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Texto de pré-visualização

GRAÇA ARANHA CANAÃ CANAÃ GRAÇA ARANHA CANAÃ 2ª Edição A68c Copyright 2002 by Ediouro Publicações SA Direitos cedidos pela Fundação Graça Aranha Coordenação Editorial SHEILA KAPLAN Preparação de Originais MARIA J OSÉ DE SANT ANNA Produção Editorial CRISTlANE MARINHO Assistentes de Produção J ULlANA FREIRE FELIPE SCHUERY CHRISTlANE CARDOZO E GILMAR MIRÂNDOLA Revisão RITA GODOY E FLAVIO MELLO Fotogrcifias HUMBERTO CAPAI Capa Projeto Gréifico e Editoração MIRIAM LERNER Imagem da Capa Domingo Garcia y Vásquez Paisaaem com rio c 1900 Óleo sobre tela 25 x 35 em 04 Gerência de PCP LUCIENE BAPTISTA Produção Gréifica J AQUELlNE LAVÓR CIP BRASIL CATALOGAÇAONAFONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ Aranha Graça 18681931 Canaã Graça Aranha prefácio de Renato Pacheco Ed anotada e ilustrada Rio de Janeiro Ediouro 2002 n Edição comemorativa do centenário da primeira edição ISBN 8500010509 1 Romance brasileiro l Pacheco Renato 1928 lI Título 020510 CDD 86993 CDU 8690813 876 5 43 2 Todos os direitos reservados ü Ediouro Publicações Ltda Rua Nova Jerusalém 345 Bonsucesso Rio de Janeiro RJ CEP 21042230 Te 021 38828200 Fax 21 38828212 I 8313 wwwediourocombr Prefácio e agosto de 1960 a agosto de 1964 vivi em Santa Leopoldina ES antigo Porto do Cachoeira ombro a ombro com os descendentes daqueles lusobrasileiros e imigrantes de origem germânica e italiana tão bem descritos por Graça Aranha no Canaã Embebime do ambiente e ele me enfeitiçou A época a região atra vessava um dos seus piores momentos fruto da decadência que se acen tuara desde a crise de 29 culminando em mais uma das grandes en chentes periódicas do rio Santa Maria desta feita em março de 1960 Naquele tempo no Espírito Santo havia um pequenino círculo de admiradores do romance de Graça Aranha o desembargador Eurípedes Queiroz do Valle presidente da Academia Espíritosantense de Letras o promotor de justiça Luiz Holzmeister o professor Guilherme Santos Neves o médico e escritor Ciro Vieira da Cunha o também médico Cristiano Ferreira Fraga e sobretudo o advogado Augusto Emílio Este lita Lins autor da mais importante obra sobre o assunto Graça Aranha e o Canaã A eles aderi entusiasticamente quando do centenário do nasci mento do escritor maranhense em 1968 juntandose a nós no Rio de Janeiro os membros da Fundação Graça Aranha com o ministro Renato 7 GRAÇA ARANHA Almeida à frente bem como o advogado Clóvis Ramalhete futuro mi nistro do Supremo Tribunal Federal e o jornalista Theomar Jones Tentei mesmo sem maior êxito dar continuidade à história com meu romance Fuga de Canaã em que estudo a decadência de uma família ale mã no Espírito Santo romance editado em 1981 pela Fundação Ce ciliano Abel de Almeida e transformado em filme pelo cineasta Sérgio Medeiros Sem maior êxito reafirmo porque outros eram os tempos e o livro de Graça Aranha em sua singularidade é insuperável Por tais motivos com imensa satisfação participo deste trabalho con junto da Ediouro e do Programa de PósGraduação em Letras da Uni versidade Federal do Espírito Santo para no ano do centenário da pri meira edição do Canaã lançarmos esta edição comemorativa anotada e ilustrada do clássico romance O leitor verá que muitos problemas versados em forma de ficção nos primórdios da República especialmente referentes à organização política e também judiciária do país ainda nos afligem nos dias iniciais do Século XXI Poderá ainda apreciar as elevadas preocupações filosóficas e o alto nível estético da obra O autor procurou trazer para seu romance as idéias modernas de então o que confirma sem favor algum a opinião antiga do crítico José Veríssimo de que se trata de um grande escritor Vitória do Espírito Santo junho de 2001 Renato Pacheco da CulturalES pesquisador associado do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espirito Santo Programa de PósGraduação em Letras Universidade Federal do Espirito Santo 8 Canaã Romance Singular INTRODUÇÃO 1 o cenário mbora o incentivo ao povoamento das terras virgens do Brasil com estímulo à imigração de mãodeobra livre tenha ocorrido logo após a vinda da família real portuguesa para nosso país em 1808 somente de 1841 em diante é que com verbas orçamentárias próprias tal apoio se tornou efetivo Estes imigrantes passaram a chamarse genericamente de colonos por extensão aos que viessem trabalhar em fazendas como par ceiros notadamente nas fazendas de café em São Paulo O governo cen tral empreendeu então criar colônias imperiais no Rio Grande do Sul Santa Catarina Paraná Espírito Santo e Bahia A preocupação com a imi gração se acentuou com o fim do tráfico de escravos e a vontade política de que fossem ocupadas as grandes áreas devolutas isto é terras perten centes ao governo No caso do Espírito Santo que estamos examinando 90 do