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MARTHA ABREU GIOVANA XAVIER LÍVIA MONTEIRO E ERIC BRASIL Organizadors CULTURA NEGRA FESTAS CARNAVAIS E PATRIMÔNIOS NEGROS NOVOS DESAFIOS PARA OS HISTORIADORES FAPERJ Eduff EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 1 10092018 111704 Universidade Federal Fluminense REITOR Sidney Luiz de Matos Mello VICEREITOR Antonio Claudio Lucas da Nóbrega Eduff Editora da Universidade Federal Fluminense CONSELHO EDITORIAL Aníbal Francisco Alves Bragança presidente Antônio Amaral Serra Carlos Walter PortoGonçalves Charles Freitas Pessanha Guilherme Pereira das Neves João Luiz Vieira Laura Cavalcante Padilha Luiz de Gonzaga Gawryszewski Marlice Nazareth Soares de Azevedo Nanci Gonçalves da Nóbrega Roberto Kant de Lima Túlio Batista Franco DIRETOR Aníbal Francisco Alves Bragança C967 Cultura negra vol 1 festas carnavais e patrimônios negros Organização de Martha Abreu Giovana Xavier Lívia Monteiro e Eric Brasil Niterói Eduff 2018 428 p il 21 cm Pesquisas 6a Inclui bibliografia ISBN 9788522813117 BISAC HIS054000 HISTORY Social History 1Patrimônio cultural 2 História cultural I Abreu Martha II Xavier Giovana III Monteiro Lívia IV Série CDD 370196 Ficha catalográfica elaborada por Fátima Carvalho Corrêa CRB 3961 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 2 10092018 111704 Martha Abreu Giovana Xavier Lívia Monteiro e Eric Brasil Organizadors Volume I Festas carnavais e patrimônios negros EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 3 10092018 111704 Copyright 2017 Martha Abreu Giovana Xavier Lívia Monteiro e Eric Brasil organizadores Copyright 2017 Eduff Editora da Universidade Federal Fluminense Série Pesquisas Volume 6a É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da editora Direitos desta edição cedidos à Eduff Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias 9 anexosobreloja Icaraí Niterói RJ CEP 24220008 Brasil Tel 55 21 26295287 wwweduffuffbr faleconoscoeduffuffbr Impresso no Brasil 2018 Foi feito o depósito legal EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 4 10092018 111704 SUMÁRIO Apresentação 7 Martha Abreu Giovana Xavier Lívia Monteiro e Eric Brasil Da cultura popular à cultura negra 15 Matthias Assunção e Martha Abreu Parte I Festas da liberdade 29 Festas e lutas políticas das festas do 13 de maio às festas do Quilombo de São José da Serra RJ 1888 2011 30 Martha Abreu e Hebe Mattos Abram alas para a abolição festejos conflitos e resistên cias em Minas Gerais 18801888 58 Juliano Custódio Sobrinho Com pianos e tambores as festas abolicionistas em Minas Gerais 82 Luiz Gustavo Santos Cota A festa da abolição do 13 de maio comemorações identidade e memória 107 Renata Figueiredo Moraes O jongo nos palcos teatrais partituras e clubes musicais no Rio de Janeiro em fins do século XIX e início do século XX 134 Silvia Cristina Martins de Souza Parte II Carnavais e mobilização negra 161 Essa fina gente do morro ocupação conflitos e repre sentações da Mangueira 19101930 162 Lyndon de Araújo Santos As escolas de samba cantam sua negritude nos anos 1960 uma página em branco na historiografia sobre o movimento negro no Brasil 192 Guilherme José Motta Faria EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 5 10092018 111704 Azul branco e negro o carnaval da Unidos de Vila Isa bel em 1988 Kizomba A festa da raça 219 Eduardo Pires Nunes da Silva Parte III Patrimônios negros 247 Sociabilidade religiosa e mestiçagem a formação das irmandades de pardos no Rio de Janeiro colonial 248 Larissa Viana Entre o silêncio e o reconhecimento oficial como se escreve ou se escreveu a história do jongocaxambu em Barra do Piraí 270 Luana da Silva Oliveira Branco quer aprender dança de preto valorização e reconhecimento no registro do patrimônio imaterial afrobrasileiro 294 Elaine Monteiro Jongo da Serrinha performance negra violência urbana e mudança social numa comunidade carioca 20032010 325 Álvaro Nascimento As festas de Congada e o patrimônio cultural negro em Minas Gerais 19702015 345 Lívia Nascimento Monteiro Entre brechas e proibições a experiência de brincantes negros do bumbameuboi no Maranhão no pósAboli ção 369 Carolina de Souza Martins Entre a cultura do espetáculo e a identidade negra os maracatusnação do Recife na contemporaneidade 395 Ivaldo Marciano de França Lima e Isabel Cristina Martins Guillen Sobre os autores 425 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 6 10092018 111704 7 APRESENTAÇÃO Cada vez mais seja na história social da escravidão do pósAbolição nos estudos feministas póscoloniais e no ensino de história o conceito de cultura tornouse chave assumindo feições muito mais ligadas aos conflitos do que aos consensos Na história social da escravidão base de forma ção de quase todos os autores da presente obra esta guinada da cultura como todo homogêneo e harmonioso para a de arena de conflitos é sabidamente tributária da obra de EP Thompson1 na qual aprendemos que a classe é formada a partir das experiências de seus sujeitos e de experiências também no campo das festas tradições culturais e políticas Tal impacto culmina no que historiograficamente ficou patenteado como a virada do escravo coisa para o escravo sujeito A primeira perspectiva consolidouse entre os anos 1950 e 1960 através das pesquisas de Florestan Fer nandes2 e de Fernando Henrique Cardoso3 Quanto à segunda vertente aquela do escravo sujeito que ganha forma a par tir dos anos 1980 destacamse como clássicos devemos sem pre questionar o que e quem define o clássico os trabalhos de João Reis e Eduardo Silva4 Sidney Chalhoub5 e Robert Slenes6 para ficarmos apenas com três A partir desses traba 1 THOMPSON E P A formação da classe operária inglesa Rio de Janeiro Paz e Terra 1987 vol 1 A árvore da liberdade 2 FERNANDES Florestan A integração do negro na sociedade de classes São Paulo Ática 1978 1 ed 1964 3 CARDOSO Fernando Henrique Capitalismo e escravidão no Brasil meridional o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul Rio de Janeiro Paz e Terra 1962 4 REIS João José SILVA Eduardo Negociação e conflito a resistência negra no Brasil escravista São Paulo Companhia das Letras 1988 5 CHALHOUB Sidney Visões de liberdade uma história das últimas décadas da escra vidão na corte São Paulo Companhia das Letras 1990 6 SLENES Robert Na senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 7 10092018 111705 8 lhos tornouse impossível pensar a ação de escravos e libertos sem levar em conta suas relações familiares festas religiosas irmandades e batuques concepções sobre liberdade e direitos Escravos e descendentes produziam cultura visões de mundo e tradições em estreito diálogo com as heranças africanas recebi das Alimentavamse de esperanças políticas possíveis Moviam se no interior de conflitos sociais travados A partir dos anos 2000 em continuidade com a eferves cência deste campo e com as demandas dos movimentos negros em defesa das ações afirmativas incluindo aí obrigatoriedade do ensino da História da Cultura AfroBrasileira e Africana ilus trado pela promulgação da Lei 10639037 temos visto crescer a quantidade de pesquisas empenhadas em investigar os pro cessos históricos relacionados às populações negras no pósAbo lição suas lutas políticas e culturais Na direção de se pensar o pósAbolição como problema histórico específico vinculado mas não dependente das heranças da escravidão os trabalhos de Ana Lugão Rios e Hebe Mattos8 Álvaro Nascimento9 e Flavio Gomes10 tornaramse referências obrigatórias Sem dúvida precisamos reconhecer uma espécie de negligência historiográfica marcava a história dos descenden tes de africanos depois da Abolição da escravidão No máximo tínhamos trabalhos sobre a dominação das teorias racistas cien tificistas e sobre o descaso da República com os libertos Nestas versões únicas da história crianças mulheres e homens negros 7 A Lei 1063903 que tornou obrigatório o ensino de história da África e cultura afrobrasileira e africana foi alterada pela Lei 1164508 que incluiu a obrigatoriedade do ensino de história indígena nas escolas de todo o Brasil Disponível em http wwwplanaltogovbrccivil03ato200720102008leil11645htm Acesso em 25 maio 2016 8 RIOS Ana MATTOS Hebe O pósabolição como problema histórico balanço e perspectivas TOPOI v 5 n 8 p 170198 janjun 2004 Disponível em http wwwrevistatopoiorgnumerosanterioresTopoi08topoi8a5pdf Acesso em 25 maio 2016 Memórias do cativeiro família trabalho e cidadania no pósabolição Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2005 9 NASCIMENTO Álvaro Qual a condição social dos negros no Brasil depois do fim da escravidão O pósabolição no ensino de História In SALGUEIRO Maria Aparecida Org A República e a questão do negro no Brasil Rio de Janeiro Museu da República 2005 pp 1126 10 GOMES Flavio Negros e política 18881937 Rio de Janeiro J Zahar 2005 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 8 10092018 111705 9 tinham sido entregues à própria sorte naturalizandose a con tinuidade da pobreza e a pretensa marginalidade Nem mesmo os que já tinham conseguido a liberdade muito antes de 1888 escaparam das narrativas sobre esse único destino De fato os descendentes de africanos que carregavam a marca da escravi dão na própria cor da pele tornaramse negros e desapareceram de grande parte dos livros de história após a Abolição assim como suas lutas e projetos Se essa negligência impressiona ela revela muito mais Por um lado podemos identificar o próprio racismo escondido no ato de esquecer e silenciar vozes por outro o domínio poste rior do mito da democracia racial a partir da Primeira Repú blica sem dúvida produziu uma espécie de miopia intelectual em relação à história do racismo Em consequência foram enco bertos os movimentos de combate ao racismo Tais movimentos ganharam forma na atuação de professores e professoras músi cos e artistas pais e mães de santo e políticos negros em jornais associações religiosas sindicais e carnavalescas como as escolas de samba De fato conhecíamos muito pouco a história do racismo e de seu combate no Brasil ao longo do século XX muito menos sobre como os sujeitos sociais identificados como negros reagiram ou lidaram com seus problemas e efeitos mais espe cialmente no campo cultural Os dois volumes que trazemos ao público Festas carnavais e patrimônios negros volume 1 e Trajetórias e lutas de intelectuais negros volume 2 procuram exatamente con tribuir para diminuir os silêncios sobre o papel da cultura negra nas histórias do pósAbolição Mesmo de formas distintas todos os trabalhos deste livro também dialogam com os ensinamentos de E P Thomp son sobre cultura popular e cultura plebeia11 conceitos que precisam ser situados em contextos específicos e inseridos nas lutas sociais mais amplas marcadas pela defesa de costumes tradicionais Não costumes tradicionais entendidos como sobrevivências do passado ou como coisas do folclore mas 11 THOMPSON E P Costumes em comum estudos sobre cultura popular tradicional São Paulo Companhia das Letras 1998 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 9 10092018 111705 10 como bandeiras de luta por costumes e direitos em meio a disputas e conflitos de poder que envolvem questões de classe gênero e outros marcadores sociais intersectados com raça e combate ao racismo Com todos os riscos que possa trazer a adjetivação do conceito tratamos aqui de cultura negra Certamente não foi mera coincidência que a partir dos anos 1980 o conceito de cultura negra tornouse cada vez mais recorrente em substituição ao de cultura popular Como Matthias Assunção e Martha Abreu discutirão no Pontos de partida o conceito de cultura negra trans formarseia a partir desse período nas narrativas e ações dos movimentos sociais negros assim como no trabalho dos edu cadores pela implantação da Lei 1063903 que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afrobrasileira e africana nas escolas do país Recentemente durante a arguição na banca de defesa de tese de Eric Brasil Maria Clementina Pereira Cunha histo riadora referência dos carnavais cariocas alertounos sobre os perigos embutidos no termo cultura negra Embora com lugares de fala e pontos de vista bastante distintos podemos dizer que a fala da pesquisadora da Unicamp coadunase com a da escritora nigeriana Chimamanda Adichie autora de romances célebres12 e de um belíssimo depoimento que viralizou na internet que não por acaso intitulase O perigo de uma história única13 Tanto a historiadora quanto a literata alertamnos para os pro blemas das homogeneizações naturalizações e reproduções de estereótipos corriqueiramente atribuídos às práticas culturais musicais artísticas e religiosas das populações negras ao longo da história Assim a presente coletânea vai ao encontro da perspec tiva de ambas Nós organizadores dessa obra três historiadoras e um historiador pertencentes a diferentes gerações acadêmi 12 ADICHIE Chimamanda Ngozi Americanah São Paulo Companhia das Letras 2013 Hibisco roxo São Paulo Companhia das Letras 2003 13 Depoimento da autora em Technology Entertainment Design TED 2009 Disponível em httpswwwyoutubecomwatchvwQk17RPuhW8noredirect1 Acesso em 24 maio 2016 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 10 10092018 111705 11 cas partilhamos do entendimento da cultura negra como resul tante de campos de experiência sempre pensados e definidos por sujeitos plurais Estamos diante de um conceito que pertence ao mesmo tempo a mundos nem sempre afinados ou em sintonia o mundo das lutas sociais e o mundo das explicações acadêmicas As culturas tornamse negras em função das lutas sociais e das identidades políticas construídas pelos descendentes de africanos em todas as Américas depois da tragédia do tráfico da escravidão moderna e da experiência do racismo De fato não existem culturas negras muito menos uma única cultura negra definidas a priori como um conjunto de práticas com cer tas características comuns consensuais e imutáveis Portanto a leitora e o leitor não encontrarão nesta coletânea uma definição pronta e acabada de cultura negra Para o caso do mundo acadêmico entendemos da mesma forma que para a expressão cultura popular que só é pos sível definir cultura negra enfrentandoa Ou seja por um lado a partir do árduo trabalho de historiadoras e historiadores com fontes e metodologias de pesquisa variadas que permitam colo car em campo ou na arena de conflitos sujeitos sociais negros plurais com suas diversas expressões e representações artísticas musicais educacionais políticas ideológicas e identitárias Por outro em tempos de indagações sobre o lugar dos subalternos no conhecimento científico a partir do franco e promissor diá logo que pode incluir também parceria com os movimentos sociais culturais e políticos estudados ou envolvidos na discus são Nesse sentido defendemos que cultura negra possa ser enten dida mais como sujeito de interação do que propriamente como objeto de nossas reflexões e pesquisas Embora no seu sentido hegemônico a academia prime por valores como o individualismo a competição e a merito cracia estamos convencidos de que nosso entendimento da cul tura como sujeito interativo só pôde ser costurado a partir de experiências de pesquisas coletivas participativas e horizontais Essa vivência transgressora culminou na criação e consolida ção do Grupo de Estudo e Pesquisa Cultura Negra no Atlân tico CultnaUFF ligado ao Núcleo de Pesquisa e Estudos em EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 11 10092018 111705 12 História Cultural Nupehc e ao Laboratório de História Oral e Imagem Labhoi formado inicialmente por Martha Abreu Hebe Mattos Giovana Xavier Lívia Monteiro Eric Brasil Mat thias Assunção Leon Araújo Fernanda Pires Maria do Carmo Gregório Alexandre Reis Luara dos Santos Silva Carolina Martins Fernanda Soares entre tantos outros pesquisadores de variadas instituições Autoras e autores deste trabalho alguns jovens mestres e doutores recolhem agora os primeiros resulta dos de seus mestrados e doutorados Outros mais experientes foram especialmente convidados em função da importância de seus trabalhos para nossas reflexões Nestes dois volumes poderão ser encontradas variadas experiências negras no campo da cultura da festa da música do teatro da educação e da luta política em diversas temporali dades e partes do Brasil No primeiro volume ganham destaque instituições e associações culturais e políticas negras dos tempos da escravidão mas principalmente dos tempos do pósAbolição como as escolas de samba congados jongos bois e maracatus Na Parte I Festas da liberdade são estudados os festejos e as comemorações que com a participação direta da população negra organizaram e celebraram as lutas da Abolição nos arti gos de Martha Abreu e Hebe Mattos Juliano Custódio Sobri nho Luiz Gustavo Santos Cota Renata Figueiredo Moraes O texto de Silvia Cristina Martins de Souza sobre o jongo nos teatros do século XIX evidencia outros usos e trânsitos da festa negra que podem recriar estereótipos e hierarquias raciais no mundo cultural Na Parte II Carnavais e mobilização negra os trabalhos dis tanciamse da ideia de que as festas são válvulas de escape As escolas de samba podem ser vistas como locais de mobilização de combate ao racismo e de afirmação de direitos e identidades negras conforme os artigos de Lyndon de Araújo Santos Gui lherme José Motta Faria e Eduardo Pires Nunes da Silva Na Parte III Patrimônios negros são discutidos os caminhos de transformação do legado cultural da escravidão como irman dades jongos congados festas do boi e maracatus em patri mônios culturais reconhecidos coletivamente e nacionalmente EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 12 10092018 111705 13 Bem distantes da ideia de folclore ou de sobrevivências culturais sem sentido os artigos da Parte III abrem um novo campo de investigação historiográfico a partir da renovação e recriação do patrimônio cultural negro Nesta parte encontramse os textos de Larissa Viana Luana da Silva Oliveira Elaine Monteiro Álvaro Nascimento Lívia Monteiro Carolina de Souza Martins Ivaldo Marciano de França Lima e Isabel Cristina Martins Guillen No primeiro volume indubitavelmente a festa negra emerge em expressões que transformam no tempo presente a memória do cativeiro e a canção escrava em espetáculo patrimô nio cultural local de conflito de luta e afirmação da negritude No segundo volume contribuindo de forma inovadora para a abertura de novos campos de investigação as atenções são dirigidas para sujeitos sociais que na prática criaram novos sentidos de cultura e festas negras Homens e mulheres em geral esquecidos até pouco tempo demonstram por suas trajetórias e ação intelectual como o campo cultural está repleto de inicia tivas de combate ao racismo e de contraposições às relações de dominação reconstruídas no pósAbolição Sob a ação desses sujeitos definidos como intelectuais os campos musical tea tral e educacional tornamse importantes canais de afirmação de direitos e discussão das identidades negras Mais ainda con tribuem para o entendimento de uma outra história do Brasil republicano e suas lutas pela cidadania Na Parte I Entre músicas e festas negras os textos de Manuela Areias Costa Rodrigo de Azevedo Weimer Caroline Moreira Vieira Silvia Brügger Gabriela Busccio e Alexandre Reis reconstituem trajetórias de intelectuais que registraram no campo musical suas histórias memórias e lutas políticas Na Parte II Política negra no teatro os textos de Rebeca Natacha de Oliveira Pinto Júlio Cláudio da Silva e Maria do Carmo Gregório demonstram de forma contundente o quanto o teatro território hegemonicamente branco se tornou palco para o combate ao racismo através da valorização de atrizes e atores negros e sua cultura escrita Na Parte III Lideranças negras e mobilização racial toma mos conhecimento da trajetória de três homens negros que EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 13 10092018 111705 14 através da atuação em associações civis imprensa e produção acadêmica conferiram visibilidade à mobilização racial e à afir mação de direitos nos artigos de Luara dos Santos Silva Eric Brasil e Ana Carolina Carvalho de Almeida Nascimento Martha Abreu Giovana Xavier Lívia Monteiro e Eric Brasil organizadores EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 14 10092018 111705 15 DA CULTURA POPULAR À CULTURA NEGRA1 Matthias Assunção e Martha Abreu Cultura popular e cultura negra são conceitos que foram acionados ao longo do século XX por diferentes sujeitos sociais em disputas políticas e que trouxeram à tona a produção cultural dos setores populares e negros e as diversas versões sobre seus significados Seria a cultura popular a alma da nação e o local conservador das tradições imemoriais Ou o caminho de resistência do povo e dos trabalhadores às políticas de dominação às transformações econômicas da modernidade e do sistema capitalista No caso da cultura negra herdeira das civilizações africanas estaria condenada a desaparecer a partir da incorporação e mistura das contribuições dos africanos e seus descendentes à cultura nacional Ou passaria a fazer parte da construção das identidades negras no mundo contemporâneo Mudaram as lutas políticas e culturais mudaram os con textos mas os dois conceitos nunca deixaram de ser acionados por acadêmicos militantes professores detentores dos saberes agências do Estado empresas de turismo meios de comunica ção de massa instituições de cultura e educação e associações religiosas Certamente por tudo isso são expressões carregadas de muitas versões e significados grande parte deles persistentes e em disputa até hoje DOS PRIMEIROS TEMPOS DO FOLCLORE AOS HISTORIADORES Desde o Renascimento pelo menos escritores como F Rabelais 14941553 e músicos como J S Bach 16851750 usaram a cultura popular como fonte de inspiração mas não a 1 Este texto é um livre ensaio sobre a história dos conceitos de cultura popular e negra elaborado a partir de nossa experiência de pesquisa e ensino na temática EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 15 10092018 111705 16 constituíram em objeto de estudo Foi durante o Iluminismo no século XVIII que a ideia de uma cultura do povo inspirou as primeiras coletâneas A riqueza da poesia popular em particular levou pensadores como Johann Gottfried Herder a desenvolver um enfoque universalista no qual a cultura de cada povo teria seu valor próprio e incomparável O Iluminismo na verdade abri gava posturas bem diferenciadas em relação à cultura das classes populares Enquanto alguns filósofos e cientistas viam os campo neses ao seu redor como incultos e carentes de tudo outros como Rousseau e Diderot geralmente identificados com a esquerda desse movimento amplo de ideias viam os homens comuns com muito mais simpatia e mesmo construíram suas utopias sobre a suposta nobreza dos selvagens Quando a divulgação das ideias iluministas foi seguida da invasão da Europa por tropas napoleô nicas esse relativismo cultural foi deixado de lado O interesse pela cultura popular passou a associarse à busca das raízes de uma identidade nacional capaz de contribuir para a resistência contra as invasões estrangeiras Destarte a apropriação da cultura popular para fins políticos tem uma longa história Cunhada em meados do século XIX a palavra inglesa folklore saber do povo ao lado de seus estudiosos nasceu nesse novo contexto e logo passou a ser usada em outros idiomas inclusive em português Os folcloristas dessa forma ao longo do século XIX procuraram conhecer os costumes populares as expressões dos subalternos do mundo rural e continuaram a eleválas ao patamar das marcas da nacionalidade contra tudo que fosse estrangeiro Buscaram entre os costumes dos campo neses seus poemas músicas festas saberes histórias e rituais encontrar as marcas de uma essência diferenciadora e autên tica o espírito coletivo de um povo em particular instrumento para a construção de futuras nações ou consolidação de estados nações já existentes Os camponeses pareciam aos olhos destes intelectuais ter guardado desde tempos muito remotos a tradição que pre cisava ser recuperada diante das ameaças da modernidade da sociedade industrial e da civilização exteriores Desinteressados dos reais problemas sociais do campesinato e dos trabalhadores das cidades ambos profundamente afetados com as transforma EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 16 10092018 111705 17 ções da revolução industrial os folcloristas valorizaram a ori gem popular autêntica as continuidades as sobrevivências e as tradições que pareciam teimar em permanecer nas áreas rurais e que pretensamente guardavam o que de mais autêntico havia da alma nacional na verdade correspondiam mais às manifes tações regionais ou locais Em geral e isso também se aplicava aos folcloristas brasileiros preocuparamse muito mais com as expressões populares seus objetos canções danças e festas do que com os sujeitos sociais construtores desses patrimônios Quase nunca nomearam os sujeitos sociais para além das desig nações genéricas de camponeses povo ou negros para o caso dos folcloristas que utilizaram a expressão cultura negra Apesar de muito enfraquecidos hoje como campo de conhecimento e atuação o folclore e os folcloristas deixaram um impressionante legado intelectual expresso nas inúmeras obras que publicaram e na implementação de políticas públicas espe cialmente no campo educacional Mas talvez o maior legado tenha sido mesmo na formatação de uma especial forma de ima ginação e relação com a cultura popular as constantes associações da cultura popular com a alma da nação Até hoje especialmente no Brasil este olhar e postura obstinada dos folcloristas de buscar as origens as continuidades as tradições inventadas ou não e os perigos da urbanização e modernização perseguem e assustam todos os que se interessam pelos estudos das culturas populares e negras Precisamos sempre ter muito cuidado para não embarcar mos sem cuidados e críticas na máxima dos folcloristas de que as culturas populares estão sempre ameaçadas e em perigo Como já nos ensinou Canclini as culturas populares podem ser prósperas na modernidade2 E como mostrou Thompson os costumes da plebe préindustrial foram incorporados na cultura e nas lutas da classe operária oitocentista inglesa3 Os estudos de folclore no Brasil seguiram um caminho semelhante ao da Europa Desde Silvio Romero e Mello Moraes 2 CANCLINI Néstor Garcia Las culturas populares en el capitalismo México DF Nueva Imagen 1989 1 ed 1982 Culturas híbridas estratégias para entrar e sair da modernidade São Paulo EDUSP 1997 3 THOMPSON E P Costumes em comum São Paulo Companhia das Letras 1998 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 17 10092018 111705 18 Filho no final do século XIX a cultura popular a poesia popular e mais entusiasticamente a música dita popular foram apontadas por folcloristas como expressões da identidade nacional brasileira Mas os intelectuais brasileiros e também os da América Latina produziram uma discussão bastante original para o campo então em construção a cultura popular não seria apenas a expressão autêntica do povo intocado do mundo rural mas a do povo mestiço fruto do histórico encontro entre portugueses índios e africanos desde os primeiros tempos da colonização Foi longa a carreira no Brasil do conceito de cultura popular associado à ideia positiva da mestiçagem logo acrescida da de democracia racial a partir dos anos 1940 As discussões sobre cultura popular e música popular acompanhavam de perto as dúvidas e certezas sobre os efeitos da mestiçagem racial e cultural para a nação Já na Primeira República apareciam as primeiras formulações sobre como a positiva mistura das raças e das culturas especialmente no campo musical e festivo poderia proporcionar a harmonia racial social e nacional4 A partir dos anos 1940 o folclore ganhou dimensões mais oficiais com a constituição do Movimento Folclórico Bra sileiro5 O Movimento Folclórico principalmente entre 1947 e 1964 produziu então uma vertente significativa do pensamento antropológico e se imbuiu de uma importante missão de constru ção nacional por via da integração cultural das regiões das clas ses e das raças Grandes figuras de diferentes tendências desta caramse no folclorismo brasileiro entre eles Renato Almeida Rossini Tavares de Lima Artur Ramos Luís da Câmara Cas cudo e Edison Carneiro com artigo sobre ele em nosso livro Por reunirem intelectuais de diferentes tendências dos mais conservadores aos ligados às ideias comunistas os folcloris tas nunca conseguiram dominar todos os sentidos possíveis atri buídos ao folclore e à cultura popular A partir dos anos 1950 se a expressão cultura popular passava a ser assumida por regimes 4 ABREU M DANTAS C V Música popular folclore e nação no Brasil 18901920 In CARVALHO J M de Org Cidadania no oitocentos Rio de Janeiro Record 2007 PronexFaperj 5 VILHENA Rodolpho Projeto e missão o movimento folclórico brasileiro 19471964 Rio de Janeiro FGV Ed Funarte 1997 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 18 10092018 111705 19 políticos na América Latina que procuravam associar as ima gens reconhecidamente populares como o samba e a capoeira às identidades nacionais e à legitimidade de seus governos tam bém passava a ser acionada por movimentos de esquerda e de contestação a esses regimes A expressão cultura popular cabia bem nas bandeiras das lutas nacionalistas e socialistas contra o imperialismo a dominação estrangeira e a dominação de classe no capitalismo Em meio a muitas disputas artistas políticos literatos professores intelectuais e ativistas participavam intensamente da construção de novos e renovados atributos ao conceito mas sem pre em diálogo com as primeiras versões dos folcloristas Por um lado podiam associar a cultura popular à não modernidade ao local do atraso e do retrógrado onde os oprimidos necessitariam de uma consciência mais crítica que precisava ser despertada por lideranças intelectuais por outro existiam os que atribuíam à cultura popular a evidência do futuro positivo do país a partir das singularidades da nação e da capacidade de resistência dos populares às transformações da modernidade capitalista Para além dos folcloristas e órgãos do Estado o conceito de cultura popular era encontrado entre os intelectuais do Cinema Novo da Teologia da Libertação dos Centros Populares de Cultura e entre os educadores inspirados pelos princípios de Paulo Freire O golpe de morte ao conceito de folclore e aos folcloris tas no Brasil a partir do final dos anos 1950 viria da sociolo gia campo então que se constituía na USP sob a liderança de Florestan Fernandes Os folcloristas passaram a receber críticas profundas por não terem conseguido organizar um campo cien tífico respeitável e por ficarem identificados às forças mais con servadoras de uma sociedade que rapidamente se transformava cheia de conflitos sociais Para Florestan a integração nacional não se realizava via integração cultural como pretendiam os folcloristas mas através das transformações sociais da integra ção dos estratos sociais marginalizados6 As críticas tiveram tal 6 CAVALCANTE M L V VILHENA L Rodolfo Traçando fronteiras Florestan Fernandes e a marginalização do folclore Estudos Históricos Rio de Janeiro v 3 n 5 p 7592 1990 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 19 10092018 111705 20 repercussão que a expressão folclore hoje possui significados negativos assumindo até mesmo conotações ligadas ao anedó tico e ao ridículo Apesar da derrocada dos folcloristas a expressão cultura popular por vezes ainda imbricada com folclore e com o seu legado sobreviveria no pensamento de esquerda nas escolas entre agências de turismo nas associações de folclore estaduais e entre os próprios detentores da cultura popular Continuariam diversos seus usos e significados imersos em muitas disputas aca dêmicas e políticas Até os anos 1970 na Europa e 1980 no Brasil pou cos historiadores tinham se interessado por cultura popular ou pela existência de diferenças culturais no interior das chamadas sociedades civilizadas campo então ocupado por folcloristas antropólogos e sociólogos A cultura dos subalternos não era uma problemática que atraía a atenção de historiadores até os trabalhos de E P Thompson Carlo Ginzburg Robert Darn ton Peter Burke Giovani Levi entre outros que então realiza vam importante revisão do marxismo no campo da cultura e na construção da chamada história vista de baixo7 A partir daí passouse a pensar historicamente a relação entre culturas popu lares ou subalternas e dominantes as formas de dominação e autonomia em termos culturais construídas pelos sujeitos sociais e históricos concretos Até que ponto havia subordinação Até que ponto a cultura popular era alternativa e resistente Como entender a circularidade as apropriações e os diferentes signifi cados das práticas culturais Em termos tropicais como enten der os sincretismos culturais e religiosos construídos pelos sujei tos sociais diversos e de diferentes classes sociais que em doses variáveis demonstravam autonomia de ação e pensamento A pauta de pesquisa dos historiadores no Brasil se abriria para uma série de novos problemas e questões A his toriografia dos anos 1980 a partir de trabalhos de mestrado e doutorado incorporaria definitivamente os estudos de cul tura popular tanto no período colonial como ao longo dos 7 Sobre esta produção historiográfica consultar Soihet R Introdução In SOIHET R ABREU M Org Ensino de História Rio de Janeiro FaperjCasa da Palavra 2003 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 20 10092018 111705 21 séculos XIX e XX nos campos da história do trabalho na história política e cultural HISTÓRIAS DA CULTURA NEGRA A expressão cultura negra definida muitas vezes como afroamericana ou afrobrasileira também possui uma longa história e está envolvida da mesma forma em muitas disputas quase sempre construídas em estreito diálogo com as discussões internacionais No final do século XIX em pleno período das lutas dos libertos por direitos no pósAbolição a ideia de uma música negra nos Estados Unidos tornavase ao mesmo tempo um produto da indústria do entretenimento e um dos maiores símbolos da luta política negra contra as teorias pseudocientíficas racialistas e racistas que inferiorizavam a cultura negra e africana No seu famoso livro Souls of Black Folk WEB Du Bois defendia a ideia de que o negro não deveria diluir sua alma e sua cultura no americanismo branco pois nas suas cantigas os escravizados haviam articulado a sua mensagem para o mundo8 Paris nas primeiras décadas do século XX seria invadida pelas percepções de uma arte e cultura negras africana e afroa mericana exótica primitiva e moderna Ao mesmo tempo que se projetava uma cultura negra moderna reforçavamse outros estereótipos sobre a arte e a cultura das populações negras No Brasil entre o final do século XIX e as primeiras três décadas do século XX o interesse pelas culturas populares negras em particular a religião e a música esteve no centro das pesquisas de intelectuais como Nina Rodrigues João Ribeiro Manuel Querino Edison Carneiro e Artur Ramos entre outros Inicialmente o foco girava em torno das sobrevivências das culturas africanas no Brasil que supostamente em breve se extinguiriam ou na melhor das hipóteses se fundiriam na cul tura popular mestiça 8 He would not bleach his Negro soul in a flood of white Americanism for he knows that the Negro blood has a message to the world DU BOIS W E B The Souls of Black Folk Oxford Oxford University Press 2007 p 9 1 ed 1903 Tradução para o portu guês de Heloisa Toller Gomes As Almas da Gente Negra Rio de Janeiro Lacerda 1999 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 21 10092018 111705 22 Nina Rodrigues em particular interessavase pelas práticas religiosas dos africanos ainda vivos na sua época que considerava mais puras do que na cultura popular afro baiana abrangente Devido ao seu viés racialista inspirado pelas teorias raciais e racistas europeias criticava o que lhe parecia ingenuidade dos abolicionistas defensores das positi vas consequências da mestiçagem Seu trabalho empírico pio neiro lhe fez entender as identidades étnicas mais específicas formadas no seio da cultura popular baiana em particular no campo religioso e associadas à ideia de nação hausá ijexá queto jeje angola congo etc As reflexões de Nina Rodrigues construídas à luz das teorias europeias e do próprio antago nismo interno entre essas nações resultaram numa formulação que subdividiu hierarquicamente a cultura negra no Brasil em dois macrogrupos dos mais autênticos sudaneses aos menos seguidores das tradições os bantus9 Essa formulação ainda se encontra presente nos estudos sobre cultura negra mas vem sendo criticada por vários antropólogos como Beatriz Góes Dantas e Stefania Capone10 Mesmo Manuel Querino apesar de mais empático e afirmativo em relação à cultura negra do que Nina Rodri gues também não escapou do saudosismo ao descrever costu mes condenados a desaparecer na Bahia O desafio era então diagnosticar até quando sobreviveriam os traços africanos no Brasil Até a morte dos últimos africanos De qualquer forma Querino ao apresentar em 1918 seu trabalho sobre O colono preto como fator da civilização brasileira deu um passo impor tante para o reconhecimento de uma cultura negra distinta das sobrevivências africanas11 Edison Carneiro por sua vez um dos alunos mais proeminentes de Nina Rodrigues em mono 9 Sobre a influência das teorias europeias Nina Rodrigues e a emergência da identidade angoleira na Bahia consultar ASSUNÇÃO M R Angola in Brazil The Formation of Angoleiro Identity in Bahia In ARAUJO Ana Lucia Ed African Heritage and Memory of Slavery in Brazil and the South Atlantic World Amherst NY Cambria Press 2015 p 109148 10 DANTAS B G Vovó nagô e papai branco usos e abusos da África no Brasil Rio de Janeiro Graal 1988 CAPONE S A busca da África no candomblé São Paulo Pallas e Contra Capa 2004 11 Memória apresentada ao 6o Congresso Brasileiro de Geografia republicada por Manuel Querino Costumes africanos na Bahia 3 ed Salvador UNEB 2010 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 22 10092018 111705 23 grafia pioneira tentou fazer justiça à contribuição bantu ao folclore da Bahia que o mestre teria subestimado12 Os prognósticos sobre a mestiçagem racial e cultural geralmente vinham acompanhados das apostas no branquea mento ou no rápido desaparecimento das matrizes africanas da cultura brasileira Se os intelectuais reconheciam a contri buição a positividade e originalidade frequentemente confia vam na transformação ou diluição dos traços africanos raciais e culturais no caldeirão mestiço da alma nacional brasileira O melhor caminho para se pensar a cultura negra continuaria por muito tempo a ser no âmbito das contribuições para a cultura popular brasileira mestiça O debate e as polêmicas fica vam mesmo por conta do local do tamanho e do peso dessas contribuições para a construção imaginária da nação Entre os interessados no folclore a obra de Artur Ramos pode ser vista como uma das primeiras tentativas de se pensar teoricamente a cultura negra dentro do contexto brasileiro Artur Ramos com O negro brasileiro 1934 O folclore negro do Bra sil 1936 As culturas negras no Novo Mundo 1937 e A aculturação negra no Brasil 1942 introduziu renovadas perspectivas de aná lise desafiando as teorias pseudocientíficas que autorizavam o racismo e as teorias sobre as desigualdades raciais e culturais Os africanos e seus descendentes das Américas não haviam como pensara o sociólogo norteamericano E Franklin Frazier che gado despossuídos de cultura nem mesmo a escravidão havia aniquilado o legado africano Ramos reconhecia a importância das contribuições negras eou africanas Artur Ramos teve o grande mérito de estimular o olhar para as culturas negras no Novo Mundo percebendo que o pro blema cultural e racial a ser discutido não era apenas nacional Nesta operação dialogou com especialistas nos Estados Unidos e no Caribe como Herskovits e Fernando Ortiz e criou um campo respeitado de estudos e pesquisas na antropologia e no folclore Mesmo que apostasse no fenômeno da aculturação e da transfor mação cultural Ramos começou a pensar também nas continui 12 CARNEIRO Edison Negros Bantus notas de ethnographia religiosa e de folklore Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1937 p 19 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 23 10092018 111705 24 dades nos chamados africanismos eou sobrevivências africa nas que teimavam em permanecer no Novo Mundo até mesmo nos Estados Unidos influenciando de forma profunda todos os americanos no campo religioso musical e festivo Para os que acreditaram num pretenso branqueamento arianizante aler tava que nada poderia mudar a face dos nossos destinos13 Outra contribuição importante foi a de Roger Bastide estudioso das religiões afrobrasileiras que constituiu escola no Brasil Bastide enfatizou o sincretismo interafricano na forma ção do candomblé e estabeleceu uma distinção entre formas africanas que teriam mudado pouco afroamericanas recriação de elementos africanos em formas novas e negras resposta à escravidão sem incorporar tradições africanas Sua pesquisa mais antropológica e estruturalista aprofundou a concepção de Ramos da cultura negra brasileira como parte de uma configu ração mais abrangente e atlântica14 O amplo uso da expressão cultura popular de certa forma eclipsou as discussões sobre cultura negra no Brasil e incorporou o problema da negritude no guardachuva abran gente das expressões populares Certamente a força do mito da democracia racial tornado bandeira de luta dos próprios movimentos negros entre os anos 1930 e 1960 também difi cultou o foco nos problemas raciais da cultura popular As mais conhecidas experiências do Teatro Negro nos anos 19401950 de Abdias do Nascimento e do Teatro Popular Brasileiro de Solano Trindade com texto em nosso livro atribuíram impor tante papel à música dança e religião negras mas salvo engano não parecem ter investido profundamente na especificidade da cultura negra no cenário cultural popular brasileiro Mas sem dúvida atuaram de forma contundente no combate ao racismo no campo artístico e na denúncia da repressão aos candomblés e centros de umbanda na defesa da população negra em termos econômicos políticos e culturais 13 RAMOS Artur O folclore negro do Brasil demopsicologia e psicanálise Rio de Janeiro Casa do Estudante do Brasil 1954 p 6 14 BASTIDE Roger As Américas negras as civilizações africanas no Novo Mundo São Paulo Difel 1974 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 24 10092018 111705 25 CULTURA NEGRA E PAUTA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA Certamente não foi mera coincidência que a partir da década de 1980 com a abertura política a reestruturação dos movimentos negros e o combate sistemático ao mito da demo cracia racial o conceito de cultura negra tenha cada vez mais ficado em evidência concorrendo ou mesmo substituindo o con ceito de cultura popular15 Cultura popular não daria mais conta de outros desafios políticos colocados pelos movimentos cultu rais de combate ao racismo e da naturalizada ideia de um Brasil mestiço integrado racial e culturalmente A discussão da domi nação de classe na qual o conceito de cultura popular cabia confortavelmente não mais dava conta das lutas de combate ao racismo no Brasil Assim o conceito de cultura negra ao lado do de cultura afrobrasileira passou a cumprir o papel de não apenas enfati zar a contribuição africana mas de argumentar que esta havia sido dominante para a maioria das manifestações consideradas tipicamente brasileiras como o samba ou a capoeira A redis cussão dos africanismos no Brasil ou da extensão das culturas africanas nas práticas culturais de setores negros e populares tornouse uma nova pauta de pesquisa de antropólogos sociólo gos e historiadores16 Não mais sob a ótica das expressões cul turais negras ou afrobrasileiras mas sim a partir da ação de sujeitos sociais concretos que recriam os patrimônios herdados em diálogo com novos desafios e situações históricas concretas Em meio a esses debates novas abordagens têm criti cado a tendência de definições essencializadas da cultura negra valorizando como fazem Stuart Hall e Paul Gilroy o quanto as identidades culturais são políticas e dependentes das lutas mais amplas contra o racismo e pela implementação de políticas de reparação Os clássicos dos cultural studies têm mostrado o quanto 15 Já nos anos 1970 a fundação do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo por importantes sambistas do Rio de Janeiro e do bloco afro Ilê Aiyê em Salvador anunciava uma nova forma de relação entre cultura política identidade negra eou afrobrasileira 16 Os trabalhos de Robert Slenes para os estudos sobre escravidão são um ótimo exem plo do que estamos afirmando EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 25 10092018 111705 26 são problemáticos esses conceitos reificados do popular suge rindo análises diferenciadas segundo as várias fases históricas o folclore das sociedades préindustriais a cultura popular das classes trabalhadoras dos séculos XIX e XX e a cultura de mas sas da segunda metade do século XX em diante17 O conceito de Atlântico Negro foi desenvolvido por Gilroy justamente para superar o essencialismo América versus África e reintroduzir a ideia de negritude transatlântica e de diáspora africana18 Certamente o documento mais emblemático para mos trar os novos tempos de valorização da cultura negra e da popu lação negra é a lei que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afrobrasileira e africana nas escolas do país Lei 10639 de 2004 Nas Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnicoraciais e para o ensino de história e da cultura afrobrasileira e africana que regulam e dispõem sobre a lei fica evidente o novo contexto de produção e disputa em torno do conceito de cultura negra A cultura negra ou afro brasileira termo oficializado na lei provavelmente em função das preocupações com a valorização das matrizes culturais não europeias19 passa a fazer parte de um movimento maior de afir mação de direitos dos afrodescendentes do reconhecimento e valorização de sua cultura e história A preocupação do docu mento é com a história e a cultura da população negra Claro que esta guinada conceitual e política não resolve todos os impasses e desafios que a adjetivação da cultura como cultura negra ou afrobrasileira pode trazer tais como pensar 17 HALL Stuart Notes on Deconstructing the popular In SAMUEL Raphael Ed Peoples History and Socialist Theory London Routledge Kegan Paul 1981 p 227240 Notas sobre a desconstrução do popular In Da Diáspora identidades e mediações culturais Organização Liv Sovik Belo Horizonte Ed UFMG Brasília UNESCO no Brasil 2003 p 247264 18 GILROY P O Atlântico Negro Rio de Janeiro UCAMEd 34 2001 19 Vale uma investigação mais aprofundada sobre os usos atuais dos conceitos de cul tura negra e afrobrasileira Se os termos podem ser encontrados como intercambiáveis houve uma deliberada preferência no documento das Diretrizes por cultura afrobra sileira A expressão cultura negra raramente é encontrada no texto Mais comuns são expressões respeito às pessoas negras sua cultura e história história e cultura dos negros Em geral no texto das Diretrizes as pessoas e a população são negras a cultura é afrobrasileira Na Lei 10639 são encontradas as duas expressões cultura negra e cultura afrobrasileira EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 26 10092018 111705 27 apenas nas continuidades africanas abrindo mão dos trânsitos culturais e recriações implementadas pelos africanos e seus des cendentes no Brasil Se a valorização das continuidades pode facilitar as avaliações sobre a resistência correse o risco de des prezar o potencial de criatividade e transformação dos sujeitos sociais negros herdeiros do patrimônio africano Da mesma forma o vasto campo de produção de formas de cultura popu lar no Brasil na atualidade não pode mais ser classificado como tradicional nativo muito menos oral como nos tempos de Mello Moraes Nina Rodrigues ou mesmo Artur Ramos Os detentores da cultura popularcultura negra hoje participam também da cultura de massas da escrita e do universo digi tal na internet As fronteiras entre as categorias tradicional e moderno popular e negro ou afrobrasileiro são por tanto embaraçadas e pouco precisas O que Karin Barber escre veu para a cultura popular africana também pode ser aplicado ao Brasil the conceptions of popular circulating today are not just contested and ambivalent simultaneously descrip tive and evaluative but also historically layered and subdivided carrying with them residues of regret for worlds we have lost20 Sem dúvida são inúmeros os desafios para os que se inte ressam em trabalhar com cultura negra na História na pesquisa e no ensino Como escapar dos reducionismos e essencialismos e ao mesmo tempo combater o racismo a partir da valorização da cultura negra ou das culturas negras no plural O próprio Stuart Hall sugeriu que uma boa possibilidade talvez seja diri gir a nossa atenção criativa para a diversidade e não para a homogeneidade da experiência negra apesar da evidente dis tinção de um conjunto de experiências negras comuns21 histo ricamente datadas como a diáspora o racismo e a escravidão 20 BARBER Karin Introduction In Ed Readings in African Popular Culture Oxford James Currey Indiana University Press 1997 p 3 as concepções do popular que circulam hoje não são apenas contestadas e ambivalentes descritivas ao mesmo tempo que avaliativas mas também historicamente superpostas e subdivididas carregando com elas os resíduos da nostalgia dos mundos que perdemos 21 HALL Stuart Que negro é esse na cultura negra In Da Diáspora iden tidades e mediações culturais Organização Liv Sovik Belo Horizonte Ed UFMG Bra sília UNESCO no Brasil 2003 p 346 GILROY P O Atlântico Negro Rio de Janeiro UCAMEd 34 2001 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 27 10092018 111705 28 Cultura popular negra é um lugar contraditório um espaço de contestação estratégica que vale a pena enfrentar22 Os capítulos deste livro são um convite a essa empreitada e pre tendem ser uma contribuição para esses debates e questões a luz de novos trabalhos de pesquisa dos historiadores 22 HALL Stuart What is this Black in Black Popular Culture Social Justice v 20 n ½ p 104114 1993 Que negro é esse na cultura negra In Da Diáspora identidades e mediações culturais Organização Liv Sovik Belo Horizonte Ed UFMG Brasília UNESCO no Brasil 2003 p 335349 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 28 10092018 111705 PARTE I FESTAS DA LIBERDADE EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 29 10092018 111705 30 FESTAS E LUTAS POLÍTICAS DAS FESTAS DO 13 DE MAIO ÀS FESTAS DO QUILOMBO DE SÃO JOSÉ DA SERRA RJ 18882011 Martha Abreu e Hebe Mattos Há pelo menos duas décadas o estudo sobre as festas populares antigamente domínio de folcloristas e antropólogos tem crescido na produção historiográfica brasileira Vistas como locais de encontro janelas para o estudo de uma dada conjun tura caminhos de conflito eou formação de identidades étnicas locais ou nacionais são inúmeros os significados e interpretações que os historiadores têm atribuído às festas Com trabalhos escri tos a partir de correntes da história cultural francesa ou das que não abrem mão de valorizar as lutas sociais em torno da cultura as festas definitivamente ganharam um espaço de reflexão entre os historiadores Por outro lado questões centrais aos estudos da História hoje como o agenciamento dos atores sociais a cons trução de memórias e patrimônios a formação de identidades e representações as aproximações entre política e cultura passa ram a fazer parte dos interesses dos que se dedicam aos estudos sobre as festas em diferentes períodos e regiões1 Entre os poucos consensos que podemos encontrar na historiografia que colocou as festas no centro de suas atenções talvez possa ser destacada a certeza de que as festas pertencem à História e ao nosso domínio de investigação Em decorrência é possível fazer emergir outra certeza a de que as festas nunca tiveram um período único de esplendor em algum local mara vilhoso do passado As festas e tudo o que elas apresentam e representam em nenhum tempo alcançaram unanimidade 1 JANCSÓ István KANTOR Íris Org Festa cultura e sociabilidade na América portuguesa São Paulo Imprensa OficialHucitecEduspFapesp 2001 vol 1 p 516 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 30 10092018 111705 31 Mesmo reunindo em torno de si muitos adeptos e festeiros sem pre atraíram críticos opositores perseguidores ou nostálgicos de outros tempos Conflitos mudanças negociações e memórias compõem a história das festas de todas as festas2 A partir dessas questões especialmente das relações entre festa e identidade entre festa memória e luta política pretendemos trazer ao leitor neste trabalho uma festa de uma pequena locali dade distante do Rio de Janeiro cerca de três horas o Quilombo São José da Serra no município de Valença Apesar de o local ser distante de difícil acesso e muito isolado a repercussão recente dos seus tambores versos e danças tem sido impressionante A festa se realiza todos os anos no dia 13 de maio ou em data próxima e seus festeiros são descendentes da última gera ção de africanos e escravizados do velho Vale do Paraíba cafeeiro Reivindicam hoje o título e os direitos de remanescentes das comunidades dos quilombos a partir do Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Brasi leira de 1988 Depois de mais de 15 anos de luta a vitória e o reconhecimento de suas terras parecem estar próximos3 Embora tenhamos referências diretas de que as festas de 13 de maio acontecem desde a década de 1990 é possível pensar a partir de entrevistas realizadas com os mais velhos e informações de folcloristas que são muito antigas Devem remontar mesmo a maio de 1888 quando já encontramos o jongo como uma das grandes atrações das comemorações pela abolição da escravidão O jongo também conhecido como caxambu pode ser definido em termos gerais como uma dança em círculo acom panhada de tambores palmas e de uma fogueira No centro da roda um casal apresenta as principais evoluções e os velhos jon 2 CUNHA Maria Clementina Pereira Org Carnavais e outras frestas Campinas Edi tora da Unicamp 2002 p 1124 3 A comunidade de São José da Serra é formada por descendentes de uma família de escravos Mantiveramse na terra após a Abolição da escravidão e procuraram garantir ao longo do século XX o acesso à terra à economia camponesa e aos laços familiares Para Hebe Mattos e Ana Rios acionaram uma memória do cativeiro para legitimar a posse de suas terras antes mesmo da aprovação do dispositivo constitucional ao mesmo tempo que deram visibilidade e outros sentidos a antigas práticas culturais de origem africana MATTOS Hebe RIOS Ana Lugão Memórias do cativeiro família trabalho e cidadania no pósabolição Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2004 p 299 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 31 10092018 111705 32 gueiros acompanhados pelo coro dos participantes recitam versos de improviso Para Robert Slenes o jongo do Sudeste apresenta diversos sinais de sua estreita relação com práticas culturais bantus da África Central A região foi a principal área de procedência dos africanos escravizados no Sudeste do Brasil e os chamados povos bantus compartilhavam muitas proximidades linguísticas e religio sas Além de palavras em kikongo e kimbundo a presença das fogueiras e do fogo no jongo remete a elementos simbólicos importantes do culto aos ancestrais As puítas os tambores a dança de casais ao centro da roda assim como os desafios em versos e pontos coloca dos sob a liderança dos mais velhos em linguagem cifrada e meta fórica também foram vistos e descritos por viajantes do século XIX e início do XX na região do Congo e de Angola4 Em São José da Serra o jongo é o momento máximo das comemorações em torno do 13 de maio Um dos versos cantados pelos festeiros sob a forma de ponto de jongo expressa direta mente a importância do marco da Abolição para a comunidade e consequentemente para suas festas Negro no cativeiro Passou tanto trabalho Ganhou sua liberdade No dia 13 de maio5 UMA FESTA PARA NÃO SER ESQUECIDA Apesar de serem pouco lembradas hoje as festas em comemoração ao dia 13 de maio no próprio ano de 1888 foram intensas e marcantes Além das autoridades abolicionis tas parlamentares jornalistas associações de classe e irmanda des o povo das ruas nem sempre de forma muito organizada teriam também comemorado com muita vontade a abolição da escravidão Especialmente para a imprensa abolicionistas e par lamentares segundo os trabalhos de Renata Morais Luiz Gus 4 SLENES Robert Eu Venho de Muito Longe eu Venho Cavando jongueiros cumba na senzala centro africana In LARA Silvia PACHECO Gustavo Org Memó ria do Jongo as gravações históricas de Stanley Stein Vassouras 1940 Rio de Janeiro Folha Seca Campinas Cecult 2007 p 127128 5 MATTOS Hebe RIOS Ana Lugão Memórias do cativeiro família trabalho e cidadania no pósabolição Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2004 p 260 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 32 10092018 111705 33 tavo Cota e Juliano Custódio Sobrinho publicados neste livro as festas acompanhadas de missas discursos poesias e présti tos foram organizadas para não serem esquecidas6 Envolvidas com as disputas entre monarquistas e republi canos as comemorações oficiais ou populares pela Abolição em diversas partes do Brasil percorreram toda a Primeira República e grande parte do século XX De acordo com Petrônio Domingos o marco do 13 de maio foi mantido por diversas organizações clubes irmandades e jornais negros de São Paulo ao longo das primeiras décadas do século XX como um dia importante para reflexões e denúncias sobre a situação dos negros Entre muitos significados também era uma data para atividades culturais encontros festivos e muitos batuques sambas jongos e congadas7 Entretanto mesmo não tendo desaparecido as festas oficiais ou organizadas por lideranças negras acabaram sendo menos lembradas principalmente após o Estado Novo quando o feriado de 13 de maio foi até mesmo suspenso Na década de 1970 o Movimento Negro Unificado MNU e o predomínio de certa interpretação marxista da história acabaram contribuindo para sepultar de vez esse marco como motivo para alguma come moração festiva8 As organizações negras investiram em outra data escolheram o dia 20 de novembro o dia de Zumbi símbolo da resistência e da opressão racial como o dia da Consciência Negra Os historiadores por seu lado passaram a considerar que as leis abolicionistas não eram dignas de comemoração tinham mudado muito pouco a vida dos escravizados e de seus descen dentes Não havia o que comemorar O 13 de maio e a princesa Isabel para esses atores sociais estavam condenados ao desprestí gio e ao consequente desaparecimento como marcos históricos a serem guardados ao menos nos grandes centros na imprensa em geral nos livros didáticos e em muitos textos acadêmicos 6 Consultar também a dissertação de mestrado em História Social de Camila Mendonça Pereira Abolição e catolicismo A participação da Igreja Católica na extinção da escravidão no Brasil UFF 2011 7 DOMINGUES Petrônio Movimento negro brasileiro alguns apontamentos históri cos Revista Tempo Niterói v 12 n 23 p 6 jul 2007 8 O 13 de maio para as organizações militantes negras transformouse em Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo Ibid 2007 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 33 10092018 111706 34 Embora desprestigiadas as festas em torno da Abolição não foram esquecidas em todos os lugares e os tambores do jongo ao longo do século XX e início do XXI não silenciaram nessa data Para os descendentes de escravos do Vale do Paraíba as atuais festas e as referências ao 13 de maio muitas vezes em pontos de jongo passaram a fazer parte do patrimônio cultural festivo religioso e musical de suas comunidades mesmo que tenham adquirido dife rentes e conflituosos significados E desde muito tempo Já em 1888 localizamos comemorações de libertos com batuques termo genérico que nomeava as danças negras e na maioria das vezes se aproximava do jongo do Sudeste como na célebre imagem de Ângelo Agostini para a Revista Ilustrada do Rio de Janeiro em 2 de junho de 1888 Na legenda publicada abaixo da imagem de libertos numa dança de roda o autor explicava que os novos cidadãos após a Abolição entregamse ao mais delirante batuque Em torno da fogueira continuava ardiam os troncos bacalhaus e outros instrumentos de tortura9 O historiador Stanley Stein descreveu o êxodo em massa das fazendas para o interior da velha província do Rio de Janeiro logo após o fim do cativeiro quando muitos libertos dirigiramse para as estradas secundárias parando para per guntar pelos amigos e parentes acampando perto das tabernas de beira de estrada para dançar cantar o jongo e conversar Segundo o autor durante três dias e três noites podiase ouvir os tambores reverberando enquanto libertos regozijavamse com o caxambu um dos tambores do jongo10 Um ano depois do fim do cativeiro o verbete sobre o jongo publicado no dicio nário de Macedo Soares em 1889 citava uma notícia do Jornal do Comércio de 14 de maio daquele ano sobre libertos dançarem alegres jongos em regozijo pelo aniversário da abolição11 9 Revista Ilustrada ano 13 n 499 2 de junho de 1888 p 4 10 STEIN Stanley Vassouras um município brasileiro do café 18501900 Rio de Janeiro Nova Fronteira 1990 p 302303 11 SOARES Antonio J de Macedo Dicionário bibliográfico de língua portuguesa Rio de Janeiro Instituto Nacional do Livro 1954 1889 vol 1 p 256 Maria de Lourdes Borges Ribeiro também faz referência a uma nota no Diário do Comércio do Rio de Janeiro de 14 de maio de 1889 sobre alegres jongos em São Paulo em comemoração pelo aniversário da lei da abolição RIBEIRO Maria de Lourdes Borges O Jongo Rio de Janeiro Ministério da EducaçãoSecretaria da CulturaFunarte 1984 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 34 10092018 111706 35 Algum tempo depois do 13 de maio de 1888 mesmo com todos os problemas enfrentados pelos libertos e os evidentes limites à liberdade as comemorações nessa data com encontros de jongueiros não parecem ter sido interrompidas muito menos esquecidas Para as primeiras décadas do século XX o historia dor Jaime de Almeida em São Luís do Paraitinga estado de São Paulo encontrou registros de jongo ao lado de uma importante mobilização política nos meses de maio de 1916 e 191712 Vários também são os registros de folcloristas para o velho Sudeste escravista em momentos posteriores O músico Luciano Gallet por exemplo registrou um ponto de jongo na década de 1920 numa fazenda perto do Rio Piraí estado do Rio de Janeiro no qual uma rainha ao que tudo indica a princesa Isabel havia ordenado parar o trabalho13 No interior do estado de São Paulo em áreas próximas ao Vale estudantes da USP mobilizados por pesquisadores como Antonio Candido e Lavínia Reynolds na década de 1940 assistiram a festas com jongos próximas ao dia 13 de maio Em 1943 os informantes de Lavínia Reynolds em Tietê estado de São Paulo disseram gostar de batucar no 13 de maio embora também aproveitassem os dias de festas religiosas para o jongo Em 1944 o Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda do Estado de São Paulo DEIP teria registrado um batuque em Vila Santa Maria cidade de São Paulo exata mente no dia 13 de maio quando um informante avisara que o jongo ficava mais animado Alceu Maynard Araújo em São Luís do Paraitinga assistiu a um jongo em 13 de maio de 1947 seriam os mesmos jongueiros de 1916 e 1917 Por sua vez Maria de Lourdes Borges Ribeiro uma das maiores pesquisa doras do jongo registrou um ponto que fazia referência à data do 13 de maio ser dia de grande alegria Bem mais tarde Raul Lody em 1976 foi informado pelo Sr Ermes Silva conhecido 12 ALMEIDA Jaime Foliões e festas em São Luís do Paraitinga na passagem do século 1888 1918 1988 Tese Doutorado em História Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo São Paulo 1988 parte I e III 13 GALLET Luciano Estudos de folclore Rio de Janeiro Carlos Wehrs Cia 1934 p 76 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 35 10092018 111706 36 jongueiro de Campos no estado do Rio de Janeiro sobre as três semanas de alegria e festas com tambor quando a princesa Isabel acabou com a escravidão14 Na década de 1950 o historiador Stanley Stein ainda alcançou significativas lembranças de exescravos sobre a Abo lição articuladas à prática do jongo em Vassouras município do estado do Rio limítrofe ao de Valença No último capítulo de sua obra A abolição e suas consequências para além do drama vivido pelos senhores do café apresentou alguns pontos de jongo cantados por descendentes de africanos Alguns desses pontos ou versões muito próximas ainda podem ser ouvidos no Vale do Paraíba cantados pela própria comunidade de São José da Serra ou por grupos convidados para sua festa como os de Pinheiral e Miracema Entre os pontos de jongo que Stein ouviu e gravou quando fazia a pesquisa sobre a escravidão em Vassouras mui tos estavam diretamente ligados aos acontecimentos do dia 13 de maio e com a própria princesa Isabel identificada também como rainha Eu tava dormindo ngoma me chamou Levanta povo cativeiro já acabou Eu pisei na pedra pedra balanceou Mundo tava torto rainha endireitou15 Outros pontos citados pelo autor além da memória da Abolição ainda evidenciavam atitudes de ousadia e ironia típicas da tradição oral dos pontos de jongo em grande parte marcada pela linguagem cifrada e metafórica Especialmente 14 MATTOS Hebe ABREU Martha Jongo registros de uma história In LARA S PACHECO G Org Memória do Jongo Salvador BA 200 p 7393 15 LARA Silvia PACHECO Gustavo Org Memória do Jongo as gravações históricas de Stanley Stein Vassouras 1940 Rio de Janeiro Folha Seca Campinas Cecult 2007 p 303 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 36 10092018 111706 37 um deles criticava os limites da Abolição e fazia referência à liberdade que não veio completa Dona rainha me deu uma cama Não me deu banco pra me sentar16 Ainda teríamos outros exemplos para mostrar como atra vés da música dos jongos e das festas o dia 13 de maio foi lem brado e comemorado pelos descendentes dos últimos escravos em diferentes locais dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo ao longo do século XX Mas entendo que já reunimos exemplos suficientes para convencer o leitor de quanto a memória da Abo lição e indiretamente da escravidão foi não apenas celebrada mas também justificou e justifica até hoje os encontros que transformaram o jongo e a própria festa em patrimônio cultural dos grupos e comunidades participantes Sem dúvida as festas em torno da Abolição comemoradas nos antigos vales do café com jongos e caxambus podem ser vistas atualmente como um impor tante canal de expressão e de comunicação para os descendentes da última geração de africanos e escravos do Sudeste Sem acesso à terra e à política formal transformaram a prática cultural em local de memória e história a festa em canal de expressão iden titária e política17 As festas de maio do Quilombo São José da Serra são um dos melhores exemplos dessa transformação SÃO JOSÉ DA SERRA NOVOS CAMINHOS DO JONGO Pelo que conseguimos apurar os encontros de maio em São José chegaram a durar mais de uma semana Nos últimos 16 LARA PACHECO 2007 p 305 Outros pontos permanecerão para sempre nas gravações realizadas pelo autor no final dos anos de 1940 Essas gravações podem ser localizadas no CD que faz parte do livro Memória do Jongo organizado por Silvia Lara e Gustavo Pacheco em homenagem ao autor 17 Sobre as relações entre cultura e política e o próprio conceito de cultura política consultar ABREU M SOIHET R GONTIJO R Cultura política e leituras do passado Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2007 Sobre as relações entre festa e ação política no século XIX consultar ABREU Martha VIANA Larissa Festas religiosas cultura e política no Império do Brasil In GRIMBERG Keila SALLES Ricardo O Brasil Império volume III 18701889 Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2009 p 233270 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 37 10092018 111706 38 tempos concentramse em um fim de semana próximo ao dia 13 de maio e continuam a atrair a população de regiões próximas Especialmente depois do reconhecimento da comunidade pelo Incra Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária como remanescente de quilombo no final dos anos 1990 e da atuação de um de seus maiores líderes Antonio Nascimento Fernandes o Toninho Canecão as festas em comemoração ao 13 de maio passaram a sediar verdadeiros festivais de jongo atraindo cen tenas de pesquisadores jornalistas e amantes da música negra tradicional18 além de grupos de jongueiros foliões de reis e calangueiros de outras áreas mais distantes A comunidade de São José da Serra começou a ganhar visibilidade Paralelamente processo que acompanhamos de perto ao longo da primeira década do século XXI novas disputas pelos significados das festas protagonizadas pelos festeiros de São José da Serra demonstram a politização de suas comemo rações e a abertura de novos canais de expressão Primeira mente observamos o intencional deslocamento do marco de 13 de maio para o dia 1º de maio Em segundo lugar a maior valorização das festas de novembro Sob a liderança de Toni nho e a partir de sua participação no movimento negro come çou a ganhar importância a festa da Consciência Negra cele brada nacionalmente em 20 de novembro As festas de maio se em algum local do passado eram vinculadas às comemora ções da Abolição de 1888 e ao consequente papel de destaque da princesa Isabel passaram a ser fixadas em torno do dia 1º de maio em comemoração a São José Operário santo que nomeia a própria fazenda Não é pouco lembrar que o dia 1º de maio é feriado no Brasil em função das comemorações do dia do trabalhador Recentemente entretanto a festa retornou ao marco do dia 13 de maio mas com substanciais modificações em seus sig nificados Pelo que nos foi informado o deslocamento para o dia 1º de maio teria descontentado os mais antigos que tradicional mente também dedicavam esse dia aos Pretos Velhos entidade 18 MATTOS Hebe RIOS Ana Lugão Memórias do cativeiro família trabalho e cidada nia no pósabolição Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2004 p 300 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 38 10092018 111706 39 espiritual dos centros de umbanda e candomblé diretamente rela cionada aos antepassados escravos mais velhos A comunidade de São José da Serra também possui um centro religioso de umbanda que é referência espiritual importante das regiões próximas De fato as festas na comunidade atualmente aconte cem de novo em torno do dia 13 de maio e com força total Pelo que é divulgado oficialmente nos cartazes e convites para a festa mas também pelo que está presente nas falas dos festeiros o Quilombo de São José da Serra comemora em torno do dia 13 de maio a memória dos Pretos Velhos Se o deslocamento do que se comemora é marcado pela tentativa de esquecer o papel da princesa Isabel o passado escravo dos seus avós e bisavós não é esquecido Pelo contrário a associação do dia dos Pretos Velhos com o 13 de maio estabelece uma ponte direta com o tempo do cativeiro com os antepassados escravos e com a data do fim da escravidão Abre ainda novas possibilidades às festas de maio que incorporam através da visibilidade do jongo as bandeiras de luta dessa comunidade de descendentes de escravos como o direito à terra à reparação à sustentabilidade do grupo através do turismo cultural e à valorização de uma identidade negra e afrobrasileira As palavras de Toninho Canecão em entrevista a Hebe Mattos no Labhoi em 2003 quando procurava explicar o pas sado do jongo e seu potencial político através da união e visibi lidade do grupo podem dar uma boa ideia dos significados da festa e do jongo para a comunidade O jongo da Comunidade São José da Serra é uma das coisas que a gente tem consciência que é uma das coisas boas porque o jongo ele foi criado assim no tempo da escravidão então o negro vinha lá de fora da África e quando chegava no Brasil eles faziam tudo pra poder tro car tirar parentesco grau de parentesco Cada um levava para um lugar aí até com língua diferente até dialeto não falava o mesmo para poder complicar a convi vência deles nas comuni nas fazendas E no jongo os negros se organizaram através do cântico Então começa ram a cantar e cantando eles se conheciam através do EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 39 10092018 111706 40 canto e daquilo foi surgindo algum namoro nas lavouras de café E passaram a um confiar no outro E assim foi criado o Quilombo também Porque o jongo ele é um cân tico não decifrável Porque o cara cantava combinava quem ia fugir como ia fugir quando iria fugir com quem iria fugir Mas os feitores que ficavam o dia todo nas lavouras de café não tomavam conhecimento daquilo Aí foi indo com o passar do tempo aí foi criando os quilom bos Veio o dos Palmares depois vem outros quilombos como hoje é o de São José da Serra Mas eu vejo também a salvação disso tudo é o jongo A gente vem aqui no Rio amanhã mesmo a gente vai ficar aqui no Banco do Brasil isso aí deixa o pessoal da comunidade muito otimista porque lá no distrito de Santa Isabel ninguém viaja mais do que a comunidade de São José da Serra E eu deixo eles bem conscientes por que isso Por causa do jongo é o carrochefe E para que tenha o jongo tem que ter o quê União Sem união não pode O jongo não canta sozinho e nem dança sozinho precisa de um grupo Então é isso que a gente está traba lhando muito com as crianças amanhã nós vamos estar aí com crianças dançando o jongo até criança de seis anos cinco anos tem criancinha lá que está com dois anos e já sabe bota lá e a gente já deixa É um troço que no passado não podia mas a gente deixa porque eu acho que o salvador da comunidade vai ser o jongo19 Em algum mês de 2003 conheci São José da Serra Hebe Mattos convidoume para acompanhála em uma visita ao Qui lombo onde sua turma de História Oral realizaria entrevistas com os descendentes da última geração de escravos daquela loca lidade Além de nossa amizade o convite deviase ao fato de que eu estava estudando jongos lundus e batuques mas no século XIX Hebe Mattos havia concluído em 1998 o relatório exigido pelo Incra Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária para atestar a legitimidade das demandas da comunidade que se 19 MATTOS Hebe ABREU Martha Jongo registros de uma história In LARA S PACHECO G Org Memória do Jongo Salvador BA 200 p 104105 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 40 10092018 111706 41 intitulava agora remanescente das comunidades quilombolas pelas ter ras da Fazenda São José e pretendia aprofundar a pesquisa sobre suas relações familiares e presença de memórias do cativeiro Há algum tempo conversávamos sobre a comunidade e especialmente sobre a presença do jongo ali uma expressão cultural que já não mais imaginava existir nas antigas terras escravistas do Sudeste Muito menos que logo depois em 2005 o jongo através de uma solicitação exatamente de São José da Serra e do jongo do Morro da Serrinha de Madureira subúrbio da cidade do Rio de Janeiro receberia o título de patrimônio cultural do Brasil a partir do Decreto 3551 de 2000 pelo Insti tuto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Iphan20 Eu era uma pesquisadora das festas do século XIX e fazia exatamente um levantamento de fontes e de bibliogra fia sobre os jongos Assídua leitora dos folcloristas do final do século XIX e início do XX e evidentemente influenciada por eles havia imaginado que o jongo tinha mesmo desaparecido em algum momento do século XX como tinham previsto tantos folcloristas Grande equívoco Quando assisti pela primeira vez à festa de maio em 2005 pude ter a certeza de que algo estava realmente mudando e o silêncio reservado e imposto ao jongo e aos jongueiros do Sudeste pela bibliografia especializada fossem folcloristas antropólogos ou historiadores estava sendo quebrado Como constatamos depois nossa pesquisa teve o privilégio de acom panhar o movimento de emergência de novas comunidades quilombolas jongueiras e negras no velho Sudeste escravista E um dos melhores canais para a quebra desse silêncio que pode ser também entendido como um movimento de desgue tificação foram exatamente as festas de maio em São José com jongos seguidos de perto por calangos e folias de reis como veremos21 O valor hoje atribuído ao jongo de patrimônio de um grupo e de uma nação demonstra contundentemente o quanto 20 ABREU Martha Cultura imaterial e patrimônio histórico nacional In ABREU M SOIHET R GONTIJO R Cultura política e leituras do passado Rio de Janeiro Civiliza ção Brasileira 2007 p 357 21 MATTOS Hebe RIOS Ana Lugão Memórias do cativeiro família trabalho e cidada nia no pósabolição Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2004 p 288289 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 41 10092018 111706 42 estamos distantes dos primeiros registros e avaliações letradas sobre este tipo de manifestação cultural No século XIX auto ridades governamentais e viajantes estrangeiros costumavam denominar os jongos de batuques atribuindolhes marcas racis tas costumeiramente associadas aos africanos danças bárbaras música selvagem e rude maneiras selvagens e grotescas22 Em 1892 o letrado Coelho Neto 1864 1934 numa crônica no jornal O Paiz no dia 1º de janeiro depois de assistir a uma celebração em uma fazenda de Vassouras pela passagem do ano definia o jongo como a dança de africanos triste na sua brutalidade e na sua monotonia selvagem e bárbara como a terra da sua origem Era uma dança do exílio uma representação saudosa da pátria longínqua No momento em que escrevia Coelho Neto era categórico quanto ao seu fim e sentenciava que agora se ouvia cada vez menos o Caxambu e só de longe era possível ouvir seu rugir no fundo de algum vale Para o autor já não havia mais odiosidades e a tristeza teve o seu final Os gritos guturais estavam sendo esquecidos pois os africanos adotaram o nosso Deus e relegaram os instrumentos da África preterindoos pelo trombone e pela flauta Na avalia ção do autor iam apagando a dolorosa tradição do exílio A aposta de Coelho Neto no esquecimento da África no Brasil apesar de ter sido em parte derrotada acabou fazendo longa carreira em trabalhos de folcloristas e musicólogos que torciam anima damente para o surgimento de uma música mestiça e popular fruto da interação das três raças formadoras até um período avançado do século XX23 Nos anos 30 e 40 do século XX se os folcloristas chega ram a reconhecer a persistência do jongo motivo então do regis tro muitas vezes em dias próximos ao 13 de maio como vimos reforçaram a certeza de que estava condenado ao enfraqueci mento e à invisibilidade em termos do número de dançarinos 22 MATTOS Hebe ABREU Martha Jongo registros de uma história In LARA S PACHECO G Org Memória do Jongo Salvador BA 200 p 175178 23 O próprio Coelho Neto estabeleceu um outro local para o jongo no teatro de revista SOUZA Silvia Cristina Martins de Carpinteiros teatrais cenas cômicas e diversidade cultural no Rio de Janeiro Londrina Eduel 2009 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 42 10092018 111706 43 inspiração musical e poética24 Jamais alcançaria os dias de hoje como patrimônio de algum grupo muito menos da nação brasi leira Até mesmo para Stanley Stein a perda parecia inevitável Numa nota de pé de página avaliou que a tradição do caxambu sobreviveu em Vassouras embora esteja rapidamente desaparecendo à medida que os antigos escravos se tornam poucos25 Em nossa avaliação os prognósticos sobre o desapareci mento do jongo acompanharam de perto e talvez seja mesmo um sintoma o desinteresse por pesquisas sobre os descendentes de escravos nos velhos vales do café do Sudeste suas lutas sociais políticas e culturais depois do 13 de maio como a historiografia já vem denunciando há algum tempo Através de tintas mais fortes podemos dizer que esses prognósticos assim como a desqualifi cação da riqueza poética dos versos de jongo e dos jongueiros26 relacionamse diretamente com a exclusão imposta aos libertos no pósAbolição e com o silêncio sobre sua história Em nosso ver esquecer determinada história e patrimônio é de alguma forma contribuir para a guetificação de grupos e de suas expressões cul turais Como duas faces de uma mesma moeda o jongo foi escon dido e os jongueiros também procuraram se esconder Para além da quebra do silêncio do jongo e da visibili dade que ganharam os jongueiros no século XXI emblematica mente a partir das festas de São José é importante propor e pen sar que o jongo de fato nunca morreu Escondido e guetificado permaneceu protegido por famílias de jongueiros no fundo dos quintais dos subúrbios de pequenas e grandes cidades em sítios e fazendas onde se isolava e era isolado27 Continuou como um patrimônio familiar passado de pai para filho e não foi esque cido assim como a data da abolição da escravidão 24 RAYMOND Lavínia Costa Algumas danças populares no Estado de São Paulo Boletim n 191 Sociologia n 6 Faculdade de Filosofia Ciências e LetrasUSP São Paulo 1954 p 20 25 LARA Silvia PACHECO Gustavo Org Memória do Jongo as gravações históricas de Stanley Stein Vassouras 1940 Rio de Janeiro Folha Seca Campinas Cecult 2007 p 244 26 Essa desqualificação sobre os versos pode ser encontrada em trabalhos de diversos fol cloristas como Luciano Gallet Mário de Andrade e Renato Almeida Claro que pode mos citar folcloristas que chegaram a perceber força dos versos e registraram com sensi bilidade as festas de jongo como Lavinia Raymond e Maria de Lourdes Borges Ribeiro 27 OLIVEIRA Luana Jongo no sudeste patrimônio imaterial e políticas públicas In ENECULT 6 Salvador Salvador FacomUFBa 2010 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 43 10092018 111706 44 Festas de batuque jongos e caxambus nas antigas fazendas de café ocuparam um espaço fundamental de luta para escravos e libertos ao longo do século XIX Era algo pelo qual valia a pena lutar28 Ao lado da defesa da família do acesso à terra e à própria liberdade as reuniões festivas com batuques estiveram na pauta das reivindicações de escravos e assim continuaram entre seus descendentes Tornaramse local fundamental de encontro e fortalecimento das comunidades tornaramse patrimônio do grupo embora tenham sido perse guidas por autoridades e desvalorizadas por diversos folcloris tas e letrados que chegaram a assistir a algumas apresentações No final do século XX e início do XXI novas deman das dos movimentos negros como as ações afirmativas o direito à identidade quilombola e à diversidade encontraram as festas de São José em processo de importante transformação Ambos potencializaram suas ações o patrimônio cultural festivo ganhou novas dimensões políticas e culturais os movimentos negros encontraram novas formas de luta e afirmação identitária atra vés da valorização de expressões culturais29 Para além do jongo essas transformações podem também ser sentidas em outros tra balhos deste livro a partir das festas do congado festas do boi e maracatus em diferentes locais do Brasil UMA GRANDE FESTA Era 2005 quando compareci pela primeira vez a uma festa em São José da Serra Lembrome bem de uma fantás tica e estrelada noite de maio numa área rural do município de Valença já quase Minas Gerais Ao nosso lado turmas de gra duação da Universidade Federal Fluminense UFF e centenas de visitantes de fora da região atraídos pela novidade da visita 28 AGOSTINI Camila Africanos no cativeiro e a construção de identidades no AlémMar Vale do Paraíba século XIX 2002 Dissertação Mestrado em História Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Estadual de Campinas Campinas 2002 29 MATTOS Hebe ABREU Martha Quilombos contemporains Mémoire de les clavage culture afrobrésilienne et citoyenneté au Brésil In SAILLANT F BOU DREAULTFOURNIER A Org Afrodescendances Cultures et Citoyenneté Quebec Pres ses de lUniversité Laval 2012 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 44 10092018 111706 45 a um quilombo onde se dizia dançar e cantar versos do tempo dos escravos Sem dúvida não era fácil explicar para os alu nos e interessados que aquele local da festa apesar de algumas impressões era muito diferente do ambiente do século XIX quando não havia campo livre para o gado ou para a presença de uma comunidade isolada como a de São José Naquele tempo o café ocupava todo o mar de morros da região a ferrovia cor tava os caminhos e o movimento dos trabalhadores escravos e mercadores era significativo Hoje de uma forma impactante o celular não tinha sinal a luz havia chegado há pouco e as casas dos quilombolas eram de pau a pique com chão de terra e quintal cheio de gali nhas e flores 16 casas cerca de sete dezenas de habitantes em 2003 As pequenas casas espalhavamse e espremiamse entre a base da montanha como uma espécie de moldura e o largo vale onde o proprietário oficial das terras gostava de expor as cercas de arame e alguns bois De longe era difícil ver as casas de pau a pique indicando mesmo que a comunidade recons truíra suas casas após a Abolição em local que também servia de refúgio e esconderijo escondiase e era escondida de novo duas faces da mesma moeda Numa área comum de terra batida ao redor de um largo terreiro acontecia a festa Bem ao lado erguiase a igrejinha um barracão coberto a cozinha e duas pequenas salas de aula Lâmpadas acesas penduradas davam o clima de festa do interior Desde o almoço em que foi saboreada uma deliciosa fei joada eu e Hebe Mattos estávamos impressionadas com a che gada de vários grupos de jongo e de folias de reis30 num lugar muito distante do asfalto e de difícil acesso Formados majori tariamente por negros os grupos pareciam vir de muito longe Em pouco tempo identificamos grupos de municípios próximos como Barra do Piraí e Pinheiral e até mesmo de outros rincões de Valença Outros se deslocavam de locais mais distantes como 30 Grupos que percorrem diversas regiões do Sudeste por devoção aos santos reis espe cialmente o rei negro entre os meses de dezembro e janeiro mas também fazem apre sentações em outras épocas do ano BITTER Daniel A bandeira e a máscara a circulação de objetos rituais nas folias de reis Rio de Janeiro 7 Letras 2010 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 45 10092018 111706 46 Bracuí Angra dos Reis Santo Antonio de Pádua e Quissamã Eles vinham do norte e noroeste do estado do Rio e até do litoral Os calangos dança de casal e música com sanfona viola e pandeiro aconteciam nos intervalos das apresentações dos jongos ou entre uma e outra visita das folias de reis no barracão coberto e movimentadíssimo Os festeiros demonstravam gostar muito dos bailes de calango Preciso confessar que de início fize mos uma avaliação completamente equivocada dos calangos Achávamos que era uma pobre e distorcida imitação dos forrós nordestinos e que atrapalhavam o que acreditávamos ser os tra dicionais e autênticos jongos Em breve iríamos descobrir que os calangos também faziam parte do conjunto de expressões musi cais e poéticas negras patrimônio dos descendentes de escravos da região De uma forma próxima aos jongos e às folias de reis os calangos e seus versos são praticamente desconhecidos31 Ao longo da festa crescia a minha sensação de surpresa e emoção Parecia evidente como confirmamos depois que todos eram descendentes de escravos e representantes do campesinato negro que emergiu a partir da Abolição como os festeiros da comunidade de São José da Serra Traziam consigo e com muito orgulho a herança de seus antepassados as memórias do cativeiro e das lutas do pósabolição através de versos desa fios danças músicas e orações para os santos reis Cada grupo que chegava com sua folia jongo ou instrumentos do calango32 parecia abrir uma janela de sua própria história ao representar um determinado passado renovado no novo contexto da festa e das lutas políticas dos últimos 20 anos Como em muitas outras festas ali se encontram o passado o presente e o futuro No palco central a identidade negra e quilombola de São José e seus planos para o futuro Em meio à surpresa logo passamos a fazer várias per guntas impossíveis de serem rapidamente respondidas Onde 31 Sobre as relações entre o Calango e o Samba de Partido Alto consultar o Dossiê das Matrizes do Samba Carioca p 4951 Coordenação de Nilcemar Nogueira Disponível em httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonioDossieDossieSambaRJpdf Acesso em 10 maio 2015 32 Para maiores informações sobre jongos calangos e folias de reis consultar a página httpwwwhistoriauffbrjongos Acesso em 10 maio 2015 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 46 10092018 111706 47 estavam ou estiveram esses grupos até agora Por que historia dores da escravidão e da cultura pouco ou nada sabiam sobre essas festas e expressões Por que essas pessoas ficaram invisíveis tanto tempo ou teriam sido invisibilizadas Rapidamente nossas perguntas multiplicaramse O que estavam todos fazendo ali Como se conheciam De onde estavam saindo Por que se encontravam dessa forma Por que nunca tínhamos ouvido falar desses encontros e da existência do jongo e folia de reis em local tão próximo à cidade do Rio de Janeiro E o calango Por que não conhecíamos a ação cultural e política dos libertos e suas lutas no período após a Abolição Apesar de tantas perguntas eu e Hebe Mattos consegui mos perceber que para aquelas pessoas não havia muita novi dade no que ali estava acontecendo Todos pareciam conhecer essa forma de comunicação na festa Expressavamse e comu nicavamse através de uma linguagem cultural e festiva muito conhecida por todos Em meio a particularidades os jongueiros podiam participar e sabiam entrar na roda de jongo dos outros grupos também acompanhavam com facilidade as evoluções e desafios em versos dos grupos de folia de reis que chegavam de tempos em tempos Bem diferente da plateia os festeiros conhe ciam e entendiam as disputas e os desafios dos versos de calango Pareciam conhecer e compartilhar todas aquelas atrações Não demoramos a entender que precisávamos organi zar um novo projeto de pesquisa a partir das festas do Quilombo de São José Além de nossos interesses individuais de pesquisa apresentamos um projeto à Petrobras Cultural em 2005 no Edital Cultura Imaterial Jongos calangos e folias memória e música negra em comunidades rurais do Rio de Janeiro A base desse projeto além da festa a que assistimos era a pesquisa já consolidada por Hebe Mattos e Ana Lugão Rios sobre a memória do cativeiro de descendentes da última gera ção de escravos do Vale do Paraíba em especial de São José da Serra e a emergência do campesinato negro após a Abolição O livro Memórias do cativeiro havia acabado de ser publicado e finalizávamos nossa primeira escrita videográfica da história a EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 47 10092018 111706 48 partir do próprio livro e de novas entrevistas em São José da Serra33 Com os trabalhos de referência de Ana Lugão Rios e Hebe Mattos questões específicas sobre o pósAbolição como o trabalho na roça a organização familiar a mobilidade espacial as lutas e os direitos dos trabalhadores no campo começavam a ganhar a devida atenção no Brasil como problema historiográ fico Tratavase de amplificar tal experiência e articular tudo isso com as lutas atuais pela terra com a emergência da identidade quilombola com as festas e finalmente com os jongos calangos e folias a que tínhamos assistido em São José da Serra O maior objetivo do projeto foi então o inventário e o registro das expressões musicais negras no estado do Rio de Janeiro bem como a memória e a história das comunidades protagonistas das expressões culturais em foco Paralelamente nos comprometemos com a criação de um centro de pesquisa e referência audiovisual a partir das gravações e filmagens produzidas pelo projeto e com a produção de mais um DVD que contasse a história das comunidades e dos jongos calan gos e folias Entendíamos que os historiadores da escravidão das relações raciais e da música negra poderiam contribuir para tanto fornecendo subsídios para a compreensão da his tória dessas expressões musicais desde pelo menos as últimas décadas da escravidão O projeto também pretendia preencher uma lacuna sobre a produção musical negra no Rio de Janeiro A história da música no Brasil possuía e ainda possui pou cos estudos historiográficos e suas principais versões ainda são comprometidas com determinadas visões da identidade nacio nal mestiça brasileira34 UMA PESQUISA E UM FILME JONGOS CALANGOS E FOLIAS Como todo bom projeto organizamos um levantamento bibliográfico sobre as expressões culturais e sobre as regiões dos 33 O filme Memórias do Cativeiro pode ser visto em httpufftubeuffbrvideo M2GWDYGDBYU7MemC3B3riasdoCativeiro Acesso em 10 maio 2015 34 O filme também foi pensado para atender a finalidades didáticas no âmbito das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana aprovadas em 2003 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 48 10092018 111706 49 entrevistados hoje disponível online 35 que confirmou a inexpres siva produção a respeito dos descendentes de escravos e seu patri mônio cultural no Rio de Janeiro Suas histórias tinham mesmo sido negligenciadas ou esquecidas Começamos então a pesquisa propriamente dita a partir dos contatos que fizemos na festa de São José da Serra ou a partir de alunos e exalunos do curso de história que tinham vínculos familiares nas áreas em foco como Luana Oliveira de Barra do Piraí Liliane Brito de Cabo Frio e Antonio Carlos Gomes da Baixada Fluminense Os conhecimen tos anteriores com Toninho Canecão líder do Quilombo de São José da Serra entrevistado por Hebe Mattos para a realização do relatório do Incra e com Délcio Bernardo exaluno do curso que costumamos ministrar no Penesb Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade BrasileiraUFF36 e liderança jongueira de Angra dos Reis foram fundamentais para chegarmos mais perto dos grupos que conhecemos na festa Pelo local de origem desses grupos ficou evidente que pre cisaríamos de muitos recursos para a realização de viagens pois nossa pesquisa teria de ser realizada em uma área muito ampla do estado do Rio de Janeiro A partir do litoral norte e sul do estado Búzios Quilombo da Rasa e Campos Novos e Angra dos Reis Quilombo do Bracuí e Mambucaba seguiríamos em direção ao antigo vale do café o Vale do Paraíba para as localidades de Barra do Piraí Pinheiral Arrozal São José da Serra e Duas Bar ras e retornaríamos pela Baixada Fluminense especialmente no município de Mesquita já bem perto da cidade do Rio de Janeiro Ao todo teriam de ser percorridos mais de quatro mil quilômetros num prazo de 12 meses entre o final de 2006 e ao longo de 2007 Através da história oral começamos a registrar a memó ria e a trajetória dos grupos e de suas atividades festivas e musi cais Para isso realizamos entrevistas com equipamentos de fil magem e organizamos genealogias reconstituídas através dos depoimentos orais Quando possível levantamos registros de 35 Consultar httpwwwhistoriauffbrjongosacervo Acesso em 10 maio 2015 36 O PENESB Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira é um espaço de educação continuada para profissionais docentes sob a temática Educação para as Relações ÉtnicoRaciais desenvolvido pela Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 49 10092018 111706 50 nascimento óbito e inventários das antigas fazendas O roteiro de pesquisa envolveu entrevistas com os mais antigos e com os prin cipais jongueiros foliões de reis ou calangueiros das comunida des visitadas Tudo começava com as perguntas sobre a família região de origem e levantamento dos antepassados e parentes Em seguida sobre jongos calangos e folias Como aprenderam Quando faziam O que significavam para o grupo Tentávamos articular história social com história cultural e política Genea logias familiares com patrimônio cultural Realizamos também filmagens das principais festas e manifestações musicais Uma das tarefas mais difíceis da pesquisa foi delimitar as áreas em foco pois cada grupo com que entrávamos em contato nos indicava outro grupo Alguém sempre conhecia um jon gueiro calangueiro ou folião em região bem próxima Evidente mente não conseguimos cobrir todas as indicações e referências que recebemos Não alcançamos o norte e o noroeste do estado nem a própria cidade do Rio de Janeiro onde na Serrinha em Madureira o grupo de jongo de Tia Maria com raízes familia res em Valença município do Quilombo de São José da Serra realiza ainda hoje importante trabalho cultural e social com o jongo37 Em diversos morros cariocas sabemos da chegada de migrantes do Vale do Paraíba nas primeiras décadas do século XX Com seus jongos calangos e folias ajudaram a fundar as principais escolas de samba da cidade A equipe precisou ser grande alunos de iniciação cien tífica alguns da área de cinema e comunicação especialistas em filmagens edição e produção de viagens e filmes Na volta de cada visita às comunidades fazíamos reuniões para ouvir os relatos e alguns depoimentos selecionados Cada fita gravada tinha seu conteúdo decupado em função de nossos interesses de pesquisa local da gravação nome do entrevistado expressões culturais em foco memória do cativeiro experiências de traba lho no campo migrações familiares genealogias etc Todo esse material encontrase hoje disponível online em nosso acervo38 37 Disponível em httpwwwjongodaserrinhaorgbrv2indexhtm Acesso em 10 maio 2015 38 Disponível em httpwwwhistoriauffbrjongosacervo Acesso em 10 maio 2015 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 50 10092018 111706 51 Em cada reunião as discussões eram intensas e rapida mente nossas suspeitas ou hipóteses ganharam corpo Todos os depoimentos registrados em diferentes e distantes locais do sul ao norte do estado do Rio de Janeiro do interior ao litoral evidenciavam a relação do grupo com a memória da escravi dão e com as lutas do pósAbolição Em todos os depoimentos muita emoção em histórias de vida que vinham à tona através de lembranças familiares saudades de amigos tempos da infância festas momentos de alegria e sofrimento Aos poucos coletivamente ao discutirmos todas as entrevistas comparandoas no tempo e no espaço o roteiro do filme foi ganhando contornos teóricos e geográficos Em 2007 estávamos prontos para fechar o roteiro básico de escrita da História em vídeo Selecionamos a partir de quase 200 horas de entrevistas as que não poderiam ficar de fora e realizamos algumas filmagens finais De uma forma próxima ao que faze mos para construir um artigo ou um livro passamos a escolher os trechos das entrevistas que seriam citados de uma forma mais longa No caso do filme a qualidade da imagem e do som pesava no argumento e na seleção das imagens A editora do filme Isa bel Castro também passou a ter um papel fundamental de coau tora do próprio filmetexto Claro Isabel realizava os cortes da longa pesquisa com imagens e depoimentos audiovisuais Ainda em 2007 fizemos um prélançamento com a presença das prin cipais lideranças das comunidades com o objetivo de termos a aprovação do material No final do ano lançamos no teatro da Universidade Federal Fluminense UFF nosso segundo DVD39 O roteiro do filme foi em grande parte inspirado no próprio trajeto da pesquisa e em diálogo com o movimento dos africanos aqui chegados e dos seus descendentes A primeira parte do filme então referese ao litoral do estado Sul e Norte ponto de desembarque dos últimos africanos chegados como escravos no Brasil e apresenta as comunidades quilombolas do Bracuí em Angra dos Reis e da Rasa em Búzios A segunda 39 O filme Jongos Calangos e Folias pode ser visto em httpufftubeuffbr video9RBAHO8O6474JongosCalangoseFoliasMC3BAsicaNegraMem C3B3riaePoesia Acesso em 10 maio 2015 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 51 10092018 111706 52 parte sobe a Serra do Mar chega ao Vale do Paraíba o velho vale do café no século XIX para onde se dirigiu a maioria dos recémchegados Ali são entrevistados representantes das comu nidades de Barra do Piraí Quilombo São José da Serra e Duas Barras A terceira e última parte desce a serra e atinge a Baixada Fluminense especialmente Nova Iguaçu Mesquita Duque de Caxias e São João do Meriti para onde muitos exescravos e seus descendentes se dirigiram no pósAbolição em diferentes momentos do século XX na busca por melhores oportunidades de trabalho Para o argumento central do filme a pergunta formu lada na festa de São José voltava a ganhar papel central o que todos os grupos tinham em comum O filme registra como dife rentes regiões do estado do Rio de Janeiro estão marcadas pela presença expressiva da população negra descendente da última geração de escravizados e identificada na prática ou na memó ria com jongos calangos e folias Em distantes regiões narrati vas coincidentes Em diferentes locais versos desafios e impro visos estruturam a forma de cantar contar histórias e festejar Recorrentes são as histórias e memórias sobre antepassados escravos e africanos muitos desembarcados ilegalmente após 1831 e 1850 Recorrentes são os sentimentos sobre a luta pela terra sobre o duro trabalho camponês sobre pais mães e avós jongueiros calangueiros e foliões sobre a alegria dos encontros para essas expressões e sobre o respeito aos mais velhos sempre chamados de grandes jongueiros e grandes calangueiros Coincidentes são as trajetórias dos que ficaram próximos aos locais de trabalho de seus pais e avós ou dos que realizaram migrações para novas áreas de trabalho algumas até bem mais distantes como a Baixada Fluminense e os morros cariocas Marcantes também são as histórias de discriminação racial e de exclusão ao lado do fortalecimento da identidade negra No filme essas histórias são reveladas através de desafios verbais entre pretos e brancos e de versos que expressam o orgulho de ser negro ou afirmam que a liberdade não foi de nosso jeito A melhor de todas as histórias contadas em variadas versões por EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 52 10092018 111706 53 diferentes grupos valoriza a presença do rei negro às vezes chamado de Belchior outras de Baltazar ante os outros dois famosos reis magos brancos Em torno da visita a Jesus recém nascido data comemorada no dia 6 de janeiro o Rei Negro teria chegado primeiro apesar dos esforços dos outros reis que usam estratégias não muito corretas para conseguirem chegar antes dele Em relação à memória do cativeiro também está presente no filme uma impressionante tradição oral envolvendo histórias de antigos senhores seus castigos riquezas doações de terras a exescravos e ações no tráfico ilegal da qual as histórias do Quilombo do Bracuí são exemplares40 Sem dúvida se toda essa história pode ser contada hoje é somente porque continuou presente na performance das fes tas e no impressionante repertório das danças músicas e versos de jongos calangos e folias O título do filme Jongos Calangos e Folias Música Negra Memória e Poesia revela exatamente esse complexo cultural construído coletivamente ao longo dos sécu los XIX XX e XXI Jongos calangos e folias apresentam evidentes marcas africanas como os tambores as batidas e os versos de desafio e improviso centroafricanos presentes nas três expressões Mas não só São visíveis e muito fortes até mesmo nos jongos as marcas crioulas como as sanfonas dos calangos e folias e os improvisos em língua portuguesa dos jongos e as matrizes cató licas com a presença dos santos reis e de versos e festas para São Pedro São Benedito e Nossa Senhora do Rosário Jon gos calangos e folias possuem muitos trânsitos e aproximações culturais e musicais Afinal foram criados e construídos pelos mesmos atores sociais Nesse sentido revelam um complexo cul tural uma gramática e um repertório comuns expressos prin cipalmente numa belíssima estrutura poética de versos desafios 40 Sobre essas histórias produzimos nosso quarto e último filme Passados Presentes Memória Negra no Sul Fluminense 2011 Direção de Hebe Mattos e Martha Abreu Disponível em httpwwwlabhoiuffbrpassadospresentesfilmespassadosphp Acesso em 10 maio 2015 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 53 10092018 111706 54 e improvisos41 Trânsitos culturais evidentes contrastam com a emergência de uma poderosa identidade negra42 Descobríamos muito mais do que tínhamos imaginado Voltando a São José podemos concluir que suas festas podem ser entendidas como a expressão mais visível desse uni verso cultural social e geográfico muito mais amplo Indepen dentemente de nossas perguntas a festa permitia que os descen dentes da última geração de escravizados dos vales do café falas sem do passado e do presente através de versos e desafios de seu próprio mundo Mais ainda a festa permitia que os jongueiros calangueiros e foliões de reis se tornassem visíveis mesmo que isolados em seus municípios mesmo que em meio a dificílimas condições de vida e trabalho mesmo que ainda longe de terem a certeza da titulação de suas terras eou da valorização de seu patrimônio cultural Chegar aos dias de hoje com jongos calan gos e folias era também uma forma de afirmar seus direitos de organização encontro e diversão em função de seus próprios santos e valores danças e músicas A festa tornavase um efetivo exercício de seu patrimônio CONSIDERAÇÕES FINAIS AINDA UMA NOTA SOBRE OS JONGOS E OS JONGUEIROS Sem dúvida entre jongos calangos e folias os jongueiros conseguiram atribuir um valor simbólico e político mais significa tivo a essa prática Mesmo que transitem entre calangos e folias de reis ou que tenham sido grandes calangueiros e palhaços de folias como o Sr Manoel Seabra de São José da Serra é o melhor exem 41 Também faz parte desse complexo cultural o jogo do pau um jogo de combate envolvido diretamente com os desafios e bailes de calangos O jogo do pau articula a herança africana as experiências do cativeiro e as redes de sociabilidade no pósabo lição O conhecimento do jogo do pau abre novas pistas para a história da capoeira no Sudeste Versos e Cacetes O jogo do pau na cultura afrofluminense 2009 é o terceiro filme produzido pelo Labhoi com direção e roteiro de Matthias R Assunção e Hebe Mattos Disponível em httpufftubeuffbrvideoG2SY2DSB1KSSVer soseCacetesOjogodopaunaculturaafrofluminense Acesso em 10 maio 2015 42 Há um fértil debate historiográfico no campo cultural em torno das possíveis conti nuidades africanas africanismos ou inovações culturais denominadas de crioulização PRICE Richard O milagre da crioulização retrospectiva Estudos AfroAsiáticos Rio de Janeiro v 25 n 3 2003 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 54 10092018 111706 55 plo os jongueiros e consequentemente o jongo ganharam hoje maior visibilidade especialmente depois do título de Patrimônio Cultural do Brasil recebido em 2005 concedido pelo Iphan Ins tituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Mas mesmo antes do recebimento do título já era visível o aumento da presença do público e de muitos especialistas nas festas de São José da Serra Antropólogos músicos cineastas pro dutores culturais e até mesmo historiadoras como as autoras deste texto ficavam fascinados pelo jongo entendido como expressão das raízes africanas da música negra e do samba Calangos pro váveis imitações dos forrós e folias ícones da tradicional domina ção católica não exerciam grande atração para os que vinham de fora como já fiz referência A mobilização para a visita a São José girava mesmo em torno do jongo E a comunidade rapidamente entendeu isso apesar de nunca ter cancelado ou desprezado as apresentações de calango e folias de reis em suas festas Vale sublinhar contudo que não foram os especialistas os responsáveis pelo início da mobilização em torno do jongo Os próprios jongueiros começaram toda essa história e escolheram o jongo e não os calangos ou folias de reis como canal de encon tro e mobilização política E essa não parece ter sido a primeira vez pelos registros anotados por Jaime de Almeida entre os anos de 1916 e 1917 como evidenciamos no início deste texto Os primeiros encontros de jongueiros começaram em meados da década de 1990 antes do decreto de 2000 sobre os direitos dos detentores do Patrimônio Imaterial e do título de 2005 Em 2000 foi organizada a Rede de Memória do Jongo que rapidamente começou a reunir um razoável número de comu nidades jongueiras Nessa mesma década São José da Serra iniciou sua demanda pela terra e pela afirmação de uma identi dade quilombola Só depois desses movimentos dos jongueiros é que surgiram os especialistas os historiadores e muitos outros técnicos e profissionais da educação e da cultura com as novas políticas públicas como o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial 2000 e as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e cul tura afrobrasileira e africana 2004 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 55 10092018 111706 56 Precisamos confessar que nossos projetos com as comunida des jongueiras seguiram em frente não apenas em função de nosso interesse acadêmico específico em escravidãopósAbolição eou cultura e música negra Obviamente sabemos que nossa presença ou produção acadêmica estimula memórias reforça recordações e incentiva narrativas Mas são as próprias comunidades jongueiras que levam essas histórias adiante com apoio de outros especialistas e acesso direto a financiamentos De fato as comunidades jonguei ras procuram recontar e tornar visíveis suas histórias e patrimônio a despeito de nossa presença ou interesse Certamente não temos o monopólio de suas histórias muito menos somos seus únicos inter locutores Entretanto já fomos muito longe Não é mais possível desistir de acompanhar todo esse movimento dos descendentes de escravos do velho Vale do Paraíba Nossos projetos seguiram em frente com a produção de entrevistas com jovens lideranças e com a produção de novos filmes lançados em 2009 e 2011 Versos e Cace tes o Jogo do Pau na Cultura AfroFluminense e Passados Presentes Memória Negra no Sul Fluminense43 Desde a festa a que assistimos em 2005 sem dúvida muita coisa aconteceu Grupos de jongueiros ao emergirem em diversos locais de São Paulo Rio de Janeiro Minas Gerais e Espí rito Santo mostraram para os próprios jongueiros a extensão do jongo no Sudeste suas aproximações e diversidades Articula ramse no Pontão de Cultura do Jongo e Caxambu uma rede de comunidades jongueiras associadas ao Iphan Museu do Folclore e UFF Universidade Federal Fluminense44 e a partir daí pro duziram material didático sites outros filmes pequenos centros de memória seminários e muitos encontros que viabilizam a sua existência e a produção de uma narrativa autônoma Desde então o movimento ampliouse ao lado do fortalecimento das ações afir mativas Alguns grupos ainda associaram a luta pela valorização do jongo à construção de uma nova identidade quilombola que reivindica o acesso à terra e à construção de locais de memória para o jongo e para sua história 43 Lançamos em 2012 uma caixa com os 4 DVDs Memória do Cativeiro Jongos Calangos e Folias Versos e Cacetes Passados Presentes Disponível em http wwwlabhoiuffbrpassadospresentes 44 Disponível em httpwwwpontaojongouffbr Acesso em 15 maio 2015 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 56 10092018 111706 57 Por outro lado é verdade pouca coisa mudou em rela ção às duras condições de vida das comunidades jongueiras São José da Serra ainda não recebeu a titulação definitiva no Bracuí a herança recebida dos Souza Breves em testamento ainda não está em suas mãos Muitos grupos não conseguem estabelecer centros de referência para visitação nem apoio das prefeituras ou secretarias de cultura apesar de terem recebido o título de Patrimônio Cultural do Brasil Até mesmo os jovens das comunidades encontram dificuldades para completar o Ensino Médio Poucos chegam à universidade Mesmo assim é possível também perceber mudanças Os jongueiros não têm mais medo ou vergonha das perseguições e preconceitos Em cada festa da qual temos a oportunidade de participar percebemos o envolvimento dos jovens e o orgulho de uma história que começa a ter mais visibilidade A tradição parece fazer sentido e atualizase em função de uma luta contra o racismo e pelo acesso completo aos direitos de todos os cida dãos O jongo deixou de ser coisa de velho ou de um passado que não se quer lembrar Pelo contrário muitos grupos reaprendem o jongo criam escolas para crianças e relembram que ele exis tia em suas famílias desde muito tempo Foto 1 A roda de jongo do quilombo de São José da Serra Sr Manoel Sea bra ao centro Fonte Aquivo Labhoi 2005 Foto 2 Local central das festas do qui lombo de São José da Serra Fonte Arquivo Labhoi 2005 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 57 10092018 111707 58 ABRAM ALAS PARA A ABOLIÇÃO FESTEJOS CONFLITOS E RESISTÊNCIAS EM MINAS GERAIS 188018881 Juliano Custódio Sobrinho O PROCESSO SOCIAL DA ABOLIÇÃO Exulta Brasil te adorne de flores O grito viva retumbe no ar Findaram as magoas findaram as dores Que em lucto envolviam o patrio teu lar Resplendam as luzes da festa ridente Adejem os vivas no céo do Bra sil Do pobre captivo a ferrea corrente Não prende teus filhos em laço servil2 Dias após o 13 de maio de 1888 alguns jornais minei ros ainda celebravam a Abolição emprestando suas páginas para as manifestações de poetas locais Versos como os apresentados acima traduziam os anseios de gente que nos últimos anos da escravidão esteve engajada nas lutas abolicionistas ou apenas se aproveitou daqueles momentos derradeiros para vangloriarse das conquistas alheias As comemorações em prol da liberdade se deram com mais frequência à medida que se acirravam as tensões sociais na década de 1880 Festejos organizados pelas irmanda 1 O presente texto é inspirado na tese Sobre um tempo de incertezas o processo de abolição e os significados da liberdade em Minas Gerais 18801888 defendida no Programa de PósGra duação em História Social da Universidade de São Paulo sob orientação da professora doutora Maria Helena Pereira Toledo Machado 2 Trecho do poema O Brasil livre assinado por Boldrini e publicado no jornal Dia mantina em 25051888 VENÂNCIO Renato Pinto Org Panfletos abolicionistas o 13 de maio em versos Belo Horizonte Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais Arquivo Público Mineiro 2007 p 72 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 58 10092018 111707 59 des movimentos abolicionistas e pelos próprios escravizados3 e libertos serviram para regozijar não somente a liberdade mas para marcar uma resistência ante os interesses escravistas Este texto se propõe a enfocar as tramas e estratégias em prol da Abolição apresentadas por inúmeros agentes que utilizaram as comemorações para propagandear os ideais aboli cionistas em Minas Gerais entre os anos de 1880 e 1888 Entre tantas estratégias as festas que aconteciam nos mais diversos espaços sociais desde os salões aristocráticos até os can tões populares das cidades e dos campos podem ser compreendi das como um elemento aglutinador dos enfrentamentos contra os interesses escravistas que tornaramse evidentes com a grande efer vescência das campanhas abolicionistas e das resistências escravas De forma geral nossa pesquisa de doutorado centrou se no sul de Minas4 região que concentrou grande número de escravizados nos últimos anos da escravidão em grande parte envolvidos nas atividades relacionadas à produção mercantil agropecuarista5 A escolha regional também pretendeu contri 3 Pela perspectiva da semiótica discursiva preferimos utilizar o termo escravizado em vez de escravo por entender que o primeiro não reduz o sujeito à mera condição de mer cadoria tampouco alguém que não tem consciência sobre a realidade e não cria estratégias para alçar a liberdade O termo escravizado também denuncia o processo de violência subjacente à perda de identidade trazendo à tona um conteúdo de caráter histórico e social atinente à luta de poder de pessoas sobre pessoas além de marcar a arbitrariedade e o abuso da força dos opressores Consultar HARKOTDELATAILLE Elizabeth SANTOS Adriano dos Sobre escravos e escravizados percursos discursivos da conquista da liberdade In SIMPÓSIO NACIONAL DISCURSO IDENTIDADE E SOCIEDADE 3 Cam pinas Anais 2012 p 89 Disponível em httpwwwielunicampbrsidisanaispdf HARKOTDELATAILLEELIZABETHpdf Acesso em 29 março 2016 4 A documentação analisada na pesquisa referese às incursões que realizamos em institui ções públicas e particulares nas atuais cidades de Baependi Cabo Verde Caldas Campa nha da Princesa Cristina Itajubá Muzambinho e Três Pontas Também