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TEMPOS E ESPAÇOS NOS MUNDOS RURAIS DO BRASIL CARLOS RODRIGUES BRANDÃO R E S U M O Este trabalho é uma espécie de segunda parte de um estudo an terior mais teórico e bibliográfico sobre a questão da existência vivência e percep ção cultural de tempos e espaços no mundo rural Um trabalho situado entre lei turas de geografia e de antropologia Meu propósito aqui é descrever um pouco das diferenças existentes hoje entre as diversas modalidades de experiência de tempos espaçosnas diversas modalidades de comunidades rurais ou relacionadas ao mun do rural por ventura ou desventura presentes no Brasil de hoje Parto do princí pio aliás evidente de que o mundo rural brasileiro é muito mais diversificado e polissêmico do que em geral se imagina Retomo algumas idéias há muito tempo desenvolvidas por José de Souza Martins em Capitalismo e tradicionalismo e des crevo o que me parece mais característico de três formas sociais de viver e trabalhar no mundo rural P A L A V R A S C H A V E Espaçostempos rurais camponeses mudança social A B S T R A C T This work is a kind of second part of a previous study more theoretical and bibliographical in nature on the issues of existence experience anc cultural perception of times and spaces in the rural worldIt is a work placed between anthropological and geographical readingsMy aim is to describe some of the current differences between several modes of experiencing spacetimes which prevail in distinct modes of rural or ruralrelated communities which exist in todays Brazil for better or worse I start from the incidentally selfevident principle that the Brazilian rural world is much more diverse and polysemic than one generally imaginesI go back to a few ideas developed a long time ago by José de Souza Martins in Capitalism and Traditionalism to describe what seems to me to be most characteristic in three social forms of life and work in the rural world K E Y W O R D S Rural spacestimes peasants social change 3 7 UM BREVE OLHAR PARA ONTEM Uma leitura dos estudos que nos últimos 50 anos provem da an tropologiada geografia e mesmo da sociologia haveria de nos lem brar que a maior parte dos trabalhos de campo de que resultaram e seguem resultando artigos livros dissertações e teses em que questões como as relações culturais tempoespaço são levadas em conta ou são mesmo essenciais são trabalhos centrados em co munidades rurais tradicionais São os antigos estudos de comuni dade Donald Pearson Emílio Willems Eduardo Galvão Oracy Nogueira e tantos outros como as pesquisas pioneiras dos bair ros rurais paulistas de que o recentemente republicado Parceiros do Rio Bonito de Antonio Candido ao lado de Bairros rurais pau listas de Maria Isaura Pereira de Queiroz são dois excelentes exemplosOu são as várias pesquisas de sociedades camponesas tra dicionais que por um longo tempo têm ocupado o tempo e os es tudos de vários cientistas sociais1 Vistos de cima e de passagem às vezes parece que as comu nidades rurais tradicionais são enfocadas a partir do espaço e da cultura ao passo que as frentes pioneiras ou de expansão as áreas de conflito agrário os acampamentos e assentamentos da refor ma agrária são estudados a partir do tempo e da história Tere mos então de um lado um excesso de cultura espaço sem his tória e de outro um excesso de história tempo sem cultura2 Há muitos espaços sem tempos de um lado e muitos tempos sem espaços de outro E é difícil encontrar um ponto de equilíbrio en tre essas duas dimensões que tanto na natureza quanto nas socie dades humanas não existem nunca em separado Com a atenção talvez centrada demais naquilo que se trans forma e moderniza no mundo rural da atualidade global e brasi leira Milton Santos quase descreve o campo através do que nestes últimos anos ele deixou de ser para ser aquilo em que vertigino samente e não raro de maneira lastimável ele se transforma Uma racionalidade empresarial domina todo o cenário da ci dade do campo e das relações entre um e outro Essa racionali R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 3 8 1 Apenas para lembrar alguns autores nas ciên cias sociais Nice L Mul ler Sítios e sitiantes no estado de São Paulo Bo letim USP n 132 Geo grafia 1951 Maria Isau ra Pereira de Queiroz Bairros rurais paulistas Duas Cidades 1973 e Campesinato brasileiro Vozes 1976 Antonio Candido Os parceiros do Rio Bonito Duas Cida des 1971 Emílio Wil lems Cunha Tradição e transição em uma cultura rural no Brasil Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo 1947 Ro bert Shirley O fim de uma tradição Perspecti va 1971 José de Souza Martins Capitalismo e tradicionalismo Pionei ra 1975 Afrânio Garcia Jr Terra de trabalho tra balho familiar e pequenos agricultores Paz e Terra 1983 Margarida Maria Moura Os herdeiros da terra Hucitec 1978 Os deserdados da terra Ber trand Brasil 1988 Olin da Maria de NoronhaDe camponesa a madame Trabalho feminino e re lações de saber no meio rural Loyola 1986 Leo narda Musumeci O mito da terra liberta Anpocs Vértice1988Luiz Eduar do Soares Campesinato ideologia e política Za har 1981 Klaas Woort mannCom parente não se neguceia Anuário Antropológicon871990 Jadir de Moraes Pessoa Cotidiano e história Edi tora da Universidade Fe deral de Goiás 1997 Carlos Rodrigues Bran dão A partilha da vida GEIC Cabral 1995 2 Algo semelhante acon tece em outros campos de estudos sociais No campo das pesquisas so bre religiões no Brasil dade de que o agronegócio é o melhor e o pior espelho altera estruturas sociais de poder de apropriação de espaços de vida trabalho e produção Altera às vezes depressa demais espaços terras territórios cenários tempos e paisagens Movida pelo pe so do capital pela racionalidade capitalista e por uma tecnologia industrializada que em poucos meses transforma biomas de cer rado no norte de Minas em milhares de alqueires do deserto ver de dos eucaliptais e que faz os círculos de plantio de soja em la vouras irrigadas chegarem até nas portas de Brasília além de alterar a vida de paisagens e de pessoas das beiras do Chuí às do Oiapoque Por toda a parte estamos envolvidos com novos termos en tre a terra e o trabalho novos conflitos ou o aguçar dos velhos conflitos entre antigos e novos personagens rurais ou no cam po Uma racionalidade centrada no lucro na competência espe cializada e na competição legitimada como uma forma quase úni ca de realização do progressoquebra o que resta ainda de visões e vivências tradicionais de tempoespaço rural e de modos de vi da a que se aferram ainda os índios e os camponeses Criase praticamente um mundo rural sem mistérios onde cada gesto e cada resultado deve ser previsto de modo a as segurar a maior produtividade e a maior rentabilidade pos sível Plantas e animais já não são herdados das gerações an teriores mas são criaturas da biotecnologia as técnicas a serviço da produção da armazenagem do transporte da transformação dos produtos e de sua distribuiçãorespondem pelo modelo mundial e são calcados em objetivos pragmáti cos tanto mais provavelmente alcançados quanto mais cla ro for o cálculo na sua escolha e na sua implantação É desse modo que se produzem nexos estranhos à sociedade local e mesmo nacional e que passam a ter um papel determinante apresentandose tanto como causa quanto como conseqüên cia da inovação técnica e da inovação organizacional O todo é movido pela força externa dos mitos comerciais essa ra R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 3 9 por exemplo os pesqui sadores que se dedicam aos estudos dos sistemas religiosos de tradição afrobrasileira e em es pecial o candomblé ou do catolicismo popular em geral desestorificam o seu olhar e aprofundam muito uma etnografia de mitos símbolos e sig nificados profundos Já aqueles que investigam o protestantismo ou a Igre ja Católica como uma instituição social com plexa desculturalizam o olhar e se dedicam a questões sociopolíticas relacionadas a organiza ções formais da Igreja a situações de conflito e a relações de poder zão do mercado que se impõe como motor do consumo e da produção Nesse mundo rural assim domesticado implantase um im pério do tempo medido em que novas regularidades são bus cadas Muitas delas só se tornam possíveis quando tem êxito a vontade de se subtrair às leis naturais O respeito tradicio nal às condições naturais solo água insolação etc cede lu gar em proporções diversas segundo os produtos e regiões a um novo calendário agrícola baseado na ciência na técnica e no conhecimento3 O que Milton Santos diz aqui não nos é desconhecido E se no começo do segundo parágrafo ele emprega a palavra domestica do eis uma palavra bemescolhida Pois de fato bem sabemos que a junção do capital flexível as novas tecnologias aplicadas sobretu do à pecuária e à monocultura e como sua ciência sua lógica e sua ideologia invadem tanto o campo rural quanto todos os outros campos da vida no sentido agora conferido por Pierre Bourdieu a essa palavra ora propondo e ora impondo uma outra ética dirigi da à criação de saberes valores sentimentos e sociabilidades que gerem modos de vida tão modernosque terminem sabendo dis so ou não inteiramente submetidos a essa nova racionalidade Como tantos outros estudiosos da condição pósmoderna antecipam há já alguns anos tanto na cidade quanto no campo não são apenas algumas esferas da vida mais diretamente associa das ao capital e ao trabalho as que devem enquadrarse e serem cada vez mais regidas pela lógica dessa neoracioalidade e pela éti ca e política de seus modos de vida de sua neocultura se quiser mos mas todas as esferas se possível das vidas de todas as cate gorias de pessoas grupos humanos e comunidades sociais Juntos as novas técnicas e o novo capital deixam de ser co mo no passado exclusivamente de um domínio particular de atividade e se espalham por todo o corpo social tornandose verdadeiros regedores do tempo social4 R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 0 3 Milton Santos op cit p 243 cap 13 Espaços da racionalidade 4 Milton Santos op cit p 246 cap 13 E não apenas nos tempos para pensar e viver a temporalida de mas também uma nova ordenação dos espaços que vão da re lação entre os corpos às relações entre os poderes as proprieda des e as classes sociais Devemos no entanto desconfiar dessa expansão sem limites e nãoquestionável ou fracamente questionadas da lógica do ca pital flexível conduzido sobretudo pelas unidades de expansão do agronegócio em suas diferentes fases e faces Em primeiro lugar porque há diante dela por toda a parte uma resistência ativa de grupos e comunidades expropriados por ela Em segundo lugar porque há também uma outra resistência menos ativamenos mo bilizada mas nem por isso menos resistente Veremos mais adiante o mesmo geógrafo opondo à racionalidade do capital e da agricultura do mercado uma outra racionalidade ou mesmo outras contraracionalidades as do mundo da vida do trabalho ou se quisermos trazer aqui uma feliz expressão de José de Sou za Martins da agricultura de excedente5 Em todo o Brasil através de todos os espaços de sistemas de objetos e sistemas de ações e dos mais diversos grupos humanos e modos de vidas populares ou não entrevemos a ação de movi mentos sociais do MST ao SOS Mata Atlântica Pela via da questão agrária pela via da questão ambiental pela via dos direitos hu manos ou por outras vias de enfrentamento que a elas se somam e com elas interagem são inúmeras as unidades de ações sociais que se opõem à racionalidade ao poder e aos interesses da expan são globalizada do capital no campo como propõem no bojo de suas diferentes contraracionalidades outras e opostas alternati vas de gestão social de tempos e de espaços de vidas e de mun dos de vida e de trabalho De outra parte de igual maneira estamos diante de um múl tiplo e nada uniforme ou globalizado mundo rural Somos ali mentados por grãos frutas e folhas que ainda provêm bem mais da multivariança da agricultura familiar típica do campesinato tradicional e da expansão menos visível mas possivelmente mais sólida de novas alternativas de produção e gestão do ambiente e R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 1 5 Ver o seu sempre atual Capitalismo e tradiciona lismo São Paulo Pionei ra 1975 dos bens da terra como a agricultura orgânica a permacultura a agrossilvicultura e outras mais De um lado as imensas áreas uniformemente tomadas de pessoas e culturas tradicionais para abrigarem o gado ou a soja De outro a criação recente de áreas crescentes de produção agropastoril e mesmo madeireira regi das por princípios de sustentabilidade e solidariedade Longe na Amazônia a expansão de experiência dos povos da floresta co mo os seringueiros do Xapuri são exemplos de uma fecunda con traracionalidade Onde parece haver uma uniformização crescente e irrever sível podemos estar diante também de uma crescente diferen ciação de formas culturais de vida e modos sociais de trabalho no campo Comunidades indígenas ampliam suas áreas de espa çosreservas homologadas e pouco a pouco e perigosamente al gumas delas se integram a uma economia regional de exceden tes Comunidades negras rurais quilombolas bem mais do que contamos ou imaginamos até agora conquistam o direito de existirem em suas terras ancestrais de pleno direito Comunida des camponesas reinventam estratégias para se preservarem transformando todo o necessário para que o essencial de suas formas de vida não se percaAcampamentos dos movimentos so ciais da reforma agrária cobrem de lonas pretas tanto os espaços estritos das beiras de estradas quanto as terras de fazendas im produtivas e ocupadas Um campesinato modernizado em par te cativo mas em parte ainda livre diante do poder do agrone gócio não apenas sobrevive mas se reproduz com sabedoria Ao analisar transformações macroestruturais em todo o mundo em uma era de globalização Octavio Ianni somase a outros estudiosos do que está acontecendo ao lembrar que mesmo nos espaços mais aparentemente dominados pelo gi gantismo do que mudou as formas de vida comunitárias e tradicionais de ocupação e produção em multiespaços parti lhados de vida labor e trabalho não apenas resistem e sobre vivem mas em alguns cenários elas proliferam adaptamse e transformamse Ainda que essa transformação represente uma R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 2 progressiva perda de autonomia em nome dos pólos dominan tes de domínio da economia agropastoril Ianni lembra que o próprio agronegócio se expande a expensas da pequena agri cultura e mais ainda em aliança com pequenas e médias pro priedades agrícolas modernizadas e a meio caminho entre a eco nomia de excedente e a economia de mercado segundo José de Souza Martins6 Sabemos que tudo está mudando e nada mudou ainda in teiramente A começar pela desigualdade social a expropriação o empobrecimento de quem já era pobre e a expansão da nova racionalidade de que nos fala Milton Santos E podemos então concordar com Vera Salazar em uma passagem do documento apresentado em um seminário sobre a reforma agrária no Insti tuto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia A revolução tecnológica expressa na modernização da agri cultura a partir da década de 1970 representa esta transfor mação que no entanto não alterou significativamente a con figuração do quadro agrário brasileiro A concentração de terra e de riquezas no campo e na cidade as disparidades re gionais no que tange à renda dos agricultores ao predomínio de certos cultivos visando o mercado externo se mantiveram e se mantém reproduzindo e fortalecendo as distorções es truturais que definem e embasa a história da estrutura agrá ria brasileira7 A dupla resistência lembrada linha acima implica aquilo que mais nos interessa compreender É que tanto em sua atividade mobilizada quanto em sua tradicionalidade modernizada existem diferentes