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O desastre da escritura Meu tio o Iauaretê Cid Ottoni Bylaardt Universidade Federal do Ceará Meu tio o Iauaretê é o desastre da escritura a escritura do desastre1 O termo do desastre é simultaneamente complemento e adjunto tanto é o processo pelo qual o desastre é escrito quanto a escritura empreendida pelo desastre a escritura é agente do desastre e alvo dela A esse propósito a força impressionante da linguagem em Meu tio o Iauaretê de Guimarães Rosa reporta a alguns fragmentos de Maurice Blanchot em Lécriture du desastre O primeiro deles relaciona ato de escrever e desastre desvinculandoos da experiência Le desastre inexpérimenté ce qui se soustrait à toute possibilité dexpérience limite décriture Il faut répeter le desastre décrit Ce qui ne signifie pas que le désastre comme force décriture sen exclue soit hors écriture um horstexte2 BLANCHOT 1980 p17 O desastre nãoexperimentado é o relato do bugre que o visitante ouve e no qual interfere mas sobre o qual não pode exercer controle O relato se descreve com todas as possibilidades que essa clivagem sugere O texto de Blanchot faz pensar então na instabilidade da situação dos corpos que se movem na narrativa de Rosa de um lado o interlocutor mudo que interfere violentamente tanto na enunciação quanto no enunciado do texto e de outro o falador que não aceita as imposições do visitante vistas como ameaças a sua integridade selvagem mas que também não alcança impor as suas Ao ler o texto de Rosa caímos frequentemente na tentação simplificadora de associar o falante ao escritor e o ouvinte ao leitor Todavia não se pode esquecer por um lado de que o 1 Utilizo aqui o termo escritura no sentido que lhe atribui Leila PerroneMoisés em sua edição comentada de Aula de Roland Barthes BARTHES 2002 pp 7479 A écriture barthesiana substitui a literatura no sentido reprodutivo representativo personalizado Escritura portanto será utilizado aqui no sentido de texto literatura produtiva apresentativa impessoal 2 Tradução O desastre nãoexperimentado o que escapa a qualquer possibilidade de experiência limite da escritura É preciso repetir o desastre descreve O que não significa que o desastre como força de escrita se exclua dela seja fora da escritura um foradotexto 1 visitante também participa ativamente da escrita funcionando como a outra mão que sugere exige obriga por outro lado o locutor é também ouvinte acatando ou repelindo as imposiçõessugestões O operador do discurso é o eu falo que automaticamente remete à posição formal clássica da situação em que a fala versa sobre um objeto ao qual o eu responsável dá suporte Esse eu falo aqui entretanto coloca em risco a narrativa por ser portador de um discurso que falta que não conduz ao desfecho confortável que distende mas ao vazio que acumula tensão A linguagem ao invés de se fechar expandese ao infinito e o sujeito se dispersa até o desaparecimento no espaço da não delimitação no tempo da ausência de tempo Agora o eu falo não é mais responsável por um discurso mas condutor trôpego de uma gramáticaonça que não responde mais por verdades humanas A sintaxe do homemfera mostra sua última palavra sem fechá la em predicado ou complemento um signo móvel sempre pronto a se abrir para outros em movimento disperso jamais em linha sem regras nem unidade sem começo nem final Um tecido irregular uma rede sem centro nem simetria sem um fio que indique a porta de entrada ou o caminho de saída O eu falo da cultura ocidental tende a privilegiar o sentido a transparência a presença a escritura literária por outro lado inclinase a negar a existência e portanto a presença tanto do que se diz quanto de quem disse ninguém fala não há ser humano a quem possa ser atribuída essa fala a experiência fundamental voltase à desaparição do sujeito Essa ausência de obra de conceito de Deus de totalidade essa direção ao desconhecido tem como único desdobramento o desastre ou o nãofim fechar a obra terminar o texto seria aceitar o saber absoluto o êxito O discurso do bugrefera ruma para a metamorfose para a palavra estranha e estrangeira para a língua híbrida que não faz relatos exemplares As histórias de onça 2 reportam a um viver da classe da pureza o locutor arrependese amargamente de ter matado muitas delas Dos homens não tem piedade nem ódio nem desejo de vingança Apenas mataos ou entregaos às colegas onças porque isso faz parte de sua ordem natural Assim Gugué Antunias e Riopôro morrem de doença viram comida de onça o preto Bijibo muito bom homem acomodado é entregue às feras Rauremiro e toda a família são devorados pelo próprio narrador preto Tiodoro parece ter tido o mesmo fim Só Maria Quirineia sobrevive à selvageria do homemonça além de seu marido evidentemente mas este não se situa em nenhuma esfera ameaçadora por ser ele próprio uma criaturalimite o louco manso no limiar do humano A instabilidade das situações narradas conduz à obscuridade das cenas que marcam o fim das páginas da novela Não são poucas as exegeses que apontam a morte do sobrinhoonça como algo inquestionável Ensaístas ilustres como Walnice Nogueira Galvão Haroldo de Campos Ettore FinazziAgrò e Clara Rowland apostam na morte inquestionável do bugre assassinado a tiros pelo visitante Haroldo de Campos afirma que o interlocutor virtual também toma consciência da metamorfose e para escapar de virar pasto de onça está disparando contra o homem iauaretê o revólver que sua perspicácia mantivera engatilhado durante toda a conversa CAMPOS 1992 p 62 Ele se refere ainda aos rugidos de morte do homemonça idem e ao estertor de suas últimas exclamações idem Há portanto nessa leitura a morte física do locutor Considerando que um dos pontos mais importantes da exegese de Campos é o fato de que o discurso do sobrinho do iauaretê incorpora o momento mágico da metamorfose CAMPOS 1992 p 62 conforme referência emprestada de Ezra Pound do projeto de seus Cantares causa estranheza o fato de que a impossibilidade da transformação tenha de ser punida com a morte ao invés de 3 permanecer na dimensão do impossível do irresolvível o que nos parece mais adequado à ideia de desastre da escritura e escritura do desastre No ensaio de Ettore Finazzi Agrò o óbito está no título A voz de quem morre O indício e a testemunha em Meu tio o iauaretê AGRÒ 2006 p 25 O ensaísta assinala aí de forma feliz a relação impossível que se estabelece no limiar certo mas sem consistência entre o humano e o infrahumano ou não humano p 28 e aponta o desejo absurdo do escritor de dar voz a essa impossibilidade na superação da necessidade de uma testemunha É precisamente pelo caráter impensável do evento que a narrativa do iauaretêsobrinho a nosso ver deve eliminar a morte mantendoa suspensa no limiar do intransitável Clara Rowland por sua vez estabelece uma relação de causa e efeito entre a narração e a morte É por contar que matou que o narrador irá morrer ROWLAND 2006 p 45 ao mesmo tempo em que sustenta com propriedade o caráter inconcluso do texto A morte em algumas abordagens pode ser a salvação da escrita mas para nós é a traição da escritura em cujo desastre apostamos Não se trata de morrer mas de estar a morrer No ensaio de Walnice Nogueira Galvão talvez pela época em que foi escrito por sua proximidade e compromisso com a mitológica straussiana chegase a assinalar o caráter paradigmático da morte do bugre aquele que tem que morrer porque não pode ser nem fera nem humano porque é incestuoso numa saída dialética para o impasse Exemplarmente termina abatido a tiros de revólver pelo interlocutor branco GALVÃO 1978 p 31 Nesse caso a morte funcionaria como um desfecho um ajuste de contas com o implausível uma confortável determinação O texto de Rosa todavia não direciona a essa conclusão a essa