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GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago 18 GEOGRAFIAS DOS GRANDES PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO TERRITORIALIZAÇÃO DE EXCEÇÃO E GOVERNO BIONECROPOLITICO DO TERRITÓRIO GEOgraphia Niterói Universidade Federal Fluminense ISSN 26748126 GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago ARTIGOS Resumo Os grandes projetos de desenvolvimento são dispositivos territoriais capazes de suspender em termos políticos jurídicos e normativos toda a complexidade e diversidade territorial dos espaços nos quais se instalam Este artigo problematiza as práticas de governo bionecropolítico do território ou ainda essa geografia de exceção produzida pelos grandes projetos analisandoos primeiro como uma racionalidade econômica que atravessa mesmo diante das mais abissais diferenças ideológicas os vários espectros da política segundo como um dispositivo de acumulação por espoliação expressando em intensidade concentração e centralização de capital os modos mais violentos de expansão de relações capitalistas e terceiro como processos de territorialização de exceção que carregam recortes raciais e étnicos o que torna outras territorialidades distintas expressões de vida politicamente matáveis e territorialmente invisíveis solapando as condições de realização de outras geografias de povos grupos e comunidades Palavraschave Grandes projetos Governo bionecropolítico do território Acumulação por espoliação Territorialização de exceção GEOGRAPHIES OF BIG NONINVOLVEMENT PROJECTS TERRITORIALIZATION OF EXCEPTION AND BIONECROPOLITIC GOVERNMENT OF THE TERRITORY Abstract Large development projects are territorial devices capable of suspending politically legally and normatively all the complexity and territorial diversity of the spaces in which they are installed This article discusses the bionecropolitical governance practices of the territory or yet this geography of exception produced by the large projects analyzing them first as an economic rationality that crosses even in the face of the most abysmal ideological differences the various political spectra second as a device of accumulation by dispossession expressing in intensity concentration and centralization of capital the most violent modes of expansion of capitalist relations and third as processes of territorialization of exception that carry racial and ethnic dimensions which makes other territorialities distinct expressions of life politically killable and territorially invisible undermining the conditions for the realization of other geographies of peoples groups and communities Keywords Great Projects Bionecropolitical government of the territory Accumulation by dispossession Territorialization of exception GEOGRAFÍAS DE LOS GRANDES PROYECTOS DE DESARROLLO TERRITORIALIZACIÓN DE EXCEPCIÓN Y GOBIERNO BIONECROPOLÍTICO DEL TERRITORIO Rsumen Los grandes proyectos de desarrollo son dispositivos territoriales capaces de suspender política jurídica y normativamente toda la complejidad y diversidad territorial de los espacios donde se sitúan El presente artículo intenta problematizar las prácticas de gobierno bionecropolítico del territorio o incluso esa geografía de excepción producida por tales proyectos analizándolos en primer lugar como una racionalidad económica que circunda incluso frente a las más abismales diferencias ideológicas varios espectros de la política segundo como un dispositivo de acumulación por expoliación expresando en intensidad concentración y centralización de capital las más violentas formas de expansión de relaciones capitalistas y tercero como procesos de territorialización de excepción que son determinados por cuestiones étnicas y raciales lo que convierte a las territorialidades distintas y alternativas en expresiones de vida políticamente matables y territorialmente invisibles suprimiendo las condiciones de realización de otras geografías de pueblos grupos y comunidades Palabras clave Grandes proyectos Gobierno bionecropolítico del territorio Acumulación por expoliación Territorialización de excepción Doutor em Geografia Professor do curso de Licenciatura Plena em Educação do Campo da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará Endereço Unifesspa Campus 1 Folha 31 Quadra 07 Lote Especial snº Nova Marabá Marabá PA 68507590 ORCID httpsorcidorg000000020324302X Email brunomalheiro84gmailcom Doutor em Geografia Professor do Programa de PósGraduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense e Coordenador do Núcleo de Estudos sobre Território Ações coletivas e Justiça NETAJUFF Endereço Av Gal Milton Tavares de Souza snº Campus da Praia Vermelha Boa Viagem Niterói RJ CEP 24210346 ORCID https orcidorg0000000181367389 Email valterdocarmocruzhotmailcom Bruno Cezar Malheiro Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará Valter do Carmo Cruz Universidade Federal Fluminense 19 Geografias dos grandes projetos de desenvolvimento territorialização de exceção e governo bionecropolitico do território Introdução Os grandes projetos de desenvolvimento projetos mineirometalúrgicos petroquímicos grandes usinas hidrelétricas estradas portos hidrovias ferrovias etc são dispositivos territoriais capazes de suspender em termos políticos jurídicos e normativos toda a complexidade e diversidade territorial dos espaços nos quais se instalam Ao se constituírem pelos signos da modernidade capitalista expressam em intensidade concentração e centralização de capital os modos mais violentos de expansão de relações capitalistas e por isso também expõem em termos paradigmáticos os limites de nossa democracia uma vez que a racionalidade territorial desses megaempreendimentos a geografia do desenvolvimento para se realizar solapa as condições de realização de outras geografias de povos grupos e comunidades Adotamos a escrita de geografia do des envolvimento ao invés de geografia do desenvolvimento por entendermos como Porto Gonçalves 2006 a geografia não como substantivo mas como verbo como atoaçãopráticas de marcar a terra É desse modo que podemos falar de uma geo grafia do desenvolvimento em que os diferentes agentes inscrevem lógicas territoriais marcas práticas e usos que resignificam o espaço e assim com novos signos grafam a terra geografam reconfigurando a sociedade e seus territórios Já desenvolvimento para o referido autor significa tirar o envolvimento a autonomia que cada cultura e cada povo mantém com o seu espaço com o seu território é subverter o modo como cada povo mantém suas próprias relações de homens e mulheres entre si e destes com a natureza é não só separar homens e mulheres da natureza como também separálos entre si individualizandoos Desenvolver é envolver cada um os desterritorializados em uma nova configuração societária a capitalista através de técnicas e dispositivos sociais e políticos empregados para promover esse desenvolvimento tais como os novos cercamentos das terras e dos recursos naturais ou melhor a privatização das terras e dos recursos de uso comum PORTOGONÇALVES 2006 Esses grandes projetos que são verdadeiros paradigmas dessa geografia do desenvolvimento nos diferentes momentos históricos e como expressão de variados espectros políticos sem distinção de esquerda e direita são sempre anunciados e enunciados como inevitáveis defendidos como estratégicos para segurança e soberania nacional como uma necessidade política para a garantia das condições materiais do desenvolvimento uma vez que quando falamos deles estamos falando em energia minérios petróleo logística elementos fundamentais para a sustentação material do modo de vida moderno Esse discurso da inevitabilidadenecessidade fez com que a sistemática violência aos povos e a devastação da natureza provocados pela usina hidrelétrica de Belo Monte1 por exemplo se transformassem em detalhes diante de escolhas políticas de governos É em função dessa mesma lógica que um mineroduto a interligar Minas Gerais ao Rio de Janeiro2 com drásticos impactos sociais e ambientais foi pensado apenas como uma linha conectando dois pontos e não como uma navalha a cortar múltiplas territorialidades Por essa mesma matriz de racionalidade na serra dos Carajás no Pará o maior projeto de mineração de ferro do mundo3 foi e continua sendo tratado como potência econômica não como um dispositivo a retirar as condições de vida de quilombolas camponeses indígenas Os grandes projetos de desenvolvimento são máquinas biopolíticas que fazem viver e deixam morrer Estes grandes projetos têm produzido verdadeiros territórios de sacrifício Por isso refletir sobre esses dispositivos territoriais implica em nos interrogarmos acerca de como são produzidas as condições materiais de reprodução da vida de um cidadão por exemplo de uma grande cidade do Brasil De onde vem os alimentos a água a energia os materiais que constroem os sistemas técnicos que nos oferecem comodidade Quantas vidas são sacrificadas para o nosso conforto material Nós temos responsabilidade quando povos desconhecidos distantes em milhares de quilômetros de nossas vidas cotidianas são afetados pelos grandes projetos Nossa ignorância nos isenta de responsabilidade Qual o peso de nossa indiferença em relação à geografia da violência que opera nesses territórios de sacrifícios O que 1Projeto de aproveitamento Hidrelétrico do Rio Xingu Surgiu como proposta ainda na década de 1980 com o complexo Hidrelétrico de Altamira inicialmente chamado de Kararaô barrado por movimentos indígenas e problemas técnicos para a execução Depois de anos do fim da ditadura militar a hidrelétrica ressurgiu batizada de Belo Monte Seu processo de instalação gerou profundas contradições e conflitos com povos e comunidades tradicionais bem como com órgãos de regulação ambientais Hoje a usina produz anualmente 4796 KW embora sua potência instalada seja de 11 233 KW 2 Esse empreendimento considerado o maior projeto míneroportuário do mundo prevê a exploração de 26 milhões de toneladas anuais de minério de ferro em Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas ambos localizados na Serra do Espinhaço em Minas Gerais um mineroduto de 525 km de extensão para o escoamento do minério cruzando 32 municípios de Minas e do Rio de Janeiro um terminal portuário privativo de uso misto para cargas sólidas e semisólidas o chamado Porto do Açu e um distrito industrial na retroárea do porto ambos em São João da BarraRJ 3O Projeto S11D compreenderá a extração de minério de ferro do Bloco D do Corpo S11 de Serra Sul Prevê durante 39 anos a lavra a céu aberto de 34 bilhões de toneladas de minério e 174 bilhões de toneladas de estéril Os 90 milhões de toneladas de minério que serão lavrados por ano serão encaminhados para a usina de beneficiamento com 667 de teor de ferro Os produtos denominados Fino Natural e Produto da Britagem Secundária serão transportados pelo novo Ramal Ferroviário do Sudeste do Pará que será interligado à Estrada de Ferro Carajás EFC até o Terminal Portuário de Ponta da Madeira TPPM em São Luís MA Do porto o minério seguirá em navio para os principais mercados consumidores da Ásia Europa e América do Norte GOLDER ASSOCIATES 2009 p 07 GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago 20 contribuiu para que toda a violência praticada por esses megaempreendimentos tivesse menos importância do que a necessidade de mantermos certo padrão moderno colonial de vida Escolhemos enfim deixar morrer inúmeros sujeitos comunidades povos apenas porque decidimos nos desenvolver por intermédio de grandes projetos Este artigo pretende problematizar a dinâmica de exceção dos processos de territorialização desses grandes empreendimentos de desenvolvimento a fim de desnaturalizar suas lógicas de violação e questionar os sentidos concretos de sua necessidade Para isso esse texto se divide em quatro partes na primeira sustentamos a hipótese de serem os grandes projetos paradigmas de compreensão do capitalismo contemporâneo no Brasil na segunda discutiremos a realização dos grandes projetos como processos de acumulação por espoliação regimes de expropriação de terras e cercamentos do comum em um terceiro momento entraremos na dinâmica de realização desses megaempreendimentos por meio do governo bio necropolítico do território levantando os termos para a compreensão dos processos de territorialização de exceção e por fim indicaremos elementos contidos nos processos de territorialização desses empreendimentos que podem apontar questionamentos de fundo que nos ajudam a nos entender como sociedade Grandes projetos de desenvolvimento como paradigma de compreensão do capitalismo contemporâneo Experimentamos na América Latina nas duas últimas décadas uma espécie de consenso político e ideológico que aponta a mercantilização da natureza e a exploração intensiva e em grande escala de recursos naturais como únicas vias legítimas ou possíveis para o desenvolvimento econômico Esse processo definido por Svampa 2013 como consenso das commodities entende que a exportação de commodities agrícolas e minerais como motor de inserção na geoeconomia e na geopolítica global tornase um projeto consensual não importando o espectro políticoideológico dos diferentes governos da região de esquerda à direita dos conservadores àqueles com inclinações progressistas A escolha por um padrão extrativo de acumulação e a participação na divisão internacional do trabalho sustentase pela crescente demanda e valorização de certos produtos no mercado internacional principalmente nos países centrais do capitalismo e também nos países emergentes como a China que é um dos principais consumidores de matériasprimas oriundas do continente latinoamericano A lógica espacial desse modelo vem se materializando através dos grandes projetos de desenvolvimento processos de territorialização corporativos de larga escala que se caracterizam pela concentração centralização e intensividade espaçotemporal de investimentos VAINER 2010 Estes grandes projetos estão concentrados sobretudo em alguns setores da economia basicamente na exploração intensiva de recursos naturais no campo mineirometalúrgico petroquímico especialmente na cadeia de produção do gás e do petróleo Outros dois segmentos importantes que concentram grandes projetos são o energético especialmente com relação à construção de grandes usinas hidroelétricas e o setor que pensa e viabiliza a logística de transporte como estradas portos hidrovias ferrovias etc Essa escolha espacial política e econômica pela exportação de commodities agrícolas e minerais vem acirrando os conflitos ambientais e territoriais pois a dinâmica de territorialização desses empreendimentos se realiza através de um processo de ajuste espacial incorporando novas áreas e abrindo novas fronteiras à logica de acumulação pelos negócios do agro da mineração da energia ou da infraestrutura O capital expande seu domínio territorial sobre espaços que não estavam até hoje plenamente incorporados aos circuitos da acumulação global esses verdadeiros fundos territoriais MORAES 2011 se transformam em novas fronteiras nas quais a acumulação se realiza por dispositivos e mecanismos de espoliação o que significa entre outras coisas um violento processo de apropriação e expropriação de recursos naturais terras e territórios HARVEY 2005 Paralelamente esse ajuste espacial demanda um novo meio técnicocientífico e informacional novos sistemas de objetos e de ações para a consolidação de uma base produtiva e logística capaz de imprimir velocidade e fluidez atributos fundamentais na reprodução do capital SANTOS 1996 Além de uma nova densidade técnica é necessário criar uma outra densidade normativa um modo de regulação do território que implica na flexibilização ou supressão de instrumentos jurídicos como leis códigos e zoneamentos ACSELRAD 2013 Essa desnormatização tem como intuito alisar o espaço ou seja retirar os obstáculos jurídicos para assim redefinir o acesso o controle e os usos do território de acordo com os interesses corporativos Dessa forma criamse verdadeiros territórios corporativos de exceção onde ocorre também a suspensão do estado de direito de indivíduos e grupos direitos ambientais territoriais 21 Geografias dos grandes projetos de desenvolvimento territorialização de exceção e governo bionecropolitico do território trabalhistas direitos humanos minando as garantias fundamentais da vida Esses projetos provocam também processos de grandes rupturas e fraturas metabólicas que afetam paisagens ecossistemas e toda a dinâmica geobio física das áreas onde são implantados promovendo mudanças e reestruturação socioespacial e ambiental na escala local e até regional A conformação desses grandes projetos tem como marca um intenso e violento processo de desterritorialização compulsória e precarização territorial das populações onde esses grandes vetores de modernização se realizam Trata se da destruição de mundos pois tal processo afeta de maneira dramática os recursos e os modos de vida de camponeses indígenas quilombolas e dos povos e comunidades tradicionais em geral resultando em intensos conflitos