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História

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MICHEL DE CERTEAU A ESCRITA DA HISTORIA Tradução de Maria de Lourdes Menezes Revisão Técnica Arno Vogel FORENSEUNIVERSITÁRIA RIO DE JANEIRO Primeira edição brasileira 1982 Traduzido de LÉCRITURE DE LHISTOIRE Copyright Éditions Gallimard 1975 Capa de Rimsky CIPBrasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ C411e 820482 Certeau Michel de A Escrita da históriaMichel de Certeau tradução de Maria de Lourdes Menezes revisão técnica de Arno Vogel Rio de Janeiro Forense Universitária 1982 Tradução de Lécriture de lhistoire Bibliografia 1 História Filosofia 2 Historiografia I Menezes Maria de Lourdes trad II Título CDD 901 9072 CDU 9301 8294 Reservados os direitos de propriedade desta tradução pela EDITORA FORENSE UNIVERSITÁRIA Av Erasmo Braga 227 grupo 309 Rio de Janeiro Impresso no Brasil Printed in Brazil httpgroupsgooglecombrgroupdigitalsource SUMÁRIO Prefácio à 2ª edição 5 Escritas e Histórias 8 Primeira Parte AS PRODUÇÕES DO LUGAR I FAZER HISTÓRIA 23 1 Um indício O tratamento da ideologia religiosa em história 25 2 Práticas históricas e práxis social 34 3 A história discurso e realidade 40 4 A história como mito 50 II A OPERAÇÃO HISTORIOGRAFICA 56 1 Um lugar social 57 O nãodito 58 A instituição histórica 60 Os historiadores na sociedade 65 O que permite e o que proíbe o lugar 69 2 Uma prática 70 A articulação naturezacultura 72 O estabelecimento das fontes ou redistribuição do espaço 74 Fazer surgir diferenças do modelo ao desvio 79 O trabalho sobre o limite 82 Crítica e história 86 3 Uma escrita 89 A inversão escriturária 89 A cronologia ou a lei mascarada 92 A construção desdobrada 96 O lugar do morto e o lugar do leitor 104 Segunda Parte A PRODUÇÃO DO TEMPO UMA ARQUEOLOGIA RELIGIOSA INTRODUÇÃO QUESTÕES DE MÉTODO 109 III A INVERSÃO DO PENSAVEL A HISTÓRIA RELIGIOSA DO SÉCULO XVII 116 1 A religião durante a idade clássica 116 2 A interpretação histórica 130 IV A FORMALIDADE DASPRATICAS DO SISTEMA RELIGIOSO À ÉTICA DAS LUZES XVIIXVIII 136 1 Da divisão das Igrejas à Razão de Estado século XVII 139 2 Uma nova formalidade das práticas A politização dos comportamentos 146 3 A lógica do praticante 151 4 A ética filosófica legalidade e utilidade no século XVIII 161 5 As leis próprias do grupo religioso 173 Terceira Parte OS SISTEMAS DE SENTIDO O ESCRITO E O ORAL V ETNOGRAFIA A paginação deste índice corresponde aa edição digital A paginação original foi inserida entre colchetes do decorrer do texto A ORALIDADE OU O ESPAÇO DO OUTRO LÉRY 189 1 A lição de escrita em Jean de Léry 1578 192 2 A reprodução escrituraria 196 3 Uma hermenêutica do outro 199 4 A palavra erotizada 207 5 Visto eou escutado 211 VI A LINGUAGEM ALTERADA A PALAVRA DA POSSUÍDA 219 1 Transgressão e interdição 223 2 Documentos alterados 226 3 Eu é um outro a perversão da linguagem 229 4 Construção e demolição de um lugar 232 5 O quadro dos nomes próprios uma toponímia mexida 235 6 A mentira da interpretação 238 VII UMA VARIANTE A EDIFICAÇÃO HAGIOGRÁFICA 242 1 História e sociologia 243 2 A estrutura do discurso 248 3 Uma geografia do sagrado 252 Quarta Parte AS ESCRITAS FREUDIANAS VIII O QUE FREUD FEZ DA HISTÓRIA A PROPÓSITO DE UMA NEUROSE DEMONÍACA NO SÉCULO XVII 256 O histórico produção da Aufkhrung freudiana257 Para uma história do século XVII 261 Do passado legível ao presente oculto 263 Ocultar trabalho da história 266 As substituições do pai 268 O ato e a lei 271 IX A FICÇÃO DA HISTÓRIA A ESCRITA DE MOISÉS E O MONOTEÍSMO 275 O discurso de fragmentos ou o corpo do texto 276 Escrever na língua do outro ou a ficção 283 A tradição da morte ou a escrita 290 O quiproquo ou a comédia do próprio 297 O romance da história 311 PREFACIO A 2ª EDIÇÃO Américo Vespúcio o Descobridor vem do mar De pé vestido encouraçado cruzado trazendo as armas européias do sentido e tendo por detrás dele os navios que trarão para o Ocidente os tesouros de um paraíso Diante dele a América Índia mulher estendida nua presença não nomeada da diferença corpo que desperta num espaço de vegetações e animais exóticos1 Cena inaugural Após um momento de espanto neste limiar marcado por uma colunata de árvores o conquistador irá escrever o corpo do outro e nele traçar a sua própria história Fará dele o corpo historiado o brasão de seus trabalhos e de seus fantasmas Isto será a América Latina Esta imagem erótica e guerreira tem valor quase mítico Ela representa o início de um funcionamento novo da escrita ocidental Certamente a encenação de Jan Van der Atraet esboça a surpresa diante desta terra que Américo Vespúcio foi o primeiro a perceber claramente como uma nuova terra ainda inexistente nos mapas2 corpo desconhecido destinado a trazer o nome de seu inventor Américo Mas o que assim se disfarça é uma colonização do corpo pelo discurso do poder É a escrita conquistadora Utilizará o Novo Mundo como uma página em branco Pg 009 selvagem para nela escrever o querer ocidental Transforma o espaço do outro num campo de expansão para um sistema de produção A partir de um corte entre um sujeito e um objeto de operação entre um querer escrever e um corpo escrito ou a escrever fabrica a história ocidental A escrita da história é o estudo da escrita como prática histórica Se há quatro séculos todo empreendimento científico tem como características a produção de artefatos lingüísticos autônomos línguas e discursos próprios e sua capacidade de transformar as coisas e os corpos dos quais se distinguiram uma reforma ou revolução do mundo envolvente segundo a lei do texto a escrita da história remete a uma história moderna da escrita Na verdade este livro foi inicialmente concebido como uma série de estudos destinados a marcar etapas cronológicas dessa prática no século XVI a organização etnográfica da escrita na sua relação com a oralidade selvagem primitiva tradicional ou popular que ela constitui como seu outro 1 Cf a reprodução da página de frente N da T M de Certeau explora ao longo de toda a obra o duplo sentido que apresenta em francês a palavra écriture escrita e escritura eventualmente Escritura referindose ao texto da revelação judaicocristã 2 Cf W E Washbum The meaning of discovery in the 15th and 16th century in American Historical Review 1962 p 1 ss Urs Bitterli Die Wilden und die Zivilisierten Grundzüge einer Geistes und Kulturgeschichte der europäischüberseeischen Begegnung München C H Beck 1976 p 1880 terceira parte deste livro nos séculos XVII e XVIII a transformação das Escritas cristãs legibilidade de um cosmos religioso em representações puras ou em superstições marginalizadas por um sistema ético e técnico das práticas capazes de construir uma história humana segunda parte no limiar do século XX o retomo da alteridade reprimida graças à prática escriturária de Freud quarta parte finalmente o sistema atual da indústria historiográfica3 que articula um lugar sócioeconômico de produção as regras científicas de um domínio e a construção de um relato ou texto primeira parte A estes estudos se acrescenta aquele que concerne em fins do século XVIII à luta de uma racionalidade escriturária esclarecida revolucionária e jacobina contra as flutuações idiomáticas das oralidades regionalizantes4 Mais do que proceder a esta reconstituição cronológica por demais dócil à ficção de uma linearidade do tempo5 pareceu preferível tomar visível o lugar presente onde esta interrogação tomou forma a particularidade do campo do material e dos processos da historiografia moderna que permitiram analisar a operação escriturária e os desvios metodológicos semióticos psicanalíticos etc que introduziram outras possibilidades teóricas e práticas no funcionamento ocidental da escrita Donde este discurso fragmentado feito de investigações táticas obedientes cada uma a regras próprias abordagem sócioepistemológica primeira parte histórica segunda parte semiótica terceira parte psicanalítica e freudiana quarta parte Recusar a ficção de uma metalinguagem que unifica o todo é deixar aparecer a relação entre os procedimentos científicos limitados e Pg 010 aquilo que lhes falta do real ao qual se referem É evitar a ilusão necessariamente dogmatizante própria do discurso que pretende fazer crer que é adequado ao real ilusão filosófica oculta nos preâmbulos do trabalho historiográfico e da qual Schelling reconheceu maravilhosamente a ambição tenaz O relato dos fatos reais é doutrinal para nós Este relato engana porque acredita fazer a lei em nome do real A historiografia quer dizer história e escrita traz inscrito no próprio nome o paradoxo e quase o oximoron do relacionamento de dois termos antinômicos o real e o discurso Ela tem a tarefa de articulálos e onde este laço não é pensável fazer como se os articulasse Da relação que o discurso mantém com o real do qual trata 3 A expressão é de Marx A indústria é o laço real e histórico entre a natureza e o homem e é o fundamento da ciência humana Sobre a indústria historiográfica cf M de Certeau Écriture et histoire in Politique aujourdhui décembre 1975 p 6577 4 Michel de Certeau Dominique Julia e Jacques Revel Une politique de la langue La Revolution française et les patois Gallimard Bibliothèque des Histoires 1975 320 p 5 Cf infra cap II 3 nasceu este livro6 Que aliança é esta entre a escrita e a história Ela já era fundamental na concepção judaicocristã das Escrituras Daí o papel representado por essa arqueologia religiosa na elaboração moderna da historiografia que transformou os termos e mesmo o tipo desta relação passada para lhe dar aspecto de fabricação e não mais de leitura ou de interpretação Desse ponto de vista o reexame da operatividade historiográfica desemboca por um lado num problema político os procedimentos próprios ao fazer história e por outro lado na questão do sujeito do corpo e da palavra enunciadora questão reprimida ao nível da ficção ou do silêncio pela lei de uma escrita científica7 Pg 011 Notas Pg 012 6 A este respeito cf M de Certeau e Régine Robin Le discours historique et le réel in Dialectiques n 14 été 1976 p 4162 Cf 7 infra Quarta Parte e M de Certeau La fable du sujet Langage mystiques du X VIIe siècle no prelo ESCRITAS E HISTÓRIAS Estudioso e benevolente terno como o sou para com todos os mortos ia assim de idade em idade sempre jovem jamais cansado durante milhares de anos O caminho meu caminho parece se apossar deste texto de caminhante Eu ia vagava percorri minha estrada ia viajante corajoso Caminhar eou escrever é o trabalho sem trégua pela força cio desejo sob as esporas de uma curiosidade ardente que nada poderia deter Michelet multiplica as visitas com indulgência e temor filial para com os mortos que são os beneficiários de um estranho diálogo mas também com a certeza de que não se poderia reacender o que a vida abandonou No sepulcro habitado pelo historiador não existe senão o vazio1 A intimidade com o outro mundo 2 é pois sem perigo esta segurança me tornou ainda mais benevolente para com estes que não poderiam me fazer mal Cada dia ele se torna mesmo mais jovem no trato com este mundo morto definitivamente outro Após terem percorrido passo a passo a História da França as sombras retornaram menos tristes aos seus túmulos3 O discurso reconduziuas para lá Fez delas entes apartados Ele as honra com um ritual que lhes fazia falta Ele as chora cumprindo um dever de piedade filial que é também uma injunção de um sonho de Freud inscrito numa estação de estrada de ferro Pedese fechar os olhos4 A ternura de Michelet vai Pg 013 de uns aos outros para os introduzir no tempo este todo poderoso decorador de ruínas O Time beautifying things5 Os caros desaparecidos entram no texto porque não podem mais fazer mal nem falar Esses espectros são acolhidos na escrita sob a condição de se calarem para sempre Um outro luto mais grave se acrescenta ao primeiro O Povo também é apartado Nasci povo tinha o povo no coração Mas sua língua sua língua me era inacessível Não pude fazêla falar6 Silencioso também para ser objeto do poema que fala de si Certamente ele autoriza a escrita do historiador mas por isso mesmo está ausente dela Esta Voz não fala Infans Não existe senão fora dela mesma no discurso de Michelet mas lhe permite ser um escritor popular de lançar fora o orgulho e 1 Jules Michelet LHéroisme de lesprit 1869 projeto inédito de Prefácio à Histoire de France in LArc n 52 1973 p 75 e 8 2 J Michelet Préface à lHistoire de France ed Morazé A Colin 1962 p 175 3 J Michelet L Héroisme de lesprit op cit p 8 N da T separés 4 Cf infra p 299 5 J Michelet L Héroisme de lesprit op cit p 8 6 Citado por Roland Barthes Aujourdhui Michelet in LArc op cit p 26 tornandose grosseiro e bárbaro perder aquilo que me restava de sutileza literária7 O outro é o fantasma da historiografia O objeto que ela busca que ela honra e que ela sepulta Um trabalho de separação se efetua com respeito a esta inquietante e fascinante proximidade Michelet se estabeleceu na fronteira onde de Virgílio a Dante construíramse ficções que não eram ainda história Este lugar indica a questão posteriormente articulada pelas práticas científicas e da qual uma disciplina se encarregou A única pesquisa histórica do sentido permanece com efeito a do Outro8 porém este projeto contraditório pretende compreender e esconder com o sentido a alteridade deste estranho ou o que vem a ser a mesma coisa acalmar os mortos que ainda freqüentam o presente e oferecerlhes túmulos escriturários O discurso da separação a escrita A história moderna ocidental começa efetivamente com a diferenciação entre o presente e o passado Desta maneira se distingue também da tradição religiosa da qual entretanto não conseguirá jamais separarse totalmente mantendo com esta arqueologia uma relação de dívida e de rejeição Finalmente a terceira forma deste corte que organiza também o conteúdo nas relações do trabalho com a natureza supõe em toda parte uma clivagem entre o discurso e o corpo social Ela faz falar o corpo que se cala Supõe uma decolagem entre a opacidade silenciosa da realidade que ela pretende dizer e o lugar onde produz seu discurso protegida por um distanciamento do seu objeto Gegenstand A violência do corpo não alcança a página escrita senão através da ausência pela intermediação dos documentos que o historiador pode ver na praia de onde se retirou a presença Pg 014 que ali os havia deixado e pelo murmúrio que deixa perceber longinquamente a imensidão desconhecida que seduz e ameaça o saber Uma estrutura própria da cultura ocidental moderna está evidentemente indicada nesta historiografia a inteligibilidade se instaura numa relação com o outro se desloca ou progride modificando aquilo de que faz seu outro o selvagem o passado o povo o louco a criança o terceiro mundo Através dessas variantes heterónomas entre si etnologia história psiquiatria pedagogia etc se desdobra uma problemática articulando um saberdizer a respeito daquilo que o outro cala e garantindo o trabalho 7 J Michelet LHéroisme de lesprit op cit p 1213 8 Alphonse Dupront Langage et histoire in XIIIe Congrès international des sciences historiques Moscou 1970 interpretativo de uma ciência humana através da fronteira que o distingue de uma região que o espera para ser conhecida A medicina moderna é uma imagem decisiva deste processo a partir do momento em que o corpo se toma um quadro legível e portanto tradutível naquilo que se pode escrever num espaço de linguagem Graças ao desdobramento do corpo diante do olhar o que dele é visto e o que dele é sabido pode se superpor ou se intercambiar se traduzir O corpo é um código à espera de ser decifrado Do século XVII ao X VIII o que torna possível a convertibilidade do corpo visto em corpo sabido ou da organização espacial do corpo em organização semântica de um vocabulário e inversamente é a transformação do corpo em extensão em interioridade aberta como um livro em cadáver mudo exposto ao olhar9 Uma mutação análoga se produz quando a tradição corpo vivido se desdobra diante da curiosidade erudita em um corpus de textos Uma medicina e uma historiografa modernas nascem quase simultaneamente da clivagem entre um sujeito supostamente letrado e um objeto supostamente escrito numa linguagem que não se conhece mas que deve ser decodificada Estas duas heterologias discursos sobre o outro se construíram em função da separação entre o saber que contém o discurso e o corpo mudo que o sustenta Inicialmente a historiografia separa seu presente de um passado Porém repete sempre o gesto de dividir Assim sendo sua cronologia se compõe de períodos por exemplo Idade Média História Moderna História Contemporânea entre os quais se indica sempre a decisão de ser outro ou de não ser mais o que havia sido até então o Renascimento a Revolução Por sua vez cada tempo novo deu lugar a um discurso que considera morto aquilo que o precedeu recebendo um passado já marcado pelas rupturas anteriores Logo o corte é o postulado da interpretação que se constrói a partir de um presente e seu objeto as divisões organizam as representações a serem reinterpretadas O trabalho determinado por este Pg 015 corte é voluntarista No passado do qual se distingue ele faz uma triagem entre o que pode ser compreendido e o que deve ser esquecido para obter a representação de uma inteligibilidade presente Porém aquilo que esta nova compreensão do passado considera como não pertinente dejeto criado pela seleção dos materiais permanece negligenciado por uma explicação apesar de tudo retorna nas franjas do discurso ou nas suas falhas resistências sobrevivências ou atrasos perturbam discretamente a perfeita ordenação de um progresso ou de um sistema de interpretação São lapsos na sintaxe construída pela lei 9 Cf particularmente Michel Foucault Naissance de la clinique P U F 1963 p VXV de um lugar Representam aí o retomo de um recalcado quer dizer daquilo que num momento dado se tomou impensável para que uma identidade nova se tomasse pensáveL Muito longe de ser genérica esta construção é uma singularidade ocidental Na Adia por exemplo as novas formas não expulsaram as antigas O que existe é o empilhamento estratificado A marcha do tempo não tem mais necessidade de se certificar pelo distanciamento de passados do que um lugar tem de se definir distinguindose de heresias Pelo contrário um processo de coexistência e de reabsorção é o fato cardeal da história indiana10 Da mesma forma entre os Merina de Madagascar os tetiarana antigas listas genealógicas depois os tantara história passada formam uma herança das orelhas lovantsofma ou uma memória da boca tadidivava muito ao contrário de ser um objeto deixado para trás a fim de que um presente autônomo se tome possível é um tesouro situado no centro da sociedade que é o seu memorial um alimento destinado à manducação e à memorização A história é o privilégio tantara que é necessário recordar para não esquecerse a si próprio Ela situa o povo no centro dele mesmo estendendoo de um passado a um futuro11 Entre os Fô do Daomé a história é remuho a palavra destes tempos passados palavra ho quer dizer presença que vem de montante e conduz a juzante Nada de comum com a concepção aparentemente próxima mas na verdade de origem etnográfica eou museográfica que dissociando a atualidade e a tradição impondo pois a ruptura entre um presente e um passado e mantendo a relação ocidental da qual ela se contenta de inverter os termos define a identidade por um retorno a uma negritude passada ou marginalizada12 É inútil multiplicar fora de nossa historiografia os exemplos que atestam uma outra relação com o tempo ou o que vem a ser o mesmo uma outra relação com a morte No ocidente o grupo ou indivíduo se robustece com aquilo que exclui é a criação de um lugar próprio e encontra Pg 016 sua segurança na confissão que extrai de um dominado assim se constitui o saber desobre o outro ou ciência humana É que ele sabe efêmera toda vitória sobre a morte fatalmente a desgraçada retorna e ceifa A 10 Louis Dumont La Civilisation indienne et nous A Colin Cahiers des Annales 1964 p 3154 Le problème de lhistoire 11 Cf Alain Delivré Interprétation dune tradition orale Histoire des rois dlmerina Paris tese da Sorbonne mimeografado 1967 principalmente a 2 parte p 143227 Structure de la pensée ancienne et sens de lhistoire 12 Acerca deste último ponto cf Stanislas Adotevi Négritude et négrologues Coll 1018 1972 p 148 153 morte assombra o Ocidente Por este motivo o discurso das ciências humanas é patológico discurso do pathos infelicidade e ação apaixonada numa confrontação com esta morte que a nossa sociedade deixa de poder pensar como um modo de participação na vida Por sua conta a historiografla supõe que se tornou impossível acreditar nesta presença dos mortos que organizou organiza a experiência de civilizações inteiras e portanto que é impossível remeterse a ela aceitar a perda de uma solidariedade viva com os desaparecidos ratificar um limite irredutível O perecível é seu dado o progresso sua afirmação Um é a experiência que o outro condena e combate A historiografia tende a provar que o lugar onde ela se produz é capaz de compreender o passado estranho procedimento que apresenta a morte corte sempre repetido no discurso e que nega a perda fingindo no presente o privilégio de recapitular o passado num saber Trabalho da morte e trabalho contra a morte Este procedimento paradoxal se simboliza e se efetua num gesto que tem ao mesmo tempo valor de mito e de rito a escrita Efetivamente a escrita substitui as representações tradicionais que autorizavam o presente por um trabalho representativo que articula num mesmo espaço a ausência e a produção Na sua forma mais elementar escrever é construir uma frase percorrendo um lugar supostamente em branco a página Mas a atividade que recomeça a partir de um tempo novo separado dos antigos e que se encarrega da construção de uma razão neste presente não é ela a historiografia Há quatro séculos no Ocidente me parece que fazer a história remete à escrita Pouco a pouco ela substitui todos os mitos da antiguidade por uma prática significante Como prática e não como os discursos que são o seu resultado ela simboliza uma sociedade capaz de gerir o espaço que ela se dá de substituir a obscuridade do corpo vivido pelo enunciado de um querer saber ou de um querer dominar o corpo de transformar a tradição recebida em texto produzido finalmente de constituirse página em branco que ela mesma possa escrever Prática ambiciosa móvel utópica também ligada à incansável instauração de campos próprios onde inscrever um querer em termos de razão Ela tem valor de modelo científico Não se interessa por uma verdade escondida que seria necessário encontrar ela constituiu símbolo pela própria relação entre um espaço novo recortado no tempo e um modus operandi que fabrica cenários susceptíveis de organizar práticas num discurso hoje Pg 017 inteligível aquilo que é propriamente fazer história Indissociável até agora do destino da escrita no Ocidente moderno e contemporâneo a historiografia tem entretanto esta particularidade de apreender a invenção escriturária na sua relação com os elementos que ela recebe de operar onde o dado deve ser transformado em construído de construir as representações com os materiais passados de se situar enfim nesta fronteira do presente onde simultaneamente é preciso fazer da tradição um passado excluíla sem perder nada dela explorála por intermédio de métodos novos História e política um lugar Supondose um distanciamento da tradição e do corpo social a historiografia se apóia em última instância num poder que se distingue efetivamente do passado e do todo da sociedade O fazer história se apóia num poder político que criou um lugar limpo cidade nação etc onde um querer pode e deve escrever construir um sistema uma razão que articula práticas Constituindose espacialmente e distinguindose sob a forma de um querer autônomo o poder político nos séculos XVI e XVII também dá lugar a exigências do pensamento Duas tarefas se impõem particularmente importantes do ponto de vista da historiografla a qual vão transformar através de juristas e de politistas De um lado o poder deve se legitimar simulando acrescentar à força que o efetiva uma autoridade que o torna crível De outro lado a relação entre um querer fazer história um sujeito da operação política e o meio ambiente sob o qual se recorta um poder de decisão e de ação pede uma análise das variáveis colocadas em jogo por toda intervenção que modifica esta relação de forças uma arte de manipular a complexidade em fração de objetivos e portanto um cálculo das relações possíveis entre um querer aquele do príncipe e um quadro os dados de uma situação Nisto é possível reconhecer dois traços da ciência que constroem do século XVI ao XVIII os historiógrafos freqüentemente juristas e magistrados junto ao e a serviço do príncipe a partir de um lugar privilegiado onde para a utilidade do Estado e do bem público devem fazer concordar a veracidade da letra e a eficácia do poder a primeira dignidade da literatura e a capacidade de um homem de governo13 De um lado este discurso autoriza a força que exerce o poder ele a provê de uma genealogia familiar política ou moral dá crédito à utilidade presente do príncipe quando a transforma em valores que organizam a representação do passado Por Pg 018 outro lado o quadro constituído por este passado e que é o equivalente dos cenários atuais 13 Cf para não citar senão um caso Dieter Gembicki JacobNicolas Moreau et son Mémoire sur les fonctions dun historiographe de France 17781779 in Dixhuitième siècle n94 1972 p 191215 A relação entre uma literatura e um serviço do Estado permanecerá central da historiografia do século XIX e da primeira metade do século XX da prospectiva formula modelos praxeológicos e através de uma série de situações uma tipologia das relações possíveis entre um querer concreto e as variantes conjunturais analisando as derrotas e as vitórias ele esboça uma ciência das práticas do poder Em virtude disto não se contenta em justificar historicamente o príncipe oferecendolhe um brazão genealógico É uma lição dada por um técnico da administração política Desde o século XVI ou para usar referências bem precisas após Maquiavel e Guichardin14 a historiografia deixa de ser a representação de um tempo providencial quer dizer de uma história decidida por um sujeito inacessível e compreensível apenas através dos signos que dá de sua vontade Ela toma a posição do sujeito da ação a do príncipe a que tem como objetivo fazer história Confere à inteligência a função de modalizar os jogos possíveis entre um querer e as realidades das quais se distingue Sua própria definição lhe é fornecida por uma razão de Estado construir um discurso coerente que particularize os golpes de que um poder é capaz em função de dados de fato graças a uma arte de tratar os elementos impostos por um meio ambiente Esta ciência é estratégica por seu objeto a história política ela o é igualmente noutro terreno por seu método de manejo dos dados arquivos ou documentos Entretanto é por uma espécie de ficção que o historiador se dá este lugar Com efeito ele não é o sujeito da operação da qual é o técnico Não faz a história pode apenas fazer história essa formulação indica que ele assume parte de uma posição que não é a sua e sem a qual um novo tipo de análise historiográfica não lhe teria sido possível Está apenas junto do poder Recebe também dele sob formas mais ou menos explícitas as diretrizes que em todos os países modernos conferem à história desde as teses até os manuais a tarefa de educar e de mobilizar Seu discurso será magisterial sem ser de mestre da mesma forma que dará lições de como governar sem conhecer as responsabilidades nem os riscos de governar Pensa o poder que não possui Sua análise se desdobra ao lado do presente numa encenação do passado análoga à que o projetista produz em termos de futuro defasada também com relação ao presente Por se encontrar tão próximo dos problemas políticos porém sem estar no lugar onde se exerce o poder político a historiografia goza de um estatuto ambivalente que se mostra mais visivelmente na sua arqueologia moderna Estranha situação ao mesmo 14 De fato é necessário ir mais longe a Commynes 14471511 aos cronistas florentinos enfim à lenta transformação da história que produziram em fins da Idade Média a emancipação das cidades sujeitos de poder e a autonomia dos juristas técnicos pensadores e servidores deste poder tempo crítica e fictícia Ela está indicada com particular nitidez nos Discorsi e nas Istorie fiorentine de Pg 019 MaquiaveL Quando o historiador busca estabelecer no lugar do poder as regras da conduta política e as melhores instituições políticas representa o príncipe que não é analisa o que deveria fazer o príncipe Esta é a ficção que abre ao seu discurso o espaço onde se inscreve Ficção efetiva que por ser ao mesmo tempo o discurso do senhor e do servidor de ser permitida pelo poder e defasada com relação a ele numa posição onde o técnico resguardado como mestre de pensamento pode tornar a representar problemas de príncipe15 Ele depende do príncipe de fato e produz o príncipe possíveli16 Deve pois fazer como se o poder efetivo fosse dócil à sua lição ao mesmo tempo que contra toda evidência esta lição espera do príncipe que este se introduza numa organização democrática De modo que esta ficção questiona e torna quimérica a possibilidade para a análise política de encontrar seu prolongamento na prática efetiva do poder Nunca o príncipe possível construído pelo discurso será o príncipe de fato Nunca será ultrapassado o fosso que separa a realidade do discurso e que devota este último à futilidade17 pelo próprio fato de ser rigoroso Frustração originária que tornará fascinante para o historiador a efetividade da vida política da mesma maneira inversamente o homem político será levado a tomar a posição de historiador e a representar aquilo que fez para o pensar e autorizar esta ficção se traduz também o fato de que o historiador analisa situações lá onde para um poder se tratava de objetivos a realizar Um recebe como já feito aquilo que o político deve fazer Aqui o passado é a conseqüência de uma falta de articulação com o fazer a história O irreal se insinua nesta ciência da ação usando a ficção que consiste em fazer de conta que se é o sujeito da operação ou na atividade que refaz a política em laboratório e substitui pelo sujeito de uma operação historiográfica o sujeito de uma operação histórica Os Arquivos compõem o mundo deste jogo técnico um mundo onde se reencontra a complexidade porém triada e miniaturizada e por tanto formalizável Espaço preciso em todos os sentidos do termo de minha parte veria aí o equivalente profissionalizado e escriturário daquilo que representam os jogos na experiência comum de todos os povos quer dizer das práticas através das quais cada 15 Cf Claude Lefort Le Travail de oeuvre Machiavel Gallimard 1972 p 447449 16 Cf Ibid p 456 17 Esta futilidade adquire sentido em última instância na relação do histo riadorfilósofo com a Fortuna o número infinito das relações e das interdependências impossibilita áo homem a hipótese de controlar ou mesmo de influenciar os acontecimentos Cf Felix Gilbert Machiavelli and Guicciardini Princeton Princeton University Press 1973 p 236270 Between History and Politics sociedade explicita miniaturiza formaliza suas estratégias mais fundamentais e representase assim ela mesma sem os riscos nem as responsabilidades de uma história a fazer No caso da historiografia a ficção se reencontra ao final no produto da manipulação e da análise O relato pretende uma encenação do passado e não o campo circunscrito onde se efetua uma operação defasada Pg 020 com relação ao poder Este já é o caso dos Discorsi Maquiavel os apresenta como um comentário de TitoLívio De fato se trata de um fazdeconta O autor sabe que os princípios em nome dos quais erige as instituições romanas como modelo despedaçam a tradição e que seu empreendimento é sem precedente18 A história romana referência comum e assunto agradável nas discussões florentinas lhe forneceu um terreno público onde tratar de política no lugar do príncipe O passado é o lugar de interesse e de prazer que situa fora dos problemas do príncipe ao lado da opinião e da curiosidade do público a cena onde o historiador representa seu papel de técnicosubstituto do príncipe O afastamento com relação ao presente mostra o lugar onde se produz a historiografia ao lado do príncipe e próximo ao público representando o que um faz e o que agrada ao outro porém sem ser identificável nem com um nem com o outro O passado é também ficção do presente O mesmo ocorre em todo verdadeiro trabalho historiográfico A explicação do passado não deixa de marcar a distinção entre o aparelho explicativo que está presente e o material explicado documentos relativos a curiosidades que concernem aos mortos Uma racionalização das práticas e o prazer de contar as lendas de antigamente o encanto da história dizia Marbeau19 as técnicas que permitem gerir a complexidade do presente e a terna curiosidade que cerca os mortos da família se combinam no mesmo texto para dele fazer simultaneamente a redução científica e a metaforização narrativa das estratégias de poder próprias de uma atualidade O real que se inscreve no discurso historiográfico provém das determinações de um lugar Dependência com relação a um poder estabelecido em outra parte domínio das técnicas concernentes às estratégias sociais jogo com os símbolos e as referências que legitimam a autoridade diante do público são as relações efetivas que parecem caracterizar este lugar da escrita Colocada do lado do poder apoiada nele mas a uma N da T semblant 18 Cf Claude Lefort op cit p 453466 19 Eugène Marbeau Le Charme de lhistoire Picard 1902 distância crítica tendo em mão imitados pela própria escrita os instrumentos racionais das operações modificadoras dos equilíbrios de força a título de uma vontade conquistadora reunindo as massas de longe por detrás da separação política e social que as distingue reinterpretando as referências tradicionais que existem nelas a historiografia francesa moderna é em sua quase totalidade burguesa e como estranhá lo racionalista20 Esta situação de fato está escrita no texto A dedicatória mais ou Pg 021 menos discreta é necessário manter a ficção do passado para que tenha lugar o jogo sábio da história concede ao discurso seu estatuto de estar endividado com relação ao poder que ontem era o do principe e hoje por delegação é o da instituição científica do Estado ou do seu epónimo o patrão Este remetimento designa o lugar autorizados o referente de uma força organizada no interior e em função da qual a análise tem lugar Porém o próprio relato corpo da ficção assinala também através dos métodos empregados e do conteúdo tratado de um lado uma distância com relação a esta dívida e por outro lado os dois pontos de apoio que permitem esta distância um trabalho técnico e um interesse público o historiador recebendo da atualidade os meios deste trabalho e a determinação de seu interesse Por possuir esta estruturação triangular a historiografia não pode então ser pensada nos termos de uma oposição ou de uma adequação entre um sujeito e um objeto isto não é senão o jogo da ficção que constrói Tampouco se poderia supor como ela às vezes leva a crer que um começo anterior no tempo explicaria o presente aliás cada historiador situa o corte inaugurador lá onde pára sua investigação quer dizer nas fronteiras fixadas pela sua especialidade na disciplina a que pertence Na verdade parte de determinações presentes A atualidade é o seu começo real Já o dizia Lucien Febvre no seu estilo muito próprio o Passado escrevia ele é uma reconstituição das sociedades e dos seres humanos de outrora por homens e para homens engajados na trama das sociedades humanas de hoje21 Que este lugar impeça ao historiador a pretensão de falar em nome do Homem Febvre não o teria admitido porque ele acreditava estar a obra histórica isenta da lei que a submete à lógica de um lugar de produção e não apenas à mentalidade de uma época num progresso de 20 Cf p ex as observações de JeanYves Guiomar L idèologie nationale Champ libre 1974 p 17 e 45 65 21 Lucien Febvre Prefácio a Charles Morazé Trois essais sur Histoire et Culture A Colin Cahiers des Annales 1948 p viii tempo22 Mas sabia como todo historiador que escrever é encontrar a morte que habita este lugar manifestála por uma representação das relações do presente com seu outro e combatêla através do trabalho de dominar intelectualmente a articulação de um querer particular com forças atuais Por todos estes aspectos a historiografia envolve as condições de possibilidade de uma produção e é o próprio assunto sobre o qual não cessa de discorrer A produção eou a arqueologia Na verdade a produção é seu princípio de explicação quase universal já que a pesquisa historiadora se apossa de todo documento como sintoma Pg 022 daquilo que o produziu A bem dizer não é tão fácil apreender do próprio produto a ser decifrado e ler o encadeamento dos atos produtores23 Num primeiro nível de análise podese dizer que a produção nomeia uma questão surgida no Ocidente com a prática mítica da escrita Até então a história se desenvolve introduzindo sempre unia clivagem entre a matéria os fatos a simplex historia e o ornamentum a apresentação a encenação o comentário24 Ela pretende reencontrar uma veracidade dos fatos sob a proliferação das lendas e assim instaurar um discurso de acordo com a ordem natural das coisas ali onde proliferavam as misturas da ilusão e do verdadeiro25 O problema não mais se coloca da mesma maneira a partir do momento em que o fato deixa de funcionar como o signode umaverdade quando a verdade muda de estatuto deixa pouco a pouco de ser aquilo que se manifesta para tornarse aquilo que se produz e adquire deste modo uma forma escrituraria A idéia de produção transpõe a concepção antiga de uma causalidade e distingue dois tipos de problemas por um lado o remetimento do fato aquilo que o tornou possível por outro lado uma coerência ou um encadeamento entre os fenômenos constatados A primeira questão se traduz em termos de gênese e privilegia indefinidamente aquilo que está antes a segunda se 22 Cf infra p 6768 23 Jean T Desanti Les Idéalités mathématiques Seuil 1968 p 8 24 Cf p ex Félix Thürlemann Der historische Diskurs bei Gregor von Tours Topoi und Wirklichkeit FrancfortM Peter Lang 1974 p 3672 25 No século XV Rod Agricola escreveu Historiae cujus prima taus est veritas naturalis tantum ordo convenit ne si figmentis istis aurium gratiam captit fidem perdat De inventione dialectica libri tres cum scholiis bannis Matthaei Phrisseni Phrissemii Paris apud Simonem Colinaeum 1529 III VII p 387 0 grifo é meu Notese também o fundamento deste sistema historiográfico o texto supõe que a verdade é crível e que por conseguinte apresentar o verdadeiro é fazer acreditar produzir uma fides no leitor exprime sob forma de séries cuja constituição provoca no historiador o sofrimento quase obsessivo de preencher as lacunas e substitui mais ou menos metaforicamente a estrutura Os dois elementos freqüentemente reduzidos a não serem senão uma filiação e uma ordem se conjugam no quase conceito de temporalidade É verdade que sob este aspecto é apenas no momento em que se dispusesse de um conceito específico e plenamente elaborado de temporalidade que se poderia abordar o problema da história26 Enquanto isso a temporalidade serve para designar a necessária conjugação dos dois problemas e para expor ou representar num mesmo tempo as maneiras pelas quais o historiador satisfaz a dupla demanda de dizer o que existe antes e colocar fatos onde estão lacunas Ela fornece a moldura vazia de uma sucessão linear que responde formalmente à interrogação sobre o início e à exigência de unia ordem Ela é então menos o resultado da pesquisa do que a sua condição a trama colocada a priori pelos dois fios através dos quais o tecido histórico cresce pela simples ação de tapar os buracos Impossibilitado de transformar em objeto de estudo aquilo que é a seu postulado o historiador substitui ao conhecimento do tempo o saber do que está no tempo27 Deste ponto de vista a historiografia seria apenas um discurso filosófico que se desconhece a si mesmo ocultaria as temíveis interrogações que Pg 023 traz em si substituindoas pelo trabalho indefinido de fazer como se as respondesse Na verdade este recalcado não deixa de retornar no seu trabalho e podemos reconhecêlo entre outros sinais naquilo que aí inscrevem a referência a uma produção eou o questionamento colocado sob o signo de uma arqueologia A fim de que através da produção não se contente apenas em nomear uma relação necessária porém desconhecida entre os termos conhecidos quer dizer de designar aquilo que suporta o discurso histórico mas não constitui o objeto da análise é necessário reintroduzir o que Marx lembrava nas Teses sobre Feuerbach a saber que o objeto a realidade o mundo sensível devem ser apropriados enquanto atividade humana concreta enquanto prática28 Retomo ao fundamental Para viver é necessário antes de tudo beber comer morar vestirse e ainda algumas outras coisas O primeiro fato histórico die erste Geschichtliche Tat é pois a produção die 26 Jean Desanti Les Idéalités mathematiques op cit p 29 27 Gérard Mairet Le Discours et lhistorique Essai sur la représentation historienne du temps Mame 1974 p 168 28 Karl Marx Thèses sur Feuerbach Thèse I cf também a esse respeito as Gloses marginales au Programme du Parti ouvrier allemand 1 in K Marx e F Engels Critique des programmes de Gotha et dErfurt Ed Sociales 1972 p 22 ss Erzeugung dos meios que permitem satisfazer estas necessidades a produção die Produktion da própria vida material e isto mesmo é um fato histórico Geschichtliche Tat uma condição fundamental Grundbedingung de toda a história que se deve hoje como há milhares de anos preencher dia após dia29 A partir desta base a produção se diversifica segundo estas necessidades sejam ou não satisfeitas facilmente é de acordo com as condições nas quais sejam satisfeitas Sempre existe produção mas a produção em geral é uma abstração Quando pois falamos de produção tratase sempre da produção num estado determinado da evolução social da produção de indivíduos vivendo em sociedade Por exemplo nenhuma produção é possível sem um instrumento de produção nenhuma sem trabalho passado acumulado A produção é sempre um ramo particular da produção Enfim é sempre um corpo social determinado um sujeito social que exerce sua atividade num conjunto mais ou menos grande mais ou menos rico de esferas da produção30 Assim a análise retorna às necessidades às organizações técnicas aos lugares e às instituições sociais onde como diz Marx a propósito do fabricante de pianos só é produtivo o trabalho que produz capital31 Eu me detenho nesses textos clássicos e os repito porque tornam precisa a interrogação que encontrei partindo da história dita das idéias ou das mentalidades a relação que pode estabelecerse entre lugares determinados e discursos que neles se produzem Pareceume possível transpor aqui o que Marx chama de o trabalho produtivo no sentido econômico do termo o trabalho não é produtivo a menos que produza seu contrário quer dizer capital32 Sem dúvida o discurso é uma forma Pg 024 de capital investido nos símbolos transmissível susceptível de ser deslocado acrescido ou perdido É claro que esta perspectiva também vale para o trabalho do historiador que a utiliza como instrumento e que a historiografia neste sentido ainda depende daquilo que deve tratar a relação entre um lugar um trabalho e este aumento de capital que pode ser o discurso O fato de que em Marx o discurso esteja na categoria daquilo que era o trabalho improdutivo não impede encarar a possibilidade de tratar nestes termos as questões propostas à historiografia e por ela 29 K MarxF Engels LIdéologie allemande éd Sociales 1968 p 57 e K Marx Die Friihschriften ed S Landshut Stuttgart A Kroner 1853 p 354 30 K Marx Introduction générale à la critique de léconomie politique 1857 in Oeuvres Économie Gallimard Pléiade 1965 p 237 Aí existe p 237254 a exposição mais desenvolvida de Marx sobre a produção juntamente com aquelas que consagra ao assunto em Le Capital I 3e section ibid t I p 730732 e nos Matériaux pur lÉconomie ibid t II p 399401 31 K Marx Principes dune critique de lÉconomie oilitique in Oeuvres Pléiade op cit t II p 242 32 Ibid Isto já é talvez dar um conteúdo particular a esta arqueologia que Michel Foucault envolveu com renovado prestígio De um lado nascido historiador na história religiosa determinado pelo dialeto daquela especialidade eu me interrogava sobre o papel que poderiam ter tido na organização da sociedade escriturária moderna as produções e as instituições religiosas das quais tomou o lugar transformandoas A arqueologia foi para mim o modo através do qual tentei particularizar o retorno de um reprimido um sistema de Escritas do qual a modernidade fez um ausente sem poder entretanto eliminálo Esta análise permitia ao mesmo tempo reconhecer no trabalho presente um trabalho passado acumulado e ainda determinante Sob essa forma que fazia aparecer no sistema das práticas continuidades e distorções eu procedia também à minha própria análise Esta não tem interesse autobiográfico porém restaurando sob outra forma a relação de produção que um lugar mantém com um produto levoume a um exame da própria historiografia Entrada do sujeito no seu texto não com a maravilhosa liberdade que permite a Martin Duberman fazerse no seu discurso de interlocutor dos seus personagens ausentes e de contarse contandoos33 mas à maneira de uma lacuna intransponível que no texto traz à luz uma falta e faz andar ou escrever sempre e cada vez mais Esta lacuna que assinala o lugar no texto e questiona o lugar pelo texto remete finalmente àquilo que a arqueologia designa sem o poder dizer a relação do logos com uma archê princípio ou começo que é seu outro Este outro sobre o qual se apóia e que a torna possível a historiografia sempre pode colocálo antes leválo cada vez mais para trás ou ainda designálo através daquilo que do real autoriza a representação mas não lhe é idêntico A archê não é nada daquilo que pode ser dito Ela só se insinua no texto pelo trabalho da divisão ou com a evocação da morte O historiador também só pode escrever conjugando nesta prática o outro que o faz caminhar e o real que ele não representa senão por Pg 025 ficções Ele é historiógrafo Endividado pela experiência que tenho disto gostaria de homenagear esta escrita da história Pgs 026 e 027 notas Pgs 028 Página em branco Pgs 029 Título Pgs 030 Página em branco 33 Cf Martin Duberman Black Mountain An exploration in community New York Dutton 1973 Primeira Parte AS PRODUÇÕES DO LUGAR Capítulo I FAZER HISTÓRIA Problemas de método e problemas de sentido A história religiosa é o campo de um confronto entre a historiografia e a arqueologia da qual parcialmente tomou o lugar Secundariamente permite analisar a relação que entrelaça a história com a ideologia da qual deve dar conta em termos de produção As duas questões se entrecruzam e podem ser consideradas em conjunto no setor estreitamente circunscrito do tratamento da teologia por métodos próprios à história De imediato o historiador considera a teologia como uma ideologia religiosa que funciona num conjunto mais vasto e supostamente explicativo Pode ele reduzila ao resultado desta operação Sem dúvida que não Porém como objeto de seu trabalho a teologia se lhe apresenta sob duas formalidades igualmente incertas na historiografia é um fato religioso é um fato de doutrina Examinar através deste caso particular a maneira pela qual os historiadores tratam hoje destes dois tipos de fatos e particularizar quais os problemas epistemológicos que se abrem assim é o propósito deste breve estudo A história uma prática e um discurso Esta análise será evidentemente determinada pela prática bastante localizada da qual pude lançar mio quer dizer pela localização do meu trabalho ao mesmo tempo um período a história dita moderna um objeto a história religiosa e um lugar a situação francesa Este limite é capital A evidenciação da particularidade deste lugar de onde falo efetivamente prendese ao assunto de que se vai tratar e ao ponto de vista através Pg 031 do qual me proponho examinálo Três postulados individualizam um e outro Eles devem ser francamente colocados como tais mesmo que pareçam resultar com evidência da prática histórica atual já que não serão objeto de uma demonstração 1 Sublinhar a singularidade de cada análise é questionar a possibilidade de uma sistematização totalizante e considerar como essencial ao problema a necessidade de uma discussão proporcionada a uma pluralidade de procedimentos científicos de funções sociais e de convicções fundamentais Por aí se encontra já esboçada a função dos discursos que podem esclarecer a questão e que se inscrevem eles próprios em seguimento a ou ao lado de muitos outros enquanto falam da história estão sempre situados na história 2 Estes discursos não são corpos flutuantes em um englobante que se chamaria a história o contexto São históricos porque ligados a operações e definidos por funcionamentos Também não se pode compreender o que dizem independentemente da prática de que resultam De maneiras diferentes aí existe uma boa definição de historiografia contemporânea mas também da teologia inclusive e particularmente a mais tradicional1 De qualquer maneira uma e outra serão apreendidas nesta articulação entre um conteúdo e uma operação Além do que esta perspectiva caracteriza hoje os procedimentos científicos por exemplo aquele que em função de modelos ou em termos de regularidades explica os fenômenos ou documentos tornando manifestas regras de produção e possibilidades de transformação2 Porém mais simplesmente é levar a sério expressões carregadas de sentido fazer história fazer teologia quando se é mais propriamente levado a suprimir o verbo o ato produtor para privilegiar o complemento objeto produzido 3 Por esta razão entendo como história esta prática uma disciplina o seu resultado o discurso ou a relação de ambos sob a forma de uma produção3 Certamente em seu uso corrente o termo história conota sucessivamente a ciência e seu objeto a explicação que se diz e a realidade daquilo que se passou ou se passa Outros domínios não apresentam a mesma ambigüidade o francês não confunde numa mesma palavra a física e a natureza O próprio termo história já sugere uma particular proximidade entre a operação científica e a realidade que ela analisa Mas o primeiro destes aspectos será nossa entrada no assunto por diversas razões porque a espessura e a extensão do real não se designam nem se lhes confere sentido senão em um discurso porque esta restrição no emprego da palavra história indica seu correspondente a ciência histórica Pg 032 à ciência ou pelo menos à função 1 A teologia articula o ato comunitário da fé e nas suas antigas definições ela era o aprofundamento da própria experiência 2 Em história como no conjunto das ciências humanas os antigos métodos de observação foram substituídos pelo que LéviStrauss chamou a experimentação nos modelos a determinação de tipos de análise supera a dos meios ou dos lugares de informação Cf Jean Vier Les sciences de 1homme en France Mouton p 163175 3 Aqui como em muitos outros casos cf por manifestação aparição e até por ação uma pressão da linguagem corrente leva o sentido a se transformar do ato em seu resultado do ativo do fazer ao passivo do ser visto do gesto à sua imagem no espelho Uma clivagem crescente entre a pesquisa e a vulgarização ocorre tanto na história quanto na teologia as pesquisas tomam a forma de meios específicos e diferenciados por procedimentos próprios mas na sua vulgarização a história e a teologia se tornam objetos de saber ou de curiosidade distribuídos e impostos a um público de consumidores que participa cada vez menos da produção particular que é a teologia finalmente para evitar a floresta virgem da História região de brumas onde proliferam as ideologias e se corre o risco de jamais reencontrarse Pode ser também que atendose ao discurso e à sua fabricação se apreenda melhor a natureza das relações que ele mantém com o seu outro o real A linguagem não tem ela como regra implicar embora colocandoa como outra que não ela mesma a realidade da qual fala Partindo assim de práticas e discursos historiográficos eu me proponho considerar sucessivamente as questões seguintes 1 O tratamento dado pela historiografia contemporânea à ideologia religiosa obriga ao reconhecimento da ideologia já investida na própria história 2 Existe uma historicidade da história Ela implica no movimento que liga uma prática interpretativa a uma prática social 3 A história oscila então entre dois pólos Por um lado remete a uma prática logo a uma realidade por outro é um discurso fechado o texto que organiza e encerra um modo de inteligibilidade 4 Sem dúvida a história é o nosso mito Ela combina o pensável e a origem de acordo com o modo através do qual uma sociedade se compreende I UM INDICIO O TRATAMENTO DA IDEOLOGIA RELIGIOSA EM HISTÓRIA A relação entre história e teologia inicialmente é um problema interno da história Qual é o significado histórico de uma doutrina no conjunto de um tempo Segundo quais critérios compreendêla Como explicála em função dos termos propostos pelo período estudado Questões particularmente difíceis e controvertidas quando não nos contentamos com uma pura análise literária dos conteúdos ou da sua organização4 e quando por outro lado recusamos a facilidade de considerar a ideologia apenas como um epifenômeno social suprimindose a especificidade da afirmação doutrinária5 4 Muitas das teses ditas de teologia é necessário reconhecêlo são simplesmente análises literárias de um autor e não se distinguem de qualquer outro estudo literário senão pelo fato de terem um objeto religioso como se fazer teologia fosse descrever as idéias teológicas contidas em uma obra 5 Assim em seu grande livro Chrétiens sans Église La conscience religieuse et le lien confessionnel au XVIIe siècle Gallimard 1969 o marxista Leszek Kolakowski quer tomar a sério o fato doutrinário e Por exemplo que relação estabelecer entre a espiritualidade ou a teologia jansenista e as estruturas sócioculturais ou a dinâmica social da época Existe todo um leque de respostas Assim para Orcibal o que se deve procurar é uma experiência radical em seu estado primeiro no texto mais primitivo Porém mesmo aí ela se aliena nas imposições de uma linguagem Pg 033 contemporânea a história de sua difusão será pois a história de uma degradação progressiva Mesmo remontando incessantemente às fontes mais rimitivas perscrutando nos sistemas históricos e lingüísticos a experiência que escondem ao se desenvolverem o historiador nunca alcança a sua origem mas apenas os estágios sucessivos da sua perda Contrariamente Goldmann lê na doutrina jansenista o resultado e o signo da situação econômica na qual se encontra uma categoria social perdendo seu poder os magistrados se voltam para o céu da predestinação e do Deus escondido e revelam assim a nova conjuntura política que lhes fecha o futuro aqui a espiritualidade sintoma daquilo que não diz remete à análise de uma mutação econômica e a uma sociologia do fracasso6 Os trabalhos sobre Lutero apresentam a mesma diversidade de posições ora referem a doutrina à experiência de juventude que seria seu segredo inefável e organizador Strohl Febvre por exemplo ora se inscrevem no continuum de uma tradição intelectual Grisar Seeberg etc ora vêem nela o efeito de uma modificação nas estruturas econômicas Éngels Steinmertz Stern ou a tomada de consciência de uma mutação sóciocultural Garin Moeller etc ou o resultado de um conflito entre o adolescente e a sociedade dos adultos Erikspn Finalmente farseá do Luteranismo a emergência da inquietação religiosa própria de um tempo cf Lortz Delumeau o acabamento de uma promoção dos leigos contra os clérigos N Z Davis um episódio inscrito no prosseguimento das reformas evangelistas que balizam a história da Igreja ou a vaga criada no Ocidente pela irrupção de um acontecimento único Holl Bainton Baarth Podese encontrar todas estas interpretações e muitas outras7 religioso como tal Do ponto de vista de uma interpretação materialista da história podese admitir a irredutibilidade dos fenômenos religiosos reconhecendo ao mesmo tempo que se pode explicálos geneticamente por outros Julgamos que sua especificidade aquela das idéias religiosas pode ser compreendida enquanto especificidade levando em conta o conjunto mais rico que é a totalidade das necessidades sociais da época nas suas interrelações p 49 e 51 Cf sobre os problemas de método colocados pelo livro R Mandrou Mysticisme et méthode marxiste em Politique aujourdhui février 1970 p 51 ss e M de Certeau L Absent de lhistoire Mame 1973 p 109115 6 J Orcibal Les Origines du jansénisme Vrin 5 vol 19471962 L Goldmann Le Dieu caché 1956 etc e M de Certeau De SaitCyran ao jansénisme em Christus 10 1963 p 399417 7 Cf a este respeito E M Carlson The Reinterpretations of the Reformation Philadelphie 1948 J V M Pollet Interprétation de Luther dans lAllemagne contemporaine em Revue de sciences religieuses 1953 p 147161 H J Grimm Luther Research since 1920 em Journal of Modern History 32 Está claro que elas são relativas à resposta que cada autor dá a questões análogas no presente Ainda que isto seja uma redundância é necessário lembrar que uma leitura do passado por mais controlada que seja pela análise dos documentos é sempre dirigida por uma leitura do presente Com efeito tanto uma quanto a outra se organizam em função de problemáticas impostas por uma situação Elas são conformadas por premissas quer dizer por modelos de interpretação ligados a uma situação presente do cristianismo O modelo místico e o modelo folklórico uma essência escondida Globalmente desde há três séculos no que concerne à França a história religiosa parece marcada por duas tendências uma originária das correntes espirituais fixa o estudo na análise das doutrinas a outra marcada Pg 034 pelas Luzes coloca a religião sob o signo das superstições Em última análise teríamos lá verdades emergindo dos textos e aqui erros ou um folklore abandonado na rota do progresso Sem ir muito longe podese dizer que durante a primeira metade do século XX a religião não aproveitou nada das novas correntes que mobilizaram os historiadores medievalistas ou modernistas por exemplo a análise sócioeconômica de Ernest Labrousse 19331941 Ela era muito mais o objeto que disputavam exegetas e historiadores das origens cristãs Quando intervinha na História das Mentalidades de Lucien Febvre 19321942 era como um índice de coerência próprio de uma sociedade passada e sobretudo superado graças ao progresso numa perspectiva muito marcada pela etnologia das sociedades primitivas Paradoxalmente dois nomes poderiam simbolizar o lugar mais ou menos explicitamente dado à análise das crenças durante o entreduasguerras e o deslocamento que nele se produziu Henri Bremond e Arnold Van Gennep um inscrito na tradição da história literária atesta uma perda de confiança nas doutrinas referindo as a um sentido místico a uma metafísica oculta dos santos8 o outro escrupuloso observador do folklore religioso vê aí o ressurgimento de um imemorial das sociedades 1960 junho R H Bainton Interpretations of the Reformation em American Historical Review 36 1960 outubro J Delumeau Naissance et affrmation de Ia Réforme PUF 1965 principalmente p 281300 ou os Bulletins de R Stauffer e Th Süss em Bull de Ia Société de lhistoire du protestantisme français 113 1967 p 313346 e 405 ss 8 Cf M de Certeau L Absent de 1 histoire Mame 1973 p 73108 Henri Bremond historien dune absence o retorno de um irracional de um originário e quase de um recalcado9 Suas posições não deixam de ter analogias ainda que enunciadas em termos de métodos bem distantes um do outro O primeiro remete o sentido da literatura que estuda a um fundo místico do homem a uma essência que e difracta exprime e compromete com os sistemas religiosos institucionais ou doutrinários Os fatos doutrinários são pois dessolidarizados do seu sentido que permanece oculto em profundezas no fim das contas estranhas aos cortes intelectuais ou sociais A seu modo inspirado na antropologia americana ou alemã e cada vez mais na escola de Jung Van Gennep revela nos folklores religiosos os signos de arquétipos inconscientes e de estruturas antropológicas permanentes Através de uma mística sempre ameaçada segundo Bremond ou de um folklore para Van Gennep o religioso assume a imagem do marginal e do atemporal nele uma natureza profunda estranha à história se combina com aquilo que uma sociedade rejeita para suas fronteiras Este modelo bem visível nesses dois autores se reencontra depois sob outras formas o sagrado o pânico o inconsciente coletivo etc Explica se sem dúvida pela posição que tinha o cristianismo na sociedade francesa antes de 1939 partilhado entre um movimento de interiorização com o Primauté du Spirituel de Maritain 1927 ou Esprit de Pg 035 Mounier 1932 e um positivismo religioso dos tradicionalistas Explica também que a história religiosa tenha sido pensável com dificuldade dentro de uma história social e que tenha permanecido aberrante com relação à história que se inventava particularmente com relação à história sócioeconômica de Henri See 19211929 de Simiand 1932 de Hamilton 19341936 de Marc Bloch 19391940 ou de Ernest Labrousse Porém dirigindo cada vez mais as pesquisas que inspirava para o estudo das correntes espirituais ou da cultura popular este modelo abria à história religiosa um belo fruto A ciência constituía um campo de puros fenômenos religiosos cujo sentido se retirava para uma outra ordem oculta Ela os situava ao lado da etnologia e ligava um exotismo do interior a um essencial perdido no território do imaginário ou do simbólico social Ela podia assim buscar na religião a metáfora de um fundo ahistórico da história O modelo sociológico a prática e o saber 9 Infelizmente Van Gennep t 1956 não fora ainda o objeto do estudo de conjunto que reclamava a Homenagem a A Van Gennep de Pierre Marot em Arts et traditions populaires 5 1957 p 113 ss A partir daí esta lacuna foi preenchida por Nicole Belmont Arnold Van Gennep Payot 1974 Também é preciso ligar a uma arqueologia recente a importância que tomou com Gabriel Le Bras a análise das práticas religiosas10 Ligado ao desenvolvimento da sociologia da etnologia mas também do folklorismo11 este modelo de interpretação representa uma reação francesa em favor das práticas sociológicas pesquisas etc e contra as tipologias teóricas de Troeltsch 1912 de Weber 1920 ou de Wach 1931 Supõe igualmente porém ao lado do cristianismo uma situação nova que remonta à época moderna Um passado freqüenta este presente Com efeito a prática provavelmente não tem o mesmo sentido no curso dos diferentes períodos históricos Durante o correr do século XVII ela adquire uma função que possuía em muito menor grau no século XIII ou no século XIV O esboroamento das crenças em sociedades que deixam de ser religiosamente homogêneas toma ainda mais necessárias as referências objetivas o crente se diferencia do incréu ou o católico do protestante pelas práticas Tornandose um elemento social de diferenciação religiosa a prática ganha uma pertinência religiosa nova A gente se reagrupa e a gente se conta em função deste critério Hoje quando toma a prática como uma mensuração quantitativa da religião a sociologia faz ressurgir na ciência uma organização histórica da consciência cristã que por outro lado não era própria do jansenismo Acentua também um pressuposto já latente nessas origens velhas de quatro séculos uma clivagem entre os gestos objetivos e a crença subjetiva Já Pg 036 no século XVII a crença começa a se dissociar da prática fenômeno que não cessou de se acentuar desde então Para se contarem e para marcar rupturas os reformistas desconfiavam das doutrinas e insistiam nos atos sociais Presentemente nos trabalhos que levam em conta os gestos o interesse se volta para as práticas porque elas representam uma realidade social e tem como reverso uma desvalorização científica de sua significação dogmática remetida aos preconceitos desmistificados pelo progresso ou às convicções privadas impossíveis de introduzir numa análise científica A lógica de uma sociologia acresce pois o cisma entre os fatos religiosos sociais e as doutrinas que pretendem explicarlhes o sentido12 10 Acerca da obra de G Le Bras cf os estudos de Henri Desroche em Revue dhistoire et de philosophie religieuse 2 1954 p 128158 e de François Isambert em Cahiers internationaux de sociologie 16 1956 p 149169 11 O primeiro artigo de G Le Bras sobre a prática religiosa na França tinha por objeto a vida popular do catolicismo por modelo o folklorista e como ponto de partida o plano de pesquisa proposto por Saintyves Ele foi publicado aliás na Revue de folklore français 4 1933 p 193206 12 O primeiro artigo de G Le Bras sobre a prática religiosa na França tinha por objeto a vida popular Em seguida um olhar sociológico transformou as próprias crenças em fatos objetivos Uma sociologia do conhecimento religioso desenvolveuse na proporção da retração do sentido para o interior O mesmo corte se encontra então no terreno aparentemente oposto ao precedente das pesquisas consagradas à ideologia Porém tampouco aí podemos dissociar em nossa relação dos historiadores com o século XVII o conhecimento que temos dela e a influência que exerce sobre nossos métodos de pesquisa O olhar sociológico voltado para as ideologias e os aparelhamentos conceituais que organizam nossa análise cultural por exemplo a distinção entre elites e massas o critério de ignorância para julgar a descristianização etc são ainda testemunhas da função social que o saber recebeu no decorrer do século XVII Quando a diversidade dos Estados europeus sucedeu à unanimidade religiosa da cristandade foi necessário um saber que tomasse o lugar das crenças e permitisse definir cada grupo ou cada país distinguindoo dos outros Nesses tempos da imprensa da alfabetização ainda fraca e da escolarização o conhecimento se torna um instrumento de unidade e de diferenciação um corpus de conhecimentos ou um grau de saber recorta um corpo ou isola um nível social ao mesmo tempo que a ignorância é associada à delinqüência como causa desta ou à massa como ao seu próprio indício O que é novo não são estas divisões sociais mas o fato de que um saber ou uma doutrina constituíam o meio de as colocar ou de as manter ou de as trocar Também entre Igrejas as diferenças entre saberes tornamse decisivas A determinação daquilo que se conhece quando se é Católico ou Reformado fornece à comunidade seu modo de identificação e distinção Os catecismos mudam remodelados pela urgência dessas definições que circunscrevem ao mesmo tempo os conteúdos intelectuais e os limites sócioinstitucionais Hoje trabalhos novíssimos como o de R Taveneauxreconstituem as redes sócioculturais esboçam as circulações mentais e podem estabelecer Pg 037 a geografia de grupos ocultos a partir dos traços e dos pontos de ressurgência das idéias religiosas da mesma maneira pela qual se determinam circuitos fisiológicos através das viagens de um elemento visível na opacidade do corpo13 Em suma refazem caminhos trilhados ontem pelo uso que uma sociedade fazia do saber Privilegiando nessas idéias do catolicismo por modelo o folklorista e como ponto de partida o plano de pesquisa proposto por Saintyves Ele foi publicado aliás na Revue de folklore français 4 1933 p 193206 13 Desta maneira René Taveneaux em Le Jansénisme en Lorraine 16401789 Vrin 1960 tira da obscuridade aquilo que chama de redes de transmissão do pensamento Na realidade o que surge são as clivagens as polarizações parisienses depois holandesas as combinações insuspeitadas por exemplo o reemprego dos bastiões monásticos de SaintVanne neste conjunto etc que caracterizam uma unidade social complexa O pensamento lhe serve para estabelecer uma sutil sociologia de um grupo de clérigos seu papel passado explorandoas por sua vez como restos e às vezes os únicos visíveis de cortes entre grupamentos R Taveneaux explicita a utilidade que já tinham ontem subrepticiamente o serviço que prestavam às sociedades que as veiculavam mas é ao preço do seu sentido doutrinal aquele que lhe davam ainda os contemporâneos ou aquele que elas podem manter O desmembramento dos métodos teve desde então como efeito separar cada vez mais em cada obra doutrinal um objeto sociológico visado pelo historiador e um objeto teórico que parece abandonado a uma análise literária Um modelo cultural das idéias ao inconsciente coletivo Baczko o observou a história das idéias nasceu de reações comuns particularmente contra o parcelamento que levou no âmbito de uma obra ou de um período à compartimentação das disciplinas Assim em lugar de fragmentar arbitrariamente a obra de Newton e de repartir suas parcelas entre especialidades diferentes segundo tratem do Apocalipse dos calendários da filosofia natural ou da ótica procuramos compreender sua unidade e seus princípios organizadores14 Do mesmo modo recusamos explicar uma obra em termos de influências de esgotar assim um corpus remetendoo ao indefinido de suas origens e de provocar por esse recuo sem fim através de uma poeira de fragmentos o desaparecimento das totalidades das delimitações das rupturas que constituem a história Como este estudo se confere os seus métodos Desde a criação nos Estados Unidos do Journal of the History of Ideas 1940 em New YorkLancaster a mais antiga das revistas que lhe foram consagradas este estudo busca a si mesmo Não tem sequer um nome na Alemanha é a Geistesgeschichte nos Estados Unidos a Intelectual History na França a Histoire des Mentalités na URSS a História do Pensamento Baczko poderia entre estas tendências reconhecer origens filosóficas comuns longinquamente hegelianas através de Dilthey Lukacs Weber Croce Huizinga Cassirer Groethuysen etc até os anos 19201930 As idéias tornamse uma mediação entre o Espírito o Geist e a realidade sóciopolítica Supõese que constituam um nível 14 Ninguém poderá se espantar com o fato de ter esta correnteo nascido de uma ampliação da história das ciências por exemplo com E A Burtt The Metaphysics of Sir Isaac Newton Londres Routledge 1925 H A Smith History of Modern Culture New York 19301934 A Wolf History of Science Technology and Philosophy in the 16th and 17th Century Londres Allen 1935 A R Ha11 TheScientiftc Revolution 15001800 Londres Longmans 1954 etc onde se reencontrem o Pg 038 corpo da história esua consciência o Zeitgeist 15 Entretanto a simplicidade do postulado se decompõe diante da análise em problemas complexos e aparentemente insolúveis Por exemplo qual é o verdadeiro Newton De que tipo é a unidade que se postula a de sua obra e portanto a de um período Que suporte fornece a tantas idéias diferentes a unidade emprestada às idéias do tempo à mentalidade ou a uma consciência coletiva contemporânea Esta unidade procurada quer dizer o objeto científico se presta à discussão Desejase ultrapassar a concepção individualista que recorta e reúne os escritos segundo sua pertença a um mesmo autor que então fornece à biografia o poder de definir uma unidade ideológica16 e supõe que a um homem corresponda um pensamento como a arquitetura interpretativa que repete o mesmo singular nos três andares do plano clássico o Homem a obra o pensamento Tentaramse identificar as totalidades mentais históricas por exemplo a Weltanschauug em Max Weber concepção do universo ou visão do mundo o paradigma científico em T S Kuhn a Unit Idea em A O Lovejoy17 etc Essas unidades de medida se referem ao que LéviStrauss chamará de a sociedade pensada em oposição à sociedade vivida Elas tendem a fazer ressaltar dos conjuntos sancionados por uma época quer dizer das coerências recebidas implicadas pelo percebido ou pelo pensado de um tempo sistemas culturais suscetíveis de fundar uma periodização ou uma diferenciação dos tempos18 Desta maneira se opera uma classificação do material na base dos inícios e fins ideológicos ou daquilo que 15 A noção de Zeitgeist tomou na Geistesgeschichte um sentido que quase inverte o de suas origens Central entre os revolucionários alemães na passagem do século XVIII para o XIX Henning Rebmann Niethammer Arndt principalmente com seu Esprit du temps em 1806 ou Hardenberg etc designa uma força irresistível cujo avanço derrubará todos os obstáculos institucionais É com este sentido que foi retomada em Hegel e que em 1829 foi criticada por Schlegel como indeterminada e subversiva Philosophie der Geschichte 1829 II 18 Cf Jacques dHondt Hegel philosophe de lhistoire vivante PUF 1966 p 211216 Desde aí o Zeitgeist definiu pelo contrário uma ordem estabelecida a coerência estática de uma mentalidade Traço significativo de um pensamento liberal e ideológico que faz então face ao marxismo 16 Cf por exemplo V P Zoubov Lhistoire de la science et la biographie des savants em Kwart Hist Nauki 6 1962 p 2942 17 A O Lovejoy The Great Chain of Being A Study of the History of an Idea Cambridge Mass Harvard Univ Press 1936 18 A respeito da história das mentalidades francesa cf principalmente Georges Duby em L Histoire et ses méthodes Gallimard Pléiade 1961 p 937966 Porém mais do que às apresentações teóricas é preciso referirse aos trabalhos históricos os de G Duby ou de J Le Goff certamente mas também ao estudo notavelmente lúcido de Franco Venturi LIlluminismo nel settecento europeu em Rapports du XIe Congrès international des sciences historiques Stockholm Uppsala Almquist 1960 t IV p 106135 Na historiografia do período moderno da mesma forma que o século XVII é ao mesmo tempo o objeto e a arqueologia de uma análise das práticas o século XVIII é uma e outra coisa para uma história das idéias É com efeito no século XVII que se forma por exemplo com os Observateurs de 1homme a relação entre o homem das Luzes e o homempopular entre a elite sujeito e o povoobjeto da ciência Cf Sergio Moravia La Scienzia delluomo nel settecento Bani 1970 Bachelard chama de rupturas epistemológicas19 As ambigüidades desses sistemas de interpretação foram vigorosamente criticadas particularmente por Michel Foucault20 Elas se prendem essencialmente ao estatuto incerto nem carne nem peixe dessas totalidades que não são legíveis na superfície dos textos mas no interior deles realidades invisíveis que conduziriam os fenômenos Em nome de quê supor e como determinar essas unidades a meiocaminho entre o consciente e o econômico Elas ocupam o lugar de uma alma coletiva e permanecem como vestígio de um ontologismo Logo serão substituídas por um inconsciente coletivo Na impossibilidade de poder ser realmente controlável esse subsolo é extensível pode se estender ou contrair à vontade tem a amplitude dos fenômenos a compreender De fato mais do que ser um instrumento de análise representa a necessidade que tem dele o historiador significa uma necessidade da operação científica e não uma realidade apreensível em seu objeto Pg 039 Esta concepção manifesta que é impossível eliminar do trabalho historiográfico as ideologias que nele habitam Porém dandolhes o lugar de um objeto isolandoas das estruturas sócioeconômicas supondo além disso que as idéias funcionem da mesma maneira que essas estruturas paralelamente e num outro nível21 a história das idéias não pode encontrar a inconsistente realidade na qual sonha descobrir uma coerência autônoma senão através da forma de um inconsciente O que ela manifesta realmente é o inconsciente dos historiadores ou mais exatamente do grupo ao qual pertencem A vontade de definir ideologicamente a história é particularidade de uma elite social Ela se fundamenta numa divisão entre as idéias e o trabalho Costuma negligenciar igualmente a relação entre as ciências e suas técnicas entre a ideologia dos historiadores e suas práticas entre as idéias e sua localização ou as condições de sua produção nos conflitos sócioeconômicos de uma sociedade etc Nada espantoso portanto que esta divisão ressurgência e reforço de um elitismo já bem definido em fins do século XVIII François Furet entre outros acentuouo freqüentemente tenha como símbolo a justaposição entre uma história das idéias e uma história econômica A procura de uma coerência própria a um nível ideológico remete pois ao lugar 19 Gaston Bachelard Le Rationalisme appliqué PUF 1949 p 104105 20 Michel Foucault L Areheologie du savoir Gallimard 1969 p 29101 21 O problema deste paralelismo permanece colocado ainda que como em Duby o historiador se interesse por uma literatura como por uma transposição ou reflexo do grupo que é o objeto real de seu estudo Seria necessário medir o efeito próprio desta transposição A expressão literária não é a transparência do vivido social mas seu complemento e feqüentemente seu reverso na medida em que enuncia aquilo que é percebido como ausente daqueles que a elaboram no século XX Gramsci sem dúvida indica sua verdadeira proporção quando reexaminando a história das idéias a substitui pela história dos intelectuais orgânicos grupo particular e do qual analisa a relação entre sua posição social e os discursos que eles produzem22 II PRÁTICAS HISTÓRICAS E PRAXIS SOCIAL O exame desses modelos dos quais se poderia prolongar á lista e a análise revela dois problemas conexos a evanescência da ideologia como realidade a explicar e sua reintrodução como referência em função da qual se elabora uma historiografia Enquanto objeto de estudo ela parece eliminada ou sempre malograda pelos métodos atuais de pesquisa Por outro lado ressurgiu como o pressuposto dos modelos que caracterizam um tipo de explicação está implícita em cada sistema de interpretação pelas pertinências que ele retém pelos procedimentos que lhe são adequados pelas dificuldades técnicas encontradas e pelos resultados obtidos Dito de outra maneira aquele que faz história hoje parece ter perdido o meio de apreender uma afirmação de sentido como um objeto de seu trabalho para Pg 040 encontrar essa afirmação no próprio modo de sua atividade Aquilo que desaparece do produto aparece na produção Sem dúvida o termo ideologia não mais convém para designar a forma sob a qual a significação ressurgiu na ótica ou no olhar do historiador O uso corrente deste termo data do momento em que a linguagem se objetivou quando reciprocamente os problemas de sentido foram deslocados do lado da operação e colocados em termos de escolhas históricas investidas no processo científico Revolução fundamental é preciso dizêlo imediatamente pois ela substitui o fazer historiográfico ao dado histórico Ela transforma a pesquisa de um sentido desvendado pela realidade observada em análise das opções ou das organizações de sentido implicadas por operações interpretativas Isto não significa de forma alguma que a história renuncia à realidade e se volta para si mesma contentandose em observar os seus passos Quer dizer antes nós o 22 Cf Antonio Gramsci OEuvres choisies Éd sociales 1959 p 432 Como estas diversas categorias de intelectuais tradicionais experimentam com um espírito de corporação o sentimento de sua continuidade histórica ininterrupta e de sua qualificação situamse a si mesmos como autônomos e independentes do grupo social dominante Esta autoposição não é falta de conseqüências de grande alcance no domínio ideológico e político toda a filosofia idealista pode facilmente ter conexão com esta posição tomada pelo complexo social dos intelectuais veremos que a relação com o real mudou E se o sentido não pode ser apreendido sob a forma de um conhecimento particular que seria extraído do real ou que lhe seria acrescentado é porque todo fato histórico resulta de uma práxis porque ela já é o signo de um ato e portanto a afirmação de um sentido Este resulta dos procedimentos que permitiram articular um modo de compreensão num discurso de fatos23 Antes de esclarecer esta situação epistemológica que não permite mais buscar o sentido sob a aparência de uma ideologia a mais ou de um dado da história é preciso lembrar os seus indícios na historiografia atual Isto significa retomar através dos estudos históricos o problema levantado anteriormente pela tese clássica de Raymond Aron24 Porém não nos podemos contentar como ele o fazia em buscar a interpretação histórica apenas ao nível da filosofia implícita dos historiadores porque então se chega a um jogo indefinido de idéias relativizadas umas pelas outras jogo reservado a uma elite e combinado com a manutenção de uma ordem estabelecida A organização de cada historiografia em função de óticas particulares e diversas se refere a atos históricos fundadores de sentidos e instauradores de ciências Sob este aspecto quando a história leva em consideração o fazer fazer história encontra ao mesmo tempo seu enraizamento na ação que faz história Da mesma forma que o discurso hoje não pode ser desligado de sua produção tampouco o pode ser a práxis política econômica ou religiosa que muda as sociedades e que num momento dado toma possível tal ou qual tipo de compreensão científica Pg 041 Dos preconceitos históricos às situações que eles revelam A distância do tempo e sem dúvida uma reflexão mais epistemológica permitem hoje revelar os preconceitos que limitaram a historiografia mais recente Eles aparecem tanto na escolha dos assuntos quanto na determinação dos objetivos dados ao estudo Mas sempre estão ligados às situações que conferem ao historiador uma posição particular com relação a realidades religiosas Assim os conflitos entre a Igreja e o Estado ou os debates acerca da escola livre e da escola leiga entre outros efeitos tiveram o de privilegiar dentre os fenômenos 23 Podese medir a evolução da historiografia com a noção de fato histórico comparando a coloração de HenriIrene Marrou Quest quun fait historique em L Histoire et ses méthodes op cit p 1494 1500 e os problemas expostos por François Furet in J Le Goff et P Nora Éd Faire de lhistoire Gallimard 1974 t I p 4261 24 Introduction à la philosophie de lhistoire Essai sur les limites de lobjectivité historique Vrin 1938 As mesmas teses são retomadas em Dimensions de la conscience historique Plon1961 religiosos aqueles que se apresentavam sob a forma de uma oposição às ortodoxias e por conseqüência de favorecer a história das heresias privilegiandoas contra a das instituições eclesiásticas e das ortodoxias Menos do que as intenções pessoais então as localizações sócioculturais mobilizam o interesse e o tipo de pesquisa Por exemplo no estudo do início do século XVI prendemonos à préreforma mais do que às correntes escolásticas no entanto majoritárias e igualmente importantes Considerase mais o humanismo sob um aspecto de ruptura com relação à tradição cristã do que inscrito também no prolongamento da patrística ou de reformismos sucessivos ou de uma série de retornos à Antiguidade no decurso da Idade Média25 Da mesma forma identificouse o século XVII religioso com o jansenismo rebelião profética quando ele é apenas um dos fenômenos da época e quando muitos dos elementos considerados como característicos do jansenismo se encontram em outras correntes espirituais26 Ou ainda da obra dos grandes sábios dos séculos XVI e XVII suprimiramse seus escritos teológicos ou exegéticos considerados como restos de épocas encerradas indignos de interessar uma sociedade de progresso27 etc A análise recortava então no tecido da história assuntos relativos aos lugares de observação Não é de espantar que os estudos visando corrigir esses recortes para fazer prevalescer outros provenham não apenas de tradições ideológicas diferentes mas de lugares justapostos e freqüentemente opostos aos primeiros por exemplo de meios eclesiásticos ou de Centros estranhos aos quadros da Universidade francesa Assim os tratados do Pe BernardMaître e outros até o grande livro de Massaut sobre os teólogos conservadores no início do século XVI28 os trabalhos do Pe de Lubac ou do Pe Bouyer sobre a repetição da exegese apostólica e patrística do humanismo erasmiano29 e do Gilson sobre o vocabulário tradicional retomado por Descartes30 o de 25 Cf a obra magistral de A Renaudet Préréforme et humanisme à Paris pendant les premières guerres dItalie 14941517 Droz 1916 e toda a sua posteridade 26 Tradição universitária que corresponde à rejeição do jansenismo pelo ensino acadêmico difundido até meados do século XIX e que se mantém até na vigorosa síntese de Antoine Adam Du mysticisme à la révolte Les Janséniste du XVIle siècle Fayard 1968 27 Indício entre muitos o lugar concedido aos Theological Manuscripts Éd H Mac Lachlan Liverpool 1950 na interpretação da obra de Newton Alexandre Koyré principalmente modificou as perspectivas cf Du monde clos à lunivers infini PUF 1961 Hoje chegamos a sublinhar que a ciência ocidental elaborouse em função de debates teológicos e que por exemplo ela tem uma relação intrínseca com o dogma da Encarnação cf Alexandre Kojève Lorigine chrétienne de la science moderne em Mélanges Alexandre Koyré Hermann 1964 t II p 295306 28 Henri BernardMaître Les Théologastres de lUniversité de Paris au temps dErasme et de Rabelais em Bibliothèque d Humanisme et Renaissance 27 1965 p 248264 JeanPierre Massaut Josse Clichtove lhumanisme et la réforme du clergé Les Belles Lettres 1968 29 Louis Bouyer Autour d Erasme Études sur le christianisme des Humanistes catholiques Paris 1955 Henri de Lubac Exégèse médiévale Aubier t IV 1964 Bremond ou de tantos outros desde então Pg 042 dentro do amplo mostruário de correntes místicas do qual o jansenismo faz parte A contribuição considerável destes estudos não disfarça seu caráter mais ou menos discretamente apologético Talvez mesmo a riqueza de seu conteúdo tenha se tomado possível graças a esse aspecto de réplica ou de cruzada que os assemelhava a um cavalo de Tróia A marca das compartimentações sócioideológicas é particularmente visível na historiografia religiosa francesa É um traço muitas vezes sublinhado da sociedade francesa Os trabalhos científicos forneciam pois a posição universitária neste mapa Privilegiavam os católicos liberais frente aos católicos intransigentes à parte a obra de Rene Rémond estes últimos foram estudados principalmente por ingleses ou norte americanos que não eram afetados da mesma forma pelos problemas franceses31 ou então preferiam ao modernismo científico ou social frente ao integrismo do qual Poulat acaba de mostrar o interesse histórico32 Os debates internos da sociedade francesa provocaram um fixismo historiográfico e durante muito tempo a reprodução indefinida de cortes formais mesmo quando uma nova erudição lhes modificava o conteúdo Este esquematismo teve como efeito um reaproveitamento presente dos partidos antes opostos Reformados ou Católicos Jansenistas ou Jesuítas modernistas ou integristas etc E deles fizeram bandeiras menos de convicções pessoais do que de situações As polêmicas antigas organizaram sem o saber a pesquisa científica Os historiadores chegaram a meterse na sotaina na cogula ou na toga de seus antecessores sem se dar conta de que eram vestes de polemistas ou de pregadores cada um defendendo sua causa33 Alguns silêncios permanecem hoje como vestígios desse passado recente até mesmo em estudos magistrais sobre a sociedade e o pensamento clássicos a discreção de Goubert a respeito das teologias34 ou mesmo a respeito da religião35 a ausência de referência à literatura religiosa na interpretação que M Foucault faz da episteme 30 Étienne Gilson Études sur le rôle de la pensée médiévale dans la formation du système cartésien Vrin 1951 31 Cf René Rémond La Droite en France de 1815 à nos jours Aubier 1954 Temos as perspectivas angloamericanas com Richard Griffiths The Reactionary Revolution Londres 1966 Eugen Weber L Action française Stock 1962 etc 32 Émile Poulat Intégrisme et catholicisme intégral Casterman 1969 e o debate que se seguiu com Paul Drouleus em Archives de Sociologie des Religions 28 1969 p 131152 33 Lucien Febvre Au coeur religieux du XVle siècle Sevpen 1957 p 146 34 Em Beauvais et le Beauvaisis de 1600 à 1730 Sevpen 1960 35 Em Ancien Régime t I A Colin 1969 clássica36 Mas também e reciprocamente o silêncio do Abade Cognet a respeito da história sócioeconômica em La Spiritualité Moderne 37 ou ainda ao contrário em numerosos trabalhos consagrados às atividades temporais nas Abadias a pressão social que fez tantos historiadores clérigos desatentos à vida religiosa destas mesmas Abadias38 A mutação dos preconceitos em objetos de estudo Afastados das situações conflitantes cada vez mais distantes é mais Pg 043 fácil para nós revelar a sua marca nestes estudos Estamos nós mesmos adiante disto À medida que se diluem as divisões que ontem organizaram ao mesmo tempo uma época e sua historiografia elas podem ser analisadas nos próprios trabalhos deste tempo O desaparecimento do período condiciona uma tal lucidez mas esta compreensão pretensamente melhor que de agora em diante é a nossa se refere ao fato de estarmos deslocados nossa situação nos permite conhecer a deles de outra maneira que eles a puderam conhecer O que torna possível a relativização desses debates de ontem e portanto o balizamento das imposições que exerceram sobre o discurso científico é a posição nova da religião na nossa sociedade Bem longe de ser uma força uma ameaça um conjunto de grupos e de corpos constituídos como era o caso de ontem o cristianismo francês se livra hoje de seu peso social liberandose dos fracionamentos recentes Ele deixa de constituir lugares próprios vigorosos porém fechados na nação Tornase aí uma região mal definida e mal conhecida pela cultura francesa Uma historiografia religiosa pode desde então fazerse o objeto de um novo exotismo semelhante àquele que conduz o etnólogo aos selvagens do interior ou aos feiticeiros franceses Socialmente o cristianismo existia em mais alto grau quando ontem se lhe dava menos espaço no Tempo do que se lhe dá no Mundo hoje Quando se tratava de adversários de oponentes ou de grupos fechados a respeito de sua própria vitalidade ficavase calado ou se era parcial Falase mais dele agora que não é mais uma força e que por necessidade se abriu adaptou e conformou com a situação na qual se tomou o objeto de uma 36 M Foucault Les mots et les choses Gallimard 1966 chap IIIVI 37 L Cognet La Spiritualité moderne Aubier 1966 e a resenha de Venard na Rév d Hist de l Egl de France 541968 p 101103 38 Cf as notas de D Julia P Levillain D Nordman e A Vauchez Réflexions sur lhistoriographie française contemporaine em Recherches et Débats 47 1964 p 7994 curiosidade imparcial e o signo longínquo de valores39 As renovações da história religiosa não significam pois uma recrudescência do cristianismo mas a diluição de suas instituições e de suas doutrinas nas novas estruturas da nação sua passagem de estado de corpo opaco e resistente a um estado de transparência e de movimento Os preconceitos da história ou dos historiadores desaparecem quando se modifica a situação à qual se referem A organização ontem viva de uma sociedade investida na ótica de seus historiadores se transforma então num passado suscetível de ser estudado Ela muda de estatuto deixando de ser entre os autores aquilo em função de que eles pensavam passa para o lado do objeto que como novos autores temos que tornar pensável Em função de uma outra situação desde então nos é possível examinar como preconceitos ou simplesmente como os dados de um tempo o modo de compreensão de nossos predecessores de revelar suas relações com outros elementos da mesma época e de inscrever sua historiografia Pg 044 na história que constitui o objeto de nossa própria historiografia40 Sob este aspecto os modos de compreensão próprios da historiografia de ontem se encontram na mesma posição que as ideologias ou as crenças cristãs Estas últimas representam apenas uma distância maior percorrida pela convicção que forneceu a um passado os seus princípios de inteligibilidade e que hoje deve ser compreendida de acordo com outros quadros de referência O afastamento entre essas duas posições indica o próprio problema do procedimento historiográfico a relação entre o sentido que se tornou um objeto e o sentido que hoje permite compreendêlo Desde que se procure o sentido histórico de uma ideologia ou de um acontecimento encontramse não apenas métodos idéias ou uma maneira de compreender mas a sociedade à qual se refere a definição daquilo que tem sentido Se existe pois uma função histórica que especifica a incessante confrontação entre um passado e um presente quer dizer entre aquilo que organizou a vida ou o pensamento e aquilo que hoje permite pensálos existe uma série indefinida de sentidos históricos A crença oferece apenas um caso extremo de relação entre dois sistemas de 39 A respeito do interesse etnológico ou folklórico de que a religião se torna o objeto e que explica ao mesmo tempo a natureza de uma nova curiosidade e a recrudescência dos estudos sobre as ideologias de agora em diante tidas como inacreditáveis mas simbólicas de um sentido a decifrar cf M de Certeau La Culture ao pluriel coll 1018 1974 p 1134 Les Révolutions du croyable 40 Aqui o problema é o de saber que acontecimento ou que mutação sóciopolítica torna possível à visão da historiografia do século XX uma análise análoga a que R Mousnier consagrou seus últimos anos dos historiadores do século XVIII Mas sem dúvida é necessário inverter os termos da questão um novo olhar científico é justamente um dos indícios através do qual se exprime ou se demarca um acontecimento compreensão através da passagem de uma sociedade ainda religiosa a do século XVI por exemplo a uma sociedade a nossa onde o pensável se secularizou III A HISTÓRIA DISCURSO E REALIDADE Duas posições do real Se recapitularmos esses dados a situação da historiografia faz surgir a interrogação sobre o real em duas posições bem diferentes do procedimento científico o real enquanto é o conhecido aquilo que o historiador estuda compreende ou ressuscita de uma sociedade passada e o real enquanto implicado pela operação científica a sociedade presente a qual se refere a problemática do historiador seus procedimentos seus modos de compreensão e finalmente uma prática do sentido De um lado o real é o resultado da análise e de outro é o seu postulado Estas duas formas da realidade não podem ser nem eliminadas nem reduzidas uma a outra A ciência histórica existe precisamente na sua relação Ela tem como objetivo próprio desenvolvêla em um discurso Certamente segundo os períodos ou os grupos ela se mobiliza de preferência em um de seus dois pólos Pg 045 Com efeito existem dois tipos de história conforme prevaleça a atenção a uma destas posições do real Mesmo que as imbricações dessas duas espécies predominem nos casos puros elas são facilmente reconhecíveis Um primeiro tipo de história se interroga sobre o que é pensável e sobre as condições de compreensão a outra pretende encontrar o vivido exumado graças a um conhecimento do passado A primeira dessas problemáticas examina sua capacidade de tornar pensáveis os documentos de que o historiador faz um inventário Ela obedece à necessidade de elaborar modelos que permitam constituir e compreender séries de documentos modelos econômicos modelos culturais etc Esta perspectiva cada vez mais comum hoje em dia leva o historiador às hipóteses metodológicas de seu trabalho à sua revisão através de intercâmbios pluridisciplinares aos princípios de inteligibilidade suscetíveis de instaurar pertinências e de produzir fatos e finalmente à sua situação epistemológica presente no conjunto das pesquisas características da sociedade onde trabalha41 A outra tendência privilegiada a relação do historiador com um vivido quer dizer a possibilidade de fazer reviver ou de ressuscitar um passado Ela quer restaurar um esquecimento e encontrar os homens através dos traços que eles deixaram Implica também um gênero literário próprio o relato enquanto a primeira muito menos descritiva confronta mais as séries que resultam de diferentes tipos de métodos Entre estas duas formas existe tensão mas não oposição Pois o historiador está numa posição instável Se dá prioridade a um resultado objetivo se visa colocar no seu discurso a realidade de uma sociedade passada e a reviver um desaparecido ele reconhece entretanto nessa reconstituição a ordem e o efeito de seu próprio trabalho O discurso destinado a dizer o outro permanece seu discurso e o espelho de sua operação Inversamente quando ele retorna às suas práticas e lhes examina os postulados para renoválas o historiador descobre nelas imposições que se originaram bem antes do seu presente e que remontam a organizações anteriores das quais seu trabalho é o sintoma e não a fonte Da mesma forma que o modelo da sociologia religiosa implica entre outros o novo estatuto da prática ou do conhecimento no século XVII também os métodos atuais trazem apagadas como acontecimentos e transformadas em códigos ou em problemáticas de pesquisa antigas estruturações e histórias esquecidas Assim fundada sobre o corte entre um passado que é seu objeto e um presente que é o lugar de sua prática a história não pára de encontrar o presente no seu objeto e o passado nas suas práticas Ela é habitada pela estranheza Pg 046 que procura e impõe sua lei às regiões longínquas que conquista acreditando darlhes a vida O intermédio situação da história e problema do real Um incessante trabalho de diferenciação entre acontecimentos entre períodos entre dados ou entre séries etc é em história a condição de todo relacionamento dos elementos distintos e portanto de sua compreensão Mas este trabalho se apóia na diferença entre um presente e um passado Supõe sempre o ato que propõe uma novidade desligandose de uma tradição para considerála como um objeto de conhecimento O corte definitivo em qualquer ciência uma exclusão é sempre 41 Cf particularmente à nova série dos Annales ESC a partir de 1969 ou The Journal of Intedisciplinary History 1970 MIT Press USA necessária ao estabelecimento de um rigor toma em história a forma de um limite original que constitui uma realidade como passada e que se explicita nas técnicas proporcionadas à tarefa de fazer história Ora esta cesura parece negada pela operação que funda já que este passado retorna na prática historiográfica O morto ressurge dentro do trabalho que postulava seu desaparecimento e a possibilidade de analisálo como um objeto O estatuto desse limite necessário e denegado caracteriza a história como ciência humana Efetivamente ela é humana não enquanto tem o homem por objeto mas porque sua prática reintroduz no sujeito da ciência aquilo que se havia diferenciado como seu objeto Seu funcionamento remete os dois pólos do real um ao outro A atividade produtora e o período conhecido se alteram reciprocamente A cesura que foi colocada entre eles por uma decisão instauradora do trabalho científico e fonte de objetividade começa a moverse Ela se inverte se desloca avança Este movimento se deve precisamente ao fato de que ela foi proposta e de que não pode ser mantida Durante a movimentação que desloca os termos da relação inicial esta própria relação é o lugar da operação científica Mas é um lugar cujas mutações como um flutuador no mar seguem os movimentos mais amplos das sociedades suas revoluções econômicas e políticas as relações complexas entre gerações ou entre classes etc A relação científica reproduz o trabalho que assegura a certos grupos a dominação sobre os outros a ponto de fazer deles objetos de sua posse mas atesta também o trabalho dos mortos que por uma espécie de energia cinética se perpetua silenciosamente com as sobrevivências de estruturas antigas continuando diz Marx sua vida vegetativa Fortvegetation42 O historiador não escapa dessas latências e dessa gravidade de um Pg 047 passado ainda presente inércia que o tradicionalista chamará de continuidade tendo a esperança de apresentála como a verdade da história Ele não pode entretanto fazer abstração