pesquisamos os acervos do Arquivo Público Mineiro APM em Belo Horizonte do Arquivo Público do Estado de São Paulo APESP em São Paulo e do Arquivo Nacional no Rio de Janeiro 5 Minas Gerais manteve a vitalidade da escravidão até seus últimos anos sobretudo nas regiões da Zona da Mata e do Sul da província MARTINS Roberto Growing in silence the slave economy of nineteenthcentury Minas Gerais Brazil 1980 Tese Doutorado Vanderbilt University 1980 SLENES Robert Os múltiplos de porcos e diamante a economia escravista em Minas Gerais no século XIX Cadernos IFCHU NICAMP n 17 1985 LIBBY Douglas Transformação e trabalho em uma economia escravista Minas Gerais no século XIX São Paulo Brasiliense 1988 FRAGOSO João Homens de grossa aventura acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro 17901830 Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1998 p 123 Especificamente sobre a relevância da posse de escravos para o Sul de Minas durante o Oitocentos o trabalho de Marcos Andrade sugere respostas muito pertinentes ANDRADE Marcos Elites regionais e a formação do Estado Imperial Brasileiro Minas Gerais Campanha da Princesa 17991850 Rio de Janeiro Arquivo Nacional 2008 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 59 10092018 111707 60 buir para o entendimento de que tal peso da escravidão no sul mineiro para o período já mencionado concorreu para os embates sociais que se delinearam em todo o Império espe cialmente no Sudeste brasileiro área resistente ao desfecho da escravidão Para isso percorremos uma análise documental composta pelas correspondências policiais processos crimes e jornais Essas fontes nos auxiliaram a perceber as ações e conflitos entre eles as festas promovidos por diversos sujei tos que naquele momento provocavam ainda mais incertezas sobre a continuidade do sistema escravista Dessa forma as ideias da abolição devem ser entendidas como parte de um processo social que articuladas com outras lutas promovidas naquele período contribuíram para o alargamento dos con flitos sociais e para a desmoralização dos horrores praticados contra os escravizados6 Assim o processo de abolição no Estado brasileiro tam bém deve ser entendido a partir da crise do próprio Império das pressões internacionais abolicionistas e sobretudo diante dos diversos matizes do cotidiano dos escravizados sujeitos que não se intimidaram e tampouco se resignaram perante o poder arbitrário dos senhores E nessa pluralidade de seres humanos mais ou menos dependentes uns dos outros e que agem uns com os outros ou uns contra os outros7 os rasgos de rebeldia dos escravizados foram combustíveis que alimen taram dia a dia o processo que culminou na desintegração daquele sistema Dessa maneira compreender a atuação desses sujeitos e suas trajetórias é ousar revelar um desfecho mais complexo que tentou ser apagado com o 13 de maio No fechar das corti nas as glórias e as palmas pela extinção definitiva do cativeiro foram dadas essencialmente ao Estado imperial e aos aboli cionistas Por trás da cena relegados à própria sorte e sem o reconhecimento dos louros da vitória milhares de egressos do cativeiro se juntaram a outros tantos em busca de sobrevivên 6 ELIAS Norbert Escritos ensaios 1 Estado processo opinião pública Rio de Janeiro Zahar 2006 p 2733 7 ELIAS 2006 p 31 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 60 10092018 111707 61 cia diante de uma precarizada prática de cidadania que lhes foi apresentada Ante uma sociedade repressora e a fim de manter seus direitos historicamente construídos aquela gente estigmatizada e tratada como substrato social precisou inventar e reelaborar resistências para continuar a sobreviver e a manter espaços para a realização de suas práticas culturais e de sociabilização Neste artigo procuramos entender como a documen tação analisada traz à tona a presença das festas populares as festas negras que ocorreram na última década da escravidão e como elas estavam inseridas nas ações de resistência dos agentes escravizados Também apontaremos as festas que celebraram o 13 de maio e que tornaramse momentos de disputas por parte daqueles que clamavam pelo reconhecimento da Abolição Longe da formalidade dos salões e edifícios públicos que servi ram para as comemorações ocorridas na região sul mineira os libertados também realizaram seus festejos em prol do evento histórico Analisar aqueles momentos é um grande desafio já que as fontes pesquisadas apenas destacam algumas poucas palavras sobre o povo que tomou as ruas e as estradas para fes tejarem cada qual à sua maneira A abolição em Minas Gerais foi creditada até algum tempo atrás como sinônimo de inércia narrada por um enredo abolicionista pacato e inspirado na perspectiva da mineiri dade que não se coadunava com as ebulições sociais que acon teceram em outros cantos do país8 De certa maneira as pesqui sas destinadas à temática na província também corroboravam uma perspectiva sobre o tempo da Abolição em que a apoteose do evento foi destinada à imagem da princesa Isabel e a um grupo de homens de boa vontade postulados ao panteão dos redentores das causas dos escravizados Com as inúmeras contribuições historiográficas que sur giram nas últimas décadas a Abolição deixou de ser negócio de branco9 desvelando uma participação negra como crucial para 8 OILIAM José A abolição em Minas Belo Horizonte Itatiaia 1962 9 IANNI Octávio As metamorfoses do escravo São Paulo Difusão Europeia do Livro 1962 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 61 10092018 111707 62 o desmantelamento dos pilares da instituição escravista10 Na crise do escravismo que se fortaleceu após a Lei do Ventre Livre as incertezas quanto ao futuro do elemento servil passou a provocar reações desesperadas e discursos apocalípticos principalmente naquelas regiões em que o apego à mão de obra escrava era visí vel Com mais frequência na década de 1880 os embates sociais que se travaram já deixavam claras as previsões nada auspiciosas para a lavoura brasileira Agitações e fugas tornaramse recorrentes enfraque cendo o poder dos senhores e colocando em xeque a atuação do Estado na manutenção da ordem e do controle sobre os populares Somado a isso viuse ganhar força o consenso na reprovação do cativeiro entre setores distintos da população livre que manifestavam seus discursos e argumentos a partir da imprensa e da política formal Nestes setores encontravase parte dos abolicionistas11 Dessa maneira o entendimento do processo de abolição no Brasil vem deixando de ser refém de uma visão formalista ou limitada apenas aos salões aristocráticos Quando levamos em conta os aspectos informais das práticas sociais o fenômeno da Abolição pode também ser interpretado a partir dos movimen tos populares que por vias não oficiais produziram um ema ranhado de ações que mesmo à margem abalaram as estrutu ras escravistas Especialmente na última década da escravidão os escravizados e tantos outros sujeitos comuns dispuseramse a enfrentar o poder senhorial a polícia e a política imperial 10 MACHADO Maria Helena O plano e o pânico os movimentos sociais na década da abolição 2 ed São Paulo Edusp 2010 MATTOS Hebe Das cores do silêncio os signifi cados da liberdade no sudeste escravista Brasil século XIX Rio de Janeiro Nova Fron teira 1998 GRINBERG Keila Liberata a lei da ambigüidade as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX Rio de Janeiro RelumeDumará 1994 Nos últimos anos temos visto uma série de trabalhos que procuram demarcar trajetórias de vida de escravizados e libertos demonstrando o protagonismo negro no processo de abolição Consultar ALBUQUERQUE Wlamyra O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 FRAGA FILHO Walter Encruzilhadas da liberdade histórias de escravos e libertos na Bahia 1870 1910 Campinas Ed Unicamp 2006 MACHADO Maria Helena Corpo gênero e identidade no limiar da abolição a história de Benedicta Maria Albina da Ilha ou Oví dia escrava sudeste 1880 Revista AfroÁsia n 42 2010 11 MATTOS Hebe Das cores do silêncio os significados da liberdade no sudeste escra vista Brasil século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1998 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 62 10092018 111707 63 minando suas forças e promovendo uma efetiva participação no processo que culminou no 13 de maio de 1888 Assim nossa pesquisa de doutorado contribuiu para o entendimento dessas várias facetas do abolicionismo no Brasil que longe de ter sido homogêneo abarcou complexas ações sociais nem sempre submetidas às cartilhas do formalismo e das rodas políticas do Império Frequentemente a documentação estudada também evidenciou um abolicionismo subterrâneo causador de inúmeras manifestações que incendiavam as nor mas e os costumes constituído por escravizados e outros popu lares12 Nas ruas e fazendas esses sujeitos eram rapidamente repreendidos pelo poder policial para que não colocassem em risco os interesses das elites POLÍCIA DESORDENS E FESTEJOS Se duas considerações são pertinentes para o entendi mento do processo de abolição no Brasil seu caráter pluralista formado por grupos ou indivíduos com ações distintas e cons tituído em múltiplos espaços para além dos recintos políticos e formais os festejos que se deram em prol da liberdade não só foram um ato político mas também se realizaram anteriormente ao 13 de maio de 1888 Dessa forma parte daquelas comemora ções devem ser lidas como um momento das lutas abolicionistas das intervenções de seus agentes e das construções dos significa dos de liberdade Na documentação investigada foi possível perceber que as festas eram também momentos de embates sociais Ali 12 Maria Helena Machado sugere que nas franjas sociais as ações de escravizados libertos e livres pobres também sacudiram as estruturas escravistas e foram bastante efetivas para o desmantelamento do sistema Assim tomamos emprestada da autora a noção populares para definirmos aqueles agentes cuja participação no abolicionismo deuse de forma organizada ou espontânea coletiva ou individual e que tiveram o pro pósito de contribuir na libertação de escravizados por vezes longe do formalismo dos clubs e meetings mas atuantes nas esferas menos visíveis da sociedade MACHADO Maria Helena De rebeldes a furagreves as duas faces da experiência da liberdade dos quilombos do Jabaquara na Santos da pósemancipação In CUNHA Olívia GOMES Flávio Org Quasecidadão histórias e antropologias da pósemanci pação no Brasil Rio de Janeiro Ed FGV 2007 p 244250 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 63 10092018 111707 64 conquistas eram comemoradas ideias propagandeadas e poli tizadas de acordo com os diversos projetos de abolição que se fizeram presentes naqueles anos Dessa forma as comemorações eram utilizadas por diferentes sujeitos e grupos as associações abolicionistas apro veitavam para arrecadar fundos para a compra de alforrias os escravizados participavam dos festejos de rua como forma de resistência e dramatização da liberdade e os senhores que dese javam negociar a alforria aproveitavamse das comemorações e ritos católicos para publicizar seus atos na expectativa de per petuar a tutela e utilizar a mão de obra daqueles trabalhadores Dessa maneira os estudos sobre as festividades em torno dos ideais da Abolição podem capturar a formação de identidades como também desvelar os interesses pessoais e coletivos daque les que delas participavam13 A imprensa é uma fonte inesgotável de análise sobre os últimos anos de escravidão e em nossa pesquisa foi possível veri ficar como os jornais do sul de Minas tornaramse veículos de proliferação de discursos que tentavam entender os rumos que a nação tomava com a crise do escravismo Mais que isso os periódicos criavam narrativas acerca da Abolição expressando diferentes anseios e interesses bem como acelerando a comuni cação e o acesso às informações que vinham de todos os cantos do país Para as cidades interioranas a imprensa desempenhou papelchave nas articulações entre os projetos políticos construí dos nos grandes centros e naquelas localidades14 Na década de 1880 os jornais dedicaram parte de suas páginas à cobertura dos acontecimentos ligados à escravidão fazendo circular as discussões do Parlamento os pronunciamen tos de D Pedro II os bastidores para a aprovação das leis eman cipacionistas e seus desdobramentos os diferentes matizes aboli cionistas bem como as diversas ações escravagistas no cotidiano do cativeiro Também simbolizavam um meio de prestação de 13 KRAAY Hendrik Sejamos brasileiros no dia da nossa nacionalidade comemora ções da independência no Rio de Janeiro 18401864 Topói Rio de Janeiro n 14 p 915 2007 14 MACHADO Humberto Palavras e brados José do Patrocínio e a imprensa abolicio nista do Rio de Janeiro Niterói Editora da UFF 2014 p 107121 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 64 10092018 111707 65 serviços aos senhores ao publicarem anúncios de fugas de escra vizados e artigos de opinião contrários à extinção do cativeiro15 Em 26 de fevereiro de 1884 o Monitor SulMineiro publi cou artigo sobre a festa promovida pelo Fundo de Emancipação de Baependi ocorrida na frente da casa do juiz João Coelho Gomes Ribeiro para comemorar as alforrias concedidas pelo grupo Após as tradicionais conclamações proferidas pelos sim patizantes da causa a banda de música da cidade comandada por Antonio Nunes cumpriu o protocolo da cerimônia execu tando a corporação musical as melhores peças do seu repertó rio Devido ao mau tempo a manifestação não pôde percor rer as ruas da cidade limitando os protocolos comemorativos A cerimônia encerrouse com um brinde tendo os participantes bradado e dado vivas ao exemplo vivo da lei manifestado na figura do juiz municipal Durante todo o festejo a polícia esteve a postos para evitar qualquer infortúnio16 Vale lembrar que a tentativa de controle demonstra o esforço das autoridades em reproduzirem um ordenamento jurí dico principalmente a partir dos artigos da lei citada que davam condições de interpretação a juízes delegados e advogados que a usavam de acordo com seus interesses e concepções E qualquer prática que denota o cumprimento das leis poderia ser entendida pelos escravistas como um alinhamento aos arroubos abolicio nistas Por isso tais festas de rua eram sempre vistas com muita cautela pela polícia para que os conflitos fossem evitados Por outro lado os organizadores dos cerimoniais tinham a intenção de causar comoção e os discursos em prol da liberdade e pelo fim da escravidão eram sempre atravessados por falas emotivas demarcados pela intencionalidade de deixar registrada a perspec tiva benevolente daqueles sujeitos O rito festivo evocava a alforria como dádiva e não uma conquista dos libertados Se por longo tempo o poder senhorial contou com a ajuda da polícia e do Estado para controlar a escravaria a 15 SCHWARCZ Lilia Retrato em branco e negro Jornais escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX São Paulo Companhia das Letras 2008 p 8589 16 Jornal Monitor SulMineiro 26021884 Campanha Centro de Estudos Campa nhense Monsenhor Lefort doravante CECML fl 02 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 65 10092018 111707 66 maior interferência dessas instâncias na relação de senhores e escravizados significou dificultar a violência e o domínio sem regras sobre aqueles cativos17 No caso da polícia seu papel foi importante na desarticulação do sistema escravista à medida que ela ao ser moldada como parte do corpo estatal que pro curava se antenar com ideias liberais e burocratizadas nas últi mas décadas do Oitocentos se colocou como mediadora das desgastadas relações senhoriais Na prática cotidiana aqueles agentes estavam a defender os interesses das leis dos senhores e da propriedade privada mas isto não significava obedecer a cartilha escravista a todo instante E mesmo em meetings organizados por jurispruden tes como o caso das saudações promovidas na casa do juiz de Baependi a força pública se fazia presente para monitorar os manifestantes tranquilizar os ânimos dos mais exaltados e não permitir que as comemorações espontâneas eou intencionais extrapolassem o permitido sobretudo as aglomerações festivas regadas à música e bebidas Assim se algum imprudente dis parasse palavras destemperadas incitando a população a um plano de desordem os policiais eram orientados a agirem A atenção policial se voltava principalmente para os meetings e festejos que reuniam muitos populares Naqueles anos finais da década de 1880 a polícia sabia que os estrondos abo licionistas faziam ecos e somados com as fugas e outras ações de escravizados a reunião daquela gente poderia extrapolar as regras e normas de segurança Sem abandonar o discurso da legalidade jornais como o Monitor SulMineiro defensor do abolicionismo moderado emprestavam suas páginas para promover o bommocismo dos proprietários locais Frequentemente tais periódicos falavam sobre os cerimoniais ocorridos nas fazendas e nas praças onde eram entregues as cartas de alforria Antes da entrega do docu mento os festejos procuravam reunir os passantes convocan doos a serem testemunhas do cortejo sempre roteirizado com fogos discursos palmas e bandas de música 17 ROSEMBERG André De chumbo e festim uma história da polícia paulista no final do Império São Paulo EdUSP FAPESP 2010 p 3140 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 66 10092018 111707 67 Em 23 de agosto de 1885 o fazendeiro Antônio do Carmo Nogueira de Areado promoveu uma festa com música e fogos de artifício para comemorar a entrega da alforria para alguns de seus escravizados Juntamente com seus amigos e des conhecidos o fazendeiro tentava se utilizar de seu eloquente dis curso e do ritual festivo para falar em causa própria O efeito sonoro da banda de música e os fogos serviam para comover e impressionar a todos Não à toa estes elementos faziam parte do protocolo ritualístico das festas em prol das alforrias e con tribuíam para sensibilizar o público sobre a ação senhorial e endossar certas intencionalidades Muitas vezes a entrega das cartas aos escravizados era acompanhada de votos de apreço ao trabalho de fidelidade a seus antigos senhores e compaixão à terra para que ela não sofresse de carestia pela falta do trabalhador18 Era uma forma de abrir possibilidades para manter aquela gente ligada à pro priedade Os brindes a favor da liberdade simbolizam o desfecho do ato imortalizando a ação dos senhores enquanto heróis e padrinhos dos novos cidadãos não os deixando esquecer assim daqueles que os tiraram do jugo do cativeiro Como já mencio nado por Lilia Schwarcz aos escravos recémlibertos só restava pelo menos na visão das elites a resposta servil e subserviente reconhecedora do tamanho do presente recémrecebido19 Os encontros que contavam com grande quantidade de populares como o descrito tornavamse preocupação para a força pública que temia a presença de caifases e libertos que viessem a seduzir os últimos escravizados naqueles suspiros finais do cativeiro O enredo popular presente em muitas mani festações e festas provocava perturbações à ordem e tornavase um grande transtorno para o controle policial Se os quadros da força pública não eram eficientes no controle das manifes tações era preciso agir com prevenção para evitar tumultos e fugas orquestradas durante as comemorações Esta tática fazia 18 Jornal Monitor SulMineiro 23081885 Campanha CECML fl 02 19 SCHWARCZ Lilia Dos males da dádiva sobre as ambiguidades no processo da Abolição brasileira In CUNHA Olívia GOMES Flávio Org Quasecidadão histó rias e antropologias da pósemancipação no Brasil Rio de Janeiro Ed FGV 2007 p 26 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 67 10092018 111707 68 com que a polícia tivesse cuidado redobrado e fosse ágil na ten tativa de coibir a atuação dos perturbadores da ordem Por isso alguns praças se colocavam à paisana infiltrados na multidão para vigiar os mais astutos e corajosos que pudessem intentar qualquer ação que fugisse do controle e causasse desordem Estava claro que a rua era um espaço deliberadamente popu lar e evitar tumultos e perturbações tornarase uma intenção sempre assumida pela polícia na documentação que estudamos Contudo a rua não foi o único lugar no qual as celebra ções aconteciam para comemorar as alforrias e usar as ideias da Abolição para atender aos interesses dos grupos que as pro moviam O Monitor SulMineiro de 11 de abril de 188620 narrou com muitos detalhes a preparação de uma festa no salão nobre do Paço Municipal de Varginha para comemorar a entrega de alforrias a 64 escravizados alguns contemplados pela Lei do Sexagenário A notícia convidanos a adentrar no simbolismo das disposições dos objetos cívicos e dos elementos decorativos que compuseram o cenário O piso do salão estava coberto por um tapetado de flo res e folhas que exhalavão delicioso aroma que embalsamando a atmosphera dava alegria e animação ao propósito da festa As janelas haviam sido embandeiradas e o palco ornamentado com uma faixa que repetia os dizeres da bandeira mineira Libertas quae sera tamem e no centro do salão um enorme busto do visconde do Rio Branco em memória do propulsor da Lei do Ventre Livre foi colocado como inspiração para a empreitada abolicionista O local enfeitado dava o clima de importância da cerimônia e boasvindas aos convidados Mais que isso a própria reverência ao visconde do Rio Branco revelava a sintonia daquela gente que organizava o festejo com a posição conservadora da Lei de 187121 Fica evidente que a ideia era pensar soluções para a crise do escravismo ao mesmo tempo que não desfavorecesse os inte resses senhoriais promovendo uma extinção lenta e gradual do cativeiro sem perder de vista o controle sobre a força trabalhista 20 Jornal Monitor SulMineiro 1141886 Campanha CECML fl 04 21 CONRAD Robert Os últimos anos da escravatura no Brasil Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1978 p 124131 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 68 10092018 111707 69 Para além das significações e circularidades dos arranjos criados nos espaços de comemoração o que não é o foco deste texto vale dizer que a festa é o lugar das representações sociais da exposição Mais que isso os festejos que anteciparam o 13 de maio devem ser estudados como parte do repertório das lutas de indiví duos e grupos que contribuíram para o desmonte da escravidão Os espaços de celebração ao reunirem pessoas de todos os estratos sociais também expunham os anseios e incertezas daquela gente que tinha consciência de que a Abolição afetaria a vida de todos Ainda sobre a importância das funções que objetos e pessoas desempenhavam na cerimônia do Paço Municipal de Varginha vale dizer sobre o papel das autoridades e senhores no salão O juiz municipal tomou o centro do palco ao lado do busto do visconde do Rio Branco o que revelanos a maneira como esses personagens apropriavamse daquele evento para demarcar suas imagens Após os inúmeros discursos de louva ção à liberdade e de aconselhamento aos novos integrantes do direito à cidadania os libertos eram chamados ao centro do palco ao som da banda de música e dos gritos de Ave libertas Salve a liberdade22 Contudo o protagonismo da festa parecia ser dividido com os outros atores que lá estavam Os 64 escravizados que conquistaram a liberdade ape sar de ocuparem o canto direito do salão em pé sem nenhum aparato que lhes desse algum conforto como mesas e cadeiras entendiam aquele evento como um ato de vitória de conquista O ritual realizado no Paço Municipal de Varginha não aconte ceria sem a presença significativa de libertados por mais que aqueles arranjos abolicionistas e senhoriais se dessem na tenta tiva de controle do trabalho dos alforriados eou do reconheci mento do ato festivo em causa própria Nas vésperas da Abolição este tipo de festividade tor narase recorrente o que também demonstrava em certa medida a perda da legitimidade escravista e o desespero dos senhores diante da possível falta de mão de obra que se anun ciava Por mais que a disposição dos personagens na cena repre 22 Jornal Monitor SulMineiro 1141886 Campanha CECML fl 04 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 69 10092018 111707 70 sente a tentativa de manutenção das posições hierárquicas já tão assentadas na sociedade escravista e que se queriam presen tes após a abolição a festa também expressava um ato de resis tência de um grupo de libertados que mesmo de pé no canto direito do salão e atento aos protocolos formais das autoridades não hesitou em comemorar à sua maneira aquela conquista Pouco sabemos sobre aquele episódio além do que a notícia do jornal nos informa qual o grau de participação daqueles escravizados na garantia da liberdade Eles teriam se articulado para forjar o cumprimento da lei Agiram em grupo ou individualmente Quais ações provocaram para alcançar tal conquista Faltamnos narrativas que nos possibilitem conhecer mais sobre aquela história mas é certo que os festejos sediados no Paço da cidade sedimentavam dia a dia o declínio da escra vidão E apesar de desconhecermos as lutas que tiveram que empreender para chegarem até aquele momento o certo é que eles venceram O caso relatado acima não deixou vestígios sobre a participação de algum movimento abolicionista na aquisição das alforrias tampouco na organização da festa Contudo ao percorrermos a trajetória de outros grupos percebemos que as comemorações estiveram frequentemente presentes nas ações organizadas por seus membros A Comissão Libertadora foi uma associação de fazendeiros políticos e profissionais liberais da cidade de Itajubá que atuou eficazmente para convencer escra vistas da necessidade da abolição e da preservação dos liber tos em nome da lavoura sul mineira que carecia de mão de obra Fundada nos últimos meses antes do 13 de maio de 1888 a Comissão promoveu encontros quermesses e festas para come morar as libertações divulgando esses eventos pela imprensa O sucesso daquele grupo reverberou em outros can tos do Império sendo suas ações aclamadas por abolicionistas de São Paulo e Rio de Janeiro como José do Patrocínio que usou as páginas de seu jornal para parabenizar as conquistas dos itajubenses23 A cada filiação de algum proprietário a Comis 23 Jornal Cidade do Rio 1531888 Rio de Janeiro Biblioteca Nacional fl 01 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 70 10092018 111707 71 são organizava as celebrações no Paço Municipal elevando seus membros ao rol dos generosos cidadãos que contribuíam para disseminar os sentimentos abolicionistas no seio da sociedade No limiar do 13 de maio as ações da Comissão começaram a ser questionadas por um grupo de escravistas mais resistentes e inseguros com o futuro da lavoura O resultado desse confronto levou alguns filiados a sofrerem ameaças por suas ações aboli cionistas consideradas perigosas Nesses embates travados na arena social percebemos também que à medida que a escravidão apontava para seu fim qualquer ato em defesa da Abolição poderia ser considerado ameaçador para a ordem local estabelecida No caso da Comissão Libertadora parecenos que pouco ousou endossar as fileiras abo licionistas mais radicais da cidade que se utilizaram de medidas muito mais efetivas para forçar a desintegração do sistema E no apagar das luzes do 13 de maio a Comissão mesmo perse guida teve em seus membros os grandes homenageados pela vitória da Abolição24 Com o aumento das tensões sociais entre escravizados abolicionistas e proprietários a polícia intensificava seus traba lhos na tentativa de apaziguar os ânimos e manter a ordem Se os grupos moderados sempre organizados em torno das leis passaram a causar medo aos senhores eram os indivíduos per tencentes a um abolicionismo mais popular que provocavam pânico Na mesma medida a frequência das revoltas e fugas dos escravizados não só dificultava o trabalho policial como tam bém impunha o ritmo nas decisões políticas do Estado e dos senhores em sacramentar de vez o final da escravidão E com o avanço da propaganda abolicionista e das estratégias escravas até mesmo as festas populares e religiosas se tornaram alvo da intervenção dos agentes da lei já que eram consideradas momentos de perigo e ameaça à ordem da cidade As comemorações de rua proporcionavam bons instantes para 24 CUSTÓDIO SOBRINHO Juliano Sobre um tempo de incertezas o processo de abolição e os significados da liberdade em Minas Gerais 18801888 2015 Tese Doutorado em Histó ria Social Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo São Paulo 2015 p 188208 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 71 10092018 111707 72 escravizados e abolicionistas circularem com mais segurança pelos espaços sem que fossem vistos pela polícia Muitos aprovei tavam para militarem e participarem das redes de aliciamento e das rotas de fuga da região para grandes centros como a cidade de São Paulo ou os famosos quilombos do litoral paulista como o de Jabaquara em Santos O caso relatado adiante ocorreu em São Gonçalo do Sapucaí a poucos dias da Abolição De acordo com a documen tação encaminhada pelo juiz municipal para o chefe de polícia a carestia de recursos da polícia dificultava a contenção das desor dens promovidas por escravizados no momento em que o movi mento abolicionista que se tem operado nesta parte da província estava em grande efervescência Os agitos daqueles agentes passa vam a ser vistos com preocupação pelas autoridades25 Para além das resistências que diariamente estavam sob a vigilância da polícia a documentação revela que as festivida des negras26 que ocorriam com frequência na cidade aumenta vam o medo da população e os perigos para a ordem pública Ao continuar o ofício a autoridade relatou os preparativos da come moração religiosa do Espírito Santo que seria exclusivamente feita por pretos que durante três dias promovem o tradicional congado ou reinado o que o deixava receoso de que a cidade fosse tomada por escravizados fugidos ficando sem qualquer tipo de proteção capaz de conter aquele povo Segundo o juiz suas desconfianças se fundamentavam já que muitos escraviza dos que fugiram de São Gonçalo do Sapucaí foram acoitados por abolicionistas revolucionários de Campanha e que sempre voltavam à cidade para promoverem e participarem dos festejos do Divino provocando desordens Temendo que seus proprie tários estivessem à espreita para prendêlos naqueles dias fazia 25 Ofício do 1o Suplente do Juiz Municipal de São Gonçalo do Sapucaí para o Chefe de Polícia 2441888 APM Polícia POL 1 4 cx 03 doc 34 26 Policiar e proibir as festas negras não era um elemento novo e desafiador para as autoridades Martha Abreu ao estudar os festejos do Divino Espírito Santo realizados no Campo de Santana no Rio de Janeiro identificou uma série de estratégias da polícia para controlar e censurar as comemorações que reuniam milhares de devotos e festeiros que chegavam de toda a cidade ABREU Martha O império do Divino festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro 18301900 Rio de Janeiro Nova Fronteira São Paulo Fapesp 1999 p 195198 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 72 10092018 111707 73 se necessário o aumento da força policial para também garantir a integridade daqueles agentes se acaso os participantes da festa os agredissem o que ocasionaria um verdadeiro descalabro27 Notícias como essas não só denunciavam a incapacidade da polícia em manter controle sobre escravizados e abolicionis tas mais radicais como também apontam como a arraiamiú da28 sempre turbulenta e em grande número ameaçava a ideia da ordem daquelas elites locais Os batuques e divertimentos dos negros sempre incomodaram senhores e autoridades já que o desenrolar dos festejos eram imprevisíveis Manter a vigilância e reprimir aquelas comemorações poderia ser profilático antes que o descontrole imperasse29 Como disse Wlamyra Albuquer que a capacidade dos tambores de espalhar o medo parecia latente30 e tal perseguição às festas negras se intensificou no limiar da Abolição e mesmo após o fim do cativeiro No caso da festa do Divino de São Gonçalo do Sapucaí era exclusivamente feita por pretos e alvo de termos pejora tivos que perpassavam pela composição racial de seus partici pantes Logo era considerada altamente periculosa organizada e frequentada por uma turbamulta violenta sem modos e nociva Se as queixas de senhores e das autoridades estavam sempre baseadas no receio da quebra da ordem por outro lado as comemorações dos escravizados externavam também as ideias de liberdade e os projetos de vida que eram cultivados por cada um deles Por isso era tão evidente para as autoridades que as festas como a do Divino possibilitassem um ótimo momento para que fugas e rebeliões fossem tramadas Essas impressões que assustavam os agentes da ordem e toda a sociedade sugeremnos como as festas negras tiveram uma força decididamente popular e bemsucedida Se os jornais 27 Ofício do 1o Suplente do Juiz Municipal de São Gonçalo do Sapucaí para o Chefe de Polícia 2441888 APM Polícia POL 1 4 cx 03 doc 34 28 MACHADO Maria Helena Teremos grandes desastres se não houver providências enérgicas e imediatas In GRINBERG Keila SALLES Ricardo Org O Brasil Imperial volume III 18701889 Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2009 p 384387 29 REIS João José SILVA Eduardo Negociação e conflito a resistência negra no Brasil escravista São Paulo Companhia das Letras 2009 p 3738 30 ALBUQUERQUE Wlamyra O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 p 133 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 73 10092018 111707 74 espalhavam o medo e a polícia precisava impor mais controle é porque aquelas comemorações provocavam o sentimento de resistência em seus participantes e organizadores bem como marcavam momentos de ruptura e enfrentamento De fato pare cia escandaloso aos olhos daqueles que pregavam ordenamento social que manifestações culturais que lembravam as tradições dos antepassados e coroavam reis e rainhas africanos pudessem acontecer à luz do dia tomando conta das ruas da cidade31 Se os limites entre um catolicismo oficial e as expressões religiosas populares sempre foram tênues e conflituosos na histó ria brasileira as tensões entre os festeiros negros e seus censores desvelam muito mais que entender aquelas comemorações ape nas como momento de certo saudosismo ancestral mas tam bém como parte das resistências que davamse na cena social Para além de práticas religiosas que rememoravam identidades e valores daquela gente32 o momento das festas era o reforço e a demarcação de suas lutas e reivindicações O pânico de que as festas religiosas negras pudessem esconder planos de fugas e rebeliões fazia sentido pois muitos abolicionistas e escravizados aproveitavam os rituais festivos para ampliarem a comunicação e tramarem suas políticas de combate à ordem escravista Para os escravizados a festa do Divino de São Gon çalo do Sapucaí era um grande momento de sociabilização em contato direto com seus familiares amigos e santos de devoção Assim a brincadeira poderia virar realidade inspirando de fato revoltas efetivas33 E ao serem tomadas por escravizados e libertos as ruas da cidade causavam uma mimetização que poderia esconder os agitadores propensos a causar tumultos e desordens que a polícia tanto temia O envolvimento de escravizados fugidos na festa de acordo com o relato que apresentamos demonstranos que aquela manifestação cultural era mais um momento de enfrentamento 31 SOUZA Marina de Mello e Reis negros no Brasil escravista história da festa de coroa ção do Rei Congo Belo Horizonte Ed UFMG 2002 p 316323 32 KARASCH Mary A vida dos escravos no Rio de Janeiro 18081850 São Paulo Compa nhia das Letras 2000 p 315340 33 GOMES Flávio Histórias de quilombolas mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro século XIX São Paulo Companhia das Letras 2006 p 241245 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 74 10092018 111707 75 público de seus agentes que também teciam suas pautas reivindi catórias contra a escravidão ao longo dos cortejos das danças e ladainhas que eram encenadas Os participantes da festa tinham consciência de que aquelas práticas simbólicas poderiam causar medo nas autoridades Assim a evocação ao sagrado através da festa do Divino Espírito Santo abria outras dimensões na vida daqueles sujeitos A intimidade revelada com os santos e seus sím bolos buscava proteção e certezas em tempos de incertezas e dei xava rastros de rupturas cotidianas com as agruras do cativeiro dando poder de transformação ativa na vida de muita gente AS FESTAS DO 13 DE MAIO A questão da Abolição foi um fenômeno crescente ao menos a partir da década de 1870 quando transbordou dos gabinetes e das rodas parlamentares para ganhar as discussões na imprensa nas ruas e nas diversas instituições sociais desde os maiores centros urbanos até os grotões brasileiros Os debates acerca de um projeto que colocasse o país nos trilhos do progresso e que despertasse a sociedade para os benefícios de novos tempos de civilidade esbarravam quase sempre nas ideias sobre escravidão e liberalismo que moldadas pela realidade social do Império não garantiam a possibilidade de cidadania se o sistema escravista permanecesse Assim um turbilhão de ideias se fez presente nos jornais e nas tribunas políticas fruto das múltiplas manifestações públicas de protesto que por vezes impunham encaminhamentos da demanda libe ral por reformas representadas por sociedades emancipadoras abolicionistas republicanas estudantis literárias dentre outras Célebres intelectuais que marcaram aquela geração bra davam pelo fim da escravidão e de sua legalidade perante a Cons tituição do Império Entre eles Joaquim Nabuco pela retórica e escrita conduziu as manifestações intelectuais e políticas daqueles que aspiravam às ideias modernas e civilizadas propondo con gregar todos os favoráveis às causas da Abolição34 Outros como 34 ALONSO Angela Ideias em movimento a geração de 1870 na crise do BrasilImpério São Paulo Paz e Terra 2002 p 116120 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 75 10092018 111707 76 André Rebouças e José do Patrocínio demonstravam que o movi mento que faziam a favor da Abolição também voltavase para as discussões no seio da própria Corte tentando atrair os pro prietários de escravizados para as fileiras do abolicionismo Pre zar a legalidade das ações ou manter certa postura paternalista ante as revoltas escravas tornouse uma possibilidade para muitos republicanos mesmo para aqueles que também denunciavam o racismo presente nas relações sociais do período35 Nas disputas do campo da memória monarquistas e republicanos lutaram pelo reconhecimento do 13 de maio de 1888 bem como usaram a Abolição para os duelos políticos que se travariam até a ascensão da República Nos festejos que se deram na cidade de Campanha em Minas Gerais os membros do partido republicano procuraram utilizar os sentimentos de euforia que tomaram os simpatizantes da causa para associar as ações do partido à conquista da Lei Áurea De acordo com o memorialista Julio Bueno membro do partido republicano e abolicionista ele e seus companheiros lideraram as festas oficiais que se deram na cidade ao erguerse o pano viuse no cenário na frente três libertos empunhando o do centro um estandarte com as cores nacionais em que se lia Libertas quae sera tamen ao fundo cerca de 200 libertos sentados em arquibancadas no centro do palco os membros da comissão abolicionista36 Dessa forma muitos republicanos entraram para a História ao ocupa rem o centro do palco e receberem os louros da coroa pela libertação do Brasil do atraso social O lugar das festas ao longo do processo de abolição e em comemoração à promulgação da Lei Áurea merece estudos e se inclui na pluralidade de resistências travadas na arena social nos anos finais do escravismo Nas principais cidades do Império as passeatas e comemorações se arrastaram por dias e reuniram multidões Contudo os núcleos urbanos do interior também se manifestaram assim que a notícia chegou através dos telégrafos e dos jornais da Corte trazidos pelos trens Em completo delírio 35 MACHADO Humberto Fernandes Palavras e brados A imprensa abolicionista do Rio de Janeiro 18801888 Niterói EDUFF 2014 p 87105 36 BUENO Julio História da Campanha Campanha Colombo 1941 p 32 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 76 10092018 111707 77 símbolos religiosos e patrióticos dividiram o cenário das comemo rações nem sempre dentro das normas protocolares da polícia com sambas batuques e candomblé como o caso analisado por Wlamyra Albuquerque para as festas pelo 13 de maio na Bahia37 As inquietudes provocadas pelas festas em Minas Gerais as quais representavam mais um modo de resistência e luta ao longo do processo de abolição foram também registradas por Luiz Gustavo Cota Entre espaços de sociabilidade e experiên cias socioculturais os meetings e festejos populares que se deram na região central da província ampliaram os momentos de debates e os projetos de liberdade38 Quanto à oficialização da Abolição em 13 de maio de 1888 a população da província de Minas Gerais aguardava ansiosa pelo final das decisões parlamentares na Corte E a partir de 14 de maio os jornais da região sul mineira retrataram com afinco as diversas celebrações que se deram desde aquela data A cidade de Campanha se viu festiva quando às 10 horas daquele dia as notícias chegadas do Rio de Janeiro por telegrama con firmavam o que já era esperado No dia anterior a edição de domingo do Monitor SulMineiro já anunciava que diversos setores da sociedade campanhense esperavam com ansiedade a promul gação da lei de extinção total do cativeiro e preparavam as festas para a comemoração do feito39 Era o interior do país conectado com os protocolos políticos e os cerimoniais para a Abolição já em andamento na Corte Na manhã de segundafeira confirmando o que já se esperava dezenas de fogos iluminaram a cidade sul mineira e o badalar dos sinos e gritos de vivas ecoaram da estação de trem até a praça central Em seguida a banda da cidade convocou os 37 ALBUQUERQUE Wlamyra R O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 p 126130 As múltiplas formas de festejos pela Abolição também foram retratadas por Renata Moraes ao estudar a Corte MORAES Renata A festa da abolição O 13 de maio e seus significados no Rio de Janeiro 18881908 2012 Tese Doutorado em História Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2012 38 COTA Luiz Gustavo Ave libertas abolicionismos e luta pela liberdade em Minas Gerais na última década da escravidão 2013 Tese Doutorado em História Social Departamento de História Universidade Federal Fluminense Niterói 2013 p 255288 39 Jornal Monitor SulMineiro 1351888 Campanha CECML fl 03 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 77 10092018 111707 78 moradores a festejarem o fim da escravidão As casas se ilumina ram e as ruas foram enfeitadas com arcos bandeiras e flores40 Diversos discursos dos simpáticos abolicionistas toma ram os quatro cantos da cidade e cada qual procurava regis trar seus agradecimentos à princesa Isabel Naquela tarde a igreja matriz promoveu um solene Tedeum em ação de graças contando com a participação de um grande número de fiéis e libertos À noite as comemorações prosseguiram no Teatro São Candido que fora decorado para a ocasião O juiz municipal e várias personalidades discursaram e o mestre de cerimônia foi o advogado abolicionista Braulio Lion uma das figuras mais expressivas no movimento mineiro cujo entusiasmo quase tocava ao delírio41 Ao se abrirem as cortinas viramse três libertos carregando um estandarte com as cores nacionais no qual se lia Libertas quae sera tamen Ao fundo do palco cerca de 200 outros libertos se acomodavam numa improvisada arqui bancada montada para o evento No centro do palco se posi cionaram as autoridades presentes e os abolicionistas da cidade Aclamações vivas e inflamados discursos eram intercalados com salvas de palmas e foguetadas As festividades rasgaram a noite e se estenderam por toda a semana42 Já a notícia da Abolição só chegou em São Gonçalo do Sapucaí dois dias depois do anunciado em Campanha De acordo com a Gazeta SulMineira a mensagem foi enviada à agência dos correios que replicou a tão aguardada comunicação vinda da Corte Para a alegria de muitas pessoas que aguarda vam no local a festa na cidade se iniciou naquele instante e em pouco tempo os céus se encheram de foguetes para anunciar a boanova Após a novena em ação de graças na Igreja do Rosá rio uma passeata tomou as ruas ao som da banda dos estudantes do Liceu São Gonçalo sempre interrompido por abolicionistas e políticos que tomavam a palavra diante da multidão que os seguia pelas ruas da cidade As saudações aos abolicionistas 40 Jornal Monitor SulMineiro 1351888 Campanha CECML fl 03 41 Jornal Monitor SulMineiro 2051888 Campanha CECML fl 01 42 Jornal A Conjuração 2251888 Campanha Sistema Integrado de Acesso do Arquivo Público Mineiro doravante SIAAPM fl 01 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 78 10092018 111708 79 locais e às figuras nacionais como Luiz Gama e Antonio Bento ecoavam em alguns discursos mais inflamados43 Outros periódicos do sul de Minas narraram as diver sas comemorações que o 13 de maio de 1888 proporcionou na região Passeatas bandas de música hinos discursos abolicio nistas cerimônias religiosas e comemorações em espaços fecha dos como salões e teatros roteirizaram a programação que se viu presente na imprensa por aqueles dias Muitos queriam sau dar vibrar e defender os ideais da Abolição fossem eles assumi damente abolicionistas que marcaram a campanha nos últimos anos ou apenas adeptos de última hora levados pela onda do movimento e porque viam naqueles festejos uma oportunidade de evidenciar seus interesses pessoais Grande parte dos festejos que se deram nos salões das igrejas e nos paços municipais foi organizada pelos abolicionistas já que a Lei Áurea era aguardada em muitos cantos do país desde que seu projeto começou a ser discutido Os libertados estiveram presentes nos palcos e púlpitos preparados para os discursos e lou vores que aconteceram durante as comemorações oficiais mas também se organizaram a seu modo nos subúrbios de onde se ouviam cânticos alegres e festivos dos redimidos como se levan tando hosanas ao advento da liberdade de sua raça44 Em 13 de maio de 1888 o Brasil ainda possuía centenas de milhares de escravizados e não foi à toa que a seu modo os festejos também tivessem sido apropriados pelo libertos Por mais que nas duas últimas décadas da escravidão muitos escra vizados tenham se libertado as festas da Abolição tinham um significado especial para os que ainda continuavam cativos Por isso elas devem ser entendidas de múltiplas formas e de acordo com os interesses de seus sujeitos mas não menos como resul tado do efeito primeiro da Abolição que era libertar aqueles que em 1888 ainda continuavam escravizados Os egressos do 13 de maio viveram dias de glória por todos os cantos do país comemorando o fim das incertezas e 43 Jornal Gazeta SulMineira 2051888 São Gonçalo do Sapucaí CECML fls 02 e 03 44 Jornal A Conjuração 2251888 Campanha SIAAPM fl 03 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 79 10092018 111708 80 um possível novo tempo Por isso tomaram as ruas e sem se preocuparem com os figurinos e protocolos festejaram à sua maneira o que entendiam como sua conquista Parece claro que tenham sido essas as intenções do grupo de libertados da cidade de Campanha no caso relatado pela Gazeta que preferiu fes tejar nos subúrbios com seus pares o protagonismo de seus próprios destinos As festas oficiais para saudarem a assinatura da lei foram ferramentas importantes na disputa pelo feito da Abolição No caso da documentação estudada é nítido que ao raiar dos pri meiros vivas da Lei Áurea monarquistas e republicanos tenta ram se aproveitar dos festejos e da memória a ser construída A monarquia arquitetou associar a imagem da princesa Isabel ao ato triunfo dividido apenas com o grupo de abolicionistas que havia depositado no legalismo as benesses que agraciaram os escravizados A ideia era perpetuar a Abolição como uma oferta fruto da caridade e benevolência dada aos negros receptores por brancos doadores45 Por certo reduzir o significado da Abolição apenas aos personagens políticos e dos setores médios é negligenciar os demais atores que também se colocaram dispostos a derrubar os derradeiros pilares escravistas sobretudo os mais interessados na construção de seus próprios projetos de liberdade CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse jogo de tensões de todos os lados vimos que nos meses que antecederam o 13 de maio de 1888 as movimenta ções ocorridas nas cidades sul mineiras acompanharam o ritmo dos descontentamentos que inundaram o Império contra a con tinuidade do sistema escravista Ao provocarem uma sensação de desgoverno e desordem nos últimos tempos da escravidão aqueles sujeitos construíram um relacionamento circular feito de influências recíprocas46 que popularizavam discursos e ações 45 DAIBERT JÚNIOR Robert Isabel a Redentora dos escravos uma história da Princesa entre olhares negros e brancos 18461988 Bauru EDUSC 2004 p 126 46 GINZBURG Carlo O queijo e os vermes O cotidiano e as ideias de um moleiro perse guido pela inquisição 2 ed São Paulo Companhia das Letras 2001 p 1534 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 80 10092018 111708 81 Ao mesmo tempo que buscaram as vias legais não se rende ram a elas quando perceberam que não estavam a favor de suas agências imprimindo assim uma política nas franjas do forma lismo que passou dia após dia a condenar a escravidão Por meio das análises que buscamos fazer neste texto apresentamos as festas ocorridas na última década da escravidão como elemento de disputa de interesses mas também de celebra ção e resistência dos escravizados Assim como outras formas de enfrentamento os festejos que se realizavam nos salões e nas ruas em especial as festas negras provocavam as instituições políti cas Estas procuravam conduzir as discussões acerca da Abolição mediando as tensões principalmente através da polícia que agia na tentativa de combate às desordens anunciadas e temidas Poderíamos assim dizer que esses jogos de interesses for mavam uma complexa cadeia relacional em que um ou vários setores tentavam impelir outros procurando garantir melhores espaços de atuação para usufruírem de direitos conquistados no campo da legalidade ou não Dessa forma vimos que muitos elementos constitutivos do imaginário sociocultural dos escravi zados como as estratégias de contestação representadas pelas múltiplas formas de resistência nas quais incluímos as festas foram fundamentais para as lutas pela conquista da abolição e para a experimentação da liberdade Nessa teia de relações em última instância e de modo geral o Estado a Justiça a Polícia e a imprensa representa vam os senhores e o legítimo direito à propriedade o que não significa dizer que todos os seus agentes eram afinados em um mesmo discurso Nada mais natural entendermos com isso que seria impossível tentar formular qualquer explicação para o fenômeno da Abolição se não o víssemos como um processo dinâmico que abarcou inúmeras questões cada qual sob um prisma diverso que não pode ignorar fatores como as manobras da política formal do Império as conjunturas internacionais os interesses setoriais a opinião pública e não menos importante as variadas facetas da resistência escrava EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 81 10092018 111708 82 COM PIANOS E TAMBORES AS FESTAS ABOLICIONISTAS EM MINAS GERAIS1 Luiz Gustavo Santos Cota PARA ALÉM DA TRIBUNA AS FESTAS ABOLICIONISTAS Não raro costumase vincular o abolicionismo apenas a áridos debates travados nas tribunas parlamentares ou nas pági nas dos jornais do Império Para além destes tradicionais espaços de disputa o abolicionismo foi um movimento social plural que alcançou um público maior do que aquele que frequentava os espaços formais da política ou podia sem o embaraço do analfa betismo correr os olhos sobre as páginas da imprensa oitocentista Naqueles que foram os últimos anos de vigência escra vista no Brasil o movimento abolicionista adotou entre outras estratégias a realização de festas quermesses meetings e peças tea trais na intenção de propagar os variados projetos que visavam o fim daquilo que muitos chamavam de cancro roedor da nação Muitas vezes identificado como um movimento que ocupava apenas os salões imperiais o abolicionismo também alcançou ruas portos senzalas e demais espaços por onde cir culavam os diversos atores que compunham o complexo cenário social brasileiro fazendo com que as diferentes ideias em torno da Abolição mesmo que inicialmente engendradas no seio das elites ganhassem interpretações muito diversas Quando a festa foi a estratégia escolhida para a propaga ção das ideias de liberdade estas a festa e as ideias não se prende 1 O presente texto é parte integrante da tese de doutorado Ave libertas abolicionismo e luta pela liberdade em Minas Gerais na última década da escravidão Universidade Federal Fluminense 2013 Uma versão anterior também pode ser encontrada em PAIVA Eduardo França AMANTINO Marcia IVO Isnara Org Escravidão mestiçagens ambientes paisagens e espaços São Paulo Annablume Belo Horizonte PPGHUFMG 2011 p 253282 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 82 10092018 111708 83 ram apenas aos teatros e salões de baile onde a boa sociedade dava o tom dos eventos festivos organizados pelos clubes aboli cionistas espraiados pelo Império Os reclames pela Abolição tomaram um tom polissêmico ganharam novos rumos e espa ços ao nas palavras de Maria Helena Machado interagirem com estratos sociais perigosamente instáveis com destaque para os maiores interessados no fim da escravidão os escravos2 Obviamente muitos dos autointitulados arautos da liberdade quiseram que suas bem lapidadas palavras sufocas sem os brados vindos das ruas temendo por exemplo as con sequências do contato direto com os cativos e demais membros do populacho3 Este texto tem como intento observar especialmente atra vés de notícias estampadas na imprensa e de relatos memorialísti cos como essas interações entre o discurso que nasceu nos salões das elites imperiais e os atores sociais que circulavam pelas ruas das urbes podem ter ocorrido nas festas abolicionistas realizadas em Minas Gerais nos anos finais de vigência da escravidão Falando em festas cabe ressaltar que estas não são entendidas aqui apenas como expressão do universo cultural tido como dominante tampouco no caso das festividades tidas como populares como uma espécie de válvula de escape dos dominados em relação à hegemonia exercida pelas elites As fes tas são aqui compreendidas como campo de encontro trocas ou circularidade cultural ambiente aberto para o exercício de influência recíproca ou mesmo enfrentamento entre os diversos segmentos sociais4 Como destacou Raquel Soihet a festa não 2 MACHADO Maria Helena P T O plano e o pânico os movimentos sociais na década da abolição 2 ed rev São Paulo EDUSP 2010 p 146 3 MACHADO Humberto Fernandes Palavras e brados A imprensa abolicionista do Rio de Janeiro 18801888 Niterói EDUFF 2014 4 Acerca das discussões sobre os usos e significados da festa bem como o conceito de circularidade cultural consulte DUVIGNAUD Jean Festas e civilizações Fortaleza Universidade Federal do Ceará Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1983 GINZBURG Carlo O queijo e os vermes o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inqui sição Tradução de Maria Betânia Amoroso São Paulo Companhia das Letras 1987 BURKE Peter Cultura popular na Idade Moderna São Paulo Companhia das Letras 1989 DARNTON Robert O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa Rio de Janeiro Graal 1986 GINZBURG Carlo História noturna decifrando o sabá Tradução de Nilson Moulin Louzada São Paulo Companhia das Letras 1991 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 83 10092018 111708 84 contém apenas aspectos da chamada cultura dominante mas também elementos próprios da cultura popular com suas tra dições seus símbolos suas práticas A festa é local de encontro e lazer desses grupos nela ocorrendo uma influência recíproca entre ambos os segmentos5 Através das festas é possível aces sar determinada coletividade e seu tempo observando a forma como seus significados mudaram ao longo do tempo contendo as paixões os conflitos as crenças e as esperanças de seus pró prios agentes sociais6 A realização de encontros ou reuniões de caráter festivo foi uma das principais estratégias adotadas pelos abolicionistas brasileiros sendo entendidos como uma oportunidade de pro pagação de seus projetos de abolição e divulgação de suas ações Império afora esses eventos seguiam quase sempre o mesmo programa apresentações musicais eou teatrais seguidas de efusivos discursos e por derradeiro a distribuição de cartas de alforria a alguns sortudos7 O uso do ambiente das festas como foco de propa ganda abolicionista teria surgido no meio teatral inaugurando uma fórmula de equilíbrio mágico entre ficção e realidade8 De acordo com Eduardo Silva no dia 27 de junho de 1870 ao fim de um benefício9 organizado por ocasião da despedida do ator italiano Ernesto Rossi dos palcos da Corte atores bra sileiros da Companhia Fênix homenagearam o colega estran geiro libertando em cena aberta uma pardinha de 2 anos de 5 SOIHET Raquel O drama da conquista na festa reflexões sobre resistência indígena e circularidade cultural Estudos Históricos v 5 n 9 p 46 1992 6 ABREU Martha O Império do Divino festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro 18301900 Rio de Janeiro Nova Fronteira São Paulo Fapesp 1999 p 38 Sobre festas em Minas Gerais consultar dentre outros CHAMON Carla Simone Feste jos imperiais festa cívica em Minas Gerais 18151845 Bragança Paulista EDUSF 2002 ARAÚJO Patrícia Vargas Lopes de Folganças populares festejos de entrudo e carnaval em Minas Gerais no século XIX São Paulo Annablume Belo Horizonte PPGHUFMG Fapemig FCC 2008 7 SILVA Eduardo Resistência negra teatro e abolição da escravatura In REU NIÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PESQUISA HISTÓRIA 26 jul 2006 SANTANNA Thiago Noites abolicionistas as mulheres encenam o teatro e abusam do piano na cidade de Goiás 18701888 OPSIS Revista do NIESC v 6 2006 8 SILVA Resistência negra p 2 9 Espetáculo especial cuja renda revertia em favor de um artista geralmente a grande estrela e não da companhia teatral como um todo Ibidem EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 84 10092018 111708 85 idade sensibilizando tanto o público que lotava o Teatro Lírico Fluminense quanto o homenageado que em seguida dirigiu à plateia um emocionado discurso a favor do fim da escravidão10 Com porções de ficção teatro e música e realidade propaganda abolicionista e libertação de escravos estava criado aquilo que Eduardo Silva nomeou de fórmula Rossi a perfeita combina ção de entretenimento e propaganda através da qual os especta dores seriam convencidos da necessidade da abolição através da emoção gerada pelo espetáculo de beneficência11 As conferências abolicionistas da Corte inauguradas em junho de 1880 por iniciativa da Associação Central Eman cipadora e capitaneadas inicialmente pelos intelectuais negros Vicente de Souza e José do Patrocínio não deixaram de seguir a fórmula Rossi aliando os discursos doutrinários a um espe táculo teatral artístico e cultural completo Daí em diante a fórmula se estendeu às matinées abolicionistas que elevaram o tom artístico atraindo um público cada vez maior ao apresen tarem uma programação dividida entre apresentação de orques tra discursos representações teatrais e poéticas e finalmente os benefícios abolicionistas integralmente dedicados à liber tação de escravos em cena pública12 Como destaca Celso Thomaz Castilho ao observar o movimento abolicionista do Recife a organização de eventos públicos por parte dos militantes da Abolição desde os grandes comícios aos bazares foi responsável pela criação de uma nova cultura política popular em relação às noções de política então existentes no Brasil da segunda metade do Oitocentos13 Não fugindo à regra criada pelos abolicionistas da Corte a estratégia de combinar festa e propaganda esteve presente em salões e ruas de Minas Gerais 10 Ibidem 11 SILVA op cit p 4 12 Ibidem p 58 13 CASTILHO Celso Thomaz Abolitionism Matters The Politics of Antislavery in Per nambuco Brazil 18691888 Dissertation of Doctor of Philosophy in History Uni versity of California Berkeley 2008 p 1314 Sobre o conceito de Cultura Política consultar DUTRA Eliana de Freitas História e culturas políticas Definições usos genealogias Vária História Belo Horizonte n 28 2001 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 85 10092018 111708 86 FESTEJOS PELAS GERAIS Ouro Preto então capital mineira também viu as agre miações abolicionistas ali organizadas lançarem mão da fórmula Rossi A primeira festa abolicionista da antiga Vila Rica foi orga nizada em 1881 ano emblemático para o movimento devido à fundação da Sociedade Brasileira contra a Escravidão entidade criada na Corte e capitaneada por figuras como Joaquim Nabuco André Rebouças João Clapp José do Patrocínio14 Organizada por uma plêiade de jovens da boa socie dade da antiga capital mineira com a finalidade de homena gear a chamada Lei do Ventre Livre 1871 e seu propugnador o visconde do Rio Branco a festa chamou a atenção do redator do jornal A Actualidade que a identificou como uma reunião esplên dida como há muito não se via na capital Regada a encenações teatrais declamação de poemas e até à execução de um hino composto pelo autor de A escrava Isaura o famoso poeta e roman cista Bernardo Guimarães especialmente em homenagem à lei não fugia à regra das festas abolicionistas de outras plagas15 Anos mais tarde em novembro de 1883 foi a vez de a recémcriada Sociedade Abolicionista Libertadora Mineira orga nizar uma festa em comemoração à posse de sua diretoria ocor rida no dia dez daquele mesmo mês no paço da Assembleia Pro vincial Os discursos doutrinários de costume foram seguidos da distribuição de duas cartas de liberdade além de um brilhante concerto musical executado por distintas senhoras da socie dade ouropretana16 Alguns dias após a posse da diretoria defini tiva da Sociedade uma nota assinada por seu primeiro secretário o estudante gaúcho Luiz Caetano Ferraz que anos mais tarde se formaria engenheiro pela Escola de Minas de Ouro Preto17 infor 14 CONRAD Robert Os últimos anos da escravatura no Brasil Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1978 p 172173 15 A ACTUALIDADE Ouro Preto 04101881 Sistema Integrado de Acesso do Arquivo Público Mineiro SIAAPM 16 A PROVÍNCIA DE MINAS Ouro Preto 15 de novembro de 1883 SIAAPM 17 A ESCOLA de Minas 18761976 1º Centenário volume 1 Ouro Preto Oficinas gráficas da Universidade Federal de Ouro Preto 1976 p 98 Sobre a Escola de Minas de Ouro Preto consultar CARVALHO José Murilo de A Escola de Minas de Ouro Preto o peso da glória 2 ed Belo Horizonte Ed UFMG 2002 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 86 10092018 111708 87 mava que a pedido de seu presidente havia sido constituída uma comissão entre seus membros com o fim de organizar e recolher prendas para um bazar em prol dos fundos da entidade Côns cio de que as excelentíssimas senhoras e cavalheiros da capital aquiescentes das ideias do progresso social colaborariam com o ato de beneficência intentado pela Sociedade o secretário infor mava que os donativos também poderiam ser depositados na casa do professor Archias Medrado presidente da entidade18 Ideia semelhante tiveram os membros do Clube Abolicio nista Mineiro Visconde do Rio Branco que também organizaram um grande festivalbazar no dia 31 de dezembro de 1883 tam bém no paço da Assembleia Provincial Os bilhetes para a festa foram vendidos nas casas de alguns membros do clube a dois mil réis cada e o programa seria distribuído na entrada às 20 horas19 No entanto a tômbola acabou sendo realizada apenas no dia 5 de janeiro do ano seguinte com brilho digno dos salões da Corte com direito à presença da deslumbrante elite da sociedade ouro pretana que era recebida na entrada pela banda de música do corpo de polícia a qual fazia o prelúdio do festival organizado em benefício daquela humanitária associação O salão foi decorado com um dossel de veludo verde sob o qual se destacava o estandarte do clube que exibia a mais famosa premissa positivista a qual anos mais tarde também figuraria na bandeira nacional Ordem e Progresso20 Os presentes puderam apreciar um concerto musical dividido em duas partes sendo a ouverture de cada sessão executada pelos professores da Sociedade Musical Henrique de Mesquita que interpretaram peças de Beethoven e Verdi Ao final das várias demonstrações de habilidade musical tiveram lugar as ideias filantrópicas dos senhores Dr Joaquim Francisco de Paula e coronel Egydio da Silva Campos que concederam alforria a dois escravos sendo as cartas de liberdade entregues pelo presi dente do clube Chrockatt de Sá 21 18 A PROVÍNCIA DE MINAS Ouro Preto 20111883 SIAAPM 19 A PROVÍNCIA DE MINAS Ouro Preto 28121883 SIAAPM 20 LIBERAL MINEIRO Ouro Preto 16011884 SIAAPM 21 LIBERAL MINEIRO Ouro Preto 16011884 SIAAPM EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 87 10092018 111708 88 Aparentemente o nome da sociedade musical prestava homenagem a Henrique Alves de Mesquita 18301906 músico negro que ganhou destaque na Corte elogiado por Machado de Assis para quem seria uma espécie de Beethoven brasileiro Conhecido primeiramente pelas composições clássicas influen ciadas pela obra de mestres como Bellini Donizetti Auber e Rossini Mesquita granjeou apoio do próprio imperador Pedro II que financiou seus estudos em Paris sendo então o primeiro músico brasileiro a ter seus estudos subvencionados na Europa em 1857 De volta ao Brasil já não gozando das graças do impe rador além do repertório erudito Mesquita se destacou pelos trabalhos ligados ao teatromusicado especialmente o teatro de revista e espetáculos de mágica22 No ano de 1884 um texto intitulado A vela do janga deiro publicado no jornal Liberal Mineiro assinado pelos profes sores do Liceu Mineiro Affonso de Britto membro da comissão de sindicância da Libertadora Mineira e Samuel Brandão futu ros redatores do jornal abolicionista homônimo23 conclamava a população de Ouro Preto e especialmente as sociedades abo licionistas para festejarem o fim da escravidão na província do Ceará24 Os mestres pediam que seus conterrâneos se juntassem às comemorações que ocorreriam por todo o Império no dia 25 de março de 1884 louvando a generosa e mártir província do 22 AUGUSTO Antonio J Da pérola mais luminosa à poeira do esquecimento a traje tória de Henrique Alves de Mesquita músico do Império de Santa Cruz In LOPES Antonio Herculano ABREU Martha ULHÔA Martha Tupinambá de VELOSO Monica Pimenta Org Música e história no longo século XIX Rio de Janeiro Fundação Casa de Rui Barbosa 2011 p 421 450 23 Sobre os jornais abolicionistas de Ouro Preto COTA Luiz Gustavo Ave libertas abolicionismos e luta pela liberdade em Minas Gerais na última década da escravidão 2013 Tese Doutorado em História Social Departamento de História Universidade Federal Fluminense Niterói 2013 p 124207 24 Os festejos organizados pelos abolicionistas ouropretanos foram realizados ao mesmo tempo que seus colegas da Corte e outros de várias partes do país saudavam o fim da escravidão na província do Ceará Sobre as comemorações da abolição do Ceará em outras regiões do Império consulte CASTILHO Celso Thomaz Abolitionism Matters The Politics of Antislavery in Pernambuco Brazil 18691888 Dissertation of Doctor of Philosophy in History University of California Berkeley 2008 p 1314 FERREIRA Lusirene Nas asas da imprensa a repercussão da abolição da escravatura na província do Ceará nos periódicos do Rio de Janeiro 18841885 2010 Dissertação Mestrado em História Departamento de Ciências Sociais Universidade Federal de São João delRei São João delRei MG 2010 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 88 10092018 111708 89 Ceará educada na escola da desgraça já naqueles tempos a província havia sido fustigada por uma dura seca que quebrava para sempre os grilhões da escravidão25 Os amigos da liberdade acabaram ouvindo o chamado dos mestres Foi formada uma comissão executiva tendo à frente as sociedades abolicionistas Visconde do Rio Branco e a Liberta dora Mineira a fim de cuidar da organização da festa Os festejos começariam às 5 horas ao som das explosões de fogos de artifício e com a banda de música da polícia percorrendo as ruas da capital Às 15 horas sairia uma procissão cívica do paço da Assembleia para qual estavam convidados todos os amigos da liberdade dos escravos tendo à frente os estandartes das sociedades abolicio nistas conduzidos pelos presidentes Chrockatt de Sá e Archias Medrado O préstito desfilaria pelas ruas da cidade retornando ao paço onde ocorreria uma sessão solene contando com discursos de representantes das duas sociedades abolicionistas Josephino Pires pela Visconde do Rio Branco e o provecto professor da Escola de Minas Leônidas Damásio pela Libertadora Mineira que em seguida distribuiriam cartas de alforria Por fim o pro grama ainda comportava a declamação de um poema por parte do mimoso poeta diamantinense João Nepomuceno Kubits chek 26 e um concerto musical oferecido pelas mais distintas senhoras abolicionistas da capital27 O jornal A Província de Minas descreveu todos os porme nores da festa que cumpriu quase à risca o programa prefixado pela comissão executiva Os ouropretanos foram acordados pelo foguetório ao raiar do dia como um anúncio da nova era na história da pátria28 Os presidentes das sociedades abolicionistas o professor da Escola de Minas e iniciador da ideia abolicionista na capital 25 LIBERAL MINEIRO Ouro Preto 15031884 SIAAPM 26 Professor poeta e jornalista natural da cidade do Serro Minas Gerais 1843 Entre 1883 e 1885 desempenhou as funções de Diretor da Instrução Pública de Minas Tio avô do futuro presidente da República Juscelino Kubitschek de Oliveira MONTEIRO Norma de Góis Org Dicionário biográfico de Minas Gerais Período Republicano 18891991 Belo Horizonte Assembleia Legislativa de Minas Gerais 1994 27 LIBERAL MINEIRO Ouro Preto 29031884 SIAAPM 28 A PROVÍNCIA DE MINAS Ouro Preto 27031884 SIAAPM EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 89 10092018 111708 90 Dr Archias Medrado e o diretor das obras públicas o engenheiro positivista Chrockatt de Sá marchavam triunfantes à frente do préstito da liberdade sendo acompanhados pela banda de música do corpo policial precedida pelos estandartes de cada sociedade O estandarte da Libertadora Mineira de cor grená e bordado a ouro trazia simbolizando o progresso a figura de uma mulher empunhando uma tocha com a mão direita e apontando o hori zonte com a esquerda como se convidasse o povo a seguila na peregrinação luminosa Já o do Clube Rio Branco trazia um losango com a divisa positivista Ordem e Progresso palavras que na opinião do redator do A Província de Minas resumem a síntese do desenvolvimento sociológico29 Entre as várias saudações que a marcha abolicionista teria recebido nas ruas da capital o redator destacou as recebi das por parte do belo sexo As flores atiradas sobre os estan dartes saudando o préstito simbolizavam a adesão do sexo feminino à causa abolicionista Essa explosão de entusiasmo tinha um grande signifi cado de parte do belo sexo Representantes da moral na família entes sensíveis por excelência saudando a marcha cívica em honra do Ceará como que sentiam em si todo o horror que inspira essa palavra escravo túmulo frio e sinistro da persona lidade humana É que os grandes pensamentos vêm do coração como diz Vauvenargues e a mulher conjunto de sentimentos afetivos não podia por certo deixar de abra çar essa causa humanitária Pois bem entre risos filhos da alegria sincera que tinham elas atiravam flores Hurrah Mil vezes hurrah É a conquista maior dos abolicionistas Conquistado o coração da mulher a causa é ganha30 A participação das mulheres nas festividades organizadas pelas sociedades abolicionistas de Ouro Preto é algo marcante 29 A PROVÍNCIA DE MINAS Ouro Preto 2731884 SIAAPM 30 A PROVÍNCIA DE MINAS Ouro Preto 2731884 SIAAPM EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 90 10092018 111708 91 sobretudo no que diz respeito às apresentações musicais Segundo Thiago SantAnna que observou o papel feminino nas noites abolicionistas organizadas na cidade de Goiás a atuação das mulheres na campanha abolicionista na forma de protagonistas das apresentações artísticas acabava por atenuar a distância entre o movimento e a sociedade em geral31 Ainda segundo o autor os festivais abolicionistas teriam contribuído também para a disse minação dos modelos de comportamento incorporados pela elite bem como para a visibilidade política das mulheres que através de sua participação nas festas buscavam sua inserção como sujei tos e não como meros elementos decorativos32 Também Ângela Alonso destacou o fato de a multi plicidade social do movimento abolicionista ter dado espaço para inclusão política de gênero em uma época em que uma miríade de diretos era negada às mulheres Segundo a autora as mulheres tiveram acesso ao universo abolicionista por três vias pela filantropia através por exemplo das associações dedica das especificamente à libertação de crianças e de escravas de braço com marido pai ou irmão abolicionista sendo introdu zidas no mundo da política pelos homens da família ou pelo mundo da arte por onde artistas escritoras e principalmente cantoras e atrizes mulheres livres dos impedimentos da famí lia tradicional conseguiram adentrar o mundo abolicionista como foi o caso de Chiquinha Gonzaga Havia sim hierarquia entre os e as abolicionistas Em uma sociedade tradicional a distinção de gênero é crucial Mas os abolicionistas produziram uma politização da vida privada envolvendo mulheres e crianças na propa ganda por exemplo caso da matinée musicale total mente feminina que João Clapp organizou no Rio de Janeiro em 6 de fevereiro de 1881 Associação Central Emancipadora Boletim n8 2031881 p 1933 31 SANTANNA Thiago Noites abolicionistas as mulheres encenam o teatro e abusam do piano na cidade de Goiás 18701888 OPSIS Revista do NIESC v 6 p 69 2006 32 SANTANNA 2006 p 71 76 33 ALONSO Ângela Associativismo avant la lettre as sociedades pela abolição da escravidão no Brasil oitocentista Sociologias Porto Alegre ano 13 n 28 p 186187 setdez 2011 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 91 10092018 111708 92 Muitas dessas mulheres tomaram parte ativa em asso ciações masculinas ou criaram suas próprias Não só na capital onde se suporia maior tolerância Pelo menos 26 sociedades abolicionistas femininas se formaram ao longo da campanha situadas em 10 das 20 províncias do Império 18 delas exclusivamente de mulheres34 Corroborando Ângela Alonso Roger Kittleson cons tatou que o movimento abolicionista brasileiro possibilitou um alto grau de visibilidade para as mulheres tendo elas par ticipado de boa parte das manifestações públicas organizadas como as campanhas de arrecadação de donativos para compra de alforrias A feminização do movimento não só através da presença mas de qualidades tidas como inerentes às mulheres do Brasil da segunda metade do século XIX como a caridade teria atendido aos pedidos de líderes como José do Patrocínio para quem a libertação viria através da magia de sua graça35 Ainda segundo Kittleson a presença feminina no abolicionismo brasileiro encontra seu paralelo nos abolicionismos organizados no mundo atlântico como na GrãBretanha e nos Estados Uni dos onde as mulheres participaram maciçamente da campanha pela abolição36 Entretanto a participação feminina apesar de ampla e importante não conseguiu romper naquele momento as amarras de uma sociedade predominantemente machista proporcionando avanços em relação a direitos de participação no mundo formal da política pelo voto por exemplo Voltando às comemorações do dia 25 de março em Ouro Preto após a intervenção feminina os participantes da marcha retornaram ao paço da Assembleia Provincial em meio ao confuso 34 ALONSO Ângela Associativismo avant la lettre as sociedades pela abolição da escravidão no Brasil oitocentista Sociologias Porto Alegre ano 13 n 28 p 186187 setdez 2011 Entre as agremiações abolicionistas femininas arroladas pela autora não consta nenhuma de Minas Gerais 35 KITTLESON Roger A Women and Notions of Womanhood in the Brazilian Abo litionism In SCULLY Pamela PATON Diana Gender and Slave Emancipation in the Atlantic World Durhan and London Duke University Press 2005 p 99120 Campaign all of Peace and Charity Gender and the Politics of Abolitionism in Porto Alegre Brazil 187988 Slavery Abolition v 22 n 3 p 83108 Dec 2001 36 KITTLESON 2005 p 102 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 92 10092018 111708 93 burburinho que ali se formava A praça em frente nas palavras da imprensa regurgitava gente O povo apinhado em bur burinho confuso percorria as estreitas ruas do pequeno jardim tendo ao centro a coluna Saldanha Marinho erguida à memória do protótipo da liberdade Tiradentes e junto a ela havia ainda um coreto representando a jangada com que Francisco do Nasci mento fechou o porto do Ceará ao tráfico de escravos Tudo era alegria tudo era festa Segundo o redator a música inebriava os presentes De um lado estavam as excelentís simas senhoras da sociedade e do outro a massa confusa de todos os cidadãos desde o presidente da província até o pobre operá rio e claro escravos37 Ao fim de uma sessão recheada de discur sos como quase sempre foram entregues duas cartas de alforria uma por cada sociedade A fórmula Rossi havia sido cumprida O primeiro evento organizado em conjunto pelos abo licionistas pelo visto deve ter chamado a atenção de muita gente Afinal de contas era a primeira vez que as atividades das associações transgrediam de certa forma os salões da Imperial Cidade de Ouro Preto para tomar suas ruas Do presidente da província até o pobre operário aquela massa confusa que acompanhou o movimento do préstito se deparava com algo novo Mesmo em meio aos signos do poder e culminando nos discursos e concertos musicais bem comportados de sempre tamanha manifestação levava aos transeuntes da urbe entre eles escravos e libertos o tema da abolição A ordem que se tentava transmitir no salão ou nas ruas um suposto império da harmonia representa no mais das vezes uma tentativa das elites letradas em imprimir um modelo de ordenamento e por que não de controle social As festas são descritas como manifestações civilizadas exercidas por perso nagens pintadas como verdadeiros exemplos a serem seguidos As notas publicadas nos jornais destacam os nomes de aboli cionistas suas senhoras e proprietários escravistas que huma nitariamente acabaram por abrir mão de sua propriedade Já escravos e libertos no discurso da elite letrada acabam por 37 A PROVÍNCIA DE MINAS Ouro Preto 2731884 SIAAPM EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 93 10092018 111708 94 habitar as coxias do teatro da fórmula Rossi sem nome e sem destaque para além da carta de alforria recebida ao fim das fes tividades Escravos e libertos muitas vezes são relegados ao posto de objeto decorativo em vez de sujeito da Abolição38 Entre tanto não há como perder de vista o fato de que aqueles tidos como coadjuvantes elaboram sua própria interpretação do script elaborado pelas elites redefinindo assim seu papel na história como veremos a seguir A POLISSEMIA DAS RUAS TAMBORES EM CENA Muitos dos transeuntes das ruas da capital interpretaram à sua maneira a ideia de liberdade propagada pelas festas que puderam presenciar Os eventos organizados pelos abolicionis tas certamente chamaram a atenção de muita gente entre aquela massa confusa descrita pela imprensa Afinal de contas ao extrapolar os salões da Imperial Cidade de Ouro Preto mesmo se esforçando na organização de todo o ambiente das festas que deveriam primar pela beleza e pela ordem os abolicionistas aca bavam por permitir que os habitantes da cidade tivessem um contato mais direto com determinadas ideias e assim pudessem entendêlas da forma que melhor lhes conviesse Como desta cou o redator do A Província de Minas as festas especialmente a organizada em honra à Abolição no Ceará em 1884 tiveram um auditório muito diversificado que compreendia do presi dente da província até o pobre operário uma massa confusa que se deparava com algo novo Mesmo culminando nos discur sos e concertos musicais bem comportados de sempre tamanha manifestação levava aos transeuntes da urbe entre eles escravos e libertos o tema da abolição Mas os ecos abolicionistas não corriam apenas pelas ruas tortas da velha capital Distante de Ouro Preto a cidade de Diamantina foi palco de interações mais claras entre abolicionistas escravos e libertos no seio das festas pela Abolição O jornal 17º Distrito órgão do 38 Sobre as tentativas de controle social de escravos e libertos consultar Schwarcz Lilia Moritz Dos males da dádiva sobre as ambiguidades no processo da Abolição brasi leira In SANTOS Flávio Gomes dos CUNHA Olívia Org Quasecidadão histórias e antropologias da pósemancipação no Brasil Rio de Janeiro Editora FGV 2007 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 94 10092018 111708 95 partido liberal em Diamantina trouxe em sua edição do dia 12 de julho de 1885 uma rica descrição dos festejos realizados no mês anterior por ocasião do retorno à cidade de um de seus filhos mais diletos39 João da Matta Machado Júnior médico formado na Faculdade de Medicina da Corte pertencente à geração de figuras como Joaquim Murtinho e Lopes Trovão retornava da capital do Império gozando de alto prestígio A carreira política do filho de uma tradicional família diamantinense estava em plena ascensão Aos 33 anos o político liberal já havia sido eleito deputado provincial 1878 e deputado geral 1882 acumulando o cargo de primeiro secretário da Assembleia Nacional tendo chegado naquele ano ao posto de ministro dos negócios estran geiros do gabinete Sousa Dantas Se seu prestígio era grande no círculo político da Corte em Diamantina era gigantesco40 Ao retornar à terra natal e circunvizinhanças o conse lheiro Matta Machado foi recebido como herói não só por seus correligionários mas também por membros da elite local Mem bro de um gabinete francamente abolicionista fato que provo caria a queda de Souza Dantas ainda naquele ano foi saudado com vivas discursos poesias e danças atos executados por uma variada gama de atores sociais da chamada região Jequiti nhonhaMucuriDoce A chegada do conselheiro a Diamantina no dia 17 de junho de 1885 desencadeou uma grande festa que de acordo com os jornais mobilizou toda a cidade41 Uma das primeiras homenagens feitas ao abolicionista foi prestada pelo Sr Ivo Silveira um dos responsáveis pela constru ção de uma arcada de onde o conselheiro faria um de seus vários pronunciamentos Conhecido como hábil oficial de carpinteiro e cidadão geralmente estimado e respeitado pelas suas excelentes qualidades o Sr Ivo Silveira era um liberto como também o são 39 17º DISTRITO Diamantina 12071885 Suplemento Biblioteca Nacional BN 40 MARTINS Marcos Lobato Os Matta Machado de Diamantina negócios e política na virada do século XIX para o século XX In SEMINÁRIO SOBRE A ECONOMIA MINEIRA 13 2008 Belo Horizonte Anais Belo Horizonte CEDEPLARUFMG 2008 p 6 MACHADO FILHO Aires da Matta Arraial do Tijuco cidade de Diamantina 3 ed Belo Horizonte Itatiaia São Paulo Edusp 1980 p149 O conselheiro era tioavô do conhecido folclorista Aires da Matta Machado Filho 41 17º DISTRITO Diamantina 1271885 Suplemento BN EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 95 10092018 111708 96 o grande cidadão José do Patrocínio o apóstolo do abolicionismo brasileiro o Dr Agostinho dos Reis o jovem e ilustrado lente cate drático da Escola Politécnica da corte e tantos outros não menos ilustres42 Não se julgando desdourado por ter sido uma dita vítima do mais negro e repugnante crime dos povos civilizados Ivo Silveira que também laborava como um dedicado propug nador das ideias abolicionistas tomou a palavra na arcada mon tada em frente à sua casa dirigindo a palavra não só ao conselheiro Matta Machado mas também a um numeroso grupo de libertos e escravizados entre estes vários sexagenários a quem o gabinete Souza Dantas tencionava conferir a libertação imediata43 Além de Ivo Silveira também subiu à tribuna o liberto Genaro que ao saudar o conselheiro Matta Machado em nome da raça escravizada afirmou que nele enxergava uma das nobres e grandes vítimas da patriótica ideia do abolicionismo e uma das esperanças dos oprimidos terminando a essa brilhante alocução com vivas ao conselheiro Matta Machado ao gabinete 6 de Junho e a Joaquim Nabuco44 Logo após Genaro outro liberto o jovem e simpático Sr Feliciano aluno do Externato de Instrução Secundária de Diamantina pronunciou um dos mais eloquentes e apaixonados discursos que a comitiva tinha ouvido até ali Por fim um jovem escravo tomou a palavra em nome dos sexagenários presentes saudando o conselheiro aboli cionista que comovido profundamente em palavras enérgicas e repassadas de patriotismo e sentimento apreciou devidamente a significativa manifestação que recebia dos libertos e escraviza dos do município45 42 17º DISTRITO Diamantina 1271885 Suplemento BN 43 O ministério liberal Sousa Dantas tentou com franco apoio abolicionista aprovar um projeto de libertação dos sexagenários de forma imediata e sem indenização aos res pectivos senhores Souza Dantas sofreu dura oposição de proprietários escravistas polí ticos conservadores e dissidentes liberais que argumentavam ser o projeto uma ameaça ao que chamaram de espírito da lei de 1871 ou seja quebrava algumas das promessas feitas na ocasião em que a lei Rio Branco foi aprovada Dentre as tais promessas estavam o respeito ao direito de propriedade senhorial através da indenização e a manutenção de um processo de emancipação lento e gradual Joseli M N Mendonça Entre as mãos e os anéis a Lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil Campinas Editora Unicamp Centro de Pesquisa em História Social da Cultura 1999 p139 44 17º DISTRITO Diamantina 1271885 Suplemento BN 45 17º DISTRITO Diamantina 1271885 Suplemento BN EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 96 10092018 111708 97 Em resposta às manifestações organizadas pelos escravos e libertos Matta Machado afirmou que as palavras proferidas pelos oradores aqueles libertos e escravizados que tão lucidamente mostravam compreender as grandes ideias da civilização moderna e os verdadeiros interesses desta pátria constituíam um protesto vivo contra aqueles que apregoavam que do escravo não se pode pela liberdade formar um cidadão útil ao país Segundo o aboli cionista brasileiros escravos ou livres eram filhos da mesma pátria a todos competindo o dever de lutar por progresso e felicidade Entretanto após ter afirmado a igualdade entre brasileiros livres e escravos o conselheiro acabou por dizer que os brasileiros ainda cativos deveriam se resignar ainda por algum tempo pois o país infelizmente ainda não podia dispensar bruscamente o trabalho servil sem antes se organizar o trabalho livre O escravo deveria continuar seu martírio enquanto os brasileiros livres batalhavam para que no menor prazo possível sem perturbações da ordem pública e do trabalho nacional a Abolição fosse feita João Matta Machado adotou a mesma postura de mui tos de seus companheiros abolicionistas reagindo da maneira mais conservadora possível em relação ao contato direto com escravos e libertos que naquele instante adotavam a postura de protagonistas de sujeitos O conselheiro logo ergueu vivas ao imperador o grande amigo dos oprimidos e ao conselheiro Dantas recebendo a seguir um buquê de flores artificiais ofer tado em nome dos escravos sexagenários os mesmos que deve riam esperar mais um tempo para alcançar sua liberdade46 As festas em homenagem a Matta Machado foram reto madas no dia 24 de junho quando foi realizado um espetáculo de gala o drama abolicionista Habbas escolhido adhoc47 O teatro público estava lotado com seus camarotes ricamente enfeitados A fórmula Rossi foi aplicada com a música encenações e dis cursos de sempre Contudo o conselheiro voltaria a se encontrar com os coadjuvantes que teimavam em ser protagonistas Já no oitavo dia de comemoração depois da chegada do dileto filho da Diamantina os festejos foram encerrados com 46 17º DISTRITO Diamantina 1271885 Suplemento BN 47 17º DISTRITO Diamantina 1271885 Suplemento BN EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 97 10092018 111709 98 um desembarque de marujos executado por escravos e libertos da cidade que nas ruas quiseram patentear os seus sentimentos de gratidão e amizade ao ilustre abolicionista membro do imorre douro gabinete 6 de Junho mostrando também seu protagonismo Concentrados nos arrabaldes da cidade de Diamantina ricamente vestidos e armados os marujos embarcaram no que seria a representação de uma barca de guerra com 3 mastros tendo em seu tope bandeiras com dísticos alusivos partindo em seguida rumo ao encontro com os abolicionistas ao som dos cânticos marítimos da tripulação No Largo da Cavalhada Nova tido como o mais espaçoso e belo da cidade à espera dos maru jos se encontrava uma fortaleza em cujo parapeito passeavam as sentinelas fardadas e armadas e estava o comandante que de binóculo em punho explorava as vezes o horizonte48 O cenário da representação estava armado uma orquestra do Corinho executava suas músicas enquanto o povo lotava o largo e as senhoras se debruçavam nas janelas à espera dos marujos Surgindo no horizonte a barca que em breve dá fundo no centro do largo a encenação teve início com a embarcação saudando a fortaleza com vários tiros pronta mente correspondidos O dançado seguiu com o desembar que do comandante e oficialidade que parlamentaram com a fortaleza e obtida a necessária vênia desembarcam todos os marujos negros e mestiços escravos e libertos que incorpora dos se dirigiram à casa do major Manoel Cezar junto à qual se encontrava a representação da fortaleza local onde também se achava o conselheiro João da Matta Machado e sua família O homenageado e demais componentes da boa sociedade dia mantinense estavam em uma espécie de camarote apartado do restante do público este provavelmente diverso composto por livres pobres negros escravos e libertos Mais uma vez o jovem e talentoso liberto Feliciano Duarte que junto com outros libertos havia dirigido a palavra ao conselheiro no dia de sua chegada pronunciou mais uma vez um eloquente discurso abolicionista que culminou com a oferta em 48 17º DISTRITO Diamantina 1271885 Suplemento BN EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 98 10092018 111709 99 nome da raça escravizada de uma linda coroa de louros naturais atada com uma fita de gorgorão branco onde em letras de ouro havia uma dedicatória Recebida a homenagem o conselheiro Matta Machado agradeceu a delicada oferta formulando votos pela realização do legítimo desejo de todos os brasileiros patriotas que anseiam por ver a pátria expurgada do crime da escravidão Marujos e o povo que lotava o largo prorromperam em acla mações ao conselheiro e ao gabinete 6 de Junho Com o fim das formalidades os marujos percorreram alegremente as ruas da cidade executando suas danças até a alta noite Descrito pelos redatores do 17º Distrito como um dan çado popular muito interessante e pitoresco o desembarque de marujos também conhecido em muitas regiões do Brasil como Marujada Fandango Nau Catarineta ou Chegança de Marujos é parte integrante do conjunto de manifestações culturais nomea das de reinado congos congado ou congadas A representação da coroação de reis africanos em meio às comemorações e home nagens rendidas aos santos de devoção dos negros como Nossa Senhora do Rosário São Benedito Santa Ifigênia e Nossa Senhora das Mercês além do Divino Espírito Santo teria sua origem em fins do século XV período de início do processo de cristianização do reino do Congo África CentroOcidental região que forneceu a maior parte dos cativos vindos para o sudeste brasileiro49 Produto do encontro de elementos culturais ibéricos espe cialmente o catolicismo e africanos estes continuamente ressig nificados durante o longo e constante processo de crioulização pelo qual passaram os escravos que cruzaram forçosamente o Atlântico50 as congadas se constituíram como importante espaço 49 TINHORÃO José Ramos Os sons negros no Brasil cantos danças folguedos origens São Paulo Art Editora 1988 SOUZA Marina de Mello e Reis negros no Brasil escravista história da festa de coroação de Rei Congo Belo Horizonte Editora UFMG 2002 p 19 63 50 Processo de formação de uma cultura ou identidade afroamericana a partir da ressig nificação e adaptação das referências culturais africanas no ambiente do Novo Mundo Uma discussão sobre o conceito pode ser encontrada em GILROY Paul O Atlântico negro modernidade e dupla consciência São Paulo Editora 34 Rio de Janeiro Universidade Cândido Mendes Centro de Estudos AfroAsiáticos 2001 MINTZ Sidney W PRICE Richard O nascimento da cultura afroamericana uma perspectiva antropológica Rio de Janeiro PallasUniversidade Cândido Mendes 2003 REIS João José Domingos Sodré um sacerdote africano escravidão liberdade e candomblé na Bahia do século XIX São Paulo Companhia das Letras 2008 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 99 10092018 111709 100 de resistência negra no seio da sociedade escravista geralmente ligadas a irmandades religiosas51 Como observou Célia Maia Borges através da dramatização que compõe o complexo ritual os participantes acabavam por inverter a realidade vivida ins taurando o tempo da utopia superando simbolicamente o coti diano de submissão incorporando o papel de vencedores52 Ainda segundo a autora alguns dos rituais se estruturaram em torno da apresentação de danças dramáticas representando grupos rivais em combate brancos negros e índios sendo que os negros nos autos dramáticos são os vencedores por gozarem da proteção de Nossa Senhora o que representava uma completa inversão da realidade por eles vivida53 Os grupos que compõem os festejos chamados de ternos ou guardas têm uma função específica na dramatização da his tória se diferenciando pelas indumentárias instrumentos musi cais e padrões rítmicos utilizados além de se responsabilizarem pela proteção dos festeiros54 Em Minas Gerais existem pelo menos oito ternos ou guardas de congadas cuja presença varia de uma região para a outra Candombe Moçambique Congo Vilão Marujos Catopés Cavaleiros de São Jorge e Caboclos55 Geralmente todo o ritual gira em torno do mito da apa rição de Nossa Senhora do Rosário para negros cujas versões variam bastante de uma região para outra De acordo com um 51 BORGES Célia Maia Escravos e libertos nas Irmandades do Rosário devoção e solidarie dade em Minas Gerais séculos XVIII e XIX Juiz de Fora Editora UFJF 2005 52 BORGES 2005 p 192 53 BORGES Célia Maia 2005 p 178 54 LEONEL Guilherme Guimarães Entre a cruz e os tambores conflitos e tensões nas Fes tas do Reinado Divinópolis MG 2009 Dissertação Mestrado em Ciências Sociais Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Belo Horizonte 2009 p 34 55 Sobre Congadas em Minas Gerais consultar QUEIROZ Luís Ricardo Silva Perfor mance musical nos Ternos de Catopês de Montes Claros 2005 Tese Doutorado em Música Universidade Federal da Bahia Salvador 2005 LEONEL Guilherme Guimarães Entre a cruz e os tambores conflitos e tensões nas Festas do Reinado Divinópolis MG 2009 Dissertação Mestrado em Ciências Sociais Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Belo Horizonte 2009 GABARRA Larissa Oliveira e O reinado do Congo no Impé rio do Brasil o congado de Minas Gerais no século XIX e as memórias da África Central 2009 Dis sertação Mestrado em História Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro 2009 RUBIÃO Fernanda Pires Os negros do Rosário memórias identidades e tradições no Congado de Oliveira 19502009 2010 Dissertação Mestrado em História Social Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Universidade Federal Fluminense 2010 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 100 10092018 111709 101 grupo de congadeiros de Milho Verde localidade próxima a Dia mantina uma imagem de Nossa Senhora do Rosário teria apare cido no mar e os brancos representados pela guarda dos Maru jos teriam ido até a beira da água dançando e cantando na tenta tiva de atrair a santa que não se moveu Em seguida teriam ido os índios representados pelos caboclos que também não lograram êxito Por derradeiro teriam sido os negros que depois de muito insistir dançando batendo seus tambores e cantando consegui ram atrair para si Nossa Senhora do Rosário56 Para além do repertório clássico dos significados do con gado condimentado pela construção de um catolicismo popular e pela devoção aos santos negros os Marujos de Diamantina negros livres libertos e escravos apresentaram em público sua própria interpretação acerca dos projetos de abolição em dis cussão naquele momento Sua deferência em relação ao conse lheiro Matta Machado não seria portanto uma demonstração unívoca de obediência e submissão mas de que também eram agentes políticos de sua própria história De acordo com o jornal 17º Distrito era digna de especial menção a manutenção da ordem durante os festejos Em tantos dias ruidosos nos quais tomaram parte ativa mais de oito mil pessoas de Diamantina e mesmo de lugares longínquos pessoas de ambos os sexos idades classes e posições envolvidas naquele alegre tumulto das ruas nenhum tipo de perturbação da ordem pública foi registrado nem mesmo o mais leve desacato se notou em parte alguma Para os redatores do órgão de imprensa do partido liberal a paz reinou devido à homogeneidade do pensa mento entre o público formado por brancos negros livres liber tos e escravos que consideravam aquela grandiosa festa como sendo sua própria e cada um se esforçava portanto para evitar que a mais leve sombra viesse empanar a alegria pública Meses depois da grande festa de recepção em Diaman tina o conselheiro Matta Machado seria mais uma vez brindado 56 MAIA Andréa Casa Nova et al Narrativas ficcionais em multimídia paradoxos da tradição e do turismo na festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos no Alto Jequitinhonha Minas Gerais In ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA ORAL 8 Rio Branco Anais Rio Branco UFAC 2006 p 7 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 101 10092018 111709 102 com interessantes manifestações de apreço por ele e pelas ideias abolicionistas agora nas circunvizinhanças da antiga Vila do Tijuco No dia 17 de setembro daquele mesmo ano de 1885 ao visitar o arraial de Rio Preto atual São Gonçalo do Rio Preto Matta Machado foi brindado com mais uma homenagem dire tamente ligada às manifestações dos negros da região Em meio à visita do importante político um grupo de caboclinhos per corria as ruas do arraial alegrando e distraindo o povo com seus bem ensaiados e originais bailados Um dos ternos de con gado que compõem a festa do Rosário Os caboclinhos se apresentava ricamente fantasiado ornado de vistosas penas e armados de arcos e flechas representando ao vivo uma tribo inteira com seus caciques anciãos mulheres crianças e guer reiros percorrendo as ruas entoando cantos selvagens cujas letras diziam que tinham partido do centro de suas matas para manifestarem a sua adesão ao conselheiro Matta Machado e às ideias abolicionistas57 O redator do 17º Distrito se desculpava por não ter conse guido registrar com exatidão algumas das coplas cantadas pelos caboclinhos citando apenas um verso que conseguira gravar na memória devido ao fato de ter sido insistentemente repetido pelos índios dando segundo ele uma ideia exata do pensamento que dirigia o folguedo Aceitamos seu projeto grifo original Tro cando em miúdos segundo o relato publicado no jornal os cabo clinhos declararam sua adesão ao projeto político representado por Matta Machado aceitando seu projeto de abolição Assim os caboclos muitos deles certamente negros e mestiços escravos e libertos afirmavam possuir sua interpreta ção do que seria o projeto do conselheiro e do gabinete que representava e ao cair da tarde lá foram eles até a casa onde se encontrava o abolicionista executando os seus complicados e graciosos bailados com maestria e precisão notáveis com des taque para duas mimosas e galantes crianças essas filhas dos correligionários dos senhores capitão João Pires da Rocha pro vavelmente da Guarda Nacional e Luiz José Velloso Soares 57 17º DISTRITO Diamantina 09111885 BN EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 102 10092018 111709 103 Chegada a noite as manifestações de adesão ao con selheiro e às ideias abolicionistas se estenderam novamente às ruas todas iluminadas onde se encontrava um grande grupo de meninos que se juntaram aos caboclos saindo em passeata ao som de uma banda de música Também as distintas senhoras do arraial assim como muitas pessoas gradas e o povo em geral tomaram parte do festim regado ao som da música e do estron dar dos foguetes A festa foi encerrada com os discursos profe ridos por crianças que entoavam hinos à liberdade à abolição e ao progresso da pátria que assim antecipadamente davam provas de que serão em próximo futuro outros tantos soldados da liberdade58 De volta à capital da província e anos mais tarde já às portas da Abolição os coadjuvantes também queriam se transformar em protagonistas A chegada do abolicionismo às ruas de Ouro Preto ocorrida pela primeira vez em 1884 teve seus reflexos mais claros entre os escravos nos anos de 1887 e 1888 em razão do fato de que setores do próprio movimento passaram a formular uma outra noção de luta pela liberdade um pouco diferente da fórmula Rossi o que levou a uma onda de fugas de escravos de diversas regiões da província em direção à capital59 O abolicionismo deixava de ser apenas uma bem com portada reunião de salão tendo entre seus militantes membros que se alinhavam às alas mais radicais da luta pelo fim da escra vidão acoitando escravos fugitivos atividade perigosa e ilegal Por sua vez os cativos podem ter entendido que aquele era o momento de correr rumo ao que poderia ser sua liberdade Com a notícia se espalhando por ruas e senzalas de que havia alento na capital para quem lutava pela liberdade muitos escravos não pensaram duas vezes em aproveitar o ensejo o que parece ter 58 17º DISTRITO Diamantina 09111885 BN Interessante pensar que os cabo clos para além de seu papel dentro das dramatizações congadeiras também são figuras de alto relevo em manifestações religiosas afrobrasileiras como a umbanda em que se apresentam como entidades espirituais remetendo inclusive aos chamados pretos velhos 59 COTA Luiz Gustavo Santos O sagrado direito da liberdade escravidão liberdade e abolicionismo em Ouro Preto e Mariana 1871 a 1888 2007 Dissertação Mestrado em História Universidade Federal de Juiz de Fora 2007 p 131135 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 103 10092018 111709 104 alcançado proporções consideráveis na reta final do processo de abolição preocupando as autoridades e políticos locais60 Bem próximo à capital em uma freguesia da vizinha Mariana ocorreu um fato que representa tanto a forma como os escravos ressignificaram a ideia de liberdade através das festas pela Abolição quanto o fato de a capital ter se transformado em destino certo para quem fugia do cativeiro Um relato registrado em um livro de tombo da freguesia marianense de Furquim narra com riqueza de detalhes a forma como a ideia da pro ximidade da Abolição e sua exposição através da festa ganhou contornos imprevisíveis61 De acordo com o documento ao tomarem contato com uma carta pastoral do então bispo da diocese de Mariana Dom Antonio Corrêa de Sá e Benevides na qual o prelado pregava mesmo que moderadamente a libertação dos escravos em honra ao Jubileu de Ouro do Papa Leão XIII62 vários mora dores da freguesia decidiram levar a cabo a ideia de libertar seus escravos mesmo que condicionalmente promovendo uma grande festa marcada para o dia 1º de janeiro de 1888 dia do padroeiro da localidade63 O caso foi que chegado o dia da libertação do arraial em meio à bela festa organizada muitos dos convivas eram escravos que mesmo não tendo sido agraciados com a tão sonhada liberdade festejaram como se fosse o dia da própria Abolição De acordo com o relato escravos de diversas fazendas da região tomaram parte nos festejos mesmo que a contragosto de seus senhores que ali não compareceram por supostamente temerem um levante por parte dos cativos que como nunca aguardavam a chegada da festa do padroeiro Indiferentes à ausência dos fazendeiros escravistas e à chuva que alagava as ruas do arraial os presentes livres e escra 60 LIBERAL MINEIRO Ouro Preto 03031888 SIAAPM 61 Livro do Tombo da freguesia do Furquim Livro 26 1884 1901 folha 19verso prateleira J Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana AEAM 62 COTA Luiz Gustavo Ave libertas abolicionismos e luta pela liberdade em Minas Gerais na última década da escravidão 2013 Tese Doutorado em História Social Departamento de História Universidade Federal Fluminense Niterói 2013 p 178191 63 Livro do Tombo da freguesia do Furquim Livro 26 1884 1901 folha 19verso prateleira J AEAM EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 104 10092018 111709 105 vos marcharam em procissão pelas ruas após o TeDeum feli citando os senhores que tinham libertado seus cativos ao som de vivas e música o que durou até as 22 horas Entusiasmados com a suposta proximidade da liberdade muitos escravos não arredaram o pé do arraial só retornando às suas fazendas no dia seguinte Sob o manto da promessa da liberdade muitos escra vos promoveram sua festa de desregramento subvertendo a ordem vigente64 O resultado não foi dos melhores para alguns dos festeiros que ao regressarem às suas fazendas foram recebi dos a chicotadas por seus respectivos senhores A esperança de liberdade enxergada na festa somada aos castigos sofridos desencadeou uma verdadeira onda de fugas das fazendas próximas em direção à então capital mineira como foi o caso de 30 escravos da fazenda do Engenho Novo que haviam retornado ao arraial trazendo consigo um companheiro ferido pelo administrador da fazenda Simão da Costa Carvalho Na ausência das autoridades policiais ou quaisquer outras que pudessem auxi liar a solução proposta foi a fuga em direção a Ouro Preto onde os fugitivos chegaram na manhã seguinte tendo lá encontrado auxí lio de abolicionistas que após acolher os escravos iniciaram uma negociação com o advogado dos respectivos senhores dos escravos o Sr José da Costa Carvalho Sampaio a qual resultou na liberdade destes com o ônus de serviço por dois anos65 Com anuência das autoridades ou não assim como os escravos do Engenho Novo outros começaram a fugir para a capital da província De acordo com o documento o aumento das fugas para Ouro Preto teria forçado vários senhores a liber tarem seus escravos mesmo que condicionalmente na intenção de não perderem esses braços 66 64 SILVA Eduardo Interação globalização e festa a abolição da escravatura como história cultural In PAMPLONA Marco Antonio Org Escravidão exclusão e cidadania Rio de Janeiro Acess 2001 p 115 65 Margareth Bakos observou uma situação parecida na província do Rio Grande do Sul em uma charqueada de Pelotas onde abolicionistas mediaram um conflito entre escravos insurretos e seus senhores BAKOS Margareth Marchiori Repensando o processo abolicionista sulriograndense Estudos IberoAmericanos v 16 n 2 p 132 133 1988 66 Livro do Tombo da freguesia do Furquim Livro 26 1884 1901 folha 19verso prateleira J AEAM EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 105 10092018 111709 106 CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma das armas de propaganda mais utilizada pelo movimento abolicionista as festas acabaram por se constituir em um espaço propagador de clamores pela Abolição cada vez mais polissêmicos principalmente no ambiente das ruas Mesmo com todo cuidado e preocupação com a manutenção da ordem e transmissão de exemplos civilizatórios através das festividades escravos e libertos que circulavam pelas ruas e eitos de Minas Gerais souberam aproveitar todas as brechas a fim de captar e interpretar ao seu modo os clamores pela Abolição Como destacaram Martha Abreu e Larissa Viana as festas abriram possibilidades para o exercício de outras dimen sões da cidadania para muito além do voto ou das represen tações instituídas pelas constituições imperial e republicana67 Ao invadirem as ruas com seus marujos caboclos e batu ques a despeito do jogo de repressão e tolerância que se operava naquele tempo escravos e libertos se apropriaram do espaço público imprimindo nele o sentido político de sua luta por liberdade e cidadania Especialmente no caso de Diamantina a explícita interpretação dos congadeiros demonstra como a festa se constituiu mesmo que sofrendo com o policiamento da boa sociedade amante da ordem como um campo aberto para as reivindicações de direitos ampliando os sentidos da cidadania 67 ABREU Martha VIANA Larissa Festas religiosas cultura e política no Império do Brasil In GRINBERG Keila SALLES Ricardo Org O Brasil imperial volume III 18701889 Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2009 p 237 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 106 10092018 111709 107 A FESTA DA ABOLIÇÃO DO 13 DE MAIO COMEMORAÇÕES IDENTIDADE E MEMÓRIA Renata Figueiredo Moraes Ao narrarem os acontecimentos prévios e posteriores à Abolição autores de livros didáticos da última década passaram a utilizar como ilustração as fotografias das festas ocorridas no Rio de Janeiro após o 13 de maio de 1888 Na maioria das vezes essas fotos são utilizadas sem uma maior problematização sobre os eventos que registravam e reforçam a ideia de uma cidade em festa por conta da libertação dos escravos1 Em outras obras os protagonistas da Abolição são apontados ou no texto principal ou em box A princesa Isabel e os abolicionistas José do Patrocí nio e Luís Gama são os mais presentes e geralmente a biografia desses últimos aparece de forma destacada dos textos2 Uma questão crucial é pensar como as festas ficaram registradas na cultura histórica da abolição e como serviram para a construção de uma memória a respeito da própria come moração e dos sujeitos da Abolição 1 Um exemplo disso é o livro História volume 2 de autoria de Ronaldo Vainfas Sheila de Castro Faria Jorge Ferreira e Georgina dos Santos 2010 No capítulo O Brasil do Império à República o movimento abolicionista é abordado em duas partes Uma que remete às dificuldades surgidas após a Guerra do Paraguai e o questionamento a respeito da legitimidade da escravidão Na outra parte chamada de Rumo à abolição a metade da página é ocupada por uma foto de Augusto Elias um dos fotógrafos da Abolição que registrou o préstito da imprensa realizado no dia 20 de maio de 1888 No livro não há referências a esse detalhe da fotografia apenas a legenda festejos pela assinatura da Lei Áurea imagem de Augusto Elias 1888 p 286 2 Luiz Gama aparece destacado do texto principal na parte do capítulo chamada as leis abolicionistas num livro destinado aos alunos do segundo ano do ensino médio Sua data de nascimento e morte são destacados além da sua cor e atuação nos tribunais pela libertação dos escravos No texto principal as ações valorizadas são as ligadas às leis de 1871 e 1885 assim como à do 13 de maio assinada pela regente Essa parte do texto é finalizada afirmando que a vida dos negros após a abolição não sofreu muitas alterações uma vez que não houve preocupação em integrálos à sociedade BRAICK Patrícia Ramos MOTA Myriam Brecho História das cavernas ao terceiro milênio volume 2 Da conquista da América ao século XIX São Paulo Moderna 2013 p 216 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 107 10092018 111709 108 Um ponto a ser destacado a respeito das festas é sobre a sua função no que tange à continuidade de uma luta por maiores direi tos sociais e políticos dos exescravizados Apesar da variedade dos eventos realizados pelo 13 de maio muitos deles patrocinados pelos homens das letras ligados aos jornais da corte bailes públicos espe táculos teatrais préstitos eventos esportivos entre outros não fazia parte da pauta das comemorações uma reflexão a respeito do tipo de abolição que se fazia e dos próximos passos na luta por direitos Promover as festas não significava portanto continuar a campanha abolicionista por aqueles recémlibertados do cativeiro e nem cele brar uma identidade negra Apesar disso a liberdade dos escravos foi comemorada por abolicionistas literatos homens da política e também por exescravizados todos atuantes de certo modo para a sua conquista tendo alguns permanecido na memória construída a partir da festa de maio de 1888 Entender os diálogos entre esses diferentes sujeitos é o objetivo deste texto Nas festas se reconstruí ram identidades e através da memória foi se redefinindo um pas sado e projetando um futuro Entre os promotores da festa da Abolição e que reme moraram o 13 de maio nos anos seguintes estavam literatos Machado de Assis e Coelho Neto por exemplo trabalhado res e homens ligados a sociedades beneficentes ou de diversão Todos esses sujeitos na sua diversidade produziram de algum modo uma memória a partir da sua trajetória de vida e suas ligações com a escravidão e a abolição Nessa produção fizeram o reforço da participação de alguns personagens no processo abolicionista elencando ações cruciais para o fim da escravidão Somadas a essa seleção de fatos e personagens as crises políticas do Império e da República interferiram de forma significativa no espaço que esses festejos ocuparam na cena social a cada ano e na maneira como suas memórias foram construídas Diante disso o recorte escolhido para este texto foi o período entre dois momentos cruciais o primeiro aniversário da Abolição em 1889 ainda no Império e o quinto aniversá rio em 1893 após a primeira grande crise da República provo cada por conta da renúncia do marechal Deodoro em 1891 e a permanência do seu vice na presidência o marechal Floriano EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 108 10092018 111709 109 Peixoto Esses dois momentos que abrem e fecham essa argu mentação também marcam um tempo de construção de uma memória oficial da Abolição mas principalmente os sentidos da liberdade O que é ser livre no Império e na República Qual outra abolição seria necessária para que a liberdade pudesse ser vivida na sua plenitude As festas pelo 13 de maio fazem parte das discussões do pósAbolição principalmente no que tange à construção de uma memória que seus construtores pretendiam que fosse a oficial É preciso inserir uma perspectiva social ou cultural nos estudos do pósAbolição3 e vêlo como um tempo de enquadramento de uma memória A participação de diferentes sujeitos no processo aboli cionista e toda a complexidade que envolveu o seu projeto acaba ram sendo simplificadas na medida em que apenas alguns ganham espaço na festa ou oportunidades para celebrar suas experiências e deixálas registradas Todo o processo abolicionista assim como a experiência da escravidão parece essencial para que a cada ano se estabeleçam os possíveis heróis de um tempo A princesa Isa bel ou José do Patrocínio sendo louvados como heróis fazem parte de uma reconstrução constante da memória celebrada a cada ani versário muitas vezes também afetada pelas peculiaridades políti cas de cada ano A presença do herói republicano ou monarquista na memória oficial da Abolição é o resultado de uma batalha pela memória promovida por literatos homens da imprensa e traba lhadores entre eles exescravos e seus descendentes Todos esses elementos acabaram se conjugando e formando uma cultura his tórica da abolição reproduzida nos livros didáticos4 Historicizar essa formação através das festas é uma forma de pensar também na heterogeneidade de sujeitos e ações que envolveram a abolição da escravidão 3 MATTOS Hebe Maria RIOS Ana Maria O pósabolição como problema histórico balan ços e perspectivas Topoi v 5 n 8 p 170198 janjun 2004 4 Ângela de Castro Gomes chama a atenção para a possibilidade de mais de uma cul tura histórica conviver e disputar espaço GOMES Ângela de Castro Cultura política e cultura histórica no Estado Novo In ABREU Martha SOIHET Rachel GONTIJO Rebeca Org Cultura política e leituras do passado historiografia e ensino de história Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2007 p 4363 O período da abolição e o tempo que o seguiu devem ser vistos nessa perspectiva de batalhas de construção de uma memória e da