território eram cobertos por exuberante floresta da Mata Atlântica Sua região cen tral tem relevo montanhoso solo oriundo de rochas cristalinas bom suprimento de água muitas cachoeiras e estreitos e férteis vales Estes 9 GRAÇA ARANHA solos no entanto são ácidos e pobres e se não forem convenientemente trabalhados são invadidos por samambaias Em 1857 o presidente da província Pereira de Barros mandou fazer grandes derribadas e queimadas nas áreas escolhidas para abrigar os imi grantes e como havia dificuldade de mãodeobra capaz de enfrentar a flo resta virgem usou para a abertura de picadas e definição de lotes índios moradores de Santa Cruz no litoral norte da província A medição dos lotes ou prazos porque o ressarcimento de seu preço era feito a prazo geralmente de 25 a 30 hectares era feita de modo precário por agrimensores práticos com correntes de ferro de 10 a 30 metros o que na ultrapassagem de obstáculos como córregos ou pedras causava grandes diferenças objeto de futuras controvérsias legais entre os compradores O barão suíço Tschudi em Relatório de 1860 chega a informar que alguns agri mensores fixavam as parcelas a olho nu declarando que alguns colonos de suas 62500 braças só haviam recebido 6000 a 8000 braças quadradas o que é confirmado pelo Relatório do Ministério da Agricultura de 1867 A despeito de enormes dificuldades iniciais muitos colonos graças ao plantio do café em terras novas prosperaram Esta prosperidade se refletiu entre os comerciantes do Porto do Cachoeiro hoje Santa Leopoldina que tinha uma longa rua do Comércio de cerca de um quilômetro à beira do rio Santa Maria da Vitória O frnanciamento aos agricultores rendia por tentosos lucros aos comerciantes que enriqueceram em sua quase totali dadeAo tempo de Graça Aranha eram eles entre outrosAlberto Sebastião WoIkart Luiz Holzmeister Franz Meyer Frederico Ewald João Vervloet e Inácio Bermudes Este município muito florescente em 1890 se originara da colônia Santa Leopoldina antes chamada de Santa Maria nome do rio que lhe banha as terras e foi a segunda colônia criada na então província do Espírito Santo através do Aviso de 27 de fevereiro de 1856 do Ministério do Im 10 período o Ministério da Agricultura só foi criado em 1860 No ano de 1860 de volta de sua viagem de inspeção às províncias do norte o imperador Pedro II também visitou o Espírito Santo e suas florescentes colônias Em Santa Leopoldina após a tradicional recepção com fogos de artifício missas e banquetes o imperador enquanto lhe encilhavam os cavalos conversou em alemão com filhas dos colonos as quais para renderlhe homenagem dançaram uma valsa ao som de uma gaita de fole Em seu Diário o jovem imperador registrou que ficara satisfeito com esta festa inocente Em 1879 já contava a colônia com cerca de 7000 habitantes e uma produção de café estimada em 100000 arrobas anuais sendo depois de Blumenau e Dona Francisca em Santa Catarina a maior colônia imperial A emancipação de Santa Leopoldina já então adotando o nome de Porto do Cachoeiro se deu em 1884 Em 24 de dezembro de 1889 pouco após a instalação do governo republicano foi instalada a comarca por ordem de um filho da terra o primeiro presidente republicano do Estado Afonso Cláudio de Freitas Rosa É neste cenário às margens do rio Santa Maria em meio a estreitos vales entre elevadas montanhas que José Pereira da Graça Aranha o jovem juiz municipal vai viver de agosto a novembro de 1890 2 O autor Quem era José Pereira da Graça Aranha que aos 22 anos vinha ser juiz municipal na zona de colonização teutoitaliana das montanhas centrais do Espírito Santo Ele nascera em São Luís do Maranhão em 1868 Aluno e seguidor de Tobias Barreto na Faculdade de Direito do Recife absorveulhe as idéias filosóficas e nunca se separou dele intelectualmente GRAÇA ARANHA Muito jovem ainda aos 18 anos fora professor de direito e logo de pois de formado promotor público em Guimarães e Rosário e juiz de direito em Vitória e Arari localidades todas essas no Maranhão nos anos de 1886 a 1889 e em Campos RJ Para o Porto do Cachoeiro foi nomeado em 1890 como juiz muni cipal com atribuições na área de inventários órfãos e preparo de proces sos criminais Passou a ser subordinado hierarquicamente ao juiz de direito no caso Domingos de Andrade Com a ressalva de que algum processo se tenha extraviado ou per dido verificamos na comarca de Santa Leopoldina que Graça Aranha lá esteve de 11 de agosto a 25 de novembro de 1890 pouco mais de três meses Seus despachos são manuscritos simples e salvo os dias de via gens ao interior para abertura de arrolamentos são no máximo 4 por dia com a curiosidade de que alguns foram dados em domingos Ao maranhense causou espécie a grande movimentação da próspera cidade então centro comercial importante porque ponto final das tropas de burros que traziam café de vasta região que se