formas próprias ou apropriadas de pensar a vida e o mundo Voltemos por uma última vez aqui a Milton Santos Ante a racionalidade dominante desejosa de tudo conquistar podese de um ponto de vista dos atores não beneficiados fa lar de irracionalidade isto é de produção deliberada de situa R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 3 7 Vera Lúcia Salazar Pes soaEntre o rural e o ur bano Construindo gru pos de pesquisas Texto elaborado para a Mesa Redonda III Grupos de Pesquisa Agricultura e Desenvolvimento Regio nal Relatos de Experiên cias p 1 6 Octavio Ianni A era do globalismo Rio de Janei ro Civilização Brasileira 2002 ções nãorazoáveis Objetivamente podese dizer também que a partir dessa racionalidade hegemônica instalamse pa ralelamente contraracionalidades Essas contraracionalidades se localizam de um ponto de vis ta social entre os pobres os migrantes os excluídos as mino rias de um ponto de vista econômicoentre as atividades mar ginais tradicional ou recentemente marginalizadas e de um ponto de vista geográfico nas áreas menos modernas e mais opacas tornadas irracionais para usos hegemônicos Todas essas situações se definem pela sua incapacidade de subordi nação completa às racionalidades dominantes já que não dis põem dos meios para ter acesso à modernidade material con temporânea Essa experiência da escassez é a base de uma adaptação criadora à realidade existente8 Formas culturais e populares de racionalidades e de sensibi lidades que poderiam parecer antiracionais e ultrapassadas Sis temas de idéias e estilos de ação fora do tempo e do lugar No en tanto eles podem ser pensados como contraracionalidades Como a defesa de espaços de vida e de trabalho no campo não apenas postos à margem mas autosituados em zonas de frontei ra geográfica social e simbólica de um processo proclamado por seus realizadores como algo inevitável benéfico e irreversível de modernização do campo Uma modernização insustentável que traz para o mundo rural escalas e interações de tempoespaço tí picas da empresa fabril moderna Com a diferença de que lá na cidade as fábricas estão ainda repletas de trabalhadores enquan to no campo largos espaços de produção de mercado precisam es tar cada vez mais vazios de braços humanos para dar lugar às poucas máquinas que primeiro substituíram famílias de campo neses e depois as próprias pessoas de trabalhadores volantes As sim diante do avanço expropriador e uniformizante do capital flexível todas as supostas antiracionalidades que a ele se opõem podem ser compreendidas como diferentes alternativas de outras racionalidades R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 4 8 Milton Santos op cit p 246 cap 13 PROXIMIDADE E DIFERENÇA SISTEMAS DE PRODUÇÃO MODOS DE VIDA E VIVÊNCIA DE TEMPOS E ESPAÇOS NOS MUNDOS RURAIS BRASILEIROS Retomemos de forma mais ordenada aqui os argumentos que acabam de nos deixar entre as linhas acima Seja porque toda a expansão do poder dos interesses e da racionalidade do agrone gócio provoca a persistência de antigos e a emergência de novos poderesmodos de vida e racionalidades rurais e populares Mil ton Santos seja porque no fim das contas a expansão do ca pital flexível agropecuárionão alterou significativamente a configuração do quadro agrário brasileiro Vera Salazar po demos pensar em perguntas opostas às respostas que apontam para uma uniformização rotinizante dos espaços de vida e de trabalho dos mundos rurais brasileiros sob os novos tempos da modernização capitalista Não estaremos nós diante de uma persistente e essencial no sentido de nãomarginal presença de antigas e novas múltiplas formas de interação entre tempose espaços que caracterizam e seguem caracterizando a experiên cia pessoal interativa e social dos diversos atores e dos diversos modos de vida das diferentes modalidades de presença humana no campo hoje Quero retomar aqui algumas idéias de José de Souza Mar tins em Capitalismo e tradicionalismo Faço a síntese das que nos tocam de mais perto aquiA pequena unidade camponesa de tra dicional agricultura familiar não é marginal à expansão do capi tal agrário e nem é uma experiência social em extinção Ao con trário ela é orgânica e essencial à expansão do capitalismo no campo Lembremos José de Souza Martins Essa agricultura tradicio nal não é uma agricultura de consumo mas uma agricultura de ex cedente Seus produtores geram tanto os bens de consumo fami liar quanto e em múltiplos casos principalmente o excedente que é destinado à troca e à venda em mercados vicinais locais e mes mo regionais Pequenos proprietários e produtores arrendatários R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 5 de terra plantam e criam diretamente para o mercado e em dife rentes situaçõestendem a tornarse cativosde produtores maio res ou mesmo de empresas que financiam a produção e detêm o poder de compra de seus produtosHá um momento em quedes crevendo estratégias de produção e venda de produtos da terra em uma região por onde eu mesmo passei anos depois em pes quisa de campo ele diz o seguinte Vêse que na montanha tanto no Alto Paraíba quanto na Mantiqueira a população rural produz diretamente os bens da sua subsistência feijão e um excedente de aproximada mente 14 do produto para semente e comércio Na planície contudo a população rural produz menos da metade do fei jão que provavelmente consome Mas na planície e na mon tanha agora apenas o Alto Paraíba estimo que menos de 10 do leite produzido destinase ao consumo dos próprios pro dutores A sua produção tem em vista o mercado9 Podemos situar essa agricultura rústica camponesa familiar ou que nome tenhaem diferentes pontos a meio caminho de uma linha de alternativas que começa aí sim em unidades familiares ou mesmo coletivas de produção de consumo e as unidades em presariais de produção de mercado Concordo com José de Souza Martins em que fora o caso das comunidades indígenas e mes mo assim nem todas e nem sempre e fora o caso de algumas comunidades muito isoladas mesmo de um mercado local ou de produção muito limitada que caracterizariam uma restrita pro dução de consumo na qual se troca e mais ainda se vende apenas o pouco que sobrou do consumo destinado ao grupo familiar ou à unidade maior a comunidade todas as outras constituem as di ferentes modalidades de temposespaços produtoras de econo mias de excedente A própria conversa cotidiana seja entre vizinhos amigos e parceiros do trabalho seja em âmbito familiar ali onde as opi niões das esposas são bastante mais importantes do que se ima R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 6 9 Op cit p 10 11 Devo dizer que pesquisando vários anos mais tarde comunidades campone sas nas mesmas regiões de montanha Catuçaba em São Luís do Parai tinga no Alto Paraíba e Joanópolis na serra da Mantiqueira paulista encontrei dados bastante próximos E eles valem também para a venda de outros produtos como milho cebola porcos e gado de corte gina em geral versa quase sempre sobre assuntos ligados à lida com as plantas eou os animais E nelas as questões relativas às estratégias de comercialização local e regional dos excedentes ga nham um lugar cada vez mais central Economias familiares de tipo tradicional camponês seja na direção de uma ainda maior tradicionalidade seja como no caso de alguns assentamentos da reforma agrária não situadas à margem de sistemas dominantes de economias de mercado mas integradas em e entre os seus es paços territoriais de natureza sociedade e mesmo de cultura Podemos concordar com Graziano Neto e também com vá rios outros estudiosos dos processos de transformação da agricul tura da pecuária e mesmo de atividades de extração direta dos bens da terra indústria madeireiramineração etcquando lem bram que a suposta ou real modernização do campo brasileiro foi bastante conservadora Ela se realiza bem mais no plano agrí cola do que no agrário Ela moderniza formas de apropriação e de concentração da propriedade fundiária e não na direção ver dadeiramente moderna Isto é a de uma efetiva democratização social e econômica do acesso à terra e às efetivas condições sociais e tecnológicas do trabalho com a terra Modernizamos tecnoló gica e capitalisticamente a agricultura criamos às pressas um mo delo importado de agronegócio sem havermos antes procedido a uma modernização estrutural do campo10 Os sucessivos programas de reforma agrária seguem desti nando aos homens da terra porções residuais de lotesem assen tamentos precariamente assistidos enquanto se empenham uns após os outros em apoiar os latifúndios de agropecuária de mer cado e a incentivar a expansão do agronegócioà custa de um cres cente deterioro das condições de vida de famílias e de comunida des rurais e de uma degradação em vários espaços irreversível do meio ambiente como vejo ocorrer agora no norte de Minas onde trabalho com uma equipe de pesquisa nas duas margens do rio São Francisco Assim se quisermos estender um olhar geográfico não ape nas ao que parece mais visível mais dinâmico e mais conflitivo R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 7 10 Francisco Graziano Neto Questão agrária e ecologia Crítica da mo derna agricultura São Paulo Brasiliense 1982 nos diferentes mundos nãourbanos do Brasil para aí incluirmos também os territórios e as comunidades das diferentes outras étnicas no país poderemos trabalhar com três amplas categorias de ocupação de territórios de apropriação da terra de manejo do ambiente de criação de tipos de vida social e suas diferentes culturas E nelas de diferentes modalidades de experiência de percepçãocompreensão e de recriação de seus diversos espaços tempos Enfim daquilo que em boa medida atribui substância geoexistencial ao que Milton Santos lembrava linhas acima como as nossas diferentes racionalidadesPois pensar racionalmente um mundo começa por criar os padrões tempoeespaço em que su jeitos sociais criam os cenários entre a natureza e a cultura que os recriam como múltiplos e interativos atores culturais dos dra mas de vidas que compartem E este seria o momento de lembrarmos uma vez mais que tal como acontece em outros campos da experiência humana sobram vivências pesquisas e teorias a respeito da construção cultural de sentidos de tempoeespaço em sociedades indíge nas e sociedades regionais tradicionais entre terras de negros terras de santos e terras de camponeses patrimoniais do que en tre unidades rurais modernizadas quaisquer que sejam as suas dimensões e vocações de economia Conheço inúmeras pesqui sas sobre o viver o sentir e o saber de tempos e de espaços em comunidades indígenas ou em comunidades étnicas tradicio nais como as da ilha de Bali estudadas pelo mesmo Clifford Geertz do que em áreas de frentes pioneiras e de expansão em prego aqui ainda categorias de José de Souza Martins em ter ritórios de unidades camponesas modernizadas como tantas no Sudeste e no Sul do Brasil em latifúndios de economia de mer cado e mesmo em assentamentos e acampamentos da reforma agrária Essa diferença de ênfase de olhares diferentes entre antropó logos geógrafos e outros cientistas sociais por certo acompanha o que parece de fato darse a ver na diversidade de nossos ter ritórios paisagens e unidades sociais situadas fora das cidades R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 8 Acompanha também a própria relação existencial da experiência pessoal interativa e social da relaçãocriação de tempoespaço Em termos que vão de uma geografia das paisagens a uma an tropologia dos dramas sociais podemos estabelecer um gradiente aliás já sugerido acima11 De um lado ficam as comunidades so ciais e culturas associadas à variedade de produções de consumo entre indígenas quilombolas camponeses tradicionais e quase isoladosA meio caminho coloquemos as unidades rurais associa das à produção de excedentes Entre eles demarquemos posições Na linha de fronteira com as comunidades de consumo estão os outros produtores familiares de padrão camponês tradicional co mo os das culturas caipiras de São Paulo sejam eles proprietá rios sitiantes moradores agregados parceirosA meio caminho fi cam os pequenos produtores camponeses ainda patrimoniais ou algo já mais modernizados Na posição mais próxima às unidades de produção de mercado até pelas relações de proximidade aco modação forçada e conflito com ela ficam os lavradores antigos e recentes das terras apropriadas pela reforma agrária Finalmen te no pólo oposto situamse as unidades típicas da produção de mercado caracterizadas hoje pelo agronegócio Entre os sujeitos popularesficam aí pequenos produtores cativos do mercadopro dutores já especializados para o mercado Estão também todos os múltiplos trabalhadores ruraisentre condutores especializados de máquinas agrícolas e trabalhadores volantes Bem sabemos que tanto em casos individuais quanto em ter mos de comunidades inteiras quase já não existem mais tipos puros de sujeitos rurais Um bom exemplo dessa variância cres cente são as comunidades muito tradicionais de pequenos agri cultores do vale do Jequitinhonha e de quantos outros vales no Brasil que justamente para poderem manter a propriedade e a vida rural tradicional migram sazonalmente para terras distan tes de São Paulo em busca de trabalho assalariado associado à mais moderna e devastadora produção de mercado Deixemos de lado os senhores do poder e do capital e foque mos o olhar sobre os outros homens da terra a começar por R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 9 11 Tomo emprestada es ta categoria que passa do teatro à antropologia através de estudos bas tante conhecidos de Vic tor Turner Drams fields and metaphors symbolic action in human society Ithaca Cornell Univer sity Press 1985 pessoas famílias e comunidades de povos indígenas e quilombo las até todos os outros se possível os agricultores e pecuaristas agricultores camponeses de produção ainda familiar pequenos proprietários sitiantes tradicionais os trabalhadores rurais par ceiros agregados e moradores ou não trabalhadores parcei ros meeiros e no limite arrendatários Sigamos adiante em di reção aos outros herdeiros deserdados e expropriados da terra os camponeses os expropriados os trabalhadores diaris tas volantes os peões de fazendas os acampados nas beiras de estrada e os assentados da reforma agrária enfim os homens po bres da terra12 Em que espaços eles habitam vivem trabalham se reprodu zem e pensam a vida e o mundo Em que tempos se movem e co mo representam o seu passar Como nesta era em que mesmo no campo tudo muda e permanece como está tudo se move a co meçar pela vida dos migrantes e aqui e ali parece ainda tão igual a sempre tão parado no ar Claro não chegarei perto de mui tas sugestões de respostas a essas perguntas e àquelas que suas res postas haverão de reabrir Creio no entanto que poderia ser pro veitoso abrirmos nossos horizontes aos seus limites máximos e realizarmos juntos um exercício de precária classificação das aproximações e diferenças entre o habitar espaços criar espaços viver espaços e pensar no tempo os espaços da vida RUGOSIDADES OS TEMPOSESPAÇOS ONDE O RELÓGIO É TAMBÉM O SOL Em um livro que se tornou depois um clássico na antropologia após descrever o modo de vida dos Nuer um povo nilota cria dor de gado entre suas aldeias e os acampamentos EvansPrit chard conclui um parágrafo após comentar o viver e o sentir do passar do tempo deles com uma frase pouco típica para um in glês já habitante de tempos em que os seus pais haviam desco berto que tempo é dinheiro Ele conclui dizendo os Nuer têm R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 0 12 Será fácil ver que es tou empregando aqui nomes comuns até mes mo em títulos de livros sobre as diferentes cate gorias de trabalhadores diretos entre os tempos espaços sociais da terra sorte A felicidade deles está em não serem ainda ou sempre co mo nós somos13 E o que aproxima