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Milton Santos Por uma outra globalização do pensamento único ã consciência universal 6 a EDIÇÃO E D I T O R A R E C O R D R I O D E J A N E I R O S Ã O P A U L O 2001 2 8 4 5 2 CIPBrasil Catalogaçaonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Santos Milton S236p Por uma outra globalização do pensamento único 6 ed à consciência universal Milton Santos 6 ed Rio de Janeiro Record 2001 ISBN 8501058785 1 Globalização 2 Civilização moderna 3 Política econômica 4 Ciência política I Título CDD 3034 000220 CDU 31642 Copyright 2000 by Milton Santos Capa Campos GeraisWashington Lessa Direitos exclusivos desta edição reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA SA Rua Argentina 171 Rio de Janeiro RJ 20921380 Tel 25852000 Impresso no Brasil ISBN 8501058785 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23052 Rio de Janeiro RJ 20922970 EDITORA AFILIADA Sumário Prefácio 11 I INTRODUÇÃO GERAL 1 7 1 O mundo como fábula como perversidade e como possibilidade O mundo tal como nos fazem crer a globalização como fábula O mundo como é a globalização como perversidade 19 O mundo como pode ser uma outra globalização 2 0 I I A PRODUÇÃO DA GLOBALIZAÇÃO 2 3 Introdução 23 2 A unicidade técnica 2 4 3 A convergência dos momentos 27 4 O motor único 29 6 MILTON SANTOS 5 A cognoscibilidade do planeta 31 6 Um período que é uma crise 33 I H U M A GLOBALIZAÇÃO PERVERSA 3 7 Introdução 37 7 A tirania da informação e do dinheiro e o atual sistema ideológico 38 A violência da informação 38 Fábulas 40 A violência do dinheiro 43 As percepções fragmentadas e o discurso único do mundo 44 8 Competitividade consumo confusão dos espíritos globalitarismo 46 A competitividade a ausência de compaixão 46 O consumo e o seu despotismo 48 A informação totalitária e a confusão dos espíritos 50 Do imperialismo ao mundo de hoje 51 Globalitarismos e totalitarismos 53 9 A violência estrutural e a perversidade sistêmica 55 O dinheiro em estado puro 56 A competitividade em estado puro 57 A potência em estado puro 58 A perversidade sistêmica 58 10 Da política dos Estados à política das empresas 61 Sistemas técnicos sistemas filosóficos 62 Tecnociência globalização e história sem sentido 64 As empresas globais e a morte da política 67 POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 11 Em meio século três definições da pobreza 69 A pobreza incluída 70 A marginalidade 70 A pobreza estrutural globalizada 72 O papel dos intelectuais 74 12 O que fazer com a soberania 76 I V O TERRITÓRIO DO DINHEIRO E DA FRAGMENTAÇÃO 7 9 Introdução 79 13 O espaço geográfico compartimentação e fragmentação 80 A compartimentação passado e presente 82 Rapidez fluidez fragmentação 83 Competitividade versus solidariedade 85 14 A agricultura científica globalizada e a alienação do território 88 A demanda externa de racionalidade 89 A cidade do campo 91 15 Compartimentação e fragmentação do espaço o caso do Brasil 92 O papel das lógicas exógenas 92 As dialéticas endógenas 94 16 O território do dinheiro 116 Definições 116 O dinheiro e o território situações históricas 97 Metamorfoses das duas categorias ao longo do tempo 98 O dinheiro da globalização 100 Situações regionais 102 8 MILTON SANTOS Efeitos do dinheiro global 104 Epílogo 104 17 Verticalidades e horizontalidades 105 As verticalidades 105 As horizontalidades 108 A busca de um sentido 111 18 4 esquizofrenia do espaço 112 Ser cidadão num lugar 113 O cotidiano e o território 114 Uma pedagogia da existência 116 V LIMITES A GLOBALIZAÇÃO PERVERSA 1 1 7 Introdução 117 19 A variável ascendente 118 20 Os limites da racionalidade dominante 120 21 O imaginário da velocidade 121 Velocidade técnica e poder 122 Do relógio despótico às temporalidades divergentes 124 22 Justintime versus o cotidiano 126 23 Um emaranhado de técnicas o reino do artifício e da escassez Do artifício à escassez 128 Da escassez ao entendimento 130 P O R UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 24 Papel dos pobres na produção do presente e do futuro 132 25 A metamorfose das classes médias 134 A idade de ouro 135 A escassez chega às classes médias 137 U m dado novo na política 139 V I A TRANSIÇÃO EM MARCHA 1 4 1 Introdução 141 26 Cultura popular período popular 142 Cultura de massas cultura popular 143 As condições empíricas da mutação 145 A precedência do homem e o período popular 147 27 A centralidade da periferia 149 Limites à cooperação 149 O desafio ao Sul 151 28 A nação ativa a nação passiva 154 Ocaso do projeto nacional 155 Alienação da nação ativa 155 Conscientização e riqueza da nação passiva 157 29 A globalização atual não é irreversível 159 A dissolução das ideologias 159 A pertinência da utopia 160 Outros usos possíveis para as técnicas atuais 163 Geografia e aceleração da história 165 U m novo mundo possível 167 MILTON SANTOS Prefácio Este livro quer ser uma reflexão independente sobre o nosso tempo um pensamento sobre os seus fundamentos materiais e políticos uma vontade de explicar os problemas e dores do mundo atual Mas apesar das dificuldades da era presente quer também ser uma mensagem portadora de razões objetivas para prosseguir vivendo e lutando O trabalho intelectual no qual ele assenta é fruto de nossa dedicação ao entendimento do que hoje é o espaço geográfico mas é também tributário de outras realidades e disciplinas aca dêmicas Diferentemente de outros livros nossos o leitor não encon trará aqui listagens copiosas de citações Tais livros enfocavam questões da sociedade verdadeiras teses isto é demonstrações sustentadas e ambiciosas dirigidas sobretudo à seara acadêmi ca levando por isso o autor a fazer ao pequeno mundo dos colegas a concessão das bibliografias copiosas Todo mundo sabe que esta se tornou quase uma obrigação de scholarship já que a academia gosta muito de citações quantas vezes ociosas e até mesmo ridículas Sem dúvida este livro também se dirige a es tudiosos mas sobretudo deseja alcançar o vasto mundo o que 30 A história apenas começa 170 A humanidade como um bloco revolucionário A nova consciência de ser mundo 172 A grande mutação contemporânea 173 1 2 MILTON SANTOS dispensa a obrigação cerimonial das referências Não quer isso dizer que o autor imagine haver sozinho redescoberto a roda sua experiência em diferentes momentos do século e em diver sos países e continentes é também a experiência dos outros a quem leu ou escutou Mas a originalidade é a interpretação ou a ênfase própria a forma individual de combinar o que existe e o que é vislumbrado a própria definição do que constitui uma idéia Este livro resulta de um longo trabalho árduo e agradável A maioria grande de seus capítulos é inédita em sua forma atual E é também de algum modo uma reescritura de aulas confe rências artigos de jornais e revistas entrevistas à mídia cada qual oferecendo um nível de discurso e a respectiva dificuldade So mos muitíssimo gratos a todos os que colaboraram para esse diálogo e até mesmo àqueles que desconheciam estar participan do de uma troca Dentre os primeiros quero destacar os atuais companheiros do projeto acadêmico ambicioso que desde 1983 venho conduzindo no Departamento de Geografia da Univer sidade de São Paulo minha incansável colaboradora doutora Maria Laura Silveira que leu o conjunto do manuscrito e a pro fessora doutora Maria Angela Faggin Pereira Leite assim como as doutorandas Adriana Bernardes Cilene Gomes e Mónica Arroyo e os mestrandos Eliza Almeida Fábio Contei Flávia Grimm Lídia Antongiovanni Marcos Xavier Paula Borin e Soraia Ramos Ao Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas que me acolhe e estimula e particularmente ao Laboratório de Geografia Política e Plane jamento Territorial e Ambiental Laboplan coordenado por meu velho amigo Armen Mamigonian vão também meus agra decimentos Estes também incluem os colegas Maria Adélia A POR U M A OUTRA GLOBALIZAÇÃO 13 de Souza Rosa Ester Rossini e Ana Clara Torres Ribeiro com quem colaboro há cerca de 20 anos Aos colaboradores gratuitos encontrados em inúmeras vi agens pelo país ou participantes de conferências debates e congressos sou também devedor pelas suas intervenções e sugestões Sou grato à Folha de S Paulo e ao Correio Braziliense pela autorização para republicação de artigos meus na sua forma original ou modificada Ainda no capítulo dos agrade cimentos uma palavra especial vai à geógrafa Flávia Grimm que teve a paciência de acolher os cansativos ditados de ma nuscrito de que resulta este livro A assistência da geógrafa Paula Borin outra vez mostrouse valiosa Sou também muito sensível ao apoio recebido do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq da Fun dação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FAPESP Essas agências não contribuíram diretamente para este trabalho mas a produção intelectual é sempre unitária uma obra ou pesquisa sendo sempre um subproduto das de mais Também como sempre o estímulo recebido de minha mulher Marie Hélène foi muito precioso Ao contrário de um autor francês Joêl de Rosnay que no prefácio ao seu livro Le Macroscope sugeriu aos seus leitores co meçar a leitura por onde quisessem devo fazer uma outra ad vertência Se alguém ler inicialmente ou separadamente os pri meiros capítulos pode considerar o autor pessimista e quem preferir os últimos poderá imaginálo um otimista Na realida de o que buscamos foi de um lado tratar da realidade tal como ela é ainda que se mostre pungente e de outro lado sugerir a realidade tal como ela pode vir a ser ainda que para os céticos nosso vaticínio atual apareça risonho 14 MILTON SANTOS A ênfase central do livro vem da convicção do papel da ide ologia na produção disseminação reprodução e manutenção da globalização atual Esse papel é também uma novidade do nosso tempo Daí a necessidade de analisar seus princípios fundamen tais apontando suas linhas de fraqueza e de força Nossa insis tência sobre o papel da ideologia deriva da nossa convicção de que diante dos mesmos materiais atualmente existentes tanto é possível continuar a fazer do planeta um inferno conforme no Brasil estamos assistindo como também é viável realizar o seu contrário Daí a relevância da política isto é da arte de pen sar as mudanças e de criar as condições para tornálas efetivas Aliás as transformações que a história ultimamente vem mos trando permitem entrever a emergência de situações mais pro missoras Podem objetarnos que a nossa crença na mudança do homem é injustificada E se o que estiver mudando for o mundo Estamos convencidos de que a mudança histórica em pers pectiva provirá de um movimento de baixo para cima tendo como atores principais os países subdesenvolvidos e não os pa íses ricos os deserdados e os pobres e não os opulentos e outras classes obesas o indivíduo liberado partícipe das novas massas e não o homem acorrentado o pensamento livre e não o discur so único Como acreditamos na força das idéias para o bem e para o mal nesta fase da história em filigrana aparecerá como constante o papel do intelectual no mundo de hoje isto é o papel do pensamento livre Por isso nos primeiros projetos de redação havia o intuito de dedicar um capítulo exclusivo à ati vidade intelectual genuína Todavia achei melhor discutir esse papel em diferentes momentos da redação sempre que a oca sião se levantava P O R UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 15 O livro é formado de seis partes das quais a primeira é a introdução A segunda inclui cinco capítulos e busca mostrar como se deu o processo de produção da globalização Este tema já havia sido tratado de alguma forma em outras publicações e livros meus A terceira parte formada por seis capítulos busca explicar por que a globalização atual é perversa fundada na tira nia da informação e do dinheiro na competitividade na confu são dos espíritos e na violência estrutural acarretando o desfalecimento da política feita pelo Estado e a imposição de uma política comandada pelas empresas A quarta parte mostra as relações mantidas entre a economia contemporânea sobretudo as finanças e o território Esta parte é constituída de seis capítu los dos quais o último poderia também se incluir na parte se guinte pois por meio da noção de esquizofrenia do território mostramos como o espaço geográfico constitui um dos limites a essa globalização perversa É essa idéia de limite à história atu al que se impõe na quinta parte em que são mostrados ao mes mo tempo os descaminhos da racionalidade dominante a emer gência de novas variáveis centrais e o papel dos pobres na produção do presente e do futuro A sexta parte uma espécie de conclusão é dedicada ao que imaginamos ser nesta passagem de século a transição em marcha Aqui os temas versados real çam as manifestações pouco estudadas do país de baixo desde a cultura até a política raciocínio que se aplica também à própria periferia do sistema capitalista mundial cuja centralidade apre sentamos como um novo fator dinâmico da história E exata mente porque esses atores eficazes mas ainda pouco estuda dos são largamente presentes que acreditamos não ser a globalização atual irreversível e estamos convencidos de que a história universal apenas começa INTRODUÇÃO GERAL 1 O mundo como fábula como perversidade e como possibilidade Vivemos num mundo confuso e confusamente percebido Haveria nisto um paradoxo pedindo uma explicação De um lado é abusivamente mencionado o extraordinário progresso das ciências e das técnicas das quais um dos frutos são os novos materiais artificiais que autorizam a precisão e a intencionalidade De outro lado há também referência obrigatória à aceleração contemporânea e todas as vertigens que cria a começar pela própria velocidade Todos esses porém são dados de um mun do físico fabricado pelo homem cuja utilização aliás permite que o mundo se torne esse mundo confuso e confusamente percebido Explicações mecanicistas são todavia insuficientes E a maneira como sobre essa base material se produz a história humana que é a verdadeira responsável pela criação da torre de babel em que vive a nossa era globalizada Quando tudo permite imaginar que se tornou possível a criação de um mundo veraz 1 8 MILTON SANTOS o que é imposto aos espíritos é um mundo de fabulações que se aproveita do alargamento de todos os contextos M Santos A natureza do espaço 1996 para consagrar um discurso único Seus fundamentos são a informação e o seu império que encontram alicerce na produção de imagens e do imaginário e se põem ao serviço do império do dinheiro fundado este na economização e na monetarização da vida social e da vida pessoal De fato se desejamos escapar à crença de que esse mundo assim apresentado é verdadeiro e não queremos admitir a per manência de sua percepção enganosa devemos considerar a existência de pelo menos três mundos num só O primeiro se ria o mundo tal como nos fazem vêlo a globalização como fá bula o segundo seria o mundo tal como ele é a globalização como perversidade e o terceiro o mundo como ele pode ser uma outra globalização O mundo tal como nos fazem crer a globalização como fábula Este mundo globalizado visto como fábula erige como ver dade um certo número de fantasias cuja repetição entretanto acaba por se tornar uma base aparentemente sólida de sua inter pretação Maria da Conceição Tavares Destruição não criadora 1999 A máquina ideológica que sustenta as ações preponderantes da atualidade é feita de peças que se alimentam mutuamente e põem em movimento os elementos essenciais à continuidade do sistema Damos aqui alguns exemplos Falase por exemplo em aldeia global para fazer crer que a difusão instantânea de notícias realmente informa as pessoas A partir desse mito e do encurta POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 1 9 i ncnto das distâncias para aqueles que realmente podem viajar também se difunde a noção de tempo e espaço contraídos É como se o mundo se houvesse tornado para todos ao alcance da mão U m mercado avassalador dito global é apresentado como capaz de homogeneizar o planeta quando na verdade as diferenças locais são aprofundadas Há uma busca de uniformidade ao ser viço dos atores hegemônicos mas o mundo se torna menos unido tornando mais distante o sonho de uma cidadania verdadeiramente universal Enquanto isso o culto ao consumo é estimulado Falase igualmente com insistência na morte do Estado mas o que estamos vendo é seu fortalecimento para atender aos reclamos da finança e de outros grandes interesses internacio nais em detrimento dos cuidados com as populações cuja vida se torna mais difícil T íbo COA t Esses poucos exemplos recolhidos numa lista interminável permitem indagar se no lugar do fim da ideologia proclamado pelos que sustentam a bondade dos presentes processos de globalização não estaríamos de fato diante da presença de uma ideologização maciça segundo a qual a realização do mundo atual exige como condição essencial o exercício de fabulações O mundo como é a globalização como perversidade De fato para a grande maior parte da humanidade a globalização está se impondo como uma fábrica de perversidades O desemprego crescente tornase crônico A pobreza aumenta e as classes médias perdem em qualidade de vida O salário médio tende a baixar A fome e o desabrigo se generalizam em todos os continentes Novas enfermidades como a SIDA se instalam e 2 0 MILTON SANTOS velhas doenças supostamente extirpadas fazem seu retorno triunfal A mortalidade infantil permanece a despeito dos pro gressos médicos e da informação A educação de qualidade é cada vez mais inacessível Alastramse e aprofundamse males espi rituais e morais como os egoísmos os cinismos a corrupção A perversidade sistêmica que está na raiz dessa evolução negativa da humanidade tem relação com a adesão desenfreada aos comportamentos competitivos que atualmente caracterizam as ações hegemônicas Todas essas mazelas são direta ou indire tamente imputáveis ao presente processo de globalização O mundo como pode ser uma outra globalização Todavia podemos pensar na construção de um outro mun do mediante uma globalização mais humana As bases materi ais do período atual são entre outras a unicidade da técnica a convergência dos momentos e o conhecimento do planeta É nessas bases técnicas que o grande capital se apoia para construir a globalização perversa de que falamos acima Mas essas mes mas bases técnicas poderão servir a outros objetivos se forem postas ao serviço de outros fundamentos sociais e políticos Pa rece que as condições históricas do fim do século XX aponta vam para esta última possibilidade Tais novas condições tanto se dão no plano empírico quanto no plano teórico Considerando o que atualmente se verifica no plano empírico podemos em primeiro lugar reconhecer um certo número de fatos novos indicativos da emergência de uma nova história O primeiro desses fenômenos é a enorme mistura de povos raças culturas gostos em todos os continentes A isso POR U M A OUTRA GLOBALIZAÇÃO 21 se acrescente graças aos progressos da informação a mistura de filosofias em detrimento do racionalismo europeu U m ou tro dado de nossa era indicativo da possibilidade de mudanças 6 a produção de uma população aglomerada em áreas cada vez menores o que permite um ainda maior dinamismo àquela mistura entre pessoas e filosofias As massas de que falava Ortega y Gasset na primeira metade do século La rebelión de las masas 1937 ganham uma nova qualidade em virtude da sua aglome ração exponencial e de sua diversificação Tratase da existência de uma verdadeira socjodiversidade historicamente muito mais significativa que apropria biodiversidade Juntese a esses fatos a emergência de uma cultura popular que se serve dos meios técnicos antes exclusivos da cultura de massas permitindolhe exercer sobre esta última uma verdadeira revanche ou vingança É sobre tais alicerces que se edifica o discurso da escassez afi nal descoberta pelas massas A população aglomerada em poucos pontos da superfície da Terra constitui uma das bases de recons trução e de sobrevivência das relações locais abrindo a possibili dade de utilização ao serviço dos homens do sistema técnico atual N o plano teórico o que verificamos é a possibilidade de produção de um novo discurso de uma nova metanarrativa um novo grande relato Esse novo discurso ganha relevância pelo fato de que pela primeira vez na história do homem se pode constatar a existência de uma universalidade empírica A univer salidade deixa de ser apenas uma elaboração abstrata na mente dos filósofos para resultar da experiência ordinária de cada homem De tal modo em um mundo datado como o nosso a explicação do acontecer pode ser feita a partir de categorias de uma história concreta É isso também que permite conhecer as possibilidades existentes e escrever uma nova história n A PRODUÇÃO DA GLOBALIZAÇÃO Introdução A globalização é de certa forma o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista Para entendêla como de resto a qualquer fase da história há dois elementos fundamen tais a levar em conta o estado das técnicas e o estado da política Há uma tendência a separar uma coisa da outra Daí muitas interpretações da história a partir das técnicas E por outro lado interpretações da história a partir da política Na realidade nunca houve na história humana separação entre as duas coisas As téc nicas são oferecidas como um sistema e realizadas combina damente através do trabalho e das formas de escolha dos mo mentos e dos lugares de seu uso É isso que fez a história N o fim do século XX e graças aos avanços da ciência pro duziuse um sistema de técnicas presidido pelas técnicas da in formação que passaram a exercer um papel de elo entre as de mais unindoas e assegurando ao novo sistema técnico uma presença planetária 2 4 MILTON SANTOS Só que a globalização não é apenas a existência desse novo sistema de técnicas Ela é também o resultado das ações que asseguram a emergência de um mercado dito global respon sável pelo essencial dos processos políticos atualmente efica zes Os fatores que contribuem para explicar a arquitetura da globalização atual são a unicidade da técnica a convergência dos momentos a cognoscibilidade do planeta e a existência de u m motor único na história representado pela maisvalia globalizada U m mercado global utilizando esse sistema de técnicas avançadas resulta nessa globalização perversa Isso poderia ser diferente se seu uso político fosse outro Esse é o debate central o único que nos permite ter a esperança de uti lizar o sistema técnico contemporâneo a partir de outras for mas de ação Pretendemos aqui enfrentar essa discussão ana lisando rapidamente alguns dos seus aspectos constitucionais mais relevantes 2 A unicidade técnica O desenvolvimento da história vai de par com o desenvol vimento das técnicas Kant dizia que a história é um progresso sem fim acrescentemos que é também um progresso sem fim das técnicas A cada evolução técnica uma nova etapa histórica se torna possível As técnicas se dão como famílias Nunca na história do homem aparece uma técnica isolada o que se instala são gru pos de técnicas verdadeiros sistemas U m exemplo banal pode P O R UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 2 5 ser dado com a foice a enxada o ancinho que constituem num dado momento uma família de técnicas Essas famílias de técnicas transportam uma história cada sistema técnico representa uma época Em nossa época o que é representativo do sistema de técnicas atual é a chegada da técni ca da informação por meio da cibernética da informática da eletrônica Ela vai permitir duas grandes coisas a primeira é que as diversas técnicas existentes passam a se comunicar entre elas A técnica da informação assegura esse comércio que antes não era possível Por outro lado ela tem um papel determinante sobre o uso do tempo permitindo em todos os lugares a convergên cia dos momentos assegurando a simultaneidade das ações e por conseguinte acelerando o processo histórico Ao surgir uma nova família de técnicas as outras não desa parecem Continuam existindo mas o novo conjunto de ins trumentos passa a ser usado pelos novos atores hegemônicos enquanto os não hegemônicos continuam utilizando conjuntos menos atuais e menos poderosos Quando um determinado ator não tem as condições para mobilizar as técnicas consideradas mais avançadas tornase por isso mesmo um ator de menor importância no período atual Na história da humanidade é a primeira vez que tal conjunto de técnicas envolve o planeta como um todo e faz sentir instanta neamente sua presença Isso aliás contamina a forma de exis tência das outras técnicas mais atrasadas As técnicas característi cas do nosso tempo presentes que sejam em um só ponto do território têm uma influência marcante sobre o resto do país o que é bem diferente das situações anteriores Por exemplo a es trada de ferro instalada em regiões selecionadas escolhidas estra tegicamente alcançava uma parte do país mas não tinha uma in 2 6 MILTON SANTOS fluência direta determinante sobre o resto do território Agora não A técnica da informação alcança a totalidade de cada país direta ou indiretamente Cada lugar tem acesso ao acontecer dos outros O princípio de seletividade se dá também como princípio de hi erarquia porque todos os outros lugares são avaliados e devem se referir àqueles dotados das técnicas hegemônicas Esse é um fe nômeno novo na história das técnicas e na história dos territóri os Antes havia técnicas hegemônicas e não hegemônicas hoje as técnicas não hegemônicas são hegemonizadas Na verdade po rém a técnica não pode ser vista como um dado absoluto mas como técnica já relativizada isto é tal como usada pelo homem As técnicas apenas se realizam tornandose história com a intermediação da política isto é da política das empresas e da política dos Estados conjunta ou separadamente Por outro lado o sistema técnico dominante no mundo de hoje tem uma outra característica isto é a de ser invasor Ele não se contenta em ficar ali onde primeiro se instala e busca es palharse na produção e no território Pode não o conseguir mas é essa sua vocação que é também fundamento da ação dos atores hegemônicos como por exemplo as empresas globais Estas fun cionam a partir de uma fragmentação já que um pedaço da pro dução pode ser feita na Tunísia outro na Malásia outro ainda no Paraguai mas isto apenas é possível porque a técnica hegemônica de que falamos é presente ou passível de presença em toda parte Tudo se junta e articula depois mediante a inteligência da fir ma Senão não poderia haver empresa transnacional Há pois uma relação estreita entre esse aspecto da economia da globalização e a natureza do fenômeno técnico correspondente a este período his tórico Se a produção se fragmenta tecnicamente há do outro lado uma unidade política de comando Essa unidade política do co POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 2 7 mando funciona no interior das firmas mas não há propriamen te uma unidade de comando do mercado global Cada empresa comanda as respectivas operações dentro da sua respectiva topologia isto é do conjunto de lugares da sua ação enquanto a ação dos Estados e das instituições supranacionais não basta para impor uma ordem global Levando ao extremo esse raciocínio poderseia dizer que o mercado global não existe como tal Há uma relação de causa e efeito entre o progresso técnico atual e as demais condições de implantação do atual período histórico É a partir da unicidade das técnicas da qual o compu tador é uma peça central que surge a possibilidade de existir uma finança universal principal responsável pela imposição a todo o globo de uma maisvalia mundial Sem ela seria também im possível a atual unicidade do tempo o acontecer local sendo percebido como um elo do acontecer mundial Por outro lado sem a maisvalia globalizada e sem essa unicidade do tempo a unicidade da técnica não teria eficácia 3 A convergência dos momentos A unicidade do tempo não é apenas o resultado de que nos mais diversos lugares a hora do relógio é a mesma Não é somente isso Se a hora é a mesma convergem também os momentos vividos Há uma confluência dos momentos como resposta àquilo que do ponto de vista da física chamase de tempo real e do ponto de vis ta histórico será chamado de interdependência e solidariedade do acontecer Tomada como fenômeno físico a percepção do tempo 2 8 MILTON SANTOS real não só quer dizer que a hora dos relógios é a mesma mas que podemos usar esses relógios múltiplos de maneira uniforme Re sultado do progresso científico e técnico cuja busca se acelerou com a Segunda Guerra a operação planetária das grandes empresas glo bais vai revolucionar o mundo das finanças permitindo ao respec tivo mercado que funcione em diversos lugares durante o dia in teiro O tempo real também autoriza usar o mesmo momento a partir de múltiplos lugares e todos os lugares a partir de um só deles E em ambos os casos de forma concatenada e eficaz Com essa grande mudança na história tornamonos capazes seja onde for de ter conhecimento do que é o acontecer do ou tro Nunca houve antes essa possibilidade oferecida pela técnica à nossa geração de ter em mãos o conhecimento instantâneo do acontecer do outro Essa é a grande novidade o que estamos cha mando de unicidade do tempo ou convergência dos momentos A aceleração da história que o fim do século XX testemunha vem em grande parte disto Mas a informação instantânea e globalizada por enquanto não é generalizada e veraz porque atualmente intermediada pelas grandes empresas da informação E quem são os atores do tempo real Somos todos nós Esta pergunta é um imperativo para que possamos melhor compreen der nossa época A ideologia de um mundo só e da aldeia global considera o tempo real como um patrimônio coletivo da huma nidade Mas ainda estamos longe desse ideal todavia alcançável A história é comandada pelos grandes atores desse tempo real que são ao mesmo tempo os donos da velocidade e os autores do discurso ideológico Os homens não são igualmente atores desse tempo real Fisicamente isto é potencialmente ele existe para todos Mas efetivamente isto é socialmente ele é excludente e assegura exclusividades ou pelo menos privilégios de uso POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 2 9 Como ele é utilizado por um número reduzido de atores deve mos distinguir entre a noção de fluidez potencial e a noção de flui dez efetiva Se a técnica cria aparentemente para todos a possibi lidade da fluidez quem todavia é fluido realmente Que empresas são realmente fluidas Que pessoas Quem de fato utiliza em seu favor esse tempo real A quem realmente cabe a maisvalia criada a partir dessa nova possibilidade de utilização do tempo Quem pode e quem não pode Essa discussão levanos a uma outra na fase atual do capitalismo ao tomarmos em conta a emergência de um novo fator determinante da história represen tado pelo que aqui estamos denominando de motor único 4 O motor único Este período dispõe de um sistema unificado de técnicas instalado sobre um planeta informado e permitindo ações igual mente globais Até que ponto podemos falar de uma maisvalia à escala mundial atuando como um motor único de tais ações Havia com o imperialismo diversos motores cada qual com sua força e alcance próprios o motor francês o motor inglês o motor alemão o motor português o belga o espanhol etc que eram todos motores do capitalismo mas empurravam as má quinas e os homens segundo ritmos diferentes modalidades diferentes combinações diferentes Hoje haveria um motor único que é exatamente a mencionada maisvalia universal Esta tornouse possível porque a partir de agora a produção se dá à escala mundial por intermédio de empresas mundiais 3 0 MILTON SANTOS que competem entre si segundo uma concorrência extremamen te feroz como jamais existiu As que resistem e sobrevivem são aquelas que obtêm a maisvalia maior permitindose assim continuar a proceder e a competir Esse motor único se tornou possível porque nos encontra mos em um novo patamar da internacionalização com uma verdadeira mundialização do produto do dinheiro do crédito da dívida do consumo da informação Esse conjunto de mundializações uma sustentando e arrastando a outra impon dose mutuamente é também um fato novo U m elemento da internacionalização atrai outro impõe outro contém e é contido pelo outro Esse sistema de forças pode levar a pensar que o mundo se encaminha para algo como uma homogeneização uma vocação a um padrão único o que seria devido de um lado à mundialização da técnica de outro à mundialização da maisvalia Tudo isso é realidade mas também e sobretudo tendência porque em nenhum lugar em nenhum país houve completa internacionalização O que há em toda parte é uma vocação às mais diversas combinações de vetores e formas de mundialização Pretendemos que a história agora seja movida por esse motor único Cabe assim indagar qual seria a sua natureza Será ele abstrato Que é essa maisvalia considerada ao nível global Ela é fugidia e nos escapa mas não é abstrata Ela existe e se impõe como coisa real embora não seja propriamente mensurável já que está sempre evoluindo isto é mudando Ela é mundial porque entretida pelas empresas globais que se valem dos pro gressos científicos e técnicos disponíveis no mundo e pedem todos os dias mais progresso científico e técnico A atual competitividade entre as empresas é uma forma de exercício dessa maisvalia universal que se torna fugidia exata POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 3 1 mente porque deixamos o mundo da competição e entramos no mundo da competitividade O exercício da competitividade tor na exponencial a briga entre as empresas e as conduz a alimentar uma demanda diuturna de mais ciência de mais tecnologia de melhor organização para manterse à frente da corrida Quando na universidade somos solicitados todos os dias a tra balhar para melhorar a produtividade como se fosse algo abstrato e individual estamos impelidos a oferecer às grandes empresas