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Linguística
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Mito n 1 A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente Este é o maior e o mais sério dos mitos que compõem a mitologia do preconceito lingüístico no Brasil Ele está tão arraigado em nossa cultura que até mesmo intelectuais de renome pessoas de visão crítica e geralmente boas observadoras dos fenômenos sociais brasileiros se deixam enganar por ele É o caso por exemplo de Darcy Ribeiro que em seu último grande estudo sobre o povo brasileiro escreveu É de assinalar que apesar de feitos pela fusão de matrizes tão diferenciadas os brasileiros são hoje um dos povos mais homogêneos lingüística e culturalmente e também um dos mais integrados socialmente da Terra Falam uma mesma língua sem dialetos grifo meu Folha de S Paulo 5295 Existe também toda uma longa tradição de estudos filológicos e gramaticais que se baseou durante muito tempo nesse preconceito irreal da unidade lingüística do Brasil Esse mito é muito prejudicial à educação porque ao não reconhecer a verdadeira diversidade do português falado no Brasil a escola tenta impor sua norma lingüística como se ela fosse de fato a língua comum a todos os 160 milhões de brasileiros independentemente de sua idade de sua origem geográfica de sua situação socioeconômica de seu grau de escolarização etc pg 15 Ora a verdade é que no Brasil embora a língua falada pela grande maioria da população seja o português esse português apresenta um alto grau de diversidade e de variabilidade não só por causa da grande extensão territorial do país que gera as diferenças regionais bastante conhecidas e também vítimas algumas delas de muito preconceito mas principalmente por causa da trágica injustiça social que faz do Brasil o segundo país com a pior distribuição de renda em todo o mundo São essas graves diferenças de status social que explicam a existência em nosso país de um verdadeiro abismo lingüístico entre os falantes das variedades nãopadrão do português brasileiro que são a maioria de nossa população e os falantes da suposta variedade culta em geral mal definida que é a língua ensinada na escola Como a educação ainda é privilégio de muito pouca gente em nosso país uma quantidade gigantesca de brasileiros permanece à margem do domínio de uma norma culta Assim da mesma forma como existem milhões de brasileiros sem terra sem escola sem teto sem trabalho sem saúde também existem milhões de brasileiros sem língua Afinal se formos acreditar no mito da língua única existem milhões de pessoas neste país que não têm acesso a essa língua que é a norma literária culta empregada pelos escritores e jornalistas pelas instituições oficiais pelos órgãos do poder são os semlíngua É claro que eles também falam português uma variedade de português nãopadrão com sua gramática particular que no entanto não é reconhecida como válida que é desprestigiada ridicularizada pg 16 alvo de chacota e de escárnio por parte dos falantes do portuguêspadrão ou mesmo daqueles que não falando o portuguêspadrão o tomam como referência ideal por isso podemos chamálos de semlíngua O que muitos estudos empreendidos por diversos pesquisadores têm mostrado é que os falantes das variedades lingüísticas desprestigiadas têm sérias dificuldades em compreender as mensagens enviadas para eles pelo poder público que se serve exclusivamente da línguapadrão Como diz Maurizzio Gnerre1 em seu livro Linguagem escrita e poder a Constituição afirma que todos os indivíduos são iguais perante a lei mas essa mesma lei é redigida numa língua que só uma parcela pequena de brasileiros consegue entender A discriminação social começa portanto já no texto da Constituição É claro que Gnerre não está querendo dizer que a Constituição deveria ser escrita em língua nãopadrão mas sim que todos os brasileiros a que ela se refere deveriam ter acesso mais amplo e democrático a essa espécie de língua oficial que restringindo seu caráter veicular a uma parte da população exclui necessariamente uma outra talvez a maior Muitas vezes os falantes das variedades desprestigiadas deixam de usufruir diversos serviços a que têm direito simplesmente por não compreenderem a linguagem empregada pelos órgãos públicos Um estudo bastante revelador dessa situação foi empreendido por Stella Maris BortoniRicardo na periferia de Brasília e publicado no pg 17 artigo Problemas de comunicação interdialetal Diante do que descobriu a autora pode afirmar A idéia de que somos um país privilegiado pois do ponto de vista lingüístico tudo nos une e nada nos separa pareceme contudo ser apenas mais um dos grandes mitos arraigados em nossa cultura Um mito por sinal de conseqüências danosas pois na medida em que não se reconhecem os problemas de comunicação entre falantes de diferentes variedades da língua nada se faz também para resolvêlos A mesma autora alerta para que não se confunda a idéia de monolingüismo com a de homogeneidade lingüística O fato de no Brasil o português ser a língua da imensa maioria da população 1 As referências bibliográficas completas de todas as obras citadas ao longo deste livro se encontram no final do volume não implica automaticamente que esse português seja um bloco compacto coeso e homogêneo Na verdade como costumo dizer o que habitualmente chamamos de português é um grande balaio de gatos onde há gatos dos mais diversos tipos machos fêmeas brancos pretos malhados grandes pequenos adultos idosos recémnascidos gordos magros bemnutridos famintos etc Cada um desses gatos é uma variedade do português brasileiro com sua gramática específica coerente lógica e funcional É preciso portanto que a escola e todas as demais instituições voltadas para a educação e a cultura abandonem esse mito da unidade do português no Brasil e passem a reconhecer a verdadeira diversidade lingüística de nosso país para melhor planejarem suas políticas de ação junto à população amplamente marginalizada dos falantes das variedades nãopadrão O reconhecimento da pg 18 existência de muitas normas lingüísticas diferentes é fundamental para que o ensino em nossas escolas seja conseqüente com o fato comprovado de que a norma lingüística ensinada em sala de aula é em muitas situações uma verdadeira língua estrangeira para o aluno que chega à escola proveniente de ambientes sociais onde a norma lingüística empregada no quotidiano é uma variedade de português não padrão Felizmente essa realidade lingüística marcada pela diversidade já é reconhecida pelas instituições oficiais encarregadas de planejar a educação no Brasil Assim nos Parâmetros curriculares nacionais publicados pelo Ministério da Educação e do Desporto em 1998 podemos ler que A variação é constitutiva das línguas humanas ocorrendo em todos os níveis Ela sempre existiu e sempre existirá independentemente de qualquer ação normativa Assim quando se fala em Língua Portuguesa está se falando de uma unidade que se constitui de muitas variedades A imagem de uma língua única mais próxima da modalidade escrita da linguagem subjacente às prescrições normativas da gramática escolar dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre o que se deve e o que não se deve falar e escrever não se sustenta na análise empírica dos usos da língua2 São de fato boas novas Espero que elas desçam das altas esferas governamentais e se propaguem pelas salas de aula de todo o país pg 19 2 Parâmetros curriculares nacionais Língua Portuguesa 5a a 8a séries p 29 Mito n 3 Português é muito difícil Essa afirmação preconceituosa é primairmã da idéia que acabamos de derrubar a de que brasileiro não sabe português Como o nosso ensino da língua sempre se baseou na norma gramatical de Portugal as regras que aprendemos na escola em boa parte não correspondem à língua que realmente falamos e escrevemos no Brasil Por isso achamos que português é uma língua difícil porque temos de decorar conceitos e fixar regras que não significam nada para nós No dia em que nosso ensino de português se concentrar no uso real vivo e verdadeiro da língua portuguesa do Brasil é bem provável que ninguém mais continue a repetir essa bobagem Todo falante nativo de uma língua sabe essa língua Saber uma língua no sentido científico do verbo saber significa conhecer intuitivamente e empregar com naturalidade as regras básicas de funcionamento dela Está provado e comprovado que uma criança entre os 3 e 4 anos de idade já domina perfeitamente as regras gramaticais de sua língua O que ela não conhece são sutilezas sofisticações e irregularidades no uso dessas regras coisas que só a leitura e o estudo podem lhe dar Mas nenhuma criança brasileira dessa idade vai dizer por exemplo Uma meninos chegou aqui amanhã Um estrangeiro porém que esteja começando a aprender português poderá se confundir e falar assim Por isso aquela piadinha que muita gente solta quando vê uma criancinha estrangeira falando Tão pequeno e já fala tão bem pg 35 inglês ou outra língua tem seu fundo de verdade muito pouca gente conseguirá falar uma língua estrangeira com tanta desenvoltura quanto uma criança de cinco anos que tem nela sua língua materna Por quê Porque toda e qualquer língua é fácil para quem nasceu e cresceu rodeado por ela Se existisse língua difícil ninguém no mundo falaria húngaro chinês ou guarani e no entanto essas línguas são faladas por milhões de pessoas inclusive criancinhas analfabetas Se tanta gente continua a repetir que português é difícil é porque o ensino tradicional da língua no Brasil não leva em conta o uso brasileiro do português Um caso típico é o da regência verbal O professor pode mandar o aluno copiar quinhentas mil vezes a frase Assisti ao filme Quando esse mesmo aluno puser o pé fora da sala de aula ele vai dizer ao colega Ainda não assisti o filme do Zorro Porque a gramática brasileira não sente a necessidade daquela preposição a que era exigida na norma clássica literária cem anos atrás e que ainda está em vigor no português falado em Portugal a dez mil quilômetros daqui É um esforço árduo e inútil um verdadeiro trabalho de Sísifo tentar impor uma regra que não encontra justificativa na gramática intuitiva do falante A prova mais visível disso é que aquelas mesmas pessoas que por causa da pressão policialesca da escola e da gramática tradicional usam a preposição a depois do verbo assistir também dizem que o jogo foi assistido por vinte mil pessoas Ora se o verbo assistir pede uma preposição é porque ele não é transitivo direto e só os verbos transitivos diretos podem segundo as gramáticas assumir a voz passiva Desse modo quem diz assisti ao pg 36 jogo não poderia teoricamente dizer o jogo foi assistido Só que essa esquizofrenia gramatical acontece o tempo todo Basta ler jornais como a Folha de S Paulo e o Estado de S Paulo cujos manuais de redação decretam que o verbo assistir tem que vir obrigatoriamente seguido da preposição a Na voz ativa a preposição aparece Vinte mil pagantes assistiram ao jogo porque assim manda o manual da redação Mas na hora de usar a voz passiva a gramática intuitiva brasileira do redator se manifesta e a gente encontra milhares de exemplos do tipo o jogo foi assistido por vinte mil pagantes Essas pessoas então ficam em cima do muro acertam na voz ativa por causa do patrulhamento lingüístico mas erram na passiva porque se deixam levar pelo uso normal do português brasileiro Tudo isso por causa da cobrança indevida por parte do ensino tradicional de uma norma gramatical que não corresponde à realidade da língua falada no Brasil O professor Sirio Possenti da UNICAMP em seu excelente livro Por que não ensinar gramática na escola classifica a regência assistir a como um arcaísmo uma forma sintática que já caiu em desuso mas continua sendo cobrada injustificadamente pelo ensino tradicionalista que se recusa a admitir a extinção desse e de muitos outros dinossauros lingüísticos Por isso tantas pessoas terminam seus estudos depois de onze anos de ensino fundamental e médio sentindose incompetentes para redigir o que quer que seja E não é à toa se durante todos esses anos os professores tivessem chamado a atenção dos alunos para o que é realmente interessante e importante se tivessem desenvolvido pg 37 as habilidades de expressão dos alunos em vez de entupir suas aulas com regras ilógicas e nomenclaturas incoerentes as pessoas sentiriam muito mais confiança e prazer no momento de usar os recursos de seu idioma que afinal é um instrumento maravilhoso e que pertence a todos Falaremos disso na terceira parte deste livro Se tantas pessoas inteligentes e cultas continuam achando que não sabem português ou que português é muito difícil é porque esta disciplina fascinante foi transformada numa ciência esotérica numa doutrina cabalística que somente alguns iluminados os gramáticos tradicionalistas conseguem dominar completamente Eles continuam insistindo em nos fazer decorar coisas que ninguém mais usa fósseis gramaticais e a nos convencer de que só eles podem salvar a língua portuguesa da decadência e da corrupção Hoje em dia aliás alguns deles estão até fazendo sucesso na televisão no rádio e em outros meios de comunicação transformando essa suposta dificuldade do português num produto com boa saída comercial Para o já citado Arnaldo Niskier tratase de uma saudável epidemia que tomou conta da imprensa brasileira Que é epidemia concordo mas quanto a ser saudável tenho muitas e sérias dúvidas É livro é curso em vídeocassete é CDROM é Manual de Redação do Jornal Tal é consultório gramatical por telefone Eles juram que quem não souber conjugar o verbo apropinquarse vai direto para o inferno Na segunda parte deste livro tratarei de explicar por que não considero saudável essa epidemia pg 38 No fundo a idéia de que português é muito difícil serve como mais um dos instrumentos de manutenção do status quo das classes sociais privilegiadas Essa entidade mística e sobrenatural chamada português só se revela aos poucos iniciados aos que sabem as palavras mágicas exatas para fazêla manifestarse Tal como na Índia antiga o conhecimento da gramática é reservado a uma casta sacerdotal encarregada de preservála pura e intacta longe do contato infeccioso dos párias A propaganda da suposta dificuldade da língua é como diz Gnerre no livro já citadoo arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder p 6 Sustentar que português é muito difícil é cavar uma profunda trincheira entre os poucos que sabem a língua e a massa enorme de asnos termo usado por Luiz Antonio Sacconi em seu livro Não erre mais que necessitam assim do auxílio indispensável daqueles mestres para saltar com segurança por sobre o abismo da ignorância Em termos mais brandos a embalagem do CDROM Nossa língua portuguesa oferece o produto como uma ajuda a evitar as armadilhas da língua Ora não é a língua que tem armadilhas mas sim a gramática normativa tradicional que as inventa precisamente para justificar sua existência e para nos convencer de que ela é indispensável Não seria a hora de acionar a Lei de Defesa do Consumidor contra essa reserva de mercado pg 39 Mito n 4 As pessoas sem instrução falam tudo errado O preconceito lingüístico se baseia na crença de que só existe como vimos no Mito n 1 uma única língua portuguesa digna deste nome e que seria a língua ensinada nas escolas explicada nas gramáticas e catalogada nos dicionários Qualquer manifestação lingüística que escape desse triângulo escolagramáticadicionário é considerada sob a ótica do preconceito lingüístico errada feia estropiada rudimentar deficiente e não é raro a gente ouvir que isso não é português Um exemplo Na visão preconceituosa dos fenômenos da língua a transformação de I em R nos encontros consonantais como em Cráudia chicrete praca broco pranta é tremendamente estigmatizada e às vezes é considerada até como um sinal do atraso mental das pessoas que falam assim Ora estudando cientificamente a questão é fácil descobrir que não estamos diante de um traço de atraso mental dos falantes ignorantes do português mas simplesmente de um fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão Basta olharmos para o seguinte quadro pg 40 PORTUGUÊS PADRÃO ETIMOLOGIA ORIGEM branco blank germânico brando blandu latim cravo clavu latim dobro duplu latim escravo sclavu latim fraco flaccu latim frouxo fluxu latim grude gluten latim obrigar obligare latim praga plaga latim prata plata provençal prega plica latim Como é fácil notar todas as palavras do portuguêspadrão listadas acima tinham na sua origem um I bem nítido que se transformou em R E agora Se fôssemos pensar que as pessoas que dizem Cráudia chicrete e pranta têm algum defeito ou atraso mental seríamos forçados a admitir que toda a população da província romana da Lusitânia também tinha esse mesmo problema na época em que a língua portuguesa estava se formando E que o grande Luís de Camões também sofria desse mesmo mal já que ele escreveu ingrês pubricar pranta frauta frecha na obra que é considerada até hoje o maior monumento literário do português clássico o poema Os Lusíadas E isso é craro seria no mínimo absurdo Existem evidentemente falantes da norma culta urbana pessoas escolarizadas que têm problemas para pg 41 pronunciar os encontros consonantais com L Nesses casos sim tratase realmente de uma dificuldade física que pode ser resolvida com uma terapia fonoaudiológica Não é dessas pessoas que estamos tratando aqui mas dos brasileiros falantes das variedades nãopadrão em cujo sistema fonético simplesmente não existe encontro consonantal com L independentemente de terem ou não dificuldades articulatórias Quando na escola se depararem com os encontros consonantais com L é preciso que o professor tenha consciência de que se trata de um aspecto fonético estrangeiro para eles do mesmo tipo dos que encontramos por exemplo nos cursos de inglês quando nos esforçamos para pronunciar bem o TH de throw ou o I de live É preciso separar bem os dois aspectos do fenômeno Se dizer Cráudia praca pranta é considerado errado e por outro lado dizer frouxo escravo branco praga é considerado certo isso se deve simplesmente a uma questão que não é lingüística mas social e política as pessoas que dizem Cráudia praca pranta pertencem a uma classe social desprestigiada marginalizada que não tem acesso à educação formal e aos bens culturais da elite e por isso a língua que elas falam sofre o mesmo preconceito que pesa sobre elas mesmas ou seja sua língua é considerada feiapobrecarente quando na verdade é apenas diferente da língua ensinada na escola Ora do ponto de vista exclusivamente lingüístico o fenômeno que existe no português nãopadrão é o mesmo que aconteceu na história do portuguêspadrão e pg 42 tem até um nome técnico rotacismo O rotacismo participou da formação da língua portuguesa padrão como já vimos em branco escravo praga fraco etc mas ele continua vivo e atuante no português nãopadrão como em broco chicrete pranta Cráudia porque essa variedade não padrão deixa que as tendências normais e inerentes à língua se manifestem livremente Assim o problema não está naquilo que se fala mas em quem fala o quê Neste caso o preconceito lingüístico é decorrência de um preconceito social Este tipo específico de preconceito é o que abordei em meu livro A língua de Eulália Minha heroína literária predileta a boneca Emília de Monteiro Lobato não quis saber desse tipo de preconceito Ao visitar no País da Gramática a prisão onde Dona Sintaxe mantinha enjaulados os vícios de linguagem revoltouse ao ver atrás das grades o Provincianismo isto é os vícios da fala rural do caipira p 120 Emília não achou que fosse caso de conservar na cadeia o pobre matuto Alegou que ele também estava trabalhando na evolução da língua e soltouo Vá passear seu Jeca Muita coisa que hoje esta senhora condena vai ser lei um dia Foi você quem inventou o VOCÊ em vez de TU e só isso quanto não vale Estamos livres da complicação antiga do Tuturututu Como se vê do mesmo modo como existe o preconceito contra a fala de determinadas classes sociais também existe o preconceito contra a fala característica de certas regiões É um verdadeiro acinte aos direitos humanos por exemplo o modo como a fala nordestina é retratada pg 43 nas novelas de televisão principalmente da Rede Globo Todo personagem de origem nordestina é sem exceção um tipo grotesco rústico atrasado criado para provocar o riso o escárnio e o deboche dos demais personagens e do espectador No plano lingüístico atores não nordestinos expressamse num arremedo de língua que não é falada em lugar nenhum do Brasil muito menos no Nordeste Costumo dizer que aquela deve ser a língua do Nordeste de Marte Mas nós sabemos muito bem que essa atitude representa uma forma de marginalização e exclusão Para mostrar que a fala nordestina nada tem de engraçada ou ridícula vamos fazer uma pequena comparação Na pronúncia normal do Sudeste a consoante que escrevemos T é pronunciada tš como em tcheco toda vez que é seguida de um i Esse fenômeno fonético se chama palatalização Por causa dele nós sudestinos pronunciamos tšitšia a palavra escrita TITIA E todo mundo acha isso perfeitamente normal ninguém tem vontade de rir quando um carioca mineiro ou capixaba fala assim Quando porém um falante do Sudeste ouve um falante da zona rural nordestina pronunciar a palavra escrita OITO como oytšu ele acha isso muito engraçado ridículo ou errado Ora do ponto de vista meramente lingüístico o fenômeno é o mesmo palatalização só que o elemento provocador dessa palatalização o y está antes do t e não depois dele Então se o fenômeno é o mesmo por que na boca de um ele é normal e na boca de outro ele é engraçado pg 44 feio ou errado Porque o que está em jogo aqui não é a língua mas a pessoa que fala essa língua e a região geográfica onde essa pessoa vive Se o Nordeste é atrasado pobre subdesenvolvido ou na melhor das hipóteses pitoresco então naturalmente as pessoas que lá nasceram e a língua que elas falam também devem ser consideradas assim Ora façame o favor Rede Globo pg 45 Mito n5 O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão Não sei quem foi a primeira pessoa que proferiu essa grande bobagem mas a realidade é que até hoje ela continua sendo repetida por muita gente por aí inclusive gente culta que não sabe que isso é apenas um mito sem nenhuma fundamentação científica De onde será que veio essa idéia Esse mito nasceu mais uma vez da velha posição de subserviência em relação ao português de Portugal É sabido que no Maranhão ainda se usa com grande regularidade o pronome tu seguido das formas verbais clássicas com a terminação em s característica da segunda pessoa tu vais tu queres tu dizes tu comias tu cantavas etc Na maior parte do Brasil como sabemos devido à reorganização do sistema pronominal de que já falei o pronome tu foi substituído por você Aliás nas palavras da boneca Emília o tu já está velho coroco e o que ele deve fazer na opinião dela é ir arrumando a trouxa e pondose ao fresco e mudarse de vez para o bairro das palavras arcaicas De fato o pronome tu