formação de mais de uma cultura histórica diante da cultura política vigente EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 109 10092018 111709 110 O DESÂNIMO NA REPÚBLICA Os primeiros anos republicanos foram de tensão política diante da indefinição do destino da República após a renúncia do marechal Deodoro em 1891 Por sua vez os literatos que haviam batalhado pela Abolição de diferentes formas ressig nificavam os seus sentidos a partir de suas memórias e do que ocorreu nos dias e anos seguintes Na República os aniversários da assinatura da lei já não ofereciam tanto entusiasmo quanto aquele vivido em 1888 Essa possível apatia diante dos aniversários da Abolição talvez se justifi casse diante da tensão política e das ressignificações que o próprio conceito de liberdade sofria diante da política republicana No dia seguinte ao quinto aniversário da Abolição Machado de Assis percebera uma mudança na atmosfera daque les dias que já não eram mais de festa Ontem de manhã descendo ao jardim achei a grama as flores e as folhagens transidas de frio e pingando Chovera a noite inteira o chão estava molhado o céu feio e triste e o Corcovado de carapuça Eram seis horas as fortalezas e os navios começaram a salvar pelo quinto aniversário do Treze de Maio Não havia esperanças de sol e eu perguntei a mim mesmo se o não teríamos nesse grande aniversário É tão bom poder exclamar Soldados é o sol de Austerlitz O sol é na verdade o sócio natural das alegrias públicas e ainda as domésticas sem ele parecem minguadas5 O sol da liberdade tão aclamado nas poesias em 1888 não participara da festa de 1893 quando apenas ocorreram feste jos oficiais do regime republicano Para Machado de Assis as cele brações de 1893 tornaram aquele dia feio e triste Nada se com parava àquele dia vivido por ele e seus companheiros das letras e das ruas em 1888 As lembranças do 13 de maio de anos passados permaneciam na sua memória e também nessa sua crônica Houve sol e grande sol naquele domingo de 1888 em que o Senado votou a lei que a regente sancionou e 5 ASSIS Machado de A Semana Gazeta de Notícias 14 de maio de 1893 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 110 10092018 111709 111 todos saímos à rua Sim também eu saí à rua eu o mais encolhido dos caramujos também eu entrei no préstito em carruagem aberta se me fazem favor hóspede de um gordo amigo ausente todos respiravam felicidade tudo era delírio Verdadeiramente foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto6 O sol do 13 de maio de 1888 parece ser mais um ele mento para o cenário de festa que tinha na sua claridade o sím bolo de um entusiasmo geral O dia de delírio público vivido de forma singular era rememorado por Machado de Assis o que servia também para ele comemorar aquela data em 1893 A mudança climática e o não aparecimento do sol cinco anos depois não era a única diferença sentida pelo cronista A falta de uma luz natural e de uma empolgação espontânea pare cia ligarse ao momento vivido na capital da jovem República Os anos republicanos pareciam mais nublados que aque les do Império para alguns literatos Os que haviam lutado pela liberdade dos escravos em 1888 alguns anos mais tarde tiveram de adaptar seus escritos ao momento político do país ou enfrentar a perseguição promovida pelo então presidente Floriano Peixoto Uma das causas dessa perseguição foi a publicação de críticas nos jornais condenando a sua permanência no cargo de presidente após a renúncia do Marechal Deodoro em 1891 No jornal O Com bate onde trabalhavam Olavo Bilac e Pardal Mallet Rui Barbosa lançou pela primeira vez a proposta de que em caso de renúncia do presidente com menos de dois anos no cargo seria necessária a convocação de novas eleições7 Ou seja uma profunda crítica ao posicionamento assumido por Floriano Peixoto que se recusou a cumprir tal norma após a saída do marechal Deodoro O auge da crise foi a prisão dos opositores do presi dente que foram mandados para o exílio8 em diferentes locais do país em pleno 21 de abril data em que a República come 6 Ibidem 7 SILVA Ana Carolina Feracin da Entre a pena e a espada Literatura e política no governo de Floriano Peixoto uma análise do jornal O Combate 1892 Cadernos AEL v 9 n 1617 2002 8 Os últimos acontecimentos Diário de Notícias 20 de abril de 1892 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 111 10092018 111709 112 morava o centenário de morte de Tiradentes mártir do sen timento republicano9 Entre celebrações pela memória do inconfidente e perseguições políticas os literatos nesse ano se dividiram entre os que escaparam do exílio e assim tiveram que calar suas críticas àquela República e os que deixaram a cidade presos ou autoexilados Diante disso as comemorações pela Abolição realiza das no Rio de Janeiro em 1892 não puderam contar com um importante homenageado José do Patrocínio um dos conde nados naquele ano O motivo dessa punição foi também por conta de um possível apoio do abolicionista ao marechal Deo doro sendo interpretado pela política florianista como ato de conspiração e sedição10 A capital da República vivia dias tensos e sob estado de sítio decretado pelo governo11 Além de Patro cínio foram presos também para prestar depoimento e alguns condenados ao exílio Dermeval da Fonseca redator da Gazeta de Notícias Antonio Francisco Bandeira Júnior Osmar Rosas e Muniz Varela do jornal Novidades e João Clapp presidente da Confederação Abolicionista entre militares e parlamentares12 Olavo Bilac e Pardal Mallet foram também presos e mandados para o exílio no mesmo dia 21 de abril13 Na ocasião um dos defensores dos presos consequen temente de Patrocínio foi Rui Barbosa que num discurso ao Supremo feito a favor da soltura dos exilados utilizou a data do 13 de maio como argumento enfatizando a atuação de Patrocí nio nos festejos pela Abolição Era o homem que nas primeiras celebrações de 13 de maio toda a imprensa desta capital coroava como o liber tador dos escravos Ah Que palavras que teve então para ele a mocidade Que continências o exército Que distin 9 O Tiradentes Diário de Notícias 21 de abril de 1892 A data representava o centenário de morte de Tiradentes e inúmeras celebrações foram realizadas para marcar esse dia 10 O Paiz 12 de abril de 1892 ORICO Osvaldo O tigre da abolição Rio de Janeiro Ediouro 196 p 164 11 O Paiz 12 de abril de 1892 12 Idem 13 Pardal Mallet e Olavo Bilac aparecem na lista daqueles que iriam para o exílio publi cada nO Paiz 13 de abril de 1892 Na lista dos exilados não consta o nome de João Clapp EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 112 10092018 111709 113 ções o alto jornalismo Agora bastou que o aceno do poder lhe pusesse um sinal de suspeita para que essas flores se transformassem em detritos14 Rui Barbosa recorria à data da Abolição e ao posiciona mento abolicionista de Patrocínio como argumentos para a sua soltura Além disso criticava a imprensa que a seu ver naquele momento não apoiara o abolicionista em defesa da sua liber dade Os argumentos de Rui Barbosa não serviram para a emis são do habeas corpus e os oposicionistas de Floriano só voltaram do exílio em setembro daquele ano15 A crônica de Machado de Assis em 1893 sintetizava um período de indefinição e de desânimo em relação à política repu blicana e também à ausência de entusiasmo ilustrada pela falta do sol que havia iluminado todo o país em maio de 1888 No pri meiro aniversário da Abolição as comemorações e a lembrança da glória daquele ano de 1888 insistiam em aparecer em textos publicados por uma imprensa não mais tão festeira que por sua vez reforçava os protagonismos daqueles dias de glória Além de marcar os sujeitos da liberdade a imprensa também redefinia aquele episódio para a composição da história da nação e o peso do protagonismo dos jornais tanto no apoio dado à Abolição quanto na realização dos grandiosos festejos Tamanho apoio e protagonismo no entanto seriam revistos nos anos turbulentos da República AS FESTAS NO IMPÉRIO O primeiro aniversário da Lei Áurea devia ser come morado como momento de síntese de um ano de liberdade Um dos pontos reiterados pelos redatores de O Paiz era o da ordem vivida desde a libertação dos escravos Essa ordem tinha de se confirmar nas festas que celebrariam o primeiro aniversário da 14 ORICO Osvaldo O tigre da abolição Rio de Janeiro Ediouro 196 p 165 O pedido de habeascorpus apresentado por Rui Barbosa foi feito no dia 20 de abril Diário de Notícias 21 de abril de 1892 15 MAGALHÃES JÚNIOR Raimundo A vida turbulenta de José do Patrocínio São Paulo LISA 1972 p 296 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 113 10092018 111709 114 data o dia 13 de maio deve ser e será um dia de paz exigia o editor do jornal O Paiz dias antes16 Além da paz as festas ser viriam para confirmar a força dos eventos do ano anterior cujo sentido era reafirmado por um redator da Gazeta de Notícias Esse dia o maior da nossa história e o maior porque anunciou aos povos cultos que já não havia mais escravos neste vasto território americano foi assinalado por festas cuja recordação perdurará na memória dos que assistiram a imponente manifestação da alegria popular e transmi tirseá de pais a filhos para que nunca fique esquecido o dia em que a Pátria conquistou o direito de afirmar que é também nação culta e que à sombra de leis civilizadoras nela habita um povo livre17 Para o editor do jornal a lei também libertara o país e por isso as festas realizadas naquele ano de 1889 deveriam ter a função de reforçar a memória coletiva18 acerca daquele ato construído no ano anterior e que inseria o país no grupo de nações cultas e modernas algo impossível enquanto perdurasse a escravidão Em 1889 do ponto de vista dos agentes públicos o 13 de maio aparecia também como um momento de reafirmação e cris talização do protagonismo atribuído no ano anterior a persona gens do mundo político às quais era dada a vitória da causa abo licionista Ainda que de forma efêmera foi feita a troca dos nomes de algumas ruas e praças da cidade como meio de homenagear aqueles que seriam os protagonistas da Abolição Desse modo a rua da Saúde virou rua Antonio Prado em homenagem ao abo licionista paulista a rua dos Inválidos Thomaz Coelho ministro do Império a da Guarda Velha rua Treze de Maio a rua do Passeio se tornou rua Joaquim Nabuco o Largo da Lapa se trans formava na Praça D Isabel a Redentora e por fim o Largo do Catete passava a se chamar Praça Ferreira Viana ministro da Jus 16 13 de maio O Paiz 10 de maio de 1889 17 Gazeta de Notícias 14 de maio de 1889 18 SILVA Helenice Rodrigues da Rememoração comemoração as utilizações sociais da memória Revista Brasileira de História São Paulo v 22 n 44 p 425438 Segundo a autora e baseada em Paul Ricoeur as comemorações servem para reforçar a memória coletiva EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 114 10092018 111709 115 tiça em 188819 O responsável pela iniciativa não foi identificado na nota divulgada pela Gazeta de Notícias que apenas informou que a troca das placas das ruas teria ocorrido no dia anterior20 De modo claro a iniciativa repetia as homenagens feitas em 1888 quando os nomes dos abolicionistas e membros do parlamento enfeitavam as fachadas das redações dos jornais Nesta perspec tiva a festa de 1889 teria o fim de consolidar certa memória da Abolição e dos sujeitos que seriam seus protagonistas reiterando a lógica reproduzida pela imprensa carioca nos dias seguintes à assinatura da lei Nessa lógica o papel do escravo na conquista da sua liberdade novamente não era um ponto reconhecido A festa da Abolição era para relembrar quem lutou por ela e quem assi nou a própria lei abolicionistas letrados e o Império e não quem havia sido libertado por ela O primeiro aniversário da Abolição também teve cele brações com a presença de membros da família imperial que na manhã do dia 13 de maio desembarcaram no Arsenal da Marinha Saudados por autoridades e pelo povo que estava ali presente eles acompanharam o cortejo até a Igreja do Rosá rio onde ocorreu um TeDeum em homenagem ao aniversário da lei21 Após a cerimônia a família se dirigiu ao Imperial Tea tro Pedro II onde foi recebida pelos membros da Confederação Abolicionista responsáveis pela organização das comemorações daquele ano O imperador e a princesa foram saudados por José do Patrocínio e também com leitura de textos e poesias22 Ao findar o espetáculo a família se dirigiu ao Paço Imperial onde pôde testemunhar a praça D Pedro II cheia daqueles que que riam saudála Era como um ato de homenagem à monarquia associada à festa da Abolição que se organizavam as comemo rações oficiais 19 Apenas a rua da Guarda Velha que passou a se chamar rua Treze de Maio atual mente conta com um monumento em homenagem à princesa Isabel e à reprodução da Lei da Abolição 20 Gazeta de Notícias 13 de maio de 1889 Dessas ruas apenas a da Guarda Velha mudou definitivamente para rua Treze de Maio 21 Gazeta de Notícias 14 de maio de 1889 22 Diário de Notícias 9 de maio de 1889 Aluízio de Azevedo leu na ocasião trechos do seu livro O Cortiço EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 115 10092018 111709 116 A família imperial principalmente na figura da princesa Isabel também era saudada por sujeitos distantes do mundo letrado mas que pareciam estabelecer com ele um diálogo claro sobre os sentidos atribuídos à Abolição O nome da princesa foi dado a uma sociedade formada no calor dos acontecimentos de 1888 e que no ano seguinte também comemorava seu primeiro aniversário a Associação Beneficente D Isabel A Redentora Esta era uma instituição de caridade que tinha como uma das missões socorrer os associados em caso de necessidade e festejar o glo rioso 13 de maio23 No primeiro ano a forma de celebrar a Abolição foi dar posse à nova diretoria24 Tratavase assim de uma sociedade cujos membros reforçavam uma memória em torno da lei erigida já no ano anterior que tinha por fim desta car o posicionamento da própria princesa no processo de con quista da liberdade e o sentido de dádiva de sua ação O papel da princesa e da imprensa para o fim da escra vidão também foi valorizado por associações civis em préstitos pelas ruas da cidade Era o caso da Sociedade Particular de Música Prazer da Glória e da Amante da Liberdade Ambas através de um pequeno anúncio chamavam seus sócios a participar dos fes tejos A Prazer da Glória não informou que tipo de evento seria realizado solicitando apenas que seus sócios comparecessem à sede do clube na parte da tarde25 Já os sócios da Amante da Liberdade sairiam em caminhada da sua sede em Botafogo até o Arsenal da Marinha para homenagear a princesa26 Formada por homens de cor esta sociedade realizou ainda na parte da 23 Diário de Notícias 23 de maio de 1888 Exercer a caridade estava entre as funções dessa associação no documento enviado à Câmara Municipal tratando a respeito da sua cria ção Abolição da escravidão Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro 6214 24 Gazeta de Notícias 13 de maio de 1889 A solenidade de posse foi informada em anún cios publicados nos jornais pela entidade 25 A Sociedade Particular Prazer da Glória aparece nos jornais desde o final de 1870 quando elaborava seu estatuto Sua sede ficava na rua Dois de Dezembro esquina com a rua do Catete não sendo o número informado nas vezes em que esse endereço apareceu nos jornais Em setembro de 1884 seus membros participaram de uma festividade do Club Emancipador Visconde de Caravelas para celebrar o aniversário da lei de 28 de setembro Na ocasião foram doadas cartas de liberdade No entanto a participação da sociedade musical se restringia a tocar músicas sem informações sobre seus membros ou suas composições Gazeta de Notícias 30 de setembro de 1884 26 Idem A família imperial compareceu ao Arsenal da Marinha na parte da manhã EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 116 10092018 111709 117 tarde outro préstito pela rua do Ouvidor para saudar a impren sa27 Casos como estes deixavam claro o sucesso das imagens unívocas construídas no ano anterior pela imprensa para a festa cujos sentidos eram reafirmados em muitas manifestações de sujeitos distantes das esferas letradas28 Mais uma vez no entanto a construção de tais sentidos se fazia em paralelo à afirmação de outros significados para a data expressos em formas particulares de celebração que se fize ram notar pelas ruas da cidade em 1889 Essas formas foram citadas por Coelho Netto que se empenhara nos anos anteriores na campanha abolicionista No início da década de 1880 o jovem literato no seu contato com o abolicionismo de São Paulo utilizava a literatura como forma de engajamento político e social na denúncia contra a escra vidão29 No primeiro aniversário da lei ainda no Império em crônica publicada poucos dias antes da data assinada com a inicial N30 ele centra sua atenção naqueles que eram de fato o centro da celebração dando a ver com isso a possibilidade de existência de formas diversas de celebração da data 13 de maio a páscoa dos escravos está batendo às portas É o primeiro aniversário do êxodo dos negros curvemo nos diante da turba que formiga ao longe preparandose para a marcha triunfal rememorada da hégira Hebreus do Misraim nós os modernos vamos ter também a nossa 27 Gazeta de Notícias 14 de maio de 1889 28 Em maio de 1888 a imprensa do Rio de Janeiro foi a responsável pela realização de grandes festejos que comemoraram a Abolição e sua forma Entre as imagens feitas pelo fotógrafo Antonio Luiz Ferreira há uma da rua do Ouvidor sede de grande parte desses jornais com mulheres e homens negros que festejavam a abolição em frente às redações desses jornais enfeitadas com nomes e fotos de abolicionistas Desse modo desde 1888 a própria imprensa tenta colocar entre os protagonistas daquela ação os seus redatores e a própria instituição jornalística MORAES Renata Figueiredo As festas da Abolição o 13 de maio e seus significados no Rio de Janeiro 18881908 2012 Tese Doutorado em História Social da Cultura Departamento de História Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2012 29 PEREIRA Leonardo Affonso de Miranda Barricadas na Academia literatura e abolicio nismo na produção do jovem Coelho Netto Tempo Rio de Janeiro n 10 p 1537 2000 30 Essa era a forma como Netto passou a assinar a série cronística Bilhetes postais publicada no jornal O Paiz entre 18921893 SILVA Ana Carolina Feracin da Introdu ção COELHO NETTO Bilhetes postais Campinas SP Mercado das letras CECULT São Paulo Fapesp 2002 p 726 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 117 10092018 111710 118 festa dos tabernáculos a festa das senzalas O cativeiro não foi exclusivamente para vós outros se construístes as pirâmides se edificastes os tempos na terra do Nilo ao sol rubro enquanto os vossos profetas cantavam as dores da vossa raça eles os africanos edificaram mais fize ram com o seu sangue o adubo da terra plantaram com os seus braços as primeiras sementes tiraram as mamas das bocas dos filhos negros para as bocas dos senhores recém nascidos deram toda a força toda a vida à terra fizeram mais do que vós hebreus sofreram mais do que vós israelitas31 Ao descrever a data como a páscoa dos escravos Coe lho Netto se mostrava partidário de uma forma de encarála próxima ao universo letrado no qual imagens religiosas como estas já marcavam desde o ano anterior a caracterização do ato celebrado Através do paralelo com a história dos hebreus e a sua saída do Egito ele indicava ser aquela uma festa que extrapolava o universo dos festejos oficiais Para ele tratavase de uma festa das senzalas que deveria ser celebrada de forma própria por aqueles que mais tinham a comemorar os africa nos Por este motivo defendia que se desse espaço para que os próprios protagonistas da festa pudessem realizar livremente sua celebração Não interrompamos a festa sagrada dos negros é um rito novo o 13 de maio é a religião da liberdade explicava o escritor como a indicar certa tendência de repressão aos batuques com os quais os negros haviam comemorado no ano anterior a liberdade E finaliza Deixemos passar os que festejam a páscoa Por mais que compartilhasse dos sentidos atribuídos à festa por outras parcelas do mundo letrado de seu ponto de vista as festas desses exescravos não poderiam ser reprimidas porque representariam algo sagrado fruto de sofri mento semelhante ao dos povos antigos Essa repressão que Coelho Netto destaca lembra um fato ocorrido no ano anterior quando uma festa promovida por homens na rua do Ouvidor para celebrar a lei foi denunciada pela Gazeta de Notícias A repressão vinha de um membro da 31 COELHO NETTO Impressões Diário de Notícias 10 de maio de 1889 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 118 10092018 111710 119 imprensa ou seja um letrado como Coelho Netto e pertencente ao seu métier No texto de 1888 dizia o jornalista A alegria do povo imagina todas as manifestações pos síveis a maior parte das quais inofensivas Uma entre tanto apesar de evidentemente cômica ou por isso mesmo se por muitos era recebida com agrado a alguns causava visível embora não invisível repugnância Em frente ao escritório da Gazeta de Notícias no coreto a música do 7º batalhão tocou desde o anoitecer umas músicas que pareciam mesmo feitas de requebros ouvindo as a gente sentia não sei o que que lhe dançava cá por dentro e era música para se ouvir com as pernas em vez de se ouvir com os ouvidos Ora isto deu em resultado na rua um baile público que não estava no programa dos festejos e por sinal que um dos figurantes de chapéu de palha e calças brancas dan çava como se tivesse trezentos mil diabos no corpo Até aqui nenhum inconveniente cada um tem o direito de divertirse como quiser o inconveniente foi obri garse algumas pessoas a dançar Faziase um círculo círculo não imaginado por Dante e dele só saía o desgraçado que lá estava depois de dançar o miudinho Apenas um resistiu absolutamente mas não houve conflito por isso Entretanto se a diversão se reproduzir poderá haver cenas lamentáveis O autor da nota fecha seu texto pedindo a abolição da dança obrigatória32 uma vez que acreditava que o festeiro que estivesse na rua nesse horário de festa não poderia sofrer o inconveniente de ser obrigado a dançar Se no próprio ano da Abolição a dança dos homens das ruas foi condenada por um homem das letras no ano seguinte outro literato via nessa permissão algo necessário e justo diante de tanto tempo de vio lência A liberdade deveria ser comemorada de acordo com os próprios critérios festivos dos exescravizados e não a partir de regras estabelecidas por aqueles distantes da experiência do cati 32 ABOLIÇÃO Gazeta de Notícias 18 de maio de 1888 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 119 10092018 111710 120 veiro Afinal ninguém além deles tinha mais motivos para fes tejar a liberdade como gênese de um novo tempo Claro que ao propor este deslocamento Coelho Netto estava longe de negar o sentido ilustrado da luta ou mesmo a ideia de que a liberdade havia sido uma dádiva concedida aos escravos por homens pensantes como ele As motivações da ênfase que dava naquela crônica à perspectiva do escravo se esclareceriam dias depois em outro texto sobre a festa desta vez assinado com seu próprio nome no Diário de Notícias 13 de maio Primeiro aniversário da nossa história política Come çamos a viver 13 de maio de 1888 antes éramos um povo de bárbaros no estado primitivo Depois das mãos portuguesas que descobriram o solo era mister alguma coisa que descobrisse as almas um coração encarregou se disso O Brasil deixou de ser o presídio dos negros dáfrica para ser um Estado livre independente da suserania dos oligarcas 13 de maio é a data inicial da nossa história depois do gênese o êxodo33 As imagens religiosas para tratar da liberdade dos escra vos permaneceram nesse pequeno texto de Netto No entanto mais do que tratar de uma religiosidade e consequentemente de uma passividade em torno da lei o autor trata dessas almas descobertas numa perspectiva de cidadãos que compunham um Estado livre Ou seja o protagonismo da ação que iniciou uma vida de liberdade e de fim de um estado primitivo não era da família real mas sim novamente dos escravos e tam bém daqueles que atuaram por esse fim começamos a viver Todos não apenas os exescravos passaram a viver num Estado livre Porém algo ainda faltava para a completa liberdade A frase final depois do gênese o êxodo marcava que ainda era necessária outra ruptura para a completa vivência da liberdade O texto escrito no primeiro e único aniversário da Abo lição no Império marcava uma distinção da forma de celebrar 33 COELHO NETTO 13 de maio Diário de Notícias 13 de maio de 1889 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 120 10092018 111710 121 a data por parte desse literato que atuou nas barricadas abo licionistas na década de 1880 e fez parte da organização dos festejos pela Abolição em 188834 Para ele os protagonistas da ação eram outros e por isso mereciam ser celebrados e deveria lhes ser permitida a sua própria comemoração ou a sua Pás coa conforme escrevera dias antes do aniversário Coelho Netto não estava sozinho na tentativa de tirar o foco da comemoração da família imperial e dos políticos ligados à monarquia Como ele outros adeptos da causa republicana trataram também em 1889 de fazer do primeiro aniversário da lei um momento de disputa sobre seu sentido Era dado assim o início de uma bata lha política e simbólica sobre a Abolição que ficaria mais evi dente nos anos seguintes nos festejos republicanos O ENTUSIASMO DA LIBERDADE REPUBLICANA No processo de esquecimento e arrumação do passado o regime republicano instaurado em 15 de novembro de 1889 teria nas festas nacionais uma dessas etapas de arrumação Em 14 de janeiro de 1890 ainda sob o governo provisório do mare chal Deodoro um decreto instituía as festas públicas destinadas a comemorar o sentimento de fraternidade universal no qual se pretendia basear o regime35 Diante disso o 13 de maio se tor nara fraternidade dos brasileiros no decreto e não um evento ligado ao fim da escravidão36 34 MORAES Renata Figueiredo As festas da Abolição o 13 de maio e seus significados no Rio de Janeiro 18881908 2012 Tese Doutorado em História Social da Cultura Departamento de História Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2012 p 225 35 Decreto nº 155B 14 de janeiro de 1890 httpwww2camaralegbrleginfed decret18241899decreto155b14janeiro1890517534publicacaooriginal1pe html acessado em 16 de fevereiro de 2016 36 Outras datas do decreto 1 de janeiro comemoração da fraternidade universal 21 de abril comemoração dos precursores da independência brasileira resumidos em Tiradentes 3 de maio Descoberta do Brasil 14 de julho república liberdade e independência dos povos americanos 7 de setembro independência do Brasil 12 de outubro descoberta da América 2 de novembro mortos 15 de novembro come moração da pátria brasileira Para uma análise das festas do sete de setembro e do 15 de novembro ver OLIVEIRA Lúcia Lippi As festas que a República manda guardar Estudos históricos Rio de Janeiro vol 2 n 4 1989 p 172189 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 121 10092018 111710 122 Em meio à prática do lembrar e esquecer dos festejos oficiais republicanos a Abolição foi celebrada em 1890 com festas promovidas pela Confederação Abolicionista A progra mação parecia grandiosa e nos dias que antecederam a festa o Diário de Notícias publicava as listas de adesões das sociedades participantes e o modo pelo qual se daria o festejo Aquelas que quisessem se incorporar ao préstito poderiam fazer isso na oca sião uma vez que não era possível enviar um convite especial para cada sociedade37 Seriam incorporados ao cortejo os jor nais da capital o Clube dos Democráticos e a Associação dos Emprega dos do Comércio entre outros38 A cada dia as adesões ao préstito aumentavam e entre elas estavam também a Associação Beneficente Isabel a Redentora e a Associação Memória ao Visconde do Rio Bran co39 A grandiosidade dos festejos seria o sinal de uma verdadeira festa popular que teria a contribuição de todos sem distinção de classe a fim de celebrar uma brilhante data40 Como acontecera na primeira grande festa a progra mação do segundo aniversário da lei previa salvas de tiros prés titos de escolas públicas e particulares da capital federal41 um baile popular e um espetáculo teatral42 Dessa vez no entanto a festa da Abolição assumia de forma mais clara a feição de uma celebração da liberdade entendida tanto em sentido jurídico quanto político Dias antes do aniversário da lei os diretores da Confederação Abolicionista já pediam a adesão dos moradores das ruas por onde passaria o préstito a fim de que jogassem flo res sobre os revolucionários de duas grandes batalhas pacíficas o 13 de maio e o 15 de novembro43 Igualadas como partes de um mesmo todo por políticos e jornalistas de inclinação republi cana as duas festas pareciam se complementar como explica 37 13 de maio Diário de Notícias 8 de maio de 1890 38 13 de maio Diário de Notícias 9 de maio de 1890 39 13 de maio Diário de Notícias 10 de maio de 1890 40 13 de maio Diário de Notícias 9 de maio de 1890 41 Ofício da Confederação Abolicionista ao intendente municipal do dia 9 de maio de 1890 para que as escolas municipais e os batalhões escolas pudessem participar dos fes tejos programados pela Confederação Festividades pela data da abolição da escravidão 18881898 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro 43412 42 Diário de Notícias 4 de maio de 1890 43 Diário de Notícias 11 de maio de 1890 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 122 10092018 111710 123 na véspera da celebração um articulista da folha republicana Diário de Notícias Amanhã festeja o povo brasileiro uma das datas mais festivas da sua história Após o inferno colonial e o purgatório monárquico che gou finalmente o dia em que a liberdade pode festejar a liberdade em que a República pode coroar de flores a abolição44 Do ponto de vista do redator da nota a Abolição e a República eram datas que se complementavam por serem ambas ligadas à liberdade Ponto culminante de uma linearidade histórica que teria rumado sempre para o progresso a Repú blica aparece como uma conquista irresistível desse rumo que teve na Abolição em 1888 uma de suas etapas principais45 Por este motivo a data do 13 de maio comemorada no regime repu blicano celebrava a pátria motivo pelo qual a glória não poderia caber a um líder ou indivíduo isolado Significativamente não se via entre as comemorações oficiais celebração aos heróis dos tempos do Império como José do Patrocínio Joaquim Nabuco ou a princesa Isabel todos ausentes da programação dos feste jos Já não serviam mais para uma leitura da Abolição que se pretendia fazer a partir de 1890 O primeiro aniversário da Abolição já no regime repu blicano deixava claro que com a instauração desse novo regime aquela data passaria a ser também um momento de redefinição da memória histórica da própria nação É o que ficaria ainda mais evidente na festa de 13 de maio de 1891 na qual suposta mente a última leva dos documentos da escravidão foi queimada para apagar seus vestígios no Brasil em uma solenidade que contou com a presença de João Clapp presidente da Confede 44 Áurea lei Diário de Notícias 12 de maio de 1890 45 SIQUEIRA Carla Vieira A imprensa comemora a República o 15 de novembro nos jor nais cariocas 18901922 1995 Dissertação Mestrado em História Departamento de História Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 1995 p 91 De acordo com Maria Tereza Chaves de Mello a complementaridade entre Aboli ção e República foi um dos caminhos utilizados pelos republicanos logo após a procla mação para se legitimarem MELLO Maria Tereza Chaves A República consentida Rio de Janeiro Ed FGV Edur 2007 p 27 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 123 10092018 111710 124 ração Abolicionista e do ministro da Fazenda46 Apesar de a proposta de queima dos documentos ter o intuito de eliminar os livros de matrícula evitando com isso pedidos de indenização por parte de antigos senhores de algum modo se tentava tam bém apagar um passado arrumando assim o presente repu blicano livre e sem escravidão Essa solenidade marcava um ato oficial para comemorar o aniversário da lei e ao findar a queima dos documentos que foram enviados pelos estados João Clapp afirmava ficava extinta de uma vez e por aquela forma a nódoa que por longos anos foi a vergonha deste país47 Era com mais uma festa cívica de caráter republicano que os novos governan tes e seus entusiastas celebravam a data que acabava tendo esvaziado seu sentido original ligado à causa dos negros cada vez mais apagados das celebrações oficiais Novamente no entanto estas celebrações estavam longe de representar o modo pelo qual os próprios exescravizados construíam para elas um significado A importância da data era evidente nas diversas formas como era festejada por toda a cidade Se não tinham mais a coesão e unanimidade das festas de 1888 estes festejos apontavam para a continuidade das dis putas em torno do sentido da celebração De fato era em pequenas iniciativas que se manifestava a lógica da celebração de outros sujeitos distantes da política republicana Os moradores do Méier e de Engenho de Dentro área do subúrbio que congregava trabalhadores e uma classe média composta por funcionários públicos e militares promove ram festejos pelo aniversário da Abolição em 1891 o que indi cava a importância singular que continuavam a atribuir à data Organizações militares tais como bombeiros e Guarda Nacio 46 13 de maio O Paiz 12 de maio de 1891 A primeira queima dos documentos havia sido feita sob o comando de Rui Barbosa em 15 de novembro de 1890 SLENES Robert Escravos cartórios e desburocratização o que Rui Barbosa não queimou será destruído agora Revista Brasileira de História São Paulo 1987 p 166196 47 Treze de maio Diário de Notícias 14 de maio de 1891 Por mais que a eliminação destes documentos fosse uma forma de acabar fisicamente com os vestígios da escravi dão evidentemente ela não foi capaz de eliminar totalmente as fontes sobre a escravidão resultantes de diferentes tipos de registro Cf SLENES Escravos cartórios e desburocratiza ção 1987 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 124 10092018 111710 125 nal também celebraram a seu modo o aniversário da Abolição48 Em contraponto aos novos festejos oficiais floresciam assim pela cidade formas muito diversas de celebração que mais uma vez rompiam com a imagem unívoca que se tentava articular para a festa Em muitos casos esta disputa passou a ter como foco a própria definição dos heróis da Abolição como José do Patro cínio Depois de ter sido uma das lideranças abolicionistas mais louvadas em 1888 ele continuava três anos depois a merecer homenagens de sujeitos diversos Uma sessão solene em seu lou vor foi realizada em 1891 por um grupo de literatos e jorna listas no teatro Recreio Dramático no Centro da cidade na qual fariam discursos além do próprio homenageado escrito res e políticos como Demerval da Fonseca Olavo Bilac Nilo Peçanha Ernesto Senna e Rozendo Muniz todos envolvidos tanto com a causa republicana quanto com a abolicionista49 No mesmo ano Patrocínio era ainda homenageado por um baile no Engenho Velho50 Segundo a nota publicada no Diário de Notícias alguns dias antes o evento seria promovido pelos membros de uma sociedade local o Clube Engenho Velho que se apresenta vam então como seus amigos e admiradores51 As duas bandas de música que animavam o concerto em salões iluminados com luz elétrica e o menu do jantar escrito em francês sugeriam ser aquele um baile muito diferente de alguns nos quais se ouviam batuques e ritmos ligados à herança musical africana Nesses círculos letrados portanto notavase o caráter parcial da festa do 13 de maio que vinha sendo construída pelos ideólogos do novo regime As celebrações pela Abolição na República tiveram de conciliar não apenas os símbolos do passado entre eles alguns personagens como os abolicionistas mas também a conjuntura política na qual estes se envolveram após o fim do Império À 48 Treze de maio Diário de Notícias 14 de maio de 1891 49 Idem 50 Esse era o nome dado aos bairros que compõem a atual grande Tijuca Andaraí Grajaú Vila Isabel e Tijuca 51 13 de maio Diário de Notícias 7 de maio de 1891 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 125 10092018 111710 126 primeira vista a celebração a Patrocínio em 1891 não sendo realizada no ano seguinte devido à sua prisão pode parecer um caso isolado ligado à fidelidade que lhe devotavam seus anti gos colaboradores da imprensa Essas festas em sua homena gem sugerem que apesar de a campanha republicana preten der silenciar e apagar alguns personagens do 13 de maio em outras celebrações os heróis anteriormente festejados tinham ainda suas imagens ligadas à Abolição Um exemplo exterior ao mundo letrado foi a missa em ação de graças pela princesa Isabel realizada em 1891 na Igreja de São Joaquim por um grupo de homens de cor gratos a áurea lei da abolição52 O editor do jornal fez questão de ressaltar quem estava dando graças pela princesa em pleno período republicano A princesa não era lou vada nos jornais ou livros nem pelos brancos nem pelos literatos ou homens da imprensa mas por homens de cor que não dei xaram de valorizar o ato da assinatura da lei como fundamental para a liberdade dos escravos Independentemente de qualquer novo sentido que a República desse à data do 13 de maio como dia da fraternidade entre os brasileiros por exemplo o que esses homens de cor celebravam de fato era o fim da escravidão Esse mesmo fim era celebrado em outros ambientes sociais de forte presença negra por homens e mulheres durante os pri meiros anos da República com saudações à princesa como mostravam os eventos organizados em 1892 pelas Irmandades do Rosário e de São Benedito Essas irmandades estiveram pre sentes na missa realizada em 1888 para comemorar a Aboli ção e desde então não deixaram de promover celebrações para comemorar a liberdade dos escravos Durante a escravidão as irmandades negras eram ambientes para o compartilhamento de experiências entre escravos e libertos e de estratégias sociais dentro do mundo negro53 Sua formação vem desde o período colonial quando funcionavam de forma relativamente autô noma como sociedade de ajuda mútua reconstruindo identi dades sociais muitas das vezes desarticuladas por conta da escra 52 Treze de maio Diário de Notícias 13 de maio de 1891 53 REIS João José Identidade e diversidades étnicas nas Irmandades negras no tempo da escravidão Tempo Rio de Janeiro v 2 n 3 p 733 1996 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 126 10092018 111710 127 vidão54 No Rio de Janeiro uma das mais antigas a Irmandade Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do final do século XVIII tinha no seu regulamento o socorro aos irmãos escravos e através de um sorteio era escolhido quem seria alforriado55 Na década de 1880 esta irmandade apoiou a campanha e a imprensa abolicionistas e tinha entre seus mem bros José do Patrocínio56 Ao findar a escravidão essas irmandades negras perde ram sua principal característica que era a proteção ao irmão escravo No entanto continuaram tendo um papel ativo entre a população liberta da capital federal permanecendo como um ambiente de sociabilidade e solidariedade negras além de um papel político principalmente na promoção de festas que celebravam os personagens do 13 de maio abolicionistas e a princesa Isabel57 Assim no final do século XIX e início do XX foram meios de resistência à manipulação dos sentidos da Aboli ção uma vez que tentavam evitar a forma como a data era cele brada pela República com o descarte dos sujeitos do passado entre eles abolicionistas negros e os membros do Parlamento ao decretar de forma genérica a data como dia da fraternidade entre os brasileiros Essa designação para a data não correspon dia à gama de sentidos e símbolos celebrados em 1888 e que 54 Idem 55 MOURA Clóvis Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos In Dicionário da escravidão negra no Brasil São Paulo EdUSP 2004 p 21617 Não eram apenas as irmandades que tinham essa prática de associati vismo negro tendo entre suas funções a compra de alforrias Na década de 70 do século XIX existia no Rio de Janeiro a Associação Beneficente Socorro Mútuo dos Homens de Cor Sua função era promover tudo o que estiver a seu alcance em favor dos seus membros sendo um dos objetivos a compra de alforria CHALHOUB Sidney Soli dariedade e liberdade sociedades beneficentes de negros e negras no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX In CUNHA Olívia Maria Gomes da GOMES Flávio dos Santos Org Quase cidadão histórias e antropologias da pósemancipação no Brasil Rio de Janeiro FGV 2007 56 MOURA Clóvis Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos In Dicionário da escravidão negra no Brasil São Paulo EdUSP 2004 p 21617 57 As pesquisas a respeito das irmandades negras são focadas quase que predominan temente sobre dois locais Bahia e Minas Gerais sendo o século XVIII e a primeira metade do século XIX privilegiados nesses estudos Há uma lacuna na historiografia a respeito dessas irmandades no pósabolição principalmente as da capital federal da virada do século XIX para o XX EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 127 10092018 111710 128 continuariam a ser valorizados por diferentes sujeitos sociais nos anos seguintes Nessas irmandades compostas por negros que viam a princesa Isabel como redentora dos escravos o aspecto sagrado da Abolição ainda se fazia presente58 Configuravamse assim as ambiguidades da celebração do 13 de maio nos primeiros anos da República Por um lado sujeitos diversos tomavam a festa nas mãos promovendo a seu jeito a celebração da data por outro no entanto a própria pro liferação destas outras festas esvaziava aos poucos a força dos festejos oficiais que não se mostravam mais capazes de agregar o público Por este motivo foi comum os editores dos jornais daquele ano afirmarem certo desânimo para a realização das festas Tal interpretação foi feita a partir de uma lógica festiva que estava ligada a uma organização oficial cujos sentidos se associavam claramente ao novo governo republicano Na festa de maio de 1892 parecia já claro aos contemporâneos que não era a liberdade o valor principal que os novos governantes dese jariam celebrar em seus festejos oficiais uma vez que prendiam os que lutaram por ela em 1888 Nesse quadro saudar antigos heróis como José do Patrocínio e a princesa Isabel parecia um ato de coragem e autonomia As festas pela Abolição diante dessa disputa simbólica pareciam aos olhos dos editores das folhas da cidade esvazia das e com o sentido reduzido se comparadas àquelas dos anos anteriores principalmente à de 1888 Se esse pouco entu siasmo notado por alguns editores não correspondia ao clima de festa que ainda permanecia fora do ambiente dominado pela imprensa e pelos letrados o fato é que aos olhos de alguns letra dos como Machado de Assis parecia já uma lembrança distante o regozijo público e geral das festas de maio de 1888 Era como um testemunho deste processo que podemos entender o sentido 58 Em 1893 houve também festas realizadas pela Irmandade do Rosário de São Bene dito Diário de Notícias 13 de maio de 1893 Em São Cristovão as festas ficaram por conta da Irmandade do Nosso Senhor do Bonfim e N S do Paraíso que para realizarem seus festejos pediram autorização ao intendente municipal para o lançamento de fogos de artifício e a colocação de mastros e galhardetes no coreto que seria erguido no adro da igreja Festejos religiosos pela data da lei que extinguiu a escravidão no Brasil Igreja do Bonfim e N S do Paraíso São Cristóvão 1893 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro 43375 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 128 10092018 111710 129 da sua crônica de maio de 1893 O cronista deixava claro como naquele momento o 13 de maio já não representava para ele a celebração das luzes da liberdade antes pelo contrário era então em um cenário sombrio que se celebrava novamente a data No seu texto após o aniversário da Abolição a política e como ela era encaminhada no Brasil era uma das causas de esse passado parecer ignorado naqueles dias Um velho autor da nossa língua creio que João de Barros não posso ir verificálo agora ponhamos João de Barros Este velho autor fala de um provérbio que dizia os italianos governamse pelo passado os espanhóis pelo presente e os franceses pelo que há de vir E em seguida dava uma repreensão de pena à nossa Espanha con siderando que Espanha é toda a península e só Castela é Castela A nossa gente que dali veio tem de receber a mesma repreensão de pena governase pelo presente tem o porvir em pouco o passado em nada ou quase nada Eu creio que os ingleses resumem as outras três nações59 A reflexão que Machado de Assis faz após o seu testemu nho das festas é de que a política republicana seguia a mesma feita pela Espanha em que o passado e o futuro não interes savam O governo devia ser pelo presente e nada mais Ora nada muito diferente do que acontecera no ano anterior e que se repetia em 1893 O passado de busca por uma liberdade não precisaria ser louvado num ambiente político que pensava no presente ignorando toda uma trajetória histórica de conquista da liberdade Nesse sentido o tipo de celebração da data promo vida pela República com afirmações de fraternidade e salvas de tiro seriam simples marcas de uma celebração do presente que ignorava o peso e o sentido histórico da data celebrada Tendo escrito sua crônica no dia da festa Machado de Assis parecia espelhar nela as celebrações oficiais que testemu nhava Sem muitas novidades as festas pelo quinto aniversário da Abolição repetiram a lógica e a forma dos anos anteriores Os edifícios públicos foram iluminados e a estação da Estrada 59 ASSIS Machado de A Semana Gazeta de Notícias 14 de maio de 1893 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 129 10092018 111710 130 de Ferro Central recebeu uma banda de música e uma ilumi nação especial Os teatros também reservaram espetáculos dife renciados para celebrar a lei e a rua Senador Dantas além de ser iluminada de forma diversa do dia a dia recebeu um coreto de uma fábrica de cerveja60 A fim de facilitar o deslocamento de sociedades musicais do subúrbio para a cidade a Estação Central concederia entradas gratuitas para os membros dessas sociedades61 Toda essa programação mostra que havia uma movimentação em torno da data mesmo que a repercussão da adesão pública a ela não fosse mencionada de forma sistemática pelos jornais Ou seja apesar de haver festa não sabemos nada além da confirmação da realização dos festejos62 Não era de se estranhar por isso que o desânimo de Machado de Assis pelas festas do 13 de maio de 1893 fosse rei terado por alguns jornais da capital federal Em O Paiz folha republicana que contava com Quintino Bocaiúva entre os edi tores63 o entusiasmo do editor pelas festas parece ter mudado conforme passou o dia Na véspera do aniversário ao divulgar a programação do dia seguinte afirmara que se revelava no seio da população fluminense um justo entusiasmo pelas festas que serão realizadas amanhã comemorativas da lei de 13 de maio início das liberdades públicas do Brasil64 No entanto não con siderou esse mesmo entusiasmo ao relatar que a data passava sem maiores demonstrações oficiais de júbilo sem grandes demonstrações de público regozijo passa hoje uma das maiores datas que a história pátria registra65 Ao contrário da popula ção que parecia permanecer com seu entusiasmo em torno da 60 AS FESTAS de ontem Diário de Notícias 14 de maio de 1893 61 13 de maio O Paiz 12 de maio de 1893 62 AS FESTAS de ontem O Diário de Notícias 14 de maio de 1893 Nas notas publicadas sobre as festas do dia anterior há apenas a confirmação da realização dos festejos sem maiores detalhes sobre o público que o compunha 63 BARBOSA Marialva Os donos do rio Imprensa poder e público Rio de Janeiro Vício de leitura 2000 p 49 PESSANHA Andrea Santos da Silva O Paiz e a Gazeta Nacional Imprensa republicana e abolição 18841888 2006 Tese Doutorado em História Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Universidade Federal Fluminense Niterói RJ 2006 64 13 de maio O Paiz 12 de maio de 1893 65 13 de maio O Paiz 13 de maio de 1893 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 130 10092018 111710 131 festa as manifestações oficiais em torno da celebração da data pareciam cada vez mais reduzidas Assim como fez o Diário de Notícias no relato da festa O Paiz também não ofereceu aos seus leitores maiores informações sobre a adesão popular aos feste jos programados permanecendo assim a ideia de que as festas pela Abolição caíam num vazio de sentidos e de adesão pública O desânimo de Machado de Assis era também compar tilhado por um leitor do Diário de Notícias que enviou um artigo ao jornal a respeito da data Neste ele reclamava que as fes tas pela Abolição haviam ocorrido sem a menção aos nomes de alguns abolicionistas importantes como José do Patrocínio Julio de Lemos Luiz de Andrade Antonio Azeredo e João Clapp66 O autor termina o texto com ênfase sobre o esquecimento operado nos dias de festa Estranhável repito que nas festas da abolição sejam omitidos os nomes de alguns dos mais dignos e ilustres generais dessa campanha nomes tão intimamente liga dos ao 13 de maio que festejar a abolição sem os honrar é fazer uma exclusão seguramente inexplicável 67 A sua conclusão a respeito das festas mal esconde seu des contentamento com a forma pela qual o novo regime recémins taurado passara a celebrar a data Se os abolicionistas que afir mava não ver celebrados eram ainda lembrados em eventos par ticulares desligados de qualquer lógica oficial e pública incomo dava ao leitor a releitura da História promovida pela República que tentava recriar arbitrariamente os sentidos da festa Como Machado de Assis era do esquecimento do passado que tentava calar a história de muitos sujeitos envolvidos com a festa que ele reclamava em sua mensagem Parece explicável por isso que na continuação de sua crônica Machado de Assis associasse as novas comemorações do 13 de maio às festas da Independência que já haviam caído no esquecimento e não tinham mais a força e importância que haviam tido em sua infância 66 Luiz de Andrade e Antonio Azeredo participaram da confederação abolicionista SILVA Eduardo As camélias do Leblon e a abolição da escravatura uma investigação de histó ria cultural São Paulo Companhia das Letras 2003 67 Treze de maio Diário de Notícias 10 de maio de 1893 O texto possivelmente foi enviado à redação do jornal já que está entre aspas e precedido de escrevemnos EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 131 10092018 111710 132 Temo que o nosso regozijo vá morrendo e a lembrança do passado com ele e tudo se acabe naquela frase estereoti pada da imprensa nos dias da minha primeira juventude Que eram afinal as festas da independência Uma parada um cortejo um espetáculo de gala Tudo isso ocupava duas linhas e mais estas duas as fortalezas e os navios de guerra nacionais e estrangeiros surtos no porto deram as salvas de estilo Com este pouco e certo estava comemorado o grande ato da nossa separação da metrópole68 A perda do regozijo que o literato teme é o perigo que sentia correr a festa da Abolição de grande festejo para uma parada cívica sem povo e sem sentido A experiência de Machado com as festas pela independência realizadas na Corte a partir de uma organização que mobilizava todos os seus moradores e também a sua decadência69 o levava a crer que o mesmo poderia ocorrer com os festejos da Abolição que na República se esvazia vam de significado Ao citar a lembrança do passado o literato na verdade teme uma descaracterização da festa por parte de quem seria responsável pela sua promoção o regime republicano O tempo feio daqueles dias era uma resposta à frieza do esqueci mento que tal data vinha sofrendo naqueles anos Portanto os aniversários da Abolição seriam feitos na República a partir de uma conjuntura política específica que acabou por tentar afastar a festa de seus sentidos e sujeitos ori ginais fossem as lideranças abolicionistas ligadas à Coroa ou os próprios exescravos Por outro lado a cada ano vinha sendo apropriada por aqueles que independentemente de parâmetros oficiais continuavam a celebrar os sujeitos do passado os aboli cionistas e a princesa Para esses festeiros a data do 13 de maio era o da Abolição da escravidão e assim deveria ser celebrada Na crônica de Machado de Assis a defesa dessa celebração se reafirma principalmente ao tentar trazer do passado um período de glória e de grandes festividades pela data Para o literato tes 68 ASSIS Machado de A Semana Gazeta de Notícias 14 de maio de 1893 69 A respeito das festas pela independência consultar KRAAY Hendrik Alferes Gam boa e a sociedade comemorativa da independência do Império 18691889 Revista Bra sileira de História v 31 n 61 p 1540 2011 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 132 10092018 111710 133 temunha das festas de 1888 a essência das comemorações não deveria ser perdida apesar de um esforço oficial para que isso acontecesse Ao final da crônica deixa claro o seu desejo entre as rabugices de um velho escritor Não não O triste sou eu Provavelmente má digestão Comi favas e as favas não se dão comigo Comerei rosas ou primaveras e pedirvosei uma estátua e uma festa que dure pelo menos dois aniversários Já é demais para um homem modesto70 A tristeza do cronista e da falta de flores se ligavam portanto à indiferença em relação à festa que o entristecia e causava má digestão Ao escrever a crônica em 1893 percebe que as celebrações que testemunhara nos cinco aniversários da Abolição não haviam sido suficientes para satisfazer a sua von tade de festejar a data A festa das suas lembranças que deveria ser modelo para as dos anos seguintes não havia durado além daquele dia de delírio de 1888 A República de fato parecia não perpetuar os sentidos da data muito menos o sol da liber dade vivido por ele naquele dia da Abolição Portanto os aniversários da Abolição serviram para mol dar algumas de suas memórias dependendo de quem promovia as festas Ora celebrando a imagem da princesa Isabel como redentora ou de Patrocínio como agente da liberdade de maio de 1888 ou ainda a fraternidade entre os brasileiros e a tentativa de apagamento das diferenças seculares que os separam por séculos Na primeira década da Abolição algumas testemunhas daquele dia de sol e de festa ainda estavam vivas e assim escreviam e rememoravam aquela data Machado de Assis e Coelho Netto são algumas dessas testemunhas que a cada maio repensavam a Abolição e a liberdade de 1888 não deixando de tratar também do seu presente No entanto não levaram em conta outras festivi dades realizadas por exescravos trabalhadores e homens de cor ligados a uma lógica festiva própria que os levava a celebrar de forma ativa e peculiar a liberdade do 13 de maio permanecendo distantes então da lógica letrada da imprensa da antiga Corte 70 ASSIS Machado de A Semana Gazeta de Notícias 14 de maio de 1893 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 133 10092018 111710 134 O JONGO NOS PALCOS TEATRAIS PARTITURAS E CLUBES MUSICAIS NO RIO DE JANEIRO EM FINS DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX Silvia Cristina Martins de Souza Jongo batuque tambor tambu ou caxambu são deno minações utilizadas para uma forma de expressão cultural com plexa originada no século XIX no Sudeste brasileiro entre afri canos de língua banto levados como escravos para essa região O jongo envolve canto dança coletiva ao som de tam bores prática de magia verbomusical culto aos ancestrais e foi entoado durante o trabalho nas roças e dançado e cantado nos terreiros das fazendas e em locais isolados dos arrabaldes das cida des Nestas últimas foi reprimido ou tolerado dependendo da conjuntura mas para que acontecesse era sempre preciso uma autorização senhorial ou policial Nas áreas rurais alguns muni cípios o proibiam mas com certa negociação podia ser realizado Registrado por viajantes romancistas e folcloristas desde o século XIX o jongo só despertou o interesse da acade mia em fins do século XX Atualmente a ele se dedicam pesqui sadores de diversas áreas sobretudo após o jongo do Sudeste se haver candidatado à categoria de Patrimônio Cultural Brasileiro 2001 e ter recebido este título em 20051 1 STEIN Stanley Vassouras um município brasileiro do café 18501900 Rio de Janeiro Nova Fronteira 1990 LARA Silvia H PACHECO Gustavo Org Memória do Jongo as gravações históricas de Stanley J Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007 PENTEADO JÚNIOR Wilson R Jongueiros do Tamandaré um estudo antro pológico da prática do jongo no vale do Paraíba paulista Guaratinguetá SP 2004 Dissertação Mestrado em Antropologia Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Estadual de Campinas 2004 AGOSTINI Camila Africanos no cativeiro e a construção de identidades no além mar Vale do Paraíba século XIX 2002 Dissertação Mes trado em História Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Estadual de Campinas 2002 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 134 10092018 111710 135 Para a mudança de enfoque entre historiadores foram decisivas as pesquisas realizadas por Stanley Stein nos anos 1940 Foi ele quem chamou a atenção para as memórias do cati veiro e das experiências vividas no pósAbolição e para as imbri cações entre sagrado e profano presentes nos pontos de jongo invertendo uma postura anterior que o restringiu ao espaço do exotismo da selvageria ou das descrições impressionistas Em 1995 a escritora e pianista Edir Gandra observou que desde o fim dos anos 1960 levado pelas mãos do mestre Darcy Monteiro o jongo da Serrinha começou a trilhar um caminho que o levou aos palcos teatrais dando visibilidade à comunidade que o praticava a despeito de críticas que anuncia vam ser este o princípio do fim da sua autenticidade Hoje o que o caracteriza é a conexão que seus praticantes estabeleceram entre política e performance integrando dança e música a proje tos educacionais sociais e políticos que apostam no reforço de aspectos culturais como fortalecimento de grupos sociais desfa vorecidos Além disso o jongo se transformou numa dança ensi nada em espaços alternativos de cultura ingressando no mundo da música e dos espetáculos e conquistando plateias que não tinham contato prévio com ele2 Em 1899 Coelho Neto registrou no romance A Conquista um fenômeno até certo ponto semelhante ao apontado por Gan dra Nele o personagem Rui Vaz inspirado em Aluísio Azevedo trava uma conversa com o empresário teatral Jacinto Heller a propósito de uma comédia de costumes de sua autoria em prepa ração para ser encenada Heller insiste para que fossem introduzi das umas coplas e um jongo à peça e Rui Vaz conclui dizendo O homem quer a todo transe que venham negros à cena com maracás e tambores dançar e cantar Diz ele que o público não aceita uma peça serena sem chirinola e saracoteios 3 Nesse contexto e na visão de Coelho Neto o jongo garantia o sucesso da montagem ainda que a contragosto de alguns4 2 GANDRA Edir Jongo da Serrinha do terreiro aos palcos Rio de Janeiro GGE 1995 3 COELHO NETO A Conquista Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1985 p 32 4 Em ambos os episódios a dimensão de religiosidade do jongo foi relegada em detri mento do espetáculo EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 135 10092018 111710 136 A observação de Coelho Neto é sugestiva Jongos no tablado não chegavam a ser propriamente uma novidade nos anos 1890 se lembrarmos que em 1877 Arthur Azevedo incluiu um jongo na peça Nova viagem à lua e outro em Os noivos 1880 O que chama a atenção é o papel que os jongos assumiram nestas montagens Se em 1877 e 1880 eles tinham a função cênica de abrir um ato em 1899 o jongo já era considerado um elemento essencial para garantir o sucesso de um espetáculo a ponto de se tornar uma exigência para certos empresários Também significativa foi a introdução do jongo nos clu bes musicais e sua publicação em partituras Se até os anos 1880 ele foi estrangeiro nestes espaços a partir desta década neles se tornou presente beneficiandose da visibilidade proporcio nada pelos tablados e dos debates sobre a busca de originalida des brasileiras travados sobretudo no pósAbolição Se as relações entre teatro dança e música no século XIX vêm sendo exploradas por estudiosos brasileiros há algum tempo os quais têm demonstrado que esses foram setores que se reforçaram mutuamente5 a presença do jongo nos palcos tea trais clubes e partituras musicais ainda não recebeu a atenção que merece No início da pesquisa que originou este capítulo tínha mos em mente duas ideias defendidas por Eduardo Silva e Paul Giroy Silva argumentou que foi decisivo o apoio dos profissio nais de teatro para que a campanha abolicionista se firmasse como movimento popular no Rio de Janeiro6 Paul Gilroy por sua vez alertou para a pouca atenção dispensada ao papel da música tanto no movimento abolicionista quanto no domínio do entretenimento de massa no final do século XIX7 O desenvol vimento da pesquisa permitiu constatar a presença dos jongos 5 MENCARELLI Fernando A A voz e a partitura teatro musical indústria e diversi dade cultural no Rio de Janeiro 18681908 2002 Tese Doutorado em História Uni versidade Estadual de Campinas Campinas 2002 AUGUSTO Antônio J A questão Cavalier música e sociedade no Império e na República 18461914 Rio de Janeiro Folha Seca 2010 GOMES Thiago de Melo Um espelho no palco identidades sociais e massifi cação da cultura no teatro de revista dos anos 1920 Campinas Unicamp 2005 6 SILVA Eduardo Resistência negra teatro e abolição da escravatura Disponível em httpsbphorgreuniao26mesasEduardo Silvapdf Acesso em 19 jun 2009 7 GILROY Paul O Atlântico Negro Rio de Janeiro Editora 34 2008 p 185 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 136 10092018 111710 137 nos tablados e também em clubes e partituras musicais embora nestes locais eles assumissem significados diferentes dos jongos que ocorriam nos arrabaldes das cidades ou nos terreiros das fazendas da mesma forma como aconteceu com os atores que os interpretaram os músicos que os compuseram e as plateias que os assistiram8 Para a elaboração deste capítulo partimos da ideia de que no contexto do desmonte do escravismo e no pósAboli ção tendo em vista oferecer prognósticos e planos para o futuro da nação e para o lugar dos exescravos na sociedade brasi leira novos significados foram atribuídos à noção de diferenças raciais No campo musical como procuraremos mostrar um processo paulatino de racialização presente em outras instân cias da sociedade tais como nas memórias símbolos e debates políticos e jurídicos também se fez sentir e contribuiu para a construção de uma identidade musical brasileira mestiça9 8 Os atores que os interpretaram apareciam em cena com os rostos pintados de preto Carlos de Laet comentou que na revista de ano Mercúrio coristas e comparsas de cara suja dançaram um jongo Consultar o Jornal do Commercio 20031887 AELUNI CAMPMR 1383 Essa observação remete a um fenômeno pouco explorado pelos his toriadores brasileiros a presença dos black faces ou menestréis negros nos tablados fenô meno já estudado nos Estados Unidos e em Cuba Por ser a única referência localizada na documentação e também pelos limites deste texto não iremos aprofundála mas apenas levantar algumas questões que podem servir para pensála Em primeiro lugar que os black faces devem ter sido mais comuns do que a documentação registra já que grande parte dos atores era composta por mestiços o que os levaria a pintar seus rostos para representar papéis que exigissem atores negros em cena O reconhecimento de atores negros nos palcos brasileiros só ocorreu em inícios do século XX e esteve intima mente relacionado à invenção e celebração da mulata em nível simbólico antecessor do estrelato de atrizes mestiças LOPES Antônio H Vem cá mulata Revista Tempo v 13 n 26 2009 Em segundo lugar que Joseph Boskin observou que os black faces tiveram ampla circulação na cultura popular dos Estados Unidos servindo para transformar o negro em objeto de riso Boskin apud Martha Abreu Outras histórias de Pai João conflitos raciais protesto escravo e irreverência sexual na poesia popular 18801950 Afro Ásia 31 p 272 2004 No Brasil muitos dos personagens interpretados por atores que não eram negros aparecem associados à comicidade como o escravo doméstico Pedro da comédia O demônio familiar de José de Alencar Em terceiro lugar que no Brasil atores negros pintaram seus rostos para representarem personagens brancos como foi o caso do palhaço negro Benjamin de Oliveira Consultar SILVA Ermínia As múltiplas linguagens na teatralidade circense Benjamim de Oliveira e o circo teatro no Brasil no final do século XIX e início do XX 2003 Tese Doutorado Universidade Estadual de Campinas Campinas 2003 9 Por racialização entendemos a forma como a noção de raça foi utilizada para fundamentar hierarquias sociais no contexto de desagregação do escravismo Para o assunto consultar MATTOS Hebe Maria Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico Rio de Janeiro Zahar 2000 p 59 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 137 10092018 111710 138 Para atingirmos nossos objetivos partimos do pressu posto de que objetos de natureza cultural devem ser entendi dos no interior das trocas conflitos e tensões sociais que os per meiam sendo este um caminho que oferece possibilidades tanto para vislumbrar nos processos culturais bem mais do que uma gama de práticas diversificadas quanto para relativizar perspec tivas naturalizadas que desconsideram que a história se produz no interior das relações de dominação10 A imagem do Rio de Janeiro como cidade em que música e dança ocupavam lugar representativo foi reiterada ao longo do século XIX na imprensa por críticos musicais escrito res viajantes e memorialistas Desde os anos 1830 a dança foi uma constante nos tablados e salões cariocas Nos palcos ela muito deveu à atua ção de profissionais estrangeiros e a certos indivíduos como o ator e empresário teatral João Caetano Na sua companhia que funcionou no Teatro São Pedro de Alcântara ele manteve um corpo de baile permanente majoritariamente composto por italianos franceses portugueses e espanhóis com o objetivo de tornar mais brilhantes os espetáculos que oferecia11 Os dançarinos estrangeiros introduziram nos teatros flu minenses diferentes gêneros de música e danças dramáticas de origem europeia e atuaram como professores dos atores da terra que logo dominaram esse repertório e especializaramse em outro de caráter local composto por chulas fados miudi nhos cateretês caranguejos jongos maxixes e lundus Entre esses gêneros o lundu foi dos mais populares a ponto de Arthur Azevedo transformálo numa marca de suas revistas de ano12 O sucesso do lundu é um dado que merece atenção pois ainda que dançado e cantado nas festas populares realizadas nas 10 THOMPSON Edward Palmer Costumes em comum estudos sobre a cultura popular tradicional São Paulo Companhia das Letras 1998 p 17 11 Jornal do Commercio 11061838 AELUNICAMPMR1243 12 As revistas de ano eram um gênero composto por música e texto construído por meio da costura de diferentes episódios a partir de uma espinha dorsal por meio da qual o condutor deste fio sobre o qual se assentava a revista era um personagem denominado compère e a partir dele o dramaturgo revisava e comentava os acontecimentos mais sig nificativos do ano anterior EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 138 10092018 111711 139 áreas rurais e urbanas também estava presente nos salões Um indicativo dessa aceitação é sua inclusão em vários cancionei ros e coleções de partituras musicais que ofereciam suas poesias para serem cantadas e executadas ao piano animando festas e encontros embora na prática também pudessem ser apropria dos como música para dançar Não se pode esquecer ainda que o lundu apresentava nítidos elementos de origem africana Muitas das críticas negati vas que ele recebeu de literatos críticos musicais e censores tea trais basearamse no fato de ser ele uma dança de sensualismo exagerado que supostamente transformava o teatro em templo de devassidão como à época se argumentava13 Certamente as qualidades musicais e coreográficas exploradas pelos dançarinos concorreram tanto para alimentar críticas negativas à dança quanto para o aumento de sua popu laridade entre as plateias Mas outros elementos devem ser con siderados para que melhor se entenda a extensão desse sucesso Martha Abreu observou que na conjuntura do abolicionismo o lundu foi um gênero musical cuja parte poética era muito utili zada para elaborar críticas ironias maliciosas e letras de duplo sentido que assumiram significados diferentes para brancos e negros14 Nessa mesma direção Fernando Mencarelli ressaltou que no teatro musicado o lundu deu origem a um tipo de dança que valorizava os elementos performáticos e letras de espírito crítico e bemhumorado15 Cremos que tais observações servem como ponto de par tida para refletirmos sobre a presença do jongo nos palcos tea trais Em 30 de outubro de 1885 o jornal O Mequetrefe anunciou que em 1886 subiriam ao palco duas revistas de ano a primeira foi encomendada a França Júnior e Joaquim Serra que não quiseram escrevêla e passaram a pena a Valentim Magalhães e 13 MENCARELLI Fernando A A voz e a partitura teatro musical indústria e diversi dade cultural no Rio de Janeiro 18681908 2002 Tese Doutorado em História Insti tuto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Estadual de Campinas Campinas 2002 p 231 14 ABREU Martha Outras histórias de Pai João conflitos raciais protesto escravo e irreverência sexual na poesia popular 18801950 AfroÁsia n 31 p 272 2004 15 MENCARELLI 2002 p 241 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 139 10092018 111711 140 Filinto de Almeida A segunda é dos fornecedores habituais Moreira Sampaio e Arthur Azevedo e já tem título O bilontra que foi bem achado16 A curiosidade das plateias começou a ser satisfeita no dia 6 de dezembro quando Valentim Magalhães e Filinto de Almeida revelaram o título da sua revista A MulherHomem que estreou no dia 13 de janeiro no teatro Santana pela compa nhia de Jacinto Heller Dezesseis dias depois O Bilontra estreou no teatro Lucinda empresariado por Braga Júnior Ambas as revistas diríamos receberam títulos bem achados Tradicionalmente as revistas de ano respeitavam uma fórmula a costura de episódios fragmentados em torno de um fio condutor permitindo a exposição de pessoas e a crí tica de acontecimentos significativos e polêmicos ocorridos no ano anterior Para alguns essa crítica era considerada um abu sivo costume pois retratava o caricaturado e para que o leitor boçal não se engane põese por baixo o nome do sujeito17 Para outros era motivo de satisfação como ocorreu com um barbeiro de nome Nunes que agradeceu numa nota publicada no Jornal do Commercio a feliz lembrança do ator Peixoto de reproduzir em cena a minha pessoa Nestes últimos tempos tem aumentado consideravelmente a freguesia na minha loja de barbear18 A sintonia com temas da época foi um dos segredos do sucesso das revistas A MulherHomem por exemplo inspirouse num episódio que ganhou repercussão na imprensa um homem que disfarçado de mulher empregouse como doméstica em uma residência sendo posteriormente descoberto Já O Bilontra baseouse na acusação de falsidade e estelionato que envolvia um indivíduo de nome José Miguel de Lima e Silva em um processo aberto pelo comendador Joaquim José de Oliveira19 Além deste espírito jornalístico completavam a receita exitosa das revistas ingredientes como cenografia maquinismos 16 O Mequetrefe 30101885 AELUNICAMPMR1848 17 Jornal do Commercio 17011886 AELUNICAMPMR1381 18 Jornal do Commercio 22021886 AELUNICAMPMR1381 19 MENCARELLI Fernando A Cena aberta a absolvição de um bilontra e o teatro de revista de Arthur Azevedo Campinas Editora da Unicamp 1999 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 140 10092018 111711 141 coreografia figurinos músicas e danças Suas partes musicais foram olhadas com muito zelo por dramaturgos e empresários que contaram com a colaboração de maestros e músicos de for mação erudita quando não atuantes no Imperial Conservatório de Música Muitos deles inclusive como Henrique Mesquita e Carlos Cavalier Darbilly transformaramse em alvo de críticas por utilizarem materiais da cultura popular urbana em suas obras Foi também comum que novos atos músicas e perso nagens fossem incorporados às encenações ao longo das tem poradas As músicas de A MulherHomem foram compostas pelos maestros Chiquinha Gonzaga Henrique Alves de Mesquita Cavalier Darbilly Miguel Cardoso e Henrique de Magalhães Por ocasião da estreia constavam da peça fados cateretês árias o famoso Maxixe da Cidade Nova e um denominado Jongo dos sexa genários Um segundo jongo dos sexagenários composto por Henrique de Magalhães também conhecido pelo nome de Ai Ai Sinhô foi incorporado ao espetáculo pouco mais de um mês após a estreia quando a empresa do teatro Santana resolveu preparar algumas magníficas surpresas para seus especta dores Todavia segundo a Gazeta de Notícias ele seria cantado depois do outro jongo pois os frequentadores do Santana não consentiram que ele fosse retirado para dar lugar ao novo20 O Bilontra estreou no dia 29 de fevereiro de 1886 e sua parte musical foi obra do maestro Gomes Cardim que para ela organi zou 53 números musicais de diversos compositores além dele pró prio Sobre esta seleção o jornal A Semana diria A música é em geral bem escolhida e há trechos originais do maestro Gomes Car dim que muito honram o seu autor Excetuaremos deste número o jongo dos sexagenários encaixado a martelo na revista 21 Encaixado a martelo é uma expressão intrigante De fato esse jongo não constou dos anúncios da revista na Gazeta de Notícias até fins de janeiro e sua posterior inclusão no espetáculo teve o sentido segundo esse periódico de atrair espectadores e estabelecer uma concorrência mais acirrada com A MulherHo 20 Gazeta de Notícias 28021886 AELMR963 Esse jongo teve a partitura publi cada pela Casa Arthur Napoleão Biblioteca Nacional Divisão de Música N VIII 13 21 A Semana 06021886 AELUNICAMPMR0830 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 141 10092018 111711 142 mem na qual os outros dois jongos dos sexagenários faziam sucesso 22 Mas o jongo dos sexagenários de O Bilontra tam bém fez história tanto que a mesma Gazeta de Notícias chegou a comentar um episódio ocorrido num dos vagões do expresso da Corte para São Paulo em parte motivado por ele incidente este que real ou fictício registra seu sucesso Segundo o jornal no decorrer da viagem ouviuse uma algazarra infernal vinda de um dos vagões de primeira classe nos quais os passageiros cantavam certas partes popularíssimas de O Bilontra entre elas o jongo dos sexagenários23 Independentemente da concorrência travada entre o Santana e o Lucinda certo é que suas revistas caíram no agrado das plateias tanto que os cambistas montaram praça na frente dos dois teatros vendendo bilhetes pelo triplo do preço nas barbas da polícia24 e Souza Bastos escreveu uma revista das revistas intitulada O casamento do bilontra com a mulher homem representada no teatro Príncipe Imperial selando a união ima ginária entre as duas 25 Além disso estes jongos dos sexagená rios constaram dos programas dos bailes carnavalescos que o Santana e o Lucinda ofereceram naquele ano26 Como se pode ver estes jongos se tornaram muito populares sendo este sucesso que nos importa entender e um bom começo para esse entendimento é a denominação jongo dos sexagenários Jongo e dança de negros foram expressões que apa receram antes mesmo de 1886 nos anúncios das récitas publica das nos jornais pelas companhias teatrais27 quase sempre acom 22 A letra desse jongo também não constou do texto da revista publicado no Diário de Notícias de 3001 a 14031886 assim como de edições posteriores 23 Gazeta de Notícias 02021886 AELUNICAMPMR963 24 Jornal do Commercio 10021886 AELUNICAMPMR1381 25 Gazeta de Notícias 27021886 AELUNICAMPMR963 26 Gazeta de Notícias dos dias 6 e 8 de março de 1886 AELUNICAMPMR963 27 Batuque era o termo que aparecia nos códigos de postura e nos jornais geral mente acompanhado de reclamações sobre os transtornos que causavam ao cotidiano e à ordem pública da cidade Consultar ABREU Martha MATTOS Hebe Jongo regis tros de uma história In LARA Silvia Hunold PACHECO Gustavo Org Memória do Jongo as gravações históricas de Stanley J Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007 p 73 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 142 10092018 111711 143 panhadas da ressalva de que iriam à cena com todo o rigor e propriedade28 Esses rigor e propriedade no entanto não foram suficientes para resguardar o jongo de críticas negativas Foi fato corrente que os jongos e rebolados de ancas eram reputados prejudiciais e nefastos ao sentimento estético do público fluminense assim como foram condenados os supostos despudor lascívia e indecência de uma dança tida como sem elevação e imprópria para o tablado o que significa que eles também foram julgados moralmente prejudiciais29 As críticas só foram menos contundentes quando os jongos apareciam nos palcos com muita moderação mostrandose uma só vez em cena coristas e comparsas de cara suja e com movimentos obri gados de quadris30 Ou dito com outras palavras para certos críticos quanto menos jongos aparecessem melhor A letra destes três jongos dos sexagenários é praticamente a mesma com pequenas variações e nelas chama a atenção a visão construída sobre a escravidão pois apesar de as condições de submissão impostas pelo cativeiro nela estarem presentes Dá lhe de enxada Panha café De teu trabaio Não reda pé Trabaia negro trabaia Pro teu sinhô a canção termina com um Viva sinhô moço saudado por todos os dançantes O sentido subjacente a esta letra remete a algo já obser vado por Martha Abreu Segundo a autora o jongo podia ser dançado com permissão dos senhores nas áreas rurais e nos ter reiros principais das fazendas em dias de festas dos senhores ou aos sábados e domingos à noite Nestas ocasiões ele aparecia para ser admirado por visitantes como espetáculo do bom senhor que permitia a seus escravos gozar de momentos de divertimento e lazer ou como espetáculo da própria escravidão que se justifi cava pela domesticação daquela aparente barbárie31 28 MENCARELLI Fernando A A voz e a partitura teatro musical indústria e diversi dade cultural no Rio de Janeiro 18681908 2002 Tese Doutorado em História Uni versidade Estadual de Campinas Campinas 2002 p 231 29 ROCHA JÚNIOR Alberto F da Teatro brasileiro de revista de Artur Azevedo a São João delRey 2002 Tese Doutorado em Artes Universidade de São Paulo 2002 p 152 30 Jornal do Commercio 20031887 AELUNICAMPMR1385 31 ABREU MATTOS Jongo registros de uma história 2007 p 7677 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 143 10092018 111711 144 A música e a dança no teatro musicado poderiam exer cer diferentes funções cênicas tais como abrir e fechar atos ou funcionar como apoteose apresentar personagens ser o motivo da própria cena colaborar com efeitos cenográficos ou dar suporte para coreografias intervir na ação dramática produzir comicidade narrar fatos e descrever pessoas32 Mas ainda que elas exercessem funções particulares nas encenações é preciso considerar as especificidades das revistas de ano para que se compreenda a inclusão de tantos jongos de sexagenários nas apresentadas no ano de 1886 Como já dito a revista de ano desenvolviase a partir de uma espinha dorsal à qual eram incorporadas cenas episódicas que passavam o ano anterior em revisão Considerandose isto cons tatase que a denominação jongos dos sexagenários comum nas duas revistas de 1886 é uma alusão explícita à Lei 3270 também conhecida como dos Sexagenários Ela foi fruto de um conturbado processo de debates travado ao longo de 440 dias no parlamento nos quais a extinção da escravidão e a construção da sociedade livre foram temas centrais33 Muitos daqueles parlamentares con sideravam que a lei dizia respeito a uma questão social e não polí tica devendo portanto ser tratada com muita atenção As agitações provocadas pelo movimento abolicionista também figuraram nesses debates além de dois outros assuntos as tensões nas relações entre senhores e escravos e entre libertos e ex senhores consideradas potencialmente transformadoras das rela ções de trabalho e os perigos contra os quais era preciso precaução decorrentes da leitura e da utilização que os próprios escravos poderiam fazer da lei Com este pano de fundo os debates se desen rolaram e a lei foi aprovada e festejada pelos abolicionistas como mais um passo no caminho da extinção da escravidão Voltemos então às coxias dos teatros Muitos mili tantes abolicionistas estavam ligados ao mundo teatral e não 32 Foi para criar certa atmosfera e produzir efeitos cênicos que se incluiu um jongo em Os Noivos opereta de costumes de Arthur Azevedo musicada por Francisco de Sá Noro nha e dois em Nova viagem à lua escrita em parceria com Frederico Severo 33 Sobre a lei dos sexagenários consultar MENDONÇA Joseli Maria Nunes A Lei de 1886 e os caminhos da liberdade 1995 Dissertação Mestrado Universidade Estadual de Campinas Campinas 1995 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 144 10092018 111711 145 surpreende que levassem o tema da Abolição para os tabla dos Entre eles estavam os aqui citados Chiquinha Gonzaga Arthur Azevedo Gomes Cardim Cavalier Darbilly e Henri que de Magalhães cujos nomes constaram de vários anúncios de récitas espetáculos beneficentes e matinées abolicionistas nos anos 1880 Embora adeptos das ideias abolicionistas e mesmo que alguns tivessem ascendência africana estes indivíduos viviam em contato estreito com o mundo branco das elites estavam imbuídos das culturas europeias e tal como os seus companhei ros brancos quase não podiam sentir qualquer empatia cultural com o mundo afro brasileiro que os circundava34 Por isso ao utilizar suas obras o historiador deve levar em conta que ao produzilas eles realizaram escolhas e nelas projetaram visões parciais quando não preconceituosas sobre os temas em que se inspiraram Afinal e tal como ocorreu no caso destes jongos ao mesmo tempo que eles contribuíam para incentivar a propa ganda abolicionista também serviam para provocar o riso Uma análise dos fragmentos ou das letras completas dos jongos das revistas do ano de 1886 que foi possível locali zar tornase necessária para pensarmos as questões que vimos apontando Sobre o jongo que constou do texto original de A MulherHomem não foi possível identificar a autoria nem locali zar a letra Quanto ao denominado Ai Ai Sinhô de Henrique de Magalhães tivemos acesso à letra completa por meio da partitura publicada pela editora Narciso e Arthur Napoleão35 A letra mistura palavras em português e em língua de preto da costa ou língua de preto como então se dizia saídas da boca de um velho escravo que reclamava dos maus tratos sofridos no cativeiro 34 Célia Maria M de Azevedo Abolicionismo Estados Unidos e Brasil uma história comparada Século XIX São Paulo AnnaBlume 2003 p 124 sublinha a postura de José do Patro cínio abolicionista que criou personagens negros de aparência abjeta no seu romance Motta Coqueiro ou a pena de morte 1887 lembrando aos leitores que os brancos haviam feito do negro um animal impedindoo de desenvolver sentimentos de família religião e cidadania 35 Divisão de Música e Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional DIMASR J N VIII 13 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 145 10092018 111711 146 AiAi Sinhô Ai Ai Qui dô repete Moizanga mona la bambi Nosso nom tem mero di zumbi repete Ai Blanco no mi matrata repete Ai Zi cativêlo mata Ai Cativêlo magoa Ai Blanco nom mi matrata Ai No mi matrata a toa Ai Zi cativelo matrata Ai Cativelo magoa Baco baco bacutu E cará cará cará pinheo repete36 A figura do velho escravo cansado e sem poder de ação que reage de forma resignada ao cativeiro emerge de maneira imediata desses versos Tal imagem era bastante similar às veicu ladas nos festivais e matinées abolicionistas e partilhadas por muitos indivíduos envolvidos com os meios teatrais que ressaltavam a importância das manifestações pacíficas e caridosas de terceiros na luta pelo fim da escravidão Nos encontros por eles promovi dos eram arrecadados fundos para compra de cartas de alforrias entregues nos palcos de forma solene a escravos agradecidos à sua atuação e à doação de senhores magnânimos esperandose dos alforriados em contrapartida que se transformassem em libertos dóceis e submissos Essa mesma imagem podia ser encontrada em sucessivos exemplares da Gazeta da Tarde jornal abolicionista de José do Patrocínio amigo e companheiro de muitos daqueles músicos dramaturgos e maestros aos quais nos vimos referindo que numa coluna intitulada Crônica do bem propagandeava as cartas de liberdade concedidas por senhores generosos37 36 Jornal do Commercio 22021886 AELUNICAMPMR1381 Sobre este jornal e José do Patrocínio consultar SILVA Ana Carolina Feracin da De Papa pecúlios a tigre da abolição a trajetória de José do Patrocínio nas últimas décadas do século XIX 2006 Tese Doutorado em Universidade Estadual de Campinas Campinas 2006 37 Gazeta da Tarde dos dias 1903 2103 e 21061887 AELUNICAMP1584 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 146 10092018 111711 147 Assim a letra desse jongo contribuía para divulgar a ideia da liberdade como doação e como ato de generosida de38 reputando a escravidão como responsável pela existência de indivíduos incivilizados incapacitados para o trabalho livre e sem condições de ação autônoma Mas também não se deve deixar de levar em consideração que ela oferece possibilidades para ridicularização e infantilização dos escravos e dos negros perceptível na letra que simula a língua de preto mesmo que seu autor pudesse ser um abolicionista39 Ainda em relação a esse jongo merece destacarse que sua aceitação despertou o interesse de um editor de música que imprimiu sua partitura acompanhada da letra o que nos leva a pensar que as imagens nele veiculadas foram convincentes para os que a adquiriram por nela identificarem ideias que reafirma vam suas convicções pessoais acerca de quais seriam os melhores rumos de acesso à liberdade e futuro para os ex cativos Do jongo de O Bilontra só foi possível conhecer um verso todavia ele é de tal forma instigante que se torna irresistível tentar analisálo Esse verso diz paros Blanco que dia sinis tro aquele que os negro chegar a ministro40 Sem dúvida ele revela uma irreverência e um potencial crítico e contestató rio inexistentes no outro jongo sendo esses elementos que nos levam a supor que ele até possa ter sido cantado pela população cativa do Rio de Janeiro A presença da música e da dança no cotidiano dos escra vos ficou registrada na imprensa e nos relatos de viajantes que visitaram o Rio na maior parte das vezes com estranhamento e preconceito Nas situações que envolviam trabalho a música era tanto na forma quanto na função um instrumento comu 38 Para a alforria como dádiva consultar SCHWARCZ Lilia M Dos males da dádiva sobre as ambiguidades no processo da abolição brasileira In GOMES Flavio CUNHA Olívia M G Org Quase cidadão histórias e antropologias da pósemancipa ção no Brasil Rio de Janeiro FGV 2007 39 Para uma análise das representações sobre língua de preto consultar ABREU Martha Outras histórias de Pai João conflitos raciais protesto escravo e irreverência sexual na poesia popular 18801950 AfroÁsia n 31 p 267269 2004 40 Apud ROCHA JÚNIOR Alberto F da Teatro brasileiro de revista de Artur Azevedo a São João delRey 2002 Tese Doutorado em Artes Universidade de São Paulo 2002 p 152 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 147 10092018 111711 148 nitário que permitia aos trabalhadores harmonização dos movi mentos físicos alívio do espírito afirmação de sua humanidade escárnio dos brancos e crítica à escravidão41 Nos momentos de lazer lá estava novamente ela animando os batuques nos quais canções improvisadas serviam entre outros fatores para criticar a escravidão e os senhores O ensejo para ajuntamentos de escravos proporcio nado pelos batuques alimentou o medo de revoltas nas cida des de todo o Império e foi utilizado como justificativa para a implementação de estratégias para o enfrentamento cotidiano da questão Os esforços para controlar a população escrava ficaram registrados nas leis provinciais e sobretudo nas pos turas municipais não faltando as que proibiam os batuques terminantemente em qualquer hora do dia42 refletindo os temores com a rebeldia e também com a disseminação de cos tumes africanos entre a população Um temor que não era de todo infundado se levarmos em conta também que à medida que o século avançava os batuques passaram a reunir africa nos e pessoas de outros segmentos sociais A mistura por eles propiciada era vista como inconveniente para os que prega vam um projeto de civilização a partir de modelos europeus no qual não havia lugar para manifestações que remetessem a tradições culturais africanas43 Embora esse medo tenha sido uma constante em qualquer sociedade escravista ele foi muito presente no Rio de Janeiro nos anos 1870 e 1880 Em primeiro lugar porque nesse período a população escrava da cidade atingiu cerca de 90 mil cativos ultrapassando em muito a população livre Em segundo lugar porque esse foi um dos momentos em que o Estado Imperial através da produção de leis interveio sobre o poder privado dos senhores redefinindo arenas de conflitos sociais e comprometendo as bases da escravidão Em terceiro 41 REIS João José A greve negra de 1857 na Bahia Revista USP v 18 1993 e TERRA Paulo Cruz Músicas de trabalho no mundo Atlântico Outros Tempos v 3 2006 42 REIS João José Batuque negro repressão e permissão na Bahia oitocentista In JANCSÓ István KANTOR Íris Org Festa cultura e sociabilidade na América Portu guesa São Paulo EduspFapesp 2001 vol 2 p 347 43 REIS 2001 p 348 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 148 10092018 111711 149 lugar porque foi no contexto de acirramento da campanha abolicionista que escravos movimentaramse para acionar seus direitos ou demarcar os limites da escravidão por eles consi derados justos e suportáveis E por fim porque o destino a ser dado ao liberto foi algo que tirou o sono de muitos senhores e alimentou debates acalorados entre parlamentares que insta dos a elaborar leis que extinguissem a escravidão se sentiam em cima de um vulcão e se viam como os próprios promoto res da explosão que dele poderia advir44 No verso do jongo de O Bilontra essa dimensão do medo emerge na previsão de um futuro sinistro que inver tendo as hierarquias sociais possibilitaria ao liberto chegar a ministro Em função disso fica possível sugerir que ainda que tal verso possa ter provocado o riso nas plateias teatrais que nele viram graça e comicidade certamente deve ter sido para muitos um riso inquieto e nervoso Ao mesmo tempo e em função do seu forte teor crítico não é improvável que esses versos tenham sido cantados por escravos habituados a produ zirem significados culturais ou adaptarem outros já existentes a novas circunstâncias E essa não é uma suposição de todo des cartável se tivermos em mente por exemplo algo que José de Alencar trabalhou na sua comédia O Demônio Familiar 1857 Nela Pedro o protagonista é um escravo doméstico que de tanto acompanhar seus senhores aos teatros decora o enredo da ópera O Barbeiro de Sevilha e cantarola frequentemente a ária La Calunnia atribuindo a si próprio a manha de Fígaro Pedro tem manha muita mais que Fígaro45 sendo nessa capaci dade peculiar de decodificação do mundo que residia o poder de periculosidade deste escravo imaginário Vindo ainda refor çar esta ideia cabe dizer que a imagem do escravo inimigo doméstico não foi um simples recurso dramático utilizado por Alencar embora também o fosse uma vez que ela estava imbricada nas próprias origens do antiescravismo brasileiro 44 CHALHOUB Sidney Machado de Assis historiador São Paulo Companhia das Letras 2003 p 146 45 SOUZA Silvia Cristina M de O palco como tribuna uma interpretação de O Demônio Familiar de José de Alencar Curitiba Aos Quatro Ventos 2002 p 102103 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 149 10092018 111711 150 podendo ser encontrada em textos emancipacionistas publica dos desde o início do século XIX46 Mas isto ainda não é tudo Oito dias antes da assinatura da lei de 13 de maio de 1888 a Gazeta do Norte de Fortaleza noticiou a realização de um concerto no Clube Iracema por um jovem músico cearense que estava de partida para realizar estudos na Europa O Clube Iracema era uma associação que como outras existentes na Corte e nas províncias oferecia um espaço de sociabilidade para segmentos sociais mais seletos e propi ciava a convivência entre músicos amadores e profissionais Seus concertos e saraus incluíam performances musicais de canto e música instrumental além de leituras de poemas e encena ções de peças teatrais curtas47 De acordo com Machado de Assis não existia no Rio uma rua que não possuísse uma ou duas sociedades de música como o Clube Terpsícore a Socie dade Musical Prazer da Glória ou o Clube Politécnico com seus saraus dançantes48 Foi no Clube Iracema que Alberto Nepomuceno apre sentou pela primeira vez sua composição Dança de Negros pos teriormente rebatizada Batuque Avelino R Pereira observou que nela Nepomuceno recriou a forma responsória do canto do batuque utilizandose do motivo sincopado em piano seguido de acordes mais graves num forte marcado e aplicou alterações rítmicas com diferentes timbres e explorando diversas regiões do piano dando à peça um caráter variado em torno de uma mesma ideia mediante o recurso do ostinato rítmico e da acele ração do andamento e do som culminando com a umbigada musicalmente traduzida num furioso fortíssimo49 46 ROCHA Manoel Ribeiro Etíope resgatado empenhado sustentado corrigido instruído e liber tado Petrópolis RJ Vozes 1992 e SILVA José Bonifácio de Andrada e Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura Rio de Janeiro J E S Cabral 1840 47 AUGUSTO Antônio J A questão Cavalier música e sociedade no Império e na Repú blica 18461914 Rio de Janeiro Folha Seca 2010 p 121122 48 Gazeta de Noticias 12061885 AELUNICAMPMR962 49 PEREIRA Avelino R Música sociedade e política Alberto Nepomuceno e a República Musical Rio de Janeiro UFRJ 2007 p 5355 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 150 10092018 111711 151 Vêse assim que ao diluir o batuque nas estruturas har mônicas e formais da música erudita Nepomuceno o embran queceu e o tornou palatável aos preconceituosos ouvidos dos frequentadores do Clube Iracema preconceitos dos quais ele próprio parecia partilhar como insinuou o crítico musical Oscar Guanabarino para quem ele metera o batuque numa casaca pois o motivo local explorado foi sentido através dos grandes sinfonistas alemães50 Data dos anos 1890 a impressão de uma coleção de par tituras intitulada Brasilianas danças características pela editora de Isidoro Bevilacqua51 Esta coleção era composta por um samba e um jongo ambos de autoria de alguém que assinou SB e possuía uma capa que foi a mesma para o samba e o jongo bastante sugestiva 50 PEREIRA 2007 p 55 Outro músico que se inspirou no batuque foi Alexandre Levy ao compor Samba parte da sua Suite Brasileira que estreou em 1890 no Rio de Janeiro sob a batuta de Leopoldo Miguez Na ocasião Valentim Magalhães disse ser a peça uma representação viva e fiel da característica dança de pretos do interior de São Paulo que Júlio Ribeiro descreveu com mão de mestre danças que tiveram origem nas congadas Alexandre Levy instrumentou com grande proficiência esses ritmos guardados pela tradi ção e com motivos populares entremeou a aspereza dos tambaques e adufes O público aplaudiu freneticamente a peça que foi bisada apud Said Tuma O popular na música de Alexandre Levy bases de um projeto de modernidade Dissertação de Mestrado Uni versidade de São Paulo 2008 p 199 51 Para a datação aproximada das partituras foram analisadas capa contracapa e miolo preços de venda editor número das chapas das partituras e autoria As informações foram cotejadas com a tabela elaborada por Mônica Leme Isidoro Bevilacqua e Filhos radio grafia de uma empresa de edição musical In LOPES et al Antonio H História e música no longo século XIX Rio de Janeiro Casa de Rui Barbosa 2011 Para uma análise desta cole ção consultar SOUZA Silvia Cristina M de Brasilianas danças características reflexões sobre brasilidade e miscigenação a partir de partituras musicais Rio de Janeiro fim do século XIX e início do século XX Revista Maracanã v10 p 145171 2014 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 151 10092018 111711 152 Figura 1 Capa da Coleção Brasilianas Fonte DIMASBNRJ Disponível em httpobjdigitalbnbracervodigital divmusicamas200239pdf Nesta capa a imagem o título e o subtítulo da coleção assim como os gêneros musicais escolhidos indicam sintonia com debates contemporâneos sobre a busca de originalidades musicais brasileiras centrados na questão da mestiçagem EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 152 10092018 111712 153 Em relação ao autor das composições foi possível saber tratarse de Sebastião Barroso que também se utilizou do pseu dônimo S DAllincourt para assinar músicas e artigos sobre psicologia e higiene mental que publicou na Gazeta de Petrópolis Ele fez parte do quadro do movimento sanitarista promovido por Oswaldo Cruz e atuou como diretorgeral de Saúde Pública e do Instituto de Manguinhos52 Barroso ainda foi chefe do ser viço de Saneamento Rural da Bahia e do Departamento Nacio nal de Saúde Pública no Rio53 Além disto ele proferiu palestras e escreveu livros de medicina popular como Higiene para todos e Vícios e doenças que as crianças apanham umas das outras54 Sebastião Barroso foi compositor musical nas horas vagas e além do samba e do jongo da coleção Brasilianas escreveu Dan ças brasileiras sapateado impressa pela Casa Paris P Pegat e Cie 190955 um romance para flauta e piano intitulado Brasileiro representado num espetáculo da Cruzada Nacional da Educa ção56 uma peça para concerto denominada Sombras Romance Bra sileiro57 e um bailado a que deu o título de Cascavelando58 Em todas elas como se pode ver é constante a preocupação com a ideia de brasilidade e com a eleição da dança como seu lugar de expressão Voltando às capas das partituras da coleção Brasilianas o subtítulo danças características permite elaborar algumas reflexões 52 BENCHIMOL Jaime Hideyo Noguchi e a Fundação Rockefeller na campanha internacional contra a febre amarela 19181928 In BASTOS Cristiane BARRETO Renilda Org A circulação do conhecimento medicina redes e impérios Lisboa Imprensa de Ciências Sociais 2011 p 241242 53 BENCHIMOL 2011 p 227 54 Electron ano I n 9 161926 Vícios e doenças compôs a Biblioteca Popular de Higiene editada nos anos 1930 pela Edições Melhoramentos 55 DIMASRJ AII32 56 Diário de Notícias 2361939 Hemeroteca Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro HBNRJ Disponível em httpmemoriabnbrpdf093718 per093718193905108pdf Acesso em 12 out 2014 57 A Noite 2971922 HBNRJ Disponível em httpmemoriabnbr pdf348970per348970192203826pdf Acesso em 1 out 2014 58 Este bailado foi executado por Eros Volúsia dançarina que se notabilizou na inter pretação de danças de terreiro danças rituais indígenas samba frevo maxixe maracatu e o caboclinho de Pernambuco O Correio da Manhã de 2 de julho de 1937 noticiou que o balé Cascavelando denominado samba estilizado foi apresentado no Teatro Munici pal do Rio ao som de uma orquestra regida por Francisco Mignone e foi assistido pelo presidente Getúlio Vargas apud Pereira Roberto A formação do balé brasileiro naciona lismo e estilização Rio de Janeiro FGV 2003 p 180182 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 153 10092018 111713 154 pois associa a expressão características à noção de traço iden titário brasileiro do título59 A palavra brasileira desde a década de 1860 constou dos títulos de cancioneiros e álbuns de partituras musicais que majoritariamente continham letras de modinhas e lundus60 No caso da coleção Brasilianas porém somos levados a pensar que alguma coisa se movia pois existiam duas peças musicais escri tas por um compositor que fazia parte das elites priorizando gêneros musicais considerados baixos e indignos mas esta belecendo uma associação positiva entre eles e certas noções de brasilidade o que é reforçado pela imagem da capa das parti turas Nelas o batuque deixa de ter o sentido de dança de negros para assumir a dança de brasileiros de todas as cores como destacado na Figura 2 Figura 2 Detalhe capa da Coleção Brasilianas Fonte DIMASBNRJ Disponível em httpobjdigitalbnbracervodigital divmusicamas200239pdf 59 A ideia da dança como espaço de originalidade nacional por meio da miscigenação aparece também em BILAC Olavo A dança no Rio de Janeiro Kosmos ano 3 n 5 maio 1906 e em COSTA Francisco Pereira da Folklore pernambucano subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco RIHGB tomo 70 parte 2 1908 60 Consultar Cancioneiro popular de modinhas brasileiras Lyra brasileira O cantor de modinhas brasileiras Cantares brasileiros e A cantora brasileira e os álbuns de par tituras Danças brasileiras Três modinhas brasileiras Coleção de modinhas brasileiras e Doze valsas brasileiras EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 154 10092018 111713 155 Chama a atenção nestes detalhes a representação que oferecem do espetáculo da miscigenação61 Neles encontram se um branco tocando pandeiro negros que tocam atabaques e batem palmas no ritmo da música e a figura de uma mulata que se confunde com a da baiana colocada em posição de destaque como que simbolizando a síntese desta mistura62 Neles ainda é explícita a capacidade de congraçamento racial e cultural atri buída ao samba e ao jongo ambos representados pela imagem do batuque o que é um indicativo tanto da força de um imaginário construído sobre este quanto de como jongo e samba eram gêne ros com fronteiras pouco definidas naqueles tempos Embora desde fins do século XIX o Brasil fosse recorren temente descrito como uma imensa nação mestiça representando nesse sentido um caso extremo e singular63 a busca por traços culturais que caracterizassem uma brasilidade miscigenada só se tornou pos sível no pósAbolição e com o advento da República que provo caram o investimento na complicada construção de uma versão musical mestiça estimulando entre os intelectuais uma espécie de tomada de posição em relação à população afrodescendente e sua incorporação à vida nacional e à identidade da nação64 Neste contexto que foi justamente o do aparecimento destas partituras a mulata foi revestida do papel de mestiçagem civilizatória e símbolo do que seria mais apreciado pelo ethos 61 Esta expressão é tomada de empréstimo a Lilia Schwarcz e encontrase em Espetá culo da Miscigenação Estudos Avançados v 20 n 8 1994 62 Nas capas da coleção a figura da mulata com balangandãs e turbante à cabeça remete às imagens de Debret Rugendas e Agassiz que retratavam um grupo social específico composto por mulheres africanas de procedência da Costa da Mina Embora informações adicionais a este respeito requeiram maiores investigações é possível pelo menos indicar que a imagem da baiana tem uma história mais antiga do que a versão que a atribuiu a Carmem Miranda 1930 Micol Seigel e Thiago Gomes por sua vez chamaram a atenção para a importância da figura das tias baianas na consolidação dos tipos da baiana e da mulata e destas para o reconhecimento de um papel central dos afrobrasileiros na construção de uma ideia de identidade nacional Consultar SEIGEL Micol GOMES Tiago de Melo Sabinas oranges the colours of cultural politics in Rio de Janeiro 18891930 Journal of Latin American Cultural Studies v 11 n 1 p 528 2002 63 SEIGEL GOMES p 137 grifo no original Parece ser consenso entre os historiado res de que foi a revista de ano A República 1892 de autoria dos irmãos Artur e Aluízio Azevedo que transformou a mulata em personagem de sucesso 64 ABREU Martha DANTAS Carolina Música popular e história 18901920 In LOPES Antonio Herculano et al Música e história no longo século XIX Rio de Janeiro Fundação Casa de Rui Barbosa 2011 p 39 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 155 10092018 111713 156 nacional Esta valorização por sua vez vinha acompanhada de elementos tais como atributos de beleza e sensualidade os quais foram paulatinamente sendo associados à sua imagem65 No caso específico de Sebastião Barroso suas opções como compositor parecem deslocadas se pensarmos na sua atua ção como médico sanitarista No entanto as coisas não estavam assim tão fora de lugar Se em fins do século XIX o Brasil emer gia aos olhos do mundo como um imenso contingente de homens incapazes e degenerados e como uma nação mestiça marcada pela inferioridade racial foi esta mesma presença que permitiu preconizar a miscigenação como meio de absorção das raças consideradas inferiores por meio do branqueamento Quando em inícios do século XX as ideias eugênicas encontraram eco nos meios intelectuais e médicos brasileiros foi a aproximação entre as ideias sanitaristas e a eugenia num contexto de crescente nacionalismo e de adoção das orientações neolamarckistas que permitiu a emergência da crença no poder da ciência como ins trumento auxiliar de regeneração da sociedade e de um projeto de reforma social66 Com base nestes pressupostos a reforma propugnada por intelectuais e médicos caminhou mais voltada para os problemas sociais e do meio os quais nas suas visões se devidamente solucionados permitiriam melhorar as característi cas da população Foi este movimento um dos fatores que tornou possível a presença da racialização e valorização da brasilidade e da mestiçagem na música espaço em que elas pareciam bem mais possíveis do que nos debates em torno do futuro do país67 travados em outras instâncias o que por extensão ajuda a explicar a posição aparentemente ambígua de Sebastião Barroso68 65 ABREU Martha Sobre mulatas orgulhosas e crioulos atrevidos conflitos raciais gênero e nação nas canções populares Sudeste do Brasil 18901920 Tempo Rio de Janeiro n 16 jan 2004 66 STEPAN Nancy A eugenia no Brasil 1917 a 1940 In HOCHMAN Gilberto ARMUS Diego Org Cuidar controlar curar ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe Rio de Janeiro Fiocruz 2004 p 345 67 ABREU 2004 p 17 68 A partitura do samba desta coleção teve outra publicação cuja capa trazia a imagem de uma índia Não foi possível saber qual das duas capas foi editada primeiro A imagem da índia no entanto serve para reafirmar a hipótese de que a ideia de união de raças parece ter sido cogitada para ambas EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 156 10092018 111713 157 A julgar por todos estes elementos podese dizer que ao incluírem um jongo na coleção Brasilianas e ainda que estivessem movidos por interesses financeiros tanto editor quanto compo sitor demonstravam acompanhar de perto tais discussões deno tando que suas decisões editoriais não foram apenas norteadas por opções que visavam ao lucro nem uma simples decorrência de suas idealizações pois se baseavam em situações concretas e estavam sintonizadas com diálogos e conflitos culturais travados na sociedade em que estavam inseridos69 No dia 13 de maio a lei que extinguia a escravidão foi assinada pela princesa Isabel e o acontecimento ganhou grande destaque na imprensa do Rio e das províncias As ruas da Corte foram tomadas por um clima festivo Em algumas províncias durante três dias e três noites podiase ouvir os tambores rever berando enquanto libertos regozijavamse com o caxambu70 Em pouco tempo porém estas manifestações cederam lugar a uma realidade mais sóbria prevalecendo o sentimento de abandono entre a população negra71 Não tardaria também para que os jongos fossem per dendo visibilidade deixando de ocupar os espaços anteriormente conquistados É possível que esse fenômeno tenha sido fruto da dificuldade que o jongo enfrentou para ser aceito mais que o lundu e o maxixe por exemplo para vencer a impermeabilidade de uma sociedade pouco afeita a aceitar um gênero musical tão intimamente relacionado a escravos e libertos e às tradicionais políticas públicas de repressão e controle e que tal significado se tenha esvaziado com a Abolição da escravidão pelo menos entre os abolicionistas Mas também não é improvável que a função de instrumento de luta política do qual o jongo esteve revestido no século XIX e que teve algum significado para os libertos do 13 de maio tenha perdido força 69 ABREU Martha DANTAS Carolina Música popular e história 18901920 In LOPES Antonio Herculano et al Música e história no longo século XIX Rio de Janeiro Fun dação Casa de Rui Barbosa 2011 p 44 70 STEIN Stanley Vassouras um município brasileiro do café 18501900 Rio de Janeiro Nova Fronteira 1990 p 302303 71 ABREU Martha MATTOS Hebe Jongos registros de uma história In LARA Silvia Hunold PACHECO Gustavo Org Memória do Jongo as gravações históricas de Stanley J Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca Campinas SP CECULT 2007 p 92 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 157 10092018 111713 158 Independentemente do motivo creio ser possível elabo rarmos algumas considerações finais que devem ser vistas menos como ponto de chegada e mais como ponto de partida para pos teriores incursões no tema A primeira delas é que a compreen são dos diálogos travados entre música e sociedade podem ser enriquecidos se for levado em conta que diferentes modos de percepção do mundo estão na base das tensões e conflitos cul turais que envolvem diversos agentes produtores entre si e com outros grupos Afinal ao se expressarem através de uma lingua gem musical os produtores são colocados diante de conflitos de caráter estético técnico ideológico e político e suas escolhas indicam a dimensão do diálogo permanente entre música e sociedade Os documentos aqui analisados nos permitem per ceber os esforços de diferentes sujeitos envolvidos com o mundo musical do período e nos fornecem indícios suficientes para sugerirmos que a incorporação de negros e mestiços à noção de uma música que se pretendia brasileira foi algo levado a sério por eles a despeito da presença de ideias práticas e políticas racistas e do branqueamento em vigência naquele contexto Uma segunda constatação é que a visão da escravidão e da liberdade veiculada por alguns abolicionistas teve vida longa e acabou informando um modelo interpretativo sobre as rela ções de dominação escravistas chamado de paternalista Mar cado por uma economia de troca de favores esse paternalismo conformou uma matriz de pensamento que postulou que os dominados funcionavam como dependentes incapazes de ações autônomas e se movimentavam apenas num espaço de ação consentido pelos senhores Tal visão começou a ser questionada a partir dos anos 1980 quando alguns historiadores passaram a incluir nos seus estudos a experiência dos escravos como sujei tos capazes de representar seu mundo e nele atuar rompendo com imagens que sustentavam sua desumanização e defendiam o caráter absoluto da dominação exercida sobre eles72 E por fim que a constatação de que a presença e valo rização da brasilidade e da mestiçagem na música desde fins 72 GOMES Ângela de Castro Questão social e historiografia no Brasil do pós 1980 notas sobre um debate Estudos Históricos n 34 juldez 2004 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 158 10092018 111713 159 do século XIX nos permite afirmar com outros historiadores que o esforço para selecionar definir e divulgar originalidades nacionais tendo como base a racialização tem uma história e não precisou esperar a obra de Gilberto Freyre para entrar na pauta das discussões intelectuais73 Foi por meio da racializa ção da música e da dança que se tornou possível elaborar uma imagem positivada para o jongo embora o símbolo de identi dade musical brasileira tenha sido posteriormente atribuído ao samba Mas esta já é uma outra história 73 GOMES Thiago de Melo Um espelho no palco identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920 Campinas Unicamp 2005 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 159 10092018 111713 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 160 10092018 111713 PARTE II CARNAVAIS E MOBILIZAÇÃO NEGRA EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 161 10092018 111713 162 ESSA FINA GENTE DO MORRO OCUPAÇÃO CONFLITOS E REPRESENTAÇÕES DA MANGUEIRA 19101930 Lyndon de Araújo Santos Rio de ladeiras Civilização encruzilhada Cada ribanceira é uma nação1 A ESTAÇÃO DERRADEIRA O objetivo deste texto é mostrar como se deu a ocupação do morro da Mangueira e o surgimento de certas representações dos seus moradores por parte da imprensa nas primeiras décadas do século XX Essas representações estavam associadas às práticas da cultura negra no período pósAbolição como foram o batuque o samba a capoeiragem e as práticas religiosas de origens africanas alvos da repressão policial Situamos nosso estudo no limite tempo ral anterior à consagração tanto do samba como da Mangueira no contexto do carnaval carioca e da cultura mais ampla A ocupação da região e dos morros na Mangueira se deu por parte de libertos pósAbolição de descendentes de africa nos de migrantes de empobrecidos e de operários das fábricas do seu entorno Utilizando a linha férrea para o deslocamento rumo aos subúrbios sendo a estação de trem da Mangueira sua primeira parada estes sujeitos foram protagonistas num pro cesso desordenado e marcado por conflitos de várias ordens no qual o samba se insurgiu como expressão musical e cultural2 1 Parte da letra da música de Chico Buarque Estação derradeira 2 Segundo Sérgio Gramático Júnior o samba foi ali introduzido pelos idos de 19151916 por Elói Antero Dias Sérgio Gramático Júnior Maçu da Mangueira o 1º mestre sala do samba Rio de Janeiro Hama 2009 p 30 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 162 10092018 111713 163 Em que medida podemos então ver a Mangueira por meio das representações dos moradores que a fizeram de forma anônima e silenciosa no cotidiano mas não passiva e nem tão disciplinadamente como a ordem republicana desejava3 Tanto o morro como os seus moradores foram representados pela mídia impressa numa linguagem que os categorizava e os distinguia em termos sociais e raciais Na edição de 3 de março de 1926 o Correio da Manhã trazia a seguinte descrição sobre a Mangueira quando o morro se projetava com destaque na pai sagem urbana e social do Rio de Janeiro O Morro da Mangueira é subdividido em pequenos morros todos habitados por gente modesta que levanta ali o seu barracão mediante certo contrato com o proprie tário Entre os habitantes há indivíduos de bom caráter humanitários como o era a vítima de Aleijadinho e há também os maus afeitos ao crime que são os auto res das cenas sangrentas que ali se verificam frequente mente Assim o Morro da Mangueira é constituído dos morros dos Telégrafos do Pendura Saia da Matriz do Faria etc4 Notamos nessa descrição as características emergentes do seu contexto e geografia presentes no conjunto dos pequenos morros que a formavam da gente modesta dos barracões das ambiguidades morais de seus moradores e da violência que cha mava a atenção nos noticiários Até alcançar este destaque que se dava também na dimensão cultural do carnaval do samba dos cultos afro dos seus malandros e valentes destros na capoeira e na navalha a Mangueira passou por um processo de ocupa ção que bem demonstra o modo como a população composta de filhos e de netos de escravos da cidade do Rio de Janeiro foi submetida levandoa a elaborar seus próprios meios de sobrevi vência após a Proclamação da República e da Abolição 3 O cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada CERTEAU Michel de A invenção do cotidiano 1 artes de fazer 14 ed Trad Ephraim Ferreira Alves Petró polis RJ Vozes 2008 p 38 4 Jornal Correio da Manhã 3 de fevereiro de 1926 Ed 09518 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 163 10092018 111713 164 Segundo Adrelino Campos excluídos do mundo do tra balho discriminados e sem direitos reconhecidos os descenden tes de africanos herdaram os procedimentos de combate aos negros quilombolas do século anterior XIX5 O autor pro curou restabelecer a lógica das classes populares como sujeitos responsáveis pela ocupação socioespacial das cidades ao rela cionar os cortiços e as favelas como transmutações dos quilom bos periurbanos Estes espaços que tiveram expansão no período entre 1850 e 