dos distanciamentos e das exclusividades que definem a época ou a categoria social à qual pertence Em sua operação as permanências ocultas e as rupturas instauradoras formam amálgama A história o mostra tanto mais quanto tem por tarefa de as diferenciar43 A frágil e necessária fronteira entre um objeto passado e uma práxis presente se movimenta desde que ao postulado fictício de um dado a compreender se 42 Karl Marx bas Kapital Berlin 1947 t I p 7 primeiro prefácio cf OEuvres Pléiade 1965 t I p 549 43 Foi isto que Michel Foucault sublinhou fortemente em particular na Archéologie du savoir 1969 p16 17 substitua o exame de uma operação sempre afetada por determinismos e sempre a retomar sempre dependente do lugar onde se efetua numa sociedade e não obstante especificada por um problema métodos e uma função próprios A história está pois em jogo nessas fronteiras que articulam uma sociedade com o seu passado e o ato de distinguirse dele nessas linhas que traçam a imagem de uma atualidade demarcandoa de seu outro mas que atenua ou modifica continuamente o retorno do passado Como na pintura de Miró o traço que desenha diferenças através de contornos e que torna possível uma escrita um discurso e uma historicização é atravessado por um movimento que lhe é contrário Ele é vibração de limites A relação que organiza a história é uma relação mutável na qual nenhum dos dois termos é o referente estável A relação com o outro Essa situação fundamental se manifesta hoje de várias maneiras relativas à forma ou ao conteúdo da historiografia Por exemplo a análise de duração sócioeconômica ou cultural breve ou longa é precedida na obra de história desses Prefácios onde o historiador conta o percurso de uma pesquisa O livro feito de duas metades desiguais mas simbólicas acrescenta à história de um passado o itinerário de um procedimento Já Lucien Febvre inaugurou a apresentação de Lutero pelo exame de sua própria situação de historiador na série de estudos consagrados ao seu objeto 1928 Ele se inscreveu na evolução de uma história presente ao mesmo tempo em que colocou Lutero numa série análoga mais antiga A partir daí não é mais apenas o lugar de onde fala que o historiador particulariza mas o movimento que fez ou o trabalho que se operou nos seus métodos e nas suas questões Pierre Vilar e Emmanuel Le Roy Ladurie cujas obras dominam a historiografia presente justapõem assim o traçado de uma curva metodológica de seu empreendimento e Pg 048 aquele das transformações estruturais da Catalunha ou do Languedoc durante quatro séculos44 A verdade da história está nesse intermédio cujos termos uma obra propõe sem poder criar um objeto que se substitua a essa relação Em Soriano a análise dos contos de Perrault tornase ela própria o relato ou a confissão de uma pesquisa de maneira que o objeto de estudo fragmentado por sondagens 44 Emmanuel Le Roy Ladurie Les Paysans de Languedoc Sevpen 1966 t I p 711 e principalmente Pierre Vilar La Catalogne dans l Espagne moderne Sevpen 1962 t I p 1138 metodológicas heterogêneas encontra sua unidade na operação onde se combinam sem cessar as ações do autor e as resistências de seu material45 Dessa tensão interna motor da explicação histórica é preciso aproximar um outro aspecto não menos surpreendente das pesquisas atuais a confrontação de um método interpretativo com seu outro ou mais precisamente o ato de evidenciar a relação que liga um modo do compreender com o incompreensível que ele faz surgir Por exemplo a imensa erudição cultural de Alphonse Dupront extrai por toda parte da história um pânico profundidade selvagem e sagrada Se às vezes essa alma pânica do coletivo esta pulsão originária ou esse neutro opaco de um mental coletivo toma ares de um referente de um significado ou de um solo da história é por uma espécie de ficção que se apóia nas concepções mais discutíveis de Otto ou de Jung Pois na realidade esse pânico é o nome que um conhecimento prodigiosamente extenso dá ao seu próprio limite ao desconhecido que revela e encontra no seu avanço à necessidade que faz aparecer o Progresso de uma ciência Uma espessura da história é assim designada e não eliminada como alhures mas por um irracional conformado à investigação que se colocou sob o signo de um conhecimento das idéias e das formas culturais O nãohistórico diz Dupront é indispensável ao histórico46 Pierre Vilar apresenta um fenômeno análogo a própria existência do seu assunto a Catalunha é o enigma que uma rigorosa análise socioeconômica faz surgir De que maneira a Catalunha se constitui como unidade própria Como esta unidade muda com o aparecimento também ele problemático da unidade espanhola Com estas questões a notável demonstração de P Vilar que converteu a teoria econômica em análise histórica para apreender uma história profunda a partir das variações econômicas encontra o seu outro Ela desemboca em enigmas a formação de grupos com forte consciência de comunidade a natureza da personalidade regional ou nacional e de um querer político47 O rigor de sua interpretação segrega como ser resto ou como aquilo que se lhe toma incompreensível a unidade de consciência cujas condições e 45 Marc Soriano Les Contes de Perrault Culture savante et traditions populaires Gallimard 1968 46 In Revue de Synthèse n 3739 p 329 Cf também estudos particularmente importantes Lourdes perspectives dune sociologie du sacré em La Table Ronde 125 maio 1958 p 7496 Problèmes et méthodes dune histoire de la psychologie collective em Annales ESC 16 1961 p 311 Formes de la culture des masses de la doléance politique au pèlerinage panique XVIIIeXXe siècles em Niveaux de culture et groupes sociaux Mouton 1968 p 149167 47 P Vilar La Catalogne op cit t I Prefácio p 3637 O confronto entre expressão cultural e estruturas econômicas é particularmente rico pelo próprio objeto estudado em Le Teins du Quichote Europe jan 1956 p 316 Les primitifs espagnols de la pensée économique Mélanges M Bataillon 1962 p 261284 ou de um ponto de vista mais metodológico em Marxisme et histoire dans le développement des sciences humaines Studi storici 1 n 5 1960 p 10081043 funcionamento foram não obstante tão vigorosamente esclarecidos Pg 049 Não é surpreendente que o problema aberto pela irrupção do outro nos procedimentos científicos apareça igualmente nos seus objetos A pesquisa não se põe mais apenas em busca das compreensões que tiveram êxito Retoma aos objetos que não compreende mais Procura medir aquilo que perde fortalecendo suas exigências e seus métodos A História da Loucura criou o signo desse momento em que uma cientificidade ampliada se confronta com as zonas que abandona como seu resíduo ou reverso ininteligível48 A ciência histórica vê crescer com seu progresso as regiões silenciosas do que não atinge É também o momento em que outras ciências fazem a dedução dos prejuízos que têm origem nos seus sucessos O livro de Michel Foucault marca essa interrogação Ele a exprime através de um objeto perdido pela história mas impossível de suprimir a loucura constituída pelas exclusões da razão Certamente depois disso o esforço do autor para dar à loucura sua linguagem própria não pode chegar senão a um fracasso e a se contradizer ele vacila entre a recuperação da loucura numa compreensão de um novo tipo e o crescimento indefinido do signo abstrato a loucura destinado a designar uma casa vazia que não poderia obter da historiografia seu preenchimento49 Este vazio porém permanece aberto diante da razão científica sob a forma de objetos que ela contorna sem atingir Os estudos consagrados à feitiçaria ao milagre à loucura à cultura selvagem etc se multiplicaram depois disto Eles designam um visàvis cuja inquietante estranheza a etnologia e a psicanálise permitiram à história explicitar A razão científica está indissoluvelmente casada com a realidade que retoma como sua sombra e seu outro no momento em que a exclui Essa mobilização da historiografia nos limites que especificam e relativizam seu discurso se reconhece ainda sob a forma mais epistemológica dos trabalhos consagrados aos modos de diferenciação entre ciências Também nesse caso Michel Foucault tem valor de signo Retomando as análises anteriores as de Canguilhem em particular mostra como a história se recorta e se define em função de uma combinação sincrônica de discursos que se contradistinguem mutuamente e remetem às regras comuns de diferenciação50 Quaisquer que sejam as posições próprias do autor 48 M Foucault Folie et déraison Histoire de la folie à lâge classique Pion 1961 nova edição Gallimard 1972 49 Cf a este respeito as observações agudas de Jacques Devida L Écriture et la difference Seuil 1967 p 5197 Cogito et histoire de la folie 50 M Foucault LArchéologie du savoir op cit p 29101 Les régularités discursives sua obra descreve e precipita o movimento que leva a história a se tornar um trabalho sobre o limite á se situar com relação a outros discursos a colocar a discursividade na sua relação com um eliminado a medir os resultados em função dos objetos que lhe escapam mas também a instaurar continuidades isolando séries a particularizar métodos diferenciando os objetos distintos que ela discerne num mesmo fato a revisar e a comparar as periodizações Pg 050 diferentes que fazem aparecer diversos tipos de análise etc De agora em diante o problema não é mais da tradição e do vestígio mas do recorte e do limite Falemos antes de limite ou de diferença do que de descontinuidade termo muito ambíguo porque parece postular a evidência de um corte na realidade É preciso dizer então que o limite se torna ao mesmo tempo instrumento e objeto de pesquisa51 Conceito operatório da prática historiográfica ele é o instrumento do seu trabalho e o lugar do exame metodológico O discurso da história Mais um passo e a história será encarada como um texto que organiza unidades de sentido e nelas opera transformações cujas regras são determináveis Efetivamente se a historiografia pode recorrer aos procedimentos semióticos para renovar suas práticas ela mesma se lhe oferece como um objeto na medida em que constitui um relato ou um discurso próprio Talvez até agora os ensaios consagrados à história nesta perspectiva não sejam absolutamente convincentes de vez que postulam a univocidade do gênero histórico através dos tempos Assim faz Roland Barthes quando se pergunta se a narração dos acontecimentos passados submetida à sanção da ciência histórica colocada sob a caução imperiosa do real justificada por princípios de exposição racional difere verdadeiramente por algum traço específico por uma pertinência indubitável da narração imaginária tal como se pode encontrar na epopéia no romance no drama52 Querer responder a esta questão pelo simples exame de alguns historiadores clássicos Heródoto Maquiavel Bossuet e Michelet não significa supor muito rapidamente a homologia entre estes discursos lançar mão muito facilmente dos exemplos mais 51 Ibid p 12 e 17 52 Roland Barthes Le Discours de lhistoire em Social Science information VI 4 1967 p 6575 A comparar com do mesmo autor Leffet de réel em Communications 11 1968 p 8490 e LÉcriture de lévénement em Communications 12 1968 p 108113 próximos da narração mais afastada das pesquisas presentes tomar o discurso fora do gesto que o constitui numa relação específica coma realidade passada na qual ele se distingue e não levar em consideração por conseguinte os modos sucessivos dessa relação finalmente denegar o movimento atual que faz deste discurso científico a exposição das condições de sua produção bem mais do que a narração dos acontecimentos passados Resta que através dessas obras clássicas o estatuto de um escrito histórico parece definido por uma combinação de significações articuladas e apresentadas apenas em termos de fatos Efetivamente para Roland Pg 051 Barthes se deixarmos de lado o detalhe de sua argumentação lingüística os fatos de que fala a história funcionam como indícios Através das relações estabelecidas entre fatos ou da elevação de alguns dentre eles ao valor de sintomas para uma época inteira ou da lição moral ou política que organiza o discurso inteiro existe em cada história um processo de significação que visa sempre preencher o sentido da História o historiador é aquele que reúne menos os fatos do que os significantes53 Ele parece contar os fatos enquanto efetivamente enuncia sentidos que aliás remetem o notado aquele que é retido como pertinente pelo historiador a uma concepção do notável O significado do discurso historiográfico são estruturas ideológicas ou imaginárias mas elas são afetadas por um referente exterior ao discurso por si mesmo inacessível R Barthes chama este artifício próprio ao discurso historiográfico o efeito do real que consiste em esconder sob a ficção de um realismo uma maneira necessariamente interna à linguagem de propor um sentido O discurso historiográfico não segue o real não fazendo senão significálo repetindo sem cessar aconteceu sem que esta asserção possa jamais ser outra coisa do que o avesso significado de toda a narração histórica54 Evocando o prestígio do aconteceu a propósito da história R Barthes o relaciona com o desenvolvimento atual do romance realista do diário íntimo das crônicas dos museus da fotografia dos documentários etc Efetivamente todos estes discursos se articulam sobre um real perdido passado reintroduzem como relíquia no interior de um texto fechado a realidade que se exilou da linguagem Parece que não se podendo mais atribuir às palavras uma relação efetiva com as coisas que designam elas se tornam tanto mais aptas para formular sentidos quanto menos limitadas são por uma adesão real Também mais do que um retorno ao real o realismo exprime a 53 R Barthes Le discours de lhistoire op cit p 65 54 Ibid p 7374 disponibilidade de uma população de palavras relativas a fatos particulares e de agora em diante utilizáveis na produção de lendas ou de ficções Pois o vocabulário do real integra o material verbal suscetível de ser organizado no enunciado de um pensável ou de um pensado Não mais existe o privilégio de ser o afloramento dos fatos de fazer emergir através deles uma Realidade originária nem de por isso ser aureola do pelo poder de exprimir ao mesmo tempo a própria coisa e o Sentido que viria nela Pg 052 Deste ponto de vista é possível dizer que o signo da História é de agora em diante menos o real do que o inteligível55 Mas não qualquer inteligível A supressão da narrativa na ciência histórica atual atesta a prioridade concedida por esta ciência às condições nas quais elabora o pensável este é o sentido de todo o movimento estruturalista E esta análise que versa sobre os métodos quer dizer sobre a produção do sentido é indissociável em história do seu lugar e de um objeto o lugar é através dos procedimentos o ato presente desta produção e a situação que hoje o torna possível determinandoo o objeto são as condições nas quais tal ou qual sociedade deu a si mesma um sentido através de um trabalho que é também ele determinado A história não é uma crítica epistemológica Ela permanece um relato Conta seu próprio trabalho e simultaneamente o trabalho legível num passado Não o compreende no entanto a não ser elucidando sua própria atividade produtiva e reciprocamente compreendese a si mesma no conjunto e na sucessão de produções das quais ela própria é um efeito Se pois o relato daquilo que aconteceu desapareceu da história científica para em contrapartida aparecer na história vulgarizada ou se a narração toma o aspecto de uma ficção própria de um tipo de discurso não se poderia concluir daí o desaparecimento da referência ao real Esta referência foi ao invés deslocada Ela não é mais imediatamente dada pelos objetos narrados ou reconstituídos Está implicada na criação de modelos destinados a tornar os objetos pensáveis proporcionados às práticas pela confrontação com o que lhes resiste o que os limita e exige outros modelos finalmente pela elucidação daquilo que tomou possível essa atividade inscrevendoa numa economia particular ou histórica da produção social Sob este ponto de vista podese pensar com A J Greimas que com relação aos N da T Realité fontale 55 Ibid p 75 Na ilusão referencial do real no realismo R Barthes revela um novo verossímil O efeito do real op cit p 88 Este real é a conotação de um pensável modelos capazes de dar conta do funcionamento de uma linguagem ou se preferirmos com relação à análise das combinações possíveis na organização e transformação de elementos em número finito o histórico surge para a formulação estruturalista com uma limitação de suas possibilidades de manifestação Da mesma forma que a estrutura atômica diz ele se concebe facilmente como uma combinatória cujo universo atualmente manifestado não passa de uma realização parcial a estrutura semântica imaginada segundo um modelo comparável permanece aberta e não recebe o seu fecho senão da história56 O limite se encontra no cerne da ciência histórica designando o outro da razão ou do possível É sob este aspecto que o real reaparece no interior Pg 053 da ciência Poderseia dizer que a distinção entre ciências exatas e ciências humanas não mais consiste numa diferença de formalização ou de rigor da verificação mas numa separação das disciplinas de acordo com o lugar que oferecem umas ao possível e outras ao limite Em todo caso sem nenhuma dúvida existe ligada ao trabalho dó etnólogo ou do historiador uma fascinação pelo limite ou o que é quase a mesma coisa pelo outro Mas o limite não é apenas aquilo que o trabalho histórico organizado pela vontade de tornar pensável encontra constantemente diante de si ele se prende também ao fato de cada procedimento interpretativo ter sido instaurado para poder definir os procedimentos adequados a um modo de compreensão Uma nova determinação do pensável supõe por detrás de si mesma situações econômicas e sócioculturais que a tornaram possível Toda produção de sentido reconhece um evento que aconteceu e que a permitiu Mesmo as ciências exatas são levadas a exumar sua relação com a história quer dizer o problema da relação entre seu discurso e aquilo que ele implica sem o dizer entre uma coerência e uma gênese No discurso histórico a interrogação a respeito do real retorna pois não apenas com a articulação necessária entre possibilidades e suas limitações ou entre os universais do discurso e a particularidade ligada aos fatos qualquer que seja o seu recorte57 mas sob a forma da origem postulada pelo desenvolvimento de um modo do pensável A prática científica se apóia numa práxis social que independe do conhecimento O espaço do discurso remete 56 A J Greimas Du sens Essais sémiotiques Seuil 1970 p 111 Cf todo este capítulo Histoire et structure p 103116 57 Problema que não deixa de ter analogia com aquele de que tratavam as primeiras filosofias da linguagem em fins da Idade Média Cf J Claude Piguet La querelle des universaux et le problème contemporain du langage na Revue de Théologie et de Philosophie 19 1969 p 392411 a uma temporalidade diferente daquela que organiza as significações de acordo com as regras classificatórias da conjugação A atividade que produz sentido e que instaura uma inteligibilidade do passado é também o sintoma de uma atividade sofrida o resultado de acontecimentos e de estruturações que ela transforma em objetos pensáveis a representação de uma gênese organizadora que lhe escapa IV A HISTÓRIA COMO MITO A história cairia em ruínas sem a chave de abóbada de toda a sua arquitetura a articulação entre o ato que propõe e a sociedade que reflete o corte constantemente questionado entre um presente e um passado o duplo estatuto de um objeto que é um efeito do real no texto e o nãodito implicado pelo fechamento do discurso Se ela deixa seu lugar o limite que propõe e que recebe ela se decompõe para ser apenas uma ficção Pg 054 a narração daquilo que aconteceu ou uma reflexão epistemológica a elucidação de suas regras de trabalho Ela porém não é nem a lenda à qual foi reduzida por uma vulgarização nem a criteriologia que faria dela a única análise crítica de seus procedimentos Ela está entre estas duas coisas no limite que separa as suas reduções como Charles Chaplin se definia no final de The Pilgrin através da corrida sobre a fronteira mexicana entre dois países que o perseguiam e dos quais seus ziguezagues desenhavam ao mesmo tempo a diferença e a costura Também ele lançado seja para o presente seja para o passado o historiador faz a experiência de uma práxis que é inextricavelmente a sua e a do outro uma outra época ou a sociedade que o determina hoje Ele trabalha a própria ambigüidade que designa o nome de sua disciplina Historie e Geschichte ambigüidade afinal rica de sentido Com efeito a ciência histórica não pode desligar inteiramente a sua prática daquilo que escolheu como o objeto e tem como tarefa indefinida tornar precisos os modos sucessivos dessa articulação Sem dúvida essa é a razão pela qual a história tomou o lugar dos mitos primitivos ou das teologias antigas desde que a civilização ocidental deixou de ser religiosa e que de maneira política social ou científica ela se definiu por uma práxis que envolve igualmente suas relações consigo mesma e com outras sociedades O relato dessa relação de exclusão e de atração de dominação ou de comunicação com o outro posto preenchido alternadamente por uma vizinhança ou por um futuro permite à nossa sociedade contarse ela própria graças à história Ele funciona como o faziam ou fazem ainda em civilizações estrangeiras os relatos de lutas cosmogónicas confrontando um presente a uma origem Essa localização do mito não aparece apenas com o movimento que leva as ciências exatas ou humanas em direção à história que permite aos cientistas se situarem num conjunto social58 ou com a importância da vulgarização histórica que torna pensável a relação de uma ordem com a sua mudança ou que a exorciza na base de Foi sempre assim ou ainda com as mil ressurgências da genial identificação estabelecida por Michelet entre a história e a autobiografia de uma nação de um povo ou de um partido A história tornouse nosso mito por razões mais fundamentais do que as resumidas em algumas das análises precedentes Identidade por diferenciação O discurso histórico explicita uma identidade social não como dada Pg 055 ou estável mas enquanto se diferencia de uma época anterior ou de uma outra sociedade Ele supõe a ruptura que transforma uma tradição em um objeto passado da mesma forma que a história do Antigo Regime supõe a Revolução59 Mas essa relação com a origem próxima ou longínqua da qual uma sociedade se separa sem poder eliminála é analisada pelo historiador que faz dela o lugar da sua ciência Em um texto que guarda ainda a forma de relato ele articula a prática de uma nova inteligibilidade e a remanescência de passados diferentes que sobrevivem não apenas nos documentos mas nesse arquivo particular que é o próprio trabalho histórico Se por um lado a história tem como função exprimir a posição de uma geração com respeito às precedentes dizendo Eu não sou isto acrescenta sempre a esta afirmativa um complemento não menos perigoso que faz uma sociedade confessar Eu sou outra coisa além daquilo que quero e sou determinada por aquilo que denego A história atesta uma autonomia e uma dependência cujas proporções variam segundo os meios sociais e as situações políticas que presidem à sua elaboração Sob a forma de 58 Em LHistoire et lunité des sciences de lhomme in Annales ESC 23 n 2 1968 p 233240 Charles Morazé encara sob este aspecto o papel central da história é porque a relação entre ciências humanas se traduz e ocorre na história que ela é sincretista e que hoje parece fragmentada através de sua adesão a disciplinas cada vez mais divergentes 59 Após ter dito o regime precedente falase a partir de novembro de 1789 do antigo regime Cf Albert Soboul La Civilization et la Révolution Française Arthaud t I 1970 p 37 e as reflexões de Pierre Boubert L Ancien Régime A Colin t I 1969 chap I um trabalho imanente ao desenvolvimento humano assume o lugar dos mitos através dos quais uma sociedade representava as relações ambíguas com as suas origens e através de uma história violenta dos Começos suas relações com ela mesma A origem da linguagem o morto e o vivo Apesar de seus exórdios ou de seus prefácios na primeira pessoa sob forma de Ichbericht que tem valor de intróito iniciático e apresentam um naqueles tempos graças à distância notada desde o tempo do autor a história é um discurso na terceira pessoa Batalhas políticas ou salários são o seu sujeitoobjeto mas como escreve Roland Barthes ninguém está lá para assumir o enunciado60 O discurso sobre o passado tem como estatuto ser o discurso do morto O objeto que nele circula não é senão o ausente enquanto que o seu sentido é o de ser uma linguagem entre o narrador e os seus leitores quer dizer entre presentes A coisa comunicada opera a comunicação de um grupo com ele mesmo pelo remetimento ao terceiro ausente que é o seu passado O morto é a figura objetiva de uma troca entre vivos Ele é o enunciado do discurso que o transporta como um objeto mas em função de uma interlocuação remetida para fora do discurso no nãodito No modo dessas conjugações com o ausente a história se toma o Pg 056 mito da linguagem Ela torna manifesta a condição do discurso uma morte Nasce com efeito da ruptura que constitui um passado distinto de seu empreendimento presente Seu trabalho consiste em criar ausentes em fazer de signos dispersos na superfície de uma atualidade vestígios de realidades históricas ausentes porque outras Mas o ausente é também a forma presente da origem61 Existe mito porque através da história a linguagem se confrontou com a sua origem Na verdade a confrontação adquire aqui aspectos distintos é a relação do discurso histórico com tal ou qual período que foi privilegiado como objeto de estudo na série linear de uma cronologia ou ainda o movimento que remete esse período ao seu aquém mais primitivo e volta indefinidamente até um começo imaginário um umbral fictício mas necessário para que se possa retornar ao longo dos tempos e classificálos etc Porém uma relação mais próxima e mais fundamental é significada por esse zero 60 R Barthes Le discours de lhistoire op cit p 71 61 Isto fala deixando de lado o exame esboçado alhures dos problemas abertos pela intervenção da psicanálise no campo da história Cf Aquilo que Freud fez da história infra inicial é a relação de cada discurso com a morte que o torna possível A origem é interna ao discurso Ela é precisamente aquilo de que ele não pode fazer um objeto enunciado Esse discurso se define enquanto dizer como articulado com aquilo que aconteceu além dele tem como particularidade um início que supõe um objeto perdido tem como função entre homens a de ser a representação de uma cena primitiva apagada mas ainda organizadora O discurso não deixa de se articular com a morte que postula mas que a prática histórica contradiz Pois falar dos mortos é também negar a morte e quase desafiála Igualmente dizse que a história os ressuscita Esta palavra é um engodo ela não ressuscita nada Mas evoca a função outorgada a uma disciplina que trata a morte como um objeto do saber e fazendo isto dá lugar à produção de uma troca entre vivos Esta é a história Um jogo da vida e da morte prossegue no calmo desdobramento de um relato ressurgência e denegação da origem desvelamento de um passado morto e resultado de uma prática presente Ela reitera um regime diferente os mitos que se constroem sobre um assassinato ou uma morte originária e que fazem da linguagem o vestígio sempre remanescente de um começo tão impossível de reencontrar quanto de esquecer O dizer e o fazer Finalmente a história se refere a um fazer que não é apenas o seu fazer história mas aquele da sociedade que especifica uma produção científica Se ela permite a um agir comum darse uma linguagem técnica Pg 057 própria remete a esta práxis social como àquilo que torna possíveis os textos organizados por uma nova inteligibilidade do passado Essa relação do discurso com um fazer é interna ao seu objeto já que de um modo ou de outro a história fala sempre de tensões de redes de conflitos de jogos de força Mas é também externo na medida em que a forma de compreensão e o tipo do discurso são determinados pelo conjunto sóciocultural mais amplo que designa à história seu lugar particular As sociedades estáveis do lugar a uma história que privilegia as continuidades e tendem a dar valor de essência humana a uma ordem solidamente estabelecida Nas épocas de movimento ou de revolução as rupturas de ação coletiva ou individual se tornam o princípio de inteligibilidade histórica Mas essa referência à organização social do agir mobilizado pelo desenvolvimento de uma ordem política ou pela fundação de novos regimes não intervém senão indiretamente na análise científica Introduzse nela simbolicamente com uma tópica do inteligível segundo os períodos da historiografia será o acontecimento ou a série contínua o ponto de partida e a definição do inteligível Um tipo de sociedade se trai também na maneira pela qual se combinam a discursividade do compreender e a estranheza daquilo que acontece por exemplo o modelo sócioeconômico será preferível à biografia ou ocorrerá o inverso etc Espelho do fazer que hoje define uma sociedade o discurso histórico é ao mesmo tempo sua representação e seu reverso Ele não é o todo como se o saber fornecesse a realidade ou a fizesse aceder ao seu grau mais elevado Esse lance maior do conhecimento está ultrapassado Todo o movimento da epistemologia contemporânea no campo das ciências ditas humanas o contradiz e antes humilha a consciência O discurso histórico nao é senão uma cédula a mais numa moeda que se desvaloriza Afinal de contas não é mais do que papel Mas seria falso lançálo do excesso de honrarias ao excesso de indignidade O texto da história sempre a retomar duplica o agir como seu rastro e sua interrogação Articulado com aquilo que não é agitação de uma sociedade mas também a própria prática científica ele sublinha o enunciado com um sentido que se combina simbolicamente com o fazer Não substitui a práxis social mas é sua testemunha frágil e sua crítica necessária Destronado do lugar para onde o havia alçado a filosofia que desde o tempo das Luzes ou do idealismo alemão fazia dele a manifestação última do Espírito do mundo sem dúvida o discurso historiográfico troca o lugar do rei pelo da criança da estória apontando uma verdade que todos faziam questão de esquecer Esta é também a posição do mito reservado Pg 058 à festa que abre no trabalho o parêntese de uma verdade Sem nada retirar das funções previamente sublinhadas é necessário não negligenciar aquela que liga o dizer histórico ao fazer social sem identificar o primeiro com o segundo ela lembra ao trabalho sua relação com a morte e com o sentido ela situa a verdadeira historiografia ao lado das questões indiscretas a serem abertas no imenso movimento da práxis Pg 059 pgs 060 a 064 notas Capítulo II A OPERAÇÃO HISTORIOGRÁFICA O que fabrica o historiador quando faz história Para quem trabalha Que produz Interrompendo sua deambulação erudita pelas salas dos arquivos por um instante ele se desprende do estudo monumental que o classificará entre seus pares e saindo para a rua ele se pergunta O que é esta profissão Eu me interrogo sobre a enigmática relação que mantenho com a sociedade presente e com a morte através da mediação de atividades técnicas Certamente não existem considerações por mais gerais que sejam nem leituras tanto quanto se possa estendêlas capazes de suprimir a particularidade do lugar de onde falo e do domínio em que realizo uma investigação Esta marca é indelével No discurso onde enceno as questões globais ela terá a forma do idiotismo meu patoá representa minha relação com um lugar Mas o gesto que liga as idéias aos lugares é precisamente um gesto de historiador Compreender para ele é analisar em termos de produções localizáveis o material que cada método instaurou inicialmente segundo seus métodos de pertinência1 Quando a história2 se toma para o prático o próprio objeto de sua reflexão pode ele inverter o processo de Pg 065 compreensão que refere um produto a um lugar Ele seria neste caso um fujão cederia a um álibi ideológico se para estabelecer o estatuto do seu trabalho recorresse a um alhures filosófico a uma verdade formada e recebida fora dos caminhos pelos quais em história todo sistema de pensamento está referido a lugares sociais econômicos culturais etc Semelhante dicotomia entre o que faz e o que diria do que faz serviria aliás à ideologia reinante protegendoa da prática efetiva Ela também destinaria ria as experiências do historiador a um sonambulismo teórico Mais que isto em história como em qualquer outra coisa uma prática sem teoria desemboca necessariamente mais dia menos dia no dogmatismo de valores eternos ou na apologia de um intemporal A suspeita não poderia pois estenderse a toda Uma parte deste estudo foi publicado em J Le Goff e P Nora Faire de l histoire Gallimard 1974 t 1 p 341 sob o título Lopération historique Ele foi aqui revisto e corrigido 1 Se o trabalho histórico se caracteriza pela determinação de lugares de pertinências quer dizer por uma tópica como demonstrou Paul Veyne Comment on écrit lhistoire Seuil 1971 p 258273 ele não renuncia tampouco a inscrever as unidades de sentido ou fatos assim determinados em relação de produção Ele se aplica pois em mostrar as relações entre os produtos e os lugares de produção 2 Uma vez por todas quero precisar que emprego a palavra história no sentido de historiografia Quer dizer entendo por história uma prática uma disciplina seu resultado um discurso e sua relação Cf Fazer história supra p 2154 análise teórica Neste setor Serge Moscovici Michel Foucault Paul Veyne e ainda outros atestam um despertar epistemológico3 Este manifesta na França uma urgência nova Mas receptível é apenas a teoria que articula uma prática a saber a teoria que por um lado abre as práticas para o espaço de uma sociedade e que por outro lado organiza os procedimentos próprios de uma disciplina Encarar a história como uma operação será tentar de maneira necessariamente limitada compreendêla como a relação entre um lugar um recrutamento um meio uma profissão etc procedimentos de análise uma disciplina e a construção de um texto uma literatura É admitir que ela faz parte da realidade da qual trata e que essa realidade pode ser apropriada enquanto atividade humana enquanto prática4 Nesta perspectiva gostaria de mostrar que a operação histórica se refere à combinação de um lugar social de práticas científicas5 e de uma escrita Essa análise das premissas das quais o discurso não fala permitirá dar contornos precisos às leis silenciosas que organizam o espaço produzido como texto A escrita histórica se constrói em função de uma instituição cuja organização parece inverter com efeito obedece a regras próprias que exigem ser examinadas por elas mesmas I UM LUGAR SOCIAL Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio econômico político e cultural Implica um meio de elaboração que circunscrito por determinações próprias una profissão liberal um posto de observação ou de ensino uma categoria de letrados etc Ela está pois submetida a imposições ligada a privilégios enraizada em uma particularidade Pg 066 É em função deste lugar que se instauram os métodos que se delineia uma topografia de interesses que os documentos e as questões que lhes serão propostas se organizam 3 Cf Serge Moscovici Essai sur lhistoire humaine de la nature Flammarion 1968 Michel Foucault L Archéologie du savoir Gallimard 1969 Paul Veyne Comment on écrit lhistoire Seuil 1971 4 KarlMarx Thèses sur Feuerbach tese I 5 O termo científica bastante suspeito no conjunto das ciências humanas onde é substituído pelo termo análise não o é menos no campo das ciências exatas na medida em que remeteria a leis Podese entretanto definir com este termo a possibilidade de estabelecer um conjunto de regras que permitam controlar operações destinadas à produção de objetos determinados 1O nãodito Há quarenta anos uma primeira crítica do cientificismo desvendou dou na história objetiva a sua relação com um lugar o do sujeito Analisando uma dissolução do objeto R Aron tirou da história o privilégio do qual se vangloriava quando pretendia reconstituir a verdade daquilo que havia acontecido A história objetiva aliás perpetuava com essa idéia de uma verdade um modelo tirado da filosofia de ontem ou da teologia de anteontem contentavase com traduzila em termos de fatos históricos Os bons tempos desse positivismo estão definitivamente acabados Desde então veio o tempo da desconfiança Mostrouse que toda interpretação histórica depende de um sistema de referência que este sistema permanece uma filosofia implícita particular que infiltrandose no trabalho de análise organizandoo à sua revelia remete à subjetividade do autor Vulgarizando os temas do historicismo alemão Raymond Aron ensinou a toda uma geração a arte de apontar as decisões filosóficas em função das quais se organizam os recortes de um material os códigos do seu deciframento e a ordem da exposição6 Essa crítica representava um esforço teórico Marcava uma etapa importante com relação a uma situação francesa onde prevaleciam as pesquisas positivas e reinava o ceticismo acerca das tipologias alemãs Exumava a premissa e o inconfessável filosóficos da historiografia do século XIX Já remetia a uma circulação de conceitos quer dizer aos deslocamentos que no correr deste século tinham transportado as categorias filosóficas para o subsolo da história como também para o da exegese ou da sociologia Agora sabemos a lição na ponta da língua Os fatos históricos já são constituídos pela introdução de um sentido na objetividade Eles enunciam na linguagem da análise escolhas que lhes são anteriores que não resulta pois da observação e que não são nem mesmo verificáveis mas apenas falsificáveis graças a um exame crítico7 A relatividade histórica compõe assim um quadro onde sobre o fundo de uma totalidade da história se destaca uma multiplicidade de filosofias 6 Introduction à la philosophie de lhistoire Essai sur les limites de lobjectivité historique Vrin 1938 La Philosophie critique de lhistoire Vrin 1938 reed 1969 Sobre as teses de R Aron cf a crítica de Pierre Vilar Marxisme et histoire dans le développement des sciences humainnes in Studi storici I n 5 1960 p 10081043 principalmente p 10111019 7 Sobre o princípio de falsificação cf Karl Popper Logik der Forschung Viena 1934 trad inglesa revista e muito aumentada The Logic of scientific Discovery Londres Hutchinson 1959 a obra de base do racionalismo crítico individuais as dos pensadores que se vestem de historiadores Pg 067 O retomo às decisões pessoais se efetuava baseado em dois postulados Por um lado isolando um elemento filosófico do texto historiográfico supunhase uma autonomia para a ideologia era a condição de sua extração Uma ordem das idéias era posta à parte da prática histórica Por outro lado mas as duas operações caminham juntas sublinhando as divergências entre os filósofos descobertos sob suas vestes de historiadores referindose ao insondável de suas ricas intuições faziase destes pensadores um grupo isolável de sua sociedade a pretexto de sua relação direta com o pensamento O recurso às opções pessoais provocava curtocircuito no papel exercido sobre as idéias pelas localizações sociais8 0 plural destas subjetividades filosóficas tinha desde então como efeito discreto conservar uma posição singular para os intelectuais Sendo as questões de sentido tratadas entre eles a explicitação de suas diferenças de pensamento equivalia a gratificar o grupo inteiro com uma relação privilegiada com as idéias Nada dos ruídos de uma fabricação de técnicas de imposições sociais de posições profissionais ou políticas perturbava a paz desta relação um silêncio era o postulado desta epistemologia R Aron estabeleceu um estatuto reservado tanto para o reinado das idéias quanto para o reino dos intelectuais A relatividade não funcionava senão no interior de um campo fechado Longe de colocálo em questão de fato ela o defendia Apoiadas na distinção entre o sábio e o político um dos elos mais discutíveis da teoria de Weber9 estas teses demoliam uma pretensão do saber mas reforçavam o poder isento dos sábios Um lugar foi posto fora de alcance no momento em que se mostrou a fragilidade daquilo que se produzia nele O privilégio negado às obras controláveis foi transferido para um grupo incontrolável Os trabalhos mais notáveis parecem ainda hoje deslizarse dificilmente da posição vigorosa que R Aron tomou substituindo o privilégio silencioso de um lugar por aquele outro triunfante e discutível de um produto Ainda que Michel Foucault negue toda referência à subjetividade ou ao pensamento de um autor supunha ainda 8 Cf Antonio Granisci Gli intellectuali e lorganizzazione della cultura Turin Ejnaudi 1949 p 638 9 Retomando à tese weberiana segundo a qual a elaboração científica começa por uma escolha que não admite outra justificativa senão a subjetiva R Aron sublinhou uma vez mais em Les Étapes de Ia pensée sociologique Gallimard 1967 p 510 o cruzamento em Weber entre a escolha subjetiva e o sistema racional de explicação causal ibid p 500522 Por aí ele obliterou o efeito sobre o intelectual de seu lugar na sociedade e pode uma vez mais manter Weber como o antiMarx nos seus primeiros livros10 a autonomia do lugar teórico onde se desenvolvem no seu relato as leis segundo as quais discursos científicos se formam e se combinam em sistemas globais A Arqueologia do Saber 1969 sob este ponto de vista marca uma ruptura introduzindo ao mesmo tempo as técnicas de uma disciplina e os conflitos sociais no exame de uma estrutura epistemológica a da história e isto não é por acaso Da mesma forma quando Paul Veyne termina de destruir na história o que a passagem de R Aron Pg 068 ainda lhe havia deixado de ciência causal quando nele a fragmentação dos sistemas interpretativos em uma poeira de percepções e de decisões pessoais não deixa mais subsistir como fato de coerência senão as regras de um gênero literário e como fato de referência senão o prazer do historiador11 bem parece permanecer intacto o pressuposto que desde as teses de 1938 negava implicitamente toda pertinência epistemológica ao exame da função social exercida pela história pelo grupo dos historiadores e mais genericamente pelos intelectuais pelas práticas e pelas leis deste grupo por sua intervenção no jogo das forças públicas etc 2 A instituição histórica Este lugar deixado em branco ou escondido pela análise que exorbitou a relação de um sujeito individual com seu objeto é uma instituição do saber Ela marca a origem das ciências modernas como demonstram no século XVII as assembléias de eruditos em SaintGermain dês Près por exemplo as redes de correspondência e de viagem formadas então por um meio de curiosos12 ou mais claramente no século XVIII os círculos sábios e as Academias com as quais Leibniz tanto se preocupava13 Os nascimentos de disciplinas estão ligados à criação de 10 Em Les mots et lês choses Gallimard 1966 principalmente cujo propósito foi depois especificado e situado em particular na notável Introduction de L Archéologie du savoir op cit p 928 Cf M de Certeau em L Absent de lhistoire 1973 p 115132 Le noir soleil du langage M Foucault 11 Cf M de Certeau Une épistemologie de transition P Veyne in Annales E S C t XXVII 1972 p 13171327 12 Philippe Ariès Le Temps de lhistoire Monaco 1951 p 224 Pierre Chaunu La Civilisation de lEurope classique Arthaud 1966 p 404409 sobre A constituição através da Europa de um pequeno mundo da pesquisa muitos outros também notaram o fato Mas apenas o detalhe mostra a que ponto esta constituição social marca um corte epistemológico Por exemplo existe uma relação estreita entre a delimitação dos correspondentes ou das viagens e a instauração entre eles de uma linguagem erudita sobre estas correspondências cf Baudouin de Gaiffier in Religion érudition et critique d Ia foi du XVIIe siècle P U F 1968 p 29 ou entre as assembléias de quartafeira na biblioteca Colbertina de 1675 a 1751 e a elaboração de uma pesquisa histórica sobre estas reuniões cf Léopold Delisle Le Cabinet des manuscrits de la Bibliothéque Nationale t I Paris 1868 p 476477 13 Daniel Roche demonstra a estreita conexão entre o enciclopedismo um complexo de idéias e estas instituições que são as academias parisienses ou provinciais Encyclopédistes et académiciens in grupos Desta relação entre uma instituição social e a definição de um saber o contorno aparece desde Bacon ou Descartes com aquilo que se chamou de despolitização dos sábios É necessário não entender isto como um exílio fora da sociedade14 mas como a fundação de corpos o dos engenheiros dos intelectuais pobres aposentados etc no momento em que as universidades se esclerosavam ao se fecharem Instituições políticas eruditas e eclesiásticas se especializam reciprocamente Não se trata pois de uma ausência mas de um lugar particular numa redistribuição do espaço social À maneira de uma retirada relativa dos assuntos públicos e dos assuntos religiosos que se organizam também em corpos particulares constituise um lugar científico A ruptura que torna possível a unidade social chamada a se transformar na ciência indica uma reclassificação global em curso Este corte mostra pois através da sua face externa um lugar articulado sobre outros num conjunto novo e através da sua face interna a instauração de um saber indissociável de uma instituição social A partir daí este modelo originário se encontra por toda parte Ele também se multiplica sob a forma de subgrupos ou escolas Daí a persistência Pg 069 do gesto que circunscreve uma doutrina graças a um assento institucional15 A instituição social uma sociedade de estudos de permanece a condição de uma linguagem científica a revista ou o Boletim continuação e equivalente das correspondências de antigamente Desde os Observateurs de lhomme do século XVIII até a criação da Vie section de lÉcole pratique des hautes études pela École des Annales 1947 passando pelas faculdades do século XIX cada disciplina mantém sua ambivalência de ser a lei de um grupo e a lei de uma pesquisa científica A instituição não dá apenas uma estabilidade social a uma doutrina Ela a torna possível e subrepticiamente a determina Não que uma seja a causa da outra Não seria Livre et société dans la France du XVIIIe siècle II Mouton 1970 p 7392 como Sergio Moravia liga o nascimento da etnologia à constituição do grupo dos Observateurs de lhomme La Scienza delluomo nel settecento Bari Laterza 1970 p 151172 Poderseiam multiplicar os exemplos 14 Apesar de G Bachelard que escrevia a comunidade científica é estabelecida a margem da sociedade social Le Rationalisme appliqué P U F 1966 p 23 cf La Formation de L esprit scientifique 1965 p 3234 A Koyré retomou a mesma tese mas para defender uma vida própria uma história imanente da ciência que não pode ser compreendida senão em função de seus próprios problemas de sua própria história Perspectives sur lhistoire des aciences in Eludes dhistoire de Ia pende scientifique Gallimard 1973 p 399 Parece que existe aqui em seguimento a Weber 1 uma confusão entre diferenciação e isolamento como se a instauração de um lugar próprio não estivesse ligada a uma redistribuição geral e portanto a redefinições recíprocas 2 uma concepção da história das idéias que nega toda pertinência às divisões sociais quando os recortes epistemológicos são indissociavelmente sociais e intelectuais 15 Jean Glénisson Lhistoriographie française contemporaine in Vingtcinq ans de recherche historique en France C N R S 1965 p xxiv n 3 a propósito dos Annales suficiente contentarse com a inversão dos termos a infraestrutura tornandose a causa das idéias supondo entre elas o tipo de relação que estabeleceu o pensamento liberal quando encarregou as doutrinas de conduzirem a história pela mão É antes necessário recusar o isolamento destes termos e portanto a possibilidade de transformar uma correlação numa relação de causa e efeito É um mesmo movimento que organiza a sociedade e as idéias que nela circulam Ele se distribui em regimes de manifestações econômica social científica etc que constituem entre eles funções imbricadas porém diferenciadas das quais nenhuma é a realidade ou a causa das outras Desta maneira os sistemas sócio econômicos e os sistemas de simbolização se combinam sem se identificar nem se hierarquizar Uma mudança social é deste ponto de vista comparável a uma modificação biológica do corpo humano constitui como ela uma linguagem mas adequada a outros tipos de linguagem verbal por exemplo O isolamento médico do corpo resulta de um corte interpretativo que não dá conta das passagens da somatização à simbolização Inversamente um discurso ideológico se ajusta a uma ordem social da mesma forma como cada enunciado individual se produz em função das silenciosas organizações do corpo Que o discurso como tal obedeça a regras próprias isto não o impede de articularse com aquilo que não diz com o corpo que fala à sua maneira16 Em história é abstrata toda doutrina que recalca sua relação com a sociedade Ela nega aquilo em função de que se elabora Sofre então os efeitos de distorção devidos à eliminação daquilo que a situa de fato sem que ela o diga ou o saiba o poder que tem sua lógica o lugar que sustenta e mantém uma disciplina no seu desdobramento em obras sucessivas etc O discurso científico que não fala de sua relação com o corpo Pg 070 social é precisamente o objeto da história Não se poderia tratar dela sem questionar o próprio discurso historiográfico Em seu Rapport général de 1965 sobre a historiografia francesa J Glénisson evocou algumas das articulações discretas entre um saber e um lugar o enquadramento das pesquisas por alguns doutores que alcançaram os postos superiores do professorado e que decidem carreiras universitárias17 a imposição exercida pelo tabu social da tese monumental18 o laço entre a frágil influência da teoria marxista e o recrutamento social 16 O psicanalista dirá mesmo que a palavra oculta e que o corpo fala 17 J Glénisson op Cit p xxvi 18 Ibid p xxiv Sobre estes dois pontos cf Teny N e Pricilla P Clark Le patron e son cercle clef de lUniversité française in Revue de sociologie XII 1971 p 1939 estudo perspicaz que apenas observadores externos poderiam escrever Os autores definem o sistema por quatro elementos do pessoal erudito possuidor de cátedras e de presidências19 os efeitos de uma instituição fortemente hierarquizada e centralizada sobre a evolução científica da história que é de uma notável tranqüilidade há três quartos de século20 É também necessário sublinhar os interesses exclusivamente nacionais de uma historiografia voltada para as querelas internas lutase contra Seignobos ou a favor de Febvre circunscrita pelo chauvinismo lingüístico da cultura francesa privilegiando as expedições às regiões mais próximas da referência latina o mundo mediterrânico a Espanha a Itália ou a América Latina limitada além disso nos seus meios financeiros etc Entre muitos outros estes traços remetem o estatuto de uma ciência a uma situação social que é o seu naodito É pois impossível analisar o discurso histórico independentemente da instituição em função do qual ele se organiza silenciosamente ou sonhar com uma renovação da disciplina assegurada pela única e exclusiva modificação de seus conceitos sem que intervenha uma transformação das situações assentadas Sob este aspecto como indicam as pesquisas de Jürgen Habermas uma repolitização das ciências humanas se impõe não se poderia dar conta dela ou permitirlhe o progresso sem uma teoria crítica de sua situação atual na sociedade21 A questão que a sociologia crítica de Habermas aponta já está aliás delineada no discurso histórico Sem esperar as denúncias do teórico o texto assume ele próprio sua relação com a instituição Por exemplo o nós do autor remete a uma convenção dirse ia em semiótica que ele remete a um verossímil enunciativo No texto ele é a encenação de um contrato social entre nós É um sujeito plural que sustenta o discurso Um nós se apropria da linguagem pelo fato de ali ser posto como locutor22 Por aí se verifica a prioridade do discurso histórico23 em cada obra historiográfica essenciais a centralização do controle o caráter monopolista do sistema o número restrito dos postos importantes a multiplicação das funções do patrono 19 J Glénisson op cit p xxiixxiii 20 Ibid p li 21 J Habermas critica em particular nas teorias sociológicas é preciso acrescentar ou históricas de tipo puramente técnico e gnoseológico o subentendido de uma neutralidade frente aos valores postulados pelo ponto de partida epistemológico de suas pequisas Analytische Wissenschafttheorie und Dialektik in Zeugnissa Theodor W Adorno Zum sechzigaten Geburtstag Francfurtsobreo Meno 1963 p 500501 Cf do mesmo autor as obras de base que são Zur Logik der Sozialwissenschaft Tübingen Mohr 1967 e Technik und Wiísenschaft ais Ideologie Francfurtsobre oMeno Suhrkamp 1968 trad fr La Technique et Ia science comme idéologie Gallimard 1973 22 Sobre o papel e ò sentido do eu ou do nós lugar feito na linguagem para aquele que se apropria dela como locutor cf Émile Benveniste Problèmes de linguistique générale Gallimard 1966 p 258266 23 Por discurso entendo o próprio gênero histórico ou antes na perspectiva de Michel Foucault uma prática discursiva o conjunto das regras que caracterizam uma prática discursiva Archeologie o savor Gallimard 1969 p 74 e 168 particular A mediação deste nós elimina a alternativa que atribuiria a história ou a um indivíduo o autor sua filosofia pessoal etc ou a um sujeito global o tempo a sociedade etc Substitui a estas Pg 071 pretensões subjetivas ou a estas generalidades edificantes a positividade de um lugar onde o discurso se articula sem entretanto reduzirse a ele Ao nós do autor corresponde aquele dos verdadeiros leitores O público não é o verdadeiro destinatário do livro de história mesmo que seja o seu suporte financeiro e moral Como o aluno de outrora falava à classe tendo por detrás dele seu mestre uma obra é menos cotada por seus compradores do que por seus pares e seus colegas que a apreciam segundo critérios científicos diferentes daqueles do público e decisivos para o autor desde que ele pretenda fazer uma obra historiográfica Existem as leis do meio Elas circunscrevem possibilidades cujo conteúdo varia mas cujas imposições permanecem as mesmas Elas organizam uma polícia do trabalho Não recebido pelo grupo o livro cairá na categoria de vulgarização que considerada com maior ou menor simpatia não poderia definir um estudo como historiográfico Serlheá necessário o ser acreditado para aceder à enunciação historiográfica O estatuto dos indivíduos que tem e somente eles o direito regulamentar ou tradicional juridicamente definido ou espontaneamente aceito de proferir um discurso semelhante24 depende de uma agregação que classifica o eu do escritor no nós de um trabalho coletivo ou que habilita um locutor a falar o discurso historiográfico Este discurso e o grupo que o produz faz o historiador mesmo que a ideologia atomista de uma profissão liberal mantenha a ficção do sujeito autor e deixe acreditar que a pesquisa individual constrói a história Mais genericamente um texto histórico quer dizer uma nova interpretação o exercício de métodos novos a elaboração de outras pertinências um deslocamento da definição e do uso do documento um modo de organização característico etc enuncia uma operação que se situa num conjunto de práticas Este aspecto é o primeiro É o essencial numa pesquisa científica Um estudo particular será definido pela relação que mantém com outros contemporâneos com um estado da questão com as problemáticas exploradas pelo grupo e os pontos estratégicos que constituem com os postos avançados e os vazios determinados como tais ou tornados pertinentes com relação a uma pesquisa em andamento Cada resultado individual se inscreve numa rede 24 M Foucault op cit p 68 a propósito do discurso médico cujos elementos dependem estritamente uns dos outros e cuja combinação dinâmica forma a história num momento dado Finalmente o que é uma obra de valor em história Aquela que é reconhecida como tal pelos pares Aquela que pode ser situada num conjunto operatório Aquela que representa um progresso com relação ao Pg 072 estatuto atual dos objetos e dos métodos históricos e que ligada ao meio no qual se elabora torna possíveis por sua vez novas pesquisas O livro ou o artigo de história é ao mesmo tempo um resultado e um sintoma do grupo que funciona como um laboratório Como o veículo saído de uma fábrica o estudo histórico está muito mais ligado ao complexo de uma fabricação específica e coletiva do que ao estatuto de efeito de uma filosofia pessoal ou à ressurgência de uma realidade passada É o produto de um lugar 3 Os historiadores na sociedade Segundo uma concepção bastante tradicional na intelligentsia francesa desde o elitismo do século XVIII convencionouse que não se introduzirá na teoria o que se faz na prática Assim falarseá de métodos mas sem o impudor de evocar seu valor de iniciação a um grupo é preciso aprender ou praticar os bons métodos para ser introduzido no grupo ou sua relação com uma força social os métodos são meios graças aos quais se protege se diferencia e se manifesta o poder de um corpo de mestres e de letrados Estes métodos esboçam um comportamento institucional e as leis de um meio Nem por isso deixam de ser científicos Supor uma antinomia entre uma análise social da ciência e sua interpretação em termos de história das idéias é a falsidade daqueles que acreditam que a ciência é autônoma e que a título desta dicotomia consideram como não pertinente a análise de determinações sociais e como estranhas ou acessórias as imposições que ela desvenda Estas imposições não são acidentais Elas fazem parte da pesquisa Longe de representar a inconfessável intromissão de um estranho no Santo dos santos da vida intelectual constituem a textura dos procedimentos científicos Cada vez mais o trabalho se articula com base em equipes líderes meios financeiros e portanto também pela mediação de créditos fundamentados nos privilégios que proximidades sociais ou políticas proporcionam a tal ou qual estudo E igualmente organizado por uma profissão que tem suas próprias hierarquias suas normas centralizadoras seu tipo de recrutamento psicossocia125 Apesar das tentativas feitas para romper as fronteiras está instalado no círculo da escrita nesta história que se escreve abriga prioritariamente aqueles que escreveram de maneira tal que a obra de história reforçasse uma tautologia sóciocultural entre seus autores letrados seus objetos livros manuscritos etc e seu público cultivado Este trabalho está ligado a um ensino logo às flutuações Pg 073 de uma clientela às pressões que esta exerce ao se expandir aos reflexos de defesa de autoridade ou de recuo que a evolução e os movimentos dos estudantes provocam entre os mestres à introdução da cultura de massa numa universidade massificada que deixa de ser um pequeno lugar de trocas entre pesquisa e pedagogia O professor é empurrado para a vulgarização destinada ao grande público estudante ou não enquanto que o especialista se exila dos circuitos de consumo A produção histórica se encontra partilhada entre a obra literária de quem constitui autoridade e o esoterismo científico de quem faz pesquisa Uma situação social muda ao mesmo tempo o modo de trabalhar e o tipo de discurso Isto é um bem ou um mal Antes de mais nada é um fato que se detecta por toda parte mesmo onde é silenciado Correspondências ocultas se reconhecem em coisas que começam a se mexer ou a se imobilizar juntas em setores inicialmente tidos como estranhos É por acaso que se passa da história social à história econômica durante o entreguerras26 por volta da grande crise econômica de 1929 ou que a história cultural leva vantagem no momento em que se impõe por toda parte com os lazeres e os mass media a importância social econômica e política da cultura É um acaso que o atomismo histórico de Langlois e Seignobos associado explicitamente à sociologia baseada na figura do iniciador Tarde e a uma ciência dos fatos psíquicos decompondo o psiquismo em motivos impulsões e representações27 tenha se combinado com o liberalismo da burguesia reinante em fins do século XIX É um acaso que os espaços mortos da erudição aqueles que não são nem os objetos nem os lugares da pesquisa venham a ser do Lozère ao Zambese regiões subdesenvolvidas de 25 Ainda não existe infelizmente para o recrutamento dos historiadores urre equivalente do estudo publicado por Monique de SaintMartin Les Fonctions sociales de lenseignement scientifique Mouton 1971 26 Aqui a data essencial é a da tese de Georges Lefebvre Paysans du nord de ta France pendant Ia Révolution 1924 Mas toda uma plêiade de historiadores marca esta viragem Hauser Sée Simiand etc 27 LIntroduction sux étuves hiàtoriques 1898 permanece o grande livro de uma historiografia mesmo que não seja mais há muito tempo aquilo que foi para toda uma época a estátua do Comandante Surpreendentemente o lemos com interesse ele é admirável em clareza É principalmente no capítulo viii do livro II e nos capítulos iiv do livro III todos devidos a Seignobos que se explicitam as referências científicas dos autores maneira que o enriquecimento econômico cria hoje triagens historiográficas sem que a origem destas seja confessada nem a sua pertinência assegurada Da reunião dos documentos à redação do livro a prática histórica é inteiramente relativa à estrutura da sociedade Na França de ontem a existência de pequenas unidades sociais solidamente constituídas definiu diversos níveis da pesquisa arquivos circunscritos aos acontecimentos do grupo e ainda próximos dos documentos de família uma categoria de mecenas ou de autoridades que se propõe a proteção de um patrimônio de clientes ou de idéias um recrutamento de eruditosletrados devotados a uma causa e adotando com relação à sua grande ou pequena pátria a divisa dos Monumenta Germaniae Sanctus amor patriae dat animum obras consagradas a assuntos de interesse local fornecendo uma linguagem própria para leitores limitados porém fiéis etc Pg 074 Os estudos feitos a respeito de assuntos mais vastos tampouco escapam a esta regra mas a unidade social da qual dependem não é mais do mesmo tipo não é mais uma localidade mas a intelligentsia acadêmica depois universitária que se distingue ao mesmo tempo da pequena história do provincianismo e da arraia miúda antes que tendo aumentado seu poder com a crescente expansão centralizadora da Universidade imponha as normas e os códigos do evangelismo leigo liberal e patriótico elaborado no século XIX pelos burgueses conquistadores Tanto mais que quando Lucien Febvre durante o entreguerras declara querer retirar da história do século XVI o hábito das querelas de antanho e libertála por exemplo das categorias impostas pelas guerras entre católicos e protestantes28 ele demonstra inicialmente o esmaecimento das lutas ideológicas e sociais que durante o século XIX reaproveitam as bandeiras dos partidos religiosos a serviço de campanhas homólogas Na verdade as disputas religiosas prosseguiram durante muito tempo ainda que em terrenos nãoreligiosos entre republicanos e tradicionalistas ou entre a escola pública e a escola livre Mas quando estas lutas perdem sua importância sóciopolítica após a guerra de 1914 quando as forças que elas opunham se fragmentam em compartimentos diversos quando se formam reuniões ou frentes comuns e a economia organiza a linguagem da vida francesa tomase possível considerar Rabelais como cristão quer dizer testemunha de um tempo passado libertarse de divisões que não mais se inscrevem no vivido de uma sociedade e portanto de não mais 28 L Febvre Au coeur religieux du XVIe siècle Sevpen 1957 p 146 privilegiar os Reformados ou os Democratas cristãos na historiografia universitária política ou religiosa O que isto indica não são concepções melhores ou mais objetivas Uma mudança da sociedade permite ao historiador um afastamento com relação aquilo que se torna globalmente um passado Deste ponto de vista L Febvre procede da mesma maneira que os seus predecessores Estes adotavam como postulados de sua compreensão a estrutura e as evidências sociais de seu grupo com o risco de fazêlos sofrerem um desvio crítico O fundador dos Annales não faz ele a mesma coisa quando promove uma Busca e uma Reconquista histórica do Homem imagem soberana no centro do universo de seu meio burguês29 quando chama de história global o panorama que se abre aos olhos de uma magistratura universitária quando com a mentalidade a psicologia Pg 075 coletiva e todo o instrumental do Zusammenhang ele situa uma estrutura ainda idealista30 que funciona como antídoto da análise marxista e esconde sob a homogeneidade cultural os conflitos de classe nos quais ele mesmo se encontra implicado31 Nem por ser tão genial e nova sua história está menos marcada socialmente do que aquelas que rejeita mas se ele pode superálas é porque elas correspondem a situações passadas e porque um outro hábito lhe foi imposto de confecção pelo lugar que ocupa nos conflitos do seu presente Com ou sem o fogo que crepita nas obras de L Febvre a mesma coisa ocorre por toda parte hoje mesmo deixando de lado o papel das clivagens sociais e políticas até nas publicações e nominações onde funcionam os interditos técitos Sem dúvida não se trata mais de uma guerra entre os partidos ou entre os grandes corpos de antigamente o Exército a Universidade a Igreja etc é que a hemorragia de suas forças provoca a folklorização de seus programas32 e as verdadeiras batalhas não se resolvem mais aí A N da T Reconquista no original 29 Tudo aquilo que sendo do homem depende do homem serve ao homem exprime o homem significa a presença a atividade os gostos e as maneiras de ser do homem declara ele nos Combats pour lhistoire A Colin 1953 p 428 Desde então a imagem criada por este otimismo conquistador perdeu a sua credibilidade 30 Henri Bers assinalou já em 1920 o caráter idealista da história segundo L Febvre Revue de synthèse historique XXX 1920 p 15 31 Sobre a teoria do Zusammenhang flutuante e rica ém sua obra cf HansDieter Mann Luden Febvre La pensée vivante dun historien A Colin 1971 p 93119 L Febvre se refere à classe para explicar o século XVI cf por exemplo Pour une histoire à part entière Paris 1963 p 350360 sobre a burguesia mesmo que seja com muita reticência cf ibid p 185199 mas ele não faz intervir o problema de sua própria localização social quando analisa sua prática e seus conceitos históricos Quanto ao antimarxismo ele se manifesta por exemplo no resumo de Daniel Guerin Combats pour lhistoire op cit p 109113 no qual aliás a aproximação de Michelet com Marx é para L Febvre um incesto 32 Cf M de Certeau La Culture au pluriel 1018 1974 p 1134 Les révolutions du croyable neutralidade remete à metamorfose das convicções em ideologias numa sociedade tecnocrática e produtivista anônima que não sabe mais designar suas escolhas nem indicar seus poderes para os ratificar ou confessar Assim na Universidade colonizada corpo privado de autonomia na medida em que se tomou enorme entregue agora às instruções e às pressões vindas de outras partes o expansionismo cientificista ou as cruzadas humanistas de ontem são substituídas por retiradas No que concerne às opções o silêncio substitui a afirmação O discurso assume uma cor de parede neutra Transformase mesmo numa maneira de defender lugares ao invés de ser o enunciado de causas capazes de articular um desejo Ele não pode mais falar daquilo que o determina um labirinto de posições a respeitar e de influências a solicitar Aqui o nãodito é ao mesmo tempo o inconfessado de textos que se tomaram pretextos a exterioridade daquilo que se faz com relação àquilo que se diz e a eliminação de um lugar ou de uma força que se articula numa linguagem Não seria isso aliás o que trai a referência de uma historiografia conservadora a um inconsciente dotado de uma estabilidade mágica e transformado em fetiche pela necessidade que se tem apesar de tudo de afirmar um poder próprio do qual já se sabe bem que desapareceu33 4 O que permite e o que proíbe o lugar Antes de saber o que a história diz de uma sociedade é necessário saber como funciona dentro dela Esta instituição se inscreve num complexo Pg 076 que lhe permite apenas um tipo de produção e lhe proíbe outros Tal é a dupla função do lugar Ele torna possíveis certas pesquisas em função de conjunturas e problemáticas comuns Mas torna outras impossíveis exclui do discurso aquilo que é sua condição num momento dado representa o papel de uma censura com relação aos postulados presentes sociais econômicos políticos na analise Sem dúvida esta combinação entre permissão e interdição é o ponto cego da pesquisa histórica e a razão pela qual ela não é compatível com qualquer coisa É igualmente sobre esta combinação que age o trabalho destinado a modificála De toda maneira a pesquisa está circunscrita pelo lugar que define uma conexão do possível e do impossível Encarandoa apenas como um dizer acabarseia por reintroduzir na história a lenda quer dizer a substituição de um nãolugar ou de um 33 Q Mannoni Je sais bien mais quand même em Clefs pour limaginaire ou lAutre Scène Seuil 1969 p 933 lugar imaginário pela articulação do discurso com um lugar social Pelo contrário a história se define inteira por uma relação da linguagem com o corpo social e portanto também pela sua relação com os limites que o corpo impõe seja à maneira do lugar particular de onde se fala seja à maneira do objeto outro passado morto do qual se fala De parte a parte a história permanece configurada pelo sistema no qual se elabora Hoje como ontem é determinada por uma fabricação localizada em tal ou qual ponto deste sistema Também a consideração deste lugar no qual se produz é a única que permite ao saber historiográfico escapar da inconsciência de uma classe que se desconheceria a si própria como classe nas relações de produção e que por isso desconheceria a sociedade onde está inserida A articulação da história com um lugar é a condição de uma análise da sociedade Sabese aliás que tanto no marxismo quanto no freudianismo não existe análise que não seja integralmente dependente da situação criada por urna relação social ou analítica Levar a sério o seu lugar não é ainda explicar a história Mas é a condição para que alguma coisa possa ser dita sem ser nem legendária ou edificante nem atópica sem pertinéncia Sendo a denegação da particularidade do lugar o próprio princípio do discurso ideológico ela exclui toda teoria Bem mais do que isto instalando o discurso em um nãolugar proíbe a história de falar da sociedade e da morte quer dizer proíbea de ser a história Pg 077 II UMA PRATICA Fazer história é uma prática Sob este ângulo podemos passar para uma perspectiva mais pragmática considerando os caminhos que se abrem sem se prender mais à situação epistemológica que até aqui foi desvendada pela sociologia da historiografia Na medida em que a Universidade permanece estranha à prática e à tecnicidade34 nela se classifica como ciência auxiliar tudo que coloca a história em relação com técnicas ontem a epigrafia a papirologia a paleografia a diplomática a codicologia etc hoje a musicologia o folklorismo a informática etc A história não começaria 34 Cf Frédéric Bon e M A Burnier Les Nouveaux Intellectuels Seuil 1971 p 180 M de Certeau La Culture au Pluriel op cit p 111137 Les Universités devant la cultura de masse senão com a nobre palavra da interpretação Ela seria finalmente uma arte de discorrer que apagaria pudicamente vestígios de um trabalho Na verdade existe aí uma opção decisiva O lugar que se dá à técnica coloca a história do lado da literatura ou da ciência Se é verdade que a organização da história é relativa a um lugar e a um tempo isto ocorre inicialmente por causa de suas técnicas de produção Falando em geral cada sociedade se pensa historicamente com os instrumentos que lhe são próprios Mas o termo instrumento é equívoco Não se trata apenas de meios Como Serge Moscovici demonstrou magistralmente35 ainda que numa perspectiva diferente a história é mediatizada pela técnica Desta maneira se relativiza o privilégio que a história social teve durante todo o século XIX e freqüentemente ainda em nossos dias Com a relação de uma sociedade consigo mesma com o tomarse outro do grupo segundo uma dialética humana se combina central na atividade científica presente o futuro da natureza que é simultaneamente um dado e uma obra36 É nesta fronteira mutável entre o dado e o criado e finalmente entre a natureza e a cultura que ocorre a pesquisa A biologia descobre na vida uma linguagem falada antes que apareça um locutor A psicanálise revela no discurso a articulação de um desejo constituído diferentemente do que o diz a consciência Num campo distinto a ciência do meio ambiente não mais permite isolar das estruturas naturais que transforma a extensão indefinida das construções sociais Este imenso canteiro de obras opera uma renovação da natureza provocada pela nossa intervenção37 Ele liga diferentemente a humanidade e a matéria38 De tal maneira que a ordem social se inscreve como forma da ordem natural e não como entidade oposta a ela39 Existe aí com que modificar profundamente uma história que teve como setor central Pg 078 a história social quer dizer a história dos grupos sociais e de suas relações40 Esta já está se voltando pouco a pouco para o econômico depois para as mentalidades oscilando assim entre os dois termos da relação que a pesquisa privilegia cada vez mais Os sinais se multiplicam Uma orientação que esboçava no entreguerras o interesse pela geografia e por uma história dos homens em 35 Essai sur lhistoire humaine de la nature Flammarion 1968 36 Op cit p 20 37 Ibid 38 Op cit p 7 e 21 39 Op cit p 590 40 Ernest Labrousse Introduction in LHistoire sociale P U F 1967 p 2 suas relações estreitas com a terra41 se acentua com os estudos sobre a construção e as combinações dos espaços urbanos42 sobre a transumância de plantas e seus efeitos sócioeconômicos43 sobre a história das técnicas44 sobre as mutações da sexualidade sobre a doença a medicina e a história do corpo45 etc Mas estes campos abertos à história não podem ser apenas objetos novos fornecidos a uma instituição imutável A própria história entra nesta relação do discurso com as técnicas que o produzem É preciso encarar como ela trata os elementos naturais para os transformar em um ambiente cultural como faz aceder à simbolização literária as transformações que se efetuam na relação de uma sociedade com a sua natureza De resíduos de papéis de legumes até mesmo das geleiras e das neves eternas46 o historiador faz outra coisa faz deles a história Artificializa a natureza Participa do trabalho que transforma a natureza em ambiente e assim modifica a natureza do homem Suas técnicas o situam precisamente nesta articulação Colocandose ao nível desta prática não mais se encontra a dicotomia que opõe o natural ao social mas a conexão entre uma socialização da natureza e uma naturalização ou materialização das relações sociais 1 A articulação naturezacultura Sem dúvida é demasiado afirmar que o historiador tem o tempo como material de análise ou como objeto específico Trabalha de acordo com os seus métodos os objetos físicos papéis pedras imagens sons etc que distinguem no 41 A expressão é de Fernand Braudel Leçon Inaugurale au Collège de France 1950 Em La Catalogne dans lEspagne moderne Sevpen 1962 t I p 12 Pierre Vilar lembra que entre as duas guerras as grandes questões das quais adivinhávamos mais ou menos confusamente que viriam a dominar o nosso século não nos eram propostas senão através das lições de nossos mestres geógrafos 42 Cf particularmente François Choay Lhistoire et Ia méthode en urbanisme un Annales A S C XXV 1970 número especial sobre Histoire et urbanisation p 11431154 e também Stephan Themstrom Reflections on the New Ur ban History in Doedalus Spring 1971 p 359376 LEnquête sur le bâtiment Mouton 1971 dirigida por Pierre Chaunu é também um ótimo exemplo do novo interesse dirigido às organizações espaciais 43 Assim como o capítulo sobre a civilização vegetal em Emmanuel Le Roy Ladurie LesPaysans du Languedoc Sevpen 1966 p 5376 Este estudo muito novo sobre os fundamentos biológicos da vida rural mostra que os vegetais são objetos da história pelo próprio fato de sua plasticidade das modificações incessantes que os homens lhes impõem Infelizmente ele desapareceu da edição de bolso Flammarion 1969 44 Cf a grande Histoire générale des techniques sob a direção de Maurice Dumas P U F 4 t 1963 1968 ou os trabalhos de Bertrand Gille Les Ingénieurs de la Renaissance 1964 etc 45 Cf o número especial dos Annales E S C XXIV novembrodezembro 1969 Histoire biologique et société Michel Foucault Naissance de la Clinique P U F 1963 JeanPierre Peter Le Corps du délit in Nouvelle Revue de psychanalyse 1971 n 3 p 71108 etc 46 Emmanuel Le Roy Ladurie Histoire du climat depuis lan mil Flammarion1967 continuum do percebido a organização de uma sociedade e o sistema de pertinências próprias de uma ciência Trabalha sobre um material para transformálo em história Empreende uma manipulação que como as outras obedece as regras Manipulação semelhante é aquela feita com o mineral já refinado Transformando inicialmente matériasprimas uma informação primária em produtos standard informações secundárias ele os transporta de uma região da cultura as curiosidades os arquivos as coleções etc para outra a história Uma obra histórica participa do movimento através do qual uma sociedade Pg 079 modificou sua relação com a natureza transformando o natural utilitário por exemplo a floresta em exploração ou em estético por exemplo a montanha em paisagem ou fazendo uma instituição social passar de um estatuto para outro por exemplo a igreja convertida em museu Mas o historiador não se contenta em traduzir de uma linguagem cultural para outra quer dizer produções sociais em objetos de história Ele pode transformar em cultura os elementos que extrai de campos naturais Desde a sua documentação onde ele introduz pedras sons etc até o seu livro onde plantas micróbios geleiras adquirem o estatuto de objetos simbólicos ele procede a um deslocamento da articulação natureza cultura Modifica o espaço da mesma forma que o urbanista quando integra o campo no sistema de comunicação da cidade o arquiteto quando transforma o lago em barragem Pierre Henry quando transforma o rangido de uma porta em tema musical e o poeta que altera as relações entre ruído e mensagem Modifica o meio ambiente através de uma série ide transformações que deslocam as fronteiras e a topografia interna da cultura Ele civiliza a natureza o que sempre significou que a coloniza e altera Constatase hoje é verdade que um volume crescente de livros históricos se torna romanesco ou legendário e não mais produz estas transformações nos campos da cultura Enquanto que pelo contrário a literatura visa um trabalho sobre a linguagem e o texto põe em cena um movimento de reorganização uma circulação mortuária que produz destruindo47 Isto quer dizer que assim a história deixa de ser científica enquanto que a literatura se torna tal Quando o historiador supõe que um passado já dado se desvenda no seu texto ele se alinha com o comportamento do consumidor Recebe passivamente os objetos distribuídos pelos produtores Em história como alhures é científica a opera à que transforma o meio ou que 47 Raymond Roussel Impressions dAfrique Gallimard 1963 p 209 Cf Julia Kristeva Sèmelôtiké Recherches pour une sémanalyse Seuil 1969 p 208245 La productivité dite texte faz de uma organização social literária etc a condição e o lugar de uma transformação Dentro de uma sociedade ela se move pois num dos seus pontos estratégicos a articulação da cultura com a natureza Em história ela instaura um governo da natureza de uma forma que concerne à relação do presente com o passado não sendo este um dado mas um produto Deste traço comum a toda pesquisa científica precisamente onde ela é uma técnica é possível realçar as marcas Não pretendo retomar aos métodos da história Através de algumas sondagens tratase apenas de evocar Pg 080 o tipo de problema teórico que suscita em história o exame de seu aparelho e de seus procedimentos técnicos 2 O estabelecimento das fontes ou a redistribuição do espaço Em história tudo começa com o gesto de separar de reunir de transformar em documentos certos objetos distribuídos de outra maneira Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho Na realidade ela consiste em produzir tais documentos pelo simples fato de recopiar transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto Este gesto consiste em isolar um corpo como se faz em física e em desfigurar as coisas para constituílas como peças que preencham lacunas de um conjunto proposto a priori Ele forma a coleção Constitui as coisas em um sistema marginal como diz Jean Baudrillard48 ele as exila da prática para as estabelecer como objetos abstratos de um saber Longe de aceitar os dados ele os constitui O material é criado por ações combinadas que o recortam no universo do uso que vão procurálo também fora das fronteiras do uso e que o destinam a um reemprego coerente E o vestígio dos atos que modificam uma ordem recebida e uma visão social49 Instauradora de signos expostos a tratamentos específicos esta ruptura não é pois nem apenas nem primordialmente o efeito de um olhar É necessário aí uma operação técnica As origens de nossos Arquivos modernos já implicam com efeito na combinação de um grupo os eruditos de lugares as bibliotecas e de práticas de cópia de 48 Jean Baudrillard La collection in Le Système des objects Gallimard 1968 p 120150 49 Sob este ângulo os documentos históricos podem ser assimilados aos signos icônicos de que Umberto Eco analisa a organização eles reproduzem diz ele algumas condições da percepção comum com base nos códigos perceptivos normais Sémiologie des messages visuels in Communications 1970 n 15 p 1151 Digamos nesta perspectiva que existe trabalho científico aonde existe mudança nos códigos de reconhecimento e nos sistemas de expectação impressão de comunicação de classificação etc É em pontilhados a indicação de um complexo técnico inaugurado no Ocidente com as coleções reunidas na Itália e depois na França a partir do século XVI e financiadas pelos grandes Mecenas para se apropriarem da história os Médicis os duques de Milão Carlos de Orleãs e Luís XII etc Nelas se conjugam a criação de um novo trabalho colecionar a satisfação de novas necessidades a justificação de grupos familiares e políticos recentes graças à instauração de tradições de cartas e de direitos de propriedade específicos e a produção de novos objetos os documentos que se isolam conservam e recopiam cujo sentido de agora em diante é definido pela sua relação com o todo a coleção Uma ciência que nasce a erudição do século XVII recebe com estes estabelecimentos de fontes instituições técnicas sua base e suas regras Inicialmente ligado com a atividade jurídica dos homens da pena e da toga advogados funcionários conservadores de arquivos50 o empreendimento Pg 081 se faz expansionista e conquistador depois de passar pelas mãos dos especialistas É produtor e reprodutor Obedece à lei da multiplicação A partir de 1470 ele se alia à imprensa51 a coleção se toma biblioteca Colecionar durante muito tempo é fabricar objetos copiar ou imprimir reunir classificar E com os produtos que multiplica o colecionador se toma um ator na cadeia de uma história por fazer ou por refazer de acordo com novas pertinências intelectuais e sociais Desta maneira a coleção produzindo uma transformação dos instrumentos de trabalho redistribui as coisas redefine unidades de saber instaura um lugar de recomeço construindo uma máquina gigantesca Pierre Chaunu a qual tornará possível uma outra história O erudito quer totalizar as inumeráveis raridades que as trajetórias indefinidas de sua curiosidade lhe trazem e portanto inventar linguagens que assegurem a compreensão delas A julgálo pela evolução de seu trabalho passando por Peiresc e Kircher até Leibniz o erudito se orienta desde o final do século XVI para a invenção metódica de novos sistemas de signos graças a procedimentos analíticos decomposição recomposição52 Ele está possuído pelo sonho de uma taxonomia 50 Cf Philippe Ariès Le Temps de lhistoire Monaco Éd L duRocher 1954 p 214218 51 Gilbert Ouy Les bibliothèques in LHistoire et ses méthodes Enc Pléiade 1961 p 1066 sobre o acordo concluído entre Guillaume Fichet e três impressores alemães com a finalidade de fundar a oficina topográfica da Sorbonne e substituir a cópia de documentos que G Fichet assegurava em parte ele mesmo para a biblioteca do colégio da Sorbonne 52 Para o erudito sendo a sua biblioteca aquilo que ele constitui e não aquilo que recebe como será o caso mais tarde dos conservadores das Bibliotecas criadas antes deles ele parece ter continuidade totalizante e pela vontade de criar instrumentos universais adequados à esta paixão pelo exaustivo Por intermédio da cifra central nesta arte do deciframento existem homologias entre a erudição e as matemáticas Na verdade à cifra código destinado a construir uma ordem se opõe então o símbolo este ligado a um texto recebido que remete a um sentido oculto na imagem alegoria brazão emblema etc implica a necessidade de um comentário autorizado da parte de quem é suficientemente sábio ou profundo para reconhecer este sentido53 Mas do ponto de vista da cifra desde as séries de raridades até as linguagens artificiais ou universais digamos de Peiresc a Leibniz se os limiares e os desvios são numerosos inscrevemse entretanto na linha do desenvolvimento que instaura a construção de uma linguagem e portanto a produção de técnicas e de objetos próprios O estabelecimento das fontes solicita também hoje um gesto fundador representado como ontem pela combinação de um lugar de um aparelho e de técnicas Primeiro indício deste deslocamento não há trabalho que não tenha que utilizar de outra maneira os recursos conhecidos e por exemplo mudar o funcionamento de arquivos definidos até agora por um uso religioso ou familiar54 Da mesma forma a título de novas pertinências constitui como documentos utensílios composições culinárias cantos imagens populares uma disposição dos terrenos uma topografia Pg 082 urbana etc Não se trata apenas de fazer falar estes imensos setores adormecidos da documentação55 e dar voz a um silêncio ou efetividade a um possível Significa transformar alguma coisa que tinha sua posição e seu papel em alguma outra coisa que funciona diferentemente Da mesma forma não se pode chamar pesquisa ao estudo que adota pura e simplesmente as classificações do ontem que por exemplo se atêm aos limites propostos pela série H dos Arquivos e que portanto não define um campo objetivo própria Um trabalho é científico quando opera uma redistribuição do espaço e consiste primordialmente em se dar um lugar pelo estabelecimento das fontes quer dizer por uma ação instauradora e por técnicas transformadoras nela no terreno da escrita entre a produção da coleção de textos e a produção de chaves destinadas a decodificálas 53 Cf Madeleine V David Le Débat sur les ócritures et lhiéroglyphe aux XVIIle et XVIIIe siècles Sevpen 1965 p 1930 54 Assim no seu Guie des archives diocésaines françaises Centre dHistoire du Catholicisme Lyon 1971 Jacques Gadille sublinha o valor destes arquivos para a pesquisa histórica notando que eles permitem a constituição de novas séries preciosas para uma história econômica ou uma história das mentalidades op citp 714 55 François Futet Lhistoire quantitative et la construction du fait historique in J Le Goff e P Nora Faire de lhistoire Gallimard t 1 p 49 Os procedimentos desta instituição suscitam hoje problemas mais fundamentais do que os apontados por estes primeiros indícios Pois cada prática histórica56 não estabelece seu lugar senão graças ao aparelho que é ao mesmo tempo a condição o meio e o resultado de um deslocamento Semelhantes às fábricas do paleolítico os Arquivos nacionais ou municipais constituem um segmento do aparelho que ontem determinava as operações adequadas a um sistema de pesquisa Mas não se pode tentar mudar a utilização dos Arquivos sem que sua forma mude A mesma instituição técnica impede que sejam fornecidas respostas novas a questões diferentes Na verdade a situação é inversa outros aparelhos permitem agora à pesquisa questões e respostas novas Certamente uma ideologia do fato histórico real ou verdadeiro paira ainda na atmosfera da época prolifera mesmo numa literatura sobre a história Mas é a folklorização de práticas antigas esta palavra congelada sobrevive a batalhas findas ela apenas mostra o atraso das idéias recebidas com relação às práticas que cedo ou tarde vão modificálas A transformação do arquivístico é o ponto de partida e a condição de uma história nova Está destinada a representar o mesmo papel que a máquina erudita dos séculos XVII e XVIII Eu não usaria senão um exemplo a intervenção do computador François Furet demonstrou alguns dos efeitos produzidos pela constituição de novos arquivos conservados em fitas perfuradas não há significante senão em função de uma série e não com relação a uma realidade não é objeto de pesquisa senão aquilo que é formalmente construído antes da programação etc57 Isto não é ainda senão um elemento particular e quase um sintoma de uma instituição científica mais ampla A análise contemporânea altera os procedimentos ligados à análise simbólica que prevaleceu a partir do romantismo e que buscou reconhecer um sentido dado e oculto ela reencontra a confiança Pg 083 na abstração que é hoje um conjunto formal de relações ou estrutura58 Sua prática consiste em construir modelos propostos decisoriamente em substituir o estudo do fenômeno concreto pelo estudo de um objeto constituído por sua definição em julgar o valor científico deste objeto segundo o campo de questões a que permite responder e segundo as respostas que fornece 56 É necessário entender por isto não os métodos particulares a tal ou qual historiador mas como nas ciências exatas o complexo de procedimentos que caracteriza um período ou um setor da pesquisa 57 F Furet Lhistoire quantitative op cit p 4748 58 Cf a este respeito as reflexões agudas de Michel Serres Hermès ou Ia communication Éd de Minuit 1968 p 2635 finalmente em fixar os limites da significabilidade deste modelo59 Este último ponto é capital em história Pois se é verdade que de um modo geral a catálise científica contemporânea pretende reconstruir o objeto a partir de simulacros ou de cenários quer dizer adquirir com os modelos relacionais e as linguagens ou metalinguagens que ela produz o meio de multiplicar ou de transformar sistemas constituídos físicos literários ou biológicos a história tende a evidenciar os limites da significabilidade destes modelos ou destas linguagens reencontra sob esta o forma de limite relativo a modelos aquilo que ontem aparecia como um passado relativo a uma epistemologia da origem ou do fim Sob este aspecto ela parece fiel ao seu propósito fundamental que sem dúvida continua por definir mas do qual se pode dizer desde já que liga simultaneamente ao real e à morte A especificação de seu papel não é determinada pelo próprio aparelho o computador por exemplo que coloca a história no conjunto das imposições e das possibilidades nascidas da instituição científica presente A elucidação do que é próprio da história está descentrada com relação a este aparelho ela reflui para o tempo preparatório de programação que torna necessária a passagem pelo aparelho e é lançada para a outra extremidade para o tempo de exploração que os resultados obtidos expõem Ela se elabora em função dos interditos que a máquina fixa por objetos de pesquisa a construir e em função daquilo que permite esta máquina por um modo de tratar os produtos standard da informática Mas estas duas operações se articulam necessariamente na instituição técnica que inscreve cada pesquisa num sistema generalizado As bibliotecas de ontem exerciam também a função de colocar a erudição dentro de um sistema de pesquisa Mas tratavase de um sistema regional Também os momentos epistemológicos conceituação documentação tratamento ou interpretação hoje distintos no interior de um sistema generalizado podiam estar extremamente misturados no sistema regional da erudição antiga O estabelecimento das fontes pela mediação de seu aparelho atual não provoca apenas uma nova repartição das relações Pg 084 razãoreal ou culturanatureza ele é o princípio de uma redistribuição epistemológica dos momentos da pesquisa científica No século XVII a biblioteca Colbertina ou suas homólogas eram o ponto de encontro onde se elaboravam em comum as regras próprias da erudição Uma ciência 59 André Régnier Mathématiser les sciences de lHomme im P Richard et R Jaulin Anthropologie et calcul coli 1018 1971 p 1337 se desenvolvia em tomo deste aparelho que permanece o lugar onde circulam ao qual remetem e se submetem os pesquisadores Ir aos Arquivos é o enunciado de uma lei tácita da história Neste lugar central uma outra instituição está sendo substituída Ela também impõe uma lei à prática mas uma lei diferente Devemos igualmente considerar primeiro a instituição técnica que como um momento organiza o lugar onde circula de agora em diante a pesquisa científica antes de analisar mais de perto as trajetórias operacionais que a história esboça neste espaço novo 3 Fazer surgir diferenças do modelo ao desvio A utilização das técnicas atuais de informação leva o historiador a separar aquilo que em seu trabalho até hoje esteve ligado a construção de objetos de pesquisa e portanto das unidades de compreensão a acumulação dos dados informação secundária ou material refinado e sua arrumação em lugares onde possam ser classificados e deslocados60 a exploração é viabilizada através das diversas operações de que este material é susceptível Nesta linha o trabalho teórico se desempenha propriamente falando na relação entre os pólos extremos da operação inteira por um lado a construção dos modelos por outro lado a atribuição de uma significabilidade aos resultados obtidos ao final das combinações informáticas A forma mais visível desta relação consiste finalmente em tomar pertinentes diferenças adequadas às unidades formais precedentemente construídas em descobrir o heterogêneo que seja tecnicamente utilizável A interpretação antiga se torna em função do material produzido pela constituição de séries e de suas combinações a evidenciação dos desvios relativos quanto aos modelos Sem dúvida este esquema permanece abstrato Muitos estudos atuais tomam mais passíveis de apreensão o seu movimento e o seu sentido Por exemplo a análise histórica não tem como resultado essencial uma relação quantitativa da altura e da alfabetização entre os recrutas de 1819 à 1826 nem mesmo a demonstração de uma sobrevivência do Antigo Regime na França pósrevolucionária mas as coincidências imprevistas as incoerências Pg 085 ou as ignorâncias que esta investigação fez 60 Na medida em que está ligada ao uso dó computador a informática organiza entre entradas e saídas a arrumação de símbolos em lugares reservados na memória e sua transferência para endereços convenientes segundo as instruções programáveis Ela regula as colocações e os deslocamentos num espaço de informação que não deixa de ter analogia com as bibliotecas de ontem aparecer61 O importante não é a combinação de séries obtida graças a um isolamento prévio de traços significantes de acordo com modelos préconcebidos mas por um lado a relação entre estes modelos e os limites que seu emprego sistemático faz aparecer e por outro lado a capacidade de transformar estes limites em problemas tecnicamente tratáveis Estes dois aspectos são aliás coordenados pois se a diferença é manifestada graças à extensão rigorosa dos modelos construídos ela é significante graças à relação que mantém com eles a título de desvio e é assim que leva a um retorno aos modelos para corrigilos Poderseia dizer que a formalização da pesquisa tem precisamente por objetivo produzir erros insuficiências falhas cientificamente utilizáveis Este procedimento parece inverter a história tal como se praticava no passado Partiase de vestígios manuscritos peças raras etc em número limitado e tratavase de apagar toda a sua diversidade de unificála em uma compreensão coerente62 Porém o valor desta totalização indutiva dependia então da quantidade de informações acumuladas Vacilava quando sua base documental era comprometida pelas colheitas relatadas por novas investigações A pesquisa e seu protótipo a tese tendiam a prolongar indefinidamente o tempo da informação com o fim de retardar o momento fatal quando elementos desconhecidos viriam minar suas bases Freqüentemente monstruoso o desenvolvimento quantitativo da caça aos documentos terminou por introduzir no próprio trabalho tornado interminável a lei que o destinava à caducidade assim que terminado Um limiar foi ultrapasado além do qual esta situação se inverte passase a mudanças incessantes de modelos Com efeito o estudo se estabelece hoje de imediato sobre unidades definidas por ele mesmo na medida em que se toma e deve tomarse capaz de fixar a priori objetos níveis e taxonomias de análise A coerência é inicial A quantidade de informação tratável em função destas normas tomouse com o computador indefinida A pesquisa muda de front Apoiandose nas totalidades formais propostas decisoriamente ela se volta para os desvios que as combinações lógicas das séries revelam Joga com os limites Para retomar um vocabulário antigo que não mais corresponde à sua nova 61 E Le Roy Ladurie e P Dumont Quantitative and Cartographical Exploitation of French Military Archives 18191826 in Daedalus primavera 1971 p 397441 cf E Le Roy Ladurie Le Territoire de Lhistorien Gallimard 1973 p 3887 62 Na verdade a síntese não era terminal ela se elaborava no decurso da manipulação dos documentos Ela também finalmente já se referia a um desvio com relação às idéias preconcebidas que a prática dos textos revelava e deslocava ao longo de operações e é nas mesmas fixadas por uma disciplina institucional trajetória poderseia dizer que ela não mais parte de raridadesrestos do passado para chegar a uma síntese compreensão presente mas que parte de uma formalização um sistema presente para dar lugar aos restos indícios de limites e portanto de um passado que é produto do trabalho Pg 086 Este movimento é sem dúvida precipitado pelo emprego dos computadores Ele o precedeu da mesma forma que uma organização técnica precedeu o computador que é um sintoma a mais desta Com efeito é preciso constatar um fenômeno estranho na historiografia contemporânea O historiador não é mais o homem capaz de constituir um império Não visa mais o paraíso de uma história global Circula em torno das racionalizações adquiridas Trabalha nas margens Deste ponto de vista se transforma num vagabundo Numa sociedade devotada à generalização dotada de poderosos meios centralizadores ele se dirige para as Marcas das grandes regiões exploradas Faz um desvio para a feitiçaria63 a loucura64 a festa65 a literatura popular66 o mundo esquecido dos camponeses67 a Ocitânia68 etc todas elas zonas silenciosas Estes novos objetos de estudo atestam um movimento que se esboça já há vários anos nas estratégias da história Assim Fernand Braudel mostrou como os estudos das áreas culturais têm como vantagem situarse de agora em diante nos lugares de trânsito onde são detectáveis os fenomenos de fronteira de empréstimo ou de recusa69 O interesse científico destes trabalhos se prende à relação que eles mantêm com as totalidades propostas ou supostas uma coerência no espaço uma permanência no tempo e com as correções que permitem lhes aduzir Sem dúvida é 63 Cf Robert Mandrou Magistrats