estendia oeste adentro até o rio Doce em Minas Gerais do Porto do Cachoeiro o produto era conduzido pelo rio Santa Maria em grandes canoas até o porto maríti mo de Vitória A deduzir da leitura do Canaã no qual o juiz municipal Paulo Maciel é o alter ego do autor Graça Aranha não se deu bem com seus colegas nem com os serventuários da Justiça Com pouco tempo no dia 28 de novembro o escrivão interino Francisco Pereira das Neves informou nos autos que a Justiça Pública movia contra João Dumer e outros que o juiz municipal tinha sido chamado a serviço público à capital do Estado Não mais voltou ao cargo não tendo sido encontrado ato de sua exoneração O que teria acontecido com o jovem magistrado O que teria impeli do Graça Aranha a deixar inopinadamente seu cargo de juiz municipal 1 2 Possivelmente duas querelas processuais Primeiro a pressão para que não tivesse andamento o inventário de Manoel Pinto dAlvarenga Rosa da família do presidente do Estado no qual havia diversos pedidos conflitantes e no qual contra as solicitações gerais o juiz municipal em 19 de novembro nomeara curador na pessoa de Manoel Lírio de Sales farmacêutico da cidade Esta decisão seria em 4 de novembro do ano seguinte anulada pelo suplente de juiz substituto Joaquim SantAna de Passos O segundo caso mais grave ocorreu no inventário de Simão Walker em que era inventariante Ana Gonring Walker No dia seguinte à assunção no cargo Graça Aranha ouvindo pessoas idôneas a saber João Vervloet José Gregório Silva e Luiz Holzmeister julgou boa a justificacão da venda de um lote de terra o que em tom de censura foi anulado com ordem de sobrepartilha às fls 42 v dos autos também a 19 de novembro pelo juiz de direito Domingos Marcondes de Andrade O prolator da decisão anulada com letra tremida na mesma data deu um despacho em tempo mandando avaliar o lote e determinou se cumprisse a decisão que contraria seu prévio entendimento Deixa a comarca abespinhado e sua exoneração do cargo só ocorreria em 19 de janeiro do ano seguinte quando no Espírito Santo ele não mais estava A nosso ver essa briga notória com seu superior foi um bem pois tirou o jovem bacharel da judicatura lançandoo na diplomacia e na literatura e dando origem ao Canaã editado 11 anos após na França GRAÇA ARANHA 3 E o que tinha de acontecer acontecia Canaã é um romance de entrecho simples Milkau e Lentz são dois imigrantes alemães que resolvem trabalhar na zona rural da colônia imperial de Santa Leopoldina na província do Es pírito Santo Em suas conversas relembram diversos passos de suas vidas e travam acalorados debates envolvendo o futuro da colônia e do Brasil Em um baile da roça Milkau se encanta com Maria Perutz bela colona a qual vai encontrar novamente caída em desgraça grávida e alojada em uma pensão por favor trocando casa e comida por seu trabalho O drama da moça é relatado no romance Quando a criança nasce e morre ao lado de um chiqueiro Maria é presa e processada por infanticídio Milkau não se conforma com o que considera injustiça e consegue tirar a moça da cadeia fugindo com ela para as montanhas ouvindo o marulhar dos cachoeiras e com a promessa de nova vida baseada no amor O livro portanto além de suas reflexões filosóficas e análises socioló gicas contém um segundo romance dentro do romance que será objeto de nosso interesse nesta seção Maria Perutz no romance Guilhermina Lübke na realidade era uma jo vem de 23 anos criada ou seja empregada doméstica em casa de Fre derico Küster no distrito de jequitibá Na madrugada de 3 de agosto de 1889 deu à luz sem qualquer assistência uma criança do sexo masculino jamais se poderá saber se a criança nasceu viva ou morta diante da fraque za das provas existentes nos autos No romance Graça Aranha dáa como nascida viva e morta pelos porcos na clássica seqüência do capítulo nono Hitta Küster filha do patrão de Guilhermina de 16 anos indo procu rar um ninho de pato encontrou junto a um chiqueiro o cadáver de uma criança recémnascida sobre umas pedras e deixando o mesmo no esta do em que o tinha visto correu e foi dar parte a sua mãe 14 CANAÃ Henriqueta a mãe de 54 anos natural da Prússia imediatamente cha mou a mulher do vizinho Rodolfo Stuhr assim como Carlos Nink e sua mulher para verificar a ocorrência no local referido pela filha Nink escolhido para retirar o corpinho que jazia entre as pedras notou que ele tinha no pescoço rolos de ramas de capoeira e a seguir deposi touo dentro de um caixão cobrindoo segundo depoimento de sua esposa Augusta prussiana de 49 anos com umas pedras para não ser o cadáver estragado pelos animais Stuhr foi encarregado de comunicar o fato ao subdelegado Luiz Manoel dos Passos Ferreira o qual de imediato nomeou peritos nas pessoas de João Pereira da Conceição residente no Recreio e de Guilherme Hasenack pastor luterano de Jequitibá atuando como testemunhas