntimas Esse estilo é caracterizado pela sucessão 7 Eis um exemplo curioso tirado de Eulalia sequenz segunda metade do século IX 191 flexível e livre psicologicamente colorida e caprichosa dos tempos e dos modos No século XVII em contraposição ao irracionalismo lingüístico do Renascimento começam a constituirse regras rígidas de emprego dos tempos e dos modos no discurso indireto particularmente graças a Houdin 1932 Estabelecese um equilíbrio harmonioso entre as faces objetiva e subjetiva do pensamento entre a análise objetiva e a expressão das atitudes pessoais Isso não se efetua sem pressões por parte da Academia Francesa Como procedimento estilístico livre e consciente o discurso indireto livre só podia aparecer depois da criação graças à intro dução da concordância dos tempos de um contexto gramatical no qual pudesse destacarse claramente Ele aparece primeiro em La Fontaine e conserva nele o equilíbrio característico de neoclassicismo entre o subjetivo e o objetivo A omissão do verbo introdutório indica a identificação do narrador ao herói quanto à utilização do imperfeito contrastando com o presente do discurso direto e à escolha do pronome correspondente ao discurso indireto indicam que o narrador conserva sua posição autônoma que ele não se dissolve totalmente na ativi dade mental do seu herói Ellent adunet lo suon element melz sostendreit les empedementz quelle perdesse sa Virginitet Poros furer morte a grande honestet Ela junta sua energia ela prefere a tortura a perder sua virgindade Assim ela morreu com grande honra Aqui diz Lerch a determinação firme e inquebrantável da santa se funde klingt zusammen com o apoio ardente que lhe dá o autor Esse procedimento convinha particularmente ao fabulista La Fontaine na medida em que rompe o dualismo da análise abstrata e da impressão imediata aliandoas harmoniosamente O discurso indireto é muito analítico e inerte Quanto ao discurso direto mesmo teatralizando o discurso citado não lhe fornece ao mesmo tempo o cenário o meio emocional e espiritual de que tem necessidade para ser apreendido Se La Fontaine utilizando esse procedimento indica que ele simpatiza profundamente com suas personagens La Bruyère tira dele efeitos satíricos contundentes Ele não representa seus caracteres num país imaginário e seu humor não é nada suave Ele exprime por meio do discurso indireto livre seu conflito interno com eles sua 192 superioridade sobre eles Ele se destaca das criaturas que representa A pseudoobjetividade de La Bruyère serve para refratar ironicamente todas as suas representações Esse procedimento adquire um caráter ainda mais complexo em Flaubert Este dardeja seu olhar implacável justamente sobre aquilo que acha repugnante e odioso mas mesmo nesse caso é capaz de jogar com toda a sua sensibilidade de identificarse com o odioso e o repugnante O discurso indireto livre em Flaubert tornase tão ambivalente e tão incoerente como sua própria atitude em relação a si mesmo e às suas criações sua posição interior balança entre o amor e o ódio O discurso indireto livre que permite ao mesmo tempo identificarse com as próprias criações e conservar a autonomia a distância em relação a elas é extremamente favorável à expressão desse amoródio pelos heróis Essas são as observações de Gertraud Lerch que nos interessam Ao esboço histórico do desenvolvimento do discurso indireto livre em francês podemos acrescentar alguns dados tomados de Eugen Lerch quanto à época em que essa construção apareceu em alemão Ela aí nasceu muito tardiamente é encontrada pela primeira vez em Thomas Mann nOs Buddenbrooks 1901 aparentemente sob a influência direta de Zola Tratase da epopéia de uma família contada com muita emoção pelo narrador que simples membro do clã dos Buddenbrook evoca na sua memória e faz reviver toda a história desse clã Acrescentaremos de nossa parte que no seu último romance A Montanha Mágica 1924 ele faz um uso ainda mais sutil e profundo desse procedimento De nosso conhecimento não existe nenhum estudo mais substancial ou mais recente sobre essa questão Passemos portanto à análise das perspectivas de Lorck e de Lerch Ao objetivismo hipostático de Bally opõese nos trabalhos de Lorck e Lerch um subjetivismo individualista conseqüente e claramente expresso A alma da língua manifestase