está em vias de extinção na fala do brasileiro e quando ainda é usado como por exemplo em alguns falares característicos de certas camadas sociais do Rio de Janeiro o verbo assume a forma da terceira pessoa tu vai tu fica tu quer tu deixa disso etc que caracteriza também a fala informal de algumas outras regiões Em Pernambuco por pg 46 exemplo é muito comum a interjeição interrogativa tu acha para indicar surpresa ou indignação Ora somente por esse arcaísmo por essa conservação de um único aspecto da linguagem clássica literária que coincide com a língua falada em Portugal ainda hoje é que se perpetua o mito de que o Maranhão é o lugar onde melhor se fala o português no Brasil Acontece porém que os defensores desse mito não se dão conta de que ao utilizarem o critério prescritivista de correção para sustentálo se esquecem de que os mesmos maranhenses que dizem tu és tu vais tu foste tu quiseste também dizem Esse é um bom livro para ti ler em vez da forma correta Esse é um bom livro para tu leres Ou seja eles atribuem ao pronome ti a mesma função de sujeito que em amplas regiões do Brasil nas mais diversas camadas sociais cultas inclusive é atribuída ao pronome mim quando antecedido da preposição para e seguido de verbo no infinitivo Para mim fazer isso vou precisar da sua ajuda uma construção sintática que deixa tanta gente de cabelo em pé O que acontece com o português do Maranhão em relação ao português do resto do país é o mesmo que acontece com o português de Portugal em relação ao português do Brasil não existe nenhuma variedade nacional regional ou local que seja intrinsecamente melhor mais pura mais bonita mais correta que outra Toda variedade lingüística atende às necessidades da comunidade de seres humanos que a empregam Quando deixar de atender ela inevitavelmente sofrerá transformações para pg 47 se adequar às novas necessidades Toda variedade lingüística é também o resultado de um processo histórico próprio com suas vicissitudes e peripécias particulares Se o português de São Luís do Maranhão e de Belém do Pará assim como o de Florianópolis conservou o pronome tu com as conjugações verbais lusitanas é porque nessas regiões aconteceu no período colonial uma forte imigração de açorianos cujo dialeto específico influenciou a variedade de português brasileiro falado naqueles locais O mesmo acontece com algumas características italianizantes do português da cidade de São Paulo onde é grande a presença dos imigrantes italianos e seus descendentes ou com castelhanismos evidentes na fala dos gaúchos que mantêm estreitos contatos culturais com seus vizinhos argentinos e uruguaios Numa entrevista à revista Veja 10997 Pasquale Cipro Neto disse que é pura lenda a idéia de que o Maranhão é o lugar do Brasil onde melhor se fala português Ponto para ele Infelizmente continuando a tratar do assunto não hesitou em afirmar que no cômputo geral o carioca é o que se expressa melhor sob a ótica da norma culta e que a São Paulo que fala dois pastel e acabou as ficha é um horror Não acredito que o fato de ser uma cidade com grande número de imigrantes seja uma explicação suficiente para esse português esquisito dos paulistanos Na verdade é inexplicável Faltam argumentos científicos rigorosos por parte do entrevistado que nos expliquem como chegou ao cômputo pg 48 geral que lhe permitiu atribuir ao carioca uma expressão melhor sob a ótica da norma culta nem com que critérios metodológicos chegou à conclusão de que o português paulistano é esquisito O uso de expressões tão generalizadoras como o carioca de que classe social de que faixa etária com que nível de instrução ou a São Paulo que fala quase vinte milhões de habitantes duas vezes a população de Portugal acaba reforçando indiretamente devido à influência inegável de quem as formulou como formador de opinião a idéia de que o falar carioca é melhor e digno de maior prestígio que os demais falares brasileiros idéia que no passado levou até a se querer impor a pronúncia carioca como a oficial no teatro no canto lírico e nas salas de aula do Brasil inteiro As pesquisas sociolingüísticas que se baseiam em coleta de dados por meio de gravações da fala espontânea viva dos usuários nativos da língua confirmam uma suposição óbvia as pessoas das classes cultas de qualquer lugar dominam melhor a norma culta do que as pessoas das classes nãocultas de qualquer lugar Falantes cultos do Rio de Janeiro do Recife de Porto Alegre de São Paulo de Catolé do Rocha ou de Guaratinguetá se expressarão igualmente bem sob a ótica da norma culta Basta consultar por exemplo o enorme acervo de centenas de horas de gravação da fala urbana culta recolhido pelos pesquisadores do Projeto NURC5 para confirmar que pg 49 apesar das inevitáveis variações regionais existe uma norma urbana culta geral brasileira Muitos aspectos dessa norma urbana culta estão descritos nos seis volumes da Gramática do português falado uma grande obra coletiva publicada pela Editora da UNICAMP resultado do trabalho de investigação e análise de dezenas de lingüistas das mais diversas regiões do país De igual modo fenômenos de concordância do tipo dois pastel e acabou as ficha são facilmente encontráveis na fala carioca como podemos ouvir nas fitas gravadas do Projeto CENSO que 5 O material do Projeto NURC pode ser consultado nos vários livros publicados com as transcrições das fitas gravadas nas cincos diferentes cidades que compõem o projeto Recife Salvador Rio de Janeiro São Paulo e Porto Alegre Alguns desses livros são CASTILHO PRETI A linguagem falada culta na cidade de São Paulo São Paulo T A QueirozFAPESP 1987 vol 1 e 1988 vol 2 CALLOU LOPES A linguagem falada culta na cidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro UFRJ 1992 vol 1 1993 vol 2 e 1994 vol 3 HILGERT A linguagem falada culta na cidade de Porto Alegre UFRS 1997 vol 1 MOTA ROLLEMBERG A linguagem falada culta na cidade do Salvador UFBA 1994 vol 1 SÁ CUNHA LIMA OLIVEIRA A linguagem falada culta na cidade do Recife UFPE 1996 investiga o uso da língua no Rio de Janeiro nas classes sociais não cultas isto é pessoas que não cursaram universidade6 Além disso esse tipo de concordância se verifica de Norte a Sul do Brasil e também em Portugal segundo pesquisas recentes da professora Maria Marta Scherre Essa mesma pesquisadora defendeu na Universidade Federal do Rio de Janeiro uma tese de doutorado com o título Reanálise da concordância pg 50 nominal em português com 555 páginas que hoje é uma referência obrigatória para quem se aventurar a emitir opiniões a respeito Scherre mostra que ao contrário do que pensa Cipro aqueles fenômenos de concordância são na verdade altamente explicáveis Portanto não representam uma mera esquisitice dos paulistanos muito menos um horror Convém salientar que a determinação das normas culta e não culta é uma questão de grau de freqüência das variantes o que os normativistas considerariam erros ou acertos Por exemplo coisas como os menino tudo ou houveram fatos podem aparecer na fala de brasileiros cultos É preciso abandonar essa ânsia de tentar atribuir a um único local ou a uma única comunidade de falantes o melhor ou o pior português e passar a respeitar igualmente todas as variedades da língua que constituem um tesouro precioso de nossa cultura Todas elas têm o seu valor são veículos plenos e perfeitos de comunicação e de relação entre as pessoas que as falam Se tivermos de incentivar o uso de uma norma culta não podemos fazêlo de modo absoluto fonte do preconceito Temos de levar em consideração a presença de regras variáveis em todas as variedades a culta inclusive pg 51 6 A análise de alguns fenômenos variáveis do português falado na cidade do Rio de Janeiro com base no acervo do Projeto CENSO se encontra no livro organizado por SILVA SCHERRE Padrões sociolingüísticos Rio de Janeiro Tempo BrasileiroUFRJ 1996 Mito n 6 O certo é falar assim porque se escreve assim Diante de uma tabuleta escrita COLÉGIO é provável que um pernambucano lendoa em voz alta diga CÒlégio que um carioca diga CUlégio que um paulistano diga CÔlégio E agora Quem está certo Ora todos estão igualmente certos O que acontece é que em toda língua do mundo existe um fenômeno chamado variação isto é nenhuma língua é falada do mesmo jeito em todos os lugares assim como nem todas as pessoas falam a própria língua de modo idêntico Infelizmente existe uma tendência mais um preconceito muito forte no ensino da língua de querer obrigar o aluno a pronunciar do jeito que se escreve como se essa fosse a única maneira certa de falar português Imagine se alguém fosse falar inglês ou francês do jeito que se escreve Muitas gramáticas e livros didáticos chegam ao cúmulo de aconselhar o professor a corrigir quem fala muleque bêjo minino bisôro como se isso pudesse anular o fenômeno da variação tão natural e tão antigo na história das línguas Essa supervalorização da língua escrita combinada com o desprezo da língua falada é um preconceito que data de antes de Cristo É claro que é preciso ensinar a escrever de acordo com a ortografia oficial mas não se pode fazer isso tentando criar uma língua falada artificial e reprovando como erradas as pronúncias que são resultado natural das pg 52 forças internas que governam o idioma Seria mais justo e democrático dizer ao aluno que ele pode dizer BUnito ou BOnito mas que só pode escrever BONITO porque é necessária uma ortografia única para toda a língua para que todos possam ler e compreender o que está escrito mas é preciso lembrar que ela funciona como a partitura de uma música cada instrumentista vai interpretála de um modo todo seu particular O pintor belga René Magritte 18981967 tem um quadro famoso chamado A traição das imagens no qual se vê a figura de um cachimbo e embaixo dela a frase escrita Isto não é um cachimbo Em que esse exemplo pode servir à nossa discussão Isso não é um cachimbo de verdade mas simplesmente a representação gráfica pictórica de um cachimbo O mesmo acontece com a escrita alfabética em sua regulamentação ortográfica oficial Ela não é a fala é uma tentativa pg 53 de representação gráfica pictórica e convencional da língua falada Falarei mais detidamente da paranóia ortográfica na terceira parte deste livro Quando digo que a escrita é uma tentativa de representação é porque sabemos que não existe nenhuma ortografia em nenhuma língua do mundo que consiga reproduzir a fala com fidelidade Algumas ortografias como a do espanhol têm regras mais generalizáveis mais simples e mais coerentes que facilitam o ato de ler e escrever Mesmo assim no castelhanopadrão da Espanha pode sempre haver dúvidas Z ou C B ou V G ou J Outras línguas como o inglês têm mais exceções do que regras e é preciso aprender a escrever e a pronunciar praticamente cada palavra pois a generalização das regras ortográficas tem boa chance de falhar para um falante de português é estranho imaginar que as palavras jail e gaol tenham a mesma pronúncia Outras ainda como o chinês não buscam reproduzir a língua falada e optam pela escrita ideográfica Esta relação complicada entre língua falada e língua escrita precisa ser profundamente reexaminada no ensino Durante mais de dois mil anos os estudos gramaticais se dedicaram exclusivamente à língua escrita literária formal Foi somente no começo do século XX com o nascimento da ciência lingüística que a língua falada passou a ser considerada como o verdadeiro objeto de estudo científico Afinal a língua falada é a língua tal como foi aprendida pelo falante em seu contato com a família e com a comunidade pg 54 logo nos primeiros anos de vida É o instrumento básico de sobrevivência Um grito de socorro tem muito mais eficácia do que essa mesma mensagem escrita A língua escrita por seu lado é totalmente artificial exige treinamento memorização exercício e obedece a regras fixas de tendência conservadora além de ser uma representação não exaustiva da língua falada Faça você mesmo o teste pegue uma palavra bem simples fogo por exemplo e pronunciea com todas as inflexões e tons de voz que conseguir espanto medo alegria tristeza saudade ira remorso horror felicidade histeria pavor Depois tente reproduzir por escrito essas mesmas inflexões e tons de voz É impossível O máximo que a língua escrita oferece são os sinais de exclamação e de interrogação A mera forma escrita não é capaz de traduzir as inflexões e as intenções pretendidas pelo falante Por isso os autores de textos teatrais indicam entre parênteses a emoção sensação ou sentimento que o ator deve expressar numa dada fala A importância da língua falada para o estudo científico está principalmente no fato de ser nessa língua falada que ocorrem as mudanças e as variações que incessantemente vão transformando a língua Quem quiser por exemplo conhecer o estado atual da língua portuguesa do Brasil precisará investigar empiricamente a língua falada como fazem os pesquisadores dos projetos NURC e CENSO que já citei entre outros Afinal a escola as gramáticas normativas e os livros didáticos até hoje afirmam que os pronomes sujeitos de segunda pessoa são pg 55 tu e vós que o pronome você é simplesmente uma forma de tratamento que a mesóclise dar voloei diloíamos amarnosemos ainda é uma opção para a colocação dos pronomes oblíquos ou que o futuro do subjuntivo do verbo ver é vir Essa porém já não é a realidade de boa parte da língua escrita no Brasil que dirá da língua falada Do ponto de vista da história de cada indivíduo o aprendizado da língua falada sempre precede o aprendizado da língua escrita quando ele acontece Basta citar os bilhões de pessoas que nascem crescem vivem e morrem sem jamais aprender a ler e a escrever E no entanto ninguém pode negar que são falantes perfeitamente competentes de suas línguas maternas Do ponto de vista da história da humanidade é a mesma coisa A espécie humana tem pelo menos um milhão de anos Ora as primeiras formas de escrita conforme a classificação tradicional dos historiadores surgiram há apenas nove mil anos A humanidade portanto passou 990000 anos apenas falando Quando o estudo da gramática surgiu no entanto na Antigüidade clássica seu objetivo declarado era investigar as regras da língua escrita para poder preservar as formas consideradas mais corretas e elegantes da língua literária Aliás a palavra gramática em grego significa exatamente a arte de escrever Infelizmente essas mesmas regras da língua literária começaram a ser cobradas da língua falada o que é um disparate científico sem tamanho pg 56 Há cientistas que se dedicam especificamente a estudar as diferenças semelhanças interrelações e interações que existem entre as duas modalidades O ensino tradicional da língua no entanto quer que as pessoas falem sempre do mesmo modo como os grandes escritores escreveram suas obras A gramática tradicional despreza totalmente os fenômenos da língua oral e quer impor a ferro e fogo a língua literária como a única forma legítima de falar e escrever como a única manifestação lingüística que merece ser estudada Vejase por exemplo o caso da Nova gramática do português contemporâneo de Celso Cunha e Lindley Cintra Ao definirem o objetivo de seu trabalho os autores declaram no prefácio Tratase de uma tentativa de descrição do português atual na sua forma culta isto é da língua como a têm utilizado os escritores portugueses brasileiros e africanos do Romantismo para cá grifo meu Essa obra portanto só pode ser consultada por quem tiver dúvidas no momento de escrever um texto literário já que segundo os próprios autores não serão abordados fenômenos característicos de outras normas escritas como a jornalística ou a da produção científica muito menos os fenômenos típicos da língua falada A gramática de Celso Cunha e Lindley Cintra é louvável pela honestidade com que declara seu objeto de estudo embora por diversas razões que não cabe aqui enumerar eles não cumpram o que prometem no prefácio pg 57 e acabem tratando de fatos da língua oral ao lado de fenômenos característicos da escrita A maioria das outras obras desse gênero porém não faz assim seus autores assumem a norma literária como a única digna de ser estudada ensinada e praticada e acham isso tão natural que nem se dão ao trabalho de definila como seu objeto de estudo Fica evidente que para eles só essa norma literária conservadora merece o título de língua portuguesa O que é dito ali vale para todas as variedades do português em qualquer lugar do mundo em qualquer momento histórico em qualquer classe social em qualquer faixa etária Portanto não é uma gramática é uma panacéia Essa ênfase no texto literário tem produzido uma visão redutora da língua identificandoa freqüentemente apenas com a regulamentação ortográfica Como se não bastasse os autores de compêndios gramaticais inclusive os mais recentes não fazem a distinção básica elementar entre ortografia e fonética isto é entre as regras da língua escrita e os fenômenos da língua oral Aliás por mais incrível que pareça muitos deles classificam a ortografia como uma das subdivisões da fonética É o mesmo que querer incluir os ursinhos de pelúcia na classe dos mamíferos carnívoros Gramático muito mais criterioso e atento é o rinoceronte Quindim personagem do Sítio do Picapau Amarelo de Monteiro Lobato que levando as crianças do sítio a passear pelo País da Gramática insistiu muito para que seus alunos não confundissem letra e som p 6 pg 58 Trotou trotou e depois de muito trotar deu com eles numa região onde o ar chiava de modo estranho Que zumbido será este indagou a menina Narizinho Parece que andam voando por aqui milhões de vespas invisíveis É que já entramos em terras do País da Gramática explicou o rinoceronte Estes zumbidos são os Sons Orais que voam soltos no espaço Não comece a falar difícil que nós ficamos na mesma observou Emília Sons Orais que pedantismo é esse Som Oral quer dizer som produzido pela boca A E I O U são Sons Orais como dizem os senhores gramáticos Pois diga logo que são letras gritou Emília Mas não são letras protestou o rinoceronte Quando você diz A ou O você está produzindo um som não está escrevendo uma letra Letras são sinaizinhos que os homens usam para representar esses sons Primeiro há os Sons Orais depois é que aparecem as letras para marcar esses sons orais Entendeu O ar continuava num zunzum cada vez maior Os meninos pararam muito atentos a ouvir Estou percebendo muitos sons que conheço disse Pedrinho com a mão em concha ao ouvido Todos os sons que andam zumbindo por aqui são velhos conhecidos seus Pedrinho Querem ver que é o tal alfabeto lembrou Narizinho E é mesmo Estou distinguindo todas as letras do alfabeto Não menina você está apenas distinguindo todos os sons das letras do alfabeto corrigiu o rinoceronte com uma pachorra igual à de dona Benta Se você escrever cada um desses sons então sim então surgem as letras do alfabeto pg 59 Esse livro de Monteiro Lobato foi publicado em 1934 Mas as lições do rinoceronte Quindim ainda precisam ser lembradas e relembradas pois a literatura gramatical perpetua até hoje a confusão entre letra e fonema É assim que procedem por exemplo Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante em sua Gramática da língua portuguesa publicada no final de 1997 Por isso a gente não deve se surpreender quando esses autores explicam que a letra x representa o fonema š depois de um ditongo e dão como exemplo de palavras com ditongo ameixa caixa peixe eixo frouxo trouxa baixo sem fazer a menor menção ao fenômeno de monotongação que já atingiu essas palavras na língua falada no Brasil inclusive em sua norma culta urbana resultando nas pronúncias amêxa caxa pêxe êxo frôxo e baxo O termo ditongo dois sons que se aplica a um fenômeno fonético não cabe nesses exemplos que retratam simplesmente a convenção ortográfica que ainda conserva na escrita as duas letras vogais antes do X O que acontece é que esses monotongos podem vir a se ditongar em situações bem específicas tal como a redução da velocidade da fala com finalidade de dar ênfase ao enunciado Pensemos por exemplo no uso das palavras louco e loucura quando usadas de modo afetado para indicar coisas surpreendentes ou muito boas Foi uma louuucura Os mesmos autores dizem que na palavra QUAL existe um ditongo crescente quando qualquer brasileiro de ouvido mais afinado vai reconhecer aí na verdade um tritongo É muito restrita no português do Brasil a pronúncia pg 60 l ou ł para o L que aparece em final de sílaba Na grande maioria dos falares brasileiros esse L se pronúncia como a semivogal w É o velho preconceito grafocêntrico isto é a análise de toda a língua do ponto de vista restrito da escrita que impede o reconhecimento da verdadeira realidade lingüística Por isso temos de desconfiar desses livros que se autodenominam Gramática da língua portuguesa sem especificar seu objeto de estudo A língua portuguesa que eles abordam é uma variedade específica dentre as muitas existentes que tem de ser designada com todos os seus qualificativos Gramática da língua portuguesa escrita literária formal antiga Todos os demais fenômenos vivos da língua falada e de outras modalidades da língua escrita são deixados de fora desses livros pg 61 Mito n 7 É preciso saber gramática para falar e escrever bem É difícil encontrar alguém que não concorde com a declaração acima Ela vive na ponta da língua da grande maioria dos professores de português e está formulada em muitos compêndios gramaticais como a já citada Gramática de Cipro e Infante cujas primeiríssimas palavras são A Gramática é instrumento fundamental para o domínio do padrão culto da língua É muito comum também os pais de alunos cobrarem dos professores o ensino dos pontos de gramática tais como eles próprios os aprenderam em seu tempo de escola E não faltam casos de pais que protestaram veementemente contra professores e escolas que tentando adotar uma prática de ensino da língua menos conservadora não seguiam rigorosamente o que está nas gramáticas Conheço gente que tirou seus filhos de uma escola porque o livro didático ali adotado não ensinava coisas indispensáveis como antônimos coletivos e análise sintática Por que aquela declaração é um mito Porque como nos diz Mário Perini em Sofrendo a gramática p 50 não existe um grão de evidência em favor disso toda a evidência disponível é em contrário Afinal se fosse assim todos os gramáticos seriam grandes escritores o que está longe de ser verdade e os bons escritores seriam especialistas em gramática pg 62 Ora os escritores são os primeiros a dizer que gramática não é com eles Rubem Braga indiscutivelmente um dos grandes de nossa literatura escreveu uma crônica deliciosa a esse respeito chamada Nascer no Cairo ser fêmea de cupim Carlos Drummond de Andrade preciso de adjetivos para qualificálo no poema Aula de Português também dá testemunho de sua perturbação diante do mistério das figuras de gramática esquipáticas que compõem o amazonas de minha ignorância Drummond ignorante E o que dizer de Machado de Assis que ao abrir a gramática de um sobrinho se espantou com sua própria ignorância por não ter