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Colecção História e Filosofia da Ciência Os Fundamentos da Ciência Moderna na Idade Média Coordenação da Colecção e Revisão Científica Ana Simões e Henrique Leitão ti PORTO EDITORA o LEGAIJO DE ARISTÓTELES PARA A IDADE MEDIA 163 4 O legado de Aristóteles para a Idade Média Os livros naturais de Aristóteles constituíam a base da filosofia natural nas universidades e é neles que devemos procurar como é que os estudiosos medievais compreendiam a estrutura e o funcionamento do Universo Recor rendo a hipóteses principios demonstrados e princípios evidentes em si mes mos Aristóteles impôs um sentido sólido de ordem e coerência a um mundo até aí considerado desconcertante Os discípulos medievais de Aristóteles que constituíram a classe dos filósofos naturais na Baixa Idade Média iriam even tualmente alargar os principios de Aristóteles a actividades e problemas para além do que o próprio filósofo considerara Aristóteles estava convencido de que o mundo que procurava compreen der era eterno sem principio nem fim Encarava a eternidade do mundo como algo bem menos problemático do que qualquer assunção de um início cósmico que implicaria igualmente um futuro fim para o mundo Era melhor postular a eternidade do que ser forçado a entrar numa explicação que iria requerer uma infinita regressão de principios causais A ideia de que a matéria pudesse ter um início parecia impossível aos Antigos Gregos porque se che gássemos a uma alegada matéria primitiva isso conduziria inevitavelmente à questão de saber o que a teria causado e assim por diante Entretanto sem um início o mundo não podia ter sido criado pelo que as ideias de Aristóteles sobre a eternidade do mundo o colocavam em oposição aos teólogos das gran des religiões monoteístas Judaísmo Cristianismo e Islamismo De todas as questões sobre as quais a filosofia natural e a teologia se debruçaram durante o século XIII na Europa Ocidental os teólogos encararam a eternidade do mundo como a mais difícil e a mais ameaçadora para a fé ver capítulo Por outro lado se o mundo de Aristóteles era eterno e portanto suspeito a insistência na sua unicidade colocavamno em plena concordância com as escrituras sagradas das três grandes religiões Encarava o mundo em que vive mos como único uma grande esfera finita para além da qual nada podia existir Toda a matéria existente estava contida neste mundo e nada ficava de fora Sem corpo não podiam existir fora do mundo nem lugar nem vazio nem tempo porque as definições de lugar vazio e tempo dependiam da existência de corpo Para Aristóteles o lugar próprio de um corpo era sem pre a superfície interna de um outro corpo que o rodeava imediatamente e estava em contacto directo com ele Assim um lugar é definido como algo em que um corpo deve estar presente Sem a existência de um corpo para lá do 641 os FUNDAMENTOS DA CIlNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA mundo em que vivemos nenhum lugar pode existir para mais infomlaçóes sobre a noção de lugar ver mais adiante neste capítulo De modo seme lhante um vazio é algo em que a existência de um corpo é possível embora de forma não actuaL Por conseguinte se nenhum corpo pode existir nenhum vácuo é igualmente possíveL Por fim o tempo é a medida do movimento Sem corpo não é possível movimento nem por conseguinte tempo Aristóte les concluiu que toda a existência se situa no interior do nosso cosmo e nada no seu exterior O nada nesta acepção não deve ser concebido como um vácuo sendo mais bem caracterizado como a total ausência de ser A decisão mais importante que Aristóteles tomou acerca do mundo físico eterno foi talvez a de o dividir em duas partes radicalmente diferentes a ter restre que se estendia desde o centro da Terra até à esfera lunar e a celeste que abarcava tudo desde a Lua até às estrelas fixas Na região terrestre a observação e a experiência tornavam evidente que a mudança era incessante ao passo que na região celeste a mudança era quase inexistente As observa ções astronómicas herdadas do passado convenceram Aristóteles de que nunca tinham sido detectadas quaisquer mudanças nos céus Sobre os Céus 13270b1317 pelo que inferiu que as mudanças não ocorriam nem podiam ocorrer nele Para compreender melhor o mundo de Aristóteles será vantajoso descrever primeiro a região terrestre da mudança o que por sua vez tornará mais compreensíveis as propriedades e os atributos imutáveis da região celeste Região terrestre domínio de incessante mudança Grande parte da filosofia natural de Aristóteles consiste numa tentativa de identificar e explicar os princípios da mudança na região terrestre prin cípios que moldaram as interpretações medievais dos processos que fazem do mundo o que ele é Embora vivamos num mundo que não teve começo mesmo assim Aristóteles explica como devemos imaginar o desenvolvi mento da matéria e como ela se diferencia nos quatro elementos básicos terra água ar e fogo que formam as partes constituintes de todos os corpos materiais da região terrestre A base subjacente a todos os corpos materiais é a matériaprima que embora real não tem existência indepen dente Aristóteles deduz simplesmente a sua realidade porque era essencial pressupor a existência de algum tipo de substrato em que qualidades e for mas podiam tornarlhese inerentes e produzir matéria sensível A matéria prima não tem propriedades próprias estando sempre associada a qualida des que se lhe tornam inerentes e a definem o LEGADO DE ARlSTÓTELES PARA A IDADE MlDIA 165 Que propriedades ou qualidades ergueriam a matériaprima a um nível mais elevado de existência digamos ao nível de um elemento Depois de elimi nar uma série de possibilidades Aristóteles argumenta que dois pares de quali dades contrárias ou opostas podiam atingir esse efeito quente e frio seco e húmido Dado que nada poderia ser simultaneamente quente e frio nem seco e húmido nenhum par de qualidades opostas se poderia tomar inerente simulta neamente à matériaprima Contudo as combinações de pares não opostos são possíveis e podem produzir elementos Se as qualidades frio e seco se tomassem inerentes à matériaprima produziriam o elemento terra frio e humidade pro duziriam água calor e humidade ar e calor e secura fogo Assim foram obti dos os quatro elementos Os