comunidades indígenas entre isoladas contatadas integradas comunidades quilombolas e as ainda existentes e cada vez mais raras comunidades regionais cam ponesas semiisoladas é o fato de que entre elas para quem o tempo ainda é mais comida do que dinheiro o correr da vi da se passa no interior de uma natureza ainda muito pouco so cializada Ainda apenas aos fragmentos realizada e pensada co mo cultura Como uma boa parte do que se obtém para o sustento fami liar e a reprodução da vida coletiva é obtido da natureza por co leta caça e pesca os espaços da vida e do trabalho ainda são em uma larga medida os da própria natureza Depoimentos de se ringueiros do Acre revelam um existir no mundo e um viver es paçostempos ao mesmo tempo próximos e bem distantes dos nossos Ali onde a medida de minutos ou de horas pode ser da da pelo tempo de coleta da seringa em uma árvore e a medida de um dia é a soma das coletas de várias árvores mais os desloca mentos entre a casa a colocação e elas Uma múltipla racionalidade pois cada etnia é um caso e ca da comunidade cultural um outro convive e representa os es paços da vida segundo padrões talvez bastante mais diferenciados e complexos do que podemos imaginar Pois muitas das represen tações que aos poucos uma cultura modernaeracionalizadare pensa abole ou simplifica ainda são essenciais entre indígenas quilombolas e seringueiros Se eu perguntar a uma estudante de mestrado em geografia o que é a floresta onde ela está e que formas de existência habi tam ali é provável que ela limite os seus espaços ao que lhe é vi sível Tudo o que existe diante de seus olhos e que ao redor não é nem cidade e nem campo A terra as plantas e de modo es pecial as árvores que a caracterizam como uma floresta Ou se ela for mais rigorosa uma extensão territorial de mata atlântica caracterizada por formações vegetais semidecíduas característi R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 1 13 E E EvansPritchard Os Nuer São Paulo Pers pectiva 1978 p 116 cas de algumas florestas de transição Eu também tenderia a ver epensar a floresta como aquilo que eu vejo e percebo como a flo restadiantedemim De uma maneira perceptual e existencial uma floresta é o que eu vejo e represento como esta floresta Um caiapó provavelmente levaria mais tempo para respon der o que é uma floresta Ele provavelmente começaria por indi car tudo aquilo que não é visível pois está debaixo da terra mi nerais águas raízes plantas e animais subterrâneos e algo mais Depoisele por certo desdobraria a floresta em vários estratosseis ou sete de acordo com o tipo de vegetais que predominam de acordo com os frutos que habitam cada andar e de acordo com os animais que existem em cada espaço Aquilo que uma botâni ca classificaria como vegetação rasteira subbosque bosque e dosselpara o nosso caiapó poderia desdobrarse em outras e bem mais minuciosas derivações E a sua floresta não acabaria no dos sel das árvores mais altas Pois muito possivelmente ela se esten deria até o espaço acima da floresta onde voam os seus pássaros que voam mais alto Com mais coragens e temores do que nós ele e também mui tos camponeses quilombolas ou caboclos povoariam a nossa flo resta natural de seres que nem por não serem da nossa natu reza não seriam menos reais Seres sub e supernaturais dos espíritos dos mortos aos emissários dos deuses benévolos uns terríveis outros E seres que interagem entre eles com os animais e as plantas e até com os seres humanos De sorte que estar na flo resta e obter delas o sustento implica não apenas atos técnicos mas gestos entre o mágico e o sagrado Os próprios seres da natureza das águas e do vento às plan tas e aos animais são dotados de identidades de forças e de for mas de interação conosco bem maiores do que poderíamos su por Entre camponeses católicos os ciclos da vida natural entre a floresta os campos de pastagens os terrenos de lavouras sazonais ou permanentes o pomar ao redor da casa e a horta próxima à cozinha são diversos e interligados temposlugares regidos pelas forças da naturezatransformados pelas forças do trabalho huma R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 2 no e ordenados por princípios e ritmos extranaturais que entre tecem a maior parte das atividades agropastoris de tempos ritos e gestos ora mágicos ora religiosos Mesmo essas sociedades tradicionais de uma economia de consumo não vivem exclusivamente dentro de seus limites pos suem sistemas de intertrocas de pessoas de bens e de mensagens que deveríamos mais invejar do que apenas pesquisar14 E siste mas que mesmo nos espaços menos socializados pelo trabalho humano na Amazôniaescapam do domínio interno de uma mes ma aldeia e geram amplos sistemas de trocas de bens de consu mo intertribais Embora possa parecer supérfluo aqui devo lembrar que al gumas comunidades não tanto rurais mais neoruralizadas re tornam do mais moderno e urbano e desejos de experiências de vida e de partilha de temposespaços que em vários momentos lembram os que sumariamente descrevi aqui Algumas pequenas comunidades religiosas tanto as de origem brasileira como o Santo Daime quanto de origem asiática como os Hare Krishna retornam à natureza voltam ao campo e buscam reencontrar em uma vida mais próxima do vento e dos deuses do que dos re lógios e dos mercados uma vida ao mesmo tempo sagrada e na tural A começar por uma complexa sacralização da própria na tureza Algumas nas florestas do Acre Outras compram barato algumas terras altas na Chapada dos Veadeiros em Goiás Outras vivem ao nosso redor perto de Parati ou na vizinhança de Pinda monhangaba não muito longe de São Paulo15 Assim vivem an cestralmente temposespaços inseridos ainda nos domínios da natureza ou buscam retornar a essa mesma relação com a vida e o mundo uns porque são primitivos demais e outros porque cansados demais da complexidade do mundo pósmoderno Se rá que como os Nuer e bem mais do que nós de um lado e do outro eles são felizes R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 3 14 Devo lembrar aqui a nova ediçãoe primorosa do Ensaio sobre a dádiva de Marcel Mauss em 2004 pela Editora Cosac Naify de São Paulo 15 E não devemos esque cer que ainda existe no Brasil uma associação Abrasca de comunida des alternativas as quais mesmo quando não tão associadas a alguma reli gião nativa ou exótica procuram viver na e da natureza e retornar a formas de vida extre mamente simples e com a menor relação possível com o mercado local e sobretudo regional Não tenho os dados aqui agora mas lembrome de há muitos anos ter examinado no Programa de PósGraduação em Geografia na Universi dade de São Paulo uma dissertação a respeito de uma dessas comunida des alternativas a Frate runidade na serra dos Pireneus em Pirenó polis Goiás Tive na Unicamp uma mestran da de sociologia que de senvolveu uma pesquisa sobre as relações entre a filosofia vedanta as co munidades Hare Krish na e a ecologia profunda Creio que tendem a ser escolhas de pesquisas ca da vez mais comuns O fato de que uma delas te nha sido na geografia e a outra na sociologia bem demonstra que essa ten dência pouco tem a ver com as supostas excen tricidades dos antropó logos RUGOSIDADES E MODERNIDADES OS ESPAÇOS RURAIS ONDE O TEMPO É O RELÓGIO E É O SOL Uma inesperada mas oportuna maneira de procurarmos com preender algo das experiências de espaçotempo entre as comu nidades diferenciadamente situadas nos diferentes pontos de in tervalo entre as culturas e comunidades de pequena socialização de espaços da natureza e de uma economia de consumo ou de tro cas de produtos por produtos dentro de estritas normas e ritos de intercâmbio entre categorias de produtoresatorese as que nos esperam mais adiante seria o começarmos por pensar como cul turalmente tais trocas de produtos por produtos ou de mercado rias por dinheiro são vivas entre os temposespaços sociais de co munidades camponesas ainda tradicionais mas já integradas no mercado como economias de excedente de acordo com José de Souza Martins Claro estas já são comunidades rurais onde o trabalho com a terra é dirigido a produzir além do consumo o excedente co mercializável Plantase coletase e criase para viver e para ven der Trocase vendese e comprase trabalho por bens bens por bens trabalho e bens por dinheiro E disso se vive a vida na ro ça A meio caminho entre uma natureza ainda não inteiramente socializada e incorporada ao domínio da cultura aqui num du plo sentido da palavra e a cidade o lugarurbano dos recursos e do mercado regional assim pessoas famílias e comunidades ru rais vivem em espaços cujo lugar mais central é o sítio a peque na propriedade ou posse camponesa cuja extensão mais familiar é o bairro rural e seus equivalentes Uma vida rural a que no li mite mais costumeiro cabem qualificadores como caipira ser taneja rústica tradicional ou patrimonial e a que no limi te mais próximo a uma nova racionalidadecabem nomes como moderno ou modernizada Fiquemos com as formas de vida e de trabalho mais típicas do campesinato tradicional de produção familiar Entre elas gra máticas sociais que configuram sistemas de valores de identida R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 4 de e de princípios étnicos e éticos de interação envolvendo ne las inclusive preceitos que regem trocas vendas e compras Sis temas tradicionais que prescrevem todo um complexo processo de transações de bens e de serviços Intertrocas econômicas pa recendo serem apenas comerciais na verdade são interpessoais afetivas sociais simbólicas antes ou ao lado de serem relações que envolvem dinheiroPoisbem mais ali do que em esferas mais modernizadas de transações nem tudo o que se produz é con sumo nem tudo o que troca é mercadoria Mais do que nós e com melhores motivos as pessoas comem comida e símbolos e trocam bens e sentidos de vida No que se consome e no que se troca ou vende as coisas que passam de mão em mão mesmo que a troco de dinheiro variam de acordo com aquele com quem se troca com aquilo que se troca e com a qualidade da situação em que se comercia Em um de seus estudos sobre esse assunto ao recriar o con ceito de campesinidade Klaas Woortmann trabalha com os dife rentes sentidos e valores de uma ética camponesa E em Com parente não se neguceia ele descreve os diferentes círculos de in terações entre categorias de pessoas e categorias de coisas que se trocam vendem e compram E ele demonstra como a relação fa miliar parental vicinal e outra mais determinam bem mais o sen tido do valor da mercadoria do que ela própria16 Como costumamos dizer e relembrar sempre na antropolo gia a própria economia é uma das muitas dimensões de uma cul tura Produzimos bens e vendemos trabalho eou mercadorias Mas através de pessoas e de coisas mesmo num mundo onde pessoas têm valor como coisas e coisas como pessoas na verda de o que trocamos nos diferentes temposespaços dos diversos mercados possíveis são símbolos e significados valores e sentidos de vida Um mesmo paicamponês que em novembro se endivi da para comprar uma máquina duvidosa em março duplica a dí vida para não deixar de casar a filha caçula com uma grande fes ta Modos políticas éticas e estéticas de vida que resistem ainda a uma entrega completa à racionalidade do mundo dos negócios R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 5 16 A respeito dessa ques tão e de outras rela cionadas também de maneira direta a expe riências e percepções de tempo e espaço quero indicar aqui alguns tra balhos do casal Woort m a n n D e E l l e n Woortmann O sítio camponês publicado originalmente no Anuá rio Antropológico n 81 de 1983 pela Editora Tempo Brasileiro do Rio de Janeiro De Klaas Woortmann além do longo artigo aqui men cionado que foi origi nalmente publicado no n 69 de um caderno da Série Antropológica De partamento de Antropo logia Universidade de Brasília sd um outro artigo A comida a famí lia e a construção do gê nero feminino origi nalmente publicado na revista Dados v 29 n 1 de 1986 no Rio de Janeiro Livros posterio res de Ellen e Klaas reu niram esses artigos a outros que recomendo também enfaticamente apregoa e vende atribuindo a quem a ela não adere a imagem do atraso No interior de contraracionalidadesou de outrasraciona lidades segundo Milton Santos 2002 uma cultura derivada de uma socialização da natureza bastante mais completa e complexa do que nos casos anteriores ainda olha para o sol mas já observa o relógio para sentir o passar do tempo E tanto pensa em paisa gens naturais quanto no valor de mercado do alqueire de terra pa ra pensar os espaços da vida e do trabalho De outra parte os bens da terra são produzidos observando uma mescla de tecnologias pa trimoniais nada indica que as vendas de enxadas tenham dimi nuído no mercado brasileiro e tecnologias modernas e importa das17 Costumes antigos e ritos religiosos ainda estão presentes no preparo do terreno nas festas de colheita em muito maior escala do que as nossas medidas acadêmicas alcançamE o passar do tem po ainda subordina o relógio ao sol e o calendário oficial ao das festas populares e às marcações naturais das estações do ano Não obstante mesmo no mundo rural tradicional os hori zontes da vida tornamse cada vez mais voltados para o mundo da cidade e cada vez mais as cidades maioresdominam as cida des menores que cercadas por áreas rurais se tornam eixos de re ferência deles e um ponto a meio caminho entre o sítio e a cida de grande Espaços urbanos tendem a ser a cada dia mais o lugar de destino dos filhos dos homens e das mulheres da terra quando não deles próprios E as músicas sertanejas que versejam sobre a saudade da minha terra são o mais triste e dolente testemunho disso Não podemos esquecer que a incorporação da luz elétrica a um número agora grande e crescente de áreas rurais e a chegada vertiginosa dos meios de comunicação de massa em que o assis tir televisãose associa ao antigo costume de ouvir o rádioe com pete com este de uma maneira bastante mais semioticamente marcada colocam a cidade e a racionalidade mais ilusoriamen te moderna dentro até de alguns últimos ranchos de pauapique A vida cotidiana quando medida em seus pequenos ciclos do passar do tempo uma semana médios ciclos um ano agrí R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 6 17 Novas práticas novas tecnologias e novos insu mos entre maquinários e produtos químicos não raros impostos aos agri cultores patrimoniais pela mídia a serviço de bancos e de empresas multinacionais que não raro também acarretam o endividamento que torna o produtor pobre porém livre em um tra balhador dos credores de suas dívidas Não são poucos e crescem bas tante os casos de peque nos proprietários que perdem as suas terras como pagamento de dí vidas cola e longos ciclos os muitos anos de uma vida em boa me dida é ainda centrada no lugar rural onde a vida afetiva e a vida de trabalho se associam nos espaços consagrados do sítio campo nês a pequena propriedade familiar Em segundo lugar em seus entornos naturais e na comunidade vicinal próxima o arraial o bairro rural o povoado a vila o patrimônio Mas sítios e povoa dos camponeses tendem a ser mais e mais espaçoslugares satéli tes das cidades sejam elas a sede do município as cidadesmerca do ou mesmo as cidades de romaria e devoção18 E bem sabemos uma das diferenças de percepção espacial mais importantes será justamente o deslocamento do eixo das relações tendo como fo co o lugar onde vivo e trabalho e a cidade Entre as comunida des mais isoladas de predominância de economia de consumo o centro da vida é ainda um espaço natural fracamente socializado e a cidade é um referente tempoespacial difícil e distante Entre as comunidades camponesas tradicionais o centro da vida vivida e pensada é uma quase sinuosa linha que passa pela natureza de mora no lugar de trabalho e de natureza socializada e termina na cidade bastante mais marcada e próxima