et sorciers en France au XVIle siècle Plon 1968 e a abundante literatura histórica sobre o assunto 64 Sobretudo a partir de Michel Foucault Histoire de la Folie à l âge classique Plon 1961 reed Gallimard 1972 65 Cf em particular Mona Ozouf De Thermidor à Brumaire les discours dó Ia Révolution sur ele mime in Au siècle des Lumières Sevpen 1970 p 157187 e Le Cortège et Ia ville Les itinéraires parisiens des fêtes révolutionaires in Annales E L G XXVI 1971 p 889916 66 Cf Paul Delarue Le Conte populaire français 1957 Robert Mandrou De la culture populaire en France aux XVIle et XVllle siècles Stock 1964 Geneviève Bollème Les Almanachs populaires aux XVIle et XVllle siècles Mouton 1969 MarieLouise Tenèze Introduction à létude de la littérature orale le conte in Annales E L C XXIV 1969 p 11041120 para não falar dos trabalhos mais literários de Marc Soriano Les Contes de Perraut Gallimard 1968 ou de Mikhaïl Bakhtine LOEuvre de F Rabelais et la culture populaire Gallimard 1970 etc 67 Sobre os camponeses cf antes de tudo todas as publicações de E Le Roy Ladurie op cit Sobre os pobres os trabalhos de Jacques Le Goff e desde há dez anos as Recherches sut les pauvres et la pauvreté au Moyen Age dirigidas por Michel Mollat 68 ft Cf Robert Lafont Renaissance du Sud Gallimard 1970 etc e também André Larzac Décoloniser lhistoire occitane in Les Temps modernes novembro 1971 p 676696 69 LHistoire des civilisations le passé explique le présent um dos estudos metodológicos mais importantes de Fernand Braudel retomado em Écrits sur lhistoire Flammarion 1969 p 255314 ver principalmente p 292296 necessário encarar desta perspectiva muitas das pesquisas atuais A própria biografia assume o papel de uma distância e de uma margem proporcionadas às construções globais A pesquisa se dá objetos que têm a forma de sua prática eles lhe fornecem o meio de fazer aparecer diferenças relativas às continuidades ou às unidades das quais parte a análise 4 O trabalho sobre o limite Esta estratégia da prática histórica preparaa para uma teorização mais de acordo com as possibilidades oferecidas pelas ciências da informação Parece que ela especifica cada vez mais não apenas os métodos mas a função da história no conjunto das ciências atuais Com efeito seus métodos não mais consistem em buscar objetos autênticos para o conhecimento seu papel social não é mais exceto na literatura especular dita de vulgarização o de prover a sociedade de representações globais de sua gênese A história não mais ocupa como no século XIX este lugar central organizado por uma epistemologia que perdendo a realidade como substância ontológica buscou reencontrála como força histórica Zeitgeist Pg 087 e escondendose na interioridade do corpo social Ela não tem mais a função totalizante que consistia em substituir a filosofia no seu papel de expressar o sentido Intervém à maneira de uma experimentação crítica dos modelos sociológicos econômicos psicológicos ou culturais Dizse que utiliza um instrumental emprestado P Vilar É verdade Mais precisamente testa esse instrumental através de sua transferência para terrenos diferentes da mesma forma que se testa um carro esporte fazendoo funcionar em pistas de corrida em velocidades e condições que excedam suas normas A história se toma um lugar de controle onde se exerce uma função de falsificação70 Nela podem ser evidenciados os limites de significabilidade relativos aos modelos que são experimentados um de cada vez pela história em campos estranhos ao de sua elaboração A título de exemplo este funcionamento pode ser assinalado em dois dos seus momentos essenciais um visa a relação com o real através do fato histórico o outro o uso dos modelos recebidos e portanto a relação da história com uma razão contemporânea Dizem respeito além disto um à organização interna dos 70 Cf supra p 57 n 7 procedimentos históricos o outro à sua articulação com campos científicos diferentes 1 Os fatos encontraram seu campeão Paul Veyne maravilhoso decapitador de abstrações Como é normal ele carrega a bandeira de um movimento que o precedeu Não apenas porque cada verdadeiro historiador permanece um poeta do detalhe e brinca sem cessar como o esteta com as mil harmonias que uma peça rara desperta numa rede de conhecimentos mas sobretudo porque os formalismos dão hoje uma pertinência nova ao detalhe excepcional Dito de outra maneira este retomo aos fatos não pode ser arrolado numa campanha contra o monstro do estruturalismo nem pode ser posto a serviço de uma regressão às ideologias ou às práticas anteriores Pelo contrário ele se inscreve na linha de análise estrutural mas como um desenvolvimento Pois o fato de que se trata de agora em diante não é aquele que oferece aosaber observador a emergência de uma realidade Combinado com um modelo construído ele tem a forma de uma diferença O historiador não está pois colocado diante da alternativa de a bolsa ou a vida a lei ou o fato dois conceitos que aliás desaparecem da epistemologia contemporânea71 De seus próprios modelos ele obtém a capacidade de fazer aparecer os desvios Se durante algum tempo ele esperou uma totalização72 e acreditou poder reconciliar diversos sistemas de interpretação de modo a cobrir toda a sua informação agora ele se interessa prioritariamente pelas manifestações complexas destas diferenças Pg 088 Deste ponto de vista o lugar onde ele se estabelece pode ainda por analogia trazer o venerável nome de fato o fato é a diferença Da mesma forma a relação com o real se torna uma relação entre os termos de uma operação Femand Braudel já dava uma significação bem funcional à análise dos fenômenos de fronteira Os objetos que propunha à pesquisa eram determinados em função de uma operação a empreender e não de uma realidade a obter e com relação a 71 A dotando a concepção prescrita das ciências exatas a Física é um corpo de leis escreve ele P Veyne lhe opõe uma história que seria um corpo de fatos Comment on écrit lhistoire op cit p 21 22 72 Depois que Henri Berr combinou na sua concepção de história o método comparativo o primado do social e o gosto permanente das idéias gerais esta totalização representou mais um retomo ao espírito de síntese e uma reação contra a dispersão erudita da história atomista do que a pretensão de instaurar um discurso histórico universal Após Mauss Durkheim Vida de La Blache ela tende a fazer prevalecer a idéia de organização sobre a idéia de fato ou de acontecimento Cf H D Mann Lucien Febvre op cit p 7392 Em Théorie et pratique de lhistoire in Revue historique LXXXIX 1965 p 139170 HenriIrénée Marrou retoma a idéia de uma história geral que resiste à especialização dos métodos e à diversificação das cronologias segundo os níveis ele deseja uma história total que se esforçaria por apreender na sua complexidade a meada embaraçada destas histórias particulares op cit p 169 modelos existentes73 Resultado deste empreendimento o fato é a designação de uma relação O acontecimento também pode reencontrar deste modo sua definição de ser um corte Na verdade ele não corta mais a espessura de uma realidade cujo solo será visível através de uma transparência da linguagem ou chegará por fragmentos à superfície do nosso saber É inteiramente relativo a uma combinatória de séries racionalmente isoladas passo a passo cujos cruzamentos condições e limites de validade serve para marcar74 2 Isto já implica numa maneira histórica de reempregar os modelos tirados de outras ciências e de situar com relação a elas uma função da história Um estudo de Pierre Vilarpermite explicitar este princípio A propósito dos trabalhos de J Marczewski e de J C Toutain ele mostrou os erros aos quais conduziria a aplicação sistemática de nossos conceitos e de nossos modelos econômicos contemporâneos ao Antigo Regime Porém o problema era mais amplo Para Marczewski o economista se caracteriza pela construção de um sistema de referências e o historiador é aquele que se serve da teoria econômica Isto é colocar uma problemática que faz de uma ciência o instrumento de outra e que pode se inverter continuamente afinal quem utiliza quem P Vilar destruiu tal concepção Do seu ponto de vista a história tinha como tarefa analisar as condições nas quais estes modelos são válidos e por exemplo tomar precisos os limites exatos das possibilidades de uma econometria retrospectiva Manifesta um heterogêneo relativo aos conjuntos homogêneos constituídos por cada disciplina Ela também poderá relacionar uns com os outros os limites próprios de cada sistema ou nível de análise econômica social etc75 Assim a história se toma uma 73 O objeto de estudo tem em Fernand Braudel o significado de ser uma pedra de toque uma operação tática relativa a uma situação da pesquisa e proporcionada a uma definição da civilização colocada ela mesma não como a mais verdadeira mas à mais fácil de manejar para prosseguir da melhor maneira nosso trabalho Écrits sur lhistoire op cit p 288294 o grifo é meu 74 Pareceme que a propósito de Paul Bois Les Paysans de lOuest Mouton 1960 éd bolso Flammarion 1971 E Le Roy Ladurie coloca um problema bem próximo com aquilo que ele chama a história factualoestruturar Événement et longue durée dans lhistoire sociale lexemple chouan in Le Territoire de I historien Gallimard 1973 p 169186 Mas aqui o acontecimento me parece ao mesmo tempo como a questão colocada pela relação entre duas séries mais rigorosamente isoladas a infraestrutura econômica da Sarthe e a estrutura mental que divide o país em dois campos políticos e como o meio de responderlhe articulandoas para que entre elas a relação mude deve ter acontecido alguma coisa Sob a forma do momento 17901799 ele serve para designar uma diferença na sua relação O recorte mais sistemático das duas séries tem em Bois um duplo efeito Por um lado o de fazer aparecer como questão uma diferença de relação e por outro lado o de fixar para este cruzamento o lugar daquele que no discurso tem a figura histórica do acontecimento 75 Pierre Vilar Pour une meilleure compréhension entre économistes et historiens in Revue historique CCXXXIII 1965 p 293312 auxiliar segundo uma palavra de Pierre Chaunu76 Não que esteja a serviço da economia mas a relação que ela mantém com diversas ciências lhe permite exercer com referência a cada uma delas uma função crítica necessária e lhe sugere também o propósito de articular em conjunto os limites evidenciados desta maneira A mesma complementaridade se encontra em outros setores Em urbanismo a história poderia fazer através da diferença apreender a especificidade Pg 089 do espaço que temos o direito de exigir dos administradores atuais permitir uma crítica radical dos conceitos operatórios do urbanismo e inversamente com relação aos modelos de uma nova organização espacial dar conta de resistências sociais pela análise de estruturas profundas de evolução lenta77 Uma tática do desvio especificaria a intervenção da história Por sua vez a epistemologia das ciências parte de uma teoria presente na biologia por exemplo e reencontra a história sob forma daquilo que não era esclarecido ou pensado ou articulado outrora78 o passado surgiu ali inicialmente como o ausente O entendimento da história está ligado à capacidade de organizar as diferenças ou as ausências pertinentes e hierarquizáveis porque relativas às formalizações científicas atuais Uma observação de Georges Canguilhem sobre a história das ciências79 pode ser generalizada e dar a esta posição de auxiliar todo o seu alcance Efetivamente a história parece ter um objeto flutuante cuja determinação se prende menos a uma decisão autônoma do que ao seu interesse e à sua importância para as outras ciências Um interesse científico exterior à história define os objetos que ela se dá e os objetos para onde se desloca sucessivamente segundo os campos mais decisivos sociológico econômico demográfico cultural psicanalítico etc e conforme as problemáticas que os organizam Mas o historiador assume este interesse como uma tarefa própria no conjunto mais amplo da Pesquisa Criou assim laboratórios de experimentação 76 Pierre Chaunu Histoire quantitative et histoire sérielle in Cahiers Vilfredo Pareto Genebra Droz 3 1964 p 165175 ou Histoire science sociale Sedes 1974 p 61 77 F Choay LHistoire et la méthode en urbanisme op cit p 11511153 os grifos são meus Como sugere por sua vez Christopher Alexander De Ia synthèse de ia forme Dunod 1971 p 69 é precisamente graças à uma explicitação lógica à construção atual de estruturas de conjuntos e portanto à uma perda de sua inocência intuitiva que o urbanista descobre uma pertinência nas diferenças históricas seja para se distinguir de concepções passadas seja para relativizar as suas seja para articulálas em situações complexas que resistem ao rigor de um modelo teórico 78 Assim Michel Foucault Até o final do século XVIII a vida não existe existem apenas seres vivos Les Mots e les Choses Gallimard 1966 p 173 ou François Jacob sobre A inexistência da idéia de vida até o início do século XIX La Logique du vivant Gallimard 1970 p 103 um exemplo entre mil 79 G Ganguilhem Études dhistoire et de philosophie des sciences Vrin 1968 p 18 Cf as observações de Michel Fichant Sur lhistoire des sciences Maspero 1969 p 55 epistemológica80 Na verdade não pode dar uma forma objetiva a estes exames a não ser combinando os modelos com outros setores da sua documentação sobre uma sociedade Daí o seu paradoxo ele aciona as formalizações científicas que adota para experimentálas com os objetos nãocientíficos com os quais pratica esta experiência A história não deixou de manter a função que exerceu durante séculos por razões bem diferentes e que convém a cada uma das ciências constituídas a de ser uma crítica 5 Crítica e história Este trabalho sobre o limite poderia ser observado alhures e não apenas onde recorre aos fatos históricos ou tratamento de modelos teóricos Desde já entretanto aceitas estas poucas indicações nos orientam para uma definição da pesquisa inteira A estratégia da prática histórica implica um estatuto da história Ninguém se espantará com o fato de que a natureza de uma ciência seja o postulado a exumar dos seus procedimentos Pg 090 efetivos e que este seja o único meio de os tomar precisos Na falta do que cada disciplina seria identificável com uma essência do que se presumira que ela se coloca em seus avatares técnicos sucessivos que ela sobrevive não se sabe onde a cada um deles e que tem com a prática apenas uma relação acidental O breve exame da sua prática parece permitir uma particularização de três aspectos conexos da história a mutação do sentido ou do real na produção de desvios significativos a posição do particular como limite do pensável a composição de um lugar que instaura no presente a figuração ambivalente do passado e do futuro 1 O primeiro aspecto supõe uma mudança completa do conhecimento histórico desde há um século Há cem anos este conhecimento representava uma sociedade a maneira de uma meditaçãocompilação de todo o seu devir É verdade que a história era fragmentada numa pluralidade de histórias biológicas econômicas lingüísticas etc81 Mas entre estas positividades despedaçadas como entre os ciclos diferenciados que a 80 A field of epistemological enquiry escreve Gordon Left History and Social Theory University of Alabama Press 1969 p 1 Um exemplo típico e sem dúvida excessivamente metodológico é o estudo original de John Mc Leish Evangelical Religion and Popular Education Londres Methuen 1969 que experimenta sucessivamente diversas teorias Marx Malinowski Freud Parsons ele faz do problema histórico as campanhas escolares de Griffith Jones e de Hannah More no século XVIII a casestudy method op cit p 165 o meio de verificar a validade dos limites próprios a cada uma destas teorias 81 Cf as reflexões análogas de Michel Foucault LHistoire in Les Mots et les Choses op cit p 378 385 sobre o laço entre a demultiplicação da História em histórias positivas particulares da natureza da riqueza ou da linguagem e sua condição comum de possibilidade a historicidade ou a finitude do homem caracterizavam a cada uma o conhecimento histórico restabelecia o Mesmo pela sua relação comum com uma evolução Esta recosturava pois descontinuidades pecorrendoas como as figuras sucessivas ou coexistentes de um mesmo sentido quer dizer de uma orientação e manifestando num texto mais ou menos teleológico a unicidade interior de uma direção ou de um devir82 Atualmente o conhecimento histórico é julgado mais por sua capacidade de medir exatamente os desvios não apenas quantitativos curvas de população de salários ou de publicações mas qualitativos diferenças estruturais com relação às construções formais presentes Em outros termos conclui com aquilo que era a forma do incipit nos relatos históricos antigos Outrora não era como hoje Cultivada metodicamente esta distância não era tomouse o resultado da pesquisa em lugar de ser seu postulado e sua questão Da mesma forma por hipótese o sentido é eliminado dos campos científicos ao mesmo tempo em que estes são constituídos O conhecimento histórico fez surgir não um sentido mas as exceções que a aplicação de modelos econômicos demográficos ou sociológicos faz aparecer em diversas regiões da documentação O trabalho consiste em produzir algo de negativo e que seja ao mesmo tempo significativa Ele é especializado na fabricação das diferenças pertinentes que permitem criar um rigor maior nas programações e na sua exploração sistemática 2 Próximo deste primeiro aspecto o segundo referese ao elemento Pg 091 ou qual se fez com razão a especialidade da história o particular que G RElton distingue com justeza do individual Se é verdade que o particular especifica ao mesmo tempo a atenção e a pesquisa históricas isto não ocorre enquanto seja um objeto pensado mas pelo contrário por estar no limite do pensável Não é pensado senão universal O historiador se instala na fronteira onde a lei de uma inteligibilidade encontra seu limite como aquilo que deve incessantemente ultrapassar deslocandose e aquilo que não deixa de encontrar sob outras formas Se a compreensão histórica não se fecha na tautologia da lenda ou se refugia no ideológico terá como característica não primordialmente tomar pensáveis séries de dados triados ainda que isto seja a sua base mas não renunciar nunca à relação que estas regularidadesmantém com particularidades que lhe escapam O detalhe biográfico uma toponímia aberrante uma baixa local de salários et c todas estas formas de exceção simbolizadas pela 82 Desde há muito tempo historiadores e teóricos americanos manifestam suas reticências diante do uso perigoso das noções de Memnbng ou Signif icance em história Cf Patrick Gardiner Theories of History New York The Free Press 1959 1967 p 78 Arthur C Danto Analytical Philosophy of History Cambridge University Press 1965 p 79 etc importância do nome próprio em história renovam a tensão entre os sistemas explicativos e o isto ainda inexplicado E designar isto como um fato não é senão um modo de nomear o incompreendido é um Meinen e não um Verstehen Mas é também manter como necessário aquilo que é ainda impensado83 Sem dúvida é preciso ligar a esta experiência o pragmatismo que vela em cada historiador e que o leva tão rápido a expor a teoria ao ridículo Mas seria ilusório acreditar que a simples menção é um fato ou que o aconteceu equivale a uma compreensão A crônica ou a erudição que se contenta com adicionar particularidades apenas ignora a lei que a organiza Este discurso tal como o da hagiografia ou das crônicas84 não faz senão ilustrar com mil variantes as antinomias gerais próprias a uma retórica do excepcional Cai na sensaboria da repetição Na verdade a particularidade tem por atribuição desempenhar sobre o fundo de uma formalização explícita por função introduzir ali uma interrogação por significação remeter aos atos pessoas e a tudo que permanece ainda exterior ao saber assim como ao discurso 3 O lugar que a história criou combinando o modelo com os seus desvios ou agindo na fronteira da regularidade representa um terceiro aspecto de sua definição Mais importante que a referência ao passado é a sua introdução sob a forma uma distância tomada Uma falha se insinua na coerência científica de um presente e como poderia ela sêlo efetivamente senão por alguma coisa de objetivável o passado que tem por função significar a alteridade Mesmo se a etnologia substitui parcialmente a história nesta tarefa de instaurar uma encenação do outro no presente Pg 092 razão pela qual estas duas disciplinas mantêm relações tão estreitas o passado é inicialmente o meio de representar uma diferença A operação histórica consiste em recortar o dado segundo uma lei presente que se distingue do seu outro passado distanciandose com relação a uma situação adquirida e marcando assim por um discurso a mudança efetiva que permitiu este distanciamento Assim a operação histórica tem um efeito duplo Por um lado historiciza o atual Falando mais propriamente ela presentifica uma situação vivida Obriga a explicitar a relação da razão reinante com um lugar próprio que por oposição a um passado se toma o presente Uma relação de reciprocidade entre a lei e seu limite engendra simultaneamente a diferenciação de um presente e de um passado 83 Cf M de Certeau LAbsent de lhistoire Mame col Sciences humaines idéologies 1973 principalmente p 171 ss Altérations 84 Cf Roland Barthes Structure du fait divers in Essais critiques Seuil 1964 ou infra A edificação hagiográfica p 248 ss Mas por outro lado a imagem do passado mantém o seu valor primeiro de representar aquilo que falta Com um material que para ser objetivo está necessariamente aí mas é conotativo de um passado na medida em que inicialmente remete a uma ausência e introduz também a falta de um futuro Um grupo sabese não pode exprimir o que tem diante de si o que ainda falta senão por uma redistribuição do seu passado Também a história é sempre ambivalente o lugar que ela destina ao passado é igualmente um modo de dar lugar a um futuro Da mesma maneira que vacila entre o exotismo e a crítica a título de uma encenação do outro oscila entre o conservadorismo e o utopismo por sua função de significar uma falta Sob estas formas extremas tomase no primeiro caso legendária ou polêmica no segundo reacionária ou revolucionária Mas estes excessos não poderiam fazer esquecer aquilo que está inscrito na sua prática mais rigorosa a de simbolizar o limite e através disto tornar possível uma ultrapassagem O velho slogan das lições da história retoma algum significado desta perspectiva se deixando de lado uma ideologia de herdeiros identificarmos a moral da história com este interstício criado na atualidade pela representação de diferenças III UMA ESCRITA A representação mise en scène literária não é histórica senão quando articulada com um lugar social da operação científica e quando institucional e tecnicamente ligada a uma prática do desvio com relação aos modelos culturais ou teóricos contemporâneos Não existe relato histórico no qual não esteja explicitada a relação com um corpo social e com Pg 093 uma instituição de saber Ainda é necessário que exista aí representação O espaço de uma figuração deve ser composto Mesmo se deixarmos de lado tudo aquilo que se refere a uma análise estrutural do discurso histórico85 resta encarar a operação que faz passar da prática investigadora à escrita 1 A inversão escriturária 85 A este respeito cf Roland Barthes Le Discours de lhistoire in Social Science Information VI 4 1967 p 6575 Erhardt Güttgemans Texte et histoire categories fondamentales dune Poétique générative in Linguistica Biblica Bonn n 11 1972 e infra n 104 O writing86 ou a construção de uma escrita no sentido amplo de uma organização de significantes é uma passagem sob muitos aspectos estranha Conduz da prática ao texto Uma transformação assegura o trânsito desde o indefinido da pesquisa até aquilo que H I Marrou chama a servidão da escrita87 Servidão com efeito pois a fundação de um espaço textual provoca uma série de distorções com relação aos procedimentos da análise Com o discurso parece se impor uma lei contrária às regras da prática A primeira imposição do discurso consiste em prescrever como início aquilo que na realidade é um ponto de chegada ou mesmo um ponto de fuga da pesquisa Enquanto esta dá os seus primeiros passos na atualidade do lugar social e do aparelho institucional ou conceitual determinados ambos a exposição segue uma ordem cronológica Toma o mais anterior como ponto de partida Tomandose um texto a história obedece a uma segunda imposição A prioridade que a prática dá a uma tática de desvio com relação à base fornecida pelos modelos parece contradita pelo fechamento do livro ou do artigo Enquanto a pesquisa é interminável o texto deve ter um fim e esta estrutura de parada chega até a introdução já organizada pelo dever de terminar Também o conjunto se apresenta como uma arquitetura estável de elementos de regras e de conceitos históricos que constituem sistema entre si e cuja coerência vem de uma unidade designada pelo próprio nome do autor Finalmente paia atarse a alguns exemplos a representação escriturária é plena preenche ou oblitera as lacunas que constituem ao contrário o próprio princípio da pesquisa sempre aguçada pela falta Dito de outra maneira através de um conjunto de figuras de relatos e de nomes próprios toma presente aquilo que a prática percebe como seu limite como exceção ou como diferença como passa Por estes poucos traços a inversão da ordem o encerramento do texto a substituição de um trabalho de lacuna por uma presença de sentido podese medir a servidão que o discurso impõe à pesquisa A escrita seria então a imagem invertida da prática Teria como nas Pg 094 criptografias nos jogos de crianças ou nas imitações de moedas pelos falsários o valor 86 Em lhe Practice of History New York T Y Crowell Co 1970 p 88141 G R Elton consagra a parte central de sua análise à escrita Writing 87 HenriIrénée Marrou De laa connaissance historique Seuil 1954 p 279 da escrita em espelho88 ficção fabricadora de enganos e de segredos traçando a cifra de um silêncio pela inversão de uma prática normativa e de sua condição social Assim acontece no caso dos Miroirs de lHístoire Certamente eles escondem sua relação com práticas que não são mais históricas mas políticas e comerciais porém servindose de um passado para negar o presente que repetem segregam algo estranho às relações sociais atuais produzem o segredo na linguagem seus jogos designam um retiro que se pode contar em lendas invertendo as condutas do trabalho e tomando seu lugar A escrita em espelho é séria por causa do que faz dizer outra coisa pela reversão do código das práticas ela é ilusória apenas na medida em que por não se saber o que faz tenderseia a identificar o seu segredo ao que põe na linguagem e não ao que dela subtrai De fato a escrita histórica ou historiadora permanece controlada pelas práticas das quais resulta bem mais do que isto ela própria é uma prática social que confere ao seu leitor um lugar bem determinado redistribuindo o espaço das referências simbólicas e impondo assim uma lição ela é didática e magisterial Mas ao mesmo tempo funciona como imagem invertida dá lugar à falta e a esconde cria estes relatos do passado que são o equivalente dos cemitérios nas cidades exorcisa e reconhece uma presença da morte no meio dos vivos Representando nas duas cenas ao mesmo tempo contratual e legendária escrita perfonnativa89 e escrita em espelho ela tem o estatuto ambivalente de fazer a história como mostrou JeanPierre Faye90 e não obstante de contar histórias quer dizer de impor as violências de um poder e de fornecer escapatórias Ela instrui divertindo costumava dizerse Tomando precisos alguns aspectos da construção historiográfica as relações de diferença e de continuidade que a escrita mantém com uma disciplina de trabalho podem aparecer melhor91 mas também sua função social como prática se evidenciará com maior clareza Efetivamente destacandose ao trabalho cotidiano das eventualidades dos conflitos das combinações de microdecisões que caracterizam a pesquisa concreta o discurso se situa fora da experiência que lhe confere crédito ele se dissocia do tempo que passa esquece o escoamento dos trabalhos e dos dias para fornecer modelos no 88 Cf J M Lévy LÉcriture en miroir des petits écoliers in Journal de psychologie normale et pathologique t XXXII 1935 p 443454 eprincipalmente J de Ajuriaguerra R Diatkine e H de Gobineau LÉcriture en miroir in La semaine des hôpitaux de Paris 1956 n 2 p 8086 89 Sobre a performatividade cf Infra p 100 e 106108 90 JeanPierre Faye Langages totalitaires et Théories du récit Hermann 1972 91 Cf Roberto Minguelez Le récit historique légalité et signification in Semiotica t HI n 1 1971 p 2036 e do mesmo autor Suet et histoire Ottawa ed de lUniversité 1973 quadro fictício do tempo passado Mostrouse o que esta construção tinha de arbitrária Problema geral Assim o Cahier rouge de Claude Bernard 18501860 representa uma crônica já distante da experiência efetiva em laboratório e a Pg 095 teoria a Introduction à étude de la médecine expérimentale 1865 é por sua vez decalada simplificadora e redutora com relação ao Cahier92 Entre milhares de outros este exemplo mostra a passagem da prática à crônica e da crônica à didática Só uma distorção permite a introdução da experiência numa outra prática igualmente social mas simbólica escriturária que substitui a autoridade de um saber pelo trabalho de uma pesquisa O que é que o historiador fabrica quando se toma escritor Seu próprio discurso deve revelálo 2 A cronologia ou a lei mascarada Os resultados da pesquisa se expõem de acordo com uma ordem cronológica Certamente a constituição de séries o isolamento de conjunturas globais tanto quanto as técnicas do romance ou do cinema tornaram flexível a rigidez desta ordem permitiram a instauração de quadros sincrônicos e renovaram os meios tradicionais de fazer interagir momentos diferentes Não é menos verdade que toda historiografia coloca um tempo das coisas como um contraponto e a condição de um tempo discursivo o discurso avança mais ou menos rápido conforme ele se retarde ou se precipite Mediando este tempo referencial ele pode condensar ou estender seu próprio tempo93 produzir efeitos de sentido redistribuir e codificar a uniformidade do tempo que corre Esta diferença já tem a forma de um desdobramento Criou o jogo e forneceu a um saber a possibilidade de se produzir num tempo discursivo tempo diegético diz Genette situado à distância do tempo real O serviço que a remissão a este tempo referencial presta à historiografia pode ser encarado sob diversos aspectos O primeiro que se há de encontrar sob outras formas é o de tornar compatíveis 92 Cf M D Gnnek Raisonnement expérimental et recherches toxicologiques chez Carde Bernard Genebra Droz 1973 Este estudo minucioso cujo interesse ultrapassa amplamente o caso particular de Claude Bernard permite a apropriação ao vivo das decalagens que fazem passar da experiência aqui controlada à crônica e da crônica ao discurso didático teoria ou história 93 Deste ponto de vista a historiografia pode obter maior eficácia dos meios técnicos acionados pelo cinema Cf exemplo interessante Gilbert Rouget Une expérience de cinéma synchrone au ralenti in LHomme t XI n 2 1971 p 113117 a propósito do Zeltregler ou extensor de tempo Strecher que permite dilatar ou contrair o tempo sonoro sem deformélo e portanto de retardar ou precipitar a imagem Cf também Pierre Schaeffer Traité des objets musicaux Seuil 1966 p 425426 sobre as acelerações ou retardamentos que fazem parte de um procedimento tradicional em história os contrários Exemplo simples podese dizer o tempo está bom ou o tempo não está bom Estas duas proposições não podem ser enunciadas ao mesmo tempo mas apenas uma ou outra Por outro lado se introduz a diferença de tempo de maneira a transformar as duas proposições em ontem o tempo estava bom e hoje não está tomase legítimo manter uma e outra Logo os contrários são compatíveis no mesmo texto sob a condição de que ele seja narrativo A temporalização cria a possibilidade de tomar coerentes uma ordem e o seu heteróclito Com relação ao espaço plano de um sistema a narrativização cria uma espessura que permite colocar ao lado do sistema o seu contrário ou o seu resto Uma colocação em perspectiva histórica autoriza pois a operação que no mesmo lugar e no mesmo texto substitui a disjunção pela conjunção Pg 096 reúne enunciados contrários e mais amplamente supera a diferença entre uma ordem e aquilo que ela exclui É também o instrumento por excelência de todo discurso que pretenda compreender posições antinômicas basta que um dos termos em conflito seja classificado como passado reduzir o elemento aberrante este se toma um caso particular que se inscreve como detalhe positivo num relato ou a considerar como ausente num outro período aquilo que foge a um sistema do presente e nele assume aspecto de estranheza Mas esta temporalização que se esquiva dos limites impostos a qualquer rigor e compõe unia cena onde os incompatíveis podem funcionar juntos tem como paga a sua recíproca o relato não pode guardar do silogismo senão a aparência lá onde ele explica é entimemático94 finge arrazoar Na verdade assim preserva nas suas margens mantendo a relação de uma razão com aquilo que se passa fora dela a possibilidade de uma ciência ou de uma filosofia ele é heurístico mas como tal ocupa o lugar e oculta a ausência delas Podese também perguntar c que autoriza a historiografia a se constituir como síntese dos contrários a não ser um rigor racional De fato se forem adotadas as distinções de Benvéniste entre discurso e relato95 ela é um relato que funciona na realidade como discurso organizado pelo lugar dos interlocutores e fundamentado no lugar que se dá o autor com relação aos seus leitores O recurso à cronologia reconhece que é o lugar da produção que autoriza o texto antes de qualquer outro signo 94 Roland Barthes o notou em Le discours de lhistoire op cit p 7172 Cf principalmente C G Hempel The Function of General Laws in History in Journal of Philosophy t XXXIX 1942 sobre os esboços de explicação explanation sketch que a historiografia fornece é o estudo que ainda serve de referência 95 Émile Benvéniste Problèmes de linguistique générale Gallimard 1966 p 253254 no discurso a instância está no hicet nunc dos interlocutores no seu ato de palavra dizse o prefeito partiu ontem nio relato a instância está constituída pelos termos que se referem aos objetos reais aos tempos e aos lugares históricos A cronologia indica um segundo aspecto do serviço que o tempo presta à história Ela é a condição de possibilidade do recorte em períodos Mas no sentido geométrico rebate sobre o texto a imagem invertida do tempo que na pesquisa vai do presente ao passado Segue seu rastro pelo reverso A exposição histórica supõe a escolha de um novo espaço vetorial que transforma o sentido do percurso do vetor tempo e inverte sua orientação Somente esta inversão parece tomar possível a articulação da prática com a escrita Ao indicar uma ambivalência do tempo96 coloca se inicialmente o problema de um recomeço onde começa a escrita Onde se estabelece para que haja historiografia A primeira vista ela remete o tempo ao momento do destinatário Constrói assim o lugar do leitor em 1975 Do fundo dos tempos vem até ele Quer participe ou não de uma temática do progresso faça drenagem das longas durações ou conte uma seqüência de episteme enfim qual quer que seja o seu conteúdo a historiografia trabalha para encontrar um presente que é o término de um percurso mais ou menos longo na trajetória Pg 097 cronológica a história de um século de um período ou de uma série de ciclos O presente postulado do discurso tomase a renda da operação escriturária o lugar de produção do texto se transforma em lugar produzido pelo texto Portanto o relato tem sua duplicidade A cronologia da obra de história não é senão um segmento limitado por exemplo descrevese a evolução do Languedoc do século XV ao XVIII colhido num eixo mais amplo que o ultrapassa de um lado e de outro Por um lado a cronologia visa o momento presente através de uma distância a semireta deixada em branco definida apenas na sua origem do século XVIII aos nossos dias Por outro lado supõe uma série finita cujos termos permanecem incertos postula em última instância o recurso ao conceito vazio e necessário de um ponto zero origem do tempo indispensável a uma orientação97 O relato inscreve pois em toda a superfície da sua organização esta referência inicial e imperceptível que é a condição de sua historicização Permitindo à atualidade existir no tempo e finalmente 96 Cf por exemplo as observações de André Viel Du Chronique au Chronologique in Histoire de notre image MontBlanc 1965 p 109141 sobre o tempo não orientado e a ambivalência 97 Deste ponto de vista existe na episteme grega uma ligação entre a ausência do zero na matemática e a ausência de uma história que pense o passado como diferença Sobre o conceito de zero cf as observações de Frege in Les Fondements de larithmétique trad CL Imbert Seuil 1969 8 e principalmente 74 simbolizarse a si mesma ele a estabelece numa relação necessária com um começo que não é nada ou que não tem outro papel senão o de ser um limite A colocação do relato veicula por toda parte uma relação tácita com algo que não pode ter lugar na história um nãolugar fundador sem o qual entretanto não haveria historiografia A escrita dispersa na encenação cronológica a referência de todo o relato a um nãodito que é o seu postulado Este nãolugar determina o interstício entre a prática e a escrita A cesura qualitativa entre uma e outra é sem dúvida manifestada pelo fato de que a escrita des natura e inverte o tempo da prática Mas apenas uma passagem silenciosa para o limite apresenta efetivamente sua diferença Um zero do tempo articula uma com a outra É o limiar que conduz da fabricação do objeto à construção do signo Este nada inicial esboça o retomo disfarçado de um passado estranho Poderseia dizer que é o mito transformado em postulado da cronologia ao mesmo tempo suprimido do relato e sempre considerado ineliminável Uma relação necessária com o outro com este zero mítico permanece inscrita no conteúdo com todas as transformações da genealogia com Pg 098 todas as modulações das histórias dinásticas ou familiares de uma política de uma economia ou de uma mentalidade Para que o relato desça até o presente é preciso que ele se apóie anteriormente em um nada do qual a Odisséia já dava a fórmula ninguém sabe por si mesmo quem é seu pai98 Banido do saber um fantasma se insinua na historiografia e determinandolhe a organização é aquilo que não se sabe aquilo que não tem nome próprio Sob a forma de um passado que não tem lugar designável mas que não pode ser eliminado é a lei do outro99 A lei sempre tira partido daquilo que se escreve100 Se a historiografia resulta de uma operação atual e localizada enquanto escrita repete um outro início impossível de 98 Odyssée trad Leconte de Lisle Rapsodie I p 7 99 Cf a este respeito Jean Laplanche e J B Pontalis Fantasme originaire fantasme des origines origine du fantasme in Les Temps modernes XIX 1964 p 18321868 Este estudo sobre a encenação do desejo na seqüência de imagens esclarece também os problemas expostos pelo discurso histórico O sujeito pode existir sob uma forma de subjetivada quer dizer na própria sintaxe da seqüência em questão O desejo se articula na frase do fantasma que é escrevem os autores o lugar de eleição para as operações defensivas mais primitivas tais como a autoagressão a formação de reação a projeção a denegação op cit p 1868 O relato histórico apresenta também como encenação estes caracteres do fantasma 100 Maurice Blanchot L Entretien infini Gallimard 1969 p 625 Cf Henri Moschonnic Maurice Blanchot ou lécriture hors langage in Les Cahiers dÚ CAemin n 20 15 de janeiro de 1974 p 79 116 datar ou de representar postulado pelo desdobramento à primeira vista simples da cronologia101 Dobra o tempo gratificante o tempo que vem a vocês leitores e valoriza o lugar de vocês com a sobra de um tempo proibido A ausência pela qual começa toda literatura inverte e permite a maneira pela qual a narrativa se preenche de sentido e o discurso estabelece um lugar para o destinatário Os dois se combinam e versei que a historiografia tira sua força da transformação da genealogia em mensagem e do fato de se situar acima do leitor por estar mais próxima daquilo que confere poder O texto reúne os contraditórios deste tempo instável Restaura discretamente a sua ambivalência Revela na surdina o contrário do sentido através do qual o presente pretende compreender o passado Na verdade ao contrário daquilo que ela faz quando se toma a si mesma como objeto esta escrita não se reconhece como trabalho da negação Entretanto ela o testemunha A construção do sentido se articula com o seu contrário Mesmo aqui a linguagem do escritor não apresenta tornando presente aquilo que mostra mas mostrandoo por detrás de tudo como o sentido e a ausência deste todo102 Quando o relato é histórico entretanto resiste à sedução do começo não cede ao Eros da origem Não tem por meta como o mito encenar a autoridade necessária e perdida sob o aspecto do evento que não ocorreu103 Ele não diz o que supõe pois tem por objetivo dar lugar a um trabalho A lei transita somente através de um estudo particular cuja organização assegura a relação entre os termos a origem o presente que permanecerá fora do campo 3 A construção desdobrada Entre os problemas que o relato encarado como discursividade propõe Pg 099 põe104 alguns dizem respeito mais especificamente à construção da historiografia Estes provêm de um querer ao qual a temporalização fornece um quadro permitindo 101 Philip Rieff insistiu particularmente no recomeço e a repetição que caracterizam o model of time freudiano cf The authority of the past in Freud the mind of the moralist New York Viking Press 1959 The meaning of history and religion in Freud thought in Bruce Mazlisch ed Psychoanalysis and History Englewood Cliffs N J 1963 p 2344 etc 102 Maurice Blanchot Le règne animal de lesprit in Critique n 18 1947 p 387405 e La littérature et le droit à Ia mort in Critique n 20 1948 p 3047 103 Sobre esta concepção do mito cf Claude Rabant Le mythe à lavenir recommence in Esprit abril 1971 p 631643 104 Cf a este respeito Harald Weinrich Narrative Strukturen in Geschr chtschreinbung in R Koselleck u W D Stempel ed Geschichte Ereignis und Erzáhlung Munique W Fink 1973 p 519523 manter juntas as contradições sem ter que resolvêlas Este propósito globalizante opera em toda a parte Remete finalmente a uma vontade política de gerar conflitos e regulamentálos a partir de um só lugar Literariamente produz textos que de várias maneiras têm a característica dupla de combinar uma semantização a edificação de um sistema de sentidos com uma seleção esta triagem tem seu início no lugar em que um presente se separa de um passado e de ordenar uma inteligibilidade por meio de uma normatividade Alguns traços que se referem inicialmente ao seu estatuto numa tipologia dos discursos e depois à organização do seu conteúdo vão particularizar o funcionamento da historiografia como mista Em vista de uma tipologia geral dos discursos uma primeira aproximação se refere ao modo pelo qual se organiza em cada discurso a relação entre seu conteúdo e sua expansão Na narração um e outro remetem a uma ordem de sucessão o tempo referencial uma série A B C D E etc de momentos pode ser no exposto o objeto de omissões e de inversões susceptíveis de produzir efeitos de sentido por exemplo o relato literário ou cinematográfico apresenta a série E C A B etc No discurso lógico o conteúdo definido pelo estatuto de verdade eou de verificabilidade atribuível a enunciados implica em relações silogísticas ou legais entre eles que determinam a maneira da exposição indução e dedução Ele o discurso histórico pretende dar um conteúdo verdadeiro que vem da verificabilidade mas sob a forma de uma narração Conteúdo Expansão Narração Série temporal A B C D Sucessividade temporal E C A Discurso Histórico Verdade Sucessividade temporal Discurso lógico Verdade das proposições Silogismo indução dedução Combinando sistemas heteróclitos este discurso misto feito de dois situado entre dois vai se construir seguindo dois movimentos contrários Pg 100 uma narrativização faz passar do conteúdo à sua expansão de modelos acrônicos a uma cronologização de uma doutrina a uma manifestação de tipo narrativo inversamente uma semantização do material faz passar dos elementos descritivos a um encadeamento sintagmático dos enunciados e à constituição de seqüências históricas programadas Mas estes procedimentos geradores do texto não poderiam ocultar o deslizamento metafórico que segundo a definição aristotélica opera a passagem de um gênero para a outro Indício deste misto a metáfora está presente em toda parte Ela disfarça a explicação histórica com um caráter entimemático Deporta a causalidade para a sucessividade post hoc ergo propter hoc Representa relações de coexistência como relações de coerência etc A plausibilidade dos enunciados se substitui constantemente à sua verificabilidade Daí a autoridade que este discurso necessita para se sustentar aquilo que perde em rigor deve ser compensado por um acréscimo de credibilidade A esta exigência podese acrescentar uma outra forma de desdobramento Coloca se como historiográfico o discurso que compreende seu outro a crônica o arquivo o documento quer dizer aquilo que se organiza em texto folheado do qual uma metade contínua se apóia sobre a outra disseminada e assim se dá o poder de dizer o que a outra significa sem o saber Pelas citações pelas referências pelas notas e por todo o aparelho de remetimentos permanentes a uma linguagem primeira que Michelet chamou crônica105 ele se estabelece como saber do outro Ele se constrói segundo uma problemática de processo ou de citação ao mesmo tempo capaz de fazer surgir uma linguagem referencial que aparece como realidade e julgála a título de um saber A convocação do material aliás obedece à jurisdição que na encenação historiográfica se pronuncia sobre ele Também a estratificação do discurso não tem a forma do diálogo ou da colagem Ela combina no singular do saber citando o plural dos documentos citados Neste jogo a decomposição do material pela análise ou divisão tem sempre como condição e limite a unicidade de uma recomposição textual Assim a linguagem citada tem por função comprovar o discurso como referencial introduz nele um efeito de real e por seu esgotamento remete discretamente a um lugar de autoridade Sob este aspecto a estrutura desdobrada do discurso funciona à maneira de uma maquinaria que extrai da citação uma verossimilhança do relato e uma validade do saber Ela produz credibilidade Implica também num funcionamento particular episternológico e literário destes textos clivados Por um lado com referência às categorias Pg 101 de Karl Popper tratase antes de interpretação do que de explicação Na medida em que o discurso 105 Este discurso montagem de outros discursos se produz graças a dispositivos muito variados o estilo indireto a historiografia diz que um outro disse que as aspas a ilustração etc Podese dizer que o passado representado é o efeito da maneira pela qual o discurso administra sua relação com a crônica Deste ponto de vista a crônica pode ser mais ou menos triturada Existem muitas maneiras de tratála desde o resumo que a reduziu a uma série de fatos até a extração de dados utilizáveis por uma história serial recebe de uma relação interna com crônica o estatuto de ser o seu saber ele se constrói sobre um certo número de postulados epistemológicos a necessidade de uma semantização referencial que lhe vem da cultura a transcritibilidade das linguagens já codificadas das quais se faz o intérprete a possibilidade de constituir uma metalinguagem na própria língua dos documentos utilizados Sob estas formas diversas a citação introduz no texto um extratexto necessário Reciprocamente a citação é o meio de articular o texto com a sua exterioridade semântica de permitirlhe fazer de conta que assume uma parte da cultura e de lhe assegurar assim uma credibilidade referencial Sob este aspecto a citação não é senão um caso particular da regra que toma necessária à produção da ilusão realista a multiplicação dos nomes próprios das descrições e do deíctico106 Também para não tomar senão um exemplo os nomes próprios já têm valor de citação São imediatamente afiançáveis Enquanto que o romance deve pouco a pouco preencher os predicados do nome próprio que ele coloca no seu início como Julien Sorel a historiografia já o recebe preenchido como Robespierre e se contenta em operar um trabalho com uma linguagem referencial107 Mas esta condição externa de um saber do outro ou de uma heterologia108 tem como corolário a possibilidade para o discurso de ser ele mesmo um equivalente de uma semiótica uma metalinguagem de línguas naturais logo um texto que supõe e manifesta a transcritibilidade de codificações diferentes De fato esta metalinguagem se desenvolve no próprio léxico dos documentos que ela decodifica não se distingue formalmente ao contrário do que ocorre em toda ciência da língua que interpreta Logo não pode controlar a distância do nível da análise que pretende fazer nem constituir como campo próprio e unívoco os conceitos que o organizam Ela se conta na linguagem do seu outro Brinca com ela O estatuto da metalinguagem é pois o postulado de um querer compreender É antes um a priori do que um produto A interpretação tem como característica reproduzir no interior do seu discurso desdobrado a relação entre um lugar do saber e sua exterioridade 106 Cf por exemplo as notas de J L Bachelier SurNom in Communications n 19 1972 Philippe Hamon Un discours contraint in Poètique n 16 1973 p 426427 Inversamente o eu marca essencial do discurso fantástico cf T Todorov Introduction d Ia Littérature fantastique deve ser evitado ele suprimiria a nominação Logo a ausência de nome provoca uma deflação capital da ilusão realista Roland Barthes SZ Seuil 1970 p 102 107 O nome próprio permite um efeito duplo Por um lado significa Robespierre você sabe o que é isto É afiançável Por outro lado é o objeto de uma decalagem didática Robespierre é outra coisa além daquilo que você sabe e eu vou lhe ensinar É a baliza do acréscimo de saber que se credita uma competência 108 Cf M de Certeau L Absent de lhistoire Mame 1973 p 173 ss Citando o discurso transforma o citado em fonte de credibilidade e léxico de um saber Mas por isso mesmo coloca o leitor na posição do que é citado ele o introduz na relação entre um saber e um nãosaber Dito de outra maneira o discurso produz um contrato enunciativo entre o remetente e o destinatário Funciona como discurso didático e o faz tanto melhor na medida em que dissimuleo lugar de onde fala ele suprime Pg 102 o eu do autor ou se apresente sob a forma de uma linguagem referencial é o real que lhes fala ou conte mais do que raciocine não se discute um relato e na medida em que tome os seus leitores lá onde estão ele fala sua língua ainda que de outra maneira e melhor do que eles Semanticamente saturado não tem mais falhas da inteligibilidade comprimido graças a uma diminuição máxima do trajeto e da distância entre os focos funcionais da narrativa109 e fechado uma rede de catáforas e de anáforas assegura incessantes remetimentos do texto a ele mesmo enquanto totalidade orientada este discurso não deixa escapatória A estrutura interna do discurso trapaceia Produz um tipo de leitor um destinatário citado identificado e doutrinado pelo próprio fato de estar colocado na situação da crônica diante de um saber Organizando o espaço textual estabelece um contrato e organiza também o espaço social Deste ponto de vista o discurso faz o que diz É performativo Os artifícios da historiografia consistem em criar um discurso performativo falsificado no qual o constativo aparente não é senão o significante do ato de palavra como ato de autoridade110 Um terceiro aspecto do desdobramento não se refere mais nem ao caráter misto nem à estratificação do discurso mas à problemática de sua manifestação a saber a relação entre o acontecimento e o fato A respeito de um assunto tão debatido eu me contento com uma indicação relativa à construção da escrita Deste ponto de vista o acontecimento é aquele que recorta para que haja inteligibilidade o fato histórico é aquele que preenche para que haja enunciados de sentido O primeiro condiciona a organização do discurso o segundo fornece os significantes destinados a formar de maneira narrativa uma série de elementos significativos Em suma o primeiro articula e o segundo soletra Efetivamente o que é um acontecimento senão aquilo que é preciso supor para que a organização dos documentos seja possível Ele é o meio pelo qual se passa da desordem à ordem Ele não explica permite uma inteligibilidade É o postulado e o 109 Ph Hamon op cit p 440441 110 R Barthes Le discours de lhistoire op cit p 74 ponto de partida mas também o ponto cego da compreensão Deve ter acontecido alguma coisa aí mediante o que é possível construir séries de fatos ou transitar de uma regularidade para outra Bem longe de ser o alicerce ou a marca substancial na qual se apoiaria uma informação ele é o suporte hipotético de uma ordenação sobre o eixo do tempo a condição de uma classificação Algumas vezes ele não é mais do que uma simples localização da desordem então chamase acontecimento o que não se compreende Através deste procedimento que permite ordenar o desconhecido num compartimento vazio disposto Pg 103 antecipadamente para isto e denominado acontecimento tornase pensável uma razão da história Uma semantização plena e saturante é então possível os fatos a enunciam fornecendolhe uma linguagem referencial o acontecimento lhe oculta as falhas através de uma palavra própria que se acrescenta ao relato contínuo e lhe mascara os recortes Dito de outra maneira a arquitetura serial joga com a sua contraditória événementielle como com um limite que ela nomeia também para se construir como discurso didático sem interrupção e sem lapsos de autoridade erudita Estes dois elementos são necessários um ao outro uma estranha reciprocidade coloca cada um dos dois em relação com o seu outro Mas o texto propõe ao mesmo tempo o preenchimento do sentido e sua condição ele os liga e nivela na expansão do discurso Por isso é global mas apenas ao preço de uma camuflagem desta diferença e graças ao sistema que estabelece previamente a título de um lugar adquirido uma autoridade capaz de compreender a relação entre uma organização de sentido fatos e o seu limite o acontecimento Colocando o estranho num lugar útil ao discurso da inteligibilidade exorcisando o incompreendido para dele fazer o meio de uma compreensão a historiografia entretanto não evita o retomo que ela apaga da manifestação Sem dúvida se pode reconhecer este retomo no trabalho de erosão que não cessa de minar os conceitos construídos por esse discurso Na verdade é um movimento secreto no texto Nem por isso é menos constante tal como uma lenta hemorragia do saber Percebese isto por exemplo a propósito da ordem que se apresenta em uma organização de unidades históricas A encenação escriturária está assegurada por um certo número de recortes semânticos A estas unidades François Châtelet dá o nome de conceitos mas conceitos que se poderiam chamar por analogia com a epistemologia das ciências da natureza categorias históricas111 Elas são de tipos bem diferentes como o período o 111 François Châtelet Naissance de lhistoire 1962 p 115 Cf a este respeito Chaïm Perelman in Les Catégories en histoire Ed de lInstitut de sociologie Un versité libre de Bruxelles 1969 p 1116 século etc mas também a mentalidade a classe social a conjuntura econômica ou a família a cidade a região o povo a nação a civilização ou ainda a guerra a heresia a festa a doença o livro etc sem falar em noções tais como a Antiguidade o Antigo Regime as Luzes etc Freqüentemente estas unidades provocam combinações estereotipadas Uma montagem sem surpresas resulta na série a vida a obra a doutrina ou seu equivalente coletivo vida econômica vida social vida intelectual Empilhamse níveis Encaixotamse conceitos Cada código tem sua lógica Não se trata aqui de retomar às imposições sociais112 ou às necessidades teóricas e práticas de programação113 que intervêm na determinação Pg 104 destas unidades ornas antes de apreender o funcionamento escriturário Dizse às vezes que a organização destes conceitos é desencadeada quase automaticamente pelo próprio título do texto e que ela não é senão um quadro mais ou menos artificial enfim pouco importa onde se podem acumular os tesouros da informação Nesta concepção as unidades formam o tabuleiro de uma exposição onde cada compartimento deve ser preenchido Em última instância são indiferentes às riquezas das quais são portadores no armazém da história apenas o conteúdo conta e não a apresentação desde que ela seja clara e clássica Mas isso equivale a tornar inerte ou acreditála assim a composição historiográfica como se ela simplesmente parasse a pesquisa para substituí la pelo momento da adição e proceder à soma do capital adquirido A escrita consistiria em elaborar um fim Na verdade ela não é nada disto desde que haja discurso histórico Ela impõe regras que evidentemente não são iguais às da prática mas diferentes e complementares as regras de um texto que organiza lugares em vista de uma produção Com efeito a escrita histórica compõe com um conjunto coerente de grandes unidades uma estrutura análoga à arquitetura de lugares e de personagens numa tragédia Mas o sistema dessa encenação é o espaço onde o movimento da documentação quer dizer das pequenas unidades semeia a desordem nesta ordem escapa às divisões estabelecidas e opera uma lenta erosão dos conceitos organizadores Em termos aproximativos poderseia dizer que o texto é o lugar onde se efetua um trabalho do conteúdo sobre a forma Para retomar a palavra mais exata de Roussel ele produz destruindo Através da massa móvel e complexa que ela joga no recorte historiográfico e que aí se move a informação parece provocar uma usura das divisões 112 Cf supra Um lugar social p 5670 113 Cf supra Uma prática p 7089 classificatórias que entretanto constituem o estabelecimento do sistema textual Da mesma forma o discurso não é mais enunciado se a organização estrutural se desmorona mas ele é histórico na medida em que um trabalho movimenta e corrói o aparelho conceituai entretanto necessário à formação do espaço que sé abre a este movimento Construção e erosão das unidades toda escrita histórica combina estas duas operações É necessário propor uma arquitetura econômica ou demográfica para que apareçam as dependências que a enfraquecem deslocam e finalmente remetem a um outro conjunto social ou cultural É necessário recortar uma unidade geográfica regional ou nacional para que se manifeste aquilo que de todo lado lhe escapa A constituição de corpos conceituais por um recorte é ao mesmo tempo a causa e o meio de uma lenta hemorragia A estrutura de uma composição não mais retém Pg 105 aquilo que representa mas deve também enunciar o bastante para que com esta fuga sejam verdadeiramente encenados produzidos o passado o real ou a morte de que fala o texto Assim se encontra simbolizada a relação do discurso com aquilo que ele designa perdendo quer dizer com o passado que ele não é mas que não seria pensável sem a escrita que articula composições de lugar com uma erosão destes lugares A combinação de recortes as macrounidades e de usuras o deslocamento dos conceitos não é na verdade senão um esquema abstrato Ela não se refere aliás à estrutura do próprio discurso e não descreve senão um movimento de escrita destinado a produzir o sentido autorizado pelo saber Mas podese reconhecêlo até nos textos mais importantes da historiografia francesa contemporânea Para explicar o aparecimento de uma consciência nacional da Catalunha problema que faz surgir um estudo sócioeconômico da região Pierre Vilar apresenta a conexão do mercantilismo ao qual está ligada a formação de uma classe dirigente e do nacionalismo instrumento utilizado por esta classe para estabelecer uma dominação política Um lugar econômico é a base de uma análise muito rica Mas ali se produziram infiltrações como a constatação de que o nacionalismo cresce com a consciência infeliz de uma nação ameaçada114 Esta intervenção de um elemento heterogêneo não instaura um outro recorte conceitual e muito menos uma história global Ela desloca a encenação inicial do texto Exemplo entre mil do trabalho de erosão que se opera numa composição bastante argumentada exatamente porque ela 114 Pierre Vilar La Catalogne dans lEspagne moderne op cit t I p 2938 não é uma moldura inerte Erosão ainda o movimento que mexe a unidade beauvaisiana firmemente delineada pelo estudo regional de Pierre Goubert e que a deixa escapar ora para a Beauce ora para a Picardia115 O trabalho que desloca o lugar e que o associa àquilo de que estava separado esboça no texto um desaparecimento nunca total dos conceitos como se ele conduzisse a representação sempre mantida enquanto exista texto até a beira da ausência que ela designa 4 O lugar do morto e o lugar do leitor Terceiro paradoxo da história a escrita põe em cena uma população de mortos personagens mentalidades ou preços Sob formas e conteúdos diferentes ela permanece ligada à sua arqueologia de inícios do século XVII um dos pontos zero da História da França diz p Áries116 à galeria de história tal como se vê ainda no castelo de Beauregard117 uma série Pg 106 de retratos efígies ou emblemas pintados nas paredes antes de serem descritos pelo texto organiza a relação entre um espaço o museu e um percurso a visita A historiografia tem esta mesma estrutura de quadros que se articulam com uma trajetória Ela repressenta mortos no decorrer de um itinerário narrativo Muitos indícios atestam na história esta estrutura de galeria Por exemplo a multiplicação dos nomes próprios personagens localidades moedas etc e sua reduplicação no Index dos nomes próprios aquilo que dessa maneira prolifera no discurso histórico são estes elementos com os quais não se faz nada além de mostrar118 e através dos quais o dizer está no seu limite o mais próximo do mostrar O sistema significante com estes nomes próprios cresceu desmesuradamente em sua margem deíctica extrema como se a própria ausência da qual trata o fizesse extravasar para o lado em que o mostrar tende a se substituir ao significar Mas existem muitos outros indícios o papel do mapa da imagem ou do gráfico a importância das vistas panorâmicas e das conclusões recapituladoras paisagens que balizam o livro etc e que são elementos estranhos ao tratado de sociologia ou de física Será novamente necessário reconhecer nestes traços uma inversão literária de 115 Pierre Goubert Beauvais et le Beauvaisis de 1600 à 1730 Sevpen 1960 p 123138 413419 etc 116 Philippe Ariès Le Temps de lHistoire op cit p 255 117 Cf P Ariès op cit p 195214 sobre estas galerias de história ou coleções de retratos históricos 118 Claude LéviStrauss La Pensée sauvage Plon 1962 p 285 a propósito dos nomes próprios procedimentos próprios da pesquisa Com efeito a prática encontra o passado sob a forma de um desvio relativo a modelos presentes Na verdade a função específica da escrita não é contrária mas diferente e complementar com relação à função da prática Ela pode ser particularizada sob dois aspectos Por um lado no sentido etnológico e quase religioso do termo a escrita representa o papel de um rito de sepultamento ela exorciza a morte introduzindoa no discurso Por outro lado tem uma função simbolizadora permite a uma sociedade situarse dandolhe na linguagem um passado e abrindo assim um espaço próprio para o presente marcar um passado é dar um lugar à morte mas também redistribuir o espaço das possibilidades determinar negativamente aquilo que está por fazer e conseqüentemente utilizar a narratividade que enterra os mortos como um meio de estabelecer um lugar para os vivos A arrumação dos ausentes é o inverso de uma normatividade que visa o leitor vivo e que instaura uma relação didática entre o remetente e o destinatário No texto o passado ocupa o lugar do assuntorei Uma conversão escriturária se operou Lá onde a pesquisa efetuou uma crítica dos modelos presentes a escrita construiu um túmulo119 para o morto O lugar feito para o passado joga pois aqui e lá com dois tipos de operação uma técnica outra escriturária É apenas através desta diferença de funcionamento Pg 107 que pode ser reencontrada uma analogia entre as duas posições do passado na técnica de pesquisa e na representação do texto A escrita não fala do passado senão para enterrálo Ela é um túmulo no duplo sentido de que através do mesmo texto ela honra e elimina Aqui a linguagem tem como função introduzir no dizer aquilo que não se faz mais Ela exorciza a morte e a coloca no relato que substitui pedagogicamente alguma coisa que o leitor deve crer e fazer Este processo se repete em muitas outras formas nãocientíficas desde o elogio fúnebre na rua até o enterro Porém diferentemente de outros túmulos artísticos ou sociais a recondução do morto ou do passado num lugar simbólico articulase aqui com o trabalho que visa a criar no presente um lugar passado ou futuro a preencher um deverfazer A escrita acumula o produto deste trabalho Através dele libera o presente sem ter que nomeálo Assim podese dizer que ela faz mortos para que os vivos existam Mais exatamente ela recebe os mortos feitos por uma mudança social a fim de que seja marcado o espaço aberto por este passado e para que no entanto permaneça possível articular o que surge com o que desaparece Nomear os ausentes da 119 Desde o século XVII o tombeau é um gênero literário ou musical É também a este gênero que pertence o relato historiográfico casa e introduzilos na linguagem escriturária é liberar o apartamento para os vivos através de um ato de comunicação que combina a ausência dos vivos na linguagem com a ausência dos mortos na casa Desta maneira uma sociedade se dá um presente graças a uma escrita histórica A instauração literária deste espaço reúne então o trabalho que a prática histórica efetuou Substituto do ser ausente prisão do gênio mau da morte o texto histórico tem um papel performativo A linguagem permite a uma prática situarse com relação ao seu outro o passado Com efeito ele mesmo é uma prática A historiografia se serve da morte para articular uma lei do presente Ela não descreve as práticas silenciosas que a constroem mas efetua uma nova distribuição de práticas já semantizadas Operação de uma outra ordem que a da pesquisa Pela sua narratividade ela fornece à morte uma representação que instalando a falta na linguagem fora da existência tem valor de exorcismo contra a angústia Mas por sua performatividade preenche a lacuna que ela representa utiliza este lugar para impor um querer um saber e uma lição ao destinatário Em suma a narratividade metáfora de um performativo encontra apoio precisamente naquilo que oculta os mortos dos quais fala se tomam o vocabulário de uma tarefa a empreender Ambivalência da historiografia ela é a condição de um fazer e a denegação de uma ausência age ora como discurso de uma lei o dizer histórico abre um presente a fazer ora como álibi ilusão realista Pg 108 o efeito de real cria ficção de uma outra história Oscila entre fazer a história e contar histórias sem ser redutível nem a uma nem a outra Sem dúvida podese reconhecer o mesmo desdobramento sob outra forma que leva a efeito a operação histórica ao mesmo tempo crítica e construtora a escrita caminha entre a blasfêmia e a curiosidade entre aquilo que elimina constituindoo como passado e aquilo que organiza do presente entre a privação ou a desapropriação postulada pela normatividade social que ela impõe ao leitor à sua revelia Por todos estes aspectos combinados na encenação literária ela simboliza o desejo que constitui a relação com o outro Ela é a marca desta lei Não é surpreendente que esteja em jogo aqui algo diferente do destino ou das possibilidades de uma ciência objetiva Na medida em que nossa relação com a linguagem é sempre uma relação com a morte o discurso histórico é a representação privilegiada de uma ciência do sujeito e do sujeito tomado numa divisão constituinte120 mas com a representação das relações que um corpo social mantém 120 Jacques Lacan Ecrits Seuil 1966 p 857 Cf op cit p 859 Não existe ciência do homem porque o homem da ciência não existe mas apenas seu sujeito com a sua linguagem Pg 109 Pgs 110 a 119 Notas Pg 120 Página em branco Pg 121 Título Pg 122 Página em branco Segunda Parte A PRODUÇÃO DO TEMPO UMA ARQUEOLOGIA RELIGIOSA Introdução QUESTÕES DE MÉTODO Constatase uma derrocada da prática religiosa na França inteira durante e após a Revolução Esta mudança brusca naturalmente pede uma explicação deve ter ocorrido alguma coisa antes para que esta ruptura pudesse se produzir O fato desta modificação terse operado muito rápido sob o abalo da Revolução escrevem E Gautier e L Henry faz pensar que os espíritos estavam preparados para aceitála 1 Quando se é historiador que fazer senão desafiar o acaso propor razões quer dizer compreender Mas compreender não é fugir para a ideologia nem dar um pseudônimo ao que permanece oculto É encontrar na própria informação histórica o que a tomará pensável Aquilo que torna pensável Esta pesquisa tem vários efeitos Permite levantar uma série de indícios até então inobservados e daí por diante notáveis porque se sabe aproximativamente a que funções devem corresponder Mas pode também recolocar em questão os conceitos as unidades históricas ou os níveis de análise adotados até então Assim chegase a revisar a idéia de uma cristianização no século XVII2 ou o isolamento de um Antigo Regime como totalidade distinta daquilo que se lhe segue3 ou o alcance dos resultados que a análise quantitativa das práticas fornece4 Necessários à historiografia estes recortes de tipos diferentes são constantemente erodidos no seu limite pelas próprias questões às quais permitem chegar As coerências Pg 123 da análise são tomadas ao revés a partir de seu deslocamento de suas extremidades e de suas conseqüências Elas são frágeis em suas fronteiras avançadas Um trabalho em suas bordas provoca a 1 E Gautier e L Henri La Population de Crulai paroisse normande Paris1958 p 119 A conclusão deste estudo que é um modelo do gênero é citada e sublinhada com justeza como capital por J Delumeau Le Catholicisme entre Luther et Voltaire Paris 1971 p 322 2 Para serem descristianizadas é necessário que elas as populações tenham sido um dia cristianizadas É a medida desta cristianização que nos revelará a medida da descristianização escreve J Delumeau op cit p 326 Inversamente se retornarmos do esboramento da prática religiosa às suas causas o caráter superficial das práticas cristãs mediremos melhor a cristianização e talvez mesmo renunciaremos a esta noção 3 O corte entre a história moderna e a história contemporânea é cada vez mais relativizado sabese pela análise de continuidades econômicas demográficas culturais etc ou pela evidenciação de descontinuidades que não correspondem à cesura do fim do século XVIII 4 Sobre a ambivalência dos dados quantitativos que concernem às práticas religiosas cf infra A inversão do pensável p 117 ss modificação ou o deslocamento delas Ali se operam as passagens de um modelo para outro Chegase então a um corte que não envolve mais apenas a evolução de uma sociedade por exemplo a derrocada das práticas religiosas mas também a evolução dos instrumentos de sua análise por exemplo o questionamento de uma descrição quantitativa tampouco a passagem de um período a outro mas a modificação dos modelos em função dos quais este corte histórico foi estabelecido Entre estas duas espécies de informação existe uma conexão estreita A historiografia mexe constantemente com a história que estuda e com o lugar onde se elabora Aqui a pesquisa daquilo que deve ter ocorrido durante os séculos XVII e XVIII para que se produzissem os fatos constatados em fins do século XVIII normalmente pede uma reflexão a respeito daquilo que deve ocorrer e mudar hoje nos procedimentos historiográficos para que tais ou quais séries de elementos que não entravam no campo dos procedimentos de análise empregados até então apareçam5 Um caso particular desta conexão se apresenta através de um problema histórico bem conhecido a divergência crescente durante o século XVII e mais ainda durante o século XVIII entre a rápida autonomia dos filósofos com relação aos critérios religiosos e por outro lado a calma persistência talvez mesmo a extensão objetiva das práticas religiosas na maior parte do país durante o mesmo período Podese perguntar que relação mantém as ideologias das Luzes com esta latência dos comportamentos sociais contemporâneos Está claro que esta distorção tem um fundamento social e econômico no enriquecimento de uma alta burguesia que se separa cada vez mais das massas rurais Mas é necessário interrogarse igualmente a respeito das conseqüências para a nossa interpretação dos métodos distintos que utilizamos nestes dois setores um ideológico e literário naquilo que concerne aos sistemas de pensamentos o outro sociológico naquilo que concerne às práticas Com efeito talvez nossa dificuldade em denunciar uma relação entre as ideologias progressistas e as resistências sócioculturais se prendam à heterogeneidade que dois métodos nascidos em reação um ao outro colocam a priori quando a qualificação dos fatos positivos foi promovida por Gabriel Le Bras frente à história doutrinal francesa literária ou 5 Cf supra Fazer história p 2154 teológica ou às tipologias teóricas alemãs6 Exatamente através das renovações que tomou possíveis esta análise sociológica revela seus próprios limites Para encurtar digamos que ela torna Pg 124 impensável a especificidade das organizações ideológicas ou religiosas Transformaas em representações ou reflexos de estruturas sociais Dito de outra maneira ela as elimina como fatores reais da história estes são acréscimos e efeitos secundários preciosos apenas enquanto permitem ver por transparência aquilo que os provocou Formalidades em historiografia Assim por exemplo procede G E Swanson no novíssimo estudo em que pretende demonstrar a dependência das formações e das doutrinas religiosas do século XVI com relação às estruturas do poder político7 As divisões regionais em matéria religiosa assim como as teologias são para ele afinal a projeção ou o reflexo das formas de governo das quais ele previamente estabeleceu o repertório e a classificação A tese de Swanson a respeito das doutrinas reformadas possui a clareza de uma posição que aborda francamente um problema fundamental Ela permite determinar alguns princípios que também existem em muitos de nossos trabalhos históricos mas são geralmente obliterados pela erudição 1 A história fornece fatos destinados a preencher os quadros formais determinados por uma teoria econômica sociológica demográfica ou psicanalítica Esta concepção tende a situar a história ao lado dos exemplos que devem ilustrar uma doutrina definida noutro lugar A afirmação inversa pode chegar ao mesmo resultado Na sua piedade pelos fatos o erudito reúne elementos necessários à pesquisa mas enquadrados e mobilizados em uma ordem do saber que ele desconhece e que funciona à sua revelia A apologia dos fatos repete as formas de sua identificação Ela tem como corolário implícito a preservação das normas e das ideologias que lhe determinam o recorte a 6 Cf a propósito de G Le Bras os estudos de Henri Desroche in Revue dHistoire et de Philosophie religieuses t Il 1954 p 128158 e de François Isambert in Cahiers internationaux de sociologie t XVI 1956 p 149169 7 Guy E Swanson Religion and Regime A sociological Account of the Reformation Ann Arbor 1967 A obra de Swanson professor de sociologia em Berkeley deu lugar a um debate metodológico muito interessante com N Z Davis T V Brodek H G Koenigsberger e G E Swanson Reevaluating the Reformation A Symposium publicado em The Journal of Interdisciplinary History vol III 1971 p 379446 Os problemas levantados por Swanson não deixam de ter analogia com aqueles mostrados recentemente por Lucien Goldmann Le Dieu caché Gallimard 1956 classificação e a organização a serviço dos próprios postulados Portanto ela ilustra também uma doutrina mas uma doutrina que não se mostra e da qual não são dados senão os exemplos os fatos 2 A taxonomia em Swanson provém de uma sócioetnologia das formas políticas8 É daí que ele tira os critérios de seu estudo histórico sobre as raízes sociais das doutrinas religiosas posição normal já que os códigos interpretativos do passado nunca nos vem deste passado Mas ele supõe também que esta grade sociológica se confunda o mais possível com a realidade de toda a sociedade e que introduza o próprio referente na análise Ele lhe atribui a capacidade de corresponder à verdade social de maneira que as outras taxonomias devem ser reduzidas a esta por uma série Pg 125 de transformações Isto significa esquecer que nenhum código é como tal mais fiel ao real senão a título do seu poder operatório quer dizer enquanto instrumento de uma operação da sociedade sobre ela mesma Ora mesmo supondo que nas sociedades contemporâneas a mudança se efetue e se pense a partir de um modelo sociológico isto nem sempre foi assim Uma perspectiva histórica deve levar em consideração as substituições sucessivas destes códigos de referência e por exemplo o fato de que o código teológico representou durante o século XIII o papel que hoje pode ter o código sociológico ou econômico Não se poderia sustentar como insignificante a diferença entre os quadros de referência em função dos quais uma sociedade organiza as ações e os pensamentos Reduzir um ao outro seria precisamente negar o trabalho da história 3 Finalmente parece a Swanson assim como a muitos outros que um modelo único neste caso político poderia na verdade dar conta da sociedade globalmente Um único sistema de explicação deveria em princípio integrála e dar contade sua complexidade Este seria pois o objetivo de uma análise científica levar à unicidade de um modelo científico a multiplicidade fugidia das organizações sociais Esta convicção tem pelo menos duas origens que se reforçam por um lado um postulado etnológico segundo o qual as sociedades selvagens são redutíveis a um sistema por outro lado fundamentado na operação que transpõe a relação civilizadoselvagem como relação interna às sociedades modernas um postulado hierárquico segundo o qual algumas das forças ou valores em circulação numa sociedade se atribuem o privilégio de representar o fator predominante o progresso ou o essencial e servem para classificar todos os outros O lugar central dado a uma categoria de signos fundamenta a possibilidade 8 Swanson não distingue menos do que 41 formas de governo das quais cada uma engendra um tipo religioso que lhe é proporcional de classificar os outros como atrasos ou resistências e fornecer a base parcial de uma coerência de uma mentalidade ou de um sistema ao qual todo conjunto está referido Está claro que o lugar dado aos signos remete ao lugar social dos historiadores9 Qualquer que seja a referência a uma coerência capaz de envolver a totalidade dos dados de uma época ou de um país esta se choca com a resistência dos materiais Aquilo que eles questionam não é mais apenas a mudança do modelo interpretativo é a idéia de que seja possível pensálos no singular Encarase a possibilidade de que uma mesma sociedade apresente uma pluralidade de desenvolvimentos heterogêneos mas combinados Por exemplo segundo J Berque ela se caracterizaria por uma relação específica entre uma base ou um fundo um x referencial quer dizer aquilo a partir de que situar a multiplicidade e o jogo entre Pg 126 uma pluralidade de predicados apreensíveis somente pela análise a dimensão ou predicado política a dimensão ou predicado artística ou literária o predicado industrial etc10 Seria necessário pois elaborar o modelo de uma evolução pluridimensional que permitisse conceber estas dimensões como articuladas e compensadas obedecendo no entanto a lógicas próprias e a diferentes ritmos de crescimento11 Mencionado a título de exemplo este esquema responde ao problema que encontra toda historiografia Ela combina com efeito dois elementos aparentemente contraditórios 1 a singularidade de um nome próprio unicidade do referente ao mesmo tempo inevitável fazse a história da França ou do Maghreb do século XVII etc e inapreensível o nome próprio designa o postulado da análise e não o seu conteúdo 2 a pluralidade de sistemas de desenvolvimento eles próprios relativos a uma pluralidade de níveis métodos e materiais de análise Entre este singular e este plural L Berque postula uma relação análoga à que um sujeito invisível estabelece com predicados visíveis Mesmo sem particularizar as dificuldades que representa este ancoradouro das dimensões ou dos predicados num x quase místico a partir de que um suporte real 9 Por exemplo o lugar ocupado numa sociedade pelos próprios historiadores enquanto grupo de intelectuais determina em grande parte o privilégio que eles concedem a uma categoria particular de signos corto sendo ao mesmo tempo os indícios do progresso e oprincípio da compreensão sintética de uma época Existe uma relação entre o lugar social dos letrados e o papel epistemológico de critérios de sua escolha Cf supra p 64 ss 10 Jacques Berque iogiques plurales du progrès op cit p 67 e 10 que emprega alternadamente predicado e dimensão 11 Ibid p 19 mas desconhecido lhe é dado12 podese notar que este último vestígio de um ontologismo de linguagem tão freqüente em história tem como conseqüência supor para esta repartição em dimensões uma validade universal e constante Ora esta distinção não é estável Por exemplo a dissociação do político e do sacro ou do estético é uma produção histórica ela resulta do aparecimento de um tipo moderno de civilização que não existiu sempre Além disto os sistemas de desenvolvimento aqui qualificados de dimensões não correspondem a áreas homólogas as unidades políticas religiosas ou intelectuais não coincidem elas não têm a mesma extensão no tempo e no espaço de maneira que suporlhes uma mesma base a França o século XVII etc é uma operação que consiste simplesmente em tomar um código político religioso cronológico etc como base da análise de suas relações com os outros O historiador está deveras obrigado a passar por aí não há ponto de vista universal Mas este referente resulta também de sua operação Ele não está pois mais próximo do real mesmo quando é a condição de uma análise que extrai dos materiais um conhecimento real ainda que relativo a uma grade de interpretação Parece que se deve conceber conforme demonstram as pesquisas atuais em ciências humanas13 a possibilidade de sistemas distintos e combinados sem ter que introduzir na sua análise o suporte de uma realidade Pg 127 originária e unitária Isto implica que se possa pensar numa pluralidade de sistemas especificados por tipos e superfícies de funcionamento heterogêneos que a própria natureza destes sistemas varie o sistema religioso por exemplo não foi sempre estável nem distinto daquele que se tomou sistema político que compatibilidades relações e compensações recíprocas entre estes sistemas diferentes especifiquem as unidades recortadas pela história que enfim o processo através do qual estas unidades se desfazem ou mudam para dar lugar a outras possa ser analisado como o encaminhamento destas combinações no sentido de limiares de compatibilidade ou de tolerância entre os elementos que conjugam A identificação destes sistemas evidentemente é relativa às condições e aos modelos de investigação Mas isto é dizer simplesmente que as análises científicas 12 J Berque fala da ambigüidade estatutária a propósito daquele fundo de indistinção prévio à toda diferenciação ibid p 6 Ele desejaria economizála sem crer a coisa possível É na verdade um limite ao mesmo tempo que um esto do realismo científico Além começa uma epistemologia que renuncia a tomar a realidade nas redes da linguagem mesmo a título de um sujeito incognoscível que sustente atributos cognoscíveis 13 Assim em urbanismo procurase pensar numa pluralidade de sistemas imbricados que se compensem mas não possam ser reduzidos ao modelo teórico Integrador de árvore Cf Christopher Alexander De la synthèse de la forme Dunod 1971 e seu artigo Une ville nest pas un arbre in Architecture aujourdhui1967 intervêm classificam e operam sem nunca poder integrar nem ultrapassar através do discurso a história o real do qual falam elas fazem parte dele e dependem dele como de um solo cujos deslocamentos comandam a sua movimentação Pareceu interessante examinar segundo este esquema global o movimento que se produz a nível das práticas religiosas durante os séculos XVII e XVIII Este movimento questiona simultaneamente as modificações sociais e as mudanças na axiomática do agir Aí vemos constituirse como distinto do sistema religioso um sistema político depois econômico conquanto conforme demonstrou R R Palmer14 o cristianismo ainda condicione o curso geral da filosofia Uma outra combinação social de sistemas distintos ao mesmo tempo que um outro modo do pensável insinuamse pouco a pouco no elemento ainda maciçamente religioso o que não quer dizer necessariamente cristão da população francesa Uma nova formalidade das práticas permite apropriar estas transformações estruturais ao nível das condutas religiosas e de seu funcionamento sem ter necessariamente que passar pelas ideologias que uma elite intelectual elabora Através deste fato da possibilidade de isolar estas duas séries talvez se tenha o meio de analisar como por um lado práticas e ideologias se articulam num caso particular e por outro como se opera a passagem de um tipo social de articulação a um outro Pg 128 Pgs 129 a 130 Notas Capítulo III 14 Robert R Palmer Catholics and Unbelievers in Eighteenth Century France Princeton University Press 1970 Capítulo III A INVERSÃO DO PENSÁVEL A história religiosa do século XVII Encarada inicialmente a partir daquilo que se chama de vida espiritual e portanto num campo relativamente restrito nem por isso a histó ria religiosa do século XVII francês deixa de apresentar um número menor de problemas que dizem respeito aos seus métodos e à sua própria definição1 Apresentandoas aqui sob a forma de questões distingo um tanto arbitrariamente nas determinações características das pesquisas que fazemos 1 as que aparecem inicialmente como ligadas ao conteúdo da história à sociedade eclesiástica ou aos fenômenos religiosos que estudamos 2 as que se prendem à sua organização científica quer dizer à nossa maneira de compreender a história e portanto à relação que a nossa ótica presente de historiadores mantém com seu objeto religioso Do primeiro ponto de vista coisas que são analisáveis se movem diante de nós do segundo nós é que nós movemos com relação à maneira pela qual elas foram vividas e pensadas pelos contemporâneos ou por nossos predecessores na historiografia Não se pode eliminar nem um nem outro destes aspectos Sua conjunção define o trabalho do historiador Pg 131 I A RELIGIÃO DURANTE A IDADE CLÁSSICA As fontes da história religiosa determinam a paisagem que nós reconstituímos com a ajuda da documentação que ela nos forneceu As opções quanto ao tipo de história que produziremos são feitas de início com as fontes que selecionamos e com o que escolhemos para nelas pesquisar Deixo esta questão fundamental para a segunda parte para não reter inicialmente senão a história feita o relato que já resulta de Estudo publicado nas Recherches de science religieuse t LVII 1969 p 231250 1 Para a bibliografia remeto aos dois quadros que traçaram René Taveneaux La vie religieuse en France de lavènement dHenri IV à la mort de Louis XIV 15891715 em Historiens et géographes n 200 outubro de 1966 p 119130 e Pierre Chaunu Le XVII siècle religieux Réflexions préalables em Annales E S C XXII 1967 p 279302 Nota dos digitalizadores Na edição original este título figura no índice mas não aparece no texto Optamos por inserilo onde nos pareceu mais adequado abundantes messes da erudição Este conteúdo se apresenta sob tipos diferentes de organização Por este ângulo os fatores dinâmicos e estruturais podem ser diferenciados conforme sejam referentes ao funcionamento interno da sociedade religiosa e da experiência cristã por exemplo a designação da heresia a relação elite massa o estatuto e o papel da doutrina etc ou segundo permitam a esta sociedade definirse com relação a uma exterioridade um passado um presente hostil ou diferente a assunção religiosa de elementos nãoreligiosos etc Será necessário ultrapassar esta divisão Mas ela nos ajuda a assinalar e a classificar alguns problemas A Equilíbrios e tensões internas dinâmica da sociedade religiosa Dentre as tensões próprias do século XVII eis aqui algumas apresentadas sob uma forma antinômica necessariamente simplificadora Evidentemente elas estão ligadas a uma percepção contemporânea até que ponto está por discutir mas este é o signo de que elas indicam novos lugares para a pesquisa e que é necessário particularizar os instrumentos para analisar melhor os problemas nascidos de nossas questões 1 A heresia Conforme demonstrou Alphonse Dupront um primeiro dado bruto tão evidente quanto capital para o espírito moderno é a promoção progressiva da heresia a confissão e de confissão a igreja Este do meu ponto de vista é o grande fato moderno o herético notório tornouse publicamente oficialmente ministro de igreja de uma outra igreja2 Indício capital com efeito pois de agora em diante o estatuto do conforme e do nãoconforme do ortodoxo e como diz Bossuet do extraviado se torna problemático neste sentido em que os critérios doutrinais se desacreditam pela sua própria oposição e que se impõe como critério Pg 132 de substituição progressivamente a adesão ao grupo religioso A partir do momento em que os princípios se relativizam e se invertem a pertença a uma Igreja ou a um corpo tende a fundamentar a certeza mais do que o 2 Alphonse Dupront Réflexions sur lhérésie moderne em Hérésies et Sociétés dans l Europe pré industrielle XIXVHIe siècles Mouton C 1968 p 291 conteúdo que se tornou discutível porque parcial ou comum mas oculto místico das verdades próprias de cada um A antinomia talvez agressividade entre grupos vence as disputas entre verdades provoca um ceticismo constatável em toda parte3 prepara também e já esboça um tipo nãoreligioso de certeza a saber a participação na sociedade civil Os valores investidos na Igreja se encontram pelo seu parcelamento em Igrejas coexistentes e mutuamente contestadoras entregues à responsabilidade da unidade política ou nacional Uma Igreja que abandonou o hábito privilegia mais a estrutura que a mensagem e a unidade geográfica mais que qualquer forma de catolicidade Então surge a nação4 Deste ponto de vista a multiplicação das representações iconográficas e das elucidações doutrinais consagradas à vitória da fé sobre a Heresia provavelmente anuncia em cada Igreja o contrário daquilo que estas tentam provar e demonstrar Pois a intransigência está ligada à estrita pertinência ao grupo A suspeita que atinge os dogmas torna a rigidez e a defesa do grupo mais necessárias Daí o novo significado da educação instrumento de coesão numa campanha para manter ou restaurar a unidade O saber se torna para a sociedade religiosa na sua catequese ou nas controvérsias um meio de se definir A ignorância designa uma indecisão ou um no mans land de agora em diante intolerável entre os corpos em conflito A verdade aparece menos como aquilo que o grupo defende do que aquilo através do que ele se defende finalmente é o que ele faz sua maneira de representar de difundir e de centralizar o que é Operase uma mutação que inverte os papéis recíprocos da sociedade e da verdade Ao final a primeira será o que estabelece e determina a segunda Desta maneira se prepara uma relativização das verdades Mais precisamente elas funcionam de um modo novo As doutrinas logo serão consideradas como efeitos depois como superestruturas ideológicas ou instrumentos de coerência próprios e relativos às sociedades que os produziram Esta heresia global substitui um critério religioso por um critério social Sem dúvida ela corresponde ao fenômeno histórico até agora situado na categoria religiosa de descristianização É analisável através do reemprego em meados do século XVII das regras que permitiram até então Pg 133 qualificar como heréticos 3 Conforme particularmente Henri Busson La Pensée religieuse en France de Charron à Pascal Vrin René Pintard Le Libertinage érudit Boivin 1943 e sobretudo Richard Popkin TheHistory of Sceticism front Erasmus to Descartes Assen Van Gorcum1960 4 Cf Frederico Chabot L idea di Nazione Bari 1961 N da T em inglês no texto os movimentos que romperam a solidariedade com a única sociedade religiosa ou que a ameaçaram Estas regras de discernimento funcionam de forma diferente segundo sua inscrição numa situação nova Por exemplo servem para restaurar as fronteiras que separam os corpos institucionais no momento em que parece esfumarse deles uma vida mística escondida sob as divisões visíveis cada vez mais homogênea entre os membros destes grupos opostos e como que estranha a estas determinações de superfície as figuras espirituais protestantes ou católicas jansenistas ou jesuítas etc se distinguem muito menos pela natureza de sua experiência do que pelo fato de se ligarem a grupos contrários Freqüentemente aliás elas têm esta característica comum de serem suspeitas às vezes tanto a elas mesmas quanto à sua religião porque traem em nome de uma interioridade as instituições tradicionais de sua sociedade cf o antimisticismo Por aí se deslocam ousarseia dizer uma utilização social dos critérios religiosos e uma reinterpretação mística levemente pessoal oculta e muito semelhante entre indivíduos pertencentes a grupos opostos das mesmas estruturas religiosas5 A recuperação do visível que o concílio de Trento tinha assumido como tarefa assegurar pastoral e doutrinariamente6 parece chegar na verdade a dois efeitos contrários Por um lado as instituições religiosas se politizam progressivamente e terminam à sua revelia por obedecerem às normas de sociedades ou nações que se confrontam Por outro lado a experiência se aprofunda num avesso oculto ou se marginaliza localizada num corpo místico ou em círculos devotos Entre os dois conservando por algum tempo a estrutura e o vocabulário mental de uma hierarquia eclesiástica a razão do Estado impõe sua lei7 e faz funcionar de um modo novo os antigos sistemas teológicos por exemplo a idéia de cristandade ressurgiu em sociedades privadas como a Companhia do Santo Sacramento sob a forma de um projeto totalitário utopia cuja bagagem mental é arcaizante mesmo que certas idéias sejam reformistas e cujo sustentáculo não é senão um grupo secreto Ou a idéia de uma 5 O fato está patente em Jean Orcibal La Rencontre du Carmel thérésien avec les mystiques du Nord PUF 1950 e em J B Neveux Vie Spirituelle et vie sociale entre Rhin et Danube au XVIIe siècle Klincksieek 1967 p 361524 6 Cf Alphonse Dupront Du Concile de Trente em Revue historique 206 outdez 1951 e Le Concile de Trente em Le concile et les conciles Chevetogne 1960 p 195243 7 Homologias e rupturas entre a sociedade eclesial e a nova sociedade política aparecem claramente no estudo de Étienne Thuau Raison d État et pensée politique à lépoque de Richelieu A Colin 1966 A insinuação do critério político na eclesiologia do século XVII é também evocada por Jean Orcibal Lidée dÉglise chez les catholiques du XVII siècle in Relazioni del X Congresso Internazionale di Scienze Storiche voLIV 1955 p 111135 ordem cristã se opõe como sua antítese à realidade política uma espiritualidade se formula como o reverso inicialmente místico depois louco idiota da nova ordem das coisas que é leiga Ou então a reflexão cristã deixa de lado a intenção as leis e as regras que antes organizavam a vida social 2 Consciência religiosa coletiva e representações doutrinais Ao mesmo tempo se aviva uma diferença tida como intolerável entre Pg 134 a consciência religiosa dos cristãos e as representações ideológicas ou institucionais de sua fé Fato verdadeiramente novo O que sobretudo chama a atenção nos textos é menos o fato da diferença sempre muito difícil de apreciar do que o sentimento explícito de uma distancia entre as crenças e as doutrinas ou entre a experiência e as instituições Muitos signos tendem a sugerir esta hipótese A feitiçaria por um lado e o ceticismo por outro são os indícios convergentes um popular e outro intelectual8 da imensa contestação das instituições Os melhores entre os teólogos recorrem à experiência do iletrado da moça dos campos ou dos bairros urbanos populares9 O retomo dos missionários para o interior meta de uma nova reconquista pelo saber nós o veremos faz dos campos franceses o lugar onde a renovação deve nascer as origens 8 Os historiadores hoje deixam de bom grado o primeiro por conta da ignorância mas assim eles adotam a interpretação que já era exatamente a dos missionários ou dos juízes do século XVII Por aí uns e outros não atestam o a priori social novo eu creio no século XVII que faz da participação no saber definido por uma elite a condição de pertença à sociedade e deste próprio saber o meio de que dispõe uma sociedade para hierarquizar seus membros ou para eliminar os errantes não conformes à razão comum Questão aberta Cf M de Certeau LAbsent de lhistoire Mame 1973 p 1339 Une mutation culturelle et religieuse Les magistrats devant les sorciers du XVIIe siècle Marc Soriano Les Contes de Perrault Gallimard 1968 p 9092 9 Este traço já havia tocado bastante a Henri Bremond e ele o notou freqüentemente Depois outros casos confirmaram esta intuição Haveria sem dúvida um trabalho mais sistemático a empreender sobre este tema ao mesmo tempo antiintelectual mas ideológico e pauperista do iletrado da moça pobre etc É a retomada em um sentido novo do tema que opunha dois séculos antes séculos XV e XVI o leigo inspirado ao padre teólogo quer dizer duas categorias de Igreja cf a este respeito uma sondagem M de Certeau Lilletré éclairé Lhistoire de la lettre de Surin sur le jeune du coche in Revue I Ascétique et de Mystique XLIV 1968 p 369412 Toda corrente espiritual cujas localizações variam muito se constrói nesta perspectiva Ela se inicia no século XVII com a primazia concedida à sabedoria dos santos freqüentemente oposta à teologia positiva e sobretudo à escolástica ela se fecha com a apologia do idiota quando começa o século das luzes Os próprios santos são arrolados nesta campanha antüntelectual como São José místico do silêncio antes de patrocinar no século XIX as estruturas e as virtudes familiares cf Jacques Le Brun em Nouvelle Histoire de 1 Église Seuil t III 1968 p 428430 N da T em espanhol no texto santas de um recomeço apostólico em terras selvagens10 movimento paralelo ao que conduz tantos eremitas católicos aos desertos franceses11 Mais intimamente em muitos dos grandes cristãos do século XVI se insinua a dúvida com relação às expressões da fé ou à dificuldade em ver nas autoridades outra coisa senão um meio de praticar a humildade A referência ao experimentado iluminador ou desolador coloca sem cessar o problema de sua relação com o representado oficial recebido ou imposto Esta evolução se acompanha por dois fenômenos aparentemente contraditórios mas eu creio que coerentes e em todo caso patentes Por um lado a religião é progressivamente dirigida durante o decorrer do século XVII para o terreno da prática Isto quer dizer que a prática é um fato constatável Prova que a fé vem dela mesma é a visibilidade apologética de uma crença que também obedece de agora em