Ernesto Berger e o denunciante Às nove horas da noite do mesmo dia procedeuse à perícia tendo o laudo assinalado a presença de cadáver de uma criança recémnascida a trinta passadas de distância da casa de Küster a qual estava dentro de um caixão e nas proximidades de um chiqueiro de porcos era de cor branca do sexo masculino e estava com uma corda no pescoço e a cabeça esma gada Os peritos concluíram que a morte se dera por violência com estrangulamento com uso de corda Ouvida Guilhermina Lübke como suspeita de infanticídio declarou ainda na fase policial ser criada natural da Alemanha mais tarde diria ter 23 anos de idade e informou que botou um cipó no pescoço da criança a fim de participar à mulher de Küster e que não enterrou o cadáver a boas horas porque tinha temor do dono da casa Quatro dias depois foi concluído o inquérito policial tendo sido re metido então ao juiz municipal em Vitória pois ainda não fora criada a co marca de Porto do Cachoeiro O juiz Martins Rodrigues em 19 do mes mo mês de agosto deu visita do inquérito policial ao promotor Manoel I Pedro Vilaboim que ofereceu denúncia contra Guilhermina Lübke no dia 2 de outubro seguinte data em que o mesmo juiz municipal determinou se fizesse o sumário de culpa Entrementes foi proclamada a República e criada a comarca na antiga colônia O processo dormiu longo sono cartorário como que esperando que Graça Aranha entrasse em cena No dia 18 de agosto de 1890 foram conclusos os autos e daí para a frente o processo andou celeremente o promotor Antônio Buarque dos Reis pedira a máxima brevidade na inquirição das testemunhas pressionado talvez pelos líderes comunitários como se deduz do texto do romance A 26 de agosto sob a presidência de Graça Aranha foi qualificada a denunciada que se declarou analfabeta natural da Pomerânia e filha de João Lübke Na mesma data e no dia seguinte foram ouvidas as testemunhas já referidas no inquérito Pedro Alexandrino Mascarenhas foi nomeado curador da acusada a qual tendo como intérprete o cidadão Vítor Hugo foi finalmente interrogada a 16 de setembro seguinte Nesta peça processual declarou que seu filho nascera morto não se lembrando das circunstâncias em que se dera o parto por causa das muitas dores que lhe sobrevieram Não estão aí a mão e a mente do escritor penalizado com a situação da acusada traduzindo para o português a pobreza vocabular pomerana da jovem analfabeta O curador em sete laudas manuscritas em letra miúda em papel azul de forma romântica e passional porém convincente examina a prova e conclui por haver nascido morto o filho de sua curatelada A despeito da vibrante defesa Graça Aranha em despacho lacônico não fundamentado como se novo Pilatos lhe desagradasse não absolver uma inocente mandoua lavando as mãos a julgamento do Tribunal do Júri da comarca Seu recurso exofficio dentro da processualística da época foi negado pelo juiz de direito Domingos Marcondes de Andrade em despacho do dia 14 de CANAÃ novembro e logo no dia seguinte foi marcado o julgamento que não se realizou em virtude do impedimento de vários jurados O processo que estivera parado por mais de um ano agora em um mês e seis dias apesar de ser de difícil preparo por causa da barreira lingüísti ca e numa época em que não havia estradas viu seu rápido término fican do pronto para julgamento Graça Aranha toma as medidas burocráticas para a realização do novo julgamento e lavra seu derradeiro despacho nos autos em 24 de novembro e deixa como já vimos a comarca Ficou no entanto em sua memória a figura da jovem Guilhermina que a sua imaginação fértil iria transformar na imortal Maria Perutz Ele mesmo o confessa ao se defender da acusa ção de que plagiara a cena dos porcos de um conto de Júlia Lopes de Al meida em carta a José Venssimo datada de Londres 22 de maio de 1902 uma vez eu estava numa audiência e assisti processarse uma pobre mu lher por ter lançado aos porcos o filho no momento de nascer A acusação era clara a defesa obscura mas essa mulher pôs em mim olhos de um ape lo de misericórdia e de piedade que ainda tenho e terei toda a vida sobre mim esse olhar Acreditei na sua inocência e quando tive de escrever a ce na do Canaã o meu amor a minha compaixão reabilitava a ignorada víti ma que talvez esteja por aí em alguma prisão pagando um crime de que a minha emoção a declara inocente Essa é a fonte de minha inspiração O julgamento se realizou no dia 1 O de dezembro seguinte tendo a ré sido absolvida por seis votos contra um No dia 17 de fevereiro seguinte o juiz de direito apelou da decisão para o Superior Tribunal da Relação no Rio de Janeiro então Distrito Federal Lá o procurador interino Seves Navarro em longo parecer embasado nos conhecimentos mais atuais da medicina legal opinou pela manutenção da absolvição o que foi aceito pelos magistrados firmandose o v acórdão em 30 de junho do