entendido nada Esse e outros casos são citados por Celso Pedro Luft em Língua e liberdade pp 2325 E esse mesmo autor nos diz p 21 Um ensino gramaticalista abafa justamente os talentos naturais incute insegurança na linguagem gera aversão ao estudo do idioma medo à expressão livre e autêntica de si mesmo Mário Perini no livro que citamos acima chama a atenção para a propaganda enganosa contida no mito de que é preciso ensinar gramática para aprimorar o desempenho lingüístico dos alunos Quando justificamos o ensino de gramática dizendo que é para que os alunos venham a escrever ou ler ou falar melhor estamos prometendo uma mercadoria que não podemos entregar Os alunos percebem isso com bastante clareza embora talvez não o possam explicitar e esse é um dos fatores do descrédito da disciplina entre eles pg 63 E Sirio Possenti já citado lembranos que as primeiras gramáticas do Ocidente as gregas só foram elaboradas no século II a C mas que muito antes disso já existira na Grécia uma literatura ampla e diversificada que exerce influência até hoje em toda a cultura ocidental A Ilíada e a Odisséia já eram conhecidas no século VI a C Platão escreveu seus fascinantes Diálogos entre os séculos V e IV a C na mesma época do grande dramaturgo Esquilo verdadeiro criador da tragédia grega Que gramática eles consultaram Nenhuma Como puderam então escrever e falar tão bem sua língua O que aconteceu ao longo do tempo foi uma inversão da realidade histórica As gramáticas foram escritas precisamente para descrever e fixar como regras e padrões as manifestações lingüísticas usadas espontaneamente pelos escritores considerados dignos de admiração modelos a ser imitados Ou seja a gramática normativa é decorrência da língua é subordinada a ela dependente dela Como a gramática porém passou a ser um instrumento de poder e de controle surgiu essa concepção de que os falantes e escritores da língua é que precisam da gramática como se ela fosse uma espécie de fonte mística invisível da qual emana a língua bonita correta e pura A língua passou a ser subordinada e dependente da gramática O que não está na gramática normativa não é português E os compêndios gramaticais se transformaram em livros sagrados cujos dogmas e cânones têm de ser obedecidos à risca para não se cometer nenhuma heresia pg 64 O resultado dessa inversão dos fatos históricos é visível por exemplo na Gramática de Cipro e Infante que na p 16 afirma A Gramática normativa estabelece a norma culta ou seja o padrão lingüístico que socialmente é considerado modelar As línguas que têm forma escrita como é o caso do português necessitam da Gramática normativa para que se garanta a existência de um padrão lingüístico uniforme Ora não é a gramática normativa que estabelece a norma culta A norma culta simplesmente existe como tal A tarefa de uma gramática seria isso sim definir identificar e localizar os falantes cultos coletar a língua usada por eles e descrever essa língua de forma clara objetiva e com critérios teóricos e metodológicos coerentes Sem isso não podemos confiar em gramáticas como a de Domingos Paschoal Cegalla que afirma simplesmente Este livro pretende ser uma Gramática Normativa da Língua Portuguesa do Brasil conforme a falam e escrevem as pessoas cultas na época atual Novíssima gramática da língua portuguesa p xix Mas quem são essas pessoas cultas na época atual Com que critérios o autor as classificou de cultas Com que metodologia precisa identificou o modo como elas falam e escrevem Pois é disso precisamente que mais necessitamos hoje no Brasil da descrição detalhada e realista da norma culta objetiva com base em coletas confiáveis que se utilizem dos recursos tecnológicos mais avançados para que ela sirva de base ao ensinoaprendizagem pg 65 na escola e não mais uma norma fictícia que se inspira num ideal lingüístico inatingível baseado no uso literário artístico particular e exclusivo dos grandes escritores Afinal um instrutor de autoescola quer formar bons motoristas e não campeões internacionais de Fórmula 1 Um professor de português quer formar bons usuários da língua escrita e falada e não prováveis candidatos ao Prêmio Nobel de literatura Por outro lado não é a gramática normativa que vai garantir a existência de um padrão lingüístico uniforme Esse padrão lingüístico que pode chegar a certo grau de uniformidade mas nunca será totalmente uniforme pois é usado por seres humanos que nunca hão de ser criaturas física psicológica e socialmente idênticas como já dissemos existe na sociedade independentemente de haver ou não livros que o descrevam As plantas só existem porque os livros de botânica as descrevem É claro que não Os continentes só passaram a existir depois que os primeiros cartógrafos desenharam seus mapas Difícil acreditar A Terra só passou a ser esférica depois que as primeiras fotografias tiradas do espaço mostraramna assim Não Sem os livros de receitas não haveria culinária Eu sei muito bem que não a melhor cozinheira que conheço capaz de preparar centenas de pratos diferentes os mais sofisticados é uma pernambucana de quase oitenta anos cem por cento analfabeta Esse mito está ligado à milenar confusão que se faz entre língua e gramática normativa Mas é preciso desfazêla pg 66 Não há por que confundir o todo com a parte Lembrase do que eu falei na abertura do livro sobre a gramática normativa ser um igapó Acho que vale a pena repetir aqui Na Amazônia igapó é uma grande poça de água estagnada às margens de um rio sobretudo depois da cheia Acho uma boa metáfora para a gramática normativa Como eu disse enquanto a língua é um rio caudaloso longo e largo que nunca se detém em seu curso a gramática normativa é apenas um igapó uma grande poça de água parada um charco um brejo um terreno alagadiço à margem da língua Enquanto a água do riolíngua por estar em movimento se renova incessantemente a água do igapógramática normativa envelhece e só se renovará quando vier a próxima cheia É a mesma coisa que nos explica em termos científicos Luiz Carlos Cagliari em Alfabetização lingüística7 A gramática normativa foi num primeiro momento uma gramática descritiva de um dialeto de uma língua Depois a sociedade fez dela um corpo de leis para reger o uso da linguagem Por sua própria natureza uma gramática normativa está con denada ao fracasso já que a linguagem é um fenômeno dinâmico e as línguas mudam com o tempo e para continuar sendo a expressão do poder social demonstrado por um dialeto a gramática normativa deveria mudar Se não é o ensinoestudo da gramática que vai garantir a formação de bons usuários da língua o que vai garantila Existe muito debate a respeito entre os lingüistas pg 67 e os pedagogos O certo é que eles são praticamente unânimes em combater aquele mito Há lugar para a gramática na escola Parece que sim Mas também parece ser um lugar bastante diferente do que lhe era atribuído na prática tradicional de ensino da língua Na terceira parte deste livro tentarei expor algumas opiniões a respeito De todo modo algumas pessoas muito competentes já explicaram tudo isso melhor do que eu seria capaz Por isso ao leitor e à leitora interessados nesse tema recomendo a leitura entre outros dos já citados Sofrendo a gramática de Mário Perini Por que não ensinar gramática na escola de Sírio Possenti e Língua e liberdade de Celso Pedro Luft e também Linguagem língua e fala de Ernani Terra Contradições no ensino de português de Rosa Virgínia Mattos e Silva e Gramática na escola de Maria Helena de Moura Neves Esses livros nos ajudam a compreender melhor os mecanismos de exclusão que agem por trás da imposição das normas gramaticais conservadoras no ensino da língua e de que 7 Citado por Ernani Terra Linguagem língua e fala p 46 modo poderíamos em nossa prática pedagógica tentar desmontá los pg 68 Mito n8 O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social Este mito que vem fechar nosso circuito mitológico tem muito que ver com o primeiro o mito da unidade lingüística do Brasil Esses dois mitos são aparentados porque ambos tocam em sérias questões sociais É muito comum encontrar pessoas muito bem intencionadas que dizem que a norma padrão conservadora tradicional literária clássica é que tem de ser mesmo ensinada nas escolas porque ela é um instrumento de ascensão social Seria então o caso de dar uma língua àqueles que eu chamei de sem língua Ora se o domínio da norma culta fosse realmente um instrumento de ascensão na sociedade os professores de português ocupariam o topo da pirâmide social econômica e política do país não é mesmo Afinal supostamente ninguém melhor do que eles domina a norma culta Só que a verdade está muito longe disso como bem sabemos nós professores a quem são pagos alguns dos salários mais obscenos de nossa sociedade Por outro lado um grande fazendeiro que tenha apenas alguns poucos anos de estudo primário mas que seja dono de milhares de cabeças de gado de indústrias agrícolas e detentor de grande influência política em sua região vai poder falar à vontade sua língua de caipira com todas as formas sintáticas consideradas erradas pela gramática pg 69 tradicional porque ninguém vai se atrever a corrigir seu modo de falar O que estou tentando dizer é que o domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha todos os dentes que não tenha casa decente para morar água encanada luz elétrica e rede de esgoto O domínio da norma culta de nada vai servir a uma pessoa que não tenha acesso às tecnologias modernas aos avanços da medicina aos empregos bem remunerados à participação ativa e consciente nas decisões políticas que afetam sua vida e a de seus concidadãos O domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha seus direitos de cidadão reconhecidos plenamente a uma pessoa que viva numa zona rural onde um punhado de senhores feudais controlam extensões gigantescas de terra fértil enquanto milhões de famílias de lavradores semterra não têm o que comer Achar que basta ensinar a norma culta a uma criança pobre para que ela suba na vida é o mesmo que achar que é preciso aumentar o número de policiais na rua e de vagas nas penitenciárias para resolver o problema da violência urbana A violência urbana está intimamente ligada a uma situação social de profunda injustiça que dá ao Brasil como eu já disse o triste segundo lugar entre os países com a pior distribuição de renda de todo o mundo perdendo apenas para Botswana um país africano desértico muito menor e muito menos desenvolvido É preciso garantir sim a todos os brasileiros o reconhecimento sem o tradicional julgamento de valor da pg 70 variação lingüística porque o mero domínio da norma culta não é uma fórmula mágica que de um momento para outro vai resolver todos os problemas de um indivíduo carente É preciso favorecer esse reconhecimento mas também garantir o acesso à educação em seu sentido mais amplo aos bens culturais à saúde e à habitação ao transporte de boa qualidade à vida digna de cidadão merecedor de todo respeito Como é fácil perceber o que está em jogo não é a simples transformação de um indivíduo que vai deixar de ser um sem língua padrão para tornarse um falante da variedade culta O que está em jogo é a transformação da sociedade como um todo pois enquanto vivermos numa estrutura social cuja existência mesma exige desigualdades sociais profundas toda tentativa de promover a ascensão social dos marginalizados é senão hipócrita e cínica pelo menos de uma boa intenção paternalista e ingênua Por isso eu me pergunto será que doando a língua padrão a um indivíduo das classes subalternas ele vai automaticamente tornarse um patrão Não é mera coincidência etimológica o fato de padrão e patrão serem duas formas divergentes de uma mesma origem comum o latim patronu que tem também a mesma raiz de paternalismo e patriarcalismo Valerá mesmo a pena promover a ascensão social para que alguém se enquadre dentro desta sociedade em que vivemos tal como ela se apresenta hoje Basta pensar um pouco nos indivíduos que detêm o poder no Brasil não são quando são apenas falantes da norma culta mas são sobretudo em sua grande maioria homens pg 71 brancos heterossexuais nascidoscriados na porção SulSudeste do país ou oriundos das oligarquias feudais do Nordeste Como eu já tinha avisado na abertura do livro falar da língua é falar de política e em nenhum momento esta reflexão política pode estar ausente de nossas posturas teóricas e de nossas atitudes práticas de cidadão de professor e de cientista Do contrário estaremos apenas contribuindo para a manutenção do círculo vicioso do preconceito lingüístico e do irmão gêmeo dele o círculo vicioso da injustiça social pg 72 Mito n 2 Brasileiro não sabe português Só em Portugal se fala bem português Essas duas opiniões tão habituais corriqueiras comuns e que na realidade são duas faces de uma mesma moeda enferrujada refletem o complexo de inferioridade o sentimento de sermos até hoje uma colônia dependente de um país mais antigo e mais civilizado Podemos encontrar essa concepção expressa no livro Língua viva de Sérgio Nogueira Duarte que é uma coletânea de suas colunas sobre língua portuguesa publicadas no Jornal do Brasil Ali a gente lê na página 65 Sempre me perguntam onde se fala o melhor português Só pode ser em Portugal Já viajei muito pelo Brasil e já estive em todas as regiões Sinceramente não sei onde se fala melhor Cada região tem suas qualidades e seus vícios de linguagem grifo meu Por isso não consigo concordar com o título do livro que está longe de analisar a verdadeira língua viva usada em nosso país nem com o subtítulo uma análise simples e bemhumorada da linguagem do brasileiro Seria mais acertado dizer que se trata de uma análise preconceituosa e desinformada da língua falada e escrita por aqui Mas não podemos culpar o autor que é antes uma vítima do que propriamente um responsável por esse preconceito ele está apenas exprimindo uma ideologia impregnada em nossa cultura há muito tempo pg 20 É a mesma concepção torpe segundo a qual o Brasil é um país subdesenvolvido porque sua população não é uma raça pura mas sim o resultado de uma mistura negativa de raças sendo que duas delas a negra e a indígena são inferiores à do branco europeu por isso nosso povinho só pode ser o que é Ora há muito tempo a ciência destruiu o mito da raça pura que é um conceito absurdo sem nenhuma possibilidade de verificação na realidade de nenhum povo por mais isolado que seja Assim uma raça que não é pura não poderia falar uma língua pura Não é difícil encontrar intelectuais renomados que lamentem a corrupção do português falado no Brasil língua de matutos de caipiras infelizes arremedo tosco da língua de Camões É o que escreve por exemplo Arnaldo Niskier presidente da Academia Brasileira de Letras num artigo publicado na Folha de S Paulo 15198 podese registrar o fato facilmente comprovável de que nunca se escreveu e falou tão mal o idioma de Ruy Barbosa A classe dita culta mostrase displicente em relação à língua nacional e a indigência vocabular tomou conta da juventude e dos não tão jovens assim quase como se aqueles se orgulhassem de sua própria ignorância e estes quisessem voltar atrás no tempo Para mostrar o quanto declarações desse tipo se baseiam mais em posturas preconceituosas perpetuadas ao longo dos séculos pela desinformação ou má informação do que em análises científicas acuradas dos fatos lingüísticos vamos ler o seguinte trecho do filólogo Cândido de Figueiredo pg 21 Quanto mais progressiva é a civilização de um povo mais sujeita é a sua língua a deturpações e vícios sob a variada influência das relações internacionais dos novos inventos das travancas da ignorância e até dos caprichos da moda Sábios e romancistas poetas e prosadores e nomeadamente a imprensa periódica parece haverem conspirado para dar curso às mais extraordinárias invenções e enxertos de linguagem Ora essas palavras foram escritas em 1903 num livro chamado O que se não deve dizer sim o título é esse mesmo É surpreendente como elas têm o mesmo tom de queixa e censura das palavras de Niskier escritas noventa e cinco anos depois Niskier também faz neste artigo uma referência queixosa ao pouco apreço que devotamos ao gosto pela leitura Nosso índice per capita mal alcança dois livros por habitante na França por exemplo oscila em torno de oito e passa a elogiar os hábitos culturais dos franceses que valorizam mais a leitura do que os brasileiros Esqueceuse porém de dizer que a França ocupa a 11ª posição no quadro do IDH Índice de Desenvolvimento Humano estabelecido pela ONU para avaliar a qualidade de vida nos 175 países do mundo O Brasil que em 1996 ocupava a 58a posição caiu em 1999 para a 79a devido à sensível piora das condições sociais dos brasileiros como um todo Diante de tamanha diferença um índice per capita de dois livros por ano num país com 60 milhões de analfabetos plenos e analfabetos funcionais número igual ao da população total da França é mesmo espantoso E da mesma forma como Niskier lamenta a invasão dos anglicismos Figueiredo diz que o enxerto da francesia pg 22 frutificou com exuberância classificando de malária o uso de palavras estrangeiras E se quiséssemos recuar ainda mais no tempo não teríamos dificuldades em encontrar outros autores vociferando contra a ruína da língua portuguesa e profetizando o fim dela Felizmente nenhuma dessas profecias se concretizou Os galicismos na passagem do século XIX para o XX e os anglicismos na virada do terceiro milênio não têm a força destruidora tão temida pelos puristas e conservadores A língua portuguesa nesses noventa e cinco anos se manteve muito bem obrigada falada e escrita por cada vez mais gente produziu uma literatura reconhecida mundialmente é propagada também em nível internacional pelo grande prestígio de que goza a música popular brasileira entre tantas outras provas de sua vitalidade E a avalanche ai um galicismo de palavras estrangeiras tem de ser analisada sob a perspectiva da dependência políticoeconômica e conseqüentemente cultural do Brasil e de Portugal para com os centros mundiais de poder Não adianta bradar contra a invasão de palavras na língua portuguesa sem analisar essa dependência É querer eliminar os efeitos sem atacar as verdadeiras causas E essa história de dizer que brasileiro não sabe português e que só em Portugal se fala bem português Tratase de uma grande bobagem infelizmente transmitida de geração a geração pelo ensino tradicional da gramática na escola O brasileiro sabe português sim O que acontece é que nosso português é diferente do português falado em pg 23 Portugal Quando dizemos que no Brasil se fala português usamos esse nome simplesmente por comodidade e por uma razão histórica justamente a de termos sido uma colônia de Portugal Do ponto de vista lingüístico porém a língua falada no Brasil já tem uma gramática isto é tem regras de funcionamento que cada vez mais se diferencia da gramática da língua falada em Portugal Por isso os lingüistas os cientistas da linguagem preferem usar o termo português brasileiro por ser mais claro e marcar bem essa diferença Na língua falada as diferenças entre o português de Portugal e o português do Brasil são tão grandes que muitas vezes surgem dificuldades de compreensão no vocabulário nas construções sintáticas no uso de certas expressões sem mencionar é claro as tremendas diferenças de pronúncia no português de Portugal existem vogais e consoantes que nossos ouvidos brasileiros custam a reconhecer porque não fazem parte de nosso sistema fonético3 E muitos estudos têm mostrado que os sistemas pronominais do português europeu e do português brasileiro são totalmente diferentes Por exemplo os pronomes oa de construções como eu o vi e eu a conheço estão praticamente extintos pg 24 no português falado no Brasil ao passo que no de Portugal continuam firmes e fortes Esses pronomes nunca aparecem na fala das crianças brasileiras nem na dos brasileiros nãoalfabetizados e têm baixa ocorrência na fala dos indivíduos cultos o que demonstra que são exclusivos da língua ensinada na escola sobretudo da língua escrita não fazendo parte então do repertório da língua materna dos brasileiros Nossas crianças usam sem problema me e te Ela me bateu Eu vou te pegar mas oa jamais que são substituídos por ele ela Eu vou pegar ele Eu vi ela As formas lo e la pegálo vêla então nem pensar Se as crianças não usam é porque não ouvem os adultos usar e se os adultos não usam 3 Assistindo um dia desses a televisão portuguesa por cabo ouvi os verbos uprar e dlibrar Consegue adivinhar o que é Sim operar e deliberar Também é comum os portugueses evitarem hiatos como a água introduzindo um y e pronunciando ayágua Além disso se uma palavra termina em s e a próxima começa com c os portugueses fundem essas duas consoantes numa só pronunciada como o x de xixi outros cinco é pronunciado otruxincu São realizações fonéticas totalmente estranhas à língua do brasileiro é porque não precisam desses pronomes E mesmo na língua dos adultos escolarizados esses pronomes só aparecem como um recurso estilístico em situações de uso mais formais quando o falante quer deixar claro que domina as regras impostas pela gramática escolar A gramática escolar no entanto desconhece essa transformação por que a língua está passando e insiste em considerar erradas construções como Eu conheço ele Você viu ela chegar etc O único nível em que ainda é possível uma compreensão quase total entre brasileiros e portugueses é o da língua escrita formal porque a ortografia é praticamente a mesma com poucas diferenças Mas um mesmo texto lido em voz alta por um brasileiro e por um português vai soar completamente diferente ou melhor difrent Aliás faça você mesmo a experiência tente tirar a letra de uma música cantada por um cantor ou uma cantora da terrinha e veja pg 25 como é difícil4 E por incrível que pareça um dos principais obstáculos para a difusão no Brasil do cinema feito em Portugal é justamente a língua além das dificuldades de distribuição ligadas ao quase monopólio do cinema americano Como os brasileiros têm dificuldades em entender o português de Portugal e como ficaria no mínimo estranho colocar legendas em filmes portugueses o resultado é que praticamente nunca se vê filme português nos cinemas daqui Temos a impressão de que Portugal não produz cinema o que é falso há bons cineastas 4 Eu mesmo uma vez passei por uma situação embaraçosa um amigo meu francês me enviou uma fita cassete com músicas do compositor português José Afonso por sinal maravilhoso e me pediu para tirar a letra de uma delas de que ele gostava muito Depois de algumas tentativas acabei desistindo porque havia muitas frases inteiras das quais eu não pescava simplesmente nada Ele espantado me perguntou Mas ele não canta em português Tive de explicar ao meu amigo que havia grandes diferenças entre o português do Brasil e o de Portugal Mas eu tive a minha vingança Pedi a esse mesmo amigo pouco depois que transcrevesse a letra de uma canção gravada por uma cantor canadense e ele teve a mesma dificuldade porque o