diante aos imperativos da utilidade social através da obliquidade da filantropia e da defesa da ordem Estes diversos elementos têm uma importância variável Visam a defender uma originalidade cristã tendência jansenista ou a introduzir o cristão nas leis da moralidade pública tendência jesuíta Mas têm em comum o fato de que atestando igualmente uma desconfiança sob o ponto de vista das representações religiosas substituem um gesto social à assimilação interior de uma verdade cristã universalmente reconhecida de direito No limite este gesto consiste antes em constituir a verdade do que em praticála O lugar decisivo doravante são os costumes mais do que a fé O critério religioso muda lentamente e o que assim se elabora Pg 135 no interior da Igreja durante o século XVII é sem dúvida o que hoje ressalta promovido ao estatuto de critério científico na sociologia religiosa O outro fenômeno é a nova função que o saber adquire na instauração de uma ordem servida ao mesmo tempo que justificada pela cruzada pedagógica da Igreja As grandes campanhas escolares e missionárias da Igreja durante o século XVII são bem conhecidas visam especialmente as regiões geográficas sociais culturais deixadas sem cultivo até então por serem tidas como assimiladas a estruturas globais os campos 10 Podemse ler assim penso como afectos a este duplo sentido todos os dados reunidos por Charles Berthelot du Chesnay Les Missions de Saint Jean Eudes Procure des Eudistes 1967 O Selvagem do interior ou do exterior é um tema comum à toda literatura missionária ele se opõe ao Civilizado Cf René Gonnard La légende du bon sauvage Médicis 1945 p 5470 11 Cf os estudos de Pierre Doyère em particular o verbete Éremitisme em Dictionnaire de spiritualité t IV 1960 p 971982 a criança a mulher12 Estas regiões se emancipam tornamse pois perigosas com relação a uma ordem nova Eu me pergunto se a explicação que durante o século XVII tende a interpretar estas resistências como a conseqüência da ignorância não é o indício da função que esta reconquista pelo saber recebeu progressivamente Uma unidade nacional é então promovida e delimitada pela aquisição inicialmente catequética do conhecimento O resto será rejeitado para o folklore ou eliminado13 Talvez sob este ponto de vista na França rural clássica ainda por descobrir14 seria necessário individualizar a relação entre as fúrias camponesas evocadas por Roland Mousnier15 as rebeliões selvagens e as festas transformadas em revoltas a criminalidade dos campos as feitiçarias remanescentes etc16 por uma parte e por outra o caráter intelectual do movimento catequético17 e do esforço de escolarização do qual a Igreja foi a animadora Como a filantropia dos devotos se aplica em encerrar os pobres confortandoos como com um mesmo gesto ela defende a pobreza evangélica e reprime a pobreza delituosa18 da mesma maneira a campanha escolar poderia ter tido estes dois papéis Ela obedece a imperativos de ordem pública Uma redefinição nacional divide então o país segundo critérios culturais impostos pela conjuntura estes teriam sido aceitos pelo apostolado cristão porém não mais determinados por ele e talvez eficazes apesar dele Aqui se impõe outra vez a hipótese de um funcionamento novo das estruturas religiosas 3 Ideologia religiosa e realidade social 12 Uma análise análoga àquela feita por Philippe Ariès sobre LEnfant et la vie familiale sous lAncien Régime Pion 1960 deveria ser empreendida a propósito da mulher Já se encontram pistas sugestivas em Robert Mandrou Introduction à la France moderne A Michel 1961 p 112 ss ou no livro mais antigo de G Reynier La Femme au XVIIe siècle Paris 1933 13 Aí não está evidentemente senão um aspecto e como que o inverso do imenso trabalho pedagógico de que a França foi então o terreno 14 Cf J Jacquart Lhistoire rurale em Historiens et géographes abril de 1967 p 715721 é surpreendente não ver figurar ali Marc Vénard Bourgeois et Paysans au XVIIe siècle Sevpen 1957 e sobretudo P Goubert LAncien Régime A Colin 1969 p 77144 15 Fureurs paysannes Les paysans dans les révoltes du XVIIe siècle CalmannLévy 1967 p 13156 16 Emmanuel Le Roy Ladurie Les Paysans de Languedoc Sevpen 1966 t 1 p 391414 e 605629 Deste livro surpreendente sob tantos aspectos ressalta também que no Languedoque sociedade fria segundo as categorias de LéviStrauss a alfabetização aprendizagem da escrita e da língua do norte e a Reforma primado do Livro e da Escritura seguem os mesmos caminhos Aqui a aculturação é princípio de autonomia 17 Cf JeanClaude Dhôtel Les Origines du catéchisme moderne Aubier 1967 p 149278 La prodigieuse ignorance 18 Cf Pierre Deyon Peinture et charité chrétienne em Annales E S C XXII 1967 p 137153 Deste ponto de vista a Société du SaintSacrement trabalharia pela sua atividade ao contrário de seus projetos utopistas retorno a uma política cristã ou subversivos oposição ao poder A interrogação suscitada por este funcionamento social da religião remete à questão mais ampla das relações que as representações ou as ideologias religiosas mantêm com a organização de uma sociedade e secundariamente a dos critérios de que dispomos atualmente para julgar uma realidade social que permitiria apreciar ou o engano se são efeitos de superfície Pg 136 ou a eficácia se são determinantes mas em todo caso o sentido das expressões religiosas Lucien Goldman a propõe brutalmente sob sua primeira forma quando mostra uma reação contra o absolutismo real entre os magistrados mas uma reação que acompanha uma crescente dependência econômica frente à monarquia a retirada jansenista exprimiria a saída fatal para uma oposição desprovida de poder seria uma demissão sublimada19 Para ele pois compreender a ideologia jansenista é identificar a infraestrutura econômica e social que dá conta dela20 Hoje este problema pesa sobre qualquer análise das teologias ou das espiritual idades Mas a brilhante demonstração de Goldman não resolve na medida em que ela permanece uma tautologia quer dizer na medida em que recusando as resistências do material histórico opera nele uma triagem e dele extrai apenas os dados conforme a um sistema de interpretação marxista preparado de antemão Portanto a questão permanece mesmo não podendo ser resolvida pela substituição de uma ideologia recente marxista por uma outra mais antiga teológica Antes de considerar como uma historiografia religiosa pode definir a relação entre um modo atual de compreensão e a maneira pela qual os homens do passado se compreendiam a si próprios é possível constatar nos elementos que revelamos no século XVII uma homologia das estruturas do pensamento com as estruturas sociais Parece existir uma conexão entre os movimentos intelectuais que uma história das idéias revela e as modificações e hierarquizações que uma história social descreve Observálo é uma primeira tarefa Qualificar esta conexão e talvez modificar a idéia que se tinha dela no início ou reconhecer nela o resultado do olhar que faz aparecer este paralelismo é outra Eu me contentarei pois em assinalar inicialmente alguns dos dados que sugerem um paralelismo entre ideologias e modificações sociais a A organização das ciências eclesiásticas muda durante o século XVII Através 19 L Goldmann Le Dieu caché Gallimard 1955 p 115116 Jansénisme et noblesse de robe A ideologia jansenista representa para estes funcionários cujas atribuições são transferidas aos comissários do rei 16351640 a impossibilidade radical de realizar uma vida válida no mundo p 117 20 Ibid p 156 de uma nova repartição dos conhecimentos e uma redefinição do conhecimento opera se um deslocamento que tem seus análogos na sociedade o lugar dado ao saber religioso na cultura geral a localização crescente do recrutamento social próprio deste género de eruditos a venda talvez o formato a ilustração especializada etc destas diversas obras e as redes sócioculturais que sua circulação permite distinguir na superfície do país ou recortar na sua espessura os lugares de venda os preços as citações ou as menções em outros textos ou nas cartas toda uma série de indícios esboça em pontilhado estratificações mentais e grupos de outra maneira Pg 137 dificilmente determináveis Estes fatores dispersos bem parecem constituir um fenômeno homogêneo A uma organização das ciências e dos gêneros literários corresponde uma geografia socia121 Neste mesmo terreno definido por uma análise das ideologias mil signos mostram o laço entre as evoluções particulares e as modificações estruturais A divisão das ciências no caso religiosas sempre permite revelar a construção do saber sob seu aspecto formal e global Ela já é perceptível nas bibliografias muito raras então22 nas Bibliotecas muito numerosas ou nos Diretórios para os estudos clericais23 documentos classificadores por excelência Comparandoos entre si remetendoos uns aos outros reconhecemse neles indicativos geralmente retardatários de modificações na ordem que hierarquiza e distribui os conhecimentos Este movimento reparte diferentemente o mesmo conteúdo ou ainda dá novos conteúdos aos mesmos quadros gerais duas formas opostas de uma mesma evolução que envolve a natureza do saber Desta maneira num setor preciso se vê uma teologia mística dessolidarizarse da teologia tornase a mística depois a piedade especialidade que se contradistingue da teologiapositiva ela também 21 Encontrase sob este ponto de vista indicações metodológicas muito preciosas em Pierre Jeannin Attitudes culturelles et stratifications sociales réflexions sur le XVIIe siècle européen in Niveaux de culture et groupes sociaux Mouton Co 1967 p 67145 O autor mostra aí como sem se identificar uma dinâmica cultural e uma dinâmica social reagem constantemente uma sobre a outra op cit p 101 22 Por exemplo as classificações adotadas pelo Pe Jacob de SaintCharles na sua Bibliographia parisiana depois Gallica infelizmente efêmera 16461651 são sob este aspecto mais preciosas ainda do que os ensinamentos que ele nos proporciona sobre as datas de publicação Cf L N Malclès Le fondateur de la bibliographie nationale en France Le R P Louis Jacob de SaintCharles 1608 1670 em Mélanges Frantz Calot dArgences 1960 p 245253 23 Podese remontar o século XVII a partir do Diretório muito elaborado uma realização data de 1713 1717 que Raymond Darricau publicou La formation des professeurs de Séminaire au début du XVIIIe siècle d apres un Directoire de M Jean Bonnet 16641735 Piacenza Collegio Alberoni 1966 progressivamente destacada da teologia e deportada para a erudição24 Na realidade o que muda aqui ao mesmo tempo em que a teologia outrora englobante e vivificadora se fraciona é o critério do conhecimento em lugar de uma interpretação racional espiritual da tradição buscamse fatos constatáveis psicológicos em espiritualidade históricos na positiva Os fenômenos extraordinários por um lado e as realidades positivas por outro de agora em diante são tidos como os fundamentos da ciência religiosa de uma maneira análoga à que ocorre nas outras ciências A experiência constitui estas ciências e lhes fornece o título em nome do qual adquirem o direito de verificar o dado recebido25 o mesmo recurso funciona de maneiras diferentes é verdade mas já orientadas para as ciências a psicologia a história das quais a vida religiosa será cada vez mais o objeto e cada vez menos o princípio A ciência impõe seus critérios a todos crentes ou não Lança o fato religioso para fora do procedimento científico ele está quer diante dela como um objeto quer atrás dela com o estatuto de uma motivação interior a intenção piedosa do erudito ou de um lugar na sociedade o erudito não é cristão senão quando solitário ou monge Uma geografia das idéias esboça uma geografia sóciocultural e sem dúvida é preciso reconhecer o sintoma de um movimento global na lógica que divide a linguagem da espiritualidade entre o Pg 138 psicologismo e a casuística ou que espanta a mística para os campos distantes e para as seitas e que traz a positiva para um certo racionalismo histórico26 Uma análise mais limitada porém mais cuidadosa pode revelar outros fenômenos da mesma ordem Entre 1630 e 1660 ciências e técnicas astronomia tecelagem etc substituíram as realidades naturais água fogo etc e referências urbanas ou cortesãs tomaram o lugar das imagens rurais ou medievais no material de comparação de que se serve a literatura espiritual Os tratados espirituais se organizam então segundo os estados de vida quer dizer segundo um modelo social e classificações profissionais e não mais segundo as determinações próprias da Igreja clérigosleigos regulares seculares paróquias missões etc b Neste conjunto sem dúvida compreendemse melhor as opções intolerantes e 24 Cf Robert Guelluy Lévolution des méthodes théologiques à Louvain d Erasme à Jansénius em Revue dHistoire ecclésiastique XXXVII 1941 p 31144 M de Certeau Mystique au XVIIe siècle Le problème du langage mystique em Mélanges de Lubac Aubier 1964 t II p 267291 etc 25 Bruno Neveu Sébastien Le Nain de Tillemont 16371693 em Religion érudition et critique PUF 1968 p 30 26 Bruno Neveu La vie érudite à Paris à la fin du XVIIe siècle em Bibliothèque de l École des Chartes CXXIV 1967 p 510 as divisões internas às quais os crentes do século XVII parecem levados tão freqüentemente O galicanismo e o quietismo se enfrentam como se a nova razão que coloca a ação eclesial no quadro da política nacional e da positividade tivesse por contrário e correspondente uma espiritualidade do abandono e da passividade tanto mais estranha às fronteiras institucionais inclusive as religiosas quanto mais interior27 Ainda por aí na segunda metade do século XVII as posições doutrinais revelam mudanças sócioculturaise remetem a elas Mais cedo em meados do século um fenômeno semelhante é encontrado por exemplo não sob a forma de uma oposição mas de uma justaposição em tal intendente28 uma ética inteiramente comandada pela fidelidade ao rei é acrescentada sem interferir com ela a uma docilidade mística ao Criador universal O que mais tarde se vai extrapolar já está aqui dissociado na experiência pessoal c Muitos outros campos se abrem ao estudo Como a localização sóciocultural das ideologias religiosas Ela é perceptível creio sob diversas formas redes mais ou menos secretas onde circulam as mesmas idéias as dos jansenistas29 dos devotos30 ou dos espirituais31 círculos libertinos ou eruditos cujo recrutamento é relativamente homogêneo e cuja atividade é igualmente oculta32 especialização social e profissional de congregações religiosas que se definem progressivamente na escala de uma hierarquia social e numa organização mais rígida dos ofícios Logo os fechamentos se reforçam quer seja em pequenos círculos privados eles mesmos dissociados da razão pública quer seja entre grupos de agora em diante mais determinados por tarefas objetivas pelo meio onde se recrutam e pelas ideologias que 27 Sob este aspecto é necessário conjugar a leitura das obras de A G Martimort 1953 de J Coudy 1952 ou de P Blet 1959 sobre o clero e a de L Cognet sobre o Crépuscule des mystiques 1958 28 Cf M de Certeau Politique et mystique René dArgenson 15961651 em Revue dAscétique et Mystique XXXIX 1963 p 4582 29 Cf René Taveneaux Le Jansénisme en Lorraine 16401789 Vrin 1960 30 Cf a literatura consagrada a Société du SaintSacrement a partir de La Cabale des dévots dAllier 1902 J Aulagne 1906 Begouen 1913 A Bessières 1931 J Brucker 1913 J Calvet 1903 F Cavallera 19331935 J Croulbois 1904 P Emard 1932 A Féror 1926 M Formon 1953 1954 G Guigues 1922 L Grillon 1957 A Lagier 1916 G Le Bras 19401941 B Pocquet 1904 N Prunel 1911 A Rebelliau 1903 e 1908 L C Rosett 1954 M Souriau 1913 E Stanley Chill 1960 F Uzureau 1906 etc Toda uma literatura sobre o assunto pede uma nova síntese histórica 31 Por exemplo os Aa cf estudo muito aprofundado de Y Poutet e J Roubert Les Assemblées secrètes des XVIIeXVIIIe siècles en relation avec lAa de Lyon extrait de Divus Thomas 1968 32 O papel das Academias cresce não apenas em Paris cf J Le Brun em Revue dHistoire littéraire LXI 1961 p 153176 mas na província ainda que até o presente para o século XVII apenas os estudos regionais apresentem este fato por exemplo L Desgraves sobre a Assembléia do presidente Salomon em Bordeaux em Histoire de Bordeaux t IV 1966 p 425 ss J Brelot sobre a Biblioteca Boisot em Besançon em Claude Fohlen Histoire de Besançon 1965 t I p 122 ss etc se tornam o signo desta particularização Pg 139 Deste ponto de vista o estudo de R Taveneaux sobre o jansenismo da Lorena parece um modelo científico susceptível de fazer surgir problemas referentes a uma organização da vida religiosa B A vida religiosa na sociedade do século XVII As relações internas entre grupos doutrinas ou níveis de expressão já colocam em questão as relações das comunidades crentes com o que se poderia chamar de seu exterior o que elas designam como a alteridade pagã atéia natural e aquilo em função de que elas próprias se definem Isto pode ser encarado sob diferentes aspectos que parecem permitir a análise de estruturações globais susceptíveis de caracterizar a experiência religiosa da época Desta maneira a título de exemplo podemse assinalar algumas categorias gerais da linguagem 1 O oculto Existe um traço fundamental do século XVII ao mesmo tempo religioso e cultural uma nãovisibilidade do sentido ou mesmo de Deus Ela se traduz inicialmente pela dissociação entre o cenário e aquilo que existe atrás33 pela insegurança necessariamente agressiva que atinge qualquer expressão pelo deslocamento do inefável e do positivo etc Comanda o estilo a retórica quer dizer esta arte de falar onde a alegoria representa um papel decisivo e que consiste em dizer uma coisa dizendo outra coisa a pintura e a literatura empregam a mitologia ou as representações religiosas para enunciar um por debaixo que uma aprendizagem desde a escola até a Corte permite pouco a pouco perceber e sugerir Esta linguagem se define por Para bom entendedor meia palavra basta Existem muitos entendedores bastante entendidos e policiados para jogar o jogo de toda uma sociedade Enigmas alegorias medalhas etc é necessário revelar os indícios mais perceptíveis pois eles remetem a uma estrutura muito geral legível também na forma das academias libertinas ou das associações devotas grupamentos privados que constituem um trabalho e uma 33 Os estudos sobre o barroco espetáculo de metamorfoses que não cessam de esconder aquilo que mostram esclarecem singularmente a literatura consagrada à experiência mística Para compreender a espiritualidade da primeira metade do século XVII é necessário comparála a uma arte uma expressão finde o reflexo das aparências fala a inacessibilidade do real A bibliografia sobre o assunto é imensa de J Rousset a P Charpentrat linguagem abaixo da superfície oficial do país Dirseia que uma sociedade inteira diz o que está construindo com as representações do que está perdendo O sagrado se torna a alegoria de uma cultura nova no momento em que inversamente as aventuras do corpo fornecem à experiência espiritual sua nova linguagem34 Pg 140 2 Deslocamentos de uma estrutura bipolar Uma outra lei existe uma parece comandar a evolução da sociedade religiosa e tornarse própria dela enquanto vai deixando de caracterizar a sociedade civil a estrutura bipolar que constitui sempre como unidade exterior o que não é a Igreja Esta será por exemplo o Infiel o Ateu o Herético ou o mundo Estalei regiá a cristandade medieval tinha sua expressão simbólica na Cruzada Mas o nascimento da Europa fez de cada Estado uma unidade nacional entre varias outras A catolicidade se esboroa numa organização plural Talvez por ser de tipo ideológico a sociedade religiosa continua a considerar como um todo único o conjunto daquilo a que ela se opõe ou daquilo de que ela se distingue definindose Constatase através da mobilidade das idéias e dos grupos durante o século XVII a permanência desta estrutura apesar da diversidade das doutrinas ou das situações em função das quais ela se exprime As relações bipolares se mantêm ainda que seus termos mudem É importante analisar sob este ponto de vista os conteúdos sucessivos de um mesmo binômio Por exemplo o posto ideológico de ateu é pouco a pouco preenchido pelos alhumbrados ou espirituais pelos protestantes ou pelos católicos pelos jansenistas ou pelos jesuítas pelos teístas etc Estas definições manifestam ao mesmo tempo os deslocamentos de uma fronteira os recuos ou as novas modalidades do cristianismo e a rigidez do princípio segundo o qual uma sociedade organiza o acontecimento para se definir35 34 A vida do corpo se torna com efeito a alegoria o teatro da vida espiritual Esta é a corrente que se qualificou de psicológica Uma linguagem escrita em termos de doenças de levitações de visões de odores etc quer dizer em termos corporais desloca o vocabulário espiritual forjado pela tradição medieval Isto não é uma decadência mas uma outra situação cultural da experiência cristã N da T em espanhol no texto 35 Outro efeito ou signo desta estrutura o novo estatuto do padre A partir do momento em que a sociedade cristã não é mais totalizante e não pode mais portanto se definir apenas se diferenciando de outras totalidades o Turco etc a partir do momento em que ela se torna uma unidade particular na nação a diferenciação se coloca na distinção entre o padre e o leigo Durante muito tempo artesão homem de profissão rural dependente do senhor na organização da cristandade até o século XVI e freqüentemente bem mais tarde o padre se torna aquele graças a quem a Igreja se distingue como O problema se apresenta sob formas múltiplas e às vezes invertidas Por exemplo atribuise aos Selvagens americanos ou aos Sábios chineses o papel de representar uma verdade natural mas ligada à revelação por uma retomada da cronologia bíblica que se teria corrompido entre os colonizadores O pólo positivo é aliás oposto à Europa corrompida e infiel Por aí se encontra uma outra forma do oculto já que as civilizações adquirem assim um sentido místico e constituem a imensa alegoria do Deus que se vela no Ocidente Assim surge a nostalgia logo filosófica de uma verdade que se levanta mascarada no Oriente e que se obscurece nos espelhos onde o Ocidente acreditou apreendêla forma própria da estrutura bipolar nas mitologias do século XIX Pg 141 3 A relação com o passado Fato igualmente característico a relação com a tradição muda O retorno às fontes enuncia sempre o contrário daquilo em que crê pelo menos neste sentido que supõe um distanciamento com relação a um passado espaço que define exatamente a história através dela se opera a mutação da tradição vivida da qual se faz um passado objeto de estudo e uma vontade de recuperar aquilo que de um modo ou de outro parece perdido na linguagem recebida Desta maneira o retomo às fontes é também sempre um modernismo36 Como quer que seja os métodos exegéticos da época suas diferenças ou suas analogias com os métodos históricos a homologia progressiva entre os dois mas compensada por uma distinção freqüentemente inacessível entre os terrenos examinados profano ou santo a lenta substituição da época patrística pela época apostólica no interesse dos historiadores o terrorismo sutil que a erudição exerce sobre a teologia ou a apologética a triagem operada na história que se latiniza cada vez mais todos estes elementos estariam por estudar sendo o modelo do gênero a obra de A Dupront sobre Huet37 Eles caracterizam a sociedade religiosa de três maneiras sociedade religiosa da sociedade civil Ele tende a constituir a nova fronteira do sagrado ao mesmo tempo em que está definido por ela na prática ou na teoria 36 Cf a este respeito as observações metodológicas de Maria Isaura Pereira de Queiroz Reforme et révolution dans les sociétés traditionelles Anthropos 1968 p 162163 262 338342 37 Alphonse Dupront P D Huet et 1 exégèse comparatiste au XVI siécle E Leroux 1930 O autor mostra como pela inquietação apologética e pela própria imposição do método comparatista e erudito que ele utiliza Huet afinai inscreve a Bíblia no prodigioso trabalho de fabricação que preenche toda a antigüidade op cit 161 Por aí o exegeta é vítima de sua historiografia ele afoga a revelação na igualmente históricas a saber a que tem a consciência de faltar a tradição perdida a que rejeita para criar uma lenda ou para esquecêla a que fala dela mesma reinterpretando seu passado quer dizer seu outro o que não é mais Cada questão particular é o espelho dos grandes problemas de conjunto propostos à Igreja Tudo que diz respeito à interpretação tem aqui uma significação social E a exegese do passado deve ser incessantemente comparada com a forma que toma diante do outro com o qual coexiste o Selvagem o Chinês as culturas diferentes Conforme observa uma relação da Unesco38 o conhecimento do passado é estrutural no sentido de que também faz parte integrante dos modos de pensamento de cada povo é necessário acrescentar e de cada época A reinterpretação do passado o tipo do compreender histórico e do reemprego de elementos antigos têm um alcance suplementar na vida religiosa cristã quer se dê o papel da referência ao histórico original quer à remanescência da estrutura bipolar sinais de uma triagem entre o que é proposto como homogêneo ao presente ou fundamental quer dizer entre o que se tomou impensável e o que se tornou pensável39 Pg 142 II A INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA Que o conhecimento histórico faça parte integrante de um presente é também um problema que nos afeta e que exige uma elucidação da relação entre as nossas maneiras de pensar e aquelas das quais ouvimos falar Dito de outro modo não existe historiografia sem filosofia da história explícita ou oculta Eu me contento com algumas considerações gerais sobre dois pontos A História social e história religiosa A história social exerce muitas imposições das quais a história religiosa é tanto a vítima quanto a beneficiária Voume demorar no primeiro aspecto já que o segundo é fabulação Aquilo que ele combate como cristão o sábio genial confirma pela própria lógica de seus métodos científicos 38 SHCCS907 39 Daí a importância dos estudos consagrados às concepções e à organização da historiografia religiosa clássica Cf A Dupront Clairvoyence de Viel in Les Études philosophiques 1968 p 271295 Corrado Vivanti Lotta potitica e pace religiosa in Francia fra Croque e Seicento Turin Einaudi 1963 e a bibliografia de Y M Bercé in Bibliothèque de École de Chartes t 214 1966 p 281295 bastante evidente 1 Os modelos sociológicos ou ideológicos tendem a configurar um imperialismo e a definir uma nova ortodoxia Eles são necessários pois determinam um processo da pesquisa e portanto uma inteligibilidade da história Mas para nós são aquilo que a história deve oferecer uma resistência Do contrário toda sociedade diferente apareceria conforme a nossa ideologia ou a nossa experiência e sem esse desvio não se poderia mais falar verdadeiramente de historiografia Dito de outra maneira não podemos esquecer como dizia Maurice Crubellier citado por Pierre Goubert que a história social é ainda um projeto e uma maneira de ver um método e não uma verdade 2 Mais fundamentalmente o historiador estabelece espontaneamente como tarefa determinar o que um setor definido como religioso lhe ensina de uma sociedade assim o fazemos todos O que ele situa pelo termo sociedade não é um dos pólos de um confronto com a religião mas é o eixo de referência o modelo evidente de toda inteligibilidade possível o postulado atual de toda a compreensão histórica Nesta perspectiva compreender os fenômenos religiosos é sempre perguntarlhes outra coisa do aquilo que eles quiseram dizer é interrogálos a respeito do que nos podem ensinar a respeito de um estatuto social através das formas coletivas ou pessoais da vida espiritual é entender como representação da sociedade aquilo que do seu ponto de vista fundou a sociedade Nós pretendemos compreender referindoos à organização de sua sociedade o que eles disseram não apenas para justificar mas para explicar este estatuto social Aquilo mesmo que eles tinham que explicar através de uma verdade Deus a Providência etc veio a ser aquilo que toma as suas explicações Pg 143 inteligíveis para nós Do tempo deles ao nosso o significante e o significado foram rocados Postulamos uma codificação que inverta a do tempo em que estudamos40 A história religiosa do século XVII por exemplo questiona uma diferença entre dois sistemas de interpretação um social se quisermos e o outro religioso quer dizer entre duas épocas da consciência ou entre dois tipos históricos de inteligibilidade o nisso e o deles Também é necessário perguntarse qual é o sentido do empreendimento que consiste em compreender um tempo organizado em função de 40 Assim modelo do gênero o notável estudo de Pierre Vilar Les primitifs espagnols de la pensée économique in Mélanges Marcel Bataillon p 261284 que tira partido para uma história das teorias económicas dos grandes teólogos moralistas espanhóis dos séculos XVI e XVII um outro princípio de inteligibilidade do que o nosso 3 Por causa disto mesmo o aspecto religioso da história religiosa parece hoje passar de objeto histórico para o sujeito historiador O objeto religioso por exemplo os padres a prática sacramental a espiritualidade sendo doravante tratado em função de uma sociedade segundo critérios hoje comuns a todos e que não são mais religiosos o historiador crente não pode fazer mais do que introduzir sub repticiamente convicções subjetivas no seu estudo científico Estas motivações intervêm na escolha do objeto relativo a um interesse religioso ou na finalidade do estudo em função de preocupações presentes por exemplo a descristianização e suas origens a realidade de um cristianismo popular etc Elas enquadram como um antes e um depois o trabalho histórico sem ter relação intrínseca com ele Por um lado fazse história religiosa porque se é cristão ou padre ou religioso mesmo quando não se pode mais fazêla como cristão Por outro lado com outra finalidade mobilizamse os resultados a serviço da crença e esta intenção mais ou menos apologética provoca um certo número de distorções na pesquisa porque o fim visado modifica o processo que leva a ele Em outros termos a convicção do crente não tem uma relação interna com os postulados que seus métodos de trabalho implicam ela tende a se tornar uma pressão que busca apenas se utilizar dos resultados Esta pressão também se reconhece por exemplo na ilusão que consiste em se acreditar cristão apenas por ter aberto um canteiro em terreno objetivamente religioso e que cobre com o véu das intenções cristãs a lógica de uma compreensão histórica que deixou de ser religiosa Por uma espécie de ficção chegase a pensar que uma história é religiosa porque nossas motivações o são B Fato religioso determinação religiosa sentido religioso Esta relação entre as intenções cristãs e um tipo de compreensão Pg 144 histórica já coloca no presente da pesquisa o problema que deve ser igualmente elucidado no seu objeto no passado Sob a forma do trabalho historiográfico como sob a forma daquilo que ele nos ensina a respeito de um período ou mais exatamente sob a forma de uma relação a estabelecer entre nosso presente e nosso passado colocase um mesmo problema o que é religioso O que é apreendido como tal 1 O fato religioso Um exemplo tornará a pergunta mais precisa Uma pesquisa de sociologia religiosa histórica pode fornecer um certo número de indicações a respeito das práticas cristãs Mas ela deixa em aberto mesmo quando se considera a coisa evidente a interpretação que lhe vai ser dada Desta maneira como saber se o resultado não situará o historiador antes ou depois do momento religioso do qual pretende prestar contas Uma prática florescente poderia muito bem ser apenas a sobrevivência de convicções que se esboroam ou bem ao contrário a adoção precoce de uma linguagem cristã que ainda não teria sido vivida Por exemplo quem nos dirá a propósito da Bretanha do século XVII qual é a relação exata entre uma retração das práticas cristãs e uma vitalidade espiritual que talvez se tenha investido noutras maneiras de expressão não cristãs ou nãoreligiosas quer dizer não conformes ao que nós definimos como tal ou ainda entre a sacralização das multidões em função das missões populares e o fundo pagão do qual ela não pode ser senão a cobertura A imagem fornecida pela historiografia sociológica arriscase a ser retardatária no primeiro caso ou prematura no segundo conforme os fenômenos inventariados que a delineiam representem para nós um resto do passado cristão ou um verniz superficialmente lançado sobre um sistema religioso nãocristão e florescente Como tirar a dúvida Aqui o problema é o da relação entre o sentido vivido e o fato observado O historiador não pode nem se contentar com descrever o fato postulando cegamente a sua significação nem admitir como incognoscível uma significação que seria susceptível de uma expressão qualquer neste último caso a experiência religiosa seria a noite onde todos os gatos são pardos já que finalmente se admitiria um corte total entre o sentido vivido e as expressões religiosas Existe pois entre significante e significado uma relação a elucidar Mas isto não pode ser feito ao próprio nível do fato Pg 145 2 Determinação religiosa e determinação social Outro exemplo O erudito do século XVI tal como Van Helmont de cuja obra retemos apenas uma parte científica recortandoa conforme a nossa concepção de ciência organiza todo o seu trabalho de acordo com uma ótica religiosa que consiste em decifrar a Verdade inscrita no cosmo e no microcosmo41 Inversamente o beneditino erudito do século XVIII será classificado por nós no setor religioso ainda que empreenda um estudo definido pelas finalidades científicas que lhe impõe a epistemologia das Luzes A determinação da pesquisa do primeiro é religiosa mesmo que ela se exprima num domínio científico com o segundo ela já não o é mais mesmo que a sua posição social numa Ordem ou as suas motivações sejam religiosas Podemos abordar dois tipos de questões agora abertas em torno das quais giram opções metodológicas e teológicas a Ou bem se dirá que o objeto da história religiosa deve ser procurado não ao nível de uma localização objetiva relativa ao nosso próprio recorte daquilo que é religioso e daquilo que não o é e muito menos ao nível das motivações atestadas no passado mas ao nível de uma ordem ou de uma organização mental Por exemplo nós o vimos é evidente na segunda metade do século XVII que os tratados espirituais se organizam segundo os estados de vida quer dizer segundo um modelo social Uma configuração social e não mais uma hierarquização religiosa é a lei que determina as repartições e define o reemprego dos elementos cristãos retirados do passado O fato é ainda mais notável durante o século XIX a propósito da ciência ou da questão social uma sociedade que não é mais religiosa impõe às formulações religiosas sua racionalidade suas categorias próprias seus problemas seu tipo de organização É sem dúvida o que constatamos no lugar que a religião ocupa no interior da historiografia contemporânea Nesta perspectiva não haveria de história religiosa senão a história das sociedades religiosas b Podese perguntar também tratarseia do mesmo tipo de religião a da Idade Média a do século XVII ou a do século XIX O conceito e a experiência da religião não se referem à mesma coisa Tratase de sistemas entre os quais o termo comum de religião seria equívoco Desta perspectiva a história social desmistifica a história religiosa no singular e portanto a univocidade dos seus instrumentos conceituais mas não suprime a necessidade de histórias religiosas Pelo menos as que teriam como papel impedir que um tipo de interpretação se proponha como único Deste Pg 146 ponto de 41 J B VawHelmont Ortus medicine Amsterdã 1652 De quantos outros eruditos não se deve dizer o mesmo em cujas obras se omite como um resto insignificante tudo aquilo que é teológico Cf reagindo contra estas divisões abstratas impostas por classificações contemporâneas H Fisch The Scientist as Priest A Note on Robert Boyles Natural Theology in Isis 1953 p 252265 A ll sobretudo por ex Du monde elos à univers infini PUF 1962 R Lenoble Histoire de lidée de nature A Michel 1969 p 309337 A Wolf History of Science Technology and Philosophy in 16th and 17th Century Londres Allen 1935 etc vista elas se tornariam críticas com relação a modelos explicativos contemporâneos e assegurariam a resistência de outros passados defenderiam a própria história e por esta distância entre sistemas explicativos nunca verdadeiramente globais a possibilidade de uma opção quanto ao sentido desta história Tanto num caso como no outro será preciso pois inicialmente diferenciar as maneiras pelas quais os fatos religiosos supondose que estes fatos sejam idênticos funcionam quer dizer distinguir as ordens que determinam os reempregos destes fatos e portanto suas significações sucessivas isto antes e a fim de poder apreender qual é a relação histórica entre estas formas e assim nosso meio de compreendêlas ou de interpretálas fielmente Pg 147 Pgs 148 a 151 Notas Capítulo IV A FORMALIDADE DAS PRÁTICAS Do sistema religioso à ética das Luzes XVIIXVIII Este trabalho nasceu de uma pergunta como articular uma sociologia dos comportamentos e uma história das doutrinas A análise dos documentos que se referem às práticas religiosas nos séculos XVII e XVIII deve ter uma relação com a dos discursos ideológicos ou simbólicos Ainda é necessário tornar esta relação mais precisa Ela não é evidentemente redutível a uma causalidade imediata e unívoca Numa sociedade os símbolos coletivos e as idéias não são nem a causa nem o reflexo das mudanças1 Não se postulará mais que as condutas são organizadas à sua revelia por um implícito ou um inconsciente identificado ao nãodito das teorias e ao nãomostrado das práticas logo creditável com uma virtude explicativa indefinida de fato este desconhecido preencheria com a própria ideologia do historiador o buraco vazio deixado pelos seus conhecimentos ou pelos seus métodos Os deslizamentos sócioculturais que se operam nos séculos XVII e XVIII se referem aos quadros de referência Eles levam de uma organização religiosa a uma ética política ou econômica É um terreno privilegiado para a análise das mutações que afetam ao mesmo tempo as estruturas e o crível 2 em uma sociedade Ora estas mudanças parecem se manifestar ao nível das praticas por uma série de funcionamentos novos que ainda Pg 152 não são acompanhados de expressões teóricas adequadas nem de esboroamentos espetaculares Entretanto já as peças do conjunto começam a girar de outra maneira O conteúdo das práticas não muda mas muda o que eu chamo de sua formalidade Deste ponto de vista parece que se pode apreender 1 processos de transição e tipos de mobilidade ocultos no interior de um sistema neste caso religioso que entretanto se mantém objetivamente 2 uma articulação possível entre os princípios investidos na prática e as teorias que se Estudo publicado em La Societa religiosa nelletà moderna Nápoles Guida Ed 1973 p 447509 1 Jacques Berque o lembrou ainda recentemente em Logiques plurales du progrès in Diogène n 79 1972 p 326 analisando os desenvolvimentos desiguais mas compensados de dimensões distintas morfológica tecnológica estética sacra etc numa sociedade 2 A noção de crivei questiona os quadros de referência e aquele sobre o que uma sociedade apóia sua possibilidade de pensar Cf por ex M de Certeau La Culture au pluriel coll 1018 1974 p 1134 Les Révolutions du croyable elaboram na produção filosófica 3 finalmente de um modo mais geral relações entre sistemas momentaneamente ou por muito tempo coexistentes nãoredutíveis um ao outro nem localizáveis em um dos níveis de uma estratificação social3 nem susceptíveis desta hierarquização maniqueísta que classifica uns ao lado do progresso e outros entre as resistências Da religião à ética Um deslocamento nos quadros de referência Nos séculos XVII e XVIII ocorreu uma ruptura depois declarada4 entre religião e moral que tomou efetiva sua distinção e problemática sua conexão ulterior Mudou a experiência e as concepções que delas haviam tido as sociedades ocidentais Ao sistema que fazia das crenças o quadro de referência das práticas se substituiu uma ética social que formula uma ordem das práticas sociais e relativiza as crenças religiosas como um objeto a utilizar Colocandose o problema nos termos que se tomaram os nossos o que se inverte pois é ao mesmo tempo a relação entre a moral e a religião e a relação que a prática mantém com a teoria Para esboçar inicialmente esta trajetória de uma maneira global e tal como se anuncia podese dizer que os séculos XVII e XVIII mostram a história de um divórcio Não que as relações entre moral e religião tenham sido harmoniosas ou fáceis anteriormente Muitos trabalhos o demonstram elas foram tempestuosas nunca estabilizadas por exemplo naquilo que se refere à usura à sexualidade e ao poder temporal5 mas o princípio referencial de sua união não fora posto em causa No decorrer da Idade Média e ainda no século XVI continuase admitindo que a moral e a religião têm uma mesma fonte a referência ao Deus único organiza em conjunto uma revelação histórica e uma ordem do cosmo ela faz das instituições cristãs a legibilidade de uma lei do mundo A sociedade se articula nos termos de uma crença integrativa Ao nível da prática que se explicita na superfície visível da sociedade quaisquer que sejam as profundidades rurais que parecem ter escapado ao cristianismo a vida Pg 153 3 Quer dizer que não é possível identificar sistemas mentais a níveis sociais Existem dois tipos de recortes que freqüentemente se cruzam mas que não são redutíveis um ao outro 4 No decurso do meioséculo transcorrido entre 1700 e 1750 a religião e a moral acabam a transformação pela qual tomaram o homem como centro no lugar de Deus escreve Roger Mercier La Réhabilitation de la nature humaine 17001750 Villemomble éd de La Balance 1960 p 441 5 Cf sobretudo e evidentemente os trabalhos de John T Noonan The Scholastic Analysis of Usury Cambridge Harvard University Press 1957 e Contraception A History of its Treatment by the Catholic Theologians and Canonists ibid 1965 trad fr Contraception et mariage Cerf 1969 privada assim como a vida profissional e pública se movem num quadro cristão6 a religião envolve as condutas Nos séculos XVII e XVIII esta unidade se fende depois se esboroa As Igrejas se dividem e se vê romper a aliança institucional entre a linguagem cristã enunciando a tradição de urna verdade revelada e as práticas proporcionadas a uma ordem do mundo A vida social e a investigação científica pouco a pouco abandonam as infeudações religiosas As dependências eclesiais opondose se relativizam elas se fazem de determinações contingentes locais parciais Tomase necessário e possível encontrar uma legalidade de outro tipo Instalase inicialmente uma axiomática nova do pensamento e da ação como terceira posição no intermédio das duas Igrejas adversas católica e protestante Progressivamente ela define o próprio solo que se descobre sob a fragmentação das crenças Assim se constitui uma ética autônoma que tem por quadro de referência a ordem social ou a consciência JeanJacques Rousseau designa a mutação que se completou quando escreve a Voltaire O dogma não é nada a moral é tudo7 Da mesma forma para a Enciclopédia a moral prevalece sobre a fé porque quase toda a moral é de natureza imutável e permanecerá por toda a eternidade enquanto a fé não mais subsistirá e será transformada em convicção8 Com a ética a prática social se toma o lugar em função do qual se elabora urna teoria das condutas Ao mesmo tempo a doutrina de ontem se transforma num fato de Crença é uma convicção quer dizer uma opinião combinada com uma paixão ou uma superstição em suma o objeto de uma análise articulada por critérios autônomos Dito de outra maneira a ética representa o papel antigamente outorgado à teologia Uma ciência dos costumes de agora em diante julga a ideologia religiosa e seus efeitos lá onde a ciência da fé classificou os comportamentos em uma subseção intitulada teologia moral e hierarquiza as condutas segundo os códigos da doutrina Desta evolução existem vários sinais o primado epistemológico da ética na reflexão sobre a sociedade a apreciação da religião segundo valores que não são mais os seus o bem comum a exigência da consciência o progresso etc a retirada da religião para as práticas religiosas ou o seu alinhamento com as categorias impostas por uma 6 Cf Lucien Febvre Le Problème de lincroyance au XVIe siècle A Michel 1942 1968 p 307323 Prises de la religion sur la vie 7 Rascunho de uma cana cit in PierreMaurice Masson La Religion de JeanJacques Rousseau Paris Hachette 1916 t II p 48 Nós não temos a mesma fé acrescentou JeanJacques nós temos pelo menos a mesma moral A moral fornece os princípios universais enquanto que os dogmas e as crenças pertencem ao domínio da particularidade 8 Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences des arts et des métiers nova ed t XVII Genebra 1778 verbete Foi p 1019 sociedade a marginalização do culto com relação à lei civil ou moral etc É interessante confrontar com este esboço geral de uma trajetória uma análise das práticas enquanto enunciadoras de sentido Numerosos estudos autorizam formular a este respeito algumas hipóteses que investigações Pg 154 particulares poderão invalidar particularizar ou confirmar Elas estão classificadas aqui em etapas destinadas a ressaltar algumas conexões apreensíveis a partir das práticas religiosas 1 Da divisão das Igrejas à razão de Estado século XVII 2 A politização dos comportamentos uma nova formalidade das práticas 3 O praticante uma alternativa entre o dever de estado e o profetismo 4 A emancipação de uma ética legalidade e utilidade no século XVIII 5 A redução ao cultural as leis do grupo religioso I DA DIVISÃO DAS IGREJAS A RAZÃO DE ESTADO SÉCULO XVII Em fins do século XVI e início do XVII a divisão das Igrejas não foi apenas o agente revelador de uma desagregação dos princípios e das estruturas de base da Idade Média9 Ela acelera esta desagregação Tem um efeito de dissuasão Seu impacto é aliás multiplicado pela descoberta de outras religiões no Novo Murado na África ou na Ásia Antes uma unicidade de quadro de referência impunha seu próprio sistema teológico à própria heresia ou à defesa de uma autonomia dos direitos reais Por isso as manifestações sociais das heresias medievais são teológicas precisamente por não terem outra indicação e porque a teologia equivalente medieval dos nossos códigos sociológicos ou econômicos era o único modo pelo qual uma diferença podia se indicar A alteridade portanto se encontrava eliminada apagada ou integrada não apenas sem bases políticas ou sociais bastante fortes mas da mesma forma ou talvez mais ainda por falta de poder se articular como diferente com relação ao sistema de referência sem ter para indicar sua prática outro código senão aquele doutrinal que ela questionava A divisão e a incerteza 9 Josef Lortz La Réforme de Luther trad fr Cerf 1970 t I p 22 Com a pluralização destes sistemas se cria um novo espaço social A heresia se torna a alteridade que se insinua ao lado da lei comum10 num espaço próprio que não se pode reduzir a uma antilei Esta situação é sempre dificilmente tolerável pois questiona a coerência do grupo Com efeito no século XVI ela é vivida na agressividade mútua entre os grupos Portanto não pode ser senão transitória antes que se instaure uma outra lei Durante este período se multiplicam as terapêuticas violentas contra Pg 155 a hemorragia dos sistemas integradores guerras de religião lutas sangrentas contra a feitiçaria etc e as pesquisas que tentam reconstituir uma ordem nova As referências englobantes e os discursos dogmáticos que vêm da tradição aparecem como particularidades Estão lá na própria experiência dos crentes elementos entre outros num quadro onde tudo fala de uma unidade desaparecida O que era totalizante não é mais senão uma parte nesta paisagem em desordem que requer um outro princípio de coerência Os critérios de cada comunidade crente se encontram por isso relativizados Ao lado destas formações religiosas parcializadas se descobrem zonas inteiras como os Novos Mundos impossíveis de enquadrar nos balizamentos tradicionais Desta maneira massas populares sem âncoras e como que errantes através dos enquadramentos sóciais e simbólicos são entregues a alucinações feiticeiras que esta ausência cria O ceticismo que se estende atesta a mesma ausência mas nos meios cultivados11 Feitiçaria e ceticismo com efeito esboçam o vazio que uma Razão universal ou uma Lei natural irão preencher De um ponto de vista religioso a incerteza grande problema da época está sempre ligada à divisão De Montaigne a Pascal a reflexão é invadida pela dúvida que faz nascer a pluralidade Vejo muitas religiões contrárias e portanto todas falsas12 escreveu Pascal Uma apologética prolifera numa atmosfera onde as violências e as controvérsias entre grupos religiosos crescem com a suspeita que atinge seus imperativos particulares Mesmo a filosofia cristã é mobilizada pela tarefa que Malebranche definiu como 10 Cf Alphonse Dupront Réflexions sur lhérésie moderne in J Le Goff Ed Hérésies et sociétés Mouton 1968 p 291300 a propósito deste fenômeno novo que é a heresia em praça pública 11 Cf Richard H Popkin The History of Scepticism from Erasmus to Descartes Harper Torchbooks 1968 e os numerosos artigos do autor sobre o assunto 12 Blaise Pascal Pensées Brunschvicg frag 693 Pléiade 1954 p 1191 Descobrir através da razão entre todas as religiões aquela que Deus estabeleceu13 Esta apologética se inscreve sobre um fundo de perplexidade e angústia Calvino já lhe faz eco sublinhando que o objeto desta angústia não é a resistência dos Turcos ou dos Pagãos não ficaríamos espantados com isto diz ele mas a multiplicação daqueles que vem desmanchar peça por peça a união de nossa fé para perverter a verdade de Deus14 O escândalo está do lado de dentro Ele nasce da incoerência interna Não é a religião escreve Du Plessis Mornay em 1581 o meio de reunir e de reconciliar Ora eis que o meio de unir está dividido Existe um ou vários15 Para retomar uma imagem cara a este autor a ponte se fragmentou em uma pluralidade de religiões16 Para reencontrar a certeza através da unidade é preciso pois ou remontar a uma religião natural mais fundamental que as religiões históricas todas contingentes ou tentar levar para uma destas religiões todas Pg 156 as suas rivais que se hão de considerar falsas graças ao estabelecimento de marcas garantindo a verdadeira17 ou buscar na política ou mesmo na ciência alhures ainda um outro meio de unir que desempenhará daí por diante o papel até então representado pela religião ou ainda finalmente com Descartes instalarse durante o tempo da pesquisa nesta moral por provisão cuja primeira regra era para ele obedecer às leis e aos costumes do meu país guardando sempre a religião na qual Deus me fez a graça de ser instruído desde minha infância18 Através destes deslocamentos a religião começa a ser percebida do exterior Ela é classificada na categoria do costume ou na das contingências históricas A este título se opõe à Razão ou à Natureza19 No século XVIII será considerada com um olho já etnográfico pelos Observateurs de lhomme20 O próprio termo que a designa muda de sentido Religião não significa mais uma Ordem religiosa ou a Igreja no singular 13 Malebranche Entretiens sur la métaphysique et la religion Vrin 1964 t II p 178 14 Einos em tal perplexidade e angústia acrescentou Calvino que não sabemos o que fazer E é isto que perturba hoje tanta gente simples Que faremos Pois vemos tantas disputas na Igreja tantas opiniões diversas é melhor não indagar nada Calvino se dedicou a acalmar esta inquietação Cf Comentário sobre o capítulo 13 do Deuteronômio in Corpus Reformatonim voL LV J Calvin Opera Brunswick 1884 c 229 15 Philippe Du Plessis Mornay De la vérité de la religion chrétienne Paris 1581 cap 20 16 Cf La Mothe Le Vayer Cinc dialogues Mons 1671 o diálogo De la diversité des religions 17 Cf por exemplo René Voeltzel Vraie et Fausse Église selon les théologiens protestants français du XVlle siècle PUF 1956 p 99 ss sobre a pesquisa das marcas da verdadeira Igreja 18 René Descartes Discours de la méthode 3 parte ed OEuvres complètes Gamier 1963 p 592 19 Robert Lenoble Histoire de lidée de nature A Michel 1969 p 283 resume assim de muito a posição Nós seguimos costumes mas a Razão e a Natureza estão alhures 20 Cf Sergio Moravia La Scienza delluomo nel Settecento Bari Laterza 1970 p 80112 religião de agora em diante se pode dizer no plural21 É uma positividade sócio histórica ligada a um corpus de hipóteses abstratas Aquilo que Bayle ou Fontenelle chama o sistema da religião cristã22 existe aí um conjunto que é preciso compreender criticar ou situar segundo critérios que não são os seus O quod creditur o que é acreditado é dessolidarizado da fides qua creditur a fé que faz crer ele se transforma em crença no sentido objetivo do termo O conteúdo da crença se oferece à análise a partir de um distanciamento com relação ao ato de crer A religião tende a se tornar um objeto social e portanto um objeto de estudo deixando de ser para o indivíduo aquilo que lhe permite pensar ou se conduzir Ateísmo feitiçaria mística Um ateísmo23 se desenvolve durante o segundo terço do século XVII os Libertinos eruditos24 Na verdade ele desaparecerá breve diante da ordem política que Luiz XIV estabeleceu mas não foi senão parcialmente oculto e recoberto pelo poder sairá da sombra no início do século XVIII Esta irrupção libertina de uma moral sem religião no coração do século XVII deve ser ligada a outros sintomas contemporâneos a explosão da feitiçaria nos meios populares ou as possessões diabólicas nas cidades25 a invasão mística nestes mesmos anos26 Ateísmo feitiçaria mística estes três fenômenos sincrônicos traduzem 21 Georges Gusdorf Dieu la nature lhomme au siècle des Lumières Payot 1972 p 45 22 Já em Pascal a palavra tem um sentido pejorativo cf Pensées Br fr 194 nota No século XVIII na Encyclopédie sistema designa um conjunto de princípios abstratos na realidade hipotéticos que antecipa muito rápido as experiências e as observações Mais geralmente escreve o autor do verbete Sistema o cartesianismo que sucedeu ao peripatetismo pôs na moda o gosto pelos sistemas Hoje graças a Newton parece que se abandonou este preconceito Encyclopédie nova ed op cit t XXXII 1779 p 305 Jean François Delamare La Foi justifiée de tout reproche de contradiction avec la raison Paris 1762 via no uso da palavra por Bayle o sinal da incredulidade para os utilizadores deste termo escreve ele tudo é sistema em fato de religião porque tudo é problemático nesta matéria in Migne Démonstrationsévangéliques t II 1843 col 861 23 Sabese que no século XVII ateu ateísmo remetiam inicialmente à divisão das Igrejas Protestantes e católicos tratavamse mutuamente por ateus à atéia a religião do outro No sentido do século XVIII o ateu do século XVII é o Libertino 24 Cf o livro sempre fundamental de René Pintard Le Libertinage érudit dans la première moitié du XVlle siècle Boivin 1943 25 Cf R Mandrou Magistrats et sorciers en France au XVIIe siècle Paris 1968 M de Certeau La Possession de Loudun Paris 1970 A Macfarlane Witchcraft in Tudor and Stuart England Londres 1970 Keith Thomas Religion and Decline of Magic Londres 1971 Julio Caro Baroka Les Sorcières et leur monde Paris 1972 etc 26 Cf evidentemente a Histoire littéraire du sentiment religieux de Henri Bremond e J Orcibal La Rencontre du Carmel thérésien avec les mystiques du Nord Paris 1959 L Cognet La Spiritualité moderne Paris 1966 M de Certeau Mystique au XVIIe siècle in Mélanges de Lubac Paris 1964 t II p 267291 e Le Langage mystique expérience et société au XVIIe siècle no prelo igualmente o fato de que as Igrejas se tornam inaptas para prover referências integrativas à vida social Divididas entre elas e nelas mesmas as Igrejas se localizam Não mais fornecem ao pensamento ou à prática Pg 157 o enunciado de leis gerais Também com os fenômenos que tomo como três variantes de uma nova estruturação social se produzem dois movimentos recíprocos Por um lado elementos doutrinais até então organicamente combinados se desarticulam entre os libertinos as condutas do saber se dessolidarizam da razão unitária da qual a fé era o princípio na feitiçaria os símbolos coletivos de dependência religiosa se destacam das Igrejas para formar o léxico imaginário de uma antisociedade entre os espirituais a experiência pessoal aprofunda itinerários biográficos ou psicológicos estranhos às linguagens institucionais e teológicas que até então organizaram seu desenvolvimento Por outro lado esta desarticulação obedece a clivagens sociais que se acentuam mesmo que as fidelidades religiosas continuem a representar um papel importante elas se sobrepõem e se repartem segundo categorias sociológicas os libertinos são cidadãos senhores da escrita já dotados do lugar social e do instrumento técnico através dos quais irá se formar o novo poder burguês a feitiçaria se recruta nos meios rurais menos enquadrados e como que massificados pelas próprias mobilidades que subvertem as hierarquias locais os místicos se encontram freqüentemente entre estes magistrados submetidos à contradição entre a fidelidade a uma tradição cultural e a diminuição de seu poder econômico ou político Tudo ocorre como se os elementos doutrinais desorbitados de um sistema integrador sofressem então gravidades sociais diferenciadas Os lugares sociais se tomam determinantes mas a linguagem religiosa ainda serve para designálos A distribuição da sociedade adquire uma capacidade classificatória Pouco a pouco modela uma ordem nova mesmo que esta evolução permaneça oculta sob os símbolos culturais e seja traída apenas pelas reorganizações que neles opera Já a verdadeira eclesiologia tem a forma de uma política antes de se tomar mais tarde uma sociologia Pelo fato de se efetuar segundo repartições cada vez mais sociais á fragmentação em curso designa algo que está nascendo Ela se organiza também em tomo de alguma coisa que está desaparecendo isto é a virtude integrativa que a referência religiosa representou até aí Eis que este princípio de unidade se verifica falho Sua incerteza é marcada em cada grupo pela dúvida crítica libertina ou pelos retornos do recalcado pagão na feitiçaria ou pelas viagens para os segredos invisíveis da linguagem recebida provocados pela ausência de Deus A perda do objeto absoluto está inscrita nestes três movimentos ainda que em caracteres relativos ao que especifica cada um destes grupos É a questão a qual eles respondem diferentemente Pg 158 A razão de Estado Por não serem ainda senão sintomas estas correntes vão desaparecer quase simultaneamente cerca de 1650166027 à medida que se impõe a lei política em substituição à ordem da qual elas manifestavam o estilhaçamento A partir de meados do século o poder real não se equivoca quando reprime igualmente os ateus os feiticeiros e os místicos tendo em vista defender não mais uma ortodoxia religiosa mas a razão de Estado estes movimentos eram os sintomas de uma ordem se desfazendo Não podem mais ser tolerados pela política de uma ordem que irá substituir a religião no seu papel de quadro de referência de uma sociedade Inaugurado sob Richelieu em meio a dilaceramentos e no contexto do ceticismo que envolve todas as doutrinas o fortalecimento do Estado altera as antigas estruturas mentais28 fundamentalmente porque reorganiza as condutas sem lastros de critérios e de quadros Quaisquer que sejam as crenças consagradas à incerteza o que é então percebido como ausente e necessário é uma razão da prática É preciso uma axiomática da ação A ciência moderna irá se formar buscando uma ordenação dos procedimentos Problema das paixões isto é da ação impulsionada pelas irrupções de um querer insondável desarticulado da linguagem intelectual ou social Daí durante algum tempo a moral excepcional ambiciosa instável e arriscada do homem nobre do herói do estóico ou do místico em suma do sublime selvagem e raro a moralidade reflui para o ato individual como cada vez que as referências normativas de uma sociedade se enfraquecem A razão de Estado vem preencher o vazio arrumando os comportamentos Apoiada em Tácito e Maquiavel o país de Maquiavel e de Tácito dizia Balzac ela ultrapassa de fato no terreno das práticas a contradição entre razão e violência 27 Cerca de 1660 assistese a uma retomada geral das expressões ou das formas de intransigência doutrinal Então elas se politizam ou mais geralmente cedem diante da lei de coesões políticas ou socais É por esta data que o jansenismo assume um aspecto mais erudito ou mais social ou que aparecem entre as Igrejas opostas os moderadores de religião Christopher Hill fixa também em 1660 a queda do milenarismo inglês Antichrist in SeventeenthCentury England Oxford 1971 p 164 Parece ocorrer aí um fenômeno comum a toda Europa ocidental 28 Etienne Thuau Raison dÉtat et pensée politique à lépoque de Richelieu A Colin 1966 p 10 Gestionada pelos Grandes é apenas a eles que compete arrazoar29 a respeito dos negócios Uma ordem se impõe com o poder real acompanhada deste humanismo clássico que cético em matéria de ideologias cínico a propósito do poder lúcido em esquadrinhar as taras da natureza deve mais à filosofia do que à religião30 Rainha de todas as virtudes31 a força funda uma ordem Como pensa Hobbes esta legitimidade se origina na ilegitimidade de uma violência Ela constrói o círculo do Estado sobre os três pontos que vão organizar a escrita de uma sociedade os negócios uma prática os Pg 159 Grandes um poder uma ordem uma razão e cuja certeza se representa em um Deus mortal o Rei Assim a razão do século XVII numa ampla medida nasce da ação coletiva das necessidades práticas da empresa estatal Ela desenvolve no campo das atividades nacionais ou científicas uma vontade de se tornar senhora e possuidora da natureza social A razão de Estado já reordena o país como empresa capitalista e mercantilista32 Ela também enquadra as crenças Governar é fazer crer33 Nesta racionalização política das convicções e das mentalidades Mersenne via como legítima uma manutenção dos espíritos Campanella uma guerra espiritual uma cruzada o equivalente do combate espiritual Ela mobiliza os pregadores e os homens de letras a serviço do poder orienta a instrução do público como batalha pedagógica agrava os delitos de opinião O que existe de tão espantoso no fato das tarefas que se referem à moral e ao saber serem recentradas no Príncipe lugar estratégico do sentido O que existe de espantoso no fato da instrução do Príncipe se tornar à prática por excelência aquela onde a ordem política nova focaliza a formação de uma linguagem social referencial A instrução do Príncipe é o emprego a propósito do qual freqüentemente se ouviu dizer do próprio Pascal que não havia nada para o que desejasse mais contribuir se nela estivesse engajado e que sacrificaria voluntariamente sua vida por 29 Esta expressão de Jérémie Ferrier um espíritoreligioso em Catholique dÉtat 1625 tem mil equivalentes apegas o poder raciocina exercendo a razão que ele criou 30 Paul Bénichou Morales du Grand Siècle Gallimard 1948 p 223 31 Cit in E Thuau op cit p 185 32 E Thuau op cit p 146 Cf ibid p 406 A transformação que a razão de Estado opera no pensamento político está ligada à transformação da sociedade e a passagem de uma França rural a uma França mercantil e burguesa O Estado de Richelieu conquistador e organizador moderno e mercantilista aparece sob certos aspectos como uma das primeiras formas da empresa capitalista Seu racionalismo e sua política de intervenção a mais não poder a busca do lucro erigida em lei sua concepção da vida internacional como competição permanente sua semimoral que se justifica pela preocupação com o bem comum são outros tantos traços da empresa capitalista nascente 33 E Thuau op cit p 169 ss uma coisa tão importante34 II UMA NOVA FORMALIDADE DAS PRÁTICAS A POLITIZAÇÃO DOS COMPORTAMENTOS Uma coisa é a constituição de uma razão prática com o fortalecimento do poder monárquico outra é o reajustamento das formações religiosas cuja divisão interna foi compensada pelo fortalecimento do Estado mas que por outro lado não desapareceram Elas funcionam muito bem Mas como estes dois sistemas se comunicam um com o outro Onde buscar as conexões que se estabelecem desde que não se suponha no poder político a capacidade de estender por toda parte a razão que funda e de retirar sua pertinência ou sua existência das condutas e das crenças que continuam a se propor como religiosasAs práticas permitem apreender os modos de uma nova combinação elas definem com efeito o campo onde se efetua o deslocamento que irá refluir sobre as ideologias Sua formalidade diferente manifesta seu reemprego com um outro funcionamento Pg 160 A formalidade das práticas A nação se normaliza como uma sociedade de ordens em torno da casa real que lhe fornece ao mesmo tempo seu centro e como um espelho a possibilidade de se representar a ela mesma35 Ocorre uma retomada das estruturas religiosas mas em outro regime As organizações cristãs são reempregadas em função de urna ordem que elas não mais determinam Traço significativo reconhecese ao rei o privilégio de ter Deus a seu lado e perto de si36 As Igrejas se encontram como Deus ao lado do Rei Se Luiz XIV se inscreve no movimento da ContraReforma ele lhe inverte o princípio por sua maneira de fazêlo desabrochar37 Certamente ele é cada vez mais conservador em matéria religiosa à medida que seu poder se afirma Seu grande desígnio parece visar uma restauração da Igreja fendida mas na realidade tem por fim dar ao Estado 34 B Pascal OEuvres complètes Grands Écrivains de la France Hachette t IX p 369 a frente os Discours de feu M Pascal sur la condition des Grands 35 Cf a análise aguda que Michel Foucault fez das Meninas de Velasquez Les Mots et les choses Gallimard 1966 p 1931 quadro que organiza o reflexo do rei 36 Cit in E Thuau op cit p 184 37 A data de 1685 revogação do Edito de Nantes pelo Edito de Fontainebleau marca na França ao mesmo tempo o sucesso objetivo e o fracasso religioso dos esforços da ContraReforma Cf a peremptória conclusão de Jean Orcibal Louis XIV et les protestants Vrin 1951 p 159167 sua tranqüilidade e à autoridade seus direitos38 Revolução subreptícia o fim transformouse em meio As instituições políticas utilizam as instituições religiosas infiltram nelas seus critérios dominamnas com sua proteção destinamnas aos seus objetivos O que é novo portanto não é a ideologia religiosa o poder impõe um retorno à ortodoxia católica é a prática que de agora em diante faz a religião funcionar a serviço de uma política da ordem A investidura religiosa de que esta ordem é credora está destinada a captar as organizações existentes e consolidar a unidade política Neste nível o sistema cristão enfraquecido se transforma em teatro sagrado do sistema que lhe sucede Assegura também o trânsito das consciências cristãs para uma nova moralidade pública Esta insinuação da razão de Estado sob a cobertura daquilo que ela substitui aparece com uma politização dos comportamentos se entendermos por politização o movimento para um sistema que articula as condutas em termos de forças presentes de contratos sociais que hierarquizam estas forças e de valores comuns postulados por estes contratos Mas para notar as modificações que se efetuam nesta razão prática para revelar a ordem nova que se inscreve nos comportamentos tradicionais a análise de seus conteúdos não é suficiente as mesmas idéias ou as mesmas instituições podem se perpetuar no momento em que mudam de significação social Assim acontece com as concepções ou com as organizações religiosas no final do século XVII Elas prosseguem seu caminho Mantêmse acrescidas de alguns elementos que já são o indício de um outro conjunto Entretanto da mesma forma que um sistema de pensamento se Pg 161 especifica sem dúvida pela invenção de algumas noções a mais fálo mais ainda por unia organização diferente das idéias que recebe de fora quer dizer por uma maneira própria de encaminhálas na totalidade de um discurso Também as crenças e as instituições se põem a caminhar diferentemente denunciando assim urna dinâmica de outro tipo da qual uma recapitulação ulterior poderá apreender os princípios para fazêla aceder ao estatuto da teoria Mesmos intactas nelas mesmas as condutas se inscrevem em outras trajetórias sociais Obedecem a critérios classificamse segundo categorias visam objetivos que mudam Estas questões revelam de uma formalidade das práticas práticas da linguagem práticas profissionais ou crentes etc análoga a que P Bourdieu chama 38 Uma palavra de Luiz XIV citada em J Orcibal op cit p 94 n 13 uma lógica em estado prático39 Esta formalidade está mais ou menos de acordo com os discursos oficiais ou teóricos ela os questiona já que organiza também uma prática da leitura ou da audição dito de outra forma uma prática destes discursos sem falar das práticas que eles esquecem ou exilam Uma das tarefas da história consiste em medir a distância ou as relações entre a formalidade das práticas e a das representações por aí se pode analisar com as tensões que trabalham uma sociedade na sua espessura a natureza e as formas de sua mobilidade Reempregos Sob o Antigo Regime e particularmente no século XVII as condutas e as concepções religiosas apresentam um terreno privilegiado para esta análise As estruturas religiosas começam a girar diferentemente como que tomadas por massas no elemento político É necessário aterse à erosão destas estruturas e mais ainda a seus novos movimentos para apreender a transformação em curso No interior das condutas religiosas existe toda a espécie de indícios que permitem tomar precisos os modos mais ou menos explícitos mais ou menos novos sob os quais podese apresentar a formalidade de uma prática Uns são de tipo diretamente político Estes são os mais evidentes Assim o culto monárquico e a religião do rei entre os protestantes40 têm seu equivalente mais sólido entre os católicos com a docilidade eclesiástica diante do poder com o sentimento realista que relativiza a dependência romana qualificada de ultramontana e impulsiona a Igreja de França para um galicanismo político 41 muitas vezes próximo do cisma enfim com o fato de que a partir de 1675 as Assembléias do Clero Pg 162 39 Pierre Bourdieu Genèse et structure du champ religieux in Revue française de sociologie t XII 1971 p 310 ss S J Schmidt Sprachliches und soziales Handeln Uberlegungen zu einer Handlungstheorie der Sprache in Linguistische Berichte t II 1969 p 6470 se interessa na perspectiva de uma sóciolingüística pela formalidade dos atos sociais e pelos sistemas normativos da ação É uma maneira de notar o problema que colocamos aqui 40 Cf por exemplo Émile Léonard Histoire générale du protestantisme t II P U F 1961 p 362 ss 41 A expressão é de Victor Martin que caracteriza assim o conteúdo do primeiro dos quatro Artigos aprovados pela Assembléia do Clero em 1682 a saber a independência absoluta do rei no temporal Le Gallicanisme politique et le clergé de France Paris 1929 Cf também Jean Orcibal LIdée dÉglise chez les catholiques du XVIIe siècle in Relazioni del X Congresso Internazionale di Scienze Storiche Roma 1955 vol IV p 111135 É necessário acrescentar que a eclesiologia ultramontana obedece aos mesmos critérios Assim para Bellarmin a segurança e a garantia da autoridade pontifical se fundam na sua conformação visível aos modelos políticos cc Pierre Eyt Lordre du discours et lordre de lÉglise Hypothèse sur les structures profondes dun texte des Controverses de Bellarmin in Mélanges dhistoire religieise offerts à Mgr E Griffe Bulletin de Litt ecclésiastique t LXXIII 1972 Toulouse 1972 p 230249 estão completamente na mão da Corte42 um funcionamento idêntico ultrapassa a divisão entre Igrejas e as faz caminhar segundo o sistema político que denegam em vão suas teologias que permaneceram diferentes As religiões opostas seguem trajetórias idênticas As operações obedecem a direções obrigatórias traçadas pelo espaço político em que as Igrejas se movem Isto não é fraqueza ou defeito de lucidez dos homens Verseá que a posição da recusa ou do Refúgio sofre e manifesta a mesma lei ainda que de um outro modo Tratase inicialmente das atrações e deslocamentos que sua combinação com um outro mais forte provoca num sistema Se passarmos a práticas particulares constatamos o mesmo tipo de disfunção Nos Bureaux de Charité o critério segundo o qual se escolhem os pobres a socorrer não é apenas a pertença à municipalidade ou ao mesmo meio social nobres empobrecidos como já era o caso no século XVI mas a possibilidade ou a efetividade de uma conversão ao catolicismo instrumento de unidade nacional43 As doações feitas pelos particulares e pelas coletividades leigas aos colégios ou missões parecem organizar uma geografia de interesses políticos e de alianças sociais44 Existe um controle crescente dos tribunais reais sobre as questões religiosas e uma pertinência nova dos negócios de Estado nos processos eclesiásticos45 A obediência religiosa se submete a um lealismo mais fundamental que baseia a obediência ao rei46 num direito divino e 42 J Orcibal Louis XIV et les protestants op cit p 93 43 Assim exemplo entre mil os Bureaux de Charité são para o abade du Chaila um meio de conversão cf JeanRobert Armogathe Missions et conversions dans le diocèse de Mende au XVIIIe siècle tese de E P H E 1970 dat p 134 ss e a conversão um meio de unidade 44 Por exemplo indicações a este respeito são fornecidas por Ch Berthelot du Chesnay Les Missions de saint Jean Eudes Paris 1968 ou por M Venard Les missions des Oratoriens dAvignon aux XVIIe et XVIIIe siècles in Revue dHistoire de lÉglise de France t LVIII 1962 p 1638 freqüentemente não sempre o lugar e o tempo são fixados pelos doadores assim como os objetivos associando a instrução à luta contra a licença e o crime Um estudo sistemático das atas de doação revelaria sem dúvida uma geografia mental e política tanto no caso dás missões como no dos colégios apesar das condições propostas pelas Congregações religiosas interessadas Sobre os dons e legados feitos às Escolas cf as preciosas indicações de F Léon de Marie Aroz Les Biens fonds des Éeoles chretiennes et gratuites pour les garçons pauvres de la ville de Reims au XVllle siècle 1970 t I Reims p XXVXXVI e 157 45 Desde os processos de feitiçaria até os debates doutrinais sobre o jansenismo por exemplo os assuntos religiosos manifestam todos este desenvolvimento 46 Mesmo entre os ultramontanos tradicionais que são os jesuítas a submissão política se torna uma verdadeira obrigação de consciência ela leva vantagem sobre a obrigação religiosa porque é mais antiga e mais forte O Padre de La Chaize escrevia em 1681 a seu superior geral o Pe Oliva que as ordenações reais pelo direito mais antigo divino e humano natural e positivo obrigam em consciência e prevalecem sobre as ordens do superior geral que obrigam apenas em virtude da piedade e de votos contratados espontaneamente cit in Georges Guitton Le Pire de La Chaise Beauchesne 1959 t I p 91 Alguns anos mais tarde um memorial jesuíta coletivo declarava Na concorrência de duas ordens opostas dadas a um religioso francês alma pelo Rei e outra pelo superior legítimo é um pecado grave contra a religião contra a fidelidade e contra a justiça obedecer ao superior geral ou ao superior local em prejuízo da ordem do Rei cit in Pierre Blet Jésuites gal icans au XVIIe siècle in Archivum Historicum Societatis lesu t XXIX 1960 p 7576 humano ou num direito natural e que divide os religiosos segundo a clivagem entre rebeldes e clientes do rei As querelas teológicas teatralizam os conflitos entre partidos e seguem sua lógica mais do que a determinam47 A educação desde há mais de um século instrumento de propaganda religiosa tomase uma imensa campanha social contra o mal do qual mil documentos contemporâneos mostram que as três cabeças ignorância delinqüência divisão pertencem ao mesmo inimigo48 etc Outros indícios atestam até que ponto as práticas religiosas se curvam às formas sociais Alguns exemplos apenas Na disciplina do ensino dos colégios o que se impõe cada vez mais são as virtudes sócioculturais e econômicas a polidez a postura o porte e mais ainda a higiene ligada a um domínio da vida o rendimento o estado de escolar visa uma utilidade social a competição o saber se organiza em luta pela promoção a civilidade a ordem estabelecida das convenções sociais etc enquanto que as virtudes cristãs cujos elementos estão estabelecidos numa lista estável são simplesmente reclassificados nesta reestruturação social das práticas49 Da mesma forma uma reorientação se produz nas instituições Pg 163 e fundações religiosas com a lógica que aí introduzem a preocupação com a eficácia a racionalização visando uma ordem ou o espírito de método e que na própria prática da oração substitui as inspirações pela utilidade dos bons pensamentos ou as afeições do coração pelas razões e métodos50 As novas congregações religiosas aliás se criam e freqüentemente as antigas se especializam tal como os Beneditinos em conformidade com urna topografia de urgências ou de tarefas fixadas pela sociedade o combate contra a ignorância das massas populares o socorro aos acidentados ou às 47 Cf por exemplo infra a propósito dos Jansenistas e dos Jesuítas 48 Cf algumas notas a este respeito supra A inversão do pensável 49 Cf por exemplo naquilo que concerne aos colégios jesuítas François de Dainville Naissance de J humanisme moderne Beauchesne 1940 cap III 4 De la vertu p 247275 ou trabalho antigo mais rico em documentos sobre um assunto pouco retomado depois André Schimberg LEducation morale dans les collèges de la Compngnie de Jésus en France Champion 1913 Ficase impressionado lendo os manuais da época tratase freqüentemente de manuais de Civilidade de ver a que ponto os regulamentos e os usos sociais constituem a ossatura da educação As virtudes cristãs parecem conformarse ali e confirmálos como uma razão a mais com relação a uma situação de fato a ordem estabelecida que tem valor de lei Mas é que num segundo nível a ordem estabelecida ainda é percebida como ordem divina mesmo que ela deixe de sêlo na prática social 50 Sobre a insinuação de o espírito de método nas Congregações e nas missões cf as observações de J Delumeau Le Catholicisme cit p 104109 e 278280 Na piedade o intelectualismo triunfa com o Traité de loraison de Nicole 1678 mas esta apologia da prece discursiva tem inúmeros paralelos Simples indícios a multiplicação do termo método nos títulos de obras de devoção Infelizmente não existe para o século XVII o equivalente da análise de Alessandro Fontana parao século XVIII Lensemble méthode in F Furet ed Livre et société dans la France du XVII siècle t II Mouton 1970 p 151228 Ela mostra a importância do fenômeno depois da gramática e da medicina é a devoção que apresenta nos títulos as ocorrências mais numerosas de método crianças abandonadas o internamento dos doentes a educação das moças a erudição etc a determinação segundo funções sociais é mais decisiva do que a antiga repartição das Ordens segundo funções eclesiais contemplativos ativos pregadores etc Estes funcionamentos dos quais seria possível multiplicar os exemplos têm como recíproca a privatização e a interiorização da vida cristã As santidades esboçam itinerários subjetivos e psicológicos que não se podem mais traçar no tabuleiro de xadrez de uma organização civil e política A retirada para fora do corpo para o refúgio do coração arremeda uma incompatibilidade com o corpo social antes de ser uma doutrina a ruptura é uma situação Os espirituais da época são lúcidos quando recuam das práticas aos motivos da ação e quando situam a opção cristã aquém da linguagem e das obras fora do texto social na pureza de intenção no propósito do coração no formal da ação51 Mas não é também verdade que esta opção privada de seus balizamentos sociais se perde numa noite insondável ou que ela é obrigada a se identificar com os fenômenos extraordinários que o olhar científico já transforma em objetos psicológicos ou médicos De fato a experiência mística vacila entre estes dois pólos Parece que sob o aspecto de suas formalidades as condutas cristãs são todas atingidas pela mutação que por um lado levou o problema da ordem para o terreno das práticas e por outro lhe dá urna solução sóciopolítica Não é surpreendente que um dos signos mais claros desta lenta revolução nas estruturas religiosas da ação seja precisamente o lugar que nela ocupa a figura do praticante Pg 164 III A LÓGICA DO PRATICANTE UMA ALTERNATIVA ENTRE O DEVER DE ESTADO E O PROFETISMO Entre a lei do agir e o lugar da enunciação O agir se socializa ele segue critérios proporcionados à ordem social que se apresenta Tal é o deslocamento global que se opera um deslocamento difícil de 51 Sobre a intenção ou o motivo que é o formal da ação distinto de seu material e sobre a significação histórica deste recurso cf J J Surin Guide spirituel Desclée de Brouwer 1963 Introduction por M de Certeau p 2327 e 3136 Deste ponto de vista a noção de instinto é igualmente fundamental cf Michel Dupuy art Instinct in Dictionnaire de spiritualité t III c 18031805 designar já que a distinção entre política e religião e não apenas entre temporal e espiritual é precisamente o que está se produzindo é pois impossível contar com estes dois conceitos como pilares sólidos e permanentes em função dos quais uma análise histórica poderia julgar a mudança em curso Alguma coisa estranha ocorre entretanto Os comportamentos religiosos que manifestavam um sentido crítico numa prática social se quebram Existe uma dissociação entre a exigência de dizer o sentido e a lógica social do fazer A afirmação de um sentido cristão se isola num dizer e parece cada vez menos compatível com a axiomática das práticas A vontade de dizer uma fé se acompanha se um recuo para o interior ou para fora do mundo Traduzse pela fundação de um lugar à parte de onde seja possível falar Nas representações o coração desempenha este papel ele exprime um espaço fechado separado do resto um retiro No mapa da França a multiplicação dos refúgios dos eremitérios das associações secretas etc é o equivalente social destes corações fechados e defendidos do mundo Um profetismo de tipo novo se constitui nestas marginalidades A este profetismo corresponde um fenômeno inverso A exigência do fazer não existe fé sem obras submete necessariamente a ação empreendida à organização de tarefas civis e políticas que são as primeiras a serem transformadas pela nova ordem das práticas as atividades profissionais ou familiares parecem ter se laicizado mais tardiamente O fazer deixa escapar insensivelmente aquilo mesmo que ele queria produzir a saber os gestos formalmente cristãos Termina naquilo que os contemporâneos chamam com razão compromissos mas estes compromissos dizem respeito menos a uma doutrina do que à lei que se impõe desde que se escolha agir na sociedade Sob este ponto de vista o humanismo conciliador e mesmo a froxidão moral são inicialmente os reveladores de uma situação A ordem que revelam pode ser compensada apenas segundo modos que remetem também à mesma situação por corretivos Pg 165 proporcionados ao detalhe de cada conduta social em vista de introduzir nelas um desvio especificamente cristão e sobretudo por um reforço das marcas de diferenciação que constituem as práticas ditas religiosas Este corte do agir cristão separa o lugar de sua significação isto é a possibilidade de encontrar um lugar de enunciação e o trabalho da produção social isto é o trabalho efetivo pelo qual uma sociedade se constrói52 Sem dúvida podese 52 Esta dicotomia é análoga no agir social àquela fundamental que Mme David revelou nas pesquisas do século XVII sobre a linguagem a propósito da egiptologia ao símbolo ou à alegoria que exprime dar conta dos grandes debates do fim do século por esta tensão entre a necessidade de reconstituir um lugar de enunciação e a lógica do trabalho que uma sociedade opera nela mesma As opções divergem Ora privilegiam a urgência profética ora ratificam a polatização de fato para corrigila Cruzandose ou invertendose elas não atestam menos a situação comum em função da qual se enfrentam as doutrinas e as escolhas As marcas Sob a imagem de retiros coletivos que o profetismo efetua ou com a série de decretos ou de retificações que a casuística coloca ao longo das trajetórias da ação surge uma mesma necessidade a das marcas uma palavra de inumeráveis ocorrências nos textos da época Por marca é preciso entender uma combinação objetiva entre uma prática e um signo um ponto de interseção entre a linguagem da sociedade e a enunciação de uma fé em suma uma maneira efetiva de ultrapassar a ruptura entre uma e outra A marca pode ser um milagre um refúgio um personagem sacerdotal ou carismático uma devoção um gesto sacramental etc De qualquer modo ela focaliza a expressão religiosa em gestos particulares Tudo se concentra nas práticas Através delas um grupo religioso provoca sua coesão Nelas encontra sua âncora e sua diferença com relação a outras unidades sociais religiosas ou não Recebe delas uma segurança que as próprias crenças dão cada vez menos Logo Montesquieu dirá dos cristãos que eles não são mais firmes na sua incredulidade do que na sua fé vivem num fluxo e refluxo que os leva sem cessar de uma à outra53 Humorística talvez lúcida em todo caso sua observação indica a dificuldade destes cristãos de encontrar balizas sociais para sua fé ela faz compreender o papel decisivo sob certos aspectos fetichista que na sua vida assume tal ou qual prática religiosa Pg 166 Jansenistas e Jesuítas As escolhas entre cristãos se efetuam em termos de práticas A oposição entre as uma verdade se opõe a cifra que produz um saber Cf Madeleine V David Le débat sur les écritures et lhiéroglyphe aux XVlle et XVllle Sevpen 1965 p 1130 53 Lettres persanes carta 75 Sob Luiz XIV as perseguições as conversões e as comunhões forçadas já haviam trazido um desmentido cruel a todos aqueles que haviam preconizado a importância das disposições interiores Percin de Montgaillard por exemplo sublinhava então que os antigos católicos se escandalizavam em ver o que se fazia sob o pretexto da religião e que as comunhões forçadas abalam sua fé vacilante cit in J Orcibal Louis XIV et les protestants op cit p 166 n 27 correntes que se designam a si mesmas como Jansenistas e Jesuítas é bem reveladora de escolhas necessariamente efetuadas em termos de práticas O campo fechado é o da Moral prática54 Se deixarmos de lado os espirituais cujas reações de Port Royal à Cia de Jesus são cada vez mais comuns apesar das fronteiras sociais entre os dois partidos55 ocorre rapidamente de parte a parte redução ou pelo menos identificação da fé cristã com as práticas Mas não se trata das mesmas práticas é esta diferença que comanda as divergências doutrinais Os Jansenistas acentuam as práticas cultuais preconizam um retomo às observâncias litúrgicas ou sacramentárias cuja própria importância exige um acréscimo de preparação interior lutam especialmente contra as instituições sociais que mais ameaçam a observância desde o cabaré até a Corte Em contrapartida os Jesuítas se colocam deliberadamente no campo das práticas civis Partidários da adaptação principais introdutores da civilidade56 da honestidade do dever de estado e logo também no século XVIII da honra ou de um amorpróprio legítimos57 na moralidade cristã empenhamse em proporcionar a estas práticas um desvio cada vez relativo a uma tarefa social É o trabalho indefinido da casuística incansável em corrigir as situações que ela inicialmente ratificou A longo prazo esta tarefa se tomará cada vez mais difícil Será necessário fazer uma escolha revelase uma crescente incompatibilidade entre uma ética que se funda na lei efetiva 54 Cf La Morale pratique des Jésuites 8 voL 16691695 por Perrault Pontchâteau e Vanet com a colaboração dArnauld e de Nicole Tratase da pureza da moral das máximas da moral das condutas de uma política cf o Prefácio do primeiro volume Toda uma literatura ilustra esta temática a respeito das práticas morais até as Réflexions morales de QuesneL Mesmo as discussões dogmáticas são colocadas sob este signo como em La Défense de la morale et de la grite Cologne 1698 55 Assim a rede formada pelas correspondências e pela difusão dos manuscritos do jesuíta Surin não recorta aquelas que constituem as pertinéncias contavamse ou jesuítas ou jansenistas Completamente deslocada com relação a estes círculos de partido e julgada com desconfiança pelo conjunto dos Jesuítas esta rede é por outro lado em grande parte idêntica àquela mesma onde circulam os textos e as idéias reformistas dos espirituais ligados ao espírito de PortRoyaL Cf JeanJoseph Surin Correspondance éd M de Certeau Desclée de Brouwer 1966 Introdução p 2794 56 A civilidade nasceu de uma predominância das relações humanas sobre a relação com a natureza ou o mundo Ela tem por modelo a Corte o serviço dos cortesãos é a civilidade perfeita escreve J J Surin Fondements I 8 Spes 1930 p 87 e por antítese a sociedade selvagem Já implica como diz ainda Surin práticas sem outro fim que a sociedade civil Guide spirituel V 7 Desclée De Brouwer 1963 p 228 Daí a importância da nobreza civil que resulta da opinião dos homens e do sucesso nos negócios Pierre du Moulin La Philosophie mise en français Paris 1644 Éthique livro 8 cap 7 p 272275 Mesmo crítica e contestadora a ética cristã é obrigada daí por diante a se inscrever nesta dialética dos poderes e dos olhares cf Pierre Nicole De la civilité chretiènne Paris 1670 Antoine de Courtin Nouveau traité de la civilité P 1671 etc Em muitos dos manuais escolares como para o Pe La Ceada a civilidade é A soma de todas as outras virtudes cit in F de Dainville La Naissance de lhumanisme moderne op cit p 271 57 Cf Mémoires de Trévoux nov 1740 p 2131 Citando este textó Jean Ehrard acrescenta com justeza Nela mesma a idéia não é absolutamente uma novidade LIdée de nature en France dons la première moitié du XVllle siècle Paris 1963 p 382 n 4 Ela o é da parte de religiosos da sociedade civil e os lugares onde a vida cristã se fixa na falta de poder corrigir as normas da vida social práticas de devoção o SacréCoeur as Associações secretas as Congregações de Senhores por exemplo retiros espirituais etc Uma forma nova de refúgio aparece entre os próprios Jesuítas com estes signos que se tornam polarizadores precisamente porque isolados de uma ética considerada como atéia Assim no século XVIII Jansenistas e Jesuítas se reencontrarão na área do cultual Suas opções contrárias se miniaturizam no interior desta esfera A uma polarização sacramentátia que acompanha um reforço da autoridade sacerdotal ou da severidade das medidas relativas às faltas do seu ponto de vista se opõe de agora em diante uma polarização devocional que vem junto com uma supervalorização do diretor espiritual ou dos imperativos que se referem à execução de gestos e à fidelidade literal às fórmulas58 É óbvio que estas duas tendências se cruzam e se misturam Pg 167 freqüentemente São aliás muitas vezes englobadas num mesmo termo a piedade O verdadeiro problema é antes o relacionamento da piedade com a moral que separou dela e que se explicita em função das práticas sociais Os inumeráveis títulos onde aparece o binômio piedade e moral revelam pela própria conjunção o endereço do corte O dever de estado Apesar de tudo os debates entre Jansenistas e Jesuítas permanecem um teatro As mudanças e as tensões de uma sociedade se representam nele como imagens antinômicas59 Também apaixonam o mundo erudito como urna tragédia Mas esta encenação dramática remete a um trabalho mais obscuro Um dos indícios mais surpreendentes é o papel que a apologia do dever de estado começa a representar na moral cristã Toda uma literatura religiosa lhe é consagrada obras de vulgarização em geral a meio caminho entre as obras literárias e os panfletos distribuídos Ela circunscreve alternadamente os deveres dos príncipes das pessoas do mundo dos 58 Sabese por exemplo das dificuldades sofridas por Fénelon quando ele trabalhou com quatro Jesuítas em Saintonge porque ele se entregava muito facilmente a Invocação dos Santos e das Imagens ou porque ele não dizia a Ave Maria em seus sermões cf Henk Hillenaar Fénelon et les Jésuites Haia Nijhoff 1967 p 4043 Fénelon teve que se corrigir e escreveu ironicamente a Bossuet Nós somos católicos autenticamente reconhecidos pelas Ave Maria com as quais preenchemos nossas conferências carta de 8 de março de 1686 in Bossuet Correspondence ed UrbainLevesque t VII p 494 Este não é senão um indício do papel que vão representar as marcas visíveis de uma piedade destacada da moral 59 Cf M de Certeau De SaintCyran au Jansénisme in Christus t X 1963 p 399417 e Les Jésuites Jalons dune histoire Beauchesne 1974 p 53110 senhores dos soldados dos artesãos dos camponeses dos domésticos dos pobres ou ainda dos esposos dos pais de família das viúvas dos escolares etc60 Nesta literatura estado61 vem carregado de uma tradição teológica e espiritual onde o termo designa uma habitual disposição de alma62 um grau ou uma ordem da graça63 uma das etapas ou das vias que se distingue num itinerário cristão ou místico repartido em três64 quatro65 cinco66 ou mais estados A análise dos estados de oração ou dos estados de perfeição ocupa no início do século XVII um lugar que nunca havia ocupado uma escolástica do itinerário espiritual se substitui à dos seres ou das noções Participa do trabalho de uma sociedade em trânsito da pesquisa de uma ordem nova Como o diz Loyseau estado é o nome verbal do verbo ser por isso a palavra é atribuída às funções porque sua verdadeira natureza é de ser uma qualidade permanente e inerente à pessoa67 Ele atribui as dependências da práxis a estabilidades Coloca o intermediário de uma disposição entre atividades múltiplas e o ser ou a essência única da antiga filosofia Ora é sintomático que a ordem social forneça de agora em diante à moral e à espiritualidade cristãs o princípio de sua nova estabilidade e que a hierarquização dos estados sócioprofissionais assuma pouco a pouco o papel até então representado por uma hierarquia das funções eclesiais ou dos graus espirituais68 A ordem estabelecida se torna assim Pg 168 a base de uma redistribuição das próprias virtudes religiosas a obediência irá para o doméstico a justiça para o senhor etc O recorte social de uma 60 R Dognon P Collet CL Fleury J Girard de Villethierry etc são então os especialistas dessa literatura Seriam necessários a este respeito muitos estudos como aquele que R Darricau consagrou a La spiritualité du prince in XVIle siècle n 6263 1964 p 336 existe uma espiritualidade do doméstico do soldado etc Sobre os antecedentes mais doutrinais cf Luis de la Puent De la perfección del cristiano en todos sus estados 4 vol Valladolid 16121613 e Pamplona 1616 Francisco de Sales Introduction à la vie dévote Lyon 1619 etc 61 Cf René Carpentier verb Devoir dÉtat em Dictionnaire de spiritualité t III c 672702 Fernad Jetté verb état ibid t IV c 13721388 etc e a síntese de Fernad Guillen Preckler Etat chez le cardinal de Bérulle Roma 1974 62 Cf F Jetté op cit c 1378 63 Estado de natureza pura estado de inocência estado de pecado estado de graça estado de danação estado passivo estado de aniquilamento estado de consolação etc dizem Molina Suarez Vasquez e cem outros teólogos 64 Por exemplo incipientes proficientes perfecti em Tomás de Aquino Summa theologise IIaIIae q 183 a 4 65 Em Theresa dÁvila Libro de la Vida cap XL 66 Em São Boaventura por exemplo De quinque statibus humanis P L 177 c 511 67 OEuvres de Maitre Charles Loyseau avocat en Parlement Paris 1678 p 4 Du Droit des offices liv I cap 1 68 Certamente o estado já qualificava antes uma situação civil Status pertinet proprie ad libertatem vel servitutem sive in spiritualibus sive in civilibus escrevia Tomás de Aquino Summa theologiae Ila IIae q 183 a lc Mas estas diversas espécies de status tomavam lugar no interior de uma hierarquização religiosa mais fundamental situação num conjunto indica as virtudes a cultivar Tem valor classificatório Substitui também com o estado aquilo que representava o ser nas metafísicas anteriores operatid sequitur esse diziase a saber um fundamento e uma ordenação das operações A organização social desta maneira se torna uma espécie de código fundamental para as práticas ela é o lugar filosófico avant la lettre de sua estabilização e de sua repartição Esta evolução aliás é paralela àquela que no nível político recorta as Igrejas sobre as nações com o anglicanismo o galicanismo logo o Josefismo etc e faz das nações ao mesmo tempo os modelos e as herdeiras das Igrejas O acesso ao sentido cristão se encontra aí ligado ao lugar que se ocupa e à função que se exerce na sociedade Alguma coisa de mais decisivo ainda para o futuro se esboça praticamente nestas apologias do dever de estado à sua revelia e sem elaboração teórica o ajustamento do sentido cristão ou não ao lugar social O que assim se instala na história ocidental é uma ética enunciada em termos de repartições sociais e relações econômicas Esta articulação se torna uma estrutura das sociedades modernas e contemporâneas Com respeito a esta determinação das categorias morais em virtude de uma organização sócioeconômica as práticas de piedade se apresentam como um acréscimo Ao primeiro abalo elas cairão sem que o essencial seja atingido a menos que se tornem para os cristãos encurralados pela alternativa tudo que lhes reste A ética que irá organizar o sentido da existência em torno dos trabalhos dos estatutos e portanto também dos conflitos sociais têm aqui um dos seus pontos de emergência Inauguramse então dois séculos e meio de identificação alternadamente burguesa liberal patriótica socialista ou cientificista entre a tarefa social e o sentido do homem Talvez o sentido da história se reduza a esta combinação Será necessária em meados do século XX a extensão dos lazeres e da racionalização sócio econômica para que se rompa esta aliança estabelecida desde o foral do século XVIII para que unidades sociais deixem de recortar crenças valores e virtudes e para que as significações transformadas em interrogações passem para o lado onde nos liberamos do trabalho Do profetismo ao radicalismo a prática do corte Existe também no século XVII um profetismo contestatório Pg 169 deliberadamente marginalista Uma fé íntegra sustenta sua capacidade de determinar critérios de conduta que lhe sejam próprios Port Royal é o caso mais célebre Mas as resistências espirituais as seitas os partidos devotos as Companhias retiradas as Associações secretas ou de pequenas igrejas pululam por todas as partes tendo como acompanhamento a multiplicação das ermidas ou dos grupos ocultistas Rosa Cruz etc69 Nesta floração de ecclesiolae70 um elemento comum ultrapassa e atravessa as diferenças entre Igrejas ele distingue todos estes novos recuos das heresias ou das seitas antigas por toda parte uma prática do corte se sobrepõe uma gnose Estas formações isolacionistas fechadas em ilhas ou distendidas em redes paralelas se definem menos por conhecimentos ou por um tipo de iniciação do que por um modo prático de resistência ao meio ambiente Para dizer de outra maneira a demarcação da diferença é mais de ordem moral do que teológica É através das condutas que o corte se manifesta e não essencialmente como nos séculos XII ou XIII por concepções e ideologias O ato de se diferenciar do mundo faz proliferar uma multidão de arestas práticas mais do que uma conseqüência da teoria ele é enfim que as doutrinas contam O gesto se sobrepõe ao conteúdo Ele se toma sinal mais seguro Ao mesmo tempo coloca e diz a crença como conduta O sentido espiritual está de agora em diante apoiado numa linguagem de práticas enquanto que durante a Idade Média ele se deslocava num universo cosmológico