referido ano de 1891 1 7 Somente a 28 de março de 1892 foi determinado se oficiasse ao secretário de Justiça e Segurança Pública em Vitória onde se encontrava presa a ré para que a pusessem imediatamente em liberdade isso quase três anos depois de sua prisão Nenhuma notícia se conseguiu desde então sobre o destino de Guilhermina Lübke mas por certo ela se incorporou ao contingente das criadas da capital vivendo anonimamente sem a grandeza do retrato simbolista que dela faz o escritor maranhense 4 O livro e a crítica Depois que saiu abruptamente do Porto do Cachoeiro Graça Aranha partiu para a realização de seu elevado destino O ano de 1891 é uma incógnita em sua vida e passa em branco na biografia conhecida do autor Renato Almeida amigo de Graça Aranha e estudioso de sua obra nos confidenciou faz quase 50 anos que o escritor esteve naquele ano como hóspede de seu tio o gramático Heráclito Graça morador no bairro de Santa Teresa no Rio provavelmente escrevendo o primeiro esboço do Canaã e fazendo com a coragem e inteligência de sua juventude o círculo de amizades que lhe foram extremamente valiosas no futuro Um desses amigos foi Joaquim Nabuco que Graça Aranha conheceu na Revista Brasileira e que o tratava como a um filho tendolhe essa amizade valido o ingresso na carreira diplomática O livro deve ter sido concluído em Londres quando Graça Aranha foi secretário de Nabuco na missão relacionada com a Guiana Inglesa por entre névoas e fumaça tendo como perspectiva telhados e chaminés ocasião em que evocou a luz a cor e a magia florestal do Brasil CANAÃ A prova da longa elaboração é que Joaquim Nabuco pondo fé na obra em construção indicou o seu autor como um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras o que foi aceito por seus pares provocando muita inveja entre os intelectuais da época Neste ano de 1897 sob o pseudôni mo de Flávia Amaral Graça Aranha publicou na Revista Brasileira alguns trechos do livro e no ano seguinte na mesma revista com o mesmo nome feminino publicou Imolação também incluído mais tarde no Canaã O Canaã entrou no prelo em Paris a 9 de fevereiro de 1901 e segun do informa Afrânio Coutinho foi lançado no Brasil pela Editora Garnier em 1902 A obra é predominantemente simbolista em sua estrutura mas tem muito do romantismo ao tratar da paixão de Milkau por Maria e do rea lismo à Zola quando relata o nascimento do filho da heroína Seu fecho é um novo delírio simbolista quando a jovem é retirada da cadeia inician do o casal a desesperada fuga em direção à terra da promissão e do amor Canaã é também documento social poema em prosa debate filosófico num caos que só a inquieta inteligência do autor no dizer de Josué Montello poderia superar tornandoo de característica universal sem dúvida um romance singular Como já tem sido acentuado pela crítica o autor foi influenciado pelas idéias da época e entre elas a da inferioridade do brasileiro Ao descrever o guia que leva Milkau ao Porto do Cachoeiro chamao de rebento pena do de uma raça que se ia extinguindo sob a influência do coronel desca labro da raça O agrimensor cearense Felicíssimo é ridicularizado quan do embriagado pede aos colonos que se divirtam com a dança brasileira Obra sociológica chamoua Gilberto Freyre em Graça Aranha que significa para o Brasil de hoje na edição do centenário de nascimento do autor Porém nela é necessário separar o que se pode considerar como fruto de observação participante daquilo que é oriundo de elucubração GRAÇA ARANHA filosófica à luz de Tobias Barreto e através dele de Empédocles Darwin Nietzsche Schopenhauer assim como um conjunto de variações estéticas de um poeta em prosa de invulgar poder criativo A crítica o recebeu de braços abertos José Veríssimo amigo e admirador disse Este livro estréia como não me lembro outro em nossa literatura é a revelação nela de um grande escritor Novo pelo tema novo pelo estilo Canaã é a primeira e única manifestação benemérita de apreço das novas correntes intelectuais e so ciais que por toda a parte estão surgindo na literatura e na arte É ver dadeiramente superior esse é o primeiro romance de seu gênero no Brasil e em Portugal Estudos de literatura brasileira S série p 30 Sílvio Romero rival do anterior não viu o livro tão favoravelmente e faz pesada crítica ao autor Ao exaltar Euclides da Cunha que se deitou obscuro e acordou célebre diz que outros escritores inclusive Graça Aranha que se formaram e cresceram a seu lado não merecem idêntica avaliação a despeito das belas carreiras diplomáticas que de anos a esta parte têm andado a fazer História da literatura brasileira S2 volume Rio José Olympiolnstituto Nacional do Livro 7 ed 1980 Na mesma obra inclui Graça Aranha com Raul Pompéia na corrente que chama de psico logismo idealista com tendências simbólicas colocandoo em segundo plano entre os novos autores Mas