pos sibilidades ainda maiores de aumentar sua maisvalia Novos labo ratórios são chamados a encontrar as novas técnicas os novos ma teriais as novas soluções organizacionais e políticas que permitam às empresas fazer crescer a sua produtividade e o seu lucro A cada avanço de uma empresa outra do mesmo ramo solicita inovações que lhe permitam passar à frente da que antes era a campeã Por isso tal maisvalia está sempre correndo quer dizer fugindo para a frente U m corte no tempo é idealmente possível mas está longe de expressar a realidade atual cruelmente instável Por isso não se pode desse modo medila mas ela existe Se ela pode parecer abs trata a maisvalia agora universal na verdade se impõe como um dado empírico objetivo quando utilizada no processo da produ ção e como resultado da competitividade 5 A cognoscibilidade do planeta O período histórico atual vai permitir o que nenhum outro período ofereceu ao homem isto é a possibilidade de conhecer o planeta extensiva e aprofundadamente Isto nunca existiu an 32 MILTON SANTOS tes e devese exatamente aos progressos da ciência e da técni ca melhor ainda aos progressos da técnica devidos aos progres sos da ciência Esse período técnicocientífico da história permite ao ho mem não apenas utilizar o que encontra na natureza novos materiais são criados nos laboratórios como um produto da in teligência do homem e precedem a produção dos objetos Até a nossa geração utilizávamos os materiais que estavam à nossa disposição Mas a partir de agora podemos conceber os objetos que desejamos utilizar e então produzimos a matériaprima in dispensável à sua fabricação Sem isso não teria sido possível fazer os satélites que fotografam o planeta a intervalos regulares per mitindo uma visão mais completa e detalhada da Terra Por meio dos satélites passamos a conhecer todos os lugares e a observar outros astros O funcionamento do sistema solar tornase mais perceptível enquanto a Terra é vista em detalhe pelo fato de que os satélites repetem suas órbitas podemos captar momentos sucessivos isto é não mais apenas retratos momentâneos e fo tografias isoladas do planeta Isso não quer dizer que tenhamos assim os processos históricos que movem o mundo mas fica mos mais perto de identificar momentos dessa evolução Os objetos retratados nos dão geometrías não propriamente geo grafias porque nos chegam como objetos em si sem a socieda de vivendo dentro deles O sentido que têm as coisas isto é seu verdadeiro valor é o fundamento da correta interpretação de tudo o que existe Sem isso corremos o risco de não ultrapassar uma interpretação coisicista de algo que é muito mais que uma simples coisa como os objetos da história Estes estão sempre mudando de significado com o movimento das sociedades e por intermédio das ações humanas sempre renovadas POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 33 Com a globalização e por meio da empiricização da universa lidade que ela possibilitou estamos mais perto de construir uma filosofia das técnicas e das ações correlatas que seja também uma forma de conhecimento concreto do mundo tomado como um todo e das particularidades dos lugares que incluem condições físicas naturais ou artificiais e condições políticas As empresas na busca da maisvalia desejada valorizam diferentemente as lo calizações Não é qualquer lugar que interessa a tal ou qual firma A cognoscibilidade do planeta constitui um dado essencial à ope ração das empresas e à produção do sistema histórico atual 6 Um período que é uma crise A história do capitalismo pode ser dividida em períodos pedaços de tempo marcados por certa coerência entre as suas variáveis significativas que evoluem diferentemente mas den tro de um sistema U m período sucede a outro mas não pode mos esquecer que os períodos são também antecedidos e su cedidos por crises isto é momentos em que a ordem estabelecida entre as variáveis mediante uma organização é comprometida Tornase impossível harmonizálas quando uma dessas variáveis ganha expressão maior e introduz um princípio de desordem Essa foi a evolução comum a toda a história do capitalismo até recentemente O período atual escapa a essa característica por que ele é ao mesmo tempo um período e uma crise isto é a presente fração do tempo histórico constitui uma verdadeira superposição entre período e crise revelando características de ambas essas situações FACULDADES CURTBA BIBLIOTECA 3 4 MILTON SANTOS Como período e como crise a época atual mostrase aliás como coisa nova Como período as suas variáveis características instalamse em toda parte e a tudo influenciam direta ou indire tamente Daí a denominação de globalização Como crise as mesmas variáveis construtoras do sistema estão continuamente chocandose e exigindo novas definições e novos arranjos Trata se porém de uma crise persistente dentro de um período com características duradouras mesmo se novos contornos aparecem Este período e esta crise são diferentes daqueles do passado porque os dados motores e os respectivos suportes que consti tuem fatores de mudança não se instalam gradativamente como antes nem tampouco são o privilégio de alguns continentes e países como outrora Tais fatores dãose concomitantemente e se realizam com muita força em toda parte Defrontamonos agora com uma subdivisão extrema do tem po empírico cuja documentação tornouse possível por meio das técnicas contemporâneas O computador é o instrumento de medida e ao mesmo tempo o controlador do uso do tempo Essa multiplicação do tempo é na verdade potencial porque de fato cada atorpessoa empresa instituição lugarutiliza diferen temente tais possibilidades e realiza diferentemente a velocidade do mundo Por outro lado e graças sobretudo aos progressos das técnicas da informática os fatores hegemônicos de mudança con tagiam os demais ainda que a presteza e o alcance desse contágio sejam diferentes segundo as empresas os grupos sociais as pes soas os lugares Por intermédio do dinheiro o contágio das lógi cas redutoras típicas do processo de globalização leva a toda par te um nexo contábil que avassala tudo Os fatores de mudança acima enumerados são pela mão dos atores hegemônicos incon troláveis cegos egoisticamente contraditórios POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 3 5 O processo da crise é permanente o que temos são crises sucessivas Na verdade tratase de uma crise global cuja evi dencia tanto se faz por meio de fenômenos globais como de ma nifestações particulares neste ou naquele país neste ou naque le momento mas para produzir o novo estágio de crise Nada é duradouro Então neste período histórico a crise é estrutural Por isso quando se buscam soluções não estruturais o resultado é a ge ração de mais crise O que é considerado solução parte do ex clusivo interesse dos atores hegemônicos tendendo a participar de sua própria natureza e de suas próprias características Tirania do dinheiro e tirania da informação são os pilares da produção da história atual do capitalismo globalizado Sem o controle dos espíritos seria impossível a regulação pelas finanças Daí o papel avassalador do sistema financeiro e a permissividade do comportamento dos atores hegemônicos que agem sem contrapartida levando ao aprofundamento da situação isto é da crise A associação entre a tirania do dinheiro e a tirania da infor mação conduz desse modo à aceleração dos processos hege mônicos legitimados pelo pensamento único enquanto os de mais processos acabam por ser deglutidos ou se adaptam passiva ou ativamente tornandose hegemonizados Em outras palavras os processos não hegemônicos tendem seja a desaparecer fisica mente seja a permanecer mas de forma subordinada exceto em algumas áreas da vida social e em certas frações do território onde podem manterse relativamente autônomos isto é capazes de uma reprodução própria Mas tal situação é sempre precária seja porque os resultados localmente obtidos são menores seja por que os respectivos agentes são permanentemente ameaçados pela concorrência das atividades mais poderosas 3 6 MILTON SANTOS N o período histórico atual o estrutural dito dinâmico é também crítico Isso se deve entre outras razões ao fato de que a era presente se caracteriza pelo uso extremado de técnicas e de normas O uso extremado das técnicas e a proeminência do pensa mento técnico conduzem à necessidade obsessiva de normas Essa pletora normativa é indispensável à eficácia da ação Como porém as atividades hegemônicas tendem a uma centralização consecu tiva à concentração da economia aumenta a inflexibilidade dos comportamentos acarretando um malestar no corpo social A isso se acrescente o fato de que graças ao casamento entre as técnicas normativas e a normalização técnica e política da ação correspondente a própria política acaba por instalarse em todos os interstícios do corpo social seja como necessidade para o exer cício das ações dominantes seja como reação a essas mesmas ações Mas não é propriamente de política que se trata mas de simples acúmulo de normatizações particularistas conduzidas por atores privados que ignoram o interesse social ou que o tratam de modo residual E uma outra razão pela qual a situação normal é de crise ainda que os famosos equilíbrios macroeconômicos se instalem O mesmo sistema ideológico que justifica o processo de globalização ajudando a considerálo o único caminho históri co acaba também por impor uma certa visão da crise e a acei tação dos remédios sugeridos Em virtude disso todos os paí ses lugares e pessoas passam a se comportar isto é a organizar sua ação como se tal crise fosse a mesma para todos e como se a receita para afastála devesse ser geralmente a mesma Na verdade porém a única crise que os responsáveis desejam afas tar é a crise financeira e não qualquer outra Aí está na verdade uma causa para mais aprofundamento da crise real econômi ca social política moral que caracteriza o nosso tempo m U M A GLOBALIZAÇÃO PERVERSA Introdução Os últimos anos do século XX testemunharam grandes mudanças em toda a face da Terra O mundo tornase unificado em virtude das novas condições técnicas bases sólidas para uma ação humana mundializada Esta entretanto impõese à maior parte da humanidade como uma globalização perversa Consideramos em primeiro lugar a emergência de uma du pla tirania a do dinheiro e a da informação intimamente relacio nadas Ambas juntas fornecem as bases do sistema ideológico que legitima as ações mais características da época e ao mesmo tem po buscam conformar segundo um novo ethos as relações sociais e interpessoais influenciando o caráter das pessoas A competitividade sugerida pela produção e pelo consumo é a fonte de novos totalitarismos mais facilmente aceitos graças à confu são dos espíritos que se instala Tem as mesmas origens a produ ção na base mesma da vida social de uma violência estrutural facilmente visível nas formas de agir dos Estados das empresas e dos indivíduos A perversidade sistêmica é um dos seus corolários 3 8 MILTON SANTOS Dentro desse quadro as pessoas sentemse desamparadas o que também constitui uma incitação a que adotem em seus com portamentos ordinários práticas que alguns decênios atrás eram moralmente condenadas Há um verdadeiro retrocesso quanto à noção de bem público e de solidariedade do qual é emblemático o encolhimento das funções sociais e políticas do Estado com a ampliação da pobreza e os crescentes agravos à soberania enquanto se amplia o papel político das empresas na regulação da vida social 7 A tirania da informação e do dinheiro e o atual sistema ideológico Entre os fatores constitutivos da globalização em seu caráter perverso atual encontramse a forma como a informação é ofe recida à humanidade e a emergência do dinheiro em estado puro como motor da vida econômica e social São duas violências cen trais alicerces do sistema ideológico que justifica as ações hegemônicas e leva ao império das fabulações a percepções frag mentadas e ao discurso único do mundo base dos novos totalita rismos isto é dos globalitarismos a que estamos assistindo A violência da informação U m dos traços marcantes do atual período histórico é pois o papel verdadeiramente despótico da informação Conforme já vi mos as novas condições técnicas deveriam permitir a ampliação do conhecimento do planeta dos objetos que o formam das sociedades P O R U M A OUTRA GLOBALIZAÇÃO 3 9 que o habitam e dos homens em sua realidade intrínseca Todavia nas condições atuais as técnicas da informação são principalmente utilizadas por um punhado de atores em função de seus objetivos particulares Essas técnicas da informação por enquanto são apro priadas por alguns Estados e por algumas empresas aprofundando assim os processos de criação de desigualdades E desse modo que a periferia do sistema capitalista acaba se tornando ainda mais peri férica seja porque não dispõe totalmente dos novos meios de pro dução seja porque lhe escapa a possibilidade de controle O que é transmitido à maioria da humanidade é de fato uma informação manipulada que em lugar de esclarecer confunde Isso tanto é mais grave porque nas condições atuais da vida eco nômica e social a informação constitui um dado essencial e im prescindível Mas na medida em que o que chega às pessoas como também às empresas e instituições hegemonizadas é já o resul tado de uma manipulação tal informação se apresenta como ideo logia O fato de que no mundo de hoje o discurso antecede qua se obrigatoriamente uma parte substancial das ações humanas sejam elas a técnica a produção o consumo o poder explica o porquê da presença generalizada do ideológico em todos esses pontos Não é de estranhar pois que realidade e ideologia se con fundam na apreciação do homem comum sobretudo porque a ideologia se insere nos objetos e apresentase como coisa Estamos diante de um novo encantamento do mundo no qual o discurso e a retórica são o princípio e o fim Esse impera tivo e essa onipresença da informação são insidiosos já que a informação atual tem dois rostos um pelo qual ela busca ins truir e um outro pelo qual ela busca convencer Este é o traba lho da publicidade Se a informação tem hoje essas duas caras a cara do convencer se torna muito mais presente na medida em que a publicidade se transformou em algo que antecipa a 4 0 MILTON SANTOS produção Brigando pela sobrevivência e hegemonia em fun ção da competitividade as empresas não podem existir sem publicidade que se tornou o nervo do comércio Há uma relação carnal entre o mundo da produção da notí cia e o mundo da produção das coisas e das normas A publici dade tem hoje uma penetração muito grande em todas as ativi dades Antes havia uma incompatibilidade ética entre anunciar e exercer certas atividades como na profissão médica ou na educação Hoje propagase tudo e a própria política é em gran de parte subordinada às suas regras As mídias nacionais se globalizam não apenas pela chatice e mesmice das fotografias e dos títulos mas pelos protagonistas mais presentes Falsificamse os eventos já que não é propria mente o fato o que a mídia nos dá mas uma interpretação isto é a notícia Pierre Nora em um bonito texto cujo título é O retorno do fato in História Novos problemas 1974 lembra que na aldeia o testemunho das pessoas que veiculam o que aconte ceu pode ser cotejado com o testemunho do vizinho Numa so ciedade complexa como a nossa somente vamos saber o que houve na rua ao lado dois dias depois mediante uma interpre tação marcada pelos humores visões preconceitos e interesses das agências O evento já é entregue maquiado ao leitor ao ouvinte ao telespectador e é também por isso que se produzem no mundo de hoje simultaneamente fábulas e mitos Fábulas Uma dessas fabulações é a tão repetida idéia de aldeia global Octávio Ianni Teorias da globalização 1996 O fato de que a comunicação se tornou possível à escala do planeta deixando P O R UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 4 1 saber instantaneamente o que se passa em qualquer lugar per mitiu que fosse cunhada essa expressão quando na verdade ao contrário do que se dá nas verdadeiras aldeias é freqüentemente mais fácil comunicar com quem está longe do que com o vizi nho Quando essa comunicação se faz na realidade ela se dá com a intermediação de objetos A informação sobre o que acon tece não vem da interação entre as pessoas mas do que é veicu lado pela mídia uma interpretação interessada senão interes seira dos fatos U m outro mito é o do espaço e do tempo contraídos gra ças outra vez aos prodígios da velocidade Só que a velocidade apenas está ao alcance de um número limitado de pessoas de tal forma que segundo as possibilidades de cada um as distâncias têm significações e efeitos diversos e o uso do mesmo relógio não permite igual economia do tempo Aldeia global tanto quanto espaçotempo contraído permi tiriam imaginar a realização do sonho de um mundo só já que pelas mãos do mercado global coisas relações dinheiros gos tos largamente se difundem por sobre continentes raças lín guas religiões como se as particularidades tecidas ao longo de séculos houvessem sido todas esgarçadas Tudo seria conduzido e ao mesmo tempo homogeneizado pelo mercado global re gulador Será todavia esse mercado regulador Será ele global O fato é que apenas três praças Nova Iorque Londres e Tó quio concentram mais de metade de todas as transações e ações as empresas transnacionais são responsáveis pela maior parte do comércio dito mundial os 47 países menos avançados represen tam juntos apenas 03 do comércio mundial em lugar dos 23 em 1960 Y Berthelot Globalisation et régionalisation une mise en perspective in Lintégration régionale dans le monde 4 2 MILTON SANTOS GEMDEV 1994 enquanto 40 do comércio dos Estados Unidos ocorrem no interior das empresas N Chomsky Folha de S Paulo 25 de abril de 1993 Falase também de uma humanidade desterritorializada uma de suas características sendo o desfalecimento das fronteiras como imperativo da globalização e a essa idéia deverseia uma outra a da existência já agora de uma cidadania universal De fato as fron teiras mudaram de significação mas nunca estiveram tão vivas na medida em que o próprio exercício das atividades globalizadas não prescinde de uma ação governamental capaz de tornálas efe tivas dentro de um território A humanidade desterritorializada é apenas um mito Por outro lado o exercício da cidadania mesmo se avança a noção de moralidade internacional é ainda um fato que depende da presença e da ação dos Estados nacionais Esse mundo como fábula é alimentado por outros ingredi entes entre os quais a politização das estatísticas a começar pela forma pela qual é feita a comparação da riqueza entre as nações N o fundo nas condições atuais o chamado Produto Nacional Bruto é apenas um nome fantasia do que poderíamos chamar de produto global já que as quantidades que entram nessa con tabilidade são aquelas que se referem às operações que caracte rizam a própria globalização Afirmase também que a morte do Estado melhoraria a vida dos homens e a saúde das empresas na medida em que permiti ria a ampliação da liberdade de produzir de consumir e de viver Tal neoliberalismo seria o fundamento da democracia Observan do o funcionamento concreto da sociedade econômica e da soci edade civil não é difícil constatar que são cada vez em menor número as empresas que se beneficiam desse desmaio do Estado enquanto a desigualdade entre os indivíduos aumenta POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 4 3 Sem essas fábulas e mitos este período histórico não existiria como é Também não seria possível a violência do dinheiro Este só se torna violento e tirânico porque é servido pela violência da informação Esta se prevalece do fato de que no fim do século XX a linguagem ganha autonomia constituindo sua própria lei Isso facilita a entronização de um subsistema ideológico sem o qual a globalização em sua forma atual não se explicaria A violência do dinheiro A internacionalização do capital financeiro ampliase recen temente por várias razões Na fase histórica atual as megafirmas devem obrigatoriamente preocuparse com o uso financeiro do dinheiro que obtêm As grandes empresas são quase que com pulsoriamente ladeadas pôr grandes empresas financeiras Essas empresas financeiras das multinacionais utilizam em grande parte a poupança dos países em que se encontram Quan do uma firma de qualquer outro país se instala num país C ou D as poupanças internas passam a participar da lógica financei ra e do trabalho financeiro dessa multinacional Quando expatriado esse dinheiro pode regressar ao país de origem na forma de crédito e de dívida quer dizer por intermédio das grandes empresas globais O que seria poupança interna trans formase em poupança externa pela qual os países recipiendarios devem pagar juros extorsivos O que sai do país como royalties inteligência comprada pagamento de serviços ou remessa de lucros volta como crédito e dívida Essa é a lógica atual da internacionalização do crédito e da dívida A aceitação de um modelo econômico em que o pagamento da dívida é prioritário implica a aceitação da lógica desse dinheiro 44 MILTON SANTOS As percepções fragmentadas e o discurso único do mundo E a partir dessa generalização e dessa coisificação da ideolo gia que de um lado se multiplicam as percepções fragmentadas POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 45 e de outro pode estabelecerse um discurso único do mun do com implicações na produção econômica e nas visões da história contemporânea na cultura de massa e no mercado global As bases materiais históricas dessa mitificação estão na rea lidade da técnica atual A técnica apresentase ao homem comum como um mistério e uma banalidade De fato a técnica é mais aceita do que compreendida Como tudo parece dela depender ela se apresenta como uma necessidade universal uma presen ça indiscutível dotada de uma força quase divina à qual os ho mens acabam se rendendo sem buscar entendêla E um fato comum no cotidiano de todos por conseguinte uma banalida de mas seus fundamentos e seu alcance escapam à percepção imediata daí seu mistério Tais características alimentam seu imaginário alicerçado nas suas relações com a ciência na sua exigência de racionalidade no absolutismo com que ao serviço do mercado conforma os comportamentos tudo isso fazendo crer na sua inevitabilidade Quando o sistema político formado pelos governos e pelas empresas utiliza os sistemas técnicos contemporâneos e seu imaginário para produzir a atual globalização apontanos para formas de relações econômicas implacáveis que não aceitam discussão e exigem obediência imediata sem a qual os atores são expulsos da cena ou permanecem escravos de uma lógica indis pensável ao funcionamento do sistema como um todo É uma forma de totalitarismo muito forte e insidiosa porque se baseia em noções que parecem centrais à própria idéia da de mocracia liberdade de opinião de imprensa tolerância utilizadas exatamente para suprimir a possibilidade de conheci mento do que é o mundo e do que são os países e os lugares Nas condições atuais de economia internacional o financeiro ganha uma espécie de autonomia Por isso a relação entre a finança e a produção entre o que agora se chama economia real e o mundo da finança dá lugar àquilo que Marx chamava de loucura especulativa fundada no papel do dinheiro em estado puro Este se torna o centro do mundo É o dinheiro como sim plesmente dinheiro recriando seu fetichismo pela ideologia O sistema financeiro descobre fórmulas imaginosas inventa sem pre novos instrumentos multiplica o que chama de derivativos que são formas sempre renovadas de oferta dessa mercadoria aos especuladores O resultado é que a especulação exponencial as sim redefinida vai se tornar algo indispensável intrínseco ao sis tema graças aos processos técnicos da nossa época E o tempo real que vai permitir a rapidez das operações e a volatilidade dos asseis E a finança move a economia e a deforma levando seus tentáculos a todos os aspectos da vida Por isso é lícito falar de tirania do dinheiro Se o dinheiro em estado puro se tornou despótico isso tam bém se deve ao fato de que tudo se torna valor de troca A monetarização da vida cotidiana ganhou no mundo inteiro um enorme terreno nos últimos 25 anos Essa presença do dinheiro em toda parte acaba por constituir um dado ameaçador da nossa existência cotidiana 4 6 MILTON SANTOS POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 4 7 da competitividade que caracteriza nosso tempo Ora é isso tam bém que justifica os individualismos arrebatadores e possessi vos individualismos na vida econômica a maneira como as empresas batalham umas com as outras individualismos na ordem da política a maneira como os partidos freqüentemente abandonam a idéia de política para se tornarem simplesmente eleitoreiros individualismos na ordem do território as cida des brigando umas com as outras as regiões reclamando solu ções particularistas Também na ordem social e individual são individualismos arrebatadores e possessivos que acabam por constituir o outro como coisa Comportamentos que justificam todo desrespeito às pessoas são afinal uma das bases da socia bilidade atual Aliás a maneira como as classes médias no Bra sil se constituíram entroniza a lógica dos instrumentos em lu gar da lógica das finalidades e convoca os pragmatismos a que se tornem triunfantes Para tudo isso também contribuiu a perda de influência da filosofia na formulação das ciências sociais cuja interdisci plinaridade acaba por buscar inspiração na economia Daí o empobrecimento das ciências humanas e a conseqüente dificul dade para interpretar o que vai pelo mundo já que a ciência eco nômica se torna cada vez mais uma disciplina da administra ção das coisas ao serviço de um sistema ideológico E assim que se implantam novas concepções sobre o valor a atribuir a cada objeto a cada indivíduo a cada relação a cada lugar legitiman do novas modalidades e novas regras da produção e do consu mo E novas formas financeiras e da contabilidade nacional Esta aliás se reduz a ser apenas um nome fantasia de uma suposta contabilidade global algo que inexiste de fato mas é tomado como parâmetro Esta é uma das bases do subsistema ideológico 8 Competitividade consumo confusão dos espíritos globalitarismo Neste mundo globalizado a competitividade o consumo a confusão dos espíritos constituem baluartes do presente estado de coisas A competitividade comanda nossas formas de ação O consumo comanda nossas formas de inação E a confusão dos espíritos impede o nosso entendimento do mundo do país do lugar da sociedade e de cada um de nós mesmos A competitividade a ausência de compaixão Nos últimos cinco séculos de desenvolvimento e expansão geográfica do capitalismo a concorrência se estabelece como regra Agora a competitividade toma o lugar da competição A concor rência atual não é mais a velha concorrência sobretudo porque chega eliminando toda forma de compaixão A competitividade tem a guerra como norma Há a todo custo que vencer o outro esmagandoo para tomar seu lugar Os últimos anos do século XXforam emblemáticos porque neles se realizaram grandes con centrações grandes fusões tanto na órbita da produção como na das finanças e da informação Esse movimento marca um ápice do sistema capitalista mas é também indicador do seu paroxis mo já que a identidade dos atores até então mais ou menos visí vel agora finalmente aparece aos olhos de todos Essa guerra como norma justifica toda forma de apelo à for ça a que assistimos em diversos países um apelo não dissimu lado utilizado para dirimir os conflitos e conseqüência dessa ética 48 MILTON SANTOS que comanda outros subsistemas da vida social formando uma constelação que tanto orienta e dirige a produção da economia como também a produção da vida Essa nova lei do valor que é uma lei ideológica do valor é uma filha dileta da competitividade e acaba por ser responsável também pelo aban dono da noção e do fato da solidariedade Daí as fragmentações resultantes Daí a ampliação do desemprego Daí o abandono da educação Daí o desapreço à saúde como um bem individual e social inalienável Daí todas as novas formas perversas de sociabi lidade que já existem ou se estão preparando neste país para fazer dele ainda mais um país fragmentado cujas diversas parce las de modo a assegurar sua sobrevivência imediata serão joga das umas contra as outras e convidadas a uma batalha sem quartel O consumo e o seu despotismo Também o consumo muda de figura ao longo do tempo Falavase antes de autonomia da produção para significar que uma empresa ao assegurar uma produção buscava também manipular a opinião pela via da publicidade Nesse caso o fato gerador do consumo seria a produção Mas atualmente as em presas hegemônicas produzem o consumidor antes mesmo de produzir os produtos U m dado essencial do entendimento do consumo é que a produção do consumidor hoje precede à pro dução dos bens e dos serviços Então na cadeia causal a cha mada autonomia da produção cede lugar ao despotismo do con sumo Daí o império da informação e da publicidade Tal remédio teria 1 de medicina e 99 de publicidade mas to das as coisas no comércio acabam por ter essa composição POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 49 publicidade materialidade publicidade serviços e esse é o caso de tantas mercadorias cuja circulação é fundada numa pro paganda insistente e freqüentemente enganosa Há toda essa maneira de organizar o consumo para permitir em seguida a organização da produção Tais operações podem tornarse simultâneas diante do tem po do relógio mas do ponto de vista da lógica é a produção da informação e da publicidade que precede Desse modo vive mos cercados por todos os lados por esse sistema ideológico tecido ao redor do consumo e da informação ideologizados Esse consumo ideologizado e essa informação ideologizada acabam por ser o motor de ações públicas e privadas Esse par é ao mes mo tempo fortíssimo e fragilíssimo De um lado é muito forte pela sua eficácia atual sobre a produção e o consumo Mas de outro lado ele é muito fraco muito débil desde que encontre mos a maneira de definilo como um dado de um sistema mais amplo O consumo é o grande emoliente produtor ou encorajador de imobilismos Ele é também um veículo de narcisismos por meio dos seus estímulos estéticos morais so ciais e aparece como o grande fundamentalismo do nosso tem po porque alcança e envolve toda gente Por isso o entendimen to do que é o mundo passa pelo consumo e pela competitividade ambos fundados no mesmo sistema da ideologia Consumismo e competitividade levam ao emagrecimento moral e intelectual da pessoa à redução da personalidade e da visão do mundo convidando também a esquecer a oposição fundamental entre a figura do consumidor e a figura do cidadão É certo que no Brasil tal oposição é menos sentida porque em nosso país jamais houve a figura do cidadão As classes chamadas superiores incluindo as classes médias jamais 5 0 MILTON SANTOS quiseram ser cidadãs os pobres jamais puderam ser cidadãos As classes médias foram condicionadas a apenas querer privilé gios e não direitos E isso é um dado essencial do entendimento do Brasil de como os partidos se organizam e funcionam de como a política se dá de como a sociedade se move E aí tam bém as camadas intelectuais têm responsabilidade porque tras ladaram sem maior imaginação e originalidade à condição da classe média européia lutando pela ampliação dos direitos polí ticos econômicos e sociais para o caso brasileiro e atribuindo assim por equívoco à classe média brasileira um papel de mo dernização e de progresso que pela sua própria constituição ela não poderia ter A informação totalitária e a confusão dos espíritos Tudo isso se deve em grande parte ao fato de que o fim do século XX erigiu como um dado central do seu funcionamento o despotismo da informação relacionado em certa medida com o próprio nível alcançado pelo desenvolvimento da técnica atual tão necessitada de um discurso Como as atividades hegemônicas são hoje todas elas fundadas nessa técnica o discurso aparece como algo capital na produção da existência de todos Essa imprescindibilidade de um discurso que antecede a tudo a começar pela própria técnica a produção o consumo e o poder abre a porta à ideologia Antes era corrente discutirse a respeito da oposição entre o que era real e o que não era entre o erro e o acerto o erro e a verdade a essência e a aparência Hoje essa discussão talvez não tenha sequer cabimento porque a ideologia se torna real e está POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 5 1 presente como realidade sobretudo por meio dos objetos Os objetos são coisas são reais Eles se apresentam diante de nós não apenas como um discurso mas como um discurso ideoló gico que nos convoca malgrado nós a uma forma de compor tamento E esse império dos objetos tem um papel relevante na produção desse novo homem apequenado que estamos todos ameaçados de ser Até a Segunda Guerra Mundial tínhamos em torno de nós alguns objetos os quais comandávamos Hoje meio século depois o que há em torno é uma multidão de objetos todos ou quase todos querendo nos comandar Uma das gran des diferenças entre o mundo de há cinqüenta anos e o mundo de agora é esse papel de comando atribuído aos objetos E são objetos carregando uma ideologia que lhes é entregue pelos homens do marketing e do design ao serviço do mercado Do imperialismo ao mundo de hoje f s í i SjP O capitalismo concorrencial buscou a unificação do plane ta mas apenas obteve uma unificação relativa aprofundada sob o capitalismo monopolista graças aos progressos técnicos alcan çados nos últimos dois séculos e possibilitando uma transição para a situação atual de neoliberalismo Agora se pode de algu ma forma falar numa vontade de unificação absoluta alicerçada na tirania do dinheiro e da informação produzindo em toda parte situações nas quais tudo isto é coisas homens idéias compor tamentos relações lugares