francês do Canadá às vezes pode ser incompreensível para um falante do francês da França portugueses um dos quais Manuel dOliveira é reconhecido internacionalmente como um grande diretor No que diz respeito ao ensino do português no Brasil o grande problema é que esse ensino até hoje depois de mais de cento e setenta anos de independência política continua com os olhos voltados para a norma lingüística de Portugal As regras gramaticais consideradas certas são aquelas usadas por lá que servem para a língua falada lá que retratam bem o funcionamento da língua que os pg 26 portugueses falam É a concepção que impera por exemplo no livro Não erre mais de Luiz Antonio Sacconi que na página 64 explica A Lua é mais pequena que a Terra Eis aí uma frase corretíssima que muitos imaginam o contrário Mais pequeno é expressão legítima usada por todos os portugueses que usam menor quando se trata de idéia de qualidade poeta menor escritor menor etc grifo meu Fica implícito então que para considerar uma expressão legítima basta que ela seja usada por todos os portugueses como se eles ditassem a norma lingüística válida para todos os povos que falam português Ora todos sabemos que mais pequeno não funciona no Brasil é uma expressão rejeitada pela norma culta brasileira que usa menor em todas as circunstâncias em que há comparação O mesmo espírito guiou a revista Época que em sua edição de 14 de junho de 1999 estampou uma grande reportagem sobre A ciência de escrever bem acerca da redação no vestibular Entre as melhores redações apresentadas naquele ano ao vestibular da Universidade de São Paulo estava a de Henrique Suguri 17 anos que em determinado momento assim se expressou p 81 O Brasil hoje não é europeu africano asiático indígena Nós somos a mistura exata de tudo isso completamente diferentes das nossas origens únicos E apesar disso estamos indiscutivelmente atrelados aos princípios da nossa matriz Talvez o ano 2000 possa servir para abrirmos os olhos e em vez de comemorarmos os nossos cinco séculos coloniais enterrarmos o que sobrou deles pg 27 Essa belíssima declaração de independência essa consciência da especificidade cultural do povo brasileiro essa valorização de nossa identidade nacional única parece que não foi totalmente compreendida pelos autores da reportagem Pois estes em vez de aceitar o convite do jovem vestibulando para enterrar o que sobrou dos cinco séculos de colonização fizeram questão de comprovar ao contrário que ainda estamos indiscutivelmente atrelados aos princípios da nossa matriz incluindo aí é claro os princípios lingüísticos Digo isso porque na página 84 da mesma reportagem aparece um quadro chamado Como escrever bem que tem como subtítuloDicas que valem para brasileiros de todas as idades Acontece que a primeiríssima destas dicas é a seguinte O uso do gerúndio empobrece o texto Lembre que não existe gerúndio no português falado em Portugal Ora se são dicas para brasileiros que querem escrever bem por que motivos eles têm de se lembrar do que existe ou não existe no português de Portugal A dica além de deixar à mostra sua inspiração neocolonialista também afirma uma inverdade lingüística no português de Portugal existe sim o gerúndio A título de curiosidade lembrome do Fado do ciúme sucesso na voz de Amália Rodrigues uma das maiores cantoras portuguesas de todos os tempos cuja letra a certa altura diz antes prefiro morrer do que contigo viver sabendo que gostas dela Esse sabendo outra coisa não é senão um gerúndio Aproveito para chamar atenção para o antes pg 28 prefirodo que indício de que os portugueses também erram na hora de usar o verbo preferir O que não existe no português falado em Portugal é a construção do tipo estou comendo ela está telefonando Pedro esteve trabalhando muito situações em que os portugueses usam a preposição a seguida do verbo no infinitivo Imagine agora se algum de nós brasileiros disser por aí frases como estou a comer ela está a telefonarPedro esteve a trabalhar muito que são uma das características mais marcantes do português de Portugal Como não me canso de repetir são simplesmente diferenças de uso e diferença não é deficiência nem inferioridade Quanto tempo ainda teremos de esperar para nos darmos conta de uma vez por todas de que somos completamente diferentes das nossas origens únicos como tão brilhantemente escreveu Henrique Suguri em sua redação de vestibular Por causa desse preconceito é que somos obrigados a ensinar e aprender que o certo é dizer e escrever Dême um beijo e não Me dá um beijo e que é errado dizer e escrever Assisti o filme e Alugase casas porque lá em Portugal não é assim que se faz O mito de que brasileiro não sabe português também afeta o ensino de línguas estrangeiras É muito comum verificar entre professores de inglês francês ou espanhol um grande desânimo diante das dificuldades de ensinar o idioma estrangeiro E é mais comum ainda ouvilos dizer Os alunos já não sabem português imagine se vão conseguir aprender outra língua fazendo a velha confusão entre pg 29 língua e gramática normativa É muito fácil atribuir aos outros a culpa do nosso próprio fracasso Assim em vez de buscar as causas da dificuldade de ensino na metodologia empregada nas diferenças de aptidão individual para o aprendizado de línguas ou na competência do próprio professor é muito mais cômodo jogar a culpa no aluno ou na incompetência lingüística inata do brasileiro É curioso como muitos brasileiros assumem esse mesmo preconceito negativo também em relação a outras línguas defendendo sempre a língua da metrópole contra a língua da ex colônia É o nosso eterno trauma de inferioridade nosso desejo de nos aproximarmos o máximo possível do cultuado padrão ideal que é a Europa Todo santo dia tenho de ouvir alguém me dizer que prefere o inglês britânico porque acha o inglês americano muito feio A essas pessoas eu dou sempre a mesma resposta aprenda o inglês britânico se quiser ler Shakespeare mas se quiser dominar uma língua de uso internacional aceita em todos os cantos do mundo como veículo de intercâmbio cultural comercial diplomático tecnológico científico etc aprenda o inglês americano Se algum de nós disser a um norteamericano que ele não sabe inglês ou que o inglês falado nos Estados Unidos é errado ou feio ele decerto vai ficar chocado com nossa ignorância Afinal existe um argumento mais do que convincente para rebater essa acusação o tamanho do país e a quantidade de falantes de inglês que ali vivem além da importância dos Estados Unidos no panorama mundial pg 30 O mesmo argumento vale para o português do Brasil Nosso país é 92 vezes e meia maior que Portugal e nossa população é quase 15 vezes superior Quando se trata de língua temos de levar em conta a quantidade só na cidade de São Paulo vivem mais falantes de português do que em toda a Europa Além disso o papel do Brasil no cenário políticoeconômico mundial é de longe muito mais importante que o de Portugal Não tem sentido nenhum portanto continuar alimentando essa fantasia de que os portugueses são os verdadeiros donos da língua enquanto nós a utilizamos e mal apenas por empréstimo Existe embutida nesse mito a ilusão de que os portugueses falam e escrevem tudo certo e que seguem rigorosamente as regras da gramática ensinada na escola A professora Irandé Antunes de quem tive a honra de ser aluno na Universidade Federal de Pernambuco me contou que quando estava para embarcar para Portugal onde viveria alguns anos preparando seu doutorado muitas pessoas no Brasil lhe disseram Você vai morar em Portugal Então agora suas filhas vão aprender a falar direito Não é nada disso Assim como nós aqui cometemos nossos pecados contra a gramática normativa os portugueses também cometem os deles só que mais uma vez diferentes dos nossos Em Portugal por exemplo o plural de tu não é vós como querem as gramáticas normativas O plural de tu é vocês Pois bem na hora de usar os possessivos os portugueses usam vossovossa que teoricamente só poderiam ser usados com referência a vós Vocês trouxeram os vossos filhos E num livro editado pg 31 em Portugal encontrei a seguinte pergunta Não vos sucede sentirem se por vezes um pouco indefinidos É a famosa mistura de tratamento que causa tanto arrepio e dor de estômago nos gramáticos conservadores mistura que em termos científicos e nãopreconceituosos deve ser analisada de fato como uma reorganização do sistema pronominal da língua tanto a de lá como a de cá Então não há por que continuar difundindo essa idéia mais do que absurda de que brasileiro não sabe português O brasileiro sabe o seu português o português do Brasil que é a língua materna de todos os que nascem e vivem aqui enquanto os portugueses sabem o português deles Nenhum dos dois é mais certo ou mais errado mais feio ou mais bonito são apenas diferentes um do outro e atendem às necessidades lingüísticas das comunidades que os usamnecessidades que também são diferentes Em seu livro Emília no País da Gramática publicado em 1934 Monteiro Lobato já chamava a atenção para esse tipo de preconceito que no entanto continua firme e forte no Brasil de hoje Numa conversa com as crianças do Sítio do Picapau Amarelo a velha Dona Etimologia lhes diz pp 100101 Uma língua não pára nunca Evolui sempre isto é muda sempre Há certos gramáticos que querem fazer a língua parar num certo ponto e acham que é erro dizermos de modo diferente do que diziam os clássicos Quem vem a ser clássicos perguntou a menina Narizinho Os entendidos chamam clássicos aos escritores antigos como o padre Antônio Vieira Frei Luís de Sousa o padre pg 32 Manuel Bernardes e outros Para os carranças quem não escreve como eles está errado Mas isso é curteza de vistas Esses homens foram bons escritores no seu tempo Se aparecessem agora seriam os primeiros a mudar ou a adotar a língua de hoje para serem entendidos A língua variou muito e sobretudo aqui na cidade nova o Brasil Inúmeras palavras que na cidade velha Portugal querem dizer uma coisa aqui dizem outra Também no modo de pronunciar as palavras existem muitas variações Aqui todos dizem PEITO lá todos dizem PAITO embora escrevam a palavra da mesma maneira Aqui se diz TENHO e lá se diz TANHO Aqui se diz VERÃO e lá se diz VRÃO Também eles dizem por lá VATATA VACALHAU BACA VESOURO lembrou Pedrinho Sim o povo de lá troca muito o v pelo B e viceversa Nesse caso aqui nesta cidade se fala mais direito do que na cidade velha concluiu Narizinho Por quê Ambas têm o direito de falar como quiserem e portanto ambas estão certas O que sucede é que uma língua sempre que muda de terra começa a variar muito mais depressa do que se não tivesse mudado Os costumes são outros a natureza é outra as necessidades de expressão tornamse outras Tudo junto força a língua que emigra a adaptarse à sua nova pátria A língua desta cidade Brasil está ficando um dialeto da língua velha Com o correr dos séculos é bem capaz de ficar tão diferente da língua velha como esta ficou diferente do latim Vocês vão ver Monteiro Lobato que morreu em 1948 estava muito mais por dentro das noções da lingüística moderna do que muito autor de gramática que está por aí hoje vivo e bulindo como se diz no Nordeste pg 33 É espantoso que a figura do gramático autoritário e intolerante ridicularizado por Lobato na personagem do professor Aldrovando Cantagalo em seu delicioso conto O colocador de pronomes de 1924 tenha voltado à cena neste fim de século sob a roupagem enganosamente moderna da televisão do computador e da multimídia pg 34 Primeiras palavras Existe uma regra de ouro da Lingüística que diz só existe língua se houver seres humanos que a falem E o velho e bom Aristóteles nos ensina que o ser humano é um animal político Usando essas duas afirmações como os termos de um silogismo mais um presente que ganhamos de Aristóteles chegamos à conclusão de que tratar da língua é tratar de um tema político já que também é tratar de seres humanos Por isso o leitor e a leitora não deverão se espantar com o tom marcadamente politizado de muitas de minhas afirmações É proposital aliás é inevitável Temos de fazer um grande esforço para não incorrer no erro milenar dos gramáticos tradicionalistas de estudar a língua como uma coisa morta sem levar em consideração as pessoas vivas que a falam O preconceito lingüístico está ligado em boa medida à confusão que foi criada no curso da história entre língua e gramática normativa Nossa tarefa mais urgente é desfazer essa confusão Uma receita de bolo não é um bolo o molde de um vestido não é um vestido um mapamúndi não é o mundo Também a gramática não é a língua A língua é um enorme iceberg flutuando no mar do tempo e a gramática normativa é a tentativa de descrever pg 09 apenas uma parcela mais visível dele a chamada norma culta Essa descrição é claro tem seu valor e seus méritos mas é parcial no sentido literal e figurado do termo e não pode ser autoritariamente aplicada a todo o resto da língua afinal a ponta do iceberg que emerge representa apenas um quinto do seu volume total Mas é essa aplicação autoritária intolerante e repressiva que impera na ideologia geradora do preconceito lingüístico Você sabe o que é um igapó Na Amazônia igapó é um trecho de mata inundada uma grande poça de água estagnada às margens de um rio sobretudo depois da cheia Pareceme uma boa imagem para a gramática normativa Enquanto a língua é um rio caudaloso longo e largo que nunca se detém em seu curso a gramática normativa é apenas um igapó uma grande poça de água parada um charco um brejo um terreno alagadiço à margem da língua Enquanto a água do riolíngua por estar em movimento se renova incessantemente a água do igapógramática normativa envelhece e só se renovará quando vier a próxima cheia Meu objetivo atualmente junto com muitos outros lingüistas e pesquisadores é acelerar ao máximo essa próxima cheia Este livro traz os primeiros resultados sempre provisórios das reflexões que venho fazendo sobre o tema do preconceito lingüístico Ele reúne as principais conclusões a que cheguei conclusões que pude compartilhar e discutir com as pessoas que me ouviram falar nas diversas palestras que dei ao longo de 1998 Essas palestras e o livro que delas nasceu só foram possíveis graças ao esforço e ao carinho das seguintes pg 10 pessoas Ângela Paiva Dionísio Ariovaldo Guireli Ataliba de Castilho Cláudia Maia Ricardo Doris da Cunha Ésio Macedo Ribeiro Irandé Antunes José Luís Falotico Corrêa Judith Hoffnagel Lourenço Chacon Lucila Nogueira Marçal Aquino Marcos Marcionilo Maria Amélia Almeida Maria Marta Scherre Maria da Piedade Sá Marígia Viana Rosely Falotico Corrêa e Sonia Alexandre Esta segunda edição traz mudanças bastante significativas em comparação com a primeira alguns trechos foram eliminados outros foram acrescentados muitos sofreram profunda reformulação Isso se deve à minha vontade de manter o livro sempre atualizado com a evolução de minha própria maneira de ver as coisas e sintonizado com as críticas sugestões e comentários que o trabalho recebeu da parte de leitores e leitoras atentos e dispostos a colaborar na divulgação destas idéias Agradeço muito especialmente a Manoel Luiz Gonçalves Corrêa que me ajudou a preparar esta reedição alertandome para determinadas inconsistências teóricas e conceituais nascidas de uma tentativa de simplificar talvez demais os conceitos da Lingüística para tornálos acessíveis a um público mais amplo É claro que ainda sobram falhas e imperfeições de minha inteira irresponsabilidade e por isso convido os que desejarem participar desta luta que se engajem nela enviandome suas opiniões A capa deste livro tem uma história que merece ser contada As pessoas ali fotografadas são minha sogra Alice Francisca meu sogro José Alexandre e meu cunhado pg 11 mais novo Sóstenes cerca de vinte anos atrás Como este é um livro que trata de discriminação e exclusão decidi homenagear meus sogros que são como costumo dizer um prato cheio para alguns dos preconceitos mais vigorosos da nossa sociedade negros nordestinos pobres analfabetos Alice Francisca também carrega o estigma de ser mulher numa cultura entranhadamente machista Aprender a amar estas pessoas pelo que elas são deixando de lado todos os rótulos discriminadores que tentam classificálas em categorias supostamente inferiores às que eu e pessoas de minha extração social ocupamos tem sido uma lição fundamental para toda a minha vida pessoal e profissional É com este amor que me defendo das acusações que às vezes recebo de ser autor de um livro demagógico Não é demagogia é opção consciente política declaradamente parcial Peço simplesmente aos leitores e leitoras que meditem sobre esta situação que tanto me angustia homenagear com um livro pessoas que jamais poderão lêlo Isso explica decerto a grande dose de indignação que em certos momentos passa à frente da reflexão científica serena e me faz assumir o tom apaixonado de quem não tolera nenhum tipo de intolerância principalmente quando é fruto de uma visão de mundo estreita inspirada em mitos e superstições que têm como único objetivo perpetuar os mecanismos de exclusão social MARCOS BAGNO mbagnoterracombr pg 12 Diálogo e reflexões do cantor Emicida e das discussões do linguista Bagno Em seu vídeo Emicida apresenta uma visão abrangente sobre a língua vivida e a língua idealizada abordando a diversidade linguística presente no Brasil Suas reflexões ecoam as discussões propostas por Bagno 2000 sobre os mitos que promovem o preconceito linguístico os quais devem ser confrontados em busca de uma compreensão mais ampla sobre o que é língua O primeiro mito abordado por Bagno é a ideia de que a língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente Tal concepção enraizada na cultura brasileira é prejudicial à educação pois não reconhece a verdadeira diversidade linguística do país Bagno ressalta que o português falado no Brasil apresenta um alto grau de diversidade e variabilidade influenciado pela extensão territorial do país e pela injustiça social que gera um abismo linguístico entre as variedades nãopadrão e a suposta variedade culta ensinada na escola As reflexões de Emicida ecoam essa problemática ao ressaltar a importância de reconhecer e valorizar a diversidade linguística presente no Brasil Sua visão converge com as discussões de Bagno ao evidenciar que a imposição de uma norma linguística única pela escola desconsidera as diferentes realidades dos falantes e perpetua o preconceito linguístico O segundo mito abordado por Bagno é a crença de que o brasileiro não sabe português e que apenas em Portugal se fala bem a língua Este mito reflete um complexo de inferioridade e um sentimento de dependência em relação a Portugal Bagno destaca que o português falado no Brasil e em Portugal apresenta diferenças significativas o que não implica em superioridade ou inferioridade mas sim em diversidade linguística As reflexões de Emicida sobre a valorização da identidade cultural brasileira e a consciência da especificidade do português falado no Brasil convergem com as discussões de Bagno Ambos ressaltam a importância de reconhecer que o português do Brasil é uma língua própria com suas particularidades e que não deve ser subjugada à norma linguística portuguesa O preconceito linguístico é um tema central nas discussões sobre a língua portuguesa no Brasil A visão de Emicida sobre a língua vivida e a língua idealizada traz reflexões importantes que se conectam com as discussões propostas por Bagno 2000 sobre os mitos que promovem o preconceito linguístico A partir do diálogo entre as reflexões do cantorcompositor e as discussões sobre os mitos é possível compreender mais profundamente o que é língua e como os preconceitos afetam a percepção da mesma Emicida apresenta uma visão que destaca a importância do uso real vivo e verdadeiro da língua portuguesa do Brasil Ele ressalta que o ensino da língua sempre se baseou na norma gramatical de Portugal o que resulta em regras que não correspondem à língua falada e escrita no Brasil Essa desconexão entre a norma gramatical e a língua real leva muitas pessoas a considerarem o português uma língua difícil pois são obrigadas a decorar conceitos e fixar regras que não têm relevância para o uso cotidiano da língua Bagno 2000 aborda o mito de que português é muito difícil e desmistifica essa afirmação preconceituosa Ele destaca que o ensino tradicional da língua no Brasil não leva em conta o uso brasileiro do português o que gera uma cobrança indevida de normas gramaticais que não correspondem à realidade da língua falada no país A questão da regência verbal é um exemplo disso onde o ensino tradicional impõe regras que não encontram justificativa na gramática intuitiva do falante brasileiro Bagno ressalta que todo falante nativo de uma língua sabe intuitivamente empregar as regras básicas de funcionamento dela o que contradiz a ideia de que o português é muito difícil Ele destaca que as crianças dominam perfeitamente as regras gramaticais de sua língua aos 3 ou 4 anos de idade evidenciando a naturalidade com que a língua é adquirida e utilizada Outro mito abordado por Bagno é o preconceito em relação à fala de pessoas sem instrução Ele destaca que o preconceito linguístico se baseia na crença de que só existe uma única língua portuguesa digna deste nome desconsiderando as diversas manifestações linguísticas que escapam do padrão ensinado nas escolas Bagno ressalta a importância de reconhecer a diversidade linguística e combater estereótipos que desvalorizam determinadas formas de fala A questão do lugar onde melhor se fala português também é abordada por Bagno desmistificando a ideia de que o Maranhão seria o local ideal nesse aspecto Ele destaca que não existe nenhuma variedade linguística intrinsecamente melhor mais pura mais bonita ou mais correta que outra enfatizando a importância de respeitar todas as variedades da língua como um tesouro precioso da cultura O mito da língua culta como instrumento de ascensão social é frequentemente propagado mas é importante questionar essa premissa A ideia de que dominar a norma culta da língua é suficiente para garantir a ascensão social ignora as complexidades das desigualdades estruturais presentes na sociedade A realidade é que o domínio da norma culta por si só não garante acesso a oportunidades de crescimento e desenvolvimento Enquanto a língua é um aspecto importante da comunicação e expressão a ascensão social está intrinsecamente ligada a questões mais amplas como acesso à educação de qualidade oportunidades de trabalho dignas saúde moradia e justiça social É fundamental reconhecer que a promoção da ascensão social não pode se limitar ao ensino da norma culta da língua É necessário garantir o acesso equitativo a recursos e oportunidades para que todos os membros da sociedade tenham condições justas de alcançar seu potencial É crucial desafiar a visão paternalista e simplista de que a simples adoção da norma culta pode resolver as desigualdades sociais A transformação real da sociedade requer uma abordagem holística que aborde questões estruturais de injustiça e desigualdade