distensão seguida de repouso Ao contrário tais cenas promovem um recrudescer de tensão que 4 não se resolve apontando possivelmente para uma dispersão para uma multi metamorfose que pulveriza os seres mas jamais para algo como um remanso merecido do texto produto de vingança punição ou exequibilidade Repetindo um lugarcomum do discurso policialesco não há crime sem cadáver e aqui essa ausência somase às falhas patrocinadas pelo desastre Essa indefinição relacionada à morte do contador da história é portanto imanente à história e suscita uma inevitável comparação com Grande sertão veredas Têm sido apontadas semelhanças entre o conto e o monumental romance a presença de um visitante tácito que parece ter uma certa ascensão cultural sobre o narrador o qual por sua vez despeja sua verborreia memoriosa sobre o chegante As semelhanças entretanto param aí e as diferenças revelamse muito mais profundas do que parecem É intrigante saber que Rosa escreveu Meu tio o Iauaretê em momento não muito distante da criação de Grande sertão veredas de acordo com o breve resumo da trajetória do conto fornecido por Clara Rowland pesquisadora de Rosa Meu tio o Iauaretê ocupa na obra de Rosa um lugar instável Publicado pela primeira vez em 1961 na revista Senhor continuou a ser revisto e alterado pelo autor até a sua morte súbita em 1967 sendo mais tarde editado por Paulo Rónai para a publicação póstuma de Estas estórias 1969 com marcas de reescrita e de indecisão sobretudo no nível lexical Da sua inclusão no plano original do último livro de Rosa dão conta os projetos de índices e as sugestões para o ilustrador No entanto uma nota autoral remeteo a uma fase anterior à publicação dos dois livros de 1956 Corpo de baile e Grande sertão veredas ROWLAND 2006 p 43 Temos aqui um elemento externo que causa perplexidade Se a escritura de Meu tio o Iauaretê chega a ser anterior a Grande serão veredas por que Guimarães Rosa o teria retido por pelo menos doze anos até ser publicado como consequência de sua morte e sem uma edição autorizada e definitiva como era costume na época Uma explicação fácil é atribuir a omissão à inconveniência de duplicidade formal como ocorre na indagação de Walnice Nogueira Galvão Seria a exploração de um mesmo achado formal a explicação para o engavetamento GALVÃO 1978 p34 5 Optamos pela conjectura menos óbvia Guimarães Rosa teria retido esse texto pela sua total incompatibilidade com a narrativa de Riobaldo No romance temos como narrador um exjagunço que percorre um caminho inverso ao do bugre onceiro Riobaldo está aposentado vive uma vida abastada e tranquila em que seus tiros não matam apenas ferem uma inocente tábua de tiroaoalvo sua companheira de brinquedo bemeducado Definitivamente o exjagunço civilizouse sua história circunscrevese de forma definida num espaçotempo mítico sim que se amplia pela imensidão do sertãomundo sim mas que é da ordem do apaziguamento do repouso em que pese o sinal que se apõe ao final da escrita necessário aviso de que a travessia não se completou alívio para um incômodo A enunciação traz o discurso para o domínio da linguagem possível da legibilidade por seu divórcio com o enunciado Seu tácito interlocutor não é para ele uma ameaça mas um paciente escutador de histórias bem instalado na confortável residência do rapsodo a apreciar o relato O anfitrião sente orgulho por hospedar um doutor culto e uma certa inveja sadia por querer ser ilustrado como o visitante mas seus sentimentos são civilizados adequados a uma convivência social obsequiosa Por outro lado a relação entre o narrador e o visitante de Meu tio o Iauaretê é de extrema tensão que vai da fingida delicadeza à franca hostilidade O contador vive um momento de indefinição em que sofre a mais terrível metamorfose possível a passagem de sua condição humana para o póshumano ou infrahumano Aqui a enunciação colase ao enunciado numa vertiginosa babilônia que escapa à busca de uma lógica racional O espaço é tão amplo quanto o do grande sertão a cabana não tem paredes limítrofes com o mundo da barbárie as feras transitam por todos os lados aquele que tinha por missão desonçar o mundo agora alimenta os felinos com carne humana o visitante parece mais um agente da civilização que exerce um patrulhamento 6 inútil sobre a ação da selvageria O discurso se ininteligibiliza e se desautoriza do ponto de vista civilizado tanto pela metamorfose do homem em bicho quanto pela ação da cachaça ingerida por ele em grandes doses A instabilidade instaurada por Rosa nesse texto é de tal ordem que não comporta desfecho daí a impossibilidade da morte Não teria então o autor segurado este que é seu filho rebelde para que o outro evidentemente mais comportado e que tinha tudo para ser festejado como o foi não sofresse a ação da comparação maliciosa Ou situação mais trágica para que um não funcionasse como palinódia do outro Ou quem sabe essa tensão entre um texto e outro fosse uma experiência necessária à escrita de Rosa e ter o textofera na gaveta não produzisse o efeito de provocar a mão que não escreve em sua função reguladora da escritura de escritoronça e que terminou por nos presentear com as feras de Tutameia Não interessam as respostas às perguntas mas elas têm que ser feitas e têm que nos fazer pensar Esta leitura arrisca uma morte mais notável pertencente ao estatuto da escritura a morte que possibilita a metamorfose em direção à impossibilidade da morte Há um texto que precisa morrer para ceder lugar à escritura do onceiroonça e este não se encontra exclusivamente nas palavras finais Eis o desastre rosiano a escritura do que não pode ser experimentado ou do que é vivenciado no limite um limite da ordem da linguagem Segundo Blanchot o desastre décrit que sugere a forma da terceira pessoa do verbo décrire em francês Sem o hífen o verbo equivaleria ao nosso descrever o desastre descreve o que empobreceria enormemente a sugestão já que a ação pretendida não é do estatuto da exposição minuciosa da representação fotográfica do traçado nítido Destacado de escrever sem dúvida o mais importante dos verbos utilizados por Blanchot o prefixo de grande vitalidade em francês e em português acumula significados que ferem de todos os lados o radical ação contrária à que ele 7 sugere cessação da ação indicada ação mal feita negação da qualidade do ato separação mudança de aspecto remoção Assim pelo excesso o verbo se esvazia evocando a escrituradesastre do domínio das onças Tal ideia do desastre encontra ressonância na linha de argumentação de Giorgio Agamben em The man without content segundo a qual a essência do conteúdo artístico desdobrase a partir do princípio criativoformal condenando o artista a viver além de sua própria realidade The artist is the man without content who has no other identity than a perpetual emerging out of the nothingness of expression and no other ground than his incomprehensible station of this side of himself3 AGAMBEN 1999 p 55 Esse homem sem conteúdo isto é esse homem que se afasta do humanismo da escrita em direção ao inumano da escritura aparece com toda sua força nesta criatura linguageira que de matador de onças passa a provedor de carne humana para as feras Essa é a escritura que ao recusar a lei dos humanos procura sua lei própria Cabe ressalvar que essa recusa não se dá como a palavra pode sugerir de uma maneira determinada definitiva mas está carregada de tensões de volutas e meneios atormentados de desistências e recomeços Esse desastre pede um escritor que não saiba escrever isto é que não seja portador da má consciência nietzschiana um selvagem vagabundo livre do castigo e de todas as outras monumentais barreiras destinadas a obstruir os instintos de liberdade do ser primitivo A má consciência então será alocada na figura do