ambientais e territoriais o que gera milhares de refugiados do desenvolvimento VAINER 2010 Entretanto essa geografia dos grandes empreendimentos não é constituída somente a partir dos rastros de violência e das ruínas dos locais onde se instalam mas também de lutas conflitividades e antagonismos que se amplificam expressandose em uma diversidade de formas de rexistências Mas afinal porque estudar as geografias dos grandes projetos de desenvolvimento O que há de comum entre o projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte o maior projeto de extração de ferro do mundo o S11D da Vale situado em Carajás e o projeto do mineroduto MinasRio4 Nossa hipótese de trabalho é que tais projetos além de outros de mesma natureza representam casos paradigmáticos da dinâmica particular de territorializações dos processos de acumulação de capital no Brasil Por esses termos acreditamos que determinadas realidades empíricas como é o caso dos grandes projetos têm o papel de síntese de processos e realidades mais amplas pois concordamos com a afirmação de José de Sousa Martins 2013 de que metodologicamente existem certas situações experiências grupos sociais e territórios que possuem um maior potencial de revelação das lógicas que organizam uma sociedade do que outros ou seja há certas entradas privilegiadas na investigação empírica para compreender e explicar uma sociedade Existem enfim certas plataformas analíticas que oferecem ao pesquisador uma condição especial de observação e análise Essas realidades empíricas epistêmicas e metodologicamente privilegiadas têm a ver com aquelas situações sujeitos e lugares considerados marginais liminares que de algum modo são vítimas do capitalismo da modernidade e do colonialismo5 Martins não está isolado na ideia de que certas situações certas experiências são em si metodológicas Hanna Arendt 2012 por exemplo em raciocínio semelhante fala da sua escolha de estudar certos fenômenos extremos como reveladores da lógica da política Assim para analisar tal fenômeno a filósofa busca compreender experiências extremas da prática política tais como os regimes totalitários as revoluções os movimentos terroristas etc Essas situações têm a força de revelar com mais profundidade e nitidez a natureza da política e os dilemas das ideias tradições e instituições Michel Foucault 1979 na mesma direção sugere que um dos seus princípios de método é tentar compreender a sociedade ocidental e sua racionalidade política a partir do estudo de experiênciaslimites tais como a loucura o crime a sexualidade etc Com grandes afinidades com as ideias anteriores Giorgio Agamben 2009 fala de casos paradigmáticos como recurso metodológico Para esse autor é possível metodologicamente trabalhar com a ideia de que determinados casos empíricos podem exercer um verdadeiro papel de paradigma para a compreensão de um contexto mais amplo Isto significa dizer que estudar casos extremos representativos de determinados fenômenos sociais devido a sua importância e representatividade podem oferecer elementos de inteligibilidade de um contexto mais ampliado por intermédio de analogias iluminações e ressonâncias Os casos paradigmáticos apesar de referiremse a realidades singulares definem a inteligibilidade do conjunto do qual fazem parte e que ao mesmo tempo constituem6 O filósofo italiano mostra que a noção de paradigma está diretamente ligada à ideia de exemplaridade ou seja o paradigma é algo que serve de exemplo para a compreensão do conjunto de fenômenos semelhantes É desse mesmo modo que Agamben 2009 utiliza na sua leitura sobre a realidade política contemporânea determinados casos paradigmáticos como o campo de concentração o estado de exceção e o mulçumano 5Martins 2013 falando de seu percurso e programa de pesquisa sugere que os objetos de algumas de suas pesquisas têm essas características tais como a Fronteira subúrbio linchamento etc 6É neste sentido que Agamben mostra que um autor como Michel Foucault apesar de trabalhar com casos específicos como por exemplo o estudo sobre a organização do poder materializado no panóptico não se restringia a essa realidade especifica pois o panóptico era uma espécie de caso paradigmático para a compreensão das relações de poder disciplinar da modernidade ocidental europeia Segundo Agamben 2009 p23 para Foucault o panóptico é um modelo generalizável de funcionamento do poder pois o panoptismo era um princípio de conjunto Como tal é uma figura de tecnologia do poder político que pode e deve dissociarse de seu uso específico pois não é só um edifício onírico e sim um diagrama de um mecanismo de poder elevado a sua forma ideal AGAMBEN 2009 p23 Funciona em resumo como um paradigma em sentido próprio um objeto singular que valendo para todos os outros da mesma classe define a inteligibilidade do conjunto AGAMBEN 2009 GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago 22 Estes são casos exemplares que segundo o autor iluminam o conjunto dos processos políticos do mundo contemporâneo Concordando e inspirados nesses princípios metodológicos acreditamos que a geografia dos grandes projetos ou melhor os processos de territorialização desses empreendimentos suas contradições conflitos as lutas e as rexistências a esses processos constituem uma realidade paradigmática que nos permite compreender um conjunto de dinâmicas fundamentais que atravessam a ordem territorial da sociedade contemporânea Lançar o olhar sobre essa realidade nos possibilita problematizar as principais linhas de força que constituem o atual momento do nosso capitalismo periférico e de nossa modernidade colonial a um padrão de acumulação por espoliação que avança por sobre os recursos públicos e comuns estabelecendo uma nova onda de cercamentos uma ofensiva que busca disciplinar e regular a sociedade pela lógica do mercado imprimindo um processo de commoditização em todos os domínios da vida social b um padrão de acumulação de natureza extrativista que é predatório do ponto de vista ambiental pois opera de maneira intensiva sobre os recursos naturais gerando grandes rupturas e fraturas metabólicas e coloca em questão os limites materiais do nosso atual modelo de des envolvimento e civilizatório em sentido amplo c o limite de nossas democracias e do estado de direito bem como a ascensão do estado de exceção e de uma governamentalidade autoritária do território d o conjunto desses processos resulta em um governo bio necropolitico do território ancorados em uma visão colonial e em práticas sistemáticas de violência que administra uma política de morte sobre os grupos mais vulneráveis como camponeses quilombolas povos indígenas e outras comunidades tradicionais Esses processos que passaremos a discutir a partir de agora Grandes projetos acumulação por espoliação regimes de expropriação de terras e cercamentos do comum Os grandes projetos não podem ser compreendidos distantes das dinâmicas de acumulação para os quais são pensados Nesses termos de que forma de acumulação ou melhor de que capitalismo estamos falando quando estudamos os grandes projetos A resposta a tal questionamento só pode ser construída se entendemos de antemão que a dinâmica de territorialização desses grandes empreendimentos significa sobretudo grandes apropriações de terras não somente a terra em si mas apropriação do subsolo da água da biodiversidade etc Na lógica desse capitalismo extrativo a natureza é vista como matériaprima como recurso como commoditie a ser apropriada transformada vendida e comprada A ideia dominante nessa matriz de racionalidade é de uma natureza como obstáculo o que passa a se tornar a lógica geral naturalizada por políticas estatais eou estratégias corporativas Essa corrida por terras rumo as áreas naturais praias mares e ecossistemas florestais rios serras e montanhas chapadas charcos e lagoas ou rumo às terras ocupadas por lógicas comunitárias vales e distritos camponeses terras indígenas planícies com agricultura familiar áreas de pesca artesanal territórios quilombolas etc representam um extenso repertório de exemplos de mercantilização cujo caráter devastador sobre numerosas populações e territórios ameaçam a reprodução da vida em todas as suas expressões BARCELOS 2018 Rosa Luxemburgo chega a nos mostrar que o instituto da propriedade privada capitalista é um motor de processos de acumulação pela via da violência afirmando que a cada expansão do capitalismo há uma guerra encarniçada do capital contra outras relações econômicosociais de povos nativos além de uma desapropriação violenta de seus meios de produção e roubo de sua força de trabalho LUXEMBURGO 1984 p33 Neste sentido falar da dinâmica de acumulação por intermédio dos grandes projetos exigenos analisar os novos cercamentos demonstrando os diferentes mecanismos e dispositivos violentos por meio dos quais se realiza esse tipo de acumulação7 dentre os quais podemos citar a mercadificação e a privatização da terra e a expulsão violenta de populações camponesas a conversão de várias formas de direitos de propriedade comum coletiva do Estado etc em direitos exclusivos de propriedade privada a supressão dos direitos dos camponeses às terras comuns partilhadas a mercadificação da força de trabalho e a supressão de formas alternativas autóctones de produção e consumo processos coloniais neocoloniais e imperiais de apropriação de ativos inclusive de recursos naturais a monetarização da troca e a taxação particularmente da terra o comércio de escravos e a usura a dívida nacional e em última análise o sistema de crédito como meios radicais de acumulação primitiva HARVEY 2005 p 121 7 Harvey 2005 faz sua sistematização dos mecanismos a partir da leitura de Marx sobre os processos de acumulação primitiva na geografia histórica do capitalismo 23 Geografias dos grandes projetos de desenvolvimento territorialização de exceção e governo bionecropolitico do território Quando David Harvey 2005 propôs a teoria do ajuste espacial ele tentou compreender essencialmente a dinâmica fronteiriça do capital ou seja o papel das reconfigurações geográficas no processo de acumulação Ele afirmava a existência de uma necessidade constitutiva do capitalismo diante das crises que ocorriam no interior do sistema de se expandir e criar novas fronteiras enfim de se apropriar de realidades espaciais não capitalistas O capitalismo sempre se utilizou de fundos de ativos externos a si mesmo para enfrentar problemas de sobreacumulação tais como apropriação de terra nua novas fontes de recursos naturais supressão de direitos coletivos expulsão violenta de trabalhadores e camponeses HARVEY 2005 p122 Harvey 2005 investe grande energia teórica para demonstrar o papel contínuo e a persistência desses mecanismos no capitalismo contemporâneo substituindo inclusive adjetivos dados a esse tipo de acumulação como primitivo e original pela construção do conceito de acumulação por espoliação Identifica ainda a lógica e racionalidade desses mecanismos em formas contemporâneas de espoliação como nas questões relacionadas aos direitos de propriedade intelectual em toda a dinâmica de biopirataria na mercantilização de formas culturais históricas e da criatividade intelectual na corporativização e privatização de bens até agora públicos universidades sistemas de saúde água terras comuns e mesmo na lógica do sistema de crédito e capital financeiro com seu estilo especulativo e predatório HARVEY 2005 Tratando também dessa dinâmica de espoliação Michel Levien 2014 chega a nos advertir que diferente dos processos de exploração do trabalho que pressupõem uma dinâmica de alienação e coação permanente do trabalhador a acumulação por espoliação envolve mudanças traumáticas processos de desapropriação conflituosos sendo que é inimaginável pensar nesses processos sem compreender que eles são na maioria das vezes empreendidos ou possibilitados pelo próprio Estado como agente portador do monopólio da violência A ressalva de Levien 2014 p 37 também é metodológica uma vez que registra a necessidade de pensarmos além do papel funcional ao capitalismo da acumulação por espoliação para pensarmos pelo conjunto de meios e de arranjos necessários para se efetivar tais relações e práticas entendidas desse modo como regimes de desapropriação definidos como o uso de coerção extraeconômica para expropriar ativos não relacionados ao trabalho de um grupo para o benefício de outro Em última análise a espoliação é um processo por meio do qual os detentores de meios de coerção obrigam os detentores de meios de produção ou subsistência comunal ou privada a cedêlos a terceiros a espoliação é uma relação política de redistribuição fundamentada em diferentes configurações de classes e executada por Estados com seus meios específicos de gerar consenso incluindo os idiomas específicos de justificação LEVIEN 2014 p45 No mesmo sentido Sandra Lencioni 2012 faz distinção semelhante entre espoliação e exploração Para essa autora o processo de acumulação primitiva está relacionado à espoliação enquanto o de reprodução do capital está associado à exploração Espoliação significa privar alguém de algo por meios ilícitos ilegítimos ou violentos É esse o sentido dos mecanismos espoliativos como aquele que nega o direito à posse Por exemplo sob o selo da propriedade privada capitalista se arranca da terra os que vêm nela vem trabalhando há várias gerações Já a exploração se vincula aos diversos procedimentos que buscam se apossar do lucro por meio da sujeição da posse e do domínio da propriedade privada LENCIONE 2012 p 3 Quando falamos em hidrelétricas da megaexploração de minérios de megaempreendimentos logísticos de dotação de infraestrutura no território não falamos apenas de dinâmicas de superexploração do trabalho e da natureza configurando modos específicos de drenagem energética por mecanismos de espoliação falamos também na expropriação das condições objetivas de vida de múltiplos povos e comunidades falamos ainda da confluência de interesses entre grandes corporações e o Estado Esse processo não pode ser compreendido apenas na escala da acumulação da dinâmica de divisão internacional do trabalho nem apenas na escala das trocas desiguais de matéria e energia mas também na escala do impedimento da vida do solapamento das condições de existência de diversos grupos povos e comunidades Por isso a lógica de expansão capitalista por meio dos grandes projetos de desenvolvimento nesses termos assume o caráter de um cercamento do comum O termo cercamento faz pensar sobretudo no açambarcamento de terras e recursos naturais praticado em escala mundial DARDOT LAVAL 2017 p 107 Tratase portanto de um cercamento da natureza e dos meios de existência dos ambientes por onde se realizam as diferenças dos espaços onde ocorrem GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago 24 distintos processos de produção da vida social o que dá origem a territorializações voltadas à exploração de recursos Essa grande apropriação em toda a sua variedade de suas manifestações acarreta fenômenos maciços de exclusão e desigualdade contribui para acelerar o desastre ambiental transforma a cultura e a comunicação em produto comercial e atomiza cada vez mais a sociedade em indivíduosconsumidores indiferentes ao destino comum DARDOT LAVAL 2017 p 109 Os novos cercamentos surgem como uma progressiva e violenta expropriação do comum ou seja como um jogo complexo de disputas sociopolíticas e territoriais em torno do uso acesso e controle dos bens da natureza uma espécie de versão contemporânea da separação clivagem da sociedade de suas bases materiais de existência BARCELOS 2018 Os grandes projetos de desenvolvimento como expressão desses novos cercamentos que açabarcam o comum drenam matéria e energia e destituem de estatuto político aqueles que se colocam em seu caminho atualizam dessa forma a lógica das plantations coloniais as quais Achille Mbembe 2016 identifica como os paradigmas fundamentais da emergência do estado de exceção por representarem espaços em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei e no qual tipicamente a paz assume a face de uma guerra sem fim MBEMBE 2016 p 132 É essa esfera de indeterminação política criada pelos megaempreendimentos que queremos agora compreender melhor Grandes projetos e o governo bionecropolitico do território os processos de territorialização de exceção Os métodos violentos por meios dos quais a dinâmica de espoliação via grandes projetos se realiza implica nos a pensar que tais processos indicam não apenas uma lógica econômica perversa mas dinâmicas políticas que desmontam os sentidos básicos que sustentam qualquer ideia de democracia uma vez que estamos falando da expropriação das condições de existência e energias vitais de grupos povos e comunidades como lógica legitimada de desenvolvimento Há portanto um ajustamento das populações aos movimentos econômicos isto é uma divisão que garante que a morte regulada de alguns signifique a vida regulada de outros como nos aponta Foucault 2008 E não estamos falando de monarquias absolutistas pelo contrário assim como Agamben alerta essas técnicas de governo inscritas