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Economia ·

Introdução ao Estudo do Direito

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CAPÍTULO I OBJETO E FINALIDADE DA INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO SUMÁRIO Noção elementar de Direito Multiplicidade e unidade do Direito Complementaridade do Direito Linguagem do Direito O Direito no mundo da cultura O Método no Direito Natureza da Introdução ao Estudo do Direito NOÇÃO ELEMENTAR DE DIREITO Como poderíamos começar a discorrer sobre o Direito sem admitirmos como pressuposto de nosso diálogo uma noção elementar e provisória da realidade de que vamos falar Um grande pensador contemporâneo Martin Heidegger afirma com razão que toda pergunta já envolve de certa forma uma intuição do perguntado Não se pode com efeito estudar um assunto sem se ter dele uma noção preliminar assim como o cientista para realizar uma pesquisa avança uma hipótese conjetura uma solução provável sujeitandoa a posterior verificação No caso das ciências humanas talvez o caminho mais aconselhável seja aceitar a título provisório ou para princípio de conversa uma noção corrente consagrada pelo uso Ora aos olhos do homem comum o Direito é lei e ordem isto é um conjunto de regras obrigatórias que garante a convivência social graças ao estabelecimento de limites à ação de cada um de seus membros Assim sendo quem age de conformidade com essas regras comportase direito quem não o faz age torto Direção ligação e obrigatoriedade de um comportamento para que possa ser considerado lícito parece ser a raiz intuitiva do conceito de Direito A palavra lei segundo a sua etimologia mais provável referese a ligação liame laço relação o que se completa com o sentido nuclear de jus que invoca a idéia de jungir unir ordenar coordenar Podemos pois dizer sem maiores indagações que o Direito corresponde à exigência essencial e indeclinável de uma convivência ordenada pois nenhuma 1 sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem de direção e solidariedade É a razão pela qual um grande jurista contemporâneo Santi Romano cansado de ver o Direito concebido apenas como regra ou comando concebeuo antes como realização de convivência ordenada De experiência jurídica em verdade só podemos falar onde e quando se formam relações entre os homens por isso denominadas relações intersubjetivas por envolverem sempre dois ou mais sujeitos Daí a sempre nova lição de um antigo brocardo ubi societas ibi jus onde está a sociedade está o Direito A recíproca também é verdadeira ubi jus ibi societas não se podendo conceber qualquer atividade social desprovida de forma e garantia jurídicas nem qualquer regra jurídica que não se refira à sociedade O Direito é por conseguinte um fato ou fenômeno social não existe senão na sociedade e não pode ser concebido fora dela Uma das características da realidade jurídica é como se vê a sua socialidade a sua qualidade de ser social Admitido que as formas mais rudimentares e toscas de vida social já implicam um esboço de ordem jurídica é necessário desde logo observar que durante milênios o homem viveu ou cumpriu o Direito sem se propor o problema de seu significado lógico ou moral É somente num estágio bem maduro da civilização que as regras jurídicas adquirem estrutura e valor próprios independente das normas religiosas ou costumeiras e por via de conseqüência é só então que a humanidade passa a considerar o Direito como algo merecedor de estudos autônomos Essa tomada de consciência do Direito assinala um momento crucial e decisivo na história da espécie humana podendose dizer que a conscientização do Direito é a semente da Ciência do Direito Não é necessário enfatizar a alta significação dessa conversão de um fato e de início o fato da lei ligavase como veremos ao fado ao destino a um mandamento divino em um fato teórico isto é elevado ao plano da consciência dos respectivos problemas Não é demais salientar essa correlação essencial entre o Direito como fato social e o Direito como ciência a tal ponto que ainda hoje a mesma palavra serve 2 para designar a realidade jurídica e a respectiva ordem de conhecimentos Tem razão Giambattista Vico pensador italiano do início do século XVIII quando nos ensina que verum ac factum convertuntur o verdadeiro e o fato se convertem É difícil com efeito separar a experiência jurídica das estruturas lógicas isto é das estruturas normativas nas quais e mediante as quais ela se processa MULTIPLICIDADE E UNIDADE DO DIREITO Como fato social e histórico o Direito se apresenta sob múltiplas formas em função de múltiplos campos de interesse o que se reflete em distintas e renovadas estruturas normativas Mas é inegável que apesar das mudanças que se sucedem no espaço e no tempo continuamos a referirnos sempre a uma única realidade É sinal que existem nesta algumas constantes alguns elementos comuns que nos permitem identificála como experiência jurídica inconfundível com outras como a religiosa a econômica a artística etc Deve existir com efeito algo de comum a todos os fatos jurídicos sem o que não seria possível falarse em Direito como uma expressão constante da experiência social A primeira finalidade de nossas aulas será pois oferecer uma visão unitária e panorâmica dos diversos campos em que se desdobra a conduta humana segundo regras de direito Antes de se fazer o estudo de determinado campo do Direito impõese uma visão de conjunto ver o Direito como um todo antes de examinálo através de suas partes especiais O Direito abrange um conjunto de disciplinas jurídicas Mais tarde teremos oportunidade de examinar a questão relativa à divisão do Direito mas é indispensável antecipar algumas noções sem as quais nossas considerações não teriam consistência O Direito dividese em primeiro lugar em duas grandes classes o Direito Privado e o Direito Público As relações que se referem ao Estado e traduzem o predomínio do interesse coletivo são chamadas relações públicas ou de Direito Público Porém o homem não vive apenas em relação com o Estado mas também 3 e principalmente em ligação com seus semelhantes a relação que existe entre pai e filho ou então entre quem compra e quem vende determinado bem não é uma relação que interessa de maneira direta ao Estado mas sim ao indivíduo enquanto particular Essas são as relações de Direito Privado Essas classes por sua vez se subdividem em vários outros ramos como por exemplo o Direito Constitucional o Direito Administrativo no campo do Direito Público o Direito Civil o Direito Comercial no campo do Direito Privado O Direito é pois um conjunto de estudos discriminados abrange um tronco com vários ramos cada um desses ramos tem o nome de disciplina Por que essa palavra disciplina Aconselhamos sempre nossos alunos a dedicar atenção ao sentido das palavras elas não surgem por acaso mas como já vimos ao nos referirmos aos termos lex e jus guardam muitas vezes o segredo de seu significado Disciplinador é quem rege os comportamentos humanos e sabe impor ou inspirar uma forma de conduta aos indivíduos Disciplina é um sistema de princípios e de regras a que os homens se devem ater em sua conduta é um sistema de enlaces destinados a balizar o comportamento dos indivíduos de qualquer idade ou classe social