nas unidades sociais de economia de excedente do que nas anteriores Já entre as comuni dades e culturas próximas de ou já plenamente integradas em uma economia de mercado o espaçotempo de referência da vida pen sada e vivida é o da cidademercado Os lugares rurais são espaço de passagem e mais de um trabalho impessoal do que de vida e a natureza é um referente ora distante demais ora hostil o bastan te para valer apenas quando dominado apropriado e destruído MODERNIDADES E FALSAS MODERNIDADES ESPAÇOS RURAIS ONDE O PASSAR DO SOL JÁ NÃO MARCA MAIS AS HORAS E NEM A LUA O PASSAR DOS DIAS O simples viajar e ver desde a estrada longas paragens homogê neas de uma paisagem despovoada de bichos a não ser o gado e de pessoas a não ser os raros e passageiros trabalhadores even R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 7 18 Das pesquisas de campo que fiz em Goiás e em São Paulo com co munidades camponesas tradicionais gostaria de indicar a leitura de al guns capítulos de livros derivados de três delas Plantar colher comer Rio de Janeiro Graal 1978 A partilha da vida Taubaté GEIC Cabral 1995 O afeto da terra Campinas Editora da Unicamp 1999 tuais permite ao olhar de quem passa a imagem dos espaços de vida e trabalho de mulheres e homens que são agora os trabalha dores das solidões da terra e dos senhores do agronegócio As extensões homogêneas dos canaviaisdas plantações de so ja dos eucaliptais As paisagens que foram um dia florestas ou porções do cerrado ou mesmo frações bem menores de terrenos de policultura camponesa A uniformização quase absoluta da paisagem a derrocada da biodiversidade e de uma corresponden te humana sociodiversidade Eis a paisagem múltipla e no entan to tão uniforme dessa ilusória socialização extrema de espaços naturais Para que a terra produza em excesso o mito tecnoló gico da produtividade tanto seres e grupos humanos são reti rados das paisagens anteriores quanto a própria terra é subjuga da tornada plana vazia do que não sejam os espaços vazios da produção exaurida de recursos naturais e impregnada das quí micas do agronegócio A uma domestificação uniformizante dos espaços naturais ou patrimonialmente sociabilizados pelo trabalho da agricultu ra familiar corresponde uma absoluta entrega de temposespa ços rurais ao domínio da cidade Entre a máquina e a mídia o universo da racionalidade do modernourbano domina as pai sagens naturais e humanas do campo Não será ao acaso que a maioria dos seus trabalhadores braçais ou vivem em cidadesdor mitório próximas ou migram de espaços muito distantes como o vale do Jequitinhonha e vivem provisoriamente na periferia pobre das cidades Trabalhadores sazonais e impessoais Volantes voláteis que em geral sequer sabem em que lugar estão trabalhando por uma manhã um dia um par de dias Não é também ao acaso que em boa medida o trabalho realizado por essas turmas de trabalha dores volantes é bem mais o de queimar derrubar e colher do que o de tratar do solo feito por máquinas e semear A racionalidade empresarial imposta ao campo pouco a pouco inverte todos os eixos de uma lógica das relações socie dadenatureza e de uma ética nas interações entre as diferentes R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 8 categorias de atores culturais envolvidos em suas diferentes eco nomias e em seus diversos modos de vida Os espaçosvalor pas sam a ser os mais inteiramente entregues às monoculturas de mercado Isso em que pese o fato de que um número crescente de agroempresas redobre retóricas em favor da preservação do meio ambienteA transferência de símbolos e de significados in terativos típicos da fábrica moderna para espaçostempos rurais com foco sobre o binômio competênciacompetitividade em to dos os momentos e lugares da vida de pessoas e de comunida des desqualifica experiências e maneiras de ser e de produzir tí picos do campesinato No entanto uma típica e neocapitalística nova racionalida de da modernidade no campo brasileiro é falsa e enganosa Em quase todas as regiões modernizadas através da expansão de an tigas e novas alternativas de unidades de mercado no campo os mais arcaicos modos e métodos de expropriação da terra e de apropriação da força de trabalho disponível migrante e miserá vel estão ainda em plena vigência O agronegócio das empresas agrícolas pastoris madeireiras e de mineração preserva e mo derniza sistemas de trabalho fundados na escravidão na semi escravidão na servidão na exploração do trabalho de mulheres e de crianças Isso significa que a absoluta racionalidade da mo dernização do campo brasileiro se apóia organicamente em al ternativas bastante précapitalistas de conquista da terra e de posse e uso do trabalho19 Assim da mesma maneira como vemos pequenos produto res familiares sitiantes modernizados em luta contínua para se apropriarem precariamente de uma semelhante racionalidade e de equipamentos e padrões de trabalho pelo menos proporcio nalmente próximos aos do agronegócio vemos de outra parte as frentes de expansão capitalistas empregando as mais residuais es tratégias de apropriação da terra e do trabalho E não nos espan temos em imaginar que procedimentos semelhantes com outras normaspessoas e palavrassejam empregados também em unida des rurais de racionalidade empresarial no sul dos Estados Unidos R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 9 19 Lembro José de Souza Martins uma vez mais Embora as relações de produção indicadas co mo as de colonato e de arrendamento em espé cie não se configurem como tipicamente capi talistas é preciso não co meter o engano de atri buir as tensões da frente pioneira a essa atipici dade e portanto a um antagonismo de outra espécie capitalismopré capitalismo Essas rela ções são na verdade as possíveis e necessárias à acumulação e reprodu ção do capital Daí que a frente pioneira tenha sempre se apresentado como expressão limite do capitalismo no cam po e ao mesmo tempo tenha se apoiado em re lações sociais fundamen tais nãotipicamente ca pitalistas escravatura colonato arrendamento em espécie Na verdade o que caracteriza o capi talismo no campo não é a instauração de relações de produção típicas for muladas em termos e de compra e venda de força detrabalho por dinhei ro O que a caracteriza é a instauração da proprie dade privada da terra is to é a mediação da ren da capitalizada entre o produtor e a sociedade Op cit p 49 50 da América O que seria da produção agrícola de lá sem o traba lho clandestino e semiservil de trabalhadores mexicanos Em termos do que se passa na esfera das imagens e idéias de configurações de culturas e entre culturas sabemos que através de um processo bastante bemconhecido em um primeiro mo mento as imagensidéias e as pautas de identidade e de princípios de relacionamentos entre categorias sociais deentre pessoas en tre elas e o mundo natural e entre elas e os símbolos e significa dos do correr da vida cotidiana são aos poucos trazidas de lon gee propostas e impostas de vários modos Um estilo tradicional de vida no seu todo e em cada um dos seus campos começa a ser pouco a pouco desqualificado quando os agentes do progresso traduzem como atrasotudo o que não é o seu espelho Tais con traimagens e idéias em que o negócio toma o lugar da vida en quanto o country rotula o sertanejo ou o caipira como res quícios ou reminiscências a meio caminho entre o preservado e o pitoresco Em um segundo momento padrões e sistemas de tais novas pautas do ser viver pensar e produzir são internalizados a co meçar entre os mais jovens moças e rapazes pelos atores sociais populares e são incorporados como modernos e contraditórios valores entretecidos com o que é próprio de suas culturas patri moniais Ressalto que as diferenças e as divergências entre gera ções entre pais e filhos têm aqui um papel muito grande Finalmente um novo campo de símbolos de sentidos de vi da e de significações do mundo de racionalidades em Milton Santos se sobrepõe tornando artificialmente moderno o que era tradicional e transformando em folcloricamente típico o que antes fora próprio O que equivale em transformar pouco a pouco a vida rural em um simulacro da urbana e o que era ri tual da comunidade em espetáculo para uma platéia de outros Assim da culinária às crenças religiosas da vestimenta aos ritos da comunidade camponesa das éticas e técnicas do labor e do trabalho às próprias estéticas da vida tudo se redefine no todo ou em partes relevantes e crescentes nas diferentes culturas ru R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 6 0 rais que já utilizam o relógio e o trator mas ainda consideram importante perguntar aos sinais naturais do tempo como have rá de ser o inverno que se aproxima Mais do que na solidão das áreas de planuras deserdadas da monocultura é talvez nos cenários das grandes festas da moder nidade rural que as diferenças se tornam social e simbolicamen te mais visíveis Pois aqui as festas comunitárias aos santos pa droeiros e aos momentos de celebração da solidariedade familiar e vicinal transformamse nas grandes festas de produtos ou nas grandes feiras de pecuária em que o sucesso é medido pelas cifras de milhões nas compras e vendas de bois e vacas ou nas festas de peão de boiadeiro em que os rituais se transformam em espetáculos as tradições em atrações e em que os cenários dos acontecimentos se deslocam dos adros de igrejas e das praças das pequenas cidades para os grandes estádios consagrados a eventos regidos por competições premiadas onde homens e ani mais competem entre si e com outros homens20 Essas grandes festas e feiras em que a máquina e o produto substituem o san to e a pessoa são a melhor metáfora da modernização uniformi zante do campo Mas se assim é podemos prosseguir com ela para pensar o seu outro lado Longe dos grandes palcos e nos intervalos dos pi cadeiros não são poucas as expressões da vida rural camponesa que por ali também circulam Onde a um primeiro olhar to dos os espaços do acontecer parecem dominados por uma mes ma cultura de celebração country dos imaginários globalizados do agronegóciocoexistem inúmeras áreas liminares de fronteiraUm domínio simbólico uniformizante e cuidadosamente programa do é entrecortado todo o tempo e em quase todos os espaços da cidade e da festa De certa maneira algo semelhante ocorre até mesmo nas áreas rurais do Brasil mais dominadas pela monocultura do agronegócio Um inventário criterioso sobre a sociodiversidade na ocupação de territórios aponta a coexistência supostamente pacífica e a presença crescente de conflitos a hegemonia nunca R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 6 1 20 Ver como um exce lente exemplo O chão é o limite A festa de peão de boiadeiro e a domestica ção do sertão de Sidney Valadares Pimentel pu blicado pela Editora da Universidade Federal de Goiás em 1997 Para se ter uma idéia da trans formação de produtos em símbolos de uma so ciedade através de suas festas em Felixlândia no norte de Minas Gerais de uns anos para cá cele brase uma grande Festa do Carvão estável e tranqüila dos espaços do agronegócio a dependência que a economia rural de mercado tem da vizinhança da econo mia de subsistência e também de uma força volante de trabalho que o avanço da tecnologia agrícola ainda não resolveu o cres cimento das frentes de luta em favor da reforma agrária e da cau sa ambiental Um olhar algo mais complexo e interativo sobre os horizon tes dos mundos rurais deveria convidarnos a uma leitura não tanto do que real ou ilusoriamente domina espaços e campos de relações rurais mas do que em seus intervalos e de maneira bem mais ativa e diferenciada do que podemos imaginar existe ainda resiste e se renova para reocupar espaços e reinventar formas de ser e viver no campo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRANDÃO Carlos Rodrigues Plantar colher comer um estudo sobre o campesinato goiano Rio de Janeiro Graal 1978 A partilha da vida Taubaté GEIC Cabral 1995 O afeto da terra imaginários sensibilidades e motivações de relacionamentos com a natureza e o meio ambiente entre agri cultores e criadores sitiantes do bairro dos Pretos nas encostas pau listas da serra da Mantiqueira em Joanópolis Campinas Editora da Unicamp 1999 CANDIDO Antonio Os parceiros do Rio Bonito estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida São Pau lo Duas Cidades 1971 EVANSPRITCHARD Edward Evan Os Nuer uma descrição do mundo de subsistência e das instituições políticas de um povo nilo ta São Paulo Perspectiva 1978 GARCIA JRAfrânio Terra de trabalho trabalho familiar e peque nos agricultores Rio de Janeiro Paz e Terra 1983 GRAZIANO NETO Francisco Questão agrária e ecologia Críti ca da moderna agricultura São Paulo Brasiliense 1982 R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 6 2 IANNI Octavio A era do globalismo Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 MARTINS José de Souza Capitalismo e tradicionalismo estudos sobre as contradições da sociedade agrária no Brasil São Paulo Pio neira 1975 MAUSSMarcelEnsaio sobre a dádivaSão PauloCosac Naify2004 MOURA Margarida Maria Os herdeiros da terra parentesco e he rança numa área rural São Paulo Hucitec 1978 Os deserdados da terra a lógica costumeira e judicial dos processos de expulsão e invasão da terra camponesa Rio de Janei ro Bertrand Brasil 1988 MUSUMECI Leonarda O mito da terra liberta colonização es pontânea campesinato e patronagem na Amazônia Oriental São Paulo Vértice Brasília Anpocs 1988 MULLER Nice L Sítios e sitiantes no estado de São Paulo Bo letim USP n 132 Geografia São Paulo 1951 NORONHA Olinda Maria de De camponesa a madame Traba lho feminino e relações de saber no meio ruralSão PauloLoyola1986 PESSOA Jadir de Moraes Cotidiano e história Goiás Editora da Universidade Federal de Goiás 1997 PESSOA Vera Lúcia Salazar Entre o rural e o urbano Cons truindo grupos de pesquisas MesaRedonda III Grupos de Pesquisa Agricultura e Desenvolvimento Regional Relatos de Experiências Seminário sobre a Reforma Agrária Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia p 1 PIMENTEL Sidney Valadares O chão é o limite A festa de peão de boiadeiro e a domesticação do sertão Goiás Editora da Univer sidade Federal de Goiás 1997 QUEIROZ Maria Isaura Pereira de Bairros rurais paulistas dinâ mica das relações bairro ruralcidade São Paulo Duas Cidades 1973 O campesinato brasileiro ensaios sobre civilização e gru pos rústicos no Brasil Petrópolis Vozes 1976 SANTOS Milton Espaços da racionalidade A natureza do es paço técnica e tempo razão e emoção São Paulo Edusp 2002 R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 6 3 SHIRLEY Robert W O fim de uma tradição cultura e desenvolvi mento no município de Cunha São Paulo Perspectiva 1971 SOARES Luiz Eduardo Campesinato ideologia e política Rio de Janeiro Zahar 1981 TURNER Victor Drams fields and metaphors symbolic action in human society Ithaca Cornell University Press 1985 WILLEMS Emílio Cunha Tradição e transição em uma cultura rural no Brasil Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo 1947 WOORTMANN EllenO sítio camponês Anuário Antropológi co n 81 Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1983 WOORTMANNKlaasA comidaa família e a construção do gê nero feminino Dados Revista de Ciências Sociais v 29 n 1 Rio de Janeiro Campus 1986 Com parente não se neguceia o campesinato como ordem moral Anuário Antropológico n 87 Brasília Editora Uni versidade de Brasília Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1990 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO é professor visitante do Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia e do doutorado em ambiente e sociedade da Unicamp e pesquisador do Ceres Este texto inédito foi apresentado no Encon tro sobre a Reforma Agrária em junho de 2006 na Universidade Federal de Uber lândia R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 6 4