corpos da região terrestre não eram contudo ele mentos puros mas misturas ou compostos de dois ou mais elementos geral mente designados na Idade Média como corpos mistos Na filosofia natural ou fisica de Aristóteles cada corpo é um composto de matéria e forma onde a matériaprima existe como substrato a que a forma se torna inerente A forma de uma coisa ou de um corpo é a soma das suas características essenciais as propriedades que fazem dessa coisa o que ela é Natureza no domínio terrestre mais não é do que um termo colectivo para a totalidade dos corpos existentes cada um constituído por matéria e forma Cada um desses corpos pertence à sua própria espécie e possui as proprieda des e características ou seja a forma da sua espécie Se estiver livre de impedimentos agirá em conformidade com essas propriedades Aristóteles atribuiu pois aos corpos do mundo o poder de actuarem de acordo com as suas capacidades naturais Deste modo concebeu uma causalidade secundá ria quando os corpos eram capazes de actuar sobre outros corpos isto é quando eram capazes de causar efeitos noutros corpos Aristóteles acreditava que cada efeito era produzido por quatro causas agindo em simultâneo nomeadamente uma causa material ou aquilo de que alguma coisa é feita uma causa formal ou a estrutura básica a ser imposta a alguma coisa uma causa eficiente ou o agente de uma acção e uma causa final ou a finalidade para a qual se empreende a acção As causas que produzem uma pedra não só a fazem pesada mas se nada se lhes opuser também lhe conferem a capaci dade de cair naturalmente em direcção ao centro da Terra com um movi mento rectillneo De modo semelhante os agentes que produzem o fogo con feremlhe leveza e consequentemente a capacidade de se elevar naturalmente para cima sempre que nada os contrariar Aristóteles ocupouse também dos tipos de mudanças que as quatro cau sas podiam originar distinguindo quatro tipos 1 mudança substancial quando uma forma suplanta outra na matéria subjacente a esta como 661 os RJNDAMENTOS DA CIIDCJA MODERNA NA IDADE MeoIA quando o fogo reduz uma acha a cinzas 2 mudança qualitativa quando a cor de uma folha é alterada de verde para castanho na mesma matéria subja cente 3 mudança de quantidade quando um corpo cresce ou diminui man tendo sob todos os outros aspectos a sua identidade e finalmente mudança de lugar quando um corpo sofre mudança ao deslocarse de um para outro Destes quatro tipos de mudança só o primeiro e o quarto requerem expli cação A mudança substancial é a forma mais básica de mudança implicando geração e corrupção Para Aristóteles cada mudança substancial implicava que algo tinha passado a existir porque qualquer outra coisa tinha deixado de existir Este passaraexistir e deixardeexistir das coisas era a base de toda a mudança na região terrestre Acontecia com todas as substâncias compostas de matéria e forma o que na região terrestre incluía todas as coisas As for mas ou qualidades eram potencialmente substituíveis por outras suas con trárias Quando isto sucedia uma substância era transformada noutra Por exemplo o fogo que possui as qualidades primeiras de calor e secura trans formase em terra que possui as qualidades primeiras de secura e frio quando o calor no fogo é substituído pelo frio sua qualidade ou forma con trária Enquanto uma forma exisk realmente na matéria dizse da sua contrá ria que está em privação embora tendo o potencial de substituir a forma actual Eventualmente cada forma ou qualidade potencial virá a tornarse naquilo em que é susceptível de se tomar De outro modo uma forma perma neceria irrealizada e a natureza têIaia produzido em vão Enquanto uma forma de um par de formas contrárias se realiza em matéria a sua contráría está ausente e em privação porque duas formas contrárias não podem existir em simultâneo no mesmo corpo Virtualmente tudo muda isto é geração e corrupção implicam a posse de uma forma e a exclusão da outra de um par de formas ou qualidades contrárias A última das quatro mudanças mudança de lugar representa aqUilO a que geralmente chamamos movimento a deslocação de um corpo de um lugar para outro A doutrina do lugar de Aristóteles pode ser encarada de duas maneiras No seu significado mais lato diz respeito à estrutura do mundo sublunar e no seu sentido mais estrito diz respeito ao lugar específico de um único corpo O sentido lato de lugar é na realidade a doutrina do lugar natu ral na qual Aristóteles concebeu a parte do mundo abaixo da Lua como uma região estruturada dividida em quatro regiões concêntricas sendo cada uma o lugar natural de um dos elementos e a região em direcção à qual esse ele mento se deslocaria naturalmente se estivesse livre de qualquer impedimento Assim o anel concêntrico exterior localizado logo abaixo da superfície côncava o LEGADO DE ARISTÓTELES PARA A IDADE MIDIA 167 da esfera é o lugar natural do fogo o anel concêntrico seguinte é o lugar do ar para o qual o ar se ergue quando se encontra nas regiões abaixo e para o qual cairia se por alguma razão estivesse localizado na região do fogo abaixo do ar fica o anel da água e abaixo desse a esfera da nossa Terra cujo centro coincide com o centro geométrico do Universo A esfericidade da Terra era uma verdade básica no sistema do mundo de Aristóteles Como prova observável da esfericidade da Terra Aristóteles apon tou as linhas curvas na superfície da Lua durante um eclipse lunar inferindo com toda a razão que eram projectadas pela sombra de uma Terra esférica interposta entre o Sol e a Lua Fez igualmente notar que ao mudarmos de posi ção na superfície terrestre surgiam à vista diferentes constelações indicando que a Terra possuía uma superfície esférica A esfericidade da Terra parecia ser ainda confirmada pelo modo como se observava que os corpos caíam para a superfície terrestre em linhas não paralelas que se encontravam no seu centro Se todos os corpos terrestres caíam desta maneira agruparseiam no centro do mundo e formariam naturalmente uma esfera Os argumentos de Aristóteles em favor de uma Terra esférica foram aceites de imediato Mas e quanto ao lugar de qualquer corpo particular A doutrina do lugar de Aristóteles baseiase na convicção fundamental de que o mundo é uma plenitude material na qual a existência de espaço vazio é impossíveL Daqui se