bem como as atividades dos entes coletivos e do próprio Estado O que importa é verificar que no conceito de disciplina há sempre a idéia de limite discriminando o que pode o que deve ou o que não deve ser feito mas dandose a razão dos limites estabelecidos à ação Daí podermos completar o que já dissemos com esta parêmia ubi jus ibi ratio Aliás a palavra razão é deveras elucidativa porque ela tanto significa limite ou medida pensem na outra palavra que vem de ratio ração como indica o motivo ou a causa de medir De qualquer modo ninguém pode exercer uma atividade sem razão de direito Lembrolhes por exemplo que este nosso contato está sob a proteção do Direito eu dando aula e os senhores ouvindoa estamos todos no exercício de uma faculdade jurídica Os senhores conquistaram o direito de freqüentar as aulas através dos exames que prestaram e se não pagam taxas é porque ainda não há norma que as estabeleça Quer dizer que estão aqui no exercício de uma atividade garantida Também por meu lado estou no exercício de uma função 4 que se integra na minha personalidade como meu patrimônio exerço um poder de agir tutelado pelo Direito Há portanto em cada comportamento humano a presença embora indireta do fenômeno jurídico o Direito está pelo menos pressuposto em cada ação do homem que se relacione com outro homem O médico que receita para um doente pratica um ato de ciência mas exerce também um ato jurídico Talvez não o perceba nem tenha consciência disso nem ordinariamente é necessário que haja percepção do Direito que está sendo praticado Na realidade porém o médico que redige uma receita está no exercício de uma profissão garantida pelas leis do país e em virtude de um diploma que lhe faculta a possibilidade de examinar o próximo e de ditarlhe o caminho para restabelecer a saúde um outro homem qualquer que pretenda fazer o mesmo sem iguais qualidades estará exercendo ilicitamente a Medicina Não haverá para ele o manto protetor do Direito ao contrário seu ato provocará a repressão jurídica para a tutela de um bem que é a saúde pública O Direito é sob certo prisma um manto protetor de organização e de direção dos comportamentos sociais Posso em virtude do Direito ficar em minha casa quando não estiver disposto a trabalhar assim como posso dedicarme a qualquer ocupação sem ser obrigado a estudar Medicina e não Direito a ser comerciante e não agricultor Todas essas infinitas possibilidades de ação se condicionam à existência primordial do fenômeno jurídico O Direito por conseguinte tutela comportamentos humanos para que essa garantia seja possível é que existem as regras as normas de direito como instrumentos de salvaguarda e amparo da convivência social Existem tantas espécies de normas e regras jurídicas quantos são os possíveis comportamentos e atitudes humanas Se o comportamento humano é de delinqüência tal comportamento sofre a ação de regras penais mas se a conduta visa à consecução de um objetivo útil aos indivíduos e à sociedade as normas jurídicas cobremna com o seu manto protetor Pois bem quando várias espécies de normas do mesmo gênero se correlacionam constituindo campos distintos de interesse e implicando ordens correspondentes de pesquisa temos consoante já assinalamos as diversas 5 disciplinas jurídicas sendo necessário apreciálas no seu conjunto unitário para que não se pense que cada uma delas existe independentemente das outras Não existe um Direito Comercial que nada tenha a ver com o Direito Constitucional Ao contrário as disciplinas jurídicas representam e refletem um fenômeno jurídico unitário que precisa ser examinado Um dos primeiros objetivos da Introdução ao Estudo do Direito é a visão panorâmica e unitária das disciplinas jurídicas COMPLEMENTARIDADE DO DIREITO Não basta porém ter uma visão unitária do Direito É necessário também possuir o sentido da complementaridade inerente a essa união As diferentes partes do Direito não se situam uma ao lado da outra como coisas acabadas e estáticas pois o Direito é ordenação que dia a dia se renova A segunda finalidade da Introdução ao Estudo do Direito é determinar por conseguinte a complementaridade das disciplinas jurídicas ou o sentido sistemático da unidade do fenômeno jurídico Existem vários tipos de unidade há um tipo de unidade física ou mecânica que é mais própria dos entes homogêneos pela ligação de elementos da mesma ou análoga natureza nenhuma ação ou função resultando propriamente da composição dos elementos particulares no todo Assim dizemos que um bloco de granito é unitário Há outras realidades entretanto que também são unitárias mas segundo uma unidade de composição de elementos distintos implicados ou correlacionados entre si sendo essa composição de elementos essencial à função exercida pelo todo Pensem por exemplo no coração O coração é uma unidade mas unidade orgânica que existe em virtude da harmonia das partes há nele elementos vários cada qual com sua função própria mas nenhuma destas se desenvolve como atividade bastante e de per si cada parte só existe e tem significado em razão do todo em que se estrutura e a que serve Essa unidade que se constitui em razão de uma função comum chamase unidade orgânica tomando a denominação especial de unidade de fim quando se trata de ciências humanas Nestas com efeito o todo se constitui para perseguir um 6 objetivo comum irredutível às partes componentes A idéia de fim deve ser reservada ao plano dos fatos humanos sociais ou históricos A Ciência Jurídica obedece a esse terceiro tipo de unidade que não é o físico ou o orgânico mas sim o finalístico ou teleológico Às vezes empregamos a expressão unidade orgânica quando nos referimos ao Direito mas é preciso notar que é no sentido de uma unidade de fins Alguns biólogos afirmam que a idéia de fim é útil à compreensão dos organismos vivos representando estes como que uma passagem entre o natural e o histórico É necessário porém não incidirmos em perigosas analogias sob o influxo ou o fascínio das ciências físicas ou biológicas Uma delas constitui em conceber a sociedade como um corpo social tal como o fizeram os adeptos da teoria organicista que tanta voga teve entre juristas e teóricos do Estado no fim do século passado e primeiras décadas deste LINGUAGEM DO DIREITO Para realizarmos entretanto esse estudo e conseguirmos alcançar a visão unitária do Direito é necessário adquirir um vocabulário Cada ciência exprimese numa linguagem Dizer que há uma Ciência Física é dizer que existe um vocabulário da Física É por esse motivo que alguns pensadores modernos ponderam que a ciência é a linguagem mesma porque na linguagem se expressam os dados e valores comunicáveis Fazendo abstração do problema da relação entre ciência e linguagem preferimos dizer que onde quer que exista uma ciência existe uma linguagem correspondente Cada cientista tem a sua maneira própria de expressarse e isto também acontece com a Jurisprudência ou Ciência do Direito Os juristas falam uma linguagem própria e devem ter orgulho de sua linguagem multimilenar dignidade que bem poucas ciências podem invocar Às vezes as expressões correntes de uso comum do povo adquirem no mundo jurídico um sentido técnico especial Vejam por exemplo o que ocorre com a palavra competência adjetivo competente