primeiro na consciência crítica subjetiva individual dos falantes A língua torna se em todas as suas manifestações a expressão de forças psíquicas individuais e de intenções dotadas de significações individuais A evolução da língua confundese com a evolução do pensamento e da alma dos falantes O subjetivismo individualista dos vosslerianos aplicado ao nosso fenômeno concreto é tão inaceitável como o objetivismo abstrato de Bally Na realidade a personalidade do falante sua atividade mental suas motivações subjetivas suas intenções seus desígnios 193 conscientemente estilísticos não existem fora de sua materialização objetiva na língua É claro que fora da sua expressão lingüística mesmo que só no discurso interior a personalidade não existe nem para si mesma nem para os outros Ela só pode perceber clara e conscientemente alguma coisa na sua alma com a condição de dispor de um material objetivo de apoio de elementos materiais que iluminam a consciência sob a forma de palavras constituídas de julgamentos de valor e de entoações A personalidade subjetiva interior com a consciência de si que lhe é própria não existe como um fato material que sirva de apoio a uma explicação de tipo causalista mas como um ideologema A personalidade com todas as suas intenções subjetivas com todas as suas profundezas interiores não é mais que um ideologema Ora o ideologema permanece informe e instável enquanto não for determinado graças aos produtos mais estáveis e elaborados da criação ideológica Portanto não há nenhum sentido em querer explicar algum fenômeno ou forma ideológica com o auxílio de fatores ou de intenções subjetivas psíquicas isso significaria explicar um ideologema por outro ideologema servindo o mais informe e instável dos dois para explicar o mais claro e mais elaborado É a língua que ilumina a personalidade interior e a consciência que as cria diferencia e aprofunda e não o contrário O devir da personalidade situase na língua não tanto é verdade nas suas formas abstratas mas nos seus temas ideológicos A personalidade é do ponto de vista do seu conteúdo subje tivo interior o tema da língua esse tema desenvolvese e varia no quadro de estruturas lingüísticas mais estáveis Por conseqüência não é a palavra que constitui a expressão da personalidade interior mas ao contrário esta última constitui uma palavra contida ou interiorizada A palavra é a expressão da comunicação social da interação social de personalidades definidas de produtores E as condições materiais da socialização determinam a orientação temática e constitutiva da personalidade interior numa época e num meio determinados Como tomará ela consciência de si mesma Até que ponto será essa consciência de si rica e segura Como motivará e apreciará os seus atos Tudo isso depende igualmente das condições da socialização A evolução da consciência individual dependerá da evolução da língua nas estruturas tanto gramaticais como concretamente ideológicas A personalidade evolui ao mesmo tempo que a língua compreendida global e concretamente pois ela é um dos seus temas mais importantes e profundos Quanto à evolução da língua é um elemento da evolução da comunicação social inseparável dessa comunicação e de suas bases materiais A base 194 material determina a estratificação da sociedade sua estrutura sócio política e distribui hierarquicamente os indivíduos que nela se encontram em relação de interação Tais são os fatores que geram o lugar o momento as condições as formas os meios da comunicação verbal Esta determina por sua vez os destinos da enunciação individual num determinado momento da evolução da língua seu grau de resistência às influências o grau de diferenciação dos diversos aspectos que nela se percebem a natureza de sua individualização semânticoverbal E tudo isso exprimese primeiro nas construções estáveis da língua tanto nos seus esquemas como nas suas variantes Aqui a personalidade do falante existe não como um tema amorfo mas como uma construção mais estável na verdade essa construção é indissoluvelmente ligada a um conteúdo temático particular que lhe corresponde exatamente Assim nas formas de transmissão do discurso a própria língua reage à personalidade como suporte da palavra Mas o que fazem os vosslerianos Eles dão apenas uma tematização vaga do reflexo