de idéias e de palavras que eram coisas A enunciação de uma palavra toma a forma institucional de uma oposição visível e social a outros conjuntos de comportamentos Ela muda de natureza quando em lugar de consistir em dizer verdades se transfere para o regime de um trabalho de separação que tem valor ético Aliás a maior parte dos espirituais manifestam individualmente o mesmo deslocamento exatamente como sua doutrina tende para o que Bremond chamava com 69 Cf Leszek Kolakowski Chrétiens sans Église 1969 e M de Certeau L Absent de lhistoire Mame 1973 p 109115 Sobre o eremitismo sintomático porque é a face interna do movimento geral de escapismo que tem uma face externa nas partidas para o estrangeiro e do qual ele é uma forma extrema e individual cf os trabalhos de Pierre Doyère em particular o verb Érémitisme in Dictionnaire de spiritualité t VI col 971982 70 Nome dado às pequenas reuniões informais de fiéis cujo modelo foi criado por Philippe Jacob Spener 16351705 em FrankfurtsobreoMeno Estas ecclesiolae in ecclesiz são collegia pietatis Elas também têm como característica atravessar as delimitações eclesiais que assim perdem sua pertinência religiosa elas se designam como cristãs e não luteranas e reúnem fiéis de todas as procedências Cf Emmanuel Hirsch Geschichte der neueren evangelischen Theologie in Zuzammenhang mit den allgemeinen Bewegungen des europdischen Denkens Gütersloh Bertelsmann Verlag t II 1951 p 92 ss justeza um moralismo místico71 a escrita que eles inauguram se caracteriza por um tratamento próprio da linguagem comum Para os mais lúcidos entre eles não existe outra linguagem do que a linguagem do mundo A expressão da experiência religiosa consiste em fazêla representar contra si mesma mais do que constituir um corpus ideológico ou lingüístico autônomo ela opera um corte no texto social Na impossibilidade de poder dispor de enunciados que lhe sejam específicos o místico se exprime por uma maneira particular de praticar a língua de todo mundo por um modo de intervenção um modus loquendi72 Tanto aqui como nos movimentos de tipo marginalista o enunciado teológico Pg 170 tem o mesmo estatuto que outros enunciados são os materiais que o remodelam maneiras de agir ou de falar os únicos verdadeiramente pertinentes Estes minoritários e velhos crentes freqüentemente se defendem com um retomo às fontes que é uma vez mais a principal referência simbólica de uma prática nova Eles formam na França na Inglaterra ainda alhures e até na Rússia bolsões de irredutíveis Camisards Jansenistas Underground Churches Puritanos etc sem esquecer o Raskol de Avvakum e para não falar senão dos mais conhecidos Apesar de todos os seus antecedentes podese dizer que eles inventam a tradição de um radicalismo cristão73 Aí a fé é uma prática e esta obra é de agora em diante indissociável de uma oposição política Visa mesmo uma fundação política quando o exílio é possível74 Nesta linha o que é e irá tomarse cada vez mais determinante é o bloqueio da consciência religiosa num comportamento ou numa categoria sócio política75 Inicialmente o movimento jansenista camisard puritano ou mesmo raskol se distingue pela fronteira de uma prática sacramentária de uma forma de assembléia e de 71 Histoire littéraire du sentiment religieux t V A expressão aplicada em Surin e na Escola do Pe Lallemant pode ser estendida a muitas outras correntes 72 Cf M de Certeau LAbsent de lhistoire Mame 1973 p 153167 Histoire et mystique 73 Cf por exemplo William Haller Liberty and Reformation in the Puritan Revolution New York 1955 Michel Walzer The Revolution of the Saints Londres 1965 mas também Peter F Anson Underground Catholicism in Scotland 16221878 Montrose 1970 74 Desde o refúgio que os Reformados esperaram findar no Rio de Janeiro em 15551557 e do qual Jean de Léry conta os avatares Histoire dun voyage fait en terre du Brésil La Rochelle 1578 cf ed Gaffarel 1880 a idéia de um exílio fundador de uma Sociedade religiosa não cessou de suscitar partidas para a América durante o século XVII Sabese que para evitar a perseguição os Senhores de PortRoyal e seus amigos pensaram numa aquisição na América para ali se estabelecerem e que a Corte se opôs SaintSimon Mémoires Hachette t III p 533 cf Jean Mesnard Pascal et les Roannez Desclée De Brouwer 1965 p 735 75 Cf Sydney E Ahlstrom A Religious History of the American people New Haven Londres Yale University Press 1972 p 785804 e naturalmente o clássico do movimento Walter Rauschenbusch A Theology for the Social Gospel New York Macmillan 1917 prece de gestos litúrgicos etc Esta aresta social provê de um signo o recuo para fora da sociedade que se acompanha ou ocupa o lugar de um recuo espiritual para fora da linguagem comum Mas o que provoca este recuo é precisamente o que muda a natureza de seus signos o mundo que se deixa socializa os signos de ruptura e portanto os trás para si Os gestos de separação perdem assim seu significado religioso Eles são compreendidos e vividos dentro dos refúgios de maneira diferente do que o são fora deles Constituem uma mensagem cada vez menos decifrável por aqueles a quem se destinam Os recuos dos Camisards dos Jansenistas ou dos fiéis do Raskol são julgados como atos políticos Bem mais do que isto esta interpretação comum reflui para o interior destes grupos Mesmo aqueles que se propunham signos religiosos começam a pensálos e a praticálos como uma resistência sóciopolítica Existem na verdade exceções Desta maneira os Camisards podem defender o sentido que dão aos seus gestos contra esta pressão ambiente mas isto ocorre menos porque eles se apóiam em relações religiosas internacionais do que em razão de um aprofundamento no segredo de uma intimidade familiar aldeã celular76 e graças a sua baliza o mártir que é a marca pública de uma eliminação social o martírio da testemunha é na antisociedade profética a imagem correspondente à da virtude do santo numa igreja estabelecida A organização efetiva e visível da sociedade mostra que na maior Pg 171 parte dos casos uma transformação de sentido se opera no próprio interior das práticas reformistas e contestatórias Parece ocorrer aí a substituição de seres dentro da mesma concha Assim do jansenismo de Port Royal ao do século XVIII se opera uma mutação77 os inícios proféticos dão lugar a uma oposição sóciopolítica como se a constata também antes entre 16401644 no puritanismo78 A enunciação do sentido se toma resistência ao poder real ou à hierarquia eclesiástica outra forma de poder Esta 76 Esta preservação e este ocultamento secreto dos tesouros familiares são revelados no caso de uma aldeia das Cevenas por Henry Manen e Philippe Joutard Une foi enracinée La Pervenche La Pervenche 1972 é o admirável conjunto dos documentos religiosos ocultos durante três séculos a portas fechadas por famílias huguenotes de La Pervenche 77 Cf Jean Orcibal SaintCyran et le Jansénisme Seuil 1961 p 143 ss e também os trabalhos de J Appolis L Ceyssens ou R Taveneaux sobre o jansenismo do século XVII Sobre a evoluçãd que provoca de facto uma aliança entre os Jansenistas e os Filósofos cf por exemplo Robert Shackleton Jansenism and Enlightenment in Studies on Voltaire and the Eighteenth Century vol 57 1967 p 13871397 78 C H George sublinhou fortemente a mutação cerca dos anos 16401644 do pietismo puritano em puritanismo revolucionário e em radicalismo CH e K George The Protestant Mind of the English Reformation 15701640 Princeton 1961 e Puritanism as History and Historiography in Past and Present n9 41 1968 p 77104 Certamente esta discontinuidade misteriosa C H George se inscreve na continuidade de um desenvolvimento como mostra William M Lamont Puritanism as History and Historiography Some further Thoughts in Past and Present n 44 1969 p 133146 mas é uma evolução que determina o funcionamento dos grupos religiosos numa sociedade politizada mudança tem como causa menos um afrouxamento ou um abandono dos comportamentos primitivos do que a inversão interna de seu funcionamento A interpretação ambiente modificou a substância religiosa dos mesmos signos objetivos Também a heresia tradicional forma social modelada numa verdade teológica se toma cada vez menos possível A ortodoxia em função da qual esta forma se determinava será de agora em diante mais civil do que religiosa Isto quer dizer que da mesma forma que o agir a heresia se socializa O que nasce é a heresia social Por causa desta transformação inicialmente marcada nas práticas um grupo profético poderá cada vez mais dificilmente evitar o deslizamento seja para a defesa de uma moralidade cívica seja para uma existência oculta seja para organizações cultuais logo folclóricas e estranhas às verdadeiras paradas decisivas de uma sociedade IV A ÉTICA FILOSÓFICA LEGALIDADE E UTILIDADE NO SÉCULO XVIII Politização ou folclorização das práticas religiosas no limite esta é a alternativa que a situação anuncia mesmo quando a evolução é freada pela manutenção dos conteúdos religiosos que ela arrasta e pelos quais duplica e corrói o sistema Nesta combinação de dois sistemas a proteção que o poder real ainda fornece às instituições eclesiais representa também um papel importante porque ao mesmo tempo acelera a politização e preserva as representações católicas Existe portanto uma grande diversidade de posições escalonadas ao longo da mutação em curso Porém desde o século XVII os espíritos mais lúcidos denunciam o controle do uso social e da ordem pública sobre os comportamentos religiosos Para muitos deles não existe mais uma ética cristã propriamente dita Quando Pascal analisa o acesso à fé a verdade da qual fala não se identifica com nenhuma conduta particular nem com nenhum enunciado Pg 172 doutrinal Neste momento ela é o ponto de fuga implicado por realidades civis mas contraditórias ela é o intermédio o entredito ao qual remetem as combinações sociais da violência e da ordem da legitimidade e da ilegitimidade dos preconceitos e da razão Não tem mais lugar próprio no mundo a não ser o traço que o milagre esboça por cima do martírio dos santos é precisamente um foradelugar Foram notadas analogias entre seu pensamento e o de Hobbes79 De fato 79 Klaus M Kodalle Pascals Angriff auf Bine politisierte Theologie in Neue Zeitschrif liar systematische Theologie und Religionsphilosophie t XIV 1972 p 6888 ele tem da sociedade uma filosofia bem política e mundana que lhe ensinaram sua experiência a convivência com Roanez80 etc Deste ponto de vista ele é mais moderno e perspicaz que seus adversários casuístas Ele os precede quando inscreve o crente numa dialética dos usos e dos conflitos do poder etc Não o tenta sequer arrumar a fé em algum lugar da linguagem mas a faz ressaltar das formalidades contrárias da prática social No interior da Compagnie du SaintSacrement René dArgenson embaixador e intendente do rei já admitia a autonomia da organização política e social É um verdadeiro místico Não faz intervir como regras de sua vida pública entretanto senão a execução fiel das ordens do rei e o serviço das populações que administra Estas regras têm para ele valor moral sem que nenhuma justificação ou referência religiosa lhe seja necessária Menos lúcido que Pascal situa a experiência espiritual no particular em todos os sentidos do termo81 mas esta privatização religiosa pertence a uma ordem mística que para ele é o duplo imperceptível da ordem pública objetiva82 Votada a um jogo entre a invisibilidade da sua ordem e a marginalidade de algumas marcas particulares as obras da Compagnie du SaintSacrement o cumprimento dos deveres de piedade algumas devoções privadas a expressão da vida cristã se dissocia das práticas civis Uma razão instauradora de seu folklore Este tipo de combinação já esboça uma organização que se generaliza no século XVIII Podese dizer também que a reflexão das Luzes exuma os postulados dela e extraindo as suas conseqüências teóricas Certamente isto não mais acontece sob a forma belicosa que a politização da moral havia adquirido entre os apologestas da razão de Estado sob Richelieu Seu lugar entretanto permanece o mesmo uma razão política de práticas articuladas entre elas Mas ele não é mais feito apenas pelos juristas ou clientes do rei é construído durante os anos decisivos de 16601680 O Estado se torna o centro poderoso da administração nacional a grande Pg 173 80 Cf J Mesnard Pascal et les Roannez op cit p 311382 sobre a experiência dos negócios que Pascal adquiriu com o Duque de Roannez governador de Poitou 81 O particular se distingue ao mesmo tempo do público e do geral quer dizer da política e da razoo A propósito do corte que atravessa a própria religião entre a moral privada e a moral política o autor do Catholique d État já escrevia A Justiça dos Reinos tem outras leis que a Justiça que se exerce entre particulares cit in E Thuau La Raison dEtat op cit p 174 82 Cf M de Certeau Politique et Mystique René dArgenson 15961651 in Revue d Ascétique et de Mystique t XXXIX 1963 p 4592 empresa de racionalização econômica financeira e estatística Pertence quase todo ao domínio do voluntário do deliberado é o arco da nova aliança entre a razão o Logos e o fazer as práticas que fazem a história O século XVIII é por excelência o século da política logo o século do Estado83 Frederico é o seu modelo da mesma forma que Luiz XIV o é para o século XVII Esta razão está ligada ao poder de organizar as práticas Ela distingue de si como o campo de suas conquistas o imenso espaço destas crenças irracionais e a extensão inerte desta Natureza oferecida à posse daqueles que conhecerão as suas leis até então silenciosas As expressões não dotadas desta capacidade operatória não mais merecem o nome de discurso porque se dissociam dos negócios Um setor passivo da linguagem no qual as ideologias e as superstições se encontram reunidas formando ai um bolsão isolado da política e da ciência dois domínios indissoluvelmente unidos apesar das fricções pelo casamento da racionalidade com a eficácia Evidentemente as expressões religiosas são o elemento mais importante deste setor inerte este lugar será preenchido mais tarde pelo folclore ou pela literatura popular A sociedade esclarecida se esforça no século XVIII por rentabilizálas quer dizer por introduzilas na sua ordem Estabelece assim como objeto de uma política ou de um saber estas expressões que ela constitui como outras com relação à organização racional do poder ou o que vem a dar no mesmo com relação ao poder adquirido graças à racionalização das práticas Assim se efetua uma clivagem entre a razão e o seu resto ou entre os discursos do fazer e a massa mais ou menos explorável dos dizeres sem força aquilo que Maquiavel a propósito dos discursos religiosos já chamava as palavras sem virtù84 Ele se reproduz num outro que não lhe é idêntico o que separa das massas populares uma elite nobre e burguesa Os Grandes não são mais os únicos a raciocinar sobre os negócios na França ainda que mais limitados pela nobreza do que nos países vizinhos85 os comerciantes banqueiros funcionários notáveis etc participam desta razão ambiciosa e calculista que faz do número e da escrita a arma das suas conquistas O poder de gerar e de produzir é o lugar de onde falam os teóricos A afirmação central 83 Piare Chaunu La Civilisation de lEurope des Lumières Arthaud 1971 p 217 citando S Moscovici 84 Sem dúvida é necessário ligar a uma vontade discursiva de tratar esta massa de linguagem e de racionalisar esta imensa inércia lingüística os trabalhos sobre os patoás as línguas selvagens ou naturais e logo sobre o folklore durante a segunda metade do século XVIIL Lá existe um equivalente do que será no século XIX a exploração de fontes inertes da natureza Cf por exemplo M de Certeau D Julia e J Revel Une politique de la langue La Révolution et les patois 17901794 Gallimard 1975 85 Cf Pierre Chaunu La Civilisation de lEurope des Lumières op cit p 194203 das Luzes é a da legalidade e da inteligibilidade86 Mas quem sustenta esta afirmação De onde vem ela De uma burguesia que se dá o poder de ser a civilização distinguindose de um povo supersticioso e selvagem De cidades constituídas como centros e pontos de partida das cruzadas para os desertos do mundo rural produzse a migração urbana Pg 174 em direção ao campo bem como para o Lestes87 A cultura se elabora lá onde se constrói o poder de fazer a história e se opõe às regiões sociais que estabelece na inércia de uma espécie de Natureza originária passiva e insondável Segundo este movimento a religião ainda maciçamente aceita se parcela Onde participa das práticas do poder ratifica uma razão que não define mais e que inverte pouco a pouco seus próprios princípios Por outro lado ela se inclina para as linguagens nãooperatórias e para as massas populares Na verdade esta localização foi também preparada pela própria Igreja que não cessou durante um século de trabalhar por um retorno ao povo missões populares educação primária literatura de devoção etc no momento em que ela perdia a elite ascendente As conseqüências serão numerosas Não se pode reduzilas a problemas sociais Em particular por se ter construído através de uma relação com o seu outro selvagem a cultura estabelece uma linguagem dupla uma confessável produtora de uma razão esclarecida que organiza uma axiomática da utilidade social outra das crenças desautorizadas mas ainda existentes e que denegadas no presente tomam o aspecto de uma origem obscura passado obscurantista dos sistemas pelos quais são substituídos Este conjunto de fábulas é um imenso conglomerado de signos que remetem ao povo sustentáculo da nação É uma língua desconhecida que trás nela mesma o segredo de que fala a razão Não é apenas um espaço a ocupar para nele plantar a cultura diz também mas em termos inaceitáveis a verdade que as categorias filosóficas de bem comum de utilidade pública de universalidade etc visam É o apólogo da realidade Esta língua a decodificar é o folclore de um essencial Assim a partir de meados do século XVIII se forma uma combinação durável quase estrutural durante pelo menos cem anos entre um fundo popular a decifrar e uma racionalidade científica cujo conteúdo efetivo está colocado fora dela A razão tem seu próprio tesouro guardado no povo e inscrito na história Ela o transforma mas recebendoo daquilo que a precedeu Um fluxo popular 86 Ibid p 289 87 Cf o belo mapa de P Chaunu op cit p 64 sobre esta conquista urbana através da Europa e em direção ao Leste N da T Em portuguêscastelhano no original de onde tudo provém ascende malmente dizendose sua cabeça de ponte a ciência esclarecida confessa também não ser senão a metáfora dele Uma literatura antropológica tenta esboçar talvez mesmo exumar este segredo oculto na intimidade obscura da língua vulgar Faz vacilar a relação entre a razão e a fabulação Ocorre ao mesmo tempo que um distanciamento88 do ponto de vista da linguagem erudita como se na sua aceitação perdesse a presença daquilo que designa como se instituísse seu Pg 175 próprio segredo constituindo o objeto indígena O romance e o tratado filosófico mostram os disfarces pelos quais uma elite situa o sentido em retirada numa nãolegibilidade numa fonte perdida fábula e música Ambivalência da utilidade A evolução que faz da religião popular o objeto deuma antropologia esclarecida se apresenta inicialmente como uma triagem que visa extrair das crenças e das práticas religiosas o que delas á admissível sob forma de uma razão social Este trabalho prossegue desde há muito tempo Uma de suas formas essenciais consiste em isolar da religião uma axiomática como a física se dá por objetivo isolar corpos próprios nos materiais recebidos Desde 1624 Lord Herbert of Cherbury propunha em princípio que a virtude á o essencial do culto89 Em 1678 Joseph Clanvil opõe à dispersão histórica das crenças a necessidade de extrair delas algumas regras simples para a prática Religion consists not in knowing many things but in practising the few plain that we know90 Existe aí um trabalho de tradução que pretende uma transformação da linguagem religiosa em linguagem social Tratase de instaurar uma legalidade articulada em práticas efetivas A análise crítica da religião desde então tem o sentido de ser uma tarefa ética Explicar a religião discernir as leis que tomam compreensíveis tantas formações religiosas discordantes é explicitar o que pode e deve conduzir às escolhas da sociedade que se constrói Montesquieu designa o método desta hermenêutica de fundo tradicional desde há 88 Quer dizer uma interpretação distanciada a maneira de um etnólogo diante de uma língua estrangeira Cf sobre este assunto o estudo tão penetrante de Claude Labrosse Récit romanesque et enquete anthropologique in Roman et lumières au XVAIe siècle Ed Sociales 1970 p 7387 e também Henri Coulet La distanciation dans le roman et le conte philosophique ibid p 438447 89 Edward Lord Herbert of Cherbury De Veritate 1624 é a terceira das cinco notitiae communes circa religionem que ele apresenta no seu último capítulo consagrado a destacar das particularidades religiosas alguns valores comuns Ele retoma este tema na sua Religio laici 1645 90 Joseph Ganvil An Essay concerning Preaching Londres 1678 p 33 um século quando escreve Todas as religiões contêm princípios úteis à sociedade91 Esta regra tem um significado científico e um alcance moral ela indica o que a elite quer fazer das religiões transformálas em utilidade social O aparecimento de uma normatividade investida na multiplicidade dos fatos observados permite explicitar regras de ação relativas a esta sociedade que se substitui à Igreja no seu papel de ser o lugar do sentido o corpo do absoluto e também um clericato da razão Com a urbanização que se acelera e com o comércio instaurase uma moral de comerciantes ligada ao desenvolvimento do capitalismo Tratados de moral a celebram92 Não se pode dissociálos do processo que sustenta este discurso a retomada da ascensão burguesa após uma parada durante a segunda metade do século XVII que marcou o fortalecimento das estruturas aristocráticas de uma sociedade de ordem93 Mesmo o imaginário Pg 176 da literatura espiritual fala das práticas burguesas os símbolos ou as comparações que utiliza não são mais extraídos principalmente dos elementos naturais água fogo etc como durante o século XVI ou da vida civil e técnica como durante o último terço do século XVII mas do comércio O que se impõe é o reino do útil Em breve Hegel caracterizará a verdade da Aufklãrung pela utilidade Nützlichkeit Então escreve ele em 1807 como tudo é útil ao homem o homem é igualmente útil ao homem e Seu destino é igualmente fazer de si mesmo um membro do grupo útil à comunidade e universalmente serviçal Ele utiliza os outros e é utilizado94 No que diz respeito às crenças e às práticas religiosas julgase segundo o critério adotado por Morelly a saber segundo o que elas produzem nos povos95 seu efeito social nefasto ou benéfico permite fazer a triagem entre as superstições e os princípios úteis Esta hermenêutica é capaz de explicar ainda em acréscimo o aparecimento dos fatos religiosos por intermédio de leis gerais o clima o temperamento o tipo de sociedade Mas permanece uma operação É ainda marcada pelo princípio de onde tira sua força A razão que organiza uma prática da sociedade sobre si mesma supõe sempre que sua essência e sua verdade estejam escondidas no 91 Montesquieu Lettres persanes carta 86 92 Cf Jean Ehrard L Idée de nature en France pondant la première moitié du XVJle siècle Sevpen 1963 p 382 ss e também Joseph Lecler Liberalisme économique et libre pensée au XVIIIe siècle in Études 5 março 1937 p 624645 93 P Chaunu La Civilisation de lEurope classique Paris 1966 p 352 94 G W F Hegel La Phénomenologie de lesptrit trad J Hippolyte Aubier t II p 112114 Lutilité comme concept fondamental de lAufklãrung Cf Guy Besse Philosophie Apologétique Utilitarisme in Dixhuitième siècle n 2 1970 p 131146 Sobre este mesmo assunto Michel Foucault Les Mots et les Choses Gallimard 1966 p 209214 95 Morelly Code de la Nature 1755 3 parte o capítulo sobre os Defeitos particulares da moral vulgar diz respeito aos efeitos da idéia de Deus Reed G Chinard Paris 1950 p 239 ss vulgar logo que sejam estranhas a ela mesma Quaisquer que sejam seus sucessos o método é relativo a um fundo que lhe permanece extrínseco Ele é para outro toma uma forma civilizadora e pedagógica exatamente como este outro popular é destinado por ele a reunir a burguesia esclarecida Cada um destes dois termos não possui verdade senão no seu outro A legalidade das Luzes sistema particular no conjunto do século XVIII francês propõe uma contradição interna que lhe faz ao mesmo tempo antecipar as massas que ela domina mas que lhe permanecem estranhas e esperar que a essência oculta do povo se revele numa sociedade transparente como o deseja o grande mito contemporâneo criado por Rousseau96 ou a experiência revolucionária A educação particularmente cruzada do século XVIII é trabalhada por esta ambivalência intransponível Ela coloniza é verdade mas é também uma busca escatológica espera que venha a confirmação e a efetividade daquilo que já anuncia G povo ignorante a criança o selvagem e também o doente o louco deuses enigmáticos de uma sociedade que acredita têlos expulsado detém nas obras de sua linguagem a verificação da razão que lhes impõe a sua lei A tarefa educadora aperfeiçoará pois sem cessar os seus métodos e estenderá Pg 177 o campo de seus progressos a fim de ultrapassar o corte que a mantém fora de sua verdade e a faz depender do que combate Mas este corte que lhe é constitutivo Ele não poderia ser suprimido sem que se esboroasse a razão que se define na medida em que o propõe Através das maneiras antitéticas mas homólogas da dominação ou da sedução a racionalidade das Luzes mantém com seu outro uma relação necessária A partir do momento em que se torna impensável uma fé tautológica que admite os sinais como sendo a presença da verdade que designam a cultura parece destinada a repetir a lei que a impulsiona no sentido de multiplicar as práticas relativas sempre ao que lhe falta De agora em diante a verdade não mais é dada nos signos A razão tem no seu outro fora de si o que indefinidamente a faz produzir economias das necessidades expansões científicas estratégias escolares democratizações jacobinas e colonizações civilizadoras se enraízam numa cultura elitista indissoluvelmente ligada ao seu contrário Formalidades cristãs das práticas filosóficas 96 Cf o grande estudo de Jean Starobinski J J Rousseau La transparence et lobstacle Gallimard 1971 A ética não pode se apoiar em seus objetos já que eles significam para a razão a exterioridade de sua verdade Ela toma como fundamentos seus próprios postulados Do oonatus spinosista ao imperativo categórico kantiano nas duas extremidades deste século muitas filosofias articulam a racionalidade das práticas com um princípio do agir sobre mn querer fazer ou um dever fazer que organiza a construção da razão Quaisquer que sejam as formas que este postulado dinâmico tome é necessário notar que sua elucidação Aufkl trung envolve cada vez mais a dupla referência à cultura que se faz a das Luzes e à situação que é um feito ainda religioso A operação remete ao seu enraizamento num querer saber ou querer fazer mas também numa conjuntura geral que a condiciona Distinguindo entre estes dois elementos veremos aí por um lado a experiência que engendra uma nova filosofia do homem e por outro o objeto da reinterpretação que transforma religião em passado De fato os dois empreendimentos não se distinguem tão facilmente pois é o trabalho econômico político ou científico que permite um afastamento com relação à religião constituindoa em um lugar outro que será por exemplo o da história ou da etnologia Por sua vez este distanciamento do ponto de vista dos conteúdos religiosos funciona como se tomasse possível uma transposição que mantém formalidades religiosas mas de acordo com um regime filosófico Assim nasce uma Religião civil como diz com justeza Pg 178 Rousseau no seu Contrato Social IV 8 A exegese que exila a literalidade da religião para um passado ou para o vulgar permite um funcionamento novo das estruturas até então características do cristianismo de agora em diante deslastradas de seus conteúdos ideológicos ou práticos e reinterpretáveis remanescentes também na linguagem da política da consciência ou do progresso Estes conteúdos se tornam o objeto das ciências religiosas que se desenvolvem neste período97 enquanto que o sujeito da ciência se organiza ainda segundo as formalidades próprias das diversas imagens históricas da experiência cristã moderna Por isso sem dúvida é inexato pensar ainda estas formalidades como religiosas já que precisamente elas deixam de sêlo e que num certo sentido se poderia considerar o tempo de seu preenchimento religioso como um momento da história destas formas culturais Em todo estudo que lhe é consagrado a religião depois do século XVIII apresenta esta ambigüidade do seu objeto por exemplo seu passado é 97 Cf particularmente G Gusdorf Dieu la nature lhomme au siècle des Lumière Payot 1972 p 143 239 Lavènement des sciences religieuses alternadamente explicado pela sociologia que entretanto organizou e tido como a explicação desta sociologia que se substitui a ele Mas geralmente toda sociedade nascida e surgida de um universo religioso existem outros tipos de sociedade deve enfrentar a relação que mantém com sua arqueologia Este problema está inscrito na cultura presente pelo fato das estruturas religiosas serem deslocadas dos conteúdos religiosos que organizam as condutas racionais Sob este conto de vista estudar a religião quer dizer hoje pensar o que seus conteúdos se tornaram nas nossas sociedades fenômenos religiosos a título do que as suas formalidades se tornaram na nossa prática científica98 O século XVIII apresenta em todo caso esta transposição das estruturas religiosas para os discursos filosóficos Ë a recíproca do processo que como vimos leva a interpretar as formalidades religiosas segundo as formalidades políticas Dito de outra maneira parece que a prática esclarecida se organiza segundo formalidades que foram religiosas antes de serem retomadas como postulados de uma moral O que ela produz ainda obedece aos princípios do que ela desloca Isto acontece desta maneira para três grandes etapas da ética que podem ser designadas pela referência privilegiada o político a consciência o progresso Estes momentos remetem a experiências históricas do cristianismo e trazem a marca de imagens religiosas das quais fazem a arqueologia seja uma eclesiologia seja uma espiritualidade ou um pietismo seja um messianismo do povo eleito por Deus para uma missão universal 1 Nascida do esforço enorme que permitiu no século XVIII a criação Pg 179 de nações e a passagem da cristandade à Europa moderna99 uma ética política domina inicialmente Ela credita ao Estado o papel que havia sido até então reivindicado pela Igreja o de ser a mediação social da salvação comum o sacramento do absoluto É uma eclesiologia católica mas deixada por conta do Estado que hierarquiza as ordens sociais suscita as liturgias de seu poder distribui as graças e racionaliza os interesses particulares Na teoria o discurso universal permanece político quando substitui o seu símbolo real pela lei austera do bem comum e do desenvolvimento máximoO imperativo da razão do Estado comanda ao mesmo tempoa crítica dos interditos 98 Seria necessário citar a este respeito os numerosos trabalhos de A Koyré G Canghilhem A Kojève etc sobre aquilo que o próprio A Kojève chama a origem cristã da ciência moderna in Mélanges Alexandre Koyré Hermann 1964 t II p 295306 99 Cf Alphonse Dupront Europe et Chretienté dans la seconde moitié du XVile siècle curso da Sorbonne mimeo Paris 1957 cristãos e as novas prescrições Por exemplo em Morelly100 em Diderot101 em muitos outros a liberdade sexual tem por fim e por critério a produção não o amor mas o aumento demográfico que na perspectiva populacionista dos economistas da época faz a força e a riqueza de uma nação Um querer fazer o Estado funda a racionalização das práticas e a este título se poderia comparar estes novos teólogos do século XVIII habitados pela vontade missionária de estabelecer a Igreja reorganizando normalizando e expandindo as condutas cristãs Necessitaríamos missionários da razão na Europa já dizia Leibniz em 1709 Mas esta missão das Luzes se desloca para um outro nível Persegue outras cruzadas Combinando as noçõeschave do século ela articula leis científicas com energias que numa dinâmica imanente devem ser postas a serviço de uma utilidade pública em vista de uma criação coletiva 2 O recurso à consciência se origina antes no liberalismo econômico e num individualismo burguês Mas é o lugar que os Reformados haviam circunscrito aquele que a palavra impossível de introduzir no discurso tinha marcado e deixado vazio102 A referência ao cristianismo eclesiológico sucede a experiência dos cristãos sem Igreja103 que recusam as mediações da linguagem ou do corpo eclesiásticos doravante localizados numa ordem política O mais próximo possível desta ética existe uma tradição espiritual a luz interior The light within dos Quakers a verdade que fala no fundo do coração em Wesley nos revivais nórdicos ou na Aufkliirung mística do Leste europeu Swedenborg Franke etc Lá mesmo aliás na extremidade Leste da Europa ocidental no final do século Kant será a grande testemunha religiosa da consciência moral à qual remete o conhecimento científico Mas diferentemente da maior parte das espiritualidades esta consciência não é uma gnose quer dizer um outro conhecimento à maneira pela qual o magnetismo se torna em Mesmer um lugar comum 100 Morelly Code de la nature 1755 Paris 1950 0 parte p 310313 sobre as Leis conjugais que prevenirão todo deboche 101 A utopia política apresentada por Diderot em 17721773 no seu Supplément sobretudo no Entretien de laumonier et dOrou au Voyage autour du monde de Bougainville 1771 ordena as relações sexuais em função de um crescimento de fortuna e de força para a nação Tratase antes de tudo de produzir belas crianças e de fazêlo o mais possível uma Venus fecunda mais do que galante está a serviço da utilidade pública 102 Aqui eu remeto à nãodiscursividade da palavra salvadora à teologia de cruz na Reforma Não se trata pois da tese de Max Weber sobre coalescência do capitalismo moderno e do transcendentalismo protestante nos séculos XVII e XVIII tese aliás duramente criticada por Kurt Samuelsson Religion and Economic Action trad do sueco Londres Heinemann 1961 cf Robert W Green Ed Protestantism and Capitalism The Weber Thesis and its Critics Boston Heath 1959 e P Besnard Protestantisme et capitalisme La controverse postwébérienne A Colin 1970 103 Cf Leszek Kolakowski Chrétiens sans Église La conscience religieuse et le line confessionel au XVlle siècle Varsóvia 1965 Gallimard 1969 Cf nota 69 à mística e à ciência Para retomar uma categoria Pg 180 de que gostava Levinas a subjetividade permanece aqui um irredutível e uma condição de possibilidade com relação à legalidade política ou científica Para Rousseau o princípio imediato da consciência independente da própria razão104 é um instinto moral também chamado instinto divino e pensado como um instinto natural Ele faz da prática e não da crença105 o caminho pelo qual o amor próprio encontra sua realização na felicidade106 desde que se faça uma introspecção dentro de cada um sobrevive a bondade natural dos homens que a sociabilidade altera pois o mal é exterior e é a paixão do exterior107 Como não reconhecer em tudo isto a organização de uma espiritualidade Mas pelo recurso ao poder que tem o homem de se transformar e de construir sua felicidade Rousseau apaga a falta originária não é isto exatamente o que encontramos nos místicos modernos quando este é o ponto nevrálgico das teologias da graça nos séculos XVII e XVIII A formalidade da prática religiosa escorrega pois para um outro terreno Como dizia com justeza Lefranc de Pompignan Rousseau raciocina sobre a virtude como os filósofos pagãos que não acreditavam que se devesse pedila a Deus108 Mas ele vem do cristianismo A espiritualidade se transforma na moral de uma autsigênese caso típico de uma forma mantida mas sob um regime que a esvaziou de seu sentido primeiro 3 A metamorfose do cristianismo em ética e mais amplamente em cultura se reencontra afinal sob o signo de progresso Na verdade a aparição desta problemática essencial de todo o último período do século XVIII é originária de dificuldades e experiências exatamente anteriores Assim a impossibilidade de dar à realidade social a uma coerência estrutural ou de identificar a linguagem com uma lógica leva a encarar a razão como a história de um progresso quer dizer a classificar os fenômenos constatados na linha de um desenvolvimento da razão A data tornase o meio de reencontrar uma ordem já que a exceção pode ser arrumada entre as resistências e os 104 J J Rousseau Lettre à M dOffreville 4 octobre 1761 in Correspondence générale t IV p 223 224 105 Rousseau escrevia a Monsenhor de Beaumont Eu penso que o essencial da religião consiste na prática que não é necessário apenas ser homem de bem misericordioso humano caridoso mas que quem quer que o seja acredite ser o bastante para estar salvo 106 Cf Robert Dérathé Les rapports de la morale et de la religion chez JeanJacques Rousseau in Revue philosophique t CXXXIX 1949 p 143173 107 Jean Starobinski J J Rousseau La transparence et lobstacle op cit p33 108 Cf Ernst Cassirer Das Problem JeanJacques Rousseau in Archiv für Geschichte der Philosophie t XLI 1932 p 177213 e 379413 R Dérathé JeanJacques Rousseau et le christianisme in Revue de Métaphysique et de Morale t LIII 1948 p 379414 que cita p 414 a expressão de Lefranc de Pompignan preconceitos antigos Além disto o papel do meio sobre os indivíduos encarado sob a pespectiva de uma produção O costume não é apenas um fato é um instrumento uma sociedade adquire por aí o poder de se aperfeiçoar indefinidamente de agir sobre si mesma de modificar sua natureza de se construir Do costume se passa à Educação no final do século este mito dá à civilização a imagem de uma conquista109 que liga a razão à capacidade de transformar o homem pela difusão das Luzes e que atribui um valor moral a qualquer ação que trabalhe para o progresso Pg 181 Messianismo evangelismo cruzada estas estruturas cristãs são reconhecíveis na empresa que associa a sua pregação às Luzes o poder de mudar a natureza à esta missão civilizadora e à tarefa de converter a significação de ser e de fazer a verdade da história Hegel será o teólogo deste futuro do espírito Mas esse evangelismo novo inverte o princípio de uma Providência que se manifesta na conversão do homem Ele é missão mas piópria de urna elite que recebe por si mesma o privilégio e o poder que não lhe vem mais do alto Paradoxalmente é necessário que as Luzes se tomem um risco e uma tarefa que percam a segurança de uma revelação passada que dependam daquilo que já mostra e promete o trabalho da cultura é necessário em suma que a razão seja ligada à exterioridade de seu futuro para que se manifeste na sua pureza um funcionamento do cristianismo Desligado da certeza que o controlava ao mesmo tempo que o fundava o mecanismo evangelista e missionário se exacerba Tornase para ele mesmo sua própria essência Não se mede mais senão nos limites que encontra e não na verdade que traz A descristianização revela na sua formalidade a prática cristã de agora em diante desorbitada do Logos que a verificava A este título também ela é elucidação Aufklãrung Trai o cristianismo no duplo sentido do termo ela o abandona e o revela Inaugurase assim uma reinterpretação social do cristianismo que irá refluir para os meios cristãos desenvolverá aí práticas missionárias voltadas para o outro bem como para os testemunhos vindouros de uma verdade incerta no interior provocará mais tarde a reprodução da ética do progresso sob a forma de uma teologia da história etc Quaisquer que sejam os avatares ulteriores e próprios das Igrejas a sociedade elitista que desliza das crenças religiosas um funcionamento das práticas cristãs e que durante algum tempo se dá como ética o progresso indefinido de sutis práticas 109 Cf o belo capítulo de J Ehrard op cit p 753767 Naissance dun mythe lEducation racionalizadas irá encontrar de novo com a Revolução um Deus oculto O selvagem ou o vulgar não eram senão o pressentimento dele Este deus será o povo revelado no acontecimento revolucionário que anuncia o seu poder pressentido como uma origem alternadamente controle e objeto da intelligentsia no decurso de uma lenta democratização mantido enfim pela verdade da história uma verdade existente desde todo o sempre mas ainda sem palavra infans Feuerbach descreve com muita exatidão o que aconteceu Na prática o homem substituiu o cristão 110 mas um homem dividido ainda cortado em dois pela distinção que separa os ministros da história do povo a evangelizar ou o clero burguês das massas Pg 182 V AS LEIS PRÓPRIAS DO GRUPO RELIGIOSO REDUÇÃO AO SILENCIO E ADMINISTRAÇÃO CULTUAL Na medida em que a organização prática do cristianismo se socializa despojandose das crenças o que resta aos grupos cristãos Conteúdos ideológicos um discurso e práticas específicas um culto Pelo menos isto é o que se constata no meio eclesiástico Mas este constitui entre os crentes um grupo de letrados Ele se encontra precisamente no terreno onde se opera o deslocamento que acaba de ser assinalado Concentrase pois para se defender salvandoos através de uma linguagem e de ritos bem como de indicações objetivamente cristãs abandonadas pelo exílio das estruturas práticas do cristianismo Para esquematizar o processo antes de estabelecer diferenças digamos que este enrijecimento vai engendrar simultaneamente o silêncio naquilo que concerne às convicções efetivas e o funcionariato naquilo que concerne à administração dos ritos O que dá fé está experimentado não pode mais se dizer numa linguagem de agora em diante afecta a uma operação defensiva e transformada em muralha verbal de uma cidade silenciosa As práticas cultuais perdem também seu alcance simbólico por falta de articulação com as práticas sociais As análises do clero 110 Entre a religião e a filosofia radicalmente nova existe segundo Feuerbach substituição quer dizer homologia de estruturas e inversão de sentido A incredulidade substituiu a fé a razão a Bíblia a política a religião e a Igreja a terra substituiu o céu o trabalho a prece a miséria material o inferno etc Ele também acrescenta é necessário tornarmos a ser religiosos é necessário que a política se torne nossa religião Daí o Estado e é a crença no homem como Deus do homem que dá conta subjetivamente da origem do Estado o Estado é o Deus dos homens por isso ele aspira justamente ao predicado divino da Majestade Nós nos conscientizamos daquilo que fez o princípio eo laço inconscientes do Estado o ateísmo prático Ludwig Feuerbach Manifestes philosophiques P U F 1960 p 99102 do século XVIII mostram todos estes ocultamentos do sentido vividos sob a proliferação de medidas administrativas que visavam proteger ou retomar um discurso e gestos tributáveis Entretanto os letrados não são todos os crentes ainda que repouse sobre eles cada vez mais desde há um século a carga de representar a Igreja Ao lado deste refúgio clerical redução e miniaturização da Igreja no teatro sacerdotal existem multidões cristãs E certo que se encontra neles a dicotomização entre as crenças e as técnicas civis ou científicas na medida em que este corte é engendrado pela capacidade de produzir e portanto é característico da categoria social que tem o poder de racionalizar práticas e que assim habilitada para fazer a cultura deixa nas margens de sua atividade as representações associadas a um mundo recebido e a verdade dadas Seria possível supor as populações francesas inteiramente modeladas por aquilo que uma elite quer que elas sejam Duas práticas da linguagem Pesquisas sobre a literatura popular ou sobre a iconografia religiosa nos proíbem supor este alinhamento É verdade que elas conduzem de Pg 183 fato aos fabricadores destes almanaques livretos ou imagens populares quer dizer aos clérigos ou aos artistas especializados neste gênero e não aos seus leitores111 Em acréscimo referemse a uma expressão particularmente conservadora ou a temáticas e estruturas cultuais que se mantém freqüentemente apesar da evolução ambiente e não são muito bons testes da mudança Segundo estes estudos a devoção pelas almas do purgatório continua a se difundir na iconografia das igrejas provençais do século XVIII Constatase ali entretanto que o purgatório se abranda a imagem ilustra menos o julgamento de Deus do que a libertação das almas112 A idéia da felicidade se impõe aí como aliás em toda parte durante as Luzes113 Mas este indício que nisto está de acordo com muitos outros114 111 Cf por exemplo M de Certeau La Culture au pluriel 1018 1974 p 5594 A beleza do morto O conceito de cultura popular 112 Gaby e Michel Voyelle Vision de la mort et de Paudeli en Provence A Colin Cahiers des Annales XXIX 1970 p 3742 Cf também V L Tapié J P Le Flem A PardailhéGalabrun Retables baroques de Bretagne P U F 1972 que permite apreender os movimentos da mentalidade religiosa através dos movimentos das representações iconográficas 113 Cf Robert Mauzi LIdée de bonheur dons la littérature et la pensée française du XVllle siècle A Colin 1960 114 Cf infra p 185186 em particular a propósito dos almanaques populares e da Biblioteca Azul abre uma questão mais ampla na medida em que mostra que a idéia da felicidade se insinua no interior dos símbolos coletivos tradicionais que ela os altera do interior sem dar lugar a um tipo de expressão que lhe seja própria Ocorre aí uma perversão interna da linguagem e não a criação de uma formalidade nova Estamos mais próximos da heresia medieval do que do discurso ético ou científico moderno uma mudança se formula nos próprios termos e segundo a modalidade de um corpo constituído esta mudança não refunde os símbolos coletivos não lhes impõe uma organização diferente A movimentação de um grupo se inscreve neste repertório mas não o recoloca em questão Trocamse somente as variantes relativas de uma estrutura estável Ficase à disposição da expressão O que se produz surge e se diz na linguagem sem que se venha a fazer uma linguagem para produzir acontecimentos o que é o próprio do discurso científico desde os tempos das Luzes Os deslocamentos de mentalidades se marcam apenas nas representações recebidas Aqui as práticas não são o próprio lugar onde se elabora uma razão ordenadora que por sua própria gênese relega os símbolos coletivos ao papel ideológico de restos adjacentes ou históricos Neste caso os discursos verbais icônicos gestuais não têm a mesma função e portanto não têm a mesma significação segundo sejam contíguos talvez mesmo estranhos às técnicas do trabalho social ou profissional ou segundo organizem estas técnicas e se tomem um instrumento de produção nas mãos de um grupo social Por um lado eles são operatórios na ciência ou na cultura das Luzes a teoria articula práticas Temse a escrita no sentido moderno do termo quando a cifra 115 visa uma operação Por outro lado lá onde as práticas não são articuladas num campo racional por uma ordem do fazer o discurso constitui um espaço Pg 184 simbólico no qual se traçam diferenças existenciais Aqui o símbolo permite uma expressão116 Os usos da linguagem não sendo os mesmos podese tratar qualquer linguagem segundo procedimentos idênticos a saber os nossos históricos ou sociológicos que se inscrevem na linha da cifra De que dão conta nossos métodos quando se aplicam a expressões que funcionam de outra maneira do que as nossas produções Questão fundamental em história das mentalidades ou em sociologia cultural No século XVIII efetuouse um trabalho de dissuasão entre duas culturas das quais uma elitista erudita 115 Cf nota 52 a propósito da distinção entre cifra e símbolo 116 Podese comparar esta análise de um problema histórico as observações de Luce Irigaray Langaf de classe langage inconscient in Le Centenaire du Capital Décade de GerisyLaSalle Mouton 1969 p 191202 sobre duas funções divergentes do enunciado ligadas ao estatuto do instrumento de trabalho burguesa se diferencia da outra tradicional da qual ela faz ao mesmo tempo o objeto e o termo de sua ação Esta combinação leva desde então a distinguir uma cultura prática e científica de uma cultura teatral e deste ponto de vista medieval117 Como pode uma dar conta da outra A diferentes funcionamentos da linguagem devem corresponder interpretações diferentes já que na realidade tanto num caso como no outro os signos não falam da mesma maneira mesmo quando dizem a mesma coisa Os enunciados funcionam como modos de enunciação heterogêneos Teríamos aí dois sistemas imbricados mas diferentes dos quais nenhum modelo de explicação pode ultrapassar a heteronomia já que remete a um lugar de enunciação e a uma prática da linguagem próprios de um destes sistemas A interpretação desta diferença nos termos de uma oposição entre elites e massas arrisca ser enganadora quando não explicita que o corte produzido pelas Luzes muda a natureza desta distinção elitemassas E reconhecer esta cesura é confessar que a distinção elitemassas tendo funcionado de maneiras diferentes não pode ser generalizada sem equívocos não é portanto um bom instrumento de análise Na verdade falando genericamente sempre existem elites e massas Mas na Idade Média a elite intelectual representa um estatuto superior numa hierarquia dos seres o clérigo tem o poder de dizer a ordem universal a qual deixa e faz surgir no seu saber justificando assim o seu lugar no interior do mesmo mundo118 A elite do século XVIII não se estabelece sobre o fato de uma diferença proposta pela ordenação do cosmos mas sobre uma prática do corte sobre uma diferenciação que ela produz este gesto consiste para ela em se distinguir do resto as massas por uma capacidade de fazer transpõe a separação pela qual o Deus judaicocristão se constituíra como criador119 Esta burguesiadeus fez o mundo sua razão é o poder de fazer e pelo mesmo movimento ela se dissocia da massa ou do vulgar que no mito ou nos símbolos recebe o mundo como sentido Pg 185 A descristianização seria melhor falar de uma deterioração do universo religioso a fé cristã permanece compatível com este desaparecimento é na elite esclarecida a 117 Teatral neste sentido em que como diz Jacques Le Goff da Idade Média ela ignora um lugar especializado para o teatro Toda a sociedade medieval se representa a si mesma acrescenta ele La civilisation de lOccident médiéval Artbaud 1964 p 444 Ela é expressão dela mesma representação de seu universo Foi necessário que uma sociedade se tornasse fabricadora dela mesma para que o teatro se localizasse nela ou para que se criasse o binômio da cultura expressiva e da cultura operatória Sobre os aspectos atuais desta dicotomia cf M de Certeau La Culture au pluriel op cit p 227226 La culture dans la societé 118 Cf as análises de Jacques Le Goff Les Intellectuels au Mo yen Age Seuil 119 Cf Paul Beauchamp Création et séparation Bibl de Sciences religieuses Aubier etc 1970 recíproca de sua autogénese Mas isto é particular desta elite O século XVIII é o momento em que duas práticas da linguagem coexistem se compensam se alteram mutuamente sem que se possa reduzir uma à outra nem supor válidos para as duas os métodos de análise nascidos precisamente do discurso que organiza práticas racionalmente e que já é capaz sob a forma de tantos exames críticos120 de interpretar as representações populares ou religiosas como produções do clima da mecânica social etc121 O que ocorre de uma parte e de outra por causa desta coexistência nova e das reorganizações recíprocas que ela promove Escrita e oralidade O problema aparece por exemplo sob a forma de uma relação nova entre o escrito e o oral A cultura popular determinada por seu oposto é oral mas a oralidade se torna outra coisa a partir do momento em que o escrito não é mais o símbolo mas a cifra e instrumento de um fazer a história nas mãos de uma categoria social Sabe se da confiança que o século XVIII e a Revolução depositam no livro a escrita refará a sociedade da mesma forma que é o indício do poder que a burguesia esclarecida se confere Mas no próprio interior da cultura esclarecida a oralidade muda de estatuto na medida em que a escrita se torna a articulação e a comunicação dos trabalhos pelos quais uma sociedade constrói o seu progresso Ela se desloca como que excluída da escrita Isolase perdida e reencontrada nesta voz que é a natureza da mulher da criança do povo É a pronúncia desligada da lógica técnica das consoantescifras É o falar estranho porém relativo à língua artificial das combinações escritas É música linguagem do inefável e da paixão canto e ópera espaço onde se desfaz a razão organizadora mas onde a energia da expressão desdobra suas variações no quadro da ficção e fala do indeterminado ou do eu profundo122 Não é por acaso que o século das 120 Roland Mortier nota justamente que se vê pulular após 1700 nas coleções de manuscritos os Exames críticos e ele analisa alguns destes textos Burigny Meslier ou le Militaire philosophe in La remise en cause du christianisne au XVIIIe siècle Revue de lUniversité de Bruxelles 19714 p 415443 121 Tipo novo de interpretação pois no século XVI a crítica radical a de Henri Estienne por exemplo vê no cristianismo a repetição mascarada da religião antiga e não o resultado de causas naturais quer dizer finalmente a representação inconsciente de leis emitidas pelo saber 122 Sobre esta relação da música com o inefável as paixões ou a natureza cf Georges Snyders Le Goût musical en France aux XVIle et XVIlle siècles Vrin 1968 p 71 ss e a propósito de Diderot e Rousseau 108134 Não é menos verdade que pelo fato de sua contiguidade com a escrita no interior da cultura esclarecida a música é também um campo onde se desenvolve a codificação a transcrição o Luzes é ao mesmo tempo o reino da escrita normalizadora e o império da música123 Parece que na cultura nascida de Gutemberg a palavra antiga está partilhada entre a escrita fabricadora de objetos e o canto de uma paixão sem conteúdo de uma origem fora do texto ou de um indefinido do desejo que foge e fascina todos os escritores do fim do século Uma música se constitui numa relação com a razão que triunfa Ela é a voz distinta dos Pg 186 conteúdos de agora em diante instrumentalizados localizase alhures lá onde escapa do e falta no discurso das Luzes Como se surpreender que a religião e a cultura popular se manifestem como Voz A Palavra já dessolidarizada do discurso racional pela Reforma é conduzida à música pela experiência espiritual é um Paul Gerhardt e um JohannSebastian Bach que marcam o ápice da mística luterana124 O apogeu do antiintelectualismo ao qual a mística é levada pela nova intelligentsia é a música o poema a cantata excetuando que no século XVIII estando a tradição católica mais fortemente ligada ao discurso social a mística musical poética e oratória foge para o Leste protestante da Europa125 ou se transforma por toda parte em esoterismo e ocultismo Mais amplamente toda uma parte da religião reflui para o canto popular para a festa cultual para a interioridade familiar formando assim o contraponto desta outra parte que iremos reencontrar oficial e superficial administrativa e organizadora mas finalmente alienada pelo seu imenso trabalho de política clerical Antes de sublinhar os perigos de uma localização no cultual é necessário compreender as imposições que a provocam e ao seu sentido O movimento que orienta a religiosidade para uma espécie de história sem palavras identificaa com uma festividade incapaz de se articular com um discurso científico ao inverso daquilo que ocorria nas relações entre a liturgia e a antiga dogmática A religião é colocada pela filosofia das Luzes neste vulgar que conserva uma voz ainda que supersticiosa privada de razão estranha ao saber que dela já possuem os meios esclarecidos Com relação à elite que se define pelo escrito e circunscreve a civilização no interior daquilo que faz a escrita produções que se estendem desde a ciftamento Mesmo a dança se torna uma escrita e obedece a cifra cf por exemplo Francine Lancelot Ecriture de la dance Le système Feuillet in Ethnologie française t I 1971 n9 1 p 2958 123 É o título do capítulo que Pierre Chaunu consagra à estética das Luzes La Civilisation de I Europe des Lumières op cit p 373426 124 Cf Hasso Jaeger La Mystique protestante et anglicane in André Ravier Ed La Mystique et les Mystiques Desclée de Brouwer 1965 p 284 O contraponto de bach tem aliás uma relação estrutural com a ciência medieval sua música se inspira na teologia mística da Idade Média ou de Tauler cujos Sermões figuravam em sua biblioteca ibid p 279280 125 Cf por exemplo J B Neveu Vie spirituelle et vie sociale entre Rhin et Baltique au XVlle siècle de J Arndt d P J Spener Klincksieck 1967 e Pierre Deghaye La Doctrine ésotérique de Zinzendorf Klincksieck 1969 ciência até a própria linguagem identificada com o bom uso dos autores um segredo se forma com a oralidade resto de festa concerto de vozes silêncio do sentido na plenitude do som fundo popular oferecido ao saber elitista que o educa da mesma maneira que explora as minas ou as selvagerias do Novo Mundo126 É este o indício de que urna cultura perde a palavra fundando a escrita Sempre acontece alguma coisa do lado da oralidade Mas como dizer que urna vez com a historiografia estamos colocados do lado da ciência escrita Não é suficiente para poder falar disto que a história tenha precisamente como função desde o final do século XVIII manter a relação da razão com a globalidade que lhe escapa e de ser o discurso bígamo onde o saber se casa simultaneamente com a ciência que faz Pg 187 história127 e com o romance esta extenuação do mito128 que deixa o espírito do tempo o Zeitgeist se exprimir Um intermédio os padres Se remontamos dás zonas ausentes da historiografia ao que emerge nos documentos do século XVIII constatamos no interior do cristianismo uma clivagem análoga àquela que partilha a sociedade entre a escrita erudita e a oralidade popular Para dizer a verdade o que se apreende não é a própria ruptura pois ela não é um objeto analisável a partir de um lugar que escaparia à divisão criada pela observação científica são seus efeitos e é o seu contragolpe na região onde uma razão cristã se desenvolve segundo o modelo que lhe impõem de agora em diante a ética e a filosofia das Luzes Ali se efetua um trabalho considerável de organização mas regido pela utilidade social como nos outros setores do clericato esclarecido e caracterizado pela rarefação da palavra ou pelo silêncio da expressão cristã parece que estes clérigos perdem a palavra na própria medida em que fabricam uma Igreja Eles não podem mais dizer e mais ainda freqüentemente não tem nada mais a dizer129 porque essencialmente a razão com a qual se alinham como minoritários na burguesia esclarecida regula sua atividade com a produção mesmo que tenham ainda este 126 Cf M de Certeau D Julia J Revel Une politique de la longue Gallimard 1975 127 Cf supro Fazer história 128 Claude LéviStrauss LOrigine des manières de table Pion 1968 p 105106 129 Cf Dominique Julia Le prêtre au XVIIIe siècle La théologie et les instituitions in Recherches de science religieuse t LVIII 1970 p 533534 sobre a relação entre um discurso oficial e uma experiência que não se diz existe uma clandestinidade uma perseverança subterrânea um silêncio dos sentimentos ou das convicções com relação à atividade pública utilitarismo na conta de verdades cristãs recebidas Ao nível de seu funcionamento social a Igreja do século XVIII é modificada por dois processos que se reforçam mutuamente Por um lado por causa da sua marginalização ainda relativa numa sociedade onde o cristianismo deixa de ser um quadro de referência totalizante o padre se torna aquele através de quem a Igreja se distingue de outros grupos a prática e a teoria do cristianismo se mobilizam nesta fronteira do sagrado Desde o final do século XVII existe uma miniaturização clerical da Igreja130 Mesmo que muitos leigos sejam crentes é nos termos do sacerdócio visibilidade social da diferença que se formulam os problemas da vida cristã Mas por outro lado o centro deste novo sistema de defesa ou de missão é precisamente definido pelos clérigos que participam pouco ou muito da nova cultura Eles foram convertidos em homens da escrita pelo trabalho consagrado durante um século à reforma e à formalização do clero objetivo primeiro da Igreja póstridentina Seminários conferências eclesiásticas estatutos sinodais ou visitas pastorais visam inicialmente a educação dos clérigos e a normalização de um pessoal administrativo Esta Pg 188 grande campanha coloca os padres numa situação cana vez mais airicu Pois se tem por alvo explícito a defesa ou a difusão de crenças religiosas lhes dá como meio uma administração técnica cuja lógica é contrária ao fim estabelecido A organização das práticas será mais forte do que o sistema de representações ao qual assegura a circulação ou a sustentação Isto se manifesta como já se viu no processo que susbstitui o primado das crenças pelo das práticas Mais ainda o discurso cristão se torna o objeto e o instrumento de uma produção a que constrói um corpo social religioso Bem longe de articular práticas e de lhes fornecer um quadro de referência a Palavra verdadeira se transforma num meio numa axiomática do fazer a sociedade Ela se rarefaz como palavra É congelada num discurso constituído que é verdade não explicita a operação da qual é o objeto nisto ele é inerte e estranho ao discurso ético das Luzes mas que funciona segundo a razão prática própria de toda a intelligentsia da época e os clérigos fazem parte dela Daí a posição particularmente distendida que os padres ocupam Colocados no intermédio do que vem a ser a Igreja e do que vem a ser a sociedade vivendo esta contradição num lugar que os prende aos fabricadores da sociedade quer dizer aos Educadores mas a título de representações que devem manter sem que elas lhes 130 Cf supra A inversão do pensável permitam pensar o que realmente fazem são votados a tarefas cada vez administrativas e por outro lado ao silêncio no que se refere ao sentido de sua fé A solução deste dilema consiste em concentrar o exercício do poder organizador no setor objetivo que é considerado passível de representar a manutenção da fidelidade cristã a saber o das práticas religiosas do discurso constituído o culto e a ideologia A hermenêutica clerical Um caráter comum entretanto impressiona na elite clerical o recuo para a linguagem escriturária Inspirase cada vez mais numa nostalgia das origens O trabalho que leva a história do cristianismo às suas origens graças à exegese131 ou que se esforça por arrancar a moral da casuística probabilista e fundar um rigorismo mais puro sobre um retorno ao Evangelho132 orquestra a exclamação de um dos padres mais lúcidos da época Monsenhor Jean Soanen Belos dias do cristianismo quando retornareis 133 Mas de fato este trabalho opera uma triagem nos textos antigos remete às superstições ou à sensibilidade de homens diferentes mais simples do que nós e mais ignorantes134 tudo o que se tornou Pg 189 inacreditável no século XVIII e extrai deles um conteúdo de acordo com as Luzes Esta hermenêutica produz um objeto segundo as regras operatórias que não mais dependem de convicções religiosas mesmo se a prática ainda é nelas submetida a pressões eclesiásticas e que determinam os resultados obtidos de forma mais segura do que os motivos ou as intenções investidas neste trabalho A lógica das técnicas empregadas prevalece sobre o espírito do qual elas eram consideradas defensoras Entre os Protestantes ao lado desta exegese cientifica vêse ressurgir uma interpretação espiritual abandonada desde a Reforma135 uma leitura edificante pietista popular A Bíblia se torna uma alegoria que cobre práticas religiosas heterogêneas é um espaço simbólico onde as experiências individuais encontram com o que se exprimir 131 Cf G Gusdorf Dixe la nature lhomme au siècle des Lumières op cit p 207231 132 Cf Édouard Hamel Retours à lÉvangile et théologie morale en France et en Italie aux XVlle et XVIIIe siècles in Gregorianum t LII 1971 p 639687 em particular a análise dos trabalhos de Concina De locis theologicis seu purioris ethicae christianae fontibus 1751 de Zaccharia De lusage des Écritures en théologie morale tirée des sources très pures de 1 Écritures et de la tradition 1770 etc 133 Jean Soanen Sermon sur lexemple in Migne Orateurs sacrés t XL Paris 1854 col 1370 134 Georg Christoph Lichtenberg citado em G Gusdorf op cit p 212 135 Cf G Gusdorf op cit p 204 que se refere ao grande livro deEmmanuel Hirsch Geschichte der neuern evangelischen Theologie im Zusammenharg mit den allgemeinen Bewegungen der europaischen Denkens Gütersloh Bertelsmann t II 1951 p 169 ss A exegese piedosa se reencontra também no catolicismo marginalizada com relação à ciência patenteada Mas é aí mais suspeita porque escapa à instituição eclesial A preocupação clerical se manifesta pela multiplicação das maneiras de emprego e dos métodos de leitura o bom uso da Escritura é mais importante do que a sua verdade136 O que mais uma vez prevalece é uma prática católica da Bíblia que é organizada por estes pastores que Fenelon já chama de escrituras vivas uma palavra que designaria no século XVIII os escribas e os técnicos das práticas religiosas Enquanto colocados no terreno das instituições eclesiásticas os pastores católicos efetuam nas práticas uma triagem análoga àquela que a exegese erudita opera nos textos expulsamse as superstições populares remetidas a um passado inconfessável a fim de evitar um descrédito para a religião137 A hermenêutica das práticas e a dos textos obedecem aos mesmos princípios Com efeito estes homens são antes de tudo letrados Maciçamente eles se distanciam da cultura popular tolerando ou ignorando o que não podem impedir A ruptura se agrava a partir dos anos 1750 Diminuição dos contatos entre os pastores e a população recuo do clero para um discurso que foi construído no século XVII como reformista mas que se torna o meio formal dos reagrupamentos sacerdotais desaparecimento quase geral das visitas pastorais estes fatos entre muitos outros atestam simultaneamente a atração que exerce a intelligentsia das Luzes nascida de um corte com relação ao vulgar e a paralisia que promove a impossibilidade de introduzir no discurso religioso congelado no lugar onde a Igreja deve ser defendida por seus Levitas a Revolução epistemológica que constitui a força desta intelligentsia Na verdade uma lenta mutação transforma estes padres permanecendo no entanto secreta ou marginal Pg 190 Meslier é um caso extremo mas não excepcional 136 Constatase isto desde o fim do século XVII na famosa Carta de Fénelon ao bispo de Arras Sur la lecture de lÉcriture sainte en langue vulgaire in OEuvres complètes Paris t II 1848 p 190201 ou nas reflexões que consagra ao mesmo assunto seu Mandement sur la réception de la Bulle Unigenitus ibid t V 1851 p 140142 Ouvir os pastores que as explicam é ler as Escrituras Com efeito os pastores são Escrituras vivas Também a Igreja usa freqüentemente o direito de não permitir a leitura do texto sagrado senão as pessoas que ela julgasse suficientemente preparadas para lêlo com frutos OEuvres op cie t II p 193 Esta teologia é tradicional mas no século XVIII funciona como a substituição do padre marco social objetivo pelo texto marco literário objetivo Aí como freqüentemente Monsenhor Soanen responde incisivamente através do vigor com o qual ele apresenta as Escrituras como linguagem de Deus e relação com a verdade cf seu sermão Sur les saintes Écritures in Mign Orateurs sacrés t XI col 14441462 mas ele já sabe que esta linguagem não é mais entendida 137 E uma expressão que retorna muito freqüentemente nas Conferências eclesiásticas bordalesas que pude analisar cf n 140 sobretudo no tratamento dos casos de moral ou de liturgia quando deixa para além de sua morte a exposição do seu verdadeiro pensamento138 O conteúdo do discurso e o ato de falar se propõem estrangeiros estranhos um ao outro como o texto e o autor quando existe enunciação o enunciado mente quando ele diz a verdade não há mais enunciação A palavra se desarticula entre uma voz sem verdade e uma escrita sem voz uma estrutura que combina levandoas ao extremo a posição do vulgar e a das Luzes Esta transformação oculta não aparece nos textos ou nos gestos oficiais e não aparecerá à luz do dia senão no momento da Revolução quando tantos padres representarão um papel decisivo no desvelamento nacional que remete especialmente à sua situação particular Anteriormente presos no intermédio da religiosidade popular e da burguesia esclarecida somente podem gerar seu discurso ideológico e organizar práticas religiosas aplicando às massas a ética das Luzes em matéria de educação Uma polícia da linguagem e do culto A polícia no século XVIII designa ao mesmo tempo a cultura se é policé e a ordem que ela supõe Ela é indissociável da Educação Nas instituições propriamente eclesiais a cultura é a participação numa filosofia civil cujos princípios vêm de alhures Também tem pouco lugar na atividade ministerial É portanto a proposição de uma ordem que prevalece tanto no discurso quanto no culto No que se refere à linguagem podese concluir das pesquisas que dizem respeito à maioria dos discursos clericais oficiais que os clérigos se tornam funcionários de uma ideologia religiosa O que no século XVII era a dinâmica de uma reforma no século XVIII se transforma num aparelho administrativo de extrema precisão ocupado em gerar princípios quer dizer em defender uma linguagem do grupo Podese julgar isto analisando as impressionantes séries de arquivos constituídos pelas Conferências eclesiásticas e as Assembléias dos vigários forâneos reuniões sacerdotais por distrito 138 Jean Mealier 16641729 OEuvres ed R Desné Anthropos 3 t 19701971 A Memória de Meslier começa assim meus caros amigos já que não me teria sido permitido e que teria mesmo tido uma perigosa e desagradável conseqüência para mim dizervos abertamente durante minha vida aquilo que eu pensava resolvi volo dizer pelo menos após minha morte OEuvres op cit t I p 1 Com um exterior muito devoto palavras de seu arcebispo em 1716 op cit t I p XXVIII Meslier protege um ateísmo legadq por testamento bem como muitos dos padres publicamente antijansenistas protestam por testamento suas convicções contrárias como mostrou Julien Brancolini citado por R Desné cf op cit t I p XXXVII n 1 N da T Policé particípio passado do verbo policer que significa igualmente policiado civilizado culto mensais ou bimensais e consagradas sempre a três assuntos Explicação da Santa Escritura Virtudes eclesiásticas Teologia prática ou moral A erudição dos padres sucedeu à sua ignorância Pg 191 de antanho Mas ela se extingue a si mesma na repetição dos livros ou das respostas ditadas pela autoridade sob a forma de deveres e corrigidos pelos vigários gerais Este discurso é uniforme sem contradições internas regido pela citação impermeável à experiência pessoal dócil ao neutro do grupo Dirige a promoção aos cargos o sacerdócio é uma carreira como outra qualquer 139 e não mais comporta referências à vida local real Aquilo que diz respeito à sexualidade ou à violência nos campos está recalcado nele para ser substituído pelos casos abstratos que os livros recebidos expõem140 A constatação é a mesma a propósito das regulamentações pastorais ou da literatura sacerdotal A tarefa de organizar um grupo engendrou esta linguagem administrativa que não é mais permeável à existência dos padres do que à de seus fiéis A formalidade de uma prática produtora esvaziou o discurso do seu poder de dizer a realidade Será necessária a explosão revolucionária para que uma expressão da experiência espiritual ressurja Grou Clorivière etc ao mesmo tempo que se desvelarão o teísmo latente sob a linguagem clerical e a insignificância religiosa mascarada pela manutenção dos costumes tradicionais Na prática a grande preocupação é o culto Sob este ponto de vista as Visitas pastorais constituem um documento privilegiado para revelar de paróquia em paróquia as reações dos fiéis dos curas e dos bispos A observância e a purificação do culto é a preocupação essencial dos responsáveis mobilizados aliás em duas frentes a luta contra as concorrências exteriores em primeiro lugar o taberneiro este anticura a eliminação das indecências no interior e inicialmente das tradições populares antigas que povoavam a igreja de santos terapeutas de imagens familiares e profissionais de festividades ruidosas Uma repressão iconográfica excluía a nudez e os animais as representações estão de acordo com a verdade histórica enfim excluíase tudo aquilo que seria matéria de escárnio quer dizer o que não estivesse de acordo com o gosto desta 139 D Julia Le Prêtre au XVIIIe siècle op cit p 525 Cf também Ch Berthelot du Chesnay Le Clergé français au XVIIIe siècle et les registres dinsinuation ecclésiastique in Revue dhistoire moderne et contemporaine 1963 p 241 ss 140 Isto ressalta em particular de uma análise das Conferências eclesiásticas e Congregações forâneas da Diocese de Bordéus nos séculos XVII e XVIII conjunto de documentos que fornece uma Série completa Bordeaux Archives dép G 591597 para o século XVIII Outras sondagens confirmam esta análise se levarmos em conta que reformada mais cedo a diocese de Bordéus apresenta também mais rapidamente do que as outras esta evolução para o formalismo intelligentsia para a qual esses clérigos tinham os olhos voltados141 Que este critério seja importante nas apreciações morais a opinião dos curas sobre os fiéis o demonstra já que a grosseria dos costumes ocupa aí mais lugar do que os pecados142 Tratase de uma polícia das práticas Aliás o que por sua vez o poder mantém na religião é exatamente este instrumento limitado mas necessário que é o culto No seu grande Traité de la Police 1705 Delamare após um livro primeiro de generalidades consagra todo o seu livro segundo à religião o primeiro e o principal objeto da polícia Isto para não abordar senão dois assuntos por um lado o tratamento dos Pg 192 nãocatólicos por outro o respeito ao culto festas tempos de penitência procissões peregrinagens etc143 Indício entre muitos outros de uma santa aliança como o diz Holbach144 porém mais ainda de uma homologia na ordem das práticas mesmo que elas veiculem verdades diferentes Uma mesma lógica localiza a falta lá onde aparece um obstáculo ou um desvio com relação a uma polícia dos costumes Está claro que a administração eclesiástica não deixa de constituir nela um corpo próprio e que marca esta especificidade através de interditos limites ou acréscimos destinados a retificar nas suas margens a normalidade comum145 Da mesmamaneira mantém magníficos objetos de pensamento surpreendentes espetáculos e tesouros inestimáveis que ela faz ver ao povo146 Existem portanto particularidades no agir cristão essencialmente práticas cultuais e uma teatralização das representações Mas elas se inscrevem numa economia civil O que esta administração faz ela mesma quando organiza espetáculos ou uma disciplina para o povo obedece às regras de uma razão esclarecida à formalidade das práticas tal como está definida para as Luzes 141 Eu me refiro à relação sintética apresentada por D Julia no Convegno studi di Storia sociale e religiosa de CapaccioPaestum 1821 maio 1972 La Réforme posttridentine en France daprès les proclsverbaux de visites pastorales ordre et résistences in La Societd religiosa nelletd moderna Nápoles Guida 1973 p 311397 142 Cf D Julia Le Clergé paroissial du diocèse de Reims à la fin de lAncien Règime II Le vocabulaire des curés essai danalyse in Études ardennaises n9 55 outdez 1968 p 4166 143 Delamare Traité de la Police Paris 1705 p 267378 De la religion 144 Em Essai sur les Préjugés citado por Roland Mortier La remise en question du christianisme au XVIIIe siècle op cit p 421 145 Por exemplo retomando uma obrigação antiga lembrada pela Bulla Supra Gregem de Pio V 8 de março de 1566 e pela Sagrada Congregação de 1699 o direito da Igreja ainda proíbe ao médico de ir visitar os doentes sem ter visto o atestado do confessor certificando têlos ouvido em confissão Cf Erneste de S Joseph Le Ministère du confesseur en pratique Liège Barchon 1718 t II p 395 Ainda que esta medida se inscrevesse numa hierarquização religiosa da sociedade ela toma o sentido de uma marca e de um decreto acrescentados à lógica civil de uma profissão 146 Estas são as expressões de Monsenhor Jean Soanen no seu sermão Sur lexcellence du Christianisme in Migue Orateus sacrés t XL coL 11621168 Aos espetáculos apresentados pela religião ele acrescenta as vantagens e os tesouros que ela oferece Encontrase no interior da religião cristã como no interior destas montanhas que produzem o ouro e o diamante tesouros inestimáveis ibid coL 1166 cf coL 1172 Mas estas expressões se encontram em muitos outros Que é feito então destas massas populares que representam na cultura elitista a Voz que ela perde quando fabrica a escrita Em que se transformam pois estas tradições orais de que a análise científica fez o seu exterior quer dizer aquilo que ela eliminou para se constituir Elas escapam à autoridade eclesiástica mesmo quando aceitam os símbolos e os ritos religiosos Sem dúvida mas até que ponto elas alegorizam estes signos e estes gestos exatamente como a experiência individual pietista o faz no caso dos textos escriturários Estes deslocamentos práticos da interpretação na superfície de textos fixos permanecem desconhecidos para nós já que não se escrevem Na verdade a literatura popular dos almanaques nos fornece um indício por frágil que seja substitui as mentiras eclesiásticas pela segurança das técnicas da vida doméstica o temor do julgamento depois da morte pelas receitas tiradas de uma experiência ancestral e pelos métodos do bem viver ou do saber viver147 Tratase da vulgarização do espírito das Luzes por autores educadores ou o atestado de práticas populares que encontram uma linguagem nas margens da tradição religiosa As duas coisas provavelmente Mas para tornar preciso o segundo aspecto aquele que no século XIX será recalcado pela escolarização e desenvolvido pela democratização seria necessário recorrer à linguagem dos gestos e dos utensilios a estes discursos que se dizem tácitos e que não se fizeram entender inicialmente senão no decorrer das revoltas ou das revoluções com a foice o forcado a enxada etc Seria Pg 193 necessário levar a sério a formalidade de outras práticas que não as da escrita148 Talvez isto representasse também reencontrar na linguagem sua função de falar De toda maneira um corte tem de agora em diante desfeito os mitos organizadores de condutas para dar lugar por um lado a uma razão das práticas ideologias ou crenças Uma nova historiografia nascerá quando uma racionalidade das tarefas revolucionárias tiver arrumado as crenças entre as fábulas antigas A partir daí a própria compreensão das épocas anteriores encontrará as representações como um efeito ou um resto com relação ao que do passado se tornou homogêneo com o presente quer dizer com uma ciência econômica ou política das operações sociais Pg 194 147 Geneviève Bollème Les Almanachs populaires aux XVIle e XVllle siècles Essai dhistoire sociale Mouton 1969 e La Bibliothèque Bleue Julliard 1971 Cf Robert Mandrou De la culture populaire aux XVIle et XVllle siècles Stock 1964 148 Assim já se pode ler o amplo panorama que Fernand Braudel começou a traçar em Civilisation matérielle et capitalisme XVeXVllle siècles t I A Colin 1967 um livro que sem dúvida se aproxima mais do lugar da cultura popular do que muitas obras sobre literatura popular Pgs 195 a 208 Notas Pg 209 Título Pg 210 Página em branco Terceira Parte OS SISTEMAS DE SENTIDO O ESCRITO E O ORAL Capítulo V ETNOGRAFIA A oralidade ou o espaço do outro Léry A escrita histórica e a oralidade etnológica Quatro noções parecem organizar o campo científico cujo estatuto se fixa durante o século XVII e que recebe de Ampère o seu nome de etnologia1 a oralidade comunicação própria da sociedade selvagem ou primitiva ou tradicional a espacialidade ou quadro sincrônico de um sistema sem história a alteridade a diferença que apresenta um corte cultural a inconsciência estatuto de fenômenos coletivos referidos a uma significação que lhes é estranha e que não é dada senão a um saber vindo de algures Cada uma delas garante e chama as outras Assim na sociedade selvagem exposta à vista do observador como um país imemorial as coisas têm eido sempre assim diz o indígena supõese uma palavra que circule sem saber a quais regras silenciosas obedece Corresponde à etnologia articular estas leis numa escrita e organizar este espaço do outro num quadro de oralidade Tomado aqui a título de hipótese evidentemente parcial este quadrilátero etnológico dará lugar à transformação onde da pedagogia à psicanálise a combinação inicial permanece reconhecível Ele tem igualmente seu corolário na historiografia moderna cuja construção apresenta na mesma época quatro noções opostas a escrita a temporalidade a identidade e a consciência Sob este ponto de vista LéviStrauss testemunha uma diferenciação já existente desde há quatro séculos quando acrescenta sua variante pessoal Pg 211 ao gênero literário do paralelo entre etnologia e história A etnologia diz ele se interessa sobretudo pelo que não está escrito Aquilo de que trata é diferente de tudo aquilo que habitualmente os homens se ocupam em fixar na pedra ou no papel Para ele esta distinção dos materiais escritos ou não escritos se duplica numa outra que se refere à sua relação com o saber a história organiza seus dados com relação às expressões 1 G de RohanCsermak La première apparition du terme ethnologie in Ethnologia europea Revue internationale d ethnologie européenne vol I 1967 n 4p 170184 conscientes a etnologia com relação às condições inconscientes da vida social2 Conotada pela oralidade e por um inconsciente esta diferença recorta uma extensão objeto da atividade científica a linguagem oral espera para falar que uma escrita a percorra e saiba o que ela diz Sobre este espaço de continentes e oceanos oferecidos antecipadamente às operações da escrita se esboçam os itinerários dos viajantes cujos vestígios vão ressaltar da história Desde que se trate de escritos a investigação não tem mais necessidade de colocar um implícito uma natureza inconsciente sob os fenômenos A história é homogênea nos documentos da atividade ocidental Atribuilhes uma consciência que pode reconhecer Desenvolvese na continuidade das marcas deixadas pelos processos escriturários contentase em organizálos quando compõe um único texto através dos milhares de fragmentos escritos onde já se exprime o trabalho que constrói faz o tempo e que lhe dá consciência através de um retorno sobre si mesma Desta configuração complexa retenho inicialmente dois termos Interrogome sobre o alcance desta palavra instituída no lugar do outro e destinada a ser escutada de uma forma diferente da que fala Este espaço da diferença questiona um funcionamento da palavra nas nossas sociedades da escrita problema muito amplo mas que toma perceptível a articulação da história e da etnologia no conjunto das ciências humanas Uma imagem da modernidade Esta não é senão uma sondagem Atravessar a história e a etnologia com algumas questões eis aí todo o meu propósito Mesmo a este título não se poderia considerar a palavra e a escrita como elementos estáveis dos quais bastaria analisar as alianças ou os divórcios Tratase de categorias que constituem sistema dentro de conjuntos sucessivos As posições respectivas do escrito e do oral se determinam mutuamente Suas combinações que mudam os termos tanto quanto as suas relações inscrevemse numa seqüência de configurações históricas Trabalhos recentes mostram a importância Pg 212 do deslocamento que se opera na Europa ocidental do século XVI ao XVIII3 A descoberta do Novo Mundo o fracionamento da cristandade as clivagens sociais que acompanham o nascimento de uma política e de uma razão novas engendram um outro 2 Claude LéviStrauss Anthropologie structurale Plon 1958 Introd Histoire et ethnologie p 33e 25 Eu sublinho 3 Cf supra cap IV A formalidade das práticas funcionamento da escrita e da palavra Presa na órbita da sociedade moderna sua diferenciação adquire uma pertinência epistemológica e social que não tinha antes em particular tornase o instrumento de um duplo trabalho que se refere por um lado à relação com o homem selvagem por outro à relação com a tradição religiosa Serve para classificar os problemas que o sol nascente do Novo Mundo e o crepúsculo da cristandade medieval abrem à intelligentsia Este uso novo é o que eu observo nos textos histórias de viagens e quadros etnográficos Isto significa evidentemente permanecer no campo da narração Prender se também ao que o escrito diz da palavra Mesmo que sejam o produto de pesquisas de observações e de práticas estes textos permanecem relatos que um meio se conta Não se pode identificar estas lendas científicas com a organização das práticas Mas indicando a um grupo de letrados o que devem ler recompondo as representações que eles se dão estas lendas simbolizam as alterações provocadas numa cultura pelo seu encontro com uma outra As experiências novas de uma sociedade não desvelam sua verdade através de uma transparência destes textos são aí transformadas segundo as leis de uma representação científica própria da época Desta maneira os textos revelam uma ciência dos sonhos formam discursos sobre o outro a propósito dos quais se pode perguntar o que se conta aí nesta região literária sempre decalada com relação ao que se produz de diferente Finalmente extraindo de uma série de relatos de viagens algumas peças que balizam uma arqueologia da etnologia4 detendome num episódio contado por Jean de Léry 1578 como o equivalente de uma cena primitiva na construção do discurso etnológico deixando proliferar a partir destes documentos as palavras as referências e as reflexões que lhes associa o leitor que sou devo me interrogar sobre o que esta análise me oculta ou me explica Do discurso etnológico gostaria de dizer o que ele articula quando exila a oralidade para fora do campo ocupado pelo trabalho ocidental transformando assim a palavra em objeto exótico Não escapo entretanto à cultura que 4 Apenas para a série das viagens FrançaBrasil do século XVI ao século XVIII objeto de um trabalho em curso a bibliografia já é imensa Remeto apenas a algumas obras gerais que guiaram minha pesquisa G Atkinson Les Nouveaux Horizons de la Renaissance française Paris 1953 H Baudet Paradise on earth Some thoughts on European Images of non European Man Londres 1965 S Buarque de Holanda Visão do Paraíso Os motivos edénicos no descobrimento e colonização do Brasil Rio 1959 M Duchet Anthropologie et histoire ou siècle des Lumières Paris 1971 S Landucci I Filosofie i selvaggi 15801780 Bari 1972 G Leclerc Anthropologie et colonialisme Paris 1972 F E Manuel The 18th Century confronts the Gods Cambridge Mass 1959 S Moravia La scienza deli uomo nel Settecento Bari 1970J V Senão O Rio de Janeiro no século XVI Lisboa 1965 etc e naturalmente A L Garraux Bibliographie brèsilienne obras francesas e latinas relativas ao Brasil 15001898 2fl ed Rio 1962 e G Raeders Bibliographie francobrèsilienne 15511957 Rio 1960 o produziu Apenas reduplico o seu efeito Que tipo exvoto meu escrito endereça à palavra ausente De que sonho ou de que engodo ele é a metáfora Não existe resposta A autoanálise perdeu seus direitos e eu não poderia substituir um texto por aquilo que Pg 213 apenas uma voz outra pode revelar a respeito do lugar de onde escrevo O importante está alhures A questão proposta aos trabalhos etnológicos o que supõe esta escrita sobre a oralidade se repete naquela que me fazem trazer à luz e que vem de mais longe do que eu Minha análise vai e vem entre estas duas variantes da mesma relação estrutural os textos que ela estuda e os que ela produz Através desta bilocação sustenta o problema sem resolvêlo quer dizer sem poder sair da circunscrição Pelo menos assim se manifesta uma das regras do sistema que se constitui como ocidental e moderno a operação escriturária que produz preserva cultiva verdades nãoperecíveis articulase num rumor de palavras diluídas tão logo enunciadas e portanto perdidas para sempre Uma perda irreparável é o vestígio destas palavras nos textos dos quais são o objeto É assim que se parece escrever uma relação com o outro 1 A lição de escrita em Jean de Léry 1578 Ainda que suponha tradição medieval de utopias e de expectativas onde já se esboçava o lugar que o bom selvagem virá preencher5 Jean de Léry nos fornece um ponto de partida moderno Na verdade assegura uma transição Publicado em 1578 sua Histoire dun voyage faict en la terre du Brèsil breviário do etnólogo diz LéviStrauss6 é o relato de uma permanência na baía do Rio de Janeiro em 15561558 Esta viagem se inscreve numa sucessão de retiradas Reformado Léry foge da França para Genebra deixa Genebra e parte para o Brasil com alguns companheiros para aí participar da fundação de um Refúgio calvinista da ilha onde na baía do Rio de Janeiro o almirante Nicolau Durand de Villegagnon recebeu a missão protestante segundo o acordo com Calvino mais uma vez se exila desgostoso com as flutuações teológicas do almirante vagueia durante três meses fim de outubro 5 A Idade Média prepara também tudo aquilo que é necessário para o acolhimento de um bom selvagem um milenarismo que espera um retorno à idade de ouro a convicção de que o progresso histórico se ele existe se faz a golpes de renascimentos de retornos a um primitivismo inocente J Le Goff Lhistorien et lhomme cotidien in L Historien entre lethnologue et le futurologue Mouton 1973 p 240 Sobre a continuidade entre o mito da idade de ouro e c do bom selvagem cf G Gonnard La Légende du bon sauvage Contribution à létude des origines du socialisme Libe Médicis 1946 H Levin The Myth of the Golden Age in the Renaissance Londres 1970 cap III 6 C LéviStrauss Tristes Tropiques Plon 1955 p 89 de 1557início de janeiro de 1558 entre os tupinambá do litoral antes de refazer o caminho inverso do Brasil a Genebra e de Genebra à França onde se instala como pastor Peregrinação às avessas bem longe de encontrar o corpo referencial de uma ortodoxia a cidade santa o túmulo a basílica o itinerário parte do centro para as margens na busca de um espaço onde encontrar um solo pretende construir aí a linguagem de uma convicção nova reformada Ao foral desta pesquisa existe produto deste ir e vir a invenção do Selvagem7 7 O dossier Léry é importante Da Histoire d un voyage eu citaria a reedição de Paul Gaffarel a única exata com exceção de alguns detalhes verificados na edição de Genebra 1580 Paris B N 8 Oy 136 B e completa 2 tomos Paris A Lemerre 1880 remeto a este texto pelo signo G seguido dos números do tomo e da página Após suas seis primeiras edições do século XVI La Rochelle 1578 Genebra 1580 1585 1594 1599e 1611 a Histoire não foi publicada de novo senão parcialmente exceção de Gaffarel em 1927 Charly Clerc 1957 M R Mayeux e 1972 com uma excelente apresentação de A M Chartier Desde então foi editada a excelente reprodução anastática da edição de 1580 por Jean Claude Morisot Genebra Droz 1975 É necessário assinalar também a tradução brasileira e as notas úteis de S Mallet na Biblioteca Histórica Brasileira Viagem à Tenra do Brasil São Paulo 1972 Reencontrase aí de Plinio Ayrosa uma curiosa reconstituição do capítulo XX sobre a língua tupi op cit p 219250 que um dos melhores especialistas do Tupi antigo cf seu Curso de Tupi antigo Rio 1956 havia entretanto criticado muito vivamente A Lemos Barbosa Estudos de TupL O Diálogo de Léry na restauração de Plinio Ayrosa Rio 1944 Durante a segunda metade do século XVI toda uma literatura envolve ou explora a expedição do cavalheiro Durand de Villegagnon ao Rio 15551560 Tratados certamente a Cosmographie universelle do franciscano André Thévet Paris 1575 de quem Léry pretende refutar as imposturas Les Trois Mondes de La Popelinière Paris 1582 cuja 3 parte a América dá grande importância à viagem etc Mas estas obras científicas vêm após a publicação de documentos e de panfletos Uns jornalísticos e polémicos são do gênero L Époussette des armoiries de Pillegaignon ou L Étrille de Nicolas Durand etc Os outros constituem dossiers sobre as questões debatidas Dois momentos sobretudo 1 15571558 após a partida da missão de Genebra mas enquanto Villegagnon mantém ainda a ilha Coligny na baía do Rio Estes são apologias políticas Copie de quelques Letres sur Ia Navigation du Chevallier de Villegaignon es Terres de I Amérique contenant sommairement les fortunes encourues en ce voyage avec les meurs et façons de vivre des Sauvages du pais envoyées par un des gens dudit Seigneur ed por Nicolas Barré Paris Martin le Jeune 1557 in8 reed 1558 in8 19 ff Discours de Nicolas Barré sur la navigation du chevalier de Villegaignon en Amérique Paris Martin le Jeune 1558 reed in P Gaffarel Histoire du Brésil français p 373382 2 1561 portanto após a vitória dos Portugueses e a partida dos Franceses 1560 Debate teológico político ParisGenebra sobre a oportunidade gorada de um Refúgio protestante Villegagnon é acusado de ter traído ou a religião Reformada ou o Rei ou os dois O pastor Pierre Richier teólogo membro da missão de que Léry fazia parte é o mais intratável para o antigo governador Loïs de Rozul Histoire des ehoses mémorables advenues en Ia terre du Brésil partie de 1 Amérique Australe sous le gouvernement de M de Villegagnon depuis lan 1555 Jusqu á lun 1558 s d Genebra 1561 in8 48 ff reed in Nouvelles Annales des Voyages 5 série t XL 1854 Les Propositions contentieuses entre le Chevalier de Villegagnon sur Ia Résolutton des Sacrements de Maistre Jehan Calvin Paris 1561 junto com o precedente Response aux Lettres de Nicolas Durant dica le Qsevallier de Villegaignon addreuées à la Reyne mere du Roy Ensemble la confutation dyne heresia mise en avant par le dit Villegaignon contre la souveraine puissance et authoriti des rois s 1 n d 1561 parece in8 46 ff Petri Richerii libri duo apologetici ad refutandas roerias et coarguendos blasphemos errores detegendaque mendacla Nicolai Durandi qui se Villegagnonem cognomina Genebra Excusum Hierapoli per Thrasybulum Phoenicum 156 in4 O texto de Richier foi editado no mesmo ano em francês La Refutation des folles rêveries execrables blasphèmes et mensonges de Nicolas Durand Genebra 1561 Em 1556 Jean de Léry tem 24 anos Sua Histoire vinte anos mais tarde dá uma forma circular ao movimento que ia de cima ici a França Pg 214 para baixo làbas os Tupi Transforma a viagem em um ciclo Trás de làbas como objeto literário o selvagem que permite retornar ao ponto de partida O relato produz um retomo de si para si pela mediação do outro Mas alguma coisa que escapa ao texto permanece là bas a palavra tupi Ela é aquilo que do outro não é recuperável uni ato perecível que a escrita não pode relatar Também no escrínio do relato a palavra selvagem imita a jóia ausente É o momento de encantamento um instante roubado uma lembrança fora do texto Uma tal alegria escreve Jean de Léry a propósito de suas impressões no decorrer de uma assembléia tupi que não apenas ouvindo os acordes tão bem medidos de uma tal multidão e sobretudo pela cadência e pelo refrão da balada a cada estrofe todos conduziam suas vozes dizendo heu heuaüre heür heüraüre heüra heüra ouch fiquei inteiramente encantado mas também todas as outras vezes que me lembro disto o coração sobressaltado me parece que ainda os tenho nos ouvidos 8 O que é um buraco no tempo é a ausência de sentido O canto aqui heu heuaüre ou mais adiante he hua hua como uma voz faz re re ou tra lalá Nada disto pode ser transmitido referido e conservado Mas logo depois Léry apela para o língua o intérprete a fim de ter a tradução de muitas coisas que não pode compreender Efetuase então com esta passagem para o sentido a tarefa que transforma a balada em Response aux libelles dinjures publiés contre le chevalier de Villegagnon Paris André Wechel 1561 in4 inspirado ou escrito por Villegagnon É necessário notar também na edição seguinte das celebres Actes des Martyrs de Jean Crespin Genebra 1564 p 857868 e 880898 a insersão de duas memórias sobre os fiéis calvinistas perseguidos por Villegagnon durante a missão de 15561557 no Rio são devidas a Jean de Léry Sobre a Histoire dan Voyage faio en la terre duBresil e seu alcance histórico e literário alguns estudos Paul Gaffarel Jean de Léry La langue tupi tirado separadamente da Revue de linguistique Paris Maisonneuve 1877 Histoire du Brésil français au XVJe siècle Maisonneuve 1878 Les Français au delà des mera Les découvreurs français du XVIe Challamel1888 Arthur Heulhard Villegagnon Roi d Amenique Paris 1897 panegírico de um colonizador Gilbert Chinard L exotisme américain dans la litterature française au XVIe siècle Hachette 1911 e Les Réfugiés huguenots en Amérique Les Belles Lettres 1925 C Clerc Le Voyage de Léry et la découverte du Bon Sauvage in Revue de linstitut de Sociologie Bruxelas t VII 1927 p 305 ss Pedro Calmou História do Brasil 15001800 São PauloRio 1939 2fl ed 1950 Olivier Reverdie Quatorze calvinistes chez les Topinambour GenebraParis Droz e Minard 1957 E Vaucheret J Nient et lentreprise de Villegagnon in La Découverte de lAmérique Vrin1968 p89 ss Florestar Fernandes Organização social dos Tupinambé São Paulo 2â ed 1963 etc A um dossier sobre Léry seria necessário acrescentar aquilo que concerne à sua importância na história do pensamento do século XVI Montaigne etc cf G Atkinson etc e também o material que ele forneceu sobre a língua tupi tornada no texto da Histoire uma extravagância lingüística ocultandomostrando uma identidade do Homem Cf Visconde de Porto Seguro LOrigine touranienne des Américains TupisCaribes et des Anciens Egyptians Viena Faesy e Frick1876 P C Tatevin La Langue tapihiya dite Tupi ou Neéngiatu Viena A Hdlder1910 Frederico G Edelweis Estudos Tupis e Tupi Guaranis Rio Liv bras Edit 1969 8 G 27172 produto utilizável Destas vozes o intérprete hábil extrai o relato de um dilúvio inicial que é observa Léry aquilo que entre eles existe de mais próximo a Santa Escritura9 retomo ao Ocidente e à escrita aos quais o presente desta confirmação é trazido dos longínquos litorais tupi retomo ao texto cristão e francês graças aos cuidados conjugados do exegeta e do viajante O tempo produtivo é recosturado o engendramento da história continua após o corte provocado pelos sobressaltos do coração que reconduz por aí ao instante em que inteiramente encantado tomado pela voz do outro o observador se esqueceu de si mesmo Esta articulação entre a palavra e a escrita é por uma vez encenada na Histoire Focaliza discretamente todo relato mas Léry explicita sua posição num episódiochave no capítulo central no qual trata da religião10 quer dizer da relação que o cristianismo da Escritura estabelece com as tradições orais do mundo selvagem Na orla dos tempos modernos este episódio inaugura a série de quadros análogos que durante quatro séculos tantos relatos de viagem vão apresentar Ainda que inverta uma vez mais o Pg 215 sentido e a moral a Leçon décriture em Tristes Tropiques 195511 repete o esquema que organiza a literatura etnológica e que engendra de quando em quando uma teatralização dos atores no palco Já sob a forma que toma aqui a cena se assemelha a toda espécie de escritas sagradas ou profanas destinandoas ao Ocidente sujeito da história e conferindolhes a função de ser um trabalho expansionista do saber Quanto à escrita seja santa ou profana não apenas a desconheciam como também o que é pior não possuíam quaisquer caracteres para significar qualquer coisa no começo quando cheguei ao seu país para aprenderlhes a língua escrevia algumas