interlocutor que se apresentará como pregoeiro da ira da crueldade da necessidade de perseguir próprios do homem superior que tanto busca o conhecimento quanto se guia por ele 3 Tradução O artista é o homem sem conteúdo que não tem outra identidade que não o perpétuo emergir do nada da expressão e nenhum outro chão além dessa incompreensível estação neste lado de si mesmo 8 Avulta aqui então esse homem sublime a suprema mistificação do humanismo a criatura que espreita o parente das onças como a testar a viabilidade de sua condição humana Não ri não brinca não dança é sério grave vingativo como um Teseu mais preocupado com sua missão de derrotar o monstro do que com a dificuldade de se desvencilhar de seu labirinto Homem branco bonito e rico ele patrulha os movimentos do sobrinho do Iauaretê quer impor o objeto da escrita encontrando resistência Ah mas isto eu não conto que não conto que não conto de jeito nenhum Por quê mecê quer saber Quer saber tudo Cê é soldado p 2324 O visitante carrega assume suporta as provas com um fardo às costas enfrenta monstros estabelece leis quer botar ordem no sertão quer ordenar a escrita Ele é o homem da ordem o soldado que vigia e pune O animal que o representa segundo Nietzsche é a mula A viagem aos confins da teialabirinto todavia faz estropiar a mula que carrega o fardo provocando uma baixa inicial na superioridade do sublime Cavalo seu é esse só Ixe Cavalo tá manco aguado Presta mais não Axi Pois sim Hum hum p 191 A mula de Nietzsche aqui é comida de jaguar os cavalos do visitante fugiram espalharamse pelo mato seu destino garantido é bucho de felino conforme o bugre O exonceiro recusa carregar o fardo não gosta de cavalo cavalo e cachorro são presas de onça O visitante pressente o perigo de estar perdido nesse labirinto sem a mula que ateste sua condição de homem superior sem o meio de se evadir heroicamente desse meio desconhecido No ensaio O mistério de Ariadne segundo Nietzsche Gilles Deleuze faz uma leitura da concepção nietzschiana da tríade TeseuAriadneDioniso ligada ao conceito de homem superior e ao de eterno retorno desenvolvidos pelo filósofo alemão DELEUZE 2000 p 140 Depois de ajudar Teseu a se conduzir pelo labirinto após ter 4 As referências a Meu tio o Iauaretê serão apresentadas apenas com o número da página entre parênteses 9 matado o Minotauro Ariadne foge com o herói e é abandonada por ele na ilha de Naxos É então seduzida por Dioniso que se casa com ela Deleuze pinça em vários textos de Nietzsche e principalmente em Assim falava Zaratustra uma interpretação do affair Passar de Teseu a Dioniso é para Ariadne uma questão de clínica de saúde e de cura DELEUZE 2000 p 144 Teseu é a impossibilidade do regresso Dioniso é o eterno retorno Esse Teseu que o exonceiro hospeda em Meu tio o Iauaretê não tem o fio de Ariadne em suas mãos não tem nem mais a mula para carregar seu fardo Ariadne não pode ser mula caso contrário será apenas uma aventureira fracassada sem fio e sem fibra apenas com um cavalo estropiado Ela só pode ser onça sendo assim não lhe cabe fornecer o fio que conduzirá o herói sublime com segurança à luz do dia ela fornece sim o fio da teia que vai enredar definitivamente aquele que não se escuta no labirinto na teia do infinito Essa Ariadne não dorme encontra um Teseu dormindo e transformao em Dioniso seduzindoo fazendoo transpor o limiar do humano da linguagemteseu para a linguagemonça o jaguanhenhém dionisíaco Num parágrafo aparentemente perdido de Assim falava Zaratustra Nietzsche referese à saudável metamorfose Porque eis aqui o segredo da tua alma quando o herói a abandona é então que se aproxima em sonhos o superherói NIETZSCHE sd p 107 Nietzsche referese certamente embora de forma enigmática ao abandono de Ariadne por Teseu e sua aproximação a Dioniso Ariadne portanto é alma é MariaMaria o segredo de nosso homemonça A noite da sedução é memorável o personagem não sabe ainda que é parente de onça ou pelo menos ainda não tem certeza MariaMaria se achega enquanto ele dorme o ritual da morte é substituído pelo jogo do afeto em que ela declara seu amor a ele Onça que era onça que ela gostava de mim fiquei sabendo p 208 Os dois 1 dormem juntos e ele percebe que não pode mais matar onças com exceção da suaçurana aquela que conspurcou seu leito de amor com suas fezes fedorentas Maria Maria é porãporanga catú bicho bonito bela fêmea bonita e cheirosa Bonita mais do que alguma mulher Ela cheira à flor de paudalho na chuva p 209 Até o hálito das onças é perfume para ele Ele se afirma seduzido e zela por sua condição de onça macho declarando que não permitirá a aproximação de nenhum maridoonça doravante é o ser viril Se algum macho vier eu mato mato mato pode ser meu parente o que for p 210 A tentativa de sedução perpetrada pela outra Maria a Quirineia que não é onça redundou em fracasso por pouco ela não virou comida de fera sendo salva por seu charme o bugre todavia permaneceu irredutível prometido para sua MariaOnça Suspendeu o ódio que a tentativa de assédio provocou nele permitiu que Maria Quirineia fugisse e até ajudoua para não matála Inconsciente do perigo que esse homemfelino representava ela ainda o provocou Mecê homem bom homem corajoso homem bonito Mas mecê gosta de mulher não ao que ele tornou com uma resposta ambígua incompreensível para ela Gosto mesmo não Eu eu tenho unha grande p 233 Bacuriquirepa é a afirmação pura MariaMaria é anima a afirmação desdobrada Ao dizer sim a Dioniso a positividade redobrase nele o simsim que produz o eterno retorno da união AriadneDioniso que permite à escritura se desvencilhar da finalidade rumo à felicidade O bugre dionisíaco não é panema doente infeliz mas marupiara criatura feliz de sorte p 227 que redobra em si pensamento de onça pensamento de leveza de quem não tem que carregar fardo apenas ser ditoso Eh então mecê aprende onça pensa só uma coisa é que tá tudo bonito bom bonito bom sem esbarrar Pensa só isso o tempo todo comprido sempre a mesma coisa só e vai pensando assim enquanto que tá andando tá dormindo tá fazendo o que fizer Quando algũa coisa ruim acontece então de repente ela ringe urra fica com raiva mas nem que não 1 pensa nada nessa horinha mesma ela esbarra de pensar Daí só quando tudo tornou a ficar quieto outra vez é que ela torna a pensar igual feito em antes p 223 MariaMaria sabe com seu saber próprio que dizer sim é desatrelarse descarregar os fardos afirmar a vida O pensamento feliz não comporta seu contrário que autorizaria o movimento dialético ele simplesmente pára de funcionar no momento em que o bombonito é ameaçado para recomeçar quando os sinais vitais se reapresentam O sobrinhoonça faz então o caminho inverso do homem Nietzscheano seu sublime desafeto que perde a liberdade para civilizarse ele inicialmente contribui para o processo civilizatório assumindo a missão de desonçar o mundo em seguida reconhece seu próprio erro e é seduzido pela onça que o atrai para o mundo selvagem inserindoo nele de forma tensa Esse é o movimento que a escritura do relato faz ampliando desmesuradamente seu caminho tornandoo infinito sem lei que o limite desvencilhandose dos pesados valores que correspondem ao patrimônio do homem superior nietzschiano Este é agora o meu caminho onde está o vosso Era o que eu respondia aos que me perguntavam o caminho Que o caminho o caminho não existe NIETZSCHE sd p 168 Esse movimento nãodialético estabelece o relacionamento entre a escritura e a morte mas a morte numa dimensão que não é da ordem do desfecho da conclusão e sim do porte de um embate repleto de riscos para a integridade da linguagem não a morte que nos livraria do desastre mas a que nos faz abandonarnos a ele como assinala Blanchot doù le rapport œuvre dart et recontre avec la mort dans les deux cas nous nous