mais estável da estrutura da personalidade que fala traduzem para a linguagem das motivações individuais por mais sutis e sinceras que sejam os acontecimentos da evolução social os acontecimentos da história Eles relacionam a ideologia à ideologia Mas os fatores materiais objetivos dessas ideologias as formas da língua e as motivações subjetivas que estão subjacentes à sua utilização ficam fora do seu campo de investigação Não afirmamos que esse trabalho de ideologização da ideologia seja completamente inútil Ao contrário algumas vezes é útil tematizar uma construção formal para aceder mais facilmente às suas raízes objetivas que constituem um fundo comum A vivacidade e a acuidade que os idealistas da escola de Vossler introduzem na lingüística favorecem o esclarecimento de certos aspectos da língua que o objetivismo abstrato tornara inertes e opacos E por isso devemos estarlhes reconhecidos Eles estimularam e reavivaram a alma ideológica da língua que tomara com alguns lingüistas o aspecto de uma natureza morta Mas eles não chegaram a uma explicação correta objetiva da língua Abordaram a dinâmica da história mas não sou beram explicála Interessaramse pelos seus aspectos super ficiais pela agitação e pelo movimento perpétuo que a agitam mas não pelas forças que a animam na profundidade É sintomático que Lorck numa carta a Eugen Lerch publicada em apêndice ao seu livro chegue à seguinte inesperada confirmação Tendo descrito a decadência e a esclerose intelectualista da língua francesa acrescenta 195 Ela só tem uma única possibilidade de renovação o proletariado deve tomar a palavra em lugar da burguesia Für sie gibt es nur eine Möglichkeit der Verjügung anstelle des Bourgeois muss der Proletarier zu Worte kommem Como conciliar isso com o papel excepcionalmente criador da imaginação na língua Terá o proletário uma imaginação de tal forma desenvolvida então Naturalmente é outra coisa que Lorck tem em vista Ele quer dizer sem dúvida que o proleta riado trará consigo novas formas de comunicação sócioverbal de interação verbal dos falantes e todo um novo mundo de inte ração verbal e de entoações sociais Trará consigo uma nova concepção lingüística da personalidade que fala da própria palavra da verdade lingüística Provavelmente era qualquer coisa assim que Lorck tinha em vista fazendo essa afirmação Mas não se encontra nenhum vestígio dela na sua teoria Quanto à imaginação o burguês tem tanta quanto o proletário E ainda por cima tem mais lazer para se servir dela O subjetivismo individualista de Lorck aplicado ao nosso problema concreto manifestase na incapacidade que tem a sua concepção de refletir a dinâmica da interrelação entre o discurso narrativo e o discurso citado O discurso indireto livre longe de transmitir uma impressão passiva produzida pela enunciação de outrem exprime uma orientação ativa que não se limita meramente à passagem da primeira à terceira pessoa mas introduz na enunciação citada suas próprias entoações que entram então em contato com as entoações da palavra citada interferindo nela Nem mesmo podemos concordar com Lorck na sua afirmação de que a forma do discurso direto simples está mais próxima da apreensão e da assimilação direta do discurso de outrem Cada forma de transmissão do discurso de outrem apreende à sua maneira a palavra do outro e assimilaa de forma ativa Gertraud Lerch fica muito próxima da compreensão dessa dinâmica mas expressaa em termos de psicologia subjetiva Ambos os autores portanto esforçamse por tornar plano um fenômeno tridimensional por assim dizer No fenômeno lingüístico objetivo do discurso indireto livre temos uma combinação não de empatia e distanciamento dentro dos limites da alma individual mas das entoações da personagem empatia e das entoações do autor distanciamento dentro dos limites de uma mesma e única construção lingüística Lorck e Lerch não levam em conta nem um nem outro um elemento extremamente importante para a compreensão 196 do fenômeno em causa o julgamento de valor inerente a toda pala vra viva revelado pela acentuação e pela entoação expressiva da enunciação O sentido do discurso não existe fora de sua acentuação e entoação vivas No discurso indireto livre identificamos a palavra citada não tanto graças ao sentido considerado isoladamente mas antes