é atingido Em cada um desses momentos são diferentes as relações entre o indivíduo e a sociedade entre o mercado e a solidarie dade Até recentemente havia a busca de um relativo reforço 5 2 MILTON SANTOS mútuo das idéias e da realidade de autonomia individual com a vontade de produção de indivíduos fortes e de cidadãos e da idéia e da realidade de uma sociedade solidária com o Estado crescentemente empenhado em exercer uma regulação redistributiva As situações eram diferentes segundo os conti nentes e países e se o quadro acima referido não constituía uma realidade completa essa era uma aspiração generalizada Ao longo da história passada do capitalismo paralelamente à evolução das técnicas idéias morais e filosóficas se difundem assim como a sua realização política e jurídica de modo que os costumes as leis os regulamentos as instituições jurídicas e estatais buscavam realizar ao mesmo tempo mais controle so cial e também mais controle sobre ações individuais limitan do a ação daqueles vetores que deixados sozinhos levariam à eclosão de egoísmos ao exercício da força bruta e a desníveis sociais cada vez mais agudos Na fase atual de globalização o uso das técnicas conhece uma importante mudança qualitativa e quantitativa Passamos de um uso imperialista que era também um uso desigual e combi nado segundo os continentes e lugares a uma presença obriga tória em todos os países dos sistemas técnicos hegemônicos graças ao papel unificador das técnicas de informação O uso imperialista das técnicas permitia pela via da política uma certa convivência de níveis diferentes de formas técnicas e de formas organizacionais nos diversos impérios Tal situação permanece praticamente por um século sem que as diferen ças de poder entre os impérios fosse causa de conflitos durá veis entre eles e dentro deles O próprio imperialismo era di ferencial tal característica sendo conseqüência da subordinação do mercado à política seja a política internacional seja a polí P O R UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 5 3 tica interior a cada país ou a cada conjunto imperial C o m a globalização as técnicas se tornam mais eficazes sua presença se confunde com o ecúmeno seu encadeamento praticamente espontâneo se reforça e ao mesmo tempo o seu uso escapa sob muitos aspectos ao domínio da política e se torna subor dinado ao mercado Globalitarismos e totalitarismos Como as técnicas hegemônicas atuais são todas elas filhas da ciência e como sua utilização se dá ao serviço do mercado esse amálgama produz um ideário da técnica e do mercado que é santificado pela ciência considerada ela própria infalível Essa aliás é uma das fontes do poder do pensamento único Tudo o que é feito pela mão dos vetores fundamentais da globalização parte de idéias científicas indispensáveis à produção aliás ace lerada de novas realidades de tal modo que as ações assim cri adas se impõem como soluções únicas Nas condições atuais a ideologia é reforçada de uma forma que seria impossível ainda há um quarto de século já que pri meiro as idéias e sobretudo as ideologias se transformam em situações enquanto as situações se tornam em si mesmas idéi as idéias do que fazer ideologias e impregnam de volta a ciência que santifica as ideologias e legitima as ações uma ci ência cada vez mais redutora e reduzida mais distante da busca da verdade Desse conjunto de variáveis decorrem também outras condições da vida contemporânea fundadas na mate matização da existência carregando consigo uma crescente se dução pelos números um uso mágico das estatísticas 5 4 MILTON SANTOS É também a partir desse quadro que se pode interpretar a serialização de que falava JP Sartre em Questions de méthode Critique de la Raison dialectique 1960 Em tais condições instalam se a competitividade o salvesequempuder a volta ao caniba lismo a supressão da solidariedade acumulando dificuldades para um convívio social saudável e para o exercício da democra cia Enquanto esta é reduzida a uma democracia de mercado e amesquinhada como eleitoralismo isto é consumo de eleições as pesquisas perfilamse como um aferidor quantitativo da opinião da qual acaba por ser uma das formadoras levando tudo isso ao empobrecimento do debate de idéias e à própria morte da política Na esfera da sociabilidade levantamse utilitarismos como regra de vida mediante a exacerbação do consumo dos narcisismos do imediatismo do egoísmo do abandono da so lidariedade com a implantação galopante de uma ética prag mática individualista É dessa forma que a sociedade e os indiví duos aceitam dar adeus à generosidade à solidariedade e à emoção com a entronização do reino dq cálculo a partir do cál culo econômico e da competitividadej São todas essas condições para a difusão de um pensamen to e de uma prática totalitárias Esses totalitarismos se dão na esfera do trabalho como por exemplo num mundo agrícola modernizado onde os atores subalternizados convivem como num exército submetidos a uma disciplina militar O totalita rismo não é porém limitado à esfera do trabalho escorrendo para a esfera da política e das relações interpessoais e invadindo o próprio mundo da pesquisa e do ensino universitários medi ante um cerco às idéias cada vez menos dissimulado Cabenos mesmo indagar diante dessas novas realidades sobre a pertinência da presente utilização de concepções já ultrapassa POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 5 5 das de democracia opinião pública cidadania conceitos que necessitam urgente revisão sobretudo nos lugares onde essas categorias nunca foram claramente definidas nem totalmente exercitadas Nossa grande tarefa hoje é a elaboração de um novo dis curso capaz de desmitificar a competitividade e o consumo e de atenuar senão desmanchar a confusão dos espíritos 9 A violência estrutural e a perversidade sistêmica Falase hoje muito em violência e é geralmente admitido que é quase um estado uma situação característica do nosso tem po Todavia dentre as violências de que se fala a maior parte é sobretudo formada de violências funcionais derivadas enquan to a atenção é menos voltada para o que preferimos chamar de violência estrutural que está na base da produção das outras e constitui a violência central original Por isso acabamos por apenas condenar as violências periféricas particulares Ao nosso ver a violência estrutural resulta da presença e das manifestações conjuntas nessa era da globalização do dinheiro em estado puro da competitividade em estado puro e da potên cia em estado puro cuja associação conduz à emergência de novos totalitarismos e permite pensar que vivemos numa época de globalitarismo muito mais que de globalização Paralelamente evoluímos de situações em que a perversidade se manifestava de forma isolada para uma situação na qual se instala um siste ma da perversidade que ao mesmo tempo é resultado e causa 5 6 MILTON SANTOS da legitimação do dinheiro em estado puro da competitividade em estado puro e da potência em estado puro consagrando afi nal o fim da ética e o fim da política O dinheiro em estado puro Com a globalização impõese uma nova noção de riqueza de prosperidade e de equilíbrio macroeconômico conceitos fundados no dinheiro em estado puro e aos quais todas as eco nomias nacionais são chamadas a se adaptar A noção e a reali dade da dívida internacional também derivam dessa mesma ide ologia O consumo tornado um denominador comum para todos os indivíduos atribui um papel central ao dinheiro nas suas diferentes manifestações juntos o dinheiro e o consumo aparecem como reguladores da vida individual O novo dinheiro tornase onipresente Fundado numa ideologia esse dinheiro sem medida se torna a medida geral reforçando a vocação para considerar a acumulação como uma meta em si mesma Na re alidade o resultado dessa busca tanto pode levar à acumulação para alguns como ao endividamento para a maioria Nessas condições firmase um círculo vicioso dentro do qual o medo e o desamparo se criam mutuamente e a busca desenfreada do dinheiro tanto é uma causa como uma conseqüência do desam paro e do medo O resultado objetivo é a necessidade real ou imaginada de buscar mais dinheiro e como este em seu estado puro é indis pensável à existência das pessoas das empresas e das nações as formas pelas quais ele é obtido sejam quais forem já se encon tram antecipadamente justificadas POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 57 A competitividade em estado puro A necessidade de capitalização conduz a adotar como regra a necessidade de competir em todos os planos Dizse que as nações necessitam competir entre elas o que todavia é duvi doso e as empresas certamente competem por um quinhão sempre maior do mercado Mas a estabilidade de uma empresa pode depender de uma pequena ação desse mercado A sobre vivência está sempre por um fio N u m mundo globalizado re giões e cidades são chamadas a competir e diante das regras atuais da produção e dos imperativos atuais do consumo a competitividade se torna também uma regra da convivência entre as pessoas A necessidade de competir é aliás legitimada por uma ideologia largamente aceita e difundida na medida em que a desobediência às suas regras implica perder posições e até mes mo desaparecer do cenário econômico Criamse desse modo novos valores em todos os planos uma nova ética pervasiva e operacional face aos mecanismos da globalização Concorrer e competir não são a mesma coisa A concorrên cia pode até ser saudável sempre que a batalha entre agentes para melhor empreender uma tarefa e obter melhores resultados fi nais exige o respeito a certas regras de convivência preesta belecidas ou não Já a competitividade se funda na invenção de novas armas de luta num exercício em que a única regra é a conquista da melhor posição A competitividade é uma espécie de guerra em que tudo vale e desse modo sua prática provoca um afrouxamento dos valores morais e um convite ao exercício da violência 5 8 MILTON SANTOS A potência em estado puro Para exercer a competitividade em estado puro e obter o di nheiro em estado puro o poder a potência deve ser também exercido em estado puro O uso da força acaba se tornando uma necessidade Não há outro tetos outra finalidade que o próprio uso da força já que ela é indispensável para competir e fazer mais dinheiro isso vem acompanhado pela desnecessidade de respon sabilidade perante o outro a coletividade próxima e a humani dade em geral Por exemplo a idéia de que o desemprego é o resultado de um jogo simplório entre formas técnicas e decisões microe conômicas das empresas é uma simplificação originada dessa confusão como se a nação não devesse solidariedade a cada u m dos seus membros O abandono da idéia d e solidariedade está por trás desse entendimento da economia e conduz ao desam paro em que vivemos hoje Jamais houve n a história um perío do em que o medo fosse tão generalizado e alcançasse todas as áreas da nossa vida medo do desemprego m e d o da fome medo da violência medo do outro Tal medo se espalha e se aprofunda a partir de uma violência difusa mas estrutural típica do nosso tempo cujo entendimento é indispensável para compreender de maneira mais adequada questões como a dívida social e a vi olência funcional hoje tão presentes no cotidiano de todos A perversidade sistêmica Seja qual for o ângulo pelo qual se examinem as situações características do período atual a realidade p o d e ser vista como POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 59 uma fábrica de perversidade A fome deixa de ser um fato isola do ou ocasional e passa a ser um dado generalizado e perma nente Ela atinge 800 milhões de pessoas espalhadas por todos os continentes sem exceção Quando os progressos da medici na e da informação deviam autorizar uma redução substancial dos problemas de saúde sabemos que 14 milhões de pessoas morrem todos os dias antes do quinto ano de vida Dois bilhões de pessoas sobrevivem sem água potável Nun ca na história houve um tão grande número de deslocados e refu giados O fenômeno dos semteto curiosidade na primeira me tade do século XX hoje é um fato banal presente em todas as grandes cidades do mundo O desemprego é algo tomado comum Ao mesmo tempo ficou mais difícil do que antes atribuir educa ção de qualidade e mesmo acabar com o analfabetismo A po breza também aumenta N o fim do século XX havia mais 600 milhões de pobres do que em 1960 e 1 4 bilhão de pessoas ga nham menos de um dólar por dia Tais números podem ser na verdade ampliados porque ainda aqui os métodos quantitativos da estatística enganam ser pobre não é apenas ganhar menos do que uma soma arbitrariamente fixada ser pobre é participar de uma situação estrutural com uma posição relativa inferior den tro da sociedade como um todo E essa condição se amplia para um número cada vez maior de pessoas O fato porém é que a pobreza tanto quanto o desemprego agora são considerados como algo natural inerente a seu próprio processoTJuntõ ao desem prego e à pobreza absoluta registrese o empobrecimento relati vo de camadas cada vez maiores graças à deterioração do valor do trabalho N o México a parte de trabalho na renda nacional cai de 36 na década de 1970 para 23 em 1992 Vivemos num mundo de exclusões agravadas pela desproteção social apanágio do mo delo neoliberal que é também criador de insegurança 6 0 MILTON SANTOS Na verdade ajerversidade deixa de se manifestar por fatos isolados atribuídos a distorções da personalidade para se esta belecer como um sistema Ao nosso ver a causa essencial da perversidade sistêmica é a instituição por lei geral da vida soci al da competitividade como regra absoluta uma competitividade que escorre sobre todo o edifício social O outro seja ele empre sa instituição ou indivíduo aparece como um obstáculo à rea lização dos fins de cada um e deve ser removido por isso sendo considerado uma coisa Decorrem daí a celebração dos egoís mos o alastramento dos narcisismos a banalização da guerra de todos contra todos com a utilização de qualquer que seja o meio para obter o fim colimado isto é competir e se possível ven cer Daí a difusão também generalizada de outro subproduto da competitividade isto é a corrupção Esse sistema da perversidade inclui a morte da Política com um P maiúsculo já que a condução do processo político passa a ser atributo das grandes empresas Juntese a isso o processo de conformação da opinião pelas mídias um dado importante no movimento de alienação trazido com a substituição do de bate civilizatório pelo discurso único do mercado Daí o ensi namento e o aprendizado de comportamentos dos quais estão ausentes objetivos finalísticos e éticos Assim elaborado o sistema da perversidade legitima a pree minência de uma ação hegemônica mas sem responsabilidade e a instalação sem contrapartida de uma ordem entrópica com a produção natural da desordem Para tudo isso também contribui o estabelecimento do im pério do consumo dentro do qual se instalam consumidores mais que perfeitos M Santos O espaço do cidadão 1988 leva dos à negligência em relação à cidadania e seu corolário isto é o POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 6 1 menosprezo quanto à liberdade cujo culto é substituído pela pre ocupação com a incolumidade Esta reacende egoísmos e é um dos fermentos da quebra da solidariedade entre pessoas classes e regiões Incluamse também nessa lista dos processos caracterís ticos da instalação do sistema da perversidade a ampliação das de sigualdades de todo gênero interpessoais de classes regionais internacionais Às antigas desigualdades somamse novas Os papéis dominantes legitimados pela ideologia e pela prá tica da competitividade são a mentira com o nome de segredo da marca o engodo com o nome de marketing a dissimulação e o cinismo com os nomes de tática e estratégia E uma situação na qual se produz a glorificação da esperteza negando a sinceri dade e a glorificação da avareza negando a generosidade Des se modo o caminho fica aberto ao abandono das solidariedades e ao fim da ética mas também da política Para o triunfo das novas virtudes pragmáticas o ideal de democracia plena é subs tituído pela construção de uma democracia de mercado na qual a distribuição do poder é tributária da realização dos fins últi mos do próprio sistema globalitário Estas são as razões pelas quais a vida normal de todos os dias está sujeita a uma violência estrutural que aliás é a mãe de todas as outras violências 10 Da política dos Estados à politica das empresas Façamos um regresso muito breve ao começo da história humana quando o homem em sociedade relacionandose di retamente com a natureza constrói a história Nesse começo dos 6 2 MILTON SANTOS tempos os laços entre território política economia cultura e linguagem eram transparentes Nas sociedades que os antropó logos europeus e norteamericanos orgulhosamente chamaram de primitivas a relação entre setores da vida social também se dava diretamente Não havia praticamente intermediações Poderseia considerar que existia uma territorialidade ge nuína A economia e a cultura dependiam do território a lin guagem era uma emanação do uso do território pela economia e pela cultura e a política também estava com ele intimamente relacionada Havia por conseguinte uma territorialidade absoluta no sen tido de que em todas as manifestações essenciais de sua existên cia os moradores pertenciam àquilo que lhes pertencia isto é o território Isso criava um sentido de identidade entre as pessoas e o seu espaço geográfico que lhes atribuía em função da produ ção necessária à sobrevivência do grupo uma noção particular de limites acarretando paralelamente uma compartimentação do espaço o que também produzia uma idéia de domínio Para man ter a identidade e os limites era preciso ter clara essa idéia de domínio de poder A política do território tinha as mesmas bases que a política da economia da cultura da linguagem formando um conjunto indissociável Criavase paralelamente a idéia de comunidade um contexto limitado no espaço Sistemas técnicos sistemas filosóficos Toda relação do homem com a natureza é portadora e produto ra de técnicas que se foram enriquecendo diversificando e avolu mando ao longo do tempo Nos últimos séculos conhecemos um POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 63 avanço dos sistemas técnicos até que no século XVIII sur gem as técnicas das máquinas que mais tarde vão se incorpo rar ao solo como próteses proporcionando ao homem u m menor esforço na produção no transporte e nas comunicações mudando a face da Terra alterando as relações entre países e entre sociedades e indivíduos As técnicas oferecem respostas à vontade de evolução dos homens e definidas pelas possibili dades que criam são a marca de cada período da história Ávida assim realizada por meio dessas técnicas é pois cada vez menos subordinada ao aleatório e cada vez mais exige dos homens comportamentos previsíveis Essa previsibilidade de comportamento assegura de alguma maneira uma visão mais racional do mundo e também dos lugares e conduz a uma orga nização sociotécnica do trabalho do território e do fenômeno do poder Daí o desencantamento progressivo do mundo N o século XVIII aconteceram dois fenômenos extremamen te importantes U m é a produção das técnicas das máquinas que revalorizam o trabalho e o capital requalificam os territórios permitem a conquista de novos espaços e abrem horizontes para a humanidade Esse século marca o reforço do capitalismo e tam bém a entrada em cena do homem como um valor a ser consi derado O nascimento da técnica das máquinas o reforço da condição técnica na vida social e individual e as novas concep ções sobre o homem se corporificam com as idéias filosóficas que se iriam tornar forças da política Este é um outro dado importante O século XVIII produziu os enciclopedistas e a revolução americana e a Revolução Francesa respostas políticas às idéias filosóficas N u m momento em que o capitalismo também se 64 MILTON SANTOS reforçava se as técnicas houvessem sido entregues inteiramen te às mãos capitalistas sem que pelo outro lado surgissem as idéias filosóficas que também eram idéias morais o mundo teria se organizado de forma diferente Se ao lado desses progressos da técnica a serviço da produ ção e do capitalismo não houvesse a progressão das idéias terí amos tido uma eclosão muito maior do utilitarismo com uma prática mais avassaladora do lucro e da concorrência Ao con trário foi estabelecida a possibilidade de enriquecer moralmente o indivíduo A mesma ética glorificava o indivíduo responsável e a coletividade responsável Ambos eram responsáveis Indiví duo e coletividade eram chamados a criar juntos um enriqueci mento recíproco que iria apontar para a busca da democracia por intermédio do Estado Nacional do Estado de Direito e do Estado Social e para a produção da cidadania plena reivindica ção que se foi afirmando ao longo desses séculos Certamente a cidadania nunca chegou a ser plena mas quase alcançou esse estágio em certos países durante os chamados trinta anos glori osos depois do fim da Segunda Guerra Mundial E essa quase plenitude era paralela à quase plenitude da democracia A cida dania plena é um dique contra o capital pleno Tecnociência globalização e história sem sentido A globalização marca um momento de ruptura nesse pro cesso de evolução social e moral que se vinha fazendo nos sécu los precedentes E irônico recordar que o progresso técnico apa recia desde os séculos anteriores como uma condição para realizar essa sonhada globalização com a mais completa huma POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 65 nização da vida no planeta Finalmente quando esse progresso técnico alcança um nível superior a globalização se realiza mas não a serviço da humanidade A globalização mata a noção de solidariedade devolve o homem à condição primitiva do cada um por si e como se vol tássemos a ser animais da selva reduz as noções de moralidade pública e particular a um quase nada O período atual tem como uma das bases esse casamento entre ciência e técnica essa tecnociência cujo uso é condicionado pelo mercado Por conseguinte tratase de uma técnica e de uma ciência seletivas Como freqüentemente a ciência passa a pro duzir aquilo que interessa ao mercado e não à humanidade em geral o progresso técnico e científico não é sempre um progresso moral Pior talvez do que isso a ausência desse progresso mo ral e tudo o que é feito a partir dessa ausência vai pesar forte mente sobre o modelo de construção histórica dominante no último quartel do século XX Essa globalização tem de ser encarada a partir de dois proces sos paralelos De um lado dáse a produção de uma materialidade ou seja das condições materiais que nos cercam e que são a base da produção econômica dos transportes e das comunicações De outro há a produção de novas relações sociais entre países classes e pessoas A nova situação conforme já acentuamos vai se alicerçar em duas colunas centrais Uma tem como base o dinheiro e a outra se funda na informação Dentro de cada país sobretudo entre os mais pobres informação e dinheiro mundializados acabam por se impor como algo autônomo face à sociedade e mesmo à eco nomia tornandose um elemento fundamental da produção e ao mesmo tempo da geopolítica isto é das relações entre países e dentro de cada nação 6 6 MILTON SANTOS A informação é centralizada nas mãos de um número extre mamente limitado de firmas Hoje o essencial do que no mun do se lê tanto em jornais como em livros é produzido a partir de meia dúzia de empresas que na realidade não transmitem novidades mas as reescrevem de maneira específica Apesar de as condições técnicas da informação permitirem que toda a hu manidade conheça tudo o que o mundo é acabamos na realida de por não sabêlo por causa dessa intermediação deformante O mundo se torna fluido graças à informação mas também ao dinheiro Todos os contextos se intrometem e superpõem corporificando um contexto global no qual as fronteiras se tor nam porosas para o dinheiro e para a informação Além disso o território deixa de ter fronteiras rígidas o que leva ao enfraque cimento e à mudança de natureza dos Estados nacionais O discurso que ouvimos todos os dias para nos fazer crer que deve haver menos Estado valese dessa mencionada porosidade mas sua base essencial é o fato de que os condutores da globalização necessitam de um Estado flexível a seus interesses As privatizações são a mostra de que o capital se tomou devorante guloso ao ex tremo exigindo sempre mais querendo tudo Além disso a ins talação desses capitais globalizados supõe que o território se adapte às suas necessidades de fluidez investindo pesadamente para al terar a geografia das regiões escolhidas De tal forma o Estado acaba por ter menos recursos para tudo o que é social sobretudo no caso das privatizações caricatas como no modelo brasileiro que financia as empresas estrangeiras candidatas à compra do ca pital social nacional Não é que o Estado se ausente ou se torne menor Ele apenas se omite quanto ao interesse das populações e se torna mais forte mais ágil mais presente ao serviço da econo mia dominante POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 6 7 As empresas globais e a morte da política A política agora é feita no mercado Só que esse mercado glo bal não existe como ator mas como uma ideologia um símbolo Os atores são as empresas globais que não têm preocupações éticas nem finalísticas Dirseá que no mundo da compe titividade ou se é cada vez mais individualista ou se desapare ce Então a própria lógica de sobrevivência da empresa global sugere que funcione sem nenhum altruísmo Mas se o Estado não pode ser solidário e a empresa não pode ser altruísta a socie dade como um todo não tem quem a valha Agora se fala muito num terceiro setor em que as empresas privadas assumiriam um trabalho de assistência social antes deferido ao poder público Caberlhesia desse modo escolher quais os beneficiários pri vilegiando uma parcela da sociedade e deixando a maior parte de fora Haveria frações do território e da sociedade a serem deixadas por conta desde que não convenham ao cálculo das firmas Essa política das empresas equivale à decretação de morte da Política A política por definição é sempre ampla e supõe uma visão de conjunto Ela apenas se realiza quando existe a consideração de todos e de tudo Quem não tem visão de conjunto não chega a ser político E não há política apenas para os pobres como não há apenas para os ricos A eliminação da pobreza é um proble ma estrutural Fora daí o que se pretende é encontrar formas de proteção a certos pobres e a certos ricos escolhidos segundo os interesses dos doadores Mas a política tem de cuidar do con junto de realidades e do conjunto de relações Nas condições atuais e de um modo geral estamos assistindo à nãopolítica isto é à política feita pelas empresas sobretudo 6 8 MILTON SANTOS as maiores Quando uma grande empresa se instala chega com suas normas quase todas extremamente rígidas Como essas normas rígidas são associadas ao uso considerado adequado das técnicas correspondentes o mundo das normas se adensa por que as técnicas em si mesmas também são normas Pelo fato de que as técnicas atuais são solidárias quando uma se impõe cria se a necessidade de trazer outras sem as quais aquela não funcio na bem Cada técnica propõe uma maneira particular de com portamento envolve suas próprias regulamentações e por conseguinte traz para os lugares novas formas de relacionamen to O mesmo se dá com as empresas É assim que também se alteram as relações sociais dentro de cada comunidade Muda a estrutura do emprego assim como as outras relações econômi cas sociais culturais e morais dentro de cada lugar afetando igualmente o orçamento público tanto na rubrica da receita como no capítulo da despesa U m pequeno número de grandes empresas que se instala acarreta para a sociedade comoTmFíeTto um pesado processo de desequilíbrio Todavia mediante o discurso oficial tais empresas são apre sentadas como salvadoras dos lugares e são apontadas como cre doras de reconhecimento pelos seus aportes de emprego e modernidade Daí a crença de sua indispensabilidade fator da presente guerra entre lugares e em muitos casos de sua atitude de chantagem frente ao poder público ameaçando ir embora quando não atendidas em seus reclamos Assim o poder público passa a ser subordinado compelido arrastado À medida que se v impõe esse nexo das grandes empresas instalase a semente da ingovernabilidade já fortemente implantada no Brasil ainda que sua dimensão não tenha sido adequadamente avaliada À medida que os institutos encarregados de cuidar do interesse geral são P O R U M A OUTRA GLOBALIZAÇÃO 69 enfraquecidos com o abandono da noção e da prática da solidarie dade estamos pelo menos a médio prazo produzindo as precondições da fragmentação e da desordem claramente visíveis no país por meio do comportamento dos territórios isto é da crise praticamente geral dos estados e dos municípios 11 Em meio século três definições da pobreza Os países subdesenvolvidos conheceram pelo menos três formas de pobreza e paralelamente três formas de dívida social no último meio século A primeira seria o que ousadamente chamaremos de pobreza induída uma pobreza acidental às vezes residual ou sazonal produzida em certos momentos do ano uma pobreza intersticial e sobretudo sem vasos comunicantes Depois chega uma outra reconhecida e estudada como uma doença da civilização Então chamada de marginalidade tal po breza era produzida pelo processo econômico da divisão do tra balho internacional ou interna Admitiase que poderia ser corrigida o que era buscado pelas mãos dos governos E agora chegamos ao terceiro tipo a pobreza estrutural que de um ponto de vista moral e político equivale a uma dívida social Ela é estrutural e não mais local nem mesmo nacional tornase globalizada presente em toda parte no mundo Há uma disse minação planetária e uma produção globalizada da pobreza ainda que esteja mais presente nos países já pobres Mas é também uma produção científica portanto voluntária da dívida social para a qual na maior parte do planeta não se buscam remédios 7 0 MILTON SANTOS A pobreza incluída Antes as situações de pobreza podiam ser definidas como reveladoras de uma pobreza acidental residual estacionai intersticial vista como desadaptação local aos processos mais gerais de mudança ou como inadaptação entre condições naturais e condições sociais Era uma pobreza que se produzia num lugar e não se comunicava a outro lugar Então nem a cidade nem o território nem a própria socie dade eram exclusiva ou majoritariamente movidos por driving forces compreendidas pelo processo de racionalização A presen ça das técnicas coladas ao território ou inerentes à vida social era relativamente pouco expressiva reduzindo assim a eficácia dos processos racionalizadores porventura vigentes na vida eco nômica cultural social e política Desse modo a racionalidade da existência não constituía um dado essencial do processo his tórico limitandose a alguns aspectos isolados da sociabilidade A produção da pobreza iria buscar suas causas em outros fatores Na situação que estamos descrevendo as soluções ao pro blema eram privadas assistencialistas locais e a pobreza era freqüentemente apresentada como um acidente natural ou so cial Em um mundo onde o consumo ainda não estava larga mente difundido e o dinheiro ainda não constituía um nexo social obrigatório a pobreza era menos discriminatória Daí poderse falar de pobres incluídos A marginalidade N u m segundo momento a pobreza é identificada como uma doença da civilização cuja produção acompanha o próprio P O R UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 7 1 processo econômico Agora o consumo se impõe como um dado importante pois constitui o centro da explicação das diferenças e da percepção das situações Dois fatores jogam um papel funda mental Ampliamse de um lado as possibilidades de circulação e de outro graças às formas modernas de difusão das inovações a informação constitui um dado revolucionário nas relações sociais O radiotransistor era o grande símbolo A ampliação do consu mo ganha assim as condições materiais e psicológicas necessá rias dando à pobreza novos conteúdos e novas definições Além da pobreza absoluta criase e recriase incessantemente uma po breza relativa que leva a classificar os indivíduos pela sua capaci dade de consumir e pela forma como o fazem O estabelecimen to de índices de pobreza e miséria utiliza esses componentes Ainda nesse segundo momento que coincide com a gene ralização e o sucesso da idéia de subdesenvolvimento e das teo rias destinadas a combatêlo os pobres eram chamados de mar ginais Para superar tal situação considerada indesejável tornase também generalizada a preocupação dos governos e das sociedades nacionais por meio de suas elites intelectuais e políticas com o fenômeno da pobreza o que leva a uma busca de soluções de Estado para esse problema considerado grave mas não insolúvel O êxito do estado do bemestar em tantos países da Europa ocidental e a notícia das preocupações dos países so cialistas para com a população em geral funcionavam como ins piração aos países pobres todos comprometidos ao menos ideo logicamente com a luta contra a pobreza e suas manifestações ainda que não lhes fosse possível alcançar a realização do estado de bemestar Mesmo em países como o nosso o poder público é forçado a encontrar fórmulas saídas arremedos de solução Havia uma certa vergonha de não enfrentar a questão 7 2 MILTON SANTOS A pobreza estrutural globalizada O último período no qual nos encontramos revela uma pobreza de novo tipo uma pobreza estrutural globalizada re sultante de um sistema de ação deliberada Examinado o pro cesso pelo qual o desemprego é gerado e a remuneração do emprego se torna cada vez pior ao mesmo tempo em que o po der público se retira das tarefas de proteção social é lícito con siderar que a atual divisão