approchons dun seuil périlleux dun point crucial où nous sommes brusquement retournés Passage à la limite Il reste possible que dès que nous écrivons et si peu que nous écrivons le peu est seulement de trop nous sachions que nous approchons de la limite le seuil périlleux où le retournement est en jeu5 BLANCHOT 1980 p 18 5 Tradução donde a relação entre a obra de arte e o encontro com a morte em ambos os casos aproximamonos de um limiar perigoso de um ponto crucial onde somos bruscamente retornados Passagem para o limite Resta a possibilidade de que desde que escrevemos e por pouco que 1 No caso do nosso sobrinho de onça o perigo do umbral repousa na ambiguidade do próprio retorno O ser pode encontrar sua volta à condição humana por exigência da notoriedade a que aspira o ser humano o ser pode também retornar ao tempo sem tempo e ao espaço sem espaço que é o retorno do desastre o retorno sem presença o nãodesejado porque nãoplanejado Assim o evento singular do eterno retorno de Dioniso em direção a Ariadne não é da ordem do desejo mas da exigência da escrita naquilo que ela tem de irrecusável É nessa recusa da escrita que segundo Blanchot reside o dom de escrever Celui qui ne sait plus écrire qui renonce au don quil a reçu dont le langage ne se laisse pas reconnaître est plus proche de linexpérience inéprouvée labsence du propre qui même sans être donne lieu à lavenement6 BLANCHOT 1980 p 154 O que os homens chamam de estilo nesse caso vem a ser o que resta de outra recusa a resistência do escritor a abandonarse à escrita negativa que acarreta a notoriedade que o entrega ao poder que evita o apagamento a desaparição Um dos traços mais importantes desse devironça que recusa o devirhomem é a instabilidade do nome o excesso que não identifica que conduz ao nada Ah eu tenho todo nome p 215 E produzse aí uma lista de denominações Bacuriquirepa Breó Beró Tonico Antonho de Eiesús Macuncôzo Tonho Tigreiro O acúmulo se reduz a nada Agora tenho nome nenhum não careço p 215 Agora tenho nome mais não p 216 A mãe é MarIara Maria bugra nome que contém a beleza de MariaMaria e que é iara dona senhora O nome é o que estabiliza o ser que lhe dá um presente e um aqui a honra do superhomem que provoca no ser dionisíaco a escrevamos o pouco é apenas demais sabemos que nos aproximamos do limite perigoso umbral onde o retorno está em jogo 6 Tradução Aquele que não sabe mais escrever que renuncia ao dom que recebeu cuja linguagem não se deixa reconhecer está mais próximo da inexperiência nãoprovada a ausência do próprio que mesmo sem ser dá lugar ao advento 1 estranheza o horror Ouçamos mais uma vez Blanchot Lhorreur lhonneur du nom qui risque toujours de devenir surnom7 vainement repris par le mouvement de lanonime le fait dêtre identifié unifié fixe arreté dans um présent8 BLANCHOT 1980 p 17 O nosso exonceiro não consegue atribuirse um nome ou atribuise todos Mas ele também atribui nomes às onças agora que não as mata mais É curiosa a forma como se dá essa atribuição fugindo à determinação humanística que atrela o ser à realidade conduzindo à noção blanchotiana de surnom O personagemonça declara que as onças agora têm nome e o interlocutor provavelmente pergunta se foi ele quem as nomeou Ele titubeia admitindo ser o responsável pelo batismo mas ressalvando que era mesmo o nome delas p 211 O homem branco duvida deixando o bugre indignado Atié Então se não é como é que mecê quer saber Pra quê mecê tá preguntando Mecê vai comprar onça Vai prosear com onça algum O visitante com sua objeção procura atrair o ato de nomear para o lado do humano para provocar o efeito prático do nomear para existir O bugre resiste bravamente e utiliza os verbos comprar e prosear de maneira altamente irônica em relação às pretensões do visitante que quer demonstrar imenso saber cartesiano mas que no fundo pouco sabe As onças de sua convivência não têm mais valor de troca e nem são mais objeto da prosa do ser humano a qual pretende dispor de sua existência Desprezando o comprar e o prosear privilegiando o saber o bugre ataca Teité Axé Eu sei mecê quer saber só se é pra ainda ter mais medo delas táhá Coitado que seja assim Dioniso provoca o super homem o saber totalizante só tem valor aqui no sentido de fomentar o pavor de 7 No original surnom com hífen que mantive na tradução Em francês surnom pode referirse tanto a sobrenome quanto a apelido ou seja os processos referidos tanto podem ser de substituição quanto de acréscimo A presença do hífen mais uma vez concorre para a clivagem entre prefixo e prefixo favorecendo a instabilidade do signo 8 Tradução O horror a honra do nome que arrisca sempre a tornarse sobrenome retomado em vão pelo movimento do anônimo o fato de ser identificado unificado fixado interceptado em um presente 1 estabelecer uma suprarealidade que só reafirma a luta do homem contra o monstro nesse caso com desvantagem daquele em relação a este O desastre perpetrado pela narrativa do bugreonça é a afirmação da singularidade do extremo em que o eu em sua passividade e entrega sai do eu para encontrarse em um fora em tempo de estar a morrer em que o ser nem suporta nem é suportado em que a morte é pura e vã Esse tempo e lugar da ausência só podem ser marcados pela linguagem do fragmento da explosão da dispersão que não logra nem relatar uma experiência exemplar nem invocar uma episteme um código que não comporta o discurso da nominação Ao invés do silêncio o balbucio daquele que não sabendo mais falar não pode calarse Este homem que elimina os portadores dos pecados da gula preguiça soberba avareza luxúria no processo de apagar o rastro civilizatório submetese a uma alienação radical que subverte o eu do mestre o interlocutor que encena o saber da totalização da potência egoísta o dominador que predomina e manipula a força ao extremo da perseguição inquisitorial Essa subversão se dá pela força da paixão anônima dionisíaca que luta para corresponder a ela à revelia de seu consentimento Esse ser entretanto também é acossado pela recusa ou pelo vacilo correndo igualmente o risco de retornar ao saber ao eu que sabe e que sabe que está exposto a uma onipotência egoísta portadora da má consciência a uma vontade assassina que mata por um motivo Daí a existência de duas linguagens ou duas exigências uma dialética outra nãodialética uma na qual a negatividade é o objetivo que é a do domínio do homem superior e outra na qual o neutro fala pelo ser e pelo nãoser e que é a da escolha de Ariadne em relação a Dioniso A lei do desastre é a lei do excesso a lei nãocodificável a outra lei o ilimitado cuja perda ou falha não podem ser medidas 1 Referências bibliográficas AGAMBEN Giorgio The man without content Trad Georgia Albert Stanford Stanford University Press 1999 BARTHES Roland Aula Trad Leyla PerroneMoisés 16 ed São Paulo Ed Cultrix 2002 CAMPOS Haroldo de A linguagem do Iauaretê in Metalinguagem outras metas São Paulo Perspectiva 1999 BLANCHOT Maurice Lécriture du désastre Paris Gallimard 1980 DELEUZE Gilles Crítica e clínica Lisboa Ed Século XXI 2000 FINAZZIAGRÒ Ettore A voz de quem morre O indício e a testemunha em Meu tio o Iauaretê in O eixo e a roda Revista de Literatura Brasileira V 12 Belo Horizonte FALEUFMG 2006 GALVÃO Walnice Nogueira O impossível retorno in Mitológica Rosiana São Paulo Ática 1978 HEGEL Georg Wilhelm Friedrich Cursos de estética Vol 1 Trad Marco Aurélio Werle São Paulo Edusp 2001 NIETZSCHE Friedrich Assim falava Zaratustra Trad José Mendes de Souza São Paulo Tecnoprint sd A gaia ciência São Paulo Ed Escala 2006 ROSA Guimarães Meu tio o Iauaretê in Estas estórias 5 ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 2005 ROWLAND Clara Loup si on jouait ai loup Diálogo 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O desastre da escritura