depreende que o lugar de qualquer coisa na região sublunar consiste na matéria que a rodeia Ou como Aristóteles o descreveu o lugar de uma coisa é o limite do corpo continente em que este está em contacto com o corpo contido1 O limite ou superfície interior do continente devia igualmente ser destituída de movimento uma qualificação que levantou sérios problemas na história da doutrina do lugar de Aristóteles Acontecia frequentemente que quando a condição do contacto era conseguida a da imobilidade não era e viceversa No entanto quando um corpo se adequava a estas condições rigo rosas presumiase que estivesse no seu lugar próprio isto é num lugar que apenas ele ocupava Os lugares que incluíam mais do que um corpo distinto eram caracterizados como lugares comuns Na medida em que Aristóteles pressupôs que cada corpo estava em algum lugar foi inevitavelmente levado a perguntar se a superfície exterior da esfera exterior que continha o mundo estaria ela própria num lugar uma questão que equivalia a perguntar se o próprio mundo está em algum lugar Na convicção de que não existiam corpos para lá do mundo Aristóteles argumentou que se nenhum corpo material e consequentemente nenhuma superfície de um corpo podia rodear o nosso mundo nenhum corpo poderia funcionar como seu lugar Paradoxalmente embora cada corpo no mundo esteja num lugar a última esfera ou o próprio 681 os FUNDAMENTOS DA CINClA MODERNA NA IDADE MÉDIA mundo não está directamente em nenhum lugar Aparentemente constran gido por esta consequência da sua doutrina do lugar e temendo que o consi derassem inconsistente Aristóteles encontrou uma espécie de lugar para a última esfera argumentando que a última esfera está indirectamente num lugar devido às suas partes porque numa orbe cada parte contém outra2 Muitos dos comentadores de Aristóteles rejeitaram esta sua tentativa enigmá tica de atribuir um lugar à última esfera E os que o não fizeram foram fre quentemente levados a encontrar bizarras explicações para defender o mestre como quando Averróis argumentou que a última esfera está num lugar por aci dente per acddens porque o seu centro a Terra está num lugar por essência per se São Tomás de Aquino considerou ridículo dizer que a última esfera está num lugar acidentalmente simplesmente porque o centro está num lugar3 Como poderia um continente estar num lugar em virtude da coisa que contém Movimento na física de Aristóteles O movimento dos corpos foi um problema que Aristóteles abordou com frequência embora em nenhuma parte da sua obra conhecida se encontre um tratamento sistemático e abrangente desse problema A explicação que se segue é baseada em argumentações dispersas por várias das suas obras sobre tudo na Física e em Sobre os Céus Num mundo sublunar que não incluía espaços vazios e era uma plenitude material o movimento ou movimento local como era algumas vezes desig nado tinha de ser de um lugar nessa plenitude para outro Aristóteles distin guiu dois tipos de movimento natural e violento ou antinatural divisão que terá provavelmente tido origem na observação comum A divisão do movimento local em natural e violento e o conjunto de conceitos argumen tos e hipóteses tisicas associados a estes dois movimentos contrários constituí ram o cerne da física sublunar de Aristóteles Movimento natural de corpos sublunares O conceito de movimento natural de Aristóteles dependia de propriedades óbvias que ele observava nos quatro elementos terra água ar e fogo que formavam a base material de todos os corpos terrestres Viase que alguns corpos como as pedras quando caíam de uma certa altura se moviam em linha recta em direcção ao centro da Terra Outros corpos tais como o fogo e o fumo pareciam erguerse sem pre em direcção à esfera lunar afastandose do centro da Terra Dado que f I tt li 7 O LEGADO DE ARlSTOTELES PARA A IDADE MIDIA 169 se observara com base na experiência que a classe de corpos que caiam naturalmente para o centro da Terra era mais pesada do que as classes de cor pos que se erguiam Aristóteles concluiu que se não for contrariado um corpo terrestre pesado se movia naturalmente para baixo numa linha recta em direcção ao centro da Terra Assim o centro da Terra ou mais precisa mente o centro geométrico do Universo era o lugar natural de todos os cor pos pesados Em contrapartida os corpos leves moviamse naturalmente para cima em linha recta em direcção à esfera lunar Aristóteles descreveu estes movimentos naturais ascendente e descendente como acelerados Apliquemos agora estas generalizações especificamente aos quatro ele mentos Sempre que um corpo elementar composto de terra estava acima do seu próprio lugar natural quer fosse na água no ar quer na região do fogo acima do ar era considerado absolutamente pesado porque se não fosse contrariado cairia em direcção ao centro da Terra O fogo era conside rado absolutamente leve sem ser contrariado erguerseia sempre para cima e em direcção ao seu lugar natural acima do ar e abaixo da esfera lunar Para sublinhar a absoluta leveza do fogo Aristóteles declarou ser um facto palpá vel que quanto maior a quantidade de fogo mais leve é a massa e mais rápido o seu movimento ascendente Ao presumir que quanto maior a quantidade de fogo mais leve se toma e mais depressa se ergue Aristóteles parece ter dissociado a absoluta leveza do conceito de peso conceito que se toma ininteligível neste contexto Quanto à água e ao ar Aristóteles enca rouos como elementos intermédios dotados apenas de peso e leveza relati vos Quando estivesse abaixo do seu lugar natural algures dentro da terra a água subiria naturalmente mas quando se encontrasse acima do seu lugar natural no ar ou no fogo cairia Entretanto o ar cairia quando estivesse no lugar natural do fogo mas subiria quando se encontrasse no lugar natural da terra ou da água Até aqui descrevemos o comportamento natural idealizado de cada um dos quatro elementos Mas os elementos não existiam naturalmente no seu estado primitivo No mundo real os corpos eram na verdade compostos constituídos de proporções variadas de todos os quatro elementos Os corpos que caíam naturalmente para o centro da Terra faziamno porque o seu ele mento predominante era pesado quanto mais pesado o corpo maior a sua velocidade descendente aqueles que se erguiam naturalmente para