administrativa do trabalho e a au sência deliberada do Estado de sua missão social de regulação estejam contribuindo para uma produção científica globalizada e voluntária da pobreza Agora ao contrário das duas fases ante riores tratase de uma pobreza pervasiva generalizada perma nente global Podese de algum modo admitir a existência de algo como um planejamento centralizado da pobreza atual ain da que seus atores sejam muitos o seu motor essencial é o mes mo dos outros processos definidores de nossa época A pobreza atual resulta da convergência de causas que se dão em diversos níveis existindo como vasos comunicantes e como algo racional um resultado necessário do presente processo um fenômeno inevitável considerado até mesmo um fato natural Alcançamos assim uma espécie de naturalização da pobre za que seria politicamente produzida pelos atores globais com a colaboração consciente dos governos nacionais e contraria mente às situações precedentes com a conivência de intelectuais contratados ou apenas contatados para legitimar essa na turalização Nessa última fase os pobres não são incluídos nem margi nais eles são excluídos A divisão do trabalho era até recente mente algo mais ou menos espontâneo Agora não Hoje ela POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 73 obedece a cânones científicos por isso a consideramos uma divisão do trabalho administrada e é movida por um meca nismo que traz consigo a produção das dívidas sociais e a disse minação da pobreza numa escala global Saímos de uma pobre za para entrar em outra Deixase de ser pobre em um lugar para ser pobre em outro Nas condições atuais é uma pobreza quase sem remédio trazida não apenas pela expansão do desemprego como também pela redução do valor do trabalho É o caso por exemplo dos Estados Unidos apresentado como o país que tem resolvido um pouco menos mal a questão do desemprego mas onde o valor médio do salário caiu E essa queda do desempre go não atinge igualmente toda a população porque os negros continuam sem emprego em proporção talvez pior do que an tes e as populações de origem latina se encontram na base da escala salarial Essa produção maciça da pobreza aparece como um fenômeno banal Uma das grandes diferenças do ponto de vista ético é que a pobreza de agora surge impõese e explicase como algo natural e inevitável Mas é uma pobreza produzida politicamente pelas empresas e instituições globais Estas de um lado pagam para criar soluções localizadas parcializadas segmentadas como é o caso do Banco Mundial que em diferentes partes do mundo finan cia programas de atenção aos pobres querendo passar a impres são de se interessar pelos desvalidos quando estruturalmente é o grande produtor da pobreza Atacamse funcionalmente ma nifestações da pobreza enquanto estruturalmente se cria a pobreza ao nível do mundo E isso se dá com a colaboração passiva ou ati va dos governos nacionais Vejam então a diferença entre o uso da palavra pobreza e da expressão dívida social nesses cinqüenta anos Os pobres isto 7 4 MILTON SANTOS é aqueles que são o objeto da dívida social foram já incluídos e depois marginalizados e acabam por ser o que hoje são isto é excluídos Esta exclusão atual com a produção de dívidas sociais obedece a um processo racional uma racionalidade sem razão mas que comanda as ações hegemônicas e arrasta as demais ações Os excluídos são o fruto dessa racionalidade Por aí se vê que a questão capital é o entendimento do nosso tempo sem o qual será impossível construir o discurso da liberação Este desde que seja simples e veraz poderá ser a base intelectual da política E isso é central no mundo de hoje um mundo no qual nada de importante se faz sem discurso O papel dos intelectuais O terrível é que nesse mundo de hoje aumenta o número de letrados e diminui o de intelectuais Não é este um dos dra mas atuais da sociedade brasileira Tais letrados equivocadamen te assimilados aos intelectuais ou não pensam para encontrar a verdade ou encontrando a verdade não a dizem Nesse caso não se podem encontrar com o futuro renegando a função prin cipal da intelectualidade isto é o casamento permanente com o porvir por meio da busca incansada da verdade Assim como o território é hoje um território nacional da economia internacional M Santos A natureza do espaço 1996 a pobreza hoje é a pobreza nacional da ordem internacional Essa realidade obriga a discutir algumas das soluções propostas para o problema como por exemplo quando se imagina poder compensar uma política neoliberal no plano nacional com a possibilidade de uma política social no plano subnacional N o POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 7 5 caso brasileiro é lamentável que políticos e partidos ditos de esquerda se entreguem a uma política de direita jogando para um lado a busca de soluções estruturais e limitandose a propor paliativos que não são verdadeiramente transformadores da sociedade porque serão inócuos no médio e no longo prazos As chamadas políticas públicas quando existentes não podem substituir a política social considerada um elenco coerente com as demais políticas econômica territorial etc Não se trata pois de deixar aos níveis inferiores de governo municípios estados a busca de políticas compensatórias para aliviar as conseqüências da pobreza enquanto ao nível fe deral as ações mais dinâmicas estão orientadas cada vez mais para a produção de pobreza O desejável seria que a partir de uma visão de conjunto houvesse redistribuição dos poderes e de re cursos entre diversas esferas políticoadministrativas do poder assim como uma redistribuição das prerrogativas e tarefas entre as diversas escalas territoriais até mesmo com a reformulação da federação Mas para isso é necessário haver um projeto na cional e este não pode ser uma formulação automaticamente derivada do projeto hegemônico e limitativo da globalização atual Ao contrário partindo das realidades e das necessidades de cada nação deve não só entendêlas como também consti tuir uma promessa de reformulação da própria ordem mundial Nas condições atuais um grande complicador vem do fato de que a globalização é freqüentemente considerada uma fatali dade baseada num exagerado encantamento pelas técnicas de ponta e com negligência quanto ao fator nacional deixandose de lado o papel do território utilizado pela sociedade como um seu retrato dinâmico Tal visão do mundo uma espécie de volta à velha noção de technological ftx uma única tecnologia eficaz 7 6 MILTON SANTOS acaba por consagrar a adoção de um ponto de partida fechado e por aceitar como indiscutível e inelutável o reino da necessida de com a morte da esperança e da generosidade Exclusão e dí vida social aparecem como se fossem algo fixo imutável indeclinável quando como qualquer outra ordem pode ser substituída por uma ordem mais humana 12 O quefazer com a soberania De que maneira a globalização afeta a soberania das nações as fronteiras dos países e a governabilidade plena é uma questão que volta e meia ocupa os espíritos seja teoricamente seja em função de fatos concretos Nesse terreno como em muitos ou tros a produção de meiasverdades é infinita e somos freqüen temente convocados a repetilas sem maior análise do proble ma Há mesmo quem se arrisque a falar de desterritorialidade fim das fronteiras morte do Estado Há os otimistas e pessimis tas os defensores e os acusadores Tomemos o caso particular do Brasil para discutir mais de perto essa questão ainda que nossa realidade se aparente à de muitos outros países do planeta Com a globalização o que te mos é um território nacional da economia internacional isto é o território continua existindo as normas públicas que o regem são da alçada nacional ainda que as forças mais ativas do seu dinamismo atual tenham origem externa Em outras palavras a contradição entre o externo e o interno aumentou Todavia é o Estado nacional em última análise que detém o monopólio das POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 7 7 normas sem as quais os poderosos fatores externos perdem efi cácia Sem dúvida a noção de soberania teve de ser revista face aos sistemas transgressores de âmbito planetário cujo exercício violento acentua a porosidade das fronteiras Estes são sobre tudo a informação e a finança cuja fluidez se multiplica graças às maravilhas da técnica contemporânea Mas é um equívoco pensar que a informação e a finança exercem sempre sua força sem encontrar contrapartida interna Esta depende de uma von tade política interior capaz de evitar que a influência dos ditos fatores seja absoluta Ao contrário do que se repete impunemente o Estado con tinua forte e a prova disso é que nem as empresas transnacionais nem as instituições supranacionais dispõem de força normativa para impor sozinhas dentro de cada território sua vontade política ou econômica Por intermédio de suas normas de pro dução de trabalho de financiamento e de cooperação com ou tras firmas as empresas transnacionais arrastam outras empre sas e instituições dos lugares onde se instalam impondolhes comportamentos compatíveis com seus interesses Mas a vida de uma empresa vai além do mero processo técnico de produ ção e alcança todo o entorno a começar pelo próprio mercado e incluindo também as infraestruturas geográficas de apoio sem o que ela não pode ter êxito É o Estado nacional que afinal regula o mundo financeiro e constrói infraestruturas atri buindo assim a grandes empresas escolhidas a condição de sua viabilidade O mesmo pode ser dito das instituições suprana cionais FMI Banco Mundial Nações Unidas Organização Mundial do Comércio tujos editos ou recomendações neces sitam de decisões internas a cada país para que tenham eficácia O Banco Central é freqüentemente essa correia de transmissão 78 MILTON SANTOS situada acima do Parlamento entre uma vontade política ex terna e uma ausência de vontade interior Por isso tornouse corriqueiro entregar a direção desses bancos centrais a persona gens mais comprometidas com os postulados ideológicos da finança internacional do que com os interesses concretos das sociedades nacionais Mas a cessão de soberania não é algo natural inelutável automático pois depende da forma como o governo de cada país decide fazer sua inserção no mundo da chamada globalização O Estado altera suas regras e feições num jogo combinado de influências externas e realidades internas Mas não há apenas um caminho e este não é obrigatoriamente o da passividade Por conseguinte não é verdade que a globalização impeça a consti tuição de um projeto nacional Sem isso os governos ficam à mercê de exigências externas por mais descabidas que sejam Este parece ser o caso do Brasil atual Cremos todavia que sem pre é tempo de corrigir os rumos equivocados e mesmo num mundo globalizado fazer triunfar os interesses da nação I V O TERRITÓRIO D O DINHEIRO E D A FRAGMENTAÇÃO Introdução N o mundo da globalização o espaço geográfico ganha no vos contornos novas características novas definições E tam bém uma nova importância porque a eficácia das ações está estreitamente relacionada com a sua localização Os atores mais poderosos se reservam os melhores pedaços do território e dei xam o resto para os outros Numa situação de extrema competitividade como esta em que vivemos os lugares repercutem os embates entre os diver sos atores e o território como um todo revela os movimentos de fundo da sociedade A globalização com a proeminência dos sistemas técnicos e da informação subverte o antigo jogo da evolução territorial e impõe novas lógicas Os territórios tendem a uma compartimentação generalizada onde se associam e se chocam o movimento geral da sociedade planetária e o movimento particular de cada fração regional ou 80 MILTON SANTOS local da sociedade nacional Esses movimentos são paralelos a um processo de fragmentação que rouba às coletividades o co mando do seu destino enquanto os novos atores também não dispõem de instrumentos de regulação que interessem à socie dade em seu conjunto A agricultura moderna cientifizada e mundializada tal como a assistimos se desenvolver em países como o Brasil constitui um exemplo dessa tendência e um dado essencial ao entendimento do que no país constituem a com partimentação e a fragmentação atuais do território Outro fenômeno a levar em conta é o papel das finanças na reestruturação do espaço geográfico O dinheiro usurpa em seu favor as perspectivas de fluidez do território buscando confor mar sob seu comando as outras atividades Mas o território não é um dado neutro nem um ator passi vo Produzse uma verdadeira esquizofrenia já que os lugares escolhidos acolhem e beneficiam os vetores da racionalidade dominante mas também permitem a emergência de outras for mas de vida Essa esquizofrenia do território e do lugar tem um papel ativo na formação da consciência O espaço geográfico não apenas revela o transcurso da história como indica a seus atores o modo de nela intervir de maneira consciente 13 O espaço geográfico compartimentação efragmentação Ao longo da história humana olhado o planeta como um todo ou observado através dos continentes e países o espaço geográfico sempre foi objeto de uma compartimentação N o POR U M A OUTRA GLOBALIZAÇÃO começo havia ilhas de ocupação devidas à presença de grupos tribos nações cujos espaços de vida formariam verdadeiros ar quipélagos Ao longo do tempo e à medida do aumento das po pulações e do intercâmbio essa trama foi se tornando cada vez mais densa Hoje com a globalização podese dizer que a tota lidade da superfície da Terra é compartimentada não apenas pela ação direta do homem mas também pela sua presença política Nenhuma fração do planeta escapa a essa influência Desse modo a velha noção de ecúmeno perde a antiga definição e ga nha uma nova dimensão tanto se pode dizer que toda a super fície da Terra se tornou ecúmeno quanto se pode afirmar que essa palavra já não se aplica apenas ao planeta efetivamente ha bitado Com a globalização todo e qualquer pedaço da superfí cie da Terra se torna funcional às necessidades usos e apetites de Estados e empresas nesta fase da história Desse modo a superfície da Terra é inteiramente comparti mentada e o respectivo caleidoscópio se apresenta sem solução de continuidade Redefinida em função dos característicos de uma época a compartimentação atual distinguese daquela do passado e freqüentemente se dá como fragmentação Seu con teúdo e definição variam através dos tempos mas sempre reve lam um cotidiano compartido e complementar ainda que tam bém conflitivo e hierárquico um acontecer solidário identificado com o meio ainda que sem excluir relações distantes Tal soli dariedade e tal identificação constituem a garantia de uma pos sível regulação interna Já a fragmentação revela um cotidiano em que há parâmetros exógenos sem referência ao meio A assimetria na evolução das diversas partes e a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de regulação tanto interna quanto externa constituem uma característica marcante 82 MILTON SANTOS A compartimentação passado e presente Até recentemente a humanidade vivia o mundo da lentidão no qual a prática de velocidades diferentes não separava os res pectivos agentes Eram ritmos diversos mas não incompatíveis Dentro de cada área os compartimentos eram soldados por re gras ainda que não houvesse contiguidade entre eles O mes mo pode ser dito em relação ao que se passava na escala interna cional O melhor exemplo desde o último quartel do século XLX é o da constituição dos impérios fundado cada qual numa base técnica diferente o que não impedia a sua coexistência nem a possibilidade de cooperação na diferença Durante um século conviveram impérios como o britânico portador das técnicas mais avançadas da produção material dos transportes das co municações e do dinheiro com impérios desse ponto de vista menos avançados por exemplo o império português ou o im pério espanhol Podese dizer que a política compensava a di versidade e a diferenciação do poder técnico ou do poder eco nômico assegurando ao mesmo tempo a ordem interna a cada um desses impérios e a ordem internacional Por intermédio da política cada país imperial regulava a produção própria e a das suas colônias o comércio entre estas e os outros países o fluxo de produtos mercadorias e pessoas o valor do dinheiro e as formas de governo O famoso pacto colonial acabava por com preender todas as manifestações da vida histórica e os equilíbrios no interior de cada império se davam paralelamente ao equilí brio entre as nações imperiais De algum modo a ordem inter nacional era produzida por meio da política dos Estados Dentro de cada país a compartimentação e a solidariedade presumiam a presença de certas condições todas praticamente relacionadas P O R U M A OUTRA GLOBALIZAÇÃO 83 com o território uma economia territorial uma cultura ter ritorial regidas por regras igualmente territorializadas na for ma de leis e de tratados mas também de costumes Por meio da regulação a compartimentação dos territórios na escala nacional e internacional permite que sejam neutraliza k das diferenças e mesmo as oposições sejam pacificadas mediante i um processo político que se renova adaptandose às realidades emergentes para também renovar desse modo a solidariedade N o plano internacional esse processo cumulativo de adap tações leva às modificações do estatuto colonial aceleradas com o fim da Segunda Guerra Mundial N o plano interno a busca de solidariedade conduz ao enriquecimento dos direitos sociais com a instalação de diferentes modalidades de democracia social Rapidez fluidez fragmentação Hoje vivemos um mundo da rapidez e da fluidez Tratase de uma fluidez virtual possível pela presença dos novos siste mas técnicos sobretudo os sistemas da informação e de uma fluidez efetiva realizada quando essa fluidez potencial é utiliza da no exercício da ação pelas empresas e instituições hege mônicas A fluidez potencial aparece no imaginário e na ideolo gia como se fosse um bem comum uma fluidez para todos quando na verdade apenas alguns agentes têm a possibilidade de utilizála tornandose desse modo os detentores efetivos da velocidade O exercício desta é pois o resultado das disponibi lidades materiais e técnicas existentes e das possibilidades de ação Assim o mundo da rapidez e da fluidez somente se entende a partir de um processo conjunto no qual participam de um lado 8 4 MILTON SANTOS Y 1 IsfJJAjdtfò as técnicas atuais e de outro a política atual sendo que esta é empreendida tanto pelas instituições públicas nacionais intra nacionais e internacionais como pelas empresas privadas As atuais compartimentações dos territórios ganham esse novo ingrediente Criamse paralelamente incompatibilidades entre velocidades diversas e os portadores das velocidades extremas buscam induzir os demais atores a acompanhálos procurando disseminar as infraestruturas necessárias à desejada fluidez nos lugares que consideram necessários para a sua atividade Há to davia sempre uma seletividade nessa difusão separando os es paços da pressa daqueles outros propícios à lentidão e dessa forma acrescentando ao processo de compartimentação nexos verticais que se superpõem à compartimentação horizontal característica da história humana até data recente O fenômeno é geral já que conforme vimos antes tudo hoje está compartimentado incluindo toda a superfície do planeta É por meio dessas linhas de menor resistência e por conse guinte de maior fluidez que o mercado globalizado procura ins talar a sua vocação de expansão mediante processos que levam à busca da unificação e não propriamente à busca da união O chamado mercado global se impõe como razão principal da cons tituição desses espaços da fluidez e logo da sua utilização im pondo por meio de tais lugares um funcionamento que repro duz as suas próprias bases John Gray Falso amanhecer os equívocos do capitalismo 1999 a começar pela competitividade A lite ratura apologética da globalização fala de competitividade entre Estados mas na verdade tratase de competitividade entre em presas que às vezes arrastam o Estado e sua força normativa na produção de condições favoráveis àquelas dotadas de mais poder E dessa forma que se potencializa a vocação de rapidez POR U M A OUTRA GLOBALIZAÇÃO 8 5 e de urgência de algumas empresas em detrimento de outras uma competitividade que agrava as diferenças de força e as dispa ridades enquanto o território pela sua organização constitui se num instrumento do exercício dessas diferenças de poder Cada empresa porém utiliza o território em função dos seus fins próprios e exclusivamente em função desses fins As em presas apenas têm olhos para os seus próprios objetivos e são cegas para tudo o mais Desse modo quanto mais racionais forem as regras de sua ação individual tanto menos tais regras serão respeitosas do entorno econômico social político cultural moral ou geográfico funcionando as mais das vezes como um elemento de perturbação e mesmo de desordem Nesse movi mento tudo que existia anteriormente à instalação dessas em presas hegemônicas é convidado a adaptarse às suas formas de ser e de agir mesmo que provoque no entorno preexistente grandes distorções inclusive a quebra da solidariedade social Competitividade versus solidariedade Podese dizer então que em última análise a competiti vidade acaba por destroçar as antigas solidariedades freqüente mente horizontais e por impor uma solidariedade vertical cujo epicentro é a empresa hegemônica localmente obediente a inte resses globais mais poderosos e desse modo indiferente ao en torno As solidariedades horizontais preexistentes refaziamse historicamente a partir de um debate interno levando a ajustes inspirados na vontade de reconstruir em novos termos a própria solidariedade horizontal Já agora a solidariedade vertical que se impõe exclui qualquer debate local eficaz já que as empresas 8 6 MILTON SANTOS hegemônicas têm apenas dois caminhos permanecer para exer cer plenamente seus objetivos individualistas ou retirarse Como cada empresa hegemônica no objetivo de se manter como tal deve realçar tais interesses individuais sua ação é rara mente coordenada com a de outras ou com o poder público e tal descoordenação agrava a desorganização isto é reduz as pos sibilidades do exercício de uma busca de sentido para a vida local Cada empresa hegemônica age sobre uma parcela do terri tório O território como um todo é objeto da ação de várias empresas cada qual conforme já vimos preocupada com suas próprias metas e arrastando a partir dessas metas o comporta mento do resto das empresas e instituições Que resta então da nação diante dessa nova realidade Como a nação se exerce diante da verdadeira fragmentação do território função das formas con temporâneas de ação das empresas hegemônicas A palavra fragmentação impõese com toda força porque nas condições acima descritas não há regulação possível ou esta apenas consagra alguns atores e estes enquanto produzem uma ordem em causa própria criam paralelamente desordem para tudo o mais Como essa ordem desordeira é global inerente ao próprio processo produtivo da globalização atual ela não tem limites mas não tem limites porque também não tem finalida des e desse modo nenhuma regulação é possível porque não desejada Esse novo poder das grandes empresas cegamente exercido é por natureza desagregador excludente fragmen tador seqüestrando autonomia ao resto dos atores Os fragmentos resultantes desse processo articulamse ex ternamente segundo lógicas duplamente estranhas por sua sede distante longínqua quanto ao espaço da ação e pela sua incon formidade com o sentido preexistente da vida na área em que se P O R U M A OUTRA GLOBALIZAÇÃO S7 instala Desse modo produzse uma verdadeira alienação ter ritorial à qual correspondem outras formas de alienação Dentro de um mesmo país se criam formas e ritmos dife rentes de evolução governados pelas metas e destinos específi x cos de cada empresa hegemônica que arrastam com sua presença outros atores sociais mediante a aceitação ou mesmo a elabora ção de discursos nacionaisregionais alienígenas ou alienados Outra reação conduz à elaboração paralela de discursos reativos dotados de conteúdo específico e destinados a mostrar inconformidade com as formas vigentes de inserção no mun do Criamse em certos casos novas soberanias como por exemplo na antiga Iugoslávia ou autonomias ampliadas entronizando o que se poderiam chamar regiõespatses cujo exem plo emblemático nos vem da Espanha Como resolver a ques tão de dentro de um mesmo país quando o passado não ofere ceu como herança conjunta a existência de culturas particulares solidamente estabelecidas junto a uma vontade política regio nal já exercida como poder Esse problema se torna mais agudo na medida em que as compartimentações atuais do território não são enxergadas como fragmentação Isso se dá geralmente quando a interpretação do fato nacional é entregue a visões aparentemente totalizantes mas na realidade particularistas como certos enfoques da economia e mesmo da ciência política que não se apropriam da noção do território considerado como território usado e visto desse modo como estrutura dotada de um movimento próprio E melhor fa zer a nação por intermédio do seu território porque nele tudo o que é vida está representado 88 MILTON SANTOS 14 A agricultura científica globalizada e a alienação do território Desde o princípio dos tempos a agricultura comparece como uma atividade reveladora das relações profundas entre as socie dades humanas e o seu entorno N o começo da história tais re lações eram a bem dizer entre os grupos humanos e a nature za O avanço da civilização atribui ao homem por meio do aprofundamento das técnicas e de sua difusão uma capacidade cada vez mais crescente de alterar os dados naturais quando pos sível reduzir a importância do seu impacto e também por meio da organização social de modificar a importância dos seus re sultados Os últimos séculos marcam para a atividade agrícola com a humanização e a mecanização do espaço geográfico uma considerável mudança de qualidade chegandose recentemente à constituição de um meio geográfico a que podemos chamar de meio técnicocientíficoinformacional característico não ape nas da vida urbana mas também do mundo rural tanto nos paí ses avançados como nas regiões mais desenvolvidas dos países pobres E desse modo que se instala uma agricultura propria mente científica responsável por mudanças profundas quanto à produção agrícola e quanto à vida de relações Podemos agora falar de uma agricultura científica globa lizada Quando a produção agrícola tem uma referência plane tária ela recebe influência daquelas mesmas leis que regem os outros aspectos da produção econômica Assim a competi tividade característica das atividades de caráter planetário leva a um aprofundamento da tendência à instalação de uma agricul tura científica Esta como vimos é exigente de ciência técnica POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 89 e informação levando ao aumento exponencial das quantidades produzidas em relação às superfícies plantadas Por sua natureza global conduz a uma demanda extrema de comércio O dinheiro passa a ser uma informação indispensável A demanda externa de racionalidade Nas áreas onde essa agricultura científica globalizada se ins tala verificase uma importante demanda de bens científicos sementes inseticidas fertilizantes corretivos e também de assistência técnica Os produtos são escolhidos segundo uma base mercantil o que também implica uma estrita obediência aos mandamentos científicos e técnicos São essas condições que regem os processos de plantação colheita armazenamento empacotamento transportes e comercialização levando à intro dução aprofundamento e difusão de processos de racionaliza ção que se contagiam mutuamente propondo a instalação de sistemismos que atravessam o território e a sociedade levando com a racionalização das práticas a uma certa homogeneização Dáse na realidade também uma certa militarização do tra balho já que o critério do sucesso é a obediência às regras sugeridas pelas atividades hegemônicas sem cuja utilização os agentes recalcitrantes acabam por ser deslocados Se entender mos o território como um conjunto de equipamentos de insti tuições práticas e normas que conjuntamente movem e são movidas pela sociedade a agricultura científica moderna e globalizada acaba por atribuir aos agricultores modernos a ve lha condição de servos da gleba É atender a tais imperativos ou c a i r 9 0 MILTON SANTOS Nas áreas onde tal fenômeno se verifica registrase uma tendência a um duplo desemprego o dos agricultores e outros empregados e o dos proprietários por isso formase no mundo rural em processo de modernização uma nova massa de emi grantes que tanto se podem dirigir às cidades quanto participar da produção de novas frentes pioneiras dentro do próprio país ou no estrangeiro como é o caso dos brasiguaios As situações assim criadas são variadas e múltiplas produ zindo uma tipologia de atividades cujos subtipos dependem das condições fundiárias técnicas e operacionais preexistentes Numa mesma área ainda que as produções predominantes se assemelhem a heterogeneidade é de regra Há na verdade heterogeneidade e complementaridade Desse modo podese falar na existência simultânea de continuidades e descontinui dades E dessa maneira que se enriquece o papel da vizinhança e a despeito das diferenças existentes entre os diversos agentes eles vivem em comum certas experiências como por exemplo a subordinação ao mercado distante Tal experiência é tanto mais sensível porque decorre de uma demanda externa de racionalidade e das respectivas dificul dades de oferecer uma resposta Resta como conseqüência a tomada de consciência da importância de fatores externos um mercado longínquo até certo ponto abstrato uma concorrência de certo modo invisível preços internacionais e nacionais sobre os quais não há controle local improvável também para outros componentes do cotidiano igualmente elaborados de fora como o valor externo da moeda câmbio de que depende o valor in terno da produção o custo do dinheiro e o peso sobre o produ tor dos lucros auferidos por todos os tipos de intermediação POR U M A OUTRA GLOBALIZAÇÃO 91 A cidade do campo A agricultura moderna se realiza por meio dos seus belts spots áreas mas a sua relação com o mundo e com as áreas dinâmicas do país se dá por meio de pontos E o que explica por exemplo o importante relacionamento existente entre cidades regionais e São Paulo Nessas localidades dáse uma oferta de informação ime diata e próxima ligada à atividade agrícola e produzindo uma ati vidade urbana de fabricação e de serviços que fruto da produção regional é largamente especializada e paralelamente um ou tro tipo de atividade urbana ligada ao consumo das famílias e da administração A cidade é um pólo indispensável ao comando técnico da produção a cuja natureza se adapta e é um lugar de residência de funcionários da administração pública e das empre sas mas também de pessoas que trabalham no campo e que sen do agrícolas são também urbanas isto é urbanoresidentes As atividades e profissões tradicionais juntamse novas ocupações e às burguesias e classes médias tradicionais juntamse as moder nas formando uma mescla de formas de vida atitudes e valores Tal cidade cujo papel de comando técnico da produção é bastan te amplo tem também um papel político frente a essa mesma produção Mas na medida em que a produção agrícola tem uma vocação global esse papel político é limitado incompleto e indi reto O mundo confusamente enxergado a partir desses lugares é visto como um parceiro inconstante Sem dúvida os diversos atores têm interesses diferentes às vezes convergentes certamente complementares Tratase de uma produção local mista matiza da contraditória de idéias São visões do mundo do país e do lugar elaboradas na cooperação e no conflito Tal processo é criador de ambigüidades e de perplexidades mas também de uma certeza 9 2 MILTON SANTOS dada pela emergência da cidade como um lugar político cujo papel é duplo ela é um regulador do trabalho agrícola sequioso de uma interpretação do movimento do mundo e é a sede de uma socie dade local compósita e complexa cuja diversidade constitui um permanente convite ao debate 15 Compartimentação efragmentação do espaço ocaso do Brasil O exame do caso brasileiro quanto à modernização agrícola revela a grande vulnerabilidade das regiões agrícolas modernas face à modernização globalizadora Examinando o que signi fica na maior parte dos estados do Sul e do Sudeste e nos esta dos de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul bem como em manchas isoladas de outros estados verificase que o campo modernizado se tornou praticamente mais aberto à expansão das formas atuais do capitalismo que as cidades Desse modo en quanto o urbano surge sob muitos aspectos e com diferentes matizes como o lugar da resistência as áreas agrícolas se trans formam agora no lugar da vulnerabilidade O papel das lógicas exógenas De tais áreas podese dizer que atualmente funcionam sob um regime obediente a preocupações subordinadas a lógicas dis tantes externas em relação à área da ação mas essas lógicas são POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 9 3 internas aos setores e às empresas globais que as mobilizam Daí se criarem situações de alienação que escapam a regulações lo cais ou nacionais embora arrastando comportamentos locais regionais nacionais em todos os domínios da vida influencian do o comportamento da moeda do crédito do gasto público e do emprego incidindo sobre o funcionamento da economia regional e urbana por intermédio de suas relações determinantes sobre o comércio a indústria os transportes e os serviços Para lelamente alteramse os comportamentos políticos e adminis trativos e o conteúdo da informação Esse processo de adaptação das regiões agrícolas modernas se dá com grande rapidez impondolhes num pequeno espaço de tempo