1888 foram sendo incorporados à cidade no seu novo processo de expansão do Centro para a periferia mas tam bém inversamente da periferia para o Centro Esta ocupação aconteceu não somente no morro ou no conjunto destes pequenos morros mas na própria região contí gua ao bairro de São Cristóvão e da Quinta da Boa Vista onde ficava a primeira parada dos trens vindos da Central do Brasil a estação primeira da Mangueira Nesta direção se deu uma das expansões da cidade na sequência dos trilhos da rede ferroviá ria em decorrência da suburbanização a partir de 18726 A região era servida por carris de bondes ruas estradas e linha férrea Bairros e regiões como São Cristóvão São Francisco Xavier Andaraí Engenho Novo Engenho de Dentro Cascadura e outros receberam o influxo de pessoas de famílias de desocupa dos e de trabalhadores em função das oportunidades de terrenos e de aluguéis baratos embora cada vez mais distantes dos locais de trabalho Toda esta área esteve sujeita também à especulação financeira de agentes imobiliários que foram privilegiados pelos governos em detrimento dos menos favorecidos e empobrecidos Entre as estações da Mangueira e de São Francisco Xavier era feito o desvio para o ramal da Pavuna com intenso trânsito das composições entre a Central do Brasil e os subúr bios O crescente número de passageiros e a necessidade de aperfeiçoamento da rede somados à imprudência dos usuários proporcionavam problemas recorrentes de horários de colisões 5 CAMPOS Andrelino Do quilombo à favela produção do espaço criminalizado no Rio de Janeiro 4 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2011 p 6364 6 ABREU Martha Campos Evolução urbana do Rio de Janeiro Rio de Janeiro IPPZahar p 5089 apud Andrelino Campus Do quilombo à favela p 67 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 164 10092018 111713 165 de avarias e de acidentes como atropelamentos e quedas das plataformas ou dos vagões A linha férrea se tornou o meio prin cipal do transporte desta gente e ao mesmo tempo um espaço de riscos permanentes Não poucas fábricas afluíram para esta região pela faci lidade dos acessos e de transportes disponibilidade de mão de obra preços baratos dos terrenos e pela concentração de investi mentos em infraestrutura urbana E de certa forma a ocupação do morro esteve ligada à presença delas nas suas imediações onde havia fábricas manufatoras de sapatos e chapéus cerâ micas e olarias onde trabalhavam muitos dos moradores da favela A origem dos barracos no morro era intrínseca à rotina de trabalho nessas fábricas já que Francisco de Paula Negreiros Saião Lobato o visconde de Niterói dono daquelas terras um presente do imperador Dom Pedro II as repassou para um dos donos das fábricas o português Tomás Martins O industrial construiu casas para alugar a seus empregados sendo que mais tarde gente sem ter onde morar chegava por lá e levantava seus barracos do jeito que era possível7 Uma das mais destacadas foi a Fábrica de Chapéus Fernandes Braga Cia que se instalou na região nos anos de 18961898 compondo assim a paisagem em formação no sopé da grande mangueira que demarcava a primeira parada do trem vindo da Central do Brasil Situada ao pé da árvore e próxima à estação de trem a fábrica passou a ser identificada assim como os seus chapéus como Fábrica de Chapéus Mangueira 7 MONTEIRO Denilson Divino Cartola uma vida em verde e rosa Rio de Janeiro Casa da Palavra 2012 p 29 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 165 10092018 111713 166 Figura 1 Construção da Fábrica Fernandes Braga Cia Fonte Acervo da Fábrica de Chapéus Mangueira Digitalização feita pela professora doutora Isis Fernandes Braga UFRJ A Fernandes Braga Cia ou a Fábrica de Chapéus Mangueira de diferentes formas esteve integrada a este processo e contexto pela presença de moradores do morro nos seus qua dros de empregados e pelas formas de prestação de serviços ao seu entorno Em 1918 funcionou nas suas dependências uma enfermaria provisória administrada pelo Exército durante as epi demias de varíola e febre amarela que atingiram a região ante a falta de leitos em hospitais8 Desde a sua construção nos finais do século XIX seguindo o padrão das fábricas inglesas foi construído um con junto de casas contíguas à fábrica para os seus empregados que de alguma forma contribuiu para esta ocupação e alteração da paisagem Certamente o apito e o relógio da fábrica passaram a determinar a relação com o tempo e as horas da população do entorno juntamente com os horários dos trens A fábrica fez parte da paisagem social durante as déca das seguintes e determinou as condições de vida de muitos traba lhadores moradores da Mangueira e bairros adjacentes a partir por exemplo dos salários que ainda eram diferenciados para os homens e para as mulheres que ganhavam menos insuficientes até para o alimento 8 Jornal Correio da Manhã 27 de outubro de 1918 Ed 12435 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 166 10092018 111714 167 EM MANGUEIRA Na estação de Mangueira trabalham centenas de operários NA FÁBRICA DE CHAPÉOS Os operários ganham de 5 a 5500 As operárias de 2500 a 3 O trabalho vai das 7 ás 16 horas Os extraordinários prolongamse até ás 17 12 horas Os salários não chegam para o alimento Tal situação não pode continuar A van guarda deve lutar contra o patronato apoiandose no único jornal operário escrevendo para ele sobre seus sofrimentos e aspirações NA FÁBRICA DE LADRILHOS Os salários na fábrica de ladrilhos da rua Visconde de Niterói regulam os mesmos da fábrica de Chapéus Mangueira Os patrões estabeleceram uma cozinha econômica com mercado ria fornecida pela feira livre Dão abono no dia 30 e pagam no dia 15 A exploração é demasiada FP9 Os valores citados pelo periódico referiamse a uma pos sível média equivalente à jornada diária de trabalho As diferen tes funções na cadeia da produção dos chapéus também deter minavam as desigualdades dos valores como o pagamento dos salários sempre menores das mulheres operárias Estas exerciam majoritariamente o serviço de forradeiras mas atuavam tam bém na tinturaria no polimento e em outros setores10 Tanto na estação como na fábrica a citação se refere a centenas de operários que a se considerar a veracidade da informação concentravamse no entorno deste núcleo produ tivo habitacional e de serviço Portanto se por um lado a ocu pação da região e do morro da Mangueira esteve ligada à produ ção fabril por outro não foi somente este o fator determinante para que a derradeira estação se tornasse um Rio de ladeiras de encruzilhadas de ribanceiras e de fronteiras enfim A CIVILIZAÇÃO ENCRUZILHADA Em 1917 o morro da Mangueira já era conhecido como sendo transformado em sucursal da Favela depois que para ali se 9 Jornal A Classe Operária 4 de julho de 1925 Ed 00010 10 Temos o exemplo de Rufina Avila de Mattos que trabalhou como forradeira de chapéus na Fábrica de Chapéus Mangueira executando serviços tanto na fábrica como em casa SANTOS Lyndon de Araújo A religião dos Mascates e das Forradeiras O cotidiano e os sujeitos no protestantismo primitivo brasileiro Séculos XIX e XX Revista PósHistória n 9 p 175198 2001 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 167 10092018 111714 168 transferiu o pessoal que residia no morro de S Antonio11 Entretanto não somente pela dispersão do morro de S Antonio a Mangueira recebeu pessoas oriundas de outras partes da cidade e do país12 A ida da família Oliveira do futuro Cartola se deu em 1919 quando havia por volta de 50 casas A maioria eram barracos feitos com madeira que se conseguia por perto O povo que ocupou a região era gente que teve suas casas derrubadas na reforma da Quinta da Boa Vista promo vida pela prefeitura em 1908 ou no incêndio do morro Santo Antônio em 1916 onde os barracos daquela que é considerada a primeira favela do país foram destruídos13 As fotografias a seguir tiradas no ano de 1920 retratam as condições de vida a construção rudimentar dos casebres e algumas crianças chamadas de moleques14 Foto 1 Casebre e moleques 11 Jornal do Brasil 26 de outubro de 1917 Ed 00298 12 Nordestinos buscando trabalho e habitação barata soldados despejados da grande reforma feita na Quinta da Boa Vista negros excluídos socialmente sofrendo as marcas recen tes da escravidão População marginalizada não marginal DIAS Elói Antero Sérgio Gramático Júnior Maçu da Mangueira o 1º mestre sala do samba Rio de Janeiro Hama 2009 p 29 13 MONTEIRO Denilson Divino Cartola uma vida em verde e rosa Rio de Janeiro Casa da Palavra 2012 p 29 14 Fotografias feitas por Henry George Wills um protestante ligado à Associação Cristã de Moços e aos proprietários da Fábrica de Chapéus Mangueira referindose aos moleques no verso das fotos Acervo da Fábrica de Chapéus Mangueira Digitalização feita pela professora doutora Isis Fernandes Braga UFRJ EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 168 10092018 111715 169 Foto 2 Moleques EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 169 10092018 111715 170 Foto 3 Casebres no Morro da Mangueira ao fundo o pico da Tijuca O jornal O Paiz descreveu o processo de ocupação do morro da Mangueira de forma negativa sujeita a enfrentamen tos e conflitos por parte do poder público Nesse morro está construída uma verdadeira Favela tantas são as casinhas de reboco e sapé sem água sem esgoto construídas sem licença da Prefeitura e ocupadas na maior parte por elementos perturbadores soldados desertores do exército polícia e marinha indivíduos sem ocupação definida que vieram tocados da Quinta da Boa Vista em virtude das demolições ali havidas por motivo da transformação que está sofrendo aquele parque Esses indivíduos se arrancharam em casebres construídos à la minuto segundo declararam as autoridades de higiene que lá foram por permissão verbal do prefeito como meio fácil de conseguir a desocupação das casas da Quinta a demolir A Saúde Pública que em 1906 conseguiu deso cupar e demolir quase todas as habitações toscas daquele morro com grande esforço assiste agora os seus esfor ços perdidos com a transformação súbita daquela aba do EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 170 10092018 111715 171 morro já saneada em uma verdadeira Favela Aí reside o foco do mal15 Remetendose à primeira década do século XX a ocu pação foi feita de forma gradativa e sujeita a conflitos territoriais e jurídicos mobilizando os órgãos públicos no enfrentamento dos problemas gerados pela ocupação sem licença O ministro da Justiça e dos Negócios Interiores Esmeraldino Bandeira encaminhou no dia 22 de abril de 1910 ao gabinete do prefeito do Distrito Federal Inocencio Serzedelo Correia um ofício soli citando a proibição do levantamento de casebres no morro dos Telégrafos bem como em outros pontos da cidade atendendo se à constante ameaça que para a saúde pública constituem essas edificações16 Informado pela DiretoriaGeral de Saúde Pública o ministro tomou ciência da construção abusiva e sem formalidade legal no morro dos Telégrafos a poucos metros das estações da Mangueira e de S Francisco Xavier de casebres de zinco cafuas de taboas de caixões velhos com cobertura de sapê que nada invejam aos que no morro da Favela e de Santo Antonio se encontram17 Os argumentos para a proibição fundamentavamse na questão da saúde e da higiene públicas no contraste com a esté tica das construções modernas e na injustiça quanto à ereção destes casebres naquele local quando a capital possuía distritos rurais com liberdade de edificação sem necessidade de pagar aluguel Mas nutriamse também dos preconceitos e dos prog nósticos pessimistas relativos ao destino das populações libertas no período pósAbolição18 As estações supra referidas têm nas suas proximidades ruas magníficas calçadas e iluminadas a gás que osten 15 Jornal O Paiz 25 de agosto de 1910 Ed 09455 16 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro AGCRJ 25333 fl 16 17 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 op cit f16 18 ABREU Martha Campos Sobre mulatas orgulhosas e crioulos atrevidos conflitos raciais gênero e nação nas canções populares Sudeste do Brasil 18901920 Tempo n 16 p 4 2003 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 171 10092018 111715 172 tam prédios modernos higiênicos e construídos de acordo com as ultimas posturas municipais Esses prédios muito breve irão sofrer as consequências funestas dos casebres ora em construção visto como o morro dos Telégrafos não é abastecido de água nem é provido de esgoto19 Antes deste despacho o agente da Prefeitura no 17º Distrito no Engenho Novo havia informado que os barracões construídos sem licença no morro da Mangueira pertenciam a soldados do 13º Regimento da Cavalaria cujas construções o Exmo Sr Dr Prefeito deunos ordem pessoalmente para con sentir independente de licença20 Para o ministro o agente dissera sobre as pessoas que velhas sic buscavam habitação vinham do morro Santo Antonio e que recebera ordens para não as impedir21 Alguns moradores no entanto haviam solicitado for malmente a permissão de permanecerem no morro argu mentando que eram vítimas da ação das reformas urbanas da Prefeitura e da própria pobreza apelando para uma legislação imperial que isentava os pobres de pagamentos de sepulturas Ou seja o apelo era para que o governo repetisse a prática da isenção dos pobres de obrigações legais como impostos e taxas oriundos do período imperial Os abaixo assinados que eram moradores na Quinta da Boa Vista em São Cristóvão e cujas habitações foram demolidas por ordem de Vossa Excia para a construção do Parque tangidos pela necessidade para o abrigo de suas famílias construíram no morro alto com entrada pela rua Visconde de Niterói pequenos Barracões Tendo sido os suplicantes intimados pelo Snr Agente da Pre feitura do 17º Distrito venho nestes termos pedir a Vª Excia que por equidade lhes sejam dispensados tais emolumentos porquanto os suplicantes vivem na mais 19 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 op cit f16 20 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 op cit f16 21 O agente fiscal da Prefeitura Municipal no Distrito de Engenho Novo mandou inti mar todos os indivíduos que construíram barracões nos morros da Mangueira e Telégra fos a legalizálos ao prazo de cinco dias sob pena de multa e demolição Jornal O Paiz 12 de maio de 1910 Ed 09359 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 172 10092018 111715 173 pobreza e têm a seu favor as disposições do aviso de 18 de agosto de 1891 regulamentos de 1º de março de 1888 e aviso de 25 de setembro de 1862 Capi tal Federal 19 de maio de 1910 Raphael Ferreira CardosoRaphael S Cardoso Candido Carneiro de Souza Felix Fellipe de Albuquerque Joaquim Barboza de Souza Guilherme Gonçalves de Sá Ernesto Silva Hugo de Paula Macario Antonio Augusto da Cunha e Silva Candido Tomás da Silva João Carneiro de Souza Victal Ribeiro de Sousa João Pires22 Diante do abaixoassinado e da apelação a Prefeitura providenciou uma análise da situação dos barracões na qual vislumbramos a estrutura e a forma das edificações precárias então erigidas Não havia mais a possibilidade de uma ação paternalista por parte do poder público a exemplo do tempo da monarquia Os procedimentos agora obedeceriam a critérios técnicos racionais e impessoais que fundamentariam as decisões dos governantes Os barracões cujos proprietários subscrevem o requeri mento acima afastamse de todas as normas estabele cidas pelo regulamento da Prefeitura para tal tipo de construção São todos toscos em forma de chalé alguns assoalhados repousando os soalhos sobre o solo outros não Nenhum tem o pé direito regulamento sic tendo o que mais se aproxima do limite da lei 330m e o que mais se afasta 140m a partir do predial Há alguns que constam de um só compartimento outro apresenta a área interna subdividida em quartos e salas não havendo relação entre as respectivas áreas e as dos vãos exteriores Nos que apresentam divisões internas estas só a uma certa altura de modo a não isolar os compartimentos uns dos outros São todos de telha vã Tais são as habitações que a pobreza na premente 22 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 op cit f16 As disposições os regulamentos e os avisos referidos na citação encontramse na Coleção das Decisões do Governo do Império do Brasil Rio de Janeiro Typographia Nacional 1862 p 355 Tomo XXV EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 173 10092018 111715 174 necessidade de se guardar das intempéries pode amos trar de acordo com a estreiteza das suas economias J Francisco de Paula 23 O desfecho do processo foi a autorização por parte do prefeito para derrubar os casebres no mês de julho de 1910 Não sabemos se esta ação ocorreu ou como ocorreu mas o fato é que a Mangueira foi sendo ocupada cada vez mais e tornouse uma região de conflitos movidos por supostos proprietários que disputaram a legitimidade da posse dos terrenos mesmo com a nova lei do inquilinato sancionada pelo presidente da República em 1921 No entanto isto não foi suficiente para pôr termo às disputas e aos conflitos entre os locatários e os inquilinos Em 1926 uma longa reportagem do jornal Correio da Manhã trazia fotografias do morro do Telégrafo sendo duas panorâmicas do morro com casebres construídos uma casa parcialmente derrubada e uma com homens mulheres e crian ças sobre os escombros de casas derrubadas O título dizia O pobre não tem direito a coisa alguma dando o enfoque a favor dos moradores do morro do Telégrafo obrigados a sair por uma ação de despejo executada Foram numerosas pessoas segundo o jornal que ficaram sem teto por conta da ação violenta impe trada contra os moradores por parte da polícia24 Segundo a reportagem a remodelação da Quinta da Boa Vista pelo presidente Nilo Peçanha transferiu moradores pobres com seus barracões e choças que ali estavam desde o período imperial para o morro do Telégrafo também de pro priedade nacional Com a falta de fiscalização apareceram pro prietários e locatários que impuseram aluguéis de 20 mil réis para cada terreno ocupado Medidas foram tomadas para o fim desta cobrança por parte do poder público comissão do cadastro e tombamento dos próprios nacionais beneficiando os operários residentes que deixariam de pagar tributo algum Mas uma nova disputa se deu a partir da ação movida pela viúva de um parente do estadista do império visconde de Niterói 23 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 op cit f16 24 Jornal Correio da Manhã 31 de março de 1926 Ed 09565 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 174 10092018 111715 175 Juliete de Medeiros Sayão Lobato que invocando a tutoria de seu filho Décio José requereu o despejo dos moradores naquele morro pelo juízo da 6ª Pretoria Cível O juiz da 2ª Vara Federal garan tiu a permanência dos moradores pelo argumento de que aquelas eram terras do domínio nacional Um interdito proibitório pro tegia os moradores de qualquer ameaça de despejo Deuse então um conflito de jurisdição entre a ação na justiça local favorável aos moradores e a justiça federal Supe rior Tribunal Federal a favor de Juliete de Medeiros Sayão Lobato25 A proprietária acionou o despejo e se apossou dos case bres mas a reportagem argumentou contra a arbitrariedade da expedição do mandato de despejo diante da disputa na Corte de Apelação e justificou a abertura de inquérito contra a pre tensa proprietária entregue em mãos dos chefes de polícia26 Enquanto isso a picareta desumana destelhou e destruiu case bres do que resultou ficarem sem teto numerosas pessoas da classe mais humilde da cidade Pobre Claudionor27 Um cenário de dramas e de conflitos sociais gestou as condições para o surgimento de manifestações culturais peculia res dos morros cariocas sendo a Mangueira uma de suas princi pais representantes QUERO OUVIR SUA BATUCADA AI AI Não poucas manifestações culturais se desenvolveram nas décadas de 1910 a 1930 na região e no morro da Man gueira como espaços em construção de um modo de vida subur bano e de invenções de um cotidiano marcado por contradições O carnaval com o samba o teatro de revista as religiosidades de origens africanas as corridas de cavalos no TurfClub e o futebol com o Sport Club Mangueira sem falar nos pequenos clubes foram expressões da vida cultural e do lazer dos seus moradores 25 Nome de uma das principais travessas no morro da Mangueira relacionada a Fran cisco de Paula Negreiros Saião Lobato o visconde de Niterói que era também o nome da rua que cruzava o bairro 26 Jornal Correio da Manhã 31 de março de 1926 Ed 09565 27 Jornal Correio da Manhã 17 de junho de 1926 Ed 09580 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 175 10092018 111716 176 Tanto quanto um ritmo ou um estilo que se afirmou no cenário do mercado cultural e musical em formação com suas dis putas e concorrências migrando das rodas para o asfalto repre sentado pelos blocos ranchos e escolas o samba definiu uma sociabilidade gestada por afinidades étnicas e religiosas próprias da cultura negra Foi ao mesmo tempo o espaço do encontro da diversidade de ritmos em circulação como o batuque o lundu e o maxixe do improviso e da criatividade estimulados pela comida pela bebida e pela sensualidade enfim uma ambiência social pró pria das populações marginalizadas com as suas astúcias A figura do Claudionor tornouse emblemática e repre sentativa da Mangueira veiculada nos jornais nas revistas no teatro e no carnaval Ora malandro desalojado incendiário ou trabalhador o Claudionor encarnava a estética a linguagem a esperteza e o humor dos seus moradores desde uma dada repre sentação da Mangueira que se instituíra O morro da Mangueira que acabou de firmar a sua notabilidade no Carnaval do ano passado com o cele bre samba Fui num baile Lá no morro da Mangueira Uma cabrochaMe falou de tal maneiraNão vae fazer como fez o ClaudionorQue para sustentar a famíliaFoi bancar o estivador28 O malandro trazia consigo desde o século XIX as representações do vadio e do capadócio aquele que vivia em santo ócio associados à proscrita viola à cachaça e à prática das desordens sociais29 Presentes nas letras dos lundus estes per sonagens se fixaram nas práticas e nas linguagens sociais for mando o tipo social do malandro que passou a ser associado ao sambista nos anos de 1920 mas que não são exclusivos do con texto brasileiro30 As canções expressavam as distinções sociais em seus conflitos Numa sociedade onde se reorganizavam os mecanismos de dominação e controle social as canções mesmo em tom 28 Revista O Malho 13 de novembro de 1926 Ed 1261 29 SANDRONI Carlos Feitiço decente transformações do samba no Rio de Janeiro 19171933 2 ed Rio de Janeiro Zahar 2012 p 158160 30 SANDRONI Carlos Feitiço decente 2012 p 161 162 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 176 10092018 111716 177 de brincadeira não deixavam de expressar uma versão musical dos conflitos sociais raciais amorosos e cultu rais presentes no período Em alguns casos chegaram a divulgar uma forma de crítica e oposição frontal à nova disciplina de trabalho livre através do elogio ao crioulo malandro31 A construção do Claudionor como personagem coinci diu com os anos de 1925 a 1929 quando a Mangueira se tornou mais conhecida pelo samba e pelo carnaval Ao lado de outras canções e marchas de sucesso os seus sambas foram destaque no carnaval de 1926 A revista Amor sem Dinheiro publicação ligada ao Teatro Recreio divulgava a apresentação de Claudionor do Morro da Mangueira representado pelo popular cômico Hen rique Chaves que executará o samba acompanhado de violão flauta e cavaquinho32 A comédia de Paulo Magalhães Flor da Rua encenada neste mesmo ano demonstrava a vida dos malan dros do morro da Mangueira uma comedia essencialmente nacional muito brasileira que com o nome de Flor da Rua está em cena no Trianon desde anteontem O assunto que Paulo Maga lhães desenvolveu com muita graça é um caso de inte resse do qual se aproveitam com habilidade os malandros nele envolvidos o Cutuca o Claudionor e a Flor três representantes da fina gente do morro da Mangueira a conhecida Favela suburbana33 Tais práticas culturais foram associadas a uma possível identidade nacional em construção com personagens comuns mas que traziam o misto da ingenuidade e da sagacidade de quem morava no morro sem o conteúdo da violência O artigo de Gonçalo Jorge criticava as normas de um concurso de modi 31 ABREU Martha Campos Sobre mulatas orgulhosas e crioulos atrevidos conflitos raciais gênero e nação nas canções populares Sudeste do Brasil 18901920 Tempo n 16 p 11 2003 32 Jornal Correio da Manhã 1926 Ed 09514 33 Jornal Correio da Manhã 1926 Ed 09777 O Jornal do Brasil divulgou a apresentação com cenas da vida dos vagabundos do Morro da Mangueira interpretadas pelos artis tas Brandão Sobrinho Sylvia Rertini e Palmeirim Silva Jornal do Brasil 2 de dezembro de 1926 Ed 00287 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 177 10092018 111716 178 nhas que exigiam a correção poética nas letras das músicas O crítico enfatizou a procura por uma genuína arte brasileira e apontou o morro da Mangueira como o lugar da arte brasileira feita pelo povo AS CANÇÕES POPULARES Enquanto isso o povo o povo sem cultura sem abc não precisa de coisa nenhuma para encontrar o seu gênio José Clemente assegura que o morro da Mangueira muito mais cons cientemente do que o Sr Guilherme de Almeida ou o Sr Ronald de Carvalho o que seja a arte brasileira34 Cutuca Claudionor e Flor eram representantes da fina gente do morro da Mangueira a conhecida Favela suburbana O samba intitulado Lá no morro da Mangueira tornouse um padrão que era reproduzido e parodiado a exemplo do Samba Carnava lesco de 1927 Os Quitutes de João composto por M Machado e oferecido ao Prazer das Morenas da rua da caridade A mulher que não se preza É quitute pra João Se é branca fica parda Se é parda vira carvão Quando sai pelo seu braço É panela no fogão A mulher que não se preza É quitute pra João Se ele banca o almofadinha Com óculos de argolão Ella banca a melindrosa Ao lado do negralhão No jantar só comem beiços Ou só língua com feijão A mulher que não se preza Só serve para João 34 Jornal do Brasil 1926 Ed 00287 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 178 10092018 111716 179 Na carapinha trás o negro Pimentinha pimentão Ella quebra o seu cabelo Pra dá ares de João O nariz tem ele chato Tem orelha á rabecão Ella é roxa por mulato Ou mesmo por um João Os negrinhos quando nascem Saltam logo para o chão Tácachimbi gritam logo Pois são filhos de João Mas a mãe toda afobada Chama logo o negralhão Dá aos filhos a chupar Os beiços do pai João35 No carnaval de 1926 e antes da divulgação impressa da sua música o samba Lá no Morro da Mangueira composto por Manuel Dias e Alberico de Souza o Béquinho já era conhecido e can tado nas batalhas nos clubs e nos choros O samba era considerado uma manifestação pitoresca do engenho e inspiração dos musi cistas despreocupados de outra consagração que a popula ridade o caráter de composição musical mais sugestivo e divulgado entre nós principalmente pelo Carnaval época em que atinge o milagre de forçar uma população avessa a cantar nos momentos de maior expansão e repetir letras 35 Jornal Correio da Manhã 1927 Ed 09840 Sobre as figuras das mulatas e dos crioulos nas canções populares diznos Martha Campos Abreu Evidentemente a valorização das mulatas e dos crioulos nas canções populares foi sempre polissêmica e envolveuse com várias questões Esteve presente no mundo artístico cômico e carnavalesco envol veuse com as projeções de intelectuais sobre a identidade nacional e sobre os seus dese jos sexuais Sem dúvida serviu como uma nova forma de controle e exploração do corpo das mulheres afrobrasileiras reproduzindo hierarquias sociais e raciais muito antigas ABREU Martha Campos Sobre mulatas orgulhosas e crioulos atrevidos conflitos raciais gênero e nação nas canções populares Sudeste do Brasil 18901920 Tempo n 16 p 25 2003 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 179 10092018 111716 180 fantasiosas cujo sentido muita vez ignora o irresistível samba carioca de gênese no geral obscura é ainda a mais sensível demonstração de que o Carnaval continua a ser cultuado com apaixonado carinho na cidade36 A revista O Malho projetou também em 1928 as repre sentações do morro nas imagens caricaturadas de sua paisagem e seus personagens Figura 2 O Malho Junho de 1928 Ed 1342 As poucas nuvens sobre as formações do morro num dia ensolarado e de calor com espaços vazios entre os barracos ou casas eram indícios de que a ocupação ainda estava em curso Alguns casebres possuem duas janelas na fachada enquanto outros contam 36 Jornal do Brasil 1926 Ed 00025 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 180 10092018 111716 181 também com uma porta de entrada tal como eram na simplici dade da construção Aparece um botequim com uma figura parada na porta e uma negra levando uma lata na cabeça O problema crônico de abastecimento de água no morro obrigava os morado res a descerem até a estação para adquirir seu suprimento diário Abaixo à esquerda dois crioulos jogam cartas concentrados37 um deles espera o outro jogar com um olhar de expectativa Na página seguinte temse a figura de um negro forte de chapéu caído para um lado do rosto encobrindo um dos olhos de camiseta sem mangas com listras horizontais as mãos no bolso a calça larga e os pés descalços numa postura estereo tipada de malandro mas com um jeito que impõe autoridade seria um tipo do Claudionor Abaixo um violeiro sentado com seu violão em posição de estar tocando seu instrumento e cantando descalço e ladeado por uma mulata com as mãos nos quadris lenço na cabeça num gesto de quem está sambando O articulista descreveu como o morro saiu de um anoni mato e das notícias de violência para uma condição de prestígio cultural por causa do samba e de seus personagens moradores O morro da Mangueira foi descrito como sendo o decantado reduto do Claudionor que aparece como uma figura emblemá tica e representativa Desde então o Claudionor passou para o rol dos homens notáveis deste país de notabilidades e o Morro da Man gueira favela humilde e ignorada armou cordões de bandeirinhas de papel e deu a todos os seus habitantes um direito de equiparação aos colegas da Favela e do Morro do Pinto38 No início do ano seguinte os preparativos para o carna val já eram feitos por um grupo musical prestigiado denominado de velha guarda A VELHA GUARDA DO MORRO DA MAN GUEIRA APRESTASE PARA AS GRANDES 37 Provavelmente um jogo de monte Os termos crioulo e mulata foram utilizados pelo jornal como identificação racial carregada de preconceito e de estratificação social 38 A reportagem foi escrita especial para O Malho por Tito André Revista O Malho 1928 p 11 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 181 10092018 111716 182 PUGNAS Cheio de tradições carnavalescas o Grupo da Velha Guarda do Morro da Mangueira já está em pre paros para as velhas pugnas de Momo O grupo musical ficou assim constituído Armandinho flauta Ravalzinho saxofone Saturnino Segundo bandolim Pedro tram bone Waldemar violão Olegário violão Botelão violão Polycarpo violão João cavaquinho Oswaldo pandeiro e Alcides ganzá39 SÃO SEBASTIÃO CRIVADO As nações de cada ribanceira sobretudo as imigradas da Favela de Santo Antonio e dos quilombos periurbanos cariocas criaram suas próprias linguagens e formas de expressões cultu rais No entanto para além desta projeção por vezes romântica presente nas músicas e nas charges o cotidiano dos moradores da Mangueira estava marcado pela dura sobrevivência por meio do trabalho no comércio nas fábricas e nos bicos praticados numa variedade de prestações de serviços não oficiais e não reconheci das como profissões Parte dos seus moradores era composta de operários estivadores Figura 3 O Malho Junho de 1928 Ed 1342 39 Jornal Correio da Manhã 5 de janeiro de 1929 Ed 00149 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 182 10092018 111719 183 Mas esta informalidade era praticada na visão dos órgãos públicos e dos jornais por uma horda de desocupados preguiçosos malandros e biscateiros fonte dos piores males que assolavam a sociedade como a permissividade moral a sensua lidade os roubos os suicídios e toda sorte de violência40 Para completar este cenário decadente identificado no morro da Man gueira havia as recorrentes epidemias que atingiam principal mente estas populações desassistidas As ocorrências policiais relativas ao morro da Man gueira se tornaram mais numerosas a partir de 1920 coinciden tes com o processo de construção de uma cultura do samba e das figuras dos malandros sambistas Elas se referiam às diferentes formas de conflitos e de violências que envolviam embriaguês roubos brigas de casais crimes passionais vinganças e rixas pes soais incêndios provocados em barracões disputas de terrenos jogo de monte com a utilização de paus navalhas canivetes facas barras de ferro e também de revólveres Um dos pontos principais de conflitos era a travessa Sayão Lobato lugar de intensa concentração de transeuntes de comércio de jogos e de casas além de outros lugares tidos como perigosos a exemplo do Buraco Quente Havia também conhecidos nomes de moradores famo sos pela violência como Ruído Alzira de Souza Espírito Mau João Francisco Delphini o Moleque Allyrio Gaguinho ou Manoel Oliveira Antonio Submarino e Moleque Francisco Estes e outros formavam os renomados valentes da Mangueira temidos pela forma como agiam nas lutas e nas capoeiras com navalhas e facas No morro da Mangueira esse morro imortalizado por ter sido teatro de terríveis cenas sangrentas ocorreu no 40 Para muitos juristas médicos e políticos preocupados com a normalização e a mora lização dos costumes populares a realização desta tarefa era um enorme desafio posto que consideravam os populares em geral e os afrodescendentes em particular como portadores dos supostos vícios da escravidão e da pobreza Para os reformadores estes segmentos da população eram propensos à doença não possuíam hábitos de poupança tendiam à ociosidade não se preocupavam com a educação dos filhos e por extensão não valorizavam os laços de família os do casamento e a honra feminina ABREU Martha Campos Sobre mulatas orgulhosas e crioulos atrevidos conflitos raciais gênero e nação nas canções populares Sudeste do Brasil 18901920 Tempo n 16 p 19 2003 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 183 10092018 111719 184 domingo último mais um crime estupido e covarde O autor do mesmo não foi o celebre Claudionor das canções carnavalescas mas um indivíduo desalmado e perigoso como o é a maioria dos que ali habitam41 A polícia investia com regularidade para coibir tais formas de violência e proibir também as manifestações religiosas dos cultos de origem africana a exemplo do delegado Dr Dulcidio Gonçal ves do 18º distrito que agiu contra os pais de santo e os adeptos de Ogum chamados de macumbeiros nos morros da Mangueira do Vintém e do Jacaré42 Em outra ocorrência uma dúzia de homens e meia de mulheres foram presos numa macumba quando faziam funcionar uma macumba o pai de santo José de tal e com ele 11 homens e seis mulhe res sendo todos metidos no xadrez Na casa do chefe da macumba foram apreendidos oito punhais e uma posta de carne que estava sobre uma mesa à volta da qual se faziam os trabalhos43 Verificase a presença de alguns objetos dos rituais pra ticados como punhais carne e uma mesa44 Mulheres e homens eram liderados pelo pai de santo identificado como José de tal citado sem o sobrenome como uma forma de menosprezo pela desconfiança ante a sua ação religiosa Os trabalhos referiamse a estes rituais conduzidos pelo líder religioso por meio de cânticos invocações incorporações sacrifícios de animais e atendimento às necessidades dos participantes A macumba habitava tanto o espaço recluso escondido e proibido dos cultos africanos como os lugares de visibilidade ligados ao samba Na seção Casos de Polícia da edição de 5 de maio de 1918 de O Paiz foi feito um meticuloso relato sobre o rancho do caboclo Urubatão onde uma macumba fora interrompida pela 41 Jornal Correio da Manhã 1927 Ed 09881 42 Jornal do Brasil 16 de maio de 1933 Ed 00114 43 Jornal Correio da Manhã 1 de dezembro de 1927 Ed 10087 44 O mesmo podese dizer das listas das bugigangas apreendidas nos antros por oca sião das batidas policiais em que aparecem os búzios ao lado das cartas de jogar ima gens de santos ao lado de orixás e de objetos de uso universal da magia tais como pedras cabelos bonecos punhais roupas ossos terra etc NEGRÃO Lísias Nogueira Magia e religião na Umbanda Revista USP n 31 p 78 1996 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 184 10092018 111719 185 polícia com a prisão de 24 pessoas e a apreensão de vários ape trechos de feitiçaria45 A reportagem lamentava o crescimento ilimitado pelas ruas suburbanas de antros de feitiçaria e de macumbas lideradas por charlatães que se utilizam das ciências ocultas para enganar os crentes Além dos distúrbios da razão que faziam com que os manicômios se enchessem de internos havia a influência moral dos sortilégios e dos males físicos cau sados pelas beberagens Frequentados por pessoas oriundas de todas as classes e condições sociais os cultos causavam o estra nhamento por parte do jornal e do articulista questionando como pessoas esclarecidas poderiam se sujeitar a tais práticas numa ordem republicana considerada instituída46 Eram estes os motivos para a perseguição policial das macumbas que negociavam a peso de ouro os serviços presta dos aos incultos e ignorantes Elementos produtos apetrechos e materiais utilizados nos rituais foram descritos tais como a florzinha seca a galinha preta a faquinha pontiaguda de ferro os punhais os manipansos ídolos africanos ou objetos sagra dos os amuletos os rosários as figas as velas de cera as raízes medicinais a vara de condão o peixe de papelão prateado de um metro os cinco barris de cortes diferentes os colares grandes e pequenos as varas os arcos as flechas além das estátuas em tamanho natural do caboclo Urubatão e de Santo Onofre este com um punhal atravessado no peito O relato nos ajuda a compreender o universo dos prati cantes da macumba no início do século XX no Rio de Janeiro mesmo sob a constante repressão policial associada à segregação 45 Jornal O Paiz 5 de maio de 1928 Ed 12260 46 Ivonne Maggie afirma que desde a promulgação deste Código Penal e ao longo do século XX inúmeros acusados de serem maus espíritas macumbeiros ou pais e mães de santo foram levados à prisão em quase todos os estados da federação No Rio de Janeiro não foi diferente Mas quem eram os praticantes do espiritismo da magia e de seus sortilégios perseguidos pela polícia em uma cidade cuja crença em espíritos e feitiçarias ocorria entre pessoas de todas as classes MAGGIE Ivonne O arsenal da Macumba Dispo nível em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaocapaoarsenaldamacumba Acesso em 18 fev 2016 grifo nosso EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 185 10092018 111719 186 racial47 Eram de diferentes classes sociais idades sexo e locali dades reunidos em torno dos donos da macumba que prestavam serviços espirituais em troca de pagamentos de diversas formas Os rituais praticados utilizavam elementos e materiais oriundos das tradições africanas e indígenas junto com os do cristianismo católico48 Os batuques os cantos e os sapateados serviam para a invocação das entidades e para a consulta ao principal caboclo do terreiro Urubatão Esta repressão também se mostrava nas censuras às letras e às músicas no carnaval como uma das funções da polícia a exemplo da canção Macumba de Padre proibida no carna val de 1925 dada a sua comicidade imprópria49 Por outro lado a palavra macumba estava associada a outras práticas culturais e não somente religiosas de curandeirismo e de cultos como o candomblé e a umbanda Associavase ao carnaval ao ritmo do batuque e aos blocos carnavalescos a exemplo do samba Chora na Macumba de grande sucesso Encontramos o nome macumba atribuído a um club ou a um time de futebol amador atuante nos idos de 192050 como também em encenações com personagens teatrais cômicos51 47 Exatamente na conjuntura pósabolicionista é que temos a radicalização de uma política que segregou mais explicitamente o espaço urbano carioca justamente quando a cidade negra do período colonialimperial foi desarticulada Os morros sobretudo foram constituindose em áreas de refúgio para a população desalojada pelas reformas urba nas A rejeição às propostas de urbanização destas áreas vigente até os dias de hoje e a manifestação de um estado psicossocial de pânico das elites em relação aos moradores das áreas quilombadas desde os primeiros anos da República afinamse com o autoritarismo da segregação imposta NEDER Gizlene Cidade identidade e exclusão social Tempo n 3 p 107108 1997 BRETAS Marcos Luiz Ordem na cidade O do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro 19071930 Rio de Janeiro Rocco 1997 HOLLOWAY Thomas Polícia no Rio de Janeiro Repressão e resistência numa cidade do século XX Rio de Janeiro FGV 1993 SOUZA Rafael Pereira de Batuque na cozinha sinhá num quer Repressão e resistência cultural dos cultos afrobrasileiros no Rio de Janeiro 18701890 Dissertação de Mestrado UFF 2010 48 Lísias Negrão afirma a existência de sincretismos com elementos europeus no con texto paulista Ao mesmo tempo em que o europeu e seus descendentes adotavam ele mentos dos cultos negros em seus rituais o inverso também se dava com a incorporação de crenças e práticas mágicas de extração europeia em seu universo mágicoreligioso NEGRÃO Lísias Nogueira Magia e religião na Umbanda Revista USP n 31 p 78 1996 49 Jornal O Paiz 22 de fevereiro de 1925 Ed 14735 50 Jornal O Paiz 1 de agosto de 1920 Ed 13079 51 Como o encontrado na propaganda de uma encenação e chora macumba reconstituição da macumba com todos os seus mistérios no qual os personagens cômi cos da peça se verão nas mais hilariantes situações Jornal O Paiz 9 de novembro de 1927 Ed 15725 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 186 10092018 111719 187 As formas de violência por parte dos homens se mani festavam nos frequentes assédios e agressões às mulheres que reagiam de diferentes maneiras como os revides as tentativas de suicídio pela ingestão de creolina e de outros venenos e ateando fogo ao corpo embebido em querosene As mulheres eram des critas como portadoras de sensualidade aguçada buliçosas e travessas deixando os homens enciumados tornandose assim objetos de desejo descartável e responsáveis pelas atitudes mas culinas descontroladas ante as paixões não correspondidas52 Constatamos a representação do morro como um lugar proscrito mas habitado por gente que defendia o próprio espaço e era solidária entre si quando ameaçada ou depreciada As notas preconceituosas veiculadas pela imprensa criticavam a linguagem própria utilizada no morro com palavras que assu miam outros sentidos como ser igual morador do morro estraga denuncia parceiro conivente amigo comparsa aliado e batendo a sujeira expondo o que é negativo Consideradas palavras de baixo calão e gírias estas expressões estavam presentes nas falas dos moradores dos operários estivadores e dos sambas carnava lescos mas eram repudiadas para o uso formal das conversas e dos glossários oficiais53 O morro era representado como reduto de desordeiros malandros e desocupados que se reuniam para um samba que se caracterizava pelo batuque pela dança pelo canto e o extrava samento das emoções e dos prazeres É habito todas as noites reuniremse os moradores do famoso morro em determinados lugares e entregaremse ao samba Cantam e dançam durante muitas horas e nisso sentem imenso prazer levando o seu divertimento ás vezes até pela madrugada alta À proporção que o samba toma desenvolvimento vão os sambistas entrando na branquinha que a tendinha mais próxima vende para gáudio do seu proprietário que tira com isso grandes lucros Domingo dia em que todos estão de folgando pois no morro da Mangueira habitam muitos trabalhadores 52 Jornal Correio da Manhã 1920 Ed 07968 e Jornal Correio da Manhã 1924 Ed 09153 53 Jornal do Brasil 22 de fevereiro de 1930 Ed 00047 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 187 10092018 111719 188 principalmente estivadores formouse em frente à Ten dinha do Manuel próximo á Visconde de Niterói um samba de arromba no dizer dos que nele tomaram parte para festejar o aniversario natalício de um dos sambistas decorrido no sábado54 O sentido da malandragem e da valentia destes perso nagens se confundia com as práticas culturais e religiosas Per cebese o surgimento de lideranças carismáticas que transitavam entre os espaços da música da religião da capoeira e do não trabalho que construíam uma rede de relações estabelecidas pela maestria das suas habilidades e pelo temor e respeito con quistados Estes sujeitos circulavam nesses interstícios como per sonagens de um agudo drama social ao mesmo tempo dentro e fora da ordem um Rio do lado sem beira cidadãos inteira mente loucos com carradas de razão A trajetória de Cartola ainda anônimo e desconhe cido na época mas ligado a figuras importantes como Carlos Cachaça bem demonstra o ambiente de relações sociais e cultu rais um tanto caricaturado na sua biografia Além do seu inseparável amigo Carlos Cachaça Cartola também conheceu a nata da malandragem mangueirense os valentes Marcelino José Claudino o Mestre Açu também conhecido como o can can da Praça XI quem segundo diziam jamais caíra em pernada alguma além de Chico Porrão Antonico e Indalécio Três notáveis valentes do morro mestres na roda de pernada que não levavam desaforo pra casa Chico Porrão espécie de xerife da favela usava um pesado anel no dedo anular direito para dar cascudos nos moleques que não andavam na linha Grifo nosso55 Contudo a relação com a violência também demarcava a vivência desses valentes no cotidiano dos morros Para o articulista do Jornal do Brasil falando sobre o bairro de D Clara que havia se tornado uma sucursal de Favela do morro do Salgueiro e morro 54 Jornal do Brasil 1928 Ed 00057 55 MONTEIRO Denilson Divino Cartola uma vida em verde e rosa Rio de Janeiro Casa da Palavra 2012 p 40 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 188 10092018 111719 189 de Santo Antônio os valentes eram homens dispostos mas traba lhadores e honestos Eram conhecidos ao mesmo tempo como malandros que idolatravam a bebida e os jogos de cartas mas tinham ojeriza aos ladrões56 D Clara não era mais o reduto de valentões ladrões facínoras e criminosos de toda espécie por causa da ação dos valentes malandros Tratavase de uma posição de prestígio alcan çada na comunidade que chegava ao registro da imprensa igno rando a condição e a presença das forças de segurança57 A expressão valente entretanto era também usada em outras referências como a dos carnavalescos que compunham sambas e dos foliões participantes dos diferentes blocos ranchos e pequenas sociedades com suas falanges nas batalhas de confetes e lançaperfume Da mesma forma os sportmen ou os jogadores de futebol os nadadores ou os remadores recebiam o adjetivo junta mente com os artistas58 A palavra pertencia a diferentes espaços sociais interligados de alguma forma com sujeitos e personagens que transitavam por entre as práticas sociais e culturais No contexto dos morros em processo de ocupação a figura desses valentes passava por mudanças na relação com as formas de convivência social e nas modalidades da própria violência percebidas na descrição inicialmente harmônica e ao mesmo tempo conflituosa do cotidiano dos morros Vivese ali como em família Todos se conhecem todos se dão e se estimam o que não impede que de vez em quando haja um desaguisado qualquer e que da discussão em vez de nascer a luz saia um sangrangu medonho vencendo sempre o mais habilitado no manejo da arma branca ou de fogo porque já se foi o tempo em que os valentes se entendiam desar mados era vencedor quem tivesse mais destreza nas mãos nas pernas e na cabeça Um rabo de arraia uma tapona de sustância um ponta pé de rijo no guardacomida do camarada convidava um freguês Era isto nos tempos 56 As bebidas eram chamadas de orelha da nota cabrito da Dindinha ou água que passarinho não bebe Os tipos de jogos de cartas recebiam os nomes de monte sete e meio e vermelhinha 57 Jornal do Brasil 1 de janeiro de 1920 Ed 00001 58 Jornal do Brasil janfev de 1920 Ed 0003000033 00098 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 189 10092018 111719 190 da capoeiragem em que se punha em prova a valentia do indivíduo Hoje tudo mudou mais valente é aquele que mais depressa aperta o dedo no gatilho da pistola Uma cousa extraordinária no Castello há valentes não há ladrões59 Sendo assim não podemos projetar numa tipificação ahistórica desses sujeitos que cumpriam uma função social no aparente ambiente de anomia das favelas e dos morros cariocas nas primeiras décadas do século XX A citação acima descreve também as habilidades dos valentes que intervinham quando eclodia algum sangrangu medonho valendose não só do corpo como instrumento de luta como no tempo da capoeiragem mas de arma branca ou de fogo A clássica capoeiragem representada nos termos designativos dos golpes dava lugar ao gatilho da pis tola símbolo da ampliação das práticas da violência CONSIDERAÇÕES FINAIS As representações do morro e dos moradores da Man gueira estavam diretamente relacionadas ao processo de exclu são e de racialização das populações negras no período pósAbo lição60 A linguagem dos jornais reproduzia os preconceitos os temores das classes dirigentes e a necessidade de sua separação espacial e de sua estigmatização levados a efeito pelas políti cas de ocupação desordenada em direção aos subúrbios e aos morros Ela colocava como sendo natural a diferenciação entre brancos e negros mestiços pardos mulatos ao associar suas disposições e comportamentos negativos à pele escura e à origem racial O racismo assim além de essencializar e categorizar essa população subordinada justificava essa subordinação61 59 Jornal do Brasil 28 de agosto de 1921 Ed 00235 60 Racializar ou seja pôr a ideia de raça em ação estabelecer distinções a partir de concepções de raça foi exercício político recorrente naquele ambiente de incertezas e mudanças sociais profundas ALBUQUERQUE Wlamyra R de A vala comum da raça emancipada abolição e racialização no Brasil breve comentário Revista História Social n 19 p 104 2010 O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 61 Apropriamonos do debate teórico feito por Karl Monsman Racialização racismo e mudança um ensaio teórico com exemplos do pósabolição paulista Disponível em httpsnh2013anpuhorgresourcesanais271364748564ARQUIVOMonsma trabalhopdf Acesso em 19 fev 2016 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 190 10092018 111719 191 Como contraponto a esse discurso percebemos como o cotidiano dessa fina gente do morro foi sendo tecido em lutas pela sobrevivência ante os obstáculos à cidadania impostos pela ordem republicana A ocupação do morro se deu em meio aos conflitos às disputas territoriais às derrubadas dos barracões e às formas de violência entre os seus próprios moradores e as cometidas pela polícia contra as suas práticas culturais e religiosas Por sua vez os discursos e as estéticas projetados pela imprensa expressaram as apropriações da cultura negra por parte de um mercado cultural em formação Destacamos a figura do Claudionor que agregou num dado momento as representações acerca do morro e do samba desde a figura do malandro e do sambista romantizados e idealizados62 Encontramos um Rio de ladeiras íngremes povoadas de barracões uma civilização encruzilhada nas suas tramas e contradições As nações em cada ribanceira resistiam com suas identidades em construção Por sua vez a população era cri vada pela violência da ordem imposta pelo controle social e pela disciplina dos espaços públicos sujeita ao processo de exclusão social e racial 62 Não discutimos a origem do samba e nem a sua atribuída autenticidade musical como produto síntese da cultura popular brasileira Coube a outros pesquisadores fazerem esse rico debate VIANNA Hermano O mistério do samba 2 ed Rio de Janeiro Zahar 2012 CABRAL Sérgio As escolas de samba Rio de Janeiro Fontana 1974 LINS Paulo Desde que o samba é samba Brasil Planeta Brasil 2012 LOPES Nei O negro no Rio de Janeiro e sua tra dição musical Rio de Janeiro Pallas 1992 Tampouco compreendemos a Mangueira como o lugar reificado da formação do samba no Rio de Janeiro a exemplo do Estácio embora sua importância e lugar sejam reconhecidos FRANCESCHI Humberto M Samba de sam bar do Estácio 1928 a 1931 São Paulo Instituto Moreira Salles 2010 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 191 10092018 111719 192 AS ESCOLAS DE SAMBA CANTAM SUA NEGRITUDE NOS ANOS 1960 UMA PÁGINA EM BRANCO NA HISTORIOGRAFIA SOBRE O MOVIMENTO NEGRO NO BRASIL Guilherme José Motta Faria AS ESCOLAS DE SAMBA DO RIO DE JANEIRO NOS ANOS 1960 Os anos 1960 apresentam um quadro de grandes trans formações políticas e culturais no Brasil Os desfiles das agre miações do Rio de Janeiro também estavam inseridos nesse pro cesso Aos grupos formados no final dos anos 1920 novos ele mentos foram sendo incorporados ampliando as possibilidades estéticas e temáticas dos desfiles Para memorialistas jornalistas e pesquisadores o Salgueiro a partir da entrada de Fernando Pamplona teria revolucionado o carnaval carioca ao home nagear personagens e expressões da cultura afrobrasileira A partir de notícias publicadas no Jornal do Brasil sobre os preparativos das escolas de samba do Rio de Janeiro encon trei indícios da temática do negro já presente nos desfiles nos anos 1950 Na década seguinte os enredos apontaram um con texto mais amplo e várias agremiações apresentaram narrativas acerca da história dos homens e mulheres negros no Brasil O objetivo principal deste artigo é buscar compreender entre as escolas de samba como essa temática foi trabalhada e como se estabeleceram suas correntes explicativas e narrati vas Acredito ser esta reflexão bastante relevante no processo de afirmação e valorização da cultura negra em nosso país em suas diversas vertentes artísticas religiosas nas festas e na cul tura imaterial O espaço conquistado pelas escolas de samba a partir dos anos 1950 e em especial na década seguinte período analisado neste texto mesmo que ignorado pela historiografia EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 192 10092018 111719 193 dos movimentos negros brasileiros foi sem sombra de dúvida um dos canais mais potentes de emissão das expressões cultu rais afrobrasileiras que as potencializaram e popularizaram em todo o país Os enredos e letras dos sambas se tornaram as fontes centrais A análise desse material me permitiu perceber a estru turação de uma narrativa sobre a história do negro no Brasil contada pelas escolas em três vertentes narrativas o cotidiano da escravidão as lutas e movimentos de resistência e as práticas culturais festas danças e religiosidades de influência africana Ao encontrar histórias pouco contadas e dadas como perdidas percebi que a narrativa sobre o negro estava presente em várias agremiações e não apenas no Salgueiro apesar da cristalizada versão na bibliografia sobre o tema de seu pioneirismo A HISTÓRIA DO NEGRO NOS DESFILES DOS ANOS 1960 A primeira corrente narrativa que as escolas utilizaram para contar a história do negro no Brasil estava centrada na escravidão e seu cotidiano A principal figura símbolo maior desta corrente apresentava o escravo nos períodos colonial e imperial As escolas retrataram o cotidiano dos escravos durante a travessia atlântica nos portos de desembarque onde eram vendidos como animais de carga inseridos na dinâmica da pro dução açucareira da extração do ouro e do café vivendo em senzalas Nessa corrente narrativa o que predominava era uma lembrança do passado de escravidão em que os sentimentos mais aflorados eram de dor e humilhação por conta das puni ções e castigos físicos a que eram submetidos quando desobede ciam às ordens dos seus senhores A Estação Primeira de Mangueira em 1962 e 1964 estruturou seus desfiles nessa vertente narrativa O primeiro enredo parecia estar em sintonia com a aceitação do mito da democracia racial pois a escola havia escolhido como tema Casa Grande e Senzala inspirado no livro de Gilberto Freyre Ao analisar a letra do samba é possível perceber que o negro era o tema central do enredo e o seu passado na escravi EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 193 10092018 111719 194 dão era uma lembrança que legitimava a sua inserção na socie dade brasileira pois foi por meio do seu trabalho que o país teve suas bases econômicas estruturadas A novidade no enfoque era a positivação do passado No samba Casa Grande Senzala dos compositores Jorge Zagaia Leléo e Comprido a referência à obra de Freyre ou ao que se costuma entender sobre ela parece evidente O livro embasou a construção da teoria da democracia racial no Brasil buscando revelar a plasticidade e a convivência harmônica entre negros e brancos na formação social do país Pretos escravos e senhoresPelo mesmo ideal irmana dosA desbravar Os vastos rincões Não conquistados Procurando evoluirPara unidos conseguirA sua eman cipaçãoTrabalhando nos canaviaisMineração e cafe zaisAntes do amanhecerJá estavam de péNos enge nhos de açúcarOu peneirando o caféNos campos e nas fazendasLutaram com galhardiaConsolidando a sua soberaniaE esses bravosCom ternura e amorEsque ciam as lutas da vidaEm festas de raro esplendorNos salões elegantesDançavam sinhás donas e senhoresE nas senzalas os escravosDançavam batucando os seus tamboresLouvorA este povo varonilQue ajudou a construirA riqueza do nosso Brasil1 O samba apontava as lutas de negros e brancos pelo mesmo ideal irmanados reforçando um dos pontos fundamen tais das ideias de democracia racial As representações de ambas as raças visando ao progresso por meio de seu trabalho reforça vam os mitos fundadores da nação Amenizar as lutas e buscar a integração entre esses dois espaços a casa grande e a senzala sabidamente segregados como uma possibilidade de convivência saudável entre brancos e negros era um dos pontos centrais do livro de Freyre que é reafirmado pela letra do samba Em 1964 a Mangueira também tratou do tema da escra vidão A narrativa iniciavase com um enfoque mais tradicional com a partida dos negros escravizados na África a travessia nos navios negreiros e sua venda nos portos brasileiros O detalhe 1 Disponível em wwwletrasmusbrsambas Acesso em 12 maio 2013 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 194 10092018 111719 195 diferencial foi criar a narrativa a partir de um personagem inti tulado preto velho e sua trajetória da África à senzala onde mor reu Nesse enredo encontramos uma mescla de imagens positi vas da escravidão com a bondade do senhor e a importância das festas na afirmação da cultura afrobrasileira Os compositores do samba Hélio Turco Comprido e Pelado buscaram sedimen tar a figura do negro como um dos pilares da história brasileira Era uma vez um preto velhoQue foi escravoRetor nando a senzalaPara historiar o seu passadoChe gando a velha BahiaJá no cativeiro existiaPreto velho foi vendidoMenino a um senhorQue ameni zou a sua grande dorQuando no céu a lua prateava Que fascinaçãoPreto velho na senzalaEntoava uma cançãoÔ ô ôÔ ô ô ô ô ô ô ô ôÔ ô ô ô ô ô ô ô ôConse guiu tornar realidadeO seu ideal a liberdadeVindo para o Rio de JaneiroOnde o progresso despontava AltaneiroFoi personagem ocularDa fidalguia sin gularTerminando a históriaCansado da memória Preto velho adormeceuMas o lamento de outroraQue vamos cantar agora bisJamais se esqueceuÔ ô ôÔ ô ô ô ô ô ô ô ôÔ ô ô ô ô ô ô ô ô 2 Histórias de um preto velho enredo pouco citado na biblio grafia sobre as escolas de samba dentro do quadro das represen tações sobre a temática do negro era um manifesto que buscava sedimentar o elemento negro desde sua ancestralidade africana sua vinda forçada para o Brasil até sua integração nos espaços sociais do período colonial brasileiro Outro exemplo desse viés narrativo centravase na parti cipação do escravo no cotidiano urbano circulando entre a elite branca principalmente na cidade do Rio de Janeiro Os escravos de ganho3 conquistaram espaço e foram apresentados em alguns enredos como o da Portela e o do Império Serrano em 1962 2 Disponível em wwwvagalumecombr Acesso em 13 fev 2013 3 SILVA Marilene Rosa Nogueira da Negro na rua a nova face da escravidão São Paulo Hucitec 1988 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 195 10092018 111720 196 Na Portela a representação do negro seria a do tempo do pintor Johann Moritz Rugendas4 A escola apresentou a visão do artista sobre o Brasil na transição do período colonial para o Império A letra do samba o exaltava e ele até ganhou um nome abrasileirado Achou tão maravilhosoOs costumes e a nossa natureza Que transportou para as telasToda imensa belezaDei xou muitas aquarelasRetratos a óleo paisagens diversas e composiçõesA arte de desenhar nasceu em suas mãos Há de existir no museu de MuniqueDocumentado em pinturaAs cenas tristes e alegresDas fazendas do Bra silNos tempos idos da escravaturaRetratou vários tipos raciaisAs paisagens e os costumes regionaisDo nosso Brasil de outroraCatalogou os seus trabalhos e embe vecidoPublicouos se tornando conhecidoUm pouco do Brasil por este mundo aforaJoão Maurício Rugendas Para nós uma glóriaCantar e reviver teu passadoTua obra grandiosa e tua história5 Analisando somente a letra do samba poderíamos ter dúvidas quanto à representação dos negros como escravos mas as gravuras inseridas na matéria entretanto reforçam essa ideia6 O Império Serrano seguiu a mesma linha da Portela optando por um enredo sobre a história do Rio de Janeiro no período dos vicereis A partir da proposta das alegorias presente na sinopse a matéria apontou o que a agremiação estava preparando O Grêmio Recreativo Império Serrano apresentando como seu enredo para o carnaval de 1962 o ambiente do Rio dos ViceReis procura mostrar as origens da cidade e os elementos que contribuíram para a sua evolução social e urbanística Assim é que traz como alegorias após a abertura do desfile pelo tradicional abrealas um quadro 4 O pintor alemão chegou ao Brasil em 1821 Viajou pelo país para coletar material para pinturas e desenhos Dedicouse ao registro dos costumes locais ao detalhar os tipos humanos as espécies vegetais e sua relação na paisagem Disponível em bndigital bnbr200anosbrasilianahtm Acesso em 13 maio 2013 5 Samba de Ze Kéti Batatinha Carlos Elias e Marques Balbino Disponível em www portelawebcom Acesso em 15 maio 2013 6 Gravuras que sugerem os carros alegóricos que a Portela iria apresentar Jornal do Brasil 22262 caderno B p 3 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 196 10092018 111720 197 simbolizando a Festa do Divino com o cerimonial de que se revestia Seguese um estafermo figura que era encar regada de abrir o espetáculo das touradas ou jogo das argolas muito popular na época Era o estafermo um dos personagens vivos mais típicos do Rio dos ViceReis7 A representação do negro seria efetiva no desfile do Império Serrano Não teria como ser diferente pois de fato os negros escravos ou libertos circulavam pela cidade prestando serviços e estavam bastante integrados nas práticas culturais religiosas nas festividades como a Festa do Divino Congadas e nas dançaslutas como a capoeira O enfoque geral era da inte gração por meio das manifestações culturais percebidas pelo seu viés folclórico no qual a participação do negro era impres cindível A letra do samba composta por Mano Décio da Viola e Davi do Pandeiro foi apresentada como mais um elemento de compreensão da proposta dos imperianos Rio de JaneiroObraprima de rara belezaFoste enga lanada pela própria naturezaRio dos vicereisDos chafarizes das velhas congadasRio dos capoeiras Cenário eletrizanteDas famosas cavalhadasQuando badalavam os sinosAnunciando a festa do DivinoEra lindo o seu ritualAdmirado até na Corte RealO monu mento dos ArcosCom todo o seu esplendorRio das lin das paisagensE das belas carruagensObra de grande valorLá lá lá lá lá lá láLá rá lá lá rá rá Rio ó meu Rio de JaneiroSerás sempre o primeiroNa história do mundo inteiro8 Outro exemplo que corrobora essa primeira corrente narrativa estava na matéria dos jornalistas Mauro Ivan e Luis Paulo sobre a União de Jacarepaguá em 1964 O texto deixava evidente que a intenção da escola era representar a história do negro ligada à escravidão mas com a perspectiva da integra ção social durante as festas que foram realizadas no interior de Minas Gerais em homenagem à coroação de D João VI 7 Jornal do Brasil 27262 caderno B p 5 8 Idem EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 197 10092018 111720 198 A história de fato parecia inusitada Pouco se conhecia da festa no Arraial do Tijuco em Minas Gerais pela coroação do novo rei Segundo os jornalistas a artista plástica Ana Letícia tinha proposto o enredo e os detalhes ela buscou na documentação do folclorista Luís da Câmara Cascudo Esse circuito de informações e referências tornouse mais intenso com o crescente número de artistas de formação acadêmica circulando nas agremiações O samba da escola de autoria de Jorge José dos Santos Mexeu foi citado na matéria Essa composição não foi encontrada em nenhum site especializado sendo importante o seu resgate Foi em 1818no dia 6 de fevereiroD João VI foi coroado fato que sempre será lembradoPorém quatro meses depois no Tijucona velha cidade tradicionalhoje Diamantina que foi palco de repercussão nacionalde estilos coloridos que representavam a MonarquiaManuel Ferreira da Câmara Bittencourthomem inteligente de valorinten dente das minas e do Império Senadorcom seus esforços realizouêstes festejos com esplendor ôôôôôôôôôôôôos negros prestaram homenagensnesse cortejo de consagra çãoaos brancos se misturaramsem a menor distinção Destacamos Tipos e costumes sem iguaiso teatro a con gada e outros maisRei Congo e Rainha Xingapríncipes e princesas com suas belezasque desfilavam sob um pálio com toda a nobrezaforam três noites e três dias de ale griaDe festa monumentalDona Carlota Joaquina assis tiaCom outros membros da Corte Imperial9 Essa corrente narrativa também esteve presente no car naval de 1969 como atesta a matéria do JB no domingo de carnaval O Caderno B apresentou os dez sambas das escolas do primeiro grupo seguindo a ordem do desfile Um subtítulo dava o tom do que parecia ser o mote das agremiações no final dos anos 1960 A História do Brasil seus homens seus feitos as coi sas do Brasil sua glória sua cor Os sambasenredo das escolas de samba para o desfile de hoje à noite cantam o Brasil e sua população na simplicidade e esplendor da voz do povo10 9 Jornal do Brasil 5264 caderno B capa 10 Jornal do Brasil 5264 caderno B p 2 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 198 10092018 111720 199 Duas escolas exemplificam essa corrente narrativa Impe ratriz Leopoldinense e Em Cima da Hora Com o enredo Brasil Flor Amorosa de Três Raças a escola de Ramos estava sintonizada nessa perspectiva buscando reafirmar a importância das três matrizes formadoras do processo de integração étnica e racial no Brasil influenciada pela releitura da tese do naturalista alemão Von Martius de meados do século XIX O sambaenredo dos compositores Mathias de Freitas e Carlinhos Sideral seguia a linha interpretativa traçada pelo cientista e procurava enaltecer as qualidades de cada raça na formação do nosso povo Vejam de um poema deslumbranteGerminam fatos mar cantesDeste maravilhoso BrasilQue a lusa prece des cobriaBotão em flor crescendo um diaNesta mistura tão sutilE assim na corte os nossos ancestraisTres calam doces madrigaisDe um verde ninho na floresta Ouçam na voz de um pássaro cantorUm canto índio de amorEm bodas perfumando a festaVenham ver o sol dourar de novo esta florSonora tradição de um povo bisSamba de raro esplendorVejam o luxo que tem a mulataPisando brilhante ouro e prata a domingar Ouçam o trio guerreiro das matasEcoando nas cascatas a desafiarÓ meu Brasil berço de uma nova era Onde o pescador esperaProteção de Iemanjá rainha do marE na cadência febril das moendasBatuque que vem das fazendasEis a liçãoDos garimpos aos canaviais Somos todos sempre iguaisNesta miscigenaçãoÓ meu Brasil Flor amorosa de três raças bisÉs tão sublime quando passasNa mais perfeita integração11 A Em Cima da Hora dentro do mesmo viés narrativo parecia dialogar com a história econômica O enredo da escola do bairro de Cavalcante buscava ser mais contundente em ter mos de postura afirmativa A revolta passava a ser um novo ingrediente das representações sobre os negros Mesmo escra vizados os negros segundo a escola demonstravam desde o início da colonização pelos brancos portugueses a revolta com a situação a que foram submetidos nas terras brasileiras 11 Idem EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 199 10092018 111720 200 O samba parecia marcar uma posição ideológica e demonstrava com firmeza a forma de abordar a temática da escravidão Alguns versos eram contundentes como os que apontavam que a força do negro escravizado era que de fato movia a economia brasileira O samba intitulado Ouro Escravo dos compositores Normi de Freitas e Jair dos Santos não se tor nou muito reverenciado mas merecia um olhar mais atento dos pesquisadores da história das escolas de samba Do homem africano ressaltamos o valorNestas pági nas marcantesQue o Em Cima da Hora desfolhou Que apresentamos neste carnavalO ouro escravo No tempo do Brasil colonialBrilha nos anais desta históriaQue apresentamos neste carnavalSolto no campo na serra ou junto ao marAo índio bronzeado não puderam escravizarEnquanto o negro era martiri zado Na escavação do ouro trabalhando sem cessarA toda crueldade resistiaOh quanto o negro sofriaA exploração era geralNa mineração e também no vege talO paubrasilDe um século para outro sumiu Transformado em anilina enriquecendo o tecidoQue o colo de ricas damas cobriuBrequeE as montanhas de esmeraldasE as pepitas brilhantesAumentavam as ilusões dos aventureiros bandeirantesE o negro tra balhavaBrequeNesta terra importanteTratava da plantaçãoNa lavoura verdejanteÔ ôôlara lara lara ra ra RaSó o homem africano era braço produtor Que mais tarde a Lei Áurea libertou12 O enredo dialogava com a história econômica brasi leira destacando seus ciclos principais demonstrando que o negro esteve presente como força motriz na produção da maior parte de nossas riquezas Os exemplos apresentados entre outros não citados mas passíveis de figurar nessa corrente narrativa permitem vis lumbrar uma tendência das agremiações em retratar a temática da cultura negra sob o viés narrativo da trajetória dos homens e 12 Idem EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 200 10092018 111720 201 mulheres negros que vieram da África e das gerações posterio res aqui nascidas que tiveram como identidade social comum a condição de escravos e escravas na estruturação da nação brasi leira Os desfiles nas décadas seguintes à de 1960 continuaram a ter como temática o passado de escravidão cada vez mais entretanto incorporou um olhar bem mais crítico num misto de denúncia busca de equiparação social e sobretudo dando ênfase a que a escravidão nunca mais fosse restaurada LUTA RESISTÊNCIA E OS HERÓIS NEGROS O segundo viés narrativo estruturouse na figura do negro como líder agente e motor das revoltas e lutas que culminariam com a Abolição ou de personagens que conseguiram por sua tra jetória individual romper barreiras ascendendo socialmente no Brasil colonial Os enredos destacaram a formação dos quilom bos os conflitos armados e as figuras pouco conhecidas abrindo novas possibilidades de questionamento da história oficial basea dos em exemplos que simbolizavam ações afirmativas de negros e mulatos na conquista de direitos civis e sociais O primeiro enredo a ser destacado fazia referência à Revolta de Palmares apresentado pelo Salgueiro no carnaval de 1960 Durante o período précarnavalesco vários textos refe rentes ao enredo e à escola ocuparam as páginas do Jornal do Bra sil A divulgação da sinopse do desfile teria sido uma gentileza do então presidente Nelson de Andrade com o Jornal do Brasil Com 1200 figuras divididas em 26 alas a Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro desfilará no domingo de carnaval para reviver a história da Revolta de Palmares Cabe hoje ao JORNAL DO BRASIL o privilégio de divulgar com quase um mês de antecedência como serão enredo alegorias e fantasias do desfile É a primeira vez na história do carnaval carioca que uma escola de samba consente em anunciar com tamanha antecipação o que pretende fazer Obrigado Salgueiro13 13 Jornal do Brasil 4260 2º caderno p 4 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 201 10092018 111720 202 O enredo parecia ser emblemático de uma vertente que ampliava as possibilidades de narrativa sobre a história do negro no Brasil Nessa corrente o que prevalecia era a atitude guerreira e destemida de líderes negros que comandaram uma experiência que mesclava autonomia e criatividade no período colonial brasileiro quando a escravidão limitava a conquista de espaços e respeito social O elo com o continente africano esta beleciase no caráter guerreiro das diversas tribos que tiveram seus elementos dispersados pelo Novo Mundo A exemplificação dessas novas ideias estava presente na matéria do JB A apresentação das baianas que desfilariam com bandeiras vermelhas situava a ideia de luta mais no plano sim bólico A presença de soldados portugueses e negros escravos era uma forma de representar os conflitos raciais que ocorreram no Brasil A ala seguinte das tribos africanas nos seus míni mos detalhes seria a afirmação da ancestralidade africana que permitiria um redirecionamento do negro na sociedade brasi leira não mais como subserviente e humilhado mas como altivo guerreiro dono do seu destino Entre elementos simbólicos como as bandeiras brancas a escola terminaria seu desfile criando conexões com os festejos culturais do maracatu festa popular em Recife tendo negros e mulatos como alicerces das suas apresentações O último des taque da matéria foi para a adoção de novos instrumentos na bateria da agremiação com o diferencial de serem africanos O segredo era fundamental mas creio que a matéria aguçou a curiosidade de muitos para o que a escola apresentaria no domingo de carnaval14 O samba dos compositores Anescarzinho e Noel Rosa de Oliveira tinha uma letra extensa e imagens descritivas do quilombo e sua geografia Os aspectos históricos foram mescla dos com imagens mitológicas evocando a cultura grega com parando Palmares com a cidade de Troia Esse samba é consi derado um dos melhores sambasenredos de todos os tempos15 14 Idem 15 Sergio Cabral Haroldo Costa Claudio Vieira entre outros destacam esse samba como um dos melhores de todos os tempos no carnaval carioca EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 202 10092018 111720 203 No tempo que o Brasil ainda eraum simples País colo nialPernambuco foi o palco da históriaQue apresen tamos neste carnavalCom a invasão dos holandeses Os escravos fugiram da opressãoE do jugo dos por tuguesesEsses revoltososAnsiosos pela liberdade Nos arraiais dos PalmaresBuscavam a tranqüilida deÔôôôôôÔô ôô ôôSurgiu nessa história um protetorZumbi o divino imperadorResistiu com seus guerreiros em sua TróiaMuitos anos ao furor dos opressoresAo qual os negros refugiadosRendiam res peito e louvorQuarenta e oito anos depoisDe luta e glóriaTerminou o conflito dos PalmaresE lá no alto da serraContemplando a sua terraViu em chamas a sua TróiaE num lance impressionanteZumbi no seu orgulho se precipitouLá do alto da Serra do Gigante Meu maracatuÉ da coroa imperialÉ de Pernambuco Ele é da casa real16 Em matéria posterior próxima à data do desfile foi apresentada uma descrição detalhada das tribos africanas que seriam retratadas As representações das nações Jaga Mandinga Fula Cambinda e Casanje com seus reis alegorias e fantasias como frisaram os dirigentes na reportagem teriam a indumentária e as alegorias com um caráter predominantemente africano17 As representações das nações africanas com uma variedade de cores e traços pareciam propor uma nova plasticidade nos desfi les O público e os componentes das agremiações estavam acos tumados com fantasias inspiradas nas cortes europeias sobre tudo a francesa Os negros eram representados como escravos capoeiristas baianas de feira ou escravos de libré18 Com elementos diferenciados o desfile do Salgueiro teve boa repercussão sendo noticiado na primeira edição do JB posterior ao carnaval Na capa do periódico viase uma foto do desfile da agremiação em destaque junto com os dizeres em 16 Jornal do Brasil 8260 2º caderno p 9 17 Jornal do Brasil 25260 2º caderno p 5 18 Escravos com roupas de corte carregadores de liteiras ou responsáveis pelos serviços domésticos EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 203 10092018 111720 204 letras grandes Acadêmicos foram espetáculo Essa deferência reve lava que o Salgueiro havia realizado um desfile impactante Os Acadêmicos do Salgueiro do morro de mesmo nome na Tijuca desfilaram com um enrêdo inspirado na Guerra dos Palmares travada no interior de Alagoas entre os negros que se agruparam num Quilombo e as tropas do Govêrno colonial chefiadas por Fernão Jorge Velho O desfile começou com um negro vestido de zumbi chefe do Quilombo empunhando um estandarte com os seguintes dizeres Acadêmicos do Salgueiro apresentam Palmares Seguiramse negros das cinco nações africa nas transportadas para o Brasil e baianas com bandeiras vermelhas O samba cantado em côro pela escola que falava que o que se ia contar tinha acontecido no tempo do Brasil colonial e era uma história guerreira Surgiram então os guerreiros armados de lanças flexas e escudos Vinha em seguida um pálio de Maracatu de cuja dança êles cantavam um estribilho popular no Recife Maracatu é da coroa Imperial É de Pernambuco da casa real Logo após vinhas as baianas agora com bandeiras bran cas e entre elas a mulata Paula considerada uma das atrações do desfile O samba revelava então que 48 anos depois a guerra dos Palmares acabou19 Outros exemplos de enredos no mote narrativo da luta e resistência incorporavam também a apresentação de persona gens negros que eram pouco comentados ou desconhecidos do grande público e que poderiam simbolizar casos de superação social e busca de conquista de espaços mesmo com as adversi dades da situação financeira e da sua cor Em 1963 e 1964 o Salgueiro trouxe em sequência dois enredos que estavam dentro desse diapasão narrativo apresentando Chica da Silva em 1963 e Chico Rei em 1964 Essas histórias foram ampliadas e amplifi cadas pela imprensa O samba de 1963 dos compositores Anescarzinho e Noel Rosa de Oliveira constituiuse de muitos significados 19 Jornal do Brasil 3360 p 12 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 204 10092018 111720 205 dentro da narrativa de resistência e luta dos negros na história brasileira Retratando uma mulher negra escrava que alcan çou status social por conta de seu envolvimento amoroso com o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira Chica tornouse uma personagem emblemática O sucesso do desfile e o título de campeã do carnaval criaram uma condição de excep cionalidade naquele acontecimento cultural que transcendeu o tempoespaço dos festejos carnavalescos ApesarDe não possuir grande belezaXica da Silva Surgiu no seioDa mais alta nobrezaO contratador João Fernandes de OliveiraA comprouPara ser a sua companheiraE a mulata que era escravaSentiu forte transformaçãoTrocando o gemido da senzala Pela fidalguia do salãoCom a influência e o poder do seu amorQue superouA barreira da corFrancisca da SilvaDo cativeiro zombouôôôôôôôô ôô ôôNo Arraial do TijucoLá no Estado de MinasHoje lendá ria cidadeSeu lindo nome é DiamantinaOnde nasceu a Xica que mandaDeslumbrando a sociedadeCom o orgulho e o capricho da mulataImportantemajestosa e invejadaPara que a vida lhe tornasse mais belaMan dou construirUm vasto lago e uma belíssima galeraE uma riquíssima liteiraPara conduzilaQuando ela ia assistir à missa na capela20 Esse enredo de fato foi um momento célebre na história dos desfiles e estrutura um dos marcos da construção do pionei rismo do Salgueiro na temática afrobrasileira A questão sobre a descoberta de personagens negros pouco conhecidos do povo pela agremiação da Tijuca entretanto merece ser relativizada21 Com um jogo de palavras Salgueiro troca Chica por Chico para tentar ser bi a matéria do jornalista José Trajano destacou os preparativos do Salgueiro para o carnaval de 1964 O enredo da escola Chico Rei era baseado na história do nobre africano 20 Jornal do Brasil 24263 p10 21 FARIA Guilherme José Motta Os Acadêmicos do Salgueiro e as representações do negro nos desfiles das escolas de samba nos anos 1960 2014 Tese Doutorado em História Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Universidade Federal Fluminense Niterói 2014 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 205 10092018 111720 206 transformado em escravo e que se tornou um personagem inte ressante a partir de um estratagema engenhoso esconder o ouro nos cabelos Depois de juntar boa quantidade do metal conse guiu comprar sua alforria e a dos demais companheiros A his tória de superação e integração protagonizada por Chico Rei do cativeiro à liberdade se estabeleceu a partir de sua conversão ao catolicismo A estratégia de Chico e a adesão de seus companheiros narradas pela escola pareciam querer recriar o passado ancestral em solo brasileiro baseado nas redes de sociabilidade das tribos africanas Esse ato de reagrupar seu povo sob a benção do Deus católico protegido pela intercessão de Santa Efigênia parecia ser um salvoconduto para a ação de Chico e seus companheiros O ideal de vida comunitária ligava a experiência de Chico Rei ao Qui lombo de Palmares e na linha histórica às comunidades dos morros cariocas de onde emergiam as escolas de samba Os compositores do samba Geraldo Babão Jarbas Soa res e Djalma Costa Djalma Sabiá segundo a matéria eram um trio excelente A letra merece ser lida como texto poético e his tórico Nos anos 1960 época de muitas transformações nos des files as escolas ainda resguardavam a forma de composição dos sambasenredo geralmente com letras longas e ricas em detalhes Vivia no litoral africanoUma régia tribo ordeiraCujo rei era símboloDe uma terra laboriosa e hospitaleira Um dia essa tranqüilidade sucumbiuQuando os por tugueses invadiramCapturando homensPara fazêlos escravos no BrasilNa viagem agonizanteHouve gritos alucinantesLamentos de dorÔôôô adeus Bao báÔôôôôadeus meu Bengo eu já vouAo longe Minas jamais ouviaQuando o rei mais confiante Jurou a sua gente que um dia os libertariaChegando ao Rio de JaneiroNo mercado de escravosUm rico fidalgo os comprouPara Vila Rica os levouA ideia do rei foi genialEsconder o pó do ouro entre os cabelosAssim fez seu pessoalTodas as noites quando das minas RegressavamIam à igreja e suas cabeças lavavamEra o ouro depositado na piaE guardado em outro lugar de EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 206 10092018 111720 207 garantiaAté completar a importânciaPara comprar suas alforriasForam libertos cada um por sua vezE assim foi que o reiSob o sol da liberdade trabalhouE um pouco de terra ele comprouDescobrindo ouro enri queceuEscolheu o nome de FranciscoAo catolicismo se converteuNo ponto mais alto da cidade ChicoReiCom seu espírito de luzMandou construir uma igrejaE a denominouSanta Efigênia do Alto da Cruz22 A tríade de enredos do Salgueiro 1960 Quilombo de Pal mares 1963 Chica da Silva e 1964 Chico Rei dentro da chave narrativa das lutas e das estratégias de resistência dos negros em relação à postura de dominação branca criou para a agremia ção tijucana um status de escola revolucionária Esses enredos citados em quase toda a bibliografia sobre escolas de samba e os resultados obtidos 1960 e 1963 dois títulos e 1964 um vice campeonato ajudaram sem sombra de dúvidas a construção da ideia de pioneirismo salgueirense nos temas afrobrasileiros Esse mote narrativo exaltando momentos de luta ou estratégias de superação das barreiras sociais possuía também uma vertente de denúncia contundente do passado escravista e das formas de resistência que os negros encontraram para superar essas dificuldades que lhes foram impostas O enredo do Império Serrano em 1969 também abordava essa segunda cor rente narrativa O sambaenredo prometia ser um dos pontos altos do desfile A canção Heróis da Liberdade dos compositores Mano Décio da Viola Silas de Oliveira e Manoel Ferreira teve grandes problemas com a censura e após alguns ajustes resul tou em um dos melhores de todos os tempos Ô ôôôLiberdade SenhorPassava a noite vinha diaO sangue do negro corriaDia a diaDe lamento em lamentoDe agonia em agoniaEle pediaO fim da tira niaLá em Vila RicaJunto ao Largo da BicaLocal da opressãoA fiel maçonariaCom sabedoriaDeu sua decisão lá rá ráCom flores e alegria veio a aboliçãoA Independência laureando o seu brasãoAo longe soldados 22 Idem EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 207 10092018 111720 208 e tamboresAlunos e professoresAcompanhados de cla rimCantavam assim Já raiou a liberdadeA liberdade já raiouEsta brisa que a juventude afagaEsta chama que o ódio não apagapelo UniversoÉ a evolução em sua legítima razãoSamba oh sambaTem a sua primazia De gozar da felicidadeSamba meu sambaPresta esta homenagemAos Heróis da LiberdadeÔ ôô23 O samba alinhava diversos momentos de embates e lutas pela liberdade na história brasileira Sintonizado com os rumos dos debates e das ações dos movimentos negros o samba da Impé rio Serrano centrava a história da Abolição no próprio negro e ao contrário do samba da Unidos de Lucas de 1968 Sublime Pergami nho não fez deferências à princesa Isabel Esse embate de significa dos do dia 13 de maio estava sendo apropriado pelas associações e grupos dos movimentos negros e a omissão da representatividade da princesa parece ser um indício de que essa nova narrativa que percebia a Abolição como uma construção histórica e social do legado da resistência e da luta dos negros brasileiros estava tam bém presente nas escolas de samba Nessa segunda corrente narrativa o viés crítico em rela ção ao legado cultural dos negros brasileiros era mais evidente Interessante notar que esses enredos mais contundentes foram apresentados em concomitância aos enredos da primeira cor rente narrativa nos quais o ideal da democracia racial era mais utilizado como chave interpretativa das diferenças ante riores Frutos da mesma raiz as duas correntes narrativas sim bolizam que as diferentes possibilidades de se contar a história do negro não derivavam de uma evolução e sim de diferentes leituras de um passado em disputa tanto em conceitos quanto em simbolismos para a cultura negra no Brasil A PRESENÇA NEGRA NA CULTURA NACIONAL E NO FOLCLORE O terceiro viés narrativo dos enredos apresentou a pre sença do negro no processo formador da cultura brasileira 23 Disponível em wwwvagalumecombrescoladesambaimperioserranosamba enredo1969html Acesso em 3 jun 2013 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 208 10092018 111720 209 sobretudo em seus aspectos religiosos das festas danças culi nária nos diversos estados brasileiros O legado do passado afri cano foi uma das referências fundamentais para a solidificação das variadas práticas culturais no Brasil As representações que essas práticas revelavam gravitavam entre uma África mitifi cadaestilizada e uma África politizada e contemporânea nas lutas do processo da descolonização Vários são os exemplos desse viés narrativo na histó ria dos desfiles das escolas de samba na década em destaque como o da Mangueira em 1960 que seguiu nesta trilha Com o enredo Glória ao Samba a agremiação apresentou a história do surgimento do ritmo na perspectiva da sua consagração máxima e da primazia das escolas O enredo da Mangueira parecia dialogar com a narra tiva do negro integrado socialmente a partir da sociabilidade das festas A matéria sobre os preparativos da escola não explici tava a presença do negro no enredo mas a partir de uma leitura mais atenta da letra do samba é possível perceber que sua apre sentação estaria calcada nestas representações tendo o carnaval carioca como epicentro Retratar o morro com sua sociabilidade e a Praça XI espaço destruído na década de 1940 mas possuidor de um simbo lismo importante para a consolidação social de grupos de negros e mulatos era uma forma de sublinhar a filiação das escolas de samba ao efervescente processo de circulação de agentes sociais no espaço urbano e central da cidade do Rio e o seu futuro des locamento para os morros e subúrbios A matéria apresentou a letra do samba que trazia uma representação da formação da cultura carnavalesca na cidade Samba melodia divinaTu és mais empolganteQuando vens da colinaSamba original és verdadeiroOrgulho do folclore brasileiroO teu linear de vitóriasFoi na Praça Onze de outroraDas lindas fantasiasQue cenário mul ticorDas velhas batucadasE o saudoso sinhôOh que reinado de orgiaOnde o samba imperavaMatizando alegriasRei momo e as escolas de sambaDeram mais esplendorAo nosso carnavalE o samba fascinante EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 209 10092018 111720 210 Ingressava no municipalSua epopeia triunfanteAtin giu terras bem distantes Não encontrando fronteirasO samba conquistouPlateias estrangeiras 24 A visão de samba como elemento folclórico25 era um marco discursivo presente na letra da composição pois era visto como um ritmo essencialmente nacional que espalhava bons sentimentos e que continuava seu processo de expansão che gando a terras distantes no estrangeiro A forma de construir uma história de integração social sem enfrentamentos ou postura de luta aberta parece ter sido a opção da Mangueira para o desfile mas ficava evidente também a valorização do negro e sua contribuição para a cultura nacio nal Inegavelmente a cosmogonia do samba proposta pela escola era propícia a uma ideia de afirmação dos agentes sociais do morro a partir da miscigenação permitindo que aquela manifestação artística abrisse uma permeabilidade social Dentro desse mote narrativo outro tema recorrente eram as manifestações culturais artísticas e religiosas que os negros praticavam O estado brasileiro que aparecia com frequência nos enredos até o início da década de 1960 era a Bahia e as representações do negro nesse estado incorporavam ano após ano um vocabulário ligado à culinária e às religiões de ascen dência africana como o samba da Mangueira de 1963 Relíquias da Bahia dos compositores Helio Turco Cícero e Pelado Formosa BahiaTeu relicário é tão vibranteEstado len dárioQuantas catedrais exuberantesFoste do Brasil a primeira capitalMarco do progresso nacionalImpor tante e primordialSalve a velha BahiaTela do grande SenhorOs fieis em romariasBahia de São Salvador Salve salveBahia de tradição tão gloriosaBahia do 24 Jornal do Brasil 24260 2º caderno p 5 25 Nas décadas de 1950 e 1960 em vários artigos do Jornal do Brasil notamos a discus são acerca de ser o samba e as escolas de samba elementos folclóricos por conta de sua estruturação em bases populares Um dos grandes intelectuais envolvidos nessa polêmica foi o etnólogo Edison Carneiro que defendia o caráter folclórico das agremiações mas compreendia que elas estavam em processo de transformação para grupos ligados à emissão cultural bem mais articulados com as mudanças socioculturais do Brasil nas décadas de 19501960 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 210 10092018 111720 211 eminente Ruy BarbosaNa ciência ou na arte Tens a primaziaDos poetas sublimam a velha BahiaA Bahia do acarajé Do feitiço e do candombléTeu panorama na imensidãoÉ uma fascinação Formosa Bahia26 A Unidos de Padre Miguel no ano seguinte com o enredo Feira da Bahia seguiu a mesma inspiração temática e recebeu destaque na cobertura jornalística do JB A matéria do jornalista José Trajano revelou em detalhes as fantasias e alego rias que a escola apresentaria no desfile principal Um mérito do texto foi o de articular os preparativos da agremiação com seus componentes revelando as condições sociais que cercavam a produção do desfile da agremiação A escola não tinha grande destaque no noticiário carnavalesco pois desde sua fundação esteve nos grupos secundários27 Relacionado no terceiro viés narrativo percebiase na agremiação a busca de um ideal de integração racial e social pela afirmação dos valores culturais do negro brasileiro O des taque às religiões de origem africana plasmadas no território brasileiro era um indício de sua intenção Integrar sim mas com respeito às particularidades que constituíram a diversidade do povo brasileiro Sobre o enredo Feira da Bahia o jornalista José Trajano não detalhou como seriam as fantasias e alegorias entretanto nomeou os seus criadores o cenógrafo Válter Monteiro João Jerônimo e Jorge Carvalho Em relação ao samba o jornalista esclareceu que a composição era da ala dos compositores pois segundo seus dirigentes na escola não tem essa coisa de cons truir um nome e fixálo como compositor Bahiateu nome representa glóriaum símbolo em nossa histórianosso país te consagrouÔ ÔÔÔÔÔÔÔ demonstramos em tuas feirasó Bahia fascinantes colos saisTeus mercados ambulantescom legumes verdejantes pescado e outras coisas maisVendedores de papagaios papavento cerâmicas e balõesOhquanta beleza e 26 Jornal do Brasil 24263 p10 27 A escola foi fundada em 12 de novembro de 1957 Disponível em unidosdepadre miguelnocomunidadesnet Acesso em 24 maio 2013 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 211 10092018 111720 212 esplendoraparentando um mundo de ilusõesTambém são atrações em tuas feiras Bahiamuito bonito e origi nais o famoso jogo do maculelêDança de capoeira com os seus berimbauslindas baianas de saias rendadase colares de guiascom seus modos brejeirosem acordes a cantar Compra ioiô compra ioiô compra Iaiá Bôlo de tapioca milho cozido acaçá e mungunzácompra ioiô compra ioiô compra Iaiádoce de côco acarajé e o sabo roso vatapáRara ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra28 O mote narrativo das contribuições negras para a cultura brasileira estava presente tanto na proposta do enredo quanto no seu samba Utilizando a chave interpretativa da integração exal tavamse os aspectos culturais das feiras da Bahia sobretudo em sua capital Salvador onde os negros eram e ainda são presenças dominantes Ao cantar suas danças sua culinária e sua religiosi dade o samba criou imagens vivas e ao ser analisado como texto permite visualizar o colorido e o movimento intenso dos homens e mulheres negros em sua maioria oferecendo serviços seus dotes culinários dançando a capoeira e o maculelê O Salgueiro em 1969 apresentou o enredo Bahia de Todos os Deuses e ampliou o leque discursivo desta vertente nar rativa apresentando orixás da mitologia africana presentes no candomblé A matéria deu ênfase às questões religiosas e a escola prometia abrir um espaço generoso em seu desfile para a representação do culto aos deuses A Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro será a oitava escola a se apresentar na Presidente Vargas Cerca de quatro mil figurantes estarão sambando com o sam baenredo mais corrido para este ano Bahia de Todos os Deuses Homenageando a Bahia Salgueiro fará um bom carnaval trazendo inclusive um autêntico terreiro de macumba para ilustrar o seu enredo O culto a Iemanjá será o ponto alto do desfile 29 28 Idem 29 Jornal do Brasil 17269 Caderno B p 5 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 212 10092018 111720 213 Ao enaltecer os costumes e práticas culturais desta cando os aspectos religiosos o enredo fortalecia os laços com a ancestralidade africana ao mesmo tempo que reforçava uma postura de afirmação dos valores culturais dos negros no Brasil Cito a seguir os sambas do Salgueiro que terminaria campeã do carnaval de 1969 e da Unidos de Vila Isabel Ambos tiveram o mesmo mote temático a Bahia vista entretanto por outros caminhos narrativos O primeiro samba a ser destacado é o do Salgueiro dos compositores Bala e Manuel Rosa Bahia os meus olhos estão brilhandoMeu coração pal pitandoDe tanta felicidadeÉs a rainha da beleza uni versalMinha querida BahiaMuito antes do Império Foste a primeira capitalPreto Velho Benedito já dizia Felicidade também mora na BahiaTua história tua glóriaTeu nome é tradiçãoBahia do velho mercado Subida da ConceiçãoÉs tão rica em mineraisTens cacau tens carnaúbaFamoso jacarandáTerra aben çoada pelos deusesE o petróleo a jorrarNega baiana Tabuleiro de quindimTodo dia ela estáNa igreja do Bonfim oiNa ladeira tem tem capoeiraZum zum zumZum zum zumCapoeira mata um30 A Unidos de Vila Isabel não teve grande espaço na matéria do domingo de carnaval de 1969 O samba dos compo sitores Martinho da Vila e Rodolpho segundo a matéria tinha um diferencial que era apresentar uma narrativa ficcional tendo como cenário a Bahia O samba trazia novidades em relação às novas possibilidades discursivas permitindo ampliar o leque de seu formato A composição é uma das primeiras a abordar a questão social em um contexto cotidiano Eis a letra do samba Yayá do Cais Dourado da Unidos de Vila Isabel No cais dourado da velha BahiaOnde estava o capoei raA Yayá também se viaJuntos na feira ou na roma riaNo banho de cachoeiraE também na pescaria Dançavam juntosEm todo fandango e festinhaE no reisado contramestre e pastorinhaCantavam laralalaia 30 Disponível em wwwletrasmusbrsambas Acesso em 15 fev 2011 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 213 10092018 111720 214 laiáNas festa do Alto do GantoisMas loucamente a Yayá do Cais DouradoTrocou seu amor ardente Por um moço requintadoE foise emboraPassear em barco a velaDesfilando em carruagemJá não era mais aque laE o capoeira que era valente chorouAté que um dia a mulataLá no cais apareceuAo ver o seu capoeiraPra ele logo correuPediu guaritaMas o capoeira não deu Desesperada caiu no mundo a vagarE o capoeira ficou com seu povo a cantarLalaialalaráCantavam lara lalaialaiáNas festa do Alto do Gantois31 As letras extensas e descritivas uma das marcas caracterís ticas dos sambas até o final dos anos 1960 deparavamse com novas formas estilísticas mexendo com os paradigmas da sua tessitura O samba da Unidos de Vila Isabel era um bom exemplo de como a forma e o conteúdo estavam em processo de transformação A força deste mote narrativo pode ser percebida na matéria Aprendizes mostram o Brasil e fazem churrasco na Avenida do jornalista José Trajano A principal finalidade do enredo é atrair a atenção de todos para mostrar o que existe de maravilhoso no Brasil Em todas as regiões brasileiras existem folguedos danças e tradições que se originaram na diversificada coloniza ção de portugueses africanos índios etc32 Segundo a matéria o sambaenredo escolhido há muito tempo depois de disputar com mais dois outros o privilé gio de ser cantado na Avenida tem como responsáveis os mem bros da Ala dos Compositores A autoria era do trio apresen tado no texto como velhos sambistas Austeclínio Silva Mario Santos e Jorge Zacarias CidadãoSamba do ano anterior 1963 A letra citada na íntegra era a seguinte LáráláráláráLáráláráláráÉ deslumbrante o folclore do BrasilE os costumes de seu povo varonil Lendárias tradiçõesDas suas regiõesde Norte a Nor desteLeste Sul ou CentroOesteE nesta viagem atra 31 Disponível em wwwletrasmusbrvilaisabelrj710689 Acesso em 1 maio 2013 32 Idem EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 214 10092018 111720 215 vés do BrasilMomentos de beleza oferecemBrasil Gigante BrasilÉs tão sublime és magistralTens do Rio de JaneiroNo samba a verdadeira capitalChimar rão e o churrascoFesta da Uva no Rio Grande do Sul Em Pernambuco o Frevo e o Maracatuem ritmo de maracatu e com acompanhamento de palmas a seguinte quadra Salve o maracatuComo é bom de se dançar Salve o maracatuVamos todos cantarÔ ÔÔÔÔÔ Como é lindo no Paráo pitoresco BoibumbáBrasilA majestosa BahiaBrasil Suas baianas com seus colares e guiasBrasilTambém tem o ritual candombléPara seu povo hospitaleiro e de muita féE num gesto heróico arrojado e febrilOs jangadeiros singram os mares do BrasilLará Lará Lará Lará Lará33 As intenções estéticas refletiam o que a escola com preendia como a cultura brasileira representada na mistura das três matrizes étnicas formadoras do povo brasileiro refle tidas em suas práticas culturais denominadas então de folclore Pela descrição o desfile teria várias alas representando danças típicas e a maior parte delas era dançadajogada por negros e mulatos como o mineiropau as congadas o maracatu o bumbameuboi danças em que as heranças culturais africanas foram ressignificadas no Brasil e tornaramse marcas identitá rias dos negros brasileiros Assim sendo o enredo estava inserido na chave interpretativa da integração buscando demonstrar que na realização das práticas culturais as diferenças sociais e sobretudo raciais abrandavam as desigualdades dando lugar a uma forma de celebração de uma cultura brasileira com espaços garantidos para todos A Unidos de Lucas34 em 1969 apresentaria também um enredo centrado no folclore O foco narrativo era o das con tribuições culturais negras na história brasileira sob a bandeira da integração racial O samba Rapsódia Folclórica do compositor Herlito Fonseca também foi destacado na matéria do JB 33 Idem 34 A Unidos de Lucas resultou da fusão da Aprendizes de Lucas com a Unidos da Capela em 1966 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 215 10092018 111720 216 Abremse as cortinas coloridasMostrando os matizes da vidaNum cenário espetacularLendas flores lin das fantasiasContos que o poeta vem cantarDo céu da terra e do marDo sol das noites de luarEsclare cendo em alto somQue a liberdade é o lado bomEm cortejo de grande alegriaO vaqueiro anuncia a dança do BoiBumbáO meu Boi morreu o meu BoiBumbá Manda buscar outro maninha lá no CearáOlêlê lêolê lê Olá lá Pernambuco e CearáAs legendárias Amazonas e a Rainha ConhoriGuerreira de braço forte que lutou até a morteNa seita dos CanaraíNo Rio Grande do SulO legendário negrinho do PastoreioFoi surrado e amarrado e jogado dentro de um formigueiroFoi o Prín cipe Obá homem de grande projeçãoQue lutou brava mente na guerraFoi herói do seu batalhãoE as Pastori nhas com seus belos madrigaisEntoavam lindos cantos Que hoje não se ouvem maisNa Bahia tem tem tem Na Bahia tem BaianaÁgua de Vintém35 Uma pesquisa mais aprofundada pode resgatar alguns sambas e enredos que ficaram na obscuridade esquecidos pela historiografia sobre o tema Assim é relevante conhecer a reali dade de uma escola pequena de um subúrbio distante nos anos 1960 para perceber que uma vigorosa narrativa da história dos negros no Brasil estava se consolidando entre as agremiações e seus agentes sociais em sua maioria negros e mulatos Após várias referências às matérias apresentadas nas páginas do JB percebese que a temática sobre o negro estava presente e em processo de expansão Os exemplos apresentados permitem vislumbrar esse fenômeno Valendose de uma mani festação popular com todos os debates sobre a pretensa perda de autenticidade as escolas de samba alcançavam grande visi bilidade tornando a discussão sobre o negro e o seu lugar na sociedade brasileira uma pauta necessária na ordem do dia 35 Disponível em wwwvagalumecombrunidosdesaolucassambaenredo1969 html Acesso em 1 maio 2013 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 216 10092018 111720 217 CONSIDERAÇÕES FINAIS Tomando como parâmetro o ano 1969 é possível per ceber que os temas sobre o negro haviam conquistado espaço definitivo no cotidiano das escolas de samba As três principais correntes narrativas apresentadas neste artigo continuavam presentes e em intenso processo dialético As matérias destaca das sobre as escolas durante a referida década demonstram que a história dos negros no Brasil estava bastante viva nos desfiles das agremiações Seus enredos e sambas divulgados para todo o país por meio da imprensa escrita e da televisão revelavam a importância das escolas e seu poder de emissão de discursos As escolas de samba associações culturais com grande importância nos anos 1960 na cidade do Rio de Janeiro eram visivelmente núcleos de negros e mulatos que pela via artís tica demarcavam espaços para o que se convencionava chamar de cultura negra Mesmo com essa nítida percepção de serem as agremiações associações recreativas e culturais de origem negra as escolas de samba foram ignoradas na construção da trajetória dos movimentos negros na historiografia produzida até os dias atuais36 Ao considerarmos os enredos propostos e as letras dos sambas apresentados pelas agremiações nos anos 1960 como expressões da questão racial e combate ao racismo é possível perceber que elas desempenharam um papel relevante como instituições culturais de expressão da identidade cultural dos negros brasileiros Os conturbados anos da década de 1960 com alternân cia de tendências políticas conservadoras Jânio Quadros pro gressistas e populares João Goulart ou extremamente repres soras governos militares exacerbaram os ânimos e disputas por espaços sociais e políticos que estão presentes nas manifestações 36 Sobre os anos 1970 podemos encontrar alguns poucos exemplos como a tese de Gabriela Buscaccio sobre a GRANES QUILOMBO criada em 1976 ou parcas menções no livro de Amílcar Pereira O Mundo Negro As referências são rasas e incipien tes como no caso citado por Pereira da articulação de grupos culturais na periferia de São Paulo em torno das Escolas de samba Nenê de Vila Matilde e VaiVai Pereira Almicar Araújo O mundo negro relações raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil Rio de Janeiro PallasFAPERJ 2013 p 239 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 217 10092018 111720 218 culturais A festa carnavalesca na qual as agremiações cariocas eram no referido período seus expoentes máximos também foi campo de batalha das diversas correntes políticas que travavam seus embates na ocupação do espaço privilegiado do poder Nenhuma manifestação cultural é isenta de intenciona lidade política e as ações de aproximação mediação e conflito são instâncias recorrentes em um evento de caráter popular e com tão grande alcance como o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro Quando aponto a ausência de reconhecimento da historiografia dos movimentos negros em relação às escolas na década de 1960 procuro levantar a questão da importân cia dos enredos e sambas como instrumentos de luta e maior popularização de ações afirmativas na denúncia do racismo e na busca de igualdade social no Brasil Levando em conta o aparente predomínio dos elemen tos estéticos nos desfiles e a relação de proximidade com os agentes do Estado lembrando que os desfiles foram oficializa dos em 1935 a intelectualidade ligada ao combate ao racismo desconsiderou as agremiações como grupos que apontavam as mazelas sociais e defendiam a igualdade de direitos Provavel mente exigiam uma postura mais militante bem característica do período em análise A temática da cultura negra portanto sempre esteve presente pois mesmo quando o enredo estava embasado na his tória oficial era uma versão construída na chave da narrativa da cultura popular que estava sendo apresentada As escolas de samba dessa forma ajudaram a construir uma versão da his tória do negro no Brasil e mesmo ignoradas pela historiografia dos movimentos negros foram importantes emissoras de refle xões sobre a situação social econômica e política dos homens e mulheres negros no país EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 218 10092018 111720 219 AZUL BRANCO E NEGRO O CARNAVAL DA UNIDOS DE VILA ISABEL EM 1988 KIZOMBA A FESTA DA RAÇA1 Eduardo Pires Nunes da Silva Era madrugada do dia 16 de fevereiro de 1988 na cidade do Rio de Janeiro Nas cercanias da estátua de Zumbi dos Palmares uma escola de samba se concentrava para cantar o negro e sua história de resistência no ano do centenário da Abolição O sinal tocava e os fogos de artifício anunciavam a Unidos de Vila Isabel em noite de festa Ao dobrar a esquina da Marquês de Sapucaí com a avenida Presidente Vargas com tamanha força segundo Martinho da Vila a agremiação levava a questão negra para o centro das atenções naquele carnaval Quando a Unidos de Vila Isabel pisou no Sambódromo a população em geral não tinha se dado conta de que está vamos em pleno Centenário da Abolição da Escravatura o centenário mais importante na história do país Apro veitávamos o carnaval ocasião em que todas as atenções estavam voltadas para a passarela para emocionando as pessoas fazêlas meditar sobre a negritude brasileira Fizemos conscientemente um desfile politizado porque o grande acontecimento do ano de 1888 foi marcante para o nosso desenvolvimento político2 O despontar da Vila Isabel na Marquês de Sapucaí era apenas o desfecho da articulação de Martinho da Vila na cons trução de eventos de afirmação da negritude na segunda metade 1 Este artigo é uma versão reduzida da dissertação de mestrado de minha autoria inti tulada Azul celeste em vermelho o projeto carnavalesco de Martinho e Ruça na Unidos de Vila Isabel entre 1988 e 1990 defendida no PPGH em História Política Universidade do Estado do Rio de Janeiro 2014 2 Martinho da Vila Kizombas andanças e festanças Rio de Janeiro Record 1998 p 85 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 219 10092018 111720 220 dos anos de 1980 Ainda em 1986 durante a preparação do centenário da Abolição Martinho era voz crítica à formação da comissão que deliberava os festejos Podemos observar isso na reportagem intitulada Martinho diz que só tem brancos em fes tas de negros publicada no Jornal do Brasil em 20 de setembro de 1986 que dizia Embora estivesse encarregada de organizar a festa pela libertação dos negros no Brasil a comissão era ou é composta só por brancos3 É nesta cena social dos anos de 1980 que emerge a pro posta de carnaval da Vila Isabel em 1988 Sobre a importância do ano de 1988 Amilcar Araújo Pereira conclui o ano de 1988 foi um verdadeiro marco na histó ria do movimento negro contemporâneo no Brasil O centenário da abolição da escravatura foi considerado por diversos setores do movimento negro como o momento ideal para provocar a discussão sobre a situação do negro na sociedade brasilei ra4 grifo meu Além de Martinho outra liderança nestes projetos que vieram a culminar no desfile da Vila Isabel foi Lícia Maria Maciel Caniné popularmente conhecida como Ruça Ela era companheira de Martinho e presidente da Unidos de Vila Isabel entre 1988 e 1990 A partir da chegada do casal ao comando administrativo da Unidos de Vila Isabel foi iniciado um projeto carnavalesco pautado na biografia de ambos Isa bel Pedrosa apresentadora da autobiografia de Martinho da Vila comenta Com Kizomba festa da raça um tema essencialmente negro e político a Vila revolucionou a forma e o con teúdo dos desfiles das escolas de samba essa luminosa celebração das aspirações à transcendência e à beleza tendo à frente esse imbatível casal que será para sempre 3 Jornal do Brasil 20 de setembro de 1986 Martinho diz que só tem brancos em festas de negros Orivaldo Perin 1º caderno p 14 4 PEREIRA Amilcar Araújo O mundo negro a constituição do movimento negro contem porâneo no Brasil 19701995 2010 Tese Doutorado em História Social Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal Fluminense Niterói 2010 p 227 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 220 10092018 111720 221 reverenciado na tradição e memória do Rio Martinho e Ruça unidos pelos deuses da alegria e hoje separado pelos entrechoques da humana lida5 Este texto tem por objetivo analisar o desfile de 1988 da Vila Isabel a partir da ambiência dos anos de 1980 Aquele evento ocorrido na passarela do samba teve dois artífices princi pais Martinho e Ruça Dessas duas memórias partem as fontes deste estudo No caso de Martinho me utilizo de sua autobio grafia e de uma entrevista que realizei no ano de 2013 Já as memórias de Ruça são fruto de entrevistas realizadas em 2011 e 2012 Complementam as fontes outras entrevistas realizadas com diretores da agremiação da época além de reportagens de periódicos O carnaval do Rio de Janeiro desde muito tempo atra vés de seus enredos revelou histórias de temática afrobrasileira para a sociedade Com a efervescência política da redemocra tização os carnavais dos anos de 1980 foram ficando cada vez mais críticos e políticos na cobrança de uma nova perspectiva social A Kizomba da Vila Isabel está inscrita nesse momento do carnaval carioca e mais que narrar uma história ela se pres tou a ser um manifesto da negritude trazendo ao debate o lugar do negro na nova sociedade que se construía naquela década CONCENTRAÇÃO E realmente estamos na rua Eu fui na qualidade de componente da escola Porque ninguém queria pegar a Vila Isabel Ninguém E aí quem vai ser o presidente Ninguém queria Eu implorei a Martinho implorei a Rodolpho compositor Eu fui ao Salgueiro implorar ao Miro antigo patrono da Vila Isabel6 Com a saída da presidência de Capitão Guimarães após o carnaval de 1987 a Unidos de Vila Isabel ficaria sem local de ensaios que até então acontecia no campo do América 5 Isabel Pedrosa em Martinho da Vila Kizombas op cit p 10 6 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça Entrevista realizada na data de 20 de março de 2011 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 221 10092018 111720 222 Futebol Clube7 Com esse contratempo os ensaios para o car naval de 1988 ocorriam na rua o Boulevard 28 de Setembro Segundo Ruça em entrevista ao Jornal do Brasil de 19 de feve reiro de 1988 na reportagem intitulada Vila cansada e feliz curte a ressaca da festa esse local inicialmente causava cons trangimento nos componentes As pessoas no começo tinham vergonha de ensaiar na rua mas eu dizia que se fosse assim elas também teriam vergonha de desfilar na avenida8 Sem uma sede a escola naquele momento também tinha vago o cargo de presidente Por tal motivo foi convocada uma reunião do conselho deliberativo para decidir sobre o novo man dante da agremiação No decorrer do ano de 1987 os jornais noticiavam a mudança administrativa na escola Com o título de Martinho da Vila tenta democratizar sua escola contava a reportagem do Jornal do Brasil O compositor Martinho da Vila está à frente de uma redemocratização em sua escola de samba a Unidos de Vila Isabel iniciativa que deverá se estender nos próxi mos anos a outras agremiações Martinho que poderá assumir a presidência da escola até as eleições em abril pretende organizar o quadro de votantes incluindo as alas das baianas bateria compositores harmonia e velha guarda Até agora só têm direito a voto os membros do conselho permanente em torno de 20 pessoas composto de expresidentes e figuras expressivas na escola como o próprio Martinho Com a negativa de várias pessoas da escola para assu mir a presidência inclusive o próprio Martinho Ruça aceitou o cargo Tramando sua memória diante da construção narrativa que é intrínseca à história oral Ruça dizia que Se ninguém quer ser presidente então eu quero ser E no dia da reunião do conselho não tinha mais nenhum outro candidato e o povo do Macaco comunidade da Vila 7 Aílton Guimarães Jorge conhecido como Capitão Guimarães era presidente da Uni dos de Vila Isabel até o carnaval de 1987 e banqueiro do jogo do bicho fundador da Liga Independente das Escolas de Samba LIESA 8 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça op cit EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 222 10092018 111721 223 Isabel desceu e tomou a rua com cartazes dizendo que me queriam na presidência O conselho finalmente me elegeu E até por não ter outra pessoa não tinha outro candidato Uma pena uma pena Mas foi assim 9 O Jornal do Brasil de 4 de maio de 1987 trazia uma repor tagem em que eram mencionados os planos da presidente para a agremiação e o principal deles era reaver a quadra de ensaios A reportagem que tem por título Mulher de Martinho quer para a Vila quadra que é do América dizia Eleita por unanimidade no dia 1 de abril pelo conse lho permanente do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Vila Isabel a atual presidente Lícia Maria conhecida popularmente pelo apelido Ruça tem meta principal no seu programa conseguir junto ao governo do Estado a desapropriação da quadra de ensaios perten cente ao América Futebol Clube na Rua Barão de São Francisco 236 que foi devolvida ao clube desde o dia 16 de março10 A mesma reportagem ainda apresentava ao leitor o per fil de Ruça personagem que em menos de um ano iria estampar a capa do mesmo periódico com o título de Kizomba Casada com o compositor Martinho da Vila há quase 20 anos completará ano que vem Lícia Maria ou Ruça como é conhecida