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Estado, política educacional e direito à educação no Brasil: “O problema maior é o de estudar” State, educational policy an right to education in Brazil: “The biggest problem is to study” Gilda Cardoso de Araujo Trabalhando o sal é amor o suor que me sai Vou viver cantando o dia tão quente que faz Homem ver criança buscando conchinhas no mar Trabalho o dia inteiro pra vida de gente levar Água vira só sal nos olhos Quem dividiria algo do além Sigo aprendendo só do ensinar Que vai ensinando outro amanhã Trabalhando o sal pra ver a mulher se vestir Eu ao chegar em casa encontrar a família e sorrir Filho eu não deixei problema maior é o de estudar Que é pra não ter meu trabalho o vida de gente levar (Canção do Sal – Milton Nascimento) RESUMO O artigo trata das relações entre os problemas de acesso, permanência e qualidade e a configuração histórica do Estado brasileiro e, consequentemente, da política educacional que foi traçada a partir dessa configuração. Destaca as profundas desigualdades sociais e regionais e o correlato processo excludente quanto ao direito à educação no Brasil, tanto do ponto de vista normativo-político, quanto do ponto de vista das dinâmicas intraescolares. As conclusões evidenciam a necessidade de reflexão sobre a dívida histórica do país com a constituição de um sistema nacional de ensino e com a garantia do direito à educação. Palavras-chave: Estado; política educacional; direito à educação. 1 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: gilda.vinc@terra.com.br Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 39, p. 279-292, jan./abr. 2011. Editora UFPR 279 ARAUJO, G. C. Estado, política educacional e direito à educação no Brasil... Palavras-chave: Estado; política educacional; direito à educação. ABSTRACT The article deals with the relationships between the problems of access, retention and quality and historical configuration of the Brazilian state and therefore the educational policy that was drawn from this setting. Highlights the profound social and regional inequality and exclusionary process correlated to the right to education in Brazil, both in terms of normative and political, as the point of view of the other school dynamics. The findings highlight the need for reflection on the historical debt of the country with the establishment of a rational education system and ensuring the right to education. Keywords: State; educational policy; right to education. Introdução Esse artigo trata do “problema maior” que é o de estudar, ou melhor, de ter a possibilidade de acesso, permanência e educação de qualidade para “vida de gente levar” no Brasil, país de dimensões continentais, com profundas desigualdades regionais, de renda, de acesso a bens culturais, entre outras muitas desigualdades típicas do capitalismo. Entendemos que o “problema maior de estudar” tem profundas ligações com a configuração do Estado brasileiro e, consequentemente, com a política educacional que foi traçada a partir dessa configuração. Enquanto em outros países, já no século XIX, os sistemas nacionais de educação começavam a se articular e a generalização da instrução elementar passava a ser entendida como uma tarefa precípua do Estado nacional, ainda não temos, no Brasil do século XXI, um sistema de educação que possa ser denominado nacional, dadas as profundas disparidades entre redes, sistemas de ensino, entre estados e regiões. Uma amostra dessas disparidades pode ser observada na tabela abaixo: 280 Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 39, p. 279-292, jan./abr. 2011. Editora UFPR ARAUJO, G. C. Estado, política educacional e direito à educação no Brasil... TABELA 1 – ENSINO FUNDAMENTAL SEGUNDO REGIÃO ADMINISTRATIVA- 2006 Regiões Matrícula Abandono Reprovação Norte 3.356.716 362.537 520.613 Nordeste 10.887.853 1.284.458 1.797.919 Sudeste 12.344.341 399.852 1.119.624 Sul 4.256.747 103.286 575.386 Centro-Oeste 2.437.006 164.357 287.520 Brasil 33.282.663 2.314.490 4.301.062 FONTE: MEC/INEP, Censo Escolar 2006 As regiões Sudeste e Nordeste têm a maior concentração de matrículas na etapa obrigatória de escolarização. Entretanto, as regiões mais pobres do país, Norte e Nordeste, apresentam 1.647.000 alunos afastados da escola de ensino fundamental por abandono, de um total de 2.314.490, representando 71% dos alunos brasileiros nessa situação. No que se refere à reprovação, a região Nordeste e Norte, juntas, tiveram 2.319.840 alunos que não foram aprovados, representando 54% do total de reprovação no País. Além desses dados, a Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílios de 2005 (PNAD, 2005) revela que a taxa de analfabetismo funcional das pessoas de 15 anos ou mais de idade no Brasil é de 23,3%, sendo que a divisão regional dessa taxa também é perversa: 22,6% na Região Norte, 26,3% na Região Nordeste, 17,5% na Região Sudeste, 18% na Região Sul e 21,4% na Região Centro-Oeste, sendo que a maior concentração do analfabetismo funcional está nos domicílios rurais. A PNAD 2005 também mostra que, apesar da propalada universalização do ensino fundamental, a média de anos de estudo da população brasileira ainda é muito baixa, o que nos induz a pensar que, se quase todos brasileiros estão entrando na escola há mais de uma década, não conseguem concluir a educação básica (ensino fundamental e médio), conforme a tabela 2. 