sistemas de vida cuja relação com o meio é reflexa enquanto as determinações fundamentais vêm de fora N u m mundo globalizado idêntico movimento pode ser tam bém rapidamente implantado em outras áreas num mesmo país ou em outro continente Assim a noção de competitividade mos trase aqui com toda força politicamente ajudada pelas manipu lações do comércio exterior ou das barreiras alfandegárias Cabe perguntar nessas circunstâncias o que pode acontecer a uma área agrícola que mediante um desses processos seja esvaziada do seu conteúdo econômico Que acontecerá por exemplo às novas áreas de agricultura globalizada do estado de São Paulo no caso da mudança internacional da conjuntura da economia da laranja do açúcar ou do álcool E como diante de tal mudança poderão reagir a região o estado de São Paulo e a nação A apreciação das perspectivas abertas a essas áreas moderni zadas com tendência a particularizações extremas deve levar em conta o fato de que o sentido que é impresso à vida em todas as suas dimensões baseiase em maior ou menor grau em fatores 9 4 MILTON SANTOS exógenos De um ponto de vista nacional redefinese uma diver sidade regional que agora não é controlada nem controlável seja pela sociedade local seja pela sociedade nacional É uma diversi dade regional de novo tipo em que se agravam as disparidades territoriais em equipamento recursos informação força econô mica e política características da população níveis de vida etc Ao menos em um primeiro momento e sob o impulso da competitividade globalizadora produzemse egoísmos locais ou regionais exacerbados justificados pela necessidade de defesa das condições de sobrevivência regional mesmo que isso tenha de se dar à custa da idéia de integridade nacional Esse caldo de cultura pode levar à quebra da solidariedade nacional e condu zir a uma fragmentação do território e da sociedade As dialéticas endógenas Há todavia uma dialética interna a cada um dos fragmen tos resultantes O produto ou produtos com a responsabilida de de comando da economia regional inclui atores com dife rentes perfis e interesses cujo índice de satisfação também é diferente Dentro de cada região as alianças e acordos e os con tratos sociais implícitos ou explícitos estão sempre se refazendo e a hegemonia deve ser sempre revista O processo produtivo reúne aspectos técnicos e aspectos políticos Os primeiros têm mais a ver com a produção propria mente dita e sua área de incidência se verifica mormente dentro da própria região A parcela política do processo produtivo ao contrário relacionada com o comércio os preços os subsídios o custo do dinheiro etc tem sua sede fora da região e seus pro P O R UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 9 5 cessos freqüentemente escapam ao controle e até mesmo ao entendimento dos principais interessados E isso que leva à tomada gradativa de consciência pela sociedade local de que lhe escapa a palavra final quanto à produção local do valor Nessas circunstâncias a cidade ganha uma nova dimensão e um novo papel mediante uma vida de relações também reno vada cuja densidade inclui as tarefas ligadas à produção glo balizada Por isso a cidade se torna o lugar onde melhor se es clarecem as relações das pessoas das empresas das atividades e dos fragmentos do território com o país e com o mundo Esse papel de encruzilhada agora atribuído aos centros regio nais da produção agrícola modernizada faz deles o lugar da pro dução ativa de um discurso com pretensões a ser unitário e de uma política com pretensão a ser mais que um conjunto de re gras particulares Todavia tais políticas acabam no longo prazo e mesmo no médio prazo por revelar sua debilidade sua relati vidade sua ineficácia sua nãooperacionalidade O que recla mar do poder local vistos os limites da sua competência que reivindicar aos estados federados que solicitar eficazmente aos agentes econômicos globais quando se sabe que estes podem encontrar satisfação aos seus apetites de ganho simplesmente mudando o lugar de sua operação Para encontrar um começo de resposta o primeiro passo é regressar às noções de nação solidariedade nacional Estado nacional De um ponto de vista prático voltaríamos à idéia já expressa por nós em outra oca sião da constituição de uma federação de lugares com a recons trução da federação brasileira a partir da célula local feita de forma a que o território nacional venha a conhecer uma com partimentação que não seja também uma fragmentação Desse modo a federação seria refeita de baixo para cima ao contrário 9 6 MILTON SANTOS da tendência a que agora está sendo arrastada pela subordinação aos processos de globalização 16 O território do dinheiro A quedadebraço entre governos municipais e estaduais e o governo federal é mais que uma discussão técnica para saber quem deve arcar com o ônus das dificuldades financeiras dos 27 estados e dos mais de 5500 municípios A questão é a federação e sua inadequação aos tempos da nova história com a emergência da globalização O que está em jogo é o próprio sistema de relações constituído de um lado pelos novos conteúdos demográfico econômico social de estados e municípios e a manutenção do conteúdo normativo do território agora que face à globalização se produz um embate entre um dinheiro globalizado e as instân cias políticoadministrativas do Estado brasileiro Definições O território não é apenas o resultado da superposição de um conjunto de sistemas naturais e um conjunto de sistemas de coisas criadas pelo homem O território é o chão e mais a população isto é uma identidade o fato e o sentimento de per tencer àquilo que nos pertence O território é a base do traba lho da residência das trocas materiais e espirituais e da vida sobre os quais ele influi Quando se fala em território devese POR U M A OUTRA GLOBALIZAÇÃO 9 7 pois de logo entender que se está falando em território usado utilizado por uma dada população U m faz o outro à maneira da célebre frase de Churchill primeiro fazemos nossas casas de pois elas nos fazem A idéia de tribo povo nação e depois de Estado nacional decorre dessa relação tornada profunda O dinheiro é uma invenção da vida de relações e aparece como decorrência de uma atividade econômica para cujo inter câmbio o simples escambo já não basta Quando a complexida de é um fruto de especializações produtivas e a vida econômica se torna complexa o dinheiro acaba sendo indispensável e ter mina se impondo como um equivalente geral de todas as coisas que são objeto de comércio Na verdade o dinheiro constitui também um dado do processo facilitando seu aprofundamento já que ele se torna representativo do valor atribuído à produção e ao trabalho e aos respectivos resultados O dinheiro e o território situações históricas N u m primeiro momento tratase do dinheiro local expres sivo de um horizonte comercial elementar abrangente de con textos geográficos limitados ou para atender às necessidades de um comércio e de uma circulação longínquos nas mãos de co merciantes itinerantes avalistas do valor das mercadorias Tal mundo é caracterizado por compartimentações muito numero sas mas um mundo sem movimento lento estável e cujos fragmentos quase seriam autocontidos Tais mônadas numero sas existiriam paralelamente mas sem o princípio geral sugeri do por Leibniz 98 MILTON SANTOS Nesse primeiro momento o funcionamento do território deve muito às suas feições naturais às quais os homens se adap tam com pequena intermediação técnica As relações sociais presentes são pouco numerosas simples e pouco densas O en torno dos homens acaba por lhe ser conhecido e os seus misté rios são apenas devidos às forças naturais desconhecidas Tais condições materiais terminam por se impor sobre o resto da vida social numa situação na qual o valor de cada pedaço de chão lhe é atribuído pelo seu uso Assim a existência pode ser interpre tada a partir de relações observadas diretamente entre os homens e entre os homens e o meio O território usado pela sociedade local rege as manifestações da vida social inclusive o dinheiro Metamorfoses das duas categorias ao longo do tempo Com a ampliação do comércio produzse uma interde pendência crescente entre sociedades até então relativamente iso ladas cresce o número de objetos e valores a trocar as próprias trocas estimulam a diversificação e o aumento de volume de uma produção destinada a um consumo longínquo O dinheiro se instala como condição tanto desse escambo quanto da produ ção de cada grupo tornandose instrumental à regulação da vida econômica e assegurando assim o alargamento do seu âmbito e a freqüência do seu uso Na realidade o que cresce se expande e se torna mais com plexo e denso não é apenas o comércio internacional mas também o interno Assim cada vez mais coisas tendem a tor narse objeto de intercâmbio valorizado cada vez mais pela tro P O R U M A OUTRA GLOBALIZAÇÃO 9Ç ca do que pelo uso e desse modo reclamando uma medida ho mogênea e permanente Assim o dinheiro aumenta sua indis pensabilidade e invade mais numerosos aspectos da vida econô mica e social Paralelamente o território se apresenta como uma arena de movimentos cada vez mais numerosos fundados sobre uma lei do valor que tanto deve ao caráter da produção presente em cada lugar como às possibilidades e realidades da circulação O dinhei ro é cada vez mais um dado essencial para o uso do território Mas a lei do valor também se estende aos próprios lugares cada qual representando em dada circunstância e em função do comércio de que participam um certo índice de valor que é também a base dos movimentos que deles partem ou que a eles chegam Quanto mais movimento maior se torna a complexidade das relações internas e externas e aprofundase a necessidade de uma regulação da qual o dinheiro constitui um dos elementos ain da que o seu papel não seja o papel central Este é atribuído à categoria estado cuja necessidade se levanta como um impera tivo atribuindose limites externos as fronteiras estabelecidas limites internos as subdivisões políticoadministrativas em di versos níveis e conteúdos normativos as leis e costumes em matéria de competências e recursos É assim que se instalam na história categorias interdependentes o Estado territorial o ter ritório nacional o Estado nacional São eles que em conjunto regem o dinheiro Há por conseguinte um dinheiro nacional que apesar de um comércio externo crescente tem a cara do país e é regulado pelo país Dirseia que esse dinheiro é relativamente coman dado de dentro 100 MILTON SANTOS O dinheiro da globalização Com a globalização o uso das técnicas disponíveis permite a instalação de um dinheiro fluido relativamente invisível pra ticamente abstrato Como equivalente geral o dinheiro se torna um equivalen te realmente universal ao mesmo tempo em que ganha uma existência praticamente autônoma em relação ao resto da eco nomia Assim autonomizado podese até dizer que esse dinhei ro em estado puro é um equivalente geral dele próprio Talvez por isso sua existência concreta e sua eficácia sejam resultado das normas com as quais se impõe aos outros dinheiros e a to dos os países permitindose desse modo a elaboração de um discurso sem o qual sua eficácia seria infinitamente menor e a sua força menos evidente É aliás a partir deste caráter ideoló gico equivalente a uma verdadeira falsificação do critério que dinheiro global é também despótico Nas condições atuais as lógicas do dinheiro impõemse àquelas da vida socioeconómica e política forçando mimetismos adaptações rendições Tais lógicas se dão segundo duas verten tes uma é a do dinheiro das empresas que responsáveis por um setor da produção são também agentes financeiros mobiliza dos em função da sobrevivência e da expansão de cada firma em particular mas há também a lógica dos governos financeiros globais Fundo Monetário Internacional Banco Mundial ban cos travestidos em regionais como o BID É por intermédio deles que as finanças se dão como inteligência geral Essa inteligência global é exercida pelo que se chamaria de contabilidade global cuja base é um conjunto de parâmetros segundo os quais aqueles governos globais medem avaliam e P O R UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 101 classificam as economias nacionais por meio de uma escolha arbitrária de variáveis que apenas contempla certa parcela da produção deixando praticamente de lado o resto da economia Por isso podese dizer que adotado esse critério de avaliação o Produto Nacional Bruto apenas constitui um nomefantasia para essa famosa contabilidade global É por meio desse mecanismo que o dinheiro global auto nomizado e não mais o capital como um todo se torna hoje o principal regedor do território tanto o território nacional como suas frações Antes o território continha o dinheiro em uma dupla acepção o dinheiro sendo representativo do território que o abrigava e sendo em parte regulado pelo território consi derado como território usado Hoje sob influência do dinhei ro global o conteúdo do território escapa a toda regulação interna objeto que ele é de uma permanente instabilidade da qual os diversos agentes apenas constituem testemunhas passivas A ação territorial do dinheiro global em estado puro acaba por ser uma ação cega gerando ingovernabilidades em virtude dos seus efeitos sobre a vida econômica mas também sobre a vida administrativa N o território a finança global instalase como a regra das regras um conjunto de normas que escorre imperioso sobre a totalidade do edifício social ignorando as estruturas vigen tes para melhor poder contrariálas impondo outras estrutu ras N o lugar a finança global se exerce pela existência das pessoas das empresas das instituições criando perplexidades e sugerindo interpretações que podem conduzir à ampliação da consciência 102 MILTON SANTOS Situações regionais A vontade de homogeneização do dinheiro global é contra riada pelas resistências locais à sua expansão Desse modo seu processo tende a ser diferente segundo os espaços socioeco nómicos e políticos Há também uma vontade de adaptação às novas condições do dinheiro já que a fluidez financeira é considerada uma ne cessidade para ser competitivo e conseqüentemente exitoso no mundo globalizado A constituição do Mercado Comum Europeu isto é da Comunidade Econômica Européia a instituição da ASEAN e o pretendido estabelecimento da ALCA obedecem a esse mesmo princípio de modo a permitir às respectivas economias mas sobretudo aos Estados líderes e às empresas neles situadas que possam participar de modo mais agressivo do comércio mundial buscando o que lhes parece necessário a cobiçada hegemonia A Europa é o subcontinente mais avançado no que toca a essa questão E verdade que o processo de unificação européia se inicia após a Segunda Guerra Mundial e vem realizando eta pas sucessivas sendo a última em data a constituição do mer cado comum financeiro do qual a moeda única o euro consti tui o símbolo As etapas precedentes constituíram uma espécie de preparação para a unificação financeira e incluíram medidas objetivando a fluidez das mercadorias dos homens da mãode obra e do próprio território inclusive nos países menos desen volvidos de modo a que a Europa como um todo se pudesse tornar um continente igualmente fluido Sem isso e sem o re forço da idéia de cidadaniauma cidadania agora multinacional POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 103 para os signatários do Tratado de Schengen seria impossível pensar numa moeda única sem aumentar as diferenças e desequilíbrios já existentes Completando esse pano de fundo a unificação monetária é considerada um fator indispensável ao estabelecimento de uma economia européia competitiva ao nível global mediante uma divisão do trabalho renovada segundo a qual alguns países vêem reforçadas algumas de suas atividades e devem renunciar a ou tras após uma concertação às vezes longa e penosa em Bruxe las Na verdade porém essa unificação e equalização intraeu ropéia acaba por ser mais um episódio de uma guerra porque destinadas a fortalecer a Europa para competir com os outros membros da Tríade e tirar proveito de suas relações assimétricas com o resto do mundo O caso latinoamericano e brasileiro é diferente O próprio Mercosul mantém por enquanto uma prática limitada ao co mércio e seu próprio projeto é menos abrangente quanto às relações sociais culturais e políticas Não há uma clara preocu pação de buscar um desenvolvimento homogêneo e as iniciati vas de investimento têm muito mais a ver com o crescimento do produto isto é com o florescimento de certo número de empresas voltadas para o comércio regional das quais aliás al gumas são igualmente inseridas no comércio mundial Por ou tro lado diferentemente do caso europeu as moedas nacionais não são propriamente conversíveis nem comunicáveis direta mente entre elas Sua relação com o mundo é pobre tanto quan titativa como qualitativamente já que são moedas dependentes cujo desvalimento aumenta face à globalização constituindo um elemento a mais de agravamento de sua própria dependência 1 0 4 MILTON SANTOS Efeitos do dinheiro global Esta é uma das razões pelas quais a decisão de participar passi vamente da globalização acaba por ser danosa Quanto melhor é o exercício do modelo pior é para o país Essa situação é ainda mais grave nos países complexos e grandes na medida em que a vocação homogeneizadora do capital global vai ser exercida sobre uma base formada por parcelas muito diferentes umas das outras e cujas di ferenças e desigualdades são ampliadas sob tal ação unitária O dinheiro regulador e homogeneizador agrava heteroge neidades e aprofunda as dependências É assim que ele contribui para quebrar a solidariedade nacional criando ou aumentando as fraturas sociais e territoriais e ameaçando a unidade nacional O conteúdo do território como um todo e de cada um dos seus compartimentos muda de forma brusca e também rapida mente perde uma parcela maior ou menor de sua identidade em favor de formas de regulação estranhas ao sentido local da vida E por esse prisma que deveria ser vista a questão da federa ção e da governabilidade da nação na medida em que o gover no da nação se solidariza com os desígnios das forças externas levantamse problemas cruciais para estados e municípios A questão é estrutural e desse modo o problema de estados e municípios é no fundo um só esse problema é constituído pelas formas atuais de compartimentação do território e o seu novo conteúdo que inclui as formas de ação do dinheiro internacional Epílogo A questão que se põe como uma espada de Dâmocles sobre as nossas cabeças é a seguinte vamos reconstruir a federação para POR U M A OUTRA GLOBALIZAÇÃO 1 0 5 servir melhor ao dinheiro ou para atender à população Agora tudo está sendo feito para refazer a federação de modo a que seja instrumental às forças financeiras São o Banco Central e o Mi nistério da Fazenda em combinação com as instituições finan ceiras internacionais que orientam as grandes reformas ora em curso Devemos então nos preparar para a nova etapa que aliás já se anuncia a da reconstrução do arcabouço político territorial do país ao serviço da sociedade isto é da população 17 Verticalidades e horizontalidades O tema das verticalidades e das horizontalidades já havia sido tratado por mim no livrou natureza do espaço Técnica e tempo Razão e emoção 1996 sobretudo no capítulo 12 Vamos agora abordá lo segundo novos ângulos e ambicionando uma visão prospec tiva a partir desses dois recortes superpostos e complementares do espaço geográfico atual As verticalidades As verticalidades podem ser definidas num território como um conjunto de pontos formando um espaço de fluxos A idéia de certo modo remonta aos escritos de François Perroux Léconomie du XX e siècle 1961 quando ele descreveu o espaço econômico Tal noção foi recentemente reapropriada por Ma nuel Castells A sociedade em rede 1999 Esse espaço de fluxos 106 MILTON SANTOS seria na realidade um subsistema dentro da totalidadeespaço já que para os efeitos dos respectivos atores o que conta é so bretudo esse conjunto de pontos adequados às tarefas produti vas hegemônicas características das atividades econômicas que comandam este período histórico O sistema de produção que se serve desse espaço de fluxos é constituído por redes um sistema reticular exigente de flui dez e sequioso de velocidade São os atores do tempo rápido que plenamente participam do processo enquanto os demais raramente tiram todo proveito da fluidez Tais espaços de fluxos vivem uma solidariedade do tipo organizacional isto é as relações que man têm a agregação e a cooperação entre agentes resultam em um pro cesso de organização no qual predominam fatores externos às áreas de incidência dos mencionados agentes Chamemos macroatores àqueles que de fora da área determinam as modalidades internas de ação E a esses macroatores que em última análise cabe direta ou indiretamente a tarefa de organizar o trabalho de todos os ou tros os quais de uma forma ou de outra dependem da sua regulação O fato de que cada um deva adaptar comportamentos locais aos interesses globais que estão sempre mudando leva o processo organizacional a se dar com descontinuidades cujo ritmo depende do número e do poder correspondente a cada macroagente Por intermédio dos mencionados pontos do espaço de flu xos as macroempresas acabam por ganhar um papel de regulação do conjunto do espaço Juntese a esse controle a ação explícita ou dissimulada do Estado em todos os seus níveis territoriais Tratase de uma regulação freqüentemente subordinada porque em grande número de casos destinada a favorecer os atores hegemônicos Tomada em consideração determinada área o es paço de fluxos tem o papel de integração com níveis econômicos e espaciais mais abrangentes Tal integração todavia é vertical POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 107 dependente e alienadora já que as decisões essenciais concer nentes aos processos locais são estranhas ao lugar e obedecem a motivações distantes Nessas condições a tendência é a prevalência dos interesses corporativos sobre os interesses públicos quanto à evolução do território da economia e das sociedades locais Dentro desse quadro a política das empresas isto é sua policy aspira e consegue mediante uma governance tornarse política na ver dade uma política cega pois deixa a construção do destino de uma área entregue aos interesses privatísticos de uma empresa que não tem compromissos com a sociedade local Na situação acima descrita instalamse forças centrífugas certamente determinantes com maior ou menor força do con junto dos comportamentos E em certos casos quando conse guem contagiar o todo ou a maioria do corpo produtivo tais forças centrífugas são ao mesmo tempo determinantes e do minantes Tal dominância é também portadora da racionalidade hegemônica e cujo poder de contágio facilita a busca de uma unificação e de uma homogeneização As frações do território que constituem esse espaço de flu xos constituem o reino do tempo real subordinandose a um relógio universal aferido pela temporalidade globalizada das empresas hegemônicas presentes Desse modo ordenado o es paço de fluxos tem vocação a ser ordenador do espaço total ta refa que lhe é facilitada pelo fato de a ele ser superposto O modelo econômico assim estabelecido tende a reproduzir se ainda que mostrando topologias específicas ligadas à natureza dos produtos à força das empresas implicadas e à resistência do espaço preexistente O modelo hegemônico é planejado para ser em sua ação individual indiferente a seu entorno Mas este de algum modo se opõe à plenitude dessa hegemonia Esta porém 108 MILTON SANTOS é exercida em sua forma limite pois a empresa se esforça por es gotar as virtualidades e perspectivas de sua ação racional O ní vel desse limite define a operação respectiva do ponto de vista de sua rentabilidade comparada à de outras empresas e de outros lugares Se considerada insatisfatória leva à sua migração As verticalidades são pois portadoras de uma ordem impla cável cuja convocação incessante a seguila representa um convi te ao estranhamento Assim quanto mais modernizados e pe netrados por essa lógica mais os espaços respectivos se tornam alienados O elenco das condições de realização das verticalidades mostra que para sua efetivação ter um sentido é desnecessário enquanto a grande força motora seria aquele instinto animal das empresas mencionado há decênios por Stephan Hymer e agora multiplicado e potencializado a partir da globalização As verticalidades realizam de modo indiscutível aquela idéia de Jean Gottmann The evolution of the concept of territory Information sur les Sciences Sociales 1975 segundo a qual o territó rio pode ser visto como um recurso justamente a partir do uso pragmático que o equipamento modernizado de pontos esco lhidos assegura As horizontalidades As horizontalidades são zonas da contiguidade que formam extensões contínuas Valemonos outra vez do vocabulário de François Perroux quando se referiu à existência de um espaço banal em oposição ao espaço econômico O espaço banal seria o espaço de todos empresas instituições pessoas o espaço das vivências POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 1 0 9 Esse espaço banal essa extensão continuada em que os ato res são considerados na sua contiguidade são espaços que sus tentam e explicam um conjunto de produções localizadas interdependentes dentro de uma área cujas características cons tituem também um fator de produção Todos os agentes são de uma forma ou de outra implicados e os respectivos tempos mais rápidos ou mais vagarosos são imbricados Em tais circuns tâncias podese dizer que a partir do espaço geográfico criase uma solidariedade orgânica o conjunto sendo formado pela existência comum dos agentes exercendose sobre um territó rio comum Tais atividades não importa o nível devem sua cria ção e alimentação às ofertas do meio geográfico local Tal con junto indissociável evolui e muda mas tal movimento pode ser visto como uma continuidade exatamente em virtude do papel central que é jogado pelo mencionado meio geográfico local Nesse espaço banal a ação atual do Estado além de suas funções igualmente banais é limitada Na verdade mudadas as condições políticas é nesse espaço banal que o poder público encontraria as melhores condições para sua intervenção O fato de que o Estado se preocupe sobretudo com o desempenho das macroempresas às quais oferece regras de natureza geral que desconhecem particularidades criadas a partir do meio geográ fico leva à ampliação das verticalidades e paralelamente per mite o aprofundamento da personalidade das horizontalidades Nestas ainda que estejam presentes empresas com diferentes níveis de técnicas de capital e de organização o princípio que permite a sobrevivência de cada uma é o da busca de certa inte gração no processo da ação Tratase aqui da produção local de uma integração solidária obtida mediante solidariedades horizontais internas cuja natureza 1 1 0 MILTON SANTOS é tanto econômica social e cultural como propriamente geográ fica A sobrevivência do conjunto não importa que os diversos agentes tenham interesses diferentes depende desse exercício da solidariedade indispensável ao trabalho e que gera a visibilidade do interesse comum Tal ação comum não é obrigatoriamente o resultado de pactos explícitos nem de políticas claramente estabelecidas A própria existência adaptandose a situações cujo comando freqüentemente escapa aos respectivos atores acaba por exigir de cada qual um permanente estado de alerta no sentido de apreender as mudanças e descobrir as soluções indispensáveis Podese dizer que tal situação assegura a permanência de forças centrípetas Estas ainda que não sejam determinantes já que as horizontalidades recebem influxos das verticalidades são dominantes Tais forças centrípetas garantem sua sobrevivência pelo fato de que o âmbito de realização dos atores é limitado confundindose todos num espaço geográfico restrito que é ao mesmo tempo a base de sua atuação As horizontalidades pois além das racionalidades típicas das verticalidades que as atravessam admitem a presença de outras racionalidades chamadas de irracionalidades pelos que deseja riam ver como única a racionalidade hegemônica Na verdade são contraracionalidades isto é formas de convivência e de regulação criadas a partir do próprio território e que se mantêm nesse território a despeito da vontade de unificação e homo geneização características da racionalidade hegemônica típica das verticalidades A presença dessas verticalidades produz tendên cias à fragmentação com a constituição de alvéolos representa tivos de formas específicas de ser horizontal a partir das respec tivas particularidades POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 1 1 1 A busca de um sentido Ao contrário das verticalidades regidas por um relógio úni co implacável nas horizontalidades assim particularizadas fun cionam ao mesmo tempo vários relógios realizandose para lelamente diversas temporalidades Tratase de um espaço à vocação solidária sustento de uma organização em segundo nível enquanto sobre ele se exerce uma vontade permanente de desorganização ao serviço dos atores hegemônicos Esse processo dialético impede que o poder sempre crescente e cada vez mais invasor dos atores hegemô nicos fundados nos espaços de fluxos seja capaz de eliminar o espaço banal que é permanentemente reconstituído segundo uma nova definição Podese dizer que ao contrário da ordem imposta nos es paços de fluxos pelos atores hegemônicos e da obediência alie nada dos atores subalternizados hegemonizados nos espaços banais se recria a idéia e o fato da Política cujo exercício se tor na indispensável para providenciar os ajustamentos necessários ao funcionamento do conjunto dentro de uma área específica Por meio de encontros e desencontros e do exercício do debate e dos acordos buscase explícita ou tacitamente a readaptação às novas formas de existência O processo acima descrito é também aquele pelo qual uma sociedade e um território estão sempre à busca de um sentido e exercem por isso uma vida reflexiva Neste caso o território não é apenas o lugar de uma ação pragmática e seu exercício comporta também um aporte da vida uma parcela de emoção que permite aos valores representar um papel O território se metamorfoseia em algo mais do que um simples recurso e para 112 MILTON SANTOS utilizar uma expressão que é também de Jean Gottmann cons titui um abrigo Na realidade a mesma fração do território pode ser recurso e abrigo pode condicionar as ações mais pragmáticas e ao mesmo tempo permitir vocações generosas Os dois movimentos são concomitantes Nas condições atuais o movimento determinante com tendência a uma difusão avassaladora é o da criação da or dem da racionalidade pragmática enquanto a produção do espa ço banal é residual Podese todavia imaginar outro cenário no qual o comportamento do espaço de fluxos seja subordinado não como agora à realização do dinheiro e encontre um freio a essa forma de manifestação tomandose subordinado à realização ple na da vida de modo que os espaços banais aumentem sua capaci dade de servir à plenitude do homem 18 A esquizofrenia do espaço Como sabemos o mundo como um conjunto de essências e de possibilidades não existe para ele próprio e apenas o faz para os outros É o espaço isto é os lugares que realizam e re velam o mundo tornandoo historicizado e geografizado isto é empiricizado Os lugares são pois o mundo que eles reproduzem de modos específicos individuais diversos Eles são singulares mas são também globais manifestações da totalidademundo da qual são formas particulares POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 113 Ser cidadão num lugar MÜ Nas condições atuais o cidadão do lugar pretende instalar se também como cidadão do mundo A verdade porém é que o mundo não tem como regular os lugares Em conseqüên cia a expressão cidadão do mundo tornase um voto uma pro messa uma possibilidade distante Como os atores globais efica zes são em última análise antihomem e anticidadão a possibilidade de existência de um cidadão do mundo é condicio nada pelas realidades nacionais Na verdade o cidadão só o é ou não o é como cidadão de um país Ser cidadão de um país sobretudo quando o território é ex tenso e a sociedade muito desigual pode constituir apenas uma perspectiva de cidadania integral a ser alcançada nas escalas sub nacionais a começar pelo nível local Esse é o caso brasileiro em que a realização da cidadania reclama nas condições atuais uma revalorização dos lugares e uma adequação de seu estatuto político A multiplicidade de situações regionais e municipais trazida com a globalização instala uma enorme variedade de quadros de vida cuja realidade preside o cotidiano das pessoas e deve ser a base para uma vida civilizada em comum Assim a possibili dade de cidadania plena das pessoas depende de soluções a se rem buscadas localmente desde que dentro da nação seja insti tuída uma federação de lugares uma nova estruturação políticoterritorial com a indispensável redistribuição de recur sos prerrogativas e obrigações A partir do país como federação de lugares será possível num segundo momento construir um mundo como federação de países Tratase em ambas as etapas de uma construção de baixo para cima cujo ponto central é a existência de individualidades 114 MILTON SANTOS fortes e das garantias jurídicas correspondentes A base geográ fica dessa construção será o lugar considerado como espaço de exercício da existência plena Estamos porém muito longe da realização desse ideal Como então poderemos alcançálo O cotidiano e o território O território tanto quanto o lugar são esquizofrênicos porque de um lado acolhem os vetores da globalização que neles se insta lam para impor sua nova ordem e de outro lado neles se produz uma contraordem porque há uma produção acelerada de pobres excluídos marginalizados Crescentemente reunidas em cidades cada vez mais