tem 40 anos um a menos do que a escola que preside É loura cabelos curtos respos tas inteligentes e uma garra que poderá muito a reaver a quadra do América Hoje ela estará nas ruas de Vila Isabel homenageando os 50 anos da morte de Noel Rosa e partindo do desfile que sua escola realizará no local Ruça teve dois filhos com Martinho da Vila Antônio João 14 da bateria da Vila Isabel e Juliana 16 que desfila desde os sete e ajudou a criar os três mais velhos do primeiro casamento do sambista que como ela mesmo diz também são meus filhos Pouca gente sabe mas há 9 Ibidem 10 Jornal do Brasil 4 de maio de 1987 Mulher de Martinho quer para a Vila quadra que é do América 1º caderno p 4b EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 223 10092018 111721 224 10 anos Ruça trabalha na direção dos shows do marido e de muitos outros artistas do Rio Em 1982 ela fez uma incursão pelo teatro quando foi assistente de direção de Nelson Xavier na peça À moda da casa com Yara Ama ral Nelson Dantas e Henriqueta Brieba Mas ela prefere dirigir espetáculos musicais e cita alguns que já dirigiu com João do Vale e Luis Carlos da Vila Atualmente ela está dirigindo o show do Martinho da Vila no Bote coteco na Rua 28 de Setembro que estreou no dia 9 de abril e ficará em cartaz até o dia 9 de maio No próximo dia 10 estará partindo para Angola na direção de uma temporada de shows de vários compositores brasileiros entre eles Martinho da Vila Roberto Ribeiro Jamelão Conjunto Samba Som Sete Eles participarão da festa anual da União dos Trabalhadores de Angola Unta incluída dentro do projeto Palanca promovido pela Taag Transportes Aéreos de Angola11 Mesmo com a vida atribulada Ruça assumiu a presi dência da escola Ela herdava uma agremiação que embora não tivesse dinheiro algum em caixa segundo Ruça também não devia nada na praça O presidente anterior Capitão Guima rães havia se retirado do cargo para assumir a presidência da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro a Liesa articulada por ele juntamente com outros banqueiros do jogo do bicho em 1984 A Liesa impunha ao carnaval carioca um modelo neoli beral que trazia o comando do evento para o círculo das escolas de samba Porém a longo prazo esse modelo efetivado pela Liesa privatizou os desfiles chegando na segunda metade de 1990 a privatizar os enredos na engenharia dos patrocínios A Liesa se constituiu no passo definitivo rumo à completa privatização dos desfiles das grandes escolas A partir dela presidida por alguns dos maiores banqueiros do jogo do bicho cariocas o relacionamento entre as grandes escolas e o poder público se processa com toda clareza em 11 Ibidem EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 224 10092018 111721 225 termos da disputa pelo controle econômico do empreendi mento turísticoempresarial em que se transformou o car naval carioca O capitão Aílton Jorge Guimarães assume seu segundo mandato na presidência da Liesa com o obje tivo explícito de privatizar definitivamente o desfile das escolas a ela associadas12 Segundo Alfredo Laufer gestor da Riotur em 1988 a Liga Independente representa o que é mais moderno no mundo do samba dando caráter profissional e altamente comercial às escolas de samba suas filiadas13 Entendo Ruça e Capitão Gui marães em pontas opostas da rede de poder pois a envergadura política investida por cada um tinha um peso discursivo que ia além da questão administrativa Seus discursos polarizavam ideologias políticas em efervescência durante aquele tempo em que se disputava a forma como se desenrolaria o processo de redemocratização no Brasil e o enredo da Vila Isabel para o ano de 1988 teria posição política bastante marcada O casal Martinho e Ruça no comando da administra ção da Unidos de Vila Isabel considerou aquele um momento fértil para se realizar o que o próprio título do enredo denomi nava de festa da raça A proposta de enredo da escola se ali nhava ao discurso do movimento negro naquele momento uma vez que este se preocupava em vez de comemorar o centenário da Abolição em problematizar aquela comemoração A repor tagem Em cima do morro veiculada na Revista de Domingo do Jornal do Brasil nos aponta para esse posicionamento da escola Nada de Princesa Isabel ou Lei Áurea A homenagem da Unidos de Vila Isabel ao centenário da abolição dos escravos materializada no enredo Kizomba Festa da Raça será prestada através da apresentação da cultura negra O continente africano berço desta cultura ocupa igual destaque no desfile idealizado por Martinho da Vila O negro continua em cima dos morros Não teria 12 CHINELLI Filipina SILVA Luiz Antônio Machado da O vazio da ordem relações políticas e organizacionais entre as escolas de samba e o jogo do bicho Revista Rio de Janeiro Rio de Janeiro n 12 p 217 2004 13 Ibidem EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 225 10092018 111721 226 sentindo louvar uma lei que não o libertou de fato justi fica o carnavalesco Milton Siqueira 33 anos14 Entretanto o desfile da Unidos de Vila Isabel era poste rior ao projeto Kizomba que transcorreu durante a década de 1980 Liderado por Martinho e Ruça Kizomba era um evento de estreitamento dos laços entre o Brasil e o continente africano que culminou em 1984 com o Primeiro Encontro Internacional de Artes Negras Esse evento ocorreu em novembro de 1984 e reuniu no Pavilhão de São Cristóvão artistas nacionais como Gilberto Gil Paulinho da Viola Dona Ivone Lara além do pró prio Martinho e recebeu delegações de países como Moçambi que Angola Cuba e Nigéria15 Entre 19 e 23 de novembro de 1986 ocorreu o 2 Encon tro Internacional de Arte Negra ocorrido na Universidade do Estado do Rio de Janeiro Uerj Mais uma vez o encontro con tou com delegações de países africanos como Moçambique Angola Zâmbia e de Cuba16 Analisando estes eventos reali zados anos antes do desfile da Unidos de Vila Isabel entendo que a construção da proposta que viria a ser o enredo de 1988 está ligada com um projeto pessoal do casal A entrevista com Martinho corrobora esse meu entendimento A cultura negra africana não chegava no Brasil Então veio o primeiro grupo que eu trouxe de artistas músi cos pra o Brasil que foi o grupo Kizomba Depois foi o canto livre de Angola E aí depois entra o Manuel Rui Aí fomos abrir um pouco mais isso Daí fizemos as Kizombas E foi assim17 grifo meu Para Martinho não existe uma Kizomba no singular e sim Kizombas no plural Segundo sua narrativa houve uma amplia ção daquele projeto pessoal e também muito plural que com o decorrer da década de 1980 foi se transformando em um pro 14 Revista de Domingo do Jornal do Brasil 9 de fevereiro de 1988 15 Jornal do Brasil 16 de novembro de 1984 As artes negras no Pavilhão de São Cristó vão Diana Aragão Caderno B p 7 16 Jornal do Brasil 20 de setembro de 1986 Martinho diz que só tem brancos em festas de negros Orivaldo Perin 1º caderno p 14 17 Entrevista realizada com Martinho da Vila Entrevista realizada na data de 10 de setembro de 2013 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 226 10092018 111721 227 jeto mais abrangente que abarcaria a agremiação de Vila Isabel A figura de Manuel Rui Monteiro citado por Martinho tinha ganhado relevância na entrevista que realizei com Ruça porque segundo ela o enredo da Vila Isabel havia partido de uma con versa entre o casal e Manuel numa viagem para Angola Viemos com o enredo Kizomba que nasceu na África foi numa conversa com um poeta romancista angolano chamado Manuel Rui Monteiro E aí que desenvolvemos aquilo fiz uma pesquisa lá Fui no Arquivo Nacional no Arquivo da Cidade nos arquivos do Rio Nas bibliotecas e trouxe muito material de postal de cartão postal de lá18 Porém como afirmou Martinho o papel de Manuel Rui Monteiro foi anterior inspirandoo a realizar o projeto Kizomba O Manuel Rui Monteiro é um poeta angolano que é meu amigo E a importância dele foi me catucar muito me forçar pra fazer Mas ele falou mas não foi em função do enredo em si Foi em função dos eventos Kizomba que eu fazia Tinha um grupo que eu criei para trazer a cultura angolana pra o Brasil E depois abrir mais um pouco e tal E aí foi que o Manuel Rui me influenciou bastante nisso aí19 Outra referência para o enredo foi a luta contra o Apar theid regime que à época ainda estava em vigência na África do Sul e o samba de enredo pedia sua extinção Quando indaguei Ruça sobre se o enredo da Vila Isabel tinha a ver com o Apar theid ela foi taxativa Ah muito claro Claro A luta pela liberdade de Nelson Mandela É a coisa de mostrar a dignidade do povo da África daqueles países na época Tudo tem sua época Hoje se fala muito em democracia mas naquela época a gente precisava muito A luta deles contra o colonialismo foi fantástico Tanto que nós saímos com todos os líde res negros fotografias em alegorias de todos os países que lutaram pela sua independência tiveram que passar 18 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça Entrevista realizada na data de 20 de março de 2011 19 Entrevista realizada com Martinho da Vila Entrevista realizada na data de 10 de setembro de 2013 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 227 10092018 111721 228 por guerrilha e aí são homenagens Naqueles homens que idealizaram pensaram comandaram as guerrilhas fren tes de libertação Em vários países você vê desde cientis tas médicos intelectuais poetas O pensamento vai muito além da cor da pele20 Desta forma a proposta do enredo extrapolava os limi tes do carnaval para se impor como proposta política na cena social de discussão acerca das questões raciais que não se restrin giam somente ao Brasil Havia uma preocupação de Martinho com a materialização do seu discurso do enredo no carnaval Segundo ele aquele enredo com uma ideia diferente deveria contar com um carnavalesco que a construísse na avenida A gente não queria na política brasileira o que estava rolando na época Inclusive eu recomendei isso aos carnavalescos e tal Que pra fazer esse enredo eu primeiro tive a ideia E como ele era uma coisa bem diferente então eu queria alguém que comprasse bem a minha ideia Então eu entrevistei vários carnavalescos Que todo carnavalesco quer fazer enredo em uma escola grande essa é a verdade Gostando do tema ou não ele quer é fazer Mas eu não que ria isso eu queria alguém que se apaixonasse muito pela ideia Conversei com vários e tal E depois apare ceu o Miltinho Siqueira que era um dos menos famosos da época Mas ele se encantou e eu vi o brilho nos olhos dele quando eu falei da ideia Então eu falei com ele essa coisa da política Era uma coisa muito internacionalizada e muito ligada a Angola principalmente mas é uma coisa mais ampla E ligada à cultura negra de maneira geral E a gente não podia não se envolver muito nesse lance da constituição da constituinte da política brasileira Não tinha como também não se envolver nisso Tanto é que tem uma frase do samba que diz Essa Kizomba é a nossa Constituição E foi assim21 grifos meus 20 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça Entrevista realizada na data de 20 de março de 2011 21 Entrevista realizada com Martinho da Vila Entrevista realizada na data de 10 de setembro de 2013 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 228 10092018 111721 229 Martinho queria que o responsável pela criação estética do desfile estivesse apaixonado pela proposta Milton Siqueira foi o escolhido para materializar aquele desfile Em entrevista ao jornal O Globo de 17 de fevereiro de 1988 assim comentou o enredo A partir do tema tive a ideia de desenvolver o enredo de uma forma revolucionária Há três anos que acho as escolas do Grupo I muito iguais e sem criatividade Todas abusavam do brilho e se esqueciam da simplicidade do samba no pé22 Milton Siqueira porém com problemas de saúde não concluiu a sua criação23 Ilvamar Magalhães e Paulo Cezar Cardoso concluíram o trabalho e conquistaram a aprovação de Ruça e Martinho Na sinopse original datilografada que se encontra no Centro de Memória da Liesa dentro dos arquivos da Vila Isabel está referenciado Alegorias figurinos e adereços Carnavalesco Milton Siqueira e logo abaixo Carnavalescos assistentes Paulo Cezar Cardoso e Ilvamar Magalhães As matrizes que sustentam a formação discursiva e que compunham a proposta de desfile da Unidos de Vila Isabel eram amplas e capilares até mesmo porque a rede em que o projeto Kizomba se estabeleceu era extensa Entendo o desfile da agre miação como parte integrante do projeto Kizomba O enredo foi desenvolvido com o passar dos anos de 1980 em meio a ampla discussão da questão racial e da constituinte sendo redi gido por Martinho e pesquisado por Ruça a partir da amizade do casal com Manuel Rui Monteiro e foi materializado por Mil ton Siqueira Ilvamar Magalhães e Paulo Cezar Cardoso Assim a sinopse de enredo era uma grande rede costurada por Marti nho da Vila Kizomba é uma palavra do Kimbundo uma das línguas da República Popular de Angola A palavra Kizomba significa encontro de pessoas que se identificam numa 22 Jornal O Globo 17 de fevereiro de 1988 Enredo fica com Miltinho da Vila Carnaval 88 p 3 23 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça Entrevista realizada na data de 20 de março de 2011 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 229 10092018 111721 230 festa de confraternização Do ritual da Kizomba fazem parte inerentes o canto a dança a comida a bebida além de conversações em reuniões e palestras que objetivam a meditação sobre problemas comuns A nossa Kizomba conclama uma meditação sobre a influência negra da cul tura universal a situação do negro no mundo a abolição da escravatura a reafirmação de ZUMBI DOS PAL MARES como símbolo de liberdade do Brasil Informa se sobre líderes revolucionários e pacifistas de outros paí ses conduzase a uma reflexão sobre a participação do negro na sociedade brasileira suas ansiedades sua reli gião e protestase contra a discriminação racial no Brasil e manifestase contra a apartheid na África do Sul ao mesmo tempo que comese bebese dançase e rezase porque acima de tudo Kizomba é uma festa a festa da raça Negra Apresentamos uma escola com características negras onde todos os sambistas são autores em desfile no Carnaval do Centenário da Abolição da Escravatura A miscigenação ficará marcada com a apresentação de um quadro denominado QUILOMBO DA DEMOCRA CIA RACIAL onde negros brancos índios caboclos e mestiços em geral estarão irmanados em desfile Foram convidados personalidades da África do Sul e da Angola países estes que participarão do evento a ser realizado em novembro de 1988 Grupos folclóricos brasileiros de outros estados que participaram das Kizombas tam bém estarão representados Os artistas e intelectuais que são considerados kizombeiros participarão do desfile no quadro KUDISSANGA KWA MAKAMBA que quer dizer ENCONTRO DE AMIGOS Paulo Brazão um dos fundadores da escola será o AbreAlas representando um SOBA o grande chefe e o desfile encerrarseá com um grupo de samba no pé logo depois do quadro que reverencia os grandes líderes tendo a frente a Ala Anti Apartheid24 24 MARTINHO da Vila Kizomba A festa da raça Sinopse de enredo da Unidos de Vila Isabel datilografado 1988 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 230 10092018 111721 231 Observandose a sinopse de enredo é possível entender que ela se diferenciava das outras propostas de enredo comuns da época pois não tinha o propósito de narrar uma história O enredo elaborado para aquele desfile tinha a missão de ser um manifesto da negritude A escola convocava o público para uma meditação sobre a influência negra e não estava preocupada em destrinchar as etapas da vida de Zumbi dos Palmares mas sim em colocálo como símbolo de resistência como o Movi mento Negro já havia feito naquela época AVENIDA Na madrugada daquela terçafeira de carnaval a sabe doria da raça negra nos deu algumas boas lições Usando apenas suas cores tradicionais suas roupas enfeites de belíssima simplicidade ignorou plumas artificiais pedra rias em excesso falsos brilhos dos paetês e fez o carnaval mais bonito de 1988 Como a princesa Isabel há 100 anos deu um irretocável exemplo de amor e integração racial de igual para igual acolheu a raça branca no seu meio Juntas fizeram um inesquecível carnaval Mostrou que quando quer a raça negra tem a força de mil revo luções Pacíficas até porque depois dessa Kizomba o desfile das escolas de samba nunca mais será o mesmo25 grifo meu O relato do crítico do jornal O Dia João Luiz de Albu querque reproduzido na autobiografia de Martinho da Vila defende o caráter excepcional daquele desfile A ausência de luxo e o caráter artesanal dos materiais usados contrastavam com os rumos empresariais que o carnaval estava ganhando até então e isso se refletia na própria estética das escolas A entre vista com Martinho esclarece Nós tínhamos alegorias esculturas de orixás feitas em outros lugares E as fantasias também não eram feitas nas empresas que pertencem à indústria do carnaval o 25 Kizombas andanças e festanças Rio de Janeiro Record 1998 p 249 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 231 10092018 111721 232 mesmo que faz a fantasia de mestresala e portaban deira de uma escola faz de outra o mesmo que faz o chapéu de uma faz a de outra Sabe Por isso fica tudo muito padronizado estava muito parecido o desfile entre uma escola e outra As bandeiras eram feitas no mesmo lugar Até a nossa bandeira a gente mandou fazer manual na Kizomba Eu peguei algumas pessoas que faziam figurinos de novelas que eram amigos meus de novelas da TV Globo e da TV Educativa e eles que trabalharam na minha própria casa no Grajaú Então foi assim Foi um projeto grande é isso Aquilo ali no duro era porque precisava mudar um pouco E de uma maneira ou de outra ele mudou26 A mudança que Martinho menciona está diretamente relacionada com o seu discurso pessoal acerca do carnaval que foi amplificado através do desfile da Vila Essa proposta de um carnaval mais simples era contrária a dos carnavais que as outras agremiações e até a própria Vila Isabel vinham realizando em anos passados Para além de um manifesto negro no ano do centenário da Abolição o desfile de 1988 também propunha a realização de um carnaval mais ligado à força do enredo e uma estética não baseada no luxo A estética da escola era rústica o que se coadunava com a situação financeira da escola A escola abdicou dos materiais usuais de carnaval como espelhos paetês e fitas metalizadas em favor da palha feltro corda e barro Compondo o visual africano muito tecido estampado Para compensar o pouco brilho a escola virá multicolorida avisa o carnavalesco A Vila vem se preparando para este carnaval há seis meses mas um imprevisto obrigoua a gastar apenas CZ 15 milhões com o desfile Despejada de sua quadra ela perdeu uma das principais fontes de renda das escolas os ensaios27 A proposta estética de desfile passava pela utilização de uma pobreza propositada o que causava estranheza nas pessoas que passavam pelo barracão da escola Ruça define que a esté 26 Entrevista realizada com Martinho da Vila op cit 27 Revista de Domingo do Jornal do Brasil 9 de fevereiro de 1988 Em cima do morro p 11 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 232 10092018 111721 233 tica era referente ao tosco o que num universo carnavalesco habituado ao luxo causava estranheza Os carnavalescos em geral terminam a criação das alegorias no local de concentração dos desfiles num processo conhecido como arte final Segundo a entrevista de Ruça a escola em 1988 usou esse recurso em excesso para conferir o caráter surpreendente do desfile Ela narra Nós queríamos pegar de surpresa mesmo as pessoas que visitavam o barracão comentavam Tadinha da Vila28 Porém o sucesso daquele desfile de proposta estética inovadora inclusive ao conquistar o campeonato causava efeito sobre os carnavais das outras agremiações No carnaval do ano seguinte a outrora luxuosa BeijaFlor de Nilópolis realizou o enredo Ratos e urubus larguem a minha fantasia na cria ção de Joãosinho Trinta Para Martinho da Vila o desfile de 1988 havia mudado a cabeça e o discurso do Joãosinho Trinta levandoo a trocar no ano seguinte o luxo reluzente pelo lixo deslumbrante29 conforme diz em entrevista no ano seguinte a BeijaFlor apresentou o enredo dos ratos e urubus risos Que foi o seguinte o Aní sio patrono da BeijaFlor ficou bastante chateado com aquele enredo com a forma que era outra e falou ano que vem falo com o Joãosinho pra fazer tudo de lixo E o Joãosinho inteligentemente inventou essa história de ratos e urubus larguem minha fantasia E fez umas fantasias de muita criatividade era um lado dentro do padrão que estava andando que estava sendo usado e o outro dentro de um padrão rústico que nós usamos na Kizomba Kizomba teve uma influência total no enredo do Joãosinho30 Ruça reafirma a fala de Martinho ao contar sobre os bastidores daqueles carnavais O Anísio chegou a dizer que era só colocar uma gali nha de macumba na avenida que ganhava o carnaval 28 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça op cit 2011 29 MARTINHO da Vila Kizombas andanças e festanças Rio de Janeiro Record 1998 p 248 30 Entrevista realizada com Martinho da Vila op cit EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 233 10092018 111721 234 Foi assim que a Unidos de Vila Isabel ganhou Então agora vamos botar rato e urubu porque se aquela por caria ganhou nós vamos ganhar também com esta porcaria Isto nós ouvimos nos bastidores O próprio Martinho ouviu Então deduzir o que ele disse é fácil Deduziu ele ouviu E como ele é elegante muito mais do que eu até porque é um gênio Ah Martinho é um gênio E ele é elegante Ele diz de outra maneira ele diz delicadamente Eu não como eu sou panfletária eu já escracho logo31 Além de uma estética inovadora os símbolos trazidos naquele desfile eram vigorosos Para escapar de uma narrativa linear o enredo contava com ícones que permitiam o entendimento do enredo como um manifesto A figura principal era Zumbi dos Palmares cantado na letra do samba de enredo em tom de agrade cimento Valeu Zumbi O grito forte dos Palmares Que cor reu terra céus e mares Influenciando a abolição Zumbi valeu Hoje a Vila é Kizomba32 A reportagem intitulada O ano da raça no Jornal do Brasil de 17 de fevereiro de 1988 aponta a cen tralidade que a figura de Zumbi tinha no enredo Sem príncipes e princesas sem lei sem ouro a Vila can tou a cultura negra A África o quilombo o folclore a quizomba E Zumbi parecia estar ali na avenida com a escola Lutando pela redenção que a Vila Isabel procura há tanto tempo no carnaval33 Em entrevista Ruça define Zumbi como um arqué tipo de democracia e liberdade para a proposta que segundo o enredo era celebrar a democracia racial e reclamar liberdade Zumbi pra mim assim é o grande herói da História do Brasil Porque ele abrigou no seu quilombo não só os negros mas os brancos e os índios fugidos do poder constituído na época Então era uma democracia ele 31 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça op cit 2011 32 Samba de enredo da Unidos de Vila Isabel de 1988 Compositores Rodolpho Jonas e Luiz Carlos da Vila 33 Jornal do Brasil 17 de fevereiro de 1988 O ano da raça O samba protestou na avenida por um país mais sério e pela liberdade que a abolição não deu Elizabeth Carvalho e Luiz Antonio Nascimento Carnaval p1 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 234 10092018 111721 235 durante o desfile foi mostrado como um símbolo de luta pela liberdade o foco era esse a luta pela liberdade34 A historiadora Mariza de Carvalho Soares ao ana lisar a construção do monumento a Zumbi nas cercanias da avenida Marquês de Sapucaí nos mostra que ele na grande imprensa já aparece como um monumento da raça negra e associado ao carnaval35 Soares ressalta as ligações de Marti nho da Vila com a figura de Zumbi desde 1984 ocasião do já citado projeto Kizomba Nesta data 20 de Novembro é comemorado o Dia Nacional da Consciência Negra com o Kizomba um grande show organizado pelo compositor negro Martinho da Vila na Praça da Apoteose Na ocasião a revista Isto É publica uma reportagem sob a rubrica negritude com o seguinte título No brilho da cor Festas no Rio e São Paulo celebram Zumbi36 É importante discutir os usos da figura histórica de Zumbi naquele desfile Não era interesse da proposta de des file narrar sua biografia e sim mostrálo como liderança de uma resistência João José Reis e Eduardo Silva ao pesquisarem a resistência negra no Brasil escravista identificam que uma par cela da historiografia reproduzia a imagem do escravo mitifi cada e polarizada entre um cativo submisso semelhante à figura de Pai João e um cativo rebelde semelhante à figura de Zum bi37 defendendo a noção de um escravo que negocia Porém a imagem que a Vila Isabel mostrou naquele desfile era a de um Zumbi rebelde já que esta era a imagem mais interessante para os fins do manifesto proposto em enredo Outro aspecto importante do desfile foi a comissão de frente que representava guerreiros africanos Descrevia o Jornal do Brasil em 17 de fevereiro de 1988 Na Comissão de Frente 34 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça op cit 2011 35 SOARES Mariza de Carvalho Nos atalhos da memória In KNAUSS Paulo Org A cidade vaidosa imagens urbanas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Sette Letras 1999 vol 1 p 119 36 Ibidem 37 REIS João José SILVA Eduardo Negociação e conflito a resistência negra no Brasil escravista São Paulo Companhia das Letras 1989 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 235 10092018 111721 236 negros descalços palhas colorindo o corpo lanças nas mãos38 A entrevista de Ruça apresenta os bastidores dessa comissão de frente em um imprevisto que teve de ser compensado com a eficácia do seu discurso Aí um desastre Qual foi o desastre É Não tem Não chegaram os sapatos da comissão de frente Eu botei a mão na cabeça Os sapatos da comissão de frente Meu deus não chegaram os sapatos da comis são de frente Que eram uma coisa bem rústica Um solado com uma coisa trançada Enfim o responsável disse assim Ruça eu não vou mentir pra você Eu Não calma vai chegar Ele Não vou mentir pra você Eu esqueci de mandar fazer Eu falei Ah é Ah é o que Vocês já foram à África Ninguém aqui já foi Eu nunca vi negão lá nos kimbus são kimbus né eles chamam de kimbus as aldeias Nunca vi ninguém nos kimbus de calçado É tudo des calço pô Onde já se viu sapato na comissão de frente representando guerreiro africano É de pé no chão pô Rapaz eles personificaram os guerreiros eles entra ram Descalços39 Há uma coesão em todo o discurso que costura o sentido do desfile Segundo esse discurso embora houvesse eventuali dades a força da proposta de enredo era superior aos contra tempos Outro percalço narrado por Ruça era sobre a ala das mumuilas que faziam referência a tribos do interior da África Você vê que aquela ala de Mumuila de Kizomba todo mundo jurava e tem gente até hoje acredita que era uma ala de africanas Não era Eram mulheres do Macaco 38 MEDEIROS Alexandre Ousadia marca festa pela paz entre as raças Jornal do Brasil 17 de fevereiro de 1988 Cidade p 6 39 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça op cit 2011 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 236 10092018 111721 237 do São Carlos do Salgueiro Tinham mulheres de tudo quanto é favela Tinha mulher do asfalto também negra De peito de fora que eu tive que convencer primeiro a elas mesmas e depois os maridos ou namorados ou pai e mãe Eu tive que dar uma aula de história da tribo o que representava naquele momento Que momento represen tava da vida de uma Mumuila da tribo dos Mumuilas Foi muito difícil então Por isso passou verdade Eles sabiam tudo sobre a tribo todos os momentos Porque elas se vestem a cada momento da vida Tem um tipo de roupa E sempre com o peito nu Assim é que se vive nos Kimbus na África Nos centros brancos não que aí já põe ou uma roupa ocidental ou um pano Mas nos Kimbus nas aldeias no interior é daquele jeito É com o peito de fora É a cultura africana gente 40 grifo meu Segundo a fala de Ruça mais que apenas vestir uma fantasia os desfilantes deveriam compreender o que vestiam para poder passar o que ela denomina de verdade Dessa forma o discurso de Ruça propõe que o enredo deveria estar integrado com o desfilante corroborando o sentido de autoria coletiva proposta na sinopse de enredo Essa noção de coletividade também era referente ao samba de enredo escolhido Na entrevista Ruça diz que o samba ganhador não era o seu preferido pois o seu escolhido era mais panfletário Porém o que ganhou a disputa foi aquele que segundo ela a maioria queria Todo mundo achava que o samba tinha que ser o do Luiz do Jonas e do Rodolpho Todos os jurados Todos Porque nós mostramos nós tivemos o trabalho de mostrar essas fitas ao juntarmos grupos de pessoas intelectuais jornalistas de gente que entendia de samba pra ouvir E todo mundo apon tava esse Esse samba que ganhou E realmente ganhou41 O samba vencedor cantava o enredo de forma poé tica deixando as palavras de ordem da sinopse menos duras 40 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça op cit 2013 41 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça op cit 2011 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 237 10092018 111721 238 Durante a entrevista Ruça contou que falava aos compositores que o teto que cobria a agremiação em seus ensaios era a lua a mesma que segundo ela brilhava em Luanda Dessa forma o samba vencedor alude à luta pelo local de ensaios Vem a Lua de Luanda Para iluminar a rua Nossa sede é nossa sede De que o Apartheid se destrua42 O desfile da agremiação congregou grupos ligados ao tema porém que não pertenciam aos quadros da escola É ressal tado na sinopse de enredo que grupos folclóricos brasileiros de outros Estados que participaram das Kizombas também estarão representados43 Em entrevista Ruça explica Eu eu convidei os blocos Os grupos afros por exemplo Aqui no Rio os Filhos de Dan os filhos de Gandhi Cada um com a sua roupa mesmo no carnaval daquele ano Da Bahia trouxe o Ileaê o Olodum44 Analimar filha de Martinho em entrevista ressalta a vinda de grupos da Congada do Espírito Santo para o desfile A Congada do Espírito Santo o pessoal do Espírito Santo era o pessoal do interior Não é a nata do Espí rito Santo que desfilou Não Foi um grupo que veio do interior que nunca tinha desfilado na vida E que nunca tinha estado na passarela do samba E no Espírito Santo tem carnaval A Congada do Espírito Santo que veio45 A reportagem da coluna Informe JB de 13 de fevereiro de 1988 falava sobre a vinda de grupos africanos para o desfile A Escola de Samba Unidos de Vila Isabel recebe hoje as delegações de Angola Moçambique Namíbia e África do Sul Virão representantes da Swapo Organização do Povo Do Sudoeste Africano e da ANC O Congresso Nacional Africano para assistir ao desfile do enredo Kizomba a festa da raça46 42 Samba de enredo da Unidos de Vila Isabel de 1988 Compositores Rodolpho Jonas e Luiz Carlos da Vila 43 MARTINHO da Vila Kizomba A festa da raça Sinopse de enredo da Unidos de Vila Isabel datilografado 1988 44 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça op cit 2012 45 Entrevista realizada com Analimar Ventapane Entrevista realizada na data de 14 de abril de 2011 46 Jornal do Brasil 13 de fevereiro de 1988 Informe JB 1º caderno p 6 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 238 10092018 111721 239 A mesma coluna do Jornal do Brasil dias depois infor mava a logística realizada para a Swapo desfilar na Unidos de Vila Isabel Por questão de Segurança os representantes da Swapo Organização Popular do Sudoeste Africano que desfi laram na escola de samba Unidos de Vila Isabel vieram espalhados pelas alas Como se sabe a Swapo fun dada em 1960 é o movimento de libertação popular na Namíbia que enfrenta os racistas da África do Sul com arma na mão47 A coletividade daquela apresentação também era exposta na parte final do desfile em que um banquete foi servido aos componentes do desfile em uma grande alegoria O ajeum cantado no samba de enredo no léxico do candomblé significa banquete e demonstra a lógica afrobrasileira do compartilha mento O banquete havia sido realizado por Dona Filomena a quem Ruça denomina de cozinheira oficial da escola Em entrevista com Dona Filomena ela conta como surgiu a ideia daquele banquete e como foi realizado Na senzala quando os negros se juntavam ele pegava aquelas tábuas e colocavam toalha de saco com atabaque batendo Aqueles pés de porco galinha que o Senhor dava pra eles comerem fruta embrulhava aquilo tudo Doce de moranga melado com queijo branco aquelas cocadas e doce de mamão Martinho disse Comadre tem que ter isso tudo Eu disse Consulta Angola Angola respondeu Mas claro que tem que ter Que festa é essa que ninguém come Festa que é festa seca Amigo criou polêmica com Anísio Abrãao David Primeira vez que uma escola passa com comida verdadeira Que eu falei com o Martinho que ia colocar o seguinte fei joada farinha de milho farinha de beiju galinha do lado caldinho pra misturar e comer com a galinha Mais na frente muito frango assado galinha assada Muito frango assado na mesa 120 frangos na mesa Mesa 47 Jornal do Brasil 17 de fevereiro de 1988 1º caderno p 6 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 239 10092018 111721 240 de três metros e três de largura para encher de comida 120 frangos naquelas gamelas redondas As panelas foram para mesa com comida com arroz com farofa com feijoada angu à baiana pegamos miúdo de porco para colocar no angu Aí fui colocando na mesa xinxim de galinha vatapá caruru bobó de camarão tudo na mesa Eu tenho as panelas aí até hoje e a colher de pau que eu mexi Minha colher de pau é campeã Foram quatro porcos com a maçã na boca dois na frente da mesa dois no final e ainda teve os leitões assados Duas cascatas de frutas com cinco mil frutas Ficamos descascando camarão até altas horas os compositores da Vila Isabel foram para a minha casa ajudar Quando deu quatro horas da tarde encostou um caminhãobaú para pegar tudo e montar na mesa A mesa veio fechando o desfile em homenagem ao Martin Luther King a todos os negros de fora e brasileiros48 A fartura daquela alegoriabanquete marcava a proposta coletiva daquele desfile e corroborava a sinopse de enredo que demarcava ao mesmo tempo que comese bebese dançase e rezase porque acima de tudo Kizomba é uma festa a festa da raça Negra49 Ainda na entrevista Dona Filomena conta que debaixo de cada alegoria foi colocado um tipo de comida para cada orixá Sobre esse pedido de permissão aos orixás Ruça conta Primeiro eu tava falando dos meus antepassados A África Meus antepassados Então eu não podia falar num enredo desse na Avenida sem alimentar os antepas sados e que nós chamamos de eguns Então foram feitas oferendas antes de ir pra Avenida E pra todos os ori xás Nós levamos um carro com os orixás Então todos receberam sua oferenda E nós pedimos permissão pra levarmos esse enredo pra Avenida Pedimos ao astral essa permissão50 48 Entrevista realizada com Filomena Martins Silva Entrevista realizada na data de 19 de maio de 2013 49 MARTINHO da Vila Kizomba A festa da raça Sinopse de enredo da Unidos de Vila Isabel datilografado 1988 50 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça op cit 2011 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 240 10092018 111721 241 A cosmologia do candomblé está imbricada no caráter de sustento e na simbologia dos animais principalmente em seu símbolo focal a galinha dangola51 A partir daí podemos entender o porquê daquele desfile ter de alimentar os orixás Ruça continua Tanto que na concentração da escola montando a arte final começou a chover eu me ajoelhei no chão Eu falei se chover vai acabar com a escola Eu me ajoelhei e saudei Tempo é um orixá de Angola da nação de Angola E falei com ele se eu merecer sou sua filha Se eu merecer bem deixar cair a água em cima da minha escola Mas se eu não merecer pára como essa água agora Deixa minha escola passar E aí parou de chover Não choveu mais até a Vila terminar Quando a Mangueira entrou na Avenida desabou o aguaceiro Coincidência Eu não acho Coinci dência pra mim não existe Eu acho que foi o meu pedido Tanto sacrifício que todos nós tivemos e aí uma chuva vai acabar com todo o trabalho É cruel demais Mas ia acabar mesmo porque era tudo muito frágil52 A narrativa de Ruça contempla a noção de sacrifício que segundo Arno Vogel Marco Mello e José de Barros é a pedra angular da piedade afrobrasileira Sacrifício esse narrado por Ruça quando disse ter se ajoelhado no chão num gesto comum aos rituais religiosos APOTEOSE Pra mim era importante a escola entrar na Avenida Era botar as alegorias mestresala e portabandeira ala das baianas bateria Se eu pusesse isso na Avenida a escola já estaria Nem que fosse só passar A escola tinha que estar representada aí53 51 VOGUEL Arno MELLO Marco Antônio da Silva BARROS José Flávio Pessoa de Galinha DAngola iniciação e identidade na cultura afrobrasileira Rio de Janeiro Pallas 2007 52 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça op cit 2011 53 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça op cit 2012 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 241 10092018 111721 242 A narrativa de Ruça demonstra uma preocupação com a realização do desfile Em entrevista anterior ela narrou o caos da área de concentração que deu lugar à ordem quando a agre miação entrou na passarela Tinha corrido a escola toda tentando armar a escola com a harmonia E a escola não se armava na concentração Impressionante Eu não sei como ela entrou armada Ela entrou armada direitinho Milagre Milagre E eu sei lá é uma das coisas que eu não sei explicar Porque eu dizia assim Caramba não vamos conseguir Caramba Olha cinco minutos pra entrar Vai entrar vai entrar vai entrar E aí seja o que deus quiser Tem alegoria tem baiana tem bateria tem mestre sala e porta bandeira A escola está aí O resto E entraram direitinho perfeito impressionante54 grifo meu O que Ruça considerou milagre ao colocar a escola na avenida legitima sua narrativa como gestora Essa sua fala dá a per ceber que via aquele momento como proeza sustentando a ideia de que aquela administração guardava um outro discurso até mesmo não tão preocupado com o resultado oficial Porém esse raciocínio é falacioso porque a vitória do júri oficial foi procurada Na repor tagem Ruça a grande campeã do jornal O Globo de 18 de feve reiro de 1988 a presidente afirmou em entrevista Desde o início eu sabia que nós íamos ganhar diz Ruça antes da apuração mas construindo a frase como se o resultado já tivesse sido divulgado55 Outro fator componente para essa estruturação narra tiva de Ruça era o elemento surpresa que aquele desfile causava Quando a escola entrou mesmo eu no meio dela andando e vendo olhando o povo e vendo o povo chorar E com ponente chorando E aí até que vi a imprensa andando no meio chorando Quando eu vi um jornalista homem chorando dentro da avenida Eu já estava arrasada falei assim 54 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça op cit 2011 55 Jornal O Globo 18 de fevereiro de 1988 Ruça a grande campeã EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 242 10092018 111721 243 Acabei com a escola fiz uma M da minha escola Tá todo mundo com pena chorando de pena da Vila Isabel E aí eu peguei o jornalista assim pela camisa e falei Tá chorando fala Tá chorando porque Aí ele não conseguia falar Ruça Ruça Aí eu o sacudia Fala porra O que é isso Tá tão ruim assim Eu aca bei com a minha escola Aí ele disse assim Não Ruça Não tá vendo o povo tá chorando Eu Mas de que porra Tá tão ruim Aí ele Não de emoção De emoção Ruça Tá lindo que isso Eu Ah então fora E sai de dentro da escola que você tá atrapalhando56 A ideia de que o título era algo improvável fica inerente nas falas da presidente o que torna o campeonato um feito na sua estruturação narrativa Segundo ela Aquela vitória da Kizomba foi demais Eu não imaginava que podia ganhar De verdade57 Ruça percebeu que aquele tinha sido um desfile de sucesso quando ela deixou a passarela Quando eu saí o povo lá da dispersão estava olhando na rua tinha as barracas com as televisõezinhas E eu dizia assim Ué é campeã E todo mundo me saudando É Campeã A Vila é Campeã E foi a campeã do povo E saiu no dia seguinte no jornal Povo aclama Vila Isabel como campeã Campeã do povo Vila Isabel como campeã do povo e tal Aí eu falei Ah então o negócio tá bom Ganhei o carnaval né Ganhei pois se o povo gostou58 Porém não só a presidente elogiava aquele desfile A mídia e a crítica especializada também celebravam aquela apre 56 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça op cit 2011 57 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça op cit 2012 58 Entrevista realizada com Lícia Maria Maciel Caniné Ruça op cit 2011 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 243 10092018 111721 244 sentação A reportagem Vila a favorita do povo ganha 5 estan dartes do jornal O Globo de 17 de fevereiro de 1988 descrevia O júri do Estandarte de Ouro do GLOBO deu à Vila o maior número de prêmios cinco Na luta pelo título a Vila é forte candidata ao lado de Salgueiro Estácio de Sá Tradição Mangueira Caprichosos e BeijaFlor Além do Estandarte de melhor escola a Vila ganhou os Estandartes de Ouro de melhores enredo Kizomba a festa de uma raça sambaenredo de Rodolpho Jonas e Luís Carlos da Vila bateria e ala infantil 280 crian ças do Morro dos Macacos59 O comentário do júri do Estandarte de Ouro também reforça o sucesso da apresentação Albino Pinheiro comenta o desfile também sublinhando a ideia de milagre O Rio de Janeiro foi mais Rio de Janeiro graças ao desempenho da Vila Isabel Só o reencontro da escola depois de tantas e tamanhas dificuldades já caracterizaria um milagre carioca E em certo momento sentimos que o Rio de Janeiro ressurgia junto com a Vila Isabel por que era um novo encontro desta cidade com sua cultura que vem sendo sufocada de várias maneiras Acrescentese ainda em favor da campeã do Estandarte de Ouro ela provou pela primeira vez que se pode fazer um desfile apoiado na comunidade ligada à escola sem depender de eventual patrono É bem verdade que o merchandising a parcela na venda de ingressos e do disco e a participação na cota de transmissão pela televisão permitiram uma bela receita Mas a Vila se satisfez com isso não teve patronos e venceu Foi uma lição no desfile desse ano60 grifo meu Apesar de toda a especulação após o desfile da escola a confirmação do resultado somente veio à tardinha do dia 17 de fevereiro de 1988 no ginásio do Maracanãzinho Em autobio grafia Martinho conta 59 Jornal O Globo 17 de fevereiro de 1988 Vila a favorita do povo ganha 5 estandartes 60 Ibidem EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 244 10092018 111721 245 Às 15 horas o Maracanãzinho já estava lotado Até aí eu estava calmo Só fiquei nervoso quando a Ruça saiu com seu garboso uniforme do grupo Kizomba Estava linda e serena Parecia uma rainha africana apesar de sua pele branca Sei que ela estava nervosa mas não transparecia Deilhe um doce beijo e as recomendações Vai presi denta Cuidado com a imprensa Eles vão te infernizar muito dormia a sono solto em dia tão tenso quando o Tunico seu filho bateu à porta do meu quarto Dei de cara com ele de olhos arregalados Pai estamos na frente Falta muito Só um envelope e estou que não aguento Vou ter um troço Quero ficar aqui com você A BeijaFlor também ameaça mas ou vai dar nós ou a Manga Dei um pulo e fomos pra sala Todo mundo tenso Vai ser anunciado o ponto decisivo Respirações ofegantes Deu Vila Gritos e abraços Todo mundo pulando A casa parece balançar Só então fui ver pela tevê a festa da turma de Noel Rosa no Maracanãzinho Me lembrei de antigos fundadores e outros batalhadores que morreram sem viver este momento e os imaginei abraçados e chorando lá no céu comemorando com Noel e em pleno carnaval fiz o sinal dacruz agradecido61 Já o comportamento de Ruça no local da apuração ao ganhar o campeonato era descrito pelo jornal O Globo de 18 de fevereiro de 1988 Numa explosão emocionada pulando e com os braços levantados dando socos no ar a Presidente da Vila Isabel Lícia Maria Maciel Caniné a Ruça de 41 anos de idade e 20 na escola ao ouvir uma nota 8 para a Man gueira não mais se controlou ontem no Maracanãzinho unindo sua voz rouca à da estridente e empolgada torcida da escola Foi justamente aí que mais relaxada já con fiante na vitória a vaidade feminina aflorou tão forte como seu orgulho de ser a primeira mulher presidente de uma escola de primeiro grupo a chegar ao campeonato E ajei 61 MARTINHO da Vila Kizombas andanças e festanças Rio de Janeiro Record 1998 p 241243 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 245 10092018 111721 246 tando os cabelos e o lenço laranja enrolado na testa pediu a uma amiga Me passe o espelho Com a maquiagem refeita para o anúncio oficial da campeã do carnaval de 88 Ruça tinha um sorriso gigantesco e gritava Valeu Zumbi Esta é a festa das raças Com os olhos lacrimejantes ela pulou do tablado onde assistia à apuração ao lado do VicePresidente de Finanças da escola Djalma Cachimbo e saiu correndo em direção à torcida que a carregou nos braços vitoriosa Sou mesmo a primeira mulher campeã Vale destacar a valentia das mulheres a força a determi nação disse ela que pouco antes havia denunciado que a Vila este ano sofreu boicote sem patrocinador ganhando o Carnaval com um gasto de apenas CZ 14 milhões62 A apoteose da Vila Isabel naquele carnaval com o cam peonato no centenário da Abolição ultrapassou os limites da festa momesca Inseriuse no quadro de lutas políticas que em fins da década de 1980 discutia a nova Constituinte e o lugar das questões afrobrasileiras nesse documento Dessa forma podemos entender a capacidade política da festa que para além de celebrar também questiona e exerce crítica no meio social Os enredos como mensagem das agremiações podem resgatar histórias e debates adormecidos na sociedade O carna val do Rio de Janeiro desde seu início revelou ao público histórias relativas à cultura negra Mas com o tempo e o crescimento esté tico dos desfiles os enredos se tornaram cada vez mais dependen tes do luxo que se sobrepôs às suas mensagens A própria constru ção da passarela de desfiles em 1984 verticalizou as apresentações contribuindo para que o aspecto visual ofuscasse os enredos O desfile da Vila Isabel de 1988 foi uma novidade naquele tempo do imperativo do luxo exatamente porque a mensagem de enredo era o grande destaque do desfile A agremiação soube captar a cena social da redemocratização e o centenário da Abolição para recolocar a mensagem de enredo como protagonista da festa Através da vitrine do carnaval carioca a cultura negra foi home nageada pela via crítica em dia de festa A Kizomba da Vila tingiu a azul e branca da Zona Norte de negro 62 Jornal O Globo de 18 de fevereiro de 1988 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 246 10092018 111721 PARTE III PATRIMÔNIOS NEGROS EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 247 10092018 111721 248 SOCIABILIDADE RELIGIOSA E MESTIÇAGEM A FORMAÇÃO DAS IRMANDADES DE PARDOS NO RIO DE JANEIRO COLONIAL Larissa Viana Desde o início do século XX uma abordagem pioneira na história dos negros no mundo atlântico tem se dedicado inten samente a narrar debater e analisar os modos como os escravi zados e seus descendentes pensavam agiam e transformavam as sociedades em que viviam1 O desafio legado aos historiadores que tratam desta temática nunca foi pequeno pois o Atlântico Negro era e ainda é um mundo vasto complexo marcado pela diversidade Do interior do continente ao litoral africano do tráfico negreiro às sociedades americanas e daí às mais diversas áreas europeias muitos foram os caminhos trilhados por homens e mulheres marcados pela experiência da escravidão Neste texto pretendo abordar a formação das irmandades religiosas no con texto escravista considerando especificamente a criação de tais instituições no Rio de Janeiro colonial O objetivo central é explo rar traços da convivência no interior das irmandades visando compreender aspectos das identidades de homens e mulheres que buscaram construir seus laços religiosos nesses espaços Em meio à diversidade das experiências escravistas nas Américas observase um rico circuito de trocas na vida religiosa nas expressões musicais nas formas de rebelarse e de condu zir negociações da vida cotidiana sob os limites do cativeiro ou diante das imposições do racismo Nas últimas décadas antro pólogos e historiadores têm fornecido novos caminhos para pen sarmos nas expressões culturais originadas neste espaço que o 1 Para aprofundarse nesta temática consultar especialmente Dubois Laurent SCOTT Julius S Origins of the Black Atlantic New YorkLondon Routledge 2010 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 248 10092018 111722 249 sociólogo britânico Paul Gilroy chamou de Atlântico Negro Para Gilroy a arte em suas diferentes formas tornouse a espi nha dorsal das culturas políticas dos escravos que viveram na AfroAmérica expressa através da mistura de ideias que carac terizou os contatos e interações entre pessoas de diferentes ori gens e etnias O estudo dessas manifestações culturais advertiu Gilroy conduz à delicada tarefa de criar hipóteses sobre a mes tiçagem e a hibridez recusando as abordagens centradas apenas na ideia da sobrevivência das culturas africanas na diáspora2 Em trabalho menos recente mas igualmente inovador os antropólogos norteamericanos Sidney Mintz e Richard Price já haviam sugerido que os escravos certamente sentiam falta dos laços sociais experimentados em suas comunidades de origem inevitavelmente desfeitos diante da ruptura causada pelo tráfico e pela escravidão Uma vez rompidos esses laços as comunida des afroamericanas organizaramse com base em recordações do passado porém já mais ou menos modificadas pelas inte rações necessidades e imposições derivadas das experiências negras no Novo Mundo3 O catolicismo constitui um universo privilegiado para a observação desta dinâmica relação entre o antigo e o novo no universo escravista americano Em diferentes contextos colo niais conformados pela ocupação de portugueses espanhóis 2 GILROY Paul O Atlântico negro modernidade e dupla consciência São Paulo Editora 34 2001 3 MINTZ Sidney PRICE Richard O nascimento da cultura afroamericana uma perspec tiva antropológica Rio de Janeiro PallasUniversidade Cândido Mendes 2003 Sobre a temática do Atlântico Negro consultar também dentre outros THOMPSON Robert Farris Flash of the spirit african and afroamerican art and philosophy New York Vin tage Books 1984 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 249 10092018 111722 250 franceses e até mesmo ingleses4 é notável a regularidade com que se formaram irmandades leigas aquelas cujos membros não eram do clero organizadas por africanos e seus descenden tes Podese afirmar talvez sem grande risco que as irmanda des foram por excelência instituições do Atlântico Negro Por diferentes razões tanto espirituais quanto materiais homens e mulheres submetidos às pressões da escravidão ou vivendo livres buscaram nessas associações um modo de convivência comunitária pautado pelas experiências religiosas A participação de escravizados e negros livres nos cultos católicos sempre foi motivo de debate no campo da História e das Ciências Sociais No Brasil visões clássicas sobre o tema como a proposta pelo médico e etnologista baiano Nina Rodrigues ainda em fins do século XIX indicavam a noção de ilusão da catequese5 Ilusão pois se admitia que os africanos abraçavam o catolicismo de modo apenas superficial e portanto os chamados crioulos e mestiços seus descendentes herdariam uma postura semelhante fundindo as crenças africanas ao catolicismo Atualmente novas interpretações sobre a vida religiosa no Atlântico Negro nos permitem refinar antigos conceitos A ideia de catolicismo africano apresentada nos trabalhos dos historiadores Mary Karasch e John Thornton6 entre outros é uma referência importante para este debate Ora todo um con junto de práticas saberes e memórias religiosas atravessaram o Atlântico e aqui foram revividos e modificados de acordo com 4 Para citar alguns exemplos indico trabalhos sobre as confrarias religiosas em diversos espaços do Atlântico Negro GERMETEN Nicole von Black Brotherhoods in Mexico City In CAÑIZARESESGUERRA Jorge CHILDS Matt SIDBURY James Ed The Black Urban Atlantic in the Age of Slave Trade Philadelphia University of Pennsylva nia Press 2013 p 248268 SWEET James The Hidden Histories of African Lisbon In CAÑIZARESESGUERRA Jorge CHILDS Matt D SIDBURY James Ed The Black Urban Atlantic in the Age of the Slave Trade Sl University of Pennsylvania Press p 233247 CLARK Emily GOULD Virginia Meacham The Feminine Face of Afro Catholicism in New Orleans 17271852 In DUBOIS Laurent SCOTT Julius S Ori gins of the Black Atlantic p 159192 COPELAND M Shawn Ed Uncommon Faithfulness The Black Catholic Experience New York Orbis Books 2009 5 RODRIGUES Nina O animismo fetichista dos negros baianos Rio de Janeiro FBNUFRJ 2006 6 KARASCH Mary A vida dos escravos no Rio de Janeiro São Paulo Companhia das Letras 2000 THORNTON John A África e os africanos na formação do mundo Atlântico 14001800 Rio de Janeiro CampusElsevier 2004 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 250 10092018 111722 251 as condições próprias do cativeiro Muitas pessoas que compar tilhavam tais memórias foram atraídas também por rituais e modos de vida religiosa cristã o que não significa que os viven ciassem de forma ilusória ou superficial Conhecer um pouco da história das irmandades é uma boa maneira de refletir sobre a relação entre os negros e o catolicismo colonial sob uma perspectiva renovada Lem brando as palavras de um conhecido historiador brasileiro o baiano João José Reis as irmandades podem ter sido ideali zadas pelos brancos como um mecanismo de domesticação do espírito africano No entanto através da africanização da religião dos senhores os negros transformaram esses espaços em instrumentos de identidade solidariedade e coesão grupal fundamentais diante da desagregação causada pela experiên cia da escravidão7 Para abordar este tema gostaria inicialmente de tratar do processo de formação das irmandades no Brasil colonial estreitando em seguida a análise sobre o caso das irmandades de pardos no Rio de Janeiro Esta é uma opção possível na abordagem do Atlântico Negro enfocar o contexto local em meio à dimensão mais ampla e altamente conectada do mundo atlântico O segundo aspecto que pretendo discutir é o provável impacto desta discussão nas salas de aula contemporâneas Afi nal quem eram os pardos do Brasil colonial Em que medida esta discussão nos aproxima da temática da mestiçagem tão central na cultura histórica nacional Com que argumentos poderiam os professores abordar as polêmicas da mestiçagem nos dias de hoje AS IRMANDADES NO BRASIL ESCRAVISTA As irmandades eram associações religiosas que promo viam a reunião de seus membros de modo relativamente autô nomo Espalhadas por diversas áreas do Brasil escravista desde 7 REIS João J Identidade e diversidade étnica nas irmandades negras no tempo da escravidão Tempo Rio de Janeiro v 2 n 3 p 733 1997 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 251 10092018 111722 252 o século XVII tais associações destacavamse como locais de solidariedade e ajuda mútua para seus integrantes Os membros das irmandades homens e mulheres livres e cativos africanos crioulos mestiços nelas ingressavam após pagar uma quan tia de entrada e contribuíam com taxas anuais Empregadas nos serviços prestados aos irmãos as taxas destinavamse à assistên cia aos doentes sepultamentos e funerais festejos para os santos de devoção e eventualmente ajuda para a compra da alforria de irmãos escravos Os recursos eram administrados pelo juiz da irmandade que a dirigia junto ao escrivão ao tesoureiro os cargos principais e a outros membros eleitos encarregados da organização das festas da coleta de esmolas e da administração das capelas e dos cultos8 Muitas irmandades de negros e pardos possuíam capelas próprias extremamente valorizadas pela possibilidade de maior autonomia e independência no cotidiano da associação Quando uma irmandade não tinha recursos suficientes para adquirir um terreno e construir uma capela a alternativa era a ocupação de altares laterais de igrejas já estabelecidas Os conflitos gerados por essa convivência próxima podiam ser motivados por diver sas questões pequenos furtos imagens de santos quebradas ou disputas por sepulturas Embora aparentemente corriqueiras tais disputas podiam ser o sinal de conflitos mais profundos entre os membros de diferentes associações Afinal a maioria das irman dades de negros e pardos se organizava em torno de certas distin ções baseadas em critérios de origem africanos e crioulos cor e etnia As irmandades negras foram inegavelmente responsáveis por boa parte da promoção das festas devocionais ao longo de todo o período escravista Dentro e fora dessas instituições aliás a defesa da autonomia festiva foi uma das marcas da formação e consolidação das comunidades negras no Brasil escravista Sob o ponto de vista das autoridades governamentais religiosas e dos 8 Para uma síntese bastante atualizada dos inúmeros trabalhos sobre irmandades de negros e pardos no Brasil consultar OLIVEIRA Anderson José Machado de As irmandades dos homens de cor na América Portuguesa à guisa de um balanço historio gráfico Recôncavo Revista de História da UNIABEU v 3 p 114 2013 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 252 10092018 111722 253 proprietários de escravos as festas negras foram muitas vezes des critas como folias batuques vozerias ou tocatas de pre tos Estes termos se sucediam nos debates políticos e na imprensa do século XIX para qualificar as diferentes manifestações festivas dos africanos e seus descendentes Alguns proprietários enxerga vam as festas negras como momentos propícios para a organiza ção de revoltas de modo que as temiam e buscavam regulálas de perto Outros compartilhavam opinião diferente compreenden doas como momentos de quebra momentânea na dura rotina do cativeiro devendo por isso mesmo serem toleradas até como recurso para evitar rebeliões9 Analisar aspectos do cotidiano das irmandades forma das por escravos ou pessoas livres de cor permite abordar de modo privilegiado a questão das identidades A diversidade era ampla como já assinalei mas em geral as instituições dividiam se entre irmandades de pretos termo usado para designar os africanos em geral crioulos descendentes de africanos nasci dos no Brasil e pardos Ao examinar as identidades étnicas das irmandades no tempo da escravidão João Reis afirmou que os pardos eram vistos como inimigos dos pretos e cultores de uma identidade parda própria10 ressaltando que já era tempo de rever as generalizações sobre o tema Creio entretanto que sua advertência aponta para uma questão de maior alcance Como formular novas questões sobre os pardos iden tificação tão presente na documentação colonial e ao mesmo tempo tão fluida e de difícil apreensão Algumas importan tes pesquisas sobre a escravidão apresentaram reflexões sobre a construção da categoria pardo e seus múltiplos significados 9 Sobre o tema consultar especialmente ABREU Martha O Império do Divino festas religiosas e populares no Rio de Janeiro 18301900 Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 REIS João J Tambores e temores a festa negra na Bahia na primeira metade do século XIX In CUNHA Maria Clementina Pereira Carnavais e outras festas ensaios de História Social da Cultura Campinas Editora da Unicamp 2002 ASSUNÇÃO Matthias Röhrig Elite politcs and popular rebellion in the construction of post colonial order the case of Maranhão Brasil 18201841 Journal of Latin American Studies v 31 n 1 p 138 1999 10 REIS João J Identidade e diversidade étnica nas irmandades negras no tempo da escravidão Tempo Rio de Janeiro v 2 n 3 p 733 1997 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 253 10092018 111722 254 Analisando diferentes conjuntos documentais os historiadores Sheila Faria Hebe Mattos e Peter Einsenberg11 apontaram ricamente para um aspecto em comum o termo podia referirse à mestiçagem tanto quanto indicar mudanças no status social das pessoas de cor livres às quais já não se aplicassem designações como a de crioulo ou preto por exemplo tão identificadas ao universo escravista Afastandose do plano estrito da cor e enfa tizando os aspectos políticos o qualificativo pardo associavase portanto a novos status sociais dos homens de cor livres na socie dade escravista Ora a existência de diferentes significados para um mesmo termo indica o caráter flexível da categoria Mais do que mera referência à cor o termo pardo apresentava sentidos sociais e estava imerso em um universo que valorizava enorme mente as hierarquias baseadas no nascimento na religião na origem e na condição das pessoas Analiso as irmandades de pardos inspirada por esta visão enfatizando também a questão da mestiçagem como temática relevante Percebi que ao escolherem seus modelos de devoção e ao se difundirem por diversas cidades coloniais a partir do século XVII essas instituições ajudaram a veicular anseios de uma parcela significativa da população colonial Ao organizarem suas irmandades os devotos e devotas reunidos como pardos recusavam os estigmas tradicionalmente identifi cados aos mestiços Moviamse assim em direção aos ideais de honra e reconhecimento que lhes eram negados no ambiente social em que viviam Socialmente os mestiços eram vistos como portadores de características como preguiça astúcia arrogância e desordem Os devotos das irmandades de pardos valorizavam atributos alternativos vinculados à ideia de honra e de distinção social expondo anseios de uma parcela da população colonial para a qual a mestiçagem era uma experiência cotidiana12 No 11 FARIA Sheila Castro A colônia em movimento fortuna e família no cotidiano colo nial Rio de Janeiro Nova Fronteira 1998 MATTOS Hebe Escravidão e cidadania no Brasil monárquico Rio de Janeiro J Zahar 2001 EISENBERG Peter Homens esquecidos escravos e trabalhadores livres no Brasil séculos XVIII e XIX Campinas Editora da Unicamp 1989 12 Para maior desenvolvimento deste argumento consultar VIANA Larissa O idioma da mestiçagem Campinas Editora da UNICAMP 2007 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 254 10092018 111722 255 contexto colonial as irmandades de pardos buscaram formas de sociabilidade capazes de subverter estigmas e de criar iden tidades positivas em relação à mestiçagem Examino a seguir o contexto da formação das irmandades de pardos no Rio de Janeiro colonial visando recriar aspectos da trama de sociabili dades tecida nesses espaços AS IRMANDADES DE PARDOS NO RIO DE JANEIRO COLONIAL O núcleo urbano original do Rio de Janeiro onde se instalaram no século XVI a administração da cidade a Sé e o Colégio dos Jesuítas ficava no morro do Castelo Obedecendo aos princípios militares seguidos pelos portugueses escolheuse um ponto alto e defensável capaz de proteger a povoação de ataques vindos do mar e de inimigos de terra13 No século XVII porém os habitantes da cidade começaram a fixarse à beiramar onde se desenvolviam o comércio e as edificações Desde o litoral próximo ao morro do Castelo até a ponta oposta onde se localiza ainda hoje o Mosteiro de São Bento estendia se a marinha da cidade Nesta orla litorânea que concentrava quase toda a povoação carioca de então chegavam as canoas e se descarregavam os navios ao passo que as edificações eram consentidas do lado da terra de modo a deixar livre a praia de desembarque Pois foi na extremidade da marinha junto ao morro de São Bento14 que se criou a provável primeira irmandade de pardos do Rio de Janeiro colonial dedicada ao culto de São Brás Pouco se sabe da composição inicial da instituição que de acordo com Dom Mateus Rocha havia sido formada por par dos não escravos também chamados de mulatos de capote que eram quase todos oficiais de ourives15 O memorialista Vieira Fazenda em suas Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro referiuse aos pardos livres da irmandade de São Brás os 13 COARACY Vivaldo O Rio de Janeiro no século XVIII Rio de Janeiro J Olimpio 1965 p 9 14 O estabelecimento dos beneditinos em uma capela do Morro de São Bento como é atualmente conhecido deuse por volta de 1590 15 ROCHA Dom Mateus Ramalho O mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro 15901990 Rio de Janeiro Estúdio HMF 1991 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 255 10092018 111722 256 quais também identificava como mulatos de capote querendo desta forma indicar que gozavam de alguma importância social por vestiremse como os europeus16 Nas décadas seguintes três outras irmandades de pardos surgiram em moldes semelhantes à de São Brás na medida em que construíam seus cultos em alta res laterais de igrejas que não lhes pertenciam Era este o caso da Irmandade de Nossa Senhora do Amparo instituída em 1654 na Igreja de São José Quase vizinho a ela estava o Convento do Carmo no qual se criou em 1663 a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção dos homens pardos Já por volta de 1700 havia na Igreja de São Sebastião a antiga Sé da cidade situada no morro do Castelo a Irmandade de Nossa Senhora da Conceição que como as duas outras congregava pardos e pardas como irmãos e irmãs Nas primeiras décadas do século XVIII marcadas por mudanças acentuadas na organização urbana do Rio de Janeiro alguns deslocamentos ocorreram nas irmandades já existentes na cidade Foi junto aos limites pouco valorizados da região conhe cida como vala localizada na área mais afastada da populosa mari nha que os devotos das irmandades de pretos receberam terrenos na primeira metade do século para construírem suas igrejas17 Em 1706 foi inaugurada nesta área a Capela de São Domingos seguida mais tarde pela Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos em 1725 Ambas sediavam diversas irmandades ditas de pretos em seus altares laterais A partir desse momento foi possível verificar alguns deslocamentos nas irmandades de pardos acompanhando a reordenação do espaço urbano orientada para as áreas menos valorizadas da cidade Os irmãos pardos de Nossa Senhora da Conceição ao deixarem a Sé velha do morro do Castelo que se achava em progressivo estado de abandono foram buscar uma igreja própria e se fixaram numa pequena capela situada na rua do Rosário Essa capela era conhecida desde o início do 16 FAZENDA José de Vieira Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo 93 v 147 p 191 1986 17 SOARES Mariza de Carvalho Devotos da cor identidade étnica religiosidade e escravi dão no Rio de Janeiro século XVIII Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 cap 4 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 256 10092018 111722 257 século XVIII como Igreja do Hospício pois além de cumprir as funções do culto religioso se destinava a hospedar religiosos Após ser vendida aos devotos da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição conforme registrou escritura de 1729 o lugar passou a ser conhecido como Hospício dos Pardos designação que se manteve até o século XIX18 Alguns anos se passaram até que em 1734 a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção mudouse também para o Hospício dos Pardos Já em 1758 quando foi fundado o templo dedicado ao santo pardo Gonçalo Garcia observamos que a prática de doação de lotes nas bordas da cidade para a construção de capelas mais modes tas já se estendia às irmandades de pardos Para além dos limites da vala como observou a historia dora Silvia Lara deslocouse a população mais pobre da cidade Pela presença de um arruamento mais incerto e de grandes áreas abertas como o Campo de São Domingos e o Campo de Santana essa região era o palco das festividades populares dos exercícios de tropa e a partir de meados do século XVIII dos enforcamentos realizados publicamente19 As especificidades da ocupação do espaço nessa região afastada do núcleo principal da cidade atraíam a atenção das autoridades e de seus mecanismos de controle O marquês do Lavradio vicerei de 1769 a 1779 ao implementar as rondas que pretendiam evitar os ajuntamentos e desordens que costumam fazer os pretos e mulatos implementou nessa área uma vigilância mais frequente20 Em meio a esse núcleo urbano que se modificava subs tancialmente no século XVIII como se organizavam do ponto de vista das normas algumas dessas irmandades Através da análise dos compromissos estatutos que reuniam as normas de funcionamento podemos aqui destacar a questão dos critérios de inclusão e exclusão de membros nas irmandades Operados 18 MAURÍCIO Augusto Templos históricos do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Gráfica Laemmert 1946 19 LARA Silvia Hunold Fragmentos setecentistas escravidão cultura e poder na América portuguesa São Paulo Companhia das Letras 2007 cap 1 20 Relatório do Marquês de Lavradio vicerei do Rio de Janeiro entregando o governo a Luis de Vasconcelos e Souza que o sucedeu no vice reinado 1779 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro v 4 p 430 1843 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 257 10092018 111722 258 no contexto de uma sociedade escravista e miscigenada esses critérios permitem observar alguns aspectos gerais das identida des cultivadas no interior de tais instituições No século XVIII os parâmetros para admissão às irmandades do Rio de Janeiro fundamentavamse em noções a respeito da origem21 da con dição ou de percepções sobre a cor de homens e mulheres que desejavam compartilhar a experiência de irmãos leigos Através de alguns exemplos podemos perceber como esses grupos for mulavam suas expectativas de convívio22 Um traço comum nas irmandades aqui contempladas é que todas aceitavam apenas irmãos e irmãs descritos como pardos legítimos Um primeiro exemplo neste sentido vem da Irmandade de Nossa Senhora do Amparo23 Para ingressar na confraria era necessário que o candidato comprovasse ser legi timamente pardo além de desfrutar da condição de liberto critérios previstos em compromisso datado de 1775 O capí tulo nove do documento trazia a determinação válida para o ingresso de irmãos de um e outro sexo Era acrescido pelas regras impostas no capítulo 12 onde se estipulava que o escri vão o procurador e o tesoureiro da irmandade fossem sempre homens pardos e particularmente zelosos quanto ao proce dimento das pessoas que se quisessem assentar como irmãos24 Passemos a outro exemplo presente no Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte referente ao ano de 1720 Logo no primeiro capítulo ficava resolvido que se admiti riam como irmãos e irmãs os pardos legítimos e os homens e mulheres brancos Uma curiosa prerrogativa era aberta ainda 21 Refirome neste caso à naturalidade 22 É preciso ter em mente que os níveis de associação destas irmandades eram dinâmi cos provavelmente mais até do que deixavam entrever os compromissos formalmente aprovados As normas presentes nestes compromissos podiam ser revistas e reformuladas na prática de acordo com os interesses dos próprios membros da irmandade e de suas percepções sobre alianças e conflitos desejáveis em dados contextos 23 De acordo com Nireu Cavalcanti esta irmandade foi fundada em 1654 na Igreja de São José construída em data anterior ao ano de 1608 CAVALCANTI Nireu O Rio de Janeiro Setecentista a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte Rio de Janeiro J Zahar 2004 24 Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Amparo sita na Igreja de São José do Rio de Janeiro 1775 Arquivo Nacional da Torre do Tombo ANTT Chance laria da Ordem de Cristo livro 307 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 258 10092018 111722 259 aos que não se enquadrando nas condições acima poderiam ser admitidos por afeição ou peditório desde que o juiz e irmãos da mesa diretora concordassem A menção ao ingresso de brancos era um elemento que diferenciava esta associação da Irmandade de Nossa Senhora do Amparo mais exclusivista e impermeável à presença de pessoas que não demonstrassem ser pardos legí timos As duas irmandades aproximavamse contudo quando se considerava a questão do acesso aos principais cargos dirigen tes que na Boa Morte estavam restritos aos membros tidos como pardos potencialmente os únicos aceitos para os cargos de juiz procurador tesoureiro e escrivão da confraria25 No compromisso de 1767 da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição situada no Hospício dos Pardos os ditos brancos eram igualmente aceitos como irmãos pois nos são de grande utilidade pelo fervor com que servem à Mãe Senho ra26 Tal utilidade entretanto não era considerada quando estavam em jogo os cargos principais da direção também neste caso reservados aos pardos O capítulo 12 deste documento afir mava que os brancos poderiam servir entre os 12 irmãos da mesa diretora cargo eletivo e anualmente substituído como os demais mas não teriam acesso aos postos mais prestigiados da irmandade Em todos esses casos a referência aos brancos se fez sem maiores explicações levando a crer que se tratava de um termo corrente na linguagem da época o que dispensaria mais deta lhamentos Recorrendo ao Vocabulário portuguez e latino de Dom Raphael Bluteau observamos que o verbete homem branco incorporava pelo menos uma dessas percepções de forma explí cita bem nascido e que até na cor se diferencia dos escra vos que de ordinário são pretos ou mulatos27 Os homens e mulheres brancos formalmente aceitos com parcimônia em duas das três irmandades de pardos aqui citadas tinham seu ingresso aparentemente pautado pelo fato de servirem nessas 25 Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte sita no Convento de Nossa Sra do Carmo 1720 Arquivo Nacional AN Caixa 289 pacote 1 doc 19 26 Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição do Hospício dos Par dos do Rio de Janeiro 1767 ANTT Chancelaria da Ordem de Cristo livro 291 27 Dom Raphael Bluteau Vocabulário Portuguez e Latino Coimbra 1713 volume 2 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 259 10092018 111722 260 confrarias com fervor devocional e pela utilidade que sua presença pudesse trazer conforme as indicações presentes nos compromissos De acordo com as diretrizes da administração pomba lina a Coroa passou a exercer um controle mais direto sobre as instituições leigas nos domínios ultramarinos Em 1765 a Mesa de Consciência e Ordens decretou que todas as irmanda des enviassem seus compromissos a Lisboa para apreciação Até então as confirmações dos compromissos quando se faziam eram emitidas pelos bispados locais que geralmente não se ocu pavam de enviar cópias desses documentos para Portugal A maior ingerência e controle sobre os estatutos das irmandades em meio ao processo de fortalecimento da política regalista28 promoveu restrições relativas ao peditório público de esmo las para as confrarias e chegou à proibição da eleição de reis e rainhas festivos nas irmandades de pretos29 Algumas dessas restrições foram negociadas na prática ou tornaramse motivos de disputa Assistimos assim à continuidade dos reinados e folias de pretos30 de diferentes grupos ao lado dos peditórios de esmola principalmente nas épocas festivas dos quais cronistas e viajantes estrangeiros nos deixaram testemunhos valiosos Esses viajantes de passagem pela cidade na segunda metade do século XVIII testemunharam o rico cotidiano da vida religiosa O capitão inglês James Cook após uma curta estada no ano de 1768 deixou registrada em seu relato a impressão do fervor religioso dos habitantes da cidade Notava que os mora 28 A política regalista era marcada pelas estreitas relações entre Igreja e Estado nos países ibéricos observável por exemplo através dos direitos de padroado Pelo menos desde o século XV coube aos reis portugueses a atribuição de indicar candidatos para cargos eclesiásticos privilégio ao qual se somava o do beneplácito régio reforçado durante o século XVIII que impedia a adoção de bulas breves ou despachos papais em Portugal sem prévio acordo da Coroa 29 BOSCHI Caio Os leigos e o poder São Paulo Ática 1986 QUINTÃO Antônia Apa recida Lá vem o meu parente as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco século XVIII 1997 Tese Doutorado Universidade de São Paulo São Paulo 1997 30 De acordo com Marina Mello e Souza desde o século XVIII as autoridades coloniais se viam às voltas com a permissão ou proibição das práticas culturais de origem africana entre as quais se destacavam as folias de reis negros SOUZA Marina de Mello e Reis negros no Brasil escravista história da festa de coroação de rei congo Belo Horizonte Edi tora da UFMG 2002 cap 4 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 260 10092018 111722 261 dores podiam prestar devoção a todos os santos do calendário sem ter de aguardar a realização de uma procissão uma vez que a frente da maioria das casas era decorada com pequenos nichos guarnecidos com vitrais onde o povo ia rezar para seus santos de devoção Registrava ainda que não se podia acusar os habitantes da cidade de frieza devocional diante da gran diosidade das procissões durante as quais preces e cantos eram recitados com tanta veemência que era possível escutálos até mesmo do navio ancorado a quase meia milha da cidade A luz gerada pelas lanternas carregadas em uma procissão teria sido tão forte que a tripulação do navio de Cook chegou a pensar que o lugar estivesse em chamas31 O tenente espanhol Juan Francisco de Aguirre perma neceu somente alguns dias na cidade em 1782 mas seu relato é tido como uma das mais completas descrições elaboradas por estrangeiros sobre o Rio de Janeiro na época colonial De acordo com ele os habitantes pensavam não haver povo mais devoto em todo o mundo católico e ele se sentia obrigado a darlhes razão pelo menos a julgar pelas manifestações públicas de fé A grande frequência às igrejas o uso disseminado dos escapulários junto ao corpo e a presença de nichos para os santos em quase todas as esquinas alguns dos quais tão ricamente adornados que poderiam passar por altares de uma igreja eram enume rados pelo autor junto às vozes descompassadas e atordoantes recitando o rosário por toda parte após o anoitecer32 Esses traços vivos da religiosidade colonial experimen tada nas ruas ou no interior das irmandades nos fazem refletir sobre o convívio entre estes homens e mulheres Nas praças pro cissões capelas e festejos o público se misturava Por outro lado ao entrarmos mais intimamente no cotidiano das irmandades percebemos que a política da diferença era dominante nas nor mas que as regiam até o fim do século XVIII Ressaltei aqui o vocabulário dessa diferença em que brancos pretos crioulos 31 O relato do capitão James Cook aqui citado foi extraído da antologia compilada por FRANÇA J M de Carvalho Visões do Rio de Janeiro colonial Rio de Janeiro J Olympio 1999 p 126141 32 Sobre o diário de Juan Francisco de Aguirre consultar FRANÇA 1999 p 146165 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 261 10092018 111722 262 e pardos buscavam suas associações seus santos patronos seus irmãos e irmãs rituais enfim Como ficava então a política da resistência em meio a divisões nas fileiras de homens e mulhe res de cor ao longo do período colonial É possível argumen tar sobre essas divisões que os conflitos evidenciados no campo religioso e devocional eram muitas vezes revistos na condução das rebeliões e críticas ao sistema articuladas pelo partido dos negros Podese denominar assim aquele sentimento difuso de rebeldia e solidariedade muitas vezes compartilhado pelos não brancos em situação subalterna Um sentimento provavelmente discutido nos portos quartéis festas populares e podese suspei tar também entre membros de diferentes irmandades33 A discussão sobre as irmandades pode ainda suscitar outra conversa bastante pertinente aos dias atuais Como bem observado por Jocélio Teles dos Santos o debate sobre as polí ticas de ação afirmativa no Brasil já não se concentra nos movi mentos negros na academia e no governo A discussão está nos meios de comunicação e mobiliza setores mais amplos da nossa sociedade Assim o questionamento sobre como definir as pes soas de cor se converteu em uma espécie de calcanhar de Aquiles no Brasil34 Para o antropólogo as angústias classifica tórias do Brasil do século XXI têm raízes em práticas coloniais Práticas que as normas das irmandades vistas acima ajudam a exemplificar MESTIÇAGEM COR E DEMOCRACIA RACIAL QUESTÕES PARA DEBATER EM NOSSAS SALAS DE AULA O historiador Henry Louis Gates Jr um dos mais reno mados especialistas contemporâneos na história afroamericana realizou uma série de documentários para a televisão pública dos 33 Reproduzo aqui os argumentos de REIS João J Identidade e diversidade étnica nas irmandades negras no tempo da escravidão Tempo Rio de Janeiro v 2 n 3 p 31 1997 34 SANTOS Jocélio Teles dos De pardos disfrazados a blancos poco claros clasifica ciones raciales en el Brasil de los siglos XVIIIXIX El Taller de la Historia v 5 n 5 p 79103 2013 especialmente p 80 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 262 10092018 111722 263 Estados Unidos exibidos em 201035 Seu objetivo era mostrar ao público local algumas das peculiaridades das relações raciais em seis países da América Latina Brasil México Peru Repú blica Dominicana Haiti e Cuba Uma das questões motivadoras das observações de Gates Jr sobre tais lugares era precisamente perguntarse quem era considerado negro nestas regiões E por quem Durante sua passagem pelo Brasil a resposta a essas per guntas mostrouse particularmente inquietante O foco na cor para ele era quase obsessivo e a lista de categorias para referirse à mestiçagem lhe parecia interminável Ao descrever a experiên cia de pedir que seus informantes brasileiros determinassem a própria cor e a cor dele nos Estados Unidos dizia todos o viam como negro afirmou Muitas pessoas queriam ser classificadas numa das tonalidades brasileiras de mulato uma lista cromática aparentemente infinita e não como negra e queriam me garan tir que eu também era mulato36 A observação de Gates Jr me parece especialmente inte ressante por se tratar de um especialista na temática e estran geiro que nos observa com doses iguais de curiosidade e estra nhamento Por um lado ele registrou um dado de nosso coti diano que certamente está vinculado ao peso das identidades mestiças compartilhadas nos dias atuais por larga parcela da população do país Afinal como tão bem ressaltou a antropó loga Lilia Schwarcz as pesquisas do Instituto Brasileiro de Geo grafia e Estatística IBGE consideram atualmente categorias censitárias básicas branca preta amarela parda indígena Mas a resposta espontânea de brasileiros quando perguntados sobre a cor da pele já resultou em uma lista de 136 termos uma notável aquarela do Brasil37 Por outro lado vivemos hoje uma nova crise da mesti çagem como elemento da identidade nacional Nos diferentes espaços de discussão e promoção de políticas de ação afirmativa 35 A série de documentários inspirou o livro de GATES JUNIOR Henry Louis Os negros na América Latina São Paulo Companhia das Letras 2014 36 GATES JUNIOR Henry Louis Os negros na América Latina São Paulo Companhia das Letras 2014 p 65 37 Consultar SCHWARCZ Lilia M Nem preto nem branco muito pelo contrário cor e raça na sociabilidade brasileira São Paulo Claroenigma 2012 especialmente p 101 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 263 10092018 111722 264 universidades movimentos sociais organizações não governa mentais partidos políticos secretarias de governo a defesa e valorização da identidade negra ganhou espaço crescente sobre tudo a partir do contexto da Constituição de 1988 A promoção de políticas públicas para a população negra depende da abor dagem direta do racismo e portanto da recusa ao modelo de suposta democracia racial que a menção à mestiçagem parece sempre avivar Ao analisar diretrizes curriculares atualmente vigentes no Brasil percebese que a crítica à noção de democracia racial é recorrente Na caracterização da Área de História apresen tada nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ciclo fun damental buscase demonstrar o quanto o ensino de História legitimou no passado o discurso da democracia racial No debate educacional na década de 30 tornouse vito riosa a tese da democracia racial expressa em progra mas e livros didáticos de ensino de HistóriaO povo brasileiro era estudado como descendente de brancos portugueses índios e negros e a partir dessa tríade de mestiços Nessa perspectiva todos conviviam harmonica mente em uma sociedade multirracial e caracterizada pela ausência de conflitos38 No Parecer ao Conselho Nacional de Educação que ins tituiu em 2004 as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Edu cação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana a relatora Beatriz Petronilha Gonçalves e Silva tornou mais concreta e atual a crítica ao mito da democracia racial brasileira Apostando na educação como elemento central para o enfrentamento do racismo o texto das diretrizes traduziu de modo contundente o que se espera de pro fessores escolas e de uma formação docente comprometida com o combate às desigualdades raciais no Brasil Reconhecimento implica justiça e iguais direitos sociais civis culturais e econômicos bem como valorização da diversidade daquilo que distingue os negros dos outros 38 Brasil Secretaria de Educação Fundamental Parâmetros Curriculares Nacionais história Brasília MECSEF 1998 p 22 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 264 10092018 111722 265 grupos que compõem a população brasileira Requer também que se conheça a sua história e cultura apresen tadas explicadas buscandose especificamente descons truir o mito da democracia racial na sociedade brasileira mito este que difunde a crença de que se os negros não atingem os mesmos patamares que os não negros é por falta de competência ou de interesse desconsiderando as desigualdades seculares que a estrutura social hierárquica cria com prejuízos para os negros39 Gostaria nesta seção final de retomar alguns debates clás sicos sobre o tema para melhor refletir sobre a relação entre a mes tiçagem e a noção de democracia racial O tema é recorrente no pensamento social brasileiro desde o século XIX período em que se tornaram mais acalorados os debates sobre a construção da nação em meio a um intenso diálogo com teorias europeias sobre as dife renças baseadas na raça Sabese hoje da inadequação deste con ceito em seus conteúdos hierarquizantes para o estudo das relações sociais Mas no século XIX muitos cientistas julgavam que a noção de raça não só era aplicável às sociedades humanas como também determinante dos comportamentos e potenciais dos indivíduos Naquele contexto a mestiçagem era geralmente encarada como sinônimo de degeneração e inferioridade No Brasil esta visão pro duziu extensos debates desde 1870 envolvendo intelectuais como Nina Rodrigues e Silvio Romero entre outros engajados na tarefa de formular respostas locais às teorias estrangeiras40 Na década de 1930 o sociólogo Gilberto Freyre seria o mais conhecido promotor de uma visão da mestiçagem distante das interpretações até então dominantes influenciadas pela noção de degeneração A mestiçagem ganhava com Freyre contornos positivos se comparada às avaliações pessimistas de alguns outros conhecidos intérpretes da nação E o mestiço figura polêmica nos 39 Conselho Nacional de Educação Parecer CNECP 0032004 que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana 2004 p 3 Disponível em httpportalmecgovbrcnearquivospdf003pdf Acesso em 24 jan 2016 40 Sobre as noções de raça e mestiçagem no final do século XIX consultar SCH WARCZ Lilia Moritz O espetáculo das raças cientistas instituições e questão racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 1993 Skidmore Thomas Preto no branco raça e nacionalidade no pensamento brasileiro Rio de Janeiro Paz e Terra 1989 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 265 10092018 111722 266 debates sobre as questões raciais nos circuitos nacional e interna cional emergia de sua análise como o tipo ideal de homem para os trópicos Posicionandose criticamente em relação aos teóricos da degeneração Freyre valorizou em seu livro hoje clássico Casa grande e senzala 193341 as contribuições do africano do português e dos indígenas para a formação colonial da família patriarcal brasileira Buscava desta forma construir uma versão da identi dade nacional mais atenta à hibridez e à articulação das diferentes tradições culturais em contato nestes trópicos42 Já no primeiro capítulo desta obra Freyre afirmava que a vantagem advinda da ampla miscigenação na América portuguesa foi a formação do brasileiro talvez o tipo ideal de homem para os trópicos europeu com sangue negro ou índio a avivarlhe a ener gia43 Tal vantagem era visível para o autor através do papel da mestiçagem no equilíbrio dos antagonismos que marcavam a nossa formação social A sociedade colonial seria perpassada por vários elementos antagônicos além do mais profundo o antagonismo das relações entre o senhor e o escravo a cultura europeia e a africana a africana e a indígena o católico e o herege o bandeirante e o senhor de engenho o paulista e o emboaba Agindo entre estes antagonismos harmonizandoos figurariam para Freyre as condi ções de confraternização social peculiares ao Brasil A mestiçagem devese notar encabeçava a lista dos elementos de confraternização propostos pelo sociólogo pernambucano É basicamente sob o prisma da síntese portanto que se encaminhava a reflexão de Freyre em Casa grande e senzala O mes tiço tipo ideal de brasileiro seria a síntese resultante dos três povos formadores do Brasil europeus africanos e indígenas A mestiça gem por sua vez ganhava renovado destaque como harmoniza dora de elementos antagônicos A exploração sexual das mulheres 41 FREYRE Gilberto Casa grande e senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 30 ed Rio de Janeiro Record 1995 42 Para uma interpretação da obra de Freyre consultar ARAÚJO Ricardo Benzaquen de Guerra e paz Casa Grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30 Rio de Janeiro Editora 34 1994 Sobre intelectuais anteriores a Gilberto Freyre que trataram de forma inovadora da mestiçagem no Brasil consultar DANTAS Carolina Vianna Brasil café com leite Debates intelectuais sobre mestiçagem e preconceito de cor na Primeira República Tempo Revista do Departamento de História da UFF v 13 p 6790 2009 43 FREYRE 1995 p 47 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 266 10092018 111722 267 africanas e indígenas ganhou nesta interpretação um aspecto ao mesmo tempo fundador e conciliador na medida em que seria capaz de suavizar os conflitos latentes da sociedade Podese res saltar ainda que a mestiçagem era vista como um poderoso arti fício capaz de aproximar os antagonismos experimentados pela sociedade colonial e flexibilizar suas relações cotidianas44 Nas décadas de 1950 e 1960 diversos estudos socioló gicos sobre o tema das relações raciais afastaramse da imagem de harmonia inicialmente valorizada por Gilberto Freyre expli citando as profundas desigualdades entre brancos e negros na sociedade brasileira Debates propostos por Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso entre outros autores argumen tavam que a noção de classe social era mais importante que a ideia de raça na definição das relações sociais encaminhando assim uma reflexão sistemática sobre o preconceito como sobre vivência do passado escravista A denúncia da ideia de paraíso racial como poderoso mito a dissimular a violência do racismo na sociedade brasileira foi um dos temas valorizados por tais autores críticos diretos da obra de Gilberto Freyre Afirmando que o Brasil tinha uma linha de cor esses intelectuais mostra vamse atentos aos indicadores sociais que evidenciavam as profundas desigualdades de nossa sociedade com raízes tam bém fixadas no passado colonial e escravista Naquele mesmo período diversas vozes dos movimentos negros brasileiros denunciavam uma abolição incompleta que jamais promoveu a efetiva integração econômica e social dos negros O Teatro Experimental do Negro liderado por Abdias do Nascimento a partir de 1944 representava fortemente este ponto de vista crí tico visando combater frontalmente a discriminação racial45 44 Para uma visão sintética do tema consultar VAINFAS Ronaldo Dicionário do Brasil colonial Rio de Janeiro Objetiva 2000 p 40001 45 Para aprofundarse na temática consultar dentre outros COSTA Emília Viotti da Da Monarquia à República momentos decisivos São Paulo Unesp 1999 p 365384 MAIO Marcos Chor O Contraponto Paulista Florestan Fernandes Oracy Nogueira e o Pro jeto Unesco de relações raciais Antíteses Londrina v 7 p 1039 2014 NASCIMENTO Abdias do Teatro experimental do negro trajetória e reflexões Estudos Avançados v 18 n 50 p 209224 2004 GUIMARÃES Antonio Sérgio Alfredo Democracia racial o ideal o pacto e o mito Novos Estudos CEBRAP n 61 p 147162 2001 Neste texto Guimarães argumenta que a democracia racial longe de ser um logro forjado pelas classes domi nantes brancas teria sido por muito tempo uma forma de integração pactuada também pela militância negra brasileira EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 267 10092018 111722 268 Esta crítica representou certamente uma primeira crise mais ampla do ideal da mestiçagem como valor nacional com partilhado O debate reunindo intelectuais e militantes colocou em evidência o problema da nação que teria buscado na suposta harmonia racial uma de suas identidades centrais O ideal do país mestiço e harmônico passava a ser progressivamente dis cutido como um dos traços da dissimulação do racismo e com batido sobretudo pelos movimentos negros organizados nas décadas de 1970 e 1980 como ideologia que impedia a ação antirracista por alimentar o mito de que o Brasil era uma demo cracia racial Nos dias atuais então o que significa falar de uma nova crise da mestiçagem A partir dos anos 1980 notase que as demandas referentes às culturas negras incorporaram crescente mente a via dos direitos civis e sociais O racismo foi criminali zado pela Constituição de 1988 regulamentada pela Lei 7716 de 1989 foi criada a Fundação Cultural Palmares em 1988 e em 1995 reforçando os marcos simbólicos de um tempo de mudan ças aceleradas Zumbi foi instituído como herói nacional Na esteira das novas políticas relativas às identidades negras pode se destacar a introdução das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana de 2004 e a instituição de uma política sistemática de cotas raciais e sociais para as universidades públicas em 201246 No Brasil a definição da cor muitas vezes depende das relações sociais das circunstâncias e dos contextos Era assim nos tempos da escravidão como mostrado aqui e de diferentes maneiras ainda é assim tal como percebeu o historiador Gates Jr em sua passagem recente pelo país Mas hoje a defesa das identidades negras tornase mais fortalecida e a expectativa dos direitos vinculados às políticas de reparação da escravidão está no centro do debate Os usos sociais da cor seguem sendo diver sos e o discurso da mestiçagem mostra aí parte de sua força De acordo com dados do Datafolha a população brasileira ao 46 Reproduzo aqui os dados de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães em Depois da demo cracia racial Tempo Social Revista de Sociologia da USP v 18 n 2 p 269287 2006 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 268 10092018 111722 269 declarar espontaneamente a cor em pesquisa de 2008 era majo ritariamente morena e parda47 De acordo com os dados censitá rios do IBGE de 2010 houve uma redução da proporção de brancos que em 2000 era de 537 e em 2010 passou para 477 e uma ampliação na proporção de pardos de 385 para 431 É notável igualmente o crescimento no número dos que se declararam como pretos de 62 para 76 Desta maneira a população preta e parda passou a ser considerada maioria no Brasil 50748 Os dados censitários anunciam que grande parte da população do país sentese mestiça de um modo ou de outro Por outro lado a mestiçagem como valor nacional tornouse mais incômoda A nova crise da mestiçagem a meu ver reside exatamente aí menos nos usos e sentidos da cor que se declara e mais na crescente impressão de que a mestiçagem como símbolo de um país harmônico em termos raciais encolheu abrindo espaço para novas formas de enfrentamento da violên cia e da desigualdade racial em nosso país 47 GUIMARÃES Antonio Sérgio Alfredo Raça cor da pele e etnia Cadernos de Campo São Paulo n 20 p 265271 2011 especialmente p 269 48 Disponível em httpbibliotecaibgegovbrvisualizacaoperiodicos93 cd2010caracteristicaspopulacaodomiciliospdf Acesso em 19 fev 2015 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 269 10092018 111722 270 ENTRE O SILÊNCIO E O RECONHECIMENTO OFICIAL COMO SE ESCREVE OU SE ESCREVEU A HISTÓRIA DO JONGOCAXAMBU EM BARRA DO PIRAÍ Luana da Silva Oliveira Se Manoel nasceu no Congo Caxambu veio da Angola Se vamos cantar jongo É pra contar a nossa história Jackson Douglas1 JONGOS apresentam percussão dança e canto em forma de poesia A dança próxima da fogueira é em círculo no centro do qual os dançarinos evoluem O jongo pode ser cantado por um ou mais solistas sob a forma de desafio O restante do grupo como um coro responde em refrão As memórias dos velhos jongueiros revelam que a prática do jongo envolve feitiço poderes mágicos e segredos partilhados por familiares Os jongos hoje proporcionam a solidariedade comunitária e o orgulho de um patrimônio compartilhado e valorizado2 Pensar o conceito de cultura negra na contemporanei dade é abrir um vasto campo de discussões Em diálogo com a perspectiva acadêmica novas abordagens vêm se concretizando e algumas delas podem ser relacionadas na consolidação de políti cas públicas em variados campos como o do patrimônio cultural e da educação O objetivo deste artigo é com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRa 1 Jackson Douglas Américo da Conceição jovem jongueiro do grupo Filhos de Angola de Barra do Piraí 2 Parte da definição que consta do encarte do DVD Jongos Calangos e Folias música negra memória e poesia UFF e Petrobrás Disponível em wwwhistoriauffbrjongos Acesso em 25 abril 2015 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 270 10092018 111722 271 ciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Afri cana articular cultura negra com a escrita da história do jongo como patrimônio cultural no município de Barra do Piraí Pierre Nora em seu célebre capítulo A problemática dos lugares3 tece uma argumentação de diferenciação entre memória e história e ressalta que na mistura é a memória que dita e a história que escreve Para escrever história precisamos de fontes e as que fundamentam a argumentação que segue cor relatam análises de documentos publicações locais e entrevistas de história oral A coleta de materiais e fontes é resultado da pes quisa realizada durante o curso de mestrado quando foi possível realizar uma investigação local que gerou muitas possibilidades de reflexões e alguns desdobramentos como este artigo A necessidade de traçar uma interlocução entre a cul tura histórica e a escrita da história trouxe o contato com a produção de intelectuais memorialistas e folcloristas a atua ção de profissionais da educação como mediadores e o desafio de trabalhar com a memória de agentes culturais através da história oral Desse modo temos como fio condutor a temá tica da cultura negra uma vez que é urgente discutir a ques tão racial e entender os contextos e o processo histórico que conjuga de forma dinâmica silenciamento resistência e luta por reconhecimento Falar em jongo e em jongueiros é trazer à tona expres sões culturais que evidenciam heranças do período escravista e do pósAbolição Falar em jongo e jongueiros em Barra do Piraí é encontrar lacunas e a ausência da voz e da importância da presença marcante de uma grande população negra que atua e busca ser reconhecida na localidade Reconhecendo as dificul dades e limitações estruturais do campo de pesquisa já que o município não tem um arquivo público mas entendendo a rele vância do esforço é que buscamos ilustrar neste breve texto um novo olhar para a escrita da história do jongo como patrimônio cultural em Barra do Piraí Um olhar que foca no referencial da cultura negra a partir do jongo e dos jongueiros 3 NORA Pierre Entre a memória e a história a problemática dos lugares Projeto His tória n 10 1993 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 271 10092018 111722 272 Barra do Piraí é um município localizado na região do Médio Vale do Paraíba região que se desenvolveu a partir da pro dução do café e que teve seu apogeu em meados do século XIX O café representou a base da economia brasileira durante o Oito centos O Brasil exportava 90 do café que o mundo consumia e o Vale do Paraíba produzia 90 do café produzido no Brasil4 A cidade apresenta em sua história uma diferença na formação e desenvolvimento se comparada às outras cidades da mesma região O diferencial de Barra do Piraí foi a chegada da ferrovia em 1864 As cidades vizinhas que desde o início do século XIX haviam sido ricas e prósperas com suas grandes fazendas cafeeiras e seus poderosos barões viramse paralisadas diante da rápida decadência do café O território que hoje compõe o município era formado por dois simples povoados São Benedito e Nossa Senhora SantAna Os dois povoados eram separados pelo rio Paraíba do Sul que corta a cidade e se encontra com o rio Piraí daí vem o nome do município do encontro dos rios a Barra do Piraí Os povoados eram ligados pelo transporte fluvial e por uma ponte de madeira que ficou conhecida como Ponte dos Sete Vinténs uma vez que era cobrado um pedágio para a travessia da ponte tanto por veí culo quanto por animal ou pessoa A construção dessa ponte sobre o rio Piraí representou uma integração territorial mais concreta para a população Na margem direita do Paraíba o povoado de São Benedito pertencia à cidade de Piraí com domínio da famí lia Breves e na margem esquerda o povoado de Nossa Senhora SantAna pertencia a Valença com o domínio da família Faro A chegada da Estrada de Ferro D Pedro II construída para levar o café do Vale do Paraíba para o Rio de Janeiro a construção dos ramais para São Paulo e Minas Gerais e a criação da Rede Mineira de Viação fizeram de Barra do Piraí o princi pal entroncamento ferroviário do país e o centro econômico do Vale do Paraíba O pacato lugarejo ganhou movimentação e uma dinâmica comercial por ali passavam muitos negociantes e a loca lidade recebia uma nova população trazida pela e para a ferrovia 4 MELO Ovídio de Andrade Reflexões sobre a História de Barra do Piraí Crônica de minha família e minha formação nesta cidade 2010 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 272 10092018 111722 273 Sua emancipação só se deu com a República pois os políticos de Piraí e Valença usavam da sua influência e poder durante o Império uma vez que as estradas de ferro davam muito lucro A cidade só foi elevada a município em 10 de março de 1890 quando recebeu o desmembramento dos municípios vizinhos De Valença foi desmembrada a Vila de SantAna na margem esquerda do Paraíba De Piraí a próspera Freguesia de Barra do Piraí situada à margem direita do Paraíba e de Vassouras a Vila dos Mendes que já possuía nessa época uma fábrica de papel CIPEC e fábrica de fósforos além de fazendas Em 1890 Barra do Piraí possuía 4000 habitantes5 Ao analisar essa trajetória vemos que esse município não pode ser caracterizado como uma cidade imperial ou como terra de barões como é o caso de Vassouras e Valença Oví dio Melo embaixador aposentado nascido em Barra do Piraí reforçou no registro escrito de suas memórias sobre a cidade uma vertente que também aparece construída na história oral de um diferencial do município diante da identidade regional associada ao império e ao café O autor defende que devido à presença da ferrovia e a todo o desenvolvimento que esta trouxe em um curto período para o Brasil Barra do Piraí representou uma curiosa amostra de um Brasil industrializado que não existia na época nossa cidade teve com a estrada de ferro a oportunidade única de servir como uma espécie de laboratório experimental para um novo Brasil que só muito depois surgiria com Getúlio com o pro cesso de industrialização6 A estrada de ferro trouxe para Barra do Piraí muitos imigrantes que vieram tanto para trabalhar na ferrovia quanto atraídos pelo movimento e desenvolvimento que esta ocasio nava e formaram no município uma população diferenciada é marcante a presença de sírios e libaneses que dominam o comér cio local Nas palavras do embaixador 5 MUNIZ Célia Maria Loureiro ROTHE Bia Pequeno cidadão conhecendo Barra do Piraí Sl Diadorim Editora 1997 p 97 6 MELO 2010 p 4 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 273 10092018 111722 274 Assim a ferrovia concentrou em Barra do Piraí um novo tipo de povo que o Brasil nunca antes conhecera Negros fugidos ou liberados da escravidão que de início implanta riam trilhos ou seriam foguistas e guardafreios nos trens E imigrantes europeus de países que já estavam avançados na industrialização e que traziam ao Brasil não só ampla experiência mecânica mas também arrojadas teorias polí ticas que vicejavam na Europa da época7 A ferrovia foi para a população negra que trabalhou nas lavouras do café e que com a Abolição em 1888 se viu total mente excluída uma opção de permanência na região do Vale do Paraíba Negros libertos que permaneceram na região alguns como colonos nas fazendas foram buscar trabalho na cidade Foi assim que alguns começaram a trabalhar na ferrovia e que famílias passaram a ocupar as regiões periféricas da cidade onde ainda hoje encontramos os núcleos jongueiros do município Esses núcleos são compostos por variadas famílias que se reuniam para fazer o jongo também chamado de caxambu ou tambu como forma de diversão manutenção e transmissão da manifestação cultural construída no tempo do cativeiro O jongo é uma herança familiar do tempo da escravidão e expressa através do seu canto uma história de resistência e luta Por muito tempo o jongo como expressão da cultura dos descendentes de escravos tornada cultura negra nos processos de racialização após a abolição ou mesmo nas produções intelectuais dos folcloristas foi reprimido e esteve escondido nos terreiros dos quintais dos morros e áreas periféricas e rurais de Barra do Piraí Segue abaixo parte de uma entrevista realizada com a jongueira Eva Lúcia de Moraes Faria Rosa atual liderança política de Barra do Piraí Sua fala associa o silêncio o patrimônio e o reconheci mento oficial Por que o jongo ganhou o título de patrimônio Porque ele estava morrendo porque as pessoas esta vam envelhecendo estavam morrendo e o jongo estava acabando Como aqui mesmo passou assim umas duas décadas sem a gente poder se expressar 7 MELO 2010 contracapa EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 274 10092018 111723 275 Quais décadas A década de 1970 80 até meados de 1990 Por que vocês não podiam se expressar Na época a maioria de nós que era criança crescemos casamos adquirimos família muito de vez em quando quando tinha um aniversário um casamento a gente ia lá fazia um pouquinho mas não tinha essa liberdade de chegar e fazer uma roda de jongo em qualquer lugar Então muito difícil quando tinha uma festa que a pessoa gostava também e convidava a gente pra fazer Então as vezes a gente levava dois três quatro cinco meses sem ver uma roda de jongo É isso que eu acho bonito do jongo que mesmo passando esse tempo todo a gente já teve época de eu ficar um ano sem ir numa roda de jongo e mesmo assim ninguém se esqueceu dele ninguém desistiu dele entendeu Ainda hoje tem muitos jongueiros que hoje são evangélicos estão doentes mas quando você fala com ele em jongo ele fala a S Fulano S Beltrano Quer dizer ele hoje não pratica mais por causa de religião de doença mas você sente que eles ainda gostam de jongo Pra gente isso é uma coisa que está no sangue da gente Mesmo que você esteja doente sentindo uma dor não pode e está impossibilitado mas se você chegar em uma roda de jongo se você for jon gueiro você não consegue ficar na roda sem se expressar também Eu acho que é por isso que algumas pessoas mais sensíveis presenciaram talvez uma roda de jongo e sentiram a energia que o jongo tem Então há pessoas muito bem intencionadas que sentiram que aquilo é uma coisa muito bonita e que estava realmente morrendo e resolveram fazer alguma coisa E nos incentivaram também porque através dessas pessoas me impulsionando me incentivando que eu continuo lutando pra que ele não morra Eu e muitos outros companheiros a gente está aí lutando pra que o jongo não morra a gente está tentando passar isso pra muitas outras pessoas pra ver se isso vai pra frente8 8 Entrevista realizada com a líder jongueira e vicepresidente da Associação Cultural Sementes DÁfrica Eva Lúcia de Moraes Faria Rosa realizada no dia 29012010 em Barra do Piraí EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 275 10092018 111723 276 Eva Lúcia de Moraes Faria Rosa nasceu em 14 de abril de 1957 no morro da Caixa DÁgua Velha em Barra do Piraí Filha de José Rodrigues de Faria e Thereza Guilhermina de Moraes Faria a Thereza Caxambu ou Tia Tê foi a quarta a nascer em uma família de 12 irmãos Seu pai assim como seu avô materno mudouse com a família para o município para trabalhar na ferrovia Eva recebeu do irmão de sua mãe José Gomes de Moraes o Tio Juca a responsabilidade pelos tambo res da família Ficou com a função de liderar a ampla família do jongocaxambu na qual cresceu e se manteve na tradição tomoua como missão um grande desafio Por meio da implementação das ações de salvaguarda pelo Iphan em 2008 Eva Lúcia consolidou sua posição de líder e é uma referência para a região Sul Fluminense A experiência e os anos de trabalho com o jongo e o diálogo com o poder público trouxeram para sua liderança a marca de um discurso consciente reivindicador e de formação política A jongueira canta dança e confecciona os tambores do jongo Foto 1 Jongueira Eva Lúcia de Moraes Faria Rosa EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 276 10092018 111723 277 Quando indagada sobre o porquê do título de patrimô nio cultural recebido pelo jongo a entrevistada declara que o jongo estava acabando que as pessoas estavam envelhecendo e morrendo e que passaram por momentos em que não podiam se expressar É interessante como associa o título o reconheci mento a um momento em que considera que o bem esteve em risco e aborda a perspectiva do patrimônio como algo a ser preservado cuidado e protegido Também destaca a importân cia de algumas pessoas mais sensíveis que se interessaram pelo jongo Ao frisar a necessidade de que algo seja feito para a prote ção da prática cultural o papel do Estado aparece na discussão atual do patrimônio imaterial Eva Lúcia registra um período em que não tinham liber dade de expressão quando não podiam chegar e fazer uma roda de jongo em qualquer lugar e associa esse tempo às décadas de 1970 1980 até meados de 1990 Essa indicação nos permite a confirmação de um período de silêncio do jongo e a sua reto mada na década de 1990 Especificamente em Barra do Piraí esse silêncio também pode ser comprovado em pesquisas em jor nais As primeiras notícias que encontramos de jongo aparecem em 1991 período em que a animadora cultural9 Elza Maria Paixão Menezes já desenvolvia projetos de articulação com os grupos através da proposta de se trabalhar a cultura local e o folclore nos Centros Integrados de Educação Pública Ciep A animadora cultural trabalhou em um Ciep localizado em um bairro de referência de famílias jongueiras de Barra do Piraí e conheceu o jongo através dos netos e filhos dos jongueiros que estudavam na unidade escolar Entretanto não podemos entender esse período de silên cio como um período em o jongo não aconteceu Pelos depoi 9 A animação cultural foi um dos princípios da educação proposta por Darcy Ribeiro na implementação dos CIEPs Centros Integrados de Educação Pública no governo Bri zola O papel desses educadores nas escolas é ligado à parte recreativa com atividades culturais de artes teatro e música No contexto de sua criação no primeiro mandato do governador no estado do Rio de Janeiro entre 1983 e 1987 os animadores culturais estavam comprometidos com uma intervenção social nas comunidades e se envolveram com os movimentos dos então grupos folclóricos Daí a participação e aproximação dos animadores culturais com grupos de jongo folia de reis e outras manifestações culturais populares associadas ao folclore brasileiro EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 277 10092018 111723 278 mentos e conversas com variados jongueiros inclusive a própria Eva Lúcia eles relatam que nunca ficaram sem fazer o jongo A prática das rodas sempre esteve presente nas suas vidas porém nesse período as rodas aconteciam com menos frequência e esta vam vinculadas somente a festas familiares como aniversários e casamentos e poucas festas comunitárias A falta de liberdade e de acesso ao espaço público reforçada pela impossibilidade de realizar as rodas em outros espaços destaca uma realidade em que ainda não estava problematizada a questão da proteção Ao analisar o contexto histórico do país podemos rela cionar esse tempo de silêncio indicado pela entrevistada com o período da ditadura militar As décadas de 1970 e 1980 foram de censura e repressão quando a população esteve furtada da liberdade de expressão O que não seria diferente com o jongo manifestação cultural popular negra que desde o século XIX esteve associada a batuque bagunça e baderna Porém mesmo nesse contexto de recessões como confirma Eva Lúcia em uma outra entrevista nunca deixaram de fazer o jongo Nunca paramos de fazer nunca A gente já não fazia assim mais toda semana mas vira e mexe a gente fazia a gente dava um jeito10 Desse modo esse silêncio tem a ver com um contexto histórico geral que marcou uma geração não só de jonguei ros mas de representantes das mais variadas formas artísticas populares Porém mesmo silenciados não estavam parados no âmbito familiar o jongo estava presente as rodas podiam acon tecer menos até raramente mas como a entrevistada relata ele nunca foi esquecido Este trecho da entrevista é uma fala emocionada Ela diz que é isso que eu acho bonito do jongo e menciona pessoas que mesmo afastadas por questões como doença e religião não deixam de gostar e se sentem comovidas perante uma roda o que marca uma identidade uma forte rela ção com a cultura negra e sua história Eva Lúcia diz que o jongo está no sangue que quem é jongueiro não consegue ficar perto de uma roda de jongo sem 10 Entrevista realizada com a líder jongueira e vicepresidente da Associação Cultural Sementes DÁfrica Eva Lúcia de Moraes Faria Rosa realizada no dia 1532011 em Barra do Piraí EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 278 10092018 111723 279 participar de alguma maneira Essa relação sanguínea marca um pertencimento familiar um laço que é interior está no sangue está na raça na memória e afirma uma identidade negra Quem é jongueiro tem o jongo no sangue e não consegue negar essa rela ção uma relação sanguínea uma relação familiar de um grupo de pessoas que são unidas por algo que lhes é comum que as une Assim é essa relação que forma uma grande família de des cendentes de escravos e africanos uma família extensa em que a marca do sangue não é pautada no parentesco em si mas na iden tidade jongueira A união através do jongo forma esse patrimônio que expressa partes importantes da história do nosso país De acordo com a entrevistada é essa característica de uma identidade negra tão marcada e forte que atraiu o inte resse de pessoas segundo ela sensíveis que viram a importância histórica e cultural do jongo Nas suas palavras Pessoas muito bem intencionadas que sentiram que aquilo é uma coisa muito bonita e que estava realmente morrendo e resolveram fazer alguma coisa Essas pessoas a quem ela se refere são estudiosos jornalistas intelectuais que buscaram estudar e divulgar o jongo A presença deles foi um incentivo e rompeu com o silêncio uma vez que ainda é o saber formal que detém o poder de legiti mar A presença de intelectuais especialmente após a década de 1990 com a abertura e a reestruturação da história e da antro pologia representa uma nova circulação cultural e impulsionou os jongueiros para a formalização de lutas que travam desde o tempo da escravidão BARRA DO PIRAÍ MEMÓRIAS E REGISTROS Eu moro na Barra Eu moro na Barra Paraíba é fundo Eu moro na Barra Nilton Pai Bola11 11 Antigo jongueiro de Barra do Piraí nascido na comunidade da Boca do Mato e mora dor do Morro da Caixa DÁgua Velha EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 