de mais nada graças às entoações e acentuações próprias do herói graças à orientação apreciativa do discurso Nós percebemos que os acentos e as entoações do autor estão senão interrompidos por esses julgamentos de valor de outra pessoa E é isso como sabemos que distingue o discurso indireto livre do discurso substituído no qual nenhum acento novo aparece em relação ao contexto narrativo Vamos agora voltar aos procedimentos utilizados em russo para o discurso indireto livre Eis um exemplo bastante característico tirado de Poltava de Púchkin Mazepa simulando dor levanta para o tsar um olhar sub misso Deus sabe e todo o mundo é testemunha Ele o infeliz Hétman serviu o tsar com coração fiel durante vinte anos ele curvase sob o peso de sua imensa misericórdia está enlevado por ela Oh como o ódio é insano e cego É possível que ele agora às portas da tumba vá começar a aprender a traição e a manchar o seu bom nome Não foi ele que recusou com indignação ajuda a Estanislau que envergonhado recusou a coroa da Ucrânia e enviou ao tsar por consciência do dever o texto do acordo e as cartas secretas Não ficou ele surdo às objurgações do cã e do sultão de Tsáregrad Ardendo de entusiasmo ele estava feliz de combater os inimigos do Tsar Branco com sua inteligência e seu sabre ele não poupou nem dificulda des nem a própria vida e agora o inimigo odioso ousa lançar a vergonha sobre os seus cabelos brancos E quem Iskra Kotchubei os mesmos que foram seus amigos durante tanto tempo E com lágrimas sedentas de sangue com fria impertinência o ímpio reclama a execução deles A punição de quem velho inexorável De quem pois roubou ele a filha Mas friamente ele abafa o murmúrio enfraquecido do seu coração Nesse extrato de um lado a sintaxe e o estilo são determinados pelas tonalidades da humildade do lamento deplorável de Mazepa de outro essa súplica lacrimosa subordinase à orientação apreciativa do contexto do autor aos seus acentos narrativos que são aqui impregnados de uma tonalidade de indignação que se revela mais 197 tarde na questão retórica A punição de quem velho inexorável De quem pois roubou ele a filha Seria perfeitamente possível transmitir a entoação dupla de cada palavra lendo esse extrato em voz alta isto é pôr em evidência com indignação a hipocrisia de Mazepa pela própria leitura da sua lamentação Estamos aqui diante de um caso muito simples que comporta entoações retóricas bastante elementares e claras Na maior parte dos casos porém e especialmente naquela área em que o discurso indireto livre se tornou um recurso de emprego maciço a área da nova ficção em prosa a transmissão oral da interferência apreciativa seria impossível Além disso o próprio desenvolvimento do discurso indireto livre está ligado à adoção pelos grandes gêneros literários em prosa de um registro mudo ou seja para leitura silenciosa Apenas a adaptação da prosa à leitura silenciosa tornou possível a superposição dos planos e a complexidade intransmissível oralmente das estruturas entoativas tão características da literatura moderna Um exemplo desse tipo de interferência de dois discursos que não pode ser adequadamente transmitida pela leitura em voz alta é a seguinte passagem tirada de O Idiota de Dostoievski E por que então o príncipe agora não se aproximou dele de Rogójin Por que ao contrário se afastou como se não o tivesse visto embora seus olhos tivessem se encontrado Sim seus olhos se encontraram e eles se haviam olhado Não queria ele há pouco tempo tomálo pela mão para irem juntos lá Não queria ele ir amanhã à sua casa para lhe contar que estivera na casa dela Não havia ele renunciado ao seu demônio no caminho para lá quando a alegria subitamente inundara sua alma Ou havia realmente alguma coisa em Rogójin isto é no Rogójin de hoje no conjunto de suas palavras gestos comportamento olhares que pudesse justificar os terríveis pressentimentos do prín cipe e as insinuações revoltantes do seu demônio Havia nisso qualquer coisa que parecia evidente mas que era difícil de analisar e relatar Era impossível explicar as suas causas mas apesar da sua inverossimilhança e sua impossibilidade essa coisa qualquer deixava uma impressão clara e incontestável que fazia nascer uma certeza completa Mas que certeza Oh como a baixeza desta certeza desse vil pressentimento