numerosas e maiores e experimentando a situação de vizinhança que segundo Sartre é reveladora essas pessoas não se subordinam de forma permanente à racionalidade hegemônica e por isso com freqüência podem se entregar a manifestações que são a contraface do pragmatismo Assim junto à busca da sobrevivência vemos produzirse na base da sociedade um pragmatismo mesclado com a emoção a partir dos lugares e das pessoas juntos Esse é também um modo de insurreição em relação à globalização com a descoberta de que a despeito de ser mos o que somos podemos também desejar ser outra coisa Nisso o papel do lugar é determinante Ele não é apenas um quadro de vida mas um espaço vivido isto é de experiência sempre renovada o que permite ao mesmo tempo a reavaliação das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro A exis tência naquele espaço exerce um papel revelador sobre o mundo Globais os lugares ganham um quinhão maior ou menor da racionalidade do mundo Mas esta se propaga de modo POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 1 1 5 heterogêneo isto é deixando coexistirem outras racionalidades isto é contraracionalidades a que equivocadamente e do pon to de vista da racionalidade dominante se chamam irracio nalidades Mas a conformidade com a Razão Hegemônica é limitada enquanto a produção plural de irracionalidades é ili mitada É somente a partir de tais irracionalidades que é possí vel a ampliação da consciência Se este é um dado geral ele se dá com variações segundo as coletividades e os subespaços Vejamse por exemplo as dife renças hoje entre campo e cidade N o campo as racionalidades da globalização se difundem mais extensivamente e mais rapi damente Na cidade as irracionalidades se criam mais numero sa e incessantemente que as racionalidades sobretudo quando há paralelamente produção de pobreza É este o fundamento da esquizofrenia do lugar Tal esquizo frenia se resolve a partir do fato de que cada pessoa grupo fir ma instituição realiza o mundo à sua maneira A pessoa o gru po a firma a instituição constituem o de dentro do lugar com o qual se comunicam sobretudo pela mediação da técnica e da produção propriamente dita enquanto o mundo se dá para a pessoa grupo firma instituição como o defora do lugar e por in termédio de uma mediação política A mediação técnica e a pro dução correspondente local e diretamente experimentadas podem não ser inteiramente compreendidas mas são vividas como um dado imediato enquanto a mediação política fre qüentemente exercida de longe e cujos objetivos nem sempre são evidentes exige uma interpretação mais filosófica Uma filosofia banal começa por se instalar no espírito das pessoas com a descoberta autorizada pelo cotidiano da não autonomia das ações e dos seus resultados Este é um dado 1 1 6 MILTON SANTOS V LIMITES À GLOBALIZAÇÃO PERVERSA Introdução A análise do fenômeno da globalização ficaria incompleta se após reconhecer os fatores que possibilitaram sua emergência apenas nos detivéssemos na apreciação dos seus aspectos atual mente dominantes de que resultam tantos inconvenientes para a maior parte da humanidade Cabe agora verificar os limites dessa evolução e reconhe cer a emergência de certo número de sinais indicativos de que outros processos paralelamente se levantam autorizando pen sar que vivemos uma verdadeira fase de transição para um novo período Em primeiro lugar o denso sistema ideológico que envolve e sustenta as ações determinantes parece não resistir à evidência dos fatos A velocidade não é um bem que permita uma distri buição generalizada e as disparidades no seu uso garantem a exacerbação das desigualdades Ávida cotidiana também revela a impossibilidade de fruição das vantagens do chamado tempo comum a todas as pessoas não importa a diferença de suas situa ções Mas outra coisa é ultrapassar a descoberta da diferença e chegar à sua consciência Uma pedagogia da existência Isso todavia não é tudo A consciência da diferença pode conduzir simplesmente à defesa individualista do próprio inte resse sem alcançar a defesa de um sistema alternativo de idéias e de vida De um ponto de vista das idéias a questão central reside no encontro do caminho que vai do imediatismo às visões fina lísticas e de um ponto de vista da ação o problema é ultrapassar as soluções imediatistas por exemplo eleitoralismos interessei ros e apenas provisoriamente eficazes e alcançar a busca política genuína e constitucional de remédios estruturais e duradouros Nesse processo afirmase também segundo novos moldes a antiga oposição entre o mundo e o lugar A informação mun dializada permite a visão mesmo em jlashes de ocorrências dis tantes O conhecimento de outros lugares mesmo superficial e incompleto aguça a curiosidade Ele é certamente um subproduto de uma informação geral enviesada mas se for ajudado por um conhecimento sistêmico do acontecer global autoriza a visão da história como uma situação e um processo ambos críticos De pois o problema crucial é como passar de uma situação crítica a uma visão críticae em seguida alcançar uma tomada de cons ciência Para isso é fundamental viver a própria existência como algo de unitário e verdadeiro mas também como um paradoxo obedecer para subsistir e resistir para poder pensar o futuro En tão a existência é produtora de sua própria pedagogia 1 1 8 MILTON SANTOS real para a maioria da humanidade A promessa de que as técni cas contemporâneas pudessem melhorar a existência de todos caem por terra e o que se observa é a expansão acelerada do rei no da escassez atingindo as classes médias e criando mais pobres As populações envolvidas no processo de exclusão assim fortalecido acabam por relacionar suas carências e vicissitudes ao conjunto de novidades que as atingem Uma tomada de cons ciência tornase possível ali mesmo onde o fenômeno da escas sez é mais sensível Por isso a compreensão do que se está pas sando chega com clareza crescente aos pobres e aos países pobres cada vez mais numerosos e carentes Daí o repúdio às idéias e às práticas políticas que fundamentam o processo socioeconómico atual e a demanda cada vez mais pressurosa de novas soluções Estas não mais seriam centradas no dinheiro como na atual fase da globalização para encontrar no próprio homem a base e o motor da construção de um novo mundo 19 A variável ascendente Os fenômenos a que muitos chamam de globalização e ou tros de pósmodernidade Renato Ortiz Mundialização e cultu ra 1994 na verdade constituem juntos um momento bem de marcado do processo histórico Preferimos considerálo um período Como em qualquer outro período histórico funcio nam de forma concertada diversas variáveis cuja visão sistêmica é indispensável para entender o que se está realizando Tam bém como em todo período a partir de certo momento há POR U M A OUTRA GLOBALIZAÇÃO 1 1 9 variáveis que perdem vigor verdadeiras variáveis descendentes e outras que passam a se impor São as variáveis ascendentes que revelam a produção de um novo período isto é apontam para o futuro O momento atual da história do mundo parece indicar a emergência de numerosas variáveis ascendentes cuja existência é sistêmica Isso exatamente permite pensar que se estão pro duzindo as condições de realização de uma nova história Por enquanto renunciamos aqui a fornecer uma lista exaus tiva dos fenômenos mas não a apontar alguns fatos que nos parecem bem característicos das mudanças em curso U m deles é o crescente desencanto com as técnicas acompanhado por uma gradativa recuperação do bom senso em oposição ao senso co mum isto é em oposição à pretensa racionalidade sugerida tanto pelas técnicas em si mesmas como pela política do seu uso Outro dado significativo se levanta com a impossibilidade relativamente crescente de acesso a essas técnicas em virtude do aumento da pobreza em todos os continentes Juntese a esse dado o fato de que apesar da capacidade invasora das técnicas hegemônicas so brevivem e criamse novas técnicas não hegemônicas Podese arriscar um vaticínio e reconhecer no conjunto do processo o anúncio de um novo período histórico substituto do atual pe ríodo Estaríamos na aurora de uma nova era em que a popula ção isto é as pessoas constituiriam sua principal preocupação um verdadeiro período popular da história já entremostrado pelas fragmentações e particularizações sensíveis em toda parte devidas à cultura e ao território 120 MILTON SANTOS 20 Os limites da racionalidade dominante O Projeto Racional começa a mostrar suas limitações talvez porque estejamos atingindo aquele paroxismo previsto por Weber Economía y sociedad 1922 para realizarse quando o pro cesso de expansão da racionalidade capitalista se tornasse ilimi tado Tudo indica que estamos atingindo essa fronteira agora que nos diversos níveis da vida econômica social individual vivemos uma racionalidade totalitária que vem acompanhada de uma perda da razão O deboche de carências e de escassez que atinge uma parcela cada vez maior da sociedade humana permi te reconhecer a realidade dessa perdição Uma boa parcela da humanidade por desinteresse ou inca pacidade não é mais capaz de obedecer a leis normas regras man damentos costumes derivados dessa racionalidade hegemônica Daí a proliferação de ilegais irregulares informais Essa incapacidade mistura no processo de vida práticas e teorias herdadas e inovadas religiões tradicionais e novas con vicções E nesse caldo de cultura que numerosas frações da so ciedade passam da situação anterior de conformidade associada ao conformismo a uma etapa superior da produção da consciên cia isto é a conformidade sem o conformismo Produzse des sa maneira a redescoberta pelos homens da verdadeira razão e não é espantoso que tal descobrimento se dê exatamente nos espaços sociais econômicos e geográficos também não confor mes à racionalidade dominante Na esfera da racionalidade hegemônica pequena margem é deixada para a variedade a criatividade a espontaneidade En quanto isso surgem nas outras esferas contraracionalidades e POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 121 racionalidades paralelas corriqueiramente chamadas de irracionalidades mas que na realidade constituem outras formas de racionalidade Estas são produzidas e mantidas pelos que es tão embaixo sobretudo os pobres que desse modo conseguem escapar ao totalitarismo da racionalidade dominante Recorde mos o ensinamento de Sartre para quem a escassez é que torna a história possível graças à unidade negativa da multiplicidade concreta dos homens Tal situação é objetivamente esperançosa porque agora as sistimos ao fim das expectativas nutridas no apósguerra e ao contrário testemunhamos a ampliação do número de pobres assim como o estreitamento das possibilidades e das certezas que as classes médias acalentavam até a década de 1980 Outro dado objetivo é o fato de que a realização cada vez mais densa do pro cesso de globalização enseja o caldeamento ainda que elemen tar das filosofias produzidas nos diversos continentes em de trimento do racionalismo europeu que é o bisavô das idéias de racionalismo tecnocrático hoje dominantes 21 O imaginário da velocidade Na família dos imaginários da globalização e das técnicas encontrase a idéia difundida com exuberância de que a veloci dade constitui um dado irreversível na produção da história sobretudo ao alcançar os paroxismos dos tempos atuais Na ver dade porém somente algumas pessoas firmas e instituições são altamente velozes e são ainda em menor número as que utilizam 122 MILTON SANTOS todas as virtualidades técnicas das máquinas Na verdade o res to da humanidade produz circula e vive de outra maneira Gra ças à impostura ideológica o fato da minoria acaba sendo repre sentativo da totalidade graças exatamente à força do imaginário Essa transformação de uma fluidez potencial numa fluidez efetiva por meio da velocidade exacerbada todavia não tem e nem busca um sentido Sem dúvida ela serve ao exercício de uma competitividade desabrida mas esta é uma coisa que nin guém sabe para o que realmente serve Velocidade técnica e poder Podese dizer que a velocidade assim utilizada é duplamen te um dado da política e não da técnica De um lado tratase de uma escolha relacionada com o poder dos agentes e de outro da legitimação dessa escolha por meio da justificação de um modelo de civilização É nesse sentido que estamos afirmando tratarse mais de um dado da política que propriamente da téc nica já que esta poderia ser usada diferentemente em função do conjunto de escolhas sociais De fato o uso extremo da veloci dade acaba por ser o imperativo das empresas hegemônicas e não das demais para as quais o sentido de urgência não é uma cons tante Mas é a partir desse e de outros comportamentos que a política das empresas arrasta a política dos Estados e das insti tuições supranacionais N o passado a ordem mundial se construía mediante uma combinação política que conduzia à nãoobediência aos dita mes da técnica mais moderna Pensemos por exemplo no sé culo do imperialismo nos cem anos que vão do quarto quartel POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 123 do século XLX ao terceiro do século XX Os impérios em sua qualidade de grandes conjuntos políticos e territoriais viviam e evoluíam segundo idades técnicas diversas utilizando cada qual dentro dos seus domínios conjuntos de avanços técnicos dis paratados e que mostravam níveis diferentes O império britâ nico estava à frente dos demais quanto à posse de recursos téc nicos avançados Mas isso não impedia sua convivência com outros impérios Dentro de cada um o uso do conjunto dos recursos técnicos era comandado por um conjunto de normas relacionadas ao comércio à produção e ao consumo o que per mitia a cada bloco uma evolução própria não perturbada pela existência em outros impérios de avanços técnicos mais signifi cativos N o fundo a política comercial aplicada dentro de cada império assegurava a política do conjunto do mundo ocidental M Santos natureza do espaço 1996 pp 3637 e pp 152153 O exemplo mostra não ser certo que haja um imperativo técni co O imperativo é político Desse modo não há uma inelu tabilidade face aos sistemas técnicos nem muito menos um determinismo Aliás a técnica somente é um absoluto enquan to irrealizada Assim existindo apenas na vitrine mas historica mente inexistente equivaleria a uma abstração Quando nos referimos à historicização e à geografização das técnicas estamos cuidando de entender o seu uso pelo homem sua qualidade de intermediário da ação isto é sua relativização N o período da globalização o mercado externo com suas exigências de competitividade obriga a aumentar a velocida de Mas a população em seus diferentes níveis os pobres e os que vivem longe dos grandes mercados obrigam a combina ções de formas e níveis de capitalismo É o mercado interno que freia a vontade de velocidade de que já falava M Sorre 124 MILTON SANTOS Annales degéographie 1948 porque todos os atores dele parti cipam Todavia os dois mercados são intercorrentes interdependentes Invadindo a economia e o território com grande velocidade o circuito superior busca destruir as for mas preexistentes Mas o território resiste sobretudo na gran de cidade graças entre outras coisas à menor fricção da dis tância As pequenas e médias empresas locais têm mais acesso potencial que por exemplo uma grande empresa de Manaus pois podem alcançar uma parte significativa da cidade por exemplo os supermercados menores Contribuirá também para esse maior acesso potencial o fato de estarem num meio que é um tecido e um emaranhado de normas concernentes o que torna essas empresas menos dependentes de uma única norma para subsistir Mas com a globalização e seu imaginá rio comum ao da técnica hegemônica uma e outra são dadas como indispensáveis à participação plena no processo histórico Do relógio despótico às temporalidades divergentes E fato também que com a interdependência globalizada dos lugares e a planetarização dos sistemas técnicos dominantes estes parecem se impor como invasores servindo como parâmetro na avaliação da eficácia de outros lugares e de outros sistemas téc nicos É nesse sentido que o sistema técnico hegemônico apare ce como algo absolutamente indispensável e a velocidade resul tante como um dado desejável a todos que pretendem participar de pleno direito da modernidade atual Todavia a velocidade atual e tudo que vem com ela e que dela decorre não é inelutá vel nem imprescindível Na verdade ela não beneficia nem POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 125 interessa à maioria da humanidade Para quê de fato serve esse relógio despótico do mundo atual As crises atuais são em últi ma análise uma resultante da aceleração contemporânea me diante o uso privilegiado por alguns atores econômicos das possibilidades atuais de fluidez Como tal exercício não respon de a um objetivo moral e desse modo é desprovido de sentido o resultado é a instalação de situações em que o movimento encontra justificativa em si mesmo como é o caso do merca do de capitais especulativos tal autonomia sendo uma das razões da desordem característica do período atual Quando aceitamos pensar a técnica em conjunto com a po lítica e admitimos atribuirlhe outro uso ficamos convencidos de que é possível acreditar em uma outra globalização e em um outro mundo O problema central é o de retomar o curso da história isto é recolocar o homem no seu lugar central Tal preocupação de mudança inclui uma revisão do signifi cado das palavraschave do nosso período todas contaminadas pelo respectivo sistema ideológico Fiquemos com a questão da velocidade que pode ser vista como um paradigma da época mas também como o que ela representa de emblemático Na verdade seja qual for o corpo social a velocidade hegemônica constitui uma das suas características mas a definição da realidade somente pode ser obtida considerandose as diversas velocidades em pre sença E seja como for a eticácia da velocidade não provém da técnica subjacente A eficácia da velocidade hegemônica é de natureza política e depende do sistema socioeconómico político em ação Podese dizer que em uma dada situação tal velocida de hegemônica é uma velocidade imposta ideologicamente Como em tudo mais a interpretação da história não pode ser deixada ao entendimento imediato do fenômeno técnico 124 MILTON SANTOS Annales degéographie 1948 porque todos os atores dele parti cipam Todavia os dois mercados são intercorrentes interdependentes Invadindo a economia e o território com grande velocidade o circuito superior busca destruir as for mas preexistentes Mas o território resiste sobretudo na gran de cidade graças entre outras coisas à menor fricção da dis tância As pequenas e médias empresas locais têm mais acesso potencial que por exemplo uma grande empresa de Manaus pois podem alcançar uma parte significativa da cidade por exemplo os supermercados menores Contribuirá também para esse maior acesso potencial o fato de estarem num meio que é um tecido e um emaranhado de normas concernentes o que torna essas empresas menos dependentes de uma única norma para subsistir Mas com a globalização e seu imaginá rio comum ao da técnica hegemônica uma e outra são dadas como indispensáveis à participação plena no processo histórico Do relógio despótico às temporalidades divergentes É fato também que com a interdependência globalizada dos lugares e a planetarização dos sistemas técnicos dominantes estes parecem se impor como invasores servindo como parâmetro na avaliação da eficácia de outros lugares e de outros sistemas téc nicos É nesse sentido que o sistema técnico hegemônico apare ce como algo absolutamente indispensável e a velocidade resul tante como um dado desejável a todos que pretendem participar de pleno direito da modernidade atual Todavia a velocidade atual e tudo que vem com ela e que dela decorre não é inelutá vel nem imprescindível Na verdade ela não beneficia nem POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 125 interessa à maioria da humanidade Para quê de fato serve esse relógio despótico do mundo atual As crises atuais são em últi ma análise uma resultante da aceleração contemporânea me diante o uso privilegiado por alguns atores econômicos das possibilidades atuais de fluidez Como tal exercício não respon de a um objetivo moral e desse modo é desprovido de sentido o resultado é a instalação de situações em que o movimento encontra justificativa em si mesmo como é o caso do merca do de capitais especulativos tal autonomia sendo uma das razões da desordem característica do período atual Quando aceitamos pensar a técnica em conjunto com a po lítica e admitimos atribuirlhe outro uso ficamos convencidos de que é possível acreditar em uma outra globalização e em um outro mundo O problema central é o de retomar o curso da história isto é recolocar o homem no seu lugar central Tal preocupação de mudança inclui uma revisão do signifi cado das palavraschave do nosso período todas contaminadas pelo respectivo sistema ideológico Fiquemos com a questão da velocidade que pode ser vista como um paradigma da época mas também como o que ela representa de emblemático Na verdade seja qual for o corpo social a velocidade hegemônica constitui uma das suas características mas a definição da realidade somente pode ser obtida considerandose as diversas velocidades em pre sença E seja como for a eticácia da velocidade não provém da técnica subjacente A eficácia da velocidade hegemônica é de natureza política e depende do sistema socioeconómico político em ação Podese dizer que em uma dada situação tal velocida de hegemônica é uma velocidade imposta ideologicamente Como em tudo mais a interpretação da história não pode ser deixada ao entendimento imediato do fenômeno técnico 1 2 6 MILTON SANTOS exigindo entendei como nessa mesma situação se relacionam a técnica e a política atribuindo a esta o papel central no enten dimento das ações que conformam o presente atual e que po dem tornar possível um outro futuro 22 Justintime versus o cotidiano O tema das verticalidades e das horizontalidades pode com portar numerosas reinterpretações Uma delas refletindo o jogo contraditório entre essas categorias é a verdadeira oposição exis tente entre a natureza das atividades justintime que trabalham com um relógio universal movido pela maisvalia universal e a realidade das atividades que juntas constituem a vida cotidiana N o primeiro caso tratase da vocação para uma racionalidade única reitora de todas as outras desejosa de homogeneização e de unificação pretendendo sempre tomar o lugar das demais uma racionalidade única mas racionalidade sem razão que trans forma a existência daqueles a quem subordina numa perspecti va de alienação Já no cotidiano a razão isto é a razão de viver é buscada por meio do que face a essa racionalidade hegemônica é considerado como irracionalidade quando na realidade o que se dá são outras formas de ser racional O mundo do tempo real dojustintime é aquele subsistema da realidade total que busca sua lógica nessa mencionada racionalidade única cuja criação é todavia limitada atributo de um pequeno número de agentes O mundo do cotidiano é tam bém o da produção ilimitada de outras racionalidades que são POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 1 2 7 aliás tão diversas quanto as áreas consideradas já que abrigam todas as modalidades de existência O funcionamento dos espaços hegemônicos supõe uma de manda desesperada de regras quando as circunstâncias mudam e por isso as normas reguladoras têm de mudar nem por isso sua demanda deixa de ser desesperada Tal regulação obedece à consideração de interesses privatísticos Já o cotidiano supõe uma demanda desesperada de Política resultado da consideração conjunta de múltiplos interesses N o caso das atividades justintime uma só temporalidade é considerada é a fórmula de sobrevivência no mundo da competitividade à escala planetária Como dado motor uma só existência a dos agentes hegemônicos é ao mesmo tempo ori gem e finalidade das ações A vida cotidiana abrange várias temporalidades simultaneamente presentes o que permite con siderar paralela e solidariamente a existência de cada um e de todos como ao mesmo tempo sua origem e finalidade O conjunto das condições acima enunciadas permite dizer que o mundo do tempo real busca uma homogeneização empobrecedora e limitada enquanto o universo do cotidiano é o mundo da heterogeneidade criadora 23 Um emaranhado de técnicas o reino do artifício e da escassez Sabemos já que as técnicas presentes em uma dada situação não são homogêneas Enquanto as técnicas hegemônicas se dão 128 MILTON SANTOS em redes além delas outras técnicas se impõem Mas em uma dada situação todas as técnicas presentes acabam por ser inextricáveis Tal solidariedade não é propriamente entre as técnicas mas o fruto da vida solidária da sociedade Do artifício à escassez Hoje tanto os objetos quanto as ações derivam da técnica As técnicas estão pois em toda parte na produção na circu lação no território na política na cultura Elas estão também e permanentemente no corpo e no espírito do homem Vivemos todos num emaranhado de técnicas o que em outras palavras significa que estamos todos mergulhados no reino do artifício Na medida em que as técnicas hegemônicas funda das na ciência e obedientes aos imperativos do mercado são hoje extremamente dotadas de intencionalidade há igualmente tendência à hegemonia de uma produção racional de coisas e de necessidades e desse modo uma produção excludente de outras produções com a multiplicação de objetos técnicos es tritamente programados que abrem espaço para essa orgia de coisas e necessidades que impõem relações e nos governam Criase um verdadeiro totalitarismo tendencial da raciona lidade isto é dessa racionalidade hegemônica dominante produzindose a partir do respectivo sistema certas coisas serviços relações e idéias Esta aliás é a base primeira da pro dução de carências e de escassez já que uma parcela conside rável da sociedade não pode ter acesso às coisas serviços rela ções idéias que se multiplicam na base da racionalidade hegemônica POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 129 A situação contemporânea revela entre outras coisas três tendências 1 uma produção acelerada e artificial de necessida des 2 uma incorporação limitada de modos de vida ditos racio nais 3 uma produção ilimitada de carência e escassez Nessa situação as técnicas a velocidade a potência criam desigualdades e paralelamente necessidades porque não há satisfação para todos Não é que a produção necessária seja glo balmente impossível Mas o que é produzido necessária ou desnecessariamente é desigualmente distribuído Daí a sen sação e depois a consciência da escassez aquilo que falta a mim mas que o outro mais bem situado na sociedade possui A idéia vem de Sartre quando registra que não há bastante para todo o mundo Por isso o outro consome e não eu O homem cada homem é afinal definido pela soma dos possíveis que lhe ca bem mas também pela soma dos seus impossíveis O reino da necessidade existe para todos mas segundo for mas diferentes as quais simplificamos mediante duas situações tipo para os possuidores para os não possuidores Quanto aos possuidores tornase viável mediante possibi lidades reais ou artifícios renovados a fuga à escassez e a supera ção ainda que provisória da escassez Como o processo de criação de necessidades é infinito impõese uma readaptação perma nente Criase um círculo vicioso com a rotina da falta e da sa tisfação Na realidade para essa parcela da sociedade a falta já é criada como a expectativa e a perspectiva de satisfação As nego ciações para regressar ao status de consumidor satisfeito condu zem à repetição de experiências exitosas Desse modo a parcela de consumidores contumazes obtém uma convivência relativa mente pacífica com a escassez Mas a busca permanente de bens finitos e por isso condenados ao esgotamento e à substituição 130 MILTON SANTOS por outros bens finitos condena os aparentemente vitoriosos à aceitação da contrafinalidade contida nas coisas e em conseqüên cia ao enfraquecimento da individualidade Quanto aos nãopossuidores sua convivência com a escas sez é conflituosa e até pode ser guerreira Para eles viver na es fera do consumo é como querer subir uma escada rolante no sentido da descida Cada dia acaba oferecendo uma nova expe riência da escassez Por isso não há lugar para o repouso e a pró pria vida acaba por ser um verdadeiro campo de batalha Na briga cotidiana pela sobrevivência não há negociação possível para eles e individualmente não há força de negociação A sobrevivên cia só é assegurada porque as experiências imperativamente se renovam E como a surpresa se dá como rotina a riqueza dos nãopossuidores é a prontidão dos sentidos É com essa força que eles se eximem da contrafinalidade e ao lado da busca de bens materiais finitos cultivam a procura de bens infinitos como a solidariedade e a liberdade estes quanto mais se distribuem mais aumentam Da escassez ao entendimento A experiência da escassez é a ponte entre o cotidiano vivido e o mundo Por isso constitui um instrumento primordial na percepção da situação de cada um e uma possibilidade de co nhecimento e de tomada de consciência O nosso tempo consagra a multiplicação das fontes de es cassez seja pelo número avassalador dos objetos presentes no mercado seja pelo chamado incessante ao consumo Cada dia nessa época de globalização apresentase um objeto novo que POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 131 nos é mostrado para provocar o apetite A noção de escassez se materializa se aguça e se reaprende cotidianamente assim como já agora a certeza de que cada dia é dia de uma nova escassez A sociedade atual vai dessa maneira mediante o mercado e a pu blicidade criando desejos insatisfeitos mas também reclaman do explicações Dirseia que tal movimento se repete enrique cendo o movimento intelectual A escassez de um pode se parecer à escassez do outro e a escassez de hoje à escassez de ontem mas quando não é satisfei ta ela acaba por se impor como diferente da de ontem e da do outro Alteridade e individualidade se reforçam com a renova ção da novidade Quanto mais diferentes são os que convivem num espaço limitado mais idéias do mundo aí estarão para ser levantadas cotejadas e desse modo tanto mais rico será o de bate silencioso ou ruidoso que entre as pessoas se estabelece Nesse sentido podese dizer que a cidade é um lugar privilegiado para essa revelação e que nessa fase da globalização a acelera ção contemporânea é também aceleração na produção da escas sez e na descoberta da sua realidade já que multiplicando e apressando os contatos exibe a multiplicidade de formas de es cassez contemporânea as quais vão mudando mais rapidamen te para se tornarem mais numerosas e mais diversas Para os pobres a escassez é um dado permanente da existência mas como sua presença na vida de todos os dias é o resultado de uma metamorfose também permanente o trabalho acaba por ser para eles o lugar de uma descoberta cotidiana e de um combate co tidiano mas também uma ponte entre a necessidade e o enten dimento M SantosJoraa do Brasil 06041997 1 3 2 MILTON SANTOS POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 133 a partir das suas visões do mundo e dos lugares Tratase de uma política de novo tipo que nada tem a ver com a política institucional Esta última se funda na ideologia do crescimento da globalização etc e é conduzida pelo cálculo dos partidos e das empresas A política dos pobres é baseada no cotidiano vivi do por todos pobres e não pobres e é alimentada pela simples necessidade de continuar existindo Nos lugares uma e outra se encontram e confundem daí a presença simultânea de com portamentos contraditórios alimentados pela ideologia do con sumo Este ao serviço das forças socioeconómicas hegemônicas também se entranha na vida dos pobres suscitando neles expec tativas e desejos que não podem contentar N u m mundo tão complexo pode escapar aos pobres o en tendimento sistêmico do sistema do mundo Este lhes aparece nebuloso constituído por causas próximas e remotas por mo tivações concretas e abstratas pela confusão entre os discursos e as situações entre a explicação das coisas e a sua propaganda Mas há também a desilusão das demandas não satisfeitas o exemplo do vizinho que prospera o cotidiano contraditório Talvez por aí chegue o despertar N u m primeiro momento este é apenas o encontro de uns poucos fragmentos de algumas peças do puzzle mas também a dificuldade para entrar no labi rinto faltalhes o próprio sistema do mundo do país e do lugar Mas a semente do entendimento já está plantada e o passo se guinte é o seu florescimento em atitudes de inconformidade e talvez rebeldia Sem dúvida os brotes individuais de insatisfação podem não formar uma corrente Mas os movimentos de massa nem sem pre resultam de discursos claros e bem articulados nem sempre se dão por meio de organizações conseqüentes e estruturadas FACULDADES CURITIBA BIBLIOTECA 24 Papel dos pobres na produção do presente e do futuro O exame do papel atual dos pobres na produção do presen te e do futuro exige em primeiro lugar distinguir entre pobre za e miséria A miséria acaba por ser a privação total com o ani quilamento ou quase da pessoa A pobreza é uma situação de carência mas também de luta um estado vivo de vida ativa em que a tomada de consciência é possível Miseráveis são os que se confessam derrotados Mas os po bres não se entregam Eles descobrem cada dia formas inéditas de trabalho e de luta Assim eles enfrentam e buscam remédio para suas dificuldades Nessa condição de alerta permanente não têm repouso intelectual A memória seria sua inimiga A herança do passado é temperada pelo sentimento de urgência essa cons ciência do novo que é também um motor do conhecimento A socialidade urbana pode escapar aos seus intérpretes nas faculdades ou aos seus vigias nas delegacias de polícia Mas não aos atores