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TEMPOS E ESPAÇOS NOS MUNDOS RURAIS DO BRASIL CARLOS RODRIGUES BRANDÃO R E S U M O Este trabalho é uma espécie de segunda parte de um estudo an terior mais teórico e bibliográfico sobre a questão da existência vivência e percep ção cultural de tempos e espaços no mundo rural Um trabalho situado entre lei turas de geografia e de antropologia Meu propósito aqui é descrever um pouco das diferenças existentes hoje entre as diversas modalidades de experiência de tempos espaçosnas diversas modalidades de comunidades rurais ou relacionadas ao mun do rural por ventura ou desventura presentes no Brasil de hoje Parto do princí pio aliás evidente de que o mundo rural brasileiro é muito mais diversificado e polissêmico do que em geral se imagina Retomo algumas idéias há muito tempo desenvolvidas por José de Souza Martins em Capitalismo e tradicionalismo e des crevo o que me parece mais característico de três formas sociais de viver e trabalhar no mundo rural P A L A V R A S C H A V E Espaçostempos rurais camponeses mudança social A B S T R A C T This work is a kind of second part of a previous study more theoretical and bibliographical in nature on the issues of existence experience anc cultural perception of times and spaces in the rural worldIt is a work placed between anthropological and geographical readingsMy aim is to describe some of the current differences between several modes of experiencing spacetimes which prevail in distinct modes of rural or ruralrelated communities which exist in todays Brazil for better or worse I start from the incidentally selfevident principle that the Brazilian rural world is much more diverse and polysemic than one generally imaginesI go back to a few ideas developed a long time ago by José de Souza Martins in Capitalism and Traditionalism to describe what seems to me to be most characteristic in three social forms of life and work in the rural world K E Y W O R D S Rural spacestimes peasants social change 3 7 UM BREVE OLHAR PARA ONTEM Uma leitura dos estudos que nos últimos 50 anos provem da an tropologiada geografia e mesmo da sociologia haveria de nos lem brar que a maior parte dos trabalhos de campo de que resultaram e seguem resultando artigos livros dissertações e teses em que questões como as relações culturais tempoespaço são levadas em conta ou são mesmo essenciais são trabalhos centrados em co munidades rurais tradicionais São os antigos estudos de comuni dade Donald Pearson Emílio Willems Eduardo Galvão Oracy Nogueira e tantos outros como as pesquisas pioneiras dos bair ros rurais paulistas de que o recentemente republicado Parceiros do Rio Bonito de Antonio Candido ao lado de Bairros rurais pau listas de Maria Isaura Pereira de Queiroz são dois excelentes exemplosOu são as várias pesquisas de sociedades camponesas tra dicionais que por um longo tempo têm ocupado o tempo e os es tudos de vários cientistas sociais1 Vistos de cima e de passagem às vezes parece que as comu nidades rurais tradicionais são enfocadas a partir do espaço e da cultura ao passo que as frentes pioneiras ou de expansão as áreas de conflito agrário os acampamentos e assentamentos da refor ma agrária são estudados a partir do tempo e da história Tere mos então de um lado um excesso de cultura espaço sem his tória e de outro um excesso de história tempo sem cultura2 Há muitos espaços sem tempos de um lado e muitos tempos sem espaços de outro E é difícil encontrar um ponto de equilíbrio en tre essas duas dimensões que tanto na natureza quanto nas socie dades humanas não existem nunca em separado Com a atenção talvez centrada demais naquilo que se trans forma e moderniza no mundo rural da atualidade global e brasi leira Milton Santos quase descreve o campo através do que nestes últimos anos ele deixou de ser para ser aquilo em que vertigino samente e não raro de maneira lastimável ele se transforma Uma racionalidade empresarial domina todo o cenário da ci dade do campo e das relações entre um e outro Essa racionali R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 3 8 1 Apenas para lembrar alguns autores nas ciên cias sociais Nice L Mul ler Sítios e sitiantes no estado de São Paulo Bo letim USP n 132 Geo grafia 1951 Maria Isau ra Pereira de Queiroz Bairros rurais paulistas Duas Cidades 1973 e Campesinato brasileiro Vozes 1976 Antonio Candido Os parceiros do Rio Bonito Duas Cida des 1971 Emílio Wil lems Cunha Tradição e transição em uma cultura rural no Brasil Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo 1947 Ro bert Shirley O fim de uma tradição Perspecti va 1971 José de Souza Martins Capitalismo e tradicionalismo Pionei ra 1975 Afrânio Garcia Jr Terra de trabalho tra balho familiar e pequenos agricultores Paz e Terra 1983 Margarida Maria Moura Os herdeiros da terra Hucitec 1978 Os deserdados da terra Ber trand Brasil 1988 Olin da Maria de NoronhaDe camponesa a madame Trabalho feminino e re lações de saber no meio rural Loyola 1986 Leo narda Musumeci O mito da terra liberta Anpocs Vértice1988Luiz Eduar do Soares Campesinato ideologia e política Za har 1981 Klaas Woort mannCom parente não se neguceia Anuário Antropológicon871990 Jadir de Moraes Pessoa Cotidiano e história Edi tora da Universidade Fe deral de Goiás 1997 Carlos Rodrigues Bran dão A partilha da vida GEIC Cabral 1995 2 Algo semelhante acon tece em outros campos de estudos sociais No campo das pesquisas so bre religiões no Brasil dade de que o agronegócio é o melhor e o pior espelho altera estruturas sociais de poder de apropriação de espaços de vida trabalho e produção Altera às vezes depressa demais espaços terras territórios cenários tempos e paisagens Movida pelo pe so do capital pela racionalidade capitalista e por uma tecnologia industrializada que em poucos meses transforma biomas de cer rado no norte de Minas em milhares de alqueires do deserto ver de dos eucaliptais e que faz os círculos de plantio de soja em la vouras irrigadas chegarem até nas portas de Brasília além de alterar a vida de paisagens e de pessoas das beiras do Chuí às do Oiapoque Por toda a parte estamos envolvidos com novos termos en tre a terra e o trabalho novos conflitos ou o aguçar dos velhos conflitos entre antigos e novos personagens rurais ou no cam po Uma racionalidade centrada no lucro na competência espe cializada e na competição legitimada como uma forma quase úni ca de realização do progressoquebra o que resta ainda de visões e vivências tradicionais de tempoespaço rural e de modos de vi da a que se aferram ainda os índios e os camponeses Criase praticamente um mundo rural sem mistérios onde cada gesto e cada resultado deve ser previsto de modo a as segurar a maior produtividade e a maior rentabilidade pos sível Plantas e animais já não são herdados das gerações an teriores mas são criaturas da biotecnologia as técnicas a serviço da produção da armazenagem do transporte da transformação dos produtos e de sua distribuiçãorespondem pelo modelo mundial e são calcados em objetivos pragmáti cos tanto mais provavelmente alcançados quanto mais cla ro for o cálculo na sua escolha e na sua implantação É desse modo que se produzem nexos estranhos à sociedade local e mesmo nacional e que passam a ter um papel determinante apresentandose tanto como causa quanto como conseqüên cia da inovação técnica e da inovação organizacional O todo é movido pela força externa dos mitos comerciais essa ra R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 3 9 por exemplo os pesqui sadores que se dedicam aos estudos dos sistemas religiosos de tradição afrobrasileira e em es pecial o candomblé ou do catolicismo popular em geral desestorificam o seu olhar e aprofundam muito uma etnografia de mitos símbolos e sig nificados profundos Já aqueles que investigam o protestantismo ou a Igre ja Católica como uma instituição social com plexa desculturalizam o olhar e se dedicam a questões sociopolíticas relacionadas a organiza ções formais da Igreja a situações de conflito e a relações de poder zão do mercado que se impõe como motor do consumo e da produção Nesse mundo rural assim domesticado implantase um im pério do tempo medido em que novas regularidades são bus cadas Muitas delas só se tornam possíveis quando tem êxito a vontade de se subtrair às leis naturais O respeito tradicio nal às condições naturais solo água insolação etc cede lu gar em proporções diversas segundo os produtos e regiões a um novo calendário agrícola baseado na ciência na técnica e no conhecimento3 O que Milton Santos diz aqui não nos é desconhecido E se no começo do segundo parágrafo ele emprega a palavra domestica do eis uma palavra bemescolhida Pois de fato bem sabemos que a junção do capital flexível as novas tecnologias aplicadas sobretu do à pecuária e à monocultura e como sua ciência sua lógica e sua ideologia invadem tanto o campo rural quanto todos os outros campos da vida no sentido agora conferido por Pierre Bourdieu a essa palavra ora propondo e ora impondo uma outra ética dirigi da à criação de saberes valores sentimentos e sociabilidades que gerem modos de vida tão modernosque terminem sabendo dis so ou não inteiramente submetidos a essa nova racionalidade Como tantos outros estudiosos da condição pósmoderna antecipam há já alguns anos tanto na cidade quanto no campo não são apenas algumas esferas da vida mais diretamente associa das ao capital e ao trabalho as que devem enquadrarse e serem cada vez mais regidas pela lógica dessa neoracioalidade e pela éti ca e política de seus modos de vida de sua neocultura se quiser mos mas todas as esferas se possível das vidas de todas as cate gorias de pessoas grupos humanos e comunidades sociais Juntos as novas técnicas e o novo capital deixam de ser co mo no passado exclusivamente de um domínio particular de atividade e se espalham por todo o corpo social tornandose verdadeiros regedores do tempo social4 R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 0 3 Milton Santos op cit p 243 cap 13 Espaços da racionalidade 4 Milton Santos op cit p 246 cap 13 E não apenas nos tempos para pensar e viver a temporalida de mas também uma nova ordenação dos espaços que vão da re lação entre os corpos às relações entre os poderes as proprieda des e as classes sociais Devemos no entanto desconfiar dessa expansão sem limites e nãoquestionável ou fracamente questionadas da lógica do ca pital flexível conduzido sobretudo pelas unidades de expansão do agronegócio em suas diferentes fases e faces Em primeiro lugar porque há diante dela por toda a parte uma resistência ativa de grupos e comunidades expropriados por ela Em segundo lugar porque há também uma outra resistência menos ativamenos mo bilizada mas nem por isso menos resistente Veremos mais adiante o mesmo geógrafo opondo à racionalidade do capital e da agricultura do mercado uma outra racionalidade ou mesmo outras contraracionalidades as do mundo da vida do trabalho ou se quisermos trazer aqui uma feliz expressão de José de Sou za Martins da agricultura de excedente5 Em todo o Brasil através de todos os espaços de sistemas de objetos e sistemas de ações e dos mais diversos grupos humanos e modos de vidas populares ou não entrevemos a ação de movi mentos sociais do MST ao SOS Mata Atlântica Pela via da questão agrária pela via da questão ambiental pela via dos direitos hu manos ou por outras vias de enfrentamento que a elas se somam e com elas interagem são inúmeras as unidades de ações sociais que se opõem à racionalidade ao poder e aos interesses da expan são globalizada do capital no campo como propõem no bojo de suas diferentes contraracionalidades outras e opostas alternati vas de gestão social de tempos e de espaços de vidas e de mun dos de vida e de trabalho De outra parte de igual maneira estamos diante de um múl tiplo e nada uniforme ou globalizado mundo rural Somos ali mentados por grãos frutas e folhas que ainda provêm bem mais da multivariança da agricultura familiar típica do campesinato tradicional e da expansão menos visível mas possivelmente mais sólida de novas alternativas de produção e gestão do ambiente e R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 1 5 Ver o seu sempre atual Capitalismo e tradiciona lismo São Paulo Pionei ra 1975 dos bens da terra como a agricultura orgânica a permacultura a agrossilvicultura e outras mais De um lado as imensas áreas uniformemente tomadas de pessoas e culturas tradicionais para abrigarem o gado ou a soja De outro a criação recente de áreas crescentes de produção agropastoril e mesmo madeireira regi das por princípios de sustentabilidade e solidariedade Longe na Amazônia a expansão de experiência dos povos da floresta co mo os seringueiros do Xapuri são exemplos de uma fecunda con traracionalidade Onde parece haver uma uniformização crescente e irrever sível podemos estar diante também de uma crescente diferen ciação de formas culturais de vida e modos sociais de trabalho no campo Comunidades indígenas ampliam suas áreas de espa çosreservas homologadas e pouco a pouco e perigosamente al gumas delas se integram a uma economia regional de exceden tes Comunidades negras rurais quilombolas bem mais do que contamos ou imaginamos até agora conquistam o direito de existirem em suas terras ancestrais de pleno direito Comunida des camponesas reinventam estratégias para se preservarem transformando todo o necessário para que o essencial de suas formas de vida não se percaAcampamentos dos movimentos so ciais da reforma agrária cobrem de lonas pretas tanto os espaços estritos das beiras de estradas quanto as terras de fazendas im produtivas e ocupadas Um campesinato modernizado em par te cativo mas em parte ainda livre diante do poder do agrone gócio não apenas sobrevive mas se reproduz com sabedoria Ao analisar transformações macroestruturais em todo o mundo em uma era de globalização Octavio Ianni somase a outros estudiosos do que está acontecendo ao lembrar que mesmo nos espaços mais aparentemente dominados pelo gi gantismo do que mudou as formas de vida comunitárias e tradicionais de ocupação e produção em multiespaços parti lhados de vida labor e trabalho não apenas resistem e sobre vivem mas em alguns cenários elas proliferam adaptamse e transformamse Ainda que essa transformação represente uma R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 2 progressiva perda de autonomia em nome dos pólos dominan tes de domínio da economia agropastoril Ianni lembra que o próprio agronegócio se expande a expensas da pequena agri cultura e mais ainda em aliança com pequenas e médias pro priedades agrícolas modernizadas e a meio caminho entre a eco nomia de excedente e a economia de mercado segundo José de Souza Martins6 Sabemos que tudo está mudando e nada mudou ainda in teiramente A começar pela desigualdade social a expropriação o empobrecimento de quem já era pobre e a expansão da nova racionalidade de que nos fala Milton Santos E podemos então concordar com Vera Salazar em uma passagem do documento apresentado em um seminário sobre a reforma agrária no Insti tuto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia A revolução tecnológica expressa na modernização da agri cultura a partir da década de 1970 representa esta transfor mação que no entanto não alterou significativamente a con figuração do quadro agrário brasileiro A concentração de terra e de riquezas no campo e na cidade as disparidades re gionais no que tange à renda dos agricultores ao predomínio de certos cultivos visando o mercado externo se mantiveram e se mantém reproduzindo e fortalecendo as distorções es truturais que definem e embasa a história da estrutura agrá ria brasileira7 A dupla resistência lembrada linha acima implica aquilo que mais nos interessa compreender É que tanto em sua atividade mobilizada quanto em sua tradicionalidade modernizada existem diferentes