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Mito n 1 A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente Este é o maior e o mais sério dos mitos que compõem a mitologia do preconceito lingüístico no Brasil Ele está tão arraigado em nossa cultura que até mesmo intelectuais de renome pessoas de visão crítica e geralmente boas observadoras dos fenômenos sociais brasileiros se deixam enganar por ele É o caso por exemplo de Darcy Ribeiro que em seu último grande estudo sobre o povo brasileiro escreveu É de assinalar que apesar de feitos pela fusão de matrizes tão diferenciadas os brasileiros são hoje um dos povos mais homogêneos lingüística e culturalmente e também um dos mais integrados socialmente da Terra Falam uma mesma língua sem dialetos grifo meu Folha de S Paulo 5295 Existe também toda uma longa tradição de estudos filológicos e gramaticais que se baseou durante muito tempo nesse preconceito irreal da unidade lingüística do Brasil Esse mito é muito prejudicial à educação porque ao não reconhecer a verdadeira diversidade do português falado no Brasil a escola tenta impor sua norma lingüística como se ela fosse de fato a língua comum a todos os 160 milhões de brasileiros independentemente de sua idade de sua origem geográfica de sua situação socioeconômica de seu grau de escolarização etc pg 15 Ora a verdade é que no Brasil embora a língua falada pela grande maioria da população seja o português esse português apresenta um alto grau de diversidade e de variabilidade não só por causa da grande extensão territorial do país que gera as diferenças regionais bastante conhecidas e também vítimas algumas delas de muito preconceito mas principalmente por causa da trágica injustiça social que faz do Brasil o segundo país com a pior distribuição de renda em todo o mundo São essas graves diferenças de status social que explicam a existência em nosso país de um verdadeiro abismo lingüístico entre os falantes das variedades nãopadrão do português brasileiro que são a maioria de nossa população e os falantes da suposta variedade culta em geral mal definida que é a língua ensinada na escola Como a educação ainda é privilégio de muito pouca gente em nosso país uma quantidade gigantesca de brasileiros permanece à margem do domínio de uma norma culta Assim da mesma forma como existem milhões de brasileiros sem terra sem escola sem teto sem trabalho sem saúde também existem milhões de brasileiros sem língua Afinal se formos acreditar no mito da língua única existem milhões de pessoas neste país que não têm acesso a essa língua que é a norma literária culta empregada pelos escritores e jornalistas pelas instituições oficiais pelos órgãos do poder são os semlíngua É claro que eles também falam português uma variedade de português nãopadrão com sua gramática particular que no entanto não é reconhecida como válida que é desprestigiada ridicularizada pg 16 alvo de chacota e de escárnio por parte dos falantes do portuguêspadrão ou mesmo daqueles que não falando o portuguêspadrão o tomam como referência ideal por isso podemos chamálos de semlíngua O que muitos estudos empreendidos por diversos pesquisadores têm mostrado é que os falantes das variedades lingüísticas desprestigiadas têm sérias dificuldades em compreender as mensagens enviadas para eles pelo poder público que se serve exclusivamente da línguapadrão Como diz Maurizzio Gnerre1 em seu livro Linguagem escrita e poder a Constituição afirma que todos os indivíduos são iguais perante a lei mas essa mesma lei é redigida numa língua que só uma parcela pequena de brasileiros consegue entender A discriminação social começa portanto já no texto da Constituição É claro que Gnerre não está querendo dizer que a Constituição deveria ser escrita em língua nãopadrão mas sim que todos os brasileiros a que ela se refere deveriam ter acesso mais amplo e democrático a essa espécie de língua oficial que restringindo seu caráter veicular a uma parte da população exclui necessariamente uma outra talvez a maior Muitas vezes os falantes das variedades desprestigiadas deixam de usufruir diversos serviços a que têm direito simplesmente por não compreenderem a linguagem empregada pelos órgãos públicos Um estudo bastante revelador dessa situação foi empreendido por Stella Maris BortoniRicardo na periferia de Brasília e publicado no pg 17 artigo Problemas de comunicação interdialetal Diante do que descobriu a autora pode afirmar A idéia de que somos um país privilegiado pois do ponto de vista lingüístico tudo nos une e nada nos separa pareceme contudo ser apenas mais um dos grandes mitos arraigados em nossa cultura Um mito por sinal de conseqüências danosas pois na medida em que não se reconhecem os problemas de comunicação entre falantes de diferentes variedades da língua nada se faz também para resolvêlos A mesma autora alerta para que não se confunda a idéia de monolingüismo com a de homogeneidade lingüística O fato de no Brasil o português ser a língua da imensa maioria da população 1 As referências bibliográficas completas de todas as obras citadas ao longo deste livro se encontram no final do volume não implica automaticamente que esse português seja um bloco compacto coeso e homogêneo Na verdade como costumo dizer o que habitualmente chamamos de português é um grande balaio de gatos onde há gatos dos mais diversos tipos machos fêmeas brancos pretos malhados grandes pequenos adultos idosos recémnascidos gordos magros bemnutridos famintos etc Cada um desses gatos é uma variedade do português brasileiro com sua gramática específica coerente lógica e funcional É preciso portanto que a escola e todas as demais instituições voltadas para a educação e a cultura abandonem esse mito da unidade do português no Brasil e passem a reconhecer a verdadeira diversidade lingüística de nosso país para melhor planejarem suas políticas de ação junto à população amplamente marginalizada dos falantes das variedades nãopadrão O reconhecimento da pg 18 existência de muitas normas lingüísticas diferentes é fundamental para que o ensino em nossas escolas seja conseqüente com o fato comprovado de que a norma lingüística ensinada em sala de aula é em muitas situações uma verdadeira língua estrangeira para o aluno que chega à escola proveniente de ambientes sociais onde a norma lingüística empregada no quotidiano é uma variedade de português não padrão Felizmente essa realidade lingüística marcada pela diversidade já é reconhecida pelas instituições oficiais encarregadas de planejar a educação no Brasil Assim nos Parâmetros curriculares nacionais publicados pelo Ministério da Educação e do Desporto em 1998 podemos ler que A variação é constitutiva das línguas humanas ocorrendo em todos os níveis Ela sempre existiu e sempre existirá independentemente de qualquer ação normativa Assim quando se fala em Língua Portuguesa está se falando de uma unidade que se constitui de muitas variedades A imagem de uma língua única mais próxima da modalidade escrita da linguagem subjacente às prescrições normativas da gramática escolar dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre o que se deve e o que não se deve falar e escrever não se sustenta na análise empírica dos usos da língua2 São de fato boas novas Espero que elas desçam das altas esferas governamentais e se propaguem pelas salas de aula de todo o país pg 19 2 Parâmetros curriculares nacionais Língua Portuguesa 5a a 8a séries p 29 Mito n 3 Português é muito difícil Essa afirmação preconceituosa é primairmã da idéia que acabamos de derrubar a de que brasileiro não sabe português Como o nosso ensino da língua sempre se baseou na norma gramatical de Portugal as regras que aprendemos na escola em boa parte não correspondem à língua que realmente falamos e escrevemos no Brasil Por isso achamos que português é uma língua difícil porque temos de decorar conceitos e fixar regras que não significam nada para nós No dia em que nosso ensino de português se concentrar no uso real vivo e verdadeiro da língua portuguesa do Brasil é bem provável que ninguém mais continue a repetir essa bobagem Todo falante nativo de uma língua sabe essa língua Saber uma língua no sentido científico do verbo saber significa conhecer intuitivamente e empregar com naturalidade as regras básicas de funcionamento dela Está provado e comprovado que uma criança entre os 3 e 4 anos de idade já domina perfeitamente as regras gramaticais de sua língua O que ela não conhece são sutilezas sofisticações e irregularidades no uso dessas regras coisas que só a leitura e o estudo podem lhe dar Mas nenhuma criança brasileira dessa idade vai dizer por exemplo Uma meninos chegou aqui amanhã Um estrangeiro porém que esteja começando a aprender português poderá se confundir e falar assim Por isso aquela piadinha que muita gente solta quando vê uma criancinha estrangeira falando Tão pequeno e já fala tão bem pg 35 inglês ou outra língua tem seu fundo de verdade muito pouca gente conseguirá falar uma língua estrangeira com tanta desenvoltura quanto uma criança de cinco anos que tem nela sua língua materna Por quê Porque toda e qualquer língua é fácil para quem nasceu e cresceu rodeado por ela Se existisse língua difícil ninguém no mundo falaria húngaro chinês ou guarani e no entanto essas línguas são faladas por milhões de pessoas inclusive criancinhas analfabetas Se tanta gente continua a repetir que português é difícil é porque o ensino tradicional da língua no Brasil não leva em conta o uso brasileiro do português Um caso típico é o da regência verbal O professor pode mandar o aluno copiar quinhentas mil vezes a frase Assisti ao filme Quando esse mesmo aluno puser o pé fora da sala de aula ele vai dizer ao colega Ainda não assisti o filme do Zorro Porque a gramática brasileira não sente a necessidade daquela preposição a que era exigida na norma clássica literária cem anos atrás e que ainda está em vigor no português falado em Portugal a dez mil quilômetros daqui É um esforço árduo e inútil um verdadeiro trabalho de Sísifo tentar impor uma regra que não encontra justificativa na gramática intuitiva do falante A prova mais visível disso é que aquelas mesmas pessoas que por causa da pressão policialesca da escola e da gramática tradicional usam a preposição a depois do verbo assistir também dizem que o jogo foi assistido por vinte mil pessoas Ora se o verbo assistir pede uma preposição é porque ele não é transitivo direto e só os verbos transitivos diretos podem segundo as gramáticas assumir a voz passiva Desse modo quem diz assisti ao pg 36 jogo não poderia teoricamente dizer o jogo foi assistido Só que essa esquizofrenia gramatical acontece o tempo todo Basta ler jornais como a Folha de S Paulo e o Estado de S Paulo cujos manuais de redação decretam que o verbo assistir tem que vir obrigatoriamente seguido da preposição a Na voz ativa a preposição aparece Vinte mil pagantes assistiram ao jogo porque assim manda o manual da redação Mas na hora de usar a voz passiva a gramática intuitiva brasileira do redator se manifesta e a gente encontra milhares de exemplos do tipo o jogo foi assistido por vinte mil pagantes Essas pessoas então ficam em cima do muro acertam na voz ativa por causa do patrulhamento lingüístico mas erram na passiva porque se deixam levar pelo uso normal do português brasileiro Tudo isso por causa da cobrança indevida por parte do ensino tradicional de uma norma gramatical que não corresponde à realidade da língua falada no Brasil O professor Sirio Possenti da UNICAMP em seu excelente livro Por que não ensinar gramática na escola classifica a regência assistir a como um arcaísmo uma forma sintática que já caiu em desuso mas continua sendo cobrada injustificadamente pelo ensino tradicionalista que se recusa a admitir a extinção desse e de muitos outros dinossauros lingüísticos Por isso tantas pessoas terminam seus estudos depois de onze anos de ensino fundamental e médio sentindose incompetentes para redigir o que quer que seja E não é à toa se durante todos esses anos os professores tivessem chamado a atenção dos alunos para o que é realmente interessante e importante se tivessem desenvolvido pg 37 as habilidades de expressão dos alunos em vez de entupir suas aulas com regras ilógicas e nomenclaturas incoerentes as pessoas sentiriam muito mais confiança e prazer no momento de usar os recursos de seu idioma que afinal é um instrumento maravilhoso e que pertence a todos Falaremos disso na terceira parte deste livro Se tantas pessoas inteligentes e cultas continuam achando que não sabem português ou que português é muito difícil é porque esta disciplina fascinante foi transformada numa ciência esotérica numa doutrina cabalística que somente alguns iluminados os gramáticos tradicionalistas conseguem dominar completamente Eles continuam insistindo em nos fazer decorar coisas que ninguém mais usa fósseis gramaticais e a nos convencer de que só eles podem salvar a língua portuguesa da decadência e da corrupção Hoje em dia aliás alguns deles estão até fazendo sucesso na televisão no rádio e em outros meios de comunicação transformando essa suposta dificuldade do português num produto com boa saída comercial Para o já citado Arnaldo Niskier tratase de uma saudável epidemia que tomou conta da imprensa brasileira Que é epidemia concordo mas quanto a ser saudável tenho muitas e sérias dúvidas É livro é curso em vídeocassete é CDROM é Manual de Redação do Jornal Tal é consultório gramatical por telefone Eles juram que quem não souber conjugar o verbo apropinquarse vai direto para o inferno Na segunda parte deste livro tratarei de explicar por que não considero saudável essa epidemia pg 38 No fundo a idéia de que português é muito difícil serve como mais um dos instrumentos de manutenção do status quo das classes sociais privilegiadas Essa entidade mística e sobrenatural chamada português só se revela aos poucos iniciados aos que sabem as palavras mágicas exatas para fazêla manifestarse Tal como na Índia antiga o conhecimento da gramática é reservado a uma casta sacerdotal encarregada de preservála pura e intacta longe do contato infeccioso dos párias A propaganda da suposta dificuldade da língua é como diz Gnerre no livro já citadoo arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder p 6 Sustentar que português é muito difícil é cavar uma profunda trincheira entre os poucos que sabem a língua e a massa enorme de asnos termo usado por Luiz Antonio Sacconi em seu livro Não erre mais que necessitam assim do auxílio indispensável daqueles mestres para saltar com segurança por sobre o abismo da ignorância Em termos mais brandos a embalagem do CDROM Nossa língua portuguesa oferece o produto como uma ajuda a evitar as armadilhas da língua Ora não é a língua que tem armadilhas mas sim a gramática normativa tradicional que as inventa precisamente para justificar sua existência e para nos convencer de que ela é indispensável Não seria a hora de acionar a Lei de Defesa do Consumidor contra essa reserva de mercado pg 39 Mito n 4 As pessoas sem instrução falam tudo errado O preconceito lingüístico se baseia na crença de que só existe como vimos no Mito n 1 uma única língua portuguesa digna deste nome e que seria a língua ensinada nas escolas explicada nas gramáticas e catalogada nos dicionários Qualquer manifestação lingüística que escape desse triângulo escolagramáticadicionário é considerada sob a ótica do preconceito lingüístico errada feia estropiada rudimentar deficiente e não é raro a gente ouvir que isso não é português Um exemplo Na visão preconceituosa dos fenômenos da língua a transformação de I em R nos encontros consonantais como em Cráudia chicrete praca broco pranta é tremendamente estigmatizada e às vezes é considerada até como um sinal do atraso mental das pessoas que falam assim Ora estudando cientificamente a questão é fácil descobrir que não estamos diante de um traço de atraso mental dos falantes ignorantes do português mas simplesmente de um fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão Basta olharmos para o seguinte quadro pg 40 PORTUGUÊS PADRÃO ETIMOLOGIA ORIGEM branco blank germânico brando blandu latim cravo clavu latim dobro duplu latim escravo sclavu latim fraco flaccu latim frouxo fluxu latim grude gluten latim obrigar obligare latim praga plaga latim prata plata provençal prega plica latim Como é fácil notar todas as palavras do portuguêspadrão listadas acima tinham na sua origem um I bem nítido que se transformou em R E agora Se fôssemos pensar que as pessoas que dizem Cráudia chicrete e pranta têm algum defeito ou atraso mental seríamos forçados a admitir que toda a população da província romana da Lusitânia também tinha esse mesmo problema na época em que a língua portuguesa estava se formando E que o grande Luís de Camões também sofria desse mesmo mal já que ele escreveu ingrês pubricar pranta frauta frecha na obra que é considerada até hoje o maior monumento literário do português clássico o poema Os Lusíadas E isso é craro seria no mínimo absurdo Existem evidentemente falantes da norma culta urbana pessoas escolarizadas que têm problemas para pg 41 pronunciar os encontros consonantais com L Nesses casos sim tratase realmente de uma dificuldade física que pode ser resolvida com uma terapia fonoaudiológica Não é dessas pessoas que estamos tratando aqui mas dos brasileiros falantes das variedades nãopadrão em cujo sistema fonético simplesmente não existe encontro consonantal com L independentemente de terem ou não dificuldades articulatórias Quando na escola se depararem com os encontros consonantais com L é preciso que o professor tenha consciência de que se trata de um aspecto fonético estrangeiro para eles do mesmo tipo dos que encontramos por exemplo nos cursos de inglês quando nos esforçamos para pronunciar bem o TH de throw ou o I de live É preciso separar bem os dois aspectos do fenômeno Se dizer Cráudia praca pranta é considerado errado e por outro lado dizer frouxo escravo branco praga é considerado certo isso se deve simplesmente a uma questão que não é lingüística mas social e política as pessoas que dizem Cráudia praca pranta pertencem a uma classe social desprestigiada marginalizada que não tem acesso à educação formal e aos bens culturais da elite e por isso a língua que elas falam sofre o mesmo preconceito que pesa sobre elas mesmas ou seja sua língua é considerada feiapobrecarente quando na verdade é apenas diferente da língua ensinada na escola Ora do ponto de vista exclusivamente lingüístico o fenômeno que existe no português nãopadrão é o mesmo que aconteceu na história do portuguêspadrão e pg 42 tem até um nome técnico rotacismo O rotacismo participou da formação da língua portuguesa padrão como já vimos em branco escravo praga fraco etc mas ele continua vivo e atuante no português nãopadrão como em broco chicrete pranta Cráudia porque essa variedade não padrão deixa que as tendências normais e inerentes à língua se manifestem livremente Assim o problema não está naquilo que se fala mas em quem fala o quê Neste caso o preconceito lingüístico é decorrência de um preconceito social Este tipo específico de preconceito é o que abordei em meu livro A língua de Eulália Minha heroína literária predileta a boneca Emília de Monteiro Lobato não quis saber desse tipo de preconceito Ao visitar no País da Gramática a prisão onde Dona Sintaxe mantinha enjaulados os vícios de linguagem revoltouse ao ver atrás das grades o Provincianismo isto é os vícios da fala rural do caipira p 120 Emília não achou que fosse caso de conservar na cadeia o pobre matuto Alegou que ele também estava trabalhando na evolução da língua e soltouo Vá passear seu Jeca Muita coisa que hoje esta senhora condena vai ser lei um dia Foi você quem inventou o VOCÊ em vez de TU e só isso quanto não vale Estamos livres da complicação antiga do Tuturututu Como se vê do mesmo modo como existe o preconceito contra a fala de determinadas classes sociais também existe o preconceito contra a fala característica de certas regiões É um verdadeiro acinte aos direitos humanos por exemplo o modo como a fala nordestina é retratada pg 43 nas novelas de televisão principalmente da Rede Globo Todo personagem de origem nordestina é sem exceção um tipo grotesco rústico atrasado criado para provocar o riso o escárnio e o deboche dos demais personagens e do espectador No plano lingüístico atores não nordestinos expressamse num arremedo de língua que não é falada em lugar nenhum do Brasil muito menos no Nordeste Costumo dizer que aquela deve ser a língua do Nordeste de Marte Mas nós sabemos muito bem que essa atitude representa uma forma de marginalização e exclusão Para mostrar que a fala nordestina nada tem de engraçada ou ridícula vamos fazer uma pequena comparação Na pronúncia normal do Sudeste a consoante que escrevemos T é pronunciada tš como em tcheco toda vez que é seguida de um i Esse fenômeno fonético se chama palatalização Por causa dele nós sudestinos pronunciamos tšitšia a palavra escrita TITIA E todo mundo acha isso perfeitamente normal ninguém tem vontade de rir quando um carioca mineiro ou capixaba fala assim Quando porém um falante do Sudeste ouve um falante da zona rural nordestina pronunciar a palavra escrita OITO como oytšu ele acha isso muito engraçado ridículo ou errado Ora do ponto de vista meramente lingüístico o fenômeno é o mesmo palatalização só que o elemento provocador dessa palatalização o y está antes do t e não depois dele Então se o fenômeno é o mesmo por que na boca de um ele é normal e na boca de outro ele é engraçado pg 44 feio ou errado Porque o que está em jogo aqui não é a língua mas a pessoa que fala essa língua e a região geográfica onde essa pessoa vive Se o Nordeste é atrasado pobre subdesenvolvido ou na melhor das hipóteses pitoresco então naturalmente as pessoas que lá nasceram e a língua que elas falam também devem ser consideradas assim Ora façame o favor Rede Globo pg 45 Mito n5 O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão Não sei quem foi a primeira pessoa que proferiu essa grande bobagem mas a realidade é que até hoje ela continua sendo repetida por muita gente por aí inclusive gente culta que não sabe que isso é apenas um mito sem nenhuma fundamentação científica De onde será que veio essa idéia Esse mito nasceu mais uma vez da velha posição de subserviência em relação ao português de Portugal É sabido que no Maranhão ainda se usa com grande regularidade o pronome tu seguido das formas verbais clássicas com a terminação em s característica da segunda pessoa tu vais tu queres tu dizes tu comias tu cantavas etc Na maior parte do Brasil como sabemos devido à reorganização do sistema pronominal de que já falei o pronome tu foi substituído por você Aliás nas palavras da boneca Emília o tu já está velho coroco e o que ele deve fazer na opinião dela é ir arrumando a trouxa e pondose ao fresco e mudarse de vez para o bairro das palavras arcaicas De fato o pronome tu está em vias de extinção na fala