Quando dizemos que o juiz dos Feitos da Fazenda Municipal é competente para julgar as causas em que a Prefeitura é autora ou ré não estamos absolutamente apreciando a competência 7 ou preparo cultural do magistrado Competente é o juiz que por força de dispositivos legais da organização judiciária tem poder para examinar e resolver determinados casos porque competência juridicamente é a medida ou a extensão da jurisdição Estão vendo pois como uma palavra pode mudar de significado quando aplicada na Ciência Jurídica Dizer que um juiz é incompetente para o homem do povo é algo de surpreendente Como incompetente Ele é competentíssimo disseme certa vez um cliente perplexo Tive de explicarlhe que não se tratava do valor do mérito ou demérito do magistrado mas da sua capacidade legal de tomar conhecimento da ação que nos propúnhamos intentar É necessário pois que dediquem a maior atenção à terminologia jurídica sem a qual não poderão penetrar no mundo do Direito Por que escolheram os senhores o estudo do Direito e não o de outra ciência qualquer Se pensarem bem nós estamos aqui nesta Faculdade para realizar uma viagem de cinco anos cinco anos para descobrir e conhecer o mundo jurídico e sem a linguagem do Direito não haverá possibilidade de comunicação Não cremos seja necessário lembrar que teoria da comunicação e teoria da linguagem se desenvolvem em íntima correlação sendo essa uma verdade que não deve ser olvidada pelos juristas Uma das finalidades de nosso estudo é esclarecer ou determinar o sentido dos vocábulos jurídicos traçando as fronteiras das realidades e das palavras À medida que forem adquirindo o vocabulário do Direito com o devido rigor o que não exclui mas antes exige os valores da beleza e da elegância sentirão crescer pari passu os seus conhecimentos jurídicos O DIREITO NO MUNDO DA CULTURA Não pensem que haja só continentes geográficos formados de terra mar etc Há continentes de outra natureza que são os da história e da cultura os do conhecimento e do operar do homem Cada um de nós elege um país em um dos continentes do saber para o seu conhecimento e a sua morada Uns escolhem a Matemática outros a Física ou a Medicina os senhores vieram conhecer o 8 mundo do Direito Qual a natureza desse mundo jurídico que nos cabe conhecer Quais as vias que devemos percorrer na perquirição de seus valores O mundo jurídico encontra em si a sua própria explicação Ou explicase ao contrário em razão de outros valores O mundo do Direito tem um valor próprio ou terá um valor secundário O Direito existe por si ou existe em função de outros valores Devemos pois colocar o fenômeno jurídico e a Ciência do Direito na posição que lhes cabe em confronto com os demais campos da ação e do conhecimento A quarta missão da nossa disciplina consiste em localizar o Direito no mundo da cultura no universo do saber humano Que relações prendem o Direito à Economia Que laços existem entre o fenômeno jurídico e o fenômeno artístico Que relações existiram e ainda existem entre o Direito e a Religião Quais os influxos e influências que a técnica e as ciências físicomatemáticas exercem sobre os fatos jurídicos É preciso que cada qual conheça o seu mundo o que é uma forma de conhecerse a si mesmo O MÉTODO NO DIREITO Mas para que todas essas tarefas sejam possíveis há necessidade de seguirse um método uma via que nos leve a um conhecimento seguro e certo Adquirem também os senhores através da Introdução ao Estudo do Direito as noções básicas do método jurídico Método é o caminho que deve ser percorrido para a aquisição da verdade ou por outras palavras de um resultado exato ou rigorosamente verificado Sem método não há ciência O homem do vulgo pode conhecer certo mas não tem certeza da certeza O conhecimento vulgar nem sempre é errado ou incompleto Pode mesmo ser certo mas o que o compromete é a falta de segurança quanto àquilo que afirma É um conhecimento parcial isolado fortuito sem nexo com os demais Não é o que se dá com o conhecimento metódico quando dizemos que temos ciência de uma coisa é porque verificamos o que a seu respeito se enuncia A ciência é uma verificação de conhecimentos e um sistema de conhecimentos verificados Seria simplesmente inútil percorrermos o mundo jurídico buscando a sua visão unitária 9 sem dispormos dos métodos adequados para conhecêlo pois cada ciência tem a sua forma de verificação que não é apenas a do modelo físico ou matemático Eis aí algumas das finalidades básicas desta disciplina que é ensinada muito sabiamente no primeiro ano porque temos diante de nós todo um mundo a descobrir Qualquer viajante ou turista que vai percorrer terras desconhecidas procura um guia que lhe diga onde poderá tomar um trem um navio um avião onde terá um hotel para pernoitar museus bibliotecas e curiosidades que de preferência deva conhecer Quem está no primeiro ano de uma Faculdade de Direito deve receber indicações para a sua primeira viagem qüinqüenal os elementos preliminares indispensáveis para situarse no complexo domínio do Direito cujos segredos não bastará a vida toda para desvendar NATUREZA DA INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO Não é a Introdução ao Estudo de Direito uma ciência no sentido rigoroso da palavra por faltarlhe um campo autônomo e próprio de pesquisa mas é ciência enquanto sistema de conhecimentos logicamente ordenados segundo um objetivo preciso de natureza pedagógica Não importa pois que seja um sistema de conhecimentos recebidos de outras ciências e artisticamente unificados Tratase em suma de ciência introdutória como a própria palavra está dizendo ou seja uma ciência propedêutica na qual o elemento de arte é decisivo Quem escreve um livro de Introdução ao Estudo do Direito compõe artisticamente dados de diferentes ramos do saber imprimindolhes um endereço que é a razão de sua unidade Não há pois que falar numa Ciência Jurídica intitulada Introdução ao Estudo do Direito como sinônimo por exemplo de Teoria Geral do Direito ou de Sociologia Jurídica Ela se serve de pesquisas realizadas em outros campos do saber e os conforma aos seus fins próprios tendo como suas fontes primordiais a Filosofia do Direito a Sociologia Jurídica a História do Direito e last but not least a Teoria Geral do Direito Podemos pois concluir nossa primeira aula dizendo que a Introdução ao Estudo do Direito é um sistema de conhecimentos recebidos de múltiplas fontes de informação destinado a oferecer os elementos essenciais ao estudo do Direito em termos de linguagem e de 10 método com uma visão preliminar das partes que o compõem e de sua complementaridade bem como de sua situação na história da cultura 11 CAPÍTULO II O DIREITO E AS CIÊNCIAS AFINS SUMÁRIO Noção de Filosofia do Direito Noção de Ciência do Direito Noção de Teoria Geral do Direito Direito e Sociologia Direito e Economia Nossa primeira aula destinouse a situar a Introdução ao Estudo do Direito como uma forma de conhecimento de natureza propedêutica ou seja um sistema auxiliar e preparatório de conceitos posto na base das disciplinas jurídicas Tivemos ocasião de discriminar algumas das finalidades a que essa ordem de investigação se propõe mostrando que se trata de um conjunto sistemático de princípios e noções indispensáveis àquele que vai penetrar