281 Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 39, p. 279-292, jan./abr. 2011. Editora UFPR ARAÚJO, G. C. Estado, política educacional e direito à educação no Brasil... TABELA 2- ANALFABETISMO FUNCIONAL DE PESSOAS DE 15 ANOS OU MAIS Regiões % Norte 22,6 Nordeste 36,3 Sudeste 17,5 Sul 18 Centro-Oeste 21,4 Brasil 23,3 FONTE: IBGE, PNAD, 2008. Diante desses dados, pretendemos traçar como se constituíram as políticas públicas de educação no Brasil, analisando seu processo tardio e inacabado, bem como os impactos desse processo na inscrição do direito à educação do ponto vista da racionalidade jurídica e política. Estado e política educacional no Brasil: trajetória e panorama atual O debate sobre a origem da denominação e da instituição Estado é controverso. A utilização do termo “Estado” para designar especificamente a condição de posse permanente e exclusiva de um território e de comando sobre os seus respectivos habitantes é considerada por alguns autores emblemática de uma situação nova de rompimento com os ordenamentos políticos precedentes e, por outros autores, é considerada na linha de evolução das instituições precedentes. Assim, para os autores, como Max Weber (2004), que defendem a ruptura entre a ideia de Estado e os ordenamentos políticos precedentes, seria conveniente falar de “Estado” apenas quando existisse referência às formações políticas originadas da crise do feudalismo, portanto o Estado nasceria na idade moderna. Na outra linha, os autores, como Engels (1986), que defendem a continuidade, argumentam que o Estado como ordenamento político de uma comunidade surgiria na passagem da comunidade primitiva fundada pelos... ARAÚJO, G. C. Estado, política educacional e direito à educação no Brasil... laços de parentesco para a comunidade civil. Se a origem da denominação da instituição Estado é controversa, a ligação da educação ao Estado é um fenômeno tipicamente moderno, como assinala a historiadora da educação Carlota Boto (1996). Com refrito até a Revolução Francesa a educação era entendida como aperfeiçoamento individual. Até mesmo o movimento iluminista, que defendia a expansão do esclarecimento como estratégia para o progresso, neavava e criative pública da educação, talvez por sua marcada oposição ao Estado Absolutista, que tornava pouco aceitável a ideia deste Estado assumir a tarefa de instruir as novas gerações. A Revolução Francesa, embora não represente uma ruptura com a tradição da ilustração, significou, do ponto de vista educacional, uma substancial nova no debate sobre a institucionalização de um ensino público e universal. A educação, no contexto revolucionário, se conecta à esfera pública e ao civismo, transformando-se em um instrumento de regeneração social e, portanto, desvelando-se da dimensão eminentemente individualista de emancipação característica da utopia iluminista. Dessa forma, de uma perspectiva de dever moral de autoperfeiçoamento sem referência a um coletivo, a educação passa a ser entendida como um dever moral de aperfeiçoamento social, assumindo a configuração de uma responsabilidade coletiva. Essa passagem é importante porque assinala a ligação entre a ideia de Estado e de educação que vai ser base para a sua conformação de sistema social de garantia de uma educação pública universal e gratuita, bem como para a sua inscrição como um dos componentes fundamentais do ideário social. Contudo, apenas no século XX é que a ideia da educação como propulsora de igualdade econômica e social pode ser relacionada com a de direito a ser garantido pelo Estado. É preciso destacar que a novidade comestá apenas no fato de a educação ser entendida como direito porque, como destacamos, a educação esteve relacionada ao Estado desde a Revolução Francesa e essa tendência foi se consolidando, mesmo no quadro de Estado liberal. Exemplo disso é o livro ‘A riqueza das nações’, de Adam Smith (1983), que traduz a adequação e a defesa do intervencionismo estatal na educação, posto que fosse considerada uma atividade que não podia ser deixada aos particulares, uma vez que não era e nem poderia ser lucrativa. Assim, mesmo na tradição liberal, a educação era considerada uma atividade de interesse geral a ser assegurada pelo Estado. Com esse breve histórico pretendemos assinalar que os textos de Estado como referência de análise da educação só ganhar materialidade quando a educação passa a ser entendida como direito social que deve ser assegurada por políticas públicas entendidas como de “Estado em ação”. Esse entendimento da relação entre Estado e educação a partir da ideia de formulação de políticas públicas, na ideia do “Estado em ação” começou muito tardiamente no Brasil. A tradição liberal clássico do pensamento político... ARAÚJO, G. C. Estado, política educacional e direito à educação no Brasil... brasileiro, representada por autores como Tavares Bastos e Rui Barbosa, nunca foi alheia à ideia de uma limitada intervenção estatal que, sem desconsiderar a ideia de direitos individuais e a extensão das liberdades, pudesse compensar tanto o atraso do país em matéria educacional, quanto à impossibilidade ou falta de vontade política para a criação de escolas. Todavia, tanto o Império, com a edição do Ato Adicional de 1834, quanto a Primeira República, com o seu federalismo oligárquico, não levaram à frente a ideia de intervenção estatal moderada na área de educação, típico do liberalismo clássico: a educação