sentenças e depois as lia diante deles que julgavam fosse uma feitiçaria e diziam um ao outro Não é maravilhoso que este que ontem não saberia dizer uma palavra em nossa língua em virtude deste papel que possui e que o faz falar assim seja agora entendido por nós Essa é também a opinião dos selvagens da ilha espanhola12 que nela foram os primeiros Pois aquele que lhes escreveu a História13 diz assim os Índios sabendo que os espanhóis sem se ver nem falar um ao outro apenas enviando cartas de lugar a lugar 9 Ibid 72 10 Histoire dun Voyage cap XVI Aquilo que se pode chamar religião entre os Selvagens americanos G 2 5984 11 C LeviStrauss Tristes Tropiques 1955 p 337349 Leçon décriture Cf Jacques Derrida De la grammatologie Ed de Minuit 1967 p 149202 La violance de Ia lettre de LéviSaraus à Rousàeau Roland Banhes La laçou décriture in Tel Quel n 34 p 2833 12 A ilha espanhola Hispaniola quer dizer Haiti 13 F Lopez de Gomara Histoire de ias Indias eon la conquista del Mexico y de la nueva España liv 1 cap XXXIV p 41 a tradução francesa de Martin Fumée Histoire générale des Indas occidentales et Terres neuves foi editada em Paris em 1568 haverá cinco reedições de 1577 a 1606 Léry se refere freqüentemente a ela assim como o fará Montaigne Sobre Gomara cf M Bataillon Gomara et lhistoriographe du Pérou in Annuaire du Collège de France 1967 se entendiam desta maneira acreditavam que eles tivessem o espírito de profecia ou que as missivas falavam de maneira diz ele que os selvagens temendo serem descobertos e surpreendidos em falta foram deste modo tão bem mantidos em seus deveres que não ousaram mais mentir nem roubar aos espanhóis Por isto eu digo que quem quiser aqui ampliar esta matéria ela se apresenta como um belo assunto tanto para louvar e exaltar a arte da escrita quanto para mostrar quanto as nações que habitam estas três partes do mundo Europa Ásia e África têm do que louvar a Deus por estarem acima dos selvagens desta quarta parte dita América pois em lugar de como eles que nada podem se comunicar senão verbalmente14 nós pelo contrário temos esta vantagem que sem sair de um lugar por meio da escrita e das cartas que enviamos podemos declarar nossos segredos a quem quisermos estejam eles afastados até o fim do mundo Além também das ciências que aprendemos nos livros das quais os selvagens são igualmente destituídos de todo ainda esta invenção de escrever que nós temos da qual eles são também inteiramente privados deve ser colocada no rol dos dons singulares que os homens da parte de cá receberam de Deus15 2 A reprodução escriturária Entre eles e nós existe a diferença desta escrita seja santa seja profana que imediatamente põe em causa uma relação de poder Entre os Nambikwara e Lévi Strauss ela terá desde o início o mesmo alcance16 Feitiçaria dizem os Tupinambá poder do mais forte Mas eles estão privados dela Os ocidentais têm a superioridade Acreditam que seja um dos dons singulares que os homens da parte de cá receberam de Deus Pg 216 Seu poder cultural é referendado pelo absoluto isto não é apenas um fato mas um direito o efeito de uma eleição uma herança divina Mais característica ainda é a natureza da clivagem Ela não resulta essencialmente de uma triagem entre o erro selvagem e a verdade cristã Aqui o elemento decisivo é a posse ou a privação de um instrumento capaz ao mesmo tempo de reter as coisas em sua pureza Léry o diz mais adiante17 e de se estender até o fim do mundo Combinando o poder de reter o passado enquanto que a fábula selvagem esquece e perde a origem18 e o de superar indefinidamente a distância enquanto que a voz selvagem está limitada ao círculo evanescente de seu auditório a escrita faz a história Por um lado ela acumula estoca os segredos da parte de cá não perde nada conservaos intactos Ë arquivo Por outro lado ela declara avança até o fim do mundo para os destinatários e segundo os objetivos que lhe agradam e isto sem sair de um lugar sem que se desloque o centro de suas ações sem que ele se altere nos seus 14 É um erro mas o importante aqui é a coalescência entre selvagem e oral ou verbal 15 G2 6061 16 C LéviSaraus Tristes Tropiques op eia p 340 17 G 2 73 18 G 2 73 progressos Ela tem na mão a espada19 que prolonga o gesto mas não modifica o sujeito Sob este ponto de vista repete e difunde seus protótipos O poder que seu expansionismo deixa intacto é em seu princípio colonizador Ele se estende sem ser mudado É tautológico igualmente imunizado contra a alteridade que poderia transformálo e contra aquele que poderia lhe resistir Está envolvido no jogo de uma dupla reprodução uma histórica e ortodoxa que preserva o passado e outra missionária que conquista o espaço multiplicando os mesmos signos Ë a época em que o trabalho crítico do retomo às origens exumando as fontes escritas se articula com a instauração do império novo o qual permite com a imprensa a repetição indefinida dos mesmos produtos A esta escrita que invade o espaço e capitaliza o tempo opõese a palavra que não vai longe e que não retém Sob o primeiro aspecto ela não deixa o lugar de sua produção Dito de outra maneira o significante não é destacável do corpo individual ou coletivo Não é portanto exportável A palavra é aqui o corpo que significa O enunciado não se separa nem do ato social da enunciação nem de uma presença que se dá se gasta ou se perde na nominação Não existe escrita senão onde o significante pode ser isolado da presença ainda que os Tupinambá vejam nestes caracteres traçados sobre um papel uma forma enigmática de palavra o ato de uma força é certo que para eles a escrita é uma feitiçaria ou que para os selvagens da Ilha Espanhola as missivas falem Para que a escrita funcione de longe é necessário que ela à distância mantenha intacta a sua relação com o lugar de produção Para Léry nisto Pg 217 ele permanece a testemunha da teologia bíblica reformada a escrita supõe uma transmissão fel da origem um estar lá do Começo que atravessa indene os avatares de gerações e de sociedades mortais Ela mesma é corpo de verdade portanto isolável do corpo eclesial ou comunitário Este objeto verdadeiro transporta do passado para o presente os enunciados que produziu sem sair de seu lugar uma enunciação principal e fundadora É um mundo não mais natural mas literário onde se repete o poder de um autor longínquo ausente Ao cosmos religioso criatura significando o criador o texto parece já se substituir mas miniaturizandoo para fazer dele em benefício do 19 Segundo as tradições antigas que um velho tupi conta a Léry um Main quer dizer Francês ou estrangeiro veio outrora portador de uma linguagem religiosa que os Tupis não quiseram acreditar então veio um outro que em sinal de maldição lhes pôs rias mãos a espada com que desde então estamos sempre nos matando uns aos outros G 2 77 Neste conto o estrangeiro ocidental tem uma imagem dupla a linguagem de uma verdade a espada que arma e castiga a resistência homem um instrumento fiel e móvel num espaço ilimitado A palavra se encontra numa posição bem diferente Ela não guarda É este o seu segundo aspecto A propósito de uma tradição oral dos tupi concernente ao dilúvio que teria afogado todos os homens do mundo exceto seus avós que se salvaram sobre as mais altas árvores de seu país Léry observa que estando privados de toda espécie de escrita lhes é penoso reter as coisas em sua pureza eles acrescentaram a esta fábula como os poetas que seus avós se salvaram sobre as árvores20 Graças ao padrão escriturário Léry sabe medir o que a oralidade acrescenta às coisas e sabe o que as coisas foram ele é historiador Pelo contrário a palavra contém o costume que transforma a verdade em mentira Mais fundamentalmente ela é fábula de 1wi falar Portanto a fábula é a deriva adjunção desvio e divertimento heresia e poesia do presente com relação à pureza da lei primitiva Através disto em Jean Léry transparece o bom calvinista Ele prefere a carta a um texto eclesial o texto à voz de uma presença a origem relatada pela escrita à experiência ilocutória de uma comunicação fugidia Mas já desloca a teologia que o inspira Ele a laiciza Na verdade a natureza ainda é para ele um signo ao qual responde cantando o salmo 104 enquanto viaja sob as árvores em festa esta palavra o concilia o coração alegre com os murmúrios da floresta e as vozes do Tupi21 Ela reúne seu encantamento ao som da balada comunitária O que existe de religioso na sua Histoire se refere ao aspecto quase estático e profético da palavra selvagem mas se dissocia do trabalho conotado pela escrita Uma escritura já parece ter lugar Da enunciação festiva poética efêmera se distingue o trabalho de conservar verificar e de conquistar Um querer está investido nela Transforma discretamente as categorias cristãs que lhe servem de linguagem A eleição eclesial se transforma num privilégio ocidental a revelação original numa preocupação científica de conter a verdade das coisas a evangelização num empreendimento de expansão e de retomo a si A escrita Pg 218 designa uma operação conforme a um centro as partidas e os remetimentos permanecem sob a dependência do querer impessoal que nela se desenvolve e ao qual retornam A multiplicidade dos procedimentos onde se inscrevem as declarações deste querer constrói o espaço de uma ocupação pelo mesmo que se estende sem se alterar Organizações escriturárias comercial científica colonizadora Os caminhos da 20 G 27273 21 Histoire cap XIII G 2 27 e cap XVI G 2 80 Nestes dois casos tratase do Salmo 104 escrita22 combinam o plural dos itinerários e o singular de um lugar de produção 3 Uma hermenêutica do outro Significado por uma concepção da escrita o trabalho de reconduzir a pluralidade dos percursos à unicidade do núcleo produtor é exatamente o que o relato de Jean Léry efetua Como já indica o Prefácio ele é feito de memórias escritas com tinta de brasil e na própria América material duplamente tirado dos Trópicos já que os próprios caracteres que conduzem o objeto selvagem no fio de um texto são feitos com tinta vermelha extraída do paubrasil esta madeira que foi um dos principais artigos de importação na Europa no século XVI23 Mas é pelo efeito de sua organização que a Histoire relata Na verdade a operação literária de trazer de volta para o mesmo produtor o lucro dos signos enviados à distância tem uma condição a diferença estrutural entre ici e làbas O relato joga com a relação entre a estrutura que propõe a separação e a operação que a supera criando assim efeitos de sentido O corte é que o texto supõe por toda parte trabalho de costura 1 O corte Ao nível da manifestação na repartição das massas a separação de cá e de lá aparece inicialmente como corte oceânico é o Atlântico fenda entre o Antigo e o Novo Contando tempestades monstros marinhos feitos de pirataria maravilhas ou avatares da navegação transoceânica os capítulos do início e do final cap IV e XXIXXII desenvolvem este corte estrutural sob a forma histórica de uma crónica sobre a travessia cada episódio modula a estranheza com um elemento particular da gama cosmológica ar água peixe pássaro homem etc acrescentando seu efeito próprio à série na qual a diferença é ao mesmo tempo o princípio gerador e o objeto em que acreditar Os capítulos que apresentam a sociedade tupi cap VIIXIX enquadrados pelos precedentes manifestam o mesmo princípio mas à maneira 22 Em Les Paysans du Languedoc Sevpen 1966 p 331356 Chemins de lécriture Emmanuel Le Roy Ladurie mostrou os laços estreitos geográficos e culturais entre a revolução lingüística marcada pela primeira difusão do francês 14501590 no Languedoc e a revolução intelectual introduzida pela Reforma A extensão do francês e da escrita e do calvinismo retorno à Escritura pelos mesmos caminhos tem por signo a criação de um novo tipo de homem é a restrição formal do prazer e a tolerância tácita à usura é o ascetismo pela proclamação e o capitalismo por preterição p 356 De uma escrita à outra existe combinação e reforço mytuo Mas finalmente a introdução de uma nova lei da escrita muda a santa Escritura que lhe serviu de mediação N da T paubrasil em português no texto 23 Sobre o paubrasil utilizado principalmente na tinturaria cf Frédéric Mauro Le Pó riu gal et 1 Atlantique au XVlle siècle Sevpen1960 p 115145 sistemática de um quadro das Pg 219 dissemelhanças que se devem atribuir a cada gênero e a cada grau de ser a situar no cosmos este país da América o qual como deduzirei tudo que se vê aí seja na maneira de viver dos habitantes forma dos animais e em geral naquilo que a terra produz sendo DISSEMELHANTE do que temos na Europa Asia e África bem pode ser chamado mundo NOVO do nosso ponto de vista24 Neste quadro a imagem do dissemelhante é ou um desvio com relação ao que se vê de cá ou principalmente a combinação de formas Ocidentais que teriam sido cortadas e cujos fragmentos estariam associados de maneira insólita Assim entre os animais de quatro patas dos quais não há nenhuma que em tudo e por tudo seja semelhante aos nossos o tapiruçu é meiovaca e meioasno participando de um e de outro 25 Os seres selvagens repetem neles a cisão que partilha o universo Seu quadro segue uma ordem cosmológica tradicional e serve de arcabouço ao exposto mas é um quadro semeado de inumeráveis espelhos quebrados onde se reflete a mesma fratura metade isto metade aquilo 2 O trabalho de retornar Esta diferença estrutural demultiplicada nos acidentes do percurso ou nos retratos da galeria selvagem forma apenas o lugar onde se efetua também ela modalizada segundo as zonas literárias que atravessa uma operação de retorno O conjunto do relato trabalha a divisão colocada em toda parte a fim de mostrar que o outro retorna ao mesmo Através disto se inscreve a problemática geral de cruzada que ainda comanda a descoberta do mundo no século XVI conquista e conversão26 Mas ele a desloca pelo efeito de distorção que aí introduz a fratura do espaço em dois mundos fratura de agora em diante estrutural Temse um primeiro indício desta operação dinâmica de retomo com a dinámica geral da Histoire Figurado geograficamente o texto está organizado em torno da barra horizontal poraqui ici o mesmoporlá làbas o outro fig I 24 Histoire Prefácio G 13435 Sou eu que sublinho 25 G1 157 26 Alphonse DuprontEspace et humanisme in Bibliothèque d Humanisme et Renaissance Travaux et documents t VIII Droz 1946 p 19 Pg 220 O trabalho que ele efetua pode ser representado como um movimento que faz esta linha virar 90 graus e cria assim perpendicular ao eixo de cáde lá um eixo o outroo mesmo fig II Por esta razão o delá não coincide com a alteridade Uma parte do mundo que aparecia inteiramente outro é reduzida ao mesmo pelo efeito da decalagem que desloca a estranheza para dela fazer uma exterioridade atrás da qual é possível reconhecer uma interioridade a única definição do homem Esta operação será repetida centenas de vezes pelos trabalhos de etnologia Em Léry se manifesta na apresentação do mundo selvagem através de uma partilha entre a Natureza cuja estranheza é exterioridade e a sociedade civil onde é legível uma verdade do homem O corte icilàbas se transforma numa divisão naturezacultura Finalmente é a natureza que é o outro enquanto o homem é o mesmo Verseá aliás que esta metamorfose produto do deslocamento operado pelo texto faz da natureza a região onde se exprimem a experiência estética ou religiosa a admiração e a prece de Léry enquanto o espaço social é o lugar onde se desenvolve uma ética através de um constante paralelo entre a festa e o trabalho Nesta combinação já moderna o trabalho social reprodutor do mesmo e referência de uma identidade coloca fora de si a natureza e a religiosidade Poderseia seguir detalhadamente a curva descrita pelo relato em torno de seu eixo vertical Num primeiro momento ele progride para a alteridade inicialmente a viagem para a terra longínqua cap IV Este movimento recebe sua pontuação última com o cantoêxtase em louvor a Deus fim do capítulo XIII O poema o salmo 104 abre um ponto de fuga para a alteridade fora do mundo inefável Neste ponto começa com a análise da sociedade tupi cap XIVXIX um segundo momento este parte do mais estranho a guerra cap XIV a antropofagia cap XV para nele desvendar progressivamente um modelo social leis da polícia cap Pg 221 XVIII terapêuticas saúde culto dos mortos cap XIX Passado então o corte oceano o relato pode conduzir este selvagem civilizado até Genebra pela rota do retorno cap XXI XXII cf figura III À bipolaridade inicial perigosa e cética verdade do lado de cá erro do lado de lá substituise um esquema circular construído sobre um triângulo de três referências inicialmente Genebra ponto de partida e de retorno aquele dos dois termos da relação inicial que o relato deixa intacto e até mesmo reforça colocandoo fora do campo como início e fim mas não objeto da história depois esta natureza estranha e esta humanidade exemplar ainda que pecadora nas quais a alteridade do novo mundo se divide reclassifrcada assim num universo exótico e na utopia de uma ética segundo a ordem que nela introduz a escrita de Léry Este trabalho é de fato uma hermenêutica do outro Transporta para a novo mundo o aparelho exegético cristão que nascido de uma relação necessária com a alteridade judaica foi aplicado alternadamente à tradição bíblica à antigüidade grega ou latina ou a muitas outras totalidades ainda estrangeiras Uma vez mais extrai efeitos de sentido da relação com o outro A etnologia irá tomarse uma forma de exegese que não deixou de fornecer ao Ocidente moderno com o que articular sua identidade numa relação com o passado ou o futuro com o estranho ou a natureza O funcionamento desta nova hermenêutica do outro já se esboça no texto de Léry sob a forma de duas problemáticas que transformam o seu uso teológico É a operação lingüística de tradução é a posição de um sujeito com relação a uma extensão de objetos Nos dois casos o corte oceano que marca a diferença não é suprimido o texto pelo contrário a admite e a frustra para se estabelecer como discurso de saber Pg 222 A barra entre o antigo e o novo mundo é a linha sobre a qual se vê uma atividade tradutora substituir uma linguagem teológica Esta discreta transformação é indicada por dois capítulos que constituem ambos um na ida o outro na volta um filtro um transit entre a crónica de viagem e o quadro do mundo tupi cf figura III Um cap VI conta os debates teológicos dos quais o forte Coligny na baía do Rio de Janeiro foi o teatro e a inconstância e variação de Villegagnon em matéria de religião causa do desembarque da missão huguenote entre os Tupi do litoral os quais foram sem comparação mais humanos para nós27 O outro cap XX designado por Léry como o colóquio da língua do selvagem28 é um dicionário ou antes um Assimil francêstupi De acordo com o primeiro a ilha Coligny mediação entre o antigo e o novo mundo é um lugar onde reina a divisão e a confusão de línguas É a Babel no interior no Universo Mas aqui a confusão nem mesmo se confessa mais Ela está oculta numa linguagem hipócrita a de Villegagnon onde o que se diz não é o que se pensa e muito menos o que se faz No fim do mundo no limiar do desconhecido tupi prolifera o embuste sob uma reprodução literal da teoria calvinista assim as preces públicas do zelador Villegagnon de quem era difícil conhecer o coração e o interior29 Isto não quer dizer que esta linguagem não está mais ancorada numa realidade que ela flutua nos bordos extremos do Ocidente desligada de sua verdade e de um solo tomada pelas reviravoltas indefinidas de um logro O capítulo XX chega ao termo da descrição do solo tupi Após a confusão lingüística da ilha Coligny este vasto quadro do mundo selvagem é uma epifania de coisas o discurso de uma efetividade Na verdade o conteúdo era dado inicialmente como antinômico mas tinha sido repartido e trabalhado de maneira a se tomar no seu 27 G 1 112 28 Histoire Prefácio G 1 12 Cf supra n 7 a bibliografia que se refere ao Dialogue de Léry Este texto do qual Léry provavelmente não é o autor faz parte da Histoire desde a primeira edição É um dos mais antigos documentos sobre a língua tupi N da T Método rápido e autodidático de aprendizagem de línguas 29 G19196 setor humano um mundo que fizesse justiça à verdade genebrina Desta maneira já está aí uma realidade que lastra o enunciado de Léry O que dele separa o Ocidental não são as coisas mas a sua aparência essencialmente uma língua estrangeira Da diferença constatada resta apenas uma língua por traduzir Daí o capítulo que dá o código da transformação lingüística Ele permite restaurar a unidade tornando a dobrar umas sobre as outras as cascas heterogêneas que cobrem uma identidade de substância O dicionário se toma instrumento teológico Quando a linguagem religiosa é pervertida por um uso que é difícil de conhecer e que remete Pg 223 ao insondável das intenções ou do coração30 instalada sobre a própria linha que traçava a falha do universo a tradução faz passar a realidade selvagem para o discurso ocidental Para isto basta poder converter uma linguagem em outra A operação não torna mais necessária Calvino já o sugerira31 a redução das linguagens a uma língua primeira de onde procederiam todas ela substitui o estarlá de uma origem por uma transformação que se desenvolve na superfície das línguas que faz transitar um mesmo sentido de língua em língua e que logo concederá à lingüística ciência destas transformações um papel decisivo em toda a estratégia recapituladora No lugar onde a Histoire a situa a língua estrangeira já adquire a dupla função de ser o meio pelo qual uma substância a efetividade da vida selvagem vem sustentar o discurso de um saber europeu e de ser uma fábula um falar que não sabe aquilo que diz antes que um deciframento o preveja de uma significação e de uma utilidade O ser que verifica o discurso não é mais recebido diretamente de Deus fazse que venha de là bas onde está a mina de ouro oculta sob uma exterioridade exótica a verdade a revelar sob a garrulice selvagem Esta economia de tradução é aliás em Léry uma problemática geral Por exemplo ela comanda a análise dos seres vivos e aí se particulariza Com efeito as plantas e os animais são classificados de acordo com as modulações de uma distinção constante entre o que se vê a aparência e o que se come substância comestível A exterioridade cativa o olho ela maravilha e espanta mas este teatro é freqüentemente mentira e ficção com relação à comestibilidade sobre a qual se mede a utilidade ou a essência das frutas e dos animais As seduções ou as repulsões do olhar são corrigidos 30 O esforço de unia grande parte dos espirituais franceses no século XVII consiste precisamente em remontar da linguagem religiosa objetiva que se tornou ambivalente e enganadora às intenções e aos motivos ao coração e às condições místicas de uma boa maneira de falar Cf supra A formalidade das práticas p 136186 31 Cf Commentaires de M Jean Calvin sur les cinq livres de Moyse Genebra 1564 sobre a Gênese p 2021 e ClaudeGilbert Dubois Mythe et langage au seizième siècleDucros 1970 p 5456 pelo duplo diagnóstico do gosto é bom ou não para comer cru ou cozido O mesmo ocorre para a fábula exótica voz enfeitiçadora mas freqüentemente enganosa o intérprete a reduz ao útil quando ao criar inicialmente uma distância entre o que ela diz e o que ela não diz traduz o que ela não diz sob forma de verdades boas para se compreenderem na França Uma comestibilidade intelectual é a essência que é necessário distinguir dos encantamentos do ouvido Do espetáculo barroco das plantas e dos animais à sua comestibilidade das festas selvagens à sua exemplaridade utópica e moral enfim da língua exótica à sua inteligibilidade desenvolvese uma mesma dinâmica a da utilidade ou antes a da produção na medida em que esta viagem que acresce o investimento inicial é analogicamente um trabalho produtivo quer dizer um trabalho que produz capital32 Na partida de Genebra Pg 224 uma linguagem se põe em busca de um mundo é a missão privada de efetividade sem terra aparece finalmente nas margens extremas do ocidente a ilha Coligny cap VI como linguagem pura da convicção ou da subjetividade incapaz de defender seus enunciados objetivos contra um uso enganoso senão pela fuga dos locutores A esta linguagem se opõe na outra margem o mundo da alteridade máxima a Natureza selvagem A efetividade é inicialmente a estranheza Mas na espessura desta alteridade a análise introduz um corte entre a exterioridade estética etc e a interioridade um sentido assimilável Opera uma virada lenta começando pela maior exterioridade o espetáculo geral depois a floresta etc progride para as regiões de maior interioridade as doenças e a morte Prepara assim a efetividade selvagem para que se torne por meio de uma tradução cap XX o mundo que diz a linguagem inicial O lugar de partida era um aqui nós relativizado por um alhures eles e uma linguagem privada de substância Ele se toma um lugar de verdade já que lá se mantém o discurso que compreende um mundo Tal é a produção para a qual o selvagem é útil da afirmação de uma convicção leva a uma posição de saber Mas se na partida a linguagem a restaurar era teológica a que se instaura na volta é em princípio científica e filosófica Esta posição do saber se sustenta utilizando a barra doladodecá doladodelá de uma maneira que resulta também da transformação operada Esta linha serve para distinguir entre si o sujeito e o objeto etnológicos No texto ela é traçada pela 32 Podese referir aqui às análises de Marx na Introduction générale d la critique de 1 économie politique K Marx OEuvres Pléiade t I p 237254 e nos seus Principes dune critique de lÉconomie politique ibid t II p 242243 diferença entre duas formas literárias a que conta viagens cap IVI e XXIXXII a que descreve uma paisagem natural e humana cap VIIXIX O relato das ações que atravessam o mundo emoldura o quadro do mundo tupi dois planos perpendiculares cf figura IV Figura IV Pg 225 No primeiro se inscreve a crônica dos fatos e gestos do grupo ou de Léry acontecimentos contados em termos de tempo uma história se compõe com a cronologia muito detalhada das ações empreendidas ou vividas por um sujeito Noutro plano objetos se repartem num espaço que rege nãolocalizações ou percursos geométricos estas indicações são raríssimas e sempre vagas mas uma taxonomia dos viventes33 um inventário sistemático de questões filosóficas etc Em suma a tabela arrazoada de um saber As partes históricas do texto valorizam o tempo como cúmplice de nossa vontade34 e a articulação de um agir ocidental Com relação a este sujeito que age o outro é a extensão onde o entendimento recorta os objetos Para Léry seu livro é uma Histoire35 onde as coisas vistas permanecem 33 Sobre as taxinomias dos seres vivos no século XVI cf Paul Delaunay La Zoologie au XV siècle Hermann 1962 p 191200 e François Jacob La Logique du vivant Gallimard 1970 p 3741 Jean de Léry segue os clássicos e por exemplo quando trata dos pássaros remete à célebre Histoire de la nature des Oyseaux Paris 1555 de Pierre Belon cf G 1176 etc 34 Louis Dumont La Clivrlisation indienne et nous A Colija Cahiers des Annales n 23 1964 p 330 capítulo intitulado Le problème de lhistoire op cit p 3154 faz ressaltar fortemente o caráter particular das evidências próprias ao Ocidente Nós chegaríamos até a crer que apenas a mudança tem um sentido e que a permanência não o tem enquanto que a maioria das soyiedades acreditou o contrário op cit p32 35 Esta história destinada a perpetuar a lembrança de uma viagem G 1 1 e fundada sobre memórias relatadas do Brasil se referem às coisas notáveis por mim observadas em minha viagem G 1 12 Léry se coloca portanto entre os cosmógrafos e outros historiadores de nosso tempo que ligadas às atividades o observador Combina dois discursos que vão se separar Um deles se liga à ciência que distinta da história natural abandonada ao filósofo e da história divina abandonada ao teólogo tem como tarefa segundo Bodin explicar as ações do homem que vive em sociedade e analisar as produções da vontade humana enquanto ela é semper sui dissimilis36 No século XVI ao menos para os teóricos a história supõe autônomos por um lado um sujeito político e jurídico das ações o príncipe a nação a civilidade e por outro lado campos onde sejam mensuráveis as dissimilitudes entre as expressões da vontade do homem direito língua instituições etc37 Em Léry o sujeito é momentaneamente um príncipe do exílio entre o céu e a terra entre um Deus que se afasta e uma terra por encontrar a itinerância do sujeito articula uma linguagem deixada vacante com o trabalho para provêla de uma outra efetividade Mais tarde haverá a etnologia quando o quadro do mundo selvagem tiver adquirido uma hoínogeneidade independente dos deslocamentos da viagem quer dizer quando o espaço da representação objetiva for distinto da razão observante e quando se tomará inútil colocar em cena o sujeito no texto de uma operação construtora 4 A palavra erotizada Nesta Histoire se o sentido passa para o lado do que faz a escrita ela constrói o sentido da experiência tupi como se constrói uma experiência física reciprocamente o selvagem é associado à palavra sedutora O que a literatura de viagem está produzindo é o selvagem como corpo de prazer Frente ao trabalho ocidental as suas ações fabricadoras de tempo e de razão existe em Léry um lugar de lazer e de prazer festa do olho e festa do Pg 226 ouvido o mundo tupi A erotização do corpo do outro da nudez e da voz selvagens caminha junto com a formação de uma ética da produção Ao mesmo tempo que um ganho a viagem cria um paraíso perdido relativo a um corpoobjeto um corpo erótico Esta imagem do outro sem dúvida representou na episteme ocidental moderna um papel ainda mais importante do que o representado pelas idéias críticas veiculadas na Europa através dos relatos de viagem Como se viu o lucro trazido pela escrita parece recortar um resto que vai escreveram sobre o Brasil G 1 40 Duplo caráter desta história ela conta uma ação e recusa uma verdade que não fosse observada ou experimental 36 Jean Bodin Methodus ad facilem historiaram cognitionem 1566 cap primum in OEuvres philosophiques ed Mesnard PUF 1951 p 114115 37 Cf as observações de George Huppert L Idée de l histoire parfaite Flammarion 1973 p 93109 a propósito de Jean Bodin e 157176 Le sens de lhistoire definir também o selvagem e que não se escreve O prazer é o vestígio desse resto Encantamentos de Léry festas dos tupi salmos silvestres de um e danças e baladas aldeãs dos outros Excesso que constitui um lugar comum entre eles Mas isto é o efémero e o irrecuperável Momentos inexploráveis sem renda e sem lucro Alguma coisa do próprio Léry não retoma de làbas Estes instantes rompem o tempo do viajante da mesma maneira que a organização festiva dos tupi escapa da economia da história O gasto e a perda designam um presente formam uma série de quedas e quase de lapsos no discurso ocidental Estes cortes parecem vir desfazer de noite a construção utilitária do relato O inaudito é o ladrão do texto ou mais exatamente é aquele que é roubado ao ladrão precisamente aquele que é ouvido mas não compreendido e portanto arrebatado do trabalho produtivo a palavra sem escrita o canto de uma enunciação pura o ato de falar sem saber o prazer de dizer ou de escutar Não se trata aqui de fatos ou de experiências extraordinárias que os discursos hagiográficos ou místicos utilizam sob formas aliás muito diferentes para estabelecer o estatuto de uma linguagem de verdade38 Na Histoire o maravilhoso marca visível da alteridade não serve para propor outras verdades ou um outro discurso mas pelo contrário serve para fundar uma linguagem sobre a capacidade operatória de dirigir a exterioridade para o mesmo O resto de que falo é antes uma recaída um efeito segundo desta operação um dejeto que ela produz ao triunfar mas que não visava a produzir Este dejeto do pensamento construtor sua recaída e seu recalcamento isto será finalmente o outro Que a imagem do outro eliminada do saber objetivo retome sob outras formas para as margens deste saber é o que manifesta a erotização da voz Mas este deslocamento exige que se o situe no conjunto que o prepara pois ele é relativo à representação geral do relato que faz da sociedade selvagem uri corpo de festa e um objeto de prazer Globalmente uma série de oposições estáveis mantém ao longo do texto a distinção entre o selvagem e o civilizado Assim Pg 227 SELVAGEM Nudez festa ornamento passatempos lazer festa X CIVILIZADO Vestimenta enfeite coqueteria trabalho profissão 38 Sobre o discurso hagiográfico cf infra cap VII Sobre o discurso místico cf M de Certeau L Absent de lhistoire Mame 1973 p 153166 e Le Langage mystique no prelo unanimidade proximidade coesão prazer divisão distância ética Os Tupi são emplumados do pássaro ao homem do mundo selvagem modula as combinações da penaornamento e da nudez sem pêlos Saltar beber e cauinar é quase sua profissão ordinária39 Para o artesão que é Léry o que é então que eles fabricam Fazem a festa pura expressão que não conserva e não rentabiliza nada presente fora do tempo excesso No espelho Tupi aparece assim a imagem invertida do trabalhador Mas a operação que não deixa à diferença senão uma exterioridade tem como efeito transformála num teatro de festa Produz uma estetização do selvagem Personagem do espetáculo o selvagem é entretanto sob esta forma o representante de uma outra economia diferente da do trabalho Ele a reintroduz no quadro Digamos a título de hipótese que ele é o retorno sob forma estética e erótica daquilo que a economia de produção teve que recalcar para se constituir Com efeito ele se situa no texto na junção de um interdito e de um prazer Por exemplo a festa selvagem é o que surpreende Léry ele está encantado mas igualmente o que ele surpreende penetrando por arrombamento na casa dos Tupi Transgressão dupla com relação à sua lei e com relação à deles Na aldeia onde se reuniam ele sente algum susto ao ouvilos cantar de longe Todavia depois que aqueles ruídos e urros confusos terminaram fazendo os homens uma pequena pausa as mulheres e as crianças calandose também nós os escutamos mais uma vez cantando e fazendo ressoar suas vozes de forma tão maravilhosa que estando um pouco mais seguro ouvindo estes doces e mui graciosos sons não era preciso perguntar se eu desejava vêlos de perto40 Um momento em suspenso por causa do perigo ele se adianta apesar do seu língua intérprete que jamais havia ousado meterse entre os selvagens em tal festa Aproximandose pois do lugar onde eu escutara esta cantoria como ocorre que as casas dos selvagens são muito compridas e arredondadas como vós direis das latadas dos jardins de cá cobertas que são de ervas até o chão a fim de melhor enxergar a meu prazer fiz com as mãos um pequeno furo na cobertura41 39 G 1 130 Cauinar é festejar bebendo o sauim beberragem tirada do milho chamado Avati No cap IX de sua Histoire Léry se estende longamente sobre a fabricação do sauim e sobre as cauinnagens durante as festas que nos friponniers et galebontemps dAméricains celebram por miríficas bebedeiras 40 Histoire cap XVI G 2 69 41 G 26970 Eu sublinho Pg 228 Neste lugar de prazer defendido por uma cobertura como os jardins do país de onde vem é que ele penetra finalmente Fazendo sinal com os dedos aos dois franceses que me olhavam eles a meu exemplo se animaram e se aproximaram sem impedimento nem dificuldade nós entramos os três nesta casa Vendo pois que os selvagens como o temia o língua não se aborreciam nada conosco antes pelo contrário mantinham suas posições e sua ordem de uma maneira admirável e continuavam suas canções nós nos retiramos para um canto e os contemplamos até a saciedade42 O relato conta o prazer de ver pelo pequeno furo como por um buraco de fechadura antes de estar num canto a gozar até a saciedade deste sabbat e destas Bacanais43 mais ainda ele diz o prazer de escutar de perto os ruídos assustadores e sedutores que tomam irressistível a temeridade de se aproximar estas cenas de erotismo etnológico se repetirão nos relatos de viagem Elas têm sua caução na cena inaugural de Sodoma e Gomorra Tratase também de um novo mundo e da sua descoberta Primeira aparição dos homensmulheres ele é escutado inicialmente de uma casa apenas separada da de Jupiano por um tabique muito fino O herói se precipita nele sem precaução As coisas deste gênero às quais assisti tiveram sempre na encenação o caráter mais imprudente e menos verossímil como se tais revelações não devessem ser a recompensa senão de um ato pleno de riscos ainda que em parte clandestino Eu não ousava me mover O palafreneiro dos Guermantes sem dúvida aproveitandose de sua ausência havia transferido para a casa onde eu me encontrava uma escada até então na cocheira E se eu tivesse trepado nela teria podido abrir o postigo e escutar como se estivesse na própria casa de Jupiano Mas eu temia fazer barulho De resto era inútil Nem tive que lamentar não ter chegado à minha casa senão ao cabo de alguns minutos Pois de acordo com o que escutei logo no começo na casa de Jupiano e que não foram senão sons inarticulados suponho que poucas palavras foram pronunciadas É verdade que estes sons eram tão violentos que se eles não tivessem sido sempre retomados uma oitava mais alto por um lamento paralelo teria podido crer que uma pessoa degolava outra a meu lado e que em seguida assassino e sua vítima ressucitada tomavam um banho para apagar os traços do crime Concluí disto mais tarde que existe uma coisa tão ruidosa quanto o sofrimento é o prazer44 Os ruídos que chegam da festa dos homensselvagens assim como os sons inarticulados que assinalam a dos homensmulheres não têm conteúdo inteligível São chamados fora da órbita do sentido Esquecimentos das precauções perdas de entendimento arrebatamentos Esta linguagem não obtém mais o seu poder do que diz 42 G 2 70 43 G 2 71 e 73 44 M Sodome et Gomorrhe 1a parte in Marcel Proust A la recherche du temps perdu Pléiade1954 t II p 608609 mas do que faz ou do que Pg 229 é Também não poderia ser verdadeira ou falsa Está além ou aquém desta distinção O lado de lá retoma sob esta forma Tal como um grito o ato de enunciação derruba o enunciado e toda a organização da forma ou do referente É o insensato Faz gozar Respondendo a este chamado o gesto de chegar mais perto diminui a distância mas não a suprime Cria uma situação de interdito A voz com efeito transita no intermédio do corpo e da língua mas num momento de passagem de um ao outro e como que na sua diferença mais frágil Aqui não existe nem o corpoacorpo da violência amorosa ou festiva nem o palavraporpalavra ou o textoportexto da ordem semântica própria de uma linearidade lingüística O corpo que é o adensamento e a nãotransparência dos fonemas não é ainda a morte da linguagem A articulação dos significantes se altera e se apaga resta nela entretanto a modulação vocal meio perdida mas não absorvida pelos rumores do corpo Estranho intermédio onde a voz emite uma palavra sem verdades e a proximidade uma presença sem posse Este momento escapa tanto às legalidades e às disciplinas do sentido como às violências do corpo é o prazer ilegal e cerebral de estar lá onde a linguagem anuncia esmaecendo nela o advento de uma violência desejada temida mantida à distância pelo espaço da audição Este excesso erótico ocorre na sustentação do sistema que fez o corpo do outro observador Ele supõe a legalidade que transgride Que o desejo seja o reverso da leis45 eis o que repete a voz escutada 5 Visto eou escutado o olho e o ouvido A supressão da estranheza efetiva do selvagem corresponde o deslocamento da sua realidade exterior por uma voz Deslocamento bem conhecido O outro retoma sob a forma de ruídos e urros ou de doces e graciosos sons Estas vozes do fantasma se combinam com o espetáculo ao qual a operação observadora e escriturária reduziu os Tupi O espaço no qual o outro se encontra circunscrito compõe uma ópera Mas se as imagens e as vozes restos transformados da festa medieval estão igualmente associados ao prazer e formam juntos um teatro estético por detrás do qual se mantém preservadas pela escrita as vontades fundadoras de operações e de julgamentos sobre as próprias coisas o quadro se desdobra segundo uma oposição entre o visto e o 45 Jacques Lacan Écrits Seuil 1966 p 787 in Kant aves Sade ouvido46 A maneira das imagens que se movem nos livros conforme as olhemos com óculos verdes ou vermelhos o selvagem se desloca no mesmo quadro conforme dependa do olho ou do ouvido Pg 230 A estes dois termos seria necessário acrescentar um terceiro para ter a série à qual correspondem os diferentes registros do selvagem a boca c olho o ouvido A instância bucal vem da comestibilidade do selvagem t define a sua substância e faz frente da parte do Ocidente à sua antropofagia assunto obsedante cujo tratamento foi sempre central e fixo o estatuto da futura etnologia Esta relação de poder inscrita no texto como se viu é aliás o que torna o texto possível Então o relato dispõe o objeto que lhe foi preparado por esta ação preliminar Aí se diversificam as composições do olho e os trajetos da voz Pois o audiovisual está clivado O olho está a serviço de uma descoberta do mundo É a cabeçadeponte de uma curiosidade enciclopédica que no século XVI amontoa freneticamente os materiais e estabelece assim os fundamentos da ciência moderna O raro o estranho o singular objetos já colecionados pela atenção medieval são apreendidos no fervor de uma ambição que nada permaneça estranho para o homem e que tudo se torne servidor dele47 Existe uma vertigem de curiosidade que orquestra então o desenvolvimento de todas as ciências curiosas ou ciências ocultas A embriaguês de saber e o prazer de ver penetram a obscuridade e desdobram a interioridade dos corpos em superfícies oferecidas à vista Esta curiosidade conquistadora e de direito ocupada em desvelar o oculto tem seu símbolo nos relatos de viagem com o face a face do descobridor vestido armado cruzado e da índia nua Um novo mundo se levanta do outro lado do oceano com a aparição das mulheres tupi nuas como Vênus no meio do mar no quadro de Botticelli Estupor de Léry estas índias querem permanecer sempre nuas Em todas as fontes e rios claros elas jogam com as duas mãos água sobre suas cabeças e se lavam e mergulham assim todo o corpo como canas hoje já serão mais de doze vezes48 Estas aparições às margens dos rios claros têm o seu correspondente noturno na ilha Coligny onde os franceses fazem trabalhar como escravas as índias prisioneiras 46 Cf as observações de Guy Rosolato a propósito das alucinações Essais sur le symbolique Gallimard 1969 p 313 ss 47 Alphonse Dupront Espace et humanisme op cit p 2633 sobre a curiosidade 48 G 1136 de guerras Assim que caía a noite elas se despojavam secretamente de suas camisas e de outros andrajos que se lhes dera era necessário que para seu prazer e antes de se deitarem elas passeassem todas nuas pela nossa ilha49 A nudez destas mulheres da noite loucas de prazer é uma visão muito ambivalente Sua selvageria fascina e ameaça Ela vem do mundo desconhecido Pg 231 onde estão as índias tupi segundo Léry as únicas a trabalhar incansavelmente ativas e vorazes também as primeiras a praticar a antropofagia Assim faz a mulher que recebeu como marido para cuidar o prisioneiro destinado a ser comido Ora tão logo o prisioneiro tivesse sido abatido se ele tivesse uma mulher como eu disse que se dá a alguns ela pondose perto do corpo fará algum pequeno luto Digo especialmente um pequeno luto pois segundo verdadeiramente aquilo que se diz que o crocodilo faz a saber que tendo matado um homem ele chora perto dele antes de comê lo também depois que esta mulher tiver feito semelhantes lamentos e derramado algumas falsas lágrimas sobre seu marido morto Se puder será a primeira a comer dele Isto feito as outras mulheres e principalmente as velhas as quais mais desejosas de comer carne humana do que as jovens solicitam incessantemente a todos aqueles que têm prisioneiros de fazêlos assim rapidamente despachar apresentandose com a água quente que tem preparada esfregam e escaldam de tal maneira o corpo morto que tendo arrancado a primeira pele elas o fazem tão branco quanto os cozinheiros de cá poderiam fazer um leitão pronto para assar50 Como era gostoso o meu Francês diz por sua vez no filme de Nelson Pereira dos Santos a Índia tupi que teve por marido um prisioneiro francês antes de devorálo51 Esta selvagem repete o fantasma ocidental das feiticeiras dançando e gritando de noite ébrias de prazer e devoradoras de crianças O sabbat que Léry evoca52 está aliás na continuidade daquilo que se tomou o carnaval de outrora progressivamente rejeitado para fora das cidades pelo desenvolvimento das comunas burguesas exilado nos campos nas florestas e nas noites53 Este mundo de lá festivo condenado 49 G 1137 50 G 2 4748 As mulheres velhas diz Léry apreciam muito comer carne humana G 2 48 elas são gulosas disto G 2 50 N da T em português no texto 51 Como era gostoso o meu francês Uma história do Brasil filme brasileiro de Nelson Pereira dos Santos 1973 sobre a antropofagia tupi do século XVI segundo os relatos de Thévet e de Léry Mas ele se refere à corrente literária brasileira dita antropofágica dos anos 1920 o Brasil assimila a contribuição estrangeira e à maneira de uma fábula ele critica o amor que a partir de 1964 um regime totalitário manifesta por seus súditos 52 G 2 71 53 O desenvolvimento do trabalho comercial nas cidades progressivamente recalcou o tempo vago e festivo do carnaval cf por exemplo Job7 Lefebre Les fols et la folie Paris 1959 Sobre o sabbat e a feitiçaria a bibliografia é imensa Cf Julio Caro Baroja Les Sorcières et leur monde Gallimard 1972 p 97115 ou M de Certeau L Absent de 1 histoire Mame 1973 p 1340 A literatura da viagem ameaçador reaparece exilado no fim do universo na margem extrema da empresa conquistadora E como o exorcista seu colega de cá o exploradormissionário tem como tarefa expulsar as feiticeiras do estrangeiro Mas ele consegue muito menos localizálas no teatro dó exorcismo etnológico O outro retoma com a imagem da nudez presença exorbitante54 com o fantasma do sexo denteado a vagina dentata que habita a representação da voracidade feminina ou com a irrupção dançante de prazeres proibidos Mais fundamentalmente o mundo selvagem como o mundo diabólico se torna Mulher Ele se declina no feminino Pg 232 Mas uma outra imagem se superpõe sem dúvida à reminiscência das feiticeiras Com relação a nós os Tupi são mais fortes mais robustos e gordos mais dispostos menos sujeitos a doença e mesmo quase não existem coxos coalhos disformes nem enfeitiçados entre eles Antes muitos alcançam até a idade de cem ou cento e vinte anos poucos deles existem que na sua velhice tenham cabelos brancos ou grisalhos Quase deuses todos bebendo verdadeiramente da fonte da Juventude O pouco de cuidado e de preocupação que tem das coisas deste mundo convém a um paraíso onde os bosques ervas e campos estão sempre verdejantes55 No meio desta eterna primavera uma das coisas duplamente estranhas e verdadeiramente causa de admiração que observei nestas mulheres brasileiras diz Léry é sua nudez Não apenas inocente sem sinal de ter embaraço ou vergonha56 mas primitiva anterior à história humana Nas representações do Renascimento a nudez tem valor de atributo divino Ela é de fato o indício de teofanias desvelamento do Amor divino que uma série de quadros opõe às festas mostrando o Amor humano vestido e ornado57 Sob este aspecto o aparecimento da selvagem é o de uma deusa nua nua sob seus cabelos negros M Duras Mas nascendo do mar as Índias não são mais como as antigas guardadas na nòmendatura do Panteon grecolatino elas surgiram fora do espaço mediterrâneo semantizado deusas sem nome próprio saindo de um oceano desconhecido dos antigos infelizmente ainda não foi estudada sistematicamente como um imenso complemento e deslocamento da demonologia Entretanto as mesmas estruturas são reencontradas ali 54 Emmanuel Levinas Totalité et infini Haia Nijhoff 1971 p 234 sobre a nudez exibicionista de uma presença exorbitante sem significação 55 G11236 56 G 1 136 e 123 57 Sobre as representações inspiradas nos artistas do Renascimento pela oposição platónica cara a Ficin entre o Amor divinas nu e o Amor humanas vestido cf Erwin Panofsky Renaissance and Renaseences in Western Art Londres Paldin 1970 p 188200 são teofanias como a Vênus de Botticelli ou a de Mantegna a Felicità Eterna de Ripa a Bella disornata de Scipione Francesci etc Estas mulheres onde o diabólico e o divino se alternam que oscilam entre o além e o aquém do humano este animal se deleita tão fortemente desta nudez58 escreve Léry são entretanto um objeto colocado no espaço do qual se distingue o olhar Uma imagem e não mais uma origem mesmo se a aparição guarda a inquietante estranheza daquilo a que ela se substitui Dá mesma forma que na pintura do Renascimento a Vênus desvelada substitui a Mãe dos homens mistério de Maria59 ou de Eva e que nela enfim a verdade toda nua é a que o olho se permite ver também as Índias configuram o segredo que um saber transgride e desencanta Como o corpo nu da Índia o corpo do mundo se torna uma superfície aberta às inquisições da curiosidade Na época ocorre o mesmo com relação ao corpo da cidade e ao do doente transformados em espaços legíveis Pelos pequenos furos de experiências sucessivas o véu tradicional que ocultava a opacidade das coisas se rasga e permite reconhecer a terra ocularmente60 Da transgressão que acompanha o nascimento de uma ciência Léry Pg 233 resume os dois elementos bom pé bom olho61 Ver e visitar diz ainda62 Seu propósito se esclarece com uma observação de Freud sobre a relação que a escrita que percorre e o saber que metamorfoseia os sujeitos em objetos mantém com o pisoteamento do corpo da mãe terra63 Deste trabalho as mulheres nuas vistas e sabidas designam metonimicamente o produto Indicam uma nova relação escriturária com o mundo são o efeito de um saber que pisa e percorre ocularmente a terra para construir nela a representação O processo fundamental dos tempos modernos é a conquista do mundo enquanto imagem concebida64 Mas a aparição das mulheres na Histoire guarda ainda o vestígio dos riscos e das incertezas que no século XVI acompanham a inversão da terramãe em terraobjeto Através delas o relato conta também os inícios e as temeridades de um olhar científico Tanto o objeto visto é descritível homogêneo às linearidades do sentido enunciado e do espaço construído como a voz cria um abismo abre uma brecha no 58 G 1 136 59 Vênus substitui a Virgem escreve Pierre Francastel a propósito de Botticelli La figure et le lieu Lordre visuel du Quattrocento Gallimard 1967 p 280 Mas isto não é apenas a substituição da mulher sagrada pela mulher profana é a substituição da mãe por um objeto do ver e do saber 60 Marc Lescarbot L Histoire dela Nouvelle France Paris 1609 p 542 61 G1138 62 Durante um ano que permaneci neste país estive tão curioso de contemplar os grandes e os pequenos que dandome conta de que os vejo sempre diante de meus olhos terei sempre a idéia e a imagem deles em meu entendimento Mas para desfrutar deles é preciso vêlos e visitálos em seu país G 1 138 o grifo é meu 63 Sigmund Freud Inhibition symptôme et angoisse PUF 1968 p4 64 Martin Heidegger Chemins qui ne mènent nulle part Paris 1962 p 8185 texto restaura um corpoacorpo Voz em off O que sai da boca e o que entra pelo ouvido pode ser da ordem do arrebatamento Então os ruídos superam a mensagem e o cantado supera o falado Uma quebra do sentido e do tempo segue a chegada de uma cantoria a dos selvagens65 ou a da grande floresta Ouvindo o canto de uma infinidade de pássaros trinadores entre estes bosques onde batia então o sol vendome digo como convidado a louvar Deus por todas estas coisas tendo além disto o coração alegre me pus a cantar em voz alta o Salmo 104 Sus sus minha alma é preciso que digas etc66 O chamado que os sons graciosos da festa tupi traziam e o apelo vindo dos pássaros trinadores que convidam a cantar tem uma estrutura análoga muito semelhante aliás a muitas outras Assim a vocação do xamã indígena é freqüentemente a audição de um pássaro da floresta impulsão e aptidão para cantar67 Quase imediatamente atingida por um sentido religioso ou não nela mesma a voz cria a falha de um esquecimento e de um êxtase Diferentemente daquilo que ocorre no xamanismo ela não constitui aqui uma função social pelo contrário atravessa a linguagem faz do insensato o buraco por onde se engendra um irresistível poema É preciso que digas é ainda uma fórmula recebida mas já marca o lugar onde irá crescer o dilaceramento de um excesso a urgência de um dizer de um ato de enunciação que não é dócil a uma verdade dita nem submetido a um enunciado Não caminha na direção da vontade conservada em sua pureza pela escrita da qual Jean de Léry louvava os poderes Pg 234 Sob um envolvimento sensorial de ventos de sopros e de ruídos estranhos ao normal se oculta um parto pela orelha68 designa uma violação ou um encantamento que atravessa a razão social é a aquiescência à voz do outro voz do seu senhor e do pai voz da consciência voz onde se indica originariamente representada no mito como demanda incestuosa do sacrifício a figura obcena e feroz do Superego69 Esta imagem designa a alteridade intransponível que forma o desejo do sujeito Eu não o evoco senão para sublinhar o ponto que importa aqui o escutado não é o 65 Cf supra p 192193 e 211 66 G 2 80 67 Cf por exemplo Alfred Métraux Religions et magies indiennes d4mérique du Sud Gallimard 1967 p 82 ss Le chaman des Guyanes et de lAmazonie e p 105 ss Le chamanisme chez les Indiens du Gran Chaco a propósito da vocaçio do chaman 68 Cf Ernest Jones Psychanalyse folklore religion Payot 1973 p 227299 La conception de la Vierge par loreille Contribution à la relation entre lesthetique et la religion 69 Jacques Laran Écrits op cit p 360 619 684 etc Aliás é sempre a propósito do superego que a voz aparece na análise lacaniana esperado Isto não parece com nada o que sobrevém Também não é verossímil Ter sentido é ser verossímil Inversamente ser verossímil não é nada mais do que ter um sentido Finalmente o verossímil não tem senão uma característica constante ele quer dizer ele é um sentido70 Desta maneira o escutado não é o dizível senão indiretamente através de uma deiscência metafórica que rompe a linearidade do discurso Insinua uma decalagem um salto uma confusão de gêneros É passagem para um outro gênero metabasis eis allo genos como diz Aristóteles Mais geralmente a própria voz teria uma função metafórica delineadora e alteradora na medida em que corta o quadro metonímico do ver Se escárnio do significante a metáfora se coloca no ponto preciso onde o sentido se produz no não sentido71 ela seria com efeito o movimento pela qual um significante é substituído pelo seu outro72 uma palavrapela outra mas também o próprio artifício que subverte a palavra Através destas irrupções metafóricas do fabulatório e destes lapsos do sentido a voz exilada para as margens do discurso refluiria e com ela o murmúrio e os ruídos de que se distingue a reprodução escriturária Assim uma exterioridade sem começos nem verdades tomaria a visitar o discurso Seria demais a propósito de um único texto reconhecer entre o visto e o ouvido a distinção de dois funcionamentos do selvagem com relação à linguagem que trata dele seja como objeto do discurso construtor de quadros seja como alteração rapto mas também vocação deste discurso Estas duas funções se combinam Pois a exterioridade bocal é também o estimulante e a condição do seu oposto escriturário Ela lhe é necessária na medida em que o necessário como diz Jacques Lacan é precisamente aquilo que não cessa de escrever73 O selvagem se torna a palavra insensata que encanta o discurso ocidental mas que por causa disto mesmo faz escrever indefinidamente a ciência produtora de sentido e de objetos O lugar do outro que ele representa é pois duplamente fábula a título Pg 235 de um corte metafórico feri o ato de falar que não tem sujeito nomeável e a título de um objeto a compreender a ficção a traduzir em termos de saber Um dizer para o dito ele é rasura do escrito e obrigado a estender nele a produção ele faz escrever O relato de Léry esboça por todos os meios a ciência desta fábula esta será 70 Julia Kristeva Sèméiotikè Rechercehs pour une sémanalyse Seuil 1969 p 211212 71 Jacques Lacan op cit p 557 e 508 72 A metáfora com efeito permite designar as realidades que não podem ter termo próprio portanto quebrar as fronteiras da linguagem dizer o inefável Michel de Guern Sémantique de la métaphore et de la métonymie Larousse 1973 p 72 73 Jacques Lacan Le Séminaire livre XX Encore Seuil 1975 p 99 essencialmente a etnologia ou o modo de sua intervenção na história Pg 236 Pgs 237 a 242 Notas Capítulo VI A LINGUAGEM ALTERADA A palavra da possuída A palavra da possuída propõe uma questão dupla Por um lado a possibilidade de aceder ao discurso do outro problema do historiador o que se pode apreender do discurso do ausente Como interpretar os documentos ligados a uma morte intransponível quer dizer a um outro período e a uma experiência inefável sempre abordada pelo lado de onde é julgada a partir do exterior Por outro lado a alteração da linguagem através de uma possessão objeto próprio deste exposto Minhas reflexões seguem os estudos sobre La Possession de Loudun exemplo padrão caso particularmente célebre na série de possessões que progressivamente substituiu as grandes epidemias de feitiçaria por volta de 161016301 Freud aliás manifestou um interesse muito grande pela feitiçaria Leu com entusiasmo o Malleus maleficarum Ele próprio dizia na sua correspondência a Wilhelm Fliess2 ou a outros que havia entre a relação do inquisidor do exorcista e da possuída ou do feiticeiro alguma coisa de análogo à relação entre o analista e seu cliente Mas no diabólico e no seu desenvolvimento no decorrer de um século quer dizer cerca de 1550 a 1660 é necessário distinguir duas formas sucessivas que me contento simplesmente com lembrar A primeira forma é a feitiçaria fenômeno rural à irrupção maciça dos feiticeiros nos campos se opõe à repressão dos juízes urbanos freqüentemente impiedosos Aí se tem uma estrutura dual por um lado os juízes e por outro os feiticeiros por um lado a cidade por outro o campo A segunda forma são as possessões que aparecem no final do século XVI É o caso de microgrupos Pg 243 por exemplo nos conventos de religiosas Círculos pequenos se constituem como ilhas ou para retomar uma representação que organiza o século XVII religioso em refúgios em reduções no campo Estas possessões ocorrem em meios homogêneos ou idénticos aos dos juízes Diferentemente da feitiçaria onde existe disparidade social entre o juiz e o feiticeiro no caso da possessão existe homogeneidade social entre o juiz ou o exorcista e por outro lado o ou a possuído a De binária a relação juiz feiticeiro a estrutura se torna ternária e o terceiro termo a possuída a vítima é 1 Michel de Certeau La Possession de Loudun Julliard 1970 cf também L Absent de l Histoire Mame 1973 2 Sigmund Freud La Naissance de la psychanalyse Paris PUF 1956 p 165168 etc privilegiada nesta história Enfim última diferença o combate contra a notável peste dos feiticeiros se torna com a possessão um processo que oscila entre um debate sobre os quadros de referência de uma sociedade e por outro uma teatralização das guerras sociais religiosas filosóficas políticas da época A possessão é uma cena enquanto que a feitiçaria é um combate A possessão é um teatro onde se representam questões fundamentais mas à maneira de uma encenação enquanto que a feitiçaria é uma luta um corpo a corpo entre duas categorias sociais Assim no caso de Loudun encarado aqui a título de exemplo uma vintena de religiosas ursulinas forma o grupo das possuídas Não é por acaso que a possuída é essencialmente feminina por detrás do cenário representase uma relação entre o masculino do discurso e o feminino da sua alteração Mas durante seis anos 1632 1638 estas possuídas religiosas forneceram um lugar espetacular para discussões que atraem visitantes aos milhares e alimentam uma superabundante literatura da qual os autores são alternadamente teólogos eruditos interessados por razões a respeito das quais seria necessário se interrogar Os estoques de manuscritos e de obras antigas conservados hoje nos arquivos nacionais ou municipais permitiramme num primeiro momento analisar de que maneira um lugar diabólico uma cena diabólica havia sido organizado pelo jogo de tensões sociais políticas religiosas ou epistemológicas e como esta composição de lugar esta produção de um espaço teatral havia tornado possível uma reclassificação das representações sociais em função de uma mutação dos quadros de referência Deste ponto de vista a possessão é um fenômeno paralelo à criação do teatro nos séculos XVI e XVII Do carnaval medieval passase ao teatro do século XVII quando a representação que a sociedade se dá de si mesma localizase e se miniaturiza deixando de ser liturgia popular Então no pequeno teatro da possessão representase uma modificação das estruturas epistemológicas políticas e religiosas da época Enfim tentarei analisar como os Pg 244 deslocamentos assim operados no teatro durante alguns anos tiveram valor de sintoma com relação ao trabalho que transformava no mesmo momento o corpo inteiro da sociedade Loudun é alternadamente a metonímia e a metáfora que permitem apreender como uma razão de Estado uma nova racionalidade substitui a razão religiosa Este primeiro estudo La Possession de Loudun tratava de compreender o espetáculo diabólico como um fenômeno social examinando nele as regras às quais o jogo dos personagens obedecia no campo religioso médico ou político e por outro lado as relações que os processos de aculturação social mantinham com uma lógica do imaginário Um discurso do outro Eu gostaria no presente momento de tentar analisar uma questão que abandonei como resto e que colocaria inicialmente sob o signo de uma transgressão da própria possuída Existe um discurso do outro na possessão Dito de outra maneira meu primeiro ensaio de interpretação não dava um lugar suficiente a uma questão que no entanto permanecia no horizonte a saber o próprio discurso das possuídas enquanto este discurso se diz falado por um outro Alguém outro fala em mim eis o que diz a possuída Esta questão não poderia ser tratada senão após um exame histórico do teatro sóciocultural de que era o lugar Mas é preciso analisar mais de perto na relação dos atores de Loudun a combinação de duas posições dissimétricas por um lado a das possuídas por outro a de seus juízes exorcistas médicos etc Por um lado entre as possuídas existe indeterminação do lugar de onde falam que se dá sempre como um alhures que fala em mim Alguma outra coisa que permanece indeterminada fala Por outro lado os exorcistas ou os médicos respondem por um trabalho de nominação ou de denominação que é característico da possessão em qualquer sociedade tradicional O essencial da terapêutica na possessão quer seja na África quer na América do Sul consiste em nomear em dar um nome àquele que se manifesta como falante mas incerto e portanto indissociável de perturbações de gestos e de gritos Uma alteração se produz e a terapêutica ou o tratamento social consiste em dar um nome já previsto nos catálogos da sociedade a esta palavra incerta A tarefa dos médicos e dos exorcistas é a nominação que visa a classificar as falantes num lugar circunscrito pelo saber que estes médicos ou estes exorcistas detêm Pg 245 Por um lado não se sabe quem fala ou do que fala por outro se tem um saber que tende a reclassificar a alteridade que se apresenta Deste ponto de vista mesmo que exista entre os exorcistas e os médicos uma divergência sobre as taxonomias em função das quais efetuam a reclassificação quer dizer mesmo que o saber médico e o saber religioso não se assemelhem nos dois casos um saber se dá como capaz de nomear Exorcistas e médicos se opõem juntos à exceção delinqüente herética ou doente ao anormal que a possuída representa Eles se opõem à sua fuga pois ela se exila da linguagem social trai a topografia lingüística que permite organizar uma ordem social Exorcistas e médicos tentam então compensar reabsorver a escapada da possuída para fora dos campos de um discurso estabelecido Médicos e exorcistas não se entendem sobre o que é a norma para uns ela compreende a intervenção visível de um cosmos sobrenatural e para outros ela exclui esta intervenção Mas eles se entendem fundamentalmente para eliminar uma extraterritorialidade da linguagem O que combatem pela nominação é o foradotexto onde se coloca a possuída quando se dá por enunciado de alguma coisa que é fundamentalmente outro Esta maneira de encarar o problema da possessão evidentemente não é inocente Da minha parte ela se apóia em hipóteses Particularmente admito entre o que diz a demoníaca ou possuída e o que dizem os tratados demonológicos ou os exorcistas testemunhas da demonologia uma distinção análoga à que existe entre o discurso daquele que se chama louco e por outro lado o discurso da psiquiatria e sob certos aspectos da psicanálise Haveria um corte entre o que diz a possuída e o que dela diz o discurso demonológico Não se poderia identificar o saber sobre a possessão com o que diz a possuída não mais do que se poderia identificar o saber psiquiátrico ou psicanalítico com o que diz o louco ou a louca adotando referências vagas Inversamente e este é outro postulado eu não poderia supor que com certeza o discurso da possuída existe em algum lugar tal como um tesouro escondido por desenterrar de sob as interpretações que o recobririam tampouco o que ela diz do outro se constitui como um discurso análogo ainda que oposto ao discurso de um saber psiquiátrico ou religioso Da mesma forma que a relação com o psiquiatra e portanto com a constituição da psiquiatria representa para o assim chamado doente mental a condição do seu discurso num lugar do hospital que lhe foi designado antecipadamente pelo médico também o tratado de demonologia ou os interrogatórios do exorcista fornecem antecipadamente à possuída a Pg 246 condição e o lugar do seu dizer A doente ou a louca recebe do discurso psiquiátrico a possibilidade de preferir enunciados da mesma forma a possuída não pode se enunciar a não ser graças ao interrogatório ou ao saber demonológico ainda que seu lugar não seja o do discurso do saber que é enunciado sobre ela A palavra da possuída se constitui relativamente ao discurso que a espera naquele lugar na cena demonológica assim como a louca no hospital não tem por linguagem senão aquela que lhe é preparada na cena psiquiátrica Isto significa primeiramente que não se pode supor de parte da possuída um discurso diferente daquele que efetivamente enuncia como se existisse no subsolo um outro discurso intacto por desenterrar Em segundo lugar que não se pode identificar aquilo que ela diz no lugar lingüístico e social onde lhe é necessário estar para poder articular um discurso 1 Transgressão e interdição Transgredir significa atravessar O problema que se coloca aqui é o de uma distorção entre a estabilidade do discurso demonológico ou do discurso médico como discurso do saber e por outro lado a função de limite exercida pelos dizeres da possessão Esta distorção obriga provisoriamente a manter entre eles uma diferença que não implica numa homologia Pelo fato de a palavra da possuída representar um limite não se pode concluir que este limite tenha a mesma estrutura discursiva que o saber demonológico ou médico Existe pois uma relação dissimétrica a palavra da possuída não é colocada nem como análoga ao discurso do saber nem oculta por ele como se fosse um outro discurso subjacente à superfície do legível e do visível O que se introduz na linguagem é uma questão que não se pode nem apagar assimilandoa ao texto recebido nem objetivar supondolhe o estatuto de uma positividade discursiva soterrada por um discurso repressivo Tratase de uma relação do discurso demonológico médico histórico etc com uma transgressão que não é discurso Relação susceptível de ser revelada nos próprios textos que nós possuímos Esta situação é interessante por não ser excepcional Ela se reproduz numa série de casos onde a alteração é no discurso a figura móvel evanescente e ressurgente da transgressão do discurso Minha questão aqui é a natureza desta palavra interdita pelo discurso e fantasma no discurso Tornase Pg 247 a encontrála à maneira mística pois acredito cada vez mais numa homologia estrutural dos problemas colocados pela feitiçaria pela possessão e pela mística Na verdade a questão permanece a de saber por que é branco ou preto Deus ou o Diabo mas fundamentalmente o tipo de manifestação é o mesmo redutível à relação que uma travessia alteradora mantém com uma ordem semântica ou a relação de uma enunciação com um sistema de enunciados N da T O autor explora a ambigüidade em francês do termo revenant e ao mesmo tempo o que retorna e o fantasma alma do outro mundo Esta relação pode se apresentar de forma mística ou diabólica ou em termos de loucura Ela é marcada também no discurso etnológico desde que se trate de conhecer como o índio irá falar a linguagem do saber ocidental Ou ainda podese perguntar como o louco ou a louca vão falar no discurso do saber psiquiátrico ou psicanalítico De maneiras diferentes uma mesma interrogação se insinua como um foradotexto do qual se deve perguntar como se combina com o texto O que é então este foradotexto que no entanto é marcado no texto Paralela à possessão diabólica do século XVI a linguagem mística seu homólogo e seu inverso se define na época pela introdução de um inefável num texto recebido Um não sei que fala mas este não sei que outro é introduzido e dito dentro de um sistema doutrinal alterando o discurso do saber teológico e não construindo um outro discurso Da mesma forma o não sei que fala da possuída se insinua no discurso extraordinariamente organizado da demonologia rede de chicanas construídas a partir de uma posição de saber De acordo com o estatuto dado então às obras literárias místicas ou de acordo com a teoria que elas fazem de si mesmas tratase de dizer uma experiência chamada inefável e que portanto não pode ser dita Esta experiência de possessão divina no caso místico não tem linguagem própria mas é marcada tal como uma ferida dizem os místicos no discurso teológico inscrevese pelo trabalho que opera no interior do discurso recebido de uma tradição religiosa Uma transgressão mística da lei da linguagem religiosa está inscrita nesta própria linguagem pela maneira de praticála por um modus loquendi Da mesma forma os teóricos do século XVII a caracterizam não como um discurso mas através do que eles chamam de frases místicas ou de maneiras de falar Designam por aí uma operação na linguagem Uma prática elocutória e um tratamento da linguagem traçam no discurso constituído uma alteridade que entretanto não é identificável com um outro discurso Como no caso da possuída temse aqui uma relação entre um discurso estabelecido e a alteração que nele introduz o trabalho de dizer outra coisa3 Mais amplamente problemas semelhantes aparecem na relação que o Pg 248 relato etnográfico mantém com a outra sociedade da qual fala e que pretende entender Com efeito o discurso demonológico o discurso etnográfico ou o discurso médico tomam com respeito à possuída ao selvagem ou ao doente uma mesma 3 Cf Michel de Certeau L Absent de lHistoire Mame 1973 p 4170 e 153167 posição Eu sei melhor do que tu aquilo que dizes quer dizer Meu saber pode se colocar no lugar de onde falas Ora quando a possuída fala esta linguagem que se impõe a ela e que se põe no seu lugar o discurso alienante mas necessário que ela enuncia traz o vestígio a ferida da alteridade que pretende recobrir o saber Eu gostaria inicialmente de sublinhar a generalidade da questão aberta pelo retorno do outro no discurso que o proíbe Esta fantasmagoria pode assumir uma forma atenuada quase subreptícia A alteração do discurso pela palavra à qual ele se substitui pode afinal ter a imagem de uma discreta ambivalência dos procedimentos repressivos Este é por exemplo o caso da citação Assim nos textos etnográficos e relatos de viagem o selvagem é jurídica e literariamente citado como a possuída pelo discurso que se põe no lugar dele para dizer deste ignorante o que ele não sabe de si mesmo O saber etnográfico como o saber demonológico ou médico adquire crédito pela citação Nesta perspectiva é necessário interrogarse sobre o papel da citação do outro no próprio discurso historiográfico Eu entendo citação no sentido literário mas se pode entendêla também como citação diante de um tribunal É uma técnica literária de processo e julgamento que assenta o discurso numa posição de saber de onde ele pode dizer o outro Entretanto alguma coisa de diferente retorna neste discurso com a citação do outro ela permanece como ambivalência mantém o perigo de uma estranheza que altera o saber tradutor ou comentador A citação é para o discurso a ameaça e a possibilidade de um lapso A alteridade dominada possuída pelo discurso guarda latente o poder de um fantasma de um possessor talvez Citar o outro é uma estratégia de processo que não deixa de remeter a um outro lugar Na verdade a citação não é no texto etnográfico um buraco por onde se mostraria uma outra paisagem ou um outro discurso O citado é fragmentado reempregado e colado num texto está nele porém alterado Mas nesta posição na qual não tem mais nada de próprio permanece susceptível de trazer como em sonho uma estranheza inquietante poder subreptício e alterador do recalcado Da mesma forma o discurso médico faz os loucos soletrarem seu próprio código Para falar o louco deve responder às questões que se lhe propõe Pg 249 Também num hospital psiquiátrico constatase no decorrer do mês ou dos dois meses que se seguem ao internamento do doente um nivelamento do seu discurso uma destruição de suas particularidades o doente não pode falar senão no código que lhe é fornecido pelo N da T revenance hospital Ele se aliena nas respostas às questões e aos saberes que são os únicos que lhe permitem se enunciar Entretanto organizado como processo terapêutico o discurso médico porta assim a marca de um outro lugar de enunciação Guarda inscrito nele ambivalente a enunciação doente sob a forma das próprias citações que são os troféus de suas vitórias É possível a partir destes vestígios outros que oscilam entre a integração e a transgressão reencontrar a palavra reprimida da loucura não no seu estado selvagem de agora em diante inacessível mas examinando a sucessão dos silêncios organizados sempre pelas razões normalizadoras marcadas ainda pelo que elas eliminaram para se constituir Eu me proponho apenas apresentar algumas hipóteses a propósito dos indícios que tem uma estranha função no relato da possessão eles mantêm aí uma estabilidade que exclui a possibilidade de um fechamento do texto De maneiras diferentes mas passíveis de serem relacionadas estes indícios marcam no discurso um alhures do discurso representam no interior do relato o papel de peças que giram sobre um eixo inscrevem uma possessão subreptícia na rede das taxonomias teológicas ou médicas fazem oscilar o texto na direção do foradotexto mas de uma maneira que permanece interna ao texto do saber por este funcionamento ambíguo traçam no texto uma cisão perigosa Talvez estes jogos proibidos constituam um sistema próprio que de um ponto de vista semiótico ou psicanalítico faz que o texto produza uma estranheza diabólica equivalente atual da questão colocada outrora pela possuída do fundo de um silêncio que se tornou para nós eternamente inacessível Deste ponto de vista algo da interrogação aberta pela possuída não deixa de ser diabólico 2 Documentos alterados os textos das possuídas Não se poderia tratar este problema independentemente da natureza do material Ora o que nos chega são documentos alterados e fragmentários Retenho deles alguns indícios 1 As fontes disponíveis arquivos manuscritos etc apresentam freqüentemente o discurso da possuída como sendo aquele que é sempre enunciado por alguém outro que não a possuída Para a maioria dos casos estes documentos são depoimentos de notários relatórios de médicos Pg 250 avisos ou consultas de teólogos depoimentos de testemunhas ou as sentenças dos juízes Da demoníaca aparece apenas a imagem que dela tinha o autor destes textos no espelho onde ela repete o seu saber e onde se dá a sua posição à maneira de seu contrário Que a demoníaca não tenha como palavra senão a do seu outro que ela não tenha senão o discurso do seu juiz ou do seu médico ou do exorcista ou das testemunhas isto não é um acaso como o direi mais adiante Mas esta situação exclui de início a possibilidade de arrancar da sua alteração a própria voz da possuída Na superfície dos textos sua palavra está duplamente perdida Está perdida porque refeita e reformada quer dizer que recebe sua forma pelo saber que é o único que se exprime Por outro lado sua palavra está perdida porque antes mesmo de reformada pelo discurso onde figura a título de citação uma muralha de interrogatórios determinou de antemão as respostas e fragmentou os dizeres da possuída segundo classificações que não são as suas mas as do saber do investigador Os documentos constituem assim um ponto de nãoretorno 2 Fabricados com estas perguntas e respostas centenas de interrogatórios foram cuidadosamente transcritos pelos escrivães Estes textos parecem perguntas do exorcista do juiz do médico e respostas da possuída Perguntarespostapergunta resposta este é o gênero literário que representa o documento mais próximo do interrogatório Assemelhase aos textos dialogados peças de teatro romances etc mas pode ele ser assimilado aos textos que receberam a forma de trocas entre personagens Dito de outra maneira existe continuidade literária entre os diálogos de Beckett ou de Diderot e o corpus no qual às perguntas dos exorcistas seguem as respostas dos diversos demônios que possuem as interrogadas Mesmo se as respostas das possuídas permanecem relativas aos interrogatórios e determinadas por perguntas mesmo se o conjunto obedece às regras de um teatro uma completa assimilação destes dois tipos de diálogo me parece difícil A razão não é o fato de que existiria aqui unicidade de autor por exemplo em Le Neveu de Rameau e lá pluralidade De toda maneira tratase aqui e lá de um texto e a diferença entre um ou vários autores não é pertinente Mas eliminar a hipótese de uma diferença entre estas duas formas literárias de perguntasrespostas é recusar a priori a especificidade dos textos diabólicos o jogo entre o lugar estável para o qual os exorcistas pretendem dirigir as interrogadas e por outro lado a evanescente pluralidade de lugares que permite às possuídas se pretenderem alhures O teatro diabólico é caracterizado pela relação sempre incerta Pg 251 entre os lugares fixados para todos os atores por alguns dentre eles o exorcista ou o médico compõem a cena designando a cada um seu papel da mesma forma que o psiquiatra fixa ou tende a fixar o papel para o doente e a mobilidade de certos atores as possuídas deslizando de lugar em lugar Nesta cena que relata o interrogatório existem atores que tendem a fixar os papéis e outros atores que deslocam estes papéis As possuídas saltam de lugar para lugar criando assim uma confusão lá onde as aguarda o médico ou o exorcista Designada para um lugar que lhe estabelece a encenação terapêutica a doente ou a possuída se move sem cessar O suspense que mantém o interrogatório se prende a esta questão como a encenação demonológica tolerará e até que ponto a mobilidade dos atores que mudam o lugar onde um saber social os espera Reduzir o jogo da possessão ao tabuleiro constituído pelo discurso demonológico ou médico assimilálo ao teatro que se estabelece sobre uma arquitetura sólida de personagens ou de nomes próprios seria esquecer a estranheza que circula na rede fortemente estruturada deste teatro Mas mesmo aí a questão da possuída está constantemente perdida na arquitetura teatral ela foge da simples consideração da composição dos lugares e dos personagens Uma perturbação já faz parte do documento tal como ele nos chega e não se pode identificar com o texto perguntasrespostas à possessão que nele se revela 3 Num certo número de casos os documentos provêm das próprias possuídas Como as declarações as cartas e a autobiografia de Joana dos Anjos priora das ursulinas a mais célebre das possuídas de Loudun Aqui pois é a própria doente quem fala Mas se pusermos de lado suas respostas no decorrer dos interrogatórios situados durantes os exorcismos caso que acaba de ser considerado os textos de Joana dos Anjos se inscrevem na continuidade de uma linguagem sobre a possessão e não da possessão Estes textos não provêm do tempo em que inconsciente Joana dos Anjos é a voz de tal ou qual demônio que a possui São discursos escritos na diferença dos tempos quando ela se objetiva dizendo Eu era eu fazia Este ponto me parece muito importante Joana dos Anjos pode falar como possuída mas não pode escrever como possuída A possessão não é senão uma voz Desde que Joana passa à escrita ela diz o que fazia pensa no passado descreve um objeto distante dela sobre o qual a posteriori pode aliás enunciar o discurso do saber Escreve de um outro lugar diferente daquele de onde falava como possuída Fala então como de um tempo anterior seja quando redige relatórios cartas ou depoimentos durante os tempos de calmaria entre as crises demoníacas seja quando cerca de 1640 quinze Pg 252 anos após conta no passado um período de possessão do qual se diz saída ou liberada Escrever significa para ela manterse distante de uma linguagem que pode dominar Escrever é possuir Pelo contrário estar possuída é uma situação compatível apenas com a oralidade não se poderia estar possuído escrevendo Entre a voz da possuída e a escrita daquela que se possui existe uma ruptura que já indica o que podemos esperar dos documentos escritos 4 Finalmente intervém a questão que eu devo me colocar como historiador ou como intérprete Analisando a palavra da possuída tenho a ambição deentender melhor o médico ou o exorcista de ontem de compreender melhor do que os eruditos de ontem aquilo que do outro denuncia a linguagem dele ou a linguagem erudita Qual é então o lugar que hoje me autoriza a supor que posso melhor do que eles dizer o outro Localizado como eles no saber que quero compreender repito diante da possuída a posição que era ontem a do demonólogo ou a do médico com variantes a apreciar Poderia eu deste lugar ser representado possuído pelo desejo que constitui a transgressão da possuída Esta será uma das questões que teremos de examinar a propósito de Moisés e o monoteísmo Acontece que sempre através do meu trabalho eu aumento a alteração a que já se reduzem os documentos sobre a possessão no estado em que os recebemos Uma análise que pudesse hoje articular a maneira pela qual um texto o meu quando escrevo se refere à palavra demoníaca do século XVII seria talvez uma forma de redizer a questão sem cair no folklore ou no cientificismo Seria pensar o estranho propósito que Freud retomou de Gobthe Só muss denn doch die Hexe dran é preciso pois apelar para a feiticeiras4 esperar dela uma elucidação ou uma mudança do nosso discurso 3 Eu é um outro a perversão dá linguagem Esta feiticeira ou possuída à qual apelo evocálaei inicialmente através de uma expressão de Rimbaud Eu é um outro5 Esta divisa não exatamente apropriada indica entretanto o endereço onde se situa na linguagem a brecha aberta pela possuída Isolandose os textos que se referem aos propósitos enunciados pelas possuídas podese revelar neles um traço comum são os discursos em eu Ichberichte Todos dizem Eu é um outro Por aí se marca uma Pg 253 continuidade com o que a 4 S Freud Gesammelte Werke t XVI p 69 A análise terminável e interminável citando Fausto 1 parte cena 6 a propósito desta feiticeira que é a metapsicologia 5 Carta a Georges Izambard 13 de maio de 1871 un Arthur Rimbaud OEuvres complètes Pléiade 1946 p 252 Cf a carta de 15 de maio de 1871 a Paul Demeny ibid p 254 Eu é um outro tradição psiquiátrica chama histeria desde há três séculos a histérica não sabe e portanto não pode nomear quem ela é A possuída que é quem nos prende no momento cria no funcionamento da linguagem uma perturbação que conota a desarticulação do sujeito locutor eu e de um nome próprio definido Eu é um outro O exorcista ou o médico trabalham para determinar este outro para colocálo numa topografia de nomes próprios e deste modo para normalizar de novo a articulação de um ato enunciador com um sistema social de enunciados Também o exorcismo é essencialmente um empreendimento de denominação destinado a reclassificar uma estranheza fugidia através de uma linguagem estabelecida Visa a restabelecer o postulado de toda linguagem a saber uma relação estável entre o eu locutor e um significante social o nome próprio O que está em causa é a articulação da enunciação com o enunciado dito de outra maneira o contrato que enuncia entre o sujeito e a linguagem a propósito Eu sou Miguel ou eu um nome próprio O nome próprio confere ao sujeito um lugar na linguagem e assegura portanto uma ordem na prática sociolingüística E já que a possuída efetua um desvio apresentando uma estranheza do sujeito eu é outro é necessário atribuir a esta aberração um outro nome próprio tomado numa lista demonológica prevista pela sociedade para estes casos A partir daí se encontra restaurado o contrato que é o próprio princípio do saber da ordem das coisas e portanto também de uma terapêutica Ora a possuída cria constantemente um desvio com relação ao postulado eu x onde x designa um nome determinado Na verdade no estado de inconsciência em que se deve encontrar para estar possuída entra sucessivamente nos lugares que uma nomenclatura de demônios fornece Pressionada pelos exorcistas no sentido de fixar o seu nome é isto que se quer extrair dela a confissão de um nome e de se enquadrar num repertório demonológico ela termina por declarar eu sou Asmodeu eu Asmodeu Mas logo depois responderá eu sou Amã depois eu sou Isacatão etc Deste modo temse no caso de Joana dos Anjos uma série de identificações heterogêneas eu Asmodeu eu Isacarão eu Leviatã eu Amã eu Bala eu Behemot Pg 254 A pluralidade das identificações provenientes de uma mesma tabela onomástica denega finalmente a possibilidade de uma localização sem recusar o código social demonológico já que em princípio não existe outro previsto para este caso O código permanece mas a possuída o transgride Ela escorrega de lugar para lugar recusando pela sua trajetória qualquer nome definido estável nenhum valor determinado pode ser lingüisticamente atribuído ao eu de maneira estável A rotação indefinida do eu numa lista fechada de nomes próprios fixos existe também nestes nomes nós o veremos uma parte de improvisação faz funcionar o discurso demonológico mas o impede de girar em círculos Ela o obriga a repetir indefinidamente a operação denominadora Este procedimento da perversão é no discurso da possessão o equivalente daquilo que Rimbaud enunciava sob a forma de um comentário da sua poesia É falso dizer eu penso Deverseia dizer pensamme Que é este sujeito indeterminado Esta é precisamente a questão que a possuída introduz falamme Rimbaud continua Eu é o outro Tanto pior para o pedaço de pau que se considera um violino O que a poesia de Rimbaud escreve o deslocamento onomástico da possuída fala ela é com efeito um pedaço de pau que se considera um violino6 Mas tocado por que ou por quem Enquanto Rimbaud traça no jogo dos nomes comuns a trajetória desta indeterminação advinda a possuída não pode senão jogar com seus nomes próprios neste ponto de articulação da linguagem com a enunciação do sujeito Seu procedimento pervertedor não é menos análogo ao es denkt nietzcheano isto que não tem nome próprio pensa em mim7 ou ao paradoxo de Rilke lá onde existe poema não sou eu mas é Orfeu quem chega e que canta8 Para retomar uma outra expressão nietzcheana que sugere um sacrifício do próprio e a alteração a possessão por um outro do lugar que a língua reserva para o Eu Uma desapropriação ocorre particularmente neste lugar lingüístico o eu Os textos das possuídas não fornecem a chave de sua linguagem que permanece indecifrável para elas mesmas Sem dúvida esta é a razão pela qual sua posição de possuídas não se defende senão por um borboletas de nome próprio em nome próprio no interior do enquadramento que lhes é imposto Num tabuleiro de nomes próprios elas não cessam de deslizar de lugar em lugar mas não criam uma casa a mais que seria a delas com relação às 6 A Rimbaud OEuvres complètes op cit p 252 7 É falsificar os fatos dizer que o sujeito eu é a determinação do verbo pensar Isto pensa es denkt mas que isto seja justamente este velho e ilustre eu não é para dizêlo em termos moderados senão uma tese uma hipótese F Nietzsche Par delà le bien et le mal 17 Aubier col bilingue 1963 p 4849 trad que corrijo segundo o alemão 8 R M Rilke Lettres à un jeune poète o poeta é Orfeu não o eu do autor denominações recebidas não foi inventado nenhum acréscimo que lhes fornecesse um próprio Pg 255 A alteração ou a deriva lingüística Um tabuleiro de nomes próprios A B C D Uma trajetória do sujeito entre estes nomes próprios Esta deriva análoga às que distorcem ou apagam os nomes próprios na Psychopathologie de la vie quotidienne cap III é a maneira pela qual se indica no interior do texto e já no interior da lista dos nomes próprios não uma pluralidade de locutores mas o desaparecimento do locutor e o desapossamento da linguagem Designandose alternadamente por nomes diferentes a possuída escapa do contrato lingüístico e retira à linguagem seu poder de ser para o sujeito a lei do seu dizer Não é surpreendente que esta movimentação tenha o seu ponto de emergência e maior intensidade na articulação do eu com o nome próprio se é verdade que o eu é na linguagem o signo único porém móvel como tu mas diferente do ele que está ligado ao exercício da linguagem e declara o locutor como tal Os indicadores eu e tu não existem senão enquanto atualizados na instância do discurso onde marcam por cada uma de suas próprias instâncias o processo de apropriação pelo locutor9 É a este signo vazio que se torna cheio desde que um locutor o assuma que remetem inicialmente os deslocamentos diabólicos da possuída Neste lugar lingüístico de apropriação se focalizam os combates e os artifícios que se referem à possessão da linguagem possessão desapossamento e portanto à identidade de quem fala 4 Construção e demolição de um lugar Um eixo semântico dos textos diabólicos está indicado pela questão que tem por 9 Émile Benveniste Problèmes de linguistique générale Gallimard 1966 p 258266 De la subjetivité dans le langage fórmula no exorcista Quem está aí e no médico O que é isto Todos os dois o exorcista e o médico respondem com nomes Pg 256 próprios extraídos ou da série demonológica Lúcifer Asmodeu etc ou da série médica melancolia imaginação hipocondria histeria etc Estes nomes designam igualmente essências determinadas pelo saber de um e de outro Deste ponto de vista entretanto existe uma diferença entre eles O exorcista deve fazer a demoníaca confessar o seu nome próprio Se a tarefa central do exorcista é a denominação é necessário que esta denominação seja selada pela confissão da possuída para que se restaure o contrato ela deve responder sim eu sou Asmodeu Ulteriormente na psiquiatria a partir de Pinel algo análogo se estabeleceu a verdadeira cura do doente não consiste apenas em nomear a doença mas em obter do doente que reconheça a verdade do que seu médico diz dele Então da denominação à confissão o saber fecha o seu círculo Ocorre o mesmo no tratamento da possessão Mas o exorcista deve também obter esta confissão da demoníaca no momento em que ela está possuída e num estado de inconsciência esperase a confissão do outro que fala nela O médico do século XVII não tem necessidade desta confissão ou pelo menos ele a obtém através da sua observação quer dizer da superfície corporal cujo espetáculo suores palpitações dejeções fecais deglutições ocupam para ele o lugar da confissão O suor da doente fala em lugar das palavras da possuída Mas se é a voz que o exorcista obriga a confessar o nome do maligno enquanto que é o corpo que o médico obriga a dizer o mal e faz falar num e noutro caso um nãosaber da demoníaca ou da doente é o postulado de identificação proposto por um saber A voz da possuída inconsciente e o corpo da doente muda não está lá senão para dar um assentimento ao saber que é o único a falar Dois movimentos paralelos se inscrevem portanto nos textos Um demonológico parte da questão Quem está aí e através da mediação de uma voz inconsciente chega ao nome próprio de um diabo extraído de uma lista de seres definidos pela demonologia O outro médico parte da questão O que é isto e através da interpretação de uma série de fenômenos corporais chega a um nome próprio de uma doença tirado de um dicionário estabelecido pela ciência médica Estas duas linhas são construí das segundo um imenso esquema que consiste em passar da não identificação à identificação Este esquema esboça a produção de um nome próprio Mas o nome próprio se produz acompanhado de uma constelação de adjetivos ou predicados Estes vão criar em torno dele um espaço complexo onde cada um dos predicados se torna a metonímia do nome próprio e prende a possuída na armadilha dos deslocamentos que apenas a fazem passar de um Pg 257 equivalente a outro da mesma identidade A subversão se transforma no seu contrário teatral Desta maneira o nome Leviatã desenvolve em torno de si todo um mostruário de qualificativos que percorrem pouco a pouco os ditos zombeteiros as mímicas risonhas graciosas etc ou os comportamentos bajuladores etc da possuída Este repertório plural amplia o círculo do mesmo nome encerra com maior segurança a possuída dandolhe a possibilidade de movimentos que não mais questionam o lugar identificatório mas que produzem efeitos espetaculares surpresas invenções extraídos das relações metonímicas metafóricas entre uma pluralidade de atributos mais ou menos coerentes entre eles e o mesmo nome próprio Uma vez fixado o código o rosto sorridente como dizem os processos verbais substituise a Leviatã e realiza uma circulação sobre uma superfície semântica bem definida O nome Leviatã tornase um espaço de jogo No centro temse o nome em volta uma série de posturas mímicas ou equivalentes verbais Entre as possuídas os exorcistas e o público inaugurase um teatro de alusões e de adivinhações A possuída brinca com o público o exorcista com a possuída Assim ela recusa dar o seu nome mas assume um ar sedutor maneira de dizer ao público Adivinhem quem é e o público responde Certamente é Leviatã Sob este aspecto a encenação transforma os jogos de identidade em jogos retóricos substitui à evanescéncia do sujeito as metamorfoses ou as correspondências imprevistas dos seus atributos Este teatro barroco é a vitória de uma ordem Entretanto mesmo retardado por estes efeitos de superfície o procedimento inicial continua Ele condena a operação identificatória a um recomeço indefinido Não se sai dela jamais O processo que instaura lugares é incessantemente revertido ao seu ponto de partida por causa do deslocamento das possuídas para alhures e por conseguinte da necessidade de retomar do zero o trabalho de as estabelecer em lugares onomásticos certos Finalmente como a prisão no tabuleiro onomástico religioso não funciona acaba sendo substituída por um outro xadrez desta feita policial Assim vai terminar a história de Loudun Laubardemont amanuense de Richelieu estabelecerá lugares para as possuídas não mais quadriculados onomásticos mas celulares Esta razão de Estado classifica com muros No ínterim as possuídas atrapalham a operação de identificação lingüística e religiosa Os textos dizem freqüentemente Elas esquecem seus nomes Através disto reiteram o enigma de seu nome referindose a um outro lugar do dicionário através de uma seqüência de deslizamentos que sem mudar a estrutura do sistema demonológico atingem o seu funcionamento Pg 258 Elas não substituem este sistema nem o destroem elas o pervertem comprometendo constantemente os lugares onomásticos que lhes estão fixados A denominação não é nunca verdadeiramente derrotada nem verdadeiramente vitoriosa É como num jogo de cartas onde a dama de espadas pudesse ser utilizada como valete de copas e onde se insinuasse também entre a dama e o rei a figura inesperada de um duque de paus Assistese assim por um abrandamento das imagens através de uma espécie de fusão encadeada à mutação de Leviatã em outra coisa que se nomeia Ami ou ainda a irrupção de um Souvillon umaespécie de brincadeira erótica ou de um Rabo de cachorro entre Isacarão e Behemot Está claro que estas metamorfoses e anamorfoses pertencem a uma arte barroca mas aqui nos importa mais o fato de sinalizarem um transtorno no código e que nele representem a marca da forma pela qual algo de outro intervém no discurso demonológico 5 O quadro dos nomes próprios uma toponímia mexida A insinuação de um duque de paus de um Souvillon na lista clássica dos nomes diabólicos põe em causa outro movimento além daquele da enunciação possuída a do próprio código e um momento de transição cultural Além da deriva do eu dentro de quadro identificatório existe uma instabilidade deste quadro amolecida pela incerteza que nesta época atinge os quadros de referência religiosos alternadamente ele é invadido pelas menções heteróclitas e no seu conjunto deformado pela intervenção de codificações médicas políticas que se impõem progressivamente e o curtocircuitam Tomado neste conjunto sóciohistórico como uma peça particular o quadro permanece a testemunha desta mutação geral Também para se dar conta de seu funcionamento convém distinguir o papel teórico dos nomes próprios na possessão e as alterações que a lista deles sofreu em Loudun 1 Contra Gardiner que sustentava sua insignificância e opunha designação e significação10 LéviStrauss mostrou que estes nomes nas sociedades de classes finitas são sempre significativos de pertença a uma classe atual ou virtual que só pode ser a 10 A H Gardiner The theory of proper names A controversial essay Londres 2á ed 1954 e C LéviStrauss La Pensée sauvage Plon 1962 cap VI e VII Cf também J R Searle Proper Names in J F Rosenberg C Travis Readings in the Philosophy of Language PrenticeHall 1971 p 212 218 daquele que se nomeia ou a daquele que nomeia11 Ele via também aí o limite de um empreendimento classificador no centro de um sistema cultural determinado estes são os quanta de significação abaixodos quais não se faz nada além de mostrar Se portanto o nome próprio permanece sempre do lado da significação ele se Pg 259 situa no limiar marcado por uma descontinuidade entre o ato de significar e o de mostrar12 É pois importante considerar que forma assume este corte entre o dizer e o mostrar no discurso que é precisamente relativo ao nãodito Com efeito o quadro dos nomes dos demônios representa uma das fronteiras por onde o sistema demonológico se defende e trabalha para reintegrar o que é tomado por outra coisa Nesta fronteira que constitui a nomenclatura posto avançado da significação a possuída é a fugitiva do sistema O exorcismo tem como fim assegurar a passagem do silêncio da possuída aos nomes que lhe oferecem os exorcistas transforma em linguagem o silêncio dos gestos e dos gritos inarticulados13 Porque o dicionário dos nomes próprios diabólicos representa um papel capital neste acesso ou retorno à linguagem é que ele é assimilável a um reservatório de significantes destinado a preencher as lacunas das quais a possuída é a testemunha Encontrase exatamente sobre a linha de demarcação entre o inefável e o significável mas do lado da significação Desta maneira nas sociedades tradicionais a aceitação ou a confissão de um nome próprio diabólico tem valor integrativo Estabelece uma aliança