no mundo jurídico e deseja fazêlo com certa segurança Situada assim a Introdução ao Estudo do Direito fazse mister verificar quais as suas ligações os seus nexos com outras ordens de conhecimento especialmente com a Filosofia do Direito a Teoria Geral do Direito e a Sociologia Jurídica NOÇÃO DE FILOSOFIA DO DIREITO Seria impossível oferecerlhes numa aula introdutória um conceito cabal de Filosofia do Direito matéria destinada a ser estudada no fim do curso De qualquer maneira podemos adiantar aqui alguns elementos de informação indagando do que significa o termo Filosofia Filosofia é uma palavra de origem grega de philos amizade amor e sophia ciência sabedoria Surgiu em virtude de uma atitude atribuída a Pitágoras que recusava o título de sophos sábio O grande matemático e pensador não se tinha na conta de sábio capaz de resolver todos os problemas do universo e de colocarse tranqüilamente diante deles preferia ser apenas um amigo da sabedoria Filósofo portanto etimologicamente falando não é o senhor de todas as verdades mas apenas um fiel amigo do saber Ora a amizade significa a dedicação de um ser humano a outro sem qualquer interesse com 12 sentido de permanência de perenidade A amizade não é relação fortuita nem ligação ocasional constituise ao contrário como laço permanente de dedicação A Filosofia portanto poderia ser vista de início como dedicação desinteressada e constante ao bem e à verdade dedicarse ao conhecimento de maneira permanente e não ocasional sem visar intencionalmente a qualquer escopo prático ou utilitário eis a condição primordial de todo e qualquer conhecimento filosófico No que se refere propriamente à Filosofia do Direito seria ela uma perquirição permanente e desinteressada das condições morais lógicas e históricas do fenômeno jurídico e da Ciência do Direito Existe indiscutivelmente ao longo do tempo um fenômeno jurídico que vem se desenrolando através de mil vicissitudes e conflitos apresentando aspectos diferentes de ano para ano de século para século O Direito que hoje estudamos não é por certo o Direito que existia no mundo romano ou o seguido pelos babilônicos no tempo do rei Hamurabi Por outro lado o que hoje está em vigor no Brasil não é o mesmo do tempo do Império nem tampouco existe identidade entre a vida jurídica brasileira e aquela que podemos examinar em outros países como a Itália a Espanha ou a China O Direito é um fenômeno históricosocial sempre sujeito a variações e intercorrências fluxos e refluxos no espaço e no tempo Nessa mudança não haverá entretanto algo de permanente que nos permita saber em que o Direito consiste Se ele muda não será possível determinar as razões da mudança Por outras palavras se o Direito é um fato social que se desenvolve através do tempo não haverá leis governando tal processo Como explicar o aparecimento do Direito e o sentido de suas transformações Esses problemas são de ordem filosófica constituindo um conjunto de indagações indispensáveis para se penetrar nas razões fundantes da experiência jurídica Dissemos na aula anterior que a Ciência do Direito abrange um conjunto de disciplinas ou sistemas de normas que exigem dos homens determinadas formas de conduta As regras por exemplo do Código Comercial estabelecem como as pessoas devem se comportar quando praticam atos de comércio Por 13 outro lado as normas do Código Penal discriminam as ações reputadas delituosas e as penas que lhes correspondem Há pois distintas séries de diretrizes dirigindo o comportamento social Mas se assim é surge uma pergunta por que sou obrigado a obedecer a regras de direito tão diversas e contrastantes A resposta poderá ser simplista obedeço às regras de direito porque assim o Estado o ordena Mas essa resposta levanta logo uma dúvida será porventura o Direito aquilo que se ordena Reduzse o Direito a uma expressão da força Eis uma série de outras indagações que também pertence ao campo da Filosofia do Direito Bastam porém as considerações ora desenvolvidas para verificarse que se resumirmos os tipos de indagações formuladas chegaremos a três ordens de pesquisas a que a Filosofia do Direito responde Que é Direito Em que se funda ou se legitima o Direito Qual o sentido da história do Direito A definição do Direito só pode ser obra da Filosofia do Direito A nenhuma Ciência Jurídica particular é dado definir o Direito pois é evidente que a espécie não pode abranger o gênero Não se equivoquem pelo fato de encontrarem uma definição de Direito no início de um tratado ou compêndio de Direito Civil Nada mais errôneo do que pensar que o que se encontra num livro de Direito Civil seja sempre de Direito Civil Antes de entrar propriamente no estudo de sua disciplina o civilista é obrigado a dar algumas noções que são pressupostos de sua pesquisa como é o caso do conceito de Direito que é um problema de ordem filosófica reapresentando mesmo uma das tarefas primordiais de caráter lógico que cabe ao filósofo do Direito resolver Outro problema complementar é o relativo à legitimidade ou fundamento do Direito mesmo Por que o Direito obriga Basear seá o Direito na força Podese explicar o Direito segundo critérios de utilidade Fundarseá o Direito na liberdade ou terá a sua razão de ser na igualdade Basta enunciar tais perguntas para se perceber que elas envolvem o problema ético do Direito ou mais amplamente axiológico isto é dos valores do Direito Pois bem ao lado do segundo problema ora apontado que versa sobre o fundamento do Direito há um terceiro não menos importante que não se refere à história do Direito como tal essa é tarefa do historiador do Direito mas sim ao sentido da experiência jurídica Essa ordem se expressa através de perguntas 14 como estas Há progresso na vida jurídica Podese afirmar que existem leis governando a experiência do homem nessa sua árdua faina de fazer e refazer leis Em conclusão o filósofo do Direito indaga dos princípios lógicos éticos e históricoculturais do Direito A Filosofia do Direito não se confunde com a Ciência do Direito pois se coloca perante a indagação científica para examinar as suas condições de possibilidade Toda ciência suscita uma indagação referente às condições lógicas do seu próprio desenvolvimento Se a Ciência do Direito chega a determinados resultados é preciso saber qual é o seu grau de certeza e segurança Sob esse ângulo particular poderseia dizer que a Filosofia do Direito é a Filosofia da Ciência do Direito mas as perguntas todas que formulamos demonstram que o filósofo não fica adstrito a esse tema de ordem lógica indagando concomitantemente dos valores éticos e históricos da juridicidade1 NOÇÃO DE CIÊNCIA DO DIREITO A Ciência do Direito ou Jurisprudência2 tomada esta palavra na sua acepção clássica tem por objeto o fenômeno jurídico tal como ele se encontra historicamente realizado Vejam bem a diferença A Ciência do Direito estuda o fenômeno jurídico tal como ele se concretiza no espaço e no tempo enquanto que a Filosofia do Direito indaga das condições mediante as quais essa concretização é possível A Ciência do Direito é sempre ciência de um Direito positivo isto é positivado no espaço e no tempo como experiência efetiva passada ou atual Assim é que o Direito dos gregos antigos pode ser objeto de ciência tanto como o