confessa Canaã a despeito da incon veniência da maior parte dos tipos que o autor põe em ação contém páginas descritivas de mérito Op cit p 1777 1807 1809 e 1820 Mais recentemente Roberto Schwarz em A sereia e o descorifiado en saios críticos Rio Paz e Terra 2 ed 1981 considera Canaã um roman ce malsucedido por não solucionar o que propõe p 31 Diz mais que a obra foi revolucionária entre nós pela intenção uma novidade pois não havíamos tido ainda o romance de idéias conceitualmente era retró grada herdeira atrasada e chocha do vitalismo alemão p 32 Quanto 2 0 CANAÃ ao célebre diálogo entre Milkau e Lentz declarao grotesco p 33 ca racterizado por Lúcia Miguel Pereira como sendo o choque das posições de Tolstói e Nietzsche Do mesmo teor é o estudo de José C Garbuglio O universo estéticosen sorial de Graça Aranha São Paulo Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Assis 1966 que examina em profundidade as limitações e contradi ções da obra com a idéia obsessiva da unidade cósmica oriunda do monismo naturalista divulgado por Haeckel e aprendido por Graça Ara nha com Tobias Barreto nos bancos da Escola do Recife Daí por que Canaã se desenvolve à feição de longa sinfonia cuja linha melódica cen tral repousa no princípio de concordância homemuniverso integração que tem no amor sua força motriz p 49 Em 1910 o livro foi editado na tradução de Clément Gazet em francês pela editora Plon com prefácio do conde Prozon e logo granjeou elogios de luminares europeus como Guglielmo Ferrero e Paul Claudel Não se disse tudo Mas digase o que se disser na síntese de Ronald de Carvalho Canaã é o poema das raças novas que se vêm fundir com a na cionalidade já esboçada Milkau e Lentz representam a ideologia européia em face do tumulto americano 5 Depois do Canaã utor consagrado de obra única Graça Aranha continuou por mais vinte anos na diplomacia brasileira como ministro na Noruega Holanda e França Em 1911 publicou a peça Malazarte teatro de tese em que muitos viram influências de Goethe ou Ibsen súmula do pensamento estético do autor Seus desafetos no Brasil perguntavam Que fez Graça Aranha em Paris E respondiam Fez mal às artes 2 1 GRAÇA ARANHA Durante a Primeira Guerra Mundial 19141918 foi intensa a sua atividade para que o Brasil entrasse no conflito a favor dos Aliados contra os Impérios Centrais Voltando à nossa terra publicou a Estética da vida obra que trouxe o modernismo da Europa tentativa de ser um preâmbulo literário a uma política de renovação nacional Álvaro Moreyra As amarBas não Rio Lux si d p 142 narra Graça Aranha abriu o primeiro programa da Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal da capital artística do Brasil com estas palavras Para muitos de vós a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos hoje é uma aglomeração de horrores Aquele Gênio supliciado aquele homem amarelo aquele carnaval alucinante aquela paisagem invertida se não são jogos de fantasia de artistas zombeteiros são seguramente des vairadas interpretações da natureza e da vida Não está terminado o vosso espanto Outros horrores vos esperam Daqui a pouco juntandose a esta coleção de disparates uma poesia liberta uma música extravagante mas transcendente virão revoltar aqueles que reagem movidos pela força do passado Para estes retardatários a arte ainda é o belo Como se tratava do autor de um livro que muitos tinham lido e muitos conheciam de nome Graça Aranha conseguiu silêncio durante e as palmas no fim não se mis turaram com barulhos diferentes A pateada principiou com VillaLobos Em 1925 depois do beauBeste do desligamento da Academia Brasileira de Letras Graça Aranha publicou O espírito moderno A viaBem maravilhosa é de 1930 e O meu próprio romance memórias ficou inacabado e foi publica do postumamente em 1931 Graça Aranha faleceu em 26 de janeiro daquele ano sempre batalhando pela renovação nacional pois achava que a tragédia fundamental da exis tência está nas relações do espírito humano com o universo a ser conce bido esteticamente coisa que não acontecia entre nós 2 2 CANAÃ Temos segundo ele de vencer a natureza sua metafísica sua inteligên cia Não nos podemos deixar esmagar pela natureza Embora tais formu lações não fossem aceitas pelos seus jovens seguidores houve um influxo favorável do homem de ação de personalidade marcante para que com sua adesão à revolta das novas gerações literárias estas se sentissem for talecidas em sua luta por um novo Brasil O universo disse Graça Aranha em A viagem maravilhosa deixa de ser espetáculo transformase em vida quando a energia do amor o conquista para a viagem maravilhosa que realizamos nos espíritos e nas cousas Rio Garnier 1929 p 173 Graça Aranha sem favor algum foi um grande escritor brasileiro e estava realmente interessado na melhoria de nossa vida intelectual embo tada por questiúnculas entre escritores As paisagens