do brasileiro e quando ainda é usado como por exemplo em alguns falares característicos de certas camadas sociais do Rio de Janeiro o verbo assume a forma da terceira pessoa tu vai tu fica tu quer tu deixa disso etc que caracteriza também a fala informal de algumas outras regiões Em Pernambuco por pg 46 exemplo é muito comum a interjeição interrogativa tu acha para indicar surpresa ou indignação Ora somente por esse arcaísmo por essa conservação de um único aspecto da linguagem clássica literária que coincide com a língua falada em Portugal ainda hoje é que se perpetua o mito de que o Maranhão é o lugar onde melhor se fala o português no Brasil Acontece porém que os defensores desse mito não se dão conta de que ao utilizarem o critério prescritivista de correção para sustentálo se esquecem de que os mesmos maranhenses que dizem tu és tu vais tu foste tu quiseste também dizem Esse é um bom livro para ti ler em vez da forma correta Esse é um bom livro para tu leres Ou seja eles atribuem ao pronome ti a mesma função de sujeito que em amplas regiões do Brasil nas mais diversas camadas sociais cultas inclusive é atribuída ao pronome mim quando antecedido da preposição para e seguido de verbo no infinitivo Para mim fazer isso vou precisar da sua ajuda uma construção sintática que deixa tanta gente de cabelo em pé O que acontece com o português do Maranhão em relação ao português do resto do país é o mesmo que acontece com o português de Portugal em relação ao português do Brasil não existe nenhuma variedade nacional regional ou local que seja intrinsecamente melhor mais pura mais bonita mais correta que outra Toda variedade lingüística atende às necessidades da comunidade de seres humanos que a empregam Quando deixar de atender ela inevitavelmente sofrerá transformações para pg 47 se adequar às novas necessidades Toda variedade lingüística é também o resultado de um processo histórico próprio com suas vicissitudes e peripécias particulares Se o português de São Luís do Maranhão e de Belém do Pará assim como o de Florianópolis conservou o pronome tu com as conjugações verbais lusitanas é porque nessas regiões aconteceu no período colonial uma forte imigração de açorianos cujo dialeto específico influenciou a variedade de português brasileiro falado naqueles locais O mesmo acontece com algumas características italianizantes do português da cidade de São Paulo onde é grande a presença dos imigrantes italianos e seus descendentes ou com castelhanismos evidentes na fala dos gaúchos que mantêm estreitos contatos culturais com seus vizinhos argentinos e uruguaios Numa entrevista à revista Veja 10997 Pasquale Cipro Neto disse que é pura lenda a idéia de que o Maranhão é o lugar do Brasil onde melhor se fala português Ponto para ele Infelizmente continuando a tratar do assunto não hesitou em afirmar que no cômputo geral o carioca é o que se expressa melhor sob a ótica da norma culta e que a São Paulo que fala dois pastel e acabou as ficha é um horror Não acredito que o fato de ser uma cidade com grande número de imigrantes seja uma explicação suficiente para esse português esquisito dos paulistanos Na verdade é inexplicável Faltam argumentos científicos rigorosos por parte do entrevistado que nos expliquem como chegou ao cômputo pg 48 geral que lhe permitiu atribuir ao carioca uma expressão melhor sob a ótica da norma culta nem com que critérios metodológicos chegou à conclusão de que o português paulistano é esquisito O uso de expressões tão generalizadoras como o carioca de que classe social de que faixa etária com que nível de instrução ou a São Paulo que fala quase vinte milhões de habitantes duas vezes a população de Portugal acaba reforçando indiretamente devido à influência inegável de quem as formulou como formador de opinião a idéia de que o falar carioca é melhor e digno de maior prestígio que os demais falares brasileiros idéia que no passado levou até a se querer impor a pronúncia carioca como a oficial no teatro no canto lírico e nas salas de aula do Brasil inteiro As pesquisas sociolingüísticas que se baseiam em coleta de dados por meio de gravações da fala espontânea viva dos usuários nativos da língua confirmam uma suposição óbvia as pessoas das classes cultas de qualquer lugar dominam melhor a norma culta do que as pessoas das classes nãocultas de qualquer lugar Falantes cultos do Rio de Janeiro do Recife de Porto Alegre de São Paulo de Catolé do Rocha ou de Guaratinguetá se expressarão igualmente bem sob a ótica da norma culta Basta consultar por exemplo o enorme acervo de centenas de horas de gravação da fala urbana culta recolhido pelos pesquisadores do Projeto NURC5 para confirmar que pg 49 apesar das inevitáveis variações regionais existe uma norma urbana culta geral brasileira Muitos aspectos dessa norma urbana culta estão descritos nos seis volumes da Gramática do português falado uma grande obra coletiva publicada pela Editora da UNICAMP resultado do trabalho de investigação e análise de dezenas de lingüistas das mais diversas regiões do país De igual modo fenômenos de concordância do tipo dois pastel e acabou as ficha são facilmente encontráveis na fala carioca como podemos ouvir nas fitas gravadas do Projeto CENSO que 5 O material do Projeto NURC pode ser consultado nos vários livros publicados com as transcrições das fitas gravadas nas cincos diferentes cidades que compõem o projeto Recife Salvador Rio de Janeiro São Paulo e Porto Alegre Alguns desses livros são CASTILHO PRETI A linguagem falada culta na cidade de São Paulo São Paulo T A QueirozFAPESP 1987 vol 1 e 1988 vol 2 CALLOU LOPES A linguagem falada culta na cidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro UFRJ 1992 vol 1 1993 vol 2 e 1994 vol 3 HILGERT A linguagem falada culta na cidade de Porto Alegre UFRS 1997 vol 1 MOTA ROLLEMBERG A linguagem falada culta na cidade do Salvador UFBA 1994 vol 1 SÁ CUNHA LIMA OLIVEIRA A linguagem falada culta na cidade do Recife UFPE 1996 investiga o uso da língua no Rio de Janeiro nas classes sociais não cultas isto é pessoas que não cursaram universidade6 Além disso esse tipo de concordância se verifica de Norte a Sul do Brasil e também em Portugal segundo pesquisas recentes da professora Maria Marta Scherre Essa mesma pesquisadora defendeu na Universidade Federal do Rio de Janeiro uma tese de doutorado com o título Reanálise da concordância pg 50 nominal em português com 555 páginas que hoje é uma referência obrigatória para quem se aventurar a emitir opiniões a respeito Scherre mostra que ao contrário do que pensa Cipro aqueles fenômenos de concordância são na verdade altamente explicáveis Portanto não representam uma mera esquisitice dos paulistanos muito menos um horror Convém salientar que a determinação das normas culta e não culta é uma questão de grau de freqüência das variantes o que os normativistas considerariam erros ou acertos Por exemplo coisas como os menino tudo ou houveram fatos podem aparecer na fala de brasileiros cultos É preciso abandonar essa ânsia de tentar atribuir a um único local ou a uma única comunidade de falantes o melhor ou o pior português e passar a respeitar igualmente todas as variedades da língua que constituem um tesouro precioso de nossa cultura Todas elas têm o seu valor são veículos plenos e perfeitos de comunicação e de relação entre as pessoas que as falam Se tivermos de incentivar o uso de uma norma culta não podemos fazêlo de modo absoluto fonte do preconceito Temos de levar em consideração a presença de regras variáveis em todas as variedades a culta inclusive pg 51 6 A análise de alguns fenômenos variáveis do português falado na cidade do Rio de Janeiro com base no acervo do Projeto CENSO se encontra no livro organizado por SILVA SCHERRE Padrões sociolingüísticos Rio de Janeiro Tempo BrasileiroUFRJ 1996 Mito n 6 O certo é falar assim porque se escreve assim Diante de uma tabuleta escrita COLÉGIO é provável que um pernambucano lendoa em voz alta diga CÒlégio que um carioca diga CUlégio que um paulistano diga CÔlégio E agora Quem está certo Ora todos estão igualmente certos O que acontece é que em toda língua do mundo existe um fenômeno chamado variação isto é nenhuma língua é falada do mesmo jeito em todos os lugares assim como nem todas as pessoas falam a própria língua de modo idêntico Infelizmente existe uma tendência mais um preconceito muito forte no ensino da língua de querer obrigar o aluno a pronunciar do jeito que se escreve como se essa fosse a única maneira certa de falar português Imagine se alguém fosse falar inglês ou francês do jeito que se escreve Muitas gramáticas e livros didáticos chegam ao cúmulo de aconselhar o professor a corrigir quem fala muleque bêjo minino bisôro como se isso pudesse anular o fenômeno da variação tão natural e tão antigo na história das línguas Essa supervalorização da língua escrita combinada com o desprezo da língua falada é um preconceito que data de antes de Cristo É claro que é preciso ensinar a escrever de acordo com a ortografia oficial mas não se pode fazer isso tentando criar uma língua falada artificial e reprovando como erradas as pronúncias que são resultado natural das pg 52 forças internas que governam o idioma Seria mais justo e democrático dizer ao aluno que ele pode dizer BUnito ou BOnito mas que só pode escrever BONITO porque é necessária uma ortografia única para toda a língua para que todos possam ler e compreender o que está escrito mas é preciso lembrar que ela funciona como a partitura de uma música cada instrumentista vai interpretála de um modo todo seu particular O pintor belga René Magritte 18981967 tem um quadro famoso chamado A traição das imagens no qual se vê a figura de um cachimbo e embaixo dela a frase escrita Isto não é um cachimbo Em que esse exemplo pode servir à nossa discussão Isso não é um cachimbo de verdade mas simplesmente a representação gráfica pictórica de um cachimbo O mesmo acontece com a escrita alfabética em sua regulamentação ortográfica oficial Ela não é a fala é uma tentativa pg 53 de representação gráfica pictórica e convencional da língua falada Falarei mais detidamente da paranóia ortográfica na terceira parte deste livro Quando digo que a escrita é uma tentativa de representação é porque sabemos que não existe nenhuma ortografia em nenhuma língua do mundo que consiga reproduzir a fala com fidelidade Algumas ortografias como a do espanhol têm regras mais generalizáveis mais simples e mais coerentes que facilitam o ato de ler e escrever Mesmo assim no castelhanopadrão da Espanha pode sempre haver dúvidas Z ou C B ou V G ou J Outras línguas como o inglês têm mais exceções do que regras e é preciso aprender a escrever e a pronunciar praticamente cada palavra pois a generalização das regras ortográficas tem boa chance de falhar para um falante de português é estranho imaginar que as palavras jail e gaol tenham a mesma pronúncia Outras ainda como o chinês não buscam reproduzir a língua falada e optam pela escrita ideográfica Esta relação complicada entre língua falada e língua escrita precisa ser profundamente reexaminada no ensino Durante mais de dois mil anos os estudos gramaticais se dedicaram exclusivamente à língua escrita literária formal Foi somente no começo do século XX com o nascimento da ciência lingüística que a língua falada passou a ser considerada como o verdadeiro objeto de estudo científico Afinal a língua falada é a língua tal como foi aprendida pelo falante em seu contato com a família e com a comunidade pg 54 logo nos primeiros anos de vida É o instrumento básico de sobrevivência Um grito de socorro tem muito mais eficácia do que essa mesma mensagem escrita A língua escrita por seu lado é totalmente artificial exige treinamento memorização exercício e obedece a regras fixas de tendência conservadora além de ser uma representação não exaustiva da língua falada Faça você mesmo o teste pegue uma palavra bem simples fogo por exemplo e pronunciea com todas as inflexões e tons de voz que conseguir espanto medo alegria tristeza saudade ira remorso horror felicidade histeria pavor Depois tente reproduzir por escrito essas mesmas inflexões e tons de voz É impossível O máximo que a língua escrita oferece são os sinais de exclamação e de interrogação A mera forma escrita não é capaz de traduzir as inflexões e as intenções pretendidas pelo falante Por isso os autores de textos teatrais indicam entre parênteses a emoção sensação ou sentimento que o ator deve expressar numa dada fala A importância da língua falada para o estudo científico está principalmente no fato de ser nessa língua falada que ocorrem as mudanças e as variações que incessantemente vão transformando a língua Quem quiser por exemplo conhecer o estado atual da língua portuguesa do Brasil precisará investigar empiricamente a língua falada como fazem os pesquisadores dos projetos NURC e CENSO que já citei entre outros Afinal a escola as gramáticas normativas e os livros didáticos até hoje afirmam que os pronomes sujeitos de segunda pessoa são pg 55 tu e vós que o pronome você é simplesmente uma forma de tratamento que a mesóclise dar voloei diloíamos amarnosemos ainda é uma opção para a colocação dos pronomes oblíquos ou que o futuro do subjuntivo do verbo ver é vir Essa porém já não é a realidade de boa parte da língua escrita no Brasil que dirá da língua falada Do ponto de vista da história de cada indivíduo o aprendizado da língua falada sempre precede o aprendizado da língua escrita quando ele acontece Basta citar os bilhões de pessoas que nascem crescem vivem e morrem sem jamais aprender a ler e a escrever E no entanto ninguém pode negar que são falantes perfeitamente competentes de suas línguas maternas Do ponto de vista da história da humanidade é a mesma coisa A espécie humana tem pelo menos um milhão de anos Ora as primeiras formas de escrita conforme a classificação tradicional dos historiadores surgiram há apenas nove mil anos A humanidade portanto passou 990000 anos apenas falando Quando o estudo da gramática surgiu no entanto na Antigüidade clássica seu objetivo declarado era investigar as regras da língua escrita para poder preservar as formas consideradas mais corretas e elegantes da língua literária Aliás a palavra gramática em grego significa exatamente a arte de escrever Infelizmente essas mesmas regras da língua literária começaram a ser cobradas da língua falada o que é um disparate científico sem tamanho pg 56 Há cientistas que se dedicam especificamente a estudar as diferenças semelhanças interrelações e interações que existem entre as duas modalidades O ensino tradicional da língua no entanto quer que as pessoas falem sempre do mesmo modo como os grandes escritores escreveram suas obras A gramática tradicional despreza totalmente os fenômenos da língua oral e quer impor a ferro e fogo a língua literária como a única forma legítima de falar e escrever como a única manifestação lingüística que merece ser estudada Vejase por exemplo o caso da Nova gramática do português contemporâneo de Celso Cunha e Lindley Cintra Ao definirem o objetivo de seu trabalho os autores declaram no prefácio Tratase de uma tentativa de descrição do português atual na sua forma culta isto é da língua como a têm utilizado os escritores portugueses brasileiros e africanos do Romantismo para cá grifo meu Essa obra portanto só pode ser consultada por quem tiver dúvidas no momento de escrever um texto literário já que segundo os próprios autores não serão abordados fenômenos característicos de outras normas escritas como a jornalística ou a da produção científica muito menos os fenômenos típicos da língua falada A gramática de Celso Cunha e Lindley Cintra é louvável pela honestidade com que declara seu objeto de estudo embora por diversas razões que não cabe aqui enumerar eles não cumpram o que prometem no prefácio pg 57 e acabem tratando de fatos da língua oral ao lado de fenômenos característicos da escrita A maioria das outras obras desse gênero porém não faz assim seus autores assumem a norma literária como a única digna de ser estudada ensinada e praticada e acham isso tão natural que nem se dão ao trabalho de definila como seu objeto de estudo Fica evidente que para eles só essa norma literária conservadora merece o título de língua portuguesa O que é dito ali vale para todas as variedades do português em qualquer lugar do mundo em qualquer momento histórico em qualquer classe social em qualquer faixa etária Portanto não é uma gramática é uma panacéia Essa ênfase no texto literário tem produzido uma visão redutora da língua identificandoa freqüentemente apenas com a regulamentação ortográfica Como se não bastasse os autores de compêndios gramaticais inclusive os mais recentes não fazem a distinção básica elementar entre ortografia e fonética isto é entre as regras da língua escrita e os fenômenos da língua oral Aliás por mais incrível que pareça muitos deles classificam a ortografia como uma das subdivisões da fonética É o mesmo que querer incluir os ursinhos de pelúcia na classe dos mamíferos carnívoros Gramático muito mais criterioso e atento é o rinoceronte Quindim personagem do Sítio do Picapau Amarelo de Monteiro Lobato que levando as crianças do sítio a passear pelo País da Gramática insistiu muito para que seus alunos não confundissem letra e som p 6 pg 58 Trotou trotou e depois de muito trotar deu com eles numa região onde o ar chiava de modo estranho Que zumbido será este indagou a menina Narizinho Parece que andam voando por aqui milhões de vespas invisíveis É que já entramos em terras do País da Gramática explicou o rinoceronte Estes zumbidos são os Sons Orais que voam soltos no espaço Não comece a falar difícil que nós ficamos na mesma observou Emília Sons Orais que pedantismo é esse Som Oral quer dizer som produzido pela boca A E I O U são Sons Orais como dizem os senhores gramáticos Pois diga logo que são letras gritou Emília Mas não são letras protestou o rinoceronte Quando você diz A ou O você está produzindo um som não está escrevendo uma letra Letras são sinaizinhos que os homens usam para representar esses sons Primeiro há os Sons Orais depois é que aparecem as letras para marcar esses sons orais Entendeu O ar continuava num zunzum cada vez maior Os meninos pararam muito atentos a ouvir Estou percebendo muitos sons que conheço disse Pedrinho com a mão em concha ao ouvido Todos os sons que andam zumbindo por aqui são velhos conhecidos seus Pedrinho Querem ver que é o tal alfabeto lembrou Narizinho E é mesmo Estou distinguindo todas as letras do alfabeto Não menina você está apenas distinguindo todos os sons das letras do alfabeto corrigiu o rinoceronte com uma pachorra igual à de dona Benta Se você escrever cada um desses sons então sim então surgem as letras do alfabeto pg 59 Esse livro de Monteiro Lobato foi publicado em 1934 Mas as lições do rinoceronte Quindim ainda precisam ser lembradas e relembradas pois a literatura gramatical perpetua até hoje a confusão entre letra e fonema É assim que procedem por exemplo Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante em sua Gramática da língua portuguesa publicada no final de 1997 Por isso a gente não deve se surpreender quando esses autores explicam que a letra x representa o fonema š depois de um ditongo e dão como exemplo de palavras com ditongo ameixa caixa peixe eixo frouxo trouxa baixo sem fazer a menor menção ao fenômeno de monotongação que já atingiu essas palavras na língua falada no Brasil inclusive em sua norma culta urbana resultando nas pronúncias amêxa caxa pêxe êxo frôxo e baxo O termo ditongo dois sons que se aplica a um fenômeno fonético não cabe nesses exemplos que retratam simplesmente a convenção ortográfica que ainda conserva na escrita as duas letras vogais antes do X O que acontece é que esses monotongos podem vir a se ditongar em situações bem específicas tal como a redução da velocidade da fala com finalidade de dar ênfase ao enunciado Pensemos por exemplo no uso das palavras louco e loucura quando usadas de modo afetado para indicar coisas surpreendentes ou muito boas Foi uma louuucura Os mesmos autores dizem que na palavra QUAL existe um ditongo crescente quando qualquer brasileiro de ouvido mais afinado vai reconhecer aí na verdade um tritongo É muito restrita no português do Brasil a pronúncia pg 60 l ou ł para o L que aparece em final de sílaba Na grande maioria dos falares brasileiros esse L se pronúncia como a semivogal w É o velho preconceito grafocêntrico isto é a análise de toda a língua do ponto de vista restrito da escrita que impede o reconhecimento da verdadeira realidade lingüística Por isso temos de desconfiar desses livros que se autodenominam Gramática da língua portuguesa sem especificar seu objeto de estudo A língua portuguesa que eles abordam é uma variedade específica dentre as muitas existentes que tem de ser designada com todos os seus qualificativos Gramática da língua portuguesa escrita literária formal antiga Todos os demais fenômenos vivos da língua falada e de outras modalidades da língua escrita são deixados de fora desses livros pg 61 Mito n 7 É preciso saber gramática para falar e escrever bem É difícil encontrar alguém que não concorde com a declaração acima Ela vive na ponta da língua da grande maioria dos professores de português e está formulada em muitos compêndios gramaticais como a já citada Gramática de Cipro e Infante cujas primeiríssimas palavras são A Gramática é instrumento fundamental para o domínio do padrão culto da língua É muito comum também os pais de alunos cobrarem dos professores o ensino dos pontos de gramática tais como eles próprios os aprenderam em seu tempo de escola E não faltam casos de pais que protestaram veementemente contra professores e escolas que tentando adotar uma prática de ensino da língua menos conservadora não seguiam rigorosamente o que está nas gramáticas Conheço gente que tirou seus filhos de uma escola porque o livro didático ali adotado não ensinava coisas indispensáveis como antônimos coletivos e análise sintática Por que aquela declaração é um mito Porque como nos diz Mário Perini em Sofrendo a gramática p 50 não existe um grão de evidência em favor disso toda a evidência disponível é em contrário Afinal se fosse assim todos os gramáticos seriam grandes escritores o que está longe de ser verdade e os bons escritores seriam especialistas em gramática pg 62 Ora os escritores são os primeiros a dizer que gramática não é com eles Rubem Braga indiscutivelmente um dos grandes de nossa literatura escreveu uma crônica deliciosa a esse respeito chamada Nascer no Cairo ser fêmea de cupim Carlos Drummond de Andrade preciso de adjetivos para qualificálo no poema Aula de Português também dá testemunho de sua perturbação diante do mistério das figuras de gramática esquipáticas que compõem o amazonas de minha ignorância Drummond ignorante E o que dizer de Machado de Assis que ao abrir a gramática de um sobrinho se espantou com sua própria ignorância por não ter entendido nada Esse e outros casos