num patamar de indeterminação entre a democracia e o absolutismo AGAMBEN 2004 p13 colocamse como um paradigma constitutivo de toda nossa ordem jurídica agora de exceção que nesses termos pode ser pensada como uma ordem que inclui para excluir Quando por exemplo os indígenas entram em cena no debate público em torno de um grande projeto geralmente a imagem que os é reservada é a de entrave Suas vidas são menos importantes que a necessidade do desenvolvimento sua inclusão na política é justamente para justificar sua exclusão Por isso essa geografia de exceção que se realiza por grandes projetos deixa morrer aquilo que não pode ser incluído no todo ao qual pertence e não pode pertencer ao conjunto no qual está desde sempre incluído AGAMBEN 2002 p 32 A racionalidade desses megaempreendimentos portanto expõe uma nova tragédia se ontem o drama do sujeito era ser explorado pelo capital a tragédia da multidão hoje é ser relegada a uma humanidade supérflua entregue ao abandono sem qualquer utilidade para o funcionamento do capital MBEMBE 2018 p 15 16 O abandono e a falta de utilidade de grupos comunidades e povos tratados como entraves ao des envolvimento serão motores não apenas biopolíticos mas necropolíticos uma vez que nesse caso falamos de uma política de morte Dessa forma tal qual compreendemos que os processos de acumulação primitiva ou de acumulação por espoliação não se constituem em um momento prévio e preparatório do capitalismo mas uma marca constitutiva dele acreditamos ser o estado de exceção e as formas de governo bionecropolítico do território também constitutivos dos regimes democráticos8 Nesse sentido se os grandes projetos se expressam como dinâmicas de realização da espoliação no capitalismo contemporâneo eles só se realizam tornando a exceção a regra em seus processos de territorialização Os grandes empreendimentos são portanto paradigmas fundamentais na compreensão do estado 8Problematizando a emergência do Estado de Exceção quatro hipóteses nos ajudam a entendêlo em face aos ditos regimes democráticos Para Hannah Arendt 2012 os regimes totalitários significam uma descontinuidade ou seja uma ruptura completa com as tradições ideias e instituições políticas ocidentais representam portanto uma situação histórica excepcional a hipótese de Michel Foucault 2010 é um tanto diferente pois para o filósofo francês os regimes totalitários não significam uma ruptura de descontinuidade completa com as instituições as ideias e tecnologias políticas operantes nos chamados regimes democráticos ocidentais mas uma radicalização e aprofundamento destas na mesma linha de Foucault Giorgio Agamben 2004 alerta que o estado de exceção está inscrito entre a democracia e o absolutismo sendo um paradigma constitutivo de toda nossa ordem jurídica ou ainda um paradigma de governo dominante na política contemporânea por fim a hipótese de Franz Fanon 2005 é de que o estado de exceção coexiste com regimes democráticos pois ele opera as linhas do ser e do não ser a democracia existe apenas para alguns sujeitos territórios e corpos quem está fora das linhas do ser experimenta no corpo cotidianamente o estado de exceção Nossa leitura se alinha com a hipótese interpretativa de FoucaultAgamben complexificada e matizada por Fanon 25 Geografias dos grandes projetos de desenvolvimento territorialização de exceção e governo bionecropolitico do território de exceção na contemporaneidade uma vez que compreendem processos capitalistas que se realizam suspendendo vidas estruturando uma maneira específica de governo corporativo do território que interliga discursos instituições e disposições espaciais fora do ordenamento jurídico produzindo situações nas quais a suspensão da lei tornase a própria lei Esses mecanismos esvaziam de direitos os espaços onde se territorializam esses empreendimentos criando zonas de indiferença Assim territórios antes preenchidos de simbolismo vida e cultura são simplesmente transformados em espaços nulos desprovidos de qualquer regra vazios de direito ou seja espaços para os quais a possibilidade econômica da exploração apaga sua história e geografia MALHEIRO 2019 Em outras palavras os espaços onde se territorializam esses grandes projetos precisam se tornar livres de qualquer regulamentação para que o Estado possa usar a prerrogativa de exercer formas de regulação especial de acordo com os contextos e interesses em jogo Existe claramente uma lógica econômica nisso tudo que é a de construir regimes especiais de exploração a partir de termos e normas também especiais de modo a garantir lucros extraordinários a partir de processos de acumulação violentos Os grandes projetos nesses termos constituemse em uma maneira particular e racional de manipulação das relações de força pois demonstram uma maneira específica de governo9 bionecropolítico do território estruturando a ação de quem quer que se coloque no caminho a partir de sua racionalidade definindo todas as oposições como irracionais Essa maneira de manipular as relações de poder interliga um conjunto de discursos de progresso uma variedade de instituições uma forma específica de organização do espaço marcada pelo gigantismo e pela opulência da técnica além de leis que são criadas ou burladas em nome da execução de tais projetos Esses megaempreendimentos não são quaisquer 9É importante lembrar que quando falamos de governo do território estamos atribuindo à palavra governo o sentido dado por Foucault 1995 como uma ação de estruturação do campo de ação dos outros ou simplesmente uma ação sobre ações sentido esse aliás que coincide com a própria reformulação do entendimento do exercício do poder pelo autor a luz de seus trabalhos sobre biopolítica Diferente da soberania em que o poder se exerce pelo direito do soberano de matar e da disciplina que produz uma economia de maximização da utilidade dos corpos em conjunto a biopolítica opera sobre probabilidades antecipando riscos em nome da segurança fragmentando a sociedade por dados estatísticos e definindo quem pode viver e quem vai se deixar morrer Por esses termos que o poder é um conjunto de ações sobre ações possíveis ele opera sobre o campo de possibilidades aonde se vêm inscrever o comportamento dos sujeitos atuantes ele incita ele induz ele contorna ele facilita ou torna mais difícil ele alarga ou limita ele torna mais ou menos provável no limite ele constrange ou impede completamente mas ele é sempre uma maneira de agir sobre um ou sobre sujeitos atuantes enquanto eles agem ou são susceptíveis de agir Uma ação sobre ações FOUCAULT 1995 p 243 dispositivos são dispositivos10 de exceção pois sempre são colocados pelo signo da segurança ou interesse nacional e mesmo que em discordância aos marcos legais vigentes são tomados como necessários Com base nesses termos a dinâmica espacial desses grandes projetos pode ser compreendida pelos processos de territorialização de exceção já descritos por Haesbaert 2014 a partir de uma leitura geográfica da compreensão do campo de concentração como paradigma biopolítico em Agamben Esses processos em termos mais concretos podem ser melhor compreendidos a partir de três dinâmicas complementares a saber a criação de mediações espaciais de exceção a interdição da possibilidade de existência de outras territorialidades e de outros fluxos e usos do território o ataque sistemático e organizado aos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais Em primeiro lugar entendendose que territorializar significa como nos fala Haesbaert 2004 p 92 criar mediações espaciais que nos proporcionem efetivo poder sobre nossa reprodução enquanto grupos sociais um aspecto a se ressaltar é que a criação de mediações espaciais nos processos de territorialização de exceção passam por dinâmicas de suspensão normativa seja através da criação de regimes jurídicos especiais por rearranjos institucionais e pela projeção de um sentido privado a instrumentos jurídicos pretensamente criados para um sentido coletivo seja pela desregulação dos sistemas normativos vigentes o que permite que o exercício do poder e a dinâmica de territorialização se realize legalmente fora da lei MALHEIRO 2019 Dois exemplos são muito claros para entender essa lógica de desregulação e suspensão do ordenamento jurídico através de grandes projetos o Programa Grande Carajás PGC11 e a Hidrelétrica de Belo Monte Esses dois grandes empreendimentos paradigmáticos atravessam momentos históricos e políticos distintos o período do regime autoritário da ditadura civilmilitar 10 Foucault afirma que o dispositivo é um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos instituições organizações arquitetônicas decisões regulamentares leis medidas administrativas enunciados científicos proposições filosóficas morais filantrópicas Em suma o dito e o não dito são os elementos do dispositivo O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos FOUCAULT 1979 p 244 Além disso também afirma que os dispositivos são criados para responder a uma urgência e por isso têm uma função de natureza estratégica por se tratar de uma certa manipulação de relações de força de uma intervenção racional e combinada das relações de força seja para orientálas em certa direção seja para bloqueálas ou para fixálas e utilizálas FOUCAULT 1979 p 246 11O Programa Grande Carajás PGC integrou um conjunto de projetos minero metalúrgicos projetos agropastoris e de infraestrutura Implantado entre 1979 e 1986 na mais rica área mineral do planeta situada na Amazônia brasileira estendeuse por 900 mil km² Fazem parte do programa o projeto Ferro Carajás Projeto Trombetas Projetos de produção de alumínio ALBRÁS ALUNORTE e ALUMAR e Usina Hidrelétrica de Tucuruí UHT Vale ressaltar que vários outros grandes projetos criados já durantes governos democráticos em contextos de atuação do PGC como o projeto S11D da empresa Vale operam com a mesma lógica de suspensão normativa construindo esferas de indeterminação política GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago 26 e os governos progressistas democraticamente eleitos operando com a mesma lógica O PGC como um programa que integra vários projetos é criado por um conjunto de estruturas institucionais e regimes normativos especiais para garantir a sua implantação O primeiro decretolei criado especificamente para o Programa foi o de nº 1813 de 24 de novembro de 1980 que instituiu um regime especial de incentivos aos empreendimentos integrantes do PGC além de criar uma estrutura institucional especial para gerilo qual seja o Conselho Interministerial do Programa Grande Carajás ligado diretamente à secretaria de planejamento da presidência da república No mesmo dia foi também lançado o Decretolei 85387 que define a composição e atribuição do Conselho Interministerial criado concedendo um tratamento especial e preferencial a um conjunto de medidas na região de abrangência do PGC São 12 itens valendo destacar a concessão arrendamento e titulação de terras públicas o estabelecimento de contratos para o fornecimento de energia elétrica e a autorização para o funcionamento de empresas de mineração BRASIL 1980 np Em um único dia portanto dois decretos criam um regime especial de incentivos e uma estrutura política de exceção suspendendo as relações institucionais na região além de conceder garantias de tratamento diferenciado à questão fundiária energética e de concessão e autorização de lavra dos minérios A UHE de Belo Monte pensada desde a ditadura civil militar mas materializada em contexto pretensamente democrático por seu turno também é um caso exemplar para demonstrar a suspensão de todas as normas em nome de um projeto Mesmo depois que o diretor de Licenciamento Ambiental do Ibama Sebastião Pires e o Coordenador Geral de Infraestrutura Elétrica Leozildo Benjamin pediram demissão decisão possivelmente motivada pela pressão que sofreram do governo federal para liberarem a licença ambiental da hidrelétrica apesar de já haver na época um Estudo de Impacto Ambiental de mais de 35 mil páginas e de algumas suspensões da licença de operação da obra Belo Monte continuou a ser executada sem inclusive respeitar algumas condicionantes exigidas O depoimento da procuradora da república Thais Santi à jornalista Eliane Brum é bastante significativo para se entender uma operação de exceção Você tem uma opção governamental uma opção política do governo por construir grandes empreendimentos enormes brutais na Amazônia Mas é uma opção que se sustenta na legitimidade do governo Agora uma vez adotada essa política feita essa escolha governamental o respeito à Lei não é mais uma opção do governo O que aconteceu e está acontecendo em Belo Monte é que feita a escolha governamental que já é questionável o caminho para se implementar essa opção é trilhado pelo governo como se também fosse uma escolha como se o governo pudesse optar entre respeitar ou não as regras do licenciamento SANTI apud BRUM 2014 não paginado Santi de maneira precisa e bastante contundente faz uma diferenciação fundamental entre uma escolha política e a observância das leis e demonstra que em Belo Monte foi feita uma escolha política que ainda transformou o respeito às regras também em uma vontade política como se a implementação do projeto decorresse única e exclusivamente de uma escolha governamental e assim fosse possível em nome de uma legitimidade política passar por cima de todo marco legal ou seja suspender a lei em nome de uma vontade maior encarnada em um governo Tal operação tão característica na Amazônia é em síntese a marca do modos operandi dos ditos grandes projetos de desenvolvimento Em segundo lugar as relações de poder que definem os processos de apropriaçãodominação do espaço HAESBAERT 2004 poderiam ser melhor descritas nos processos de territorialização de exceção como dinâmicas de governamentalização do espaço ou seja são práticas espaciais agindo sobre a possibilidade de existência de outras práticas espaciais ou ainda são ações que agem sobre a possibilidade da ação de outros uma forma de estruturaçãodefiniçãointerdição do campo de ação dos outros FOUCAULT 1995 Isso se traduz como a estruturação de um conjunto de instituições procedimentos discursos e cálculos estatísticos de exercício do poder tendo como alvo a população ou os cortes populacionais ou em termos mais geográficos processos territoriais que interditam a possibilidade de existência de outros territórios e territorialidades Por essas vias os processos de territorialização de exceção são também processos de interdição da possibilidade de existência de outras territorialidades e de outros usos do território MALHEIRO 2019 O caso da empresa Vale S A é paradigmático para compreendermos esses processos de interdição de outras territorialidades pela via dos grandes projetos Após a empresa garantir o controle das relações de trabalho no ambiente interno caracterizado por uma crescente flexibilização das questões trabalhistas e pela redução do poder de negociação do trabalhador outro horizonte de controle se impôs motivado pelo aumento das interferências nos processos extrativos e logísticos 27 Geografias dos grandes projetos de desenvolvimento territorialização de exceção e governo bionecropolitico do território por parte das comunidades diretamente afetadas pelos grandes projetos corporativos É nesse contexto particularmente após a privatização da então Companhia Vale do Rio Doce CVRD em 1997 que a Fundação Vale do Rio Doce de Habitação e Desenvolvimento Social tornase em 1998 apenas Fundação Vale do Rio Doce FVRD com o objetivo de gerir as populações do entorno dos projetos de modo a antecipar e assegurar o funcionamento de todos os momentos do metabolismo social12 da mineração para conter as possibilidades de conflitos sociais com as comunidades afetadas que passam a ser vistas como riscos sociais corporativos13 Para tanto a recém privatizada empresa produz mudanças no gerenciamento corporativo dando maior importância aos setores de relacionamento com comunidades departamento de segurança corporativa bem como investe nos setores de marketing e diretoria jurídica A partir desse prisma as populações são manejadas administradas calculadas em termos de risco transformando o espaço em território e elemento central para a definição das estratégias de controle dos riscos corporativos Se tomarmos essa transformação dos espaços necessários à produção circulação e exportação de commodities as zonas de extração espaços inundados estradas de ferro rodovias portos dentre outros em territórios administráveis para a viabilização dos processos de acumulação de uma corporação temos que admitir que não apenas os espaços mercantis precisam ser disciplinados empresarialmente mas também os espaços não mercantis transformamse em territórios de atuação dos processos de segurança corporativa ACSELRAD 2018 que nesse quadro de referência preocupamse com dois elementos básicos que garantem um estado de relações normalizado a 12Victor Toledo 2013 amplia o conceito de metabolismo social considerandoo para além mas não aquém dos fluxos de entrada processos de apropriação e saída processos de excreção de