cima faziamno porque eram dominados por um elemento leve quanto maior a quantidade de ar ou fogo num corpo aéreo ou ígneo maior seria a sua veloci dade ascendente k1 1 H I 10 I os FUNDAMENTOS DA CI1NCIA MODERNA NA IDADE M1DIA Três pares de opostos desempenhavam um papel significativo na interpre tação aristotélica da estrutura do mundo terrestre ou sublunar Podem ser esquematizados como segue 1 Superfície côncava da esfera lunar Centro geométrico do Universo ou centro da Terra 2 Ascendente Descendente 3 Leveza absoluta fogo Peso absoluto terra Estes pares de opostos eram utilizados como condições de fronteira vir tuais para a explicação de Aristóteles do movimento dos corpos A coluna da esquerda diznos que um corpo absolutamente leve fogo se ergueria natu ralmente num movimento ascendente rectilíneo em direcção à esfera lunar enquanto a da direita nos informa que um corpo absolutamente pesado cairia naturalmente para baixo em linha recta em direcção ao centro da Terra Embora Aristóteles soubesse que a terra era mais densa do que o ar e a água teria negado que a densidade pudesse explicar a queda de uma pedra através do ar ou da água Uma pedra apenas cai porque é absolutamente pesada O fogo não se ergue em direcção ao seu lugar natural perto da superfkie da esfera lunar por ser menos denso do que a terra a água ou o ar mas antes por ser absolutamente leve Na realidade o fogo nem sequer possui peso no seu próprio lugar natural de modo que se o ar abaixo dele fosse retirado o fogo não cairia nem se moveria para baixo Retrospectivamente podemos ver que a introdução das noções de peso e leveza absolutos feita por Aristóteles dificil mente conduziria ao progresso da física embora o próprio Aristóteles a con siderasse um aperfeiçoamento significativo relativamente a Platão e aos ato mistas que tinham atribuído peso a todas as coisas e para os quais o peso era um conceito relativo Das duas possibilidades que se lhe apresentavam Aris tóteles escolheu aquela que historicamente viria a revelarse menos útil Con tudo fêlo por ter tornado o seu sistema dependente em elevado grau de uma diversidade de contrários absolutos preferindo evitar as comparações relati vistas de Platão e dos atomistas Para oferecer uma explicação causal para o movimento natural e como veremos para o movimento violento ou antinatural Aristóteles invocou o princípio geral de que para cada efeito há uma causa e pressupôs que cada coisa animada e inanimada capaz de se mover é movida por qualquer outra coisa que se encontra ela própria em movimento ou em repouso5 Ou para citar a versão sucinta medieval deste princípio toda a coisa que é movida é movida por uma outra A coisa que fazia mover e a coisa que era movida o LEGADO DE ARISTÓTELES PARA A IDADE MEDIA 111 eram sempre consideradas entidades distintas Embora pudesse parecer que os movimentos naturais não requeriam explicações causais na medida em que são naturais Aristóteles atribuiu um agente específico chamado generans ou gerador na Idade Média como causa primeira do movimento natural O agente causador ou gerador era a coisa que tinha inicialmente produzido o corpo agora em movimento Por exemplo um fogo produz outro fogo como quando se incendeia uma acha e confere ao novo fogo todas as propriedades que pertencem ao fogo sendo uma delas a capacidade espontânea de se erguer naturalmente quando não constrangido De modo semelhante qual quer agente natural que produz uma pedra conferelhe todas as suas proprie dades essenciais incluindo a tendência natural para cair para a Terra quando é retirada do seu lugar natural Embora tendo identificado o generans ou gerador de uma coisa como uma espécie de remota causa motriz no movimento natural Aristóteles inter pretou a queda de um corpo como se o seu peso fosse a causa imediata do seu movimento natural descendente e encarou a subida de um corpo como se a sua leveza fosse a causa imediata do seu movimento natural ascendente Par tindo do príncipio que todas as outras coisas são iguais Aristóteles pôde con cluir que a velocidade é directamente proporcional ao peso do corpo em movimento natural e inversamente proporcional à resistência que encontra medida pela densidade do meio através do qual o corpo se move e que o tempo do seu movimento é directamente proporcional à resistência ou den sidade do meio e inversamente proporcional ao seu peso Por exemplo a velocidade de um corpo podia ser duplicada quer duplicando o seu peso mas mantendo o meio constante quer reduzindo para metade a densidade do meio e mantendo constante o peso do corpo De modo idêntico o inter valo de tempo associado movimento podia ser duplicado quer duplicando a densidade do meio mas mantendo o peso constante quer reduzindo para metade o peso do corpo e mantendo constante a densidade do meio Embora reconhecendo que os corpos pesados não constrangidos aceleravam quando se aproximavam do seu lugar natural Aristóteles discutiu os movi mentos naturais como se as suas velocidades fossem uniformes Movimento violento ou antinatural de corpos sublunares Os movimentos que são violentos ou antinaturais ocorrem quando os corpos são impelidos para fora ou para longe dos seus lugares naturais Assim uma pedra que é lançada rectilinearmente para cima para o ar ou é arremessada numa trajec tória horizontal está em movimento violento o movimento de um fogo que é de algum modo forçado para baixo a partir do seu lugar natural e em 72 I os FUNDAMENTOS DA CillNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA direcção à Terra é antinatural ou violento De igual modo o movimento do ar quando é forçado a sair do seu lugar natural para baixo em direcção à terra ou para cima em direcção ao lugar natural do fogo é caracterizado por um movimento violento Aristóteles formulou regras específicas em que descre veu as consequências que adviriam da aplicação de uma força motriz a um objecto que lhe resistisse Embora essas regras sejam expressas em termos de força corpo resistente distância atravessada e tempo em vez de serem expressas directamente em termos de velocidade esta última permite um resumo mais apropriado A velocidade de um corpo em movimento violento é inversamente proporcional ao seu próprio poder de resistência que é dei xado indefinido e directamente proporcional ao poder