são citados por Celso Pedro Luft em Língua e liberdade pp 2325 E esse mesmo autor nos diz p 21 Um ensino gramaticalista abafa justamente os talentos naturais incute insegurança na linguagem gera aversão ao estudo do idioma medo à expressão livre e autêntica de si mesmo Mário Perini no livro que citamos acima chama a atenção para a propaganda enganosa contida no mito de que é preciso ensinar gramática para aprimorar o desempenho lingüístico dos alunos Quando justificamos o ensino de gramática dizendo que é para que os alunos venham a escrever ou ler ou falar melhor estamos prometendo uma mercadoria que não podemos entregar Os alunos percebem isso com bastante clareza embora talvez não o possam explicitar e esse é um dos fatores do descrédito da disciplina entre eles pg 63 E Sirio Possenti já citado lembranos que as primeiras gramáticas do Ocidente as gregas só foram elaboradas no século II a C mas que muito antes disso já existira na Grécia uma literatura ampla e diversificada que exerce influência até hoje em toda a cultura ocidental A Ilíada e a Odisséia já eram conhecidas no século VI a C Platão escreveu seus fascinantes Diálogos entre os séculos V e IV a C na mesma época do grande dramaturgo Esquilo verdadeiro criador da tragédia grega Que gramática eles consultaram Nenhuma Como puderam então escrever e falar tão bem sua língua O que aconteceu ao longo do tempo foi uma inversão da realidade histórica As gramáticas foram escritas precisamente para descrever e fixar como regras e padrões as manifestações lingüísticas usadas espontaneamente pelos escritores considerados dignos de admiração modelos a ser imitados Ou seja a gramática normativa é decorrência da língua é subordinada a ela dependente dela Como a gramática porém passou a ser um instrumento de poder e de controle surgiu essa concepção de que os falantes e escritores da língua é que precisam da gramática como se ela fosse uma espécie de fonte mística invisível da qual emana a língua bonita correta e pura A língua passou a ser subordinada e dependente da gramática O que não está na gramática normativa não é português E os compêndios gramaticais se transformaram em livros sagrados cujos dogmas e cânones têm de ser obedecidos à risca para não se cometer nenhuma heresia pg 64 O resultado dessa inversão dos fatos históricos é visível por exemplo na Gramática de Cipro e Infante que na p 16 afirma A Gramática normativa estabelece a norma culta ou seja o padrão lingüístico que socialmente é considerado modelar As línguas que têm forma escrita como é o caso do português necessitam da Gramática normativa para que se garanta a existência de um padrão lingüístico uniforme Ora não é a gramática normativa que estabelece a norma culta A norma culta simplesmente existe como tal A tarefa de uma gramática seria isso sim definir identificar e localizar os falantes cultos coletar a língua usada por eles e descrever essa língua de forma clara objetiva e com critérios teóricos e metodológicos coerentes Sem isso não podemos confiar em gramáticas como a de Domingos Paschoal Cegalla que afirma simplesmente Este livro pretende ser uma Gramática Normativa da Língua Portuguesa do Brasil conforme a falam e escrevem as pessoas cultas na época atual Novíssima gramática da língua portuguesa p xix Mas quem são essas pessoas cultas na época atual Com que critérios o autor as classificou de cultas Com que metodologia precisa identificou o modo como elas falam e escrevem Pois é disso precisamente que mais necessitamos hoje no Brasil da descrição detalhada e realista da norma culta objetiva com base em coletas confiáveis que se utilizem dos recursos tecnológicos mais avançados para que ela sirva de base ao ensinoaprendizagem pg 65 na escola e não mais uma norma fictícia que se inspira num ideal lingüístico inatingível baseado no uso literário artístico particular e exclusivo dos grandes escritores Afinal um instrutor de autoescola quer formar bons motoristas e não campeões internacionais de Fórmula 1 Um professor de português quer formar bons usuários da língua escrita e falada e não prováveis candidatos ao Prêmio Nobel de literatura Por outro lado não é a gramática normativa que vai garantir a existência de um padrão lingüístico uniforme Esse padrão lingüístico que pode chegar a certo grau de uniformidade mas nunca será totalmente uniforme pois é usado por seres humanos que nunca hão de ser criaturas física psicológica e socialmente idênticas como já dissemos existe na sociedade independentemente de haver ou não livros que o descrevam As plantas só existem porque os livros de botânica as descrevem É claro que não Os continentes só passaram a existir depois que os primeiros cartógrafos desenharam seus mapas Difícil acreditar A Terra só passou a ser esférica depois que as primeiras fotografias tiradas do espaço mostraramna assim Não Sem os livros de receitas não haveria culinária Eu sei muito bem que não a melhor cozinheira que conheço capaz de preparar centenas de pratos diferentes os mais sofisticados é uma pernambucana de quase oitenta anos cem por cento analfabeta Esse mito está ligado à milenar confusão que se faz entre língua e gramática normativa Mas é preciso desfazêla pg 66 Não há por que confundir o todo com a parte Lembrase do que eu falei na abertura do livro sobre a gramática normativa ser um igapó Acho que vale a pena repetir aqui Na Amazônia igapó é uma grande poça de água estagnada às margens de um rio sobretudo depois da cheia Acho uma boa metáfora para a gramática normativa Como eu disse enquanto a língua é um rio caudaloso longo e largo que nunca se detém em seu curso a gramática normativa é apenas um igapó uma grande poça de água parada um charco um brejo um terreno alagadiço à margem da língua Enquanto a água do riolíngua por estar em movimento se renova incessantemente a água do igapógramática normativa envelhece e só se renovará quando vier a próxima cheia É a mesma coisa que nos explica em termos científicos Luiz Carlos Cagliari em Alfabetização lingüística7 A gramática normativa foi num primeiro momento uma gramática descritiva de um dialeto de uma língua Depois a sociedade fez dela um corpo de leis para reger o uso da linguagem Por sua própria natureza uma gramática normativa está con denada ao fracasso já que a linguagem é um fenômeno dinâmico e as línguas mudam com o tempo e para continuar sendo a expressão do poder social demonstrado por um dialeto a gramática normativa deveria mudar Se não é o ensinoestudo da gramática que vai garantir a formação de bons usuários da língua o que vai garantila Existe muito debate a respeito entre os lingüistas pg 67 e os pedagogos O certo é que eles são praticamente unânimes em combater aquele mito Há lugar para a gramática na escola Parece que sim Mas também parece ser um lugar bastante diferente do que lhe era atribuído na prática tradicional de ensino da língua Na terceira parte deste livro tentarei expor algumas opiniões a respeito De todo modo algumas pessoas muito competentes já explicaram tudo isso melhor do que eu seria capaz Por isso ao leitor e à leitora interessados nesse tema recomendo a leitura entre outros dos já citados Sofrendo a gramática de Mário Perini Por que não ensinar gramática na escola de Sírio Possenti e Língua e liberdade de Celso Pedro Luft e também Linguagem língua e fala de Ernani Terra Contradições no ensino de português de Rosa Virgínia Mattos e Silva e Gramática na escola de Maria Helena de Moura Neves Esses livros nos ajudam a compreender melhor os mecanismos de exclusão que agem por trás da imposição das normas gramaticais conservadoras no ensino da língua e de que 7 Citado por Ernani Terra Linguagem língua e fala p 46 modo poderíamos em nossa prática pedagógica tentar desmontá los pg 68 Mito n8 O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social Este mito que vem fechar nosso circuito mitológico tem muito que ver com o primeiro o mito da unidade lingüística do Brasil Esses dois mitos são aparentados porque ambos tocam em sérias questões sociais É muito comum encontrar pessoas muito bem intencionadas que dizem que a norma padrão conservadora tradicional literária clássica é que tem de ser mesmo ensinada nas escolas porque ela é um instrumento de ascensão social Seria então o caso de dar uma língua àqueles que eu chamei de sem língua Ora se o domínio da norma culta fosse realmente um instrumento de ascensão na sociedade os professores de português ocupariam o topo da pirâmide social econômica e política do país não é mesmo Afinal supostamente ninguém melhor do que eles domina a norma culta Só que a verdade está muito longe disso como bem sabemos nós professores a quem são pagos alguns dos salários mais obscenos de nossa sociedade Por outro lado um grande fazendeiro que tenha apenas alguns poucos anos de estudo primário mas que seja dono de milhares de cabeças de gado de indústrias agrícolas e detentor de grande influência política em sua região vai poder falar à vontade sua língua de caipira com todas as formas sintáticas consideradas erradas pela gramática pg 69 tradicional porque ninguém vai se atrever a corrigir seu modo de falar O que estou tentando dizer é que o domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha todos os dentes que não tenha casa decente para morar água encanada luz elétrica e rede de esgoto O domínio da norma culta de nada vai servir a uma pessoa que não tenha acesso às tecnologias modernas aos avanços da medicina aos empregos bem remunerados à participação ativa e consciente nas decisões políticas que afetam sua vida e a de seus concidadãos O domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha seus direitos de cidadão reconhecidos plenamente a uma pessoa que viva numa zona rural onde um punhado de senhores feudais controlam extensões gigantescas de terra fértil enquanto milhões de famílias de lavradores semterra não têm o que comer Achar que basta ensinar a norma culta a uma criança pobre para que ela suba na vida é o mesmo que achar que é preciso aumentar o número de policiais na rua e de vagas nas penitenciárias para resolver o problema da violência urbana A violência urbana está intimamente ligada a uma situação social de profunda injustiça que dá ao Brasil como eu já disse o triste segundo lugar entre os países com a pior distribuição de renda de todo o mundo perdendo apenas para Botswana um país africano desértico muito menor e muito menos desenvolvido É preciso garantir sim a todos os brasileiros o reconhecimento sem o tradicional julgamento de valor da pg 70 variação lingüística porque o mero domínio da norma culta não é uma fórmula mágica que de um momento para outro vai resolver todos os problemas de um indivíduo carente É preciso favorecer esse reconhecimento mas também garantir o acesso à educação em seu sentido mais amplo aos bens culturais à saúde e à habitação ao transporte de boa qualidade à vida digna de cidadão merecedor de todo respeito Como é fácil perceber o que está em jogo não é a simples transformação de um indivíduo que vai deixar de ser um sem língua padrão para tornarse um falante da variedade culta O que está em jogo é a transformação da sociedade como um todo pois enquanto vivermos numa estrutura social cuja existência mesma exige desigualdades sociais profundas toda tentativa de promover a ascensão social dos marginalizados é senão hipócrita e cínica pelo menos de uma boa intenção paternalista e ingênua Por isso eu me pergunto será que doando a língua padrão a um indivíduo das classes subalternas ele vai automaticamente tornarse um patrão Não é mera coincidência etimológica o fato de padrão e patrão serem duas formas divergentes de uma mesma origem comum o latim patronu que tem também a mesma raiz de paternalismo e patriarcalismo Valerá mesmo a pena promover a ascensão social para que alguém se enquadre dentro desta sociedade em que vivemos tal como ela se apresenta hoje Basta pensar um pouco nos indivíduos que detêm o poder no Brasil não são quando são apenas falantes da norma culta mas são sobretudo em sua grande maioria homens pg 71 brancos heterossexuais nascidoscriados na porção SulSudeste do país ou oriundos das oligarquias feudais do Nordeste Como eu já tinha avisado na abertura do livro falar da língua é falar de política e em nenhum momento esta reflexão política pode estar ausente de nossas posturas teóricas e de nossas atitudes práticas de cidadão de professor e de cientista Do contrário estaremos apenas contribuindo para a manutenção do círculo vicioso do preconceito lingüístico e do irmão gêmeo dele o círculo vicioso da injustiça social pg 72 Mito n 2 Brasileiro não sabe português Só em Portugal se fala bem português Essas duas opiniões tão habituais corriqueiras comuns e que na realidade são duas faces de uma mesma moeda enferrujada refletem o complexo de inferioridade o sentimento de sermos até hoje uma colônia dependente de um país mais antigo e mais civilizado Podemos encontrar essa concepção expressa no livro Língua viva de Sérgio Nogueira Duarte que é uma coletânea de suas colunas sobre língua portuguesa publicadas no Jornal do Brasil Ali a gente lê na página 65 Sempre me perguntam onde se fala o melhor português Só pode ser em Portugal Já viajei muito pelo Brasil e já estive em todas as regiões Sinceramente não sei onde se fala melhor Cada região tem suas qualidades e seus vícios de linguagem grifo meu Por isso não consigo concordar com o título do livro que está longe de analisar a verdadeira língua viva usada em nosso país nem com o subtítulo uma análise simples e bemhumorada da linguagem do brasileiro Seria mais acertado dizer que se trata de uma análise preconceituosa e desinformada da língua falada e escrita por aqui Mas não podemos culpar o autor que é antes uma vítima do que propriamente um responsável por esse preconceito ele está apenas exprimindo uma ideologia impregnada em nossa cultura há muito tempo pg 20 É a mesma concepção torpe segundo a qual o Brasil é um país subdesenvolvido porque sua população não é uma raça pura mas sim o resultado de uma mistura negativa de raças sendo que duas delas a negra e a indígena são inferiores à do branco europeu por isso nosso povinho só pode ser o que é Ora há muito tempo a ciência destruiu o mito da raça pura que é um conceito absurdo sem nenhuma possibilidade de verificação na realidade de nenhum povo por mais isolado que seja Assim uma raça que não é pura não poderia falar uma língua pura Não é difícil encontrar intelectuais renomados que lamentem a corrupção do português falado no Brasil língua de matutos de caipiras infelizes arremedo tosco da língua de Camões É o que escreve por exemplo Arnaldo Niskier presidente da Academia Brasileira de Letras num artigo publicado na Folha de S Paulo 15198 podese registrar o fato facilmente comprovável de que nunca se escreveu e falou tão mal o idioma de Ruy Barbosa A classe dita culta mostrase displicente em relação à língua nacional e a indigência vocabular tomou conta da juventude e dos não tão jovens assim quase como se aqueles se orgulhassem de sua própria ignorância e estes quisessem voltar atrás no tempo Para mostrar o quanto declarações desse tipo se baseiam mais em posturas preconceituosas perpetuadas ao longo dos séculos pela desinformação ou má informação do que em análises científicas acuradas dos fatos lingüísticos vamos ler o seguinte trecho do filólogo Cândido de Figueiredo pg 21 Quanto mais progressiva é a civilização de um povo mais sujeita é a sua língua a deturpações e vícios sob a variada influência das relações internacionais dos novos inventos das travancas da ignorância e até dos caprichos da moda Sábios e romancistas poetas e prosadores e nomeadamente a imprensa periódica parece haverem conspirado para dar curso às mais extraordinárias invenções e enxertos de linguagem Ora essas palavras foram escritas em 1903 num livro chamado O que se não deve dizer sim o título é esse mesmo É surpreendente como elas têm o mesmo tom de queixa e censura das palavras de Niskier escritas noventa e cinco anos depois Niskier também faz neste artigo uma referência queixosa ao pouco apreço que devotamos ao gosto pela leitura Nosso índice per capita mal alcança dois livros por habitante na França por exemplo oscila em torno de oito e passa a elogiar os hábitos culturais dos franceses que valorizam mais a leitura do que os brasileiros Esqueceuse porém de dizer que a França ocupa a 11ª posição no quadro do IDH Índice de Desenvolvimento Humano estabelecido pela ONU para avaliar a qualidade de vida nos 175 países do mundo O Brasil que em 1996 ocupava a 58a posição caiu em 1999 para a 79a devido à sensível piora das condições sociais dos brasileiros como um todo Diante de tamanha diferença um índice per capita de dois livros por ano num país com 60 milhões de analfabetos plenos e analfabetos funcionais número igual ao da população total da França é mesmo espantoso E da mesma forma como Niskier lamenta a invasão dos anglicismos Figueiredo diz que o enxerto da francesia pg 22 frutificou com exuberância classificando de malária o uso de palavras estrangeiras E se quiséssemos recuar ainda mais no tempo não teríamos dificuldades em encontrar outros autores vociferando contra a ruína da língua portuguesa e profetizando o fim dela Felizmente nenhuma dessas profecias se concretizou Os galicismos na passagem do século XIX para o XX e os anglicismos na virada do terceiro milênio não têm a força destruidora tão temida pelos puristas e conservadores A língua portuguesa nesses noventa e cinco anos se manteve muito bem obrigada falada e escrita por cada vez mais gente produziu uma literatura reconhecida mundialmente é propagada também em nível internacional pelo grande prestígio de que goza a música popular brasileira entre tantas outras provas de sua vitalidade E a avalanche ai um galicismo de palavras estrangeiras tem de ser analisada sob a perspectiva da dependência políticoeconômica e conseqüentemente cultural do Brasil e de Portugal para com os centros mundiais de poder Não adianta bradar contra a invasão de palavras na língua portuguesa sem analisar essa dependência É querer eliminar os efeitos sem atacar as verdadeiras causas E essa história de dizer que brasileiro não sabe português e que só em Portugal se fala bem português Tratase de uma grande bobagem infelizmente transmitida de geração a geração pelo ensino tradicional da gramática na escola O brasileiro sabe português sim O que acontece é que nosso português é diferente do português falado em pg 23 Portugal Quando dizemos que no Brasil se fala português usamos esse nome simplesmente por comodidade e por uma razão histórica justamente a de termos sido uma colônia de Portugal Do ponto de vista lingüístico porém a língua falada no Brasil já tem uma gramática isto é tem regras de funcionamento que cada vez mais se diferencia da gramática da língua falada em Portugal Por isso os lingüistas os cientistas da linguagem preferem usar o termo português brasileiro por ser mais claro e marcar bem essa diferença Na língua falada as diferenças entre o português de Portugal e o português do Brasil são tão grandes que muitas vezes surgem dificuldades de compreensão no vocabulário nas construções sintáticas no uso de certas expressões sem mencionar é claro as tremendas diferenças de pronúncia no português de Portugal existem vogais e consoantes que nossos ouvidos brasileiros custam a reconhecer porque não fazem parte de nosso sistema fonético3 E muitos estudos têm mostrado que os sistemas pronominais do português europeu e do português brasileiro são totalmente diferentes Por exemplo os pronomes oa de construções como eu o vi e eu a conheço estão praticamente extintos pg 24 no português falado no Brasil ao passo que no de Portugal continuam firmes e fortes Esses pronomes nunca aparecem na fala das crianças brasileiras nem na dos brasileiros nãoalfabetizados e têm baixa ocorrência na fala dos indivíduos cultos o que demonstra que são exclusivos da língua ensinada na escola sobretudo da língua escrita não fazendo parte então do repertório da língua materna dos brasileiros Nossas crianças usam sem problema me e te Ela me bateu Eu vou te pegar mas oa jamais que são substituídos por ele ela Eu vou pegar ele Eu vi ela As formas lo e la pegálo vêla então nem pensar Se as crianças não usam é porque não ouvem os adultos usar e se os adultos não usam 3 Assistindo um dia desses a televisão portuguesa por cabo ouvi os verbos uprar e dlibrar Consegue adivinhar o que é Sim operar e deliberar Também é comum os portugueses evitarem hiatos como a água introduzindo um y e pronunciando ayágua Além disso se uma palavra termina em s e a próxima começa com c os portugueses fundem essas duas consoantes numa só pronunciada como o x de xixi outros cinco é pronunciado otruxincu São realizações fonéticas totalmente estranhas à língua do brasileiro é porque não precisam desses pronomes E mesmo na língua dos adultos escolarizados esses pronomes só aparecem como um recurso estilístico em situações de uso mais formais quando o falante quer deixar claro que domina as regras impostas pela gramática escolar A gramática escolar no entanto desconhece essa transformação por que a língua está passando e insiste em considerar erradas construções como Eu conheço ele Você viu ela chegar etc O único nível em que ainda é possível uma compreensão quase total entre brasileiros e portugueses é o da língua escrita formal porque a ortografia é praticamente a mesma com poucas diferenças Mas um mesmo texto lido em voz alta por um brasileiro e por um português vai soar completamente diferente ou melhor difrent Aliás faça você mesmo a experiência tente tirar a letra de uma música cantada por um cantor ou uma cantora da terrinha e veja pg 25 como é difícil4 E por incrível que pareça um dos principais obstáculos para a difusão no Brasil do cinema feito em Portugal é justamente a língua além das dificuldades de distribuição ligadas ao quase monopólio do cinema americano Como os brasileiros têm dificuldades em entender o português de Portugal e como ficaria no mínimo estranho colocar legendas em filmes portugueses o resultado é que praticamente nunca se vê filme português nos cinemas daqui Temos a impressão de que Portugal não produz cinema o que é falso há bons cineastas 4 Eu mesmo uma vez passei por uma situação embaraçosa um amigo meu francês me enviou uma fita cassete com músicas do compositor português José Afonso por sinal maravilhoso e me pediu para tirar a letra de uma delas de que ele gostava muito Depois de algumas tentativas acabei desistindo porque havia muitas frases inteiras das quais eu não pescava simplesmente nada Ele espantado me perguntou Mas ele não canta em português Tive de explicar ao meu amigo que havia grandes diferenças entre o português do Brasil e o de Portugal Mas eu tive a minha vingança Pedi a esse mesmo amigo pouco depois que transcrevesse a letra de uma canção gravada por uma cantor canadense e ele teve a mesma dificuldade porque o francês do Canadá às vezes pode