matéria e energia Toledo adverte a existência de fluxos internos de matéria e energia Nesses termos o autor identifica cinco fenômenos relacionados a esses fluxos que só existem em combinação mas podem ser individualmente percebidos quais sejam a apropriação forma primária de intercâmbio entre a sociedade e a natureza a transformação um modo de produzir a partir de extrações naturais a circulação que inaugura o intercâmbio econômico e coloca o volume de matéria e energia extraídas em um circuito ligando distintos territórios o consumo que não representa apenas a realização das necessidades mas condiciona ou pressiona os processos extrativos no momento em que se transforma em um fator de demanda e a excreção que representa todos os excrementos provenientes das ações de apropriação transformação circulação e consumo isto é tudo o que se expele desde os resíduos e rejeitos aos subprodutos não aproveitados TOLEDO 2013 13 A noção de risco social corporativo possui três pilares o primeiro é o encapsulamento de toda a complexidade social à racionalidade empresarial Nesse sentido a garantia dos direitos é contabilizada como custo a possível conquista de direitos antes negados é calculada como risco e a consideração ou tentativa de negociação desses direitos é convertida em prestação de serviço GIFFONE 2015 p 205 O segundo pilar é a funcionalização dos espaços de interferência das atividades corporativas transformando espaços relacionais em espaços absolutos reduzindo a complexidade de usos às funções que cada localização exerce na lógica metabólica empresarial e o terceiro resultante dos dois primeiros é a transformação da ciência em uma tecnologia de poder corporativo exercendo a função de construir argumentos socialmente aceitáveis para atividades socialmente degradantes e largamente questionadas GIFFONE 2015 MALHEIRO 2019 garantia do uso do território como recurso e o controle dos fluxos de seus sistemas logísticos Assim os grandes projetos não são mais enclaves espaciais em uma definição puramente econômica pois que essa leitura desconsidera a relação violenta desses megaempreendimentos com suas regiões de abrangência desconsidera enfim que tais projetos funcionam racionalizando seus entornos por suas lógicas de territorialização A terceira marca fundamental dos processos de territorialização de exceção pode ser descrita pela definição de um recorte racial e étnico por esses processos de territorialização que desse modo podem ser descritos como uma campanha de desterritorialização nos termos definidos por Almeida 2010 Ou seja os processos de territorialização de exceção podem ser lidos como um ataque sistemático e organizado aos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais Não sem razão são mais de 4 mil requerimentos de processos minerários em terras indígenas entre 1969 e 2016 no Brasil PÚBLICA 2016 são também mais de um milhão de pessoas deslocadas pelas mais de duas mil hidrelétricas já construídas MAB 2004 entre os desalojados milhares de povos e comunidades tradicionais sem contar o processo sistemático de desregulação de direitos territoriais conquistados e inscritos na Constituição de 1988 para viabilização da expansão da indústria mineral do agronegócio do hidronegócio dentre outras formas de mercantilização da natureza FREITAS 2018 Em linhas gerais o que parece extremamente evidente na realidade dos grandes projetos é que eles representam uma lógica de pensar modernocolonial ou seja para a realização de seus processos de territorialização precisam excluir de sua racionalidade outras territorialidades Isso corresponde a uma ideia de desenvolvimento como crescimento econômico fundamentada numa visão predatória quanto ao uso de recursos naturais e também racista em relação às diferentes lógicas de agir e de se relacionar com a natureza Tratase de um modo de expansão capitalista que se manifesta pela criação dos inimigos do des envolvimento aqueles cujos territórios precisam ser tomados para a acumulação se realizar O espólio produzidodeixado pelos grandes projetos de desenvolvimento nosaos territórios de povos indígenas quilombolas de camponeses ribeirinhos de quebradeiras de coco babaçu bem como de diversas outras comunidades e povos tradicionais define uma distribuição das populações em distintos domínios de valor e utilidade delimitando práticas de controle GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago 28 violação dos povos afetados pelos grandes projetos Por esses três caminhos de análise propostos chegamos a termos mais precisos entendendo a territorialização de exceção como processos em que a criação de mediações espaciais que proporcionem acesso a recursos eou domínio de terras passam por dinâmicas de suspensão normativa criando dispositivos com claros recortes raciais e étnicos de gestão de populações numa lógica de ação que estruturadefine interdita o campo de ação e a possibilidade de criação de mediações espaciais de outros grupos sociais os quais definidos por um menor valor tornamse politicamente matáveis e territorialmente invisíveis e dispensáveis MALHEIRO 2019 Olhar a dinâmica territorial dos grandes projetos pela lógica da exceção é ver o espaço a contrapelo isto é não apenas como acúmulo progressivo de estruturas e relações novas mas também como ruína libertando a geografia do messianismo de análises que apesar da boa pretensão esmagam vidas por não enxergálas Esse exercício de fazer falar ruínas onde até então só se representavam grandes construções apresenta se por termos teóricos mas se revela também como uma tarefa metodológica muito inspirada em Walter Benjamin 1993 que é a de repor no mapa dos conflitos territoriais as territorialidades insurgentes de modo a reorganizar esses fragmentos de geografias de rexistências em uma leitura de conjunto que seja estratégica para as lutas do presente Considerações finais Esse artigo tomando as geografias dos grandes projetos de desenvolvimento como paradigmas de compreensão do capitalismo contemporâneo construiu uma análise com três ideiasforça que são chaves de leitura a serem retomadas aqui A primeira delas é que os grandes projetos de desenvolvimento mesmo diante da radicalização da divisão da sociedade que no Brasil é acirrada após as eleições de 2018 são escolhas econômicas que atravessam os vários espectros da política demonstrando que mesmo diante das mais abissais diferenças ideológicas eles continuam a ser os dispositivos territoriais a movimentar as principais engrenagens da acumulação A segunda chave é a compreensão desses projetos como processos de acumulação por espoliação regimes de desapropriação e cercamentos do comum ou seja como um dispositivo racional do atual momento do neoliberalismo Essas duas primeiras chaves analíticas nos levam a uma terceira que vem a ser a compreensão desses empreendimentos por sua racionalidade territorial ou ainda por seus mecanismos concretos o que nos levou a pensálos pelos termos da territorialização de exceção não apenas por serem resultantes de processos de suspensão normativa ou por criarem mecanismos de controle de populações mas também por se constituírem em verdadeiros ataques sistemáticos e organizados aos territórios de povos e comunidades tradicionais Além das considerações acima tratadas observamos nesse estudo que a análise dos grandes projetos como paradigmas de compreensão do capitalismo contemporâneo indica outros questionamentos de fundo que nos ajudam a nos entender como sociedade A primeira dessas questões se refere ao fato de que na lógica dos grandes projetos a morte e a tragédia transformamse nas únicas formas de sensibilização para as vidas despedaçadas pelos megaempreendimentos É como se as vidas ameaçadas e ceifadas só valessem quando perdidas e isso em escalas sem precedentes A subjugação da vida ao poder de morte essa necropolítica MBEMBE 2016 dos grandes projetos precisa ganhar a escala de uma guerra para tornarse perceptível Nessa geopolítica alguns espaços tornados invisíveis onde se mata sem cometer homicídio só se tornam visíveis quando o tamanho dos desastres não mais pode ser abafado A tragédiacrime de Mariana a tragédia crime de Barcarena e a tragédia crime de Brumadinho apontam que é preciso desastres criminosos de largas e incalculáveis proporções para que se introduza ainda que de forma tímida as denúncias e demandas de movimentos sociais e redes de mobilização nas pautas amplas e na agenda política nacional Até quando seremos coniventes com essa engrenagem econômica de morte Até quando a morte será a única via de sensibilização para a vida Essas reflexões nos levantam uma segunda questão fundamental que se refere ao modo fascista de como a nossa sociedade trata as diferenças A escolha econômica pela exportação de commodities via grandes projetos é também societária pois está baseada na difusão violenta de um modo de vida absolutamente refratário às diferenças e à justiça social uma vez que a lógica de acumulação pela violência inscrita nesses empreendimentos carrega consigo os signos de uma história de longa duração que naturaliza o genocídio dos povos o ecocídio o racismo o patrimonialismo e o patriarcalismo Além dessas duas questões anteriores uma terceira emerge como importante e necessária esses megaempreendimentos também demonstram a maneira como a nossa sociedade lida com os processos de apropriação social da natureza A ideia 29 Geografias dos grandes projetos de desenvolvimento territorialização de exceção e governo bionecropolitico do território de uma natureza como obstáculo como algo a ser dominado superado e explorado tornase a lógica geral e naturalizada de políticas estatais eou estratégias corporativas A natureza vista como matériaprima como recurso como commoditie tornase a única via ao desenvolvimento Nesses termos a racionalidade política inerente às práticas de planejamento territorial estatal e corporativo ou seja a racionalidade e o modus operandi de planejar de pensar e organizar o território apontanos uma maneira instrumental e simplificada de conceber a natureza pela mercantilização da terra subsolo água ar energia biodiversidade etc As regras neocoloniais de saque e drenagem de matéria e energia tornam os grandes projetos dispositivos territoriais de acumulação que naturalizam a exploração infindável de recursos finitos Serão necessários quantos desastres ambientais para que deixemos de naturalizar essa visão instrumental e predatória da natureza e passemos a pensar outros modos de agir observando a preservação da natureza considerada como portadora de direitos Essa visão instrumental pragmática e absolutamente irresponsável da natureza está ancorada em processos decisórios centralizados e autoritários que como discutimos largamente ancoramse em lógicas de suspensão normativa de desregulações que tornam a exceção a regra A perversão primeira desse processo está na constatação do fato de que esses megaempreendimentos são pensados e executados sem consultar os povos e comunidades que terão suas fontes de vida e bases de sobrevivência solapados por eles Não há consulta para se tomar a decisão nem mesmo aviso prévio aos povos sobre as perdas e impactos que sofrerão O apetite pelas terras de uso comum de territórios indígenas camponeses quilombolas e de diversos outros povos e comunidades tradicionais como uma das expressões dos processos de territorialização dos grandes projetos apontanos uma quarta questão fundamental o modo autoritário centralizado e antidemocrático dos processos de tomadas de decisão acerca dos rumos do des envolvimento em nossa sociedade A total irrelevância dada às vidas permanentemente despedaçadas por esses empreendimentos o modo fascista de tratamento às diferenças a noção instrumental e pragmática da natureza como obstáculo e o modo autoritário centralizado e antidemocrático de tomada de decisões podem indicar a engrenagem territorial ou os processos de territorialização de exceção desses grandes projetos como um verdadeiro balão de ensaio para o que agora vivemos como sociedade Apesar dos grandes projetos se constituírem por processos de territorialização de exceção a geo grafia por eles esboçada é também uma geografia marcada por lutas conflitividades antagonismos rexistências Os grupos atingidosafetados não são passivos ao contrário são protagonistas de lutas e enfrentamentos e demonstram sua força construindo táticas de resistências movimentos organizações redes alianças repertórios de ações coletivas ou seja reinventando outras possibilidades de vida mesmo diante de condições precárias em contextos de exceção A luta dos povos e comunidades em defesa dos rios das florestas da terra das riquezas minerais é uma luta em defesa da vida que tenciona e politiza os processos e os sentidos de apropriação da natureza Essas lutas exigemnos um deslocamento de nossas referências espaçotemporais para pensarmos mais em envolvimentos e criação de vínculos e menos em des envolvimento Não nos parece haver horizonte de futuro sem debatermos como garantiremos as condições materiais da vida e são essas lutas que tencionam nossa atual crise civilizatória são essas lutas que nos fazem repensar os processos de produção e consumo e os limites da natureza Suas agendas portanto ultrapassam suas particularidades e nelas outros horizontes de sentidos se constroem como uma aposta pela vida Quando tais grupos reivindicam o direito aos seus territórios estão reivindicando uma autonomia material e simbólica O direito a um território próprio significa o direito às formas próprias de produzir materialmente sua existência e também a valorização e o respeito às suas peculiares formas de dar sentido ao mundo através de uma memória de uma linguagem de um imaginário de formas de saberes que constituem sua existência sua cultura e cosmologia O território agrega uma espessura uma densidade pois traz os conteúdos históricos e existenciais desses grupos uma vez que é suporte material da cultura da memória da ancestralidade e dos saberes acumulados ao longo do tempo O direito ao território é uma espécie de condensador de outras formas de direitos CRUZ 2013 como o direito à terra à água aos recursos naturais à produção assim como à memória à ancestralidade à identidade etc A luta pelo direito ao território restitui o estatuto político daqueles cuja humanidade é tornada supérflua pelos grandes projetos reposicionando com isso nossas referências e nos apontando outros horizontes de sentido GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago 30 Referências ACSELRAD H 2013 Desigualdade ambiental Economia e Política In Revista Astrolábio Nueva Época Nº 11 pp 105123 2018 Territórios do capitalismo extrativista a gestão empresarial de comunidades In ACSELRAD H Políticas Territoriais empresas e comunidades Rio de Janeiro Garamond p 3360 AGAMBEN G 2002 Homo Sacer o poder soberano e a vida nua I Belo Horizonte Editora UFMG 2004 Estado de exceção São Paulo Boitempo 2009 Signatura rerum sobre o método Bueno Aires Adriana Hidalgo editora ALMEIDA A W B 2010 Agroestratégia e desterritorialização direitos territoriais e étnicos na mira dos estrategistas dos agronegócios In ALMEIDA A W B et alii Capitalismo globalizado e recursos territoriais Rio de Janeiro Lamparina p101144 ARENDT H 2012 Origens do Totalitarismo São Paulo Companhia das Letras BARCELOS E A S 2018 Geografia e Grandes Projetos ecologia política e economia no capitalismo de fronteira Tese de doutorado Programa de PósGraduação em Geografia NiteróiRJ POSGEOUFF BENJAMIN W 1993 Obras escolhidas magia e técnica arte e política 6ª Ed São Paulo Editora Brasiliense BRASIL 1980 DecretoLei 85387 de 24 de novembro de 1980 BRUM E 2014 Belo Monte a anatomia de um etnocídio Coluna El País 01122014 httpsbrasilelpaiscom brasil20141201opinion1417437633930086html CRUZ V C 2013 Das Lutas por Redistribuição de Terra às Lutas pelo Reconhecimento de Territórios uma nova gramática das lutas sociais In Cartografia social terra e território1 ed Rio de Janeiro IPPUR UFRJ v1 p 119176 DARDOD P LAVAL C 2017 Comum ensaio sobre a revolução no século XXI São Paulo Boitempo FANON F 2005 Os condenados da terra Juiz de Fora Ed UFJF FREITAS C 2018 As Agroestratégias Ruralistas de Desterritorialização de Povos Indígenas e Quilombolas redefinindo Marcos Legais e Usos Territoriais Tese de doutorado Programa de PósGraduação em Geografia Niterói RJ POSGEOUFF FOUCAULT M 1979 Microfísica do poder Rio de Janeiro Graal 1995 O sujeito e o poder In P RABINOW e H DREYFUS Michel Foucault uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica Rio de Janeiro Forense Universitária p 231249 2008 Segurança território população São Paulo Martins Fontes 2008 2010 Em defesa da Sociedade Curso no Collège de France do ano 7576 São Paulo Martins Fontes GIFFONE R 2015 Dos riscos da política às políticas do risco um estudo sobre os riscos sociais corporativos e suas formas de gestão Tese de Doutorado Instituto de Planejamento Urbano e Regional Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro IPUR GOLDER ASSOCIATES 2009 RIMA Projeto FerroCarajás S11D Canaã dos Carajás VALE HARVEY D 2005 O Novo Imperialismo São Paulo edições Loyola 2013 Para entender O capital Livro I São Paulo Boitempo HAESBAERT R 2004 O mito da desterritorialização Rio de Janeiro B Brasil 31 Geografias dos grandes projetos de desenvolvimento territorialização de exceção e governo bionecropolitico do território 2014 Viver no limite território e multitransterritorialidade em tempos de insegurança e contenção Rio de Janeiro Bertrand Brasil LEVIEN M 2014 Da acumulação primitiva aos regimes de desapropriação In Revista Sociologia e Antropologia volume 04 p 2153 LENCIONI S 2012 Acumulação primitiva um processo atuante na sociedade contemporânea Confins Paris v 14 p 117 LUXEMBURGO R 1984 A acumulação de capital contribuição ao estudo econômico do imperialismo Tomo II São Paulo Abril Cultural MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGEM 2004 Ditadura contra as populações atingidas por barragens aumenta a pobreza do povo brasileiro Disponível em httpswwwalainetorgptactive5807 Acessado em 04 jul 2019 MALHEIRO B C P 2019 O que Vale em Carajás Geografias de exceção e rexistência pelos caminhos do ferro na Amazônia Tese de doutorado Programa de PósGraduação em Geografia NiteróiRJ POSGEOUFF 439p MARTINS J S 2013 A sociologia como aventura memórias São Paulo Contexto MBEMBE A 2016 Necropolítica In Arte Ensaios Revista do PPGAVEBAUFRJ n 32 2018 Crítica da Razão Negra São Paulo N1 Edições MORAES A C R 2013 Geografia Histórica do Brasil capitalismo território e periferia São Paulo Ed Annablume PORTOGONÇALVES C W 2006 A Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização Rio de Janeiro Civilização Brasileira PÚBLICA 2016 Em terra de índio mineração bate à porta Disponível em httpsapublicaorg201606emterra deindioamineracaobateaporta2 Acessado em 04 jul 2019 SANTOS M 1996 A Natureza do Espaço Técnica e Tempo Razão e Emoção São Paulo Hucitec SVAMPA M 2013 Consenso de los commodities y lenguajes de valoraciónen América Latina In Nueva Sociedad n 244 p 3046 TOLEDO V 2013 El metabolismo social una nueva teoría socioecológica In Revista Relaciones 136 pp 4171 VAINER C B 2010 Os refugiados do desenvolvimento também têm direitos humanos In FERREIRA A P VAINER C NETO H P SANTOS M O Org A Experiência Migrante entre deslocamentos e reconstruções Rio de Janeiro Garamond Data de submissão 01032019 Data de aceite20092019 Data de publicação setembro2019