motriz ou força apli cada Em símbolos Voe FR em que V é a velocidade F a força motriz e R a resistência total oferecida à força aplicada uma quantidade que presumivel mente inclui o objecto ou corpo resistente mais a resistência do meio externo em que o movimento ocorre Para duplicar uma velocidade V a resistência R poderia ser reduzida a metade e F mantida constante ou F duplicada e R mantida constante Para reduzir Va metade F poderia ser reduzida a metade e R mantida constante ou R duplicada e F mantida constante O movimento violento exigiu uma explicação causal radicalmente dife rente da atribuída ao movimento natural O motor inicial ou agente causal era identificado de imediato porque tinha de estar em contacto físico directo com o corpo que fazia mover Alguém que atira uma pedra para cima ou empurra um carro por uma estrada é o motor ou energia motriz desses movimentos violentos Mas a fonte de energia que permitia a um corpo con tinuar o seu movimento depois de perdido o contacto com o seu motor ini cial estava muito longe de ser óbvia Por exemplo como podia uma pedra continuar o seu movimento depois de perder o contacto com a mão que a lançara Aristóteles defendeu que o meio externo no exemplo da pedra o ar era a fonte do movimento contínuo Acreditava que o motor original não só punha a pedra em movimento como ainda e simultaneamente activava o ar Aparentemente a primeira porção ou unidade de ar activada empurra a pedra e ao mesmo tempo activa a segunda unidade de ar adjacente que faz mover a pedra um pouco mais para a frente A segunda unidade por seu turno activa simultaneamente a seguinte ou terceira unidade de ar e assim por diante A medida que o processo decorre a força motriz das sucessivas unidades de ar vai progressivamente diminuindo até que se atinge uma uni dade de ar que é apenas capaz de activar a unidade de ar imediatamente a seguir mas incapaz de lhe comunicar a força para mover o corpo para mais o LEGADO DE ARiSTÓTELES PARA A iDADE MeDIA 173 longe Nesse ponto a pedra começa a cair com o seu movimento natural des cendente Através deste mecanismo Aristóteles utilizou ao mesmo tempo o meio como força motriz e resistência Não só acreditava que o meio como força motriz tinha de estar em contacto constante com o corpo que fazia mover como estava também convencido de que o mesmo meio tinha de flm cionar como um travão do movimento desse corpo a fim de prevenir o impos sível a ocorrência de uma velocidade infinita ou de um movimento instantâ neo Aristóteles considerou óbvio que a resistência ao movimento aumentava à medida que aumentava a densidade do meio e decrescia à medida que o meio se rarefazia Dado que uma rarefacção ilimitada do meio resultaria num aumento da velocidade proporcional e ilimitado Aristóteles concluiu que se o meio desaparecesse por completo deixando um vácuo o movimento seria ins tantâneo ou para além de qualquer proporção segundo as suas palavras O absurdo de uma velocidade infinita foi apenas um entre vários argu mentos que levaram Aristóteles a rejeitar a existência de um vácuo Os princí pios fundamentais que ele considerava activos no mundo seriam inúteis em espaços vazios O movimento seria impossível por uma série de razões A natureza homogénea de um espaço vazio contínuo significava que cada parte tinha de ser idêntica a qualquer outra parte Dado que não poderiam existir lugares naturais diferenciáveis num espaço homogéneo os corpos não teriam qualquer motivo válido para se moverem numa direcção em vez de noutra Os movimentos naturais seriam impossíveis tal como o seriam os movimen tos violentos porque o meio externo que Aristóteles considerava essencial para o movimento violento estaria ausente Se o vazio fosse infinito e o movi mento pudesse de algum modo ocorrer esse movimento ou seria eterno pois o que poderia fazer parar um corpo em movimento num vácuo de que estavam ausentes outros corpos e lugares naturais que o fizessem parar ou na ausência de resistências externas seria instantâneo Entre os restantes argumentos de Aristóteles contra o vazio um é digno de nota Corpos de pesos diferentes cairiam necessariamente a velocidades iguais no vácuo o que Aristóteles considerava um absurdo pois deviam cair a velocidades directa mente proporcionais aos respectivos pesos Mas esta última relação só podia ocorrer num plenum onde um corpo mais pesado abrisse caminho através do meio material mais facilmente do que o faz um corpo menos pesado Na ausência de um meio Aristóteles não descortinava uma razão plausível para que um corpo se movesse a uma velocidade maior do que a de outro Con cluiu pois que o mundo era necessariamente um plenum cheio de matéria em todos os seus pontos 741 OS FUNDAMENTOS DA CItlNClA MODERNA NA IDADE MÉDIA RegiãO celeste incorruptível e imutável A parte do mundo que Aristóteles visualizava para além da superfície con vexa da esfera do fogo era radicalmente diversa da parte terrestre acabada de descrever Aristóteles considerava a região celeste tão incomparavelmente superior à terrestre que lhe atribuiu propriedades que sublinhavam essas pro fundas diferenças Se a incessante mudança era básica para a região terrestre então a ausência de mudança teria de caracterizar a região celeste Esta con vicção foi reforçada em Aristóteles pela sua crença de que os registos huma nos não revelavam modificações nos céus Dado que os quatro elementos da região sublunar estavam envolvidos em incessante mudança eram obvia mente inadequados para os céus imutáveis Em Sobre os Céus livro 1 caps 2 e 3 Aristóteles estabeleceu o contraste entre o movimento rectilíneo natural dos quatro elementos sublunares terra água ar e fogo e o movimento cir cular regular observável e aparentemente natural dos planetas e das estrelas fixas da região celeste O contraste entre a linha recta e o círculo a primeira finita e incompleta o segundo fechado e completo em si próprio convenceu Aristóteles de que a figura circular era necessária e naturalmente superior à figura rectilínea Dado que os quatro corpos elementares se moviam num movimento natural rectilíneo ascendente e descendente Aristóteles con cluiu que o movimento circular dos corpos celestes observado tinha necessa riamente de estar associado a uma espécie diferente de corpo elementar sim ples um