da Grécia de nossos dias Não há em suma Ciência do Direito em abstrato isto é sem referência direta a um campo de experiência social Isto não significa todavia que ao estudarmos as leis vigentes e eficazes no Brasil ou na Itália não 1 Pra maiores esclarecimentos sobre a tríplice ordem de indagações filosóficojurídicas vide Miguel Reale Filosofia do Direito 13ª ed Saraiva 1990 2 Quando empregarmos a palavra Jurisprudência como sinônimo de Ciência do Direito sempre a grafaremos com maiúscula 15 devamos estar fundados em princípios gerais comuns produto de uma experiência histórica que tem as mesmas raízes as do Direito Romano Mais tarde estudaremos a questão dos princípios gerais que consubstanciam a experiência jurídica dos povos pertencentes a uma mesma fase histórica e de que maneira se pode falar em uma Ciência Jurídica universal Mas por mais que se alargue o campo da experiência social do Direito será essa referibilidade imediata à experiência a nota caracterizadora de uma investigação jurídica de natureza científicopositiva Donde poderse dizer que a ciência do Direito é uma forma de conhecimento positivo da realidade social segundo normas ou regras objetivadas ou seja tornadas objetivas no decurso do processo histórico Com isso já esclarecemos outro ponto essencial que é o sentido da expressão Direito Positivo como sendo o Direito que em algum momento histórico entrou em vigor teve ou continua tendo eficácia A positividade do Direito pode ser vista como uma relação entre vigência e eficácia mas ainda é cedo para compreenderse bem assunto tão relevante Também não é possível a esta altura de nosso curso esclarecer a natureza da Ciência Jurídica que alguns pretendem seja apenas uma Arte ou uma Técnica Somente após situarmos o Direito entre as formas da investigação social é que poderemos esclarecer essas e outras questões que muitas vezes subentendem simples divergências terminológicas NOÇÃO DE TEORIA GERAL DO DIREITO A referência que fizemos à existência de princípios gerais comuns às investigações sobre o Direito procedidas no Brasil e no estrangeiro já nos mostra que a Ciência Jurídica não fica circunscrita à análise destes ou daqueles quadros particulares de normas mas procura estruturálos segundo princípios ou conceitos gerais unificadores Teoria do grego theoresis significa a conversão de um assunto em problema sujeito a indagação e pesquisa a fim de superar a particularidade dos 16 casos isolados para englobálos numa forma de compreensão que correlacione entre si as partes e o todo Já Aristóteles nos ensinava que não há ciência senão do genérico pois enquanto ficamos apegados à miudeza dos casos não captamos a essência ou as constantes dos fenômenos Assim é tanto nas ciências naturais como nas ciências humanas É claro portanto que a Ciência Jurídica se eleve ao plano de uma Teoria Geral do Direito que como veremos com mais profundidade ao volvermos a este assunto representa a parte geral comum a todas as formas de conhecimento positivo do Direito aquela na qual se fixam os princípios ou diretrizes capazes de elucidarnos sobre a estrutura das regras jurídicas e sua concatenação lógica bem como sobre os motivos que governam os distintos campos da experiência jurídica Alguns autores distinguem entre Teoria Geral do Direito e Enciclopédia Jurídica atribuindo a esta a tarefa de elaborar uma súmula de cada uma das disciplinas do Direito numa espécie de microcosmo jurídico Enciclopédia quer dizer mesmo conhecimento ou visão de natureza circular o que a bem ver redundaria numa seqüência de problemas distribuídos em função do Direito Constitucional Civil Penal etc Parecenos de bem reduzido alcance esse cinerama jurídico que só pode ser avaliado por quem já percorreu cada um dos ramos do Direito É à Introdução ao Estudo do Direito que cabe a nosso ver dar uma noção geral de cada disciplina jurídica mas sem a pretensão de realizar uma síntese das respectivas questões fundamentais Consoante dizer irônico de João Mendes Júnior a Enciclopédia Jurídica nos levaria a conhecer um pouco de cada coisa e de tudo nada DIREITO E SOCIOLOGIA A colocação da Sociologia como disciplina obrigatória do currículo jurídico dispensanos de maiores indagações sobre a matéria mas não será demais prevenir contra a pretensão de certos sociólogos de reduzir o Direito a um capítulo da Sociologia 17 Sabem os senhores que os sociólogos até hoje não conseguiram estabelecer sem discrepâncias o objeto da Sociologia o que não deve causar estranheza pois com o Direito que é bem mais antigo acontece o mesmo O caráter problemático do objeto parece ser inerente às ciências humanas Em linhas gerais porém podese dizer que a Sociologia tem por fim o estudo do fato social na sua estrutura e funcionalidade para saber em suma como os grupos humanos se organizam e se desenvolvem em função dos múltiplos fatores que atuam sobre as formas de convivência Com essa noção elementar que nos situa no limiar de um grande tema já podemos ver que a Sociologia não tem por objetivo traçar normas ou regras para o viver coletivo mas antes verificar como a vida social comporta diversos tipos de regras como reage em relação a elas nestas ou naquelas circunstâncias etc Há muito tempo a Sociologia deixou de alimentar o propósito que animara a Augusto Cocote o principal de seus instituidores de ser a ciência por excelência uma verdadeira Filosofia social englobante na qual culminariam os valores todos do saber positivo Hoje em dia a Sociologia sem perder o seu caráter de pesquisa global ou sistemática do fato social enquanto social achegase mais à realidade sem a preocupação de atingir formas puras ou arquetípicas Desenvolvese antes como investigação das estruturas do fato social inseparáveis de sua funcionalidade concreta sem considerar acessórios ou secundários os estudos de campo relativos a áreas delimitadas da experiência social É nesse contexto que se situa a atual Sociologia Jurídica mais preocupada em determinar as condições objetivas que favorecem ou impedem a disciplina jurídica dos comportamentos do que em tomar o lugar da Filosofia do Direito como o pretenderam os adeptos do sociologismo jurídico A Sociologia Jurídica apresentase hodiernamente como uma ciência positiva que procura se valer de rigorosos dados estatísticos para compreender como as normas jurídicas se apresentam efetivamente isto é como experiência humana com resultados que não raro se mostram bem diversos dos que eram esperados pelo legislador Como 18 será observado oportunamente a Sociologia Jurídica não visa à norma jurídica como tal mas sim à sua eficácia ou efetividade no plano do fato social Desnecessário é encarecer a importância da Sociologia do Direito para o jurista ou para o legislador Se ela não tem finalidade normativa no sentido de instaurar modelos de organização e de conduta as suas conclusões são indispensáveis a quem tenha a missão de modelar os comportamentos humanos para considerálos lícitos ou ilícitos DIREITO E ECONOMIA Entre os fins motivadores da conduta humana destacamse os relativos à nossa própria subsistência e conservação tendo as exigências vitais evidente caráter prioritário O primo vivere deinde philosophari antes viver e depois filosofar é a bem ver um enunciado de