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GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago 18 GEOGRAFIAS DOS GRANDES PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO TERRITORIALIZAÇÃO DE EXCEÇÃO E GOVERNO BIONECROPOLITICO DO TERRITÓRIO GEOgraphia Niterói Universidade Federal Fluminense ISSN 26748126 GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago ARTIGOS Resumo Os grandes projetos de desenvolvimento são dispositivos territoriais capazes de suspender em termos políticos jurídicos e normativos toda a complexidade e diversidade territorial dos espaços nos quais se instalam Este artigo problematiza as práticas de governo bionecropolítico do território ou ainda essa geografia de exceção produzida pelos grandes projetos analisandoos primeiro como uma racionalidade econômica que atravessa mesmo diante das mais abissais diferenças ideológicas os vários espectros da política segundo como um dispositivo de acumulação por espoliação expressando em intensidade concentração e centralização de capital os modos mais violentos de expansão de relações capitalistas e terceiro como processos de territorialização de exceção que carregam recortes raciais e étnicos o que torna outras territorialidades distintas expressões de vida politicamente matáveis e territorialmente invisíveis solapando as condições de realização de outras geografias de povos grupos e comunidades Palavraschave Grandes projetos Governo bionecropolítico do território Acumulação por espoliação Territorialização de exceção GEOGRAPHIES OF BIG NONINVOLVEMENT PROJECTS TERRITORIALIZATION OF EXCEPTION AND BIONECROPOLITIC GOVERNMENT OF THE TERRITORY Abstract Large development projects are territorial devices capable of suspending politically legally and normatively all the complexity and territorial diversity of the spaces in which they are installed This article discusses the bionecropolitical governance practices of the territory or yet this geography of exception produced by the large projects analyzing them first as an economic rationality that crosses even in the face of the most abysmal ideological differences the various political spectra second as a device of accumulation by dispossession expressing in intensity concentration and centralization of capital the most violent modes of expansion of capitalist relations and third as processes of territorialization of exception that carry racial and ethnic dimensions which makes other territorialities distinct expressions of life politically killable and territorially invisible undermining the conditions for the realization of other geographies of peoples groups and communities Keywords Great Projects Bionecropolitical government of the territory Accumulation by dispossession Territorialization of exception GEOGRAFÍAS DE LOS GRANDES PROYECTOS DE DESARROLLO TERRITORIALIZACIÓN DE EXCEPCIÓN Y GOBIERNO BIONECROPOLÍTICO DEL TERRITORIO Rsumen Los grandes proyectos de desarrollo son dispositivos territoriales capaces de suspender política jurídica y normativamente toda la complejidad y diversidad territorial de los espacios donde se sitúan El presente artículo intenta problematizar las prácticas de gobierno bionecropolítico del territorio o incluso esa geografía de excepción producida por tales proyectos analizándolos en primer lugar como una racionalidad económica que circunda incluso frente a las más abismales diferencias ideológicas varios espectros de la política segundo como un dispositivo de acumulación por expoliación expresando en intensidad concentración y centralización de capital las más violentas formas de expansión de relaciones capitalistas y tercero como procesos de territorialización de excepción que son determinados por cuestiones étnicas y raciales lo que convierte a las territorialidades distintas y alternativas en expresiones de vida políticamente matables y territorialmente invisibles suprimiendo las condiciones de realización de otras geografías de pueblos grupos y comunidades Palabras clave Grandes proyectos Gobierno bionecropolítico del territorio Acumulación por expoliación Territorialización de excepción Doutor em Geografia Professor do curso de Licenciatura Plena em Educação do Campo da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará Endereço Unifesspa Campus 1 Folha 31 Quadra 07 Lote Especial snº Nova Marabá Marabá PA 68507590 ORCID httpsorcidorg000000020324302X Email brunomalheiro84gmailcom Doutor em Geografia Professor do Programa de PósGraduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense e Coordenador do Núcleo de Estudos sobre Território Ações coletivas e Justiça NETAJUFF Endereço Av Gal Milton Tavares de Souza snº Campus da Praia Vermelha Boa Viagem Niterói RJ CEP 24210346 ORCID https orcidorg0000000181367389 Email valterdocarmocruzhotmailcom Bruno Cezar Malheiro Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará Valter do Carmo Cruz Universidade Federal Fluminense 19 Geografias dos grandes projetos de desenvolvimento territorialização de exceção e governo bionecropolitico do território Introdução Os grandes projetos de desenvolvimento projetos mineirometalúrgicos petroquímicos grandes usinas hidrelétricas estradas portos hidrovias ferrovias etc são dispositivos territoriais capazes de suspender em termos políticos jurídicos e normativos toda a complexidade e diversidade territorial dos espaços nos quais se instalam Ao se constituírem pelos signos da modernidade capitalista expressam em intensidade concentração e centralização de capital os modos mais violentos de expansão de relações capitalistas e por isso também expõem em termos paradigmáticos os limites de nossa democracia uma vez que a racionalidade territorial desses megaempreendimentos a geografia do desenvolvimento para se realizar solapa as condições de realização de outras geografias de povos grupos e comunidades Adotamos a escrita de geografia do des envolvimento ao invés de geografia do desenvolvimento por entendermos como Porto Gonçalves 2006 a geografia não como substantivo mas como verbo como atoaçãopráticas de marcar a terra É desse modo que podemos falar de uma geo grafia do desenvolvimento em que os diferentes agentes inscrevem lógicas territoriais marcas práticas e usos que resignificam o espaço e assim com novos signos grafam a terra geografam reconfigurando a sociedade e seus territórios Já desenvolvimento para o referido autor significa tirar o envolvimento a autonomia que cada cultura e cada povo mantém com o seu espaço com o seu território é subverter o modo como cada povo mantém suas próprias relações de homens e mulheres entre si e destes com a natureza é não só separar homens e mulheres da natureza como também separálos entre si individualizandoos Desenvolver é envolver cada um os desterritorializados em uma nova configuração societária a capitalista através de técnicas e dispositivos sociais e políticos empregados para promover esse desenvolvimento tais como os novos cercamentos das terras e dos recursos naturais ou melhor a privatização das terras e dos recursos de uso comum PORTOGONÇALVES 2006 Esses grandes projetos que são verdadeiros paradigmas dessa geografia do desenvolvimento nos diferentes momentos históricos e como expressão de variados espectros políticos sem distinção de esquerda e direita são sempre anunciados e enunciados como inevitáveis defendidos como estratégicos para segurança e soberania nacional como uma necessidade política para a garantia das condições materiais do desenvolvimento uma vez que quando falamos deles estamos falando em energia minérios petróleo logística elementos fundamentais para a sustentação material do modo de vida moderno Esse discurso da inevitabilidadenecessidade fez com que a sistemática violência aos povos e a devastação da natureza provocados pela usina hidrelétrica de Belo Monte1 por exemplo se transformassem em detalhes diante de escolhas políticas de governos É em função dessa mesma lógica que um mineroduto a interligar Minas Gerais ao Rio de Janeiro2 com drásticos impactos sociais e ambientais foi pensado apenas como uma linha conectando dois pontos e não como uma navalha a cortar múltiplas territorialidades Por essa mesma matriz de racionalidade na serra dos Carajás no Pará o maior projeto de mineração de ferro do mundo3 foi e continua sendo tratado como potência econômica não como um dispositivo a retirar as condições de vida de quilombolas camponeses indígenas Os grandes projetos de desenvolvimento são máquinas biopolíticas que fazem viver e deixam morrer Estes grandes projetos têm produzido verdadeiros territórios de sacrifício Por isso refletir sobre esses dispositivos territoriais implica em nos interrogarmos acerca de como são produzidas as condições materiais de reprodução da vida de um cidadão por exemplo de uma grande cidade do Brasil De onde vem os alimentos a água a energia os materiais que constroem os sistemas técnicos que nos oferecem comodidade Quantas vidas são sacrificadas para o nosso conforto material Nós temos responsabilidade quando povos desconhecidos distantes em milhares de quilômetros de nossas vidas cotidianas são afetados pelos grandes projetos Nossa ignorância nos isenta de responsabilidade Qual o peso de nossa indiferença em relação à geografia da violência que opera nesses territórios de sacrifícios O que 1Projeto de aproveitamento Hidrelétrico do Rio Xingu Surgiu como proposta ainda na década de 1980 com o complexo Hidrelétrico de Altamira inicialmente chamado de Kararaô barrado por movimentos indígenas e problemas técnicos para a execução Depois de anos do fim da ditadura militar a hidrelétrica ressurgiu batizada de Belo Monte Seu processo de instalação gerou profundas contradições e conflitos com povos e comunidades tradicionais bem como com órgãos de regulação ambientais Hoje a usina produz anualmente 4796 KW embora sua potência instalada seja de 11 233 KW 2 Esse empreendimento considerado o maior projeto míneroportuário do mundo prevê a exploração de 26 milhões de toneladas anuais de minério de ferro em Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas ambos localizados na Serra do Espinhaço em Minas Gerais um mineroduto de 525 km de extensão para o escoamento do minério cruzando 32 municípios de Minas e do Rio de Janeiro um terminal portuário privativo de uso misto para cargas sólidas e semisólidas o chamado Porto do Açu e um distrito industrial na retroárea do porto ambos em São João da BarraRJ 3O Projeto S11D compreenderá a extração de minério de ferro do Bloco D do Corpo S11 de Serra Sul Prevê durante 39 anos a lavra a céu aberto de 34 bilhões de toneladas de minério e 174 bilhões de toneladas de estéril Os 90 milhões de toneladas de minério que serão lavrados por ano serão encaminhados para a usina de beneficiamento com 667 de teor de ferro Os produtos denominados Fino Natural e Produto da Britagem Secundária serão transportados pelo novo Ramal Ferroviário do Sudeste do Pará que será interligado à Estrada de Ferro Carajás EFC até o Terminal Portuário de Ponta da Madeira TPPM em São Luís MA Do porto o minério seguirá em navio para os principais mercados consumidores da Ásia Europa e América do Norte GOLDER ASSOCIATES 2009 p 07 GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago 20 contribuiu para que toda a violência praticada por esses megaempreendimentos tivesse menos importância do que a necessidade de mantermos certo padrão moderno colonial de vida Escolhemos enfim deixar morrer inúmeros sujeitos comunidades povos apenas porque decidimos nos desenvolver por intermédio de grandes projetos Este artigo pretende problematizar a dinâmica de exceção dos processos de territorialização desses grandes empreendimentos de desenvolvimento a fim de desnaturalizar suas lógicas de violação e questionar os sentidos concretos de sua necessidade Para isso esse texto se divide em quatro partes na primeira sustentamos a hipótese de serem os grandes projetos paradigmas de compreensão do capitalismo contemporâneo no Brasil na segunda discutiremos a realização dos grandes projetos como processos de acumulação por espoliação regimes de expropriação de terras e cercamentos do comum em um terceiro momento entraremos na dinâmica de realização desses megaempreendimentos por meio do governo bio necropolítico do território levantando os termos para a compreensão dos processos de territorialização de exceção e por fim indicaremos elementos contidos nos processos de territorialização desses empreendimentos que podem apontar questionamentos de fundo que nos ajudam a nos entender como sociedade Grandes projetos de desenvolvimento como paradigma de compreensão do capitalismo contemporâneo Experimentamos na América Latina nas duas últimas décadas uma espécie de consenso político e ideológico que aponta a mercantilização da natureza e a exploração intensiva e em grande escala de recursos naturais como únicas vias legítimas ou possíveis para o desenvolvimento econômico Esse processo definido por Svampa 2013 como consenso das commodities entende que a exportação de commodities agrícolas e minerais como motor de inserção na geoeconomia e na geopolítica global tornase um projeto consensual não importando o espectro políticoideológico dos diferentes governos da região de esquerda à direita dos conservadores àqueles com inclinações progressistas A escolha por um padrão extrativo de acumulação e a participação na divisão internacional do trabalho sustentase pela crescente demanda e valorização de certos produtos no mercado internacional principalmente nos países centrais do capitalismo e também nos países emergentes como a China que é um dos principais consumidores de matériasprimas oriundas do continente latinoamericano A lógica espacial desse modelo vem se materializando através dos grandes projetos de desenvolvimento processos de territorialização corporativos de larga escala que se caracterizam pela concentração centralização e intensividade espaçotemporal de investimentos VAINER 2010 Estes grandes projetos estão concentrados sobretudo em alguns setores da economia basicamente na exploração intensiva de recursos naturais no campo mineirometalúrgico petroquímico especialmente na cadeia de produção do gás e do petróleo Outros dois segmentos importantes que concentram grandes projetos são o energético especialmente com relação à construção de grandes usinas hidroelétricas e o setor que pensa e viabiliza a logística de transporte como estradas portos hidrovias ferrovias etc Essa escolha espacial política e econômica pela exportação de commodities agrícolas e minerais vem acirrando os conflitos ambientais e territoriais pois a dinâmica de territorialização desses empreendimentos se realiza através de um processo de ajuste espacial incorporando novas áreas e abrindo novas