quinto elemento ou éter Como que para sublinhar a importância especial do éter Aristóteles cha mavalhe frequentemente primeiro corpo As suas propriedades primitivas eram quase o oposto das dos elementos terrestres Enquanto os elementos ter restres se moviam naturalmente em movimentos rectilíneos o éter moviase naturalmente num movimento circular um movimento superior porque a circunferência era uma figura completa em si mesma ao passo que a linha recta não o era Enquanto os quatro elementos e os corpos compostos por eles se encontravam em estado de fluxo constante o éter celeste não sofria mudanças de substância de quantidade ou de qualidade A mudança substancial era impossível porque Aristóteles pressupunha que os pares de qualidades opos tas ou contrárias tais como calor e frio humidade e secura rarefeito e denso que eram forças básicas para a mudança na região terrestre estavam ausentes dos céus e por conseguinte não desempenhavam aí qualquer papel A rejei ção de qualidades contrárias nos céus levou Aristóteles a negar também a existência das qualidades contrárias de leveza e peso de onde concluiu que o éter celeste não podia ser leve nem pesado As qualidades leveza e peso na O LEGADO DEARISTOTELES PARA A IDADEMIDIA 175 região terrestre estavam associadas a movimentos rectilíneos ascendentes e descendentes os corpos pesados aproximavamse da Terra quando se moviam naturalmente para baixo e os corpos leves afastavamse da Terra quando se moviam naturalmente para cima Na ausência de peso e leveza na região celeste Aristóteles inferiu que os movimentos rectilíneos não podiam ali ocorrer Assim não só era evidente pela observação que os movimentos celestes eram circulares como também de acordo com as propriedades do próprio éter era óbvio para Aristóteles que os movimentos rectilíneos eram impossíveis na região celeste Dado que se pode observar que planetas e estrelas se movem no céu Aristó teles supôs que a mudança de posição era o único tipo de mudança possível nos céus Os corpos celestes mudam continuamente de posição deslocandose pelo céu num movimento sem esforço uniforme e circular Este movimento circular uniforme é um movimento natural tal como os movimentos rectilíneos ascen dentes e descendentes são naturais para os corpos terrestres Mas enquanto os movimentos ascendente e descendente eram movimentos terrestres contrários o movimento circular não tinha contrário Aristóteles concluiu que o movi mento circular para o qual não havia movimento contrário era natural para os corpos compostos de éter celeste para o qual não havia qualidades contrárias Na ausência de todos os contrários a mudança tal como era observada na região terrestre não podia ocorrer nos céus etéreos Os corpos celestes tinham de se deslocar eternamente através dos céus num movimento natural uniforme e circular Embora mudassem de posição a ausência de contrários impedia variações nas suas distâncias Aristóteles pressupôs assim que os corpos celes tes nem se aproximavam nem se afastavam da Terra Aristóteles associava a mudança à matéria mas negava que houvesse mudança nos céus Deveria concluirse daí que os céus careciam de matéria e que o éter celeste independentemente do que pudesse ser não devia ser consi derado como matéria Quanto a esta importante questão os comentários de Aristóteles são inconclusivos e os filósofos naturais da Idade Média tiveram liberdade para reflectir sobre o seu significado Ambas as interpretações a de que a matéria existia nos céus e a de que não existia tiveram os seus apoiantes Quer fosse quer não fosse concebido como matéria o éter celeste levantava outros problemas Sendo uma substância perfeita que se estendia desde a tua até às estrelas fixas Aristóteles parece ter considerado o éter como homogéneo com todas as suas partes idênticas entre si Um olhar para os céus deveria ter sido suficiente para eliminar uma tal noção No mínimo a região celeste consis tia em corpos visíveis rodeados por porções de céu vazias uma configuração 761 os FUNDAMENTOS DA ClNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA que dificilmente poderia sugerir homogeneidade Se os corpos celestes e o céu vazio eram ambos compostos do mesmo éter porque diferiam Porque eram os planetas e as estrelas visíveis e o resto do céu para todos os efeitos invisí veis Porque variavam as suas propriedades Talvez estas questões nunca tivessem ocorrido a Aristóteles por isso ele não lhes deu resposta nenhuma Quando este tipo de questões surgiram aos seus comentadores gregos árabes e latinos estes tiveram de idealizar as suas próprias respostas um destino comum a todos aqueles que dedicaram uma grande parte das suas vidas a des vendar o significado dos textos de Aristóteles Aristóteles foi no entanto muito claro no que diz respeito à natureza dos espaços celestes vazios Estavam cheios de esferas etéreas invisíveis transpa rentes encaixadas umas nas outras e cada uma delas girava num movimento regular e uniforme Os corpos celestes planetas e estrelas fixas estavam de algum modo embutidos nessas esferas que os levavam consigo Aristóteles baseou o seu sistema nos anteriores sistemas matemáticos de esferas concên tricas idealizados por Eudóxio de Cnido e Calipo de Cízico no século IV a C No esquema deste último sobre o qual Aristóteles fundou directamente a sua cosmologia de esferas concêntricas ao planeta Saturno por exemplo era atri buído um total de quatro esferas que justificariam a sua posição celeste Des tas uma dava conta do movimento diário de Saturno outra do seu movi mento próprio ao longo do zodíaco ou eclíptica e as duas restantes represen tavam os seus movimentos retrógrados observados ao longo do zodíaco Aristóteles transformou as esferas matemáticas de Calipo num sistema de orbes celestes físicos reais centrados na Terra e que eram coextensos com a regiãO celeste A fim de impedir a transmissão dos movimentos zodiacal e retrógrado de Saturno para Júpiter o planeta logo abaixo de Saturno Aristó teles atribuiu a Saturno três esferas neutralizadas que giravam em sentidos contrários e que anulavam os movimentos das outras A finalidade destas três esferas era contrariar o movimento de três das quatro esferas de Saturno com excepção da esfera que representava o movimento diário como o movimento diário era comum