ser incompreensível para um falante do francês da França portugueses um dos quais Manuel dOliveira é reconhecido internacionalmente como um grande diretor No que diz respeito ao ensino do português no Brasil o grande problema é que esse ensino até hoje depois de mais de cento e setenta anos de independência política continua com os olhos voltados para a norma lingüística de Portugal As regras gramaticais consideradas certas são aquelas usadas por lá que servem para a língua falada lá que retratam bem o funcionamento da língua que os pg 26 portugueses falam É a concepção que impera por exemplo no livro Não erre mais de Luiz Antonio Sacconi que na página 64 explica A Lua é mais pequena que a Terra Eis aí uma frase corretíssima que muitos imaginam o contrário Mais pequeno é expressão legítima usada por todos os portugueses que usam menor quando se trata de idéia de qualidade poeta menor escritor menor etc grifo meu Fica implícito então que para considerar uma expressão legítima basta que ela seja usada por todos os portugueses como se eles ditassem a norma lingüística válida para todos os povos que falam português Ora todos sabemos que mais pequeno não funciona no Brasil é uma expressão rejeitada pela norma culta brasileira que usa menor em todas as circunstâncias em que há comparação O mesmo espírito guiou a revista Época que em sua edição de 14 de junho de 1999 estampou uma grande reportagem sobre A ciência de escrever bem acerca da redação no vestibular Entre as melhores redações apresentadas naquele ano ao vestibular da Universidade de São Paulo estava a de Henrique Suguri 17 anos que em determinado momento assim se expressou p 81 O Brasil hoje não é europeu africano asiático indígena Nós somos a mistura exata de tudo isso completamente diferentes das nossas origens únicos E apesar disso estamos indiscutivelmente atrelados aos princípios da nossa matriz Talvez o ano 2000 possa servir para abrirmos os olhos e em vez de comemorarmos os nossos cinco séculos coloniais enterrarmos o que sobrou deles pg 27 Essa belíssima declaração de independência essa consciência da especificidade cultural do povo brasileiro essa valorização de nossa identidade nacional única parece que não foi totalmente compreendida pelos autores da reportagem Pois estes em vez de aceitar o convite do jovem vestibulando para enterrar o que sobrou dos cinco séculos de colonização fizeram questão de comprovar ao contrário que ainda estamos indiscutivelmente atrelados aos princípios da nossa matriz incluindo aí é claro os princípios lingüísticos Digo isso porque na página 84 da mesma reportagem aparece um quadro chamado Como escrever bem que tem como subtítuloDicas que valem para brasileiros de todas as idades Acontece que a primeiríssima destas dicas é a seguinte O uso do gerúndio empobrece o texto Lembre que não existe gerúndio no português falado em Portugal Ora se são dicas para brasileiros que querem escrever bem por que motivos eles têm de se lembrar do que existe ou não existe no português de Portugal A dica além de deixar à mostra sua inspiração neocolonialista também afirma uma inverdade lingüística no português de Portugal existe sim o gerúndio A título de curiosidade lembrome do Fado do ciúme sucesso na voz de Amália Rodrigues uma das maiores cantoras portuguesas de todos os tempos cuja letra a certa altura diz antes prefiro morrer do que contigo viver sabendo que gostas dela Esse sabendo outra coisa não é senão um gerúndio Aproveito para chamar atenção para o antes pg 28 prefirodo que indício de que os portugueses também erram na hora de usar o verbo preferir O que não existe no português falado em Portugal é a construção do tipo estou comendo ela está telefonando Pedro esteve trabalhando muito situações em que os portugueses usam a preposição a seguida do verbo no infinitivo Imagine agora se algum de nós brasileiros disser por aí frases como estou a comer ela está a telefonarPedro esteve a trabalhar muito que são uma das características mais marcantes do português de Portugal Como não me canso de repetir são simplesmente diferenças de uso e diferença não é deficiência nem inferioridade Quanto tempo ainda teremos de esperar para nos darmos conta de uma vez por todas de que somos completamente diferentes das nossas origens únicos como tão brilhantemente escreveu Henrique Suguri em sua redação de vestibular Por causa desse preconceito é que somos obrigados a ensinar e aprender que o certo é dizer e escrever Dême um beijo e não Me dá um beijo e que é errado dizer e escrever Assisti o filme e Alugase casas porque lá em Portugal não é assim que se faz O mito de que brasileiro não sabe português também afeta o ensino de línguas estrangeiras É muito comum verificar entre professores de inglês francês ou espanhol um grande desânimo diante das dificuldades de ensinar o idioma estrangeiro E é mais comum ainda ouvilos dizer Os alunos já não sabem português imagine se vão conseguir aprender outra língua fazendo a velha confusão entre pg 29 língua e gramática normativa É muito fácil atribuir aos outros a culpa do nosso próprio fracasso Assim em vez de buscar as causas da dificuldade de ensino na metodologia empregada nas diferenças de aptidão individual para o aprendizado de línguas ou na competência do próprio professor é muito mais cômodo jogar a culpa no aluno ou na incompetência lingüística inata do brasileiro É curioso como muitos brasileiros assumem esse mesmo preconceito negativo também em relação a outras línguas defendendo sempre a língua da metrópole contra a língua da ex colônia É o nosso eterno trauma de inferioridade nosso desejo de nos aproximarmos o máximo possível do cultuado padrão ideal que é a Europa Todo santo dia tenho de ouvir alguém me dizer que prefere o inglês britânico porque acha o inglês americano muito feio A essas pessoas eu dou sempre a mesma resposta aprenda o inglês britânico se quiser ler Shakespeare mas se quiser dominar uma língua de uso internacional aceita em todos os cantos do mundo como veículo de intercâmbio cultural comercial diplomático tecnológico científico etc aprenda o inglês americano Se algum de nós disser a um norteamericano que ele não sabe inglês ou que o inglês falado nos Estados Unidos é errado ou feio ele decerto vai ficar chocado com nossa ignorância Afinal existe um argumento mais do que convincente para rebater essa acusação o tamanho do país e a quantidade de falantes de inglês que ali vivem além da importância dos Estados Unidos no panorama mundial pg 30 O mesmo argumento vale para o português do Brasil Nosso país é 92 vezes e meia maior que Portugal e nossa população é quase 15 vezes superior Quando se trata de língua temos de levar em conta a quantidade só na cidade de São Paulo vivem mais falantes de português do que em toda a Europa Além disso o papel do Brasil no cenário políticoeconômico mundial é de longe muito mais importante que o de Portugal Não tem sentido nenhum portanto continuar alimentando essa fantasia de que os portugueses são os verdadeiros donos da língua enquanto nós a utilizamos e mal apenas por empréstimo Existe embutida nesse mito a ilusão de que os portugueses falam e escrevem tudo certo e que seguem rigorosamente as regras da gramática ensinada na escola A professora Irandé Antunes de quem tive a honra de ser aluno na Universidade Federal de Pernambuco me contou que quando estava para embarcar para Portugal onde viveria alguns anos preparando seu doutorado muitas pessoas no Brasil lhe disseram Você vai morar em Portugal Então agora suas filhas vão aprender a falar direito Não é nada disso Assim como nós aqui cometemos nossos pecados contra a gramática normativa os portugueses também cometem os deles só que mais uma vez diferentes dos nossos Em Portugal por exemplo o plural de tu não é vós como querem as gramáticas normativas O plural de tu é vocês Pois bem na hora de usar os possessivos os portugueses usam vossovossa que teoricamente só poderiam ser usados com referência a vós Vocês trouxeram os vossos filhos E num livro editado pg 31 em Portugal encontrei a seguinte pergunta Não vos sucede sentirem se por vezes um pouco indefinidos É a famosa mistura de tratamento que causa tanto arrepio e dor de estômago nos gramáticos conservadores mistura que em termos científicos e nãopreconceituosos deve ser analisada de fato como uma reorganização do sistema pronominal da língua tanto a de lá como a de cá Então não há por que continuar difundindo essa idéia mais do que absurda de que brasileiro não sabe português O brasileiro sabe o seu português o português do Brasil que é a língua materna de todos os que nascem e vivem aqui enquanto os portugueses sabem o português deles Nenhum dos dois é mais certo ou mais errado mais feio ou mais bonito são apenas diferentes um do outro e atendem às necessidades lingüísticas das comunidades que os usamnecessidades que também são diferentes Em seu livro Emília no País da Gramática publicado em 1934 Monteiro Lobato já chamava a atenção para esse tipo de preconceito que no entanto continua firme e forte no Brasil de hoje Numa conversa com as crianças do Sítio do Picapau Amarelo a velha Dona Etimologia lhes diz pp 100101 Uma língua não pára nunca Evolui sempre isto é muda sempre Há certos gramáticos que querem fazer a língua parar num certo ponto e acham que é erro dizermos de modo diferente do que diziam os clássicos Quem vem a ser clássicos perguntou a menina Narizinho Os entendidos chamam clássicos aos escritores antigos como o padre Antônio Vieira Frei Luís de Sousa o padre pg 32 Manuel Bernardes e outros Para os carranças quem não escreve como eles está errado Mas isso é curteza de vistas Esses homens foram bons escritores no seu tempo Se aparecessem agora seriam os primeiros a mudar ou a adotar a língua de hoje para serem entendidos A língua variou muito e sobretudo aqui na cidade nova o Brasil Inúmeras palavras que na cidade velha Portugal querem dizer uma coisa aqui dizem outra Também no modo de pronunciar as palavras existem muitas variações Aqui todos dizem PEITO lá todos dizem PAITO embora escrevam a palavra da mesma maneira Aqui se diz TENHO e lá se diz TANHO Aqui se diz VERÃO e lá se diz VRÃO Também eles dizem por lá VATATA VACALHAU BACA VESOURO lembrou Pedrinho Sim o povo de lá troca muito o v pelo B e viceversa Nesse caso aqui nesta cidade se fala mais direito do que na cidade velha concluiu Narizinho Por quê Ambas têm o direito de falar como quiserem e portanto ambas estão certas O que sucede é que uma língua sempre que muda de terra começa a variar muito mais depressa do que se não tivesse mudado Os costumes são outros a natureza é outra as necessidades de expressão tornamse outras Tudo junto força a língua que emigra a adaptarse à sua nova pátria A língua desta cidade Brasil está ficando um dialeto da língua velha Com o correr dos séculos é bem capaz de ficar tão diferente da língua velha como esta ficou diferente do latim Vocês vão ver Monteiro Lobato que morreu em 1948 estava muito mais por dentro das noções da lingüística moderna do que muito autor de gramática que está por aí hoje vivo e bulindo como se diz no Nordeste pg 33 É espantoso que a figura do gramático autoritário e intolerante ridicularizado por Lobato na personagem do professor Aldrovando Cantagalo em seu delicioso conto O colocador de pronomes de 1924 tenha voltado à cena neste fim de século sob a roupagem enganosamente moderna da televisão do computador e da multimídia pg 34 Primeiras palavras Existe uma regra de ouro da Lingüística que diz só existe língua se houver seres humanos que a falem E o velho e bom Aristóteles nos ensina que o ser humano é um animal político Usando essas duas afirmações como os termos de um silogismo mais um presente que ganhamos de Aristóteles chegamos à conclusão de que tratar da língua é tratar de um tema político já que também é tratar de seres humanos Por isso o leitor e a leitora não deverão se espantar com o tom marcadamente politizado de muitas de minhas afirmações É proposital aliás é inevitável Temos de fazer um grande esforço para não incorrer no erro milenar dos gramáticos tradicionalistas de estudar a língua como uma coisa morta sem levar em consideração as pessoas vivas que a falam O preconceito lingüístico está ligado em boa medida à confusão que foi criada no curso da história entre língua e gramática normativa Nossa tarefa mais urgente é desfazer essa confusão Uma receita de bolo não é um bolo o molde de um vestido não é um vestido um mapamúndi não é o mundo Também a gramática não é a língua A língua é um enorme iceberg flutuando no mar do tempo e a gramática normativa é a tentativa de descrever pg 09 apenas uma parcela mais visível dele a chamada norma culta Essa descrição é claro tem seu valor e seus méritos mas é parcial no sentido literal e figurado do termo e não pode ser autoritariamente aplicada a todo o resto da língua afinal a ponta do iceberg que emerge representa apenas um quinto do seu volume total Mas é essa aplicação autoritária intolerante e repressiva que impera na ideologia geradora do preconceito lingüístico Você sabe o que é um igapó Na Amazônia igapó é um trecho de mata inundada uma grande poça de água estagnada às margens de um rio sobretudo depois da cheia Pareceme uma boa imagem para a gramática normativa Enquanto a língua é um rio caudaloso longo e largo que nunca se detém em seu curso a gramática normativa é apenas um igapó uma grande poça de água parada um charco um brejo um terreno alagadiço à margem da língua Enquanto a água do riolíngua por estar em movimento se renova incessantemente a água do igapógramática normativa envelhece e só se renovará quando vier a próxima cheia Meu objetivo atualmente junto com muitos outros lingüistas e pesquisadores é acelerar ao máximo essa próxima cheia Este livro traz os primeiros resultados sempre provisórios das reflexões que venho fazendo sobre o tema do preconceito lingüístico Ele reúne as principais conclusões a que cheguei conclusões que pude compartilhar e discutir com as pessoas que me ouviram falar nas diversas palestras que dei ao longo de 1998 Essas palestras e o livro que delas nasceu só foram possíveis graças ao esforço e ao carinho das seguintes pg 10 pessoas Ângela Paiva Dionísio Ariovaldo Guireli Ataliba de Castilho Cláudia Maia Ricardo Doris da Cunha Ésio Macedo Ribeiro Irandé Antunes José Luís Falotico Corrêa Judith Hoffnagel Lourenço Chacon Lucila Nogueira Marçal Aquino Marcos Marcionilo Maria Amélia Almeida Maria Marta Scherre Maria da Piedade Sá Marígia Viana Rosely Falotico Corrêa e Sonia Alexandre Esta segunda edição traz mudanças bastante significativas em comparação com a primeira alguns trechos foram eliminados outros foram acrescentados muitos sofreram profunda reformulação Isso se deve à minha vontade de manter o livro sempre atualizado com a evolução de minha própria maneira de ver as coisas e sintonizado com as críticas sugestões e comentários que o trabalho recebeu da parte de leitores e leitoras atentos e dispostos a colaborar na divulgação destas idéias Agradeço muito especialmente a Manoel Luiz Gonçalves Corrêa que me ajudou a preparar esta reedição alertandome para determinadas inconsistências teóricas e conceituais nascidas de uma tentativa de simplificar talvez demais os conceitos da Lingüística para tornálos acessíveis a um público mais amplo É claro que ainda sobram falhas e imperfeições de minha inteira irresponsabilidade e por isso convido os que desejarem participar desta luta que se engajem nela enviandome suas opiniões A capa deste livro tem uma história que merece ser contada As pessoas ali fotografadas são minha sogra Alice Francisca meu sogro José Alexandre e meu cunhado pg 11 mais novo Sóstenes cerca de vinte anos atrás Como este é um livro que trata de discriminação e exclusão decidi homenagear meus sogros que são como costumo dizer um prato cheio para alguns dos preconceitos mais vigorosos da nossa sociedade negros nordestinos pobres analfabetos Alice Francisca também carrega o estigma de ser mulher numa cultura entranhadamente machista Aprender a amar estas pessoas pelo que elas são deixando de lado todos os rótulos discriminadores que tentam classificálas em categorias supostamente inferiores às que eu e pessoas de minha extração social ocupamos tem sido uma lição fundamental para toda a minha vida pessoal e profissional É com este amor que me defendo das acusações que às vezes recebo de ser autor de um livro demagógico Não é demagogia é opção consciente política declaradamente parcial Peço simplesmente aos leitores e leitoras que meditem sobre esta situação que tanto me angustia homenagear com um livro pessoas que jamais poderão lêlo Isso explica decerto a grande dose de indignação que em certos momentos passa à frente da reflexão científica serena e me faz assumir o tom apaixonado de quem não tolera nenhum tipo de intolerância principalmente quando é fruto de uma visão de mundo estreita inspirada em mitos e superstições que têm como único objetivo perpetuar os mecanismos de exclusão social MARCOS BAGNO mbagnoterracombr pg 12 Diálogo e reflexões do cantor Emicida e das discussões do linguista Bagno Em seu vídeo Emicida apresenta uma visão abrangente sobre a língua vivida e a língua idealizada abordando a diversidade linguística presente no Brasil Suas reflexões ecoam as discussões propostas por Bagno 2000 sobre os mitos que promovem o preconceito linguístico os quais devem ser confrontados em busca de uma compreensão mais ampla sobre o que é língua O primeiro mito abordado por Bagno é a ideia de que a língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente Tal concepção enraizada na cultura brasileira é prejudicial à educação pois não reconhece a verdadeira diversidade linguística do país Bagno ressalta que o português falado no Brasil apresenta um alto grau de diversidade e variabilidade influenciado pela extensão territorial do país e pela injustiça social que gera um abismo linguístico entre as variedades nãopadrão e a suposta variedade culta ensinada na escola As reflexões de Emicida ecoam essa problemática ao ressaltar a importância de reconhecer e valorizar a diversidade linguística presente no Brasil Sua visão converge com as discussões de Bagno ao evidenciar que a imposição de uma norma linguística única pela escola desconsidera as diferentes realidades dos falantes e perpetua o preconceito linguístico O segundo mito abordado por Bagno é a crença de que o brasileiro não sabe português e que apenas em Portugal se fala bem a língua Este mito reflete um complexo de inferioridade e um sentimento de dependência em relação a Portugal Bagno destaca que o português falado no Brasil e em Portugal apresenta diferenças significativas o que não implica em superioridade ou inferioridade mas sim em diversidade linguística As reflexões de Emicida sobre a valorização da identidade cultural brasileira e a consciência da especificidade do português falado no Brasil convergem com as discussões de Bagno Ambos ressaltam a importância de reconhecer que o português do Brasil é uma língua própria com suas particularidades e que não deve ser subjugada à norma linguística portuguesa O preconceito linguístico é um tema central nas discussões sobre a língua portuguesa no Brasil A visão de Emicida sobre a língua vivida e a língua idealizada traz reflexões importantes que se conectam com as discussões propostas por Bagno 2000 sobre os mitos que promovem o preconceito linguístico A partir do diálogo entre as reflexões do cantorcompositor e as discussões sobre os mitos é possível compreender mais profundamente o que é língua e como os preconceitos afetam a percepção da mesma Emicida apresenta uma visão que destaca a importância do uso real vivo e verdadeiro da língua portuguesa do Brasil Ele ressalta que o ensino da língua sempre se baseou na norma gramatical de Portugal o que resulta em regras que não correspondem à língua falada e escrita no Brasil Essa desconexão entre a norma gramatical e a língua real leva muitas pessoas a considerarem o português uma língua difícil pois são obrigadas a decorar conceitos e fixar regras que não têm relevância para o uso cotidiano da língua Bagno 2000 aborda o mito de que português é muito difícil e desmistifica essa afirmação preconceituosa Ele destaca que o ensino tradicional da língua no Brasil não leva em conta o uso brasileiro do português o que gera uma cobrança indevida de normas gramaticais que não correspondem à realidade da língua falada no país A questão da regência verbal é um exemplo disso onde o ensino tradicional impõe regras que não encontram justificativa na gramática intuitiva do falante brasileiro Bagno ressalta que todo falante nativo de uma língua sabe intuitivamente empregar as regras básicas de funcionamento dela o que contradiz a ideia de que o português é muito difícil Ele destaca que as crianças dominam perfeitamente as regras gramaticais de sua língua aos 3 ou 4 anos de idade evidenciando a naturalidade com que a língua é adquirida e utilizada Outro mito abordado por Bagno é o preconceito em relação à fala de pessoas sem instrução Ele destaca que o preconceito linguístico se baseia na crença de que só existe uma única língua portuguesa digna deste nome desconsiderando as diversas manifestações linguísticas que escapam do padrão ensinado nas escolas Bagno ressalta a importância de reconhecer a diversidade linguística e combater estereótipos que desvalorizam determinadas formas de fala A questão do lugar onde melhor se fala português também é abordada por Bagno desmistificando a ideia de que o Maranhão seria o local ideal nesse aspecto Ele destaca que não existe nenhuma variedade linguística intrinsecamente melhor mais pura mais bonita ou mais correta que outra enfatizando a importância de respeitar todas as variedades da língua como um tesouro precioso da cultura O mito da língua culta como instrumento de ascensão social é frequentemente propagado mas é importante questionar essa premissa A ideia de que dominar a norma culta da língua é suficiente para garantir a ascensão social ignora as complexidades das desigualdades estruturais presentes na sociedade A realidade é que o domínio da norma culta por si só não garante acesso a oportunidades de crescimento e desenvolvimento Enquanto a língua é um aspecto importante da comunicação e expressão a ascensão social está intrinsecamente ligada a questões mais amplas como acesso à educação de qualidade oportunidades de trabalho dignas saúde moradia e justiça social É fundamental reconhecer que a promoção da ascensão social não pode se limitar ao ensino da norma culta da língua É necessário garantir o acesso equitativo a recursos e oportunidades para que todos os membros da sociedade tenham condições justas de alcançar seu potencial É crucial desafiar a visão paternalista e simplista de que a simples adoção da norma culta pode resolver as desigualdades sociais A transformação real da sociedade requer uma abordagem holística que aborde questões estruturais de injustiça e desigualdade