Meu tio o Iauaretê Cid Ottoni Bylaardt Universidade Federal do Ceará Meu tio o Iauaretê é o desastre da escritura a escritura do desastre1 O termo do desastre é simultaneamente complemento e adjunto tanto é o processo pelo qual o desastre é escrito quanto a escritura empreendida pelo desastre a escritura é agente do desastre e alvo dela A esse propósito a força impressionante da linguagem em Meu tio o Iauaretê de Guimarães Rosa reporta a alguns fragmentos de Maurice Blanchot em Lécriture du desastre O primeiro deles relaciona ato de escrever e desastre desvinculandoos da experiência Le desastre inexpérimenté ce qui se soustrait à toute possibilité dexpérience limite décriture Il faut répeter le desastre décrit Ce qui ne signifie pas que le désastre comme force décriture sen exclue soit hors écriture um horstexte2 BLANCHOT 1980 p17 O desastre nãoexperimentado é o relato do bugre que o visitante ouve e no qual interfere mas sobre o qual não pode exercer controle O relato se descreve com todas as possibilidades que essa clivagem sugere O texto de Blanchot faz pensar então na instabilidade da situação dos corpos que se movem na narrativa de Rosa de um lado o interlocutor mudo que interfere violentamente tanto na enunciação quanto no enunciado do texto e de outro o falador que não aceita as imposições do visitante vistas como ameaças a sua integridade selvagem mas que também não alcança impor as suas Ao ler o texto de Rosa caímos frequentemente na tentação simplificadora de associar o falante ao escritor e o ouvinte ao leitor Todavia não se pode esquecer por um lado de que o 1 Utilizo aqui o termo escritura no sentido que lhe atribui Leila PerroneMoisés em sua edição comentada de Aula de Roland Barthes BARTHES 2002 pp 7479 A écriture barthesiana substitui a literatura no sentido reprodutivo representativo personalizado Escritura portanto será utilizado aqui no sentido de texto literatura produtiva apresentativa impessoal 2 Tradução O desastre nãoexperimentado o que escapa a qualquer possibilidade de experiência limite da escritura É preciso repetir o desastre descreve O que não significa que o desastre como força de escrita se exclua dela seja fora da escritura um foradotexto 1 visitante também participa ativamente da escrita funcionando como a outra mão que sugere exige obriga por outro lado o locutor é também ouvinte acatando ou repelindo as imposiçõessugestões O operador do discurso é o eu falo que automaticamente remete à posição formal clássica da situação em que a fala versa sobre um objeto ao qual o eu responsável dá suporte Esse eu falo aqui entretanto coloca em risco a narrativa por ser portador de um discurso que falta que não conduz ao desfecho confortável que distende mas ao vazio que acumula tensão A linguagem ao invés de se fechar expandese ao infinito e o sujeito se dispersa até o desaparecimento no espaço da não delimitação no tempo da ausência de tempo Agora o eu falo não é mais responsável por um discurso mas condutor trôpego de uma gramáticaonça que não responde mais por verdades humanas A sintaxe do homemfera mostra sua última palavra sem fechá la em predicado ou complemento um signo móvel sempre pronto a se abrir para outros em movimento disperso jamais em linha sem regras nem unidade sem começo nem final Um tecido irregular uma rede sem centro nem simetria sem um fio que indique a porta de entrada ou o caminho de saída O eu falo da cultura ocidental tende a privilegiar o sentido a transparência a presença a escritura literária por outro lado inclinase a negar a existência e portanto a presença tanto do que se diz quanto de quem disse ninguém fala não há ser humano a quem possa ser atribuída essa fala a experiência fundamental voltase à desaparição do sujeito Essa ausência de obra de conceito de Deus de totalidade essa direção ao desconhecido tem como único desdobramento o desastre ou o nãofim fechar a obra terminar o texto seria aceitar o saber absoluto o êxito O discurso do bugrefera ruma para a metamorfose para a palavra estranha e estrangeira para a língua híbrida que não faz relatos exemplares As histórias de onça 2 reportam a um viver da classe da pureza o locutor arrependese amargamente de ter matado muitas delas Dos homens não tem piedade nem ódio nem desejo de vingança Apenas mataos ou entregaos às colegas onças porque isso faz parte de sua ordem natural Assim Gugué Antunias e Riopôro morrem de doença viram comida de onça o preto Bijibo muito bom homem acomodado é entregue às feras Rauremiro e toda a família são devorados pelo próprio narrador preto Tiodoro parece ter tido o mesmo fim Só Maria Quirineia sobrevive à selvageria do homemonça além de seu marido evidentemente mas este não se situa em nenhuma esfera ameaçadora por ser ele próprio uma criaturalimite o louco manso no limiar do humano A instabilidade das situações narradas conduz à obscuridade das cenas que marcam o fim das páginas da novela Não são poucas as exegeses que apontam a morte do sobrinhoonça como algo inquestionável Ensaístas ilustres como Walnice Nogueira Galvão Haroldo de Campos Ettore FinazziAgrò e Clara Rowland apostam na morte inquestionável do bugre assassinado a tiros pelo visitante Haroldo de Campos afirma que o interlocutor virtual também toma consciência da metamorfose e para escapar de virar pasto de onça está disparando contra o homem iauaretê o revólver que sua perspicácia mantivera engatilhado durante toda a conversa CAMPOS 1992 p 62 Ele se refere ainda aos rugidos de morte do homemonça idem e ao estertor de suas últimas exclamações idem Há portanto nessa leitura a morte física do locutor Considerando que um dos pontos mais importantes da exegese de Campos é o fato de que o discurso do sobrinho do iauaretê incorpora o momento mágico da metamorfose CAMPOS 1992 p 62 conforme referência emprestada de Ezra Pound do projeto de seus Cantares causa estranheza o fato de que a impossibilidade da transformação tenha de ser punida com a morte ao invés de 3 permanecer na dimensão do impossível do irresolvível o que nos parece mais adequado à ideia de desastre da escritura e escritura do desastre No ensaio de Ettore Finazzi Agrò o óbito está no título A voz de quem morre O indício e a testemunha em Meu tio o iauaretê AGRÒ 2006 p 25 O ensaísta assinala aí de forma feliz a relação impossível que se estabelece no limiar certo mas sem consistência entre o humano e o infrahumano ou não humano p 28 e aponta o desejo absurdo do escritor de dar voz a essa impossibilidade na superação da necessidade de uma testemunha É precisamente pelo caráter impensável do evento que a narrativa do iauaretêsobrinho a nosso ver deve eliminar a morte mantendoa suspensa no limiar do intransitável Clara Rowland por sua vez estabelece uma relação de causa e efeito entre a narração e a morte É por contar que matou que o narrador irá morrer ROWLAND 2006 p 45 ao mesmo tempo em que sustenta com propriedade o caráter inconcluso do texto A morte em algumas abordagens pode ser a salvação da escrita mas para nós é a traição da escritura em cujo desastre apostamos Não se trata de morrer mas de estar a morrer No ensaio de Walnice Nogueira Galvão talvez pela época em que foi escrito por sua proximidade e compromisso com a mitológica straussiana chegase a assinalar o caráter paradigmático da morte do bugre aquele que tem que morrer porque não pode ser nem fera nem humano porque é incestuoso numa saída dialética para o impasse Exemplarmente termina abatido a tiros de revólver pelo interlocutor branco GALVÃO 1978 p 31 Nesse caso a morte funcionaria como um desfecho um ajuste de contas com o implausível uma confortável determinação O texto de Rosa todavia não direciona a essa conclusão a essa distensão seguida de repouso Ao contrário tais cenas promovem um recrudescer