ativos do drama sobretudo quando para prosseguir vivendo são obrigados a lutar todos os dias Haverá quem des creva o quadro material dessa batalha como se fosse um teatro quando por exemplo se fala em estratégia de sobrevivência mas na realidade esse palco junto com seus atores constitui a pró pria vida concreta da maioria das populações A cidade pronta a enfrentar seu tempo a partir do seu espaço cria e recria uma cultura com a cara do seu tempo e do seu espaço e de acordo ou em oposição aos donos do tempo que são também os donos do espaço É dessa forma que na convivência com a necessidade e com o outro se elabora uma política a política dos de baixo constituída 1 3 4 MILTON SANTOS O entendimento sistemático das situações e a correspondente sistematicidade das manifestações de inconformidade consti tuem via de regra um processo lento Mas isso não impede que no âmago da sociedade já se estejam aqui e ali levantando vul cões mesmo que ainda pareçam silenciosos e dormentes Na realidade uma coisa são as organizações e os movimen tos estruturados e outra coisa é o próprio cotidiano como um tecido flexível de relações adaptável às novas circunstâncias sempre em movimento A organização é importante como o instrumento de agregação e multiplicação de forças afins mas separadas Ela também pode constituir o meio de negociação necessário a vencer etapas e encontrar um novo patamar de re sistência e de luta Mas a obtenção de resultados por mais compensadores que pareçam não deve estimular a cristalização do movimento nem encorajar a repetição de estratégias e táti cas Os movimentos organizados devem imitar o cotidiano das pessoas cuja flexibilidade e adaptabilidade lhe asseguram um autêntico pragmatismo existencial e constituem a sua riqueza e fonte principal de veracidade 25 A metamorfose das classes médias Cada época cria novos atores e atribui papéis novos aos já existentes Este é também o caso das classes médias brasileiras desafiadas agora para o desempenho de uma importante tarefa histórica na reconstituição do quadro político nacional POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 135 A idade de ouro O chamado milagre econômico brasileiro permite a difusão à escala do país do fato da classe média Na realidade entre as muitas explosões características do período está esse cresci mento contínuo das classes médias primeiro nas grandes cida des e depois nas cidades menores e no campo modernizado Essa explosão das classes médias acompanha neste meio século a explosão demográfica a explosão urbana e a explosão do consu mo e do crédito Tal conjunto de fenômenos tem relação estru tural com o aumento da produção industrial e agrícola como também do comércio dos transportes das trocas de todos os tipos das obras públicas da administração e da necessidade de informação Há paralelamente uma expansão e diversificação do emprego com a difusão dos novos terciários e a consolida ção em muitas áreas do país de uma pequena burguesia operá ria Como a modernização capitalista tende ao esvaziamento do campo e é sempre seletiva uma parcela importante dos que se dirigiram às cidades não pôde participar do circuito superior da economia deixando de incluirse entre os assalariados formais e só encontrando trabalho no circuito inferior da economia impropriamente chamado de setor informal Vale realçar que no Brasil do milagre e até durante boa par te da década de 1980 a classe média se expande e se desenvolve sem que houvesse verdadeira competição dentro dela quanto ao uso dos recursos que o mercado ou o Estado lhe ofereciam para a melhoria do seu poder aquisitivo e do seu bemestar material Todos iam subindo juntos embora para andares diferentes Mas todos das classes médias estavam cônscios de sua ascensão social e esperançosos de conseguir ainda mais Daí sua relativa coesão 1 3 6 MILTON SANTOS e o sentimento de se haver tornado um poderoso estamento A competição foi na realidade com os pobres cujo acesso aos bens e serviços se torna cada vez mais difícil à medida que estes se multiplicam Vale a pena lembrar as facilidades para a aquisição da casa própria mediante programas governamentais com que foram privilegiados enquanto os brasileiros mais pobres ape nas foram incompletamente atendidos nos últimos anos do re gime autoritário A classe média é a grande beneficiária do cres cimento econômico do modelo político e dos projetos urbanísticos adotados Tal classe média ao mesmo tempo em que se diversifica profissionalmente aumenta seu poder aquisitivo e melhora qualitativamente por meio das oportunidades de educação que lhe são abertas tudo isso levando à ampliação do seu bemestar o que hoje se chama de qualidade de vida conduzindoa a acreditar que a preservação das suas vantagens e perspectivas estivesse assegurada Conforme mostraram Amélia Rosa S Barreto e Ana Clara T Ribeiro A dúvida da dívida e a classe média Lastro IPPUR ano 3 n 6 abril de 1999 o acesso ao crédito transformase em instrumento para alcançar a estabili dade social Tudo o que alimenta a classe média dálhe tam bém um sentimento de inclusão no sistema político e econômi co e um sentimento de segurança estimulado pelas constantes medidas do poder público em seu favor Tratavase na realida de de uma moeda de troca já que a classe média constituía uma base de apoio às ações do governo Formase dessa maneira uma classe média sequiosa de bens materiais a começar pela propriedade e mais apegada ao con sumo que à cidadania sócia despreocupada do crescimento e do poder com os quais se confundia Daí a tolerância senão a cum POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 1 3 7 plicidade com o regime autoritário O modelo econômico im portava mais que o modelo cívico Eram essas aliás condições objetivas necessárias a um crescimento econômico sem demo cracia Quando o regime militar esgota o seu ciclo a democra cia se instala incompletamente na década de 1980 guardando todos esses vícios de origem e sustentando um regime repre sentativo falsificado pela ausência de partidos políticos conse qüentes Seguindo essa lógica as próprias esquerdas são levadas a dar mais espaço às preocupações eleitorais e menos à pedago gia propriamente política A gênese e as formas de expansão das classes médias brasileiras têm relação direta com a maneira como hoje se desempenham os partidos A escassez chega às classes médias Tal situação tende a mudar quando a classe média começa a conhecer a experiência da escassez o que poderá levála a uma reinterpretação de sua situação Nos anos recentes primeiro de forma lenta ou esporádica e já agora de modo mais sistemático e continuado a classe média conhece dificuldades que lhe apon tam para uma situação existencial bem diferente daquela que conhecera há poucos anos Tais dificuldades chegam em um tro pel a educação dos filhos o cuidado com a saúde a aquisição ou o aluguel da moradia a possibilidade de pagar pelo lazer a falta de garantia no emprego a deterioração dos salários a pou pança negativa e o crescente endividamento estão levando ao desconforto quanto ao presente e à insegurança quanto ao futu ro tanto o futuro remoto quanto o imediato Tais incertezas são agravadas pelas novas perspectivas da previdência social e do 138 MILTON SANTOS regime de aposentadorias da prometida reforma dos seguros pri vados e da legislação do trabalho A tudo isso se acrescentam den tro do próprio lar a apreensão dos filhos em relação ao futuro profissional e as manifestações cotidianas desse desassossego Já que não mais encontram os remédios que lhe eram ofe recidos pelo mercado ou pelo Estado como solução aos seus problemas individuais emergentes as classes médias ganham a percepção de que já não mandam ou de que já não mais partici pam da partilha do poder Acostumadas a atribuir aos políticos a solução dos seus problemas proclamam agora seu desconten tamento distanciandose deles Elas já não se vêem espelhadas nos partidos e por isso se instalam num desencanto mais abrangente quanto à política propriamente dita Isso é justifica do em parte pela visão de consumidor desabusado que alimen tou durante décadas agravada com a fragmentação pela mídia sobretudo televisiva da informação e da interpretação do pro cesso social A certeza de não mais influir politicamente é fortalecida nas classes médias levandoas não raro a reagir ne gativamente isto é a desejar menos política e menos participa ção quando a reação correta poderia e deveria ser exatamente a oposta A atual experiência de escassez pode não conduzir imedia tamente à desejável expansão da consciência E quando esta se impõe não o faz igualmente segundo as pessoas Visto esque maticamente tal processo pode ter como primeiro degrau a preocupação de defender situações individuais ameaçadas e que se deseja reconstituir retomando o consumo e o conforto ma terial como o principal motor de uma luta que desse modo pode se limitar a novas manifestações de individualismo É num segundo momento que tais reivindicações fruto de reflexão mais POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 1 3 9 profunda podem alcançar um nível qualitativo superior a par tir de um entendimento mais amplo do processo social e de uma visão sistêmica de situações aparentemente isoladas O passo seguinte pode levar à decisão de participar de uma luta pela sua transformação quando o consumidor assume o papel de cida dão Não importa que esse movimento de tomada de consciên cia não seja geral nem igual para todas as pessoas O importante é que se instale Um dado novo na política Seja como for as classes médias brasileiras já não mais adu ladas e feridas de morte nos seus interesses materiais e espiri tuais constituem em sua condição atual um dado novo da vida social e política Mas seu papel não estará completo enquanto não se identificar com os clamores dos pobres contribuindo juntos para o rearranjo e a regeneração dos partidos inclusive os partidos do progresso Dentro destes são muitos os que ain da aceitam as tentações do triunfalismo oposicionista sem pre que as ocasiões se apresentam e se rendem ao oportunis mo eleitoreiro limitandose às respectivas mobilizações ocasionais desgarrandose assim do seu papel de formadores não apenas da opinião mas da consciência cívica sem a qual não pode haver neste país política verdadeira As classes médias brasileiras agora mais ilustradas e tam bém mais despojadas materialmente têm agora a tareia histó rica de forçar os partidos a completar no Brasil o trabalho ape nas começado de implantação de uma democracia que não seja apenas eleitoral mas também econômica política e social A 140 MILTON SANTOS experiência da escassez um revelador cotidiano da verdadeira si tuação de cada pessoa é desse modo um dado fundamental na aceleração da tomada de consciência Nas condições brasileiras atuais as novas circunstâncias podem levar as classes médias a forçar uma mudança substancial do ideário e das práticas políti cas que incluam uma maior responsabilidade ideológica e a cor respondente representatividade políticoeleitoral dos partidos V I A T R A N S I Ç Ã O E M M A R C H A Introdução A gestação do novo na história dáse freqüentemente de modo quase imperceptível para os contemporâneos já que suas sementes começam a se impor quando ainda o velho é quantitativamente dominante É exatamente por isso que a qua lidade do novo pode passar despercebida Mas a história se ca racteriza como uma sucessão ininterrupta de épocas Essa idéia de movimento e mudança é inerente à evolução da humanidade E dessa forma que os períodos nascem amadurecem e morrem N o caso do mundo atual temos a consciência de viver um novo período mas o novo que mais facilmente apreendemos é a utilização de formidáveis recursos da técnica e da ciência pelas novas formas do grande capital apoiado por formas institucionais igualmente novas Não se pode dizer que a globalização seja se melhante às ondas anteriores nem mesmo uma continuação do que havia antes exatamente porque as condições de sua reali zação mudaram radicalmente É somente agora que a huma 1 4 2 MILTON SANTOS nidade está podendo contar com essa nova qualidade da técnica providenciada pelo que se está chamando de técnica informa cional Chegamos a um outro século e o homem por meio dos avanços da ciência produz um sistema de técnicas presidido pelas técnicas da informação Estas passam a exercer um papel de elo entre as demais unindoas e assegurando a presença planetária desse novo sistema técnico Todavia para entender o processo que conduziu à glo balização atual é necessário levar em conta dois elementos fun damentais o estado das técnicas e o estado da política Há fre qüentemente tendência a separar uma coisa da outra Daí nascem as muitas interpretações da história a partir das técnicas ou da política exclusivamente Na verdade nunca houve na história humana separação entre as duas coisas A história for nece o quadro material e a política molda as condições que per mitem a ação Na prática social sistemas técnicos e sistemas de ação se confundem e é por meio das combinações então possí veis e da escolha dos momentos e lugares de seu uso que a his tória e a geografia se fazem e se refazem continuadamente 26 Cultura popular período popular Para a maior parte da humanidade o processo de globalização acaba tendo direta ou indiretamente influência sobre todos os aspectos da existência a vida econômica a vida cultural as rela ções interpessoais e a própria subjetividade Ele não se verifica de modo homogêneo tanto em extensão quanto em profundi P O R UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 143 dade e o próprio fato de que seja criador de escassez é um dos motivos da impossibilidade da homogeneização Osjndivíduos não são igualmente atingidos por esse fenômeno cuja difusão encontra obstáculos na diversidade das pessoas e na diversidade dos lugares Na realidade a globalização agrava a heteroge neidade dandolhe mesmo um caráter ainda mais estrutural Uma das conseqüências de tal evolução é a nova significa ção da cultura popular tornada capaz de rivalizar com a cultura de massas Outra é a produção das condições necessárias à reemergência das próprias massas apontando para o surgimento de um novo período histórico a que chamamos de período demográfico ou popular M Santos Espaço e sociedade 1979 Cultura de massas cultura popular U m exemplo é a cultura U m esquema grosseiro a partir de uma classificação arbitrária mostraria em toda parte a pre sença e a influência de uma cultura de massas buscando homogeneizar e imporse sobre a cultura popular mas também e paralelamente as reações desta cultura popular U m primeiro movimento é resultado do empenho vertical unificador homo geneizador conduzido por um mercado cego indiferente às heranças e às realidades atuais dos lugares e das sociedades Sem dúvida o mercado vai impondo com maior ou menor força aqui e ali elementos mais ou menos maciços da cultura de mas sa indispensável como ela é ao reino do mercado e a expansão paralela das formas de globalização econômica financeira téc nica e cultural Essa conquista mais ou menos eficaz segundo os lugares e as sociedades jamais é completa pois encontra a 144 MILTON SANTOS resistência da cultura preexistenteConstituemse assim for mas mistas sincréticas dentre as quais oferecida como espetá culo uma cultura popular domesticada associando um fundo genuíno a formas exóticas que incluem novas técnicas Mas há também e felizmente a possibilidade cada vez mais freqüente de uma revanche da cultura popular sobre a cultura de massa quando por exemplo ela se difunde median te o uso dos instrumentos que na origem são próprios da cul tura de massas Nesse caso a cultura popular exerce sua qua lidade de discurso dos de baixo pondo em relevo o cotidiano dos pobres das minorias dos excluídos por meio da exaltação da vida de todos os dias Se aqui os instrumentos da cultura de massa são reutilizados o conteúdo não é todavia global nem a incitação primeira é o chamado mercado global já que sua base se encontra no território e na cultura local e herdada Tais expressões da cultura popular são tanto mais fortes e capazes de difusão quanto reveladoras daquilo que poderíamos chamar de regionalismos universalistas forma de expressão que associa a espontaneidade própria à ingenuidade popular à busca de um discurso universal que acaba por ser um alimento da política N o fundo a questão da escassez aparece outra vez como cen tral Os de baixo não dispõem de meios materiais e outros para participar plenamente da cultura moderna de massas Mas sua cul tura por ser baseada no território no trabalho e no cotidiano ga nha a força necessária para deformar ali mesmo o impacto da cul tura de massas Gente junta cria cultura e paralelamente cria uma economia territorializada uma cultura territorializada um discur so territorializado uma política territorializada Essa cultura da vizinhança valoriza ao mesmo tempo a experiência da escassez e a experiência da convivência e da solidariedade E desse modo que gerada de dentro essa cultura endógena impõese como um ali P O R UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 145 mento da política dos pobres que se dá independentemente e aci ma dos partidos e das organizações Tal cultura realizase segun do níveis mais baixos de técnica de capital e de organização daí suas formas típicas de criação Isto seria aparentemente uma fra queza mas na realidade é uma força já que se realiza desse modo uma integração orgânica com o território dos pobres e o seu con teúdo humanoDaí a expressividade dos seus símbolos manifes tados na fala na música e na riqueza das formas de intercurso e solidariedade entre as pessoas E tudo isso evolui de modo inseparável o que assegura a permanência do movimento A cultura de massas produz certamente símbolos Mas estes direta ou indiretamente ao serviço do poder ou do mercado são a cada vez fixos Frente ao movimento social e no objetivo de não parecerem envelhecidos são substituídos mas por uma outra simbologia também fixa o que vem de cima está sempre morren do e pode por antecipação já ser visto como cadáver desde o seu nascimento E essa a simbologia ideológica da cultura de massas Já os símbolos de baixo produtos da cultura popular são portadores da verdade da existência e reveladores do próprio movimento da sociedade As condições empíricas da mutação É a partir de premissas como essas que se pode pensar uma reemergência das massas Para isso devem contribuir a partir das migrações políticas ou econômicas a ampliação da vocação atual para a mistura intercontinental e intranacional de povos raças religiões gostos assim como a tendência crescente à aglo meração da população em alguns lugares essa urbanização con centrada já revelada nos últimos vinte anos 1 4 6 MILTON SANTOS Da combinação dessas duas tendências podese supor que o processo iniciado há meio século levará a uma verdadeira colorização do Norte à informalização de parte de sua economia e de suas relações sociais e à generalização de certo esquema dual presente nos países subdesenvolvidos do Sul e agora ainda mais evidente Tal sociedade e tal economia urbana dual mas não dualista conduzirão a duas formas imbricadas de acumulação duas for mas de divisão do trabalho e duas lógicas urbanas distintas e as sociadas tendo como base de operação um mesmo lugar O fe nômeno já entrevisto de uma divisão do trabalho por cima e de uma outra por baixo tenderá a se reforçar A primeira prendese ao uso obediente das técnicas da racionalidade hegemônica en quanto a segunda é fundada na redescoberta cotidiana das com binações que permitem a vida e segundo os lugares operam em diferentes graus de qualidade e de quantidade Da divisão do trabalho por cima criase uma solidariedade ge rada de fora e dependente de vetores verticais e de relações prag máticas freqüentemente longínquas A racionalidade é mantida à custa de normas férreas exclusivas implacáveis radicais Sem obe diência cega não há eficácia Na divisão do trabalho por baixo o que se produz é uma solidariedade criada de dentro e dependente de vetores horizontais cimentados no território e na cultura locais Aqui são as relações de proximidade que avultam este é o domínio da flexibilidade tropical com a adaptabilidade extrema dos atores uma adaptabilidade endógena A cada movimento novo há um novo reequilíbrio em favor da sociedade local e regulado por ela A divisão do trabalho por cima é um campo de maior velo cidade Nela a rigidez das normas econômicas privadas e pú blicas impede a política Por baixo há maior dinamismo intrín seco maior movimento espontâneo mais encontros gratuitos POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 1 4 7 maior complexidade mais riqueza a riqueza e o movimento dos homens lentos mais combinações Produzse uma nova centralidade do social segundo a fórmula sugerida por Ana Clara Torres Ribeiro o que constitui também uma nova base para a afirmação do reino da política A precedência do homem e o período popular Uma outra globalização supõe uma mudança radical das condições atuais de modo que a centralidade de todas as ações seja localizada no homem Sem dúvida essa desejada mudança apenas ocorrerá no fim do processo durante o qual reajustamen tos sucessivos se imporão Nas presentes circunstâncias conforme já vimos a centra lidade é ocupada pelo dinheiro em suas formas mais agressivas um dinheiro em estado puro sustentado por uma informação ideológica com a qual se encontra em simbiose Daí a brutal distorção do sentido da vida em todas as suas dimensões incluin do o trabalho e o lazer e alcançando a valoração íntima de cada pessoa e a própria constituição do espaço geográfico Corn a prevalência do dinheiro em estado puro como motor primeiro e último das ações o homem acaba por ser considerado um ele mento residual Dessa forma o território o Estadonação e a solidariedade social também se tornam residuais A primazia do homem supõe que ele estará colocado no cen tro das preocupações do mundo como um dado filosófico e como uma inspiração para as ações Dessa forma estarão asie gurados o império da compaixão nas relações interpessiur 11 estímulo à solidariedade social a ser exercida entre iudivídui 148 MILTON SANTOS entre o indivíduo e a sociedade e viceversa e entre a sociedade e o Estado reduzindo as fraturas sociais impondo uma nova ética e destarte assentando bases sólidas para uma nova socie dade uma nova economia um novo espaço geográfico O pon to de partida para pensar alternativas seria então a prática da vida e a existência de todos A nova paisagem social resultaria do abandono e da supera ção do modelo atual e sua substituição por um outro capaz de garantir para o maior número a satisfação das necessidades es senciais a uma vida humana digna relegando a uma posição se cundária necessidades fabricadas impostas por meio da publi cidade e do consumo conspícuo Assim o interesse social suplantaria a atual precedência do interesse econômico e tanto levaria a uma nova agenda de investimentos como a uma nova hierarquia nos gastos públicos empresariais e privados Tal es quema conduziria paralelamente ao estabelecimento de novas relações internas a cada país e a novas relações internacionais N u m mundo em que fosse abolida a regra da competitividade como padrão essencial de relacionamento a vontade de ser po tência não seria mais um norte para o comportamento dos esta dos e a idéia de mercado interno será uma preocupação central Agora o que está sendo privilegiado são as relações pontuais entre grandes atores mas falta sentido ao que eles fazem As sim a busca de um futuro diferente tem de passar pelo abando no das lógicas infernais que dentro dessa racionalidade viciada fundamentam e presidem as atuais práticas econômicas e políti cas hegemônicas A atual subordinação ao modo econômico único tem con duzido a que se dê prioridade às exportações e importações uma das formas com as quais se materializa o chamado mercado glo P O R UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 149 baL Isso todavia tem trazido como conseqüência para todos os países uma baixa de qualidade de vida para a maioria da popula ção e a ampliação do número de pobres em todos os continen tes pois com a globalização atual deixaramse de lado políticas sociais que amparavam em passado recente os menos favore cidos sob o argumento de que os recursos sociais e os dinhei ros públicos devem primeiramente ser utilizados para facilitar a incorporação dos países na onda globalitária Mas se a preocu pação central é o homem tal modelo não terá mais razão de ser 27 A centralidade da periferia A idéia da irreversibilidade da globalização atual é aparente mente reforçada cada vez que constatamos a interrelação atual entre cada país e o que chamamos de mundo assim como a interdependência hoje indiscutível entre a história geral e as his tórias particulares Na verdade isso também tem a ver com a idéia também estabelecida de que a história seria sempre feita a partir dos países centrais isto é da Europa e dos Estados Unidos aos quais de modo geral o presente estado de coisas interessa Limites à cooperação Quando porém observamos de perto aspectos mais estru turais da situação atual verificamos que o centro do sistema busca impor uma globalização de cima para baixo aos demais países 1 5 0 MILTON SANTOS POR U M A OUTRA GLOBALIZAÇÃO 1 5 1 dade de intérpretes dos interesses comuns aos Estados Unidos à Europa e ao Japão Tais realidades levam a duvidar da vontade de cada um e do conjunto desses atores hegemônicos de cons truir um verdadeiro universalismo e permite pensar que nas condições atuais essa dupla competição perdurará O desafio ao Sul Os países subdesenvolvidos parceiros cada vez mais fragilizados nesse jogo tão desigual mais cedo ou mais tarde com preenderão que nessa situação a cooperação lhes aumenta a de pendência Daí a inutilidade dos esforços de associação depen dente face aos países centrais no quadro da globalização atual Esse mundo globalizado produz uma racionalidade determinante mas que vai pouco a pouco deixando de ser dominante É uma racionalidade que comanda os grandes negócios cada vez mais abrangentes e mais concentrados em poucas mãos Esses grandes negócios são de interesse direto de um número cada vez menor de pessoas e empresas Como a maior parte da humanidade é di reta ou indiretamente do interesse deles pouco a pouco essa rea lidade é desvendada pelas pessoas e pelos países mais pobres Há em tudo isso uma grande contradição Abandonamos as teorias do subdesenvolvimento o terceiromundismo que eram nossa bandeira nas décadas de 195060 Todavia graças à globalização está ressurgindo algo muito forte a história da maioria da humanidade conduz à consciência da sobrevivência dessa tercermundização que de alguma forma inclui também uma parte da população dos países ricos Samuel Pinheiro Guimarães Quinhentos anos de periferia 1999 enquanto no seu âmago reina uma disputa entre Europa Japão e Estados Unidos que lutam para guardar e ampliar sua parte do mercado global e afirmar a hegemonia econômica política e militar sobre as nações que lhes são mais diretamente tributári as sem todavia abandonar a idéia de ampliar sua própria área de influência Então qualquer fração de mercado não importa onde esteja se torna fundamental à competitividade exitosa das empresas Estas põem em ação suas forças e incitam os gover nos respectivos a apoiálas O limite da cooperação dentro da Tríade Estados Unidos Europa Japão é essa mesma competi ção de modo que cada um não perca terreno frente ao outro Entretanto já que nesses países a idéia de cidadania ainda é forte é impossível descuidar do interesse das populações ou suprimir inteiramente direitos adquiridos mediante lutas secu lares O que permanece como lembrança do Estado de bemestar basta para contrariar as pretensões de completa autonomia das empresas transnacionais e contribui para a emergência dentro de cada nação de novas contradições Como as empresas ten dem a exercer sua vontade de poder no plano global a luta en tre elas se agrava arrastando os países nessa competição Trata se na verdade de uma guerra protagonizada tanto pelos Estados como pelas respectivas empresas globais da qual participam como parceiros mais frágeis os países subdesenvolvidos Agora mesmo a experiência dos mercados comuns regionais já mostra aos países chamados emergentes que a cooperação da tríade em conjunto ou separadamente é mais representativa do interesse próprio das grandes potências que de uma vontade de efetiva colaboração Nessa guerra os organismos internacio nais capitaneados pelo Fundo Monetário pelo Banco Mundial pelo BID etc exercem um papel determinante em sua quali 152 MILTON SANTOS É certo que a tomada de consciência dessa situação estrutural de inferioridade não chegará ao mesmo tempo para todos os países subdesenvolvidos e muito menos será neles sincrónica a vonta de de mudança frente a esse tipo de relações Podese no entanto admitir que mais cedo ou mais tarde as condições internas a cada país provocadas em boa parte pelas suas relações externas levarão a uma revisão dos pactos que atualmente conformam a globalização Haverá então uma vontade de distanciamento e posteriormente de desengajamento conforme sugerido por Samir Amin rompen dose desse modo a unidade de obediência hoje predominante Jungidos sob o peso de uma dívida externa que não podem pagar os países subdesenvolvidos assistem à criação incessante de carên cias e de pobres e começam a reconhecer sua atual situação de ingovernabilidade forçados que estão a transferir para o setor eco nômico recursos que deveriam ser destinados à área social Na verdade já são muito numerosas as manifestações de desconforto com as conseqüências da nova dependência e do novo imperialismo Reinaldo Gonçalves Globalização e desna cionalização 1999 Tornamse evidentes os limites da aceitação de tal situação Por diferentes razões e meios diversos as mani festações de irredentismo já são claramente evidentes em países como o Irã o Iraque o Afeganistão mas também a Malásia o Paquistão sem contar com as formas particulares de inclusão da índia e da China na globalização atual que nada têm de sim ples obediência ou conformidade como a propaganda ociden tal quer fazer crer Países como a China e a índia com um terço da população mundial e uma presença internacional cada vez mais ativa dificilmente aceitarão uma ou outra assim como a Rússia jogar o papel passivo de naçãomercado para os blocos economicamente hegemônicos Uma reação em cadeia poderá ensejar o renascimento de algo como o antigo élan terceiro POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 153 mundista tal como o presidente Nyerere da Tanzânia havia sugerido em seu livro O desafio ao Sul Além dessa tendência verossímil consideremse as formas de desordem da vida social que já se multiplicam em numero sos países e que tendem a aumentar O Brasil é emblemático como exemplo não se sabendo porém até quando será possí vel manter o modelo econômico globalitário e ao mesmo tem po acalmar as populações crescentemente insatisfeitas As potências centrais Estados Unidos Europa Japão apesar das divergências pela competição quanto ao mercado global têm interesses comuns que as incitarão a buscar adaptar suas regras de convivência à pretensão de manter a hegemonia Como to davia a globalização atual é um período de crise permanente a renovação do papel hegemônico da Tríade levará a maiores sa crifícios para o resto da comunidade das nações incentivando assim nestas a busca de outras soluções A combinação hegemônica de que resultam as formas econô micas modernas atinge diferentemente os diversos países as diversas culturas as diferentes áreas dentro de um mesmo país A diversidade sociogeográfica atual o exemplifica Sua realidade revela um movimento globalizador seletivo com a maior parte da população do planeta sendo menos diretamente atingida e em certos casos pouco atingidapela globalização econômica vigente Na Ásia na África e mesmo na América Latina a vida local se manifesta ao mesmo tempo como uma resposta e uma reação a essa globalização Não podendo essas populações majo ritárias consumir o Ocidente globalizado em suas formas puras financeira econômica e cultural as respectivas áreas acabam por ser os lugares onde a globalização é relativizada ou recusada Uma coisa parece certa as mudanças a serem introduzidas no sentido de alcançarmos uma outra globalização não virão do 1 5 4 MILTON SANTOS centro do sistema como em outras fases de ruptura na marcha do capitalismo As mudanças sairão dos países subdesenvolvidos E previsível que o sistemismo sobre o qual trabalha a globalização atual ergase como um obstáculo e torne difícil a manifestação da vontade de desengajamento Mas não impedirá que cada país elabore a partir de características próprias modelos alternativos nem tampouco proibirá que associações de tipo ho rizontal se dêem entre países vizinhos igualmente hegemo nizados atribuindo uma nova feição aos blocos regionais e ul trapassando a etapa das relações meramente comerciais para alcançar um estágio mais elevado de cooperação Então uma globalização constituída de baixo para cima em que a busca de classificação entre potências deixe de ser uma meta poderá per mitir que preocupações de ordem social cultural e moral pos sam prevalecer 28 A nação ativa a nação passiva A globalização atual e as formas brutais que adotou para im por mudanças levam à urgente necessidade de rever o que fazer com as coisas as idéias e também com as palavras Qualquer que seja o debate hoje reclama a explicitação clara e coerente dos seus termos sem o que se pode facilmente cair no vazio ou na ambigüidade E o caso do próprio debate nacional exigente de novas definições e vocabulário renovado Como sempre o país deve ser visto como uma situação estrutural em movimento na qual cada elemento está intimamente relacionado com os demais P O R UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 