com o espírito demônio ancestral indicado reconhece oficialmente o que irrompe no interior de um grupo algumas vezes sela assim um destino14 Em suma inscrevese num sistema de comunicação O nome próprio tem mesmo algumas vezes o sentido de uma resposta dada aos signos e às vozes que os pais ou os iniciadores perceberam na conjuntura do nascimento15 De toda maneira a denominação apresenta um laço ao mesmo tempo que um lugar Funciona ao mesmo tempo como participação a um sistema e como acesso ao simbólico Por estas palavras e segundo procedimentos variáveis a possuída pode encontrar uma saída para o silêncio do seu corpo ou de seu desejo entrando no regime de simbolização que uma cultura põe à sua disposição 2 Em Loudun as coisas não podem se passar assim porque no nível em que nos 11 La Pensée sauvage op cit p 245 12 Ibid p 285286 13 L de Heusch Possession et chamanisme in Pourquoi lépouser Gallimard 1971 p 236 14 Ibid p 240241 e também numerosas indicações dadas por N Belmont Les Signes de la naissance Plon 1971 no cap Nomen et omen 15 Cf M Houis Les Noms individuels chez les Mossi Dakar Ifan 1963 p 923 situamos existem muitos dicionários de nomes próprios o demonológico o médico e o político também Como na maioria dos outros casos durante o mesmo período a possessão joga aqui com uma pluralidade de quadros onomásticos estratificados e defasados no tempo A capacidade de falar não está pois na possuída ligada apenas às possibilidades que lhe oferecem os nomes próprios dos demonólogos A lista do mais forte vencerá a dos médicos e a dos políticos Durante os primeiros meses de Loudun o discurso demonológico é apresentado e se desenvolve de uma maneira prioritária no decorrer dos exorcismos no interior Pg 260 do convento mas já está ameaçado pelos sistemas com os quais entra em competição e que pouco a pouco se impõem Por si só o dicionário completo de nomes próprios de demônios utilizado em Loudun mostra efetivamente a infiltração de outras instâncias além da demonológica Este quadro traz a indicação de esboroamentos internos e de colonizações Uma população de nomes estranhos ao sistema é nele introduzida a Nesta lista de cerca de 55 nomes mais 4 duplos formase uma primeira categoria de nomes patenteados e garantidos pela literatura demonológica Asmodeu Astaroth Bali Behemoth Belzebuth Berith Isacarffo etc16 A esta série se acrescentam outros nomes hebraicos tirados de uma tradição mais esotérica Achaph Agal Amã variante de Amon Berberith composto de Berith Caleph Caph Eazar ou Eazas Lezear etc Nestas regiões as nominações demoníacas se prendem às elaborações cabalísticas b Defasados outros significantes provêm da mitologia grecolatina Caron e Cérbero Castorin etc ou da literatura heresiológica cristã Celso Luciano Lutero etc c Outros termos representam a elevação de nomes comuns ao estatuto de nomes próprios Mecha de impureza Carvão de impureza Concupiscência Inimigo da Virgem Fornicação Leão do Inferno Rabo de cachorro temse também Caudacanis simples tradução latina Polução Semfim etc Através deste repertório francês soletrase o desejo sem máscara d Enfim um último feixe é constituído por nomes próprios franceses extraídos de 16 Esta lista oficial privilegia os nomes hebraicos enquanto que por exemplo os nomes individuais da demonologia bizantina são provenientes principalmente das antigas divindades pagãs gregas ou bárbaras cf A Delatte e C Josserand Contribution à létude de la démonologie byzantine in Annuaire de L IPHO t II 1934 Mélanges Bides p 207232 Mas nos dois casos a instituição tira o seu léxico diabólico davizinhança ou do parentesco de que ela se distingue mais agressivamente trabalho de denegação eou exorcismo com relação a uma inquietante proximidade social e genealógica tradições populares ou de localizações provinciais ou de um fundo regional de palavras de duplo sentido Buffetison Carreau Cédon Elimy Grelet ou Grelier Legret Luret Luvret Maron Penault Pérou Rebat Souvillon etc Sem se deter nos detalhes destes nomes que exceto na categoria c tem freqüentemente valor de charada podese distinguir blocos lingüísticos heterogêneos As séries a e b pertencem ao dicionário nobre e oficial ao mesmo tempo que a um repertório estrangeiro hebreu ou grego ou de toda maneira erudito Encontramse associados às religiosas das famílias aristocráticas de Belciel de Barbezières de Ia MotteBrassé de Fougères de Colombiers etc e às que têm a posição hierárquica mais elevada no convento priora subpriora madres que são religiosas de coro Pg 261 As séries c e d vêm de uma cultura popular da língua francesa de um repertório explícito ou equívoco elas se referem aliás às nãonobres Auffray Bastad Blanchard etc ou às irmãs conversas O dicionário completo é portanto constituído pelos fragmentos de sistemas diferentes e já representa como que um quadro social numa hierarquia de culturas e de poderes Obedece a outras regras que não as da organização demonológica Denuncia através destas fissuras e divisões internas a lei de uma ordem política da qual ele é a metáfora à revelia dos exorcistas Este lugar de significação ou de classificação já é a metáfora de uma outra ordem remete a outra coisa além daquilo que enuncia Nem por isso deixa de funcionar como um procedimento de acesso à palavra mas sob a forma de um jogo duplo Entrar neste repertório é descobrir um lugar mas um lugar que oscila do rito ao teatro e que comprometido pelas interferências do dicionário dos demônios com o das famílias ou o dos nomes religiosos Joana dos Anjos Luiza de Jesus etc não organiza senão o seu próprio logro A possuída joga com esta linguagem oscilante O silêncio de onde vem a toma apta a aproveitarse deste discurso instável Mas no fundo o equívoco religioso que lhe permite mais facilmente não estar lá sem estar alhures indica apenas a extensão a um grupo inteiro do Eu é um outro Esta subversão instalada numa ordem que se desfaz será finalmente reprimida pela razão de Estado que estabelecerá para uma sociedade inteira o lugar onde em nome do rei cada um pode falar 6 A mentira da interpretação A possessão não visa a um sentido oculto que estaria por descobrir No fundo o conteúdo do discurso já é bem conhecido ele não diz nada além dos catecismos da época mesmo que se encene de maneira diferente graças a uma lista de personagens diabólicos Mas a questão nova diz respeito à enunciação Eu é um outro O que constitui problema e transforma subrepticiamente toda uma organização semântica é a suspeita que pesa sobre o falante desta linguagem e portanto sobre o estatuto do discurso inteiro Através desta a hermenêutica tradicional é invertida Ela postulava um lugar imutável e um locutor estável Deus falando uma linguagem cujos segredos ainda desconhecidos deviam ser decifrados Aqui o conteúdo é conhecido e o falante desconhecido temse nos textos da possessão a marca desta evanescência do sujeito Mais do que os segredos da linguagem o que está em causa é a sua apropriação O exorcista se empenha em reduzir o locutor aos demônios Pg 262 que a literatura teológica identifica como contrário de Deus Por esta identificação ele se empenha em reduzilos ao mesmo Reclassifica os possuídos no seu saber teológico Protege assim a apropriação da linguagem por Deus Visa a salvar não as possuídas mas através delas uma propriedade teológica um contrato que lega a Deus a posse da linguagem É muito tarde porém Esta operação tornouse impossível Funciona como uma mentira que reintroduz o que deveria ser eliminado a saber o alhures do discurso A possessão não dá lugar a um outro discurso como se a alteridade de que é testemunha se desse numa positividade semântica diferente e indicadora Produz a alteração do discurso demonológico Temse nela um indício da maneira pela qual a possuída insinua seu silêncio no sistema que perturba e que entretanto lhe permite falar Sua perversão não consiste em dar ela mesma uma interpretação de sua diferença mas em fazer funcionar de outra maneira as relações internas que definem este sistema Também deixa ao outro a responsabilidade de interpretála O que se move nela o esconde pelo simples fato de não ter como discurso senão a interpretação do exorcista do médico ou do erudito Escapa graças à explicação que o outro dá dela Contentase em responder a uma expectativa do outro Mas o engana pelo fato de se deixar dizer por ele Da mesma maneira se desenvolve o jogo que compromete o discurso e que por um lado já explica a distância silenciosa que ela tomou com relação a ele Esta mentira que indica o discurso demonológico é o efeito de quem não tem linguagem própria Não existe rigorosamente falando um discurso do outro mas uma alteração do mesmo Sem dúvida este é o alcance diabólico daquilo que se manifesta na possessão É ainda necessário dar a este fenômeno o seu contexto histórico Ao fato de que uma interrogação sobre a linguagem organiza o discurso da possessão em Loudun e que ela esteja localizada neste ponto onde um falante pode se apropriar da língua inteira designandose como eu17 é necessário evidentemente acrescentar como quadro a situação epistemológica da época Já por seu conteúdo o debate de Loudun atesta o abalo de uma antiga segurança a que concedia a Deus a capacidade de assumir toda língua possível e de nela manter em última instância o lugar do locutor Esta apropriação divina se toma duvidosa O locutor universal se apaga da prosa do mundo O que se perde é a legibilidade do cosmos como linguagem falada por Deus18 Nesta evolução global indicarei um único aspecto que se refere mais diretamente ao discurso diabólico A linguagem muda de estatuto O que é posto em causa não é apenas a sua relação com um locutor que era o Pg 263 ser e a verdade da língua mas também por conseqüência toda a construção que fundou esta relação e que dava às palavras classificadas segundo uma hierarquização do real a função de deixar aparecer as coisas Esta epistemologia da transparência referia o verbum a uma res Ela será substituída por uma epistemologia de superfície onde as possibilidades de significação se medem pelo estabelecimento de relações entre significantes Às relações ontológicas verbumres substituemse relações espaciais em função das quais se definem igualmente a linguagem verbal e a linguagem pictórica19 Na mesma época existe uma crítica geral da referência ao subrogado Ela se indica em Pascal por uma evanescência da substância em favor das qualidades ou em Descartes com o deslizamento do substantivo para o adjetivo etc O mundo se transforma em espaço o conhecimento se organiza como olhar em Pascal com toda a dialética da distância ou do ponto de vista do observador e em Descartes com a filosofia do cogito operando um trabalho de distinção na e com relação à fábula do Mundo20 Estas poucas chamadas apenas situam o que se passa também em Loudun quando o problema da verdade ou da adequação entre uma palavra e uma coisa toma a forma de um lugar instável Uma verdade se torna duvidosa No campo onde se combinam significantes não se sabe mais se eles entram na categoria de verdade ou na de seu contrário a mentira se eles se referem à realidade ou à imaginação Um discurso se desfaz então como testemunham as possuídas aproveitandose deste jogo 17 E Benvéniste Problèmes de linguistique générale op cit p 262 18 Cf por exemplo as análises de M Foucault Les Mots et les Choses Gallimard 1966 La prose du monde p 3439 e também as observações de W S Howell Logic and Rhetoric in England 1500 1700 N York Russel 1956 p 5763 Scholastic Logic Witchcraft 19 Cf P Francastel La figure et le Lieu Gallimard 1968 p 312341 20 Cf S Romanowski LIllusion chez Descartes Klincksieck 1974 p 8399 para nele insinuar outra coisa que as têm tomadas e esboça na linguagem da ilusão a questão do sujeito Pg 264 Pgs 264 e 265 Notas Capítulo VII UMA VARIANTE A EDIFICAÇÃO HAGIOGRAFICA Na extremidade da historiografia como sua tentação e sua traição existe um outro discurso Podese caracterizálo por alguns traços cuja única finalidade é situálo numa vizinhança como o corpus de uma diferença Essencialmente ilustra uma significação adquirida na medida em que não pretende tratar senão da ação Acta Res gestae Sulpício Severo na sua Vita Sancti Martini julga fundamental a oposição res no verba coisas e não palavras Ora os fatos são antes de tudo significantes a serviço de uma verdade que constrói a sua organização edificando sua manifestação As res são as verba nas quais o discurso cultua um significado recebido Parece que a função didática e epifânica exorbita da história A hagiografia é um gênero literário que no século XII chamavase também de hagiologia ou hagiológica Como o Pe Delehaye esclareceu em 1905 numa obra que marcou época Les légendes hagiographiques ela privilegia os atores do sagrado os santos e visa a edificação uma exemplaridade Será necessário pois reservar este nome a todo monumento escrito inspirado pelo culto dos santos e destinado a promovê lo A retórica deste monumento está saturada de sentidos mas do mesmo sentido É um túmulo tautológico Um certo número de pontos de vista são muito estreitos A hagiografia cristã a única aqui evocada não está limitada à Antiguidade ou à Idade Média mesmo que desde o século XVII tenha sido muito estudada sob o ângulo da crítica histórica e de um retorno às fontes e desta maneira alinhada com a lenda nos tempos de uma pré historiografia antiga que Pg 266 reservava ao período moderno o privilégio das biografias científicas É impossível também não considerála senão em função da autenticidade ou do valor histórico isto seria submeter um gênero literário à lei de um outro a historiografia e desmantelar um tipo próprio de discurso para não reter dele senão aquilo que ele não é Como a Vida de São Martinho um dos seus protótipos antigos a vida de santo é a cristalização literária das percepções de uma consciência coletiva Jacques Fontaine Do ponto de vista histórico e sociológico é preciso retraçar as etapas analisar o funcionamento e particularizar a situação cultural desta literatura Mas o documento hagiográfico se caracteriza também por uma organização textual na qual se desdobram as possibilidades implicadas pelo título outrora dado a este tipo de relato Acta ou mais tarde Acta sanctorum Deste segundo pontode vista a combinação dos atos dos lugares e dos temas indica uma estrutura própria que se refere não essencialmente àquilo que se passou como faz a história mas àquilo que é exemplar As res gestae não constituem senão um léxico Cada vida de santo deve ser antes considerada como um sistema que organiza uma manifestação graças à combinação topológica de virtudes e de milagres I HISTÓRIA E SOCIOLOGIA Indicações para uma história Nascida com os calendários litúrgicos e a comemoração dos mártires nos lugares de seus túmulos a hagiografia se interessa durante os primeiros séculos de 150 a cerca de 350 menos pela existência e mais pela morte da testemunha Uma segunda etapa se abre com as Vidas as dos ascetas do deserto assim como a Vida de Santo Antonio por Atanásio e por outro lado a dos confessores e dos bispos Vidas de São Cipriano 258 de São Gregório o Taumaturgo cerca de 270 ou de São Martinho de Tours por Sulpício Severo Segue um grande desenvolvimento da hagiografia no qual os fundadores de Ordens e os místicos ocupam um lugar crescente Não é mais a morte mas a vida que se considera fundada Inicialmente entre os gregos no século X Simeão o Metafrasta etc depois no Ocidente medieval no século XIII a Légende dorée de Jacques de Voragine não é senão o caso mais famoso multiplicamse as compilações mais recapituladoras e cíclicas indicadas por títulos antigos Pg 267 dos quais mudam o sentido Martirológio Catalogus sanctorum Sanctilogium Legendarium etc Ao longo deste desenvolvimento distinguese a Vida destinada ao ofício litúrgico tipo mais oficial e clerical e a Vida destinada ao povo tipo mais ligado aos sermonários aos relatos de jograis etc Em 1643 a publicação em Antuérpia do primeiro volume dos Acta sanctorum pelos jesuítas Bolland e Henskens o Henschenius marca uma virada o primeiro em data dos trabalhos que irão editar os Bollandistas em particular Daniel Papebroch o membro mais célebre desta Comuna erudita este volume resulta do projeto que o Pe Rosweyde havia concebido cerca de meio século antes Foi ele que introduziu a crítica na hagiografia Pesquisa sistemática dos manuscritos classificações das fontes transformação do texto em documento concessão de Privilégio fato por minúsculo que fosse passagem discreta da verdade dogmática para uma verdade histórica que tem o seu fim em si mesma busca que já define paradoxalmente não a descoberta do verdadeiro mas a do falso E Cassirer estes princípios definem o trabalho coletivo de uma equipe que se inscreve ela mesma numa pequena internacional da erudição através de uma rede de correspondências e de viagens meios de informações e de controle recíprocos Assim se forma nesta infraestrutura social um communis eruditorum consensus De agora em diante na classificação das obras religiosas as vidas de santos gerais e particulares são uma grande parte da história eclesiástica Table universelle des auteurs ecclésiastiques 1704 Pelo fato de a seleção erudita reter dos documentos apenas o que estes têm de sincero ou de verdadeiro a hagiografia nãocrítica que permanece a mais importante se isola Operase uma divisão Por um lado a austeridade que em matéria litúrgica os padres e os teólogos sempre opuseram à folclorização popular transformase em exatidão histórica forma nova do culto através da qual os clérigos prendem o povo à verdade Por outro lado da retórica dos sermões sobre os santos passase para uma literatura devota que cultiva o afetivo e o extraordinário O fosso entre as Biografias eruditas e as Vidas edificantes se amplia As primeiras são críticas menos numerosas e tratam de santos mais antigos quer dizer são ao mesmo tempo relativas a uma pureza primitiva do verdadeiro e a um privilégio elitista do saber As segundas como milhares de Flores dos santas populares são muito difundidas e consagradas a contemporâneos mortos em odor de santidade No século XX outros personagens os da política do crime ou do amor tomam o lugar dos santos mas entre as duas séries a divisão se mantém Pg 268 Um documento sociológico A vida de santo se inscreve na vida de um grupo Igreja ou comunidade Ela supõe que o grupo já tenha uma existência Mas representa a consciência que ele tem de si mesmo associando uma imagem a um lugar Um produtor mártir santo patrono fundador de uma Abadia fundador de uma Ordem ou de uma igreja etc é referido a um sítio o túmulo a igreja o mosteiro etc que assim se torna uma fundação o produto e o signo de um advento O texto refere também uma rede de suportes transmissão oral manuscrita ou impressa da qual estanca num momento dado o desenvolvimento indefinido Fixa uma etapa na dinâmica da proliferação e da disseminação sociais As fugas e à perda com que se paga a difusão responde com o fechamento de uma encenação que circunscreve ou retifica o movimento das convicções em marcha progresso da devoção para com os primeiros mártires ou daquela que amplifica os milagres do Padre Pio Sob este ponto de vista existe uma dupla função do recorte Ele distingue o tempo e o lugar do grupo Por um lado a vida de santo articula dois movimentos aparentemente contrários Assume uma distância com relação às origens uma comunidade já constituída se distingue do seu passado graças à distância que constitui a representação deste passado Mas por outro lado um retorno às origens permite reconstituir uma unidade no momento em que desenvolvendose o grupo arrisca se dispersar Assim como a lembrança objeto cuja construção está ligada ao desaparecimento dos começos se combina com a edificação produtora de uma imagem destinada a proteger o grupo contra a dispersão Assim se diz um momento da coletividade partilhada entre o que ela perde e o que ela cria A série de vidas de Pacômio ou de Francisco de Assis atesta ao mesmo tempo estados e programas diferentes proporcionados a um distanciamento do passado e à reação presente que suscita Por outro lado a vida de santo indica a relação que o grupo mantém com outros grupos Assim o martírio predomina lá onde a comunidade é marginal confrontada com uma ameaça de morte enquanto a virtude representa uma igreja estabelecida epifania da ordem social na qual se inscreve Reveladores são também deste ponto de vista o relato dos combates do herói com as imagens sociais do diabo ou o caráter seja polêmico seja parenético do discurso hagiográfico ou o obscurecimento do cenário sobre o qual o santo se destaca através de milagres mais fortemente marcados ou a estrutura seja binária conflitual antinômica seja ternária Pg 269 mediatizada e em equilíbrio do espaço onde estão dispostos os atores Existe também sociedade histórica do herói Desta maneira o mártir é a figura dominante nos inícios da Igreja católica as Paixões protestante os martirológios de Rabe de Foxe de Crespin ou em grau menor camisarde Depois vem os confessores no século IV entre os Sírios ou na Gália com são Martinho que reforçam e finalmente substituem os mártires seja o eremita que é ainda um combatente mas no deserto e contra o diabo e que já é um fundador seja o pastor o bispo ou abade restaurador de uma comunidade Passase em seguida aos homens virtuosos com uma predominância dos religiosos regulares sobre os padres e sobre os leigos as mulheres se lhes seguem mui tardiamente época merovíngia se nos prendermos às canonizadas e em pequeno número mas anteriores ainda ao grupo de crianças muito menos compacto Uma função de vacância Desde os primeiros tempos na comunidade cristã a hagiografia se distinguiu globalmente de um outro tipo de texto os livros canônicos que constituem essencialmente as Escrituras Na sua Vida século V se diz de Melânia que uma vez saciada dos livros canônicos ou das compilações de homílias ela percorreu as vidas dos Padres como sobremesa A vida dos santos traz à comunidade um elemento festivo Ela se situa do lado do descanso e do lazer Corresponde a um tempo livre lugar posto à parte abertura espiritual e contemplativa Não se encontrado lado da instrução da norma pedagógica do dogma Ela diverte Diferentemente dos textos nos quais é necessário acreditar ou praticar ela oscila entre o crível e o incrível propõe o que é lícito pensar ou fazer Sob estes dois aspectos cria fora do tempo e da regra um espaço de vacância e de possibilidades novas O uso da hagiografia corresponde ao seu conteúdo Na leitura é o lazer distinto do trabalho Para ser lida durante as refeições ou quando os monges se recreiam Durante o ano intervém nos dias de festa É contada nos lugares de peregrinação e ouvida nas horas livres Sob estes diversos aspectos o texto corta o rigor do tempo com o imaginário reintroduz o respectivo e o cíclico na linearidade do trabalho Mostrando como através de um santo uma exceção a história está aberta ao poder de Deus cria um lugar onde o mesmo e o lazer se encontram Este lugar excepcional abre para cada leitor a possibilidade de um sentido que é ao mesmo tempo o alhures e o imutável O extraordinário e o possível Pg 270 se apóiam um no outro para construir uma ficção posta aqui a serviço do exemplar Esta combinação sob a forma de um relato representa uma função de gratuidade que se encontra igualmente no texto e no seu uso É uma poética do sentido Não é redutível a uma exatidão dos fatos ou da doutrina sem destruir o próprio gênero que enuncia Sob as aparências de uma exceção e de um desvio quer dizer pela metáfora de um caso particular o discurso cria uma liberdade com relação ao tempo cotidiano coletivo ou individual mas constitui um nãolugar Uma literatura popular A mais antiga menção de uma hagiografia na literatura cristã eclesiástica é uma condenação o autor um padre foi degradado por haver cometido um apócrifo A ortodoxia reprime a ficção O decreto Gelasiano que se pode chamar o primeiro Index da Igreja de Roma concede um amplo espaço à interdição de Gestas de mártires Também a hagiografia não entrou na literatura eclesiástica senão por efração ou seja pela porta de serviço Ela se insinua na ordem do clericato não faz parte dela As Paixões dos mártires não são introduzidas na liturgia romana senão tardiamente século VIII e com muitas reticências O mesmo ocorre na Igreja grega onde a hagiografia entretanto se desenvolve muito mais rápido e a partir do século IX freqüentemente entre os leigos Reencontramse as mesmas reservas no século XVI nas origens das Igrejas protestantes e no século XVIII mais ainda na administração eclesiástica católica mobilizada contra as lendas e superstições por uma caça às feiticeiras Posteriormente o Estado substituirá as jurisdições eclesiásticas Assim entre milhares de outras a censura ministerial que em Paris em maio de 1811 atinge uma compilação de maravilhas operadas em NotreDame de Laus é servir à Igreja diz o censor impedir que crenças sem autenticidades se tornem objeto de escárnio Paris Arq Nac f 18 11491 Para retomar os termos que emprega Du Cange 1665 censores legítimos investem constantemente contra a devoção dos povos No século XVII como em todos os tempos os homens doutos se opõem à falsa crença dos povos e a enquadram na barbárie dos séculos passados A Godeau 1681 A hagiografia seria a região onde localizados no mesmo lugar e condenados juntos pululam o falso o popular e o arcaico Esta censura é feita pelos clérigos letrados quando não são religiosos são políticos mas obedece a critérios diferentes segundo as épocas A norma em nome da qual se exclui a lenda varia Nas origens era principalmente Pg 271 litúrgica Depois foi de tipo dogmático A partir do século XVII teve uma forma mais histórica a erudição impõe uma definição nova do que verdadeiro ou autêntico No século XIX adquire um aspecto mais moral ao gosto pelo extraordinário perda de sentido e perda de tempo opõese uma ordem ligada ao mérito do trabalho à utilidade dos valores liberais a uma classificação de acordo com virtudes familiares Referese 1 também a uma normalidade psicológica então num meio patológico o santo deve se distinguir por seu equilíbrio que o compromete de forma exemplar no código estabelecido por novos clérigos letrados Sempre apoiado em regras que caracterizam um estatuto da sociedade eclesiástica a censura clerical extrai da massa da literatura hagiográfica uma parte conforme a uma norma do saber esta parte será canônica e canonizável O resto que é o principal é julgado severamente mas tolerado por causa de sua utilidade para o povo Esta literatura herética é alternadamente destinada ao povo pelos clérigos autores e utilizadores de tantas vidas edificantes e recusada em virtude dos erros que provêm da ignorância popular Assim nasce o problema bifronte de uma literatura popular produto de uma elite ou efeito daquilo que ela elimina A hagiografia há cem anos entrou no folclore aí freqüentemente ela se atribui o privilégio de representar um fundo do homem do qual uma elite erudita folkloristas e etnólogos seria a intérprete e a consciência Mas não está este trabalho destinado a eliminar o que se supõe que a hagiografia represente e portanto a perder o que visa II A ESTRUTURA DO DISCURSO O herói Na hagiografia a individualidade conta menos que o personagem Os mesmos traços ou os mesmos episódios passam de um nome próprio a outro às combinações destes elementos flutuantes como palavras ou jóias disponíveis compõem tal ou qual figura e lhe atribuem um sentido Mais do que o nome próprio importa o modelo que resulta desta tergiversação mais do que a unidade biográfica o recorte de uma função e do tipo que a representa A construção da imagem efetuase a partir de elementos semânticos Desta maneira para indicar no herói a fonte divinde sua aço e da heroicidade de suas virtudes a vida de santo freqüentemente lhe dá uma origem Pg 272 nobre O sangue é a metáfora da graça Daí a necessidade das genealogias A santificação dos príncipes e o enobrecimento dos santos estão em simetria de texto para texto estas operações recíprocas instauram em hierarquia social uma exemplaridade religiosa e sacralizam uma ordem estabelecida tal é o caso de são Carlos Magno ou são Napoleão Mas igualmente obedecem a um esquema escatológico que inverte a ordem política para substituíla pela celeste e transformam os pobres em reis De fato existe circularidade cada ordem reconduz à outra É a ambigüidade das Gesta principum et vitae sanctorum uma atração recíproca do príncipe e do santo os reúne na prova que é sempre a mesma coisa sob a diversidade das manifestações A utilização da origem nobre conhecida ou oculta não é senão um sintoma da lei que organiza a vida de santo Enquanto que a biografia visa colocar uma evolução e portanto as dierenças hagiografia postula que tudo é dado na origem com uma com uma eleição ou como nas vidas da Antigüidade com um ethos inicial A história é então a epifania progressiva deste dado como se ela fosse também a história das relações entre o princípio gerador do texto e suas manifestações de superfície A prova ou a tentação é o pathos desta relação a ficção de sua indecisão Mas o texto contase a si niesmo focalizando o herói em torno da constância perseverança do próprio Idem enim constantissime perseverat qui prius fuerat é dito de são Martinho na sua Vita O fim repete o começo Do santo adulto remontase à infância na qual já se reconhece a efígie póstuma O santo é aquele que não perde nada do que recebeu O relato não é menos dramático mas não há devir senão da manifestação Seus lugares sucessivos se repartem essencialmente entre um tempo de provações combates solitários e um tempo de glorificações milagres públicos passagem do privado ao público Como na tragédia grega conhecese o resultado desde o início com a diferença de que lá onde a lei do destino grego supunha a queda do herói a glorificação de Deus pede o triunfo do santo Um discurso de virtudes A hagiografia é a rigor um discurso de virtudes Mas o termo não tem senão secundariamente e nem sempre uma significação moral Ele se aproxima mais do extraordinário e do maravilhoso mas apenas enquanto estes são signos Designa o exercício de poderes ligandose aos dunameis Pg 273 do Novo Testamento e articulando a ordem do parecer com a ordem do ser O poder representa a relação entre estes dois níveis e mantém sua diferença Esta mediação compõe todo um leque de representantes desde o martírio ou o milagre até a ascese ou o cumprimento do dever de estado Cada vida de santo oferece uma escolha e uma organização próprias destas virtudes utilizando para este fim o material fornecido seja pelos fatos e gestos do santo seja pelos episódios pertencentes ao fundo comum de urna tradição As virtudes constituem unidades de base sua rarefação ou sua multiplicação produz no relato efeitos de retorno ou de progresso suas combinações permitem uma classificação das hagiografias Estas unidades podem ser caracterizadas sob diferentes títulos Enquanto fornecem modelos exempla sociais situamse numa intersecção entre a evolução da comunidade particular onde são elaboradas aspecto diacrônico e a conjuntura sócio cultural que esta evolução atravessa aspecto sinxónico desta maneira o lugar e a definição da pobreza na Idade Média variam segundo uma congregação esteja próxima ou afastada dos seus inícios e segundo o pauperismo represente na sociedade global o papel de uma mobilidade necessária ou de uma ameaça à ordem Será o mesmo por exemplo para estas virtudes opostas que são por um lado a irredutibilidade da confissão de fé com relação ao meio martírio pelo sangue por outro lado a integração em nome da utilidade social o dever de estado ou de uma conformidade cultural o equilíbrio psicológico As virtudes ressaltam também de uma hierarquia dos signos segundo a relação com o ser que manifestam Podese explicar através disto que tenha ovorrido manifestação da virtude dunameis e que as virtudes tenhan se especializado distinguindose dos milagres Uns e outros se referemse ao poder mas como norma social no caso das primeiras e como exceção no caso dos segundos lá onde se poduz a moralização das virtudes parece o procedimento que permite transformar os signos mais conformes às regras sociais de uma época em manifestações as mais verdadeiras as mais transparentes do mistério cristão Aliás a exceção o milagre é dada como irrupção do poder divino é verdadeiro conforme ao ser aquilo que não está conforme ordem social Na primeira perspectiva os milagres se tornam secundários podese relativizálos ou apagálos como a um acréscimo indiscreto Na segunda as virtudes aparecem como preâmbulos e combates que preparam o desvelamento miraculoso do essencial Terseá portanto a vida de santo que vai da ascese aos milagres através de uma progressão em direção à visibilidade ou pelo contrário que visa Pg 274 para além dos primeiros prodígios as virtudes comuns e ocultas da fidelidade nas pequenas coisas traços da verdadeira santidade Uma teologia está sempre investida no discurso hagiográfico Ela é particularmente evidente lá onde a vida do santo serve para provar uma teologia principalmente entre os Bizantinos ou no Ocidente nos séculos XVI e XIX a tese é verdadeira já que foi professada por um homem que era um santo Fundamentalmente é uma combinação de signos que dá o sentido do relato Por eles mesmos o quadro e a ordem das virtudes expõem como uma ficção uma teoria da manifestação A organização de uma Vida obedece portanto a diversos tipos de projeções do quadro sistemático sobre o eixo temporal Pode ser antropológica assim o relato dará sob a forma de etapas sucessivas a distinção filosófica dos atos dos poderes e da maneira de ser ou a tripartição do homem em sensível psíquico e espiritual ou ética assim os elementos serão classificados segundo catálogos de virtudes segundo os três votos da religião etc ou teólogica assim a expansão cronológica segue a divisão em três virtudes teologais e em quatro virtudes cardeais etc Durante o período moderno a eucaristia condição da passagem do ser ao parecer é o objeto privilegiado pelo milagre que se torna o duplo e a prova daquilo que torna o relato de uma manifestação possível Tópica hagiográfica A hagiografia oferece um imenso repertório de temas que freqüentemente historiadores etnólogos e folcloristas exploram Com Günther e muitos outros podem se ressaltar pequenas unidades fortemente estruturadas cuja remanescência não é explicada necessariamente por influências como o aparecimento do crucifixo miraculoso o corpo lançado ao monturo e protegido dos cães pelas aves de rapina a estátua vinda do mar o portador da própria cabeça etc Existe também um bestiário Freqüentemente a vida de santo curtocircuita o humano ligando no milagre o poder divino e o animal que é a vítima ou o beneficiário dele estas evanescências do homem no milagre compõem uma demonstração mais forte de uma junção dos extremos mas também os retornos do fantástico do desejo O repertório animal comporta aliás regiões de relevo muito diferentes umas mais estereotipadas e simbólicas o porco a serpente o leão a águia etc outras mais realistas as aves domésticas o cachorro o cavalo etc Entre elas passa a fronteira móvel que separa um léxico recebido cujas origens selvagens ainda estão Pg 275 próximas e a linguagem da natureza cultivada o animal doméstico ou familiar Mais importante ainda é a linguagem do corpo topografia de buracos e de ocos os orifícios a boca o olho e as cavidades internas o ventre ulteriormente o coração privilegiados alternadamente se inscrevem nas dialéticas exteriorinterior ou englobanteenglobado para permitir um teatro rico de entradas e saídas Globalmente estes temas remetem a sistemas de representação Foi possível distinguir um tipo demoníaco ou agônico que localiza as imagens do diabo e suas metamorfoses num combate celeste um tipo histórico ou escriturário que repete desenvolve e ilustra os signos fornecidos pelo Antigo e pelo Novo Testamento um tipo ascético e moral que se organiza em torno da pureza e da culpabilidade e que repete as representações da saúde e da doença etc III UMA GEOGRAFIA DO SAGRADO A hagiografia se caracteriza por uma predominância das particularizações de lugar sobre as particularizações de tempo Por aí também se distingue da biografia Obedece à lei da manifestação que caracteriza este gênero essencialmente teofânico as descontinuidades do tempo são esmagadas pela permanência daquilo que é o início o fim e o fundamento A história do santo se traduz em percursos de lugares e em mudanças de cenário eles determinam o espaço de uma constância A circularidade de um tempo fechado No seu conjunto e desde as primeiras palavras a vida de santo se submete a um outro tempo do que a do herói o tempo ritual da festa O hoje litúrgico o remete a um passado que está por contar O incipit determina o estatuto do discurso Não se trata de uma história mas de uma legenda o que é preciso ler legendum este dia Desde os primeiros calendários até as Vidas de santos para todos os dias do ano de J Caillet entre centenas de outros e os catálogos dos santos segundo a ordem dos meses um quadro litúrgico estabelece lugar para a hagiografia dentro de uma circularidade o tempo outro sem duração já escatológico da festa A ordem de um calendário se impõe ao relato dois calendários estão na origem das versões grega e latina da Vida de Meidnia As obras dos santos são classificadas segundo os calendários em uso nas comunidades onde se lê sua lenda É a ordem de um cosmos Pg 276 Ela se reencontra nos catálogos universais que substituem à circularidade do santoral o ciclo anual das festas de santos a totalidade mais vasta da história desde o início do mundo como já o faz L Rabe 1571 outro tempo fechado pois a cronologia que se introduz na hagiografia permanece o meio de uma recapitulação englobante A ordem litúrgica não se fraciona senão onde se impõe a ordem alfabética Sobrevive ainda subrepticiamente por exemplo com a tabela dita cronológica que no Dictionnaire hagiographique de Migne em 1850 segue o calendário Permanece a norma oculta o sustentáculo secreto do espaço onde aliás se encontra encerrada Esta proteção de um lugar posto fora do tempo faz ela outra coisa senão repetir o que diz o texto com a vontade de cobrir de extraordinário uma localidade religiosa ou com a tendência apocalíptica e milenarista que nela freqüentemente se exprime Uma composição de lugares A vida de santo é uma composição de lugares Primitivamente ela nasce num lugar fundador túmulo de mártir peregrinação mosteiro congregação etc transformado em lugar litúrgico e não cessa de reconduzir para ele através de uma série de viagens ou de deslocamentos do santo como para aquilo que é finalmente a prova O percurso visa o retorno a este ponto de partida O próprio itinerário da escrita conduz à visão do lugar ler é ir ver O texto com seu herói circula em torno do lugar É deíctico Mostra sempre o que não pode nem dizer nem substituir A manifestação é essencialmente local visível e não dizível ela falta ao discurso que a designa fragmenta e comenta numa sucessão de quadros Mas esta discursividade que é passagem de cena para cena pode enunciar o sentido do lugar insubstituível único extraordinário e sagrado hagios A organização do espaço que o santo percorre se desdobra e torna a dobrar a fim de mostrar uma verdade que é um lugar Num grande número de hagiografias antigas ou modernas a vida do herói se divide como o relato da viagem entre uma partida e um retorno mas não comporta a descrição de uma sociedade outra Vai e volta Existe inicialmente a vocação do santo que o exila da cidade para conduzilo ao deserto campos ou terras longínquas tempo de ascese que contém a sua iluminação Depois vem o itinerário que o leva outra vez à cidade ou que conduz a ele a multidão das cidades tempos de epifania de milagres e de conversões Este esquema permite introduzir os leitores no movimento do texto produz uma leitura itinerante se encarrega na sua primeira parte do mundo Pg 277 mau para conduzir pobre as pegadas do santo ao lugar enunciado É o lado edificante da hagiografia seja sob uma forma parenética seja à maneira de um julgamento pronunciado contra o mundo a primeira parte é o lugar privilegiado dos combates com o demônio Mais ainda estes dois lugares contrários esta partida duplicada com um retorno este fora que se completa encontrando um dentro designam um nãolugar Um espaço espiritual se indica pela contrariedade destes movimentos A unidade do texto se prende à produção de um sentido por justaposição de contrários ou para retomar uma palavra dos místicos por uma coincidência dos opostos Mas o sentido é um lugar que não é um lugar Remete os leitores a um além que não é nem um alhures nem o próprio lugar onde a vida do santo organiza a edificação de uma comunidade Freqüentemente se produz aí um trabalho de simbolização Talvez esta relativização de um lugar particular através de uma composição de lugares como o desaparecimento do indivíduo por detrás de uma combinação de virtudes prescritas à manifestação do ser forneçam a moral da hagiografia portanto uma vontade de singnificar um discurso de lugares é o nãolugar INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS H DELEHAYE Les légendes hagiographiques Bruxelas 1905 H DELEHAYE CYnq leçons sur la méthode hagiographique Bruxelas 1934 P PEETERS Orient et Byzance Le tréfonds oriental de lhagiographie byzantine Bruxelas 1950 R AIGRAIN L hagiographie Paris 1953 H GUNTHEK Psychologie de la légende Introduction à une hagiographie scientifique Paris 1954 T WOLPERS Die englische Heiligenlegende des Mittelalters Tübingen 1964 F GRAUS Volks Herrscher und Heiliger ira Reich der Mero winger Praga 1965 J F GILMONT Les Martyrologes protestants du a siècle Louvain 1966 J FONTAINE Introduction à Sulpice Sévère Vie de saint Martin Paris 1967 E DORN Der sandige Heilige in der Legende des Mittelalters Munique 1967 E PATLAGEAN A Bizance ancienne hagiographie et histoire social em Annales E S C t XXIII 1968 p 106126 B DE GAIFFIER Mentalité de lhagiographe médiéval em Analecta Bollandiana t LXXXVI 1968 p 391399 P DELOOZ Sociologie et canonisations Haia 1969 Pg 278 Pg 279 Título Pg 280 Página em branco Pg 281 Quarta Parte AS ESCRITAS FREUDIANAS Capítulo VIII O QUE FREUD FEZ DA HISTÓRIA A propósito de Uma neurose demoníaca no século XVII O que nós chamamos inicialmente história não é senão um relato Tudo começa com a vitrina de uma lenda que dispõe objetos curiosos na ordem em que é necessário lêlos É o imaginário de que temos necessidade para que o alhures repita apenas o aqui Impõese um sentido recebido numa organização tautológica que não diz outra coisa além do presente Quando recebemos o texto já se efetuou uma operação ela eliminou a alteridade e seu perigo para não guardar do passado senão fragmentos integrados nas histórias que uma sociedade inteira se conta nos serões encastoados no quebracabeça de um presente Estes signos arrumados como lenda continuam entretanto susceptíveis de uma outra análise Começa então uma outra história Ela tende a instaurar a heteronomia isto se passou na homogeneidade da linguagem isto se diz isto se lê Produz o histórico no elemento de um texto A rigor isto é fazer história A palavra história oscila entre dois pólos a história que é contada Histoire e a que é feita Geschichte Este trabalho banal tem o mérito de indicar entre duas significações o espaço de um trabalho e de uma mutação Pois o historiador parte sempre do primeiro sentido e visa ao segundo para abrir no texto de sua cultura a brecha de alguma coisa que aconteceu alhures e noutro momento Desta maneira produz história Nos pedaços que o imaginário de sua sociedade organiza antecipadamente ele opera deslocamentos Pg 281 acrescenta outras peças estabelece distâncias e comparações entre elas discerne nestes indícios o vestígio de outra coisa remete assim a uma construção desaparecida Em suma cria ausências Com estes documentos através de artimanhas que não necessitam ser lembradas aqui ele constitui um passado capturado mas não reabsorvido no seu novo discurso Portanto seu trabalho é também um evento Porque não repete tem como efeito transformar a histórialenda em históriatrabalho Um mesmo processo operatório transforma a relação do historiador com o objeto passado do qual se falava e a relação interna entre os documentos que designavam este objeto Estudo publicado em Annales E S C t 25 1970 p 654667 Neste último sentido é que vai constituir aqui questão da história Não para deduzir de um saber tirado de Freud sua concepção da história nem para medir os resultados da interpretação freudiana segundo os métodos atuais da investigação histórica mas para revelar aquilo a que correspondem e chegam as incursões de Freud na região histórica da sua cultura Como trata ele esta parte de sua linguagem onde sua curiosidade correspondeu ao gosto de tantos de seus contemporâneos Como analista o que faz ele da história Também é preferível examinar seu trabalho num caso particular Correse assim o risco de abrir algumas questões mas sem ter o meio de lhes dar um verdadeiro estatuto científico sem ter tampouco a ilusória pretensão de as resolver Talvez esta observação seja ela também uma reação contra uma maneira de se servir da psicanálise Um certo número de trabalhos tanto em etnologia quanto em história mostram que o uso dos conceitos psicanalíticos ameaça tornarse uma nova retórica Eles se transformam então em figuras de estilo O recurso à morte do pai ao Edipo ou à transferência serve para tudo Sendo estes conceitos freudianos supostamente utilizáveis para todos os fins não é difícil calcálos sobre as regiões obscuras da história Infelizmente não são mais do que utensílios decorativos quando tem por objetivo apenas o de designar ou cobrir pudicamente o que o historiador não compreende Circunscrevem o inexplicado não o explicam Confessam uma ignorância Instalamse onde uma explicação econômica ou sociológica deixa um resto Literatura de elipse arte de apresentar os dejetos ou sensação de uma questão sim mas análise freudiana não O histórico produção da Aufklärung freudiana O estudo sobre Uma neurose demoníaca no século XVII data de 19221 Para todos os detalhes necessários ao diagnóstico remeto ao texto Pg 282 Sua história é conhecida Ela é contada num manuscrito dos séculos XVIIXVIII o Trophaeum Marianocellense Viena Bibl nac ms 14084 de que Freud fez uma descrição detalhada 1 Sigmund Freud Gesammelte Werke Imago Publishing Londres t XIII p 315353 Eine Teufelsneurose im siebzehnten Jahrhundert Esta edição será designada pela sigla GW seguida do número da página Do texto se tem a tradução inglesa na Standard Edition vol 19 p 69105 a tradução francesa não muito satisfatória em Essais depsichanalyse appliquée Gallimard 1952 p 213254 Era uma vez um pintor bávaro Christoph Haitzmann Em 5 de setémbro de 1677 portador de uma carta de recomendação do cura de Pottenbrunn Baixa Áustria ele se apresentou no mosteiro de Mariazell em Zell na Estíria A carta escrita em 1 de setembro por Leopoldo Braun ao abade do convento e recopiada no Trophaeum contava que chegado há vários meses a Pottenbrunn o pintor havia sofrido em 29de agosto na igreja terríveis convulsões e que havia apresentado os mesmos sintomas nos dias seguintes Interrogado pelo cura ele confessou terse deixado seduzir pelo diabo em 1669 e terse então comprometido por escrito a pertencerlhe de corpo e alma após nove anos Outros textos nos informam que sua melancolia estava ligada à morte de seu pai causa da depressão que havia precedido seu contrato com o diabo O prazo do pacto era 24 de setembro de 1677 O infeliz esperava que a Bemaventurada Virgem Maria de Zell o salvasse obrigando o Maligno a restituir este pacto escrito com sangue Segundo um relato escrito muito provavelmente durante setembro de 1677 igualmente dado pelo Trophaeum desde sua chegada a Mariazell Haitzmann foi exorcizado durante três dias e três noites No dia 8 de setembro festa da Natividade de Nossa Senhora por volta da meianoite ele viu o diabo aparecerlhe sob a forma de um dragão alado no canto esquerdo do altar consagrado à Virgem arrancandose aos padres ele se precipitou para o altar e dele trouxe de volta o seu pacto Após alguns dias retomou a Pottenbrunn depois a Viena onde morava sua irmã casada A partir de 11 de outubro e até maio de 1678 foi novamente atingido por convulsões aparições estranhas em uma vez por paralisia das pernas Pôsse a descrever seus sintomas num diário recopiado do manuscrito de Viena redigido até 13 de janeiro de 1678 e ilustrado por ele mesmo com pinturas que representavam suas visões em especial o diabo alternadamente como um honrado burguês e como demônio provido de mamas Retornou a Mariazell onde se queixou de ataques do espírito mau Ele os atribuiu a um segundo pacto este escrito a tinta que teria feito com o diabo Segundo uma retomada dos exorcismos recuperou este pacto em 9 de maio cerca de 9 horas da noite Pouco depois se fez religioso entre os Irmãos Hospitalários ou Irmãos da Misericórdia sob o nome de Irmão Crisóstomo Morreu em 14 de março de 1700 em Neustadt sobre o Moldávia A notícia que lhe consagra o provincial após uma investigação Pg 283 de 1714 menciona uma vida regular com de tempos em tempos a tentação maligna de fazer um novo pacto com o diabo é verdade acrescenta a relação que isto se dava quando havia bebido vinho um pouco demais O manuscrito recopiou cuidadosamente os dois síngrafos Um escrito com sangue Christoph Haitzmann Eu me voto a este Satan para ser seu próprio filho e pertencerlhe de corpo e alma em nove anos O outro escrito a tinta Eu Christoph Haitzmann me comprometo por escrito com este senhor a ser seu próprio filho em nove anos É portanto um caso de possessão Existem deles milhares no século XVII Este território negro da história este universo selvagem das superstições prende e fascina ao mesmo tempo o historiador e o filósofo Mas o murmúrio desta experiência marginalizada não entra no nosso discurso Eis que para Freud estes tempos sombrios GW 317 são pelo contrário a mina a céu aberto O que é nossa noite selhe mostra em plena claridade diz ele GW 318 Existe aí com o que despertar a incredulidade ou a suspeita já que o historiador determinado por sua documentação não apreende a feitiçaria senão como uma lacuna à margem do escrito e do seu texto2 ou que o filósofo define o diabólico como o termo eliminado e porque excluído ilegível numa estrutura de limite essencial à constituição de toda razão e de toda sociedade3 Mas estas não são as questões às quais Freud neste texto pretende responder Terseia pelo menos graças à clarificação freudiana e porque esta se opera no terreno da história um modelo científico tornando preciso o que nós chamamos a interdisciplinaridade Este encontro permitiria definir as condições de uma diferença e de um confronto entre ciências afins no caso entre a história e a psicanálise Por aí se ofereceria uma oportunidade de liquidar esta interdisciplinaridade frouxa que hoje se insinua nos interstícios dos campos definidos pelas ciências que só se aproveita do seu jogo como de um espaço entre elas vacante incerto e inconfessável ou que deixa a cada uma a facilidade de atribuir a outras o além de sua explicação A interdisciplinaridade de que se poderia tratar busca antes apreender constelações epistemológicas que estão se dando um novo recorte de seus objetos e um novo estatuto de seus procedimentos Mas Freud não escuta por este ouvido Escreve para quem crê glauben na psicanálise GW 330 Ele o faz em nome de uma ciência à qual seu 2 A informação é efetivamente constituída pelos documentos sobre a possessão ou a feitiçaria textos jurídicos médicos religiosos etc ela não provém dos feiticeiros ou dos possuídos senão aqueles apanhados na malha dos interrogatórios que os acusam ou dos relatos que os julgam 3 Assim Michel Foucault Histoire de la folie à lâge classique Plon 1961 prefácio p VVI sobre esta estrutura de limite ou estrutura de recusa A história não é possível senão sobre um fundo de ausência de história Do estudo que M Foucault anunciava sobre a experiência do demoníaco e a redução que dela foi feita do século XVI ao XVII ibid pag 34 n 1 temse um resumo com seu artigo Médecins juges et sorciers au XVIIe siècle em Médecine de France n 200 p 121128 êxito em geral überhaupt dá o direito imperial de estender suas investigações a novas regiões GW 317 e a certeza de confirmar suas primeiras conquistas Envia Pg 284 sua flecha contra Tróia certo de que a cidade murada dos feiticeiros cederá também e não cederá senão a esta arma GW 329 À primeira vista ele tem diante do manuscrito de Mariazell uma atitude bem característica Pois exerce seu instrumento nesta terra para ele ainda virgem e psicanaliticamente não cultivada a saber estes escritos provenientes do século XVII isto ocorre não porque ela lhe pareça estranha supostamente distante e no seu conjunto como um passado É pelo contrário porque é sua Os documentos que lê pertencem à sua paisagem Fazem parte do seu presente que é um presente não analisado Indício revelador O documento de Mariazell representa aqui um fragmento do conjunto factício mas real que constituem as leituras conhecimentos interesses em suma a cultura de Freud superfície plana e inteiramente contemporânea onde lhe é dado um lugar antes que ele mesmo o tome Ele está dentro desta linguagem a de seus clientes de seus amigos ou de suas leituras antes de nela empreender qualquer coisa como erudito Deste ponto de vista o manuscrito não lhe propõe outro problema além dos que lhe propõe qualquer outro fragmento da sua linguagem Mas ele precisamente fará do manuscrito um documento histórico de uma maneira que lhe é própria e através de uma operação científica a sua que se estende também a este elemento de sua cultura A este território de palavras colocadas como resto na geografia cultural de hoje o passado não é inicialmente senão uma modalidade do presente a análise vai dar como que uma espessura Desta maneira procede aliás a terapêutica freudiana ela decifra nas palavras do doente uma organização que denuncia uma gênese ela as remete assim a eventos que ocultam e que se tornam enquanto ausentes e presentes um passado A interpretação parte hipocritamente daquilo que se pode encontrar por toda parte nos diz Freud mas faz que no presente e no cotidiano confessem as conclusões mais estranhas GW 328 A história é uma forma desta estranheza Não é um dado imediato nem tampouco um a priori É o produto de um ato científico Resulta aqui da psicanálise Como Referindose ao caso de Haitzmann Freud vai mostrálo pela sua Aufklärung ou elucidação é a palavra do texto aufklären GW 329 Que nos baste adiantar o propósito geral dela como em toda parte esta análise faz de relações entre palavras vestígios de relações entre tempos Através de um trabalho sobre o texto ela transforma a superfície dos elementos verbais numa rede de interrelações que organizam esta superfície que articulam as palavras em função de coisas apagadas ou perdidas e que fazem do texto o signo enganador de eventos passados Pg 285 O que eu gostaria de sublinhar é que uma história está implicada numa relação verbal e se constitui pelo exame freudiano O caso Haitzmann tem à primeira vista aparência histórica data do século XVII maneira de situálo nas gavetas de uma repartição cronológica presente Na verdade ele se torna histórico a partir do momento em que é inscrito numa problemática da história aquela mesma que Freud não pode deixar de evidenciar através do seu trabalho interpretativo Para uma história do século XVII Não me retardarei portanto no interesse heurístico que Uma neurose demoníaca possa apresentar para o historiador ou para o filósofo Tendo permanecido muito tempo nestas margens da história do século XVII4 eu o creio entretanto muito grande Neste sentido os argumentos que Ida Macalpine e Richard Hunter objetam à tese freudiana5 se inspiram numa erudição mais cientificista do que científica e próxima deste bazar oriental ao qual a filosofia das religiões durante muito tempo houve por bem se assemelhar ali se arrumaram juntos segundo sua forma frascos de todas as procedências e todos os diabos com mamas se encontram na mesma prateleira assim como se tem numa outra todas as luas dispersas através das civilizações Este gênero de análise recorta na multiplicidade das religiões um única tema aqui por exemplo o diabo provido de atributos femininos as mamas etc Do todo a que ele pertence ela isola um elemento para ligálo a um objeto constituído antologicamente de acordo com analogias que sozinhas fundam os subentendidos do observador O sentido de um elemento na verdade não é acessível senão através da análise de seu funcionamento nas relações históricas de uma sociedade quer dizer na medida em que este elemento é tomado como um termo inscrito na rede de uma linguagem Macalpine e Hunter não deixam de ter razão6 quando julgam insuficiente e errônea a informação que leva Freud 4 Ao mesmo tempo que ao livro já clássico de Robert Mandrou Magistrats et Sorciers en France au XVLLe siècle Plon 1968 eu me permito remeter à documentação reunida em J J Surin Correspondance ed M de Certeau DDB 1966 e a um estudo sobre o assunto M de Certeau LAbsent de 1Histoire Mame 1973 La magistrature devant la sorcellerie du XVIIe siècle p 1339 5 Ida Macalpine e Richard A Hunter Schizophrenia 1677 A Psychiatric Study of an illustrated Autobiographical Record of Demoniacal Possession W Dawson Londres 1956197 p com a reprodução das pinturas de Haitzmann 6 Ibid p 103 a dizer que a representação do diabo com mamas nas pinturas de Haitzmann7 é insólita GW 335 Mas este ponto não é essencial para a argumentação de Freud que responde aos seus opositores com suas próprias armas Ele quer dizer outra coisa Na perspectiva de uma historiografia a interpretação da idade clássica poderia reter da análise freudiana dois pontos sem dúvida susceptíveis de muitos desenvolvimentos Eu apenas os menciono pois eles correspondem menos ao alcance desta pesquisa do que às suas recaídas Inicialmente a importância da ambivalência DiaboDeus sublinhada Pg 286 por Freud parece confirmada pelas múltiplas formas de sua remanescência no decorrer do século XVII Desta maneira tomando o lugar da autoridade religiosa o Estado e na teoria a razão de Estado se toma um substituto um ersatz do Pai que foi para retomar uma palavra do texto dividido pelas guerras de religião Mas a ambivalência inicial do Pai permanece manifesta em cada Igreja pela oscilação de toda experiência religiosa entre o divino e o diabólico e por outro lado ressurge como ambigüidade no movimento que ainda faz ler esta razão de Estado como sendo de direito divino ou como razão do inferno8 Muitos outros exemplos poderiam ser dados Por outro lado para Freud quando ele os analisa no texto os pactos de Haitzmann com o diabo representam um contrato que fornece ao pintor privado de seu pai morto o benefício de ter um outro pai em troca de sua vida corpo e alma após nove anos Ele se votará em seguida da mesma maneira à congregação dos Irmãos da Misericórdia para poder ser filho Esta interpretação sugere que no século XVII no discurso noturno dos sabbats como no diurno da vida cívica estruturações sócioculturais diferentes têm 7 Também etnólogo e psicanalista Géza Róheim adota uma perspectiva mais freudiana quando recoloca este elemento o diabo fêmea na organização dos indícios fornecidos por Haitzmann Ele aceita a interpretação proposta por Une névrose démoniaque Psychanalyse et anthropologie Gallimard 1967 p 523525 Mas prefere uma outra que seria freudiana no condicional passado aquilo que Freud teria dito ou podido dizer Se Freud tivesse escrito seu artigo mais tarde estou convencido de que ele teria interpretado o diabo como o superego As perturbações começam pela melancolia quer dizer ataques violentos do superego contra o ego Isto sobrevem após a morte do pai e o indivíduo se sente culpado por causa de seus desejos de morte Como pintor ele se sente inferior complexo de culpa e de inferioridade e promete ser um bom filho do substituto paterno se este o substituto do pai ou superego aliviar a pressão que faz pesar sobre ele e cessar de inibir a atividade do seu ego A luta entre o ego e o superego termina quando os muros do mosteiro se fecham em torno dele De agora em diante ele está em segurança ibid p 524 o grifo é meu Como quer que tenha sido a luta entre o ego e o superego que muitas vezes tem o aspecto de uma guerra dos deuses a evocação deste fim não parece de acordo com o pensamento de Freud pouco inclinado nós o veremos a encerrar as histórias como as lendas com uma reconciliação feliz A exegese dé Géza Róheim deixa escapar o problema essencial de substituições ou de deslocamentos cf infra que excluem como diz J Lacan a promessa de uma resolução 8 Cf por exemplo o estudo de Étienne Thuau Raison dÉtat et pensée politique à lépoque de Richelieu A Colin 1966 478 p uma gênese análoga Então com efeito sob outras formas alguém se consagra para ter o privilégio de ser cliente fiel ou filho O problema não vem então de que não haja mais pai a quem se consagrar Daí a pluralidade dos reinvestimentos do papel que enfim assume o rei durante um tempo A esta resolução da necessidade de ser filho e de ser colocado como filho por um pai poderseia mas até que ponto opor a organização presente de uma sociedade onde o desejo de existir de reencontrar novamente o pai se constitui e se aliena mas como artificialidade determinante como linguagem social e como lei anônima Mas antes duas questões devem nos deter associadas de uma forma a primeira vista paradoxal mas na realidade complementares tais como as articula o procedimento freudiano uma a legibilidade do passado a outra as substituições do pai Do passado legível ao presente oculto A neurose demoníaca do século XVII dizem mostrase em plena claridade GW 318 Ela é aliás assimilada à neurose da criança na qual pode ser detectada melhor do que no adulto O século XVII esta idade da humanidade que Freud considera primitiva e que chama também medieval cf GW 318 e 332 descobre a olho nu mit freien Augen GW 317 a doença que não se revela no século XX senão por uma investigação Pg 287 aprofundada Era então evidente o que hoje seria obscuro A Aufklärung das representações próprias destas crianças do século XVII é em suma um brinquedo infantil Desta maneira o mais antigo seria o mais claro Esta posição9 permite interpretar a pretensão freudiana propalada no limiar de seu estudo a de reconhecer sob outras palavras as do século XVII as mesmas estruturas neuróticas GW 317 Pois não se trata aqui de uma realidade de um subjacente homogêneo tal como um essencial ou um thumos que sustentaria a descontinuidade das representações O historiador profissional seria antes levado a substantificar a continuidade sob a forma de um progresso de uma lógica cuja história seria a manifestação ou de um quantitativo cujas codificações iniciais determinam antecipadamente a continuidade etc Com muita rapidez ele toma como realidade da história o que é apenas a coerência 9 Aqui eu não encaro senão a significação teórica desta posição Que Freud atribua às manifestações mais distantes que são também mais isoladas dele e através disto talvez aos traços desativados e mortos do sujeito o caráter de serem mais claros e abordáveis isto poderia ser levado na conta do seu gosto pela arqueologia e esclarecer a sua própria psicologia do seu discurso historiográfico e por uma ordem na sucessão dos fatos o que é apenas a ordem postulada ou proposta pelo pensamento Freud não fala aqui de uma permanência da coisa sob a diversidade das suas roupagens Para ele a mesma relação de ambivalência e de tensão pode se repetir e portanto se reencontrar como um conteúdo diz ele Inhalte GW 317 revelado pelas máscaras sucessivas que o representam seja sob a forma de uma roupagem demonológica no século XVII seja na linguagem das doenças orgânicas no século XX O conteúdo constante é uma relação entre termos cambiantes da qual um é alternadamente ontem a máscara diabólica hoje a enxaqueca a úlcera a doença orgânica O que é reconhecível no passado é o próprio engodo A farsa pela qual se representa e se oculta o conflito recusado é nele mais claro O vestígio da depreciação do pai era ontem mais visível do que o é hoje Esta afirmativa instaura uma distância histórica entre o leitor e o documento que este analisa Esta distância pode ser formulada era visível mas aqui a visibilidade dá o seu peso ao imperfeito era mede uma distância entre tempos diferentes A esta concepção aliás ligamse outros dados do texto Inicialmente Freud evoca um aquém do século XVII A montante no tempo um início é colocado como Anfang começo GW 330 ou como Ursprun origem GW 331 Neste tempo primitivo a dualidade do pai projeção de uma relação ambivalente com o pai era representada numa personalidade única ao mesmo tempo Diabo e Deus No início reinam o mesmo e o simples Janus portador exclusivo da ambigüidade conflitual Este Urbild protótipo primitivo nos dizem mais tarde GW 331 cindiuse e fragmentouse Pg 288 a dualidade presente na primeira imagem infantil submissão terna e desafio hostil foi explicitada em dois personagens opostos Deus e o Diabo Desta maneira o progresso fraciona elucidando Se portanto o passado é mais legível que o presente é em nome desta lei digamos freudiana sem distinguir ainda se proposta ou exumada por Freud que dá a toda explicação a representação simples de uma ambigüidade intransponível como limite originário e como evidência primeira Aqui não é lugar de desembrulhar todas as verificações ou refutações susceptíveis de serem somadas a esta suspeita pela antropologia De qualquer maneira Freud jamais acreditou que estivesse através da psicanálise dispensado de uma informação sócio histórica exata nem de apresentar a articulação entre o individual e o social Que uma documentação abundante talvez mesmo erudita lhe tenha parecido necessária suas pesquisas sobre o manuscrito de Mariazell o demonstram mas ainda mais as pesquisas que empreendeu antes de escrever seus estudos sobre Leonardo da Vinci 1910 sobre o Moisés de Miguel Ângelo 1914 etc e mais ainda seu desgosto a propósito destas obras de ter sido obrigado a tirar amplas conclusões a partir de um número de fatos insuficientes10 Um inventário preciso dos fenómenos permanece uma condição para ele Por outro lado considerava Totem e Tabu 1912 como uma obra capital tão importante quanto A interpretação dos sonhos 1905 fazendolhe frente e completandoa Uma análise das linguagens e da gênese que denunciassem suas estruturações ultrapassa a divisão entre a psicologia individual e a psicologia coletiva11 Com Totem e Tabu Freud se propunha um objetivo que não deixava de manter essa divisão Ele se propunha criar um laço entre etnólogos lingüistas folcloristas etc por um lado e psicanalistas por outro Colaboração que não pode ser senão fecunda mesmo que não possa dar a uns e outros aquilo que lhes falta aos primeiros uma iniciação suficiente à nova técnica psicológica aos últimos um domínio suficiente dos materiais que aguardam sua elaboração 12 Com esta falta ele reconhece que obteve de outrem o material necessário No caso de Haitzmann ele o deve ao doutor R PauerThurn conselheiro áulico diretor da Biblioteca imperial e real dos Fideicomissos em Viena que publicou separadamente o seu trabalho13 Mas recebe também de Bullit a documentação sobre o presidente Wilson ou de Frazer e muitos outros os fatos relativos ao totemismo etc Na realidade este material é o produto das pesquisas nas quais se apóia a psicanálise Não são fatos mas fabricações A este mesmo título ainda são fatos mas fatos históricos resultados e signos de ciências afins Pg 289 as do início do século XX Encontramse portanto na mesma posição que os fatos de que tal ou qual dos seus clientes fala propostas ou fatos também eles elaborados e quase manufaturados Quando se trata dos seus doentes o analista apreende de cara o material de sua linguagem como um produto Com relação ao material que Freud recebe do historiador ou do etnólogo tem ele a mesma atitude Este é o problema Contudo pouco importa contrariamente ao que se diz muitas vezes que os conhecimentos de Freud por exemplo sejam ultrapassados ou deficientes Os de 10 S Freud e W C Bullitt Le Président Thomas Woodrow Wilson Portrait psychologique A Michel 1967 Prefácio de W Bullitt p 8 Foi justamente a documentação abundante e precisa reunida por Bullitt que seduziu Freud Ele desejava há muito tempo fazer o estudo psicológico de um indivíduo sobre quem milhares de fatos haviam sido estabelecidos ibid 11 S Freud Totem et Tabou Prefácio trad S Jankélévitch 12 Ibid 13 R PayerThurn Faust in Mariazell em Chronik des Wiener GoetheVereins 1924 3 Dora ou de Hans dos quais se trata nos Casos Clínicos o são mais ainda Mas o analista tendo confessado sua dependência com relação a esta linguagem assim como frente à linguagem do seu cliente é necessário perguntar antes como a trata como significante ou como realidade e por outro lado como situa seu trabalho interpretativo com relação a esta falha14 Questão grave mas que não deve ser colocada em nome de problemáticas estranhas a de Freud Ocultar trabalho da história Mas retomemos ao seu texto sobre a neurose demoníaca texto aliás talvez organizado sob o aspecto de um recurso à Urbild pela imposição que leva então outros pensadores contemporâneos a tratar da origem da linguagem e do desenvolvimento das línguas Qualquer que seja o caso o conceito introduzido por Freud focaliza a linguagem em um simples Bild único que não existe mais Ur origem desaparecida senão como múltiplo mais aprofundado pelo próprio fato do fracionamento elucidador e portanto menos aparente O trabalho da história Geschichte não cessa de ocultar o que era legível e isto pelo próprio gesto que demultiplica o simples para o desvelar As explicações efetuam um desdobramento dos contrários através disto elas multiplicam as representações quer dizer quebram o Urbild em mil facetas quando o repetem numa linguagem analítica Assim operam a decomposição e a camuflagem do conflito tão claro ao mesmo tempo um movimento de análise e de ocultamento No momento em que ele revela este trabalho explicativo cuja aceleração no século XIX talvez tenha tornado possível a psicanálise Freud reencontra o conflito não mais como Imagem Bild mas como lei cientificamente verificada que organiza cada nova linguagem a do doente de uma sociedade etc De um só golpe dá à ciência um outro objeto o significado o conteúdo que se perde quando se elucida o objeto Pg 290 que não cessa de se perder pelo fato de ser analisado finalmente a relação entre esta perda e as explicações Um quadro originário Urbild permanece presente no seu estudo Está implícito nele e mais exatamente é proposto por ele Mas este não é nem um objeto fora dele e como que dado antes dele nem tampouco o resultado de uma simples tautologia 14 Desta maneira Géza Róheim op cit p 2021 considera apressadamente os acontecimentos primordiais evocados por Freud como puramente míticos e fantasmáticos Isto é julgálos segundo um ponto de vista exclusivamente historiografia e não querer ver sua função no tratamento freudiano da história graças à qual o discurso analítico faria da sua condição um elemento de seu desdobramento esta ciência instaura pelo contrário como lei da linguagem e como sua própria lei uma diferença dos tempos e um trabalho do tempo Algo análogo é sugerido a propósito do totem paianimal imenso canular etnológico retomado pelos autores mais sérios da época 15 Freud vê aí o termo inicial constatado mas necessário de uma relação constitutiva da história que vai do simples ao complexo quer dizer da ambivalência representada pelo totem à dissociação explicativa ulterior Revela portanto no representado original o indício primeiro da lei que vai comandar as explicações as transformações e as manifestações da Imago totêmica16 o mais antigo código ältesten da humanidade Porque a ambivalência é aí mais visível o tabu é mais antigo älter do que os deuses e remonta no tempo a uma época anterior a toda religião17 Na verdade existe aí uma concepção que teria sido impensável sem a posteridade historiográfica e cientificista do hegelianismo quer dizer sem as transposições em termos de progresso de uma visão totalizante da história Mas no elemento cultural de sua época no momento em que retoma também por sua conta os produtos fabricados pela etnologia ou pela história de seu tempo Freud transformalhes o sentido Ele os organiza em função de um outro tipo de unidade ou de objeto científico Relativiza inverte mesmo o progresso Propõe um outro problema É assim que o vestígio de Urbild ainda muito nítido no século XVII vai se enterrar na falsa erudição das explicações sucessivas que o ocultarão Poderseia comparar este processo ao que ocorre quando um doente é recebido hoje num hospital psiquiátrico legíveis quando da sua entrada os caracteres da sua neurose se esfumam com sua introdução numa organização médica imersos na lei da sociedade hospitalária e no corpo social de um saber psiquiátrico Eles se enterram no ritmo de seu encerramento camuflados pela própria instituição terapêutica A história seria esta progressiva iniciação às estruturas asilares na qual cada discurso social apaga por sua vez os sintomas do que o fez nascer A cultura interviria deslocando as representações por exemplo não se crê mais no diabo GW 15 Claude LéviStrauss nos escreveu a este respeito uma história policial que desmistifica o totemismo de antigamente Le Totémisme aujourdhui P U F 1962 155 páginas 16 O próprio Freud remete GW 331 a Totem e Tabu Neste livro sublinhando o caráter enigmático do totemismo ele se refere incessantemente aos dois esquemas conceituais de sua interpretação o paralelismo entre o primitivo e a criança a passagem da ambivalência representada aos seus desdobramentos religiosos cf principalmente cap 2 e 4 GW t IX p 2692 e 122294 17 Totem e Tabu ap 2GW t IX p 27 O grifo é meu 332 n 2 Mas apagando um imaginário tomado Pg 291 arcaico por causa de seus próprios deslocamentos ela acredita trabalhar apenas para cuidar ou para suprimir aquilo que na realidade se contenta em camuflar de outra maneira e melhor Nesta perspectiva as terapias sucessivas se escalonariam ao longo da história como maneiras de curar de cuidar ou de progredir que permaneceriam sempre maneiras de ocultar Nós temos talvez assim um indício do lugar terapêutico que Freud dá a si mesmo A psicanálise não constitui uma nova seqüência no progresso de um engodo sempre acrescido pela capacidade de desmistificar e pela própria lucidez Ele pretende instaurar um corte epistemológico neste processo indefinido Seria o meio de pensar e de praticar uma elucidação de um tipo novo válida gültig em geral e finalmente destinada a dar conta de uma relação estrutural dupla que exclui a possibilidade de um fechamento por um lado a relação de cada analítica que fragmenta a representação enterrando o representado com o que ela tem por fim mostrar e por efeito deslocar por outro lado a relação de cada Aufklärung com as elucidações que lhe são ou anteriores ou vizinhas na medida em que ver melhor aquilo que era representado é ao mesmo tempo uma necessidade científica e uma nova maneira de ser enganado à sua revelia As substituições do pai A propósito do diabo de Haitzmann Freud fala do substituto do pai Vaterersatz O diabo é o lugartenente do pai18 Mas a este ersatz ou mais exatamente ao pai exaltado ou ainda à cópia do pai quer dizer à imagem que vem depois Nachbild GW 330 se substitui ainda uma outra a congregação bem considerada dos Irmãos da Misericórdia Ela priva o pintor do prazer impondolhe a lei da ascese pondo de lado daqui e dali a extravagância de uma garrafa Mas por este preço ela lhe oferece um socorro responde ao seu abandono Verlassen GW 350 no decorrer do inverno desolado que ele passa em Viena 16771678 em casa de sua irmã casada e que precede sua decisão de renunciar ao mundo A congregação satisfaz o desejo que ele tem tanto no sentido material quanto psicológico de assegurar sua 18 Deixo de lado a argumentação de Freud a este respeito existência sein Leben sichern GW 351 Ela é para ele um seguro de vida Encontra nele o substituto do pai nutridor Pg 292 Ele é assim de uma maneira nova nutrido pelos anjos ibid não mais diabólicos mas religiosos Empurra para um pouco mais longe weiter GW 346 sua doença não sendo a fronteira entre o patológico e o normal senão a de uma substituição Desloca apenas uma tensão nãoresolvida ao mesmo tempo que muda os temos do mesmo voto Na verdade ele passa do um o diabo ao múltiplo os Irmãos da Congregação Um imaginário dual o pacto com o diabo se transforma na lei de uma sociedade a comunidade O silêncio prostrado monoideico que ele manteve durante este inverno vienense se transforma num discurso articulação de palavras pois após maio de 1678 finalmente ele encontra palavras ele que não conseguia mais se exprimir GW 350 Mas estas são palavras que dizem a mesma coisa demultiplicandoa ou ocultandoa De agora em diante é necessário ainda darse de corpo e alma para receber o privilégio de ser filho É apenas a inversão maligna ainda diabólica no sentido em que história não pode senão sêlo da situação intermediária que ele conheceu em Viena após ter sido liberado do diabo e antes de entrar para a Congregação durante este inverno estava num estado de vacância e de ausência de proteção durante um tempo sem trabalho sem ascese e sem recursos sem pai Antes o diabo era uma máscara da qual por sua vez uma outra máscara denunciava o significado Para Haitzmann seu trabalho ascético de religioso o dispensa ainda do trabalho que consistiria em assegurar ele mesmo sua existência pede praticar uma lei comum à qual se abandona e se consagra para não ser abandonado Fundamentalmente Freud encara menos os substitutos do pai do que as substituições do pai Com isto não quer dizer que os deslocamentos não tenham um alcance real nem que a cura consista apenas em fazer desaparecer o coelho na cartola do mágico coelho que sempre continua lá mas escondido de outra maneira É mais do que um lance de prestidigitação Gaukelspiel GW 352 De um ponto de vista simplesmente terapêutico há progresso mas no sentido de que as manifestações visões convulsões desapareceram em Haitzmann ou de que agora em diante elas são de natureza social Permanece o conflito aparentemente reabsorvido e ainda representado por uma forma religiosa Alhures ou em outros tempos esta forma será científica política etc Com a ironia suspeitosa de Freud se poderá dizêla normal N da T père nounricier dizse significando o marido da amadeleite assim como se pode encontrála por toda parte Entretanto este rosto nobre do normal modelado por uma lei não mostra mais ocultando a remanescência das coisas mais estranhas Um tipo inverso de procedimento é evocado no caso dos comerciantes onde o déficit dos negócios é compensado por sintomas patológicos Pg 293 GW 352 Mesmo processo de substituição mas segundo percursos diferentes já que Haitzmann é conduzido das suas manifestações neuróticas à profissão de vida religiosa Religião e comércio aliás referemse igualmente a um pacto que as duas palavras trazem inscritas na sua etnologia A atenção uma vez despertada para esta estrutura homóloga de um pacto por esta pedrinha alva que nos indica o caminho de uma interpretação deverseá perguntar o que o comerciante Kaufmann compra verdadeiramente da clientela que o nutre que segurança análoga busca através do desvio de uma linguagem patológica e se por estas manifestações anormais não revela o lucro que esperava obter da sua clientela O lucro da sua doença seria pois um ersatz Gewinn GW 352 Do cliente à doença existe um efeito de substituição Sob outros nomes reencontrase uma mesma tensão lá e cá Mas onde é ela mais evidenciada Onde se oculta melhor De qualquer maneira não há psicanalista de vez que ele não passa de um mercador de palavras consagrado a e por uma ciência ou adepto de uma nova congregação que não obtenha assim por sua fidelidade à lei de uma clientela de um saber ou de uma sociedade o meio de ser nutrido pelos anjos A suspeita pode se estender a todas as formas presentes do saber ou do comércio Sob imagens diversas um pacto garante sempre através de um logro repetido indefinidamente uma segurança existencial àquele que aplica uma lei Os substitutos do pai se insinuam na espessura das estruturas sociais ou ideológicas Este ersatz não tem mais a aparência de uma noite arcaica ou de um imaginário diabólico mas assumem as cores do dia do normal e do saber Das belas representações primitivas passase simplesmente para as remanescências civilizadas talvez mesmo científicas da lei nutridora objeto de ternura e de desafio recursos contra o abandono Que Haitzmann vá ao Diabo após ter perdido seu pai ou aos Frades após haver expulsado o Diabo como diz Freud é fácil de explicar Mas que as mil formas presentes de instituições façam do normal uma máscara da norma oculta é menos visível e mais difícil de revelar Por um dos seus aspectos essenciais a história pode ser considerada como uma seqüência de terapêuticas Entre tantas modalidades notáveis houve no passado a devoção ao santo terapeuta ou o pacto com o Diabo Mas são também terapêuticas o culto da ciência a inquieta liturgia comercial ou as próprias práticas analíticas Cada indicação parece constituir uma saúde ou uma lucidez que se substitui às formas anteriores de uma só doença Este processo teria deslocado progressivamente as manifestações de uma mesma tensão por aí são mantidas e fundadas as diferenças sócioculturais Pg 294 e a diversidade da história objeto da historiografia Mas estas modificações denunciam e repetem sempre a ambivalência patenteada na Urbild O pai não morre Sua morte não é senão uma outra lenda e uma remanescência da sua lei Tudo acontece como se nunca se pudesse matar este morto e como se acreditar que se tomou consciência dele que se o exorcizou através de um outro poder ou que se fez dele um objeto de saber um cadáver significasse simplesmente que ele se deslocou uma vez mais e que está lá precisamente onde nós não o suspeitamos ainda neste mesmo saber e no lucro que este saber parece assegurar O ato e a lei Se existe repetida pela história esta lei de outra forma inacessível a não ser nas suas manifestações sucessivas desde a Urbild inicial mas sempre enganosas se esta lei está sempre aí mas nunca é dada assim imediatamente19 numa Aufklärung a ciência freudiana não inscreveria ela mesma como um novo avatar desta lei Este problema resulta da lucidez freudiana mas ele a volta contra si mesma Finalmente é opor o que a história fez de Freud ao que Freud fez da história Isto não é aliás uma denegação presa colada como sombra a toda ciência ou a toda filosofia da história Impossibilitados de poder tratar desta questão permanecemos nos elementos de solução que o estudo particular do caso Haitzmann fornece ele não é apenas o que nos remete a uma lei geral ë o seu acionamento Sob o expediente de uma práxis a análise é ao mesmo tempo a aplicação da lei freudiana e o ato de Freud Articula um com a outra Situa portanto o autor que ele é com relação à sua ciência Na sua práxis impressiona inicialmente o recurso a uma lei No volteio de uma frase uma regra metodológica vai com efeito proporcionar o postulado de um procedimento de pesquisa a uma lei da história A existência de um movimento indefinido que consiste em ocultar é o que justifica o encarniçamento da investigação 19 Lembramonos que Nietzsche considerava impúdica e indecente tanto quanto ilusória a pretensão de encontrar a verdade assim imediatamente Cf Le Gai Savoir Prólogo científica Nos elementos fornecidos pelo manuscrito de Mariazell bem como nas etapas sucessivas da vida de Haitzmann deve existir uma lógica No seu estudo Freud supõe por toda parte o a priori de uma coerência por encontrar Catalogando os indícios pequenos e grandes que constata no caso de Haitzmann escreve excluindo assim mais uma vez toda redução da análise a uma simples fenomenologia os momentos20 demarcadores na vida do pintor são ligados entre eles miteinander verknüpft de uma maneira qualquer simples ou Pg 295 complicada GW 350 Foram como diz Lacan uma cadeia de palavras Em outros termos existe uma ordem Existe uma discursividade possível como deve haver uma razão Motiv GW 325 na ação do pintor O que constituirá a racionalidade da explicação científica se funda na Aufklärung freudiana sobre uma lei oculta da qual as palavras e as ações dispersas de Haitzmann são os vestígios Ainda há pouco vimos que a análise instaurava a história como uma relação entre manifestações sucessivas Aqui ela aparece relativa à história segue docilmente os seus rastros para nela reencontrar a relação Existe uma circularidade entre a práxis da investigação e a teoria de seu objeto Entretanto nesta práxis metódica e científica existem eventos o ato freudiano O laço necessário para descobrir não se torna não deve tornarse uma lei a ser praticada ou um saber a professar todas coisas que fariam de uma ciência o equivalente do diabo ou da congregação de Haitzmann Entre a racionalidade que a análise testemunha e a lei que a história repete existe um salto infinitesimal é verdade mas fundamental O procedimento científico não depende apenas da lei que exuma e manifesta Uma diferença por definição nunca localizável separa o discurso que instaura um ato do erudito e a lei que liga a própria ciência às formas sucessivas de uma necessidade de proteção O trabalho pelo qual o sujeito se autoriza a existir é de um outro tipo do que o trabalho do qual recebe a permissão de existir O procedimento freudiano pretende articular esta diferença A história pode ser o gesto de um recomeço e não apenas o efeito de um deslocamento É pelo menos o que mostra esta forma de história que já é a práxis freudiana Finalmente encontra seu verdadeiro sentido não nas elucidações que substitui às representações anteriores mas no próprio ato infindável de elucidar Todavia esta enunciação não é jamais outra coisa senão o seu enunciado nem o ato 20 Por momentos Momente aqui a depressão a inibição no trabalho o luto do pai etc constatáveis durante o período vienense situado entre a primeira e a segunda peregrinação de Haitzmann a Mariazell Freud entende fatores cuja significação é simultaneamente temporal e lógica O termo implica uma série de fatos e uma coerência destes fatos está alhures senão numa Aufklärung Da mesma forma destas duas imagens da história ou da práxis a que repete e a que instaura nada de objetivo garante a diferença Elas conduzem à ambigüidade da palavra história uma palavra instável que oscila alternadamente para o lado da lenda texto recebido lei que é necessário ler lucro de uma sociedade ou para o lado do tornarse outro risco de afirmarse assegurando por si mesmo sua existência O próprio analista não escapa desta ambivalência Ele oculta de si mesmo o que pensa elucidar uma vez que sua ciência se tornou para ele um socorro enganador uma vez que não possui nada dela senão o depósito mas não a força21 Pg 296 uma vez que faz de um ensinamento de uma clientela talvez mesmo de uma sociedade o ersatz exaltado do pai da Congregação ou do diabo de antigamente Freud traça uma linha de demarcação entre estas duas vertentes da prática psicanalítica quando menciona o princípio imperceptível que usa como uma navalha para recortar significantes na superfície de um discurso ou de um texto Vai enunciar o critério que lhe poupa o receber sua própria ciência como uma lei nutridora Explicar nosá assim com um piscar de olhos o imperialismo dos seus diagnósticos e sua maneira para nós bastante surpreendente de impor uma interpretação apontando uma palavra do doente aí está Na sua prática ele institui o ato do erudito como o além de um saber necessário Com efeito curiosamente uma certa audácia habita a minúcia do seu trabalho Ela se refere a um faro que não pode ser mal definido porque é o seu Para ele a práxis analítica permanece um ato arriscado Nunca elimina uma surpresa Não é identificável à execução de uma norma A ambigüidade de uma série de palavras não poderia ser levantada apenas pela aplicação de uma lei O saber não garante nunca este benefício A Aufklãrung permanece uma questão de tato eine Sache des Takts22 Esta divinação último reduto de uma douta ignorância23 ocupa sem dúvida o lugar da garrafa de Haitzmann transformando no Irmão Chrysostomus se permitia certas noites quando se embriagava Nestes dias o antigo artista e velho mundano zombava dos seus anjos bons da mesma maneira que havia sido outrora mais esperto do que o seu diabo prestandose à peregrinação de Mariazell para retomar seu pacto ou 21 Jacques Lacan Écrits Seuil 1966 p 357 22 GW 330 Freud retoma a expressão várias vezes cf Selbstdarstellung IV GW t XIV p 66 Die Frage der Laienanalyse V GW t XIV p 250 Sache eines Taktes etc 23 J Lacan op cit p 355 e 362 página onde é comentado um texto extraordinário de Freud nos seus Conseils au médecin pour le traitement psychanalytique GWt VIII p 376 ainda da mesma forma pela qual tinha ludibriado os monges do mosteiro representando lhes a comédia dos dois pactos sucessivos GW 345346 Ele não era tão louco este pobre diabo armer Teufel GW 351 Ou talvez a sua loucura fosse a liberdade que havia tomado diante da lei que o fazia depender de um pai novo Quer Freud dizer que todo erudito representa sua própria ciência como Haitzmann representa a lei da sua Congregação Haveria uma embriaguez do tato uma loucura do ato Em todo caso ele substitui à liberdade subreptícia do pintor um ato decisivo e nunca definitivo À regra que evita uma embriaguez às escondidas substitui a ciência que em última instância só o sujeito autoriza A uma loucura que vem antes da ciência opõese em Freud uma loucura que fala a ciência com a ciência que permite combinase o erudito que se permite Existe aí entre o ato psicanalítico e a ciência psicanalítica uma articulação possível Mas nada assegura este ato já que ao diabo de antigamente Pg 297 se sucedem tantas outras leis nutridoras seguranças diabólicas extraídas de um saber de uma clientela de um encerramento e de qualquer outra maneira de ser dispensado de fazer a história graças ao privilégio de ser filho Pg 298300 Notas Capítulo IX A FICÇÃO DA HISTÓRIA A escrita de Moisés e o monoteísmo A erudição pode comodamente dar conta de Moisés e o monoteísmo1 citandoo no lugar dos textos sérios Mas ele não está aí É uma fantasia2 diz Freud falando destes três ensaios destinados a explicar uma criação da lenda eine Schöpfung der Sage GW 103 Inicialmente sua análise caminha em direção às produções imaginárias que em francês são designadas pelo uso clássico do termo fantasia Oscilante eis a dançarina em equilíbrio instável sobre as pontas GW 160 uma fábula Ela instaura um jogo entre a lenda religiosa Sage e a construção freudiana Konstruktion entre o objeto explicado e o discurso analisador Este jogo se desdobra no intermédio de uma ambivalência a qual faz a ficção significar ora uma produção fingere parecer fabricar ora um disfarce ou embuste Ele se desenrola no campo das relações entre o trabalho que constrói e o fingimento que faz crer Terreno misto da produção e do logro Lá se reencontram o que a história cria e o que o relato dissimula Moisés e o monoteísmo se situa nesta articulação da história com a ficção Mas a elucidação não escapa ao que ela explica Conta como uma fantasia o que se produz numa tradição Esta teoria da ficção é uma ficção teórica3 Meu romance diz Freud a Arnold Zweig Para explicar a gênese da lenda monoteísta ele constrói um edifício Aufbau que se mantém nas proximidades da 1 Der Mann Moses und die Monotheistische Religion in Gesammelte Werke t XVI 1950 p 101246 citado GW seguido do número da página ou em volume à parte Suhrkamp Verlag Frankfurtsobre oMeno 1970 Trad inglesa de J Strachey na Standard Edition vol 23 1964 p 1137 A primeira edição data de 1939 em alemão em Amsterdã em inglês em Londres e N York A tradução francesa devida a Anne Berman Gallimard 1948 coll Idées 1967 transforma freqüentemente a verdade textual em fábula ilustração da tese freudiana 2 S FreudArnold Zweig Correspondence Gallimard 1973 p 162 carta de 21 de fevereiro 1936 Tema freudiano da escrita que é a freely wandering or fantastic thinking GW t XIII 440 3 A propósito do texto de Freud empregarei ficção fábula ou romance distinguindo estes termos de fictício fabulação ou lenda que caracterizam o relato da denegação Na verdade estas duas séries são instáveis e se cruzam Um mesmo gênero é susceptível de práticas diferentes Para falar do seu discurso o próprio Freud diz Darstellung apresentação Konstruktion ou Rekonstruktion Aufbau edifício Aufstellung tese Para designar a lenda religiosa ele emprega Sage Mythus mito Tradition Dichtung ou fromme Dichtung poesia ou poesia piedosa Erfindung invenção Phantastiches fantasista mas também Darstellung ou Konstruktion quer dizer as palavras que qualificam sua produção Outros termos valem igualmente para seu romance histórico e para a tradição judaica Bericht relato Geschichte história Erzählung narrativa eles dizem respeito à narratividade tipo de discurso ambivalente que pode funcionar como teoria ou como desmentido Salvo indicação o vocabulário citado entre aspas ou grifado é o de Freud lenda Sua própria relação com a escrita é uma questão que retorna sem cessar vai e volta no seu estudo sobre uma religião e constitui o texto Nesta obra a última a mais longamente engendrada Pg 301 nascida das contradições internas e da dúvida o que se conta é a escrita autoanálise da construção ou ficção escrituraria gira em torno da operação que tão freqüentemente tem a forma de uma historiografia Geschichtschreibung desde as Histórias de doentes Krankengeschichten dos Casos Clínicos até este último romance histórico Uma teoria da narratividade analítica ou científica apresentase aqui porém uma vez mais sob a forma da narração histórica Eu me pergunto que inquietante estranheza traça a escrita freudiana no território do historiador no qual entra dançando Reciprocamente de que maneira a minha demanda nascida de um trabalho arquivístico e escriturário neste território e seduzida pela ficção de uma história psicanalítica poderá ser esclarecidaalterada pela análise de Freud O discurso de fragmentos ou o corpo do texto Se omitirmos os antecedentes longínquos da fascinação que exerce sobre Freud a imagem de Moisés e também a publicação anônima do Moisés de Miguel Ângelo na Imago em 1914 a maneira de pensar do autor dizia uma nota da redação apresenta alguma analogia com os métodos da psicanálise a história do texto começa por volta dos anos de 193334 com a interrogação nascida do antisemitismo nazista e com a fórmula geradora do texto através da qual uma resposta chega a Freud Em face de novas perseguições perguntase novamente como os judeus se tornaram o que são e porque atraíram para si este ódio eterno Cedo encontrei a fórmula Moisés criou o Judeu e meu trabalho recebeu o título O homem Moisés um Romance Histórico A coisa se dividia em três partes a primeira interessante à maneira romanesca a segunda laboriosa e fastidiosa a terceira densa e ambiciosa A terceira fez naufragar o empreendimento porque trazia uma teoria da religião na verdade nada de novo para mim depois de Totem e Tabu mas de qualquer maneira alguma coisa nova e fundamental para os nãoiniciados4 Moisés o egípcio este é o ponto de partida5 de um trabalho analítico Uma palavra primitiva Urwort vem como no sonho expressa em termos contraditórios 6 4 S FreudA Zweig Correspondence op cit p 129 carta de 30 de setembro de 1934 5 Op cit p 136 carta de 16 de dezembro de 1934 No começo da genealogia do texto existe esta fantasia que inscreve na identidade uma violência e um ardil da história e que se desenvolve no triplo registro do romance do estudo erudito e da teoria Mas em 1934 o Pe Schmith parece estender sua sombra De Roma este religioso apologeta do monoteísmo primitivo ameaça as sociedades de psicanálise na Itália e até em Viena onde segundo Freud Pg 302 ele faz a política do nosso país O fantasma do Pai hostil o espectro do poder católico proíbe a publicação do Moisés De fato são principalmente os especialistas guardiães kafkianos do saber diante da porta de sua lei que detêm Freud Faltalhe bastante credibilidade científica para que ele possa se permitir publicar Ele precisa de provas históricas não para se convencer ele já está convicto sem as ter achado mas para armar a fraqueza do seu mito7 antes de o mostrar em terra estrangeira no campo da história Eu fui obrigado a erigir uma estátua de ameaçadora grandeza sobre um pedestal de argila de maneira que qualquer louco poderia derrubála8 Como em 1910 Moisés depende do ver é uma estátua Mas de agora em diante Freud é o Miguel Ângelo dela e já imagina a imagem e a obra quebradas pela erudição dos outros Paradoxo Ele gostaria de uma argumentação sem falhas para sustentar o discurso que introduz a divisão em Moisés egípcio Mas seus esforços não chegam a preencher a lacuna da verossimilhança histórica Como seu herói o trabalho ficará dividido quebrado meioromance meiohistória O texto foi então recalcado diz ele Moisés posto de lado mas deixado num silêncio onde nada vem tomar o seu lugar 9 Esse recalcamento não pode ser ocultado inversamente do que se passa com o personagem de Moisés excluído por uma morte e substituído por um assassinato O estudo freudiano paralisado numa posição quase messiânica deve esperar na sombra o momento de aparecer GW 158 Entretanto em 1937 a primeira parte é publicada mas na revista Imago lugar de escárnio para Freud10 O discurso muda de estatuto através de sua encenação que transforma discretamente o sério em comédia No Congresso internacional de 6 Cf Dos sentidos opostos das palavras primitivas Über den Gegensinn der Urworte texto de Freud publicado em 1910 GW VIII p 213221 N da T O autor joga com o duplo sentido da palavra père pai e padre 7 S FreudA Zweig Correspondence op cit p 130 30 de setembro de 1934 8 Op cit p 136 16 de dezembro de 1934 9 Op cit p 146 13 de junho de 1935 10 Alguns pequenos artigos para o almanaque ou Imago diz Freud a Pfister Correspondence Gallimard 1966 p 205 A propósito da tese de Karl Abraham que ele entretanto irá retomar por sua conta após têla ridicularizado Freud escrevia em 1912 que ela era digna de Imago boa exatamente para Imago Cf Jacques Trilling Freud Abraham et le Pharaon in Études freudiennes nº 12 1969 p 219226 psicanálise de Paris agosto de 1938 um pedaço da segunda parte nada menos que o Grande Homem é lido por Anna Freud Transformase a fantasia de 1934 em magistério acadêmico Ela funciona na instituição do saber como lenda do fundador ausente dita pela voz do outro Por detrás deste disfarce o autor entretanto se mantém á distância Quando seu texto vem a público ele se retira Os dois roçam Como antes continuam no mesmo lugar Freud não sente nem união nem solidariedade com sua obra GW 160 não se identifica com ela O conjunto é publicado em 1939 desdobrado entre o alemão de Amsterdã e o inglês de Londres Drei Abhandlungen três Ensaios No limiar do segundo dois prefácios que se contradizem No Pg 303 meio do terceiro uma interrupção onde se coloca um resumo da obra Pouco após esta publicação Freud desaparece O que resta na cena pública semelhante ao Don Coucoubazar de Dubuffet é um texto em pedaços no qual se multiplica o corte marcado das origens pela fórmula que faz coincidir os contraditórios Moisés e o Egípcio Não um livro mas um discurso de fragmentos Mas ao construir esta história onde o texto figura como herói entre os oponentes e passa por provas até o desvelamento final que faço senão apagar o corte que o trabalha de fio a pavio e supor uma continuidade cronológica onde se alinham em seguida os recuos e os retornos da obra Construí outra lenda no texto Através do meu relato oblitero a falha traçada desde o começo que organiza a forma deste texto disseminado em fragmentos e que se repete no seu conteúdo com a obsedante