a todos os planetas a cada um era atribuída uma esfera especial destinada a dar continuidade admitindose assim que o movimento diário fosse transmitido através de cada conjunto de esferas planetárias Como o explica D R Dicks Assim para as quatro esferas de Saturno A B C e D postulase uma esfera neutralizante D colocada dentro de D a esfera mais próxima da Terra e que transporta o planeta no seu equador e que roda em tomo dos mesmos pólos e à mesma velocidade que D mas na direcção O LEGADO DE ARISTÓTELES PARA A IDADE MÉDIA 177 oposta de modo que os movimentos de D e D se anulam um ao outro e cada ponto em D parecerá moverse apenas devido ao movimento de C Dentro de D é colocada uma segunda esfera neutralizante C desempe nhando a mesma função relativamente a C que D desempenha para D e dentro de C existe uma terceira esfera de movimento inverso ao de B que de modo semelhante neutraliza o movimento de B O resultado final é que o único movimento restante é o da esfera exterior do con junto representando a rotação diária de modo que as esferas de Júpi ter o planeta logo abaixo podem agora descrever as suas próprias revoluções como se as de Saturno não existissem Do mesmo modo as esferas neutralizantes de Júpiter abrem caminho às de Marte e assim por diante sendo o número de esferas neutralizantes em cada caso menor em uma unidade do que o número original de esferas de cada conjunto até chegarmos à Lua que sendo o último dos corpos plane tários isto é o mais próximo da Terra não precisa de acordo com Aristóteles de esferas neutralizantes Em vez das quatro esferas que Calipo considerou necessárias para explicar o movimento de Saturno verificamos que Aristóteles lhe atribuiu sete De modo semelhante pensou ser necessário acrescentar esferas neutralizantes de movimento contrário às de todos os planetas à excepção da Lua localizada directamente acima da região sublunar Aristóteles afastase pois do sistema de Calipo de trinta e três esferas matemáticas ou hipotéticas para os cin quenta e cinco orbes físicos Uma questão importantíssima colocavase de imediato que levava os orbes a moveremse com um movimento uniforme circular transportando os planetas e as estrelas Aristóteles deixou a este respeito uma herança dupla e incompatível No seu tratado cosmológico Sobre os Céus recorreu a um prin cípio interno do movimento ao descrever o éter celeste como um ucorpo sim ples naturalmente constituído de tal modo que moverse num círculo é vir tude da sua própria natureza 21284 a 1415 Mas na Física e na Metafisica Aristóteles pressupôs que os motores espirituais externos ou inte ligências eram os agentes causais dos movimentos rotativos dos orbes celes tes Neste esquema Aristóteles presumiu que cada orbe tIsico tinha o seu pró prio motor imaterial o qual se bem que completamente imóvel estava eter namente apto a fazer com que o orbe anunciado se movesse sem esforço ao redor da Terra num movimento circular uniforme Estes motores uinamo víveis ou uinamovidos eram únicos no mundo porque eram susceptíveis de causar movimento sem que eles próprios estivessem em movimento 781 os FUNDAMENTOS DA CIENCIA MODERNA NA IDADE MEDIA A regressão potencialmente infinita de causas e efeitos para todos os movimen tos interrompiase nos motores inamovidos que eram pois as fontes últimas e imóveis de todos os movimentos Embora Aristóteles se referisse a cinquenta e cinco motores inamovidos o seu conceito de Deus concentravase no motor inamovido associado à esfera das estrelas fixas a fronteira do mundo Para Aristóteles o mais remoto dos motores inamovidos era o primeiro motor que desfrutava do estatuto especial de primeiro entre iguais No entanto o seu papel como motor celeste em nada diferia do dos outros motores inamovidos ou inteligências como algumas vezes eram designados Mas como podia um motor inamovido imaterial determinar que um orbe físico se movesse Produz movimento por ser amado foi a resposta de Aristó teles Metafisica 1271072b34 Aristóteles deixou por dizer precisamente o que pretendia explicar Como se relacionavam a causa motora e a coisa movida Esta sua frase de sentido obscuro não só veio pôr à prova o engenho dos muitos comentadores subsequentes como também originou a ideia intri gante do amor como uma força motriz cósmica que parece ter captado a imagi nação de poetas e menestréis No último verso da Divina Comédia Dante fala de O amor que move o Sol e as outras estrelas lamor che move iI sole e laltre stelle e uma canção anónima francesa proclama O amor o amor faz girar o mundo Lamour amour Jait toumer le mondeB E se bem que não lhe tenha surgido qualquer contrapartida em lingua inglesa na Idade Média ou na Renas cença esta ideia do amor emergiu finalmente na opereta de Gilbert e Sullivan Iolanthe onde ficamos a saber que Ê o amor que faz girar o mundo9 Embora não haja de modo algum a certeza de que Aristóteles seja a fonte destes senti mentos poéticos ele é seguramente um se não o principal candidato Tendo caracterizado o éter celeste como substância divina e incorruptível e encarado a matéria terrestre como fonte de incessante mudança através da geração e da corrupção Aristóteles estava convencido de que a região celeste imutável exercia uma influência dominante sobre a região terrestre sempre em mudança Era próprio de uma coisa mais nobre e perfeita influenciar uma coisa menos nobre e menos perfeita Daqui decorria também um reforço poderoso da crença astrológica tradicional Os vários modos como o dominio celeste se efectivava viriam a alimentar as especulações dos filósofos naturais até ao final do século XVII altura em que a concepção do Cosmo foi radical mente alterada Mas tal como com a causa do movimento celeste Aristóteles deixou a este respeito um legado ambíguo Embora acreditasse que os cor pos terrestres estavam sujeitos ao domínio celeste acreditou igualmente que pudessem causar efeitos por si próprios não sendo pois meras entidades O LEGADO DE ARISTOTELES PARA A IDADE MEDIA 179 passivas dependentes de causas celestes Como entidades compostas de maté ria e forma os corpos terrestres possuíam as suas próprias naturezas capazes de causar efeitos Um corpo pesado caía para o centro da Terra não em vir tude de qualquer poder celeste mas porque possuía uma natureza que lhe permitia fazêlo sempre