fronteiras à logica de acumulação pelos negócios do agro da mineração da energia ou da infraestrutura O capital expande seu domínio territorial sobre espaços que não estavam até hoje plenamente incorporados aos circuitos da acumulação global esses verdadeiros fundos territoriais MORAES 2011 se transformam em novas fronteiras nas quais a acumulação se realiza por dispositivos e mecanismos de espoliação o que significa entre outras coisas um violento processo de apropriação e expropriação de recursos naturais terras e territórios HARVEY 2005 Paralelamente esse ajuste espacial demanda um novo meio técnicocientífico e informacional novos sistemas de objetos e de ações para a consolidação de uma base produtiva e logística capaz de imprimir velocidade e fluidez atributos fundamentais na reprodução do capital SANTOS 1996 Além de uma nova densidade técnica é necessário criar uma outra densidade normativa um modo de regulação do território que implica na flexibilização ou supressão de instrumentos jurídicos como leis códigos e zoneamentos ACSELRAD 2013 Essa desnormatização tem como intuito alisar o espaço ou seja retirar os obstáculos jurídicos para assim redefinir o acesso o controle e os usos do território de acordo com os interesses corporativos Dessa forma criamse verdadeiros territórios corporativos de exceção onde ocorre também a suspensão do estado de direito de indivíduos e grupos direitos ambientais territoriais 21 Geografias dos grandes projetos de desenvolvimento territorialização de exceção e governo bionecropolitico do território trabalhistas direitos humanos minando as garantias fundamentais da vida Esses projetos provocam também processos de grandes rupturas e fraturas metabólicas que afetam paisagens ecossistemas e toda a dinâmica geobio física das áreas onde são implantados promovendo mudanças e reestruturação socioespacial e ambiental na escala local e até regional A conformação desses grandes projetos tem como marca um intenso e violento processo de desterritorialização compulsória e precarização territorial das populações onde esses grandes vetores de modernização se realizam Trata se da destruição de mundos pois tal processo afeta de maneira dramática os recursos e os modos de vida de camponeses indígenas quilombolas e dos povos e comunidades tradicionais em geral resultando em intensos conflitos ambientais e territoriais o que gera milhares de refugiados do desenvolvimento VAINER 2010 Entretanto essa geografia dos grandes empreendimentos não é constituída somente a partir dos rastros de violência e das ruínas dos locais onde se instalam mas também de lutas conflitividades e antagonismos que se amplificam expressandose em uma diversidade de formas de rexistências Mas afinal porque estudar as geografias dos grandes projetos de desenvolvimento O que há de comum entre o projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte o maior projeto de extração de ferro do mundo o S11D da Vale situado em Carajás e o projeto do mineroduto MinasRio4 Nossa hipótese de trabalho é que tais projetos além de outros de mesma natureza representam casos paradigmáticos da dinâmica particular de territorializações dos processos de acumulação de capital no Brasil Por esses termos acreditamos que determinadas realidades empíricas como é o caso dos grandes projetos têm o papel de síntese de processos e realidades mais amplas pois concordamos com a afirmação de José de Sousa Martins 2013 de que metodologicamente existem certas situações experiências grupos sociais e territórios que possuem um maior potencial de revelação das lógicas que organizam uma sociedade do que outros ou seja há certas entradas privilegiadas na investigação empírica para compreender e explicar uma sociedade Existem enfim certas plataformas analíticas que oferecem ao pesquisador uma condição especial de observação e análise Essas realidades empíricas epistêmicas e metodologicamente privilegiadas têm a ver com aquelas situações sujeitos e lugares considerados marginais liminares que de algum modo são vítimas do capitalismo da modernidade e do colonialismo5 Martins não está isolado na ideia de que certas situações certas experiências são em si metodológicas Hanna Arendt 2012 por exemplo em raciocínio semelhante fala da sua escolha de estudar certos fenômenos extremos como reveladores da lógica da política Assim para analisar tal fenômeno a filósofa busca compreender experiências extremas da prática política tais como os regimes totalitários as revoluções os movimentos terroristas etc Essas situações têm a força de revelar com mais profundidade e nitidez a natureza da política e os dilemas das ideias tradições e instituições Michel Foucault 1979 na mesma direção sugere que um dos seus princípios de método é tentar compreender a sociedade ocidental e sua racionalidade política a partir do estudo de experiênciaslimites tais como a loucura o crime a sexualidade etc Com grandes afinidades com as ideias anteriores Giorgio Agamben 2009 fala de casos paradigmáticos como recurso metodológico Para esse autor é possível metodologicamente trabalhar com a ideia de que determinados casos empíricos podem exercer um verdadeiro papel de paradigma para a compreensão de um contexto mais amplo Isto significa dizer que estudar casos extremos representativos de determinados fenômenos sociais devido a sua importância e representatividade podem oferecer elementos de inteligibilidade de um contexto mais ampliado por intermédio de analogias iluminações e ressonâncias Os casos paradigmáticos apesar de referiremse a realidades singulares definem a inteligibilidade do conjunto do qual fazem parte e que ao mesmo tempo constituem6 O filósofo italiano mostra que a noção de paradigma está diretamente ligada à ideia de exemplaridade ou seja o paradigma é algo que serve de exemplo para a compreensão do conjunto de fenômenos semelhantes É desse mesmo modo que Agamben 2009 utiliza na sua leitura sobre a realidade política contemporânea determinados casos paradigmáticos como o campo de concentração o estado de exceção e o mulçumano 5Martins 2013 falando de seu percurso e programa de pesquisa sugere que os objetos de algumas de suas pesquisas têm essas características tais como a Fronteira subúrbio linchamento etc 6É neste sentido que Agamben mostra que um autor como Michel Foucault apesar de trabalhar com casos específicos como por exemplo o estudo sobre a organização do poder materializado no panóptico não se restringia a essa realidade especifica pois o panóptico era uma espécie de caso paradigmático para a compreensão das relações de poder disciplinar da modernidade ocidental europeia Segundo Agamben 2009 p23 para Foucault o panóptico é um modelo generalizável de funcionamento do poder pois o panoptismo era um princípio de conjunto Como tal é uma figura de tecnologia do poder político que pode e deve dissociarse de seu uso específico pois não é só um edifício onírico e sim um diagrama de um mecanismo de poder elevado a sua forma ideal AGAMBEN 2009 p23 Funciona em resumo como um paradigma em sentido próprio um objeto singular que valendo para todos os outros da mesma classe define a inteligibilidade do conjunto AGAMBEN 2009 GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago 22 Estes são casos exemplares que segundo o autor iluminam o conjunto dos processos políticos do mundo contemporâneo Concordando e inspirados nesses princípios metodológicos acreditamos que a geografia dos grandes projetos ou melhor os processos de territorialização desses empreendimentos suas contradições conflitos as lutas e as rexistências a esses processos constituem uma realidade paradigmática que nos permite compreender um conjunto de dinâmicas fundamentais que atravessam a ordem territorial da sociedade contemporânea Lançar o olhar sobre essa realidade nos possibilita problematizar as principais linhas de força que constituem o atual momento do nosso capitalismo periférico e de nossa modernidade colonial a um padrão de acumulação por espoliação que avança por sobre os recursos públicos e comuns estabelecendo uma nova onda de cercamentos uma ofensiva que busca disciplinar e regular a sociedade pela lógica do mercado imprimindo um processo de commoditização em todos os domínios da vida social b um padrão de acumulação de natureza extrativista que é predatório do ponto de vista ambiental pois opera de maneira intensiva sobre os recursos naturais gerando grandes rupturas e fraturas metabólicas e coloca em questão os limites materiais do nosso atual modelo de des envolvimento e civilizatório em sentido amplo c o limite de nossas democracias e do estado de direito bem como a ascensão do estado de exceção e de uma governamentalidade autoritária do território d o conjunto desses processos resulta em um governo bio necropolitico do território ancorados em uma visão colonial e em práticas sistemáticas de violência que administra uma política de morte sobre os grupos mais vulneráveis como camponeses quilombolas povos indígenas e outras comunidades tradicionais Esses processos que passaremos a discutir a partir de agora Grandes projetos acumulação por espoliação regimes de expropriação de terras e cercamentos do comum Os grandes projetos não podem ser compreendidos distantes das dinâmicas de acumulação para os quais são pensados Nesses termos de que forma de acumulação ou melhor de que capitalismo estamos falando quando estudamos os grandes projetos A resposta a tal questionamento só pode ser construída se entendemos de antemão que a dinâmica de territorialização desses grandes empreendimentos significa sobretudo grandes apropriações de terras não somente a terra em si mas apropriação do subsolo da água da biodiversidade etc Na lógica desse capitalismo extrativo a natureza é vista como matériaprima como recurso como commoditie a ser apropriada transformada vendida e comprada A ideia dominante nessa matriz de racionalidade é de uma natureza como obstáculo o que passa a se tornar a lógica geral naturalizada por políticas estatais eou estratégias corporativas Essa corrida por terras rumo as áreas naturais praias mares e ecossistemas florestais rios serras e montanhas chapadas charcos e lagoas ou rumo às terras ocupadas por lógicas comunitárias vales e distritos camponeses terras indígenas planícies com agricultura familiar áreas de pesca artesanal territórios quilombolas etc representam um extenso repertório de exemplos de mercantilização cujo caráter devastador sobre numerosas populações e territórios ameaçam a reprodução da vida em todas as suas expressões BARCELOS 2018 Rosa Luxemburgo chega a nos mostrar que o instituto da propriedade privada capitalista é um motor de processos de acumulação pela via da violência afirmando que a cada expansão do capitalismo há uma guerra encarniçada do capital contra outras relações econômicosociais de povos nativos além de uma desapropriação violenta de seus meios de produção e roubo de sua força de trabalho LUXEMBURGO 1984 p33 Neste sentido falar da dinâmica de acumulação por intermédio dos grandes projetos exigenos analisar os novos cercamentos demonstrando os diferentes mecanismos e dispositivos violentos por meio dos quais se realiza esse tipo de acumulação7 dentre os quais podemos citar a mercadificação e a privatização da terra e a expulsão violenta de populações camponesas a conversão de várias formas de direitos de propriedade comum coletiva do Estado etc em direitos exclusivos de propriedade privada a supressão dos direitos dos camponeses às terras comuns partilhadas a mercadificação da força de trabalho e a supressão de formas alternativas autóctones de produção e consumo processos coloniais neocoloniais e imperiais de apropriação de ativos inclusive de recursos naturais a monetarização da troca e a taxação particularmente da terra o comércio de escravos e a usura a dívida nacional e em última análise o sistema de crédito como meios radicais de acumulação primitiva HARVEY 2005 p 121 7 Harvey 2005 faz sua sistematização dos mecanismos a partir da leitura de Marx sobre os processos de acumulação primitiva na geografia histórica do capitalismo 23 Geografias dos grandes projetos de desenvolvimento territorialização de exceção e governo bionecropolitico do território Quando David Harvey 2005 propôs a teoria do ajuste espacial ele tentou compreender essencialmente a dinâmica fronteiriça do capital ou seja o papel das reconfigurações geográficas no processo de acumulação Ele afirmava a existência de uma necessidade constitutiva do capitalismo diante das crises que ocorriam no interior do sistema de se expandir e criar novas fronteiras enfim de se apropriar de realidades espaciais não capitalistas O capitalismo sempre se utilizou de fundos de ativos externos a si mesmo para enfrentar problemas de sobreacumulação tais como apropriação de terra nua novas fontes de recursos naturais supressão de direitos coletivos expulsão violenta de trabalhadores e camponeses HARVEY 2005 p122 Harvey 2005 investe grande energia teórica para demonstrar o papel contínuo e a persistência desses mecanismos no capitalismo contemporâneo substituindo inclusive adjetivos dados a esse tipo de acumulação como primitivo e original pela construção do conceito de acumulação por espoliação Identifica ainda a lógica e racionalidade desses mecanismos em formas contemporâneas de espoliação como nas questões relacionadas aos direitos de propriedade intelectual em toda a dinâmica de biopirataria na mercantilização de formas culturais históricas e da criatividade intelectual na corporativização e privatização de bens até agora públicos universidades sistemas de saúde água terras comuns e mesmo na lógica do sistema de crédito e capital financeiro com seu estilo especulativo e predatório HARVEY 2005 Tratando também dessa dinâmica de espoliação Michel Levien 2014 chega a nos advertir que diferente dos processos de exploração do trabalho que pressupõem uma dinâmica de alienação e coação permanente do trabalhador a acumulação por espoliação envolve mudanças traumáticas processos de desapropriação conflituosos sendo que é inimaginável pensar nesses processos sem compreender que eles são na maioria das vezes empreendidos ou possibilitados pelo próprio Estado como agente portador do monopólio da violência A ressalva de Levien 2014 p 37 também é metodológica uma vez que registra a necessidade de pensarmos além do papel funcional ao capitalismo da acumulação por espoliação para pensarmos pelo conjunto de meios e de arranjos necessários para se efetivar tais relações e práticas entendidas desse modo como regimes de desapropriação definidos como o uso de coerção extraeconômica para expropriar ativos não relacionados ao trabalho de um grupo para o benefício de outro Em última análise a espoliação é um processo por meio do qual os detentores de meios de coerção obrigam os detentores de meios de produção ou subsistência comunal ou privada a cedêlos a terceiros a espoliação é uma relação política de redistribuição fundamentada em diferentes configurações de classes e executada por Estados com seus meios específicos de gerar consenso incluindo os idiomas específicos de justificação LEVIEN 2014 p45 No mesmo sentido Sandra Lencioni 2012 faz distinção semelhante entre espoliação e exploração Para essa autora o processo de acumulação primitiva está relacionado à espoliação enquanto o de reprodução do capital está associado à exploração Espoliação significa privar alguém de algo por meios ilícitos ilegítimos ou violentos É esse o sentido dos mecanismos espoliativos como aquele que nega o direito à posse Por exemplo sob o selo da propriedade privada capitalista se arranca da terra os que vêm nela vem trabalhando há várias gerações Já a exploração se vincula aos diversos procedimentos que buscam se apossar do lucro por meio da sujeição da posse e do domínio da propriedade privada LENCIONE 2012 p 3 Quando falamos em hidrelétricas da megaexploração de minérios de megaempreendimentos logísticos de dotação de infraestrutura no território não falamos apenas de dinâmicas de superexploração do trabalho e da natureza configurando modos específicos de drenagem energética por mecanismos de espoliação falamos também na expropriação das condições objetivas de vida de múltiplos povos e comunidades falamos ainda da confluência de interesses entre grandes corporações e o Estado Esse processo não pode ser compreendido apenas na escala da acumulação da dinâmica de divisão internacional do trabalho nem apenas na escala das trocas desiguais de matéria e energia mas também na escala do impedimento da vida do solapamento das condições de existência de diversos grupos povos e comunidades Por isso a lógica de expansão capitalista por meio dos grandes projetos de desenvolvimento nesses termos assume o caráter de um cercamento do comum O termo cercamento faz pensar sobretudo no açambarcamento de terras e recursos naturais praticado em escala mundial DARDOT LAVAL 2017 p 107 Tratase portanto de um cercamento da natureza e dos meios de existência dos ambientes por onde se realizam as diferenças dos espaços onde ocorrem GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago 24 distintos processos de produção da vida social o que dá origem a territorializações voltadas à exploração de recursos Essa grande apropriação em toda a sua variedade de suas manifestações acarreta fenômenos maciços de exclusão e desigualdade contribui para acelerar o desastre ambiental transforma a cultura e a comunicação em produto comercial e atomiza cada vez mais a sociedade em indivíduosconsumidores indiferentes ao destino comum DARDOT LAVAL 2017 p 109 Os novos cercamentos surgem como uma progressiva e violenta expropriação do comum ou seja como um jogo complexo de disputas sociopolíticas e territoriais em torno do uso acesso e controle dos bens da natureza uma espécie de versão contemporânea da separação clivagem da sociedade de suas bases materiais de existência BARCELOS 2018 Os grandes projetos de desenvolvimento como expressão desses novos cercamentos que açabarcam o comum drenam matéria e energia e destituem de estatuto político aqueles que se colocam em seu caminho atualizam dessa forma a lógica das plantations coloniais as quais Achille Mbembe 2016 identifica como os paradigmas fundamentais da emergência do estado de exceção por representarem espaços em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei e no qual tipicamente a paz assume a face de uma guerra sem fim MBEMBE 2016 p 132 É essa esfera de indeterminação política criada pelos megaempreendimentos que queremos agora compreender melhor Grandes projetos e o governo bionecropolitico do território os processos de territorialização de exceção Os métodos violentos por meios dos quais a dinâmica de espoliação via grandes projetos se realiza implica nos a pensar que tais processos indicam não apenas uma lógica econômica perversa mas dinâmicas políticas que desmontam os sentidos básicos que sustentam qualquer ideia de democracia uma vez que estamos falando da expropriação das condições de existência e energias vitais de grupos povos e comunidades como lógica legitimada de desenvolvimento Há portanto um ajustamento das populações aos movimentos econômicos isto é uma divisão que garante que a morte regulada de alguns signifique a vida regulada de outros como nos aponta Foucault 2008 E não estamos falando de monarquias absolutistas pelo contrário assim como Agamben alerta essas técnicas de governo inscritas num patamar de indeterminação entre a democracia e o absolutismo AGAMBEN 2004 p13 colocamse como um paradigma constitutivo de toda nossa ordem jurídica agora de exceção que nesses termos pode ser pensada como uma ordem que inclui para excluir Quando por exemplo os indígenas entram em cena no debate público em torno de um grande projeto geralmente a imagem que os é reservada é a de entrave Suas vidas são menos importantes que a necessidade do desenvolvimento sua inclusão na política é justamente para justificar sua exclusão Por isso essa geografia de exceção que se realiza por grandes projetos deixa morrer aquilo que não pode ser incluído no todo ao qual pertence e não pode pertencer ao conjunto no qual está desde sempre incluído AGAMBEN 2002 p 32 A racionalidade desses megaempreendimentos portanto expõe uma nova tragédia se ontem o drama do sujeito era ser explorado pelo capital a tragédia da multidão hoje é ser relegada a uma humanidade supérflua entregue ao abandono sem qualquer utilidade para o funcionamento do capital MBEMBE 2018 p 15 16 O abandono e a falta de utilidade de grupos comunidades e povos tratados como entraves ao des envolvimento serão motores não apenas biopolíticos mas necropolíticos uma vez que nesse caso falamos de uma política de morte Dessa forma tal qual compreendemos que os processos de acumulação primitiva ou de acumulação por espoliação não se constituem em um momento prévio e preparatório do capitalismo mas uma marca constitutiva dele acreditamos ser o estado de exceção e as formas de governo bionecropolítico do território também constitutivos dos regimes democráticos8 Nesse sentido se os grandes projetos se expressam como dinâmicas de realização da espoliação no capitalismo contemporâneo eles só se realizam tornando a exceção a regra em seus processos de territorialização Os grandes empreendimentos são portanto paradigmas fundamentais na compreensão do estado 8Problematizando a emergência do Estado de Exceção quatro hipóteses nos ajudam a entendêlo em face aos ditos regimes democráticos Para Hannah Arendt 2012 os regimes totalitários significam uma descontinuidade ou seja uma ruptura completa com as tradições ideias e instituições políticas ocidentais representam portanto uma situação histórica excepcional a hipótese de Michel Foucault 2010 é um tanto diferente pois para o filósofo francês os regimes totalitários não significam uma ruptura de descontinuidade completa com as instituições as ideias e tecnologias políticas operantes nos chamados regimes democráticos ocidentais mas uma radicalização e aprofundamento destas na mesma linha de Foucault Giorgio Agamben 2004 alerta que o estado de exceção está inscrito entre a democracia e o absolutismo sendo um paradigma constitutivo de toda nossa ordem jurídica ou ainda um paradigma de governo dominante na política contemporânea por fim a hipótese de Franz Fanon 2005 é de que o estado de exceção coexiste com regimes democráticos pois ele opera as linhas do ser e do não ser a democracia existe apenas para alguns sujeitos territórios e corpos quem está fora das linhas do ser experimenta no corpo cotidianamente o estado de exceção Nossa leitura se alinha com a hipótese interpretativa de FoucaultAgamben complexificada e matizada por Fanon 25 Geografias dos grandes projetos de desenvolvimento territorialização de exceção e governo bionecropolitico do território de exceção na contemporaneidade uma vez que compreendem processos capitalistas que se realizam suspendendo vidas estruturando uma maneira específica de governo corporativo do território que interliga discursos instituições e disposições espaciais fora do ordenamento jurídico produzindo situações nas quais a suspensão da lei tornase a própria lei Esses mecanismos esvaziam de direitos os espaços onde se territorializam esses empreendimentos criando zonas de indiferença Assim territórios antes preenchidos de simbolismo vida e cultura são simplesmente transformados em espaços nulos desprovidos de qualquer regra vazios de direito ou seja espaços para os quais a possibilidade econômica da exploração apaga sua história e geografia MALHEIRO 2019 Em outras palavras os espaços onde se territorializam esses grandes projetos precisam se tornar livres de qualquer regulamentação para que o Estado possa usar a prerrogativa de exercer formas de regulação especial de acordo com os contextos e interesses em jogo Existe claramente uma lógica econômica nisso tudo que é a de construir regimes especiais de exploração a partir de termos e normas também especiais de modo a garantir lucros extraordinários a partir de processos de acumulação violentos Os grandes projetos nesses termos constituemse em uma maneira particular e racional de manipulação das relações de força pois demonstram uma maneira específica de governo9 bionecropolítico do território estruturando a ação de quem quer que se coloque no caminho a partir de sua racionalidade definindo todas as oposições como irracionais Essa maneira de manipular as relações de poder interliga um conjunto de discursos de progresso uma variedade de instituições uma forma específica de organização do espaço marcada pelo gigantismo e pela opulência da técnica além de leis que são criadas ou burladas em nome da execução de tais projetos Esses megaempreendimentos não são quaisquer 9É importante lembrar que quando falamos de governo do território estamos atribuindo à palavra governo o sentido dado por Foucault 1995 como uma ação de estruturação do campo de ação dos outros ou simplesmente uma ação sobre ações sentido esse aliás que coincide com a própria reformulação do entendimento do exercício do poder pelo autor a luz de seus trabalhos sobre biopolítica Diferente da soberania em que o poder se exerce pelo direito do soberano de matar e da disciplina que produz uma economia de maximização da utilidade dos corpos em conjunto a biopolítica opera sobre probabilidades antecipando riscos em nome da segurança fragmentando a sociedade por dados estatísticos e definindo quem pode viver e quem vai se deixar morrer Por esses termos que o poder é um conjunto de ações sobre ações possíveis ele opera sobre o campo de possibilidades aonde se vêm inscrever o comportamento dos sujeitos atuantes ele incita ele induz ele contorna ele facilita ou torna mais difícil ele alarga ou limita ele torna mais ou menos provável no limite ele constrange ou impede completamente mas ele é sempre uma maneira de agir sobre um ou sobre sujeitos atuantes enquanto eles agem ou são susceptíveis de agir Uma ação sobre ações FOUCAULT 1995 p 243 dispositivos são dispositivos10 de exceção pois sempre são colocados pelo signo da segurança ou interesse nacional e mesmo que em discordância aos marcos legais vigentes são tomados como necessários Com base nesses termos a dinâmica espacial desses grandes projetos pode ser compreendida pelos processos de territorialização de exceção já descritos por Haesbaert 2014 a partir de uma leitura geográfica da compreensão do campo de concentração como paradigma biopolítico em Agamben Esses processos em termos mais concretos podem ser melhor compreendidos a partir de três dinâmicas complementares a saber a criação de mediações espaciais de exceção a interdição da possibilidade de existência de outras territorialidades e de outros fluxos e usos do território o ataque sistemático e organizado aos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais Em primeiro lugar entendendose que territorializar significa como nos fala Haesbaert 2004 p 92 criar mediações espaciais que nos proporcionem efetivo poder sobre nossa reprodução enquanto grupos sociais um aspecto a se ressaltar é que a criação de mediações espaciais nos processos de territorialização de exceção passam por dinâmicas de suspensão normativa seja através da criação de regimes jurídicos especiais por rearranjos institucionais e pela projeção de um sentido privado a instrumentos jurídicos pretensamente criados para um sentido coletivo seja pela desregulação dos sistemas normativos vigentes o que permite que o exercício do poder e a dinâmica de territorialização se realize legalmente fora da lei MALHEIRO 2019 Dois exemplos são muito claros para entender essa lógica de desregulação e suspensão do ordenamento jurídico através de grandes projetos o Programa Grande Carajás PGC11 e a Hidrelétrica de Belo Monte Esses dois grandes empreendimentos paradigmáticos atravessam momentos históricos e políticos distintos o período do regime autoritário da ditadura civilmilitar 10 Foucault afirma que o dispositivo é um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos instituições organizações arquitetônicas decisões regulamentares leis medidas administrativas enunciados científicos proposições filosóficas morais filantrópicas Em suma o dito e o não dito são os elementos do dispositivo O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos FOUCAULT 1979 p 244 Além disso também afirma que os dispositivos são criados para responder a uma urgência e por isso têm uma função de natureza estratégica por se tratar de uma certa manipulação de relações de força de uma intervenção racional e combinada das relações de força seja para orientálas em certa direção seja para bloqueálas ou para fixálas e utilizálas FOUCAULT 1979 p 246 11O Programa Grande Carajás PGC integrou um conjunto de projetos minero metalúrgicos projetos agropastoris e de infraestrutura Implantado entre 1979 e 1986 na mais rica área mineral do planeta situada na Amazônia brasileira estendeuse por 900 mil km² Fazem parte do programa o projeto Ferro Carajás Projeto Trombetas Projetos de produção de alumínio ALBRÁS ALUNORTE e ALUMAR e Usina Hidrelétrica de Tucuruí UHT Vale ressaltar que vários outros grandes projetos criados já durantes governos democráticos em contextos de atuação do PGC como o projeto S11D da empresa Vale operam com a mesma lógica de suspensão normativa construindo esferas de indeterminação política GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago 26 e os governos progressistas democraticamente eleitos operando com a mesma lógica O PGC como um programa que integra vários projetos é criado por um conjunto de estruturas institucionais e regimes normativos especiais para garantir a sua implantação O primeiro decretolei criado especificamente para o Programa foi o de nº 1813 de 24 de novembro de 1980 que instituiu um regime especial de incentivos aos empreendimentos integrantes do PGC além de criar uma estrutura institucional especial para gerilo qual seja o Conselho Interministerial do Programa Grande Carajás ligado diretamente à secretaria de planejamento da presidência da república No mesmo dia foi também lançado o Decretolei 85387 que define a composição e atribuição do Conselho Interministerial criado concedendo um tratamento especial e preferencial a um conjunto de medidas na região de abrangência do PGC São 12 itens valendo destacar a concessão arrendamento e titulação de terras públicas o estabelecimento de contratos para o fornecimento de energia elétrica e a autorização para o funcionamento de empresas de mineração BRASIL 1980 np Em um único dia portanto dois decretos criam um regime especial de incentivos e uma estrutura política de exceção suspendendo as relações institucionais na região além de conceder garantias de tratamento diferenciado à questão fundiária energética e de concessão e autorização de lavra dos minérios A UHE de Belo Monte pensada desde a ditadura civil militar mas materializada em contexto pretensamente democrático por seu turno também é um caso exemplar para demonstrar a suspensão de todas as normas em nome de um projeto Mesmo depois que o diretor de Licenciamento Ambiental do Ibama Sebastião Pires e o Coordenador Geral de Infraestrutura Elétrica Leozildo Benjamin pediram demissão decisão possivelmente motivada pela pressão que sofreram do governo federal para liberarem a licença ambiental da hidrelétrica apesar de já haver na época um Estudo de Impacto Ambiental de mais de 35 mil páginas e de algumas suspensões da licença de operação da obra Belo Monte continuou a ser executada sem inclusive respeitar algumas condicionantes exigidas O depoimento da procuradora da república Thais Santi à jornalista Eliane Brum é bastante significativo para se entender uma operação de exceção Você tem uma opção governamental uma opção política do governo por construir grandes empreendimentos enormes brutais na Amazônia Mas é uma opção que se sustenta na legitimidade do governo Agora uma vez adotada essa política feita essa escolha governamental o respeito à Lei não é mais uma opção do governo O que aconteceu e está acontecendo em Belo Monte é que feita a escolha governamental que já é questionável o caminho para se implementar essa opção é trilhado pelo governo como se também fosse uma escolha como se o governo pudesse optar entre respeitar ou não as regras do licenciamento SANTI apud BRUM 2014 não paginado Santi de maneira precisa e bastante contundente faz uma diferenciação fundamental entre uma escolha política e a observância das leis e demonstra que em Belo Monte foi feita uma escolha política que ainda transformou o respeito às regras também em uma vontade política como se a implementação do projeto decorresse única e exclusivamente de uma escolha governamental e assim fosse possível em nome de uma legitimidade política passar por cima de todo marco legal ou seja suspender a lei em nome de uma vontade maior encarnada em um governo Tal operação tão característica na Amazônia é em síntese a marca do modos operandi dos ditos grandes projetos de desenvolvimento Em segundo lugar as relações de poder que definem os processos de apropriaçãodominação do espaço HAESBAERT 2004 poderiam ser melhor descritas nos processos de territorialização de exceção como dinâmicas de governamentalização do espaço ou seja são práticas espaciais agindo sobre a possibilidade de existência de outras práticas espaciais ou ainda são ações que agem sobre a possibilidade da ação de outros uma forma de estruturaçãodefiniçãointerdição do campo de ação dos outros FOUCAULT 1995 Isso se traduz como a estruturação de um conjunto de instituições procedimentos discursos e cálculos estatísticos de exercício do poder tendo como alvo a população ou os cortes populacionais ou em termos mais geográficos processos territoriais que interditam a possibilidade de existência de outros territórios e territorialidades Por essas vias os processos de territorialização de exceção são também processos de interdição da possibilidade de existência de outras territorialidades e de outros usos do território MALHEIRO 2019 O caso da empresa Vale S A é paradigmático para compreendermos esses processos de interdição de outras territorialidades pela via dos grandes projetos Após