279 10092018 111723 280 Em Barra do Piraí esse silêncio pôde ser comprovado também pelos registros impressos Não encontramos documen tos e publicações relacionados ao jongocaxambu que datem de período anterior à década de 1990 Há apenas a exceção de um certificado de participação na I Festa da Rainha da Prima vera de Barra do Piraí que foi conferido ao Sr José Gomes de Moraes o Tio Juca e outros participantes do jongo como sua irmã Tia Tê pela apresentação de caxambu no evento Esse certificado foi assinado pelo jornalista Gilson Baumgratz em 15 de dezembro de 1968 período marcado pela efervescência dos estudos folclóricos e pela atuação e articulação dos folcloristas Figura 1 Registro impresso mais antigo do acervo da Associação Cultural Sementes DÁfrica de Barra do Piraí A festa acontecia na própria comunidade dos jon gueiros em espaço bem próximo ao morro da Caixa DÁgua Velha Tinha organização comunitária e contava com o apoio da prefeitura uma vez que tinha como articulador o referido jornalista Ocorria anualmente e teve a duração de mais de uma década Só foi extinta quando o espaço utilizado foi ocupado EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 280 10092018 111723 281 pela expansão das obras da Casa de Caridade Santa Rita Hos pital Agnello Ciótola o primeiro de Barra do Piraí com funda ção em 1898 Gilson Baumgratz não era barrense de nascimento nasceu em 28 de dezembro de 1938 em Lima Duarte Minas Gerais Diziase historiador e jornalista Mesmo sem ter forma ção acadêmica específica nas referidas áreas consideravase um autodidata Foi fundador da Academia Barrense de Letras12 Era dono nas suas palavras DiretorResponsável de um jornal regional de destaque Com sede em Barra do Piraí o jornal O Centro Sul foi fundado pelo referido jornalista em 1970 Ele escre veu em uma de suas obras que procurou fazer um jornalismo que refletisse as mais autênticas aspirações do homem na luta pelo desenvolvimento no estímulo aos grandes objetivos de pro gresso de Barra do Piraí13 O jornal é editado até hoje e con tinua sob a direção da família de Baumgratz sendo o único de circulação ininterrupta desde a sua fundação O jornal O Centro Sul teve seu arquivo atingido por algu mas cheias do rio Paraíba do Sul e não conseguimos fazer uma pesquisa sistemática nas suas edições passadas A viúva do jor nalista atual responsável pelo jornal não autorizou o acesso aos arquivos utilizando como justificativa a precariedade do acervo Por isso as matérias que encontramos são cópias das edições guardadas e cedidas pelos próprios jongueiros O registro mais antigo do jongo de Barra do Piraí apa rece em uma edição de O Centro Sul Não sabemos precisar a data da publicação pois se trata de um recorte que não traz informações sobre a edição mas sabemos que é do início da década de 1990 pois fala da doação de um livro de Baum gratz que foi publicado em 1991 A matéria teve como título Grupo de folclore barrense se apresenta em São Paulo e traz o nome e uma foto do grupo a foto do mestre Dorvalino de Souza e a programação do evento realizado pela Fundação 12 A Academia Barrense de Letras foi fundada em Sessão Solene no 1 de maio de 1982 Consultar BAUMGRATZ Gilson Barra do Piraí cronologia histórica Niterói Imprensa Oficial 1991 13 BAUMGRATZ 1991 p 473 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 281 10092018 111723 282 Cassiano Ricardo de São José dos Campos São Paulo Tam bém registra que O historiador Gilson Baumgratz através do seu Dor valino presenteou aos principais organismos culturais e autoridades de São José dos Campos de livros autogra fados da história de Barra do Piraí levando às luzes de nossa civilização àquele povo tão preocupado na preser vação das melhores tradições brasileiras Esta passagem reforça a relação do jornalista e historia dor com o jongocaxambu de Barra do Piraí Figura 2 Notícia do jornal O Centro Sul EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 282 10092018 111724 283 Outra reportagem encontrada data de agosto de 1995 É anunciada pelo título Jongo de Barra do Piraí brilha na capital do Estado Ela fala de uma apresentação que os gru pos do Tio Juca e Filhos de Angola fizeram nos Arcos da Lapa no evento I Festival do Interior e destaca a presença da já mencionada animadora cultural Elza Maria Paixão Menezes associada ao trabalho do grupo A outra matéria é de 2000 Grupos de Jongo de Barra do Piraí participam de documen tário Menciona a participação dos grupos no documentário Chuva de Anjos de São José dos Campos que aborda tradições populares do Vale do Paraíba Aqui encontramos novamente uma referência à atuação da animadora cultural Elza Maria Paixão Menezes Figura 3 Notícia do jornal O Centro Sul Baumgratz também é autor do único livro local encon trado que faz referência à prática do jongocaxambu O livro que tem como título Barra do Piraí cronologia histórica data de 1991 mas é resultante de um trabalho de vários anos de pes quisa É um livro de 501 páginas sobre a história de Barra do Piraí Apresenta o seguinte sumário Primeira Parte Barra do Piraí Antiga Segunda Parte Barra do Piraí Média Terceira Parte Barra do Piraí Moderna e Quarta Parte Barra do Piraí Contemporânea Essa divisão é interessante por remeter à divi EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 283 10092018 111724 284 são cronológica da história das civilizações mas é apenas uma alusão e composição literária utilizada pelo autor para separar o que considerou momentos distintos da história do município Acreditamos que é no período anterior à década de 1970 que se formou um respeitado núcleo jongueiro no morro da Caixa DÁgua Velha Esse núcleo tinha como base a família de Eva Lúcia a partir da liderança de sua mãe a jongueira Thereza Guilhermina de Moraes Faria Conhecida como Thereza Caxambu ou Tia Thereza organizava festas e rodas de jongocaxambu na sua comunidade Nas proximidades de onde tinha uma barraca de venda de verduras ficavam a casa e a gráfica do jornalista Gilson Baumgratz Foi assim que se conheceram e ele começou a se interessar pelo jongo Eva Lúcia confirma essa aproximação Nessa época você lembra de algum pesquisador de alguém que já olhava para o jongo na época da sua mãe Na época da minha mãe quem olhava pro jongo e gos tava muito era o Sr Gilson do jornal O Centro Sul Desde quando eu era criança que ele veio morar aqui atrás da Santa Casa nessa época eu já não morava aqui em cima morava lá atrás da Santa Casa porque lá que tinha a barraca de verdura da minha mãe Então lá não tinha quintal a barraca era muito pequena Então quando ela queria fazer jongo ela fazia no meio da rua e ele passava pra lá e pra cá e via e começou a gostar e começou a se interessar Então a primeira pessoa a se interessar pelo jongo foi ele Ele frequentava mesmo as rodas ele ia ficava lá Ele ia e ficava olhando e ele fazia umas festinhas tam bém na rua lá era Festa da Primavera era Festa de São João ele juntava com os outros moradores e fazia festa de rua E nessa época ele sempre pedia pra minha mãe pra fazer o jongo na festinha Então às vezes a festinha era uma semana de festa durante a semana inteira tinha Porque a minha mãe já morava ali na rua já tinha bar raca ali e já tinha costume de fazer e pra ela chegava na ocasião de festa que ela também abria barraca pra EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 284 10092018 111724 285 vender coisinha na festa e fazia o jongo ali e se divertia e ganhava também um trocadinho14 Essas respostas confirmam o que o jornalista conta no seu livro e que vamos analisar a seguir Figura 4 Imagem da página 275 do livro de Gilson Baumgratz Barra do Piraí Cronologia Histórica Imprensa Oficial Niterói 1991 Na parte do livro de Baumgratz intitulada Cultura Musical em Barra do Piraí o autor inicia o texto definindo o que é cultura ação de cultivar e fala de um sentido subjetivo e outro objetivo para o termo dentro das ciências humanas No sentido subjetivo conota a idéia de um grau de desen volvimento das capacidades intelectuais do ser humano No sentido objetivo é o conjunto das criações pelas quais o espírito humano marcou a sua presença na história15 14 Entrevista realizada com a líder jongueira e vicepresidente da Associação Cultural Sementes DÁfrica Eva Lúcia de Moraes Faria Rosa realizada no dia 15032011 em Barra do Piraí 15 BAUMGRATZ 1991 p 273 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 285 10092018 111724 286 Somente essa conceituação de cultura já nos permite entender a perspectiva de análise que o autor segue Ele con tinua explicando que aborda a cultura barrense como um fenômeno essencialmente social criado pelo grupo por ele transmitido de geração a geração e difun dido na espaço propiciando as combinações de acultu ração bem como o vigor e a capacidade individual ou grupal na elaboração de grandes associações criadoras que abrem novas dimensões para expressões da capaci dade criadora da mente humana16 Podemos perceber que o autor tenta mostrar um conhecimento das discussões conceituais do seu tempo usa termos como aculturação e quer trazer uma abordagem proble matizada Entretanto o tom que prevalece no seu trabalho é memorialístico e muito próximo à perspectiva do movimento folclorista No movimento folclorista se construiu a crença de que era necessário registrar as práticas populares pois estas repre sentavam verdadeiramente a identidade nacional a integra ção da nação Na passagem para a modernidade estabeleceu se a preocupação em descrever as tradições populares como matéria de interesse nacional demarcando a cara do Brasil pelo tom da miscigenação e a partir do que se achava ser o seu diferencial E mais consideravase que essas tradições popula res estavam fadadas ao fim Dentro do contexto em que atuaram os folcloristas especialmente na primeira metade do século XX viveram seu tempo histórico e o problematizaram através de um ideal de construir uma identidade nacional baseada no que considera vam genuíno e para isso descreviam o que encontravam no interior do Brasil De acordo com Néstor Garcia Canclini17 o movimento folclorista trouxe uma invenção melancólica das tradições e por isso não considera os seus estudos como cien tíficos uma vez que não foram guiados por uma delimitação 16 Ibidem 17 CANCLINI Néstor Garcia Culturas híbridas estratégias para entrar e sair da moder nidade São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 2008 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 286 10092018 111724 287 precisa do objeto de estudo nem por métodos especializados O autor aponta como principal ausência nos trabalhos dos fol cloristas o não questionamento sobre o que muda nas culturas populares quando a sociedade se transforma A partir desse debate referente ao trabalho dos folclo ristas podemos dizer que o tempo histórico é algo muito com plexo pois não é natural é próprio da história se prolonga e serve para construir o futuro Na passagem à modernidade os intelectuais como homens do seu tempo viviam uma visão de tempo que discutia experiência e expectativa Pensavam nas expectativas do futuro mas relendo as experiências do pas sado Por isso descreviam registravam e deixavam documen tado o que e da forma que consideravam ser os fatos Assim marcaram suas concepções de realidade e ajudaram a formar seu tempo histórico uma vez que produziram interpretações e registros Seu presente era composto mais por continuidades do que por transformações Como intelectual folclorista Mário de Andrade foi pioneiro em suas ideias expressas no famoso anteprojeto sobre o patrimônio imaterial de 1936 em que já colocava questões que só foram assumidas e executadas na atualidade Perse guindo a premissa do patrimônio imaterial Andrade funda mentou suas análises na busca de identificar uma concepção de preservação que colocasse o inventário no centro de sua prática legitimandoo como instrumento de preservação em si mesmo e não apenas como ferramenta de gestão para bens tombados18 É a partir dessa premissa que hoje os bens imate riais são registrados É por meio dos inventários que os saberes práticas e modos de fazer são identificados e protegidos como patrimônio cultural imaterial brasileiro para sua salvaguarda Retomando o livro de Baumgratz ele estabelece o que vai apresentar primeiro O que se denominou classica mente na disciplina da etnologia de folclore social da música da dança e das festas populares até a literatura e as insti 18 NOGUEIRA Antonio Gilberto Ramos Por um inventário dos sentidos Mário de Andrade e a concepção de patrimônio e inventário São Paulo Hucitec Fapesp 2005 p 220 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 287 10092018 111724 288 tuições culturais19 Ele começa com uma explicação sobre o caxambu descreve de forma detalhada a manifestação cul tural e menciona o nome de alguns participantes O autor começa dizendo que o caxambu foi o tópico da cultura barrense sobre o qual teve maior dificuldade em reunir informações A bibliografia sobre o tema na época era mesmo muito escassa Assim precisou se inserir em um novo meio de convivência para ganhar a confiança dos jon gueiros poder frequentar as rodas de jongocaxambu e con seguir entender a manifestação cultural Em seguida faz uma breve descrição Define a prá tica cultural como uma espécie de samba rural em que não existe a umbigada tão comum em outras formas da tradição popular negra Fala em samba gênero consagrado da música brasileira acreditamos que pela presença de tambores e outros instrumentos semelhantes como uma grande cuíca e acres centa o termo rural pois é diferente e tem uma característica mais ritualizada e forma mais rústica o que pode ter levado o autor a fazer essa associação Dessa forma ao mesmo tempo que associamos o tra balho do autor às produções do movimento folclorista devido ao seu caráter descrito e olhar romântico vemos que ele apresenta uma conclusão que já sinaliza para as transforma ções e não relaciona essas alterações ao fim da manifestação cultural A partir de Canclini podemos dizer que sua análise é descritiva Ele apresenta uma visão um tanto melancólica da tradição seu objeto de estudo não é claramente delimitado e seus métodos não são definidos nem especializados Porém o autor considera o fator da transformação não o questiona mas apresenta essa possibilidade Canclini como já foi dito aponta como principal ausência nos trabalhos dos folcloristas o não questionamento sobre o que muda nas culturas populares quando a sociedade se transforma Nesse sentido podemos dizer que o trabalho de Gilson estaria em um local de intersecção entre o folclore e uma visão mais dinâ 19 BAUMGRATZ 1991 p 273 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 288 10092018 111724 289 mica da cultura popular tendendo mais para o folclore mas já com sinais da nova conceituação sobre cultura popular20 Dentro da trajetória de elaboração dessas análises ten tamos por alguns caminhos encontrar mais informações sobre o jornalista Gilson Baumgratz e seu acervo pessoal mas não conseguimos resultados positivos Tentamos contato com sua família e a viúva informou que não possui nada referente aos registros que pudesse nos interessar Buscamos outros informan tes e fontes próximas ao escritor Todos estranharam o interesse e demonstraram achar sua obra controversa Como já dissemos o livro é muito abrangente e com ressalvas compreensíveis pela época e formação do autor mas as partes referentes ao jongo às folias e ao carnaval são preciosas fontes de informação e isso fica confirmado na construção deste artigo Fica evidente não só nesse caso uma despreocupação com a viabilidade de consultas e a falta de acesso aos acervos de jornais do interior Também vemos uma despreocupação com os acervos pessoais inclusive entre os jongueiros que perderam e deixaram de guardar muitos certificados de festas e eventos de que participaram Em contraponto ao interesse e acompanhamento de Baumgratz verificamos a indiferença de dois professorespes quisadores que ainda escrevem para jornais locais Os dois nunca presenciaram uma roda de jongocaxambu sabem de forma superficial da sua existência e não conhecem nenhum jongueiro A professora e escritora Anna Maria Sloboda Cruz de 82 anos lecionou em Barra do Piraí de 1952 até meados da década de 1980 escreve em uma coluna de história no Jornal Revista Caderno Especial há 15 anos Em entrevista relatou ape 20 De acordo com a historiadora Martha Abreu a ideia de tradição popular na concep ção folclorista e da história cultural tradicional estava restrita à transmissão de objetos práticas e valores de geração para geração não considerava as transformações que a concepção de cultura popular e a nova história cultural consideram Essa mudança conceitual vem do diálogo com a antropologia que passa a entender a cultura numa perspectiva dinâmica e processual A concepção de cultura popular por mais limitado que seja esse conceito nos mostra que esse campo ainda está em disputa estando além do nosso controle e formando identidades A cultura é o lugar do conflito e falar em cul tura popular é destacar o conflito A cultura popular não é determinada pelas práticas mas sim pelos sujeitos sociais que a praticam EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 289 10092018 111724 290 nas uma lembrança de histórias contadas pelo avô sobre negros que circulavam pela cidade nos fins de semana e dançavam o caxambu mas nunca escreveu sobre isso21 Não conhece o regis tro de bens culturais de natureza imaterial e tem uma visão de patrimônio restrita a pedra e cal Tal constatação explica o silêncio relatado por Eva Lúcia no início do artigo Em Barra do Piraí esse silêncio esse desconhecimento e essa invisibilidade não foram superados e estamos longe disso pois as autoridades municipais ignoram o direito de memória e as leis patrimoniais A história e a cultura municipal não passa vam pelos negros o que deixou marcas significativas de exclusão cultural e racismo na sociedade local Há uma forte queixa dos jongueiros barrenses em relação ao poder público municipal O jongo em Barra do Piraí até hoje corre por conta dos jongueiros somos nós os jongueiros que estamos sustentando e levando o jongo pra frente com muito sacrifício22 Apenas nas escolas nos setores de educação cultura e turismo percebese interesse e uma procura mais frequente pelos grupos de cultura popular devido à maior cobrança em relação ao cumprimento da Lei 1063903 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana na Educação Básica e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana Nos últimos anos podemos destacar a realização no muni cípio de dois importantes eventos que envolveram os grupos de jongocaxambu na cidade Um ocorreu em maio de 2008 o lan çamento regional do documentário Jongos Calangos e Folias Música Negra Memória e Poesia23 Houve uma palestra de apresentação do DVD com o objetivo de capacitar os agentes escolares para o 21 Entrevista realizada com a professora e pesquisadora Anna Maria Sloboda Cruz Realizada no dia 2682009 em Barra do Piraí 22 Entrevista dada por Eva Lúcia de Moraes Faria Rosa vicepresidente da Associação Cultural Sementes DÁfrica realizada no dia 29012010 em Barra do Piraí 23 Documentário historiográfico resultado de projeto realizado pela UFF através do Laboratório de História Oral e Imagem LABHOI e pelo Núcleo de Pesquisas em His tória Cultural NUPEHC e patrocinado pela Petrobras Mais informações ver site www historiauffbrjongos EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 290 10092018 111724 291 trabalho didático com o material O evento reuniu representantes dos municípios de Barra do Piraí Valença Vassouras e Piraí e foi feita a doação de um exemplar para cada escola da rede pública de todas essas cidades de comunidades jongueiras O outro evento foi o Seminário Educação Cultura e Patrimônio a Diversidade na Escola que também consistiu em capacitação e instrumentalização para o uso da coletânea O Jongo na Escola nas salas de aula e na doação do material Como resultado desse movimento de obrigatoriedade do ensino da cul tura negra e do estímulo do trabalho com o jongocaxambu podemos citar o projeto desenvolvido pela Escola Municipal Cortines Cerqueira do bairro Lago Azul de Barra do Piraí A escola por meio de oficinas com os jongueiros e pesquisas com os alunos formou um grupo de jongo mirim chamado Memó rias do Cativeiro24 O trabalho envolve os professores de História Geogra fia e Educação Física e o grupo mirim tem se apresentado em eventos temáticos e fortalecido as discussões sobre identidade e cultura negra na escola Neste sentido é uma proposta exemplar que deve ser valorizada e difundida É o jongocaxambu abrindo caminhos e possibilitando novos diálogos na construção de uma sociedade mais igual e de uma educação mais diversa e popular Essa iniciativa aborda os princípios metodológicos da proposta da Educação Patrimonial que tem sido pensada e materializada como uma política de patrimônio voltada para um processo educativo da sociedade brasileira diante da neces sidade imperiosa de conhecimento e preservação do patrimô nio e da memória de grupos sociais distintos e subalternos ou excluídos que sofrem racismo Assim um dos principais objeti vos de uma Educação Patrimonial é contribuir para a formação de uma sociedade mais sensível mais respeitadora do seu pas sado e responsável pelo seu presente e futuro Sociedade esta que reconheça a sua herança cultural que respeite as gerações passadas como portadoras de saberes e de tradições que preci 24 Mais detalhes sobre o projeto da E M Cortines Cerqueira de Barra do Piraí e o grupo de jongo mirim Memórias do Cativeiro podem ser encontrados no blog Dispo nível em lagoazulbpblogspotcom Acesso em 24 abril 2016 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 291 10092018 111724 292 sam e devem ser transmitidos em sua integralidade ou reinven tados para as gerações futuras25 Contudo a escolha do que consideramos como patri mônio é sempre uma escolha uma seleção política dentre mui tas outras Por que determinados símbolos e não outros são escolhidos para a marcação de uma identidade ou reconheci mento de direitos26 A concepção de patrimônio cultural estabelecida pelo DecretoLei número 3551 de 4 de agosto de 2000 no Brasil que instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial possibilitando a esses bens passarem a constituir o Patrimônio Cultural Brasileiro trouxe novas veredas para tal questão ao articular o universo da cultura popular à concepção de patrimô nio imaterial uma vez que o popular aqui ainda traz a questão do racismo do ser negro Na aproximação entre o popular e o imaterial é arti culada uma visão de cultura que está relacionada com fatos e processos que atravessam as fronteiras entre as chamadas cul tura popular erudita ou de massa e mesmo o limite entre as diferentes camadas sociais São veículos de relações humanas de valores e visões de mundo27 Caracterizados por sua heterogeneidade a cultura e o saber popular conformam um interessante jogo de relações mar cadas por conflitos e negociações As práticas culturais popula res negras como o jongo trazem na sua história e como forte traço de sua identidade a resistência Representam formas de expressão que envolvem relações individuais e coletivas de apro ximações e distanciamentos pois ao mesmo tempo que podem atrair curiosidades interesses e admirações podem despertar preconceitos e discriminações Nas palavras de Cavalcanti 25 ARAÚJO Mairce PERZ Carmen L V TAVARES Maria Tereza G Caderno d professor alfabetizador oficinas de alfabetização patrimonial e formação de professores Rio de Janeiro Hp Comunicação Editora 2008 26 ABREU Martha MATOS Hebe Em torno das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicoraciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africanas Uma conversa com historiadores Revista Estudos Históri cos v 21 n 41 p 44 2008 27 CAVALCANTI Maria Laura de Castro Cultura e saber do povo uma perspectiva antropológica Revista Tempo Brasileiro Rio de Janeiro n 147 p 73 2001 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 292 10092018 111724 293 Vista sem preconceitos e em sua integridade a cultura e o saber popular são poderosos diluidores de fronteiras rígidas entre o que quer que seja são eficazes canais de comunicação humana a romper barreiras entre dife rentes grupos camadas e classes sociais São também como qualquer outro processo sóciocultural arenas onde se enfrentam interesses diferenciados e palco de proces sos tensos e conflitos de variada natureza No seu centro vicejam entretanto formas artísticas de valor humano28 Reconhecendo com a autora que a cultura e o saber popular são poderosos diluidores de fronteiras rígidas entre o que quer que seja como também são eficazes canais de comu nicação humana a romper barreiras entre diferentes grupos camadas e classes sociais destacamos a potencialidade do espaço escolar como um lócus privilegiado que incorporando ao seu currículo saberes histórias e memórias oriundos das lutas das classes populares possa contribuir para o reconhecimento da memória como instrumento de luta política Daí a importância do que podemos aprender com Eva Lúcia atual liderança jongueira de Barra do Piraí sobre um pas sado que foi por muito tempo silenciado e hoje começa a ganhar voz e que ao ser contado coloca em cena uma história de resis tência e luta Nesse novo contexto o passado está sendo utilizado como um discurso histórico e político contra o esquecimento pela valorização do que é popular e negro contra o racismo que passa pelo silêncio do reconhecimento da força cultural do jongo A Educação Patrimonial também constitui um tipo de ação educativa de combate ao racismo e às discriminações dado que proporciona o aprendizado através do patrimônio afrobra sileiro com vistas a preserválo e a difundilo Dessa forma o trabalho com a cultura negra chamado assim nas Diretrizes é fundamental na escola e deve ser valorizado e difundido É o jongocaxambu abrindo caminhos e possibilitando novos diálo gos na construção de uma sociedade mais igual e de uma educa ção mais diversa e popular 28 CAVALCANTI 2001 p 73 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 293 10092018 111725 294 BRANCO QUER APRENDER DANÇA DE PRETO1 VALORIZAÇÃO E RECONHECIMENTO NO REGISTRO DO PATRIMÔNIO IMATERIAL AFROBRASILEIRO Elaine Monteiro Pai Divino Espírito Santo primeiro que sai na guia eu vim saravá terreiro com Deus e a Virgem Maria2 O objetivo deste artigo é pôr em evidência fatos que precederam o registro do jongo no Sudeste3 como patrimônio cultural do Brasil e que revelam um movimento de articulação de comunidades negras ligado a características desta forma de expressão O texto procura pontuar ainda desafios colocados tanto às comunidades quanto ao Estado com relação às con cepções de patrimônio cultural e de salvaguarda de um bem registrado Se enfrentados por políticas culturais públicas que de fato tomem os detentores dos bens registrados como sujei tos da política como preconizam os documentos legais que pautam a política de patrimônio imaterial tais desafios podem ultrapassar os limites do reconhecimento e da valorização de uma forma de expressão da cultura afrobrasileira podem representar avanços no campo da garantia de direitos e contri buir não apenas para o reconhecimento da importância da cul tura afrobrasileira para a construção do patrimônio cultural do Brasil mas também para o complexo processo de reparação 1 Fragmento do ponto de jongo de Gilberto Augusto do Jongo de Piquete 2 Ponto de jongo de Mestre Cabiúna do Jongo de PinheiralRJ 3 Por sua abrangência regional o JongoCaxambu foi registrado como Jongo no Sudeste Para mais informações sobre o processo de inventário e registro consultar o Dossiê 5 do IPHAN Jongo no Sudeste Disponível em httpportaliphangovbr portalbaixaFcdAnexodoid722 Acesso em 3 maio 2015 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 294 10092018 111725 295 histórica com relação aos detentores de um patrimônio cultu ral de matriz africana As reflexões apresentadas são resultado de atividades de pesquisa produzidas no Pontão de Cultura do JongoCaxam bu4 programa de ensino pesquisa e extensão da Universidade Federal Fluminense que desde o ano de 2008 articula com jon gueiros e jongueiras ações de salvaguarda do jongo no Sudeste O PAU QUE PINGA OURO É A LAVOURA DE CAFÉ5 RESISTÊNCIA E ARTICULAÇÃO DE COMUNIDADES JONGUEIRAS O jongo ou caxambu amplamente conhecido divul gado e até mesmo disputado6 por alguns grupos na atuali dade especialmente após o registro como patrimônio cultural do Brasil no ano de 2005 dispensa apresentação7 O mesmo 4 Como o Pontão de Cultura do JongoCaxambu tem abrangência regional e reúne várias comunidades notase que em algumas destas a denominação da forma de expres são é Jongo Costa Verde do estado do Rio de Janeiro Vale do Paraíba comunidades de São Paulo e do norte do Espírito Santo em outras é Caxambu Noroeste do estado do Rio de Janeiro Zona da Mata mineira e em algumas comunidades do sul do Espírito Santo Há ainda comunidades que enfatizam a diferença entre o jongo ponto can tado e o caxambu dança e nome do tambor grande tocado na roda de jongo Diante dessas diferenciações foi feita a opção pela manutenção dos dois nomes na denominação do Pontão de Cultura Da mesma forma neste texto adotamse frequentemente os dois termos nas referências a esta forma de expressão e ao patrimônio cultural do Brasil 5 Fragmento de um ponto cantado pela comunidade de Porciúncula no Noroeste fluminense 6 Refirome a novos grupos de jongo cujos integrantes em geral de classe média têm maior acesso às políticas culturais e ao mercado cultural Esses grupos estão localizados nos grandes centros urbanos e em geral ao dançarem o JongoCaxambu reivindicam para si e para seus integrantes uma identidade jongueira que quando associada a seu capital cultural e social facilita o acesso a editais públicos vinculados a políticas culturais e ao mercado cultural com a realização de shows e de apresentações remuneradas com a gravação de CDs e sua comercialização com viagens nacionais e internacionais para seminários cursos e oficinas de Jongo Enfim tais grupos acabam por ter mais visibilidade e maior facilidade de acesso a recursos do que as comunidades tradicionais Processo similar ao que tem ocorrido com o JongoCaxambu nos últimos tempos já ocorreu com outras manifestações culturais como o Samba e a Capoeira Nas palavras de Carvalho tratase de grupos culturais de canibais de classe média que além de copiar as expressões populares passam a se apresentar em espetáculos tomando o lugar dos verdadeiros mestres populares CARVALHO José Jorge de Espetacularização e canibalização das culturas populares In I Encontro SulAmericano das Culturas Populares e II Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares São Paulo Instituto Pólis Brasília DF Ministério da Cultura 2007 p 100 7 Para saber mais sobre o JongoCaxambu consultar wwwpontaojongouffbr Acesso em 3 maio 2015 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 295 10092018 111725 296 não pode ser afirmado com relação a ações e movimentos de jongueiros e jongueiras para que esta forma de expressão alcan çasse reconhecimento e valorização Por seus fundamentos e valores ancestrais pela riqueza dos elementos que o constituem pela história de seus detentores o jongocaxambu é mais do que canto e dança e foi registrado como uma forma de expressão8 de comunidades negras do Sudeste Remonta a movimentos de resistência e de articulação de seus antepassados Comunidades negras atualizaram memó rias de um passado de resistência mantiveram o jongocaxambu e em torno dele se articularam em seus processos organizativos por garantia de direitos que tragam melhores condições de vida para detentores e detentoras deste bem pela afirmação de sua identidade e como forma de enfrentamento do racismo a que são historicamente submetidas em nossa sociedade Abreu e Mattos9 informam o registro da presença do jongocaxambu no Sudeste desde o século XIX na zona rural nas periferias das cidades e em festas na cidade do Rio de Janeiro Apontam que desde as primeiras décadas do século XX o jongo foi objeto de estudo de folcloristas e que na década de 1980 pesquisas mostram sua presença em favelas cariocas As autoras registram a relação existente entre o jongo e exmilitantes abo licionistas ainda no início do século XX Mas também sinali zam que para os folcloristas em geral o jongocaxambu estaria fadado ao desaparecimento ou a uma sobrevivência folclórica 8 O instrumento para o reconhecimento do patrimônio imaterial por parte do Estado é o registro equivalente ao tombamento do patrimônio material O registro procura valo rizar os bens e estabelece o compromisso do Estado em documentar produzir conheci mento e apoiar a continuidade das práticas socioculturais O Decreto 35512000 que institui o registro dos bens culturais imateriais sugere características dos bens registrados por meio da criação dos Livros de Registro voltados para os saberes conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades as formas de expressão manifestações literárias musicais plásticas cênicas e lúdicas as celebrações rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho da religiosidade do entretenimento e de outras práticas da vida social e os lugares mercados feiras santuários praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas 9 ABREU Martha MATTOS Hebe Jongos registros de uma história In LARA Sil via Hunold PACHECO Gustavo Org Memória do Jongo as gravações históricas de Stanley J Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca Campinas SP CECULT 2007 p 7397 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 296 10092018 111725 297 Nos terreiros das fazendas de café do Vale do Paraíba os jongos foram cantados e dançados ao ritmo da percussão do tambor grande e do candongueiro e cumpriram várias fun ções diversão desafio reverência aos ancestrais religiosidade comunicação crônica do cotidiano entre outras Slenes10 ao referirse ao estudo realizado por Stanley Stein no município de Vassouras na década de 40 do século XX menciona o caráter coletivo do jongo e o poder de arti culação dos jongos pontos nos cantos durante o trabalho e em pontos cifrados que mantinham uma rede de comunicação entre jongueiros que viviam em diferentes localidades No entanto o jongocaxambu também foi reprimido invisibilizado e fadado ao desaparecimento após a abolição da escravidão Mas resistiu E alcançou visibilidade e valoriza ção na sociedade porque comunidades jongueiras souberam mantêlo vivo como um patrimônio Lutas e conquistas des sas comunidades se deram e ainda se dão pelo papel que o jongocaxambu assume em suas formas de organização arti culação e resistência No estado do Rio de Janeiro enquanto plantações de café se expandiam pelo interior o tráfico atlântico era res ponsável pelo desembarque ilegal de africanos escravizados no litoral fluminense para o trabalho nas lavouras11 Portos clandestinos atuaram com intensa movimentação no litoral Sul Fluminense na região que hoje abrange os municípios de Mangaratiba Parati e Angra dos Reis e no litoral Norte Flu minense na região de Búzios São Pedro da Aldeia Cabo Frio para atender às fazendas de café do Vale do Paraíba Após a Abolição jongueiros migraram para periferias de cidades mais ou menos próximas às fazendas de café12 10 SLENES Robert Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala centroafricana In LARA Silvia Hunold PACHECO Gustavo Org Memória do Jongo as gravações históricas de Stanley J Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca Campinas SP CECULT 2007 p 115 11 Em 1831 a Lei Feijó proibia formalmente o tráfico de escravos mas ele perdurou até 1850 quando houve a proibição definitiva do tráfico pela Lei Eusébio de Queirós 12 ABREU Martha MATTOS Hebe Org Pelos caminhos do Jongo história memória e patrimonio Niterói NeamiUFF 2008 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 297 10092018 111725 298 Nos dias de hoje comunidades jongueiras ainda se encontram em locais próximos aos então portos clandestinos no litoral sul do estado Angra dos Reis MarambaiaMangara tiba e Parati e em cidades da região do Vale do Paraíba como Piraí Barra do Piraí Pinheiral Vassouras Valença e na própria cidade do Rio de Janeiro morro da Serrinha em Madureira para onde houve migração dos libertos em busca de melhores condições de vida E ainda em cidades próximas ao litoral norte do estado como Campos e Quissamã onde as plantações de cana de açúcar utilizaram mão de obra escrava e nos municí pios do Noroeste Fluminense como Santo Antônio de Pádua Miracema e Porciúncula onde também houve produção de café como registra o ponto de jongo cantado nas rodas da região o pau que pinga ouro é a lavoura de café Jongueiros e jongueiras em especial os mais velhos guardam a memória de mestres jongueiros em vários municí pios próximos às cidades nos quais suas comunidades estão localizadas Esses relatos e a localização das comunidades jon gueiras levam à constatação de que o binômio cultivo do café e portos de desembarque ilegal de africanos escravizados delimi tou um grande território jongueiro13 na região Sudeste Há ainda a presença de comunidades jongueiras em locais próximos à divisa de municípios do Noroeste Fluminense com os estados de Minas Gerais Carangola e do Espírito Santo Itapemirim Cachoeiro do Itapemirim Alegre Anchieta como também em vários municípios do Vale do Paraíba paulista como Guaratinguetá Piquete e São José dos Campos e em Campi nas oeste paulista Nesta última região a produção de café se intensificou após seu declínio no Vale do Paraíba em função do desgaste do solo nesta região e após a proibição do tráfico de africanos escravizados Todas as localidades mencionadas contam com comu nidades que mantêm o jongocaxambu que guardam histórias de seus antepassados e que atualizam suas lutas por meio de memórias coletivas São comunidades negras que mediante a 13 TERRITÓRIO jongueiro Disponível em httpwwwpontaojongouffbrterrito riojongueiro Acesso em 10 fev 2016 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 298 10092018 111725 299 tradição oral construíram sua identidade que souberam man ter seu patrimônio cultural e por meio dele desenvolvem ações coletivas no presente As memórias do jongo fazem parte da vida e fazem a vida de jongueiros e jongueiras A memória que legitima o passado no presente faz com que comunidades jongueiras procurem se diferenciar dos demais grupos de jongo que têm se formado nos últimos anos quando mar cam a diferença pelo fato de serem comunidades que mantiveram e mantêm a tradição do jongocaxambu A tradição compreen dida como marca de distinção colocase como argumento para o reconhecimento a valorização e em especial a reparação uma vez que na concepção de algumas comunidades apenas os grupos que carregam a marca da tradição devem ser beneficiados com políticas públicas de salvaguarda do patrimônio imaterial Esta tensão entre comunidades tradicionais que mantêm seus patrimônios e novos grupos que deles se apropriam refletese no processo que José Jorge de Carvalho14 chama de canibalização das culturas populares Para o autor o diálogo entre representantes do Estado e os que preservam a cultura popular deverá contribuir para a criação de novos mode los de intercâmbio e de acesso pleno à cidadania Adentramos então outra questão importante para a recente valorização do jongocaxambu a questão da cidadania que remete a mudanças ocorridas na sociedade brasileira após a promulgação da Constituição Federal de 1988 que ampliaram direitos da população e alargaram o conceito de cultura e de patrimônio cultural Como avalia Canclini15 talvez os avan ços legais sobretudo a consagração da pluriculturalidade nas Constituições estejam entre as poucas conquistas recentes Comunidades jongueiras puderam conquistar direitos culturais de reconhecimento e de valorização de seu patrimônio assim como vincular tais conquistas a outras lutas por direitos como o direito à terra à educação e à valorização da história e da cultura afrobrasileira nos currículos escolares para mencionar mos apenas o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais 14 Ibidem p 96 15 CANCLINI Nestor Garcia Diferentes desiguais desconectados Tradução Luiz Sérgio Henriques 2 ed Rio de Janeiro Editora UFRJ 2007 p 261 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 299 10092018 111725 300 Transitórias da Constituição de 1988 que reconhece os territórios quilombolas a política de cotas para negros nas universidades e a Lei 106392003 Os direitos conquistados com a Constituição de 1988 inauguram novas formas de relação entre as comunidades e as instituições do Estado assim como exigem deste último a criação de estrutura e de serviços que de fato garantam os direitos con quistados Novamente com Canclini a realização complementar dos direitos econômicos sociais e culturais englobada sob a noção ampliada de cidadania atribui ao Estado a responsabilidade prin cipal de sua realização16 O REGISTRO DO JONGO NO SUDESTE COMO PATRIMÔNIO CULTURAL DO BRASIL Branco quer aprender dança de preto Branco quer aprender dança de preto Abana o lencinho que eu te dei comadre Maria Abana o lencinho que te dei17 No dia 17 de dezembro de 2005 no município de Santo Antônio de Pádua o Jongo no Sudeste foi publicamente proclamado patrimônio cultural do Brasil pela então diretora do Departa mento de Patrimônio Imaterial do Instituto do Patrimônio His tórico e Artístico Nacional DPIIphan Márcia SantAnna representando o ministro da Cultura à época Gilberto Gil A diretora do DPI estava acompanhada de representantes institucionais do Iphan da Secretaria Especial de Promoção de Polí ticas de Igualdade Racial Seppir e da Unesco Estavam reunidos no evento os grupos e associações das seguintes comunidades jonguei ras do estado do Rio de Janeiro 1 Associação dos Remanescentes do Quilombo Santa Rita do Bracuí Angra dos Reis 2 Associa ção Cultural Sementes DÁfrica representando as comunidades do Morro da Caixa DÁgua Velha e da Boca do Mato Barra do Piraí 3 Associação Senzala Caxambu de Miracema representando a 16 O autor referese à conclusão do estudo A Igualdade dos Modernos realizado pela Cepal e pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos p 103 17 Ponto de jongo de Gilberto Augusto do Jongo de PiqueteSP EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 300 10092018 111725 301 comunidade do morro do Cruzeiro Miracema 4 Centro de Refe rência de Estudo Afro do Sul Fluminense Pinheiral 5 Caxambu Michel Tannus representando as comunidades jongueiras dos muni cípios de Porciúncula e de Natividade 6 Associação Cultural Jongo da Serrinha representando a comunidade jongueira do morro da Serrinha no bairro de Madureira Rio de Janeiro 7 Caxambu Dona Sebastiana II representando a comunidade jongueira do bairro São Luís e da Cidade Nova Santo Antônio de Pádua 8 Associação de Remanescentes de Quilombo da Comunidade Negra da Fazenda São José da Serra Valença 9 Comunidade Jongueira da Fazenda Machadinha Quissamã Além das nove comunidades também estiveram presen tes lideranças e representantes das comunidades jongueiras de Arrozal Piraí de Campos e de Vassouras Do estado de São Paulo participaram as comunidades de Campinas Guaratin guetá Piquete e São José dos Campos E do estado de Minas Gerais a comunidade de Carangola Movimentos e articulações originados no estado do Rio de Janeiro antecederam aquele momento de grande importância para as comunidades Da mesma forma o momento de celebração inau gurava novas relações entre comunidades e Estado que como em um ponto de jongo gerariam demandas para ambas as partes Até Piquete surgiu com um jongo Branco quer aprender dança de preto abana o lencinho que eu te dei comadre Maria abana o lencinho que eu te dei Aquilo era o título que tava chegando Começaram a chamar as pes soas para receber o certificado de patrimônio imaterial eu não sabia o que significava Patrimônio imaterial A gente tava num processo de uma construção de um projeto que hoje chega no Pontão do Jongo Eu não sabia disso que através daquele documento que a gente tava recebendo estaria começando algo mais forte Prá mim o Pontão hoje ele é mais forte do que o certificado18 18 Paulo Rogério da Silva liderança jongueira de MiracemaRJ membro da equipe de coordenação do Pontão de Cultura do JongoCaxambu entre os anos de 2008 e 2012 em entrevista para o documentário Pontão do Jongo fazer com em diferença 05052012 acervo do Pontão de Cultura do JongoCaxambu UFF EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 301 10092018 111725 302 O evento que marcou a proclamação pública do jongo no Sudeste como patrimônio cultural do Brasil foi a realização do X Encontro de Jongueiros em Santo Antônio de Pádua que retornava ao seu local de origem como forma de celebra ção em homenagem aos mestres do lugar19 e ao professor Hélio Machado de Castro20 colaborador das comunidades na reali zação dos encontros de jongueiros desde a sua primeira edição O movimento de organização das comunidades que ficou conhecido como Encontro de Jongueiros tinha como objetivos a troca de experiências e de saberes a afirmação da identidade jongueira e o fortalecimento de comunidades negras em suas lutas e contou desde a sua primeira realização no ano de 1996 com a colaboração da Universidade Federal Fluminense No ano de 2000 por ocasião do V Encontro de Jongueiros realizado em Angra dos Reis onde também há um campus da UFF foi iniciada a articulação da Rede de Memória do Jongo e do Caxambu21 Foi o movimento iniciado por comunidades jongueiras dos municípios do Noroeste Fluminense ao qual se juntaram comunidades da Costa Verde e do Vale do Paraíba assim como a comunidade da Serrinha na cidade do Rio de Janeiro comunida des do estado de São Paulo e a comunidade de CarangolaMG que gerou a demanda ao Estado de reconhecimento do jongo caxambu como patrimônio cultural do Brasil e ações posteriores de salvaguarda deste patrimônio Da mesma forma é pela capa cidade de articulação de comunidades jongueiras que novas ações 19 Dona Sebastiana II mestre jongueira de Santo Antônio de Pádua falecida em 1995 aos 101 anos Mestre Orozimbo falecido no ano seguinte à realização do X Encontro Dona Aparecida Ratinho mestre jongueira da cidade vizinha Miracema falecida em 2013 20 Professor de Sociologia da Educação da Universidade Federal Fluminense em Santo Antônio de Pádua professor de História e de Estudos Sociais do Colégio de Pádua fol clorista do Noroeste fluminense diretor de Turismo da Prefeitura de Santo Antônio de Pádua 19751979 idealizador do projeto Encontro de Jongueiros junto com lideran ças jongueiras do Noroeste fluminense conselheiro da Comissão Fluminense de Folclore por dois mandatos de 2000 a 2004 e de 2004 a 2008 este último interrompido com o seu falecimento em 2 de agosto de 2006 21 O professor Paulo Carrano da Faculdade de Educação da UFF compareceu junto com Délcio Bernardo liderança do Movimento Negro de Angra dos Reis ao IV Encon tro de Jongueiros realizado no ano de 1999 na Lapa quando conheceu o professor Hélio Machado de Castro do campus da UFF em Santo Antônio de Pádua No IV encontro os dois professores junto com lideranças jongueiras articularam a realização no ano seguinte do V Encontro de Jongueiros em Angra dos Reis EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 302 10092018 111725 303 de salvaguarda nos âmbitos estadual e municipal foram definidas e implementadas como será apresentado posteriormente Portanto cinco anos antes do Decreto nº 3551 de 4 de agosto de 2000 que instituiu o registro dos bens culturais de natureza imaterial e criou o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial e dez anos antes do registro do Jongo no Sudeste como Patrimônio Cultural do Brasil jongueiros e jongueiras já se arti culavam com a universidade e com outros parceiros em ações de salvaguarda deste bem como a realização do I Encontro de Jongueiros mesmo que ainda não tivessem se apropriado dos termos da política de patrimônio cultural Embora o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popu larIphan tenha sido o proponente do registro do Jongo no Sudeste o que motivou a proposição foi a solicitação feita a esta institui ção pelas comunidades da Serrinha e do Quilombo São José da Serra assinada por lideranças de outras comunidades que se articulavam nos encontros de jongueiros com a mediação de professores estudantes e pesquisadores que viram no Decreto 35512000 uma possibilidade de reconhecimento do jongo caxambu por parte do Estado Abreu e Mattos22 destacam a importância de a solicita ção do registro ter sido feita pelas próprias comunidades o que é reconhecido pelo próprio Iphan como decorrência da articula ção das comunidades nos encontros de jongueiros e na Rede de Memória do jongocaxambu Para o Iphan esse processo de mobilização e organização tornouse importante prova de que as comunidades jongueiras tinham consciência de possuir um bem cultural de grande valor O apoio ao Encontro de Jongueiros e a articulação das comunidades em rede como ações de salvaguarda garantidas pelo Estado estão recomendados no parecer que fundamentou o registro do Jongo no Sudeste como patrimônio cultural do Brasil Outro fato importante para a visibilidade e a valorização do jongocaxambu na cidade do Rio de Janeiro que teve grande 22 ABREU Martha MATTOS Hebe Jongos registros de uma história In LARA Silvia Hunold PACHECO Gustavo Org Memória do Jongo as gravações históricas de Stanley J Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca Campinas SP CECULT 2007 p 71 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 303 10092018 111725 304 repercussão foi o papel de Mestre Darcy Monteiro do Jongo da Ser rinha que na década de 60 do século XX como resistência criou o grupo artístico Jongo Basam Posteriormente no início da década de 1990 o grupo passou à denominação de Grupo Cultural Jongo da Serrinha Mestre Darcy promoveu com a criação do grupo a profissionalização do jongocaxambu assim como inovou com a introdução de novos instrumentos e com a participação no grupo de pessoas de fora da comunidade que para ele eram bemvindas uma vez que contribuíam para a manutenção e divulgação desta forma de expressão Além dos espetáculos do grupo Mestre Darcy ensinava o jongocaxambu em espaços fora da comunidade como forma de atrair e mobilizar a classe média para a manutenção do jongo No Centro Cultural Jongo da Serrinha localizado na comu nidade há ainda hoje uma escola de jongo Naquele momento Mestre Darcy possivelmente viu no envolvimento de estudantes e da classe média uma estratégia de manutenção do jongo O papel e a militância de Mestre Darcy no movimento de valorização do jongocaxambu são reconhecidos e celebrados pelas comunidades jongueiras Ele participou do IV e do V Encontro de Jongueiros Com o seu falecimento em dezembro de 2001 foi homenageado pelas comunidades no VII Encon tro de Jongueiros realizado em Pinheiral no ano seguinte Tia Maria mestre jongueira da Serrinha parceira de Mestre Darcy desde o Jongo Basam foi consagrada pelas lideranças jongueiras como madrinha do Pontão de Cultura do JongoCaxambu durante a cerimônia de sua inauguração em abril de 2008 Movimentos de jongueiros e jongueiras demonstram que as possibilidades abertas pela legislação que regulamenta os direi tos estabelecidos na Constituição Federal de 1988 e pelas conven ções internacionais das quais o Brasil é signatário especialmente no que se refere ao princípio da autodeclaração parecem atribuir novo sentido à cidadania uma vez que os direitos outrora outor gados podem ser reivindicados por indivíduos e coletividades Como afirma Santos23 a cidadania pode começar com defini ções abstratas cabíveis em qualquer tempo e lugar mas para ser válida deve poder ser reclamada 23 SANTOS Milton O espaço do cidadão 7 ed São Paulo Editora da USP 2007 p 20 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 304 10092018 111725 305 Com relação ao patrimônio a Convenção para a Sal vaguarda do Patrimônio Imaterial celebrada em Paris em 17 de outubro de 2003 na Unesco e ratificada pelo Brasil pelo DecretoLegislativo 22 de 8 de março de 2006 traz em si a noção de autorreconhecimento 1 Entendese por patrimônio cultural imaterial as prá ticas representações expressões conhecimentos e técnicas junto com os instrumentos objetos artefatos e lugares culturais que lhes são associados que as comunidades os grupos e em alguns casos os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural Este patrimônio cultural imaterial que se transmite de geração em geração é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente de sua interação com a natureza e de sua história gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana 24 Percebese portanto que um dos avanços em termos da legislação que dá novo sentido à possibilidade de reconhecimento e de reparação é a possibilidade de os direitos serem de fato recla mados por aqueles que finalmente viram a partir da Constituição de 1988 a possibilidade de se autodeclararem e se autorreconhe cerem portadores de direitos historicamente negados Mesmo antes do registro como patrimônio cultural do Bra sil comunidades jongueiras já se articulavam por meio do jongo caxambu em suas lutas por direitos E o fato de o Estado reconhecer o patrimônio cultural do Brasil não está desvinculado do fato deste mesmo Estado reconhecer o direito de comunidades quilombolas à terra ou de reconhecer a necessidade da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura AfroBrasileira nos currículos escolares ou ainda de reconhecer a existência do racismo na sociedade brasi leira e formular políticas de ação afirmativa quando dados ampla mente divulgados na sociedade revelam as desigualdades existentes entre brancos e negros com relação às oportunidades de educa 24 Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial 2003 artigo 21 Dis ponível em httpwwwunescoorgcultureichdocsrc00009PTPortugalPDF pdf Acesso em 2 maio 2015 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 305 10092018 111725 306 ção de trabalho entre outras especialmente para jovens negros Esses vários reconhecimentos por parte do Estado a partir de uma nova Carta Constitucional são resultado de lutas dos movimentos sociais em particular dos movimentos negros aos quais muitos jon gueiros e jongueiras também se articularam em suas trajetórias de vida Por suas várias inserções por suas articulações posteriores e pelas dinâmicas das próprias comunidades em que estão inseridas muitas lideranças articulam a partir do jongocaxambu as lutas por direitos subtraídos de suas comunidades Em decorrência as instituições do Estado ao reconhece rem direitos reclamados caso não se articulem em suas competên cias e responsabilidades mesmo que cada uma tenha sua área de atuação específica dificilmente poderão operar a garantia efetiva dos direitos25 Sabese pela própria formulação clássica da cidada nia de Marshall que na sociedade capitalista os direitos sociais são os de difícil realização uma vez que incidem sobre a distribuição de recursos para a sua garantia Sabese ainda que os direitos sociais básicos são de muito mais difícil realização para a população negra o que revela de forma contundente o racismo presente exatamente nas instituições que deveriam garantir direitos O trabalho com comunidades jongueiras tem mostrado dificuldades em relação à sociedade e ao Estado relacionadas às novas possibilidades de afrodescendentes reclamarem seus direitos e os articularem Da parte da sociedade com relação ao reconhe cimento e à valorização dos afrodescendentes ou afrobrasileiros é comum identificar a associação preconceituosa que se faz entre 25 Canclini 2007 p 262 nos diz que as perguntas atuais giram em torno de como articular as batalhas pela diferença com as que se dão contra a desigualdade num mundo onde todos estamos interconectados Tal formulação indica que não basta garantir direitos culturais de respeito às diferenças se desigualdades e exclusão não forem devida mente enfrentadas o que remete à necessidade de articulação de instituições do Estado em suas competências para a garantia de direitos No entanto em geral instituições do Estado procuram mapear suas áreas de atuação Seus agentes afirmam que cuidam apenas de uma determinada questão justificando que não podem arcar com todos os problemas e questões que afetam as comunidades Isso é fato No entanto a responsabili dade de articulação dos diversos setores eou instituições para a garantia de direitos cul turais políticos e sociais se faz necessária Sempre que possível a apartação do social das demais questões já é sinal de disputas existentes porque a garantia de direitos sociais está diretamente ligada a questões econômicas Outro ponto a ser observado na frag mentação das ações por parte do Estado são as competências das esferas de governo e o papel de normatização e regulamentação por parte do governo federal EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 306 10092018 111725 307 os direitos reclamadosconquistados como forma de privilégio Por outro lado o discurso da mestiçagem é convenientemente utilizado nos processos que poderíamos chamar de apropriação indébita de um patrimônio que é do Brasil mas que tem seus detentores e detentoras muito bem identificados nas comunida des tradicionais e que apesar de todas as adversidades souberam manter seu patrimônio Da parte do Estado os direitos reclama dos são reconhecidos mas não são criadas estruturas por meio de políticas públicas efetivas e articuladas para garantilos Comparativamente Canclini26 ao referirse aos indígenas aponta situações similares àquelas vividas por comunidades jon gueiras no campo da garantia de direitos ao afirmar que para milhões deles o problema não é manter campos sociais alternati vos mas ser incluídos chegar a se conectarem sem que isso atro pele sua diferença ou os condene à desigualdade Toninho Cane cão liderança jongueira do Quilombo São José da Serra em sua sabedoria sintetiza em um ponto de jongo as questões aqui levan tadas quando diz que tudo o que o negro fez pra esse Brasil em termos de cultura em termos de trabalho de luta o que o negro hoje tá reivindicando do Brasil de um boi é apenas o mocotó27 Quando mata boi cambinda Mocotó é meu cambinda Prá pagar carreiro cambinda Que esse boi me deu VOU CAMINHANDO DEVAGAR VOU CAMINHANDO DEVAGAR28 A NOVIDADE DO PATRIMÔNIO CULTURAL E AS DEMANDAS DA SALVAGUARDA A forte presença do jongocaxambu na região Sudeste evi dencia que para as comunidades jongueiras ele é há muito um patrimônio 26 CANCLINI Nestor Garcia Diferentes desiguais desconectados Tradução Luiz Sérgio Henriques 2 ed Rio de Janeiro Editora UFRJ 2007 p 66 27 Antônio Nascimento Fernandes Toninho Canecão entrevista para o filme Pontão do Jongo fazer com em diferença realizada em 25032012 acervo do Pontão de Cultura do JongoCaxambu 28 Ponto do Jongo de Pinheiral EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 307 10092018 111725 308 Sempre quando tinha uma festa um aniversário um bati zado um casamento em todos os momentos alegres de nossas vidas a gente sempre fez a roda de Jongo por gostar mesmo Às vezes a gente não tinha muito recurso lá no interior mas a gente fazia uma panela de canja uma panela de sopa e fazia uma roda e lá se ia pela noite inteira começava assim pelas sete da noite e chamava todos os jongueiros da região que na época eram muitos e todos chegavam lá porque eles gostavam E assim ia até o outro dia tipo nove horas da manhã um canta outro canta e todos gostavam muito Então eu acho que é por isso que o Jongo persiste ninguém via ninguém sabia mas nós estávamos lá praticando ele29 Podese considerar que a partir do momento em que o Estado brasileiro reconheceu o patrimônio imaterial como patri mônio cultural do país a novidade com relação a este tema se colocou para as instituições do Estado que até então trabalhavam principalmente com o patrimônio material e não para as comu nidades Para estas o registro foi uma conquista derivada de um movimento reconhecidamente organizado de dez anos do movi mento liderado por Mestre Darcy e da manutenção do jongo caxambu nas próprias comunidades invisível por décadas para a sociedade abrangente e para o Estado Se há alguma novidade na vida das comunidades é a possibilidade de interlocução com instituições do Estado a partir do registro como patrimônio cultu ral e da política de patrimônio imaterial Esta interlocução coloca para as partes envolvidas a discussão de outro conceito direta mente ligado ao patrimônio o de salvaguarda especialmente quando no diálogo com instituições do Estado os integrantes da sociedade civil são negros e negras30 agora detentores de um patrimônio cultural do Brasil 29 Eva Lúcia de Moraes Faria Rosa liderança jongueira de Barra do Piraí entrevista para o filme Sou de Jongo realizada em 01062008 acervo Pontão de Cultura do Jongo Caxambu 30 Utilizase neste trabalho o termo negroa como o conjunto dos indivíduos pretos e par dos da população brasileira segundo critério de classificação racial utilizado pelo IBGE EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 308 10092018 111725 309 O depoimento da liderança jongueira de Barra do Piraí corrobora o posicionamento de Gonçalves31 quando afirma que o patrimônio é uma categoria de pensamento que ela não é simplesmente uma invenção moderna que tem caráter milenar e que é extremamente importante para a vida social e mental de qualquer coletividade humana que o patrimônio forma as pessoas O autor defende a ideia de que a própria categoria patrimônio deve ser pensada etno graficamente tomandose como referência o ponto de vista do outro E com base nesta posição conclui que não pode responder qual a melhor opção em termos de políticas de patrimônio que apontar para dimensão universal da catego ria patrimônio pode levar à compreensão dos motivos pelos quais indivíduos e grupos em diferentes culturas usamna e que estamos diante de um problema bem mais complexo do que sugerem os debates políticos e ideológicos sobre o tema do patrimônio Com relação ao jongocaxambu e à política de patri mônio imaterial não se pode negar a importância do ins trumento do registro No caso do registro do Jongo no Sudeste como patrimônio cultural do Brasil quem esteve presente ao X Encontro de Jongueiros pôde vivenciar a importância da conquista do reconhecimento pelo Estado para as comuni dades Afinal como identificam Abreu e Mattos32 O jongo tornavase a primeira manifestação de canto dança e percus são realizada por comunidades do Sudeste identificadas como afrobrasileiras que recebia o cobiçado título No ato da proclamação pública representantes do Estado entregavam ao representante de cada comunidade a documentação do registro e uma certidão contendo o título de patrimônio cultural Cada mestre ou liderança jongueira ao 31 GONÇALVES José Reginaldo Santos O patrimônio como categoria de pensa mento In ABREU Regina CHAGAS Mário Org Memória e patrimônio ensaios con temporâneos 2 ed Rio de Janeiro Lamparina 2009 p 32 32 ABREU Martha MATTOS Hebe Jongos registros de uma história In LARA Silvia Hunold PACHECO Gustavo Org Memória do Jongo as gravações históricas de Stanley J Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca Campinas SP CECULT 2007 p 69 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 309 10092018 111725 310 receber o referido documento saudavao junto à sua comuni dade Aquela certidão materializava o tardio reconhecimento do Estado à contribuição de comunidades negras do Sudeste para a cultura brasileira O destino dado pelas comunidades ao docu mento também evidencia a importância do reconhecimento por parte do Estado Nas comunidades que possuem uma sede para o funcionamento de suas atividades podese encontrar o título emoldurado e pendurado na parede em lugar de destaque Nas comunidades que se organizam e se articulam nas casas de seus mestres é comum encontrar o título pendurado na parede da sala também em posição de destaque Há sem dúvida no registro um significado simbó lico importante para as comunidades A política de patri mônio imaterial revela com o instrumento do inventário e do registro o que foi historicamente negado em nosso país a importância das culturas negras e indígenas para a socie dade brasileira Basta uma rápida consulta à página do Iphan para a constatação de que com relação ao patrimônio imate rial a contribuição de negros e indígenas é inequívoca pois a grande maioria dos bens registrados como patrimônio imate rial ou são de matriz indígena ou são de matriz africana ou contam com a participaçãocontribuição de uma das duas ou ainda de ambas O registro no entanto também gerou demandas para as comunidades e para o Estado Ainda durante o X Encontro de Jongueiros a questão do que aconteceria após o registro se apresentava como uma forte demanda Da parte do Estado não basta registrar O registro deve vir acompanhado de um plano de salvaguarda que indique ações concretas de defesa do bem registrado Da parte das comunidades apesar do impacto do registro ficava a indagação do que fazer com o título que benefícios o registro traria de fato às comunidades Em 2006 uma iniciativa do CNFCPIphan33 reuniu lideranças jongueiras em dois seminários na tentativa de defi 33 FALCÃO Andréia Plano de Salvaguarda do Jongo Relatório da 1ª reunião com as comunidades e lideranças jongueiras Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular CNFCPIPHAN novembro de 2006 Mimeografado EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 310 10092018 111725 311 nir com a participação das lideranças ações que posterior mente pautariam o plano de salvaguarda do Jongo no Sudeste O CNFCPIphan no entanto contava à época com recursos bastante reduzidos para a realização deste plano O resultado dos dois seminários foi sistematizado e enviado a todas as pre feituras de municípios que têm comunidades jongueiras acom panhado da certidão de registro do Jongo no Sudeste do parecer que fundamentou o registro e de uma carta com solicitação de apoio às prefeituras para o reconhecimento e a salvaguarda do Jongo no Sudeste As lideranças das comunidades jongueiras tam bém receberam o referido material e posteriormente em reu nião com a equipe do CNFCPIphan informaram a pouca efi cácia desse material junto às prefeituras A relação das comunidades jongueiras com as prefeitu ras é uma das principais demandas da política de salvaguarda A falta de apoio dos municípios a falta de conhecimento destes sobre a política nacional de patrimônio imaterial o uso político das manifestações culturais por governos locais o tratamento dado a estas como folclore e a constante reivindicação de uma ação do Iphan junto às prefeituras para que a política de patri mônio se estabeleça e se consolide de forma consequente em todas as esferas de governo refletem na pesquisa que dá susten tação a este trabalho34 o posicionamento de grande parte das comunidades jongueiras com relação aos governos locais e uma forte demanda ao próprio Iphan No final do ano de 2007 com o objetivo de viabilizar recursos e ações para a construção de políticas públicas de sal vaguarda de bens registrados o Iphan e a então denominada Secretaria da Cidadania Cultural35 do Ministério da Cultura estabeleceram parcerias com instituições públicas e privadas para a implantação de Pontões de Cultura de Bens Registra 34 Tratase da análise dos relatórios de 21 reuniões de articulação realizadas com lide ranças jongueiras pelo Pontão de Cultura do JongoCaxambu Nesses relatórios são registrados todos os informes das comunidades que integram o Pontão assim como todas as questões debatidas nas reuniões A análise do material levou em conta a reinci dência do tema relação com prefeituras e governos locais nos referidos informes e nas temáticas debatidas pelas comunidades durante as reuniões 35 Atual Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural SCDC EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 311 10092018 111725 312 dos Esses pontões se definiram como uma linha de atuação do Iphan e até o ano de 2012 a instituição contabilizava 11 convê nios com Pontões de Bens Registrados no país36 A concepção do Programa Cultura Viva37 ao poten cializar com recursos pontos de cultura assim como o investi mento na criação de redes de pontos de cultura se adequava a muitas recomendações para a salvaguarda existentes nos inven tários dos bens registrados como patrimônio cultural Em um seminário realizado no mês de dezembro de 2007 com a participação de lideranças jongueiras de repre sentantes do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular CNFCP do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan das superintendências estaduais do Iphan da UFF de consulto 36 Até o ano de 2012 eram eles 1 Arte e Vida dos Povos Indígenas do Amapá e Norte do ParáAP 2 Cachoeira de Iauaretê Lugar Sagrado dos povos indígenas dos rios Uaupés e PapuriAM 3 Feira de CaruaruPE 4 Jongo no SudesteES MG RJ SP 5 Matrizes do Samba no Rio de Janeiro partido alto samba de terreiro e sambaen redo RJ 6 Modo de Fazer VioladeCochoMT 7 Modo de Fazer VioladeCocho MS 8 Ofício das Baianas de AcarajéBA 9 Samba de Roda do Recôncavo Baiano BA 10 Tambor de CriolaMA 11 Círio de Nossa Senhora de NazaréPA Infor mação cedida pelo Iphan para elaboração do documento Programa Cultura Viva Pela manutenção e ampliação da ação Pontões de Cultura de Bens Registrados articulada entre o Iphan e a Secretaria de Cidadania CulturalMinc em janeiro de 2011 subscrito por 10 dos 11 pontões de cultura de bens registrados e enviado à Presidência da República ao Ministério da Cultura ao Iphan e à Seppir em função da mudança de gestão do governo federal acervo do Pontão de Cultura do JongoCaxambu 37 O Programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura foram criados em 2004 pelo Minis tério da Cultura Minc com o objetivo de incentivar preservar e promover a diversi dade cultural brasileira A Política Nacional de Cultura Viva foi criada para garantir a ampliação do acesso da população aos meios de produção circulação e fruição cultural a partir do Ministério da Cultura em parceria com governos estaduais e municipais e com outras instituições como escolas e universidades Tornouse uma das políticas culturais com mais capilaridade e visibilidade do Ministério da Cultura Essas políticas estão presentes nos 26 estados brasileiros no Distrito Federal e também em cerca de mil municípios promovendo os mais diversos segmentos da cultura brasileira Atualmente atendem iniciativas dos mais diversos segmentos da cultura cultura de base comunitária com ampla incidência no segmento da juventude Pontos de Cultura Indígenas Quilom bolas de Matriz Africana a produção cultural urbana a cultura popular abrangendo todos os tipos de linguagem artística e cultural Desde 2004 já foram implementados 3500 Pontos de Cultura em todo o país Até 2020 a SCDC pretende fomentar mais 10500 Pontos de Cultura para atingir a meta prevista no Plano Nacional de Cultura de 15 mil pontos em funcionamento Em 22 de julho de 2014 a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 13018 que institui a Política Nacional de Cultura Viva simplifi cando e desburocratizando os processos de prestação de contas e o repasse de recursos para as organizações da sociedade civil Ministério da Cultura O que é a Política Nacional de Cultura Viva PNCV Disponível em httpwwwculturagovbrcul turaviva1 Acesso em 3 maio 2015 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 312 10092018 111725 313 res parceiros e colaboradores foi debatido o projeto de criação do Pontão de Cultura do jongocaxambu Por proposição dos próprios jongueiros fundamentada no argumento do fortalecimento do coletivo das comunidades foi deliberado que o Pontão de Cultura do JongoCaxambu ficaria sediado na UFF A deliberação era resultado da relação estabelecida entre a universidade e as comunidades por meio de atividades de pesquisa e de extensão e da compreensão de que uma vez sediado em uma universidade pública o Pontão de Cultura poderia fortalecer o coletivo jongueiro que se organi zava nos encontros e finalmente criar condições objetivas para a almejada articulação das comunidades em rede O PONTÃO DE CULTURA DO JONGOCAXAMBU Saravá terra que eu piso Saravá Araribóia Saravá Pontão do Jongo Que nasceu em Niterói38 O Pontão de Cultura do JongoCaxambu tem arti culado várias ações diagnosticadas pelas comunidades como necessárias ao Plano de Salvaguarda do Jongo no Sudeste39 Na universidade o Pontão de Cultura do JongoCaxambu caracte rizase como um programa de ensino pesquisa e extensão que articula não só comunidades jongueiras como vários setores da UFF40 Entre os anos de 2008 e 2012 foram desenvolvidos proje tos por meio de três convênios firmados entre a Fundação Eucli 38 Ponto de jongo criado por Mestre Laudeni de São José dos CamposSP por ocasião da inauguração da sede do Pontão de Cultura do JongoCaxambu no dia 12 de abril de 2008 em NiteróiRJ acervo Pontão de Cultura do JongoCaxambu 39 Disponível em httpwwwpontaojongouffbrsitesdefaultfilesuploadplano desalvaguardaversaofinalpdf Acesso em 3 maio 2015 40 Atualmente na UFF além de se articular com o Núcleo de Pesquisa em História Cultural Nupehc e o Laboratório de História Oral e Imagem Labhoi ambos do Departamento de História o Pontão de Cultura do JongoCaxambu se articula com o Observatório Jovem com o Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasi leira Penesb com o Laboratório de Educação e Patrimônio Cultural Laboep com o Laboratório de Imagem e Documentação em Educação Lide todos da Faculdade de Educação e com os cursos de Pedagogia História Produção Cultural Cinema Comu nicação Social e Serviço Social EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 313 10092018 111725 314 des da Cunha FEC de apoio à universidade e o Iphan Em reunião realizada no dia 8 de dezembro de 2013 por decisão do Departamento de Patrimônio Imaterial e das Superintendên cias Estaduais do Iphan acordada com as lideranças jongueiras presentes a partir do conhecimento acumulado com o desen volvimento das ações nos três convênios foi decidida a atuação direta das equipes do Iphan com as comunidades nas ações de salvaguarda do jongo no Sudeste41 As ações de salvaguarda desenvolvidas no Pontão de Cultura do JongoCaxambu se organizam em três eixos estabe lecidos como norteadores dos pontões de cultura pelo Programa Cultura Viva no edital do ano de 2007 articulação e distribui ção capacitação e qualificação difusão e divulgação42 Desde 2008 foram realizadas muitas ações todas elas desenvolvidas de acordo com princípios teóricometodológicos da Educação Popular43 e portanto planejadas desenvolvidas e avaliadas junto com as lideranças comunitárias em diálogo permanente com todos os sujeitos envolvidos44 41 Desde o início do ano de 2012 o programa Pontão de Cultura do JongoCaxambu é desenvolvido na UFF com recursos do ProExtMecSESu programa de extensão de Secretaria de Ensino Superior do Ministério da Educação As ações do ProExt são desen volvidas em parceria com a Rede de Jovens Lideranças Jongueiras Há ainda ações desen volvidas por meio de projetos de pesquisa e de extensão diretamente com comunidades jongueiras e quilombolas 42 A palavra qualificação foi adicionada ao segundo eixo pela equipe da UFF a partir do segundo ano de trabalho no Pontão de Cultura do JongoCaxambu com base no tra balho com as comunidades e na compreensão de que o termo capacitação indica ações instrumentais e imediatas de formação e de que o termo qualificação indica a necessária formação inicial e continuada da população negra na universidade com o objetivo de diminuir as desigualdades educacionais existentes entre brancos e negros na sociedade bra sileira Compreendese ainda que o acesso pleno aos direitos sociais e culturais se dará com consistente formação profissional em nível superior Para isso são desenvolvidas várias ações de aproximação entre comunidades e universidade assim como atividades de for mação de jovens lideranças e de formação de professores em escolas da Educação Básica 43 Brandão Carlos Rodrigues Streck Danilo R Org Pesquisa participante o saber da partilha Aparecida SP Ideias e Letras 2006 44 Ao todo foram realizadas 21 reuniões de articulação de lideranças 10 reuniões de arti culação de jovens lideranças aproximadamente 30 oficinas com a abordagem de temáti cas como organização comunitária elaboração de projetos identidade negra audiovisual memória história e patrimônio jovens lideranças jongueiras entre outras 12 seminários de formação de professores um grande seminário sobre patrimônio cultural afrobrasileiro além das constantes visitas de assessoria às comunidades de vários eventos e encontros locais e regionais de publicações da realização de filmes da produção de materiais didáticos e de divulgação da cultura jongueira Todas as ações encontramse registradas em relatórios foto gráficos no site do Pontão de Cultura do JongoCaxambu wwwpontaojongouffbr EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 314 10092018 111725 315 A metodologia de trabalho do Pontão de Cultura do JongoCaxambu pautase pelo princípio da elaboração e exe cução coletiva das ações de salvaguarda o fazer com em diferença Esta metodologia que possibilita a articulação das comunidades jongueiras em rede com participação de vários parceiros em muito contribuiu para a ampliação das atividades desenvolvidas pelas comunidades Desde o início das atividades do Pontão de Cultura do JongoCaxambu surgiram algumas perguntas o que era a sal vaguarda qual era o seu significado e como o pontão articularia as ações de salvaguarda O Programa Nacional de Patrimônio Imaterial45 em suas diretrizes estabelece que a salvaguarda deve promover a inclusão social e a melhoria das condições de vida de produtores e detentores do patrimônio cultural imaterial Em termos de salvaguarda do jongo como demonstram Cor sino e Freire46 o registro do patrimônio imaterial pelo Iphan já é em si uma ação de salvaguarda porque é precedido de inven tário e gera vasto material de pesquisa e documentação sobre a manifestação estudada além de garantir aos seus detentores o reconhecimento por parte do Estado o que também pode gerar prestígio e recursos Observase que o registro foi de fato um ato político importante As comunidades fazem uso do registro como forma de pressão de luta nas localidades onde vivem para que o jongocaxambu seja reconhecido e valorizado o que não necessariamente acontece No conceito de salvaguarda no entanto como indicou Gonçalves ao problematizar o conceito de patrimônio a partir do outro este outro deve ser levado em consideração quando se pretende que ele seja sujeito da política Tal posicionamento leva à constatação de que o conceito de salvaguarda pode ter 45 IPHAN Programa Nacional de Patrimônio Imaterial Disponível em httpportaliphangovbrportalmontarDetalheConteudodojsessionid3C 2FC8C2C138004A6E5D183E2D048AF3id12689siglaInstitucionalretornode talheInstitucional Acesso em 8 jun 2011 46 CORSINO Célia Maria FREIRE Maria das Dores Patrimônio imaterial brasileiro In EXPERIENCIAS y políticas de salvaguardia del Patrimonio Cultural Inmaterial en América Latina Análisis de experiências nacionales Cusco Centro Regional para la Salvaguardia del Patrimonio Cultural Inmaterial de América Latina CRESPIAL 2010 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 315 10092018 111725 316 diferentes concepções para as instituições do Estado e para os detentores do bem registrado Assim ao considerar os detento res como sujeitos da política as reflexões dos próprios jonguei ros não poderiam deixar de ser trazidas para o debate Jeferson Alves de Oliveira liderança jongueira de GuaratinguetáSP afirma sua posição47 Porque tem a particularidade do Jongo Você vê como é que é esse negócio da raiz que é interessante eu percebo isso em todos os lugares que eu vou não acontece só na minha comunidade O Jongo ele pega uma pessoa pra ele Meu avô era jongueiro ele teve nove filhos só a minha mãe era do Jongo O Jongo se guarda O próprio Jongo faz a salvaguarda dele Mas foi o que a Rose falou seria bom que vocês fizessem um projeto de salvaguarda dos jongueiros porque a salvaguarda do Jongo tá aqui dentro da minha casa meu marido viu o avô dele cantando viu a mãe e agora ele canta e tá ensinando pra filha dele Quando marca a diferença entre salvaguarda do Jongo e salvaguarda do jongueiro Jeferson parece sintetizar a questão da garantia de direitos sociais e marcar a distinção entre o con ceito de salvaguarda de um bem mantido por indivíduos grupos e comunidades e o conceito de salvaguarda entendido como pre servação no sentido simples de salvar e guardar Revela em sua concepção o dinamismo do patrimônio imaterial que man tém significativa relação com aspectos sociais históricos políticos e culturais dos grupos e indivíduos que o produzem e recriam E mais revela que só o reconhecimento não basta que ele deve vir acompanhado de ações que incidam sobre a melhoria da quali dade de vida de jongueiros e jongueiras Durante o ano de 2011 por decisão do coletivo formado por lideranças jongueiras parceiros e instituições que se articula vam no Pontão de Cultura do JongoCaxambu o Plano de Salva guarda do Jongo no Sudeste foi devidamente sistematizado deba 47 Entrevista com Jeferson Alves de Oliveira liderança jongueira de GuaratinguetáSP para a realização do documentário Pontão do Jongo fazer com em diferença realizada em 25032012 acervo do Pontão de Cultura do JongoCaxambu UFF EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 316 10092018 111725 317 tido aprovado e submetido a instâncias do Iphan48 O objetivo maior do documento era refletir os papéis tanto do Estado quanto da sociedade nas ações de salvaguarda e formular um plano que seria coletivamente executado com participação e compromisso de todas as partes envolvidas Após muitos debates chegouse a uma diferenciação entre o que se constituía como Comissão Gestora do Pontão de Cultura do JongoCaxambu formada desde o iní cio das atividades em 2008 por lideranças jongueiras integrantes da equipe da UFF e técnicos do Iphan no âmbito da qual eram planejadas desenvolvidas e avaliadas todas as ações e um Comitê Gestor do Plano de Salvaguarda do Jongo no Sudeste Neste seria de responsabilidade do Iphan a mobilização de todos os setores e das esferas de governo envolvidos nas ações de salvaguarda e no planejamento articulado Ao fazerem tal formulação jongueiros e jongueiras reivindicam o papel de normatização do governo federal na articulação das três esferas de governo ou seja o que reivindi cam é o funcionamento do sistema articulado de cultura e de patri mônio como afirmam no Plano de Salvaguarda Constituir uma Comissão de Apoio ao Plano de Salva guarda do Jongo com distintos parceiros tais como repre sentantes das prefeituras representantes das secretarias de cultura estaduais e municipais representantes de outras instituições de ensino e de interesses afins com a realiza ção de reuniões com periodicidade semestral a ser convo cadamobilizada pelo DPIIphan Ainda com relação ao papel do Estado e do governo federal na política de patrimônio imaterial objetivos e estraté gias formulados no Plano de Salvaguarda definem quais seriam as ações do Estado para a superaração dos limites existentes nos estados e municípios com a indicação de ações de sensibilização e de capacitação destes para a implantação de políticas de reco nhecimento e de valorização do patrimônio imaterial e de seus detentores e detentoras 48 O Plano de Salvaguarda do Jongo no Sudeste foi enviado por meio de ofício ao Departamento de Patrimônio Imaterial e às Superintendências Estaduais do Iphan do Espírito Santo de Minas Gerais do Rio de Janeiro e de São Paulo Disponível em httpwwwpontaojongouffbrsitesdefaultfilesuploadplanodesalvaguarda versaofinalpdf Acesso em 3 maio 2015 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 317 10092018 111725 318 Mesmo que no âmbito do governo federal tenha sido criada uma política de patrimônio imaterial baseada nos instru mentos do inventário do registro das ações e planos de salva guarda há no entanto uma enorme distância entre o governo federal e os governos estaduais e municipais No caso do estado do Rio de Janeiro por exemplo ainda não foi criada uma lei que regulamente a política de patrimônio imaterial em confor midade com o governo federal e com os acordos internacionais o que também distancia os municípios das discussões e concep ções sobre patrimônio e salvaguarda As demandas de jongueiros e jongueiras ao Estado mais precisamente ao governo federalIphan e as dificuldades deste em atendêlas com a justificativa de que não pode interferir nos estados e municípios de que deve respeitar a sua autono mia se assemelham às dificuldades apontadas por Saviani49 de constituição no Brasil de um Sistema Nacional de Educação Com efeito o que é a federação senão a unidade de vários estados que preservando suas respectivas identidades intencionalmente se articulam tendo em vista assegurar interesses e necessidades comuns E não é exatamente por isso que o nível articulador da federação a instân cia que representa e administra o que há de comum entre os vários entes federativos se chama precisamente União Ora assim sendo a federação postula portanto o sis tema nacional que no campo da educação representa a união dos vários serviços educacionais que se desenvolvem no âmbito territorial dos diversos entes que compõem a federação O autor defende a posição de que cabe à União a norma tização a coordenação do planejamento articulado com estados e municípios o suprimento de recursos materiais caso os municí pios não os tenham e a supervisão da implementação das ações planejadas para a efetivação da política pública O não cumpri mento do papel da União com a justificativa da descentralização e do respeito à autonomia dos estados e municípios mascararia o 49 SAVIANI Demerval Sistema Nacional de Educação Articulado ao Plano Nacional de Educação Revista Brasileira de Educação v 15 n 44 p 382 maioago 2010 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 318 10092018 111726 319 recuo e a retração do Estado na execução de políticas públicas de garantia de direitos em especial os direitos sociais Neste ponto não poderíamos deixar de recorrer mais uma vez a Canclini50 quando afirma os limites das políticas culturais trazendonos o exemplo das comunidades indígenas observouse que os avanços haviam ocorrido quase uni camente em áreas culturais educação bilingue legitimação de comportamentos simbólicos mas quanto a territórios e bens materiais o que mais se acumulou foram perdas A situação dos indígenas apontada por Canclini e a concepção de salvaguarda de Jeferson remetem à garantia de direitos que vão além dos direitos culturais As formulações do Plano de Salvaguarda apontam dificuldades das instituições do Estado em promover ações coerentes e integradas como forma de garantia de direitos como reivindicam lideranças jongueiras Tanto com relação a comunidades negras quanto indí genas tratase de um Estado que mantém desigualdades sociais em comunidades e grupos que tiveram e têm no seu perten cimento racial a justificativa para a situação de desigualdade Nesse sentido se o reconhecimento não vier acompanhado de reparação muito pouco se terá avançado No caso das comunidades jongueiras e de outras formas de expressão de matriz africana não teremos avançado se o reco nhecimento não se converter em ações concretas que diminuam as desigualdades existentes entre brancos e negros na sociedade brasileira Quando o Estado brasileiro reconhece a rica contri buição que afrodescendentes deram e dão ao patrimônio cultu ral do país não pode deixar de assumir a responsabilidade de forma intersetorial e articulada entre as esferas de governo com a melhoria das condições de vida de detentores e detentoras do patrimônio reconhecido sob pena de vestir velhas práticas com novos nomes e de ter provocado um mal maior às comuni dades tradicionais após a repercussão do registro na sociedade sobretudo se levarmos em conta o mercado cultural e as diferen tes formas de apropriação do jongocaxambu Como sinalizado 50 CANCLINI Nestor Garcia Diferentes desiguais desconectados Tradução Luiz Sérgio Henriques 2 ed Rio de Janeiro Editora UFRJ 2007 p 67 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 319 10092018 111726 320 anteriormente e como coloca José Jorge de Carvalho51 o debate recente sobre o patrimônio imaterial na sociedade brasileira revela o quanto este patrimônio é racializado Pela primeira vez provavelmente estamos admitindo como assunto legítimo de discussão acadêmica intelec tual que o patrimônio cultural imaterial brasileiro não é incolor como fica implícito no discurso de nossa elite acadêmica de Gilberto Freyre até hoje mas é racializado A maioria esmagadora das artes performáticas que estão sendo alvo de expropriações é de origem africana o con gado o jongo o maracatu o tambordecrioula e ao mesmo tempo é praticada por artistas de comunidades negras Por outro lado todos os teóricos e formuladores de políticas de patrimônio bem como os pesquisadores e mediadores são maioritariamente brancos A utiliza ção dessas tradições para entretenimento portanto é uma operação racializada são negros provenientes de comuni dades pobres que colocam suas tradições de origem afri cana para entreter uma classe média branca Até agora a discussão das tradições culturais não havia admitido a imbricação indissolúvel entre a clivagem de classe e a clivagem racial A partir de agora essa fuga em uma dimensão morena mestiça ou integrada da sociedade brasileira não é mais sustentável REFLEXÕES PARA CONTINUAR O DIÁLOGO Em novembro de 2015 o registro do Jongo no Sudeste como patrimônio cultural do Brasil completou dez anos Em um breve balanço podese observar que à exceção das ações siste máticas desenvolvidas pelo Iphan em parceria com a UFF e com comunidades jongueiras por meio dos três convênios em um 51 CARVALHO José Jorge de Metamorfoses das tradições performáticas afrobrasileiras de patrimônio cultural a indústria de entretenimento Série Antropologia 354 Brasília DF UnB 2004 Disponível em wwwdanunbbrcorpodocentestart1 p 14 Acesso em 3 maio 2015 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 320 10092018 111726 321 período de cinco anos 2008 a 2012 muito pouco foi feito52 O Comitê Gestor do Plano de Salvaguarda do Jongo no Sudeste não foi criado as ações articuladas com estados e municípios não foram planejadas e desenvolvidas o patrimônio imaterial não foi sistematicamente pautado nos conselhos municipais e estaduais de cultura da região Sudeste para o acompanhamento e a articulação de ações de salvaguarda Na relação com o Estado novamente são as comunida des que pelos caminhos do jongocaxambu provocam algumas ações e representações No Rio de Janeiro comunidades articu ladas no Pontão de Cultura do JongoCaxambu por intermé dio da Comunidade do Jongo da Serrinha em diálogo com a Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa conseguiram a promulgação da Lei Nº 6098 de 5122011 que institui 26 de julho Dia de SantAnna sincretizada com Nanã nas religiões de matriz africana como Dia Estadual do Jongo A lei estadual que celebra o Dia do Jongo em um dia que simbolicamente representa a ancestralidade não deixa de ser também um reco nhecimento nesta esfera de governo As comunidades têm pro curado não só festejar a data como manter neste dia o diálogo com representantes do Estado em audiências públicas e semi nários como forma de dar visibilidade a questões que envolvem a salvaguarda do patrimônio imaterial A expectativa é de que a lei aproxime esferas de governo e crie no nível estadual uma política para o patrimônio imaterial assim como desencadeie processos semelhantes nos municípios O município de Pinheiral avançou no sentido do reco nhecimento do jongo como patrimônio cultural No dia 7 de abril de 2014 Pinheiral foi o primeiro município do estado do Rio de Janeiro a instituir por meio da Lei Nº 0442013 o Dia Municipal do Jongo A data foi escolhida em homenagem ao aniversário de um mestre da comunidade Mestre Cabiúna A partir do reconhecimento do jongo no município pelo Poder 52 A Superintendência do Iphan de São Paulo gravou um CD e realizou uma exposição fotográfica com as comunidades do estado A Superintendência do Iphan do Rio de Janeiro organizou em 2016 a gravação de um CD com as comunidades do estado Em 2014 o Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan apoiou a realização do 13º Encontro de Jongueiros que aconteceu em São José dos Campos EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 321 10092018 111726 322 Legislativo o Poder Executivo tem assumido o compromisso com uma pequena dotação orçamentária mensal como forma de colaboração para a manutenção das atividades da Casa do Jongo de Pinheiral A singularidade do patrimônio imaterial está no fato de ser um patrimônio que as pessoas carregam consigo O que as une na relação de pertencimento a suas comunidades é o patri mônio que carregam ser jongueiro ou jongueira ser responsável por receber em seu processo de socialização um patrimônio que vem sendo passado de geração em geração e transmitir este patri mônio às futuras gerações mesmo que os tempos sejam outros Como as identidades são múltiplas e dinâmicas e não se é apenas negro jongueiro quilombola homem mulher jongueiros e jongueiras assim como outros grupos em nossa sociedade articulam suas identidades em suas lutas e reclamam seus direitos No caso das comunidades jongueiras o fato de serem afrobrasileiras ou afrodescendentes articula identidades e incide sobre os direitos sejam eles civis políticos culturais e de muito mais difícil garantia os direitos sociais Ou seja nas questões que afetam as comunidades não há como separar o status assegurado pela garantia de direitos culturais por exemplo com o reconhecimento e a valorização por eles gerados dos direitos sociais a eles vinculados que são os que de fato incidem sobre a melhoria das condições de vida e con sequentemente sobre questões de ordem econômica sobre as desigualdades sociais e sobre o racismo A análise das ações desenvolvidas no Pontão de Cultura do JongoCaxambu permite concluir que o programa não fez nada além de dar continuidade a um movimento que já existia por iniciativa das próprias comunidades e fortalecer a articula ção das comunidades em rede E isso foi feito por meio da rea lização de reuniões periódicas de articulação quando lideran ças jongueiras passavam um final de semana juntas discutindo questões que diziam respeito a elas e às suas comunidades Nos diálogos que se estabeleceram nas reuniões de articulação sabe res e fazeres sobre diversas temáticas foram compartilhados tais como o próprio jongocaxambu patrimônio salvaguarda do EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 322 10092018 111726 323 patrimônio imaterial papel do Estado nas comunidades iden tidade negra das comunidades jongueiras organização comuni tária direito à terra ações afirmativas preconceito racial reli giosidade papel dos jovens nas comunidades papel da universi dade e a própria metodologia de trabalho do Pontão de Cultura do JongoCaxambu53 Tais temáticas não estavam dadas inicialmente foram percebidas e debatidas ao longo do processo de trabalho O desafio que se faz constante é o do diálogo permanente entre ação e reflexão teoria e prática na produção coletiva de conhe cimentos A questão racial e a identificação de que o patrimô nio imaterial é de fato racializado se colocou desde a primeira reunião de articulação do programa O que se observou foi um movimento articulado das lideranças jongueiras que pelos caminhos do jongocaxambu passou a coletivamente afirmar a identidade negra das comunidades como forma de enfrenta mento do racismo e das desigualdades sociais dele decorrentes Da mesma forma o movimento que articula jongo identidade negraenfrentamento do racismo se deu nos eventos realizados que homenagearam mestres e jovens lideranças jon gueiras e debateram políticas de ação afirmativa na elaboração de material didático que permitiu o trabalho das comunidades em escolas na realização de seminários e eventos dentro e fora da universidade em que jongueiros e jongueiras ocupavam o mesmo espaço de autoridades professores e pesquisadores no registro audiovisual e na produção de filmes que procuram manter não só o respeito à oralidade como permitem que ela seja o registro principal de lideranças e mestres jongueiros no espaço de oficinas que discutem a identidade negra de jon gueiros e jongueiras e o preconceito racial por eles vivido no cotidiano entre tantas outras ações coletivamente planejadas 53 Reflexões sobre as relações entre as reuniões de articulação do Pontão de Cultura do JongoCaxambu e o processo de patrimonialização e salvaguarda do Jongo no Sudeste encontramse também em Elaine Monteiro Balanço provisório do processo de patrimonializa ção no campo do patrimônio imaterial no Brasil a experiência do Jongo no Sudeste Disponível em httpwwwxiconlabeventosdypecombrresourcesanais31307680676arquivo balancoprovisoriodoprocessodepatrimonializacaonocampodopatrimonioimaterialno brasilaexperienciadojongonosudestepdf Acesso em 10 fev 2016 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 323 10092018 111726 324 desenvolvidas e avaliadas que emergiam do desenvolvimento do próprio trabalho Os vários conhecimentos saberes e fazeres são apropria dos de diferentes formas por cada comunidade Cada uma a partir de suas práticas e de suas lutas trabalha ações de salva guarda que estão vinculadas à afirmação da identidade negra e ao enfrentamento do racismo por meio de ações educativas no espaço da escola nas próprias comunidades e na relação com instituições do Estado As trocas de experiências permitiram que ações de salvaguarda se multiplicassem Ainda com José Jorge de Carvalho responsabilidade implica atitude responsiva resposta interação dialogante capaz de estabelecer uma ponte entre os valores e interesses do nosso mundo e os valores e interesses do mundo dos artistas populares54 Na experiência e nos aprendizados do Pontão de Cultura do JongoCaxambu para a efetividade e coerência das ações desenvolvidas há que se manter esta responsabilidade e conceber jongueiros e jongueiras de fato como sujeitos e não como objeto das ações e especialmente aprender a escutálos da mesma forma que eles e elas escutaram os seus mais velhos e souberam manter os seus ensinamentos que hoje constituem um patrimônio cultural do Brasil Eu vou embora O meu nome fica aqui Ô gente fica com Deus Vocês cuidam dele aí55 Machado56 54 CARVALHO Metamorfoses das tradições performáticas afrobrasileiras de patrimônio cultural a indústria de entretenimento 2004 p 10 55 Ponto de jongo de Mestre Orozimbo e de Nico Thomaz Caxambu Sebastiana II de Santo Antônio de PáduaRJ 56 Machado é a expressão utilizada por jongueiros no estado do Rio de Janeiro para finalizar um ponto cantado na roda de jongo e dar início a outro No estado de São Paulo em geral utilizam a expressão Cachuera EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 324 10092018 111726 325 JONGO DA SERRINHA PERFORMANCE NEGRA VIOLÊNCIA URBANA E MUDANÇA SOCIAL NUMA COMUNIDADE CARIOCA 20032010 Álvaro Nascimento a escola é quatro horas e a vida é 24 Ferrez Durante alguns meses de 2003 o teatro Carlos Gomes teve todas as suas sessões esgotadas A procura por ingressos faci litou a ação dos cambistas que tentavam faturar com aquele ines perado sucesso Comprei minha entrada um mês antes do espetá culo A surpresa o grande evento enfim era o Jongo da Serrinha Entre batuques cantos e muita dança vi crianças jovens adultos e idosos lançarem seus braços ao vento e dar passos ritmados entre um e outro ponto1 Como sempre a plateia bateu palmas de pé Boa parte do público não tinha a dimensão do que ante cedia ao espetáculo Em outras palavras não sabia que aquele evento resultava de um movimento social criado na comuni dade em que a maior parte dos dançarinos morava e que havia transformado um moribundo costume local em instrumento de mudança nas vidas de crianças e jovens Para além de manifestação histórica e cultural dos des cendentes de escravos originários da África Centro Ocidental2 o jongo ganhou notoriedade aparentemente despido de seu cunho religioso pelo menos em seus shows e ensaios Esta mudança via bilizou a participação de jovens e crianças em suas rodas permi tindolhes o acesso a bens culturais e materiais distantes daqueles 1 Os cantos das músicas são chamados pontos 2 SLENES Robert Malungu ngoma vem África encoberta e descoberta no Brasil Cadernos do Descobrimento Luanda 1995 e Eu venho de muito longe eu venho cavu cando jongueiros cumba na senzala centroafricana In LARA Silvia H PACHECO Gustavo Org Memória do Jongo as gravações históricas de Stanley J Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca Campinas Cecult 2007 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 325 10092018 111726 326 que não faziam parte do grupo além de garantirlhes uma visi bilidade que os afastava da violência urbana na comunidade O jongo ressurgia como manifestação cultural negra capaz de trazer alegria e contatos com a memória da escravidão e do pósAboli ção assim como tornarse um instrumento de defesa da vida de jovens e crianças negras da Serrinha SERRINHA IMPÉRIO SERRANO E O JONGO Serrinha é o nome dado ao morro onde a comunidade está situada desde o início do século XX Localizase em Madureira bairro comercial e residencial de extensa área que atrai milhares de pessoas de outras localidades vizinhas devido à aglomeração e à diversidade do comércio ali existente O bairro também é famoso por sediar três escolas de samba do carnaval carioca Portela Tra dição e Império Serrano Esta última nasceu na Serrinha em 1947 A cidade do Rio de Janeiro é dividida basicamente em qua tro regiões as Zonas Sul Oeste e Norte e o Centro As duas primei ras abrigam as pessoas com maior nível de renda A Zona Norte pelo contrário abriga pessoas de classe média e de baixa renda Esta divisão não é cartesiana pois há moradores pobres nas Zona Sul e Oeste principalmente nas favelas A Rocinha por exemplo é a maior favela da cidade e fica num dos espaços mais caros da cidade do Rio de Janeiro A Zona Norte é ligada ao Centro da cidade e às demais regiões através de extenso e complexo sistema de transporte mas originariamente foram os trens que dinamizaram parte impor tante do desenvolvimento dos bairros suburbanos como Madureira Os autores que escreveram sobre a Serrinha concordam com esta afirmação Baseados na bibliografia existente e princi palmente em depoimentos de personagens históricos da Escola de Samba Império Serrano estes autores entenderam que os pri meiros ocupantes da comunidade eram muito pobres e haviam migrado com seus pais ou já adultos para a futura comunidade3 Uma parte deslocouse do Centro ou de demais áreas carentes do 3 GANDRA Edir Jongo da Serrinha do terreiro aos palcos Rio de Janeiro CGE 1995 VALENÇA Rachel VALENÇA Suetônio Serra Serrinha Serrano o Império do Samba Rio de Janeiro J Olympio 1981 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 326 10092018 111726 327 Rio de Janeiro possivelmente atraída por melhores condições de trabalho eou moradia Outra parte era proveniente das fazendas do interior fluminense do Espírito Santo e de Minas Gerais que buscavam trabalho na capital após a libertação dos escravos4 Originárias do Vale do Paraíba lideranças da Escola de Samba Império Serrano ou do Jongo da Serrinha vieram para a cidade do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX Em geral eram filhosas e netosas de exescravos e exescravas5 Os casos de Maria Joanna Monteiro mais conhecida como Vovó Maria Joanna e Eloy Antero Dias conhecido por Mano Eloy são bem representativos disto A primeira nasceu em 1902 na fazenda Bem Posta em Marquês de Valença e seus avós segundo seu pró prio depoimento eram um casal de africanos pelo lado paterno e uma avó indígena e um negro por parte da mãe Chegou aos 14 anos no morro da Mangueira e foi para a Serrinha após dar à luz seu décimo segundo filho6 No caso de Mano Eloy ainda esperamos mais informações de pesquisas que estão em andamento sabemos que era um homem negro nascido em 1888 em Engenheiro Passos na região de Resende no Vale do Paraíba Teria migrado para o Rio de Janeiro aos 15 anos de idade ou seja por volta do ano de 19037 O bairro de Madureira onde fica a comunidade come çou a ser urbanizado entre o final do século XIX e início do XX Boa parte das primeiras benfeitorias da Serrinha foi conseguida por meio de mutirão entre os moradores ou por influência de políticos locais como foi o caso do vereador Edgar Romero que deu nome à principal avenida do bairro Segundo D Eulália de Oliveira Nascimento entrevistada por Edir Gandra na década de 1980 a instalação da água encanada na região foi uma des tas negociações entre Francisco Zacarias de Oliveira seu pai e 4 VALENÇA VALENÇA 1981 p 2 5 RIOS Ana Lugão MATTOS Hebe Maria Memórias do cativeiro família trabalho e cidadania no pósabolição Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2005 COSTA Carlos Eduardo Coutinho da Migrações negras no pósabolição do sudeste cafeeiro 1888 1940 Topoi v 16 n 30 p 101126 2015 6 GANDRA Edir Jongo da Serrinha do terreiro aos palcos Rio de Janeiro CGE 1995 p 83 7 BARBOSA Alessandra T O carnaval por quem fez sociabilidade e prestígio no samba através da trajetória de Eloy Anthero Dias Projeto de pesquisa de doutorado PPHR UFRRJ 2015 Cravo Albin Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira Disponível em httpwwwdicionariompbcombrmanoeloibiografia Acesso em 12 maio 2016 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 327 10092018 111726 328 importante liderança dos moradores da comunidade e o verea dor Sendo ele um cabo eleitoral trabalhou na campanha de Edgar Romero em troca da instalação de uma torneira que dis tribuísse água para a Serrinha8 Uma das famílias mais importantes na região era a de Fran cisco Zacarias de Oliveira um dos principais organizadores dos blocos e festas da região Era casado com Etelvina Severa Oliveira e funcionário da companhia de limpeza urbana Embora Francisco não fosse jongueiro parte da sua família esteve diretamente ligada à formação da Escola de Samba Império Serrano e aos encontros de jongueiros patrocinados pelos moradores da localidade Tia Maria é a última das filhas do casal a única que ainda está viva É uma jongueira antiga com seus quase 90 anos O casal teve dez filhos entre eles tia Eulália de Oliveira Nascimento e Sebastião Oliveira Molequinho fundadores da escola de samba9 Estes moradores já na década de 1920 dançavam o jongo Na verdade para além da Serrinha boa parte das comu nidades pobres do início do século XX tinha rodas de jongo Nos morros de São Carlos Estácio Mangueira Salgueiro Madureira e Osvaldo Cruz podiase ouvir o jongo Como eram de regiões diferentes havia diversas formas de se dançálo No entanto alguns traços eram comuns Os jongueiros nos dias de seus santos protetores convidavam amigos parentes e vizinhos e dançavam o jongo Havia comida e bebida para todos que dançavam a noite inteira As crianças eram proibidas de entrar na roda ou participar dos rituais10 Entre os jongueiros que ofereciam a festa havia pessoas como José Nascimento Filho Empregado da Resistência do Cais do Porto sindicato histórico de estivadores da cidade11 ele nas ceu na cidade de Três Rios estado do Rio de Janeiro e era casado com tia Eulália filha de Francisco Zacarias de Oliveira Como rezava o costume José Nascimento frequentava a igreja do santo 8 GANDRA 1995 p 5859 9 VALENÇA VALENÇA 1981 p 79 10 GANDRA 1995 p 65 11 CRUZ Maria Cecília Velasco e Tradições negras na formação de um Sindicato Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café Rio de Janeiro 1905 1930 AfroÁsia Salvador n 24 2000 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 328 10092018 111726 329 de devoção São José e festejava com jongo convidando famosos jongueiros da cidade O mineiro Antenor dos Santos trabalha dor da estiva e um dos mais importantes nomes da Portela dava jongo no dia de São Pedro Antes do jongo ele reunia as crianças e adultos das redondezas e por volta das 22 horas rezava lada inha em louvor ao santo do dia Tia Marta Ferreira da Silva era lavadeira e mãedesanto conceituada na Serrinha em sua casa e terreiro de Ogum havia jongo no dia de Santanna seu aniversário Na abertura do jongo na casa de tia Marta em dia de Santanna o chão era coberto de folhas verdes e um jongueiro de Jacarepaguá puxava o canto inaugural com solenidade12 Antonio Rufino dos Santos um dos fundadores da Por tela famosa escola vizinha ao Império no bairro de Madureira chegou menino a Oswaldo Cruz vindo de Juiz de Fora Zona da Mata mineira grande produtora de café no pósAbolição no ano de 1920 Para ele a roda de jongo funcionava da seguinte forma Dispostos os jongueiros em círculo e aberto o terreiro por uma saudação os torcedores percutiam o angona ou tam bor grande o candongueiro ou tambor pequeno e faziam soar a puíta espécie de cuíca e o guaiá variedade de cho calho Após a abertura do terreiro o mandaroda cantava um jongo e tirava um par para a dança dando a umbi gada Todos à volta do par cantavam o jongo entoado pelo mandaroda enquanto dançavam em seus lugares Depois de ter dançado o casal voltava ao mandaroda devolvendolhe a umbigada que o mandaroda dava no próximo par e assim sucessivamente até fechar a roda isto é até todos terem dançado A essa altura um dos jon gueiros parava o tambor e assumia as funções do manda roda que ia integrarse ao círculo dançante formado13 Com a morte dos jongueiros antigos o jongo caía len tamente no esquecimento Como dizia Vovó Maria Joanna ou Rezadeira ninguém não falava mais muitos já não conheciam o que era o jongo14 Foi aí presumivelmente na década de 1960 12 GANDRA 1995 p 6465 13 VALENÇA VALENÇA 1981 p 10 14 GANDRA 1995 p 97 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 329 10092018 111726 330 que mestre Darcy Monteiro filho de Vovó Maria Joanna teve a ideia de criar o grupo Bassam nome artístico do grupo Jongo da Serrinha Músico profissional em diversos shows de artistas consagrados Darcy percebeu o retorno do público quando tocou o jongo num dos shows de que participara Seus dois obje tivos seriam a preservação e a divulgação do jongo praticado entre seus familiares e o cachê pago a qualquer profissional15 Então houve o que Edir Gandra chamou de transição do Jongo autêntico para o Jongo espetáculo16 Segundo Gandra a diferença entre o jongo anterior e o novo estava na inclusão de jovens e adultos e de músicos profissio nais nos espetáculos na adaptação de instrumentos de corda e tam bores industriais na vestimenta com estilização dos figurinos mais próximos ao que se supõe de escravos no afrouxamento no rigor ritual na predeterminação do repertório não havia mais os cantos de desafios entre os jongueiros e na formação dos dançarinos17 Samba e jongo são duas expressões culturais que estive ram e estão muito próximas nas práticas de lazer e religião dos moradores da comunidade e fazem parte da identidade local O jongo passou por momentos difíceis e quase foi esquecido pelos moradores mas ressurgiu com uma nova concepção afastado do lado ritualesco que possuía na primeira metade do século Seus pontos e passos podem ser muito próximos ou idênticos ao jongo dançado e cantado em outras comunidades urbanas e rurais a exemplo do Quilombo São José da Serra em Valença ou no Bracuí Como nos ensinam Hebe Mattos e Martha Abreuo jongo praticado nestes dois quilombos norteou e fortaleceu a identidade das comunidades ligada à ocupação da terra por gerações de descendentes de escravos e exescravos O jongo ali revelava uma linguagem corporal experienciada no costume local que traduzia seus habitantes enquanto grupo afrodescendente morador do mesmo lugar dos seus ascenden 15 Ibidem p 9697 16 Ibidem p 82 Segundo a autora três pessoas de uma mesma família foram respon sáveis por esta transição Vovó Maria Joanna e seu casal de filhos Darcy Monteiro e Eva Emely Monteiro A primeira teria vivenciado esta mudança o segundo teria feito a transição e a terceira herdaria toda a autoridade familiar e religiosa de sua mãe 17 Ibidem p 115 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 330 10092018 111726 331 tes Auxiliou profundamente nas decisões dos técnicos que anali savam o pedido de titulação das terras como terra quilombola18 No caso da Serrinha não se espera a conquista de terras ou títulos de propriedade As crianças os jovens e seus pais espe ram que eles sorriam brinquem participem de cursos viajem recebam aplausos em apresentações e vivam distante dos riscos que a violência urbana patrocina diariamente a meninos e meni nas das comunidades urbanas da cidade do Rio de Janeiro VIOLÊNCIA NUMA CIDADE CARIOCA Homicídios roubos assaltos tráfico de drogas seques tros lesões corporais conflitos armados são algumas das ações que mais preocupam e perturbam os moradores dos principais centros urbanos No entanto a que mais tem provocado a des truição de vidas na cidade do Rio de Janeiro antes que elas completem 25 anos tem sido justamente a alta taxa de homi cídios registrada nas últimas décadas talvez um século já E estas vidas perdidas têm sexo cor classe social endereço e idade bem definidos Segundo pesquisa de Glaucio Soares e Doriam Bor ges19 rapazes negros pardos e pretos pobres moradores de favelas ou bairros pobres na faixa etária entre 14 e 25 anos estão em constante perigo A possibilidade de serem assassina 18 MATTOS Hebe ABREU Martha Remanescentes das comunidades dos quilombos memória do cativeiro e políticas de reparação no Brasil Revista Iberoamericana Berlim v 11 n 42 2011 p 147148 Segundo as autoras a constituição brasileira de 1988 abriu cami nho para o desenvolvimento de políticas de reparação em relação à escravidão africana no Brasil Dentre elas destacamse a possibilidade de titulação coletiva de terras a comu nidades negras tradicionais reconhecidas como remanescentes de quilombos ao reconhe cimento oficial de patrimônios imateriais relativos à herança de populações escravizadas O Jongo do Sudeste manifestação de canto dança e percussão cuja origem é atribuída aos africanos escravizados das antigas áreas cafeeiras do sudeste do Brasil foi reconhecido como patrimônio cultural brasileiro em 2005 Consultar também ODWYER Eliane Cantarino Etnicidade e direitos territoriais no Brasil contemporâneo Revista Iberoamericana Berlim v 11 n 42 2011 p 112113 Nestes artigos é possível entender o longo debate desencadeado por juristas antropólogos e historiadores em torno das comunidades que desejaram conquistar a titulação das terras em que habitavam através do artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988 aquela que viabilizou posteriormente a definição de terras quilombolas e indígenas 19 SOARES Glaucio Ary Dillon BORGES Doriam A cor da morte Ciência Hoje v 35 n 209 p 2631 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 331 10092018 111726 332 dos é maior que a de um rapaz branco pertencente à classe média da Zona Sul20 O Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil 2005 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PNUD alertava que para brancos e amarelos a taxa também era alta em comparação com os padrões internacionais Mas quando esta mesma taxa era contrastada à dos negros pretos e pardos tornavase significativamente menor Diziam à época que a a probabilidade de ser assassinado era quase o dobro para os pardos e 25 vezes maior para os pretos21 Como se pode notar há uma classificação pela cor da pele que distingue uns de outros uma perversa hierarquia do risco de vida entre brancos pretos e pardos que vem se mantendo Segundo Glaucio Soares e Doriam Borges ser pardo é muito mais seguro que ser preto mas é muito menos seguro que ser branco Os números são alarmantes Entre 1991 e setembro de 2005 o Instituto de Segurança Pública contabilizou 103127 mortes por homicídio doloso no estado do Rio de Janeiro a uma taxa anual entre 637 1994 e 416 2004 por 100000 habitantes no período22 No começo da década de 1990 a violência apareceu como a maior causa das mortes entre homens no Rio de Janeiro e a segunda em São Paulo sendo superada apenas pela mortalidade infantil23 Segundo o Relatório PNUD 2005 os estados mais peri gosos para os pretos viverem eram Roraima 1382 homicídios por 100 mil habitantes Rondônia 1207 Mato Grosso 968 Rio de Janeiro 962 Acre 885 Mato Grosso do Sul 861 São Paulo 831 e Amapá 754 Entre os pardos os destaques negativos eram Pernambuco 940 e Rio de Janeiro 77824 20 Organização das Nações Unidas Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil 2005 PNUD São Paulo p 86 As taxas de homicídio são mais altas nos bairros em que a renda média é menor e os serviços urbanos são mais deficientes 21 Idem p 8586 22 Governo do Estado do