de tensão que 4 não se resolve apontando possivelmente para uma dispersão para uma multi metamorfose que pulveriza os seres mas jamais para algo como um remanso merecido do texto produto de vingança punição ou exequibilidade Repetindo um lugarcomum do discurso policialesco não há crime sem cadáver e aqui essa ausência somase às falhas patrocinadas pelo desastre Essa indefinição relacionada à morte do contador da história é portanto imanente à história e suscita uma inevitável comparação com Grande sertão veredas Têm sido apontadas semelhanças entre o conto e o monumental romance a presença de um visitante tácito que parece ter uma certa ascensão cultural sobre o narrador o qual por sua vez despeja sua verborreia memoriosa sobre o chegante As semelhanças entretanto param aí e as diferenças revelamse muito mais profundas do que parecem É intrigante saber que Rosa escreveu Meu tio o Iauaretê em momento não muito distante da criação de Grande sertão veredas de acordo com o breve resumo da trajetória do conto fornecido por Clara Rowland pesquisadora de Rosa Meu tio o Iauaretê ocupa na obra de Rosa um lugar instável Publicado pela primeira vez em 1961 na revista Senhor continuou a ser revisto e alterado pelo autor até a sua morte súbita em 1967 sendo mais tarde editado por Paulo Rónai para a publicação póstuma de Estas estórias 1969 com marcas de reescrita e de indecisão sobretudo no nível lexical Da sua inclusão no plano original do último livro de Rosa dão conta os projetos de índices e as sugestões para o ilustrador No entanto uma nota autoral remeteo a uma fase anterior à publicação dos dois livros de 1956 Corpo de baile e Grande sertão veredas ROWLAND 2006 p 43 Temos aqui um elemento externo que causa perplexidade Se a escritura de Meu tio o Iauaretê chega a ser anterior a Grande serão veredas por que Guimarães Rosa o teria retido por pelo menos doze anos até ser publicado como consequência de sua morte e sem uma edição autorizada e definitiva como era costume na época Uma explicação fácil é atribuir a omissão à inconveniência de duplicidade formal como ocorre na indagação de Walnice Nogueira Galvão Seria a exploração de um mesmo achado formal a explicação para o engavetamento GALVÃO 1978 p34 5 Optamos pela conjectura menos óbvia Guimarães Rosa teria retido esse texto pela sua total incompatibilidade com a narrativa de Riobaldo No romance temos como narrador um exjagunço que percorre um caminho inverso ao do bugre onceiro Riobaldo está aposentado vive uma vida abastada e tranquila em que seus tiros não matam apenas ferem uma inocente tábua de tiroaoalvo sua companheira de brinquedo bemeducado Definitivamente o exjagunço civilizouse sua história circunscrevese de forma definida num espaçotempo mítico sim que se amplia pela imensidão do sertãomundo sim mas que é da ordem do apaziguamento do repouso em que pese o sinal que se apõe ao final da escrita necessário aviso de que a travessia não se completou alívio para um incômodo A enunciação traz o discurso para o domínio da linguagem possível da legibilidade por seu divórcio com o enunciado Seu tácito interlocutor não é para ele uma ameaça mas um paciente escutador de histórias bem instalado na confortável residência do rapsodo a apreciar o relato O anfitrião sente orgulho por hospedar um doutor culto e uma certa inveja sadia por querer ser ilustrado como o visitante mas seus sentimentos são civilizados adequados a uma convivência social obsequiosa Por outro lado a relação entre o narrador e o visitante de Meu tio o Iauaretê é de extrema tensão que vai da fingida delicadeza à franca hostilidade O contador vive um momento de indefinição em que sofre a mais terrível metamorfose possível a passagem de sua condição humana para o póshumano ou infrahumano Aqui a enunciação colase ao enunciado numa vertiginosa babilônia que escapa à busca de uma lógica racional O espaço é tão amplo quanto o do grande sertão a cabana não tem paredes limítrofes com o mundo da barbárie as feras transitam por todos os lados aquele que tinha por missão desonçar o mundo agora alimenta os felinos com carne humana o visitante parece mais um agente da civilização que exerce um patrulhamento 6 inútil sobre a ação da selvageria O discurso se ininteligibiliza e se desautoriza do ponto de vista civilizado tanto pela metamorfose do homem em bicho quanto pela ação da cachaça ingerida por ele em grandes doses A instabilidade instaurada por Rosa nesse texto é de tal ordem que não comporta desfecho daí a impossibilidade da morte Não teria então o autor segurado este que é seu filho rebelde para que o outro evidentemente mais comportado e que tinha tudo para ser festejado como o foi não sofresse a ação da comparação maliciosa Ou situação mais trágica para que um não funcionasse como palinódia do outro Ou quem sabe essa tensão entre um texto e outro fosse uma experiência necessária à escrita de Rosa e ter o textofera na gaveta não produzisse o efeito de provocar a mão que não escreve em sua função reguladora da escritura de escritoronça e que terminou por nos presentear com as feras de Tutameia Não interessam as respostas às perguntas mas elas têm que ser feitas e têm que nos fazer pensar Esta leitura arrisca uma morte mais notável pertencente ao estatuto da escritura a morte que possibilita a metamorfose em direção à impossibilidade da morte Há um texto que precisa morrer para ceder lugar à escritura do onceiroonça e este não se encontra exclusivamente nas palavras finais Eis o desastre rosiano a escritura do que não pode ser experimentado ou do que é vivenciado no limite um limite da ordem da linguagem Segundo Blanchot o desastre décrit que sugere a forma da terceira pessoa do verbo décrire em francês Sem o hífen o verbo equivaleria ao nosso descrever o desastre descreve o que empobreceria enormemente a sugestão já que a ação pretendida não é do estatuto da exposição minuciosa da representação fotográfica do traçado nítido Destacado de escrever sem dúvida o mais importante dos verbos utilizados por Blanchot o prefixo de grande vitalidade em francês e em português acumula significados que ferem de todos os lados o radical ação contrária à que ele 7 sugere cessação da ação indicada ação mal feita negação da qualidade do ato separação mudança de aspecto remoção Assim pelo excesso o verbo se esvazia evocando a escrituradesastre do domínio das onças Tal ideia do desastre encontra ressonância na linha de argumentação de Giorgio Agamben em The man without content segundo a qual a essência do conteúdo artístico desdobrase a partir do princípio criativoformal condenando o artista a viver além de sua própria realidade The artist is the man without content who has no other identity than a perpetual emerging out of the nothingness of expression and no other ground than his incomprehensible station of this side of himself3 AGAMBEN 1999 p 55 Esse homem sem conteúdo isto é esse homem que se afasta do humanismo da escrita em direção ao inumano da escritura aparece com toda sua força nesta criatura linguageira que de matador de onças passa a provedor de carne humana para as feras Essa é a escritura que ao recusar a lei dos humanos procura sua lei própria Cabe ressalvar que essa recusa não se dá como a palavra pode sugerir de uma maneira determinada definitiva mas está carregada de tensões de volutas e meneios atormentados de desistências e recomeços Esse desastre pede um escritor que não saiba escrever isto é que não seja portador da má consciência nietzschiana um selvagem vagabundo livre do castigo e de todas as outras monumentais barreiras destinadas a obstruir os instintos de liberdade do ser primitivo A má consciência então será alocada na figura do interlocutor que se apresentará como pregoeiro da ira da crueldade da necessidade