formas próprias ou apropriadas de pensar a vida e o mundo Voltemos por uma última vez aqui a Milton Santos Ante a racionalidade dominante desejosa de tudo conquistar podese de um ponto de vista dos atores não beneficiados fa lar de irracionalidade isto é de produção deliberada de situa R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 3 7 Vera Lúcia Salazar Pes soaEntre o rural e o ur bano Construindo gru pos de pesquisas Texto elaborado para a Mesa Redonda III Grupos de Pesquisa Agricultura e Desenvolvimento Regio nal Relatos de Experiên cias p 1 6 Octavio Ianni A era do globalismo Rio de Janei ro Civilização Brasileira 2002 ções nãorazoáveis Objetivamente podese dizer também que a partir dessa racionalidade hegemônica instalamse pa ralelamente contraracionalidades Essas contraracionalidades se localizam de um ponto de vis ta social entre os pobres os migrantes os excluídos as mino rias de um ponto de vista econômicoentre as atividades mar ginais tradicional ou recentemente marginalizadas e de um ponto de vista geográfico nas áreas menos modernas e mais opacas tornadas irracionais para usos hegemônicos Todas essas situações se definem pela sua incapacidade de subordi nação completa às racionalidades dominantes já que não dis põem dos meios para ter acesso à modernidade material con temporânea Essa experiência da escassez é a base de uma adaptação criadora à realidade existente8 Formas culturais e populares de racionalidades e de sensibi lidades que poderiam parecer antiracionais e ultrapassadas Sis temas de idéias e estilos de ação fora do tempo e do lugar No en tanto eles podem ser pensados como contraracionalidades Como a defesa de espaços de vida e de trabalho no campo não apenas postos à margem mas autosituados em zonas de frontei ra geográfica social e simbólica de um processo proclamado por seus realizadores como algo inevitável benéfico e irreversível de modernização do campo Uma modernização insustentável que traz para o mundo rural escalas e interações de tempoespaço tí picas da empresa fabril moderna Com a diferença de que lá na cidade as fábricas estão ainda repletas de trabalhadores enquan to no campo largos espaços de produção de mercado precisam es tar cada vez mais vazios de braços humanos para dar lugar às poucas máquinas que primeiro substituíram famílias de campo neses e depois as próprias pessoas de trabalhadores volantes As sim diante do avanço expropriador e uniformizante do capital flexível todas as supostas antiracionalidades que a ele se opõem podem ser compreendidas como diferentes alternativas de outras racionalidades R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 4 8 Milton Santos op cit p 246 cap 13 PROXIMIDADE E DIFERENÇA SISTEMAS DE PRODUÇÃO MODOS DE VIDA E VIVÊNCIA DE TEMPOS E ESPAÇOS NOS MUNDOS RURAIS BRASILEIROS Retomemos de forma mais ordenada aqui os argumentos que acabam de nos deixar entre as linhas acima Seja porque toda a expansão do poder dos interesses e da racionalidade do agrone gócio provoca a persistência de antigos e a emergência de novos poderesmodos de vida e racionalidades rurais e populares Mil ton Santos seja porque no fim das contas a expansão do ca pital flexível agropecuárionão alterou significativamente a configuração do quadro agrário brasileiro Vera Salazar po demos pensar em perguntas opostas às respostas que apontam para uma uniformização rotinizante dos espaços de vida e de trabalho dos mundos rurais brasileiros sob os novos tempos da modernização capitalista Não estaremos nós diante de uma persistente e essencial no sentido de nãomarginal presença de antigas e novas múltiplas formas de interação entre tempose espaços que caracterizam e seguem caracterizando a experiên cia pessoal interativa e social dos diversos atores e dos diversos modos de vida das diferentes modalidades de presença humana no campo hoje Quero retomar aqui algumas idéias de José de Souza Mar tins em Capitalismo e tradicionalismo Faço a síntese das que nos tocam de mais perto aquiA pequena unidade camponesa de tra dicional agricultura familiar não é marginal à expansão do capi tal agrário e nem é uma experiência social em extinção Ao con trário ela é orgânica e essencial à expansão do capitalismo no campo Lembremos José de Souza Martins Essa agricultura tradicio nal não é uma agricultura de consumo mas uma agricultura de ex cedente Seus produtores geram tanto os bens de consumo fami liar quanto e em múltiplos casos principalmente o excedente que é destinado à troca e à venda em mercados vicinais locais e mes mo regionais Pequenos proprietários e produtores arrendatários R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 5 de terra plantam e criam diretamente para o mercado e em dife rentes situaçõestendem a tornarse cativosde produtores maio res ou mesmo de empresas que financiam a produção e detêm o poder de compra de seus produtosHá um momento em quedes crevendo estratégias de produção e venda de produtos da terra em uma região por onde eu mesmo passei anos depois em pes quisa de campo ele diz o seguinte Vêse que na montanha tanto no Alto Paraíba quanto na Mantiqueira a população rural produz diretamente os bens da sua subsistência feijão e um excedente de aproximada mente 14 do produto para semente e comércio Na planície contudo a população rural produz menos da metade do fei jão que provavelmente consome Mas na planície e na mon tanha agora apenas o Alto Paraíba estimo que menos de 10 do leite produzido destinase ao consumo dos próprios pro dutores A sua produção tem em vista o mercado9 Podemos situar essa agricultura rústica camponesa familiar ou que nome tenhaem diferentes pontos a meio caminho de uma linha de alternativas que começa aí sim em unidades familiares ou mesmo coletivas de produção de consumo e as unidades em presariais de produção de mercado Concordo com José de Souza Martins em que fora o caso das comunidades indígenas e mes mo assim nem todas e nem sempre e fora o caso de algumas comunidades muito isoladas mesmo de um mercado local ou de produção muito limitada que caracterizariam uma restrita pro dução de consumo na qual se troca e mais ainda se vende apenas o pouco que sobrou do consumo destinado ao grupo familiar ou à unidade maior a comunidade todas as outras constituem as di ferentes modalidades de temposespaços produtoras de econo mias de excedente A própria conversa cotidiana seja entre vizinhos amigos e parceiros do trabalho seja em âmbito familiar ali onde as opi niões das esposas são bastante mais importantes do que se ima R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 6 9 Op cit p 10 11 Devo dizer que pesquisando vários anos mais tarde comunidades campone sas nas mesmas regiões de montanha Catuçaba em São Luís do Parai tinga no Alto Paraíba e Joanópolis na serra da Mantiqueira paulista encontrei dados bastante próximos E eles valem também para a venda de outros produtos como milho cebola porcos e gado de corte gina em geral versa quase sempre sobre assuntos ligados à lida com as plantas eou os animais E nelas as questões relativas às estratégias de comercialização local e regional dos excedentes ga nham um lugar cada vez mais central Economias familiares de tipo tradicional camponês seja na direção de uma ainda maior tradicionalidade seja como no caso de alguns assentamentos da reforma agrária não situadas à margem de sistemas dominantes de economias de mercado mas integradas em e entre os seus es paços territoriais de natureza sociedade e mesmo de cultura Podemos concordar com Graziano Neto e também com vá rios outros estudiosos dos processos de transformação da agricul tura da pecuária e mesmo de atividades de extração direta dos bens da terra indústria madeireiramineração etcquando lem bram que a suposta ou real modernização do campo brasileiro foi bastante conservadora Ela se realiza bem mais no plano agrí cola do que no agrário Ela moderniza formas de apropriação e de concentração da propriedade fundiária e não na direção ver dadeiramente moderna Isto é a de uma efetiva democratização social e econômica do acesso à terra e às efetivas condições sociais e tecnológicas do trabalho com a terra Modernizamos tecnoló gica e capitalisticamente a agricultura criamos às pressas um mo delo importado de agronegócio sem havermos antes procedido a uma modernização estrutural do campo10 Os sucessivos programas de reforma agrária seguem desti nando aos homens da terra porções residuais de lotesem assen tamentos precariamente assistidos enquanto se empenham uns após os outros em apoiar os latifúndios de agropecuária de mer cado e a incentivar a expansão do agronegócioà custa de um cres cente deterioro das condições de vida de famílias e de comunida des rurais e de uma degradação em vários espaços irreversível do meio ambiente como vejo ocorrer agora no norte de Minas onde trabalho com uma equipe de pesquisa nas duas margens do rio São Francisco Assim se quisermos estender um olhar geográfico não ape nas ao que parece mais visível mais dinâmico e mais conflitivo R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 7 10 Francisco Graziano Neto Questão agrária e ecologia Crítica da mo derna agricultura São Paulo Brasiliense 1982 nos diferentes mundos nãourbanos do Brasil para aí incluirmos também os territórios e as comunidades das diferentes outras étnicas no país poderemos trabalhar com três amplas categorias de ocupação de territórios de apropriação da terra de manejo do ambiente de criação de tipos de vida social e suas diferentes culturas E nelas de diferentes modalidades de experiência de percepçãocompreensão e de recriação de seus diversos espaços tempos Enfim daquilo que em boa medida atribui substância geoexistencial ao que Milton Santos lembrava linhas acima como as nossas diferentes racionalidadesPois pensar racionalmente um mundo começa por criar os padrões tempoeespaço em que su jeitos sociais criam os cenários entre a natureza e a cultura que os recriam como múltiplos e interativos atores culturais dos dra mas de vidas que compartem E este seria o momento de lembrarmos uma vez mais que tal como acontece em outros campos da experiência humana sobram vivências pesquisas e teorias a respeito da construção cultural de sentidos de tempoeespaço em sociedades indíge nas e sociedades regionais tradicionais entre terras de negros terras de santos e terras de camponeses patrimoniais do que en tre unidades rurais modernizadas quaisquer que sejam as suas dimensões e vocações de economia Conheço inúmeras pesqui sas sobre o viver o sentir e o saber de tempos e de espaços em comunidades indígenas ou em comunidades étnicas tradicio nais como as da ilha de Bali estudadas pelo mesmo Clifford Geertz do que em áreas de frentes pioneiras e de expansão em prego aqui ainda categorias de José de Souza Martins em ter ritórios de unidades camponesas modernizadas como tantas no Sudeste e no Sul do Brasil em latifúndios de economia de mer cado e mesmo em assentamentos e acampamentos da reforma agrária Essa diferença de ênfase de olhares diferentes entre antropó logos geógrafos e outros cientistas sociais por certo acompanha o que parece de fato darse a ver na diversidade de nossos ter ritórios paisagens e unidades sociais situadas fora das cidades R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 8 Acompanha também a própria relação existencial da experiência pessoal interativa e social da relaçãocriação de tempoespaço Em termos que vão de uma geografia das paisagens a uma an tropologia dos dramas sociais podemos estabelecer um gradiente aliás já sugerido acima11 De um lado ficam as comunidades so ciais e culturas associadas à variedade de produções de consumo entre indígenas quilombolas camponeses tradicionais e quase isoladosA meio caminho coloquemos as unidades rurais associa das à produção de excedentes Entre eles demarquemos posições Na linha de fronteira com as comunidades de consumo estão os outros produtores familiares de padrão camponês tradicional co mo os das culturas caipiras de São Paulo sejam eles proprietá rios sitiantes moradores agregados parceirosA meio caminho fi cam os pequenos produtores camponeses ainda patrimoniais ou algo já mais modernizados Na posição mais próxima às unidades de produção de mercado até pelas relações de proximidade aco modação forçada e conflito com ela ficam os lavradores antigos e recentes das terras apropriadas pela reforma agrária Finalmen te no pólo oposto situamse as unidades típicas da produção de mercado caracterizadas hoje pelo agronegócio Entre os sujeitos popularesficam aí pequenos produtores cativos do mercadopro dutores já especializados para o mercado Estão também todos os múltiplos trabalhadores ruraisentre condutores especializados de máquinas agrícolas e trabalhadores volantes Bem sabemos que tanto em casos individuais quanto em ter mos de comunidades inteiras quase já não existem mais tipos puros de sujeitos rurais Um bom exemplo dessa variância cres cente são as comunidades muito tradicionais de pequenos agri cultores do vale do Jequitinhonha e de quantos outros vales no Brasil que justamente para poderem manter a propriedade e a vida rural tradicional migram sazonalmente para terras distan tes de São Paulo em busca de trabalho assalariado associado à mais moderna e devastadora produção de mercado Deixemos de lado os senhores do poder e do capital e foque mos o olhar sobre os outros homens da terra a começar por R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 4 9 11 Tomo emprestada es ta categoria que passa do teatro à antropologia através de estudos bas tante conhecidos de Vic tor Turner Drams fields and metaphors symbolic action in human society Ithaca Cornell Univer sity Press 1985 pessoas famílias e comunidades de povos indígenas e quilombo las até todos os outros se possível os agricultores e pecuaristas agricultores camponeses de produção ainda familiar pequenos proprietários sitiantes tradicionais os trabalhadores rurais par ceiros agregados e moradores ou não trabalhadores parcei ros meeiros e no limite arrendatários Sigamos adiante em di reção aos outros herdeiros deserdados e expropriados da terra os camponeses os expropriados os trabalhadores diaris tas volantes os peões de fazendas os acampados nas beiras de estrada e os assentados da reforma agrária enfim os homens po bres da terra12 Em que espaços eles habitam vivem trabalham se reprodu zem e pensam a vida e o mundo Em que tempos se movem e co mo representam o seu passar Como nesta era em que mesmo no campo tudo muda e permanece como está tudo se move a co meçar pela vida dos migrantes e aqui e ali parece ainda tão igual a sempre tão parado no ar Claro não chegarei perto de mui tas sugestões de respostas a essas perguntas e àquelas que suas res postas haverão de reabrir Creio no entanto que poderia ser pro veitoso abrirmos nossos horizontes aos seus limites máximos e realizarmos juntos um exercício de precária classificação das aproximações e diferenças entre o habitar espaços criar espaços viver espaços e pensar no tempo os espaços da vida RUGOSIDADES OS TEMPOSESPAÇOS ONDE O RELÓGIO É TAMBÉM O SOL Em um livro que se tornou depois um clássico na antropologia após descrever o modo de vida dos Nuer um povo nilota cria dor de gado entre suas aldeias e os acampamentos EvansPrit chard conclui um parágrafo após comentar o viver e o sentir do passar do tempo deles com uma frase pouco típica para um in glês já habitante de tempos em que os seus pais haviam desco berto que tempo é dinheiro Ele conclui dizendo os Nuer têm R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 0 12 Será fácil ver que es tou empregando aqui nomes comuns até mes mo em títulos de livros sobre as diferentes cate gorias de trabalhadores diretos entre os tempos espaços sociais da terra sorte A felicidade deles está em não serem ainda ou sempre co mo nós somos13 E o que aproxima