Rio de Janeiro Boletim Mensal de Monitoramento e Análise do Insti tuto de Segurança Pública Rio de Janeiro ano 3 n 26 p 6 set 2005 23 LISBOA Marcos de Barros ANDRADE Mônica Viegas Desesperança de vida homicídio em Minas Gerais Rio de Janeiro e São Paulo 1981 a 1997 Rio de Janeiro FGV EPGE 2010 Ensaios Econômicos 383 Disponível em httphdlhandle net10438988 Acesso em 15 dez 2015 24 Relatório PNUD 2005 p 88 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 332 10092018 111726 333 Havia e há sem dúvida um processo de extermínio de homens pretos e pardos no Brasil Homens jovens mais propensos a gerar famílias com filhosas não brancosas Os dados de pesquisa ainda não eram confiáveis em termos quantitativos e qualitativos Em 2001 esta fragilidade foi apresentada por pesquisas paralelas realizadas por ONGs que compararam o número de assassinatos apresentados pelos órgãos estaduais de segurança com aquele alcançado após con tagem dos casos noticiados em jornais de grande imprensa 25 Em 2001 foi criado o Fundo Nacional de Segurança Pública FNSP que disponibilizava verbas aos estados para o combate à violência26 As unidades da federação tinham de apresentar contrapartidas se quisessem ter seus projetos aprova dos nos editais do FNSP Uma delas era tornar mais transparen tes os índices de violência na região os diversos tipos de assaltos roubos sequestros quantidade de assassinados e a classificação destes homicídios etc Dados mais robustos começaram a apa recer a partir daí com a criação de instituições governamentais que registravam estas informações Ainda persistiam problemas sérios como a ausência da cor e idade das pessoas assassinadas por armas e principalmente daquelas mortas pela polícia27 A suspeita sobre aqueles números de mortos não era infun dada As causas dos homicídios deveriam ser melhor especificadas 25 CANO Ignácio Execuções sumárias no Brasil o uso da força pelos agentes do Estado In CENTRO DA JUSTIÇA GLOBAL NÚCLEO DE ESTUDOS NEGROS Relatório de execuções sumárias no Brasil 19972003 Rio de Janeiro 2003 p 1113 Um relatório de organizações não governamentais publicado no ano de 2001 baseado em informações de imprensa coletadas por organizações filiadas ao Movimento Nacional de Direitos Humanos revelou que as notícias publicadas em 18 Estados brasileiros durante o ano de 1999 continham informações sobre um total de 13917 mortes aproximada mente 10 das quais cometidas por policiais ou grupos de extermínio Embora essa cifra contenha também casos perpetrados por grupos de extermínio que costumam estar vinculados indiretamente às polícias a desproporção entre os casos reportados na imprensa e os registrados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública é enorme O número verdadeiro deve estar provavelmente entre ambas as cifras 26 BRASIL Leis Institui o Fundo Nacional de Segurança Pública FNSP e dá outras providências Lei Nº 10201 de 1422001 Disponível em httpwwwplanaltogov brccivil03leisLEIS2001L10201htm Acesso em 15 dez 2015 27 Uma poderosa base de pesquisa no Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro é acessada hoje Consulte a cor idade parte do dia em que ocorreram os assas sinatos região etc Disponível em httpspublictableaucomprofileinstitutodese guranapblicaispvizhomeLetalidadeViolentaResumo Acesso em 16 jan 2016 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 333 10092018 111726 334 Ao identificálas percebeuse que uma das categorias mais gritantes referiase ao que estes institutos denominavam de Auto de Resistên cia ou seja aqueles que foram mortos em confronto com a polícia Ao se utilizála encobriase e encobrese uma imensa quantidade de casos que deveriam ser qualificados como homicídio doloso ou seja quando os policiais tinham e têm a intenção de matar28 Ignácio Cano nos esclarece a razão desta suspeita Segundo ele o Índice de Letalidade permite mensurar o emprego exces sivo da força nos confrontos armados ou até em guerras Geral mente esperase que o Índice de Letalidade em combates apresente um número de feridos maior que o de mortos Contudo quando o último é maior que o primeiro isto demonstra uma maior inten ção de matar ao invés de simplesmente prender o opositor29 Cano explica que o uso da força policial pode ser enten dido em meio a dois polos O daquele policial que faz uso da força em defesa de si mesmo e de inocentes e o daquele que faz execuções sumárias após deter o indivíduo Em meio a estes dois polos morrem pessoas inocentes vitimadas por balas per didas durante a ação policial em diversas áreas principalmente nas comunidades mais pobres A execução sumária de pessoas detidas e punidas com a morte pelos próprios policiais elimina a possibilidade de o indivíduo acessar o direito de se defender e ser julgado isso se realmente o indivíduo foi preso em flagrante delito além de não deixar testemunhas A descrição do estado dos corpos tombados em confronto com a polícia revela dados assustadores A pesquisa realizada por Cano revelou que entre os anos de 1993 e 1996 uma terrível e flagrante porcentagem de pessoas que foram literalmente execu tadas não deveria ser contabilizada como mortas por Auto de Resistência Entre os mortos decorrentes das intervenções poli ciais no município do Rio de Janeiro 46 dos cadáveres tinham 28 Dados recentes mostram onde a polícia mais mata no Rio de Janeiro Veja Disponí vel em httpjusticaglobalredelivreorgbr20151207justicagloballancaosite ondeapoliciamatahomicidioscometidospelapoliciamilitardoriodejaneiro Acesso em 13 jan 2016 29 CANO Ignácio Execuções sumárias no Brasil o uso da força pelos agentes do Estado In CENTRO DA JUSTIÇA GLOBAL NÚCLEO DE ESTUDOS NEGROS Relató rio de execuções sumárias no Brasil 19972003 Rio de Janeiro 2003 p 15 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 334 10092018 111726 335 quatro ou mais perfurações de bala 61 tinham recebido pelo menos um tiro na cabeça 65 mostravam pelo menos um tiro na região posterior costas 65 tinham marcas de lesões outras que não as de bala que podem indicar golpes antes das execuções 40 casos de disparos à queimaroupa feitos a curta distância30 Estas mortes costumavam ocorrer em blitzes policiais nas favelas eram cadáveres de jovens pretos ou pardos e pobres em sua maioria São Paulo e Rio de Janeiro possuíam situações bem próximas Para evitar qualquer possibilidade de investigação por que desfaziam a cena do crime os policiais retiravam e retiram os corpos do local e os levavam para o hospital Aproximadamente 78 morria antes de receber os primeiros cuidados médicos Para Cano o Índice de Letalidade policial permanecia alto devido a um conjunto de situações Primeiro a autoridade policial abria muitas vezes uma sindicância para apurar o fato e não um inquérito Também foram encontrados casos em que a morte provocada pelo policial foi registrada como auto de resistência e não como homicídio doloso mesmo quando havia provas de exe cução sumária tiros à queimaroupa Desta forma por exemplo o Ministério Público não se pronunciava Muitos políticos incentiva vam esta posição como foi o caso do deputado estadual Sivuca que repetia a famosa frase bandido bom é bandido morto31 Governos também incentivaram a execução sumária No Rio de Janeiro por exemplo entre 1995 e 1998 a Secretaria de Segurança Pública criou a Premiação por Bravura Muitos policiais tiveram 50 75 ou até 150 de aumento sobre o salário original Segundo pesquisa realizada em 1998 pelo Iser Insti tuto de Estudos da Religião e pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro Alerj 30 CANO 2003 p 16 31 O próprio deputado fizera parte do Scuderie Le Cocq um grupo de policiais acusado de agir como esquadrão da morte nos anos 1960 e 1970 Folha de S Paulo Le Cocq vive fim melancólico no Rio Disponível em httpwww1 folhauolcombrfolhacotidianoult95u122101shtml Acesso em 10 jan 2016 Há uma possibilidade de o grupo estar se reestruturando nos dias atuais como afirma a matéria do jornal o Globo Extinta em 2000 Scuderie Le Cocq volta à cena panfletando para incen tivar denúncias Disponível em httpogloboglobocomrioextintaem2000scude rielecocqvoltacenapanfletandoparaincentivardenuncias16282911 Acesso em 10 jan 2016 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 335 10092018 111726 336 antes da instituição da gratificação a taxa de letalidade era de dois mortos para cada ferido No ano passado a taxa dobrou em média os confrontos entre policiais e civis deixaram quatro mortos e um ferido 32 Se não bastassem todos estes elementos corroborando este verdadeiro genocídio a pesquisa de Cano nos informa que a população acreditava que a morte de bandidos era bemvinda Uma parte dela acabava interiorizando os valores defendidos por políticos que diziam que matar bandido era a solução33 Para os membros da ONG Justiça Global a impunidade era um dos maiores incentivos para a continuação destas taxas elevadas de execução sumária por parte dos corpos policiais dos estados da federação Os governos estaduais corroboraram os des vios dos seus agentes em casos flagrantes como as chacinas em Carandiru e Vigário Geral Por outro lado como a Justiça era lenta isto concorria para a eliminação de provas e testemunhas ao longo do tempo de julgamento Para finalizar havia falta de transparência e produção de dados que melhor demonstrassem as torpezas e a disparidade das situações criadas Para Mônica Viegas Andrade e Marcos de Barros Lisboa economistas da Fundação Getúlio Vargas um aumento do salá rio real e uma queda da desigualdade poderiam reduzir a taxa de homicídio Eles analisaram a taxa de homicídios entre 1981 e 1997 e notaram o aumento acelerado dos seus dígitos No entanto eles advertiam que esta relação não deveria ser entendida através de uma proporcionalidade direta e isolada de outras variantes ou seja como se ao melhorar a divisão da renda nacional automa ticamente se diminuirá a quantidade de homicídios Sem dúvida ela leva à redução mas a taxa de homicídios em um ano pode ser elevada não por que as variáveis econômicas apresentam certo 32 Folha de S Paulo Rio acaba com bônus da polícia por bravura 26 de junho de 1998 Disponível em httpwww1folhauolcombrfspcotidianff26069830htm Acesso em 10 jan 2016 33 Possivelmente a posição daqueles que defendem a execução sumária seja mais com plexa que a simples interiorização dos discursos dos políticos Há certamente uma visão dicotômica entre o legal e o ilegal É uma visão limitada que procura a justiça num sentido de vingança e solução para os problemas de forma imediatista como se o exter mínio resolvesse o problema EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 336 10092018 111726 337 comportamento naquele ano mas por que este comportamento foi observado quando a geração era jovem sendo seus efeitos diluídos ao longo do ciclo de vida da geração Ou seja uma geração pode ser marcada ao longo de toda a sua existência com níveis altos de homicídios independentemente do quadro econômico apresenta do34 O que importa aí é a taxa analisada quando esta mesma gera ção era jovem ou seja prevê que a geração violenta na juventude tem mais propensão a realizar atos violentos pelo resto da vida Para Gláucio Ary Dillon Soares e Doriam Borges para se entender a alta taxa de homicídios nas grandes capitais sobretudo a dos negros em primeiro lugar há de se entender aquelas con dições facilitadoras comuns que explicam estas mortes Em suas pesquisas e estimativas a quantidade de armas de fogo existente o uso de drogas e a presença do tráfico o alcoolismo a ausên cia de religião os dados mostram que a religião protege e a ausência de laços familiares estes dois últimos evitam exposição a situações de alto risco são condições que facilitam a exposi ção a mortes violentas Depois viriam as variáveis estruturais desigualdade desemprego e baixo índice educacional E final mente as falhas das instituições e instrumentos de proteção aos indivíduos ou seja a ausência de polícia e a presença da banda podre nas forças policiais No entanto a situação ainda parece mais difícil para aqueles que moram nas áreas de risco Ou seja viver em favelas controladas pelo tráfico ter média mais baixa dos recursos não só econômicos mas também acesso ao capital 34 LISBOA Marcos de Barros ANDRADE Mônica Viegas Desesperança de vida homicídio em Minas Gerais Rio de Janeiro e São Paulo 1981 a 1997 Rio de Janeiro FGV EPGE 2010 p 4 Ensaios Econômicos 383 Disponível em httphdlhandle net10438988 Acesso em 15 dez 2015 Por exemplo o acesso diferenciado ao mercado de trabalho entre a população que par ticipa do mercado legal de trabalho e a que participa de atividades ilegais pode resultar em efeitos geracionais sobre a taxa de homicídios efeito inércia Suponhamos uma vez mais que os homicídios cresçam com a parcela da população dedicada às atividades ilegais Caso o retorno às atividades legais seja custoso uma geração que quando jovem tem maior parcela dedicada às atividades ilegais tende a manter essa maior parcela ao longo de todo o ciclo de vida e portanto uma maior taxa de homicídio Isto significa a possibilidade de existência de um efeito inércia dos homicídios em cada geração Em particular a taxa de homicídios em um ano pode ser elevada não por que as variáveis econômicas apresentam certo comportamento naquele ano mas porque esse comporta mento foi observado quando a geração era jovem sendo seus efeitos diluídos ao longo do ciclo de vida da geração EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 337 10092018 111726 338 social às redes de interações pessoais e institucionais o precon ceito policial e no atendimento hospitalar transporte e primeiros socorros a quem mora nestas localidades35 Certamente eram muitas as formas de sofrer violências e a situação deve piorar com a recente onda de reinvenção do conservadorismo encabeçada por políticos religiosos e classes mais abastadas sobretudo brancas Seus discursos aprofundaram o abismo entre o que chamam de bons contra os maus os que seguem a Deus e a Cristo e os que os renegam os que defendem a família heteronormativa daqueles que desejam cons tituíla numa relação homoafetiva Suas falas tornaramse mais virulentas e foram expostas sem constrangimento nas diversas manifestações públicas nos primeiros dois anos após a reeleição da presidenta Dilma Roussef Tememos hoje pelo fim dos pro gramas sociais Bolsa Família principalmente e pelo aumento do extermínio e do encarceramento de jovens negros e pobres Para nós que vivemos nas academias e distantes das favelas estes números assustam mas não tanto quanto para quem vive esta realidade cotidianamente Os estampidos de tiros a presença de soldados do tráfico fortemente armados o medo de ver a comunidade tomada por uma guerra de gan gues rivais ou uma invasão da polícia o recrutamento forçado ou alistamento voluntário de meninos e meninas do bairro junto às fileiras do tráfico tudo isto são temores e preocupações que permeiam o dia a dia dos moradores de comunidades pobres como a Serrinha Tudo isto pode tirar a vida de um jovem ou criança do convívio familiar pela morte violenta ou pelo traba lho no tráfico de drogas A MANIFESTAÇÃO CULTURAL QUE SALVA VIDAS Cheguei a este tema pela curiosidade de conhecer melhor o famoso Jongo da Serrinha que se desenvolvia pró ximo ao bairro em que passei toda minha infância e adolescên cia afinal como algo tão instigante e revolucionário para tantas 35 SOARES Gláucio Ary Dillon BORGES Doriam A cor da morte Ciência Hoje v 35 n 209 p 3031 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 338 10092018 111726 339 crianças estava ali e eu não percebera no passado Também perguntavame como estes movimentos sociais surgidos nas comunidades eram pouco discutidos nos cursos de História Entre pessoas comuns distantes destas propostas e mesmo pesquisadores sociais há uma ideia completamente dis torcida e linear destes movimentos reproduzindo em suas falas e a distância um discurso estático e generalizável das comuni dades pobres das grandes cidades No caso da Serrinha assim como de outras comunidades pobres o movimento mais recente surgiu entre seus próprios moradores teve o apoio de governos e ONGs e transformouse numa possibilidade de mudança para jovens e crianças da própria comunidade36 Na Serrinha entre 2003 e 2004 o som dos instrumentos de percussão os cantos e o ritmo do jongo convocavam jovens e crianças para a dança durante a semana no quintal da casa de Tia Maria Jongueira ou no Centro Cultural Jongo da Serrinha Eles não iam obrigados ou por ordem dos pais A maior parte lá estava porque gostava de praticar algo que os imantava e dava prazer Este era o grande diferencial que tirava pessoas do risco de morte ou apresentava a possibilidade de outros destinos que não aqueles que pareciam traçados desde o nascimento até a morte Havia dois grupos na Serrinha O Grupo Cultural era o mais famoso e formado mormente por moradores da comuni dade sendo que a maior parte destes residia aos sopés do morro mais próximos ou nas ruas do bairro Eles sabiam que havia trá fico conviviam com o mesmo perigo mas em sua maioria não tinham de subir o morro e ver traficantes armados diariamente Ensaiavam no terreno da casa da Tia Maria do Jongo que não era no morro evitando assim o contato direto com o tráfico O segundo Grupo Artístico era de crianças e adolescentes que não participavam do Grupo Cultural mas aspiravam à oportunidade de viver as apresentações em shows e exibições Frequentavam ati vidades esporadicamente no Centro Cultural que ficava no topo do morro passando por traficantes fortemente armados 36 Há hoje parcerias com a Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro governo federal e a Petrobras Disponível em httpjongodaserrinhaorgtrabalhosociocul tural Acesso em 12 mar 2016 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 339 10092018 111726 340 O Grupo Artístico participava de apresentações em palcos famosos ou simples do Rio de Janeiro de outras cida des do Brasil e até do exterior Neste grupo os jovens tinham maior visibilidade na imprensa e ainda ganhavam um cachê bem pequeno mas que lhes permitia ajudar suas famílias Estes adolescentes e crianças amadureciam muito rápido Começavam a entender os problemas enfrentados pelos pais muito cedo e cedo também podiam ser obrigados a ajudar na manutenção da família Suas vidas estavam diretamente ligadas ao subúrbio à Serrinha e raramente tinham acesso a outras localidades aos cartões postais da cidade turística ou a outros estados A renda familiar era voltada para a aquisição de bens fundamentais à existência sobrando muito pouco para o consumo de lazer bens culturais e viagens O jongo permitia acessar estes bens sem ter de comprometer a renda familiar Era a alternativa que lhes permitia conhecer lugares diferen tes além de aumentar a autoestima no momento em que eram aplaudidos em palcos de lugares nunca antes imaginados por eles sem o jongo As apresentações no teatro Carlos Gomes representaram um pouco de cada uma destas aquisições funda mentais para crianças adolescentes e para os próprios pais37 Durante seis meses subi e desci o morro da Serrinha e mais comumente fazia entrevistas na casa de Tia Maria Jon gueira no sopé da Serrinha onde a trupe realizava seus ensaios Cursos de circo capoeira entre outros eram oferecidos no Cen tro Cultural nos períodos da manhã e da tarde e as crianças e adolescentes de ambos os grupos poderiam escolher o horá 37 Abreu Martha Mattos Hebe Festas patrimônio cultural e identidade negra Rio de Janeiro 1888 2011 Artelogie n 4 jan 2013 Toninho Canecão liderança do quilombo São José da Serra assim se expressou sobre isso A gente vem aqui no Rio amanhã mesmo a gente vai ficar aqui no Banco do Brasil isso aí deixa o pessoal da comuni dade muito otimista porque lá no distrito de Santa Isabel ninguém viaja mais do que a comunidade de São José da Serra E eu deixo eles bem conscientes por que isso Por causa do jongo é o carrochefe E para que tenha o jongo tem que ter o quê União Sem união não pode O jongo não canta sozinho e nem dança sozinho precisa de um grupo Então é isso que a gente está trabalhando muito com as crianças amanhã nós vamos estar aí com crianças dançando o jongo até criança de seis anos cinco anos tem criancinha lá que está com dois anos e já sabe bota lá e a gente já deixa É um troço que no passado não podia mas a gente deixa porque eu acho que o salvador da comunidade vai ser o jongo EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 340 10092018 111726 341 rio que melhor se adequasse às suas demais obrigações como a rotina das escolas regulares e seus ofícios por exemplo Havia um interessado e vibrante grupo de professores voluntários que ministrava aulas de arte expressão cultural capoeira jongo samba percussão dança afro teatro e circo Estes professores eram universitários artistas pessoas da própria comunidade e de outras vizinhas Cada um a seu jeito procurava dar um pouco de si para transformar a vida daquelas crianças e adolescentes da comunidade Processo que muitas vezes enfren tava diversas dificuldades Uma delas era a própria falta de recursos que limitava as possibilidades de os professores se dedicarem mais aos pro jetos Eles não recebiam salário ou ajuda de custo de projetos governamentais para despesas como transporte ou alimentação Reuniamse e planejavam o trabalho com dinheiro do próprio bolso Outra dificuldade mais perigosa e que muito dificultava o trabalho era a do tráfico de drogas A presença de homens fortemente armados defendendo os pontos de vendas de drogas assustava qualquer um como foi o meu caso Daí as atividades no Centro Cultural serem suspensas às 16 horas para evitar que professores e alunos tivessem de presenciar aquele movimento pois era justamente nesta hora que os traficantes e soldados do tráfico começavam a se posicionar para vigiar e garantir a comercialização das drogas Isto passou a gerar um problema seríssimo para os pro fessores a distância entre os dois grupos do mesmo projeto Pais e avós responsáveis pelas crianças do Grupo Artístico temiam tiroteios entre traficantes ou destes com a polícia que resultas sem em morte ou ferimento por uma bala perdida Muitos destes proibiam que seus filhos subissem o morro para ensaiarem no Centro Cultural sendo assim obrigados a permanecerem no pequeno terreno de Tia Maria Jongueira Ou seja embora tives sem um espaço para desenvolver e treinar a dança para as exi bições os dançarinos do Grupo Artístico tinham de se adequar às limitações de um espaço menor e irregular para tal prática Pedagogicamente isto estava trazendo problemas por separar em duas partes o que originariamente era uma só Esta EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 341 10092018 111726 342 deveria ser uma atração que animaria os próprios alunos do Centro Cultural a participarem com mais afinco das atividades a eles oferecidas pelos voluntários Havia assim um grande ques tionamento acerca da melhor saída para o problema que estava dividindo o projeto Havia ainda uma preocupação por parte dos pais em manterem seus filhos nestas atividades porque acre ditavam na possibilidade de ascensão social vencer a invisibili dade e evitar o risco do tráfico Durante as entrevistas com mães e avós notei que estas eram as preocupações mais recorrentes entre elas Casos trági cos me foram relatados por mulheres completamente destruídas após perderem um ou dois filhos de forma violenta Outras mos traram a dificuldade para criar seus filhos em famílias monopa rentais pelas quais elas eram as únicas responsáveis tendo assim de contar com doações de alimentos roupas e com a dificuldade de acessar as precárias redes de saúde e educação públicas As possibilidades de mudança mantinhamse extrema mente reduzidas Era como se somente algo diferente da rea lidade da comunidade que não precisasse ser movido pelos recursos financeiros dos próprios pais pudesse mudar o coti diano daquelas crianças e adolescentes Possivelmente os jovens perguntavam a si mesmos o que fazer ante aquela realidade Afinal como poderiam ter uma casa maior e própria fartura na alimentação a roupa ou calçado desejado o dinheiro para os bailes etc se não conseguiam empregos bem remunerados se a educação escolar era precária e se não tinham uma rede de conhecidos que apresentasse oportunidades de mudança Uma das meninas entrevistadas foi muito direta revelando uma lógica perversa mas completamente racionalizada quando pensava em suas possibilidades de alcançar um mundo desejado e ao mesmo tempo distante de ser realizado Durante algum tempo em sua vida disse ela pensou em ser mulher de bandido Estas realidades que estive levantando na Serrinha ainda carecem de maior tratamento nas entrevistas mas já reve lam a profundidade das questões que se apresentaram nos pri meiros passos que dei até aqui Certamente há muito ainda a se discutir inclusive comparar esta experiência com a de outras EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 342 10092018 111726 343 comunidades latinoamericanas Assim poderemos entender o Jongo da Serrinha como parte dos movimentos populares que estão mudando a realidade de milhares de crianças e adolescen tes no continente38 CONSIDERAÇÕES FINAIS Não há necessidade de reafirmarmos as histórias de perseguição institucional e opiniões preconceituosas e racistas veiculadas pela mídia contrárias às manifestações culturais de matriz afrobrasileira Samba umbanda candomblé congada capoeira e jongo são algumas delas39 Embora procurem des qualificar desabonar e desmerecêlas no cenário nacional cro nistas políticos estudiosos e membros da elite desconheciam e tantos ainda desconhecem completamente a importância des tas manifestações culturais nas vidas de outros indivíduos Sua alteridade é contaminada por preconceitos religiosos culturais e raciais graves Para os jovens e crianças que entrevistamos na Serrinha o jongo era extremamente relevante na continuidade de suas vidas Para essa garotada inexiste o privilégio de errar uma ou duas vezes ao longo da vida aqui ao errar numa das poucas escolhas possíveis o indivíduo terá praticamente anulado seu acesso a outros lugares costumes trabalho consumo de bens materiais diversos mobilidade social etc Aquelas crianças e adolescentes que entrevistei na Ser rinha e no quintal de Tia Maria do Jongo me revelavam outras histórias que derrubavam qualquer possibilidade de imaginar e defender a ideia da famigerada meritocracia Havia ali um abismo entre a garotada da Serrinha estudantes das escolas municipais e malaparelhadas de Madureira e adjacências filhosas de pais e mães trabalhadores com capital cultural res trito e aquela que desfrutava a estrutura e a regularidade das 38 GOLDSTEIN Daniel M The spectacular city violence and performance in urban Bolivia Duke Duke University Press 2004 39 SOARES Carlos Eugênio Libano A negregada instituição os capoeiras na Corte impe rial Rio de Janeiro Access 1999 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 343 10092018 111727 344 escolas particulares e de algumas públicas de excelência40 cujos pais em maioria possuíam formação universitária ou acesso a pessoas que representavam as melhores opções a seguir para manter e reproduzir seus privilégios As diferenças de cor classe gênero e moradia entre estas pessoas nos extremos do abismo social que as separa de um lado garante a vida sem medos de garotos brancos de classe média de áreas melhor urbanizadas e de outro naturaliza o genocídio dos meninos e adolescentes negros na cidade do Rio de Janeiro Ser negro e morar na comunidade e cercanias da Serrinha era e ainda é um risco para a vida destas pessoas tão jovens Eram as mães as principais incentivadoras do projeto ligado ao jongo e inscreviam seus filhos nos cursos a fim de que eles se mantivessem no Centro Cultural Jongo da Serrinha ou no quintal de Tia Maria do Jongo Antes de ser mais uma prática cultural desabonada pelos críticos de plantão por reportarse a uma passado negro e religioso afrobrasileiro o jongo tornou se uma manifestação cultural acessada por mães e filhosas que desejavam viver algo mais diverso São crianças e adolescentes que gostaram ou gostariam de conhecer lugares outros mesmo que fosse o Centro da cidade do Rio de Janeiro viajar comer em restaurantes dormir em hotéis apresentarse em teatros receber aplausos e ser visíveis às pessoas que não os viam como pessoas respeitáveis e dignas O jongo enfim foi e é um destacado protagonista da cul tura afrobrasileira trazido pelosas negrosas que migraram do Vale do Paraíba para as futuras favelas cariocas e áreas diversas da Baixada Fluminense do século XX Por isso mesmo vem sendo uma expressão cultural acessada por tantos jovens que desejam uma vida mais extensa para além de duas décadas de existência 40 Colégio Pedro II CAPUERJ e CAPUFRJ EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 344 10092018 111727 345 AS FESTAS DE CONGADA E O PATRIMÔNIO CULTURAL NEGRO EM MINAS GERAIS 197020151 Lívia Nascimento Monteiro As congadas congados ou reinados existem em prati camente todo o estado de Minas Gerais além de Goiás São Paulo e Paraná Através de cortejos reais dos reis e rainhas congos as festas tomam as ruas das cidades com danças músicas e a devoção aos diferentes santos católicos Segundo o folclorista Saul Martins existem sete estilos de guarda congo ou congada como em Piedade moçambique catopé marujo caboclinho cavaleiro de São Jorge e vilão2 Esses ternos são formados pelos dançantes em Piedade são os dançadores congadeirosmoçambiqueiros que liderados pelos capitães saem em cortejo pelas cidades dançando e cantando para louvar seus santos e escoltar os reis e rainhas congos3 Muitos grupos se organizam em irmandades negras de Nossa Senhora do Rosário Santa Efigênia São Benedito e outros santos desde o período colonial4 Outros grupos 1 Esse artigo é inspirado na tese A Congada é do mundo e da raça negra memórias da escravidão e da liberdade nas festas de Congada e Moçambique de Piedade do Rio GrandeMG 18732015 defendida em 2016 no Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Fluminense sob orientação da professora doutora Martha Campos Abreu 2 MARTINS Saul Congado a família de sete irmãos Belo Horizonte Maza 1997 3 Existem as festividades do reinado estrutura mais ampla e complexa que abrange as guardas os ternos e contempla vários rituais de devoção e festa e a congada que além de se referir à festa também dá nome às guardas do congo como acontece em Piedade 4 Da família das congadas em cortejos fazem parte os moçambiques de São Paulo e Rio Grande do Sul o catumbi de Santa Catarina as bandas de congos do Espírito Santo as congadas de Goiás as diferentes guardas do congado mineiro as taieiras e o cacumbi de Sergipe as cambindas da Paraíba o marambiré do Pará entre outros Tam bém os maracatus de Pernambuco em sua origem foram cortes de acompanhamento de reis negros KISHIMOTO Alexandre TRONCARELLI Maria Cristina DIAS Paulo Anderson O Reinado da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá São Paulo Cachuera 2015 p 1516 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 345 10092018 111727 346 não estão vinculados diretamente às irmandades como é o caso da Congada e Moçambique de Piedade do Rio Gran deMG5 fundada na década de 1920 que a partir dos anos de 19701980 vem se transformando em patrimônio cultural imaterial da cidade O objetivo central deste artigo é analisar o processo de institucionalização cultural que a Congada e Moçambique de Piedade vivenciou sobretudo na década de 1980 articulado entre a abertura das portas da Igreja Católica e o Movimento Negro católico nesse mesmo período Desse modo analiso essas mobilizações e articulações de homens e mulheres congadeiros moçambiqueiros na luta por direitos culturais e que têm utili zado o patrimônio cultural negro herdado de seus antepassados e fruto das suas experiências enquanto sujeitos negrosas para acessarem ainda mais a cidadania A festa acontece em Piedade desde a década de 1920 mas foi em datas anteriores que as devoções aos santos católi cos e o aprendizado congadeiromoçambiqueiro se iniciaram Foi quando tava acabando o tempo dos escravos6 afirmou Maria Emerenciana filha do primeiro capitão da Congada e Moçambique de Piedade José Venâncio Lima quando as famílias escravas e negras se transformaram nas famílias conga deirasmoçambiqueiras Essas famílias ampliaram suas relações de parentesco e compadrio e os elos com o passado ficaram mar cados nos rituais festejos danças e músicas dos congadeiros moçambiqueiros ao longo do século XX e até o tempo presente A experiência comum do passado escravista das famílias em destaque principalmente dos dois capitães fundadores José Venâncio e João Lotero foi ampliada para uma experiência mais 5 A fundação do pequeno arraial de Piedade localizado no campo das vertentes de Minas Gerais com proximidades ao sul do estado remonta ao século XVIII No fim do século XVIII e meados do XIX a região mantevese pelas trocas econômicas com as vilas mineradoras vizinhas São João del Rei e São José Del Rei atual Tiradentes 6 Entrevista concedida por Maria Emerenciana Silva Adalgisa Lima Lourdes Lima Neves dos Santos e Ana Maria Bonifácio da Silva em 28 de maio de 2012 Nessa entre vista quando questionei a data de nascimento do pai das entrevistadas o primeiro capi tão José Venâncio a resposta imediata da filha Lourdes foi Foi quando tava acabando o tempo dos escravos A filha Maria completou A minha avó ganhou ele quando ela era escrava Ele era criança Quando ela tava na época da escravidão ele era criança EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 346 10092018 111727 347 ampla de descendentes de escravos para filhos do Rosário na região de Piedade Foi na década de 1920 que um grupo de des cendentes da última geração de escravizados fundou institucio nalmente a sociedade de Congada e Moçambique de Piedade do Rio Grande É com uma escrita simples e direta como se nota no trecho recortado abaixo que o secretário da sociedade de Con gada e Moçambique inicia a ata de sua fundação registrada em cartório no ano de 1928 Aos dez dias do mês de junho de mil novecentos e vinte e oito reuniuse a sociedade de Congada e Moçambique para adoração de Nossa Senhora das Mercês e Nossa Senhora do Rosário respectivamente sobre a presidência do sr Fran cisco Fernandes Teixeira secretariado por mim José Mon teiro do Nascimento secretário e presentes todos os sócios inscritos e incorporados para organização dos Estatutos e suas cláusulas fins e direitos da sociedade e as responsabi lidades de cada sócio para com seus superiores7 No final do documento consta encerrouse os traba lhos de ata que vai por todos assinada e assinando a rogo dos que não sabem escrever o secretário8 E segue a lista com mais de 30 nomes de homens negros descendentes de escravos anal fabetos e que trabalhavam nas principais fazendas da região onde seus pais eou avós foram escravos É com esse trecho da ata que apresento a primeira geração de congadeirosmoçambiqueiros de Piedade do Rio GrandeMG homens e mulheres negros se agruparam desde o período escra vista Seus antepassados se relacionavam através de suas famílias e na Irmandade que frequentavam e em plena década de 1920 seus descendentes buscaram recriar seus símbolos rituais e devoções e decidiram associarse por elos culturais históricos e políticos Foi com essa primeira geração que foram reinventadas formas de dominação e dependência nas relações entre os fazen 7 Ata da Primeira Reunião da Sociedade de Congada e Moçambique de Piedade de 10 de junho de 1928 A Ata encontrase transcrita também no livro Giane de Carvalho Congada e Moçambique em Piedade do Rio Grande passos de folia e fé Volta Redonda 2008 8 Ata da Primeira Reunião da Sociedade de Congada e Moçambique de Piedade de 10 de junho de 1928 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 347 10092018 111727 348 deiros elite quase sempre branca da região e os trabalha dores rurais majoritariamente negros que continuaram traba lhando nas fazendas após a Abolição A experiência do cativeiro foi requalificada no período do pósAbolição o que para Hebe Mattos significou relações de trabalho e hierarquias baseadas nas relações escravistas9 A fundação da sociedade de Congada e Moçambique inserese no contexto do pósemancipação no Brasil que abrigou múltiplas modalidades de relações sociais Em comum além de todos serem descendentes de escra vos e negros estavam excluídos da participação política pois eram analfabetos como verificamos na ata de fundação da sociedade pela ausência da assinatura dos sócios foi o secretário quem assi nou por todos Tinham nascido no final do século XIX e começo do século XX e trabalhavam nas fazendas da região onde seus pais e avós tinham sido escravos na lida da agricultura Quase tudo foi criado inventado e ressignificado com a fundação dessa sociedade congadeiramoçambiqueira até mesmo a fé O pósAbolição se caracterizou pela negociação pelo ritmo e tempo de trabalho pelas opções por permanecer ou mudar e pelas velhas e novas hierarquias criadas que perpassa ram a vida dessas famílias camponesas negras no contexto rural mineiro O projeto camponês de autonomia vida e trabalho em família e de controle do seu tempo e lazer10 pode ser identi ficado entre as primeiras famílias congadeirasmoçambiqueiras liberdade tampouco foi sinônimo de igualdade11 como afir mam Flávio Gomes e Olívia Cunha Fé devoção festas trabalho redes parentais sociais e critérios raciais uniam esses homens e mulheres congadeiros moçambiqueiros Esse projeto já existia desde os tempos dos avós escravos que na primeira metade do século XX permane ceriam como lembranças através dos rituais músicas passos e festas da Congada e Moçambique de Piedade 9 RIOS Ana Lugão MATTOS Hebe Memórias do cativeiro família trabalho e cidadania no pósabolição Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2005 10 RIOS MATTOS 2005 p 253 11 GOMES Flávio CUNHA Olívia Introdução In Quasecidadão histórias e antropologias da pósemancipação no Brasil Rio de Janeiro Ed FGV 2007 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 348 10092018 111727 349 A primeira geração de congadeirosmoçambiqueiros agenciou um processo de racialização das relações sociais12 fato amplamente ligado à construção da identidade negra e baseado nas memórias da escravidão e da liberdade presentes em todos os rituais músicas e passos da festa de Congada e Moçambique de Piedade no tempo presente As gerações seguintes apren deram a louvar Nossa Senhora do Rosário e a festa tornouse momento de encontro para muitas famílias negras que no pós Abolição migraram de Piedade como a neta do primeiro capi tão José Venâncio afirma Nair o motivo que me traz de São Paulo a Piedade é a consideração é o amor muito grande pela minha famí lia que está aqui entendeu Que eu tenho pelo meu filho irmão e pelo carinho que eu tenho pela congada então eu faço questão de todo ano fazer esse esforço para estar junto com eles E é uma dedicação só que por motivos também de um eu vim aqui Eu não quero que vocês me arrepara é a saudade muito grande que eu tenho dos meus pais chora e é um amor muito grande que eu tenho pela con gada estar todo ano junto com eles entendeu E eu só tenho essa oportunidade uma vez por ano de vim pra cá Então eu faço questão Eu faço muita força e eu luto pra estar nessa data especial aqui Porque pra mim não é fácil pra eu vim pra cá por causa da falta por causa do serviço pra estar sempre vim pra cá E muito assim é difícil também pra eu estar aqui dentro dessa casa nessa data É muito recordativo Mas pra eu estar com os meus parentes meus amigos meu irmão e eu tenho muita consideração muito grande um carinho muito grande e eu faço força de vim nessa data pra cá E para estar nesses dias da festa junto com a congada organizando a eles entendeu13 No trecho selecionado acima Maria Nair de Faria resi dente em São Paulo há mais de 50 anos irmã de João Damas ceno de Faria netos do primeiro capitão da Congada e Moçam 12 ALBUQUERQUE Wlamyra R O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 p 3537 13 Entrevista com Maria Nair de Faria em 29 de maio de 2015 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 349 10092018 111727 350 bique de Piedade José Venâncio narra de maneira emocionada esses reencontros nas festas de Congada e Moçambique No começo da entrevista perguntei quais os motivos que a leva ram para Piedade há anos e a resposta veio juntamente com suas lágrimas estar todo ano junto com eles os congadeiros moçambiqueiros de quem Nair toma conta protege e orga niza rigorosamente todos os dias da festa Assim como a trajetória migratória de Nair muitos filhosas netosas sobrinhosas e parentes da primeira geração congadeiramoçambiqueira de Piedade migraram principal mente da zona rural onde moravam para cidades maiores Desse modo as décadas de 1950 1960 e 1970 foram marcadas por uma intensa migração dos membros da Congada e Moçambi que para grandes cidades como Rio de Janeiro Volta Redonda e São Paulo cujos atrativos por conta do desenvolvimento e das novas possibilidades de trabalho poderiam ser melhores que a vida no campo Segundo José Murilo de Carvalho a migração de uma parte da população negra de Piedade dirigiuse inicialmente para Volta Redonda atraída pela construção da Companhia Siderúrgica Nacional depois para São Paulo14 Nesse con texto a festa da Congada e Moçambique ganhou mais um sen tido o retorno desses migrantes para o reencontro com a cidade natal com seus familiares e com aqueles que decidiram ficar Para aqueles membros que não migraram muitos continuaram trabalhando nas fazendas da região a festa era o momento de descanso quando deixavam as fazendas em que trabalhavam e seguiam para a cidade No início da década de 1970 Piedade tinha cerca de mil habitantes na zona urbana e quatro mil na zona rural como consta na informação colhida no jornal do período possui escolas primárias um ginásio um clube recreativo e um ambu latório médico Na praça a prefeitura mantém um receptor de televisão para a distração do povo pois o cinema local deixou 14 CARVALHO José Murilo de Introdução JESUS Maria Cecília ALVES Maria das Dores Histórias que a Cecília contava Belo Horizonte Editora UFMG 2011 p 14 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 350 10092018 111727 351 de funcionar há quase dez anos15 A informação do jornal detalha em números a proporção de moradores por localidade e demonstra o quanto a zona rural era expressiva e representativa da maior parte da população16 O lazer de toda a população estava muito ligado às fes tas religiosas realizadas na cidade e foi nesse período especial mente entre as décadas de 1970 e 1980 que a festa da Congada e Moçambique passou por um intenso processo de formalização e institucionalização e entrou definitivamente para o calendá rio turístico e religioso da cidade como discutirei a seguir ENTIDADE DE AÇÃO SOCIAL E AS FORMALIZAÇÕES DA CULTURA NA DÉCADA DE 1980 Estatuto regimento posse da diretoria cartas recibos certidões jornal letras de músicas entre vários outros papéis amarelados estão guardados na pasta simples de documentos da Sociedade de Congada e Moçambique de Piedade preser vados e selados com a propriedade de quem se relaciona mais com a cultura oral do que com a cultura escrita Essa forma de preservar os documentos mesmo que desorganizada à primeira vista mantém os elos com o passado e é também dessa maneira que a Congada e Moçambique de Piedade conta sua história e garante o sentimento de pertencimento Com a junção de todos esses documentos é possível afirmar que a Sociedade de Congado e Moçambique de Pie dade passou por um processo de institucionalização e também de organização civil no final da década de 1970 especialmente na década de 1980 Entre os vários documentos encontrados na pasta da Associação a certidão datada de 1977 certifica que a Ata de Fundação da Associação de 1928 foi registrada Certifica e dá fé em virtude de pedido verbal de pes soa interessada que revendo em seu cartório os livros de 15 Jornal s d Acervo da Associação de Congada e Moçambique de Piedade do Rio GrandeMG 16 Até a década de 1970 as grandes fazendas escravistas do fim de século XIX continua vam na ativa economicamente com a mão de obra de parceiros e meeiros EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 351 10092018 111727 352 Registro de Pessoas Jurídicas deles no de número A1 às folhas 88 e verso conta o seguinte registro 22 de agosto de 1977 Registro integral de uma ata do seguinte teor Aos dez dias do mês de junho de 1928 reuniuse a sociedade de Congada e Moçambique17 Em 1982 tomou posse a nova diretoria com a mesma estrutura organizacional da primeira ata de fundação na década de 1920 e os quadros preenchidos com as mesmas hierarquias raciais com pessoas brancas na presidência Essa nova direto ria tentou criar medidas que pudessem garantir todos os tipos de recursos para a associação Após a posse dessa nova diretoria um novo estatuto foi criado e registrado O capítulo 1 desse novo estatuto apresenta os fins da associação Art 2 A Associação do Congado e Moçambique de Nossa Senhora do Rosário tem por finalidades I Promover por todos os meios ao seu alcance a inte gração entre a família e a comunidade II Colaborar com o município na organização e parti cipação das atividades programadas III Interessar a comunidade e as autoridades a cola borarem com o grupo na solução de problemas bem como desenvolvimento de suas atividades IV Combater toda e qualquer atividade que esteja em desacordo com os objetivos fundamentais do grupo18 Preocupados em promover a integração entre a família e a comunidade o estatuto regulamenta também os ensaios algo que é destacado já na ata de fundação em 1928 além de detalhes importantes como o local das reuniões ser a igreja de Nossa Senhora do Rosário a eleição da diretoria a cada quatro anos os nomes de todos os eleitos para os cargos assim como do rei congo e rainha conga Essa preocupação em participar da comunidade demonstra a tentativa de uma maior inclusão 17 Certidão 1977 Acervo da Associação de Congada e Moçambique de Piedade do Rio GrandeMG 18 Estatuto da Associação do Congado e Moçambique de Nossa Senhora do Rosário e das Mercês do município de Piedade do Rio GrandeMG em 25 de abril de 1982 Acervo da Associação de Congada e Moçambique de Piedade do Rio GrandeMG EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 352 10092018 111727 353 da associação nos quadros institucionais e formais do município e nos leva a questionar o quanto a associação esteve excluída dessas instâncias de poder anteriormente No final do documento consta a assinatura de todos os presentes na reunião A lista é encabeçada pelo pároco de Pie dade na época padre Jair Rodrigues seguida da assinatura do prefeito José Bernardino do Nascimento e de alguns membros da nova diretoria e dos congadeiros e moçambiqueiros Sebastião Paulino da Silva Armando Sávio Castro Waldemar Natalino de Oliveira Eu João Batista Fer nandes assinei por eles José Máel Domingos Aparecido da Silva José Tomé Filho Sebastião André José Luis da Silva Adebaldo Matias da Silva José Ramos da Silva Joaquim Marcio Ferreira José Brás de Lima Ferreira Elson Donizete Oliveira Mauro Arciso de Oliveiro Car los Romildo Teodoro Eu Maria Xista da Silva assi nei por eles Geraldo Magels Teixeira Mauro Antônio e Francisco Vander19 Membros da primeira geração estão presentes nessa lis tagem como o Sr Waldemar José Tomé Filho entre outros que se misturam aos mais jovens Após a morte dos dois primei ros capitães José Venâncio e João Lotera Adebaldo Matias da Silva e Armando Sávio de Castro assumem os respectivos cargos de primeiro e segundo capitão O documento não foi assinado por todos como consta nas expressões assinei por eles o que demonstra provavelmente a continuidade de membros analfa betos na associação como foi visto na primeira geração uma das marcas da exclusão e das desigualdades no pósAbolição o que não os impediu de se formalizarem A presença e a assinatura do estatuto pelas principais autoridades da cidade no período como o prefeito e o pároco permite afirmar que as estratégias desses membros da Congada e Moçambique foram bemsucedidas no que se refere às rela ções com as instâncias do poder local 19 Estatuto da Associação do Congado e Moçambique de Nossa Senhora do Rosário e das Mercês do município de Piedade do Rio GrandeMG em 25 de abril de 1982 Acervo da Associação de Congada e Moçambique de Piedade do Rio GrandeMG EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 353 10092018 111727 354 Outras fontes encontradas nesse conjunto documental permitem observar que a década de 1980 foi um marco institu cional na história da associação congadeira e moçambiqueira no que diz respeito à sua formalização perante os quadros insti tucionais do município e do estado de Minas Gerais Examinando os rascunhos encontrados na pasta dos congadeirosmoçambiqueiros um deles escrito à mão traz a listagem de documentos para fazer o registro como entidade cadastro para registro de entidades guia azul atestado de fun cionamento ata registrada em cartório cópia autenticada lei de utilidade pública CGC cópia autenticada estatuto cópia autenticada carteira de identidade do presidente cópia auten ticada via correios ou em mãos rua Martins de Carvalho 94 térreo Santo Agostinho Belo HorizonteMG Expedido em 9 de julho de 1982 Foi também no ano do estatuto 1982 que a associação conseguiu seu registro como Entidade de Ação Social através da Secretaria de Estado do Trabalho e Ação Social20 via governo estadual e o DecretoLei 0182 via Câmara Municipal de Pie dade que declarou de utilidade pública a Congada e Moçambi que Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora das Mercês21 Esse DecretoLei foi criado para que a associação pudesse ter seu registro como Entidade de Ação Social assim como o estatuto já mencionado Isso demonstra novamente o quanto os congadeirosmoçambiqueiros e membros da diretoria da época relacionavamse ao que parece de maneira amistosa com mais de uma instância de poder como a Câmara dos Vereadores que instituiu o DecretoLei 0182 Essas relações de poder em nível micro entre os congadeirosmoçambiqueiros e o prefeito os vereadores e o pároco da época perpassavam por critérios e estratégias que visavam para os congadeiros moçambiqueiros os benefícios em comum da associação e para as autoridades as ampliações das suas redes de poder políticas 20 Certificado do Registro de Entidade de Ação Social Acervo da Associação de Con gada e Moçambique de Piedade do Rio GrandeMG 21 DecretoLei 0182 Acervo da Associação de Congada e Moçambique de Piedade do Rio GrandeMG EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 354 10092018 111727 355 O certificado de Entidade de Ação Social garantia para os congadeirosmoçambiqueiros mais uma forma de institucio nalização das suas práticas culturais mesmo que essas mudan ças estivessem ligadas sobretudo a uma nova roupagem do assistencialismo pois a função dessa secretaria era garantir as ações voltadas para a assistência social no estado Ainda nessa tentativa de institucionalizar e organizar ainda mais a festa e a entidade congadeira um documento intitulado Histórico da fundação foi escrito para essa finalidade datado de 1982 e com as informações contidas na ata de fundação desta associação e numa entrevista com a centenária D Maria José de Faria22 Nele a fundação da festa e da associação é contada a par tir das idas do primeiro capitão José Venâncio a Ibertioga e o entu siasmo dos membros fundadores para organizar uma congada em Piedade23 O fato de a viúva do primeiro capitão ser entrevistada nesse período aponta para as relações entre oralidade e escrita esta belecidas pelos membros das gerações da esperança Foi nesse período também que a entidade passou a pertencer aos quadros da Federação dos Congados de Nossa Senhora do Rosário do estado de Minas Gerais Segundo João Damasceno neto do primeiro capitão com a entrada nessa Federação alguns aspectos importantes da festa foram modifi cados como a presença da rainha conga e as participações em encontros em todo o estado24 Essa entrada também significou uma ampliação das redes de relações sociais com vários outros grupos de congada dando também uma ideia da importância desta manifestação folclórica no Estado como afirma o jornal As idas aos diversos encontros de congadas como é narrado por Joãozinho em Lafaiete com mais de 60 ban 22 Histórico da Fundação Acervo da Associação de Congada e Moçambique de Pie dade do Rio GrandeMG D Maria José de Faria era viúva do primeiro capitão Sr José Venâncio Lima 23 Em todas as entrevistas realizadas com os congadeirosmoçambiqueiros de Piedade a ida para a festa de Congada em Ibertioga cidade vizinha a Piedade é a explicação central das narrativas no que se refere à fundação da festa em Piedade A função desse documento analisado parece representar os limites e também os conflitos existentes entre a oralidade e a escrita nesse passado próximo 24 Entrevista concedida por João Damasceno de Faria em 30 de maio de 2012 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 355 10092018 111727 356 das25 tornaramse cada vez mais frequentes para os congadei rosmoçambiqueiros de Piedade que aprendiam novos cantos e rituais e ensinavam outros além dos muitos ganhos políticos advindos desses novos espaços Após a Constituição de 1988 mudanças estruturais sig nificativas foram realizadas no âmbito das políticas culturais no país Em fevereiro de 1988 antes da nova Constituição a Enti dade de Congado e Moçambique de Piedade26 recebeu a seguinte carta da Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais27 A Secretaria de Estado da Cultura é o órgão do governo estadual encarregado de propor a política cultural do Estado e planejar coordenar executar e controlar as atividades governamentais relativas ao desenvolvimento cultural e artístico e à preservação do patrimônio his tórico e artístico do Estado Na tentativa de buscar maior racionalização em seu desempenho através de um planejamento que atenda as diversas regiões do Estado e os diferentes segmentos da produção cultural solicitamos às instituições que remetam até o dia 29 de fevereiro de 1988 os projetos e solicitações referentes às atividades a serem desenvolvidas no decorrer deste ano Ângela Gutierrez secretária de estado de Cultura28 O envio dos projetos para essa secretaria permite avaliar que as políticas culturais passariam a vigorar de maneira dife rente se de 1982 até 1988 a entidade estava vinculada à Secreta ria do Trabalho e Ação Social ligada ao assistencialismo depois de 1988 a Congada e Moçambique passaria a fazer parte da Secretaria de Cultura Essa mudança favoreceu o direito de 25 Entrevista concedida por João Damasceno de Faria em 30 de maio de 2012 26 É interessante pontuar que para alguns congadeirosmoçambiqueiros que têm a faixa etária de 5060 anos o uso do termo entidade é recorrente se referirem à Con gada e Moçambique de Piedade 27 Nessa época o governo do estado estava nas mãos do político Newton Cardoso do PMDB Ao lado de Ulisses Guimarães e Risoleta Neves viúva de Tancredo Neves Newton Cardoso fez sua campanha para o governo do estado de Minas Gerais com comícios carreatas e debates Disponível em httpwwwsiaapmculturamggovbr modulesfotograficodocsphotophplid31302 Acesso em 15 dez 2015 28 Carta da Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais em 6 de janeiro de 1988 Acervo da Associação de Congada e Moçambique de Piedade do Rio GrandeMG EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 356 10092018 111727 357 acesso à cultura previsto na Constituição Federal de 1988 que garante a todosas o efetivo exercício dos direitos culturais29 Segundo Marilena Chauí cabe ao Estado assegurar o direito de acesso às obras culturais produzidas particularmente o direito de fruílas o direito de criar as obras isto é produzilas e o direito de participar das decisões sobre políticas culturais30 Foi a partir dessa conjuntura e das estratégias desenvolvidas pelas gerações que a Congada e Moçambique passou a se rela cionar com a Secretaria de Cultura do estado o que demons tra as novas formas de inserção e diálogo entre os congadeiros moçambiqueiros e as instituições do estado e do município Foi também na segunda metade da década de 1980 que as relações com a Igreja Católica começaram a se modificar AS PORTAS ABERTAS DA IGREJA CATÓLICA Oh senhor padre abre a porta Que eu também quero entrar Quero ouvir a santa missa Que o senhor vai celebrar O senhor ia a igreja era os pretos que levavam O senhor entrava pra dentro Preto cá fora ficava E se ele reclamasse De chicote ele apanhava31 Estes versos são cantados nos dias de hoje pelos ter nos de Congada e Moçambique de Piedade nos momentos que antecedem a realização das missas afro que fazem parte da pro gramação da festa há aproximadamente 30 anos32 29 BRASIL Constituição 1988 Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 5 de outubro de 1988 Organização de Juarez de Oliveira 4 ed São Paulo Saraiva 1990 Série Legislação Brasileira 30 CHAUÍ Marilena Cidadania cultural o direito à cultura São Paulo Editora da Fun dação Perseu Abramo 2006 31 Música cantada pelo terno de Congada e Moçambique de Piedade do Rio Grande 32 Entrevista concedida por João Damasceno de Faria em 30 de maio de 2012 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 357 10092018 111727 358 De 1926 a 1985 os congadeirosmoçambiqueiros toma ram as ruas da cidade dançaram e cantaram em louvor aos seus santos de devoção mas não adentraram na Igreja Católica para participar de qualquer missa ou ato litúrgico considerado oficial para a Igreja nos dias das festas da congada Nessa época os ternos dirigiamse para a porta da igreja e lá pediam água benta ao padre como é narrado por vários entrevistados entre eles João Damasceno e dona Efigênia João Damasceno naquela época o Congado dan çava para receber a água benta Não é como na época de hoje que tá evoluído é religioso mas só que a gente chegava no primeiro degrau embaixo da porta da igreja e não entrava pra dentro da igreja e jogava água benta o padre jogava água benta e a gente ia pra rua As festas naquela época o pessoal vinha muito mesmo tinha banda o pessoal vinha de carro de boi e trazia aque las latas de rosquinhas aqueles frangos pendurados nos varais porque a festa era muito boa foguete era de arre bentar O congado não participava da missa não entrava na igreja Quando entrava na igreja do Rosário pra levar rei e rainha era pela porta do lado não a da frente33 Lívia E a senhora lembra quando não entrava na igreja Efigênia A Congada não entrava não Depois que teve uma festa aqui e veio um padre negro lá de Barroso com um bando de negro que dançava Congada em Barroso Aí trouxe eles aqui pra Piedade aí o padre José Paulo agradou muito do bando da negrada A negrada que batia e que entrou na igreja as negras tudo de saia comprida e requebrando e dançando com as pineiras de broa do lado biscoito Com as pineiras de coisas na mão aquela bateria e o padre José Paulo tam bém entrosou com a negrada lá de Barroso o padre negro de Barroso também ali cantando e tocando o pandeirinho dele Lívia E antes era como Efigênia Caído era mais separado não entrava na igreja Só tomava água benta na porta da igreja tinha 33 Entrevista concedida por João Damasceno de Faria em 30 de maio de 2012 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 358 10092018 111727 359 um pouco de racismo sabe Não podia colocar os negros dentro da igreja porque eram pretos jogar água benta Agora não a negrada entra dentro da Igreja pulando e dançando e cantando34 Os dois relatos mostram o quanto foi marcante para as gerações congadeirasmoçambiqueiras as portas fechadas da Igreja Católica Dona Efigênia declarou que tinha um pouco de racismo nessa proibição e na escolha de quem poderia entrar na igreja e participar da festa Há uma memória ressentida e até mesmo dolorosa35 ligada à experiência do racismo sofrido no tempo presente pelos congadeirosmoçambiqueiros Ainda no jornal desconhecido encontrado na docu mentação da congada sem data mas que possivelmente é da década de 1970 podese ler Durante dois dias a festaria consiste do Congado que se desdobra no Moçambique e de todo o comércio típico das festas religiosas do interior além de sucessivas missas nas quais predominam os brancos em contraste com as ruas repletas de negros do lugar e visitantes36 O predomínio dos brancos nas missas em contraste com as ruas repletas de negros é retratado na reportagem do jornal e apresenta a própria segregação racial ocorrida nesse período em Piedade Pelas lembranças compartilhadas por vários moradores antigos as missas em Piedade eram cele bradas em latim e com o padre de costas para os fiéis até o início da década de 1980 O período das portas fechadas da Igreja Católica para a Congada e o Moçambique de Piedade se enquadra numa conjuntura cujo modelo de catolicismo era praticado desde a primeira metade do século XX com as portas fechadas para as formas consideradas populares de 34 Entrevista concedida por Efigênia do Nascimento Silva em 3 de junho de 2013 35 Para Dominick LaCapra uma das maiores dificuldades na História Oral é falar da dor tanto para o entrevistado como para o entrevistador LaCapra ao trabalhar com a dor no Holocausto e a postura ética do historiador evidencia que este não deve assumir o lado da vítima e também devese pensar nos limites da intervenção do historiador nas entrevistas e no seu trabalho historiográfico LACAPRA Dominick Representar el Holo causto história teoria trauma Buenos Aires Prometeo Libros 2008 36 Jornal sd Acervo da Associação de Congada e Moçambique de Piedade do Rio GrandeMG EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 359 10092018 111727 360 acordo com o processo de romanização da Igreja Católica que ainda era forte nessa época Mas isso mudaria a partir dos anos de 1960 especial mente após o Concílio Vaticano II que em 1962 estabeleceu mudanças importantes na relação da Igreja Católica com diversos aspectos da sociedade entre eles as festas populares Na América Latina após a Conferência em Medellín em 1968 que marcou formalmente o início desse processo e pavimentou o que ficou depois conhecido como marca registrada da caminhada ecle sial na América Latina a opção preferencial pelos pobres37 as mudanças foram sentidas num esforço de reformulação das bases religiosas e no posicionamento em relação às causas sociais Uma das explicações para essas mudanças dentro da própria instituição católica foi a grande diminuição do número de fiéis no mundo especialmente nos países latinos nesse perío do38 Foi nesse sentido que as devoções festas e manifestações ditas como populares e segregadas pela Igreja Católica até então passaram a fazer parte de um novo projeto de igreja Em diálogo com as mudanças propostas pelo Concílio Vaticano II surgiu na América Latina o movimento chamado Teologia da Libertação ligado aos intelectuais e religiosos da Igreja Católica em busca da libertação das classes empobrecidas e das nações latinoamericanas39 O homem pobre passaria ao centro de discussões de importantes setores da Igreja Católica no Brasil chamados por Eric Hobsbawm de padrescatólicosmar xistas40 Segundo Sandro Silva no Brasil a teologia da liberta ção assumiu uma função ideológica hegemônica na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNBB e foi fundamental den tro do processo de transição política que o país vivia saindo do regime civilmilitar e retornando ao Estado de Direito41 37 BEOZZO J O Presença e atuação dos bispos brasileiros no Vaticano II In LOPES P S V I Concílio Vaticano II análise e prospectivas São Paulo Paulinas 2004 p 150 38 AQUINO JÚNIOR Francisco de Igreja e política abordagem teológica à luz do Concílio Vaticano II Revista Pristis Prax Curitiba v 5 n 2 p 463492 juldez 2013 39 SILVA Sandro Ramon Ferreira Teologia da Libertação revolução e reação interiori zadas na Igreja Dissertação Mestrado em História Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Universidade Federal Fluminense Niterói 2006 40 HOBSBAWM Eric Era dos extremos o breve século XX 19141991 Trad Marcos Santarrita São Paulo Companhia das Letras 2001 p 425 41 SILVA Teologia da libertação 2006 p 11 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 360 10092018 111727 361 Diante disso novas lutas e conquistas foram protago nizadas pelos congadeirosmoçambiqueiros que começariam a dialogar com essas novas forças sociais da Igreja Católica Nes ses diálogos o ano de 1988 foi marcante como um momento de grande reflexão sobre a realidade social e econômica da popula ção negra no Brasil no qual o movimento negro ocupou papel central nesses debates42 O braço desse movimento dentro da Igreja Católica foi a Associação de Padres e Bispos Negros que teve alcance nacional com suas sedes chamadas quilombos distribuídas nas capitais do país e desvinculadas das dioceses além dos Agentes de Pastorais Negros APNs que buscavam refletir através da perspectiva teológica o racismo no Brasil43 Mobilizados em torno das comemorações do centená rio da Abolição em 1988 partes do movimento negro engen draram as discussões sobre o negro e o racismo na sociedade brasileira dentro da Igreja Católica através dessas associações Nesse sentido em Piedade a atuação e o envolvimento dos con gadeirosmoçambiqueiros com a Associação de Padres e Bispos Negros do Brasil se configuraram nas relações estabelecidas com o padre Raimundo Foi a partir da presença desse padre que os congadeirosmoçambiqueiros se posicionaram de maneira dis tinta e assumiram um lugar dentro da Igreja Católica sobretudo com a inclusão da missa afro em seus festejos Como dona Efigênia bem retrata o padre negro de Barroso também ali cantando e tocando o pandeirinho dele foi uma figura presente e animadora nas festas de maio Em suas palavras o próprio padre recordouse em 2014 Padre Raimundo eu estou aqui na Piedade do Rio Grande Na cidade de Piedade do Rio Grande eu já faço 42 PEREIRA Amilcar O mundo negro relações raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil Rio de Janeiro Pallas FAPERJ 2013 43 José Geraldo da Rocha em livro publicado sobre o tema afirma que os APNs tive ram papel central no processo de reconstrução da história e cultura negra dentro da Igreja Católica favorecendo o enegrecimento da teologia Esse grupo atuava com cursos estudos cantos e reflexões e buscava o fortalecimento do diálogo com as religiões afrobrasileiras ROCHA José Geraldo da Teologia e negritude um estudo sobre os agentes da Pastoral de Negros Santa Maria RS Pallotti 1998 Agradeço à amiga Maria do Carmo Gregório pela indicação e presente dessa obra EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 361 10092018 111727 362 já acompanho essa Congada e Moçambique desde 1988 quando então eu estava na arquidiocese de Juiz de Fora na Paróquia de Nossa Senhora Aparecida em Arantina Então meu contato com Piedade do Rio Grande já é de longos anos e mais uma vez eu estou aqui né essa proximidade foi através do Padre José Paulo porque ele já sabia que eu fazia parte do movimento dos padres e bis pos diáconos negros do Brasil então ele me convidou44 Foram quase 30 anos de idas do padre Raimundo à festa da Congada e Moçambique de Piedade e também foram intensas as transformações advindas desses encontros O ano de 1988 tão emblemático para os movimentos sociais por conta das lutas pósditadura militar da nova Constituição brasileira sendo implementada e das diversas pautas e lutas em discus são tornouse também simbólico para os congadeirosmoçam biqueiros de Piedade por marcar o encontro com esse padre A importância da representatividade negra dentro dos quadros institucionais da Igreja Católica fez com que padre Raimundo se tornasse uma espécie de líder espiritual dos congadeiros moçambiqueiros de Piedade especialmente daqueles mais liga dos à Igreja Católica A ida do padre Raimundo até Piedade foi por conta da proximidade com o padre José Paulo que assumiu a paróquia em Piedade no ano de 1986 e é o atual pároco de Piedade Ele é professor de História da única escola da cidade e figura mar cante para toda uma geração Lívia E o que o senhor acha desse movimento o que ele representou Essa entrada na Igreja a partir de 85 86 com o senhor o senhor acha que isso representou o quê Pra Congada pra Paróquia pra comunidade em geral Padre José Paulo É muito difícil falar é um ponto meu é um ponto de vista meu Do ponto de vista assim mais genuíno mais espiritual sabe A Congada era muito mais simples do que hoje na questão por exemplo da vestimenta mesmo Havia muito mais difi 44 Entrevista concedida pelo padre Raimundo Inácio da Silva em 1 de junho de 2014 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 362 10092018 111727 363 culdade mesmo financeira de manter as vestimentas os adereços os adornos isso aí tudo era muito difícil o próprio calçado que se usa hoje Então era uma Con gada assim vamos dizer assim mais carente do ponto de vista financeiro mas era uma Congada assim mais ligada ao místico ao mistério ao sagrado A experiên cia de sagrado do meu ponto de vista era muito maior mesmo eles fora da Igreja Agora a entrada na Igreja deu assim mais visibilidade Do ponto de vista assim as pessoas começaram a vir mais em Piedade do Rio Grande pra apreciar a Congada Então a Congada ela se tornou assim mais presente pra comunidade daqui e também foi divulgada45 A narrativa do padre demonstra um momento de rompi mento e mudanças profundas nas relações que aqueles homens e mulheres negrosas tinham com a Igreja Católica Isso não significa que houve uma diminuição ou interferência na fé dos congadeirosmoçambiqueiros nos últimos anos mas representa a mudança na forma de lidar institucionalmente com a Igreja Católica e as novas formas de externalizar essa fé Em outros trechos da entrevista padre José Paulo fala sobre as continuidades e as mudanças que aconteceram ao longo dos últimos 30 anos na festa de maio destacando como a principal permanência a função da festa de unir a etnia negra e ser uma festa que resiste tanto no passado quanto no presente As seleções da memória feitas pelo padre José Paulo informam o lugar que ele ocupa na comunidade como pároco há mais de 30 anos professor de História de matriz marxista com forte influência na juventude e lide rança política e social do município Ele ainda reforça em sua fala as desigualdades sociais e o racismo que marcam a sociedade brasileira Em relação à permissão para a congada entrar na igreja padre José Paulo narra que teria acontecido primeiramente no 45 Entrevista concedida pelo padre José Paulo Guimarães Menezes em 29 de maio de 2014 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 363 10092018 111727 364 momento de transição da saída do antigo pároco padre Jair46 e a sua entrada com a passagem rápida do padre João Batista Nas cimento conhecido como padre Dotivo no ano de 1985 Após isso o próprio padre José Paulo também permitiu que a Congada e Moçambique adentrasse a igreja e participasse efetivamente da liturgia católica E em 1988 com a chegada do padre Raimundo a convite do padre José Paulo o grupo foi ainda mais participativo dessas cerimônias como a introdução da missa afro e a coroação de Nossa Senhora das Mercês na programação da festa Os usos políticos que os congadeirosmoçambiqueiros do tempo presente fazem desse processo de abertura da Igreja estão baseados nas memórias concorrentes que foram sendo construí das ao longo dos últimos 30 anos em Piedade Desse modo o ano de 1986 virou uma data comemorativa para a congada que cele bra com faixas cartazes e discursos esse acontecimento O início da realização das missas afro ou missas con gas marcou essa geração congadeira O aprendizado desse novo ritual litúrgico contou com a ajuda de ternos de outras cidades mineiras e a circulação de papéis que ensinavam os modos de fazer como pode ser percebido no documento guardado pela con gada Missa do Congado de Contagem no qual consta além das letras das músicas a serem cantadas na missa uma espécie de passo a passo de como realizar os distintos ritos dentro da igreja durante a procissão do ofertório os reis e rainhas depositam as coroas no altar enquanto a guarda de Moçambique canta47 Isso demonstra o quão importante foi para os congadei rosmoçambiqueiros de Piedade as novas relações estabelecidas com grupos de outras cidades e as reinvenções das tradições e 46 Padre Jair foi pároco em Piedade por mais de 40 anos e a sua passagem deixou mar cas na memória da população que tem um misto de adoração e respeito pela figura do rígido padre que rezava missa às 5h algumas em latim exigia roupas decentes para as mulheres dentro da igreja e fundou com a ajuda da médica da cidade Arcíria Nasci mento um pequeno hospital para atender e socorrer aqueles que precisavam de atendi mento médico em meados da década de 1970 Não consegui entrevistálo e seu faleci mento foi em 2013 Antes da abertura das portas da igreja padre Jair assinou a Ata para regulamentação do Estatuto em 1982 o que demonstra em certo sentido que havia relações amistosas envolvendo os membros da Congada e Moçambique com o rígido pároco da cidade e também o quanto as contradições fazem parte dessas trajetórias 47 Missa do Congado de Contagem cópia Acervo da Associação de Congada e Moçambique de Piedade do Rio GrandeMG EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 364 10092018 111727 365 inovações culturais pelas quais passaram Todas essas modifica ções proporcionaram ao grupo de Piedade uma valorização ainda maior da identidade negra e um reforço do pertencimento racial orgulho das gerações congadeirasmoçambiqueiras que soube ram transformar e reinventar a festa Essas gerações viveram contextos de transformações sociais profundas na segunda metade do século XX assistiram ao início e ao fim do autoritarismo da ditadura civil militar no país embalaramse nas discussões sobre o folclore e recons truíram sua principal festividade relacionada ao sentimento de pertencimento racial que promoviam Além disso instituciona lizaram suas práticas culturais em importantes redes e estabe leceram os fios que nunca foram atados com a Igreja Católica em diálogo com o movimento negro presente nessa instituição Para Rodrigo Weimer o pósabolição longe de ter cami nhos e trajetórias prédefinidos pela herança escravista foi um momento em que foram postulados problemas cujas respostas estavam abertas à atuação dos indivíduos48 Realmente as traje tórias das famílias congadeirasmoçambiqueiras no pósAbolição em Minas Gerais não estavam predefinidas pela herança escra vista porém os elos com esse passado e a memória dessa herança estavam presentes Ligados por laços de parentesco compadrio e sociabilidades festivas essas famílias adquiriram uma atuação e para ser mais precisa uma agência ao decidirem fundar uma associação e guiar suas próprias vidas Nessas relações os congadeirosmoçambiqueiros benefi ciaram a associação e com as autoridades ampliaram suas redes de poder políticas Foi também essa geração a responsável por enquadrar a entidade congadeiramoçambiqueira nos quadros da Federação dos Congados de Nossa Senhora do Rosário do Estado de Minas Gerais entidade maior que agregava todas as conga das do estado no período Mudanças significativas foram sentidas pelos congadeirosmoçambiqueiros até mesmo nos rituais e nas festas como a inclusão do cargo de rainha conga que atualmente ocupa papel central na festa 48 WEIMER Rodrigo de Azevedo Ser moreno ser negro memórias de experiências de racialização no litoral norte do Rio Grande do Sul no século XX Revista Estudos Histó ricos v 26 n 52 p 409420 2013 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 365 10092018 111727 366 A década de 1980 foi palco da abertura política no país e de grandes mudanças para os congadeirosmoçambi queiros que se abriram para o mundo e transformaram a festa de maio em uma festa identitária e turística ao mesmo tempo com intenso diálogo com a contemporaneidade Essa geração preparou o terreno para a geração atual de jovens congadeirosmoçambiqueiros que no tempo presente lutam e se orgulham das lutas do passado e do legado do patrimônio cultural negro A festa vem se transformando nos últimos 40 anos Se no passado os festejos estiveram restritos ao grupo familiar das primeiras gerações de congadeirosmoçambiqueiros no tempo presente a nova geração convive com um público grande que assiste à festa todas as noites Moradores e turistas máquinas fotográficas equipe de TV e o emblema de ser a melhor festa da cidade formam o espetáculo É também um momento de reencontro de muitos piedenses ausentes que moram em outras cidades e escolhem ir à festa de maio para encontrar familiares e amigos especialmente os familiares congadeirosmoçambi queiros A festa aproxima toda a população da cidade piedenses ausentes turistas grupos que visitam a festa e a auxiliam como corais que cantam nas missas e eventualmente grupos de con gadas de cidades vizinhas porém não existem misturas as identidades se mantêm separadas na festa e talvez esse ponto seja um dos resquícios do passado nas festas do tempo presente A população local assiste à festa acompanha o cortejo mas não ajuda na sua organização tudo continua a cargo da associação congadeiramoçambiqueira Atualmente é através do Conselho Municipal do Patri mônio Histórico e Cultural de Piedade responsável por cuidar fiscalizar e promover ações nessas áreas que a prefeitura muni cipal também se relaciona com os congadeirosmoçambiqueiros Os conselheiros desse conselho são escolhidos na comunidade e decidem as principais ações e também o destino das verbas arre cadadas pelo município para investir nesse setor Essa verba é repassada pelo estado através do Iepha Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Arquitetônico que analisa as ações desen volvidas pelo conselho e cria uma tabela de pontuação do ICMS EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 366 10092018 111727 367 Cultural no Estado49 É através dessa pontuação que todos os municípios mineiros arrecadam o que deveria ser gasto exclusiva mente com as ações na área do patrimônio histórico o que nem sempre acontece A festa de maio entrou para a listagem do conselho como Patrimônio Cultural Imaterial da cidade A Unesco define como Patrimônio Cultural Imaterial as práticas representações expressões conhecimentos e técnicas junto com os instrumen tos objetos artefatos e lugares culturais que lhes são associados que as comunidades os grupos e em alguns casos os indiví duos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cul tural50 O Patrimônio Imaterial é transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente de sua interação com a natureza e de sua história gerando um sentimento de identidade e conti nuidade contribuindo assim para promover o respeito à diversi dade cultural e à criatividade humana Para os próprios congadeirosmoçambiqueiros a con gada e o moçambique significam pertencimento e expressam a sua identidade cultural negra o que vai ao encontro da pro posta política do Estado enquanto patrimônio imaterial Porém ao que parece a demora nessa titulação enquanto patrimônio imaterial do município expõe a fragilidade de toda a comu nidade nesse reconhecimento O desafio para implementar as políticas de salvaguarda requer por parte de todos os agentes envolvidos nessa ação muito mais diálogo com aqueles que são centrais nessa disputa Há também uma percepção da história memória e tra dição oral do grupo como patrimônios que precisam ser valo rizados lembrados e desta forma reparados51 e essa questão 49 Disponível em httpwwwiephamggovbrprogramaseacoesmunicipalizacao dopatrimoniocultural Acesso em 25 jan 2015 50 Disponível em httpportaliphangovbrportalmontarPaginaSecaodoid10852re tornopaginaIphan Acesso em 27 set 2012 51 ABREU Martha Cultura imaterial e patrimônio histórico nacional In SOIHET Rachel GONTIJO Rebeca Org Cultura política e leituras do passado historio grafia e ensino de história Rio de Janeiro Civilização BrasileiraFaperj 2007 ABREU Martha MATTOS Hebe Remanescentes das comunidades quilombolas memórias do cativeiro patrimônio cultural e direito à reparação Revista IberoAmericana Berlim ano 11 n 42 2011 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 367 10092018 111727 368 remete também ao direito à reparação e ao dever de memória Com a patrimonialização das festas e dos bens imateriais espera se a sua continuidade e o seu reconhecimento como código iden titário da cidade Nesse sentido a noção de imobilidade não faz parte desse circuito pois são essenciais para qualquer manifes tação cultural as mudanças e as adaptações aos novos contextos e isso fica evidente nas ações dessa atual geração empoderada que mantém um diálogo constante entre tradições e transformações mudanças e permanências na festa e fora dela Os horizontes de expectativas dos congadeirosmoçam biqueiros são amplos Via política de patrimônio imaterial as novas gerações poderão conquistar ainda mais reconhecimento e legitimidade para suas práticas culturais Há uma relação entre a memória da escravidão e da liberdade e a valorização da Con gada e Moçambique no tempo presente A festa de maio passa por um processo de transformação tornandose um patrimônio cultural herdado e reconstruído por descendentes de escravos Nesse sentido apropriandose desse contexto os congadeiros moçambiqueiros reafirmam politicamente suas trajetórias histó ricas e ganham cada vez mais visibilidade e novas perspectivas enquanto patrimônio imaterial EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 368 10092018 111727 369 ENTRE BRECHAS E PROIBIÇÕES A EXPERIÊNCIA DE BRINCANTES NEGROS DO BUMBAMEUBOI NO MARANHÃO NO PÓSABOLIÇÃO Carolina de Souza Martins O bumbameuboi é uma das principais manifestações culturais do estado do Maranhão sendo considerado ao longo do século XIX como uma brincadeira típica das camadas sociais menos privilegiadas visto que grande parte daqueles que a rea lizavam eram homens e mulheres negros e de origem de classes populares Até a primeira metade do século XX o bumba foi submetido a proibições e controle por parte do Estado que não permitia que os cordões percorressem as ruas do centro da capital maranhense realizando seus batuques Entre proibições e permissões o bumbameuboi mara nhense foi conquistando ao longo do tempo seu espaço na cidade Isto foi possível em grande parte devido à ação dos pró prios brincantes que souberam se utilizar de diferentes estratégias para que ocorresse uma maior visibilidade e consequentemente a valorização da brincadeira no estado como se percebe atual mente Cabe ressaltar que o bumba recebeu no ano de 2011 o título de Patrimônio Imaterial Brasileiro pelo Iphan Neste trabalho procuro explorar as experiências de brin cantes de bumbameuboi no período pósAbolição especifica mente na cidade de São Luís capital do estado tendo por base o material que coletei durante minha pesquisa de mestrado realizada entre os anos de 2013 e 2015 no interior de um dos grupos de bumba mais antigos o Boi de Pindaré Através da metodologia da história oral foi possível apreender a trajetória dos fundadores deste grupo suas origens e de que maneira a brincadeira se entrelaçava com as suas vidas Importante ressal tar que os fundadores do Boi de Pindaré eram homens negros e que migraram da Baixada Maranhense região que concentrou EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 369 10092018 111728 370 importante contingente populacional de escravos para São Luís na primeira metade do século XX A primeira parte do artigo aborda o contexto do século XIX em São Luís e o controle exercido por parte das autorida des sobre os cordões de bumbaboi Para isso realizei uma pes quisa nos principais jornais que circulavam nesta época na capital maranhense nos quais a referência aos batuques que ocorriam na cidade é recorrente além dos Códigos de Posturas e documen tos de época disponíveis no Arquivo Público do Maranhão Na segunda parte do artigo apresento a relação entre o bumbaboi e o pósAbolição no Maranhão a partir da trajetória dos fundadores do Boi de Pindaré Para isso me baseio nas entrevistas realizadas por mim com cantadores e excantadores deste grupo de boi E por fim a terceira parte procura levantar questões entre o universo do trabalho e as rodas de bois tendo por base a análise de depoimentos de antigos cantadores Aponto também como a brin cadeira enquanto um espaço lúdico e político dos trabalhadores está associada sob certas nuanças à organização sindical NAS BRECHAS DAS PROIBIÇÕES Ao abordar a temática do bumbameuboi no Maranhão tornase imperativo apresentar um breve panorama sobre a brin cadeira na sociedade maranhense entre os séculos XIX e XX No século XIX os batuques termo genérico que com preendia os encontros festivos realizados por escravos negros livres e libertos eram comuns em diferentes regiões do Império e em São Luís do Maranhão isso não foi diferente Em geral a per missão para a realização das festas negras não era consenso entre as autoridades que discordavam sobre a questão da sua regula mentação e controle As festas e os batuques se constituíram como um espaço de luta no qual os sujeitos sociais que os promoviam resistiram e lutaram pelo seu direito de festejar1 Tal como afirma João 1 VIANNA Larissa ABREU Martha Festas religiosas e cultura política no Império do Brasil In GRIMBERG Keila SALLES Roberto Org O Brasil Imperial vol 3 Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2009 De acordo com as autoras as reivindicações de escra vos e seus descendentes incluíam além do acesso à terra a defesa da família e a liberdade a realização de reuniões religiosas festivas EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 370 10092018 111728 371 José Reis o controle sobre as festas negras não era unanimidade somente entre as autoridades mas também na imprensa e entre os religiosos pois enquanto alguns acreditavam que elas poderiam se tornar uma janela para uma possível revolta social outros as defendiam como aquilo que diminuiria as tensões sociais numa realidade que a escravidão tornava ainda mais desigual Embora não houvesse um consenso sobre as proibições e autorizações das festas negras e mesmo nos períodos em que a repressão era mais forte os batuques não cessavam como é pos sível observar no caso específico de São Luís Segundo Reis esta maneira de festejar com cantos danças e música era sem dúvida essencial no modo de vida africano e continuou do lado de cá do Atlântico2 Isto explicaria a resistência a insistência e a ousadia dos negros quanto a não abandonarem suas festas Certamente no caso do Maranhão o bumbameuboi estava incluído no termo generalizante batuque Constante mente citado como vozeria terrível e infernal berraria nos periódicos locais o bumba era possivelmente a brincadeira dos pretos e pobres por excelência O destaque dado à brincadeira em alguns jornais do período leva a supor que era o bumbameuboi o fol guedo que estava no centro das discussões sobre a tolerância às festas negras na região O controle exercido sobre os cordões de bumba é perce bido também nos documentos das primeiras décadas do século XIX Aqui cito um documento datado de 28 de junho de 1828 localizado no Arquivo Público do Maranhão Manoel Maximino Mendes soldado Particular do Regi mento da 2ª Linha desta Cidade preso as 11 ¹² hs da noite pelos soldados da 2ª Ca Manoel Goz e Romoaldo da Costa da 1ª por dar pancadas nos rapazes que estavam no divertimento do Bumba com licença da Polícia acom panhados por uma patrulha composta dos ditos soldados estando sob divertimento sossego e não querer obedecer a ordem de Prisão deste Comando de Polícia que lhe foi dado 2 REIS João José Tambores e temores a festa negra na Bahia na primeira metade do século XIX In CUNHA Maria Clementina Pereira da Org Carnavais e outras frestas São Paulo Unicamp 2002 p 118 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 371 10092018 111728 372 pelos ditos soldados cujo o preso evadiu e se acha nas cir cunstâncias do Recrutamento de 1ª linha3 Neste documento os festeiros são descritos como rapa zes sem alusão a cor e classe social Porém a necessidade da licença para o bumba ser realizado é claramente apontada pois além da polícia ter permitido a brincadeira naquele ano havia uma patrulha acompanhando o divertimento Um mês antes do ocorrido em outro documento datado de 15 de maio de 1828 os negros Antônio e Salomão ambos escravos foram presos por estarem embriagados fazendo baru lho num tabaque de negros provavelmente um bumbameu boi pela proximidade com o período junino Diz o documento Negro Antonio escravo de d Gertrudes de Jesus e dito Salo mão escravo de João Diniz Gonçalves presos às 11 da noite pela patrulha da Fonte das Pedras por estarem embriagados fazendo barulho num tabaque de negros4 Segundo Larissa Viana e Martha Abreu a conjuntura dos anos 1830 e 1840 explica a preocupação com a realização de tais festas que ocasionavam indesejáveis ajuntamentos motivo de preocupação por parte das autoridades5 É importante salientar que nesse contexto as ameaças de revoltas eram fantasmas que rondavam grande parte das cidades do Império brasileiro e no Maranhão era a Balaiada que causava esse temor6 Ainda segundo as autoras foi neste período que a legis lação do Império criou medidas específicas que tinham como objetivo o controle destes divertimentos independentemente 3 Documento do Corpo de Polícia Partes do dia 2861828 Acervo do Arquivo Público do Maranhão Apem grifo meu Esta pesquisa foi realizada no ano de 2012 para a monografia de conclusão de curso Ao som dos pandeirões urra o boi de Coxinho estudo sobre a trajetória de um cantador de boi em São Luís do Maranhão sob a orien tação da professora Hebe Mattos apresentada ao curso de História da Universidade Federal Fluminense no mesmo ano 4 Documento do Corpo de Polícia Partes do dia 1551828 Acervo do Arquivo Público do Maranhão Apem grifo meu 5 VIANNA Larissa ABREU Martha Festas religiosas e cultura política no Império do Brasil In GRIMBERG Keila SALLES Roberto Org O Brasil Imperial vol 3 Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2009 6 O Maranhão foi palco da Balaiada uma guerra civil de grandes proporções que devas tou a província entre os anos de 1838 e 1841 Sobre a Balaiada consultar ASSUNÇÃO Matthias Röhrig A Guerra dos Bemtevis a balaiada na memória oral São Luís Edufma 2008 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 372 10092018 111728 373 de serem frequentados por escravos livres de cor ou libertos7 Sobre o Maranhão o historiador Matthias Röhrig Assunção afirma que foi justamente a partir dos anos 1830 que algu mas câmaras municipais da província passaram a proibir os batuques dentro das cidades depois do toque de recolher8 O motivo era o receio de uma possível revolta escrava já que estes encontros poderiam reunir uma quantidade significativa de pessoas livres e escravizadas9 Através dos Códigos de Posturas as câmaras municipais normatizavam as proibições e permissões visando ao controle da vida social nas cidades O não cumprimento das posturas era considerado uma contravenção com o pagamento de multas e em alguns casos ocasionava a prisão dos infratores10 O primeiro Código de Posturas de São Luís foi criado no ano de 184211 e nele observamos a preocupação do poder público com o ajuntamento de escravos em espaços públicos e no interior de tavernas e botequins e que estivessem entretidos em jogos rifas e danças que corromperem o bom regime que tais indivíduos devem ter12 As vozerias e os batuques nas ruas da cidade eram condenados e o pagamento de dois mil réis era determinado àqueles que estivessem cometendo tal infração O segundo Código de Posturas de São Luís foi aprovado no ano de 1866 e contém um texto mais amplo e detalhado em comparação ao primeiro As festas negras são o alvo do artigo 124º que proíbe os batuques e danças de pretos fora dos luga res permitidos pelas autoridades Neste caso podese notar a imposição de uma delimitação espacial na qual os batuques deveriam se enquadrar Na segunda metade do século XIX a 7 VIANNA ABREU Festas religiosas e cultura política no Império do Brasil 2009 8 ASSUNÇÃO Mathias Röhrig Cultura popular e sociedade regional no Maranhão do século XIX Revista de Políticas Públicas v 3 n 12 p 2965 1999 9 Como exemplo o pesquisador cita a proibição aos batuques em São Luis depois da revolta de 1831 ocorrida na cidade 10 ABREU Martha O Império do Divino Rio de Janeiro Nova Fronteira São Paulo Fapesp 1999 p 196 11 O Código de Posturas de São Luis foi criado 12 anos depois do primeiro Código de Posturas do Rio de Janeiro promulgado em 1830 12 36ª postura consultar SELBACH Jefferson Francisco Org Códigos de Posturas de São LuisMA São Luis Edufma 2010 p 25 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 373 10092018 111728 374 preocupação com os batuques já não tem relação com o temor das autoridades com uma possível revolta escrava mas sim com a tentativa de estabelecer os bons costumes e os valores civiliza tórios nas cidades contra as indecências e a licenciosidade que supostamente animavam tais divertimentos13 Os periódicos constituemse como fonte interessante para se compreender o posicionamento de segmentos sociais distintos que não simpatizavam com a brincadeira Nos jornais consultados que trazem as notícias e a opinião da sociedade em geral sobre o bumba há diversas reclamações como por exemplo a acusação de este ser um brinquedo pouco civilizado que se cifra numa gritaria infernal e que causa o tormento dos ouvidos dos moradores de certos bairros14 como consta no jornal Diário do Maranhão no ano de 187615 A notícia de um escravo que fora ferido no brinquedo do bumba também foi publicada nas páginas deste jornal no mesmo ano um indício de que além da presença de cativos nos cordões de bumba havia talvez a intenção da imprensa em associar a brincadeira a situa ções de violência16 No ano de 1875 ao narrar as festividades de São João Batista na cidade de Icatu MA o correspondente do Diário do Maranhão afirma ser uma vergonha semelhante divertimento Na ocasião segundo o correspondente apareceram dois bumbas um de lá e outro do Axixá17 para perturbar aqueles que a noite procuram o sono como repouso e descanso às fadigas do dia18 Em São Luis a reclamação publicada no jornal O Paiz era que a infernal berraria incomodava os moradores do cen tro da cidade que pediam ao Sr chefe de polícia que cassasse a 13 VIANNA ABREU Festas religiosas e cultura política no Império do Brasil 2009 Sobre essa questão João José Reis afirma que na Bahia os atabaques foram reprimidos durante a década de 1850 em plena campanha civilizatória especificamente nas festas religiosas 14 Diário do Maranhão 2761876 15 Os jornais aqui citados estão disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional Disponível em httpmemoriabnbrhdbperiodicoaspx Acesso em 17 nov 2015 16 Diário do Maranhão 971876 Destaco também as matérias encontradas no jornal A Pacotilha do final do século XIX que tratam dos incômodos causados pelo bumba meuboi 17 Icatu e Axixá são dois municípios do Maranhão situados na região do Munim 18 Diário do Maranhão 1871875 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 374 10092018 111728 375 licença se é que ela existe prestando assim à pacífica popu lação da cidade um bom serviço19 A reclamação dos ensaios que ocorriam na casa da Sra Prudência localizada na rua do Alecrim onde praticavase todas as noites a imprudência de realizarem um bumbameuboi com uma vozeria terrível20 foi publicada no jornal A Pacotilha no ano de 1883 Estas reclamações podem dar pistas de que o bumbameu boi apesar das proibições e das delimitações do espaço em que os cordões poderiam transitar circulava pelas ruas do Centro da cidade e incomodava parte da população desejosa de que o incô modo brinquedo não se aproximasse do perímetro urbano O periódico A Flecha21 publicou esta nota em forma de versos sobre o brinquedo no ano de 1880 Sob o pseudônimo de d Maria o articulista escreve Cantigas do Pai Francisco Ê Bumba Nosso tempo já voltou O boi do mestre Alexandre Na cidade já entrou Ê bumba Nosso tempo já voltou Guenta pé guenta pé Guenta pé que lá vem buscapé A polícia deste ano não é tão má como se pensa Fechou os olhos às posturas Ê bumba E aos pretos deu licença A Flecha Vol II 1880 Esta nota retrata diversos aspectos que permitem com preender como se dava a relação entre o boi e a sociedade ludo 19 O Paiz 671881 20 A Pacotilha 1861883 21 JOMAR Moraes Org A Flecha 18791889 edição facsimilar São Luis MA Edi ções SIOGE 1980 O jornal A Flecha começou a ser publicado no ano de 1879 e foi o primeiro periódico ilustrado a circular em São Luis Marcado pela sátira e humor ao tratar das questões da sociedade maranhense e brasileira tinha como seus colaboradores Celso Magalhães Manuel de Bethencourt Paula Duarte Aluisio de Azevedo Eduardo Ribeiro Agripino Azevedo e João Afonso do Nascimento EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 375 10092018 111728 376 vicense22 nessa época O boi do mestre Alexandre na cidade já entrou deixa clara a demarcação do espaço do bumba que vem de fora do mato ou do subúrbio para a cidade As postu ras estavam em vigor controlando a presença do folguedo na cidade mas a polícia naquele ano as ignorou e aos pretos deu licença permitindo que adentrassem o espaço com o brin quedo Além disso a nota também permite que se identifique a brincadeira com os negros mais um indício de que o bumba se constituía como um espaço lúdico para estes sujeitos O trecho supracitado assim como os documentos da época a que tive acesso sugere que embora houvesse controle e interdições era notória a presença de curiosos admirado res e simpatizantes de segmentos sociais variados de modo que a brincadeira pudesse acontecer23 O controle exercido pelas autoridades sobre os cordões de bumbameuboi persis tiu durante o século XX assim como a preocupação com as batucadas no espaço urbano No ano de 1936 o Código de Posturas continha um artigo que proibia a realização de batucadas em qualquer parte das zonas central urbana e suburbana com exceção das festas carnavalescas24 Em 1956 a Portaria 2156 publi cada no jornal O Combate declarava ser proibido que o bum baboi percorra as ruas da cidade e em demonstrações de suas danças características o que só será permitido no perímetro suburbano a partir da esquina da Avenida Getúlio Vargas e Rua Senador João Pedro e cuja brincadeira só será permitida até o dia 15 de julho25 Mesmo levando em consideração que pudessem existir brechas nestas proibições o fato é que o perímetro urbano era o território visado pelas autoridades maranhenses para 22 Ludovicense natural da cidade de São Luís do Maranhão 23 Helidacy Corrêa diz que não se pode afirmar que houve somente rejeição por parte da população dita civilizada com relação ao bumba pois havia entre os indivíduos dos setores dominantes quem gostasse do folguedo Consultar CORREIA Helidacy O bum bameuboi do Maranhão a construção de uma identidade 2001 Dissertação Mestrado em História Universidade Federal de Pernambuco 2001 p 93 24 SELBACH Jefferson Francisco Org Códigos de Posturas de São LuisMA São Luis Edufma 2010 p 212 25 O Combate 261956 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 376 10092018 111728 377 estabelecer a regulamentação da brincadeira A rivalidade existente entre os grupos ocasionava encontros violentos nos quais era comum que eles explicitassem usando palavras ou armas suas diferenças o que podia resultar em manifestações de violência generalizada26 Essa era uma das justificativas para se manter a proibição A outra era o poder do bumba em subverter a ordem hierárquica da sociedade utilizando o brinquedo para ridicularizar elites e autoridades através das toadas27 e das encenações das comédias ou palhaçadas28 Se de fato o bumba era utilizado pelos brincantes para subverter a ordem hierárquica da sociedade ele pode ser considerado como um canal de expressão política das camadas mais pobres Neste ambiente de tolerâncias e into lerâncias o bumbaboi seria um meio através do qual estes sujeitos buscavam uma distinção na sociedade ludovicense se expressando politicamente e ironicamente através do riso e da dança Através do bumba os sujeitosbrincantes expressa vam seu cotidiano suas angústias e desta maneira exigiam e garantiam seu espaço numa sociedade excludente É interessante refletir acerca do lugar social do bum baboi na São Luís oitocentista para assim observar as con tinuidades e descontinuidades na relação entre a brincadeira e a sociedade ludovicense ao longo do tempo O caso do Boi de Pindaré tornase emblemático pois a partir dele podemos verificar de que maneira os grupos de bumbaboi foram se formando e se estabelecendo na capital maranhense na pri meira metade do século XX e de que forma foram rompendo e negociando as barreiras que lhes eram impostas 26 BARROS Antônio Evaldo Almeida Usos e abusos do encontro festivo identidades diferenças e desigualdades no Maranhão dos Bumbas c 19001950 Revista Outros Tem pos Dossiê Escravidão v 6 n 8 p 9 2009 27 Toadas são as músicas cantadas pelos cordões nas apresentações 28 As comédias palhaçadas ou matanças são as representações encenadas nos cordões de bumbameuboi um teatro popular em que geralmente aparecem os personagens Nêgo Chico e Mãe Catirina Também são conhecidas como auto do boi Sobre isto consultar FIGUEIREDO Wilmara CARVALHO Luciana Comédias do Bumbameuboi maranhense Santarém Cumbuca 2014 CARVALHO Luciana A graça de contar um pai Francisco no bumba boi do Maranhão Rio de Janeiro Aeroplano 2011 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 377 10092018 111728 378 POR UMA HISTÓRIA SOCIAL DOS BRINCANTES O BUMBAMEUBOI E O PÓSABOLIÇÃO Na tentativa de compreender como se dava a organiza ção dos primeiros grupos de bumbameuboi já no século XX e principalmente quem eram as pessoas que compunham os cor dões os lugares de onde vinham e as motivações que as fizeram se deslocar para São Luís realizei entrevistas com os primeiros brincantes do Boi de Pindaré e com os filhos dos fundadores já falecidos Através destas entrevistas observei que grande parte desses sujeitos provinha da região da Baixada Maranhense e chegou a São Luís entre as décadas de 1930 e 1960 A Baixada Maranhense foi uma região economica mente importante ao longo do século XIX e se localiza em uma área de transição entre a Amazônia e o nordeste brasileiro na parte ocidental do estado Segundo Flávio Gomes em meados do século XIX a população escrava se concentrava na baixada ocidental e também em outras áreas Estes escravos trabalha vam basicamente na produção de algodão e arroz nas fazendas localizadas nos vales dos rios Itapecuru Mearim e Pindaré29 Registrase que na segunda metade deste mesmo século a popu lação da Baixada ocidental era composta de 31220 habitantes sendo 22 867 livres e 8333 escravos30 Além deste contingente significativo de escravos é impor tante registrar a presença marcante de quilombos na região Des taco que no ano de 1867 ocorreu nesta área na comarca de Viana uma insurreição de escravos que provocou pânico na população da província quando negros aquilombados ocuparam diversas fazen das31 Na província muitos quilombos se desenvolveram sendo a zona de Viana na Baixada a região com o maior número No final do século XIX o declínio da lavoura que atingiu o estado somado à abolição da escravidão teve como uma das 29 GOMES Flávio A Hidra e os Pântanos mocambos quilombos e comunicação no Brasil Séc XVIIXIX São Paulo UNESP 2005 p 145 30 PEREIRA Josenildo As representações da escravidão na imprensa jornalística do Maranhão na década de 1880 2006 Tese Doutorado em História Social Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo São Paulo 2006 p 62 31 Consultar MUNDINHA ARAÚJO Insurreição de escravos em Viana 1867 São Luís 2014 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 378 10092018 111728 379 consequências o abandono das fazendas pelas famílias senho riais e por conseguinte a ocupação das terras por exescravos e camponeses pobres que ali se estabeleceram e desenvolveram uma economia de subsistência32 O decorrer do século XX foi marcado pela migração de pessoas desta região para a capital do estado atraídas pelas oportunidades de emprego e melhores condições de vida entre elas os fundadores do Boi de Pindaré Se as escolhas apresentadas por homens e mulheres para enfrentar os primeiros anos de liberdade marcam ainda hoje a paisagem rural brasileira na qual existem muitas comunidades rurais negras formadas nos últimos anos da escravidão e nos anos posteriores à Abolição33 podese estender a afirmação também para o contexto urbano ludovicense que recebeu um grande contingente de homens e mulheres oriundos principal mente da Baixada Na década de 1970 a região da Baixada era uma das mais pobres do estado considerada pelas autoridades como a zonaproblema devido à alta taxa de migração para a capital34 Grande parte dos homens que participaram da fundação do Boi de Pindaré provinha desta região e possivelmente tinha alguma ligação com o passado escravista O depoimento de Vítor Hermínio Castro conhecido como Mestre Castro é bastante esclarecedor neste sentido Mestre Castro atual cantador e amo do Boi de Pindaré e integrante deste cordão de boi desde 1968 nasceu no município de São Vicente Férrer em 1948 Conforme afirmou em entrevista pertence a uma linhagem de cantadores de boi que existia no seu lugar de origem o povoado Tijupá dentro das matas como ele próprio define neste município Ainda de acordo com Castro seu bisavô que era conhecido como Popote era cantador de bumbameuboi e foi escravo Seu apelido Mico se refere à sua ascendência como ele próprio explica Mico por que eu era filho do pessoal do Bacurizeiro pessoal que foi escravo 32 Sobre a baixada consultar SILVA FILHO Marcelino Org O espaço geográfico da baixada maranhense São Luís MA JK Gráfica Editora 2012 33 RIOS Ana Lugão MATTOS Hebe Memórias do cativeiro Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2005 p 31 34 SARAIVA Ana Maria Gomes Org Pesquisa polidisciplinar aspectos gerais e infraes truturais São Luis MA IPEI 1975 vol 1 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 379 10092018 111728 380 Os pretos do Bacurizeiro35 Entre todos os depoentes Mestre Castro é aquele que apresenta sua trajetória ligada diretamente ao passado escravista da região Como observei na primeira parte deste artigo o bumbaboi era uma brincadeira realizada basica mente por escravos e provavelmente na zona rural do estado isto não foi diferente Esta referência ao passado escravista não é recorrente entre os depoimentos de todos os cantadores porém é possível estabelecermos paralelos a partir dos dados obtidos em algu mas destas entrevistas Recorrendo à trajetória do falecido can tador Bartolomeu dos Santos conhecido popularmente como Coxinho segundo os depoimentos de seu filho José Plácido dos Santos conhecido nas rodas de bumba como Zequinha este velho cantador nasceu no ano de 1910 e era natural do povoado Lapela município de Vitória do Mearim Baixada Maranhense Segundo Zequinha os pais de Coxinho eram cantadores de bumbaboi em Lapela Minha vó era cantadora de boi e era mineira36 do tambor de Mina meu avô era vaqueiro ber rante Do meu avô veio essa dedicação37 Cruzando os dados obtidos através da memória de membros da família de Coxinho e de cantadores que convive ram com ele é possível levantar hipóteses de que Coxinho era descendente dos escravos que habitaram a região do vale do rio Mearim e que trabalharam nas fazendas de algodão e arroz A seguir cito outros depoentes que participaram desta pesquisa e da fundação do Boi de Pindaré José de Jesus Figueiredo o Zé Olhinho excantador do Boi de Pindaré e atualmente dono e amo do Bumbameuboi de Santa Fé afirma ter herdado o costume de cantar bumbaboi do seu pai Nascido em 1944 num lugar conhecido como Tabocas também em São Vicente Férrer o cantador afirma meu pai fazia boi ele fez até mais ou menos quando eu vim pra cá ele ainda fazia em 55 Acho que ele fez até 35 Mestre Castro entrevista realizada em 2752014 36 Mineira praticante do Tambor de Mina religião de matriz africana presente no Maranhão 37 Zequinha de Coxinho entrevista realizada em 562014 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 380 10092018 111728 381 57 ele fez boi por lá e eu já estava por aqui Ele fazia em parceria com outras pessoas com Camundinho que ainda é vivo lá em São João Batista e um outro rapaz um senhor lá de Cajapió que já faleceu e eles faziam boi em parceria lá38 Os cantadores Luís Antônio Pacheco o Antoninho39 e Apolônio Melônio40 são naturais do município de São João Batista localizado na região da Baixada Ocidental maranhense Antoninho nascido em 1948 e natural do município de São João Batista relatou que cresceu no município de Cajapió que embora geograficamente faça parte da microrregião do litoral ocidental do estado é identificado por ele como pertencente à Baixada Antoninho chegou a São Luís com apenas 11 anos de idade e conta que na sua região não chegou a acompanhar bum baboi devido à pouca idade Ele diz Não acompanhava o boi lá no interior porque ainda estava muito criança né E nessa época criança não acompanhava festa não ia em festa Se ia era numa ladainha Terminou era pra ir para casa não esperava nada né Era a ordem que a gente tinha era essa os pais da gente dava41 Apolônio Melônio nasceu em 1918 e é natural do muni cípio de São João Batista da localidade conhecida como Cana rana Aos oito anos de idade conforme seu depoimento já brin cava nos grupos de bumbaboi da região chegando inclusive a formar um pequeno boizinho com outras crianças No trecho a seguir Apolônio narra como se organizou com os amigos para formar o boizinho de crianças Estávamos com oito anos de idade Batemos na casa de Manoel Inácio um quitandeiro casado com minha madrinha Maria José ele perguntou se queríamos um 38 Zé Olhinho entrevista realizada em 30112014 39 Antoninho foi o primeiro miolo pessoa que fica dentro da carcaça do boi executando os movimentos do Boi de Pindaré Hoje é o dono do Boi Capricho do Povo 40 Apolônio Melônio é um dos fundadores do Boi de Pindaré Rompeu com o grupo ainda na década de 1960 e em 1972 fundou o Boi de São João Batista um dos maiores de São Luís 41 Antoninho entrevista realizada em 1872014 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 381 10092018 111728 382 boi para brincar então providenciamos o material para fazer o boi era casca e palha de bananeira e cipó com uma semana já estava tudo pronto Nós saímos de chapéu com umas penas de galinha chorão de galo pena de cigana e íamos cantando toadas nas portas das casas então formamos um bom grupo de bumbameuboi com o nome de Ramalhete com dois anos mudamos o nome do boi para Lindo Fama42 Sobre os cantadores já falecidos busquei informações nos depoimentos de seus filhos Segundo Wagno dos San tos conhecido como Careca seu pai o cantador João Câncio dos Santos primeiro dono do Boi de Pindaré era natural do povoado Santa Maria no município de PindaréMirim e nas ceu por volta dos anos 1920 Sobre o seu envolvimento com o bumbaboi antes de chegar a São Luís Careca afirma no bum bameuboi ele já tinha o dom porque lá no interior já fazia aquele boi de criança aquelas coisas Tinha um grupo muito forte em Santa Maria 43 Todos estes municípios citados com exceção de Cajapió PindaréMirim e São Luís fazem parte da microrregião da Baixada Ocidental maranhense Faço uma breve ressalva para o fato de que Cajapió e PindaréMirim estão muito próximos desta microrregião em questão e são considera dos pelos entrevistados como pertencentes a ela44 42 Depoimento de Apolônio Melônio consultar Memória de velhos depoimentos uma contri buição à memória oral da cultura popular maranhense vol 7 São Luis CMFSECMA 2008 p 73 Na entrevista realizada por mim com o senhor Apolônio Melônio percebi que a sua narrativa não se distanciou daquela encontrada no Memória de Velhos e nem do depoimento gravado por Mestre Castro O cansaço causado pela idade avançada de Apolônio fez com que eu não insistisse muito nas perguntas do roteiro 43 Careca entrevista realizada em 762014 44 É preciso esclarecer que a denominação geográfica e oficial de Baixada nem sem pre coincide com a denominação de Baixada acionada pelos entrevistados A noção de Baixada recorrentemente falada pelos cantadores não se limita a definição geográ fica É o caso de Cajapió e de Pindaré Mirim EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 382 10092018 111728 383 FOTO 1 Grupo de Cazumbas personagem dos grupos de bumbaboi da Baixada no município de São Bento localizado na Baixada Maranhense Acervo da Biblioteca Roldão LimaCentro de Folclore e Cultura Popular Domingos Vieira Filho Foto Luís Manhães Anos 1970 Após direcionar a memória dos entrevistados para um passado mais distante que remetia à história de sua família e a suas origens as perguntas passaram a explorar a experiência des tes sujeitos na capital maranhense e na inserção deles em grupos de bumbaboi estabelecidos em São Luís Nesse caso a referência constante nos depoimentos foi o grupo de bumbaboi conhecido como Boi de Viana Com exceção de João Câncio Coxinho e Apolônio Melônio que brincaram neste grupo os outros entrevis tados sempre se referiam a ele como o primeiro grupo que expres sou e continua expressando o sotaque da baixada45 45 O Boi de Viana continua em atividade até hoje Sua sede localizase no bairro de Fátima mesmo bairro onde ficam as sedes do Boi de Pindaré e do Boi de Santa Fé de Zé Olhinho EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 383 10092018 111729 384 Este é um ponto importante para a compreensão do bumba maranhense o sotaque O termo sotaque é constante mente utilizado tanto pelos brincantes quanto pelos folcloristas e pelo poder público para denominar os diferentes estilos de bumba boi encontrados no Maranhão Trabalho com a hipótese de que as diferenciações entre os estilos de bumbaboi vão se tornando mais evidentes à medida que cresce a movimentação migratória de homens e mulheres de diferentes regiões do estado em direção a São Luís nas primeiras décadas do século XX conforme indi cam Correia e Meirelles46 Ao chegarem a São Luís grande parte destes homens e mulheres procuravam as manifestações culturais populares comuns em seus locais de origem Em São Luís encontravamse grupos de bois que embora tendo origem no interior do estado já haviam se estabelecido nos bairros populares reunindo brin cantes da Baixada maranhense como por exemplo o Boi de Viana É portanto possível levantar hipóteses de que foi a partir da inserção destes migrantes entre os anos de 1930 e 1950 que se inicia o processo de distinção entre os grupos de bois a partir do que se denomina na atualidade de sotaques Dessa forma considerase em geral a existência de cinco sotaques baixada ou pindaré matraca ou ilha zabumba ou gui marães costa de mão ou cururupu e o sotaque de orquestra ori ginário da região do Munim Com exceção dos sotaques da Bai xada ou Pindaré cujas denominações indicam a região geográfica originária e o sotaque de orquestra que se caracteriza pelo uso de instrumentos de sopro e de corda os demais sotaques são nomea dos conforme a região originária eou o instrumento musical mais marcante É importante mencionar que esta classificação conven cionada pelo público boieiro pelos folcloristas e pelo poder público não abrange a diversidade de estilos de bumbaboi no Maranhão47 46 CORREIA Maria da Glória Guimarães Nos fios da trama quem é essa mulher São Luís Edufma 2006 MEIRELLES Mário História do Maranhão Imperatriz MA Ética 2008 47 Como exemplo cito o Boi de Verão o Boi de Carnaval e o PassaFogo que são expres sões do bumbameuboi encontradas em municípios do interior do estado e que não se enquadram na classificação dos sotaques Complexo Cultural do Bumbameuboi do Maranhão Dossiê do registro como Patrimônio Cultural do Brasil Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional São Luís IphanMA 2011 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 384 10092018 111729 385 O ENTRECRUZAMENTO ENTRE O UNIVERSO DO TRABALHO E AS RODAS DE BOI Desde as primeiras conversas com os cantadores procu rei perguntar sobre o contexto as circunstâncias e motivações da vinda destas pessoas para São Luís e passei a verificar que os fatores relacionados ao mundo do trabalho foram motivações importantes A partir de então passei a incluir no roteiro das entrevistas questões referentes ao universo do trabalho dada a sua recorrência nos depoimentos com destaque para a catego ria constantemente mencionada estivadores relacionada aos trabalhadores do porto Nestes depoimentos sobretudo dos mais velhos aparece também a distinção entre estiva marítima e estiva terrestre sendo que desta última fazem parte os arrumadores designa dos por eles também de carregadores Esse conjunto de ele mentos permitiu portanto visualizar o significado que o mundo do trabalho relacionado às atividades portuárias teve no uni