a empresa garantir o controle das relações de trabalho no ambiente interno caracterizado por uma crescente flexibilização das questões trabalhistas e pela redução do poder de negociação do trabalhador outro horizonte de controle se impôs motivado pelo aumento das interferências nos processos extrativos e logísticos 27 Geografias dos grandes projetos de desenvolvimento territorialização de exceção e governo bionecropolitico do território por parte das comunidades diretamente afetadas pelos grandes projetos corporativos É nesse contexto particularmente após a privatização da então Companhia Vale do Rio Doce CVRD em 1997 que a Fundação Vale do Rio Doce de Habitação e Desenvolvimento Social tornase em 1998 apenas Fundação Vale do Rio Doce FVRD com o objetivo de gerir as populações do entorno dos projetos de modo a antecipar e assegurar o funcionamento de todos os momentos do metabolismo social12 da mineração para conter as possibilidades de conflitos sociais com as comunidades afetadas que passam a ser vistas como riscos sociais corporativos13 Para tanto a recém privatizada empresa produz mudanças no gerenciamento corporativo dando maior importância aos setores de relacionamento com comunidades departamento de segurança corporativa bem como investe nos setores de marketing e diretoria jurídica A partir desse prisma as populações são manejadas administradas calculadas em termos de risco transformando o espaço em território e elemento central para a definição das estratégias de controle dos riscos corporativos Se tomarmos essa transformação dos espaços necessários à produção circulação e exportação de commodities as zonas de extração espaços inundados estradas de ferro rodovias portos dentre outros em territórios administráveis para a viabilização dos processos de acumulação de uma corporação temos que admitir que não apenas os espaços mercantis precisam ser disciplinados empresarialmente mas também os espaços não mercantis transformamse em territórios de atuação dos processos de segurança corporativa ACSELRAD 2018 que nesse quadro de referência preocupamse com dois elementos básicos que garantem um estado de relações normalizado a 12Victor Toledo 2013 amplia o conceito de metabolismo social considerandoo para além mas não aquém dos fluxos de entrada processos de apropriação e saída processos de excreção de matéria e energia Toledo adverte a existência de fluxos internos de matéria e energia Nesses termos o autor identifica cinco fenômenos relacionados a esses fluxos que só existem em combinação mas podem ser individualmente percebidos quais sejam a apropriação forma primária de intercâmbio entre a sociedade e a natureza a transformação um modo de produzir a partir de extrações naturais a circulação que inaugura o intercâmbio econômico e coloca o volume de matéria e energia extraídas em um circuito ligando distintos territórios o consumo que não representa apenas a realização das necessidades mas condiciona ou pressiona os processos extrativos no momento em que se transforma em um fator de demanda e a excreção que representa todos os excrementos provenientes das ações de apropriação transformação circulação e consumo isto é tudo o que se expele desde os resíduos e rejeitos aos subprodutos não aproveitados TOLEDO 2013 13 A noção de risco social corporativo possui três pilares o primeiro é o encapsulamento de toda a complexidade social à racionalidade empresarial Nesse sentido a garantia dos direitos é contabilizada como custo a possível conquista de direitos antes negados é calculada como risco e a consideração ou tentativa de negociação desses direitos é convertida em prestação de serviço GIFFONE 2015 p 205 O segundo pilar é a funcionalização dos espaços de interferência das atividades corporativas transformando espaços relacionais em espaços absolutos reduzindo a complexidade de usos às funções que cada localização exerce na lógica metabólica empresarial e o terceiro resultante dos dois primeiros é a transformação da ciência em uma tecnologia de poder corporativo exercendo a função de construir argumentos socialmente aceitáveis para atividades socialmente degradantes e largamente questionadas GIFFONE 2015 MALHEIRO 2019 garantia do uso do território como recurso e o controle dos fluxos de seus sistemas logísticos Assim os grandes projetos não são mais enclaves espaciais em uma definição puramente econômica pois que essa leitura desconsidera a relação violenta desses megaempreendimentos com suas regiões de abrangência desconsidera enfim que tais projetos funcionam racionalizando seus entornos por suas lógicas de territorialização A terceira marca fundamental dos processos de territorialização de exceção pode ser descrita pela definição de um recorte racial e étnico por esses processos de territorialização que desse modo podem ser descritos como uma campanha de desterritorialização nos termos definidos por Almeida 2010 Ou seja os processos de territorialização de exceção podem ser lidos como um ataque sistemático e organizado aos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais Não sem razão são mais de 4 mil requerimentos de processos minerários em terras indígenas entre 1969 e 2016 no Brasil PÚBLICA 2016 são também mais de um milhão de pessoas deslocadas pelas mais de duas mil hidrelétricas já construídas MAB 2004 entre os desalojados milhares de povos e comunidades tradicionais sem contar o processo sistemático de desregulação de direitos territoriais conquistados e inscritos na Constituição de 1988 para viabilização da expansão da indústria mineral do agronegócio do hidronegócio dentre outras formas de mercantilização da natureza FREITAS 2018 Em linhas gerais o que parece extremamente evidente na realidade dos grandes projetos é que eles representam uma lógica de pensar modernocolonial ou seja para a realização de seus processos de territorialização precisam excluir de sua racionalidade outras territorialidades Isso corresponde a uma ideia de desenvolvimento como crescimento econômico fundamentada numa visão predatória quanto ao uso de recursos naturais e também racista em relação às diferentes lógicas de agir e de se relacionar com a natureza Tratase de um modo de expansão capitalista que se manifesta pela criação dos inimigos do des envolvimento aqueles cujos territórios precisam ser tomados para a acumulação se realizar O espólio produzidodeixado pelos grandes projetos de desenvolvimento nosaos territórios de povos indígenas quilombolas de camponeses ribeirinhos de quebradeiras de coco babaçu bem como de diversas outras comunidades e povos tradicionais define uma distribuição das populações em distintos domínios de valor e utilidade delimitando práticas de controle GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago 28 violação dos povos afetados pelos grandes projetos Por esses três caminhos de análise propostos chegamos a termos mais precisos entendendo a territorialização de exceção como processos em que a criação de mediações espaciais que proporcionem acesso a recursos eou domínio de terras passam por dinâmicas de suspensão normativa criando dispositivos com claros recortes raciais e étnicos de gestão de populações numa lógica de ação que estruturadefine interdita o campo de ação e a possibilidade de criação de mediações espaciais de outros grupos sociais os quais definidos por um menor valor tornamse politicamente matáveis e territorialmente invisíveis e dispensáveis MALHEIRO 2019 Olhar a dinâmica territorial dos grandes projetos pela lógica da exceção é ver o espaço a contrapelo isto é não apenas como acúmulo progressivo de estruturas e relações novas mas também como ruína libertando a geografia do messianismo de análises que apesar da boa pretensão esmagam vidas por não enxergálas Esse exercício de fazer falar ruínas onde até então só se representavam grandes construções apresenta se por termos teóricos mas se revela também como uma tarefa metodológica muito inspirada em Walter Benjamin 1993 que é a de repor no mapa dos conflitos territoriais as territorialidades insurgentes de modo a reorganizar esses fragmentos de geografias de rexistências em uma leitura de conjunto que seja estratégica para as lutas do presente Considerações finais Esse artigo tomando as geografias dos grandes projetos de desenvolvimento como paradigmas de compreensão do capitalismo contemporâneo construiu uma análise com três ideiasforça que são chaves de leitura a serem retomadas aqui A primeira delas é que os grandes projetos de desenvolvimento mesmo diante da radicalização da divisão da sociedade que no Brasil é acirrada após as eleições de 2018 são escolhas econômicas que atravessam os vários espectros da política demonstrando que mesmo diante das mais abissais diferenças ideológicas eles continuam a ser os dispositivos territoriais a movimentar as principais engrenagens da acumulação A segunda chave é a compreensão desses projetos como processos de acumulação por espoliação regimes de desapropriação e cercamentos do comum ou seja como um dispositivo racional do atual momento do neoliberalismo Essas duas primeiras chaves analíticas nos levam a uma terceira que vem a ser a compreensão desses empreendimentos por sua racionalidade territorial ou ainda por seus mecanismos concretos o que nos levou a pensálos pelos termos da territorialização de exceção não apenas por serem resultantes de processos de suspensão normativa ou por criarem mecanismos de controle de populações mas também por se constituírem em verdadeiros ataques sistemáticos e organizados aos territórios de povos e comunidades tradicionais Além das considerações acima tratadas observamos nesse estudo que a análise dos grandes projetos como paradigmas de compreensão do capitalismo contemporâneo indica outros questionamentos de fundo que nos ajudam a nos entender como sociedade A primeira dessas questões se refere ao fato de que na lógica dos grandes projetos a morte e a tragédia transformamse nas únicas formas de sensibilização para as vidas despedaçadas pelos megaempreendimentos É como se as vidas ameaçadas e ceifadas só valessem quando perdidas e isso em escalas sem precedentes A subjugação da vida ao poder de morte essa necropolítica MBEMBE 2016 dos grandes projetos precisa ganhar a escala de uma guerra para tornarse perceptível Nessa geopolítica alguns espaços tornados invisíveis onde se mata sem cometer homicídio só se tornam visíveis quando o tamanho dos desastres não mais pode ser abafado A tragédiacrime de Mariana a tragédia crime de Barcarena e a tragédia crime de Brumadinho apontam que é preciso desastres criminosos de largas e incalculáveis proporções para que se introduza ainda que de forma tímida as denúncias e demandas de movimentos sociais e redes de mobilização nas pautas amplas e na agenda política nacional Até quando seremos coniventes com essa engrenagem econômica de morte Até quando a morte será a única via de sensibilização para a vida Essas reflexões nos levantam uma segunda questão fundamental que se refere ao modo fascista de como a nossa sociedade trata as diferenças A escolha econômica pela exportação de commodities via grandes projetos é também societária pois está baseada na difusão violenta de um modo de vida absolutamente refratário às diferenças e à justiça social uma vez que a lógica de acumulação pela violência inscrita nesses empreendimentos carrega consigo os signos de uma história de longa duração que naturaliza o genocídio dos povos o ecocídio o racismo o patrimonialismo e o patriarcalismo Além dessas duas questões anteriores uma terceira emerge como importante e necessária esses megaempreendimentos também demonstram a maneira como a nossa sociedade lida com os processos de apropriação social da natureza A ideia 29 Geografias dos grandes projetos de desenvolvimento territorialização de exceção e governo bionecropolitico do território de uma natureza como obstáculo como algo a ser dominado superado e explorado tornase a lógica geral e naturalizada de políticas estatais eou estratégias corporativas A natureza vista como matériaprima como recurso como commoditie tornase a única via ao desenvolvimento Nesses termos a racionalidade política inerente às práticas de planejamento territorial estatal e corporativo ou seja a racionalidade e o modus operandi de planejar de pensar e organizar o território apontanos uma maneira instrumental e simplificada de conceber a natureza pela mercantilização da terra subsolo água ar energia biodiversidade etc As regras neocoloniais de saque e drenagem de matéria e energia tornam os grandes projetos dispositivos territoriais de acumulação que naturalizam a exploração infindável de recursos finitos Serão necessários quantos desastres ambientais para que deixemos de naturalizar essa visão instrumental e predatória da natureza e passemos a pensar outros modos de agir observando a preservação da natureza considerada como portadora de direitos Essa visão instrumental pragmática e absolutamente irresponsável da natureza está ancorada em processos decisórios centralizados e autoritários que como discutimos largamente ancoramse em lógicas de suspensão normativa de desregulações que tornam a exceção a regra A perversão primeira desse processo está na constatação do fato de que esses megaempreendimentos são pensados e executados sem consultar os povos e comunidades que terão suas fontes de vida e bases de sobrevivência solapados por eles Não há consulta para se tomar a decisão nem mesmo aviso prévio aos povos sobre as perdas e impactos que sofrerão O apetite pelas terras de uso comum de territórios indígenas camponeses quilombolas e de diversos outros povos e comunidades tradicionais como uma das expressões dos processos de territorialização dos grandes projetos apontanos uma quarta questão fundamental o modo autoritário centralizado e antidemocrático dos processos de tomadas de decisão acerca dos rumos do des envolvimento em nossa sociedade A total irrelevância dada às vidas permanentemente despedaçadas por esses empreendimentos o modo fascista de tratamento às diferenças a noção instrumental e pragmática da natureza como obstáculo e o modo autoritário centralizado e antidemocrático de tomada de decisões podem indicar a engrenagem territorial ou os processos de territorialização de exceção desses grandes projetos como um verdadeiro balão de ensaio para o que agora vivemos como sociedade Apesar dos grandes projetos se constituírem por processos de territorialização de exceção a geo grafia por eles esboçada é também uma geografia marcada por lutas conflitividades antagonismos rexistências Os grupos atingidosafetados não são passivos ao contrário são protagonistas de lutas e enfrentamentos e demonstram sua força construindo táticas de resistências movimentos organizações redes alianças repertórios de ações coletivas ou seja reinventando outras possibilidades de vida mesmo diante de condições precárias em contextos de exceção A luta dos povos e comunidades em defesa dos rios das florestas da terra das riquezas minerais é uma luta em defesa da vida que tenciona e politiza os processos e os sentidos de apropriação da natureza Essas lutas exigemnos um deslocamento de nossas referências espaçotemporais para pensarmos mais em envolvimentos e criação de vínculos e menos em des envolvimento Não nos parece haver horizonte de futuro sem debatermos como garantiremos as condições materiais da vida e são essas lutas que tencionam nossa atual crise civilizatória são essas lutas que nos fazem repensar os processos de produção e consumo e os limites da natureza Suas agendas portanto ultrapassam suas particularidades e nelas outros horizontes de sentidos se constroem como uma aposta pela vida Quando tais grupos reivindicam o direito aos seus territórios estão reivindicando uma autonomia material e simbólica O direito a um território próprio significa o direito às formas próprias de produzir materialmente sua existência e também a valorização e o respeito às suas peculiares formas de dar sentido ao mundo através de uma memória de uma linguagem de um imaginário de formas de saberes que constituem sua existência sua cultura e cosmologia O território agrega uma espessura uma densidade pois traz os conteúdos históricos e existenciais desses grupos uma vez que é suporte material da cultura da memória da ancestralidade e dos saberes acumulados ao longo do tempo O direito ao território é uma espécie de condensador de outras formas de direitos CRUZ 2013 como o direito à terra à água aos recursos naturais à produção assim como à memória à ancestralidade à identidade etc A luta pelo direito ao território restitui o estatuto político daqueles cuja humanidade é tornada supérflua pelos grandes projetos reposicionando com isso nossas referências e nos apontando outros horizontes de sentido GEOgraphia vol 21 n46 2019 maiago 30 Referências ACSELRAD H 2013 Desigualdade ambiental Economia e Política In Revista Astrolábio Nueva Época Nº 11 pp 105123 2018 Territórios do capitalismo extrativista a gestão empresarial de comunidades In ACSELRAD H Políticas Territoriais 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