fazia sofrer o príncipe desmesuradamente e como ele se incriminava 198 Abordaremos aqui em poucas palavras um problema muito importante e interessante o da realização sonora do discurso de outrem apresentado pelo contexto narrativo O que torna difícil a busca de uma entoação expressiva conveniente é a passagem constante do horizonte apreciativo do autor ao do herói e viceversa Em que casos e dentro de que limites pode um autor pôr em cena uma personagem Por encenação absoluta entendemos não apenas a mudança da entoação expressiva mudança essa que é possível nos limites de uma única e mesma voz de uma única consciência mas também a mudança de voz no sentido da totalidade de propriedades que a caracterizam a mudança de persona máscara no sentido da totalidade de propriedades que constituem a mímica e a expressão facial e finalmente a completa consistência dessa voz e dessa persona durante toda a representação do papel Afinal dentro desse mundo individual e fechado em si mesmo não pode mais haver nenhuma infiltração das entoações do autor Como resultado da autoconsistência da voz e da persona de outrem não há possibilidade para a gradação na mudança do contexto narrativo para o discurso citado e viceversa O discurso citado começará a soar como no teatro onde não há contexto narrativo e onde as réplicas do herói opõemse as réplicas gramaticalmente dissociadas de outras personagens Assim as relações entre o discurso citado e o contexto narrativo através da encenação absoluta tomam uma forma análoga às relações entre linhas alternadas no diálogo Por causa disso o autor colocase no mesmo nível que sua personagem e sua relação toma a aparência de um diálogo Decorre inevitavelmente disso que só é possível encenar totalmente o discurso citado na leitura em voz alta de uma obra de ficção em casos muitos raros De outra for ma levantase um inevitável conflito com as intenções esté ticas básicas do contexto Não é preciso dizer que nesses casos raríssimos só pode tratarse de variantes lineares e moderada mente pictóricas da construção do discurso direto Mas se o discurso direto é entrecortado por observações do autor que valem como réplicas ou então se matizes muito fortes do contexto narrativo apreciativo a ele se acrescentam já não é mais possível a encenação total Uma encenação parcial é contudo possível sem excesso no jogo teatral que permite operar transições entoativas graduais entre o discurso narrativo e o discurso citado em alguns casos quando se está diante de variantes ambivalentes podemse conciliar numa única voz todas as entoações É verdade que isso só é possível nos casos análogos àqueles que apresentamos As perguntas e exclamações 199 retóricas freqüentemente têm apenas a função de anunciar uma mudança de tom Restanos tirar as conclusões de nossa análise do discurso indireto livre e ao mesmo tempo as de toda a terceira parte do nosso trabalho Seremos breve tudo que é essencial encontrase no próprio texto e procuraremos evitar as repetições Examinamos as formas mais importantes de transmissão do discurso de outrem não demos descrições gramaticais abstratas procuramos ao invés encontrar nessas formas documentos que mostram como a língua numa ou noutra época do seu desenvolvimento apreende a palavra de outrem e a personalidade do falante Além disso jamais perdemos de vista o fato de que as vicissitudes da enunciação e da personalidade do falante na língua refletem as vicissitudes sociais da interação verbal da comunicação ideológica verbal nas suas tendências principais A palavra como fenômeno ideológico por excelência está em evolução constante reflete fielmente todas as mudanças e alterações sociais O destino da palavra é o da sociedade que fala Mas há vários caminhos para estudar a evolução dialética da palavra Podese estudar a evolução semântica isto é a história da ideologia no sentido exato do termo a história do conhecimento isto é a evolução da verdade uma vez que a verdade só é eterna enquanto evolução eterna da verdade a história da literatura como evolução da verdade na arte Esse é o primeiro caminho Mas há um outro estreitamente ligado ao primeiro em ininterrupta simbiose com ele é o estudo da evolução da própria língua como material ideológico como meio onde se reflete ideologicamente a existência