verso dos cantadores Com exceção de Mestre Castro que era policial militar os demais cantadores mais velhos trabalharam nas atividades por tuárias e especificamente na estiva A relação entre esta categoria de trabalho e o bumbaboi chamoume a atenção e a partir daí passei a trabalhar com a ideia de que o bumbameuboi se consti tuía como um espaço lúdico para estes trabalhadores O bumbameuboi costuma aparecer na literatura local como uma brincadeira compartilhada por homens e mulheres do povo Porém não fica claro se haveria uma categoria ou catego rias específicas de trabalho que prestigiavam mais o bumba Se no decorrer do século XIX que é o período de que se têm as primei ras notícias do bumba em São Luís ele é comumente associado aos negros livres ou escravos e passa por períodos de brechas e proibições a partir do século XX ele aparece frequentemente associado à população pobre e aos homens que exerciam trabalho braçal e não atrelado diretamente à população negra Se por um lado a relação entre brincantes de boi e estiva aparece em alguns registros por outro lado não se pode EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 385 10092018 111729 386 afirmar que essa relação se estenda à maioria dos grupos No entanto os documentos a que tive acesso e mesmo as narrativas permitem dizer que os grupos de bumba que eram formados nos bairros pobres próximos ao Centro tinham como grande parte de seus integrantes homens negros trabalhadores do porto de São Luís Nesse sentido tomo o Boi de Pindaré como exemplo para empreender minha análise nessa perspectiva de estabelecer uma relação entre o universo do trabalho portuário especifica mente a estiva e o universo da brincadeira FOTO 2 Boi de Pindaré 1966 Acervo pessoal do Sr Apolônio Melônio cedido por sua esposa Nadir Cruz Nesta perspectiva considero como ponto de partida alguns aspectos da trajetória do primeiro dono do Boi de Pindaré o fale cido João Câncio dos Santos como também aspectos das trajetórias de grande parte de seu grupo Dessa forma proponho estabelecer esta aproximação entre os brincantes homens e os estivadores Sobre a questão do lazer entre os trabalhadores de por tos estudos realizados em outras regiões do país apresentam reflexões relevantes para se pensar a realidade maranhense Em primeiro lugar cabe destacar que a categoria de trabalhadores do porto é fortemente identificada pelos estudiosos como tendo EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 386 10092018 111730 387 a presença marcante de negros No período pósAbolição são eles que ocupam o espaço das estivas e dos trapiches Neste sentido o trabalho de Érika Arantes sobre o cotidiano do porto do Rio de Janeiro nos primeiros anos do século XX revela que o trabalho na estiva era realizado por uma maioria negra e parda e que muitos dos fundadores de importantes sindicatos portuários nas primeiras décadas do século XX eram negros48 Além disso Arantes também afirma que havia uma relação entre estes trabalhadores e o samba já que alguns estivadores conseguiram fama no meio musical do samba e do carnaval entre eles João da Bahiana Hilário Jovino Aniceto da Serrinha Mano Elói Sebastião Molequi nho João Gradim etc49 Resguardandose as especificidades de cada contexto e a forma como se deu essa relação histórica entre atividade por tuária a condição social dos negros e sua inserção como mão de obra tecnicamente menos qualificada o estudo mencionado é inspirador para se lançar um olhar sobre o caso de São Luís Observandose o perfil de antigos estivadores que se destacaram nas rodas de boi vêse a presença majoritária de negros e pardos Existiam brincantes e cantadores que exer ciam outras profissões mas o que quero destacar é a relação entre a categoria de trabalhadores da estiva e alguns grupos de bumbameuboi50 48 ARANTES Erika Bastos Pretos brancos amarelos e vermelhos conflitos e solidarie dades no porto do Rio de Janeiro In GOLDMACHER Marcela BADARÓ Marcelo TERRA Paulo Cruz Faces do trabalho escravizados e livres Niterói EdUFF 2010 49 ARANTES Erika Bastos O porto negro cultura e trabalho dos primeiros anos do séc XX 2005 Dissertação Mestrado em História Instituto de Filosofia e Ciências Huma nas Universidade Estadual de Campinas Campinas 2005 50 A relação da categoria com as festas populares parece que não se restringia somente ao bumba Apesar de não haver encontrado notícias sobre festas no Sindicato dos Arrumado res estiva terrestre foi possível localizar duas informações sobre festividades no Sindicato dos Estivadores estiva marítima como esta do ano de 1947 em que o jornal Diário de São Luís noticiava a participação ativa do Sindicato dos Estivadores na Semana Eucarística de Alcântara ocasião em que a imagem de N S do Livramento desembarcou em São Luís e permaneceu na sede do sindicato que se achava embandeirada e em cuja sala principal fora armado um artístico altar Após o término da ladainha a imagem foi conduzida para a rua pelos Srs drº Paulo de Oliveira delegado do trabalho e Amâncio Nogueira presidente do Sindicato dos Estivadores Em 1949 o jornal O Combate noticiava o convite do sindicato à população de São Luís para os festejos de N S da Vitória como patrocina dor e responsável pelos festejos EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 387 10092018 111730 388 Nos depoimentos de cantadores de bumbaboi apresen tados na coletânea Memória de Velhos percebese que uma parcela significativa deles veio para São Luís entre as décadas de 1930 e 1950 e exerceram algum tipo de trabalho no porto É o caso de Canuto Santos nascido em Guimarães Este cantador foi para São Luís na década de 1940 e trabalhou como estivador ter restre José de Jesus Figueiredo o Zé Olhinho nascido em São Vicente Férrer foi para São Luís em 1956 e trabalhou como esti vador terrestre Apolônio Melônio nascido em São João Batista chegou a São Luís no ano de 1939 e trabalhou como estivador marítimo Leonardo Martins nasceu em Guimarães chegou à capital em 1940 e também foi estivador 51 Além destes destacamse outros como José Apolônio Martins que foi para São Luís provavelmente entre as déca das de 1930 e 1940 nasceu em Viana e era estivador terrestre Hemetério Raimundo Cardoso mais conhecido como Misico natural de Guimarães foi para São Luís na década de 1920 e era estivador marítimo52 João Câncio dos Santos que chegou a São Luís na década de 1940 e foi estivador terrestre Maurício Fonseca dono do Boi de Pindaré entre 1982 e 1985 também foi estivador assim como Camaliete já falecido e excantador do Boi de Pindaré53 seu Antoninho que nasceu em São João Batista foi para a capital em 1960 e exerceu a atividade na esti va54 além de Sebastião Aroucha terceiro dono do Boi de Pin daré e seu irmão Chico Aroucha que também foram estiva dores De acordo com Zequinha o cantador Coxinho seu pai também trabalhou como estivador marítimo fazendo viagens nas embarcações que iam e vinham constantemente dos municí pios do interior para a capital carregadas de mercadorias mas não conseguiu a aposentadoria na profissão 51 Todos são cantadores de bumbameuboi Memória de Velhos depoimentos Memória oral da cultura popular maranhense São Luís CMFSECMA 2008 vol 6 e 7 52 Informações colhidas no livro do folclorista Carlos de Lima escrito no ano de 1968 Carlos de Lima Bumbameuboi São Luís 1982 3ª edição 53 Informações obtidas através das entrevistas realizadas com Mestre Castro Chico Aroucha e Careca 54 Antoninho entrevista realizada em 1872014 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 388 10092018 111730 389 Nome Local de nascimento Chegada a São Luís Profissão Bartolomeu dos Santos Coxinho Vitória do Mearim Década de 1920 Estivador marítimo Canuto Santos Guimarães Década de 1940 Estivador terrestre José de Jesus Figueiredo São Vicente Férrer 1956 Estivador terrestre Apolônio Melônio São João Batista 1939 Estivador marítimo Leonardo Martins Guimarães 1940 Estivador José Apolônio Martins Viana 19301940 Estivador terrestre Hemetério Cardoso Misico Guimarães Década de 1920 Estivador marítimo João Câncio dos Santos Pindaré Mirim Década de 1940 Estivador terrestre Maurício Fonseca São João Batista Estivador terrestre José Ribamar Cutrim Camaliete São Vicente Férrer Estivador terrestre Luís Antônio Pacheco São João Batista Década de 1960 Estivador terrestre Sebastião Aroucha São Vicente Férrer Década de 1960 Estivador terrestre Francisco Aroucha São Vicente Férrer Década de 1960 Estivador terrestre Quadro 1 Alguns cantadores de bumbaboi que exerceram atividades na estiva Informações levantadas a partir das entrevistas e com base nos depoimentos do Projeto Memórias de Velhos55 Essas relações demonstram o quanto o universo do traba lho e as rodas de boi estavam entrelaçados em São Luís Segundo o depoimento de Zé Olhinho no caso do Boi de Pindaré era João Câncio que empregava seus brincantes na estiva Cito um trecho da entrevista em que Zé Olhinho fala um pouco desta questão 55 Consultar Memória de velhos depoimentos uma contribuição à memória oral da cultura popular maranhense vol 5 São Luis MA Lithograf 1999 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 389 10092018 111730 390 Seu Zé Olhinho quanto tempo o senhor trabalhou na estiva Zé Olhinho Mais de 20 anos Ele que me levou se refere a João Câncio Ele eu Reinaldo Ciriaco Faus tino Maurício ele que levava a gente pra lá pro Sindi cato A alternativa era essa porque o cara vivia aí jogado sem ter muita perspectiva de vida e o Sindicato era a casa do pobre ganhar dinheiro todo dia Zé Olhinho Entre vista realizada em 30112014 Seu Antoninho também cita o papel de João Câncio no emprego de brincantes na estiva inclusive o dele Como o senhor conseguiu trabalho na estiva Antoninho através de João Câncio Que João Câncio era secretário lá na diretoria tá entendendo aí foi pra estiva eu Maurício Ciriaco Faustino esse Reinaldo Fontenele deixa eu ver quem foi mais Zé Leôncio tá entendendo Maurício eu já falei já Antoninho Entre vista realizada em 1872014 De acordo com os depoimentos João Câncio exercia uma espécie de liderança não somente dentro do Boi de Pin daré mas também no que diz respeito à vida dos brincantes fora do ambiente do boi Neste caso podemos perceber que havia uma preocupação em não deixar os brincantes do boi sem emprego como uma forma de ajudar essas pessoas e suas respectivas famílias a se estabelecerem na capital e até mesmo construir a imagem do Boi de Pindaré como um cordão de boi formado por trabalhadores e não por homens vadios A demanda de trabalho no porto da cidade era grande e o movimento era intenso visto que a ilha de São Luís só foi ligada ao continente após o aterramento de uma grande exten são de área de manguezal no continente denominada Campo de Perizes em 1943 e posteriormente com a construção da ponte Marcelino Machado em 197256 Anteriormente o abas tecimento da cidade era feito apenas por via marítima através 56 CAMELO Júlia Constança Pereira Ocultar e preservar a saga da civilidade em São Luís do Maranhão 2010 Tese Doutorado em Ciências Sociais Universidade Federal do Pará 2010 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 390 10092018 111730 391 de embarcações situação que demandava mão de obra em larga escala nas atividades portuárias em São Luís Antoninho em seu depoimento desenha um panorama do cotidiano do porto na época em que foi estivador Ave Maria Naquela época nós tínhamos a cervejaria era caixa de madeira As cervejas era caixa de madeira Na Oleama era saco de coco borra Doía na cabeça da gente Eu trabalhei um dia aqui na Camboa na 18 no depósito da Brahma todo mundo dizia que eu ia correr do serviço Nesse dia João Câncio tava de fiscal aí ele foi resolver não sei o quê da brincadeira e me deixou de fiscal lá trabalhando Nós tiramos 12 carros descarregamos 12 carros de cerveja e carregamos 16 de vasilhame Tudo era caixa de madeira mas quando eu cheguei em casa eu banhei mas não penteei o cabelo era tudo doído Anto ninho Entrevista realizada em 1872014 O trabalho nos trapiches era pesado e exigia força física A queda das ofertas de trabalho nas estivas é testemunhada pelos depoentes após a construção da ponte e da estrada BR 135 que liga a ilha de São Luís ao continente contribuindo para mudanças no transporte de cargas que a partir de então passou a ser feito por via terrestre Sobre este aspecto cito o depoimento do Sr Canuto Santos falecido dono do Boi da Vila Passos que também foi estivador Onde foi o Tesouro era cheio de cargas chegando e saindo um movimento muito intenso Hoje não tem nada Quando começaram a fazer estradas a via marítima fracassou Nesse tempo se ganhava pouco mas se tornava muito por que existia serviço e quem chegava aqui desempregado no mesmo dia se empregava Canuto Santos Memória de Velhos57 Dos cantadores citados os três donos do Boi de Pindaré foram estivadores João Câncio Maurício Fonseca e Sebastião Aroucha Dessa forma com base nestes dados podese supor que o Boi de Pindaré nas suas origens foi um 57 Consultar Memória de velhos depoimentos uma contribuição à memória oral da cultura popular maranhense vol 5 São Luis MA Lithograf 1999 p 48 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 391 10092018 111730 392 boi de estivadores organizado e comandado por estivadores Sobre esse ponto Mestre Castro afirma Eu diria que 90 era estivador ele segurava o brincante aqui se refere a João Câncio dava aquele apoio empregava as pessoas e elas ficavam brincando aqui no boi Mestre Castro em entrevista realizada em 275201458 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como indiquei anteriormente o surgimento dos primei ros bois da Baixada em São Luís acontece entre as décadas de 1940 e 1960 como resultado do processo de migração De acordo com os depoimentos o Boi de Viana foi o primeiro grupo a expressar uma identidade baixadeira Era justamente este grupo que nas décadas de 1940 e 1950 tinha o papel de agre gar as pessoas recémchegadas da Baixada que aportavam em São Luís trazendo em suas bagagens não apenas seus pertences materiais mas também uma bagagem cultural que foi fincada na ilha do Maranhão sobretudo nos bairros que ainda manti nham e de certa forma mantêm até hoje as condições sociocul turais para que a brincadeira pudesse ser recriada e se consoli dado sob a denominação de sotaque da baixada na ilha59 O Boi de Pindaré surgiu de uma dissidência entre os mem bros do antigo Boi de Viana e nesse processo destaco o importante papel de João Câncio não somente como autoridade no interior do cordão deste boi mas também no papel de interlocutor entre a brincadeira e o universo do trabalho através do sindicato no qual teve importante atuação inclusive na admissão de trabalhadores que eram brincantes Pelos depoimentos quando João Câncio 58 A relação entre o bumbameuboi e a categoria dos estivadores é uma questão que merece um estudo mais aprofundado por permitir que se lance um outro olhar sobre o boi e que novos problemas sejam levantados 59 Observase certa concentração de bumbabois de sotaque da BaixadaPindaré no bairro de Fátima localizado próximo ao centro da cidade De acordo com o Dossiê do Bumbameuboi somente neste bairro havia até 2011 ano em que foi publicado o estudo 14 grupos deste sotaque No depoimento do Sr Antoninho ele explica que assim que chegou a São Luís em 1960 havia no seu bairro o Belira bairro próximo ao bairro de Fátima muitas pessoas que migraram de diferentes localidades do interior para a capital O Sr Antoninho recordase de pessoas provenientes dos municípios de São Bento Bacurituba Cajapió São João Batista Matinha e Viana EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 392 10092018 111730 393 rompeu relações com José Apolônio dono do antigo Boi de Viana levou consigo para o cordão do Boi de Pindaré inúmeros compa nheiros entre os quais trabalhadores da estiva inclusive o próprio Coxinho que após a gravação do primeiro disco gravado do Boi de Pindaré em 1972 elevou a fama deste boi60 Embora os dados não nos permitam generalizar para outros grupos nesta interrelação entre trabalho e brincadeira no caso do Boi de Pindaré o que se observa é que grande parte de seus fundadores e dos demais brincantes inseridos posterior mente tem alguma relação com o papel desempenhado por João Câncio no Sindicato dos Arrumadores Ademais estes aspectos também corroboram a hipótese de que por meio do trabalho João Câncio pretendeu reforçar a imagem de seu grupo como um cordão formado por trabalhadores Esta seria uma estratégia para ganhar visibilidade numa sociedade marcada pelo precon ceito e pela segregação socioespacial Seguindo a linha de pensamento de Abmalena Sanches participar de um grupo grande de bumbameuboi na capital proporcionava a estes sujeitos um sentimento de importância e status que alimentava a sua autoestima61 Para além disso podemos sugerir que o bumba também se constituía para estes sujeitos em um canal de expressão política numa sociedade que se apresentava profundamente desigual Martha Abreu na análise que empreende sobre a obra artística do músico carioca Eduardo das Neves 18471919 o crioulo Dudu sugere que a música popular foi certamente o canal de expressão política e de comunicação para diversos segmentos da população consi derando que os canais formais de expressão política não davam conta de todas as demandas sociais62 60 No ano de 1972 o Boi de Pindaré através da Prefeitura de São Luís gravou seu pri meiro LP no Rio de Janeiro O disco nomeado sotaque do Pindaré foi o segundo do gênero gravado no Maranhão e alcançou uma repercussão significativa 61 SANCHES Abmalena Santos O universo do boi da Ilha um olhar sobre o bumbameuboi em São Luís do Maranhão 2003 Dissertação Mestrado em Antropo logia Universidade Federal de Pernambuco 2003 62 ABREU Martha Cultura política música popular e cultura afrobrasileira algumas questões para a pesquisa e o ensino de História In BICALHO Maria Fernanda GOU VÊA Maria de Fátima SOIHET Rachel Culturas políticas ensaios de história cultural história política e ensino de história Rio de Janeiro Mauad 2005 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 393 10092018 111730 394 No caso do bumbameuboi podemos sugerir que a organização de seus brincantes tornava possível a expressão das suas esperanças desejos e expectativas63 através de toadas e tam bém nas representações das comédias e palhaçadas momento em que se apresentavam fatos do cotidiano de maneira cômica Não raro são notados os relacionamentos dos cantadores com as autoridades e pessoas influentes do meio político por meio da composição de toadas que refletem tal relação64 O bumbameuboi permitia a estes sujeitos negros com baixa escolaridade e na condição de migrantes de municípios do interior do estado a movimentação e a expressão numa São Luís bastante desigual João Câncio por entre as brechas das proibições foi um sujeito individual que buscou o reconheci mento ainda que sob os imperativos e interesses da política local Empreendeu mudanças no Boi de Pindaré tornando este grupo um dos mais importantes na história do bumbameuboi Em grande medida este feito contribuiu decisivamente para a consolidação e o reconhecimento de uma forma específica de fazer o boi em São Luís do Maranhão 63 ABREU Cultura política música popular e cultura afrobrasileira 2005 64 Cito aqui a toada de Coxinho em homenagem a José Sarney Zé Sarney nasceu em PinheiroEstado do Maranhãose criou no São Bentodentro daquela regiãoele agora é Presidente da Repúblicaé governador da naçãoZé Sarney foi deputadoe governou o Maranhãopassou a Senadorcresceu em sua posiçãoele agora é Presidente da Repú blicatá com a faca e o queijo na mãoPra quem Deus promete não faltanão joga à toa no chão se ele prometeu ele dáentrega na sua mãono comando brasileironós tem um filho do MaranhãoMaranhão é meu torrãoé meu berço verdadeiroterra de composi torque conhece o mundo inteirotrabalhou até botarZé Sarney no comando brasileiro Coxinho1985 Fortuna ou a mensagem de Zé Sarney In CARVALHO Maria Michol Pinho de As toadas do Bumbameuboi do Maranhão São Luís MA Sl 1985 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 394 10092018 111730 395 ENTRE A CULTURA DO ESPETÁCULO E A IDENTIDADE NEGRA OS MARACATUSNAÇÃO DO RECIFE NA CONTEMPORANEIDADE1 Ivaldo Marciano de França Lima e Isabel Cristina Martins Guillen Atualmente os maracatusnação reúnem em torno de si significativa força visibilidade e capital simbólico A manifestação cultural foi reconhecida como patrimônio cultural do Brasil em 2014 juntamente com o cavaloma rinho caboclinho e maracatus de orquestra ou de baque solto É também considerada um dos maiores ícones da dita cultura negra pernambucana na contemporaneidade atraindo a atenção de pesquisadores de diversas áreas sobretudo pela repercussão que provoca para além da cena cultural local2 Ao mesmo tempo entre as diversas mani festações culturais do carnaval recifense em que participa uma ampla variedade de clubes blocos caboclinhos bois escolas de samba ursos e troças constitui principal refe rência para designar o que há de mais pernambucano nas preferências dos fãs das novas bandas de rock forma das no contexto pósMovimento Mangue no qual Chico Science e o Nação Zumbi propagaram a batida do mara catunação contribuindo para a consagração da manifes tação cultural entre os jovens Em outras palavras podese afirmar que os maracatus alcançaram um patamar compa 1 Artigo publicado originalmente na revista Tempos Históricos Unioeste v 9 n 1 2006 e modificado para esta publicação 2 O conceito de cultura negra deve aqui ser entendido como uma alusão à tentativa de diferenciar uma prática cultural feita por pessoas socialmente excluídas e marginalizadas centrandose nas práticas e costumes no seu fazer mas não possui nenhuma relação com o sentido de negro na sua perspectiva racial ou identitária em busca de uma essência EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 395 10092018 111730 396 tível com o do frevo que por muito tempo assumiu o posto de definidor da identidade cultural pernambucana3 O maracatunação é uma manifestação cultural feita em sua grande maioria por homens e mulheres ditos negros e negras muitos deles ligados aos terreiros de xangô e jurema e que encontrou no carnaval seu lócus de apresentação ou seja desfila pelas ruas da região metropolitana do Recife principal mente nos dias de carnaval4 É formado por um cortejo real constituído pela corte e pelo batuque Na corte os desfilantes se congregam em torno do rei e da rainha ricamente vestidos e resguardados por um grande pálio que é precedido por um séquito de súditos do qual fazem parte a dama do paço que carrega a calunga entidade que protege o grupo e pelo porta estandarte que anuncia a chegada da nação o grupo de mara catu Esta corte real desfila pelas ruas da cidade acompanhada de um batuque constituído por instrumentos de percussão bombos gonguê caixa de guerra mineiro ou abê O maracatu nação é formado a partir de práticas culturais que ocorrem em uma comunidade de sentido o bairro em que vivem o terreiro que frequentam as redes de parentesco o que confere à mani festação cultural um caráter comunitário O sucesso dos maracatusnação referese à música que executam e que tem sido executada mundo afora por homens e mulheres em geral pertencentes às classes médias que formam 3 Em Pernambuco existem dois tipos de maracatu o nação ou de baque virado ou sim plesmente a nação modo como muitos maracatuzeiros se referem ao grupo que é objeto de discussão neste artigo e também o maracatu de baque solto conhecido ainda como maracatu rural ou de orquestra Do ponto de vista da etnomusicologia são manifesta ções culturais muito distintas O maracatu de baque solto é uma manifestação que ocorre principalmente entre os trabalhadores rurais da zona canavieira e ficou também bastante conhecido quando Chico Science se apresentou com a característica cabeleira de papel brilhante usada pelos caboclos de lança Este último grupo não fez o mesmo sucesso entre a classe média desejosa de consumir as manifestações da cultura popular no processo de espetacularização aqui discutido 4 Em relação à expressão utilizada no caso ditos negros e negras ressaltamos que nem Recife nem o Brasil possuem uma identidade bipolar na qual só cabem duas possibilidades negros e brancos Ainda que na atualidade se possa afirmar que significativo número de pessoas se assumem enquanto negras há também os que se definem como morenos de toda a espécie Neste caso tomaremos os termos negros e negras tão somente como referência mas não vemos nem a bipolaridade enquanto construção hegemônica nem percebemos que esta seja referência para os maracatus como um todo EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 396 10092018 111730 397 grupos percussivos para tocar principalmente maracatu e tam bém outros ritmos da cultura pernambucana e brasileira a exem plo do coco5 No entanto são poucos os grupos percussivos que formam uma corte real ou seja congregam pessoas para dançar maracatu já que a preferência reside em tocar maracatu Em contraste com um passado não muito distante em que os maracatusnação eram objetos de desprezo por parte da própria sociedade pernambucana tidos como antros de negros xangozeiros e favelados hoje são admirados por muitos que compram os seus CDs e fazem questão de assistir seus desfiles durante o carnaval vendoos como manifestação genuinamente pernambucana6 Na atualidade diversos grupos gravaram CDs uma vez que o maracatunação vem se constituindo em um pro duto de razoável rentabilidade havendo aqueles que possuem produtores culturais empresários e assessoria de imprensa Res saltase que esta realidade ocorre há pelo menos 20 anos mas em um passado não muito distante boa parte dos grupos enfren tava situações delicadas alguns correndo risco de deixar de exis tir inclusive Famosa é a toada ainda hoje cantada por diversos mestres em que a tônica da incerteza e da importância do grupo é referida Mas o povo assim dizia que o maracatu não saía o maracatu está na rua com prazer e alegria Ouvimos de muitos maracatuzeiros a explicação de que esta toada está associada tam bém às justificativas de que para determinado grupo não desfilar é também sinônimo de não haver carnaval posto que para muitas comunidades o tríduo momesco se resume tão somente àquela manifestação cultural No entanto muitos maracatus deixaram de desfilar em diferentes momentos da sua história 5 Os grupos percussivos podem ser definidos como agremiações de jovens que dispõem de alguns instrumentos ou todos musicais do maracatu Em regra geral são forma dos por pessoas que moram em diferentes localidades apesar de haver grupos que são constituídos por pessoas de uma mesma comunidade Se as nações de maracatu variam enquanto instituições os grupos percussivos também Podese encontrar em um mesmo grupo que se reúne geralmente nos finais de semana pessoas que residem em diferentes partes da cidade ou de outros municípios da região metropolitana Em geral são jovens predominantemente brancos ou com peles claras e pertencentes às camadas médias urbanas Os instrumentos pertencem a cada um dos integrantes que necessita dispor de um caso deseje integrar o referido agrupamento e assim tenha como aprender a tocálo 6 LIMA Ivaldo Marciano de França Identidade negra no Recife maracatus e afoxés Recife Bagaço 2009 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 397 10092018 111730 398 Para compreendermos a história destes grupos bem como das transformações que ocorreram no período conside rado é imprescindível sopesar os diálogos as negociações e os conflitos com o processo de espetacularização das práticas culturais especialmente a carnavalesca que vem ocorrendo desde a década de 1960 Tal procedimento permitirá colocar em evidência e compreender o protagonismo das lideranças e mesmo dos grupos de maracatunação nesse processo Este protagonismo foi fundamental para que superassem diferentes contextos desfavoráveis que vivenciaram7 Vale destacar que não entendemos esse processo como uma simples apropriação da cultura dita popular no sentido de que tem sido canibali zada como se refere José Jorge de Carvalho posto que por se tratar de processo ambíguo muitos daqueles que fazem a manifestação veem neste um momento propício para conse guirem visibilidade e se lançar no mercado cultural8 É nesse sentido que a despeito do processo de espetacularização poder ser entendido como uma apropriação culturalvamos tratála da mesma forma como a definiu Chartier como constitutiva da prática cultural9 Desde 2002 os maracatusnação têm sido responsáveis pela abertura oficial do carnaval recifense Localizado no Marco Zero coração do Recife o show de abertura do carnaval con grega diversas apresentações de artistas locais e nacionais e tem início com a cerimônia na qual o prefeito entrega a chave da cidade ao Rei Momo Entre os shows que ocorrem nessa aber tura destacase o espetáculo conduzido pelo renomado artista Naná Vasconcelos que congrega os batuques de várias nações de maracatu10 Regidos pela experiente batuta do famoso per cussionista os maracatusnação abrem o carnaval num show em que os batuques tocam unidos uníssonos acompanhando 7 LIMA Ivaldo Marciano de França Maracatus do Recife novas considerações sob o olhar dos tempos Recife Edições Bagaço 2012 8 CARVALHO José Jorge Metamorfoses das tradições performáticas afrobrasileiras de patri mônio cultural a indústria de entretenimento Brasília UNB 2004 Série Antropologia 9 CHARTIER Roger A história cultural entre práticas e representações Lisboa Difel 1990 10 Este artigo foi escrito antes do falecimento de Naná Vasconcelos ocorrido em 9 de março de 2016 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 398 10092018 111730 399 outros artistas ou orquestras Ao longo dos anos o evento tem sido objeto de discussões e controvérsias marcando os conflitos de identidade bem como as ambivalências que pontuaremos neste trabalho A forma como o espetáculo foi organizado tem sido alvo de críticas por se colocar tantos grupos que possuem identidades musicais próprias para simplesmente fazerem um único toque ou o acompanhamento musical de uma orquestra sinfônica ou artista fazendo com que os maracatus assumam uma posição coadjuvante no espetáculo11 Por outro lado o show tem inegavelmente contribuído para dar visibilidade aos grupos que dele participam bem como tem sido considerado uma importante estratégia política de positivação da cultura dita negra no Recife Mas para os maracatuzeiros a festa propria mente dita ocorre depois do evento pois cada batuque sai em desfile pelas ruas arrastando seus admiradores ao som de seu sotaque percussivo Este é o momento por excelência em que se podem perceber as disputas entre os grupos As rivalidades são expressas principalmente durante a saída por mais que a organização do evento tente transformar os batuques em um só Mas tem sido indubitavelmente um momento privilegiado para pensar este complexo processo que é a espetacularização das manifestações culturais da chamada cultura popular durante o carnaval recifense Os maracatus ainda participam de outro grande espe táculo no carnaval considerado um dos mais disputados pelo público a famosa e emblemática Noite dos Tambores Silencio sos que ocorre toda segundafeira de carnaval e que possui ao mesmo tempo feições religiosas e artísticas embaladas por múl tiplos significados O Pátio do Terço local situado à margem do principal circuito carnavalesco e de espaço reduzidíssimo vem atraindo ao longo dos anos um crescente número de espectado res Estimase que o total de presentes neste evento oscile entre 11 Para que se possa melhor compreender a dimensão conflituosa desta questão é importante considerar que cada grupo de maracatu tem uma identidade percussiva própria ou seja cada um deles tem seu próprio toque É esse toque que permite por exemplo diferenciar um grupo de outro Como nem todo maracatunação toca a mesma música em torno dessa identidade percussiva há inúmeros conflitos que o show da aber tura do Carnaval evidencia ao colocar todos os batuques tocando da mesma forma EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 399 10092018 111730 400 cinco e dez mil pessoas Seu caráter ritual conferelhe o tom exótico necessário para atrair grande número de turistas que passam pelo carnaval recifense e que vão assistir às nações reve renciarem seus ancestrais em uma cerimônia religiosa na qual os antepassados negros e escravizados são rememorados assim como os eguns espíritos dos mortos12 Na Noite dos Tambo res Silenciosos evento que ocorre desde meados da década de 1960 cada grupo de maracatunação se apresenta com a corte e o batuque de forma processual na frente da Igreja de Nossa Senhora do Terço À meianoite esse desfile dos grupos é inter rompido por uma cerimônia que tem o objetivo de celebrar os antepassados sejam eles os negros escravizados sejam os eguns ancestrais ou espíritos dos mortos Na atualidade um babalo rixá canta para os orixás enquanto pombas brancas são soltas simbolizando a paz Quando foi criada a cerimônia era pre cedida por um grupo teatral que representava um auto sobre a escravidão e à meianoite um clarim anunciava o momento de reverenciar esses antepassados Desde esse período até o momento o evento em si e especificamente a cerimônia têm sido africanizados e sacralizados Assim em um período relativamente curto vimos os maracatusnação deixarem de ser marginais para assumirem o posto de guardiões da tradição e da cultura pernambuca nas O que se pode dizer sobre estas mudanças Quais as razões que as justificam Como explicar que em tão pouco tempo os maracatusnação tenham passado a se constituir em um dos ele mentos primordiais dessa identidade pernambucana Essas questões não se desconectam de outra que diz res peito ao imaginário que permeia discursos e práticas dos inte grantes dos maracatusnação bem como de setores da sociedade 12 Referimosnos aos ancestrais como uma categoria nativa ou seja é dessa forma que aqueles que fazem maracatu se referem aos antepassados de modo geral Também enquanto categoria nativa egum é o espírito de alguém morto Tratase de uma adap tação da mitologia iorubana tanto nos terreiros da religião dos orixás como também no âmbito dos maracatusnação Sobre a Noite dos Tambores Silenciosos consultar GUILLEN Isabel Cristina Martins Noite dos tambores silenciosos ritual e tradição entre os maracatusnação do Recife In REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPO LOGIA Saberes e práticas antropológicas Desafios para o século XXI 25 2006 Goiâ nia Anais Eletrônicos Goiânia ABAUFGUniversidade Católica de Goiás 2006 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 400 10092018 111730 401 que os observam e admiram Como pensar os maracatuzeiros em grande parte oriundos das comunidades carentes localizadas nas periferias da cidade favelas com péssimas instalações urba nas em sua maioria e os discursos de uma identidade pernam bucana indistinta quanto ao pertencimento racial se uma das principais características apontadas por seus estudiosos é uma suposta africanidade expressa no pertencimento às religiões de terreiro como o xangô pernambucano candomblé e a jurema Utilizamos o conceito de africanidade de forma crítica tão somente como maneira de estabelecer a referência para que o leitor compreenda que os maracatusnação foram e de certa forma ainda são representados como manifestação africana por grande parte dos estudiosos Esta africanidade se definia segundo estas representações nos vínculos estabelecidos entre os maracatusnação e a religião dos orixás Consideramos os mara catus como parte da cultura dita negra entendendo que não se devem tomar os negros como descendentes naturais do conti nente africano Também não compreendemos a religião dos ori xás xangôcandomblé como uma religião de matriz africana uma vez que não conseguimos identificar nenhuma homogenei dade ou prática cultural universal aos povos do continente refe rido Desta forma nomearemos o xangôcandomblé como uma religião de terreiro atribuindolhe o caráter de prática cultural construída em solo brasileiro mesmo considerando diferentes contribuições de outros povos devidamente ressignificadas em novo contexto Afinal de contas não é assim que as práticas são construídas Esta é uma questão imprescindível para o entendimento da atual situação em que vivem os maracatusnação em busca do diálogo com a sociedade mais geral bem como de recursos alguns grupos abrem mão de uma série de aspectos identitários considerados tradicionais Entre estes ressaltese a sua identi dade percussiva uma vez que no evento de abertura do carna val os maracatus são instados a tocar todos juntos ao mesmo tempo o que leva alguns grupos à adesão de estilos que não são necessariamente os seus como já apontado Essas questões iden titárias vividas pelos maracatuzeiros em suas múltiplas facetas EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 401 10092018 111731 402 são pautadas e pontuadas por diversos conflitos que se expres sam muitas vezes em aparentes incongruências discursivas sem que isso signifique verdadeiramente conflitos de identidade13 É nesse sentido que se pode pensar outra inovação des tes novos tempos que diz respeito ao alargamento das fronteiras de pertencimento grupal dos maracatus Alguns destes grupos possuem batuques que são compostos por alunos oriundos das muitas oficinas ofertadas por alguns dos integrantes nor malmente os mestres para os interessados em geral que pagam por esses cursos Há também oficinas de dança e a venda de fantasias para os que desejam desfilar no carnaval situação esta que ocorre porém com menor frequência Outro elemento modificado pela força do mercado e da espetacularização a que foram submetidos os maracatus diz respeito aos locais em que se apresentam O carnaval é o período por excelência destes gru pos principal ocasião em que recebem os recursos financeiros em maior abundância pagos tanto pela iniciativa privada como pelo poder público Em geral os grupos mais famosos optam por receber as propostas mais vantajosas podendo deixar de lado os desfiles nas suas próprias comunidades e nos carnavais de bairro que normalmente pagam muito pouco por estas apresentações As mudanças que abordamos não constituem uma rea lidade que diz respeito a todos os maracatus uma vez que estas afetam principalmente os maiores grupos quase sempre despre parados para lidar com os desafios colocados pela modernidade atual leiase globalização Em geral porém tanto os pequenos grupos como os maiores são confrontados com algumas des tas situações Há uma tendência em boa parte dos grupos de abrir suas portas aceitarem os de fora e mudar as regras de convivência interna como forma de obter o reconhecimento e a legitimidade necessários para a conquista de espaços tanto entre os seus pares como na sociedade como um todo Isto é um pouco do que pode ser dito sobre os maracatus tradicionais e genuinamente pernambucanos ou mudam e se adaptam às novas exigências da espetacularização ou perecem dando lugar 13 HALL Stuart Identidade cultural e diáspora Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional n 24 p 6875 1996 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 402 10092018 111731 403 àqueles que conseguiram negociar estas mudanças incorpo randoas o que significa certa homogeneização crescente nos modos de fazer maracatu não presente poucas décadas atrás A despeito dos ganhos evidentes de alguns grupos o antigo modo de se fazer maracatu para não dizer tradicional está em franco desaparecimento Mas como pensar estes maracatus em meio a estas mudanças se o que os caracterizava era justamente seu per fil comunitário ou africano como alguns denominam tão valorizado até mesmo por determinados indivíduos das classes médias que buscam o pertencimento ao grupo como forma de se mostrar autenticamente pernambucano e ao mesmo tempo partícipe de uma tradicional manifestação cultural Vale ressaltar que parte destes jovens de classe média que acor rem aos maracatus o fazem também em busca de diversão e pra zer gerando conflitos os mais inusitados possíveis É nessa pers pectiva que propomos pensar algumas das muitas possibilidades colocadas para os maracatuzeiros e os seus maracatus de uma maneira geral discursos práticas e muitos processos em jogo Se por um lado os maracatus mais afamados da cidade aceitam os jovens brancos e alguns negros também do Recife e de outras regiões do país estrangeiros idem como integrantes cor roborando para o alargamento de suas fronteiras comunitárias e identitárias por outro mantêm na medida do possível seus discursos e práticas de pertencimento às religiões de terreiro14 Para compreendermos a complexidade que envolve esse processo de espetacularização vale ressaltar que a maioria dos integrantes dos maracatusnação reside na comunidade ou pró ximo ao local em que o grupo está sediado E é por morarem próximos uns dos outros que estão mais dispostos a comparti lharem práticas diversas conferindo o caráter de nação para estes grupos que trazem consigo certa propensão a fazerem o maracatu de modo coletivo sem que exista um coreógrafo ou 14 Entendemos como religiões de terreiro as diferentes manifestações e formatos da umbanda além da jurema e da religião dos orixás Temos consciência das dificuldades que envolvem o fenômeno religioso bem como das complexidades que permeiam o estudo destas religiões por isso optamos por nomeálas de forma genérica como reli giões de terreiro EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 403 10092018 111731 404 alguém que dite a forma de dançar ou mesmo que imponha o modo de costurar bordar ou fazer qualquer tipo de coisa Não são grupos dotados de uma lógica de espetáculo para vender em que prevaleça a lógica do consumo Estas questões são a nosso ver as principais diferenças entre as nações de maracatu e os grupos percussivos por mais que alguns destes venham no tempo presente reivindicando a condição de serem nações Isso mesmo Alguns grupos formados já há alguns anos como o MaracatuNação Pernambuco ou o Maracambuco buscam ser reconhecidos como uma nação de maracatu o que não tem sido aceito pelos maracatusnação Mas hoje diante desse complexo contexto cultural e identitário não há como definir de modo preciso o que é um maracatunação Essas fronteiras identitá rias pelo próprio processo e espetacularização têm se mostrado porosas e flexíveis Levando em consideração as questões aqui apresen tadas podemos sintetizar os maracatusnação compartilham práticas em um mesmo território possuem vínculos com a religião dos orixás com a umbanda e com a jurema podendo ser com as três ao mesmo tempo ou com uma destas de forma isolada15 Seu espetáculo é fruto de muitas contribuições anô nimas e vem se transformando ao longo das últimas três déca das Eis o que define um maracatunação portanto território religião práticas compartilhadas e espetáculo coletivo 15 Sobre o candomblé umbanda e jurema consultar LIMA Vivaldo da Costa O con ceito de nação nos Candomblés da Bahia AfroÁsia Salvador v 2 n 12 p 6590 jul dez 1976 LIMA Ivaldo Marciano de França Uma religião que cura consola e diverte as redes de sociabilidade da Jurema sagrada Cadernos de Estudos Sociais Recife v 20 n 2 p 195208 juldez 2004 MOTTA Roberto Coord Os afrosbrasileiros In CON GRESSO AFROBRASILEIRO 3 1985 Recife Anais Recife Massangana 1985 p 109 123 MOTTA Roberto Religiões afrorecifenses ensaios de classificação Revista Antropológica Série Religiões Populares ano 2 v 2 p 11 34 1997 BRANDÃO Maria do Carmo Adão e Badia carisma e tradição no Xangô de Pernambuco In SILVA Vagner Gonçalves da Org Caminhos da alma memória AfroBrasileira São Paulo Summus Edições Selo Negro 2002 p 4987 ORTIZ Renato A morte branca do feiticeiro negro umbanda e sociedade brasileira 2 ed São Paulo Brasiliense 1991 PINTO Clélia Moreira Saravá Jurema Sagrada as várias faces de um culto mediúnico 1995 Dissertação Mestrado em Antropologia Programa de Pós Graduação em Antropologia Universi dade Federal de Pernambuco Recife 1995 SALLES Sandro Guimarães de À sombra da jurema encantada mestres juremeiros na umbanda de Alhandra Recife Editora da UFPE 2010 À sombra da jurema a tradição dos mestres juremeiros na umbanda de Alhandra Anthropólogicas ano 8 v 15 p 99122 2004 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 404 10092018 111731 405 Esta é a diferença substancial que os marca e separa dos grupos percussivos considerados como manifestações que esti lizaram os maracatusnação É importante porém insistir na necessidade de se refletir sobre a criação destes grupos percussi vos formados quase que exclusivamente por jovens brancos tendo como perspectiva a ideia de que o Movimento Mangue popularizou a alfaia como instrumento musical dando ênfase nos batuques e apontando para um sentido diferente do que estes possuíam nos maracatusnação16 É fundamental estabele cer a relação entre as classes médias e estes grupos de batuque mostrando que se alguns indivíduos vão até as nações de mara catu para ocupar espaços outros criam seus próprios grupos retirando destes a ideia de religião e de sentido comunitário e em decorrência problemas que as comunidades carentes trazem consigo17 Os grupos percussivos são formados por pes soas brancas majoritariamente de tal modo que dificilmente o leitor caso resolva ir ao Recife no carnaval deixará de sen tir um choque quando se deparar com as duas manifestações um cortejo de maracatunação com batuque formado em sua maioria por homens e mulheres de diversos tons de pele negra e os grupos percussivos maciçamente formados por homens e mulheres brancos18 16 Alfaia espécie de tambor é a denominação de um dos instrumentos usados no mara catu e a origem da palavra pode estar ligada ao uso que a palavra alfaia como o con junto de móveis e utensílios tinha entre as irmandades no século XIX A popularização que o Movimento Mangue proporcionou a este instrumento interferiu também na sua denominação posto que os antigos maracatuzeiros diziam afaia Hoje todos enten dem que alfaia é o tambor usado no maracatunação como fica evidente em TELES José Do frevo ao manguebeat São Paulo Ed 34 2000 As aspas utilizadas sempre que aparecem as categorias branco ou negro dizem respeito ao aspecto crítico com que enxergamos o uso destes conceitos A nosso ver nem o Recife e muito menos o Brasil podem ser enquadrados nesta perspectiva de classificação racial bipolar ainda que os movimentos negros invistam nesse aspecto para a construção de uma identidade negra 17 Os maracatusnação possuem problemas inerentes ao quotidiano no caso homens alcoolistas mulheres que brigam com seus maridos meninos que usam drogas dentre outros aspectos presentes em uma comunidade carente Estes problemas não são bem vistos por alguns destes jovens que veem nos maracatus apenas um espaço para a diver são e o prazer Mais à frente abordaremos novamente esta questão 18 Isto não é regra entre todos os maracatusnação posto que os grandes grupos inserem no seu batuque durante suas apresentações no Carnaval os grupos percussivos de fora do Recife que geralmente vão passar o Carnaval na cidade fazendo com que os batuques tenham uma presença significativa de homens e mulheres brancos EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 405 10092018 111731 406 Não se pode esquecer também que a ideia de criar gru pos de percussão e a participação destes batuques das nações de maracatu está respaldada na transformação e redução dos sen tidos do maracatu para a ideia de diversão e música como apon tado por Carvalho19 E as apresentações dos maracatusnação e dos grupos percussivos passam então a ser vistos como boas opções de lazer e entretenimento Isso é fundamental para entender os novos grupos percussivos a ideia do lazer e do entretenimento que podem ser usufruídos por qualquer um a qualquer hora em qualquer lugar e a todo momento Como exemplo podemos citar o já famoso encontro que ocorre toda sextafeira à noite no bairro do Recife denominado de Traga a Vasilha em que jovens de diversos maracatus e grupos percus sivos se reúnem para tocarem juntos com seus próprios instru mentos A ideia de que cada batuqueiro possa ter seu próprio instrumento é consequência desse embranquecimento uma vez que entre os maracatusnação os instrumentos são ainda em sua grande maioria coletivos ou seja pertencem ao grupo e não aos batuqueiros Destaquese ainda a popularização dos modos de se fazer a alfaia através de oficinas diversas Con tudo alguns artesãos no Recife ainda são os preferidos e seus instrumentos alcançam altos preços a exemplo de Maureliano criador da marca Barravento Atualmente podemse encontrar os tambores de Maureliano em diversos lugares do mundo nos quais o maracatu se popularizou Desse cenário de sucesso porém ficam excluídos os problemas normalmente existentes em comunidades carentes em que os maracatus estão sediados desempregados favelados bêbados doentes de toda espécie alto índice de criminalidade falta de saneamento Os problemas sociais devem ficar de fora da diversão A miséria daqueles que fazem os maracatusnação não deve transparecer nos espetáculos Seus integrantes são mui tas vezes imperceptivelmente instados a se comportar de forma a não demonstrardenunciar suas origens sociais Nada de catar 19 CARVALHO Ernesto Ignácio de Diálogo de negros monólogo de brancos transformações e apropriações musicais no maracatu de baque virado 2007 Dissertação Mestrado em Antropologia Programa de PósGraduação em Antropologia Universidade Federal de Pernambuco Recife 2007 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 406 10092018 111731 407 latinhas depois que o maracatu desfila afinal isso é coisa de fave lado Ouvimos frase parecida de uma rainha de maracatu Devese pensar também que os maracatus na segunda metade do século XX foram tolerados e aceitos por muito tempo devido à exaltação de seu lado lúdico tendo em vista que o pressuposto da democracia racial enquanto argumento ideológico enfatizava a contribuição negra dentro desta pers pectiva qual seja de que os negros colaboraram com as fes tas e as manifestações culturais para a formação da nacionali dade Nesse sentido um maracatu não poderia ser visto como expressão identitária de uma comunidade que traz consigo suas marcas sociais Os maracatus ao mesmo tempo que sofrem um processo de branqueamento são também higienizados devem sempre lembrar a alegria e o orgulho de ser pernambucano Outra questão importante a ser discutida diz respeito à atuação de alguns produtores e empresários da cultura popu lar que passam a ter nos maracatusnação e em outras mani festações da cultura popular um importante instrumento para ganhos materiais tendo em vista sua aceitação em alguns nichos do mercado notadamente a world music Mas para que estes maracatus sejam palatáveis ao mercado precisam ter outra con duta pautarse pela lógica do espetáculo Contudo por mais que alguns produtores e empresários culturais tentem branquear ou higienizar estes grupos seus membros em sua maioria continuam sendo os moradores das periferias vivendo vários problemas sociais e compartilhando práticas consideradas estra nhas para os novos maracatuzeiros das classes médias A corte dos maracatus e o conjunto das fantasias não se constituem objeto de fascínio e sedução como os batuques o que obriga os grupos a construírem uma composição entre os novos batu queiros que chegam com os que já formavam o grupo gerando conflitos e tensões em alguns momentos Nesse sentido pode se afirmar que na atualidade é mais do que comum encontrar pessoas das classes médias e da elite em algumas nações e essa é uma questão que tem como ponto culminante a abertura dos maracatus para todos os indivíduos independentemente de sua cor branca ou condição social EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 407 10092018 111731 408 Esta espetacularização da cultura dita negra em Per nambuco e o processo de popularização dos maracatus são fato res mais amplos polissêmicos e complexos do que o arrolado anteriormente e não há aqui espaço para discutirmos todo esse processo como merecido Em grande parte da literatura que tem se dedicado a pensar o processo de espetacularização dos maracatusnação está presente a ideia de que este é um fenô meno recente que pode ser recortado a partir do sucesso do Movimento Mangue e da popularização do maracatu Nosso argumento caminha em outra direção a de que se trata de um processo mais amplo temporalmente e sua compreensão não pode prescindir de uma discussão histórica principalmente considerando como os atores sociais dos movimentos que bus caram valorizar a cultura negra no Recife contribuíram para a conformação dos problemas apontados aqui Desse modo vamos analisar o processo de espetacularização desde meados da década de 1960 quando emerge e se consolida o discurso que apregoa o carnaval como uma manifestação lucrativa e que deveria ser pensada como um negócio para atrair turistas e investimentos Ainda que os maracatusnação não estivessem no centro dessa discussão que envolveu o debate entre o frevo e as escolas de samba eles foram afetados por este largo processo de transformação da cultura carnavalesca em Pernambuco20 OS MARACATUSNAÇÃO E A VALORIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA Entre os anos de 1950 e 1960 assistimos no Brasil a um amplo processo de valorização da cultura dita negra Entre repor tagens de revistas romances de Jorge Amado e músicas de Dori val Caymi a cultura dos candomblés capoeira baianas e seus acarajés ganham maior visibilidade e positividade Tratase de um processo nacional há muito referido pela historiografia No Recife assistese a processo semelhante principalmente com o sucesso de Dona Santa rainha do Maracatu Elefante Dona Júlia do Nas cimento mais conhecida como Dona Santa nasceu em 1876 e 20 SILVA Augusto Neves Quem gosta de samba bom pernambucano não é 1955 1972 Dis sertação Mestrado em História Universidade Federal de Pernambuco Recife 2011 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 408 10092018 111731 409 faleceu em 1962 Foi uma rainha de maracatu bastante conhecida tanto entre os pernambucanos quanto nacionalmente e pode ser considerada como um ícone dessa cultura negra e africana As festas aos orixás e batuques de maracatu mostravam a contri buição africana de nossa democracia racial Como se pode entender esse processo Quem foram seus agentes Pensamos que a análise das práticas e ações dos maracatuzeiros jornalistas fotógrafos intelectuais folcloristas carnavalescos militantes dos movimentos negros e outros nos possibilitam adentrar o processo e mostrar parte de sua com plexidade Este processo portanto não pode ser compreendido sem que se discuta particularmente a ação de um articulador cultural Paulo Viana Intelectual e jornalista negro trabalhava como comentarista econômico do Jornal do Commercio e do Dia rio de Pernambuco mas também escrevia sobre a cultura carna valesca uma vez que era membro da Associação dos Cronistas Carnavalescos Teve destacada atuação durante as décadas de 1950 a 1980 no carnaval em geral e entre os maracatusnação em especial Suas reportagens enfocavam os maracatusnação e os terreiros demonstrando como eram constituídos e o que representavam para a sociedade da época Foi talvez um dos primeiros a pensar nos maracatus e terreiros como expressão e possibilidade de atuação política para os movimentos sociais negros Publicou alguns trabalhos em livros e revistas além das muitas reportagens nos jornais por onde trabalhou Porém sua memória é mantida não pelo que escreveu mas por sua criação mais significativa a Noite dos Tambores Silenciosos no início da década de 1960 Como já nos referimos o evento ocorre todos os anos no Pátio do Terço na segundafeira de carnaval e para ele acorrem quase todos os grupos de maracatusnação não sendo permitida a participação dos grupos percussivos A forma tem se modificado substancialmente desde que o evento foi criado por Paulo Viana mas o significado mais amplo permanece o mesmo ao longo das décadas uma rememoração dos ancestrais africanos sejam eles escravos ou eguns No entanto nas histórias contadas pelos mara EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 409 10092018 111731 410 catuzeiros as interpretações mais díspares são encontradas umas jogando a realização do evento para um passado imemorial e longínquo outras caracterizandoo como próprio dos terreiros conferindolhe feições que não foram necessariamente pensadas por seu criador Aliás poucos se lembram de como era o encontro dos maracatus no Pátio do Terço logo que foi inventado em 1962 Naqueles anos 1960 Paulo Viana organizou um evento teatral para lembrar os escravos cuja encenação era acompa nhada pelos maracatus Não havia nenhum caráter religioso explícito no espetáculo Sua potencialidade turística foi sempre ressaltada desde sua criação ao mesmo tempo que buscava valorizar as manifestações da cultura negra no Recife pois res tavam poucos maracatus em atividade21 Paulo Viana não foi apenas o criador da Noite dos Tam bores Silenciosos Sua atuação junto aos maracatuzeiros é lem brada ainda hoje por alguns destes e pode ser percebida também em algumas das entrevistas feitas pelos pesquisadores da Casa do Carnaval 22 Maria Madalena famosa maracatuzeira e rainha de vários maracatus da cidade ao ser inquirida sobre a Noite dos Tambores Silenciosos e os seus significados afirmou que se tra tava de um evento do tempo dos negros23 Seus contatos com Paulo Viana são explicitados logo em seguida quando afirma que ele lhe contava sobre o passado da festa e que se tratava de uma homenagem aos negros Suas palavras sobre o evento revelam uma diferenciação estabelecida entre os negros de hoje e os do passado o que talvez nos leve a pensar tratarse de suas inter pretações das representações criadas por alguns estudiosos que escreveram sobre os maracatus que os perceberam como práticas de africanos Pereira da Costa que escreveu no início do século XX pode ser considerado como o maior expoente destes estudio 21 REAL Katarina O folclore no Carnaval do Recife 2 ed Recife Fundação Joaquim Nabuco Ed Massangana 1990 LIMA Ivaldo Marciano de França Periodizando a história dos maracatus Folclore Fundação Joaquim Nabuco n 297 p 18 2003 22 A Casa do Carnaval é uma repartição ligada à Secretaria de Cultura da Cidade do Recife e fica localizada no Pátio de São Pedro Nela estão guardadas diversas entrevis tas que foram feitas com maracatuzeiros e maracatuzeiras proeminentes a exemplo de Maria Madalena e Luiz de França 23 Entrevista com Maria Madalena Entrevistas Casa do Carnaval p 34 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 410 10092018 111731 411 sos que viam o maracatu como reminiscência de práticas africa nas discurso este que foi reproduzido e se encontra presente na historiografia sobre os maracatusnação até bem recentemente24 Paulo Viana também organizou outros eventos a exemplo de um festival de xangô realizado no ginásio do Sesc e promoveu os encontros entre Dona Santa e Sinhá Yayá e Badia yalorixás que tinham um terreiro no lugar e que eram conhecidas como as Tias do Terço Sobre a afamada rainha do Maracatu Elefante Dona Santa Paulo Viana escreveu diver sas matérias algumas reveladoras de suas posições políticas em torno dos maracatus para os quais construía representa ções bem originais mas de difícil comprovação Um exemplo encontrase na afirmação de que os reis e rainhas dos maraca tus assim o eram na África e tinham vindo para o Brasil na con dição de prisioneiros de guerra vencidos pelos adversários Em sua afirmação observase de forma explícita a compreensão de que os maracatus se constituíam em transposições enquanto práticas culturais do continente africano para o Brasil25 Suas ideias de que os maracatus compunham grupos de exilados étnicos complementavase com a teoria por ele difundida de que a sucessão dos maracatus só poderia ocorrer por descendência direta ou seja uma visão coerente com a concepção dinástica dos maracatus e seus reis e rainhas Este foi a nosso ver o principal motivo que o levou a afirmar ter Dona Santa desejado que após sua morte as atividades do Elefante se encerrassem uma vez que não dispunha de her deiros de sangue que pudessem dar continuidade ao reinado26 24 Estas representações criadas por Pereira da Costa foram discutidas por LIMA Ivaldo Marciano de França Maracatus e maracatuzeiros desconstruindo certezas batendo afayas e fazendo histórias Recife 1930 1945 Recife Bagaço 2008 Práticas e representações em choque o lugar social dos maracatus na cidade do Recife nos anos de 1890 a 1930 Clio série História do Nordeste v 1 n 21 p 85106 2003 Sobre Pereira da Costa consultar ANDRADE Manuel Correia de Pereira da Costa O homem e a obra Recife CEPE 2002 25 VIANA Paulo Carnaval de Pernambuco In SILVA Leonardo Dantas MAIOR Mário Souto Org Antologia do Carnaval do Recife Recife MassanganaFundaj 1991 p 311313 26 VIANA Paulo O maracatu nação do Elefante desaparecerá com sua rainha Diário da Noite 711958a Os grandes e legítimos maracatus cedem lugar a grupos sofisticados Diário da Noite 1311958 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 411 10092018 111731 412 Junto a Paulo Viana naturalmente congregavamse outras pessoas que compartilhavam de suas ideias e ideais e que contribuíram para colocar em atuação na cidade do Recife e de forma positiva uma dada cultura negra que poderíamos hoje questionar pois se destaca na sua concepção uma visão romântica do fazer cultural como se fossem antigas reminis cências que se reproduziam porque assim determinava a tra dição Mas ele próprio foi um grande inventor de tradições Para nosso argumento no entanto importa destacar que a atuação de Paulo Viana foi fundamental na valorização e visi bilidade da cultura dita negra constituindose nos primórdios de uma ação mais efetiva dos negros na cultura da cidade como assistiremos nos anos 1970 OS MOVIMENTOS SOCIAIS NEGROS ATUANDO NOS MARACATUS A RELAÇÃO ENTRE O MARACATU LEÃO COROADO E O CONSELHO DE ENTIDADES NEGRAS DE PERNAMBUCO CENPE Desde os anos 1970 um contingente significativo de militantes negros havia estabelecido como proposta de atuação a intervenção no interior de entidades culturais Nessa perspec tiva segundo Buscácio a cultura seria o gancho que colocaria na ordem do dia as questões econômica política e social dos negros brasileiros Era uma proposta de buscar a identidade negra através do lado cultural27 Seja através do Ilê Aiyê em Salvador da GranQuilombo no Rio de Janeiro ou nos mara catus do Recife essa atuação era pautada pela combinação de discursos fortemente políticos em meio à festa e à arte A cultura era o local por excelência para a atuação política des tes militantes que sofreram influências diversas a exemplo do movimento Black Rio e Black Soul28 27 BUSCÁCIO Gabriela Cordeiro A chama não se apagou Candeia e a Gran Qui lombo movimentos negros e escolas de samba nos anos 70 2005 Dissertação Mes trado em História Programa de PósGraduação em História Universidade Federal Fluminense Niterói 2005 p 23 28 BUSCÁCIO A chama não se apagou 2005 HANCHARD Michael George Orfeu e o poder o Movimento Negro no Rio de Janeiro e São Paulo 19451988 Rio de Janeiro Ed UERJ 2001 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 412 10092018 111731 413 Também é importante frisar que os anos 1970 constituí ram o cenário para muitos acontecimentos fundamentais para os movimentos sociais negros sobretudo a fundação do Movi mento Negro Unificado MNU ocorrido a partir de um encon tro nacional de vários agrupamentos militantes em 18 de junho de 197829 Outros acontecimentos não menos importantes tam bém marcaram estes anos a exemplo da fundação de vários gru pos de teatro negros e de organizações de cunho cultural Neste cenário em que percebemos o surgimento de diversas entidades dotadas de um novo discurso muitas das quais baseadas no enfrentamento racial e no combate ao que denominavam de mito da democracia racial é que se podem entender algumas das razões que permearam a entrada de mili tantes negros do Recife no Maracatu Leão Coroado que foi enfocada numa reportagem do Diário de Pernambuco Telma Chase é a atual presidente do Maracatu Leão Coroado que representa um marco histórico no patrimônio cultural de Pernambuco A presidência de Telma ocorre em função do Conselho de Entidades Negras de Pernam buco É uma ação provisória explica enquanto se reestrutura o corpo de diretoria do Maracatu que possui uma das maiores glórias do Carnaval pernambucano Luiz de França hoje com 88 anos porém presente em todas as exibições do Leão Coroado 30 Esta relação entre o Maracatu Leão Coroado e os movimentos sociais negros foi repetidamente mencionada em entrevistas que realizamos com alguns militantes dos movi mentos negros no período31 A partir destas podemos inferir que em um primeiro momento os militantes do MNU parti ciparam de modo mais efetivo do maracatu sobretudo entre 29 SILVEIRA Oliveira Vinte de novembro história e conteúdo In PETRONILHA Beatriz Gonçalves Silva SILVÉRIO Valter Roberto Org Educação e ações afirmativas entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica Brasília INEPMEC 2003 p 24 30 Tradição secular Encontro tenta reerguer os maracatus do Recife Diário de Pernambuco 1921990 31 Entrevistas realizadas no âmbito de diversos projetos de pesquisa como Ritmos cores e gestos da negritude pernambucana financiado pelo Funcultura Tais entrevistas encontramse no Laboratório de História Oral e da Imagem da UFPE EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 413 10092018 111731 414 os anos de 1987 e 1989 Um segundo momento referese aos militantes do Cenpe Conselho de Entidades Negras do Recife que congregava militantes do MNU e também outras organizações e agremiações culturais de negros e negras que não participavam necessariamente do MNU A nosso ver apesar das diferenças existentes entre ambas as entidades a atuação política no interior dos maracatus constituiu parte da estratégia adotada Diferentemente de outras regiões do país em Pernam buco o movimento social negro foi marcado por especificidades diversas sendo uma delas a inexistência de uma seção local do Movimento Negro Unificado ao mesmo tempo que este foi fundado no Rio de Janeiro e São Paulo e recebeu a adesão de outros estados do Brasil Entre os anos de 1979 e meados de 1982 existiu uma organização denominada por Movimento Negro do Recife que não integrava o Movimento Negro Uni ficado Após intensos debates e discussões internas esta orga nização optou por ingressar no MNU apenas em 1982 tendo este processo sido marcado por dissidências e tensões diversas e nem todos os integrantes do MNR acompanharam a incor poração ao MNU32 O Cenpe reunia militantes negros que possuíam dupla militância ou seja pertenciam à organização referida mas também integravam grupos culturais a exem plo de blocos e bandas de sambareggae afoxés e maracatus além de grupos de teatro de rua A esta organização pertence ram nomes como os de Ivo Rodrigues Malu Roberto Santos Zumbi Bahia entre outros Todos preocupados em valorizar e dar visibilidade à cultura negra com a esperança de que esta vam colocando em discussão a discriminação racial Em algumas ocasiões podese perceber a atuação con junta destas duas organizações políticas do movimento social negro mas também se percebem tensões e conflitos obser váveis nas entrevistas realizadas com antigos integrantes des tes grupos Entretanto em relação à atuação política no seio 32 FERREIRA Sylvio José B R A questão racial negra em Recife Recife Edições Pirata 1982 SILVA Maria Auxiliadora Gonçalves da Encontros e desencontros de um movimento negro Brasília Fundação Palmares 1994 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 414 10092018 111731 415 da sociedade tanto o MNU como o Cenpe viam a presença de seus militantes inseridos nas manifestações culturais como algo extremamente positivo e ao mesmo tempo fundamen tal O MNU tinha como perspectiva de intervenção política a atuação de seus membros nos grupos culturais ao passo que o Cenpe era constituído por integrantes que já estavam inseridos em algumas entidades A participação destas organi zações no interior do Maracatu Leão Coroado deve ser vista nesse sentido como parte de uma atuação de caráter estra tégico Não se pode negar que esta ação tem como base a forte influência dos postulados panafricanistas que viam nos negros os legítimos descendentes dos africanos e o maracatu nesta relação consubstanciavase na maior e mais forte das heranças africanas Não se deve desprezar também a signi ficativa influência das representações construídas por Paulo Viana nos anos 1950 e 1960 sobretudo a de que estes grupos constituíam a continuidade dos reinados africanos voltamos a focalizar o mesmo assunto tecendo algumas considerações em torno desses conjuntos étni cos originários da África e que são parte integrante dos festejos de rua do Carnaval do Recife Em todas as monarquias a sucessão no trono ocorre de geração em geração através da posição heráldica dos herdeiros Entre os negros a sucessão dos soberanos obedecia também o mesmo principio Tanto assim que mesmo em terras estranhas e até dobrados sob as algemas do cativeiro eles nunca olvidaram os seus reis e descendentes Em todas as oportunidades e em quaisquer ocasiões que se fizesse necessário lhe manifestavam respeito e obediência Atra vés de brincadeiras como maracatu congadas reisadas e outros gêneros de diversões que variavam nas diversas unidades da federação de acordo também com a diversi dade de tribos de maneira simulada os negros presta vam honras a seus verdadeiros reis ou descendentes deles compenetrados do que estavam fazendo homenageados e homenageantes Não era qualquer sujeito coroado num reisado do primeiro quartel do século como de resto qual EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 415 10092018 111731 416 quer negra não seria como ainda não o é agarrada pela gola e coroada rainha de um maracatu 33 Esta influência exercida por Paulo Viana entre alguns militantes do movimento negro acerca dos sig nificados dos maracatusnação para a afirmação da cul tura negra pode ser percebida nas próprias palavras de Telma Chase reproduzidas na mesma matéria de jornal já referida Sobre o maracatu de baque virado diz Telma Chase nos carregamentos de escravos trazidos para o Brasil incluíamse reis rainhas e príncipes negros Maracatu é o cortejo real criado em Pernambuco que procura resgatar os costumes dos cortejos reais africanos De origem sudanesa o maracatu nasceu no Recife filho legitimo das procissões em louvor a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos Liderado pelos negros que na África haviam pertencido à nobreza o maracatu tinha e ainda mantém uma relação profunda com os terreiros de candomblé e da nação nagô34 Às filiações entre o pensamento de Paulo Viana e o discurso de Telma Chase podem ser acrescentadas outras representações das quais se ressalta aquela que ainda hoje predomina entre os praticantes das religiões de terreiro qual seja de que os maracatus são estritamente vinculados aos terreiros nagôs e por isso mesmo de matriz africana mais especificamente sudanesa Ora se a suposta origem dos maracatus era apontada pela quase totalidade dos estu diosos como de procedência banto esta afirmação nos traz indícios de que estes militantes estavam não só refazendo o percurso de estudos em torno da cultura dita negra afir mando suas posições a partir do que escutavam dos maraca tuzeiros como também recriando conceitos e renomeando práticas a exemplo do termo utilizado para a religião dos 33 VIANA Paulo Os grandes e legítimos maracatus cedem lugar a grupos sofisticados Diário da Noite 1311958 34 Tradição secular Encontro tenta reerguer os maracatus do Recife Diário de Per nambuco 1921990 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 416 10092018 111731 417 orixás candomblé que até então era conhecida em Per nambuco por Xangô 35 A atuação do MNU no interior do Leão Coroado foi marcada por alguns sérios conflitos principalmente em torno das diferenças existentes entre esses militantes e Luiz de França o mestre e também o dono do maracatu36 Dessas dife renças resultou a mudança de estratégia destes ativistas que optaram por se alojarem prioritariamente nos recémfundados afoxés notadamente o Alafin Oyó Tanto o MNU quanto o Cenpe não mantiveram suas intervenções no interior do Leão Coroado por muito tempo Podese pensar que estes conflitos dizem respeito ao fato de que a atuação destes militantes nos maracatus representou o encontro de duas gerações diferen tes uma formada por negros em sua maioria oriundos das camadas médias e a outra dos populares que faziam o mara catu e que tinham em comum apenas uma suposta identidade racial muitas vezes não reconhecida pelos maracatuzeiros 35 Sobre a origem dos maracatus suas representações e as filiações em torno dessa busca incessante pelo começo primordial das práticas e manifestações culturais con sultar LIMA Ivaldo Marciano de França Maracatus e maracatuzeiros desconstruindo certezas batendo afayas e fazendo histórias Recife 19301945 Recife Bagaço 2008 especialmente o primeiro capítulo E entre os autores que apontaram o mara catu como uma reminiscência banto destacamse RAMOS Arthur O folklore negro do Brasil demopsychologia e psycanálise Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1935 As culturas negras no novo mundo 4 ed São Paulo Companhia Editora Nacio nal 1979 que influenciou sobremaneira os demais pesquisadores Um bom exemplo de estudioso que ainda hoje utiliza tal conceito pode ser encontrado em LOPES Nei Bantos malês e identidade negra Rio de Janeiro Forense Universitária 1988 p 149153 Sobre o debate em torno da supremacia nagô e a invisibilização que sofrem outras práticas e modelos religiosos consultar DANTAS Beatriz Góis Vovó Nagô e papai branco usos e abusos da África no Brasil Rio de Janeiro Graal 1988 LIMA Ivaldo Marciano de França Jurema e Xangô conflito e hierarquia dentre as religiões afro descendentes In ENCONTRO CULTURA MODERNIDADE E MEMÓRIA 1 2005 Recife Anais eletrônicos Recife PE 2005 Motta Roberto A invenção da África Roger Bastide Edison Carneiro e os conceitos de memória coletiva e pureza nagô In LIMA Tânia Org Sincretismo religioso o ritual afro CONGRESSO AFRO BRASILEIRO 4 1996 Recife Anais Recife Massangana Fundaj 1996 vol 4 p 2432 MOTTA Roberto Antropologia pensamento dominação e sincretismo In BRANDÃO Sylvana Org História das religiões no Brasil Recife Ed UFPE 2004 vol 3 p 487523 CAPONE Stefania A busca da África no Candomblé tradição e poder no Brasil Rio de Janeiro Pallas Contracapa 2004 36 Ainda que sejam agremiações carnavalescas com registro em cartório e tudo o mais tais grupos tinham e muitos ainda têm donos ou seja pessoas em torno das quais se articula o grupo e que por vezes têm rendimentos dessas atividades EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 417 10092018 111731 418 Desse modo essas diferenças geraram compreensões políticas diversas o que levou ao choque não só entre as gera ções mas também em termos de perspectivas em torno dos maracatus Para o MNU tratavase de uma estratégia diferen temente de como era vivido pelos maracatuzeiros e em especial por Luiz de França expressas sobretudo em torno do debate sobre os significados do dia 13 de maio e do 20 de novembro Para o MNU era impensável se comemorar a assinatura da Lei Áurea o que não era vivido da mesma forma pelos que faziam o maracatu Afinal para estes a princesa Isabel longe de se cons tituir numa vilã era muito bemvista notadamente por Luiz de França vide aliás a grande quantidade de toadas alusivas à dita princesa além de calungas com o mesmo nome da princesa libertadora dos escravos Quando inquirido sobre a justificativa do nome das calungas de seu maracatu o Leão Coroado expli cou que uma delas Dona Isabel consistia em uma homenagem para a rainha do Brasil aquela que havia libertado os negros do cativeiro37 Esta compreensão positiva da princesa Isabel não é exclusiva de Luiz de França Em nossas andanças nos maracatus e terreiros das religiões de orixás juremas e umbandas pudemos perceber o quão complexa é esta questão que envolve diferentes gerações de homens e mulheres pertencentes aos grupos e orga nizações culturais Aqui confluem experiências diversas em torno do fazer maracatu e identidade dita negra Experiências estas que na sua diversidade e a despeito de todos os conflitos que vivencia ram construíram um campo cultural no Recife em torno das manifestações culturais negras fossem os maracatus fossem os afoxés que os militantes dos movimentos negros fundaram às dezenas desde a década de 1980 Talvez por sentirem que não poderiam controlar e colocar a serviço de uma agenda política o fazer dos maracatuzeiros ou por não se importarem com as identidades regionais Os afoxés cresceram significativamente em número e ocuparam um lócus privilegiado no campo da cul tura dita negra ao longo das décadas de 1980 e 1990 Mas não o fizeram assim tão tranquilamente sem que fossem considerados 37 Luiz de França entrevista Casa do Carnaval p 27 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 418 10092018 111731 419 como estrangeiros entre as tradicionais manifestações cultu rais pernambucanas PERNAMBUCANIDADE PALAVRA QUE REMONTA A DIVERSOS SENTIDOS Não é possível entender este contexto de franca acei tação dos maracatusnação por parte da sociedade recifense sem considerar o debate em torno da pernambucanidade A dis cussão em torno da identidade regional já gastou rios de tinta desde os anos 20 do século passado quando Gilberto Freyre e outros intelectuais propuseram e cunharam através do mani festo regionalista a própria expressão pernambucanidade Ao longo do século XX tradição e modernidade se conjugaram para dar legitimidade à identidade regional e a cultura popular ocupou papel destacado nessa confluência Os maracatusnação ocuparam papel central nesse debate sendo destacados como legítimos e autênticos representantes da tradição e cultura per nambucanas a despeito de toda perseguição que sofreram na primeira metade do século XX e de restarem poucos grupos em atuação desde então Esse lugar nunca impediu que esses mara catus convivessem com a modernidade em especial como um chamariz para a indústria do turismo conforme já discutimos a respeito da Noite dos Tambores Silenciosos Uma questão imprescindível para esta discussão diz res peito portanto à compreensão das necessidades que a indústria do turismo possui com vistas a ter apelos diferenciadores atra tivos para os que chegam sob a condição de turistas Esta é uma das chaves para o entendimento da valorização e espetaculariza ção por que passaram muitas das manifestações culturais locais Os investimentos feitos pela mídia local para que os pernambu canos passassem a amar e valorizar suas manifestações culturais mais autênticas é outra questão importante para se entender parte dos sentidos existentes no discurso da pernambucanidade que tenta homogeneizar uma grande diversidade de manifes tações de caráter cultural e identitário Tudo se transforma em autenticamente pernambucano bois blocos ursos troças EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 419 10092018 111731 420 caboclinhos e maracatus além do frevo Eis portanto o melhor carnaval da terra lugar por excelência dos prazeres terrenos Mais uma vez podese afirmar que o discurso da pernambucani dade não tem sentido se dissociado da indústria do turismo e do processo de espetacularização apesar de não depender exclusi vamente dela para existir Mas é essa pernambucanidade que legitima uma acirrada concorrência com a indústria do turismo cultural que advém da Bahia por exemplo O axé music que conseguiu formar um poderoso nicho de mercado carnavalesco é intensamente criticado em Pernambuco e chegouse mesmo a se propor uma certa reserva de mercado oculta no discurso da valorização da cultura popular pernambucana como que a resguardar o lugar dessa cultura principalmente do frevo38 Nessa perspectiva é perfeitamente compreensível o sur gimento do MaracatuNação Pernambuco em atuação desde meados da década de 1980 o primeiro grupo percussivo que se apresentou com o claro propósito de defender a cultura local já que a viam como se estivesse ameaçada de desaparecer Formado originariamente por componentes do Balé Popular do Recife o Nação Pernambuco se apresenta com uma corte e batuque con siderados uma estilização dos maracatusnação vestemse com fantasias que lembram as dos maracatusnação mas que são uma releitura destas usando elementos mais palatáveis ao consumo de uma classe média Nada dos paetês e bordados que tanto agradam os maracatuzeiros e maracatuzeiras mas os estampa dos e coloridos chitões fitas e palhas39 É necessário enfatizar que não se trata apenas de questões estéticas mas de concepções em torno da manifestação cultural aspecto visível por exemplo na dança Enquanto nos maracatusnação seus membros dan çam sem uma coreografia específica ao modo como dançam nos terreiros ou em outras manifestações culturais os grupos percussivos coreografam todos os seus gestos promovendo uma 38 O auge da luta contra a música baiana foi a nosso ver a aprovação por parte da Câmara de Vereadores de Olinda da Lei do Frevo no início dos anos 1990 39 Entre os maracatuzeiros há uma hierarquia na valorização das roupas de acordo com a riqueza com que foi confeccionada Nesse sentido as fantasias confeccionadas com chitão normalmente as baianas de cordão não estão no rol dos desejos de consumo dos que fazem maracatu EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 420 10092018 111731 421 homogeneidade na apresentação Por fim considerese que esta performance se coaduna com uma apresentação num palco num espetáculo de dança a ser apresentado para espectadores num teatro ou numa arena Nenhum grupo de maracatunação está preparado para se apresentar num palco já que não faz parte do seu fazer os maracatusnação se apresentam sempre de forma processual ritualista em passarelas ou nas ruas O Nação Pernambuco exerceu considerável influência nesse processo de revitalização dos maracatusnação na medida em que divulgou por todo o Brasil e em outros países a mani festação cultural Incutiu em muitos jovens que viam suas belís simas apresentações o desejo de tocar maracatu de fazer parte dessa cultura Em alguns anos desfilaram com as cores da ban deira pernambucana presentes em fantasias e adereços como emblemas dessa pernambucanidade Moda esta que se espraiou entre a classe média e é impossível andar pelas ruas da cidade no Carnaval sem encontrar um folião que não esteja vestindo uma camiseta ou um chapéu estampado com a bandeira ou com suas cores É correto afirmar que o discurso do Nação Pernambuco primava em valorizar a cultura pernambucana bem como suas tradições e foi indubitavelmente um dos grandes responsáveis por criar uma performance cultural em que a pernambucani dade voltou à cena na década de 1990 Por outro lado contribuiu para a desvinculação da música e dança das práticas ligadas às religiões de terreiro tornando em grande medida o maracatu palatável aos interessados apenas no ritmo prazer e diversão Em outras palavras este grupo promoveu a desafricanização dos maracatus tornando possível a sua absorção pela indústria cultural mesmo que em uma escala menor Sua fundação é de 1989 anterior portanto ao surgimento da banda Chico Science e Nação Zumbi que alguns anos após corroborou a perspectiva de tornar possível a prática da música e dança do maracatu sem a obrigação de estar vinculado a uma de suas nações Ressaltese que ambos os movimentos foram responsáveis junto com outros fatores pelo sucesso atual dos maracatusnação propiciando a ocorrência de boa parte das questões a que já nos referimos Este é o contexto que favorece a espetacularização dos maracatus e a EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 421 10092018 111731 422 sua transformação em parte substancial da pernambucanidade A partir deste contexto muitos grupos percussivos foram criados e virou moda entre jovens da região metropolitana do Recife dançar ou tocar maracatu O mercado cultural se ampliou para os que ofereciam oficinas de dança e percussão e para os que confeccionavam tambores e outros instrumentos musicais já que havia uma demanda para esses produtos Parecia que o maracatunação estava se branqueando o que provocou uma intensa reação nos movimentos negros Durante a década de 1990 os afoxés fizeram enorme sucesso entre militantes negros e negras que passaram a reivindicar um lugar entre as agremiações carnavalescas e começaram a fre quentar o Pátio do Terço durante a Noite dos Tambores Silen ciosos Com a morte de Paulo Viana em meados da década de 1980 a organização desse evento ficou a cargo da Fundação de Cultura da Cidade do Recife que continuou a promover o encontro dos maracatus Mas o auto teatral criticado pelos mili tantes negros por seu viés ideológico um tanto quanto confor mista foi sendo paulatinamente substituído por outras celebra ções de caráter religioso até assumir a configuração atual Não se pode contestar a influência dos afoxés nesse processo Con tudo no início deste século a massiva presença dos afoxés inco moda os maracatuzeiros que questionam a legitimidade destes grupos para estarem presentes na cerimônia Conflito instau rado e de certa forma resolvido quando tanto a Noite dos Tam bores Silenciosos quanto a abertura do carnaval passaram a ser organizadas pelo Núcleo de Cultura Afro da Cidade do Recife Constituído por militantes dos movimentos negros que ascende ram politicamente com a eleição de João Paulo PT à prefeitura do Recife em 2001 o Núcleo de Cultura Afro será o responsável por africanizar novamente os maracatusnação sem desvincu lálo da identidade pernambucana tal como o faziam os grupos percussivos Foi a partir da preocupação com o branqueamento e apropriação dos maracatus pela classe média que o grupo diri gente e responsável pela organização do carnaval propôs que a abertura fosse realizada por Naná Vasconcelos que orquestraria os batuques de várias nações de maracatu Daqueles primeiros anos em que se organizou o show da abertura até o presente EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 422 10092018 111731 423 alguns grupos de maracatusnação investiram numa revaloriza ção dessa africanidade perceptível nos búzios e palha da costa que recobrem alguns adereços nas toadas de maracatu que se referem aos orixás e na crescente valorização da vinculação dos grupos com as religiões de terreiro CONSIDERAÇÕES FINAIS ENTRE DUAS PRÁTICAS E DOIS DISCURSOS A PERNAMBUCANIDADE E A IDENTIDADE NEGRA Fechamos o círculo sabendo que muito da complexidade com que se conformou esse processo nos escapou São linhas gerais que tornam visível um processo de espetacularização mas que poderiam apontar para outros elementos talvez tão impor tantes quanto os que aqui delineamos Em resumo podese rea firmar que para o entendimento da situação atual por que passam os maracatusnação devemse levar em conta os fenômenos da indústria do turismo e a sua necessidade de transformar a cultura em um espetáculo passível de ser vendido Conjugase a esse con texto o movimento world music que culminou na criação e conso lidação de mercados para o consumo de músicas étnicas e exóti cas a fundação do MaracatuNação Pernambuco e o Movimento Mangue determinantes em alguns aspectos para a eclosão da pernambucanidade e o recrudescimento do branqueamento dos maracatus ao mesmo tempo que antenava essa cultura com o que de mais moderno se produzia Ora se estes grupos cresceram e se popularizaram pas sando a ser considerados como legítimas manifestações culturais da pernambucanidade não o fizeram sem que elementos que há muito definiam as identidades dessas manifestações desapare cessem ou ficassem invisibilizadas Tratase da identidade negra que cada vez mais gera conflitos entre uma identidade que se quer local e global mas que rejeita elementos diferenciadores em termos étnicos Mesmo sendo tomados como cultura pop e ressignificados quando postos no palco junto com as bandas de rock nos festivais os maracatuzeiros ainda exaltam os laços de pertencimento às religiões de terreiro bem como às suas comu nidades ainda que não o façam nos citados palcos Essa per EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 423 10092018 111731 424 formance incomoda aos que querem os maracatus higienizados e prontos para o consumo cultural Esse duplo pertencimento coloca os maracatuzeiros em uma perspectiva ambígua em que as identidades são confrontadas e ao mesmo tempo moldadas ao sabor de interesses e conveniências Importa destacar também que se por um lado a per nambucanidade exalta a união de todos os maracatuzeiros conclamando o fim das disputas e propiciando as visitas de membros externos de outras comunidades às sedes das nações incluindoas em espetáculos diversos por outro lado o discurso pautado pela identidade negra enfatiza o pertencimento dos maracatuzeiros às suas religiões códigos éticas e condutas Por mais que estabeleçam o diálogo com a pernambucanidade con tinuam fazendo parte de uma herança entendida como negra e de origem africana Ao mesmo tempo que os maracatus são branqueados e aceitam estas mudanças também necessitam de um discurso e roupagem mais africana para continuarem sendo considerados autênticos e legítimos no sentido de se man terem ocupando e disputando espaços na cena cultural Esta é uma discussão bastante complexa e esperamos ter contribuído para delinear os problemas que a conformam sem que tivésse mos no entanto outra pretensão EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 424 10092018 111731 425 SOBRE OS AUTORES Álvaro Nascimento Pesquisador do CNPq professor dou tor do Programa de PósGraduação em História e do curso de Graduação em História da UFRRJ autor de livros e artigos entre eles Cidadania cor e disciplina na Revolta dos Marinheiros de 1910 Mauad 2008 Carolina de Souza Martins Mestra em História Social pela Universidade Federal Fluminense e membro do Grupo de Pesquisa Cultura Negra no Atlântico CultnaUFF e Grupo de Pesquisa Religião e Cultura Popular GpminaUFMA Eduardo Pires Nunes da Silva Mestre em História Política pela Uerj Possui bacharelado e licenciatura em História pela UFF e atualmente é professor do Ensino Médio na rede pública federal e rede particular da cidade do Rio de Janeiro Elaine Monteiro Professora associada do Departamento de Educação da Universidade Federal Fluminense e coordena dora do Programa de Ensino Pesquisa e Exensão Pontão de Cultura do JongoCaxambu da mesma universidade desen volvido em parceria com comunidades jongueiras Guilherme José Motta Faria Doutor em História UFF mestre e graduado em História Uerj Professor de História Campus Cabo Frio Universidade Veiga de Almeida Teve experiências nas áreas de Artes Cênicas teatro cinema e TV e Gestão Escolar diretor de escola estadual e Cultural diretor do Teatro Municipal e secretário de Cultura de Cabo Frio Hebe Mattos Professora titular da Universidade Federal Fluminense pesquisadora do CNPq e coordenadora associada do Laboratório de História Oral e Imagem UFF Autora de diversos livros e artigos sobre escravidão abolição memória e história oral Com Martha Abreu e Keila Grimberg coordena o projeto Passados Presentes Memória da Escravidão no Brasil EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 425 10092018 111731 426 Isabel Cristina Martins Guillen Doutora em História pela Unicamp professora do Departamento de História da UFPE membro do Programa de PósGraduação em História da UFPE Ivaldo Marciano de França Lima Doutor em História pela UFF professor da Uneb DEDC II Alagoinhas colegiado de História e membro do Programa de PósGraduação em Estudos Africanos e Representações da África Juliano Custódio Sobrinho Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo Professor do Departamento de His tória da Universidade Nove de JulhoSP Larissa Viana Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense na qual ministra cursos e desenvolve pesquisas sobre a temática das relações raciais Coor dena atualmente o Mestrado Profissional em Ensino de Histó ria Profhistória na UFF Lívia Nascimento Monteiro Doutora em História pela UFF Professora na Escola de Formação de Professores do Cen tro Universitário Celso Lisboa nos cursos de História Letras e Pedagogia Luana da Silva Oliveira Mestra em História pela Univer sidade Federal Fluminense 2011 Atualmente cursa doutorado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro É coordenadorageral do Centro Cultural Aracy Car valho Di Biase e professora dos cursos de Graduação em His tória Serviço Social e Direito do UGB Centro Universitário Geraldo Di Biase Luiz Gustavo Santos Cota Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense Professor e coordenador de PósGraduação da Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga Lyndon de Araújo Santos Doutor em História pela Unesp Assis SP 2005 professor do Departamento de História 2011 e dos Programas de PósGraduação em História e em Ciências Sociais 2009 da UFMA concluiu pósdoutorado em História na UFF 2014 Seu artigo neste livro integra um dos resultados da pesquisa bolsa Faperj Martha Abreu Professora titular da Universidade Fede ral Fluminense e pesquisadora do CNPq Autora de diversos EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 426 10092018 111731 427 livros e artigos sobre cultura popular cultura negra patrimônio cultural pósabolição e relações raciais pesquisa e ensino Com Hebe Martos e Keila Grimberg coordena o Projeto Passados Presentes Memória da Escravidão no Brasil Matthias Assunção Mestre em História e Estudos Lati noAmericanos pela Universidade de Paris VII Denis Diderot e Paris III Sorbonne Nouvelle Doutor em História pela Uni versidade Livre de Berlim FU Professor titular no Departa mento de História da Universidade de Essex Inglaterra É autor de vários livros e artigos sobre a história do Maranhão cultura popular e artes marciais Codiretor e coprodutor e dos docu mentários Versos e Cacetes O Jogo do Pau na Cultura AfroFluminense 2009 e Jogo de Corpo Capoeira e Ancestralidade 2014 Renata Figueiredo Moraes Graduação e mestrado em His tória Social pela Universidade Federal Fluminense e doutorado em História Social da Cultura pela PUCRio Com passagem pela rede pública de ensino do estado do Rio de Janeiro atual mente é professora de História do Brasil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro Silvia Cristina Martins de Souza Doutora pela Unicamp professora da UEL e UEPG PR Autora de As noites do ginásio teatro e tensões culturais na Corte 18321868 O palco como tribuna uma interpretação de O demônio familiar de José de Alencar e Carpinteiros teatrais cenas cômicas e diversidade cultural no Rio de Janeiro oitocentista EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 427 10092018 111732 Cultura negra v 1 Festas carnavais e patrimônios negros Martha Abreu Giovana Xavier Lívia Monteiro e Eric Brasil organizadores Série Pesquisas Volume 6a EQUIPE DE REALIZAÇÃO Editor responsável Aníbal Bragança Coordenadora de produção Mariana Simões Capa I Graficci Comunicação e Design e Marcio Oliveira Foto da capa Juca MartinsOlhar Imagem Manifestação durante a reunião da SBPC Salvador BA 1981 Arquivo Edgard LeuenrothUnicamp Formato 140 x 210mm Composto na fonte Baskerville Impresso em cartão Supremo 250g e papel Pólen Soft 80g 428 páginas Tiragem 200 exemplares Impresso e acabado na Abegraph Editora e Serviços Gráficos LtdaME Av Almirante Frontin 381 Ramos Rio de Janeiro RJ em setembro de 2018 Supervisão gráfica Marcio Oliveira Diagramação I Graficci Comunicação e Design 10092018 112054 SAMBA EXPRESSÃO DE LAZER RESISTÊNCIA E MOBILIZAÇÃO POLÍTICA ESSA FINA GENTE DO MORRO OCUPAÇÃOCONFLITOS E REPRESENTAÇÕES DA MANGUEIRA 19101930 A estação derradeira ESTAÇÃO DERRADEIRA C A N Ç Ã O D E C H I C O B U A R Q U E Rio de ladeiras Civilização encruzilhada Cada ribanceira é uma nação À sua maneira Com ladrão Lavadeiras honra tradição Fronteiras munição pesada São Sebastião crivado Nublai minha visão Na noite da grande Fogueira desvairada Quero ver a Mangueira Derradeira estação Quero ouvir sua batucada ai ai Rio do lado sem beira Cidadãos Inteiramente loucos Com carradas de razão À sua maneira De calção Com bandeiras sem explicação Carreiras de paixão danada São Sebastião crivado Nublai minha visão Na noite da grande Fogueira desvairada Fonte Musixmatch A Civilização Encruzilhada Quero ouvir sua batucada aí aí São Sebastião crivado As escolas da samba do Rio de Janeiro nos anos 1960 AS ESCOLAS DE SAMBA CANTAM SUA NEGRITUDE NOS ANOS DE 1960 UMA PÁGINA EM BRANCO NA HISTORIOGRAFIA SOBRE O MOVIMENTO NEGRO NO BRASIL A história do negro nos desfiles dos anos 1960 Lutas Resistência e os Heróis Negros A presença negra na cultura nacional e no folclore REFERÊNCIAS SANTOS Lyndon Essa fina gente do morro ocupação conflitos e representações da Mangueira 19101930 In Cultura Negra Vol 01 Festas carnavais e patrimônios negros Niterói Eduff 2018 pp pp 162191 FARIA Guilherme As escolas de samba cantam a sua negritude nos anos 1960 uma página em branco na historiografia sobre o movimento negro no Brasil In Cultura Negra Vol 01 Festas carnavais e patrimônios negros Niterói Eduff 2018 pp pp 1922018 SAMBA EXPRESSÃO DE LAZER RESISTÊNCIA E MOBILIZAÇÃO POLÍTICA ESSA FINA GENTE DO MORRO OCUPAÇÃO CONFLITOS E REPRESENTAÇÕES DA MANGUEIRA 19101930 A ESTAÇÃO DERRADEIRA É de suma importância abordar a ocupação do Morro da Mangueira além das representações dos seus moradores pela imprensa nas primeiras décadas do século XX Destacando ainda a associação dessas representações com práticas da cultura negra pósAbolição como por exemplo o samba capoeira religiões de origem africana e batuque expressões da cultura negra que eram alvos de repressões policial durante este período Fonte Enciclopédia Itaú Cultural Figura 1 Quadro Morro da Mangueira Heitor dos Prazeres A ocupação do morro envolveu libertos pósAbolição descendentes de africanos migrantes empobrecidos e operários das fábricas próximas que utilizavam a linha férrea para deslocamento rumo aos subúrbios com a estação de trem da Mangueira sendo sua primeira parada Esse processo foi marcado por desordem e conflitos no qual o samba emergiu como uma importante expressão musical e cultural Os cortiços e as favelas foram vistos como transformações dos quilombos periurbanos especialmente entre 1850 e 1888 Esses espaços de maneira gradual foram sendo integrados à cidade durante seu processo de expansão do Centro para a periferia e viceversa no início de 1872 a partir do desenvolvimento das ferrovias e suburbanização Fonte mídia independente Figura 2 A Favela Santa Marta em Botafogo com o Corcovado ao fundo Na imagem é evidente a condição precária de algumas residências embora não haja barracos de madeira e todas sejam construídas com alvenaria Ao fundo podese observar a figura do Redentor no Morro do Corcovado cujos braços abertos parecem dirigir um olhar fixo para a favela de maneira tão estática quanto a ausência de ação por parte do poder público Representando a construção de cortiços e as favelas no Rio de Janeiro INDUSTRIALIZAÇÃO A linha férrea se tornou o principal meio de transporte para os habitantes da região mas também representava uma fonte de perigos constantes Várias fábricas foram atraídas para a área devido à facilidade de acesso transporte disponibilidade de mão de obra e preços baixos dos terrenos A existência dessas fábricas nas proximidades auxiliou para a ocupação do morro uma vez que muitos moradores viraram trabalhadores delas A origem dos barracos no morro estava diretamente ligada a essas fabricas posteriormente as terras foram repassadas aos donos dessas fábricas alguns construíram casas alugandoas aos seus funcionários Mais tarde pessoas sem moradia chegavam à região e erguiam seus próprios barracos A Fábrica de Chapéus Fernandes Braga Cia foi uma das empresas destacadas que se instalaram na área por volta de 18961898 próximo à grande mangueira que marcava a primeira parada do trem vindo da Central do Brasil e passou a ser conhecida como Fábrica de Chapéus Mangueira Fonte acervo privado da Família Fernandes Braga Figura 3 Fachada da FCM em 1911 ESTAÇÃO DERRADEIRA C A N Ç Ã O D E C H I C O B U A R Q U E Rio de ladeiras Civilização encruzilhada Cada ribanceira é uma nação À sua maneira Com ladrão Lavadeiras honra tradição Fronteiras munição pesada São Sebastião crivado Nublai minha visão Na noite da grande Fogueira desvairada Quero ver a Mangueira Derradeira estação Quero ouvir sua batucada ai ai Rio do lado sem beira Cidadãos Inteiramente loucos Com carradas de razão À sua maneira De calção Com bandeiras sem explicação Carreiras de paixão danada São Sebastião crivado Nublai minha visão Na noite da grande Fogueira desvairada Fonte Musixmatch A Civilização Encruzilhada As pessoas que residiam no Morro de São Antônio foram transferidas para a Mangueira além de outros migrantes de diferentes partes da cidade e do país A família de Cartola mudouse para lá em 1919 quando havia cerca de 50 casas a maioria barracos de madeira Muitos desses novos moradores foram deslocados devido à reforma da Quinta da Boa Vista em 1908 ou ao incêndio do Morro Santo Antônio em 1916 considerada a primeira favela do país Fotografias de 1920 retratam as condições de vida precárias com construções rudimentares e crianças conhecidas como moleques Monteiro 2012 Fonte Museu Afro Brasil 1960 Figura 4 compositor Cartola década de 1960 Na primeira década do século XX a ocupação da Mangueira ocorreu gradualmente e enfrentou conflitos territoriais e jurídicos O ministro da Justiça Esmeraldino Bandeira solicitou ao prefeito do Distrito Federal Inocêncio Serzedelo Correia a proibição do levantamento de casebres no morro dos Telégrafos e em outros pontos da cidade devido à ameaça constante que representavam para a saúde pública Essas construções informadas pela DiretoriaGeral de Saúde Pública eram abusivas e não tinham formalidade legal compostas por materiais como zinco taboas de caixões velhos e cobertura de sapê Figura 5 Morro da Mangueira Fonte Acervo Fundação Oswaldo Cruz 1963 O desfecho do processo foi a autorização para derrubar os casebres em julho de 1910 embora não se saiba ao certo se essa ação ocorreu e como ocorreu A ocupação da Mangueira continuou tornandose uma região de conflitos especialmente relacionados à disputa de terras entre supostos proprietários mesmo após a sanção da nova lei do inquilinato em 1921 Em 1926 uma reportagem do jornal Correio da Manhã mostrou fotografias do morro do Telégrafo evidenciando casas derrubadas e moradores despejados pela polícia A remodelação da Quinta da Boa Vista pelo presidente Nilo Peçanha transferiu moradores pobres para o morro do Telégrafo propriedade nacional Com a falta de fiscalização proprietários impuseram altos aluguéis mas medidas foram tomadas pelo poder público para acabar com essa cobrança beneficiando os moradores residentes Fonte diário do Rio 1967 Figura 6Morro da Mangueira século XX Quero ouvir sua batucada aí aí Nas décadas de 1910 a 1930 o morro da Mangueira foi palco de diversas manifestações culturais refletindo a construção de um estilo de vida suburbano e um cotidiano marcado por contradições O carnaval o samba o teatro de revista as práticas religiosas de origens africanas as corridas de cavalos no TurfClub e o futebol com o Sport Club Mangueira foram expressões culturais e de lazer dos moradores Fonte Avante Mangueira 1933 Figura 7 aturnino Gonçalves e Júlio Dias Moreira morro da mangueira 1933 Com essas batalhas que ocorre no surgimento das escolas de samba no final da década de 1920 A Estação Primeira de Mangueira fundada no morro é resultado da luta pela habitação das comunidades negras na Primeira República O estabelecimento da escola de samba derivada do Bloco dos Arengueiros passou a ser o símbolo da cultura transmitida pela herança africana Napolitano 2002 Fonte Vida Sportiva RJ Figura 8 Foto rara do time da Mangueira em 1918 Durante os anos de 1925 a 1929 a figura do Claudionor foi construída como personagem coincidindo com o período em que a Mangueira se destacou pelo samba e pelo carnaval Seus sambas foram amplamente reconhecidos especialmente no carnaval de 1926 A revista Amor sem Dinheiro anunciava a apresentação de Claudionor do Morro da Mangueira interpretado pelo popular cômico Henrique Chaves acompanhado por violão flauta e cavaquinho A peça de teatro Flor da Rua encenada no mesmo ano retratava a vida dos malandros do morro da Mangueira MORRO DE MANGUEIRA Eu fui a um samba lá no morro da Mangueira Uma cabrocha me falou de tal maneira Não vai fazer como fez o Claudionor Para sustentar família foi bancar o estivador Não vai fazer como fez o Claudionor Para sustentar família foi bancar o estivador Ó cabrocha faladeira Que tens tu com a minha vida Vai procurar um trabalho E corta esta língua comprida Ó cabrocha faladeira Que tens tu com a minha vida Vai procurar um trabalho E corta esta língua comprida Não tem água na Mangueira É pau pra virar É duro subir ladeira Para em seco namorar Canção de Manoel Dias Intérprete Pedro Celestino Fonte discografia brasileira A vida em uma favela durante um período de calor intenso com barracos ou casas próximas umas das outras e espaços vazios entre eles indicando uma ocupação em curso Alguns desses casebres têm duas janelas na fachada enquanto outros têm apenas uma porta de entrada todos construídos com simplicidade assim era a vida das pessoas que viviam nas favelas durante este período Assim a favela outrora ignorada e associada à violência ganhou prestígio cultural devido ao samba e aos personagens residentes como Claudionor tornandose um reduto cultural O Morro da Mangueira era mencionado como um lugar emblemático onde seus habitantes alcançaram um status de igualdade em relação a outras favelas como a Favela e o Morro do Pinto São Sebastião crivado A partir de 1920 as ocorrências policiais relacionadas ao Morro da Mangueira aumentaram significativamente coincidindo com o desenvolvimento da cultura do samba e a ascensão das figuras dos malandros sambistas Estas ocorrências envolviam uma variedade de conflitos e violências incluindo embriaguez roubos brigas de casais crimes passionais vinganças rixas pessoais incêndios provocados em barracões disputas de terrenos e jogos de monte utilizando armas como paus navalhas canivetes facas barras de ferro e até revólveres O Morro da Mangueira era retratado como um reduto de desordeiros malandros e desocupados que se reuniam para o samba caracterizado pelo batuque dança canto e expressão emocional e de prazer Era comum os moradores se reunirem à noite em determinados locais para se entregarem ao samba cantando e dançando por horas muitas vezes até altas horas da madrugada À medida que a festa progredia os participantes começavam a consumir bebidas alcoólicas geralmente vendidas nas tendinhas próximas gerando grandes lucros para os proprietários Aos domingos especialmente quando muitos trabalhadores principalmente estivadores estavam de folga ocorriam grandes celebrações como o samba de arromba Figura 8 Cartola e Nelson Cavaquinho em foto da exposição Em 1964 Fonte Acervo Instituto Moreira Salles As representações do Morro e dos moradores da Mangueira estavam intimamente ligadas ao processo de exclusão e racialização das populações negras no período pósAbolição Os jornais reproduziam preconceitos e temores das classes dirigentes promovendo a separação espacial e a estigmatização das comunidades negras especialmente nos subúrbios e morros AS ESCOLAS DE SAMBA CANTAM SUA NEGRITUDE NOS ANOS DE 1960 UMA PÁGINA EM BRANCO NA HISTORIOGRAFIA SOBRE O MOVIMENTO NEGRO NO BRASIL Nos anos 1960 o Brasil passou por grandes transformações políticas e culturais e essas mudanças também se refletiram nos desfiles das agremiações do Rio de Janeiro Os grupos que surgiram no final dos anos 1920 foram incorporando novos elementos ao longo do tempo ampliando as possibilidades estéticas e temáticas dos desfiles AS ESCOLAS DA SAMBA DO RIO DE JANEIRO NOS ANOS 1960 Figura 9 O GRES Salgueiro em 1962 quando o desfile das escolas de samba ainda era na Avenida Presidente Vargas Fonte Almanaque do Carnaval Ed Zahar O Salgueiro especialmente após a entrada de Fernando Pamplona é frequentemente apontado por memorialistas jornalistas e pesquisadores como um dos responsáveis por uma revolução no carnaval carioca Isso se deu através da incorporação e homenagem a personagens e expressões da cultura afrobrasileira em seus desfiles Essa abordagem representou uma mudança significativa nos desfiles de escolas de samba pois destacava elementos da cultura negra que antes não eram tão valorizados ou explorados no contexto do carnaval Ao colocar em destaque temas e figuras afrobrasileiras o Salgueiro contribuiu para uma maior valorização e reconhecimento da riqueza cultural da herança africana no Brasil além de promover uma maior inclusão e representatividade dentro do universo do carnaval carioca A análise dos enredos e letras dos sambas revela que eles se tornaram fontes centrais para entender a representação da história do negro no Brasil nas escolas de samba dentre eles O cotidiano da escravidão As escolas de samba abordam aspectos da vida cotidiana dos escravizados suas condições de trabalho as violências sofridas e os desafios enfrentados no contexto da escravidão no Brasil As lutas e movimentos de resistência A narrativa também destaca as lutas e os movimentos de resistência dos negros escravizados incluindo revoltas fugas quilombos e outras formas de enfrentamento ao sistema escravocrata As práticas culturais de influência africana As escolas de samba celebram as práticas culturais trazidas da África pelos escravizados como festas danças rituais religiosos e outras manifestações culturais que contribuíram para a formação da identidade afrobrasileira A história do negro nos desfiles dos anos 1960 A primeira corrente narrativa utilizada pelas escolas de samba para contar a história do negro no Brasil estava centrada na escravidão e seu cotidiano Essa corrente retratava o escravo nos períodos colonial e imperial destacando sua vida durante a travessia atlântica nos portos de desembarque e nas senzalas Fonte RAFAEL DAVIDRIOTUR Figura 10 Mulheres negras no samba Em 1964 a Mangueira abordou o tema da escravidão em seu desfile começando com a partida dos negros escravizados na África a travessia nos navios negreiros e sua venda nos portos brasileiros A narrativa diferencial foi centrada em um personagem chamado preto velho cuja trajetória da África à senzala foi destacada culminando em sua morte Fonte Paulo Namorado 1957 Figura 11 desfile mangueira 1957 Ao longo das décadas os desfiles de carnaval continuaram a explorar essa temática porém com um olhar cada vez mais crítico denunciando a escravidão buscando equiparação social e enfatizando a importância de que essa condição nunca mais se repetisse Ortiz 1985 Lutas Resistência e os Heróis Negros Figura 12 cultura popular é resistência Fonte Jornal de Brasília O segundo viés narrativo aborda o papel dos negros como líderes e agentes das revoltas e lutas que levaram à Abolição da escravidão no Brasil bem como a ascensão social de indivíduos negros durante o período colonial Os enredos carnavalescos destacaram a formação dos quilombos os conflitos armados liderados por negros e personagens pouco conhecidos que romperam barreiras sociais Esses enredos abriram espaço para questionamentos da história oficial ao apresentar exemplos de ações afirmativas de negros e mulatos na busca por direitos civis e sociais Ao trazer esses temas para o centro das celebrações carnavalescas as agremiações contribuem para uma reflexão mais profunda sobre a identidade e a trajetória do povo brasileiro O primeiro enredo destacado referese à Revolta de Palmares que foi apresentado pela escola de samba Salgueiro no carnaval de 1960 Durante o período anterior ao carnaval o enredo e a participação da escola de samba foram amplamente discutidos e divulgados nas páginas do Jornal do Brasil Figura 13 Foto Fernando Pamplona carnavalesco do Salgueiro Fonte acervo do salgueiro A foto representa a criação do enredo voltado a Revolta dos Palmares Fernando Pamplona imerso na pesquisa dos estrategistas do Exército Brasileiro sobre as táticas de guerrilha dos negros liderados por Zumbi recrutou uma equipe talentosa Dirceu e Marie Louise Nery Nilton de Sá e o estreante Arlindo Rodrigues O enredo foi dividido em cinco partes o cativeiro a luta os quilombos o séquito de Zumbi e a nação livre Lança em vez de espada Escudo em vez de armadura Vocês vão ser protagonistas do próprio espetáculo e não figuração de histórias sobre generaisPamplona Fernando 1960 Esse argumento foi usado pelo carnavalesco Fernando Pamplona para persuadir os membros do Salgueiro a desfilarem como guerreiros africanos no enredo de Zumbi dos Palmares em 1960 Em seu primeiro carnaval na escola ele destacou o papel do negro como herói trazendo Zumbi para o centro da narrativa antes relegado à obscuridade na história oficial O samba da Império Serrano alinhado com os debates e ações dos movimentos negros focalizou a história da Abolição no próprio negro sem conceder homenagens à princesa Isabel ao contrário do samba da Unidos de Lucas de 1968 intitulado Sublime Pergaminho Figura 14 A bateria do Império Serrano no desfile de 1969 Fonte Agência O Globo Figura 15 Heróis da liberdade Fonte Agência O Globo Essencialmente duas correntes narrativas emergiram no contexto dos enredos das escolas de samba uma mais crítica em relação ao legado cultural dos negros brasileiros e outra que enfatizava o ideal da democracia racial Ambas surgiram simultaneamente representando interpretações contrastantes do passado em disputa Enquanto uma corrente ressaltava a resistência e luta dos negros a outra adotava uma visão mais idealizada da harmonia racial Essas diferentes abordagens refletiam não uma evolução mas sim diferentes leituras do passado influenciadas por conceitos e simbolismos em conflito na cultura negra brasileira A presença negra na cultura nacional e no folclore O terceiro viés narrativo dos enredos destacou a presença do negro na formação da cultura brasileira especialmente em aspectos religiosos festivos danças e culinária em todo o país Esse viés reconheceu o legado africano como uma referência fundamental na consolidação das diversas práticas culturais no Brasil As representações dessas práticas variaram entre uma África mitificada ou estilizada e uma África politizada e contemporânea refletindo tanto elementos tradicionais quanto aspectos das lutas de descolonização Essa abordagem ressaltou a influência africana na cultura brasileira destacando sua riqueza e diversidade e conectandoa com movimentos políticos e sociais mais amplos Cartola em seu último desfile pela Mangueira em 1978 Fonte Sebastião Marinho A visão do samba como um elemento folclórico era proeminente na letra da composição destacandoo como um ritmo nacional que promovia bons sentimentos e se expandia até terras estrangeiras A Mangueira optou por construir uma narrativa de integração social sem confrontos diretos valorizando simultaneamente a contribuição do negro para a cultura nacional O desfile incluía várias alas representando danças típicas muitas das quais eram realizadas por negros e mulatos como o mineiropau as congadas o maracatu e o bumbameuboi Essas danças herdadas da cultura africana e ressignificadas no Brasil tornaramse marcadores identitários dos negros brasileiros As escolas de samba buscavam celebrar essa diversidade cultural e destacar a contribuição dos diferentes grupos étnicos para a formação da identidade nacional Considerações finais Na década de 1960 os temas relacionados aos negros consolidaram seu espaço nas escolas de samba refletindo as três principais correntes narrativas identificadas Os enredos e sambas das agremiações divulgados amplamente pela imprensa escrita e televisão demonstraram a relevância das escolas como emissores de discursos sobre a história dos negros no Brasil REFERÊNCIAS FARIA Guilherme As escolas de samba cantam a sua negritude nos anos 1960 uma página em branco na historiografia sobre o movimento negro no Brasil In Cultura Negra Vol 01 Festas carnavais e patrimônios negros Niterói Eduff 2018 pp pp 1922018 NAPOLITANO Marcos História Música história cultural da música popular Belo Horizonte Autêntica 2002 ORTIZ Renato Cultura Brasileira e Identidade Nacional São Paulo Brasiliense 1985 PAMPLONA Fernando Salgueiro 1960 Quilombo dos Palmares o primeiro capítulo da revolução 1960 disponível em httpsextraglobocomnoticiascarnavalcarnavalhistoricosalgueiro 1960quilombodospalmaresprimeirocapitulodarevolucao7216527 html acesso em 18 de fev de 2024 SANTOS Lyndon Essa fina gente do morro ocupação conflitos e representações da Mangueira 19101930 In Cultura Negra Vol 01 Festas carnavais e patrimônios negros Niterói Eduff 2018 pp pp 162 191