de perseguir próprios do homem superior que tanto busca o conhecimento quanto se guia por ele 3 Tradução O artista é o homem sem conteúdo que não tem outra identidade que não o perpétuo emergir do nada da expressão e nenhum outro chão além dessa incompreensível estação neste lado de si mesmo 8 Avulta aqui então esse homem sublime a suprema mistificação do humanismo a criatura que espreita o parente das onças como a testar a viabilidade de sua condição humana Não ri não brinca não dança é sério grave vingativo como um Teseu mais preocupado com sua missão de derrotar o monstro do que com a dificuldade de se desvencilhar de seu labirinto Homem branco bonito e rico ele patrulha os movimentos do sobrinho do Iauaretê quer impor o objeto da escrita encontrando resistência Ah mas isto eu não conto que não conto que não conto de jeito nenhum Por quê mecê quer saber Quer saber tudo Cê é soldado p 2324 O visitante carrega assume suporta as provas com um fardo às costas enfrenta monstros estabelece leis quer botar ordem no sertão quer ordenar a escrita Ele é o homem da ordem o soldado que vigia e pune O animal que o representa segundo Nietzsche é a mula A viagem aos confins da teialabirinto todavia faz estropiar a mula que carrega o fardo provocando uma baixa inicial na superioridade do sublime Cavalo seu é esse só Ixe Cavalo tá manco aguado Presta mais não Axi Pois sim Hum hum p 191 A mula de Nietzsche aqui é comida de jaguar os cavalos do visitante fugiram espalharamse pelo mato seu destino garantido é bucho de felino conforme o bugre O exonceiro recusa carregar o fardo não gosta de cavalo cavalo e cachorro são presas de onça O visitante pressente o perigo de estar perdido nesse labirinto sem a mula que ateste sua condição de homem superior sem o meio de se evadir heroicamente desse meio desconhecido No ensaio O mistério de Ariadne segundo Nietzsche Gilles Deleuze faz uma leitura da concepção nietzschiana da tríade TeseuAriadneDioniso ligada ao conceito de homem superior e ao de eterno retorno desenvolvidos pelo filósofo alemão DELEUZE 2000 p 140 Depois de ajudar Teseu a se conduzir pelo labirinto após ter 4 As referências a Meu tio o Iauaretê serão apresentadas apenas com o número da página entre parênteses 9 matado o Minotauro Ariadne foge com o herói e é abandonada por ele na ilha de Naxos É então seduzida por Dioniso que se casa com ela Deleuze pinça em vários textos de Nietzsche e principalmente em Assim falava Zaratustra uma interpretação do affair Passar de Teseu a Dioniso é para Ariadne uma questão de clínica de saúde e de cura DELEUZE 2000 p 144 Teseu é a impossibilidade do regresso Dioniso é o eterno retorno Esse Teseu que o exonceiro hospeda em Meu tio o Iauaretê não tem o fio de Ariadne em suas mãos não tem nem mais a mula para carregar seu fardo Ariadne não pode ser mula caso contrário será apenas uma aventureira fracassada sem fio e sem fibra apenas com um cavalo estropiado Ela só pode ser onça sendo assim não lhe cabe fornecer o fio que conduzirá o herói sublime com segurança à luz do dia ela fornece sim o fio da teia que vai enredar definitivamente aquele que não se escuta no labirinto na teia do infinito Essa Ariadne não dorme encontra um Teseu dormindo e transformao em Dioniso seduzindoo fazendoo transpor o limiar do humano da linguagemteseu para a linguagemonça o jaguanhenhém dionisíaco Num parágrafo aparentemente perdido de Assim falava Zaratustra Nietzsche referese à saudável metamorfose Porque eis aqui o segredo da tua alma quando o herói a abandona é então que se aproxima em sonhos o superherói NIETZSCHE sd p 107 Nietzsche referese certamente embora de forma enigmática ao abandono de Ariadne por Teseu e sua aproximação a Dioniso Ariadne portanto é alma é MariaMaria o segredo de nosso homemonça A noite da sedução é memorável o personagem não sabe ainda que é parente de onça ou pelo menos ainda não tem certeza MariaMaria se achega enquanto ele dorme o ritual da morte é substituído pelo jogo do afeto em que ela declara seu amor a ele Onça que era onça que ela gostava de mim fiquei sabendo p 208 Os dois 1 dormem juntos e ele percebe que não pode mais matar onças com exceção da suaçurana aquela que conspurcou seu leito de amor com suas fezes fedorentas Maria Maria é porãporanga catú bicho bonito bela fêmea bonita e cheirosa Bonita mais do que alguma mulher Ela cheira à flor de paudalho na chuva p 209 Até o hálito das onças é perfume para ele Ele se afirma seduzido e zela por sua condição de onça macho declarando que não permitirá a aproximação de nenhum maridoonça doravante é o ser viril Se algum macho vier eu mato mato mato pode ser meu parente o que for p 210 A tentativa de sedução perpetrada pela outra Maria a Quirineia que não é onça redundou em fracasso por pouco ela não virou comida de fera sendo salva por seu charme o bugre todavia permaneceu irredutível prometido para sua MariaOnça Suspendeu o ódio que a tentativa de assédio provocou nele permitiu que Maria Quirineia fugisse e até ajudoua para não matála Inconsciente do perigo que esse homemfelino representava ela ainda o provocou Mecê homem bom homem corajoso homem bonito Mas mecê gosta de mulher não ao que ele tornou com uma resposta ambígua incompreensível para ela Gosto mesmo não Eu eu tenho unha grande p 233 Bacuriquirepa é a afirmação pura MariaMaria é anima a afirmação desdobrada Ao dizer sim a Dioniso a positividade redobrase nele o simsim que produz o eterno retorno da união AriadneDioniso que permite à escritura se desvencilhar da finalidade rumo à felicidade O bugre dionisíaco não é panema doente infeliz mas marupiara criatura feliz de sorte p 227 que redobra em si pensamento de onça pensamento de leveza de quem não tem que carregar fardo apenas ser ditoso Eh então mecê aprende onça pensa só uma coisa é que tá tudo bonito bom bonito bom sem esbarrar Pensa só isso o tempo todo comprido sempre a mesma coisa só e vai pensando assim enquanto que tá andando tá dormindo tá fazendo o que fizer Quando algũa coisa ruim acontece então de repente ela ringe urra fica com raiva mas nem que não 1 pensa nada nessa horinha mesma ela esbarra de pensar Daí só quando tudo tornou a ficar quieto outra vez é que ela torna a pensar igual feito em antes p 223 MariaMaria sabe com seu saber próprio que dizer sim é desatrelarse descarregar os fardos afirmar a vida O pensamento feliz não comporta seu contrário que autorizaria o movimento dialético ele simplesmente pára de funcionar no momento em que o bombonito é ameaçado para recomeçar quando os sinais vitais se reapresentam O sobrinhoonça faz então o caminho inverso do homem Nietzscheano seu sublime desafeto que perde a liberdade para civilizarse ele inicialmente contribui para o processo civilizatório assumindo a missão de desonçar o mundo em seguida reconhece seu próprio erro e é seduzido pela onça que o atrai para o mundo selvagem inserindoo nele de forma tensa Esse é o movimento que a escritura do relato faz ampliando desmesuradamente seu caminho tornandoo infinito sem lei que o limite desvencilhandose dos pesados valores que correspondem ao patrimônio do homem superior nietzschiano Este é agora o meu caminho onde está o vosso Era o que eu respondia aos que me perguntavam o caminho Que o caminho o caminho não existe NIETZSCHE sd p 168 Esse movimento nãodialético estabelece o relacionamento entre a escritura e a morte mas a morte numa dimensão que não é da ordem do desfecho da conclusão e sim do porte de um embate repleto de riscos para a integridade da linguagem não a morte que nos livraria do desastre mas a que nos faz abandonarnos a ele como assinala Blanchot doù le rapport œuvre dart et recontre avec la mort dans les deux cas nous nous approchons dun seuil périlleux dun point crucial où nous sommes brusquement