uma vez que a reflexão da refração da existência na consciência humana só se efetua na palavra e através dela É impossível evidentemente estudar a evolução da língua dissociandoa completamente do ser social que nela se refrata e das condições sócioeconômicas refratantes Não se pode estudar a evolução da palavra dissociandoa da evolução da verdade em ge ral e da verdade na arte tais como são expressas na palavra pela sociedade humana para a qual existem Esses dois caminhos em permanente interação um com o outro levam ao estudo da reflexão da refração da evolução da natureza e da história na evolução da palavra O terceiro caminho é o estudo da reflexão da evolução social da palavra na própria palavra Esse caminho se subdivide em dois ramos a história da filosofia da palavra e a história da palavra na palavra É nessa última perspectiva que se situa o nosso trabalho 200 Estamos perfeitamente consciente de suas insuficiências mas esperamos que a maneira de colocar o problema da palavra na palavra tenha uma pertinência real A história da verdade a história da verdade na arte e a história da língua têm muito a ganhar do estudo das refrações de sua manifestação essencial a enunciação concreta nas estruturas da própria língua Acrescentaremos algumas palavras de conclusão sobre o discurso indireto livre e as tendências sociais que ele exprime O aparecimento e desenvolvimento do discurso indireto livre devem ser estudados em estreita ligação com o desenvolvimento das outras variantes expressivas dos discursos direto e indireto Teremos então a prova de que ele tem um lugar importante no desenvolvimento das línguas européias contemporâneas que ele implica uma reviravolta importante no destino social da enunciação A vitória de formas extremas do estilo pictórico no discurso citado não pode naturalmente ser explicada em termos de fatores psicológicos ou das intenções estilísticas individuais do artista mas sim em termos da subjetivização profunda generalizada da palavra enunciação ideológica Esta não é mais um monumento nem mesmo um simples documento que atesta a existência de um conteúdo semântico substancial ela só é percebida como a expressão de um estado subjetivo fortuito Na consciência lingüística as representações idiossincráticas individualizantes tomaram tal autonomia dentro da enunciação que elas obstruíram e relativizaram completamente o seu núcleo semântico e o ponto de vista social responsável que nelas se exprime É como se não se levasse mais a sério o conteúdo semântico da enunciação A palavra categórica a palavra assumida a palavra assertiva só existe nos contextos científicos Em todas as outras áreas da criação verbal é a ficção que domina e não mais a asserção Toda a atividade verbal consiste então em distribuir a palavra de outrem e a palavra que parece ser a de outrem Mesmo as ciências humanas desenvolveram uma tendência a substituir afirmações responsáveis acerca de um problema por uma descrição do estado atual das pesquisas na área incluindo cálculo e adução indutiva do ponto de vista geralmente admitido nos nossos dias esse procedimento é mesmo algumas vezes considerado a melhor solução possível de um problema Em tudo isso manifesta se a alarmante instabilidade e a incerteza da palavra ideológica O discurso literário retórico filosófico e o das ciências humanas tornamse o reino das opiniões das opiniões notórias e mesmo nessas opiniões não é tanto o quê mas o como individual ou 201 típico da opinião em causa que ocupa o primeiro plano Esse processo que afeta o destino da palavra na Europa burguesa contemporânea e aqui na União Soviética no nosso caso até tempos muito recentes pode ser caracterizado como uma reificação da palavra como uma deterioração do valor temático da palavra Os ideológicos desse processo tanto aqui como na Europa Ocidental são os movimentos formalistas em poética lingüística e filosofia da linguagem Não é preciso mencionar aqui quais são os fatores sociais subjacentes que explicam esse processo nem repetir a bem fundamentada afirmativa de Lorck acerca dos únicos caminhos possíveis para a renovação da palavra ideológica a palavra com seu tema intacto a palavra penetrada por uma apreciação social segura e categórica a palavra que realmente significa e é responsável por aquilo que diz