Filosofia existencial reconhecendo a ordem de urgência com que devem ser atendidas as necessidades ligadas à nossa estrutura corpórea É claro que os atos dos heróis dos sábios e dos santos assim como de abnegados anônimos no campo das ciências e das técnicas estão aí atestando o possível sacrifício de necessidades vitais em benefício de outros valores mas a regra é a satisfação primordial dos interesses relacionados com a vida e o seu desenvolvimento Esse tipo de ação orientada no sentido da produção e distribuição de bens indispensáveis ou úteis à vida coletiva é a razão de ser da Economia cujo estudo já iniciaram nesta Faculdade tornandose dispensáveis maiores considerações O que nos cabe analisar é apenas a relação entre o fenômeno jurídico e o econômico inclusive dado o significado da concepção marxista da história na civilização contemporânea Segundo o chamado materialismo histórico o Direito não seria senão uma superestrutura de caráter ideológico condicionada pela infraestrutura econômica É esta que no dizer de Marx modela a sociedade determinando as formas de Arte de Moral ou de Direito em função da vontade da classe detentora dos meios de produção Em palavras pobres quem comanda as forças econômicas através 19 delas plasma o Estado e o Direito apresentando suas volições em roupagens ideológicas destinadas a disfarçar a realidade dos fatos Os próprios marxistas mais abertos à crítica já reconheceram o caráter unilateral dessa colocação do problema a qual peca inclusive do vício lógico de conceber uma estrutura econômica anterior ao Direito e independente dele quando na realidade o Direito está sempre presente qualquer que seja a ordenação das forças econômicas Por outro lado quando uma nova técnica de produção determina a substituição de uma estrutura jurídica por outra a nova estrutura repercute por sua vez sobre a vida econômica condicionandoa Há pois entre Economia e Direito uma interação constante não se podendo afirmar que a primeira cause o segundo ou que o Direito seja mera roupagem ideológica de uma dada forma de produção Há em suma uma interação dialética entre o econômico e o jurídico não sendo possível reduzir essa relação a nexos causais nem tampouco a uma relação entre forma e conteúdo Rudolf Stammler um dos renovadores da Filosofia do Direito contemporânea em obra célebre publicada em fins do século passado contrapunhase ao materialismo histórico afirmando que se o conteúdo dos atos humanos é econômico a sua forma é necessariamente jurídica Nada justifica o entendimento do Direito como forma abstrata e vazia casada a um conteúdo econômico inclusive porque o Direito está cheio de regras que disciplinam atos totalmente indiferentes ou alheios a quaisquer finalidades econômicas Como bem observa Ascarelli a questão é bem outra por ser próprio do Direito receber os valores econômicos artísticos religiosos etc sujeitandoos às suas próprias estruturas e fins tomandoos assim jurídicos na medida e enquanto os integra em seu ordenamento Cabe outrossim ponderar que assim como o fator econômico atua sobre o Direito este resulta também de elementos outros de natureza religiosa ética demográfica geográfica etc o que demonstra a unilateralidade e a inconsistência de todas as teorias que como a marxista enxergam no homem apenas uma de suas múltiplas dimensões 20 Diríamos que o Direito é como o rei Midas Se na lenda grega esse monarca convertia em ouro tudo aquilo em que tocava aniquilandose na sua própria riqueza o Direito não por castigo mas por destinação ética converte em jurídico tudo aquilo em que toca para darlhe condições de realizabilidade garantida em harmonia com os demais valores sociais 21 CAPÍTULO III NATUREZA E CULTURA SUMÁRIO O dado e o construído Conceito de cultura Leis físico matemáticas e leis culturais Bens culturais e ciências culturais O DADO E O CONSTRUÍDO Se volvemos os olhos para aquilo que nos cerca verificamos que existem homens e existem coisas O homem não apenas existe mas coexiste ou seja vive necessariamente em companhia de outros homens Em virtude do fato fundamental da coexistência estabelecem os indivíduos entre si relações de coordenação de subordinação de integração ou de outra natureza relações essas que não ocorrem sem o concomitante aparecimento de regras de organização e de conduta Pois bem essas relações podem ocorrer em razão de pessoas ou em função de coisas Verificamos por exemplo que um determinado indivíduo tem a sua casa e que dela pode dispor a seu talante sendolhe facultado tanto vendêla como alugála Há um nexo físico entre um homem e um certo bem econômico Há relações portanto entre os homens e as coisas assim como existem também entre as coisas mesmas Tratase é claro de tipos diferentes de relações cuja discriminação vai se enriquecendo à medida que a ciência progride Não é necessária muita meditação para se reconhecer por exemplo que existem duas ordens de relações correspondentes a duas espécies de realidade uma ordem que denominamos realidade natural e uma outra realidade humana cultural ou histórica No universo há coisas que se encontram por assim dizer em estado bruto ou cujo nascimento não requer nenhuma participação de nossa inteligência ou de nossa vontade Mas ao lado dessas coisas postas originariamente pela natureza outras há sobre as quais o homem exerce a sua inteligência e a sua vontade adaptando a natureza a seus fins Constituemse então dois mundos complementares o do natural e o do cultural do dado e do construído do cru e do cozido Havendo necessidade de 22 uma expressão técnica para indicar os elementos que são apresentados aos homens sem a sua participação intencional quer para o seu aparecimento quer para o seu desenvolvimento dizemos que eles formam aquilo que nos é dado o mundo natural ou puramente natural Construído é o termo que empregamos para indicar aquilo que acrescentamos à natureza através do conhecimento de suas leis visando a atingir determinado fim1 Diante dessas duas esferas do real o homem se comporta de maneira diversa mas antes procura conhecêlas descobrindo os nexos existentes entre seus elementos e atingindo as leis que as governam Montesquieu que é um dos grandes mestres da ciência jurídicopolítica da França no século XVIII escreveu uma obra de grande repercussão na cultura do Ocidente intitulada De lEsprit des Lois Do Espírito das Leis cuja influência se fez notar na Revolução Francesa primeiro e depois na organização da democracia liberal Pois bem nesse livro de Montesquieu a lei é definida como sendo uma relação necessária que resulta da natureza das coisas Essa definição vale tanto para as leis físicomatemáticas como para as leis culturais Vejamos se se pode falar em natureza das coisas ao nos referirmos às leis que explicam o mundo físico ou seja o mundo do dado ou às leis morais e jurídicas que são as mais importantes dentre as que compreendem o mundo da cultura e da conduta humana do construído CONCEITO DE CULTURA Esse estudo tornarseá mais acessível com o esclarecimento prévio do que se deva entender pela palavra cultura Dissemos que o universo apresenta duas ordens de realidade uma que chamamos realidade natural ou físiconatural e outra que denominamos realidade cultural A expressão tem sido impugnada ou criticada