menção de lacunas com a pontuação de contradições a partir das quais ele se desenvolve Widerstreit meiner Motive GW 315 ou com a embrulhada na qual se mete à medida que avança Eu o trago de volta a uma linearidade que o denuncia Ponho o ersatz da minha história uma série articulada de conhecimentos no lugar desta estrutura que é romance em função de suas relações confessadas com o outro É preciso então voltar ao texto solo fissurado não seguro com risco de nele se perder Entrar assim na ficção que sempre envolve não se deixa dominar mesmo que abra os caminhos a uma elucidação particular Klärung eines Sachverhalts GW 104 Essa superfície gretada remete a um movimento do que se diz Um equívoco está trabalhando transformando estes fragmentos que se altera e se respondem Os cortes lacunas permitem o jogo de uns com os outros Daí as possibilidades de sentidos que ou vêm ou se desfazem rumor e opacidade de um corpo de palavras Certo tudo se passa num campo circunscrito por Freud a produção e a transformação de uma lenda Bildung und Ungestaltung von Sagen GW 112 Mas o nascimento e a transformação da tragédia mosaica não representam mais do que um regime da análise A gênese da figura histórica do Judeu e a da escrita freudiana intervém nela sem cessar O lugar de onde Freud escreve e a produção de sua escrita entram no texto com o objeto do qual ele trata Como se forma uma lenda religiosa Como o Judeu tornouse o que é O que é que constrói uma escrita As três perguntas se combinam Por este motivo o texto é volume isto é ele se ouve mais do que se vê como cada vez mais ilegível à medida que se torna audível Essa complexidade teria como limite não ser nada mais do que sonora Ela brinca na rica ambigüidade Pg304 e nos ardis do som que em princípio a grafia visa eliminar Ora tratase no caso de um texto sonoro Ele oscila entre a linha linearidade e a voz polissemias11 Ao lereescutar o texto penso na fantástica representação que Freud deu certa vez de Roma supondo uma imagem atópica onde os lugares inconciliáveis coincidiriam onde nada do que foi outrora produzido se perdesse e onde todas as fases recentes de seu desenvolvimento subsistiriam também ao lado das antigas A espacialidade proíbe essa coexistência num mesmo lugar Se quisermos apresentar espacialmente as coisas umas após as outras não o faríamos senão colocandoas no espaço umas ao lado das outras 12 Para transcrevêlas ou retratálas procedemos a um aplainamento O Moisés faz o inverso Pela metáfora recurso de retórica e pela ambivalência instrumento teórico várias coisas funcionam no mesmo lugar transformam cada elemento espacial num volume no qual interferem introduzem em todos os lugares um quiproquo o que vem no lugar de que Histórias diferentes subsistem num mesmo lugar como na Roma fantasmada por Freud Elas não estão localizadas uma ao lado da outra a gênese do monoteísmo mosaico não está situada num passado que estaria justaposto ao presente da escrita freudiana A ficção freudiana não se presta a esta distinção espacial da historiografia onde o sujeito do saber se dá um lugar o presente separado do lugar do seu objeto definido como passado Aqui passado e presente se movem no mesmo lugar polivalente E dos níveis do texto nenhum é o referente do outro Se existe a 11 O som se escreve também em sonogramas mais precisamente é numa pluralidade de linhas que representam as faixas de altitude sonora nas quais se expande a energia sonora para formar de acordo com a harmonia um único som Cf por exemplo Louis Jacques Rondeleux La mecanique verbale in La Recherche nº 48 setembro 1974 p 734743 12 Molestar na civilização 1 GW XIV p 427428 Cf também Conrad Stein Rome imaginaire in LInconscient nº 1 1967 p 130 A idéiaimagem de Freud incompatível com uma homogeneização icônica supõe a interação num mesmo lugar de estruturas estratificadas uma diacronia na sincronia Ela precede o conceito de cidade que se busca nos trabalhos que sugerem organizações espaciais arqueológicas em movimento na estrutura espacial hoje manifestada ou privilegiada por uma análise Cf A Van Eyck in Meaning in Architecture Yale 1960 metáfora ela caracteriza um sistema de relações recíprocas Não existe elemento estável que pare esta circulação e que atribuindo a uma das camadas um valor de verdade atribuiria às outras uma função de imagem de substituto ou de efeito O que se conta ao mesmo tempo de Moisés do Judeu ou de Freud não se pode reduzir a um dos registros diferentes nos quais se analisa autoanalise e heteroanálise a produção de uma escrita Esta ficção é paga por um preço que não depende da sua estrutura Aparece como um texto de velhos que a idade desfez e tornou pesado13 sem a segurança e sem a limpeza eruditas Finalmente no momento da remessa aos leitores GW 246 é oferecida como presente da mesma maneira que um convidado contribui com uma história para o serão Ela se desenvolve nesta incerteza de ser recebida ainda que com a certeza de acertar no alvo De onde existe o texto não poderia se impor como um saber autorizado alhures Pelo contrário ele se constrói como a relação do método analítico com a dúvida Zweifel GW 130 Da mesma maneira Pg 305 que a Bíblia da qual fala ele nos conta o suficiente sobre seus avatares GW 143 Se os escritos judeus deixam perceber seu inextricável entrincamento suas contradições com os indícios inegáveis de contínuos remanejamentos e deslocamentos tendenciosos no curso dos séculos GW 112 a mesma coisa ocorre com os Ensaios A marca das contradições fragmentações e adjunções é aí mantida 14 antes que esta pluralidade propalada seja transformada em livro em Bíblia pela tradição freudiana 15 A divisão se torna aí aparente o conflito interior a dúvida ou a incoerência do raciocínio interrupções fragilidades de hipóteses lacunas Sua fraqueza é o preço desta fábula É a confissão que faz a movimentação de um desconhecimento na simbolização de seus níveis o ruído de um corpo pela interferência de suas espessuras Tratase entretanto de um trabalho GW 160 uma análise quer dizer uma prática rigorosa do recorte Se a obra de Freud deixa girar a metáfora de seus níveis ou de suas questões não é que ela recuse o corte Ela o coloca de outra maneira Ela não 13 Nas cartas dos últimos anos aos seus amigos Pfister Zweig etc o que se conta é como sob os olhos de Freud seu corpo cai pedaço por pedaço O corpo aparece aqui também como uma escrita que se desfaz Uma continuidade do corpo com o texto prende a escrita no processo do envelhecimento enquanto que a expressão pictórica ou musical lhe escapam mais e em muitos pintores ou compositores chegam mesmo a invertêlo 14 O caso mais patente é aquele dos dois prefácios contraditórios mantidos no começo do terceiro Ensaio GW 156160 15 Detalhe entre muitos outros Freud deixa o vestígio das publicações sucessivas que o Moisés reúne Assim no início do segundo Ensaio uma precedente contribuição a esta revista Imago GW 114 A tradução francesa apaga este vestígio no primeiro capítulo deste livro Ela oculta o corte O texto fragmentado recebe desta maneira a aparência de um discurso erudito e contínuo de um livro Esta transformação não deixa de ter analogia com a mutação dos escritos intertestamentários em Bíblia no decorrer do século II Cf André Paul LImpertinence biblique Desclée 1974 p 57 ss intervém como separação entre regiões o presente e o passado o individual e o coletivo etc mas como o próprio princípio de funcionamento Neste ponto preciso a lucidez de Freud se exerce prudente teimosa retorcida no terreno onde a morte é anunciada ao Judeu pelo horror do totalitarismo antisemita e pela violência de um ódio eterno Na tradição a autoacusação é o preço do sentido é preciso se acusar para que a infelicidade seja compreensível Em Freud a confissão é de uma outra espécie Entretanto a sua lucidez se afirma na continuidade desta tradição como problema interno Ela tem primeiramente o jeito de um chiste ao mesmo tempo divertido e blasfematório Moisés o egípcio 16 O enigma que se opõe ao ódio parece pertencer a uma retórica do sonho Um oximoron aproxima os contraditórios o Judeu e o Egípcio Mas ele interioriza a divisão que era até então uma distinção relativa aos outros A separação do Egípcio era o gesto fundador da eleição judia e tinha como duplo o gesto que instaurava Yahvé como o único e o criador separandoo do mundo Para Freud o corte era interno dividia o próprio sujeito Matava a identidade adquirida graças à eliminação de um resto Já que a questão se propõe em termos de fundação histórica essa morte deve ser inscrita na origem a morte de Moisés A identidade não é um mas dois Um e outro No começo existe o plural É o princípio da escrita da análise analysis divisão decomposição e da história Verseá que um e outro se invertem no jogo e no desconhecido do nem um nem outro De qualquer maneira essa relação não é superável Na linguagem de uma Pg 306 eleição que se transforma em ódio eliminador ela não pode se exprimir senão à maneira de uma coincidatio oppositorum por uma retomada que propõe como essencial a relação dos opostos o Judeu e o Egípcio O chiste se insinua no estável retomando seus próprios termos ele o subverte É o lapsus queda de uma verdade sem seriedade peido rabelaisiano no meio da cerimônia de comemoração histórica Este é o cerne Kern o conteúdo Gehalt ou ainda o pedaço de verdade esquecida ein Stück vergessener Wahrheiht GW 239 que determina a produção da lenda e da escrita Este fragmento pedaço duro cortante e cortado faz proliferar o corpo da Saga judia tradição que recalca a lembrança sem que nela se apague inteiramente a cicatriz de uma ferida inicial Pode representála somente um discurso ferido analítico e fragmentado exatamente quando o que ele conta de verdadeiro 16 Enunciado onde se reencontra como em todo o texto freudiano a estrutura da Aggada Cf Dan Amos Narrative Forms of Haggadah Indianapolis 1969 Cf infra p 300301 tem a forma de uma ficção Ele desenvolve a fórmula de Freud que propõe simultaneamente a dualidade de um primeiro corte a contrariedade de conteúdos que ela faz girar no mesmo lugar e o engano próprio da aparição de cada um destes conteúdos quando se manifesta sem o seu contrário A história feita dessas aparições ou figuras podese contar como uma seqüência de logros Não deixa de ser analisável como trabalho da mesma fórmula um pequeno fragmento de verdade ein Stückchen Wahrheiht GW 239 não cessa de se difundir nos seus recalcamentos obscurantistas repetese nos ocultamentos religiosos Este verdadeiro não se diz senão na ilusão segundo um procedimento que sustenta qualquer coisa como um instinto de mentira Jamais se pôde estabelecer que o intelecto humano possuísse um faro particular para a verdade nem a vida do espírito humano uma disposição particular para reconhecer a verdade GW 237 É uma hipótese otimista e idealista supor um gosto pela verdade Somos levados a crer naquilo que lisonjeia nossos desejos e nossas ilusões Mendigos de fabulações Assim resta apenas a possibilidade de trabalhar no elemento da representação de praticar o quemperdeganha com a mentira Passase do fictício à ficção quando se sabe jogar o Jogo da mentira A fábula freudiana se anuncia analítica porque restaura ou confessa o corte que em todo lugar volta e se desloca romanesca porque não apreende nunca senão substitutos de outra coisa e de estabilidades ilusórias com relação á divisão que as faz roçar no mesmo lugar Tem como objeto o próprio recorte Freud trata precisamente do que a historiografia postula e põe fora de campo quando tenta compreender as imagens econômicas sociais mentais instituídas como unidades distintas Por esta Pg 307 razão ele é analista e nãohistoriador Trabalhando nos campos da história inverte a relação destas unidades e de seus postulados faz o romance da história como se por este quiasma ele se juntasse a Sade que distinguia estas duas maneiras de conhecer o homem a história e o romance o buril de uma não o retrata senão quando se deixa ver e então não é mais ele o pincel do romance pelo contrário o apreende no seu interior se apossa dele quando deixa esta máscara 17 Mas lá onde Sade propunha uma disjunção exclusiva ou um ou outro Freud desfaz uma conjunção um e outro engendrando manifestações contrárias a partir de uma clivagem Seu romance se 17 D A F Sade Idée sur les romans Prefácio de Les Crimes de Vamour in OEuwes completes du Marquis de Sade Paris Cercle du livre précieux 1966 t X p 16 Sade responde à perpétua objeção daqueles que perguntam paia que servem os romances Homens hipócritas e perversos servem para vos retratar tal como sois op cit p 15 A propósito do romance de seu conteúdo de sua evolução ou de sua relação com a historiografia Sade raciocina segundo o esquema seja seja Para Freud a alternativa depende da representação constrói finalmente na relação entre um zero e uma série entre a morte e o quiproquo Divisão inicial o assassinato de Moisés figura no léxico de uma tradição recebida o homem tal qual ele se faz ver o acontecimento nãoescritível que não existiu e que não pode ter lugar próprio o interdito perdido na Escritura que o denuncia a invisível mancha de sangue a partir da qual se gera o texto Jogo de palavras e jogo de aparições no mesmo lugar o quiproquo que é a maneira pela qual o evento se repete apagandose a si próprio é o processo da manifestação cronológica a ligação entre as substituições sucessivas do Egípcio e do Judeu A morte é um foradotexto condiciona a produção discursiva O quiproquo é no texto o efeito de seu funcionamento como um enganaa morte Finalmente Freud coloca seu romance no lugar da história como coloca o Egípcio no lugar de Moisés judeu para os fazer girar em torno do pedacinho de verdade que o jogo deles representa Mas este esfacelamento da identidade discurso de fragmentos permanece envolvido pela conotação histórica da mesma maneira que o personagem que ela desmonta e faz circular conserva o nome de Moisés A palavra continua história ou Moisés mas a coisa se divide e seus fragmentos vão ou voltam em chassécroisé repetindo a defecção geradora da ficção Escrever na língua do outro ou a ficção De acordo com Sade o conhecimento que dá acesso à arte de escrever o romance não se adquire senão através das infelicidades ou das viagens 18 Com efeito o texto de Freud traz estas duas marcas transformadas em mortes e em deslocamentos Creio que ele se aproxima ainda mais do propósito colocado â frente dos Crimes de 1amour Infelicidades e viagens se combinam na sua situação de escrita deslocada no sentido em que fala de pessoas deslocadas O romance se encarrega da Pg 308 questão da qual nasceu a saber o ódio eterno que impele o Judeu a incessantes partidas Seu conteúdo o diz uma alteração fundadora Moisés egípcio se repete numa sucessão de mudanças de lugar A construção do texto o mostra melhor ainda a escrita estabelece para si mesma um caminho numa língua indissociável de uma infelicidade primitiva e de permanentes embustes Freud não está em casa na língua que a sua análise atravessa Uma estranheza da sua própria língua é a origem das 18 Idée sur les romans op cit p 16 Os grifos são de Sade relações que a sua escrita mantém com o nãolugar da ficção ou do sonho A ficção não conhece as estabilidades políticas nacionais sempre postuladas pela historiografia Tanto em Freud quanto em Kafka pressupõe que permaneçam o convidado da língua alemã 19 que é no entanto a sua língua materna Mas confere seu verdadeiro alcance ao fato de não ser aí recebido 20 senão quando é expulso pelo antisemitismo nazista Lá onde poderia crerse estabelecido a eliminação brutal do Judeu lembra que ele não está sendo senão provisoriamente tolerado está em trânsito21 O evento nazista lembra uma infelicidade originária e reconduz à estrutura interna da experiência escrituraria Erinnerung segundo o trocadilho hegeliano ao mesmo tempo lembrança e interiorização ErInnerung22 O exame da tradição mosaica se refere igualmente à escrita enquanto ela se articula com a linguagem como com o seu outro É uma auto analise O que se diz do inconsciente ou do outro na linguagem objeto da escrita psicanalítica mostra sua recíproca com esta escrita que é o trabalho freudiano de viajar numa outra língua Não é de se espantar que este exame torne a pôr em questão o matriarcado da língua materna o alemão da terramãe Israel ou da tradição nutridora as Escritas mosaicas e substitua a estas identidades territoriais a lei do pai que introduz a combinação entre um assassinato originário a infelicidade e um processo indefinido de deslocamento as viagens A língua não é a casa do ser Heidegger mas o lugar de uma alteração itinerante Sob este aspecto a leitura de Moisés e o monoteísmo me remete à carta de Kafka sobre os escritores judeus como a uma clareira de encontros secretos Eles viviam entre três impossibilidades que chamo ao acaso impossibilidades de linguagem é mais simples chamálas assim mas se poderia darlhes um outro nome a impossibilidade de não escrever a impossibilidade de escrever em alemão a impossibilidade de escrever em uma outra língua ao que se poderia quase acrescentar uma quarta impossibilidade a impossibilidade de escrever pois seu desespero não era 19 f Max Brod Franz Kafkas Glauben un Lehre Munique 1948 citado por Marthe Robert in Franz Kafka Journal Grasset 1954 p XVII 20 Sem dúvida é necessário compreender nesta perspectiva o desejo que Freud tem de ser recebido pelos especialistas ou recebido como professor cf sobre este último ponto Carl E Schorske Politique et parricide dans LInterpretation des rêves de Freud in Annales E S C t XXVIII 1973 p 309328 21 Em minha casa em VienaGrinzing diz Freud a Zweig 21 de fevereiro de 1936 Correspondence op cit p 162 A excomunhão nazista o surpreende pois como a todos os membros judeus da intelligentsia germânica quando subitamente eles são tratados como estrangeiros cf infra Mas ele não é seduzido nem por este estabelecimento nem por uma instalação em Israel mesmo se ele escreve a Zweig que tenta a experiência Por toda a parte você não é senão um estrangeiro apenas tolerado ibid Para Freud a estranheza tem por imagem a relação entre o homem austríaco em minha casa e a fantasia a propósito de Moisés entre o lugar e a escrita ibid 22 Cf G W Hegel Phänomenologie des Geistes ed J Hoffmeíster Leipzig F Meiner 1949 p 524 563564 alguma coisa que a literatura tivesse podido atenuar era o inimigo da vida e da literatura a literatura não era aqui senão Pg 309 um estado provisório como para qualquer um que escrevesse seu testamento imediatamente antes de se enforcar um estado provisório que pode muito bem durar toda uma vida23 Esta escrita testamentária não está em Freud ligada ao desespero Ligase mais refinadamente à mentira Uma suspeita avança Traçase um caminho prudente e metódico no elemento da Saga judia ou da Kultur germânica linguagens maternais e entretanto estrangeiras emprestadas Para entender isto é necessário retornar ao Cabeçalho ou gênese do relato O começo do texto não é a origem de Moisés isto será antes um resultado do estudo mas maneira pela qual Freud se situa no presente Primeira frase do primeiro ensaio Contestar absprechen a um povo o homem que ele celebra como o maior de seus filhos não é uma coisa que se empreenda de bom grado ou com leviandade principalmente quando se pertence angehört a este povo GW 103 O texto nasce da relação entre uma partida e uma dívida À distância com relação â instituição confessada é teórica Um desapossamento e uma pertença criam na identidade a falha a partir da qual se produz a escrita Este Zwischenraum ou intermédio não é nem a adesão a uma Aliança instituída nem a pretensão de ser desligado absoluto e absorvido Nem a ortodoxia nem a liberdade A contestação freudiana permanece marcada pela sua solidariedade do membro da Bnai Brith É um exílio que não se subtrai à infelicidade genealógica Não implica um lapsus da pertença ao inverso do que se passa numa tradição que o trai transmitindoo24 Uma lacuna trabalha o texto e a ficção se introduz na história a partir do momento em que o discurso não tem mais como condição tácita a denegação Verleugnung da instituição o ocultamente da pertença a uma família a uma sociedade ou a um povo quer dizer o esquecimento da dívida25 e quando inversamente não tem mais como função repetir a 23 Carta a Max Brod cit in F Kafka Journal op cit p XVIII 24 Notamos que gehören é o termo empregado por Freud para caracterizar sua relação com os Judeus na sua Alocução aos Membros da Associação do Bnai Brith 6 de maio de 1926 GW XVII 53 Da frase inaugural do Moisés a tradução francesa esquece completamente a segunda parte ocultamento da pertença e da instituição De um golpe não existe mais do que a maravilhosa autonomia de uma lenda liberada de sua dívida com relação à história Mesma traição que acima cf nota 15 O nome de Freud se põe a ocultar seu contrário circulando nesta traduçãotradição francesa da mesma forma que o nome de Moisés segundo Freud cobre a tradição sacerdotal que apaga a relação do pai fundador com a história quer dizer com seu assassinato 25 Mesmo a história psicanalítica da psicanálise pratica este esquecimento Um exemplo conservado até aqui porque se trata de um texto notável a Contribution à létude de lhistoire du mouvement psychanalytique publicada em Scilicet nº 4 1973 p 323343 O estudo obedece a disciplina da Escola freudiana lugar de publicação Scilicet é o órgão da Escola anonimato do autor como na pertença e ser genealogia familiar ou social como o era a apresentação sacerdotal que entre os judeus queria estabelecer uma continuidade entre o presente e os tempos primitivos mosaicos denegando verleugnen o corte entre eles GW 169 Este texto não se autoriza nem a partir de um nãolugar nem da verdade de um lugar Não é ideológico como o discurso assim dito asocial Nem doutrinal como o discurso sacerdotal que pretende falar sempre do mesmo lugar originário e fundador No primeiro caso a partida é tida como uma libertação uma vez que denega a dívida No segundo a manutenção do nome Moisés ou Jesus Freud ou Lacan permite apenas a elipse da morte e provoca o logro da identidade Pg 310 O relato de Freud se prende à suspeita que é ruptura dúvida e à filiação que é dívida e lei A pertença não se diz senão na distância afastandose de um solo identificatório Um nome ainda impõe uma obrigação mas não fornece mais a coisa terra nutridora É preciso pois que Freud ocupe seu lugar na escrita Ele a aposta cartas na mesa arrisca sua relação com o real no jogo que organiza uma perda A obrigação de pagar a dívida a recusa em abandonar o nome e o povo Eu não te esquecerei Jerusalém26 e portanto a impossibilidade de não escrever se articulam no desapossamento de toda linguagem genealógica O trabalho não tem solo hereditário É nômade A escrita não pode esquecer a infelicidade de onde vem sua necessidade Não pode contar com as evidências tácitas ricas e compassivas que fornecem a um locutor agrícola sua intimidade com uma língua materna Começa com um êxodo26 bis Caminha em línguas estrangeiras Não tem outros recursos senão a própria elucidação de suas viagens na língua do outro ela é análise Mais do que ao Êxodo que conta a aquisição de uma terra própria através do gesto de romper com o Egípcio a teoria freudiana da escrita remete à história que inverte o mito tradicional a destruição do Templo e a perda do solo identificatório Este acontecimento foi o impossível quebra do ser até então definido pela relação da terra e tradição sacerdotal de que Freud fala a revista não conhece outro nome próprio além do pai fundador etc Bem mais que isto esta contribuição que em todos os sentidos visa Lacan tratando de Freud respeita o tabu lingüístico A blasfêmia quem transgredisse a interdição de deixar passar pela boca um nome próprio Lacan está aqui substituída pela eufemia do apólogo histórico o nome não é pronunciado nunca Mediante esta exata observância das regras da Sociedade o texto pode declarar A psicanálise é fundamentalmente ao social e falar de sociedade psicanalítica é uma contradição nos termos op cit p 341 Este discurso diz o contrário do que faz É a lenda de uma Escola aquilo que é necessário dizer lá As condições de sua produção não se introduziriam no texto como falhas e lacunas de uma tão bela doutrina 26 Cf o Prefácio de Freud à tradução em hebraico de Totem e tabu 1920 na Standard Edition vol 13 1962 p XV 26 bis Como não ler no próprio texto freudiano que ele diz do seu objeto O êxodo permanece nosso ponto de partida GW 137 A saída Auszug da terra é o começo Ausgangspunkt da escrita da eleição De agora em diante a nação é luto Esta experiência de defecção não poderia dar lugar a uma lenda política Conduzidos ao Egito os Judes fazem então da Escrita o substituto do segundo Templo incendiado em 70 AD Nos séculos III e IV o Livro a bíblia no singular se forma mas em grego egípcio a bíblia dita dos Setenta a partir dos livros ou rolos hebreus traduzidos por Judeus para a língua do país inimigo onde eles se encontravam instalados sem esperanças de retornar para Israel27 Que a aparição da bíblia totalidade textual e única tenha por condição a perda da terra ancestral que o livro venha da palavra profética desaparecida o escrito profético substitui o oráculo pois não se vêem mais profetas e do solo dado aos olhos não mais te verei Israel que a Escrita se produza no lugar e na língua do outro que enfim um saber dizernoelementoalienante isto é a tradução a interpretação a análise extrai sua necessidade da relação entre a alteração de identidade e a lei da dívida que vem a ser isto tudo senão Moisés egípcio A língua grega do Egípcio é perpassada por um luto Inversamente é na terra que se tornou para os Judeus o país signo de sua morte da pátria disseminada que se constrói o texto da lei Tese de Freud Tudo se passa como se ele se tivesse enganado de período ou se fizesse de um a metáfora do outro Fala dos inícios Mas conta num romance Pg 311 das origens mosaicas o que foi na história durante os primeiros séculos da nossa era o nascimento do judaísmo itinerante e da Escritura fechada O que quer que ele seja não poderia estar autorizado pelo solo onde escreve nem sua língua nem sua cultura nem sua pátria nem sua competência científica autorizam o texto Todas estas residências falam de uma estranheza familiar Freud é cúmplice do que aí se diz do outro porque permanece estranho à intimidade opaca de cada lugar e da sua própria terra Suas cartas dizem a distância que ele toma com relação ao fanatismo de Agoudath Israel ou sua resistência aos Judeus Alemães que com a União dos Judeus nacionais do Dr Neumann por exemplo se acreditavam 27 Cf por exemplo André Paul LImpertinence biblique op cit p 7484 Da la mort de la langue terre et culture à 1apparition dune Torah biblique ou Ernest Gugenheim Le Judaisme aprés da revolte de BarKokheba in Histoire des religions Pléiade t II p 697748 De agora em diante a Tora ocupará para eles o lugar de pátria O próprio Freud se refere muitas vezes à fundação da escola de Jabneh pelo Rabino Jochanan bem Sakkaï após a destruição do Templo de Jerusalém em particular no momento da emigração da Sociedade psicanalítica de Viena para Londres Nós faremos a mesma coisa Estamos afinal de contas habituados a sermos perseguidos por nossa história por nossas tradições e alguns entre nós por experiência relatado por E Jones La vie et loeuvre de S Freud P U F t III p 252 Partir para Londres é ir a Jabneh prosseguir a Escritura em terra estrangeira Este trabalho é mais essencial do que a reconstituição de um solo Um axioma antigo o dizia Não se deve interromper o ensino em uma escola mesmo para a reconstrução do Templo citado em Mareei Simon Verus Israel Boccard 1948 p 30 legitimados pelo fato de constituírem uma intelligentsia da cultura germânica ou suas reservas diante do nacionalismo judeu que tenta reencontrar uma identididade para si em Israel Seus tratados recusam igualmente a segurança que seu procedimento poderia obter de um lugar adquirido Seus próprios fantasmas denunciam por toda parte uma incerteza relativa ao lugar recíproca da certeza investida num método uma maneira de avançar Isto é precisamente a questão de que trata Moisés e o monoteismo Esta obra testamentária no sentido de Kafka é consagrada à análise das relações que a escrita mantém com o lugar Nela a incerteza do lugar ou a divisão não é o que é necessário eliminar para que o discurso se organize À maneira do quiproquo mosaico ou da dúvida Zweifel freudiana é pelo contrário o postulado da construção Konstruktion e o elemento no qual o discurso se produz A dúvida e o método se supõem ainda que se excluam em Descartes A escrita nasce e trata da dúvida confessada da divisão explicitada em suma da impossibilidade de um lugar próprio Articula um fato constantemente inicial a saber que o sujeito não é nunca autorizado por um lugar que não poderia se fundar num cogito inalterável que permanece estranho a ele mesmo e privado para sempre de um solo ontológico e portanto sempre como resto ou como sobra sempre devedor de uma morte endividado com relação ao desaparecimento de uma substância genealógica e territorial ligado a um nome sem propriedade Esta perda e esta obrigação geram a escrita Freud designa o segredo desta gênese pelo pedacinho de verdade o Moisés egípcio que extrai da história antiga Mas bem antes descreveua num de seus sonhos quer dizer neste gênero de verdade que se escreve na região das preocupações reveladora e mentirosa e cujo nãolugar é privilegiado aí onde falta um solo próprio A noite que seguiu ou precedeu o enterro de seu pai ele sonhou que se encontrava diante de uma loja onde leu a inscrição Pg 312 PEDESE FECHAR OS OLHOS Poderíamos interpretar não existe mais nem pai nem terra para ver Mas ele compreendeu É necessário cumprir seu dever para com os mortos28 O cartaz 28 S Freud La Naissance de la psychanalyse P U F 1969 p 152 carta a Wihelm Fliess 2 de novembro de 1896 sobre este sonho durante a noite seguinte ao sepultamento Na Traumdeutung 1900Interpretation des rêves U F 1967 p 273274 Freud descreveu novamente este sonho que impresso uma espécie de aviso alguma coisa como o É Proibido Fumar das salas de espera das estações de trens29 aparece no sonho à maneira das Tábuas da Lei vindas no lugar do pai como uma inscrição e como o próprio enunciado do dever de escrever Fechar os olhos gesto de respeito e gesto de adeus Dívida e partida Angehören e absprechen É nas estações de trens que o escrito afixa a lei da escrita viagem indissociável de um luto No seu estudo Freud fecha os olhos de Moisés Repete de forma histórica o gesto que executou em estética quando analisou o Moisés de Miguel Ângelo30 Nunca dizia ele nenhuma escultura me havia causado impressão mais forte Mas quando ele foi sentarse diante da estátua na espera de vêla levantar se bruscamente sobre seu pé lançar por terra as Tábuas e extravazar toda a sua cólera nada disto aconteceu31 A estátua de pedra não brinca de fantasmas Permanece imóvel e rígida Para o observador o Moisés de Miguel Ângelo se acalma a fim de evitar que as Tábuas escorreguem caiam e quebrem Sua paixão se extingue para que a escrita permaneça Transformandose em monumento marmóreo ele salva as Tábuas A lei se estabelece com base numa morte O texto de Freud prossegue Mas inicialmente possibilitado por uma separação ele não esquece a infelicidade que acompanha a sua caminhada Nenhuma identidade germânica ou sionista pode ocupar o lugar do solo perdido que não cessa de ligar a construção da escrita a uma repetição do corte A suspeita se exerce aí vigilante para salvar a dívida do esquecimento para preservar o trabalho da análise na língua estrangeira e manter a encenação textual ou Aufklärung da alteração Sem dúvida para que enfim se contasse a própria escrita foi necessário que esta relação escrituraria da perda e da sua lembrança se tornasse a experiência do Freud envelhecido acuado para o testamento e encontrando assim a audácia ou a temeridade de quem não tem nada ou tem pouca coisa a perder GW 156 Então a própria psicanálise avança num terreno que não é o seu num saber histórico como outrora o hebreu no grego dos LXX ela se torna um romance no campo estrangeiro da erudição Discurso frágil porque postula o nada do lugar Não pode ser senão fantasia Sua última peça é de não ser no fim das contas senão um enigma sem resposta Pg 313 GW 246 E é a sobreveio durante a noite que precedera o sepultamento insistindo sobre a ambigüidade da expressão fechar os olhos é enterrar o pai e é ser indulgente Cf também Marthe Robert D OEdipe à Moïse CalmannLévy 1974 p 143217 Pedese fechar os olhos 29 Interpretation des rêves ibid 30 Le Moïse de MichelAnge 1914 in Essais de psychanalyse appliquée trad M Bonaparte e E Matty Gallimard col Idées 1971 p 12 31 Op cit p 21 historicidade relação do trânsito para o limite da escrita para uma morte que se conta no registro cômico numa fábula testamentária Assim cada conto de Sherazade ganhava algumas horas da morte sempre presente ao longo de suas mil e uma noites de fabulação Mas a fantasia é também a dádiva gratuita por parte de quem não tem nada a perder nem a ganhar É grátis não é mais cara do que um chiste A itinerância insinua a suspeita através do cômico O prazer de se distrair diz Freud se combina com o humor que se religa à velha tradição da Aggada jogo da zombaria na seriedade política e local Mais do que história temse aqui uma estória este romance escrito na outra língua a da erudição introduz nas identidades historiográficas a graça de sua relação com o nãolugar de uma morte que obriga 32 A tradição da morte ou a escrita É necessário morrer de corpo para que nasça a escrita Esta é a moral da história Ela não se prova senão graças ao sistema de um saber Ela se conta A fantasia que a receita não está autorizada por um lugar próprio mas é tornada necessária pela dívida que para ela significa um nome Constróise a partir do nada nichts não tenho nada a perder e da obrigação não te esquecerei Deixando de ser o discurso que dá a coisa ou que sustenta um lugar o texto se torna ficção O que aparece assim é o discurso analítico trabalhado pela divisão capaz de articular a história dialogal da transferência no decurso da qual o analista é chamado pelo paciente para um lugar onde ele não está33 e devedor deste lugar estrangeiro do qual recusa apropriarse Tomado entre o absprechen renunciar e o angehören pertencer este discurso nunca se terminou de escrever por esta razão exatamente Ele não chega senão a perseguir o Entstellung o deslocamento e a repetir a divisão na análise Quando pára não é porque chegou Tal como a fábula ele não conclui jamais Permanece em suspenso no momento do enigma da contradição ou da dúvida Como a partida do texto sua queda é paradoxal Cai como uma brincadeira que retoma a separação inicial desde que os sintomas foram deslocados Este fim é dado de maneira fictícia como na comédia e chama até o esgotamento o trabalho interminável de escrever outra vez Diferentemente da tragédia que caminha para a parada de uma morte a comédia do 32 Opcitp 3132 e 36 Nota dos digitalizadores A edição original não indica a localização desta nota no texto Optamos por inserila aleatoriamente 33 Conrad Stein LEnfant imaginaire Denoël 1971 p 34 quiproquo postula antes dela fora do texto uma divisão irreparável que retorna sem cessar nas reviravoltas de cena Não está no fim das alterações cômicas engendradas pela infelicidade Pg 314 inominável da qual ás figuras históricas são sucessivamente a metáfora Sob este aspecto a escrita é repetição é o próprio trabalho da diferença É a memória de uma separação esquecida Retomando uma observação de Walter Benjamin a propósito de Proust poderseia dizer que ela tem a forma da memória e não o seu conteúdo34 ele é o efeito indefinido da perda e da dívida mas não conserva nem restaura um conteúdo inicial já que este está perdido esquecido para sempre e é representado apenas por substitutos que se invertem e se transformam segundo a lei proposta por uma exclusão fundadora A prática escrituraria é ela mesma memória Mas todo conteúdo que pretendesse significar um lugar ou uma verdade não é senão uma produção ou um sintoma dela uma ficção inclusive a fantasia do Moisés O que se pode dizer dela é no elemento de uma representação uma relação analítica quer dizer um movimento que deixa reaparecer a divisão essencialmente sexual e explica assim as transferências deslocamentos ou quiproquos que dela derivam A história erudita e o romance analítico seguem portanto procedimentos opostos Uma pretende conduzir os elementos no texto mas para salvar estas positividades do esquecimento lhe é necessário esquecer que obedece ao dever de produzir uma ficção literária destinada a enganar a morte a ocultar a ausência efetiva das figuras de que fala Faz como se estivesse ali empenhada em construir o verossímil e em preencher as lacunas por onde se denunciaria a perda irreparável da presença mas ela é afinal autorizada pelo lugar presente do especialista visa assim apagar a sua própria relação com o tempo É um discurso O romance freudiano é escrita trabalho de passar o tempo sem esquecer aquilo que o organiza conta sua própria relação com o tempo como laço pertença e desapossamento separação O Moisés é a narrativização deste tempo praticado é o relato onde a escrita ao mesmo tempo produtora e objeto desta encenação se analisa como tradição de uma morte Aqui intervém a aversão que todos nós experimentamos em penetrar de maneira sacrílega na natureza íntima do luto35 Entretanto não sem que o conflito interior seja aí marcado e a dúvida posta em exerga GW 130 o texto freudiano nos conduz a 34 Walter Benjamin Mythe et Violence Denoël 1971 p 316 No trabalho de memorização proustiano acrescenta W Benjamin a lembrança é a embalagem e o esquecimento o conteúdo ibid 35 Maria Torok Maladie du deuil et fantasme du cadavre exquis in Revue française de psychanalyse t XXXII 1968 n4 Cf J Trüling op cit p 220 este ponto em que a relação entre o assassinato de Moisés e a produção da tradição designa a natureza íntima do luto como inscrição Elucidação sacrílega sem dúvida pois rouba ao sagrado lègere sacrum o que lhe é essencial a presença se é verdade que fazer o seu luto é escrever A tradição objeto central dos três Ensaios do Moisés aparece inicialmente Pg 315 sempre ligada a uma catástrofe histórica GW 174 O Epos da saga ao poema não se produz sem a queda daquilo que ele canta Por isto a queda não ocorre sem vestígios nicht spurlos GW 174 No esplendor da civilização minoanomicênica ou no império da razão criado por Akhenaton e recolhido por Moisés GW 174175 uma ferida mortal abre o espaço onde aparece o poema homérico ou bíblico sonho escrito A ficção se constrói sobre o nada da existência que passou e da qual nada nichts subsiste GW 175 As grandes ruínas fazem os grandes poemas Para marcar esta articulação entre dois imponderáveis a morte e o poema a conseqüência da Destrudo36 e a representação da Libido Freud recorre a uma citação de Schiller Freqüentemente ele pontua seu discurso com cortes poéticos que não são objetos de estudo mas referências autorizantes em momentos cruciais Introduz assim na prosa analítica o jogo do seu outro poético como um à parte diferente e necessário faltante e gerador poético O artista sempre o precede J Lacan36 bis Ocorrelhe uma sentença de Schiller que tem a forma de lembrança e também de sonho erinnern GW 208 O que de imortal viver no poema deve soçobrar nesta vida37 Uma perda da existência é a condição da sobrevivência no poema Estrutura do sacrifício quer dizer da produção do sagrado as coisas sagradas são constituídas através de uma operação de perda38 Da mesma forma que o desaparecimento de Moisés permitiu o aparecimento da saga mosaica sob muitas outras formas uma lacuna da história torna possível e necessária a produção de uma cultura Epos coletivo 36 Sabese que durante algum tempo Freud pensara em chamar Destrudo aquilo que mais tarde chamou instinto de morte Pensava assim opôlo mais claramente à Libido 36 bis Jacques Lacan Hommage à Marguerite Duras in Cahiers RenaudBarrault dez 1965 p 9 37 Estes são os últimos versos do segundo poema Os deuses da Grécia Die Götter Griechenlands 1800 sobre a morte dos deuses Was unsterblich im Gesang soll leben Muss im Leben untergehen 38 Georges Bataille La notion de dépense in La Part maudite col Points Seuil 1971 p 28 lenda tradição À sua maneira James Joyce expressa esta lei quando conta o fim de um amor de juventude Uma presença evanescendose instaura a obrigação da escrita Na bruma indecisa das notas antigas aponta um frágil traço de luz a palavra da alma vai se fazer escutar A juventude tem um fim este fim eilo aqui Nunca mais existirá Tu sabes disto E então Escreveo ora escreveo de que outra coisa és tu capaz39 A palavra da alma é a palavra estrangeira do velho compositor holandês Jan Pieters Sweelinck de quem a ária antiga cantava A juventude tem um fim Ela dá lugar no alhures de um canto ao que terminando não tem lugar na história mas apenas no poema Depois vem o imperativo da inscrição escreveo O traço aponta quando não existe P 316 mais fim localizável para o que se perde Com ele surge a lei da escrita dívida e memória O imperativo de escrever se articula com a perda da voz e a ausência de lugar É uma obrigação do ser passante passar indefinidamente O que não cessa de se escrever é necessário40 É necessário traçar a dívida sem cessar Escrever é o que resta numa marcha interminável onde se repete o acontecimento que não tem teve lugar Mas em Freud a tradição se particulariza não sendo apenas relativa a uma perda mas estando presa nas estratégias de um querer perder Repete o que ocorreu no começo um assassinato O ato que deixa vestígio pela escrita é rejeição do fundador Multiplicase no texto com o movimento de recusar yersageri de desprezar verschmähen de abjurar abschwören ou de contestar absprechen que intervém em todos os momentos decisivos do relato desde a erradicação da religião e do nome do seu pai por Akhnaton ou do desprezo do povo egípcio pelo monoteísmo de Akhnaton até o assassinato do Cristo O acontecimento inicial não é no fundo senão o nome dado a uma série iniciada muito antes dele no Egito para chegar no texto muito depois da história contada ao gesto contestatório de Freud É o movimento que prossegue durante os tempos de latência na tradição que quer esquecer e que trabalhando para apagar a lembrança do assassinato inicial trai revela aquilo que oculta Não querer o saber a tática do recalcamento é precisamente o que constitui pela produção de um esquecido nãosabido o saber do assassinato do pai primitivo41 39 James Joyce Giacomo Joyce Gallimard 1973 p 16 40 Cf Jacques Lacan Le Séminaire livro XX Encore Seuil 1975 p 8687 e 99 41 Os homens sempre souberam mas acrescenta Freud em um parêntese esquecido pela tradução francesa desta maneira particular quer dizer pelo próprio trabalho do recalcamento que um dia haviam possuído e assassinado um pai primitivo GW 208 Eu aqui deixo de lado as indicações do Um querer perder a verdade repete na tradição o querer perder o pai do acontecimento inicial que cala para se lhe substituir A tradição não seria pois mais fiel ao que reproduz se deixasse de ocultálo O que se sabe funciona aí como o que se cala Esta maneira de obliterar a lembrança repetindo o gesto de recalcar define a lenda tradicional como memória que é perda do conteúdo e reprodução da forma É o que é necessário dizer para que se faça escutar outra coisa Mas isto não vale também para o acontecimento primitivo reconstruído por Freud Mais do que a categoria dos fatos ou das verdades históricas deve ser alinhado no romance entre os efeitos de uma escrita que por sua vez deve ser o recalcamento portanto verdadeiro nesse sentido e a encenação destinada a ocultar o que faz Ele viria desta mesma tradição que se supõe que vá explicar O conteúdo Moisés assassinado nos leva ao texto que o produz Um recalcamento parece então a verdade que se repete na ficção freudiana estaria escondido por uma argumentação erudita disfarce de uma fábula e revelado pelas lacunas da P 317 reconstituição cronológica quer dizer por aquilo que falta a uma verossimilhança histórica Mas qual é o corte que o texto freudiano cria com relação à tradição se ele funciona como ela elucidandoa ao mesmo tempo Estas duas questões se a construção do romance quer fazer esquecer um recalcado e como neste caso o trabalho psicanalítico se distingue da lenda voltam a análise para o seu próprio discurso Desta maneira se é levado à articulação da teoria com a ficção que se representa neste intermédio da história e do romance e que se desenvolve ao nível do texto manifesto na relação da demonstração um verossímil historiográfico com suas lacunas uma verdade analítica Dito de outra maneira a lacuna não é em Freud a ausência de uma pedra no edifício construído mas o vestígio e o retorno daquilo de que o texto deve tomar o lugar Em Moisés e o monotetsmo duas expressões retornam constantemente obsedantes e se evocam mutuamente por um lado tomar o lugar do outro die Stelle einnehmen ou estabelecerse no seu lugar an seine Stelle setzen e por outro lado preencher as lacunas die Lücken ausfüllen ou apagar os vestígios die Spuren ver wischen A dissimulação Beseitigung dos vestígios relativa à perpetração de um crime GW 144 dá o verdadeiro alcance das lacunas da encenação textual que ocupa o lugar do morto Quem é então o morto Segundo David Bakan Freud renega Moisés texto sobre a topografia deste saber Para definir onde por quem se conservou este saber e sob que forma persiste a tradição Freud se refere a um inconsciente do povo é fixar mas de passagem um lugar fundamental para a eficiência da tradição ocupa o lugar dele instaurando uma ciência judia que se substitui ao rabinismo religioso mas ao mesmo tempo em que deseja o assassinato de Moisés pelos Judeus ele perdoa a falta e apaga o parricídio uma vez que se trata de um estrangeiro42 Para Marthe Robert o Moisés é um último sobressalto de revolta diante da fatalidade inexorável da filiação uma recusa obstinada dos laços de sangue uma rejeição de seu pai Jacob Freud para tomar o lugar de filho de ninguém e filho de suas obras43 Ambição freudiana sem nenhuma dúvida e declarada o herói sempre se revolta contra o seu pai e termina de uma maneira ou de outra por matálo GW 193 Otto Rank entretanto percebeu nele mais justamente a ambivalência quando descreveu o fundador da psicanálise como um filho rebelde que defende a autoridade paterna44 Estas interpretações indicam uma relação entre o gesto tradicional de recalcar ou de tomar o lugar e o corte que ele cria com relação à tradição Mas fixam no texto uma verdade por exemplo a fundação de um judaísmo moderno Moisés egípcio para D Balkan o enigma da identidade psicológica o homem Freud diante do homem Moisés para M Robert e o supõe portanto tradutível numa linguagem referencial P 318 É isso creio eu precisamente o que o texto proíbe e é por aí que ele se distingue da tradição Ele mantém uma pluralidade de interpretações possíveis O que ele quer dizer só pode ser calado indefinidamente recalcado e por dizer Na sua forma mantém os termos de uma contradição que jogando em muitos níveis biografia de Moisés história do judaísmo autobiografia etc visa o ponto cego de um eu não sei repetido a propósito de cada um de seus objetos45 Isto não tem lugar próprio no discurso Também o texto ensina ao leitor Tu não saberás nada disto Como escreve Freud a propósito da religião de Aton velaram para que não tivéssemos muitas informações GW 162 Ao que é preciso acrescentar que se estava escrito ou era passível de se escrever em algum lugar isto se saberia É próprio da ficção poder fazer escutar o que ela não diz 42 David Bakan Freud et la tradition mystique juive Payot 1964 p 107152 Le thème de Moïse dans la pensée de Freud 43 Marthe Robert DOEdipe à Moïse Freud et la conscience juive CalmannLévy 1974 p 219278 Le dernier roman Nesta interpretação a comparação com a Carta a meu pai de Kafka se impõe Cf F Kaflca OEuvres completes Cercle du livre précieux Paris 1964 t VII p 157211 44 A psicanálise é tão conservadora quanto parece revolucionária pois seu fundador é um filho rebelde que defende a autoridade paterna um revolucionário que por temor de sua própria revolta de filho refugiouse na segurança do papel paternal o qual entretanto já estava ideologicamente desintegrado Otto Rank Modern Education A Knopf Vintage 1932 cit por Michèle BourauxHarteman Du fils in Topique nº 14 1974 p 6364 45 Assim finalmente o que foi originariamente a tradição nós não o sabemos GW 132 etc A forma mais do que o conteúdo é portadora do que há para ouvir a relação de um enunciado tem um recalcado Mas ela não depende exatamente da contradição mesmo se em Freud igualmente contar não é jamais senão conto redizer que se escreve também contradizer46 repetir a lenda antiga contradizendoa Tratase antes de uma estrutura de processo que se representa no conteúdo em termos de crime e de vestígios por apagar Desta maneira a argumentação se confessa lacunar lückenhaft GW 189 e se escusa de sêlo O autor acusa seu próprio trabalho e se rebela entretanto contra as censuras injustificadas Seu herói é ao mesmo tempo um renegado e uma vítima trai e é assassinado Cada elemento é o lugar do processo interno que em Freud assume a imagem da dúvida A acusação e a justificação levam de vencida a afirmação e a negação que tem elas próprias valor de pretensão e de denegação Um conflito determina os contrários no terreno sempre móvel de uma agressão e de uma resposta Cada vez o corte reaparece no lugar de um novo estado de guerra Recalcamentos são expressos através da escrita mas a escrita lhes responde com um trabalho uma elucidação contra a morte Esta é a situação do texto Ele não escapa do processo que analisa Ele o persegue Não encontra uma posição segura observadora ao abrigo da dúvida Não está isento do combate para tomar o lugar nem protegido da lei que faz retornar o eliminado A violência da construção não se expressa nele sem a sua fraqueza schwache Seite GW 151 Também o conflito interior do sujeito não é estranho ao seu texto o autor não pode se desembaraçar da morte deixando ao seu livro a preocupação de Pg 319 se encarregar dela minhas obras passam mas eu sou um lugar que permanece nem aceitar a morte obtendo a imortalidade para o monumento literário morro mas meu livro não perecerá Tal como Moisés a literatura é ao mesmo tempo assassinada e assassina envolvida num conflito sacrílego que transforma a Escritura em escritas Existem combates Não há imortalidade Freud não crê nela mais do que os Judeus que diz ele renunciam à imortalidade enquanto os Egípcios denegam a morte GW 117 Nisto se afasta de Schiller Nenhum poema imortal vem ocupar o lugar dos deuses que morreram Não existe lugar estável e imortal mesmo que seja escriturário nenhuma revelação tampouco que preencha esta imensa lacuna e crie um espaço seguro O que se inscreve nos textos e no romance de Freud é o seu luto já que o trabalho de fechar os olhos do pai anuncia igualmente a lei de seu retorno Sem acreditar na 46 Claude LéviStrauss LHomme nu Plon 1971 p 576 N da T LéviStrauss joga com a forma fonológica aproximando conte redire de contredire possibilidade utópica de enganar a morte a escrita freudiana é a sua tradição e a sua traição Rouba qualquer coisa tempo para inscrevertomar este lugar ao segredosagrado que desvela Nisto é sacrílega Mas o faz como uma brincadeira que repetirá a lei do enigma Ela tem forma de paródia O quiproquo ou a comédia do próprio Otetoi que je my mette em francês no texto freudiano é a lei do sonho É bem feito para ti se tiveste que me ceder o lugar den Platz räumen porque quiseste me tomar o lugar vom Platz verdrängen47 Esta é também a lei da história individual ou coletiva O assassinado ressurgiu lá onde foi morto Semelhante ao pai de Hamlet48 é o espectro49 de Moisés No próprio lugar do crime existe sempre este fantasma a vítima que ontem ameaçava No capítulo que intitula Retorno do recalcado Freud afirma ao mesmo tempo que a religião do fundador retorna na religião judaica que a expulsou e que o pai desprezado geringgeschätzt GW 168 por Goethe reaparece no caráter do poeta envelhecido maneira dele que se identifica ao grande Goethe de se ver também nos seus últimos dias desapossado do lugar que havia feito para si recalcando Jacob seu pai50 Impossível matar este morto Ele retorna exatamente onde a conservação de seu nome Moisés ou Freud ocultava a vontade de eliminálo A identidade do nome é o cenário do jogo Pg 320 onde o recalcamento Verdrängung chama o deslocamento Verschiebung de maneira que sob o disfarce do próprio não se sabe nunca senão o quiproquo do próprio Em Moisés e o monoteísmo o velho que Freud se tornou reúne todas as suas teses essenciais acerca do recalcamento que foi escreve em 1936 a Romain Rolland o verdadeiro ponto de partida do nosso aprofundamento da psicopatologia51 Recompõe na sua totalidade o lugar que fez para ela a psicanálise nascida pouco após a morte de N da T Sai fora que eu quero entrar 47 L Interpretation des rêves GW IIIII p 488 48 Sabese o papel representado pelo Hamlet de Shakespeare na obra de Freud Este é aliás um dos textos que cita mais freqüentemente cf GW V 19 VI 10 43 e 44 X 432 XIV 314 etc 49 Freud chama assim Moisés Cf E Jones La vie et Voeuvre de S Freud op cit t III p 256 citando uma carta de 28 de abril de 1938 50 Cf M Robert DOEdipe à Moïse op cit p 276 51 Uma perturbação de memória na Acrópole Carta a Romain Rolland 1936 GW XVI 255 Aqui mais uma vez se marca fundadora a relação que a Terra freudiana seu edifício Aufbau mantém com uma exclusão uma contestação um êxodo Jacob Freud e positivamente graças a ela52 na sua relação com a exclusão representada aqui pelo assassinato de Moisés Mas no momento em que recolhe a sua volta todos os móveis que provam o estabelecimento de um lugar próprio o outro retorna a ele fatalidade de uma supressão quer dizer da filiação e da morte Fazer o somatório dos bens adquiridos é fazer a sua mala Sua própria construção se torna a mensagem que lhe anuncia o retorno do recalcado Não por acaso mas segundo uma lei que Freud analisa metodicamente neste Moisés egípcio Na mesma época evoca o rei Boabdil que informado da queda de sua cidade Alhama sinal do fim do seu reino Não quer sabêlo er wull es nicht wahr haben e decide tratar a mensagem como não transmitida queima as cartas e mata o mensageiro53 Freud pelo contrário quer saber a nova na própria língua do lugar que ocupa O próprio lugar que tornou possível ao filho rebelde o recalcamento do pai retorna como mensagem do fantasma Finalmente quem ganha o filho que transformou cada saber estabelecido e próprio em lugar alterado pelo retorno de um excluído ou o para que sempre a partir de um tempo de incubação Inkubationzeit ou latência Latenz GW 171 retorna de longe Quem é desfeito Quem está aí no lugar de quem Pergunta sem resposta Está por ver dahingestelt GW 245 À violência do conflito corresponde a dissimulação do vencedor mas uma dissimulação estrutural que torna impossível a homogeneidade do eu com aquilo que nele aparece Existe defecção do lugar Seu outro é aí sempre um que tem direito Como escrevêlo senão num discurso que recusa o postulado historiográfico de sujeitos identificáveis a lugares e que faça da ficção o próprio motor de sua construção Se o sujeito é quiproquo seu relato não pode ser senão uma narrativização do quiproquo uma comédia da identidade O que me interessa neste exame da escrita freudiana é o romance como prática tal como se faz de acordo com o que diz Se ele coloca como conteúdo a ausência de um lugar ou de uma substância identificatória isto significa que ele mesmo não pode ser senão o funcionamento Pg 321 do quiproquo Por este motivo a gênese do texto e não apenas o enunciado das idéias é o deslocamento ou a análise da verdade que designa A prática produtora do texto é a teoria A construção literária legível em termos de procedimentos retóricos organizadores da obra ou de estruturas semióticas que geram a manifestação textual é a própria práxis do tomar o lugar die Stelle 52 M Robert DOEdipe à Moïse op cit p 36 n3 53 Uma perturbação de memória na Acrópole GW XVI 255 citando a lamentação do Mouro espanhol Ay de mi Alhama einnehmen Como uma peça de Marivaux o Moisés se desenvolve em substituições disfarces desfigurações e deformações eclipses e elipses reviravoltas de situações quer dizer num jogo de sombras e luzes de desaparições e fantasmas Todo este vocabulário freudiano designa uma técnica de encenação que não está apenas a serviço do assunto a tratar mas constitui a própria escrita como processo do recalcarretornar Fazer o texto é fazer a teoria Sob este aspecto existe realmente ficção teórica A teoria inteiramente investida na operação de se escrever é o trabalho do sujeito que se produz na medida em que pode apenas se inscrever analiticamente à maneira do quiproquo Que em Freud um saberfazer seja a própria exposição da qual os procedimentos de narrativização constituem a prática teórica gostaria de examinálo no funcionamento de alguns fragmentos do Moisés retidos como indicações estratégicas o romance familiar e a dualidade dos Yahvé ou dos Moisés Estes exemplos vão particularizar a relação da ficção freudiana com esta história efetiva que é uma maneira de fazer o texto Daí se depreenderá também o estatuto da teoria Bem longe de ser uma ciência definida pelo estabelecimento de um campo próprio e de uma linguagem unívoca a teoria em Freud se exerce a partir e no inteiror da ficção o sonho a lenda seu trabalho delineia na língua estrangeira destas fantasias um saber que é inseparável dela mas se torna capaz de as articular historicamente quer dizer através de uma prática de deslocamentos e de inversões O quiproquo é ao mesmo tempo o enunciado e a operação teóricos O romance familiar Familienroman da criança ocupa apenas algumas páginas no Moisés GW 106112 mas representa nele um papel decisivo Faz parte também do dossier das relações com Otto Rank54 Representa a contribuição pessoal de Freud em favor das origens egípcias de Moisés Depois de ter adotado como seu o argumento de Breasted sobre a origem egípcia do nome Mosche55 Freud retoma de Rank a tese que 54 Freud retomou várias vezes este assunto GW VIII 74 X 104 etc depois que o tratou em 1909 no Romance familiar dos neuróticos Der Familierenroman der Neurotiker GW VII 227231 Este texto destinado a ser inserido na obra de Rank Le Mythe de la naissance du héros 1909 não foi publicado senão em 1924 cf E Jones La vie et Voeuvre op cit t II p 259 e 316 Ele mostra como entre as crianças o deligamento Ablösung que segue a superestimação dos pais pode levá los a se acreditar adotados pela família em que vivem portanto nascidos alhures vindos de uma família mais elevada Neste romance o sentimento de ser o filho de um outro leito Stiefkind substitui um pai nobre ao pai demasiado comum pater semper incertus est e freqüentemente atribui à mãe certissima infidelidades sexuais 55 J H Breasted The Dawn of Conscience Londres 1934 este teria estabelecido a meu conselho e quando ainda sofria a minha influência56 Nestes dois casos Breasted e Rank ele se instala no lugar do outro No que se refere ao nascimento o relato freudiano Pg 322 parte de duas citações A primeira é um extrato do Mito do nascimento do herói de Rank o estereótipo do mito comporta duas famílias uma nobre a verdadeira que rejeita o herói a outra modesta que o adota antes que ele se vingue de seu pai e tome o seu lugar A segunda é a autobiografia de Sargão de Acad 2 800 aC o testemunho de mais antigo conhecimento da série formada por estas figuras de heróis Uma fornece um esquema geral uma lenda tipo Dwchschnittsage GW 107 a outra uma imagem primitiva Urbild um protótipo Temse portanto uma estrutura literária e um começo histórico Estes dois mapas constituem de fato duas variantes de uma mesma rodada Com exceção de um matiz Freud supõe a estrutura mais legível da Urbild do que na fórmula Bild GW 107 obtida a partir de uma série e através deste duplicar que o leva do modelo de Rank ao original de Sargão ele retoma o domínio do assunto Sob esta forma folheada a citação fornece um lugar para o seu trabalho neste terreno em que ele é convidado e portanto utiliza a língua Um recorte da citação posta entre aspas e à distância cria um jogo possível neste espaço onde a marcha de uma técnica vai gerar o texto freudiano mas não dá a este texto outro lugar senão o da citação Deste ponto de vista não se assemelha ao recorte que instaura a historiografia distinguindoa das crônicas ou dos documentos57 e que estabelece a priori que o discurso do saber histórico não se coloca sob a mesma insígnia e não está submetido à mesma ignorância que os seus documentos A análise tem pelo contrário como postulado obedecer à mesma lei que os documentos e não estar melhor colocada do que eles mesmo que sua vitória consista em elucidálos o documento cala o que ele sabe oculta o que o organiza desvela apenas pela sua forma o que apaga do seu conteúdo 56 Freud acrescenta em nota Estou muito longe de procurar minimizar o valor da contribuição pessoal de Rank a este trabalho GW 106 n 2 Conflito dois nomes sobre a mesma tese ou lugar Freud ainda nomeia e cita Rank enquanto oculta completamente o nome e o trabalho de Karl Abraham retomando quase textualmente suas teses sobre Aknaton apoiadas também aliás em Breasted e Rank Primeiro homem eminente no domínio espiritual que a história da humanidade nos informa dizia Abraham Aknaton recusa a autoridade paterna e a Tradição transmitida pelo pai no desejo de terse concebido a si mesmo de ser o seu próprio pai em um fundador acrescentava ele isto é uma neurose de filho apagando os vestígios do pai cf Amenhotep IV Echnaton Contribution psycha nalytique à 1étude de sa personnalité et du culte monothéiste dAton 1912 in Karl Abraham OEuvres completes Payot 1965 t Ip 267291 ou in K Abraham Psychanaiyse et culture Petite BibL Payot 1969 p 133162 E as cartas trocadas a este respeito de janeiro a junho de 1912 in S FreudK Abraham Correspondence Gallimard 1969 p 116124 O discípulo morto em 1925 foi ele apagado por ter tocado no recalcamento do pai pelo fundador Cf J Trilling Freud Abraham et le Pharaon op cit 57 Cf supra p 98100 A citação funciona pois de uma maneira específica no texto freudiano Não o autoriza mais do que ele se autoriza a si mesmo através de uma relação com um não saber É o lugar perpassado por um trabalho que joga com os seus conteúdos e expõe ou analisa as suas ambivalências logo os deslocamentos e as possibilidades Na citação como na palavra a análise insinua o plural em lugar do unívoco Bem longe de se constituir como compreensão ou como julgamento que se pronunciaria a partir de um lugar diferente isento do nãosaber e da ambigüidade portanto nobre e distinto ela restaura em cada lugar um movimento do qual participa precisamente porque confessa a sua própria relação com o nãosaber sua dívida com relação ao outro e seus conflitos internos O romance familiar dá pois lugar a um tratamento que desloca reduz ou inverte os conteúdos por revelar seja no modelo Bild geral ou originário Pg 323 do mito do nascimento do herói seja na sua inversão com o caso único da lenda de Moisés as variantes de um mesmo funcionamento formal uma relação entre um e dois Esta relação se indica como um conflito de dois personagens o pai e o filho ou os pais e os filhos numa mesma família Dois no mesmo lugar Alhures por exemplo O Eu e o Id 1923 esta tensão é elucidada como a própria questão do eu o sujeito se constitui por inseparável de e frustrado pelo seu outro ele é dividido pelo interdito que cria a própria transgressão e que institui o gozo através de uma relação necessária à falta e à diferença não tem lugar próprio Mas aquilo tudo se passa na cena familiar Nesta unidade de lugar o filho deve e nunca pode verdadeiramente desalojar o pai Na apresentação comum e na exceção judia Freud indica a adjunção de um segundo lugar fictício à história real GW 111 do conflito Por esta criação a lenda inverte a história já que de agora em diante existem dois lugares duas famílias para um personagem o herói A operação tem um lucro Ela salva a identidade do lugar onde se produz a lenda O estrangeiro do interior por seu exílio numa segunda família deixa intacto e simples o seu lugar de origem o inimigo não é senão um fora o dentro é purificado da diferença O retorno do filho expulso ou contestatário se torna assim o retorno do mesmo e manifesta a nobreza original do lugar depois do desvio e da adoção passageira numa família modesta Em suma a lenda é o discurso genealógico do lugar Apologia pro domo sua Ela fala a lei de uma terra de um lugar ou de um meio necessariamente nobre do começo ao fim Não há equívoco possível nobre está aqui e o modesto lá Cada coisa em seu lugar Entretanto este espaço organizado por uma ordem é atravessado pelo tempo único do relato e do herói A unicidade de trajetória contrasta com a dualidade de lugares Em todos os sentidos do termo ela permanece o vestígio daquilo que a topografia eliminou A lenda repete na sua dinâmica o que excluiu do seu quadro A narratividade diz o inverso do que a estrutura espacial estabelece Pela unicidade de personagem ela mantém como movimento da história a coincidência dos contrários sob o mesmo nome existem dois lugares A lenda revela assim o caráter fictício de sua primeira seqüência A destinada a estabilizar um lugar referencial e designa pela relação das seqüências seguintes B e C a irrupção de um arrivista saído não se sabe de onde ein hergelaufener Abenteurer GW 110 no lugar consagrado Uma estranheza faz parte da familiaridade Um conflito interminável se instala no seio da família Pg 324 A lenda judia do nascimento de Moisés difere de todas as outras lendas do mesmo gênero GW 112 ocupa um lugar à parte e contradiz mesmo as outras num ponto essencial GW 109 Moisés nasce de uma família modesta de Levitas e é adotado pela família nobre do faraó Na verdade esta particularidade é secundária com relação ao fato de que produzida num lugar judeu a lenda instaura o mesmo lugar judeu como origem o nascimento judeu funciona aí como origem nobre e legitima o lugar classificando a estranheza na exterioridade aparente nobre na qual o herói da família foi provisoriamente adotado cf fig2 A inversão na verdade não é senão uma variante A lei do mesmo lugar prevalece nos dois casos mas no modelo comum ela funciona como lei de um meio social e político enquanto que na lenda judia intervém como lei da família lei do sangue relativizando uma nobreza estrangeira voltada á modéstia Pg 325 Freud se introduz nesta lenda como o ladrão de uma legitimidade É sacrilégio pilha o lugar sagrado Com seu Moisés egípcio instaura a desordem neste lugar protegido pela lenda o estrangeiro o homem de baixa extração e sem origem confessável hergelaufener o aventureiro Abenteurer em uma palavra o egípcio está no lugar Inquietante familiaridade Aconteceu aqui como em cada um de seus significantes nos quais à claridade um único sentido por palavra ele restaura uma perturbação contrária marcado por um uso que é movimento Sempre existe obsceno um arrivista num lugar nobre Mas Freud dá igualmente sua própria versão do romance da família A criança diz ele inicialmente superestima seu pai depois se desliga dele e se torna crítica As duas famílias do mito a nobre e a modesta são duas imagens que refletem Spiegelungen a mesma família tal como aparece para a criança em épocas sucessivas de sua vida Assim elas são misturadas zusammenfallen localmente reunidas e não se separam senão temporalmente zeitlich GW 109 O que a lenda reparte em lugares diversos Freud distribui em tempos diversos58 Enquanto ela espacializa ele cronologiza Como na sua visão de Roma ele substitui a justaposição que localiza as coisas umas ao lado das outras neberi pela sucessão que as empilha no lugar onde aparecem umas apôs as outras nach59 Qual é o benefício desta diferença na narrativização da relação entre o filho e o pai quer dizer entre o modesto e o forte ou entre o intruso e o possuidor Seria nenhum em se tratasse apenas da mesma classificação edificante constitutiva de lugares próprios mas segundo um outro código De fato a diferença se 58 No seu estudo de 1909 cf nota 54 Freud distinguia três tempos o pai superestimado o pai rejeitado e o pai substituído pelo filho Estes três tempos correspondem aos três lugares pelos quais se desloca o herói do mito 59 Cf supra p 289 e nota 12 prende à natureza do tempo freudiano Se mostra ou oculta este jogo nada perde Desdobra o jogo das estratificações psíquicas Traz a luz em deslocamentos sucessivos os retornos de uma divisão originante É memória movimento do que se repete mudando os conteúdos Nisto contradiz as ilusórias estabilidades do espaço Freud suspeita dos lugares Desconfia do enraizamento Bodenständigkeit60 Ele nos reconduz a uma marcha do tempo articulada com a origem ou terra perdida O que a representação freudiana conserva apesar de tudo que tem de fictício é a linearidade do tempo a própria sucessividade Porque o após é na realidade um dentro O outro do personagem é interior Um duplo permanece escondido em cada momento tanto quanto em cada lugar ele o é igualmente na e pela exposição Darstellung temporal de Freud Desmistificando a legalização do lugar e mostrando seus efeitos sobre a construção de uma encenação esta análise feita linguagem temporal organiza se ainda a partir do tempo do oculto e funciona portanto Pg 326 como ficção Um segundo fragmento do Moisés permite avançar já que apresenta a necessidade da rejeição é necessário um recalcado para que isto ande e da mesma forma é necessário a ficção para que haja progresso interminável da análise Bem longe de ser o oculto a suprimir ou a lacuna a preencher que seria aliás este gesto senão uma nova rejeição o recalcado é o próprio princípio do deslocamento Não existe mais vida onde nada se oculta Por seu conteúdo e por seu próprio movimento a Aufklärung se apõe a uma filosofia da claridade e das Luzes Ela defende algo que não pode ser senão retirado calado No segundo Ensaio estudo puramente histórico Freud insiste nisso GW 154 161 etc os parágrafos 4 e 5 GW 130141 constituem o pivot da argumentação que ele retoma na sua conclusão GW 154155 a dualidade dos Yahvé dos Moisés dos povos etc Eles se referem ao nome enquanto que no romance familiar tratase do lugar originário A primeira vista parece curioso que após ter reduzido os dois lugares a um quando tratavam da infância do herói Freud introduz agora dois personagens lá onde a saga não apresenta senão um De fato ele reconduz à estrutura conflitual de dois no mesmo lugar tanto a lenda que cria um segundo lugar para alojar um segundo personagem quanto a lenda que elimina o segundo personagem porque não há senão um nome Assim nos dois casos retorna a lei que vale para o próprio Freud e lhe proíbe igualmente tanto uma posição própria liberta da dívida com relação ao nome do 60 Reivindicar um enraizamento behaupten seine Bodenständingkeit GW 147 pretender ligarse ao terreno e sustentarse numa aliança com o solo eleito eis aí a ilusão outro quanto uma fidelidade que o identifica sem contestação com instituição judia ou científica Dito de outra maneira tanto para ele quanto para o Moisés egípcio não existe mais lugar próprio senão o do nome próprio Destas duas maneiras a lenda genealógica die genealogische Sage GW 134 se quebra A mesma prática dos textos permite aqui a Freud fazer retornar o duplo apagado de Yahvé ou de Moisés e mais ainda de fazer cair o duplo decorativo do único lugar Os procedimentos da sua reconstrução são os mesmos não vou me demorar mais neles Gostaria antes de seguir o seu caminho na medida em que ele indica a necessidade de um recalcado uma tradição se define pelo que cala e se organiza a si mesmo como recalcamento de modo que as duas coisas marchem juntas no mesmo texto Para retomar uma linguagem freudiana elas se fundem verschmelzen verlöten zusammentreten etc sob um mesmo nome a ficção61 sem deixarem de ser estranhas uma à outra Com efeito a análise freudiana parece manter com a lenda o mesmo tipo de relação que o Moisés egípcio tem com o Moisés Madianita misturados pelo movimento que os faz Pg 327 retornar alternadamente tanto como sonho quanto como psicanálise à superfície do texto onde manifestam o mesmo conflito dois no mesmo lugar seja como o ditado a lei do pai seja como o sabido a conquista do filho Aqui a análise exuma por detrás ou após o deus universal do monoteísmo de Akhnaton um Yahvé deus dos vulcões inquietante unheimlicher e sangüinário demônio que circula durante a noite e teme a luz do dia GW 133 um deus de aldeia Lokalgott mesquinho e selvagem engherziger roher GW 151 que contrasta com a ideologia da Aufklärung egípcia Este é o deus escreve Freud que no decorrer dos meus estudos sobre Moisés tornouseme particularmente antipático e estranho à minha consciência judia62 De origem árabe este deus do Sinai e do Horeb foi adotado pelos judeus que lhe atribuíram o crédito da sua redenção a qual de fato fora obra do Moisés egípcio Ele é o usurpador Mas como escárnio e a selvageria servem de veículos para a razão a sombra Schatten do deus de quem ele tomou o lugar se tornou mais forte do que ele No final deste desenvolvimento o deus mosaico oculto por detrás dele voltou para a boca da cena GW 152 da mesma maneira que a tradição vinda do Egito havia pouco a pouco crescido na sombra GW 153 O deus egípcio Aton volta mas sob o nome do outro Yahvé quer dizer sob um nome de adoção 61 Cf supra p 285286 e n 3 62 S FreudA Zweig Correspondence op cit p 141 carta de 13 de fevereiro de 1935 Inversamente por detrás do Moisés egípcio está um outro personagem igualmente estrangeiro que se tornou o genro de Jethro este madianita irascível e violento é o homem da visão do Sinai e a testemunha de Yahvé Está associado à resistência judia que promoveu o assassinato do Egípcio Mas não tem nome Não triunfa senão sob um nome de empréstimo o nome egípcio de Moisés e seu sucesso é seguido pelo retorno do que ele havia contribuído para eliminar a religião de Aton passada para Israel sob o nome de Moisés Este é o início do imbróglio que Freud tece63 com a sutileza oblíqua do velho com um prazer visível mas também com a preocupação sempre inquieta de evitar ofender os pesquisadores qualificados e de contornar os resultados afiançáveis da pesquisa histórica GW 136 Antes de se complexifícar o jogo começa com quatro lugares dois deuses e dois líderes e três nomes Aton Yahvé Moisés apenas já que um dos personagens não tem nome A montagem cênica de Freud opera em dois tempos após o que se repetirá ainda que com outros conteúdos 1 O tempo primitivo representa relações estáveis entre uma realidade Weseri e um nome Namé Existe por um lado a realidade popular Pg 328 egípcia ou selvagem hebraica da antiga religião ela se designa pelo nome de Amenhotep no Egito ou pelo de Yahvé em Israel Se indicarmos pela maiúscula o Wesen e pela minúscula o Name temse a relação estável Aa Depois intervém um segundo termo B Ele ocupa o lugar após uma luta como o filho ocupou o do pai É a religião monoteísta de Aton sustentada por Akhnaton Ela apaga ao mesmo tempo a realidade Wesen e o nome Name da religião paterna antes de por sua vez sucumbir diante do retorno da antiga realidade e dos antigos nomes A história egípcia se apresenta como uma série de inversões da qual cada momento mantém entretanto a adequação entre a coisa e o nome Aa Bb Aa 63 Unsere Fäden weiter zu spinnen para tecer nossa teia de aranha e urdir nossa intriga Muitas vezes mencionado este objetivo justifica o recurso às hipóteses e às idéias que Freud reúne de todos os lados na medida em que eles lhe fornecem com o que fazer ressaltar a ação de seu romance policial 2 O segundo tempo se inaugura com o exílio da religião monoteísta egípcia entre os Judeus De agora em diante tudo funciona segundo um corte entre a coisa e o nome A exterioridade do desenvolvimento com relação ao lugar de origem perverte a aliança do Wesen com o Name e inverte constantemente sua relação Problemática de êxodo de agora em diante em Israel o Wesen será sempre excêntrico com relação ao Name Neste lugar adotivo onde Moisés o filho de Aton é inicialmente adotado o nome não combina com a coisa B o monoteísmo é recebido sob o nome de a Yahvé depois em seguida ao assassinato de Moisés A a religião selvagem yence mas sob o nome de b como mosaica antes que este recalcado retorne mas sob o nome de Yahvé pontuado também por cortes violentos temse a série Ba Ab Ba Ferida na função de sua articulação com um solo esta história avança claudicando Os nomes a linguagem não estão mais no mesmo endereço que as coisas a história Na verdade a partir da ruptura inicial ou das separações Trennungen que a repetem produzemse fusões Verschmelzungen sob um mesmo nome nacional mas as restaurações Wiederherstellungen conduzem necessariamente esta quebra à superfície e proíbem ao povo de se deixar apanhar pela ilusão da unidade A soldadura Pg 329 Verlötung não faz senão ocultar a quebra Zerfall GW 138 Freud reencontra aqui a análise marxista da luta de classes a unidade nacional a ilusão do nome comum oculta a divisão do trabalho na história64 Modalizado de mil maneiras no seguimento do romance por exemplo Moisés Egípcio entre os judeus balbucia e pratica hesitantemente ou com dúvida uma língua estrangeira na falta de lugar de terra ou de língua própria ele não tem mais palavra A presença Wesen não se dá mais no signifícante Name O corpo é o estrangeiro da linguagem O êxodo tornou a voz impossível Permanece possível apenas a escrita que é o quiproquo entre a linguagem e a realidade ou ficção já que ela diz outra coisa além do que nomeia Fim da presença que se nomeia Desaparecidas a voz 64 Cf GW 137138 a propósito de Judá e de Israel estes elementos bem diferentes que foram reunidos para a construção Aufbau do povo judeu Também a unidade nacional aparece por toda parte como engodo do nome e como fonte de ilusão cf GW 103110137138142 etc da terra a palavra do corpo Não existem mais profetas apenas escritores que praticam o deslocamento escriturário e produzem cada vez mais ficções No Moisés dois indícios confirmam esta eliminação da voz Por um lado no texto todos os elementos se mexem e roçam segundo o jogo do quiproquo exceto um Um atestado certificado e documento Zeugnis GW 139 permanece através dos avatares das relações entre significantes e realidades a circuncisão Outrora diz Freud ela era praticada apenas no Egito ali era um próprio uma particularidade mas era inerte tendo o valor de uma particularidade entre outras Em contrapartida ela se torna lei Gebot GW 126 139 etc passando a ser entre os Judeus como que o signo da origem e da terra perdidas Apenas neste momento ela constitui lei e faz sentido Com efeito significa na medida em que marca com uma perda e pelo ato de perder Diferentemente da relíquia que é guardada ou dos estigmas que são acrescentados a circuncisão significa ser raptado Ela aliás não é mais um nome mas o gesto que faz no corpo individual aquilo que diz do corpo social Costume Sitte primitivo uralt GW 128 existente fora do acontecimento que o torna significante criado como um fato bem antes de se tornar um documento adquire pelo fato de ser deportado e privado do seu contexto a mudança de estatuto que de signo da pertença egípcia o transforma em lei de pertença judia Tornase o vestígio da passagem de Moisés para o estrangeiro e portanto da privação do lugar marcando a privação no centro do corpo no sexo e transforma em dejeto do próprio lugar de poder Penoso beschwerliche GW 126 é verdade inquietante e estranha sehr befremdlich GW 128 Aqueles que não a praticam üben se apavoram grausen um pouco com ela GW 128 Esta perda angustia Mas aqueles que a adotaram annehmen vinda de mais longe marca recebida como própria porque estrangeira estes são orgulhosos dela sentemse elevados erholt e como que enobrecidos Pg 330 geadelt GW 128 apesar da sua origem modesta ou desconhecida tendo como impuros aqueles a quem falta esta ferida da ausência A circuncisão é pois inscrição escultura ou gravura da lei sobre o corpo quer dizer o que faz sentido suprimindo diferentemente da pintura que acrescenta prática privadora e por este motivo produtora de sentido Ela é escrita Leitfossil diz Freud GW 139 fóssil iniciador documento indutor Reproduzida ao longo desta história quaisquer que sejam as relações entre a linguagem e a realidade ela é o gesto que não engana pois conduz ao caminho leiteri da castração A relação do nome com a coisa deixa de ser um quiproquo pois trata de uma prática significante Da mesma forma este documento Zeugnis é exatamente o pedacinho de verdade ein Stückchen Wahrheit que Freud pretende exumar da lenda O Moisés egípcio eis aí o que esta inscrição produz significandoo É uma prática teórica onde não há mais ficção Um segundo indício recíproco do primeiro é indicado pelo texto enquanto que o texto prática de circuncisão subtrai para significar Este indício não está ausente o que seria contraditório nos termos ele se marca no romance freudiano como o que é tirado ou calado para que ele se transforme em tradição É uma elipse se falarmos retoricamente um recalcamento se falarmos a linguagem freudiana Este trabalho de recuo poderia ser analisado sob muitas formas Eu não indico senão uma porque ela se refere ao nome Jacques Lacan observou que Freud elide uma palavra fundamental que é esta Eu sou Eu sou o que sou quer dizer um Deus que se apresenta como essencialmente oculto65 Quaisquer que sejam as intenções de Freud sua prática textual apresenta com efeito as tendências deformantes entstellenden Tendezen que no decorrer destas páginas observa na lenda Ele corta ou costura de novo assassino da lenda se é verdade que sob certos aspectos a deformação Entstellung de um texto se aproxima de um assassinato Mord GW 144 A prática da Entstellung deformação e deslocamento é constante nele Ela remete tanto ao que dizem os textos bíblicos quanto ao que calam Enquanto abundantes a respeito da visão da sarça ardente por Moisés no Horeb o relato freudiano nada diz do Madianita inspirado que ele distinguiu do majestoso egípcio nada do Horeb e da sarça ardente signo queimado e queimante nada da palavra dada pelo Deus que se retira Menciona apenas o interdito do nome de Deus tabu primitivo GW 139 Esta regra de fato muito pouco observada tem no Moisés um lugar muito secundário não é aí senão uma particularidade o que era a circuncisão entre os Egípcios antes que o êxodo fizesse dela a lei da inscrição Pg 331 Ora a elisão freudiana tem aqui um valor técnico suprime a voz vogal que não se pronuncia o e mudo e que apenas se escreve Ehyeh diz o versículo do Êxodo um tempo que é o não cumprido o futuro continuado Eu serei quem serei66 O fim do nãoreceber O nome Yahvé diz que nada é dizível senão pela ordem não se aproxime afastate e vá vaite daqui67 Da mesma forma o tetragrama YHWH Yahvé inscreve 65 Jacques Lacan LÉthique de la psychanalyse seminário de 19591960 inédito conferência de 16 de março de 1960 66 Livro do Exodo III 14 Cf por exemplo Michel Allard Note sur la formule Ehyeh aser ehyeh in Recherches de science religieuse t XLIV 1957 p 7986 67 Exodo III 5 e 16 o que se retira Este não é o sacramento de quem está lá nem o significante de alguma coisa outra que estaria oculta por detrás dele mas o vestígio de um recuo Não se pronuncia É o escrito de uma perda a própria operação de se rasurar Não pode ser voz signo do corpo vindo e falando apenas grapho A abstenção da presença falante e do Wesen divino cria o trabalho de escrever Escreveo ora escreveo Que outra coisa te resta fazer A voz tornandose muda conduz à escrita impronunciável Por que é então esta voz muda que Freud elide Por que precisamente esta rejeição Defeito de informação Sem nenhuma dúvida mas esta explicação justa e fácil remete à questão sobre a tradição que Freud repete Algo de fundamental está em jogo neste traçado do Êxodo Freud substitui o Yahvé do Horeb pela circuncisão judaicoegípcia As duas inscrições representam o mesmo papel decisivo de se articular com o real e aí porque não se trata mais de palavra não pode haver nem quiproquo nem dois no mesmo lugar Por que então esta substituição Ela se indica daquilo que a circuncisão marca mas não diz no seu texto Freud é judeu Eu não sou Que posso finalmente compreender deste outro sem o qual eu não seria cristão e que me escapa por estar atrás o inacessível necessário o recalcado que retorna Tudo se passa como se ao Moisés egípcio que se tornou o Judeu com uma reviravolta a mais no quiproquo já que ele é Judeu de origem e egípcio de cultura correspondesse o Egípcio judeu que eu sou minha cultura deve o que é ao outro que ela rejeitou e que retorna na minha linguagem Isto não é mais o texto que diz o quiproquo e a comédia do meu nome descubro na prática de sua leitura a relação Moisés egípcio que nos compreende e se inverte de um para o outro Pareceme que entre estas duas inscrições se cala uma diferença repetida por duas tradições e esboçadaocultada assim a circuncisão marca o corpo o grapho Yahvé marca a linguagem o corpo lingüístico Uma subtrai sua autonomia à opacidade não falante de um real vivido como continuidade do sangue o outro contraria a transparência do ser no sentido Uma é anterior a toda linguagem atinge o infans como o êxodo precede Pg 332 a tradição que ele organiza desde o início Weil ich Judewar diz Freud para explicar como sua história se construiu68 O grapho yahvista designa de antemão a impossibilidade de uma obediência à verdade do ser69 68 Porque eu era judeu Alocução aos membros do Bnai Brith 6 de maio de 1926 GW XIII 52 69 Emmanuel Levinas Totalité et Infini Niihoff 1971 p 17 a propósito de Heidegger e da história ocidental O romance da história Eu me arrisquei no texto freudiano com uma demanda de historiador Ele fala uma língua que me é familiar aquela que com uma ironia modesta ele atribui aos pesquisadores qualificados aos historiadores Na verdade ele a adota Praticaa com um sotaque estrangeiro como um homem vindo de alhures Este desvio entre a língua o lugar e o procedimento indica a entrada da bailarina Deslocado onde está de passagem este Moisés egípcio desloca minhas questões As lacunas que apesar de mim pensava poder completar lendoo ele não as preenche Cria outras Elas são fundamentais na medida em que questionam o lugar de onde a historiografia se autoriza o território do qual ela é o produto textual Com efeito nutrida por uma filosofia que não confessa nossa historiografia concebe por sua vez a relação com outrem como que se jogando no destino dos povos sedentários possuidores e construtores da terra Segundo este logos do desvelamento dó ser transformado em compreensão dos fatos históricos a posse é a forma por excelência sob a qual o Outro se torna o Mesmo tornandose meu70 Ora estas produções obedientes à lógica do lugar e do nome instituídas como saber pelo enraizamento num solo71 estão aqui submetidas à deformação Entstellung freudiana O trabalho da diferença transforma o discurso científico e didático da história numa escrita deslocada nela mesma com relação à disciplina quer dizer um romance texto construído num alhures viabilizado por infelicidades e viagens Mas em Freud esta operação não cria outro lugar não coloca o romance num outro campo do que o da história não obedece à lei da espacialização que persegue a alteridade fora ao lado neben num outro lugar fictício diferente daquele que já está ocupado Freud reintroduz o outro no lugar72 É o Moisés egípcio É também o romance histórico já que a ficção Fiktion tem o privilégio de poder como o público faz com o autor chamar hervorrufen à cena ou recalcar hemmen o sentimento de estranheza73 É verdade a historiografia conhece a questão do outro A relação do presente com o passado é sua especialidade Mas ela tem como disciplina que criar lugares próprios para cada um situando o passado num outro lugar do que o presente ou ainda 70 Ibid p17 71 Sobre este postulado do lugar na construção da historiografia cf supra cap II e V 72 Cf Der Familienroman der Neurotiker 1909 GW VII 229 73 Das Unheimliche GW XII 266 supondolhe a continuidade de Pg 333 uma filiação genealógica sob a forma da pátria da nação do meio etc está sempre o mesmo sujeito da história Tecnicamente postula sem cessar unidades homogêneas o século o país a classe o nível econômico ou social etc e não pode ceder à vertigem que o exame crítico destas frágeis fronteiras provocaria ela não o quer saber Por todo seu trabalho fundado nestas classificações supõe a capacidade que tem o lugar onde ela própria se produz de dar sentido pois as distribuições institucionais presentes da disciplina sustentam em última instância as repartições do tempo e do espaço Sob este ponto de vista político na sua essência o discurso histórico supõe a razão do lugar Legitima um lugar o de sua produção compreendendo nele os outros lugares numa relação de filiação ou de exterioridade Autorizase pelo lugar que permite explicar como estranho o diferente ou como único o interior Dito de outra maneira ele simplifica o problema da autoridade sustentando que como na história egípcia do modelo freudiano o pai está no próprio lugar que guarda seu nome e que ele autoriza ou que expulso passado e morto não está mais no lugar onde teríamos deixado de ser filhos tomando um outro nome A problemática freudiana do quiproquo e a ficção do seu discurso sem dúvida nos permitem pensar a estranheza que contradiz esta simplicidade e que já está marcada em toda verdadeira história seja com a noção de sobrevivências que não deveriam estar lá e que mais freqüentemente são recortadas num presente como um corpo já estranho passado ou à parte seja com a de estratificações de níveis agindo uns sobre os outros num mesmo lugar De que maneira estas questões abertas e indicadas pela história poderiam ser tratadas através de uma aplicação da psicanálise como diz Freud não é possível examinar aqui Pelo menos em três pontos essenciais do Moisés a religião a história a ficção eu gostaria para terminar de apontar a perspectiva indicada Para Freud o problema religioso é indissociável da sua tradição Esta constitui mesmo a sua especificidade Nenhum progresso está ligado à nesga de território de nossa terra materna Muttererde escreve ele a Zweig nenhuma descoberta nem invenção Diferentemente das nações a Palestina não formou nada além de religiões de extravagâncias sagradas Nós saímos de lá e é impossível dizer o que trouxemos como herança da nossa permanência neste país74 Ao nada do progresso saber capitalizado corresponde uma proliferação da Saga que herança resta ao filho senão 74 S FreudA Zweig Correspondence op cit p 75 carga de 8 de maio de 1932 um nada um êxodo Pois eles saíram para longe Caminham escrevem apanhados entre a dívida e a contestação se é Pg 334 verdade que as viagens e as escritas são assimiláveis a pisoteamentos da terramãe Mutter Erde GW XIV 116 Recebida por Freud como uma expressão da relação da criança com seu pai75 a tradição surge para a criança transformada num ateu natural filha adotiva de um outro tempo e de uma outra sociedade sob a forma da inquietante familiaridade que tem o espectro76 Moisés ou mesmo este Yahvé deus inquietante unheimlicher GW 133 para o qual não existe senão antipatia Esta inquietante familiaridade das Unheimliché me parece a própria herança o que se diz na ficção bíblica e se repete de outra maneira nos Krankengeschichte ou nos romances de Freud Esta herança aliás foi exumada ao mesmo tempo por toda a Escola psicanalítica Em 1919 Theodor Reik via Moisés metade animal metade Deus um matador de Deus o Filho substitui o pai e toma seu lugar escrevia ele mas o Pai retorna como lei quando Moisés é apresentado como mediador77 Em 1920 numa conferência em Viena as relações do deus estranho e do nosso próprio deus lhe forneceriam os termos de uma exposição sobre a inquietante familiaridade lugar da análise78 Eu me pergunto se a tradição religiosa casa hoje abandonada por uma sociedade que não a habita mais não deve ser considerada historicamente a partir das duas proposições susceptíveis de serem extraídas da análise freudiana A primeira Agathon o herói do romance premonitório de Wassermann já a enunciava Eu não sou mais um Judeu e tampouco sou um cristão79 nem um nem outro proposição da contestação do êxodo do corte histórico A segunda é pelo contrário um e outro mas à maneira do quiproquo ou do nome de empréstimo proposição da dívida do retorno e das estranhas deformações que trazem de volta este recalcado religioso sob a imagem de ficções Este fantasma deslocado assombra a nova casa Permanece como aquele que tem direito ao lugar que ocupamos em seu lugar problemática presente de uma história religiosa 75 Cit por E Jones La vie et 1oeuvre op cit t III p 398399 76 Ibid 77 Theodor Reik Le rituel Psychanalyse des rites religieux Denoél 1974 p 327387 Le Moïse de MichelAnge et les scènes du Sinai No seu Prefácio Jacques Hassoun reconhece em Reik um eco no seu próprio discurso reconhecidamente suscitado por este alhuresfamiliar op cit p 14 78 Theodor Reik Le dieu étrange et notre propre dieu Abstract of the proceeding of the 6th International PsychoAnalytical Congress in International Journal of PsychoAnalysis Londres t 11920 p 350 79 Jacob Wassermann Les Juifs de Zirndorf PierreJean Oswald 1973 p 227 É precisamente este retorno que faz o objeto das páginas consagradas por Freud à verdade histórica die historische Wahrheit GW 236 que está ligado à religião e posto aí em relação com um fragmento de verdade ein Stückchen Wahrheit GW 239 numa problemática da Lembrança Einnerung certamente deformada entstellte e no entanto justificada berechtigte GW 238 quer dizer deslocada e apesar disto no seu lugar legítimo É a relação da ficção com a história Ficção porque o homem não tem nem gosto Witterung nem inclinação Geneitheit para aceitar a verdade Ela é o que ele cala pela própria prática da Pg 335 linguagem A comunicação é sempre a metáfora do que oculta Verdade entretanto porque tendo direitos neste mesmo lugar algo de infantil infantil GW 236 permanece lá documento infans excluído e construtor da linguagem comunicada a tradição núcleo da verdade histórica Kern von historischer Wahrheit GW 112 marca inscrita e ilegível impressa Ela aparece em Freud sob a forma da circuncisío Zeugnis inscrição que se transcreve verbalmente no paradoxo do Moisés egípcio ou do Aufdruck impressão de estranheza Gefühl sentimento tátil do que é atingido ligado ao Zweifel pegada da partilha Cortes inscritos impressões mudas lei gravada e que não pode ser senão calada80 Que o excluído produza a ficção que o conta através de uma maneira de falar cômica ou trágica eis aí a verdade da história Ela contradiz radicalmente o poder que os discursos didáticos da historiografia consideram que este lugar da verdade ocupa Não fornecem dele senão imagens o verossímil o semelhante Mais exatamente a historiografia Geschichtsschreibung se põe no lugar da tradição an die Stelle der Tradition getreten GW 175 história canibal Ela assimila as tradições para falar no lugar delas a título de um lugar de progresso que autoriza saber melhor do que elas o que elas dizem Mas isto é supor que elas dizem o que sabem É supor também que o que elas sabem não retorna no discurso que se mantém longe dela à distância e se contenta em citálas em juízo De fato a historiografia não é nem mais nem menos verdadeira do que elas Não é verdade que se engana que erra como se se tratasse de desvendar melhor o que aí haveria sob as aparências Freud é avesso à problemática do desvelamento ou da concepção grega egípcia da verdade que supõe a correspondência de um Wesen e de um Name Ele abole como Nietzsche este mundo das aparências criado pelo corte N da T O autor joga com pelo menos dois sentidos da palavra empreint impresso e pegada rastro 80 Sobre esta relação do impresso e do grafado já cf M de Certcau LAbsent de 1histoire Mame 1973 p 177180 a propósito deste outro mito moderno que é Robinson Cruzoe platônico entre a aparência e a realidade entre a opinião e a ciência81 Existe logro porque estes discursos se enganam a si mesmos não confessando a dívida fundamental que na distância eles têm frente ao que calado era no âmago das tradições e nelas permanece sabido A distância a partir da qual a história se constitui não poderia ser negada sem que recaísse na doutrina e na lenda genealógica mas esta distância êxodo do filho e meio da sua vitória no lugar do pai não poderia tampouco impedir o retorno sob um outro nome do recalcado inquietante familiaridade no próprio lugar de uma razão e de Pg 336 uma produção científicas Existem muitas marcas disto Assim para tomar uma das mais evidentes ainda que permanecendo um relato a historiografia guarda este algo de grandioso que caracterizou a religião Com efeito o relato é a totalização impossível Uma razão uma coerência o estabelecimento de um campo não deixa de ser nele conjugada à recusa que ela cria ao se constituir Um e outro o ocupante e o fantasma são recolocados em jogo no mesmo texto a teoria presente reencontra o que de inassimilável retorna do passado como exterioridade colocada num texto Este não pode ser por esta razão senão um relato uma história que se conta Este efeito romanesco fala a relação dos dois oponentes na mesma posição ainda à maneira da justaposição neben mas também já o da cronologização nach É o equivalente historiográfico do Moisés egípcio a ficçãocientífica é a lei da história O romance de Freud é a teoria da ficção científica Ele passa do mito ao romance através do interesse que tem pelo homem Moisés Der Mann Moses diz o seu título Do mito do qual tem a força ao romance houve uma passagem a partir do momento em que o sujeito não podia mais ser pensado como mundo mas como indivíduo e onde como demonstra George Dumézil a propósito da Saga de Hadingus passouse do social ao psicológico82 O romance é a psicologia do mito uma interiorização do conflito dos deuses Mais do que de uma extenuação do mito83 ele nasceu da sua fragmentação e da sua miniaturização Mas repete a cena primitiva no espaço individual criado por um ponto de nãoretorno da história Em Freud como em Defoe ou Kafka na figura psicológica que tomou seu lugar o mito retorna com um trabalho da diferença da morte mas é necessário falar discretamente daquilo que não sabemos com a inscrição 81 Frédéric Nietzsche Crépuscule des idoles La raison dans la philosophie Mercure de France p 103 Cf Philippe LecoueLabarthe La fable literature et philosophie in Poétique nº 1 1970 p 5163 82 Georges Dumézil Du mytheau roman P U F 1970 p 122123 83 Claude LéviStrauss L Origine des manières de table Plon 1968 p 10 ilegível estranheza familiar da dúvida Zweifet e da impressão Aufdruck in analisável84 fragmento de verdade Eu mesmo duvido ter entendido este saber Deixe também marcadas no espaço de um estudo que toma o lugar do de Freud mas que não poderia dizêlo novamente as pegadas estranhas alemãs dos passos da bailarina Mas neste lugar que ocupo sua inquietante familiaridade me lembra a palavra de um outro Jean Cavaillès que considerava o progresso da ciência como uma perpétua revisão dos conteúdos por aprofundamento e rasura85 Pg 337 Pg 338 a 345 Notas Digitalização revisão e formatação Uther Pendragon Dayse Duarte Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprála ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler Dessa forma a venda deste e book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância A generosidade e a humildade é a marca da distribuição portanto distribua este livro livremente Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras httpgroupsgooglecombrgroupdigitalsource httpgroupsgooglecomgroupViciadosemLivros 84 Hélène Cixous La fiction et ses fantômes Une lecture de lUnheimliche de Freud in Poétique n 10 1972 p 216 85 Jean Cavaillès Sur la logique et la théorie de la science P U F 2ª ed 1960 p 78