1 5 5 Ocaso do projeto nacional Agora porém no mundo da globalização o reconhecimen to dessa estrutura é difícil do mesmo modo que a visualização de um projeto nacional pode tornarse obscura Talvez por isso os projetos das grandes empresas impostos pela tirania das fi nanças e trombeteados pela mídia acabam de um jeito ou de outro guiando a evolução dos países em acordo ou não com as instâncias públicas freqüentemente dóceis e subservientes dei xando de lado o desenho de uma geopolítica própria a cada na ção e que leve em conta suas características e interesses Assim as noções de destino nacional e de projeto nacional cedem freqüentemente a frente da cena a preocupações meno res pragmáticas imediatistas inclusive porque pelas razões já expostas os partidos políticos nacionais raramente apresentam plataformas conduzidas por objetivos políticos e sociais claros e que exprimam visões de conjunto Cesar Benjamin e outros A opção brasileira 1998 A idéia de história sentido destino é ames quinhada em nome da obtenção de metas estatísticas cuja úni ca preocupação é o conformismo frente às determinações do processo atual de globalização Daí a produção sem contrapartida de desequilíbrios e distorções estruturais acarretando mais frag mentação e desigualdade tanto mais graves quanto mais aber tos e obedientes se mostrem os países Alienação da nação ativa Tomemos o caso do Brasil E mais que uma simples metá fora pensar que uma das formas de abordagem da questão seria considerar dentro da nação a existência na realidade de duas 156 MILTON SANTOS nações U m a nação passiva e uma nação ativa Do fato de serem as contabilidades nacionais globalizadas e globalizantes L a grande ironia é que se passa a considerar como nação ativa aquela que obedece cegamente ao desígnio globalitário enquanto o resto acaba por constituir desse ponto de vista a nação passiva A fazer valer tais postulados a nação ativa seria a daqueles que aceitam pregam e conduzem uma modernização que dá pree minência aos ajustes que interessam ao dinheiro enquanto a nação passiva seria formada por tudo o mais Serão mesmo adequadas essas expressões Ou aquilo a que desse modo se está chamando de nação ativa seria na realida de a nação passiva enquanto a nação chamada passiva seria de fato a nação ativa A chamada nação ativa isto é aquela que comparece eficaz mente na contabilidade nacional e na contabilidade internacio nal tem seu modelo conduzido pelas burguesias internacionais e pelas burguesias nacionais associadas É verdade também que o seu discurso globalizado para ter eficácia local necessita de um sotaque doméstico e por isso estimula um pensamento nacio nal associado produzido por mentes cativas subvencionadas ou não A nação chamada ativa alimenta sua ação com a prevalência de um sistema ideológico que define as idéias de prosperidade e de riqueza e paralelamente a produção da conformidade A nação ativa aparece como fluida veloz externamente articula da internamente desarticuladora entrópica Será ela dinâmica Como essa idéia é muito difundida cabe lembrar que velocidade não é dinamismo Esse movimento não é próprio mas atribuído tomado emprestado a um motor externo ele não é genuíno não tem finalidade é desprovido de teleologia Tratase de uma agi tação cega um projeto equivocado um dinamismo do diabo POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 157 Conscientização e riqueza da nação passiva A nação chamada passiva é constituída pela grossa maior parte da população e da economia aqueles que apenas participam de modo residual do mercado global ou cujas atividades conseguem sobreviver à sua margem sem todavia entrar cabalmente na contabilidade pública ou nas estatísticas oficiais O pensamento que define e compreende os seus atores é o do intelectual pú blico engajado na defesa dos interesses da maioria As atividades dessa nação passiva são freqüentemente marcadas pela contradição entre a exigência prática da confor midade isto é a necessidade de participar direta ou indiretamen te da racionalidade dominante e a insatisfação e inconformismo dos atores diante de resultados sempre limitados Daí o encon tro cotidiano de uma situação de inferiorização tornada perma nente o que reforça em seus participantes a noção de escassez e convoca a uma reinterpretação da própria situação individual diante do lugar do país e do mundo A nação passiva é estatisticamente lenta colada às rugo sidades do seu meio geográfico localmente enraizada e orgânica E também a nação que mantém relações de simbiose com o en torno imediato relações cotidianas que criam espontaneamente e à contracorrente uma cultura própria endógena resistente que também constitui um alicerce uma base sólida para a produção de uma política Essa nação passiva mora ali onde vive e evolui enquanto a outra apenas circula utilizando os lugares como mais um recurso a seu serviço mas sem outro compromisso N u m primeiro momento desarticulada pela nação ativa a nação passiva não pode alcançar um projeto conjunto Aliás o império dos interesses imediatos que se manifestam no exer 1 5 8 MILTON SANTOS cicio pragmático da vida contribui sem dúvida para tal desarti culação Mas num segundo momento a tomada de consciên cia trazida pelo seu enraizamento no meio e sobretudo pela sua experiência da escassez torna possível a produção de um proje to cuja viabilidade provém do fato de que a nação chamada pas siva é formada pela maior parte da população além de ser dota da de um dinamismo próprio autêntico fundado em sua própria existência Daí sua veracidade e riqueza Podemos desse modo admitir que aquilo que mediante o jogo de espelhos da globalização ainda se chama de nação ativa é na verdade a nação passiva enquanto o que pelos mesmos parâ metros é considerado a nação passiva constitui já no presente mas sobretudo na ótica do futuro a verdadeira nação ativa Sua emergência será tanto mais viável rápida e eficaz se se reconhe cem e revelam a confluência dos modos de existência e de traba lho dos respectivos atores e a profunda unidade do seu destino Aqui o papel dos intelectuais será talvez muito mais do que promover um simples combate às formas de ser da nação ati va tarefa importante mas insuficiente nas atuais circunstân cias devendo empenharse por mostrar analiticamente den tro do todo nacional a vida sistêmica da nação passiva e suas manifestações de resistência a uma conquista indiscriminada e totalitária do espaço social pela chamada nação ativa Tal visão renovada da realidade contraditória de cada fração do território deve ser oferecida à reflexão da sociedade em geral tanto à socie dade organizada nas associações sindicatos igrejas partidos como à sociedade desorganizada que encontrarão nessa nova interpretação os elementos necessários para a postulação e o exercício de uma outra política mais condizente com a busca do interesse social POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 1 5 9 29 A globalização atual não é irreversível A globalização atual é muito menos um produto das idéias atualmente possíveis e muito mais o resultado de uma ideologia restritiva adrede estabelecida Já vimos que todas as realizações atuais oriundas de ações hegemônicas têm como base constru ções intelectuais fabricadas antes mesmo da fabricação das coisas e das decisões de agir A intelectualização da vida social recente mente alcançada vem acompanhada de uma forte ideologização A dissolução das ideologias Todavia o que agora estamos assistindo em toda parte é uma tendência à dissolução dessas ideologias no confronto com a experiência vivida dos povos e dos indivíduos O próprio credo financeiro visto pelas lentes do sistema econômico a que deu origem ou examinado isoladamente em cada país aparece menos aceitável e a partir de sua contestação outros elementos da ideologia do pensamento único perdem força Além das múltiplas formas com que no período histórico atual o discurso da globalização serve de alicerce às ações hege mônicas dos Estados das empresas e das instituições internacionais o papel da ideologia na produção das coisas e o papel ideológico dos objetos que nos rodeiam contribuem juntos para agravar essa sensação de que agora não há outro futuro senão aquele que nos virá como um presente ampliado e não como outra coisa Daí a pesada onda de conformismo e inação que caracteriza nosso tempo contami nando os jovens e até mesmo uma densa camada de intelectuais 160 MILTON SANTOS É muito difundida a idéia segundo a qual o processo e a for ma atuais da globalização seriam irreversíveis Isso também tem a ver com a força com a qual o fenômeno se revela e instala em todos os lugares e em todas as esferas da vida levando a pensar que não há alternativas para o presente estado de coisas N o entanto essa visão repetitiva do mundo confunde o que já foi realizado com as perspectivas de realização Para exorcizar esse risco devemos considerar que o mundo é formado não apenas pelo que já existe aqui ali em toda parte mas pelo que pode efetivamente existir aqui ali em toda parte O mundo datado de hoje deve ser enxergado como o que na verdade ele nos traz isto é um conjunto presente de possibilidades reais concretas todas factíveis sob determinadas condições O mundo definido pela literatura oficial do pensamento único é somente o conjunto de formas particulares de reali zação de apenas certo número dessas possibilidades N o entan to um mundo verdadeiro se definirá a partir da lista completa de possibilidades presentes em certa data e que incluem não só o que já existe sobre a face da Terra como também o que ainda não existe mas é empiricamente factível Tais possibilidades ainda não realizadas já estão presentes como tendência ou como promessa de realização Por isso situações como a que agora defrontamos parecem definitivas mas não são verdades eternas A pertinência da utopia É somente a partir dessa constatação fundada na história real do nosso tempo que se torna possível retomar de maneira concreta a idéia de utopia e de projeto Este será o resultado da POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 161 conjunção de dois tipos de valores De um lado estão os valores fundamentais essenciais fundadores do homem válidos cm qualquer tempo e lugar como a liberdade a dignidade a felici dade de outro lado surgem os valores contingentes devidos à história do presente isto é à história atual A densidade e a factibilidade histórica do projeto hoje dependem da maneira como empreendamos sua combinação Por isso é lícito dizer que o futuro são muitos e resultarão de arranjos diferentes segundo nosso grau de consciência entre o reino das possibilidades e o reino da vontade E assim que iniciativas serão articuladas e obstáculos serão superados per mitindo contrariar a força das estruturas dominantes sejam elas presentes ou herdadas A identificação das etapas e os ajustamen tos a empreender durante o caminho dependerão da necessária clareza do projeto Conforme já mencionamos alguns dados do presente nos abrem desde já a perspectiva de um futuro diferente entre outros a tendência à mistura generalizada entre povos a voca ção para uma urbanização concentrada o peso da ideologia nas construções históricas atuais o empobrecimento relativo e ab soluto das populações e a perda de qualidade de vida das classes médias o grau de relativa docilidade das técnicas contempo râneas a politização generalizada permitida pelo excesso de normas Maria Laura Silveira Um país uma região Fim de século e modernidades na Argentina 1999 e a realização possível do ho mem com a grande mutação que desponta Lembramos também que um dos elementos ao mesmo tempo ideológico e empiricamente existencial da presente for ma de globalização é a centralidade do consumo com a qual muito têm a ver a vida de todos os dias e suas repercussões sobre 1 6 2 MILTON SANTOS a produção as formas presentes de existência e as perspectivas das pessoas Mas as atuais relações instáveis de trabalho a ex pansão de desemprego e a baixa do salário médio constituem um contraste em relação à multiplicação dos objetos e serviços cuja acessibilidade se torna desse modo improvável ao mes mo tempo que até os consumos tradicionais acabam sendo difí ceis ou impossíveis para uma parcela importante da população E como se o feitiço virasse contra o feiticeiro Essa recriação da necessidade dentro de um mundo de coi sas e serviços abundantes atinge cada vez mais as classes médias cuja definição agora se renova à medida que como também já vimos passam a conhecer a experiência da escassez Esse é um dado relevante para compreender a mudança na visibilidade da história que se está processando De tal modo às visões ofereci das pela propaganda ostensiva ou pela ideologia contida nos objetos e nos discursos opõemse as visões propiciadas pela exis tência E por meio desse conjunto de movimentos que se reco nhece uma saturação dos símbolos préconstruídos e que os li mites da tolerância às ideologias são ultrapassados o que permite a ampliação do campo da consciência Nas condições atuais essa evolução pode parecer impossí vel em vista de que as soluções até agora propostas ainda são prisioneiras daquela visão segundo a qual o único dinamismo possível é o da grande economia com base nos reclamos do sis tema financeiro Por exemplo os esforços para restabelecer o emprego dirigemse sobretudo quando não exclusivamente ao circuito superior da economia Mas esse não é o único caminho e outros remédios podem ser buscados segundo a orientação políticoideológica dos responsáveis levando em conta uma divisão do trabalho vinda de baixo fenômeno típico dos países POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 1 6 3 subdesenvolvidos M Santos O espaço dividido 1978 mas que agora também se verifica no mundo chamado desenvolvido Por outro lado na medida em que as técnicas cada vez mais se dão como normas e a vida se desenrola no interior de um oceano de técnicas acabamos por viver uma politização genera lizada A rapidez dos processos conduz a uma rapidez nas mu danças e por conseguinte aprofunda a necessidade de produ ção de novos entes organizadores Isso se dá nos diversos níveis da vida social Nada de relevante é feito sem normas Neste fim do século XX tudo é política E graças às técnicas utilizadas no período contemporâneo e ao papel centralizador dos agentes hegemônicos que são planetários tornase ubíqua a presença de processos distorcidos e exigentes de reordenamento Por isso a política aparece como um dado indispensável e onipresente abrangendo praticamente a totalidade das ações Assistimos assim ao império das normas mas também ao conflito entre elas incluindo o papel cada vez mais dominante das normas privadas na produção da esfera pública Não é raro que as regras estabelecidas pelas empresas afetem mais que as regras criadas pelo Estado Tudo isso atinge e desnorteia os in divíduos produzindo uma atmosfera de insegurança e até mes mo de medo mas levando os que não sucumbem inteiramente ao seu império à busca da consciência quanto ao destino do Pla neta e logo do Homem Outros usos possíveis para as técnicas atuais Os sistemas técnicos de que se valem os atuais atores hege mônicos estão sendo utilizados para reduzir o escopo da vida 164 MILTON SANTOS humana sobre o planeta N o entanto jamais houve na história sistemas tão propícios a facilitar a vida e a proporcionar a felici dade dos homens A materialidade que o mundo da globalização está recriando permite um uso radicalmente diferente daquele que era o da base material da industrialização e do imperialismo A técnica das máquinas exigia investimentos maciços seguin dose a massividade e a concentração dos capitais e do próprio sistema técnico Daí a inflexibilidade física e moral das operações levando a um uso limitado direcionado da inteligência e da cria tividade Já o computador símbolo das técnicas da informação reclama capitais fixos relativamente pequenos enquanto seu uso é mais exigente de inteligência O investimento necessário pode ser fragmentado e tornase possível sua adaptação aos mais di versos meios Podese até falar da emergência de um artesanato de novo tipo servido por velozes instrumentos de produção e de distribuição Dirseá então que o computador reduztendencialmente o efeito da pretensa lei segundo a qual a inovação técnica conduz paralelamente a uma concentração econômica Os no vos instrumentos pela sua própria natureza abrem possibilida des para sua disseminação no corpo social superando as clivagens socieconômicas preexistentes Sob condições políticas favoráveis a materialidade simboli zada pelo computador é capaz não só de assegurar a liberação da inventividade como tornála efetiva A desnecessidade nas so ciedades complexas e socioeconomicamente desiguais de ado tar universalmente computadores de última geração afastará também o risco de que distorções e desequilíbrios sejam agra vados E a idéia de distância cultural subjacente à teoria e à prá tica do imperialismo atinge também seu limite As técnicas POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO los contemporâneas são mais fáceis de inventar imitar ou reprodu zir que os modos de fazer que as precederam As famílias de técnicas emergentes com o fim do século XX combinando informática e eletrônica sobretudooferecem a possibilidade de superação do imperativo da tecnologia hegemônica e paralelamente admitem a proliferação de novos arranjos com a retomada da criatividade Isso aliás já está se dando nas áreas da sociedade em que a divisão do trabalho se produz de baixo para cima Aqui a produção do novo e o uso e a difusão do novo deixam de ser monopolizados por um capital cada vez mais concentrado para pertencer ao domínio do maior número possibilitando afinal a emergência de um verdadeiro mundo da inteligência Desse modo a técnica pode voltar a ser o resultado do encontro do engenho humano com um pedaço determinado da natureza cada vez mais modificada per mitindo que essa relação seja fundada nas virtualidades do en torno geográfico e social de modo a assegurar a restauração do homem em sua essência Geografia e aceleração da história A própria geografia parece contribuir para que a história se acelere Na cidade sobretudo na grande cidade os efeitos de vizinhança parecem impor uma possibilidade maior de iden tificação das situações graças também à melhoria da informa ção disponível e ao aprofundamento das possibilidades de co municação Dessa maneira tornase possível a identificação na vida material como na ordem intelectual do desamparo a que as populações são relegadas levando paralelamente a um maior 1 6 6 MILTON SANTOS reconhecimento da condição de escassez e a novas possibilida des de ampliação da consciência A partir desses efeitos de vizinhança o indivíduo refortifi cado pode num segundo momento ultrapassar sua busca pelo consumo e entregarse à busca da cidadania A primeira supõe uma visão limitada e unidirecionada enquanto a segunda inclui a elaboração de visões abrangentes e sistêmicas N o primeiro caso o que é perseguido é a reconstrução das condições materiais e jurídicas que permitem fortalecer o bemestar individual ou familiar sem todavia mostrar preocupação com o fortalecimento da individualidade enquanto a busca da cidadania apontará para a reforma das práticas e das instituições políticas Frente a essa nova realidade as aglomerações populacionais serão valorizadas como o lugar da densidade humana e por isso o lugar de uma coabitação dinâmica Será também aí visto pela mesma ótica que se observarão a renascença e o peso da cultura popular Por outro lado a precariedade e a pobreza isto é a im possibilidade pela carência de recursos de participar plenamen te das ofertas materiais da modernidade poderão igualmente inspirar soluções que conduzam ao desejado e hoje possível renascimento da técnica isto é o uso consciente e imaginativo em cada lugar de todo tipo de oferta tecnológica e de toda moda lidade de trabalho Para isso contribuirá o fato histórico concreto que é ao contrário do período histórico anterior o grau de docilidade das técnicas contemporâneas que se apresentam mais propícias à liberação do esforço ao exercício da inventividade e à floração e multiplicação das demandas sociais e individuais Se a realização da história a partir dos vetores de cima é ainda dominante a realização de uma outra história a partir dos vetores de baixo é tornada possível E para isso contribuirão POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 167 em todos os países a mistura de povos raças culturas religiões gostos etc A aglomeração das pessoas em espaços reduzidos com o fenômeno de urbanização concentrada típico do último quar tel do século XX e as próprias mutações nas relações de trabalho junto ao desemprego crescente e à depressão dos salários mos tram aspectos que poderão se mostrar positivos em futuro pró ximo quando as metamorfoses do trabalho informal serão vivi das também como expansão do trabalho livre assegurando a seus portadores novas possibilidades de interpretação do mundo do lugar e da respectiva posição de cada um no mundo e no lugar As condições atuais permitem igualmente antever uma reconversão da mídia sob a pressão das situações locais produ ção consumo cultura A mídia trabalha com o que ela própria transforma em objeto de mercado isto é as pessoas Como em nenhum lugar as comunidades são formadas por pessoas homo gêneas a mídia deve levar isso em conta Nesse caso deixará de representar o senso comum imposto pelo pensamento único Desde que os processos econômicos sociais e políticos produ zidos de baixo para cima possam desenvolverse eficazmente uma informação veraz poderá darse dentro da maioria da po pulação e ao serviço de uma comunicação imaginosa e emocio nada atribuindose assim um papel diametralmente oposto ao que lhe é hoje conferido no sistema da mídia Um novo mundo possível A partir dessas metamorfoses podese pensar na produção local de um entendimento progressivo do mundo e do lugar com a produção indígena de imagens discursos filosofias junto 168 MILTON SANTOS à elaboração de um novo ethos e de novas ideologias e novas crenças políticas amparadas na ressurreição da idéia e da prática da solidariedade O mundo de hoje também autoriza uma outra percepção da história por meio da contemplação da universalidade empírica constituída com a emergência das novas técnicas planetarizadas e as possibilidades abertas a seu uso A dialética entre essa univer salidade empírica e as particularidades encorajará a superação das práxis invertidas até agora comandadas pela ideologia dominan te e a possibilidade de ultrapassar o reino da necessidade abrindo lugar para a utopia e para a esperança Nas condições históricas do presente essa nova maneira de enxergar a globalização per mitirá distinguir na totalidade aquilo que já é dado e existe como um fato consumado e aquilo que é possível mas ainda não rea lizado vistos um e outro de forma unitária Lembremonos da lição de A Schmidt The concept of nature in Marx 1971 quando dizia que a realidade é além disso tudo aquilo em que ainda não nos tornamos ou seja tudo aquilo que a nós mesmos nos projetamos como seres humanos por intermédio dos mitos das escolhas das decisões e das lutas A crise por que passa hoje o sistema em diferentes países e continentes põe à mostra não apenas a perversidade mas tam bém a fraqueza da respectiva construção Isso conforme vimos já está levando ao descrédito dos discursos dominantes mesmo que outro discurso de crítica e de proposição ainda não haja sido elaborado de modo sistêmico O processo de tomada de consciência já o vimos não é homogêneo nem segundo os lugares nem segundo as classes sociais ou situações profissionais nem quanto aos indivíduos A velocidade com que cada pessoa se apropria da verdade contida na história é diferente tanto quanto a profundidade e coerência P O R UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 169 dessa apropriação A descoberta individual é já um considerável passo à frente ainda que possa parecer ao seu portador um ca minho penoso à medida das resistências circundantes a esse novo modo de pensar O passo seguinte é a obtenção de uma visão sistêmica isto é a possibilidade de enxergar as situações e as causas atuantes como conjuntos e de localizálos como um todo mostrando sua interdependência A partir daí a discussão silenciosa consigo mesmo e o debate mais ou menos público com os demais ganham uma nova clareza e densidade permitindo enxergar as relações de causa e efeito como uma corrente contí nua em que cada situação se inclui numa rede dinâmica estruturada à escala do mundo e à escala dos lugares E a partir dessa visão sistêmica que se encontram interpe netram e completam as noções de mundo e de lugar permitin do entender como cada lugar mas também cada coisa cada pes soa cada relação dependem do mundo Tais raciocínios autorizam uma visão crítica da história na qual vivemos o que inclui uma apreciação filosófica da nossa própria situação frente à comunidade à nação ao planeta jun tamente com uma nova apreciação de nosso próprio papel como pessoa É desse modo que até mesmo a partir da noção do que é ser um consumidor poderemos alcançar a idéia de homem integral e de cidadão Essa revalorização radical do indivíduo contribuirá para a renovação qualitativa da espécie humana ser vindo de alicerce a uma nova civilização A reconstrução vertical do mundo tal como a atual globa lização perversa está realizando pretende impor a todos os países normas comuns de existência e se possível ao mesmo tempo e rapidamente Mas isto não é definitivo A evolução que estamos entrevendo terá sua aceleração em momentos diferentes e em países diferentes e será permitida pelo amadurecimento da crise 170 MILTON SANTOS Esse mundo novo anunciado não será uma construção de cima para baixo como a que estamos hoje assistindo e deplorando mas uma edificação cuja trajetória vai se dar de baixo para cima As condições acima enumeradas deverão permitir a implan tação de um novo modelo econômico social e político que a partir de uma nova distribuição dos bens e serviços conduza à realização de uma vida coletiva solidária e passando da escala do lugar à escala do planeta assegure uma reforma do mundo por intermédio de outra maneira de realizar a globalização 30 A história apenas começa Ao contrário do que tanto se disse a história não acabou ela apenas começa Antes o que havia era uma história de lugares regiões países As histórias podiam ser no máximo continen tais em função dos impérios que se estabeleceram a uma escala mais ampla O que até então se chamava de história universal era a visão pretensiosa de um país ou continente sobre os ou tros considerados bárbaros ou irrelevantes Chegavase a dizer de tal ou tal povo que ele era sem história A humanidade como um bloco revolucionário O ecúmeno era formado de frações separadas ou escassamen te relacionadas do planeta Somente agora a humanidade pode identificarse como um todo e reconhecer sua unidade quando POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO 171 faz sua entrada na cena histórica como um bloco É uma entra da revolucionária graças à interdependência das economias dos governos dos lugares O movimento do mundo revela uma só pulsação ainda que as condições sejam diversas segundo conti nentes países lugares valorizados pela sua forma de participa ção na produção dessa nova história Vivemos em um mundo complexo marcado na ordem mate rial pela multiplicação incessante do número de objetos e na ordem imaterial pela infinidade de relações que aos objetos nos unem Nos últimos cinqüenta anos criaramse mais coisas do que nos cinqüenta mil precedentes Nosso mundo é complexo e confuso ao mesmo tempo graças à força com a qual a ideolo gia penetra objetos e ações Por isso mesmo a era da globalização mais do que qualquer outra antes dela é exigente de uma inter pretação sistêmica cuidadosa de modo a permitir que cada coi sa natural ou artificial seja redefinida em relação com o todo planetário Essa totalidademundo se manifesta pela unidade das técnicas e das ações A grande sorte dos que desejam pensar a nossa época é a existência de uma técnica globalizada direta ou indiretamente presente em todos os lugares e de uma política planetariamente exercida que une e norteia os objetos técnicos Juntas elas au torizam uma leitura ao mesmo tempo geral e específica filosó fica e prática de cada ponto da Terra Nesse emaranhado de técnicas dentro do qual estamos viven do o homem pouco a pouco descobre suas novas forças Já que o meio ambiente é cada vez menos natural o uso do entorno ime diato pode ser menos aleatório As coisas valem pela sua constitui ção isto é pelo que podem oferecer Os gestos valem pela adequa ção às coisas a que se dirigem Ampliamse e diversificamse as 172 MILTON SANTOS escolhas desde que se possam combinar adequadamente técnica e política Aumentam a previsibilidade e a eficácia das ações U m dado importante de nossa época é a coincidência entre a produção dessa história universal e a relativa liberação do ho mem em relação à natureza A denominação de era da inteli gência poderia ter fundamento neste fato concreto os materiais hoje responsáveis pelas realizações preponderantes são cada vez mais objetos materiais manufaturados e não mais matériaspri mas naturais Pensamos ousadamente as soluções mais fan tasiosas e em seguida buscamos os instrumentos adequados à sua realização Na era da ecologia triunfante é o homem quem fabrica a natureza ou lhe atribui valor e sentido por meio de suas ações já realizadas em curso ou meramente imaginadas Por isso tudo o que existe constitui uma perspectiva de valor To dos os lugares fazem parte da história As pretensões e a cobiça povoam e valorizam territórios desertos A nova consciência de ser mundo Graças aos progressos fulminantes da informação o mundo fica mais perto de cada um não importa onde esteja O outro isto é o resto da humanidade parece estar próximo Criamse para todos a certeza e logo depois a consciência de ser mundo e de estar no mundo mesmo se ainda não o alcançamos em plenitu de material ou intelectual O próprio mundo se instala nos lugares sobretudo as grandes cidades pela presença maciça de uma huma nidade misturada vinda de todos os quadrantes e trazendo consigo interpretações variadas e múltiplas que ao mesmo tempo se cho cam e colaboram na produção renovada do entendimento e da POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO crítica da existência Assim o cotidiano de cada um se enriquece pela experiência própria e pela do vizinho tanto pelas realizações atuais como pelas perspectivas de futuro As dialéticas da vida nos lugares agora mais enriquecidas são paralelamente o caldo de cul tura necessário à proposição e ao exercício de uma nova política Fundase de fato um novo mundo Para sermos ainda mais precisos o que afinal se cria é o mundo como realidade histórica unitária ainda que ele seja extremamente diversificado Ele é datado com uma data substantivamente única graças aos traços comuns de sua constituição técnica e à existência de um único motor para as ações hegemônicas representado pelo lucro à esca la global É isso aliás que junto à informação generalizada as segurará a cada lugar a comunhão universal com todos os outros Ousamos desse modo pensar que a história do homem sobre a Terra dispõe afinal das condições objetivas materiais e intelec tuais para superar o endeusamento do dinheiro e dos objetos téc nicos e enfrentar o começo de uma nova trajetória Aqui não se trata de estabelecer datas nem de fixar momentos da folhinha marcos num calendário Como o relógjo a folhinha e o calendário são convencionais repetitivos e historicamente vazios O que conta mesmo é o tempo das possibilidades efetivamente criadas o que à sua época cada geração encontra disponível isso a que chama mos tempo empírico cujas mudanças são marcadas pela irrupção de novos objetos de novas ações e relações e de novas idéias A grande mutação contemporânea Diante do que é o mundo atual como disponibilidade e como possibilidade acreditamos que as condições materiais já 1 7 4 MILTON SANTOS estão dadas para que se imponha a desejada grande mutação mas seu destino vai depender de como disponibilidades e possibili dades serão aproveitadas pela política Na sua forma material unicamente corpórea as técnicas talvez sejam irreversíveis porque aderem ao território e ao cotidiano De um ponto de vista existencial elas podem obter um outro uso e uma outra signifi cação A globalização atual não é irreversível Agora que estamos descobrindo o sentido de nossa presen ça no planeta podese dizer que uma história universal verda deiramente humana está finalmente começando A mesma materialidade atualmente utilizada para construir um mundo confuso e perverso pode vir a ser uma condição da construção de um mundo mais humano Basta que se completem as duas grandes mutações ora em gestação a mutação tecnológica e a mutação filosófica da espécie humana A grande mutação tecnológica é dada com a emergência das técnicas da informação as quais ao contrário das técnicas das máquinas são constitucionalmente divisíveis flexíveis e dó ceis adaptáveis a todos os meios e culturas ainda que seu uso perverso atual seja subordinado aos interesses dos grandes capi tais Mas quando sua utilização for democratizada essas técni cas doces estarão ao serviço do homem Muito falamos hoje nos progressos e nas promessas da en genharia genética que conduziriam a uma mutação do homem biológico algo que ainda é do domínio da história da ciência e da técnica Pouco no entanto se fala das condições também hoje presentes que podem assegurar uma mutação filosófica do ho mem capaz de atribuir um novo sentido à existência de cada pessoa e também do planeta Cnamofe Este livro foi composto n a tipologia Aldine e m corpo 1115 e impresso e m papel Chamois Fine 80gm 2 no Sistema C a m e r o n da Divisão Gráfica da Distribuidora Record