sob a alegação de ter sido trazida para o nosso meio por influência da filosofia alemã que se desenvolveu em grande parte ao redor do termo Kultur com preterição do termo civilização 1 Observamos que embora inspirada na terminologia de François Gény a distinção aqui feita entre dado e construído não corresponde à desenvolvida por esse ilustre jurisconsulto francês 23 Essa objeção não tem qualquer procedência A palavra em si é genuinamente latina e não cremos que se deva condenar o emprego de um vocábulo só por ter sido objeto em outros países de estudos especiais Além do mais a palavra cultura já era empregada por escritores latinos que nas pegadas de Cícero faziamno em dois sentidos como cultura agri agricultura e como cultura animi A agricultura dános bem idéia da interferência criadora do homem através do conhecimento das leis que explicam a germinação a frutificação etc Ao lado da cultura do campo viam os romanos a cultura do espírito o aperfeiçoamento espiritual baseado no conhecimento da natureza humana É na natureza humana que efetivamente repousam em última análise as leis culturais sem que a aceitação do conceito de natureza humana implique necessariamente o reconhecimento de leis naturais anteriores às que se positivam na história Pois bem cultura é o conjunto de tudo aquilo que nos planos material e espiritual o homem constrói sobre a base da natureza quer para modificála quer para modificarse a si mesmo É desse modo o conjunto dos utensílios e instrumentos das obras e serviços assim como das atitudes espirituais e formas de comportamento que o homem veio formando e aperfeiçoando através da história como cabedal ou patrimônio da espécie humana Não vivemos no mundo de maneira indiferente sem rumos ou sem fins Ao contrário a vida humana é sempre uma procura de valores Viver é indiscutivelmente optar diariamente permanentemente entre dois ou mais valores A existência é uma constante tomada de posição segundo valores Se suprimirmos a idéia de valor perderemos a substância da própria existência humana Viver é por conseguinte uma realização de fins O mais humilde dos homens tem objetivos a atingir e os realiza muitas vezes sem ter plena consciência de que há algo condicionando os seus atos O conceito de fim é básico para caracterizar o mundo da cultura A cultura existe exatamente porque o homem em busca da realização de fins que lhe são próprios altera aquilo que lhe é dado alterandose a si próprio 24 Para ilustrar essa passagem do natural para o cultural mesmo porque não há conflito entre ambos pois como adverte Jaspers a natureza está sempre na base de toda criação cultural costumase lembrar o exemplo de um cientista que encontra numa caverna um pedaço de sílex À primeira vista por se tratar de peça tão tosca tão vizinha do natural espontâneo consideraa apenas com olhos de geólogo ou de mineralogista indagando de suas qualidades para classificála segundo os esquemas do saber positivo Um exame mais atento revela todavia que aquele pedaço de sílex recebera uma forma resultante da interferência do trabalho do homem afeiçoandose a fins humanos para servir como utensílio um machado uma arma Desde esse instante o dado da natureza se converte em elemento da cultura adquirindo uma significação ou dimensão nova a exigir a participação do antropólogo isto é de um estudioso de Antropologia cultural que é a ciência das formas de vida das crenças das estruturas sociais e das instituições desenvolvidas pelo homem no processo das civilizações Esse exemplo que nos transporta às origens da cultura tem o mérito de mostrar a vinculação originária da cultura com a natureza evitandose certos exageros culturalistas que fazem do homem um Barão de Münchausen pretendendo arrancarse pelos cabelos para se libertar do mundo natural no qual se acha imerso É ao contrário com apoio na natureza que a cultura surge e se desenvolve O sentido ora dado à palavra cultura não deve ser confundido com a acepção corrente da mesma palavra Cultura na acepção comum desse termo indica antes o aprimoramento do espírito que possibilita aos homens cultivar todos os valores humanos Homem culto é aquele que tem seu espírito de tal maneira conformado através de meditações e experiências que para ele não existem problemas inúteis ou secundários quando eles se situam nos horizontes de sua existência O homem culto é bem mais do que o homem erudito Este limitase a reunir e a justapor conhecimentos enquanto que o homem culto os 25 unifica e anima com um sopro de espiritualidade e de entusiasmo O termo técnico cultura embora distinto do usual guarda o mesmo sentido ético o que compreenderemos melhor lembrando que a cultura se desdobra em diversos ciclos culturais ou distintos estágios históricos cada um dos quais corresponde a uma civilização O termo cultura designa portanto um gênero do qual a civilização é uma espécie LEIS FÍSICOMATEMÁTICAS E LEIS CULTURAIS A afirmação feita de que a cultura implica a idéia de valor e de fim dános o critério distintivo entre as duas esferas de realidades que estamos analisando Se observarmos bem qual é o trabalho de um físico ou de um químico perceberemos que o que ele pretende é explicar a realidade da maneira mais exata e rigorosa Qual o desejo de um químico no seu laboratório Tornarse neutro perante o real fazendo emudecer todos os seus preconceitos de maneira que possa numa fórmula feliz abstrata e objetiva surpreender a realidade na totalidade de seus elementos componentes A Ciência Física é uma ciência descritiva do real visando a atingir leis que sejam sínteses do fato natural A lei física ideal deveria ser neutra em acréscimos à natureza espelhando em sua estrutura as relações observadas como pura súmula estatística do fato É inegável que toda investigação científica está condicionada por certos pressupostos teóricos e por conseguinte por determinadas opções valorativas mas isto não impede que de maneira geral os fatos possam ser captados em suas relações objetivas Há entre os fatos ou fenômenos da natureza relações de funcionalidade e sucessão importando fixar quantitativamente tais relações o físico tem por mister e objetivo examinar os fenômenos que se passam e através de observações experimentações e generalizações alcançar os princípios e as leis que os governam A lei física é de certa maneira como que o retrato do fato na plenitude de seus aspectos Quando enuncio por exemplo a lei que governa a dilatação 26 dos gases estou indicando de maneira sintética os fatos observados e os que necessariamente acontecerão sempre que as mesmas circunstâncias ocorrerem Sendo a lei física uma expressão neutra do fato qualquer lei por mais que pareça cede diante de qualquer aspecto factual que venha contrariar o seu enunciado Entre a lei e o fato no mundo físico não há que hesitar prevalece o fato ainda que seja um só fato observado modificase a teoria alterase a lei Vejam se isso é possível em todos os campos do mundo da cultura a que pertence o Direito Imaginese um fato alterando a lei jurídica um indivíduo matando alguém modificaria mediante o seu ato o Código Penal Estão aí vendo por um exemplo rude a diferença fundamental entre as leis físico matemáticas e as leis do tipo das leis jurídicas diferença essa que resulta