do Maranhão a forte influência de Tobias Barreto no Recife o impacto da Mata Atlântica quando de sua judicatura no Espírito Santo e depois sua vivência na Europa deramlhe ampla visão do que para ele era a maior missão de sua vida a renovação estética do Brasil Se falhou foi porque o país é muito grande e caótico e de nada valeram as boas intenções e o esforço do escritor maranhense Seu trabalho no entanto não pode ser esquecido e conquanto muitos modernistas não o considerem um verdadeiro modernista sua presença foi marcante para que o país aderisse às novas idéias Coubelhe defender a formação do novo homem que surgiria da mis cigenação pacífica das raças nesta terra de Canaã terra prometida terra do Brasil Em suas mãos leitor amigo Canaã singular romance brasileiro 2 3 I M ilkau cavalgava molemente o cansado cavalo que alugara para ir do Queimado à cidade do Porto do Cachoeiro no Espírito Santo2 Os seus olhos de imigrante pasciam na doce redondeza do panorama Nessa região a terra exprime uma harmonia perfeita no conjunto das coi sas nem o rio é largo e monstruoso precipitandose como espantosa tor rente nem a serra se compõe de grandes montanhas dessas que enterram a cabeça nas nuvens e fascinam e atraem como inspiradoras de cultos tene brosos convidando à morte como a um tentador abrigo O Santa Maria3 é um pequeno filho das alturas ligeiro em seu começo depois embaraçado longo trecho por pedras que o encachoeiram e das quais se livra num ter rível esforço mugindo de dor para alcançar afinal a sua velocidade ardente e alegre Escapase então por entre uma floresta sem grandezas insinuase no seio de colinas torneadas e brandas que parece entregaremse compla centes àquela risonha e úmida loucura Elas por sua vez se alteiam gra ciosas vestidas de uma relva curva que suave lhes desce pelos flancos como túnica fulva envolvendoas numa carícia quente e infinita A solidão for mada pelo rio e pelos morros era naquele glorioso momento luminosa e calma Sobre ela não pairava a menor angústia de terror Absorto na contemplação Milkau deixava o cavalo tomar um passo indolente e desencontrado a rédea caía frouxa sobre o pescoço do animal que balançava moroso a cabeça baixando de quando em quando as pálpebras pesadas e longas sobre os olhos viscosos Tudo era um abandono preguiçoso um arrastar lânguido por entre a tranqüilidade da paisagem Os humildes ruídos da natureza contribuíam para uma voluptuosa sensação de silêncio A aragem mansa o sussurro do rio as vozezihas dos pequeninos insetos ainda tornavam mais sedativa e profunda a inquebrantável imobilidade das coisas Interrompiase ali o ruído incessante da vida o movimento perturbador que cria e destrói o próprio sol nascente vinha erguendose repousado na calmaria da noite e os seus raios não tinham ainda a potência de alvoroçar as entranhas da terra sossegada Milkau caía em longa cisma funda e consoladora Quem não esteve em repouso absoluto não viveu em si mesmo no turbilhão a sua boca proferiu acentos que não percebia hoje sereno ele mesmo se espanta do fluido perturbador que emanava dos seus nervos doloridos e maus As eternas as boas as santas criações do espírito e do coração são todas geradas nas forças misteriosas e fecundas do silêncio Na frente do imigrante vinha como guia um menino4 filho de um alugador de animais no Queimado O pequeno muito enfastiado daquela viagem e do companheiro deixavase conduzir pelo seu velho cavalo Umas vezes soltava uma palavra que ficava morta no ar outras para se expandir resmungava com o animal esporeavao e o fazia galopar descompassado e arquejante Milkau nesses momentos atentava no menino e se compungia diante da tréfega e ossuda criança que era essa rebento fanado de uma raça que se ia extinguindo na dor surda e inconsciente das espécies que nunca chegam a uma florescência superior a uma plena expansão da individualidade E o viajante saía da contemplação surgia do fundo dos seus pensamentos e chamando a si o pequeno Então vens sempre ao Cachoeiro Ah disse o menino como que espantado de ouvir uma voz humana Venho sempre quando há freguês ainda anteontem vim mas desde muito não chegava ninguém de Vitória Também choveu tanto estes dias De que gostas mais da tua casa ou da cidade Da cidade nhor sim Teu serviço em casa de teu pai é só acompanhar os passageiros para o Cachoeiro continuou Milkau no seu interrogatório que despertava e alegrava a criança Esta respondeulhe agora prontamente Ah nhor não Que fazes então A gente ajuda o pai Às vezes de madrugadinha vamos para a pescaria levantar a rede Hoje antes do patrão chegar estávamos já de volta Também foi só cocoroca e um pinguinho Só quatro O rio está escasso Seu Zé Francisco diz que é porque a água está fria mas tia Rita diz que agora é tempo de lua e a mãedágua não deixa o peixe sair O melhor é pescar com bombas mas o subdelegado não