retournés Passage à la limite Il reste possible que dès que nous écrivons et si peu que nous écrivons le peu est seulement de trop nous sachions que nous approchons de la limite le seuil périlleux où le retournement est en jeu5 BLANCHOT 1980 p 18 5 Tradução donde a relação entre a obra de arte e o encontro com a morte em ambos os casos aproximamonos de um limiar perigoso de um ponto crucial onde somos bruscamente retornados Passagem para o limite Resta a possibilidade de que desde que escrevemos e por pouco que 1 No caso do nosso sobrinho de onça o perigo do umbral repousa na ambiguidade do próprio retorno O ser pode encontrar sua volta à condição humana por exigência da notoriedade a que aspira o ser humano o ser pode também retornar ao tempo sem tempo e ao espaço sem espaço que é o retorno do desastre o retorno sem presença o nãodesejado porque nãoplanejado Assim o evento singular do eterno retorno de Dioniso em direção a Ariadne não é da ordem do desejo mas da exigência da escrita naquilo que ela tem de irrecusável É nessa recusa da escrita que segundo Blanchot reside o dom de escrever Celui qui ne sait plus écrire qui renonce au don quil a reçu dont le langage ne se laisse pas reconnaître est plus proche de linexpérience inéprouvée labsence du propre qui même sans être donne lieu à lavenement6 BLANCHOT 1980 p 154 O que os homens chamam de estilo nesse caso vem a ser o que resta de outra recusa a resistência do escritor a abandonarse à escrita negativa que acarreta a notoriedade que o entrega ao poder que evita o apagamento a desaparição Um dos traços mais importantes desse devironça que recusa o devirhomem é a instabilidade do nome o excesso que não identifica que conduz ao nada Ah eu tenho todo nome p 215 E produzse aí uma lista de denominações Bacuriquirepa Breó Beró Tonico Antonho de Eiesús Macuncôzo Tonho Tigreiro O acúmulo se reduz a nada Agora tenho nome nenhum não careço p 215 Agora tenho nome mais não p 216 A mãe é MarIara Maria bugra nome que contém a beleza de MariaMaria e que é iara dona senhora O nome é o que estabiliza o ser que lhe dá um presente e um aqui a honra do superhomem que provoca no ser dionisíaco a escrevamos o pouco é apenas demais sabemos que nos aproximamos do limite perigoso umbral onde o retorno está em jogo 6 Tradução Aquele que não sabe mais escrever que renuncia ao dom que recebeu cuja linguagem não se deixa reconhecer está mais próximo da inexperiência nãoprovada a ausência do próprio que mesmo sem ser dá lugar ao advento 1 estranheza o horror Ouçamos mais uma vez Blanchot Lhorreur lhonneur du nom qui risque toujours de devenir surnom7 vainement repris par le mouvement de lanonime le fait dêtre identifié unifié fixe arreté dans um présent8 BLANCHOT 1980 p 17 O nosso exonceiro não consegue atribuirse um nome ou atribuise todos Mas ele também atribui nomes às onças agora que não as mata mais É curiosa a forma como se dá essa atribuição fugindo à determinação humanística que atrela o ser à realidade conduzindo à noção blanchotiana de surnom O personagemonça declara que as onças agora têm nome e o interlocutor provavelmente pergunta se foi ele quem as nomeou Ele titubeia admitindo ser o responsável pelo batismo mas ressalvando que era mesmo o nome delas p 211 O homem branco duvida deixando o bugre indignado Atié Então se não é como é que mecê quer saber Pra quê mecê tá preguntando Mecê vai comprar onça Vai prosear com onça algum O visitante com sua objeção procura atrair o ato de nomear para o lado do humano para provocar o efeito prático do nomear para existir O bugre resiste bravamente e utiliza os verbos comprar e prosear de maneira altamente irônica em relação às pretensões do visitante que quer demonstrar imenso saber cartesiano mas que no fundo pouco sabe As onças de sua convivência não têm mais valor de troca e nem são mais objeto da prosa do ser humano a qual pretende dispor de sua existência Desprezando o comprar e o prosear privilegiando o saber o bugre ataca Teité Axé Eu sei mecê quer saber só se é pra ainda ter mais medo delas táhá Coitado que seja assim Dioniso provoca o super homem o saber totalizante só tem valor aqui no sentido de fomentar o pavor de 7 No original surnom com hífen que mantive na tradução Em francês surnom pode referirse tanto a sobrenome quanto a apelido ou seja os processos referidos tanto podem ser de substituição quanto de acréscimo A presença do hífen mais uma vez concorre para a clivagem entre prefixo e prefixo favorecendo a instabilidade do signo 8 Tradução O horror a honra do nome que arrisca sempre a tornarse sobrenome retomado em vão pelo movimento do anônimo o fato de ser identificado unificado fixado interceptado em um presente 1 estabelecer uma suprarealidade que só reafirma a luta do homem contra o monstro nesse caso com desvantagem daquele em relação a este O desastre perpetrado pela narrativa do bugreonça é a afirmação da singularidade do extremo em que o eu em sua passividade e entrega sai do eu para encontrarse em um fora em tempo de estar a morrer em que o ser nem suporta nem é suportado em que a morte é pura e vã Esse tempo e lugar da ausência só podem ser marcados pela linguagem do fragmento da explosão da dispersão que não logra nem relatar uma experiência exemplar nem invocar uma episteme um código que não comporta o discurso da nominação Ao invés do silêncio o balbucio daquele que não sabendo mais falar não pode calarse Este homem que elimina os portadores dos pecados da gula preguiça soberba avareza luxúria no processo de apagar o rastro civilizatório submetese a uma alienação radical que subverte o eu do mestre o interlocutor que encena o saber da totalização da potência egoísta o dominador que predomina e manipula a força ao extremo da perseguição inquisitorial Essa subversão se dá pela força da paixão anônima dionisíaca que luta para corresponder a ela à revelia de seu consentimento Esse ser entretanto também é acossado pela recusa ou pelo vacilo correndo igualmente o risco de retornar ao saber ao eu que sabe e que sabe que está exposto a uma onipotência egoísta portadora da má consciência a uma vontade assassina que mata por um motivo Daí a existência de duas linguagens ou duas exigências uma dialética outra nãodialética uma na qual a negatividade é o objetivo que é a do domínio do homem superior e outra na qual o neutro fala pelo ser e pelo nãoser e que é a da escolha de Ariadne em relação a Dioniso A lei do desastre é a lei do excesso a lei nãocodificável a outra lei o ilimitado cuja perda ou falha não podem ser medidas 1 Referências bibliográficas AGAMBEN Giorgio The man without content Trad Georgia Albert Stanford Stanford University Press 1999 BARTHES Roland Aula Trad Leyla PerroneMoisés 16 ed São Paulo Ed Cultrix 2002 CAMPOS Haroldo de A linguagem do Iauaretê in Metalinguagem outras metas São Paulo Perspectiva 1999 BLANCHOT Maurice Lécriture du désastre Paris Gallimard 1980 DELEUZE Gilles Crítica e clínica Lisboa Ed Século XXI 2000 FINAZZIAGRÒ Ettore A voz de quem morre O indício e a testemunha em Meu tio o Iauaretê in O eixo e a roda Revista de Literatura Brasileira V 12 Belo Horizonte FALEUFMG 2006 GALVÃO Walnice Nogueira O impossível retorno in Mitológica Rosiana São Paulo Ática 1978 HEGEL Georg Wilhelm Friedrich Cursos de estética Vol 1 Trad Marco Aurélio Werle São Paulo Edusp 2001 NIETZSCHE Friedrich Assim falava Zaratustra Trad José Mendes de Souza São Paulo Tecnoprint sd A gaia ciência São Paulo Ed Escala 2006 ROSA Guimarães Meu tio o Iauaretê in Estas estórias 5 ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 2005 ROWLAND Clara Loup si on jouait ai loup Diálogo palavra e morte em Meu tio o Iauaretê de João Guimarães Rosa In DUARTE Lélia Parreira org As máscaras de Perséfone Belo Horizonte Ed PUC Minas 2006 1