da natureza das coisas peculiar a cada esfera de realidade Uma é lei subordinada ao fato a outra é lei que se impõe ao fato isolado que conflitar com ela As relações que unem entre si os elementos de um fenômeno natural desenvolvemse segundo o princípio de causalidade ou exprimem meras referênciasfuncionais cegas para os valores As relações que se estabelecem entre os homens ao contrário envolvem juízos de valor implicando uma adequação de meios a fins Recapitulando podemos dizer que ao contrário das leis físico matemáticas as leis culturais caracterizamse por sua referibilidade a valores ou mais especificamente por adequarem meios afins Daí sua natureza axiológica ou teleológica não sendo demais lembrar que Axiologia significa teoria dos valores e Teleologia teoria dos fins Nem todas as leis culturais são porém da mesma natureza pois enquanto as leis sociológicas as históricas e as econômicas são enunciações de juízos de valor com base nos fatos observados fatos esses que a Sociologia a História e a Economia não se limitam a retratar como pretenderam os filósofos positivistas o mesmo não acontece no plano da Ética que é a ciência normativa dos comportamentos humanos O sociólogo o historiador e o economista não têm o propósito deliberado de disciplinar formas de conduta muito embora suas conclusões possam e devam 27 influir sobre a ordenação dos comportamentos Costumase dizer que a História é mestra da vida no sentido de que a experiência passada deve servirnos de exemplo e o mesmo se poderá dizer da Sociologia e da Economia mas nenhum de seus cultores enquanto se mantenham no plano objetivo de suas pesquisas pensa converter suas convicções em normas ou regras para o comportamento coletivo É com base nas apreciações ou valorações econômicas sociológicas históricas demográficas etc que o legislador ou mais genericamente o político projeta normas sancionando as que considera devam ser obedecidas Quando pois uma lei cultural envolve uma tomada de posição perante a realidade implicando o reconhecimento da obrigatoriedade de um comportamento temos propriamente o que se denomina regra ou norma Mais tarde cuidaremos de esclarecer outros aspectos dessa questão caracterizando melhor o momento normativo da Ética entendida como Ciência ou teoria geral dos comportamentos não só valiosos mas obrigatórios Por ora vale a pena dedicar atenção ao seguinte quadro LEI a físicomatemática ou natural b cultural b1 sociológica histórica econômica etc b2 ética ou norma ética moral política religiosa jurídica etc BENS CULTURAIS E CIÊNCIAS CULTURAIS Dissemos que existem duas ordens de fenômenos os da natureza e os da cultura No estudo dos fenômenos puramente naturais o homem chega a uma soma de conhecimentos que forma em síntese as chamadas ciências físico matemáticas como por exemplo a Física a Química a Matemática a Astronomia a Geologia e assim por diante Essas ciências não podem ser chamadas ciências culturais elas entretanto como ciências que são constituem bens da cultura Elas entram a fazer parte do patrimônio da cultura mas não são ciências culturais porquanto o seu objeto é a natureza são ciências naturais e 28 como produto da atividade criadora do homem integram também o mundo da cultura Se o homem por um lado estuda e explica a natureza atingindo ciências especiais por outro lado voltase para o estudo de si mesmo e da sua própria atividade consciente ele abre perspectivas para outros campos do saber que são a História a Economia a Sociologia o Direito etc Essas ciências que têm por objeto o próprio homem ou as atividades do homem buscando a realização de fins especificamente humanos é que nós chamamos de ciências propriamente culturais Há pois uma distinção bem clara e necessária todas as ciências representam fatos culturais bens culturais mas nem todas as ciências podem ser chamadas no sentido rigoroso do termo ciências culturais Ciências culturais são aquelas que além de serem elementos da cultura têm por objeto um bem cultural A sociedade humana por exemplo não é só um fato natural mas algo que já sofreu no tempo a interferência das gerações sucessivas Quando uma criança nasce já recebe através dos primeiros vocábulos uma série de ensinamentos das gerações anteriores Herda ela indiscutivelmente através da linguagem um acervo de espiritualidade que se integrou na convivência Em seguida o ser humano vai recebendo educação e adquirindo conhecimentos para depois atuar sobre o meio ambiente e desse modo transformálo através de novas formas de vida A sociedade está constantemente em mutação não obstante ter sua origem na natureza social do homem É necessário pois esclarecer o valor do ensinamento que nos vem de Aristóteles de que o homem é um animal político por sua própria natureza ou seja um animal destinado a viver em sociedade de tal modo que fora da sociedade não poderia jamais realizar o bem que tem em vista É preciso compreender o sentido da palavra natural empregada por Aristóteles e seus continuadores Não há dúvida que existe na natureza humana a raiz do fenômeno da convivência É próprio da natureza humana viverem os 29 homens uns ao lado dos outros numa interdependência recíproca Isto não quer dizer que o homem impelido a viver em conjunto nada acrescente à natureza mesma pois ele a transforma transformandose a si mesmo impelido por irrenunciável exigência de perfeição A sociedade em que vivemos é em suma também realidade cultural e não mero fato natural A sociedade das abelhas e dos castores pode ser vista como um simples dado da natureza porquanto esses animais vivem hoje como viveram no passado e hão de viver no futuro A convivência dos homens ao contrário é algo que se modifica através do tempo sofrendo influências várias alterandose de lugar para lugar e de época para época É a razão pela qual a Sociologia é entendida pela grande maioria de seus cultores como uma ciência cultural É evidente que o Direito sendo uma ciência social é também uma ciência cultural como será objeto de estudos especiais2 Embora devamos volver a este assunto não é demais acrescentar desde logo que graças às ciências culturais énos possível reconhecer que em virtude do incessante e multifário processo histórico o gênero humano veio adquirindo consciência da irrenunciabilidade de determinados valores considerados universais e como tais atribuíveis a cada um de nós Correspondem eles ao que denominamos invariantes axiológicas ou valorativas como as relativas à dignidade da pessoa humana à salvaguarda da vida individual e coletiva elevandose até mesmo a uma visão planetária em termos ecológicos3 Pensamos ter demonstrado alhures que esses valores supremos inspiram e legitimam os atos humanos como se fossem inatos ainda que se reconheça sua origem histórica Pois bem uma das finalidades do Direito é preservar e garantir tais valores e os que deles defluem sem os quais não caberia falar em liberdade igualdade e fraternidade o que demonstra que a experiência jurídica é uma experiência ética consoante passamos a examinar 2 Para um estudo mais amplo da teoria da cultura essencial à Ciência do Direito vide meu livro Experiência e Cultura São Paulo Ed GrijalboEDUSP 1977 3 Sobre a relação entre as invariantes axiológicas e o Direito vide supra pág 278 30