comunidades indígenas entre isoladas contatadas integradas comunidades quilombolas e as ainda existentes e cada vez mais raras comunidades regionais cam ponesas semiisoladas é o fato de que entre elas para quem o tempo ainda é mais comida do que dinheiro o correr da vi da se passa no interior de uma natureza ainda muito pouco so cializada Ainda apenas aos fragmentos realizada e pensada co mo cultura Como uma boa parte do que se obtém para o sustento fami liar e a reprodução da vida coletiva é obtido da natureza por co leta caça e pesca os espaços da vida e do trabalho ainda são em uma larga medida os da própria natureza Depoimentos de se ringueiros do Acre revelam um existir no mundo e um viver es paçostempos ao mesmo tempo próximos e bem distantes dos nossos Ali onde a medida de minutos ou de horas pode ser da da pelo tempo de coleta da seringa em uma árvore e a medida de um dia é a soma das coletas de várias árvores mais os desloca mentos entre a casa a colocação e elas Uma múltipla racionalidade pois cada etnia é um caso e ca da comunidade cultural um outro convive e representa os es paços da vida segundo padrões talvez bastante mais diferenciados e complexos do que podemos imaginar Pois muitas das represen tações que aos poucos uma cultura modernaeracionalizadare pensa abole ou simplifica ainda são essenciais entre indígenas quilombolas e seringueiros Se eu perguntar a uma estudante de mestrado em geografia o que é a floresta onde ela está e que formas de existência habi tam ali é provável que ela limite os seus espaços ao que lhe é vi sível Tudo o que existe diante de seus olhos e que ao redor não é nem cidade e nem campo A terra as plantas e de modo es pecial as árvores que a caracterizam como uma floresta Ou se ela for mais rigorosa uma extensão territorial de mata atlântica caracterizada por formações vegetais semidecíduas característi R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 1 13 E E EvansPritchard Os Nuer São Paulo Pers pectiva 1978 p 116 cas de algumas florestas de transição Eu também tenderia a ver epensar a floresta como aquilo que eu vejo e percebo como a flo restadiantedemim De uma maneira perceptual e existencial uma floresta é o que eu vejo e represento como esta floresta Um caiapó provavelmente levaria mais tempo para respon der o que é uma floresta Ele provavelmente começaria por indi car tudo aquilo que não é visível pois está debaixo da terra mi nerais águas raízes plantas e animais subterrâneos e algo mais Depoisele por certo desdobraria a floresta em vários estratosseis ou sete de acordo com o tipo de vegetais que predominam de acordo com os frutos que habitam cada andar e de acordo com os animais que existem em cada espaço Aquilo que uma botâni ca classificaria como vegetação rasteira subbosque bosque e dosselpara o nosso caiapó poderia desdobrarse em outras e bem mais minuciosas derivações E a sua floresta não acabaria no dos sel das árvores mais altas Pois muito possivelmente ela se esten deria até o espaço acima da floresta onde voam os seus pássaros que voam mais alto Com mais coragens e temores do que nós ele e também mui tos camponeses quilombolas ou caboclos povoariam a nossa flo resta natural de seres que nem por não serem da nossa natu reza não seriam menos reais Seres sub e supernaturais dos espíritos dos mortos aos emissários dos deuses benévolos uns terríveis outros E seres que interagem entre eles com os animais e as plantas e até com os seres humanos De sorte que estar na flo resta e obter delas o sustento implica não apenas atos técnicos mas gestos entre o mágico e o sagrado Os próprios seres da natureza das águas e do vento às plan tas e aos animais são dotados de identidades de forças e de for mas de interação conosco bem maiores do que poderíamos su por Entre camponeses católicos os ciclos da vida natural entre a floresta os campos de pastagens os terrenos de lavouras sazonais ou permanentes o pomar ao redor da casa e a horta próxima à cozinha são diversos e interligados temposlugares regidos pelas forças da naturezatransformados pelas forças do trabalho huma R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 2 no e ordenados por princípios e ritmos extranaturais que entre tecem a maior parte das atividades agropastoris de tempos ritos e gestos ora mágicos ora religiosos Mesmo essas sociedades tradicionais de uma economia de consumo não vivem exclusivamente dentro de seus limites pos suem sistemas de intertrocas de pessoas de bens e de mensagens que deveríamos mais invejar do que apenas pesquisar14 E siste mas que mesmo nos espaços menos socializados pelo trabalho humano na Amazôniaescapam do domínio interno de uma mes ma aldeia e geram amplos sistemas de trocas de bens de consu mo intertribais Embora possa parecer supérfluo aqui devo lembrar que al gumas comunidades não tanto rurais mais neoruralizadas re tornam do mais moderno e urbano e desejos de experiências de vida e de partilha de temposespaços que em vários momentos lembram os que sumariamente descrevi aqui Algumas pequenas comunidades religiosas tanto as de origem brasileira como o Santo Daime quanto de origem asiática como os Hare Krishna retornam à natureza voltam ao campo e buscam reencontrar em uma vida mais próxima do vento e dos deuses do que dos re lógios e dos mercados uma vida ao mesmo tempo sagrada e na tural A começar por uma complexa sacralização da própria na tureza Algumas nas florestas do Acre Outras compram barato algumas terras altas na Chapada dos Veadeiros em Goiás Outras vivem ao nosso redor perto de Parati ou na vizinhança de Pinda monhangaba não muito longe de São Paulo15 Assim vivem an cestralmente temposespaços inseridos ainda nos domínios da natureza ou buscam retornar a essa mesma relação com a vida e o mundo uns porque são primitivos demais e outros porque cansados demais da complexidade do mundo pósmoderno Se rá que como os Nuer e bem mais do que nós de um lado e do outro eles são felizes R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 3 14 Devo lembrar aqui a nova ediçãoe primorosa do Ensaio sobre a dádiva de Marcel Mauss em 2004 pela Editora Cosac Naify de São Paulo 15 E não devemos esque cer que ainda existe no Brasil uma associação Abrasca de comunida des alternativas as quais mesmo quando não tão associadas a alguma reli gião nativa ou exótica procuram viver na e da natureza e retornar a formas de vida extre mamente simples e com a menor relação possível com o mercado local e sobretudo regional Não tenho os dados aqui agora mas lembrome de há muitos anos ter examinado no Programa de PósGraduação em Geografia na Universi dade de São Paulo uma dissertação a respeito de uma dessas comunida des alternativas a Frate runidade na serra dos Pireneus em Pirenó polis Goiás Tive na Unicamp uma mestran da de sociologia que de senvolveu uma pesquisa sobre as relações entre a filosofia vedanta as co munidades Hare Krish na e a ecologia profunda Creio que tendem a ser escolhas de pesquisas ca da vez mais comuns O fato de que uma delas te nha sido na geografia e a outra na sociologia bem demonstra que essa ten dência pouco tem a ver com as supostas excen tricidades dos antropó logos RUGOSIDADES E MODERNIDADES OS ESPAÇOS RURAIS ONDE O TEMPO É O RELÓGIO E É O SOL Uma inesperada mas oportuna maneira de procurarmos com preender algo das experiências de espaçotempo entre as comu nidades diferenciadamente situadas nos diferentes pontos de in tervalo entre as culturas e comunidades de pequena socialização de espaços da natureza e de uma economia de consumo ou de tro cas de produtos por produtos dentro de estritas normas e ritos de intercâmbio entre categorias de produtoresatorese as que nos esperam mais adiante seria o começarmos por pensar como cul turalmente tais trocas de produtos por produtos ou de mercado rias por dinheiro são vivas entre os temposespaços sociais de co munidades camponesas ainda tradicionais mas já integradas no mercado como economias de excedente de acordo com José de Souza Martins Claro estas já são comunidades rurais onde o trabalho com a terra é dirigido a produzir além do consumo o excedente co mercializável Plantase coletase e criase para viver e para ven der Trocase vendese e comprase trabalho por bens bens por bens trabalho e bens por dinheiro E disso se vive a vida na ro ça A meio caminho entre uma natureza ainda não inteiramente socializada e incorporada ao domínio da cultura aqui num du plo sentido da palavra e a cidade o lugarurbano dos recursos e do mercado regional assim pessoas famílias e comunidades ru rais vivem em espaços cujo lugar mais central é o sítio a peque na propriedade ou posse camponesa cuja extensão mais familiar é o bairro rural e seus equivalentes Uma vida rural a que no li mite mais costumeiro cabem qualificadores como caipira ser taneja rústica tradicional ou patrimonial e a que no limi te mais próximo a uma nova racionalidadecabem nomes como moderno ou modernizada Fiquemos com as formas de vida e de trabalho mais típicas do campesinato tradicional de produção familiar Entre elas gra máticas sociais que configuram sistemas de valores de identida R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 4 de e de princípios étnicos e éticos de interação envolvendo ne las inclusive preceitos que regem trocas vendas e compras Sis temas tradicionais que prescrevem todo um complexo processo de transações de bens e de serviços Intertrocas econômicas pa recendo serem apenas comerciais na verdade são interpessoais afetivas sociais simbólicas antes ou ao lado de serem relações que envolvem dinheiroPoisbem mais ali do que em esferas mais modernizadas de transações nem tudo o que se produz é con sumo nem tudo o que troca é mercadoria Mais do que nós e com melhores motivos as pessoas comem comida e símbolos e trocam bens e sentidos de vida No que se consome e no que se troca ou vende as coisas que passam de mão em mão mesmo que a troco de dinheiro variam de acordo com aquele com quem se troca com aquilo que se troca e com a qualidade da situação em que se comercia Em um de seus estudos sobre esse assunto ao recriar o con ceito de campesinidade Klaas Woortmann trabalha com os dife rentes sentidos e valores de uma ética camponesa E em Com parente não se neguceia ele descreve os diferentes círculos de in terações entre categorias de pessoas e categorias de coisas que se trocam vendem e compram E ele demonstra como a relação fa miliar parental vicinal e outra mais determinam bem mais o sen tido do valor da mercadoria do que ela própria16 Como costumamos dizer e relembrar sempre na antropolo gia a própria economia é uma das muitas dimensões de uma cul tura Produzimos bens e vendemos trabalho eou mercadorias Mas através de pessoas e de coisas mesmo num mundo onde pessoas têm valor como coisas e coisas como pessoas na verda de o que trocamos nos diferentes temposespaços dos diversos mercados possíveis são símbolos e significados valores e sentidos de vida Um mesmo paicamponês que em novembro se endivi da para comprar uma máquina duvidosa em março duplica a dí vida para não deixar de casar a filha caçula com uma grande fes ta Modos políticas éticas e estéticas de vida que resistem ainda a uma entrega completa à racionalidade do mundo dos negócios R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 5 16 A respeito dessa ques tão e de outras rela cionadas também de maneira direta a expe riências e percepções de tempo e espaço quero indicar aqui alguns tra balhos do casal Woort m a n n D e E l l e n Woortmann O sítio camponês publicado originalmente no Anuá rio Antropológico n 81 de 1983 pela Editora Tempo Brasileiro do Rio de Janeiro De Klaas Woortmann além do longo artigo aqui men cionado que foi origi nalmente publicado no n 69 de um caderno da Série Antropológica De partamento de Antropo logia Universidade de Brasília sd um outro artigo A comida a famí lia e a construção do gê nero feminino origi nalmente publicado na revista Dados v 29 n 1 de 1986 no Rio de Janeiro Livros posterio res de Ellen e Klaas reu niram esses artigos a outros que recomendo também enfaticamente apregoa e vende atribuindo a quem a ela não adere a imagem do atraso No interior de contraracionalidadesou de outrasraciona lidades segundo Milton Santos 2002 uma cultura derivada de uma socialização da natureza bastante mais completa e complexa do que nos casos anteriores ainda olha para o sol mas já observa o relógio para sentir o passar do tempo E tanto pensa em paisa gens naturais quanto no valor de mercado do alqueire de terra pa ra pensar os espaços da vida e do trabalho De outra parte os bens da terra são produzidos observando uma mescla de tecnologias pa trimoniais nada indica que as vendas de enxadas tenham dimi nuído no mercado brasileiro e tecnologias modernas e importa das17 Costumes antigos e ritos religiosos ainda estão presentes no preparo do terreno nas festas de colheita em muito maior escala do que as nossas medidas acadêmicas alcançamE o passar do tem po ainda subordina o relógio ao sol e o calendário oficial ao das festas populares e às marcações naturais das estações do ano Não obstante mesmo no mundo rural tradicional os hori zontes da vida tornamse cada vez mais voltados para o mundo da cidade e cada vez mais as cidades maioresdominam as cida des menores que cercadas por áreas rurais se tornam eixos de re ferência deles e um ponto a meio caminho entre o sítio e a cida de grande Espaços urbanos tendem a ser a cada dia mais o lugar de destino dos filhos dos homens e das mulheres da terra quando não deles próprios E as músicas sertanejas que versejam sobre a saudade da minha terra são o mais triste e dolente testemunho disso Não podemos esquecer que a incorporação da luz elétrica a um número agora grande e crescente de áreas rurais e a chegada vertiginosa dos meios de comunicação de massa em que o assis tir televisãose associa ao antigo costume de ouvir o rádioe com pete com este de uma maneira bastante mais semioticamente marcada colocam a cidade e a racionalidade mais ilusoriamen te moderna dentro até de alguns últimos ranchos de pauapique A vida cotidiana quando medida em seus pequenos ciclos do passar do tempo uma semana médios ciclos um ano agrí R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 6 17 Novas práticas novas tecnologias e novos insu mos entre maquinários e produtos químicos não raros impostos aos agri cultores patrimoniais pela mídia a serviço de bancos e de empresas multinacionais que não raro também acarretam o endividamento que torna o produtor pobre porém livre em um tra balhador dos credores de suas dívidas Não são poucos e crescem bas tante os casos de peque nos proprietários que perdem as suas terras como pagamento de dí vidas cola e longos ciclos os muitos anos de uma vida em boa me dida é ainda centrada no lugar rural onde a vida afetiva e a vida de trabalho se associam nos espaços consagrados do sítio campo nês a pequena propriedade familiar Em segundo lugar em seus entornos naturais e na comunidade vicinal próxima o arraial o bairro rural o povoado a vila o patrimônio Mas sítios e povoa dos camponeses tendem a ser mais e mais espaçoslugares satéli tes das cidades sejam elas a sede do município as cidadesmerca do ou mesmo as cidades de romaria e devoção18 E bem sabemos uma das diferenças de percepção espacial mais importantes será justamente o deslocamento do eixo das relações tendo como fo co o lugar onde vivo e trabalho e a cidade Entre as comunida des mais isoladas de predominância de economia de consumo o centro da vida é ainda um espaço natural fracamente socializado e a cidade é um referente tempoespacial difícil e distante Entre as comunidades camponesas tradicionais o centro da vida vivida e pensada é uma quase sinuosa linha que passa pela natureza de mora no lugar de trabalho e de natureza socializada e termina na cidade bastante mais marcada e próxima