não era uma tarefa de Estado nacional, mas sim da província e, posteriormente, com a Proclamação da República, dos estados. Assim, enquanto a Europa constituiu, no final do século XIX, os seus Estados nação de educação, o Brasil mitiga essa possibilidade como uma forma de Estado liberal que servia apenas para atender aos interesses puramente econômicos das elites regionais, adaptando-os a uma estrutura social marcada pelos acordos políticos “pelo alto” e pela concentração de terras, riquezas e saber. Apenas a partir de 1930 foi criado o Ministério da Educação, algo que nunca significou o reconhecimento, no plano institucional, da educação como uma questão nacional. Ao contrário, como se vê nas séries de reformas, medidas e decretos de alcance nacional: em 1931 as reformas de Francisco Campos; em 1932, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, dirigido ao povo e ao Governo, apontavam para o surgimento de uma noção nacional da educação; em 1934 a exigência de fixação das diretrizes de educação nacional e a elaboração de um plano nacional de educação; durante todo o período de Vargas no poder, a edição das leis orgânicas de ensino. Essas medidas são correspondentes à configuração de um modelo intervencionista de Estado no país. A crise de 1929, bem como a Grande Depressão que a seguiu, desarticulou o funcionamento pleno do modelo de Estado liberal no Brasil, tornando-se necessária não só a sistemática planificação estatal nos domínios econômicos, como também a incorporação das massas trabalhadoras e das classes médias urbanas ao sistema político. O objetivo principal desse modelo de Estado não era tanto a redistribuição de renda e a promoção do bem-estar social como foi o caso de muitos países europeus, mas na transição de uma economia eminentemente agrária para uma industrial. Dai a adoção da concepção de que o Estado seria a grande alavanca de progresso econômico e social do País. Posição que foi reforçada pelas políticas keynesianas aplicadas em diversas partes do mundo a partir de 1930. Para tanto, foi necessária a criação da modernia burocracia – na verdade uma elite formada por profissionais, civis e militares, engajada em serviço integral, que atuou como o principal agente da transformação econômica do País... Educ Rev. Curitiba, Brasil, n.39, p. 279-292, jan.-abr. 2011. Editora UFPR ARAÚJO, G. C. Estado, política educacional e direito à educação no Brasil... Essa introdução tardia da concepção universalista dos direitos sociais guarda relação com a não institucionalização de uma esfera pública democra­ tica, pois os ideais de igualdade e justiça eram e ainda são introduzidos numa sociedade marcada por relações verticalizadas e autoritárias e, portanto, fraturada internamente por suas contradições. Além disso, o ideal emancipador e igualitário do direito à educação também foi minado pelas próprias relações que se estabeleceram na dinâmica interna da escola, já muitas vezes denunciadas como reprodutoras das desigualdades sociais e como inculcadoras dos valores e interesses das classes sociais que detêm o poder econômico e político. As práticas curriculares, avaliativas e de gestão das escolas brasileiras vêm, ao longo da história, corroborando um sentido de educação e de um contingente de brasileiros de pleno direito e significado do direito à educação composto pelo acesso, pela permanência e pela qualidade para todos. Primeiramente pela dificuldade de acesso, quando não havia acesso à educação obrigatória para a maioria dos brasileiros; depois, quando houve a ampliação de acesso por volta dos anos 1970, pelos mecanismos de exclusão derivados de competência dos que superavam a barreira de não ingresso; e agora pela exigência de escolarização e atualmente, com a universalização oficial da obrigatoriedade do ensino de cinco a 14 anos, pela exclusão direta oriunda com a baixa qualidade do ensino oferecido pelas escolas, que faz com que ocorra o não aproveitamento, de quem finalmente à escolar. Sequer há o apropriem do instrumental mínimo para o exercício da cidadania num contexto em que o letramento é condição mínima para inserção social. Se, no Brasil, não podemos falar de direitos como normas de civilidade nas relações sociais mediante os pressupostos da igualdade e da reciprocidade, podemos afirmar que esse ideal sempre esteve no horizonte político como campo de referência para as lutas pela cidadania. Apesar de os direitos sociais terem sido inscritos no sistema normativo brasileiro desde a década de 1930, essa inscrição se deu desde uma perspectiva classista no contexto do Estado corporativo inaugurado por Getulio Vargas. Disso resulta a íntima relação entre os direitos sociais e o mundo do trabalho regulado e a exclusão de amplos contingentes da população brasileira (empregadas domésticas e trabalhadores rurais, por exemplo) das garantias sociais. E é justamente esse campo de referência possível que nos coloca no bojo da complexa da relação entre o projeto brasileiro de modernização e o prin­ cipios da igualdade e da responsabilidade social como chaves de compreensão para que o questão da cidadania no Brasil e, mais ainda, nos ajuda a entender “se” e “como” circulam socialmente os direitos conquistados nos embates travados nesses campos nas últimas décadas, como é o caso das garantias constitucionais do. 280. Educare em Revista, Curitiba, Brasil, n. 39, p. 279-292, jul./set. 2011. Editora UFPR