que não houvesse qualquer impedimento Cada espé cie de ser animado e inanimado tinha aspectos e propriedades característicos que permitiam aos seus membros individuais agir de acordo com essas pro priedades O responsável pela actividade celeste e pela sua influência nos assuntos terrestres era indubitavelmente o Sol cujas influências eram manifestas e pal páveis A sua deslocação anual ao longo da eclíptica originava as estações que por sua vez davam origem a várias gerações e corrupções A geração humana dependia também do Sol como o evidencia a muito citada frase de Aristóteles de que o homem é gerado pelo homem e igualmente pelo 50110 A excepção da Lua as provas de actividade celeste dos outros planetas eram quase inexis tentes No entanto Aristóteles pressupôs que estavam também activamente envolvidos na mudança terrestre Mas foi incapaz de explicar como as activi dades dos corpos celestes excluindo o Sol se relacionavam com as naturezas independentes dos corpos terrestres Uma vez mais os comentadores subse quentes ficavam entregues às suas próprias elucubrações A maioria das principais ideias e conceitos de Aristóteles sobre o mundo físico acabou de ser descrita Essas opiniões de Aristóteles contribuíram para moldar a explicação medieval das mudanças que ocorriam na região terrestre e esclarecer porque não ocorriam mudanças na região celeste As ideias aqui descritas formam o cerne da filosofia natural medieval e algumas delas impulsionaram novas áreas do pensamento As ideias de Aristóteles não só forneceram o esqueleto da filosofia natural medieval como também muitos dos seus músculos e tecidos E no entanto há temas sobre os quais Aristóte les pouca orientação deixou quer porque o tópico lhe era desconhecido quer porque pouco tinha a dizer a seu respeito Noutras ocasiões foi vago ou ambíguo e os seus comentadores tiveram de tirar as suas próprias conclusões Outras vezes as suas explicações revelaramse inadequadas e exigiram substi tuição Em alguns casos as suas interpretações foram drasticamente modifi cadas com base na experiência como sucedeu com o seu sistema de orbes concêntricos ou com base na teologia cristã como foi o caso da eternidade do mundo No entanto a maioria das ideias de Aristóteles foi utilizada como o melhor e o mais fiável guia para a compreensão da natureza e das suas obras Para os estudiosos medievais Aristóteles era o verdadeiro Filósofo 80 I os FUNDAMENTOS DA CINCA MODERNA NA IDADE MllDIA No seu comentário ao Sobre os Céus caelo Averróis prestou a Aristóteles a mais honrosa homenagem ao declarar que o filósofo era A regra e o exemplo que a natureza idealizou para mostrar a perfeição última do homem os ensinamentos de Aristóteles são a suprema ver dade porque a sua mente era a expressão última da mente humana Daí que se tenha afirmado com toda a razão que foi criado e nos foi dado pela divina providência para virmos a saber tudo o que é possível saberse Louvemos a Deus por ter colocado este homem à parte de todos os outros no que respeita à perfeição e de lhe ter permitido apro ximarse tão perto da mais elevada dignidade que à humanidade foi permitido atingir J David Knowles um historiador de filosofia medieval não exagerava ao considerar este como o mais impressionante panegírico alguma vez prestado por um grande filósofo a outro12 Na verdade Averróis considerou Aristóte les quase infalível porque ao longo de mil anos não fora detectado nenhum erro nos seus escritosll Aristóteles era também muito admirado no Ocidente Latino Dante falou por muitos ao descrever Aristóteles como o Mestre daqueles que sabem São Tomás de Aquino encarava Aristóteles como alguém que atingira o nível mais elevado do pensamento humano sem o beneficio da fé cristã Poderia suporse que com tão reverentes atitudes os estudiosos medievais teriam tentado permanecer tão próximo quanto possível do grande mestre Mas pelos motivos já aduzidos afastaramse frequentemente No capítulo 6 irei descrever o modo como os discípulos e os admiradores medievais de Aristóte les modificaram e expandiram a sua filosofia natural mesmo defendendo os seus prindpios básicos e permanecendo fiéis ao seu espírito Antes porém descreverei a introdução turbulenta da filosofia natural aristotélica na Europa durante o século XIII ENSINAMENTOS ARISTOTIlLICOS E os TEOLOGOS I 81 5 O acolhimento e o impacto dos ensinamentos aristotélicos e a reacção da Igreja e dos seus teólogos Existiam importantes pontos de conflito entre a doutrina da Igreja e as ideias defendidas nos livros de filosofia natural de Aristóteles A introdução das obras de Aristóteles na Cristandade Latina no século XIII era potencial mente problemática para a Igreja e os seus teólogos O choque que era quase inevitável não tardou e parece ter sido particularmente violento na Universi dade de Paris que possuía a maior escola teológica da Idade Média Latina e uma das melhores e maiores faculdades de artes No entanto nunca se deverá permitir que o conflito que se gerou obscureça o facto mais importante ou seja que as obras traduzidas de Aristóteles foram entusiasticamente acolhidas e muito respeitadas tanto por mestres em artes como por teólogos Na reali dade a filosofia de Aristóteles foi tão calorosamente recebida que por muito que o tentassem as forças contra ela reunidas viramse incapazes de prevalecer Condenação de 1277 A luta contra Aristóteles concentrouse na Universidade de Paris e nos seus arredores Em 1210 pouco depois de as obras de Aristóteles sobre filoso fia natural terem ficado disponíveis em latim o sínodo diocesano de Sens decretou que os livros de Aristóteles sobre filosofia natural e todos os seus comentários não podiam ser lidos em Paris quer em público quer em pri vado sob pena de excomunhão Confinada à região de Paris esta interdição foi repetida em 1215 especificamente para a Universidade de Paris A 13 de Abril de 1231 a mesma interdição foi modificada e recebeu uma sanção do papa Gregório IX que numa famosa bula Parens scientiarum frequente mente chamada por outras razões Magna Carta da Universidade de Paris ordenou que os tratados ofensivos de Aristóteles fossem expurgados de erro para essa tarefa nomeou a 23 de Abril uma comissão de três individuos Por motivos até hoje desconhecidos a comissão papal não chegou a apresentar