nas unidades sociais de economia de excedente do que nas anteriores Já entre as comuni dades e culturas próximas de ou já plenamente integradas em uma economia de mercado o espaçotempo de referência da vida pen sada e vivida é o da cidademercado Os lugares rurais são espaço de passagem e mais de um trabalho impessoal do que de vida e a natureza é um referente ora distante demais ora hostil o bastan te para valer apenas quando dominado apropriado e destruído MODERNIDADES E FALSAS MODERNIDADES ESPAÇOS RURAIS ONDE O PASSAR DO SOL JÁ NÃO MARCA MAIS AS HORAS E NEM A LUA O PASSAR DOS DIAS O simples viajar e ver desde a estrada longas paragens homogê neas de uma paisagem despovoada de bichos a não ser o gado e de pessoas a não ser os raros e passageiros trabalhadores even R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 7 18 Das pesquisas de campo que fiz em Goiás e em São Paulo com co munidades camponesas tradicionais gostaria de indicar a leitura de al guns capítulos de livros derivados de três delas Plantar colher comer Rio de Janeiro Graal 1978 A partilha da vida Taubaté GEIC Cabral 1995 O afeto da terra Campinas Editora da Unicamp 1999 tuais permite ao olhar de quem passa a imagem dos espaços de vida e trabalho de mulheres e homens que são agora os trabalha dores das solidões da terra e dos senhores do agronegócio As extensões homogêneas dos canaviaisdas plantações de so ja dos eucaliptais As paisagens que foram um dia florestas ou porções do cerrado ou mesmo frações bem menores de terrenos de policultura camponesa A uniformização quase absoluta da paisagem a derrocada da biodiversidade e de uma corresponden te humana sociodiversidade Eis a paisagem múltipla e no entan to tão uniforme dessa ilusória socialização extrema de espaços naturais Para que a terra produza em excesso o mito tecnoló gico da produtividade tanto seres e grupos humanos são reti rados das paisagens anteriores quanto a própria terra é subjuga da tornada plana vazia do que não sejam os espaços vazios da produção exaurida de recursos naturais e impregnada das quí micas do agronegócio A uma domestificação uniformizante dos espaços naturais ou patrimonialmente sociabilizados pelo trabalho da agricultu ra familiar corresponde uma absoluta entrega de temposespa ços rurais ao domínio da cidade Entre a máquina e a mídia o universo da racionalidade do modernourbano domina as pai sagens naturais e humanas do campo Não será ao acaso que a maioria dos seus trabalhadores braçais ou vivem em cidadesdor mitório próximas ou migram de espaços muito distantes como o vale do Jequitinhonha e vivem provisoriamente na periferia pobre das cidades Trabalhadores sazonais e impessoais Volantes voláteis que em geral sequer sabem em que lugar estão trabalhando por uma manhã um dia um par de dias Não é também ao acaso que em boa medida o trabalho realizado por essas turmas de trabalha dores volantes é bem mais o de queimar derrubar e colher do que o de tratar do solo feito por máquinas e semear A racionalidade empresarial imposta ao campo pouco a pouco inverte todos os eixos de uma lógica das relações socie dadenatureza e de uma ética nas interações entre as diferentes R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 8 categorias de atores culturais envolvidos em suas diferentes eco nomias e em seus diversos modos de vida Os espaçosvalor pas sam a ser os mais inteiramente entregues às monoculturas de mercado Isso em que pese o fato de que um número crescente de agroempresas redobre retóricas em favor da preservação do meio ambienteA transferência de símbolos e de significados in terativos típicos da fábrica moderna para espaçostempos rurais com foco sobre o binômio competênciacompetitividade em to dos os momentos e lugares da vida de pessoas e de comunida des desqualifica experiências e maneiras de ser e de produzir tí picos do campesinato No entanto uma típica e neocapitalística nova racionalida de da modernidade no campo brasileiro é falsa e enganosa Em quase todas as regiões modernizadas através da expansão de an tigas e novas alternativas de unidades de mercado no campo os mais arcaicos modos e métodos de expropriação da terra e de apropriação da força de trabalho disponível migrante e miserá vel estão ainda em plena vigência O agronegócio das empresas agrícolas pastoris madeireiras e de mineração preserva e mo derniza sistemas de trabalho fundados na escravidão na semi escravidão na servidão na exploração do trabalho de mulheres e de crianças Isso significa que a absoluta racionalidade da mo dernização do campo brasileiro se apóia organicamente em al ternativas bastante précapitalistas de conquista da terra e de posse e uso do trabalho19 Assim da mesma maneira como vemos pequenos produto res familiares sitiantes modernizados em luta contínua para se apropriarem precariamente de uma semelhante racionalidade e de equipamentos e padrões de trabalho pelo menos proporcio nalmente próximos aos do agronegócio vemos de outra parte as frentes de expansão capitalistas empregando as mais residuais es tratégias de apropriação da terra e do trabalho E não nos espan temos em imaginar que procedimentos semelhantes com outras normaspessoas e palavrassejam empregados também em unida des rurais de racionalidade empresarial no sul dos Estados Unidos R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 5 9 19 Lembro José de Souza Martins uma vez mais Embora as relações de produção indicadas co mo as de colonato e de arrendamento em espé cie não se configurem como tipicamente capi talistas é preciso não co meter o engano de atri buir as tensões da frente pioneira a essa atipici dade e portanto a um antagonismo de outra espécie capitalismopré capitalismo Essas rela ções são na verdade as possíveis e necessárias à acumulação e reprodu ção do capital Daí que a frente pioneira tenha sempre se apresentado como expressão limite do capitalismo no cam po e ao mesmo tempo tenha se apoiado em re lações sociais fundamen tais nãotipicamente ca pitalistas escravatura colonato arrendamento em espécie Na verdade o que caracteriza o capi talismo no campo não é a instauração de relações de produção típicas for muladas em termos e de compra e venda de força detrabalho por dinhei ro O que a caracteriza é a instauração da proprie dade privada da terra is to é a mediação da ren da capitalizada entre o produtor e a sociedade Op cit p 49 50 da América O que seria da produção agrícola de lá sem o traba lho clandestino e semiservil de trabalhadores mexicanos Em termos do que se passa na esfera das imagens e idéias de configurações de culturas e entre culturas sabemos que através de um processo bastante bemconhecido em um primeiro mo mento as imagensidéias e as pautas de identidade e de princípios de relacionamentos entre categorias sociais deentre pessoas en tre elas e o mundo natural e entre elas e os símbolos e significa dos do correr da vida cotidiana são aos poucos trazidas de lon gee propostas e impostas de vários modos Um estilo tradicional de vida no seu todo e em cada um dos seus campos começa a ser pouco a pouco desqualificado quando os agentes do progresso traduzem como atrasotudo o que não é o seu espelho Tais con traimagens e idéias em que o negócio toma o lugar da vida en quanto o country rotula o sertanejo ou o caipira como res quícios ou reminiscências a meio caminho entre o preservado e o pitoresco Em um segundo momento padrões e sistemas de tais novas pautas do ser viver pensar e produzir são internalizados a co meçar entre os mais jovens moças e rapazes pelos atores sociais populares e são incorporados como modernos e contraditórios valores entretecidos com o que é próprio de suas culturas patri moniais Ressalto que as diferenças e as divergências entre gera ções entre pais e filhos têm aqui um papel muito grande Finalmente um novo campo de símbolos de sentidos de vi da e de significações do mundo de racionalidades em Milton Santos se sobrepõe tornando artificialmente moderno o que era tradicional e transformando em folcloricamente típico o que antes fora próprio O que equivale em transformar pouco a pouco a vida rural em um simulacro da urbana e o que era ri tual da comunidade em espetáculo para uma platéia de outros Assim da culinária às crenças religiosas da vestimenta aos ritos da comunidade camponesa das éticas e técnicas do labor e do trabalho às próprias estéticas da vida tudo se redefine no todo ou em partes relevantes e crescentes nas diferentes culturas ru R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 6 0 rais que já utilizam o relógio e o trator mas ainda consideram importante perguntar aos sinais naturais do tempo como have rá de ser o inverno que se aproxima Mais do que na solidão das áreas de planuras deserdadas da monocultura é talvez nos cenários das grandes festas da moder nidade rural que as diferenças se tornam social e simbolicamen te mais visíveis Pois aqui as festas comunitárias aos santos pa droeiros e aos momentos de celebração da solidariedade familiar e vicinal transformamse nas grandes festas de produtos ou nas grandes feiras de pecuária em que o sucesso é medido pelas cifras de milhões nas compras e vendas de bois e vacas ou nas festas de peão de boiadeiro em que os rituais se transformam em espetáculos as tradições em atrações e em que os cenários dos acontecimentos se deslocam dos adros de igrejas e das praças das pequenas cidades para os grandes estádios consagrados a eventos regidos por competições premiadas onde homens e ani mais competem entre si e com outros homens20 Essas grandes festas e feiras em que a máquina e o produto substituem o san to e a pessoa são a melhor metáfora da modernização uniformi zante do campo Mas se assim é podemos prosseguir com ela para pensar o seu outro lado Longe dos grandes palcos e nos intervalos dos pi cadeiros não são poucas as expressões da vida rural camponesa que por ali também circulam Onde a um primeiro olhar to dos os espaços do acontecer parecem dominados por uma mes ma cultura de celebração country dos imaginários globalizados do agronegóciocoexistem inúmeras áreas liminares de fronteiraUm domínio simbólico uniformizante e cuidadosamente programa do é entrecortado todo o tempo e em quase todos os espaços da cidade e da festa De certa maneira algo semelhante ocorre até mesmo nas áreas rurais do Brasil mais dominadas pela monocultura do agronegócio Um inventário criterioso sobre a sociodiversidade na ocupação de territórios aponta a coexistência supostamente pacífica e a presença crescente de conflitos a hegemonia nunca R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 6 1 20 Ver como um exce lente exemplo O chão é o limite A festa de peão de boiadeiro e a domestica ção do sertão de Sidney Valadares Pimentel pu blicado pela Editora da Universidade Federal de Goiás em 1997 Para se ter uma idéia da trans formação de produtos em símbolos de uma so ciedade através de suas festas em Felixlândia no norte de Minas Gerais de uns anos para cá cele brase uma grande Festa do Carvão estável e tranqüila dos espaços do agronegócio a dependência que a economia rural de mercado tem da vizinhança da econo mia de subsistência e também de uma força volante de trabalho que o avanço da tecnologia agrícola ainda não resolveu o cres cimento das frentes de luta em favor da reforma agrária e da cau sa ambiental Um olhar algo mais complexo e interativo sobre os horizon tes dos mundos rurais deveria convidarnos a uma leitura não tanto do que real ou ilusoriamente domina espaços e campos de relações rurais mas do que em seus intervalos e de maneira bem mais ativa e diferenciada do que podemos imaginar existe ainda resiste e se renova para reocupar espaços e reinventar formas de ser e viver no campo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRANDÃO Carlos Rodrigues Plantar colher comer um estudo sobre o campesinato goiano Rio de Janeiro Graal 1978 A partilha da vida Taubaté GEIC Cabral 1995 O afeto da terra imaginários sensibilidades e motivações de relacionamentos com a natureza e o meio ambiente entre agri cultores e criadores sitiantes do bairro dos Pretos nas encostas pau listas da serra da Mantiqueira em Joanópolis Campinas Editora da Unicamp 1999 CANDIDO Antonio Os parceiros do Rio Bonito estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida São Pau lo Duas Cidades 1971 EVANSPRITCHARD Edward Evan Os Nuer uma descrição do mundo de subsistência e das instituições políticas de um povo nilo ta São Paulo Perspectiva 1978 GARCIA JRAfrânio Terra de trabalho trabalho familiar e peque nos agricultores Rio de Janeiro Paz e Terra 1983 GRAZIANO NETO Francisco Questão agrária e ecologia Críti ca da moderna agricultura São Paulo Brasiliense 1982 R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 6 2 IANNI Octavio A era do globalismo Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 MARTINS José de Souza Capitalismo e tradicionalismo estudos sobre as contradições da sociedade agrária no Brasil São Paulo Pio neira 1975 MAUSSMarcelEnsaio sobre a dádivaSão PauloCosac Naify2004 MOURA Margarida Maria Os herdeiros da terra parentesco e he rança numa área rural São Paulo Hucitec 1978 Os deserdados da terra a lógica costumeira e judicial dos processos de expulsão e invasão da terra camponesa Rio de Janei ro Bertrand Brasil 1988 MUSUMECI Leonarda O mito da terra liberta colonização es pontânea campesinato e patronagem na Amazônia Oriental São Paulo Vértice Brasília Anpocs 1988 MULLER Nice L Sítios e sitiantes no estado de São Paulo Bo letim USP n 132 Geografia São Paulo 1951 NORONHA Olinda Maria de De camponesa a madame Traba lho feminino e relações de saber no meio ruralSão PauloLoyola1986 PESSOA Jadir de Moraes Cotidiano e história Goiás Editora da Universidade Federal de Goiás 1997 PESSOA Vera Lúcia Salazar Entre o rural e o urbano Cons truindo grupos de pesquisas MesaRedonda III Grupos de Pesquisa Agricultura e Desenvolvimento Regional Relatos de Experiências Seminário sobre a Reforma Agrária Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia p 1 PIMENTEL Sidney Valadares O chão é o limite A festa de peão de boiadeiro e a domesticação do sertão Goiás Editora da Univer sidade Federal de Goiás 1997 QUEIROZ Maria Isaura Pereira de Bairros rurais paulistas dinâ mica das relações bairro ruralcidade São Paulo Duas Cidades 1973 O campesinato brasileiro ensaios sobre civilização e gru pos rústicos no Brasil Petrópolis Vozes 1976 SANTOS Milton Espaços da racionalidade A natureza do es paço técnica e tempo razão e emoção São Paulo Edusp 2002 R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 6 3 SHIRLEY Robert W O fim de uma tradição cultura e desenvolvi mento no município de Cunha São Paulo Perspectiva 1971 SOARES Luiz Eduardo Campesinato ideologia e política Rio de Janeiro Zahar 1981 TURNER Victor Drams fields and metaphors symbolic action in human society Ithaca Cornell University Press 1985 WILLEMS Emílio Cunha Tradição e transição em uma cultura rural no Brasil Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo 1947 WOORTMANN EllenO sítio camponês Anuário Antropológi co n 81 Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1983 WOORTMANNKlaasA comidaa família e a construção do gê nero feminino Dados Revista de Ciências Sociais v 29 n 1 Rio de Janeiro Campus 1986 Com parente não se neguceia o campesinato como ordem moral Anuário Antropológico n 87 Brasília Editora Uni versidade de Brasília Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1990 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO é professor visitante do Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia e do doutorado em ambiente e sociedade da Unicamp e pesquisador do Ceres Este texto inédito foi apresentado no Encon tro sobre a Reforma Agrária em junho de 2006 na Universidade Federal de Uber lândia R U R I S V O L U M E 1 N Ú M E R O 1 M A R Ç O D E 2 0 0 7 6 4