consente e a gente tem que se cansar por nada Aí no Queimado vocês não têm carne Ah nhor sim carneseca na venda do pai mas é para a freguesia Nós comemos peixe e quando falta a gente bebe mingau Continuavam a marchar pela estrada adentro A paisagem não variava no desenho apenas o sol começava a incendiar o espaço Milkau fitava com bondade o pequeno guia este sorria agradecido abrindo os lábios descorados mostrando os dentes verdes e pontiagudos como afiada serra mas o rosto macilento se esclarecia com a grande doçura de uma longa resignação de raça Quanto falta para chegarmos meu filho perguntou ainda o viajante Mais da metade do caminho ainda não se avista a Fazenda da Samambaia e de lá à cidade é o mesmo que para o Queimado Tu voltas logo para casa ou queres descansar um pouco Fica até à tarde Oh patrão O pai diz que eu volte já hoje é dia de ir com a mãe fazer lenha após tratar dos animais consertar a rede que a canoa de seu Zé Francisco arrebentou esta madrugada e nós vamos à noite antes da lua aparecer deitar a rede porque hoje se a água estiver quente é noite de peixe O pai disse O imigrante compadecido testemunhava naqueles nove anos do desgraçado a assombrosa precocidade dos filhos dos miseráveis O pequeno animado pela conversa alinhavase garboso no velho cavalo empunhava as rédeas com firmeza fincava as pernas de esqueleto e punha o animal num trote esperto Milkau acompanhava instintivamente essa atividade e os dois assim fugitiva ligação da piedade e da miséria avançavam pelo caminho afora Pouco tempo depois numa curva da estrada o menino apontou para diante e voltandose disse ao companheiro Estamos na Samambaia 5 Lá no alto da colina um casarão pardacento misturavase à bruma azul acinzentada do longe e à medida que Milkau prosseguia o horizonte se ia estreitando o morro na frente tapava a estrada e parecia que esta estirandose num esforço ia morrer sobre ele Os viajantes margeavam ora o cafezal plantado na encosta das colinas ora a roça de mandioca na baixada A terra era cansada e a plantação medíocre ao cafezal faltava o matiz verdechumbo tradução da força da seiva e coloriase de um verdeclaro brilhando aos tons dourados da luz os pés de mandioca finos delgados oscilavam como se lhes faltassem raízes e pudessem ser levados pelo ven to enquanto o sol esclarecia docemente o grande céu e o ar era cheio dos cantos do rio e das vozes dos pássaros que prolongavam a ilusão da madrugada Sentiase ao contemplar aquela terra sem forças exausta e risonha uma turva mistura de desfalecimento e de prazer mofino A terra morria ali como uma bela mulher ainda moça com o sorriso gentil no rosto violáceo mas extenuada para a vida infecunda para o amor Milkau e o guia chegaram a uma porteira que fechava a estrada no trecho em que esta cortava as terras da Samambaia O menino empurrou a cancela e com uma das mãos foi abrindoa enquanto ela rangia com um grito agudo Milkau passou e atrás dele uma pancada surda cerrou a estrada Esta logo ao penetrar nas terras da fazenda descrevia uma curva que abraçava o vale e se aproximava da barranca do rio O caminho barrento pegajoso e úmido cheio de sulcos de carro de boi desprendia um cheiro de lama e estrume Da estrada pelo morro acima o terreno era inculto coberto de matapasto crescido e sobre ele viamse bois agitando com o movimento inquieto das cabeças a sineta que traziam ao pescoço bufando e catando insofridos a erva Desenhavase sob a pele dos pobres animais a rija ossadura Faziamlhes companhia aves de mau agouro anuns que trepavam nas suas costas de esqueletos piando como pássaros da morte Quando Milkau se viu em frente à casa largou esquecidas as rédeas do cavalo e pôsse a mirar em torno O casarão à vista agora era grande e acachapado com uma imensa varanda em volta sem janelas e para onde se abriam as desbotadas portas do interior Fora branco mas estava enegrecido com uma cor parda e desigual aqui e ali o bolor sobre as paredes traçava estranhas e disformes visagens da varanda descia uma escada de madeira já com falta de degraus e com os corrimãos arrancados na frente crescia livre a erva com touceiras de mato rasteiro apenas cortado pelas picadas que levavam da estrada e de outras direções à casa de vivenda Ao GRAÇA ARANHA lado uma capela havia muitos anos fechada guardando no seu silêncio a voz da devoção que por ali passara transformada em ignorado e miste rioso relicário de antigas imagens de santos talvez belezas ingênuas de uma arte primitiva simples e religiosa E dentro da igrejinha velados pe las divindades enclausuradas jaziam no chão sagrado os túmulos de se nhores e de escravos igualados pela morte e pelo esquecimento O cavalo de Milkau continuava a passo o guia bocejava indiferente e erguendo uma perna alçavaa sobre a sela num gesto de resignação Vol tandose para a casa viu um vulto que chegava à soleira da varanda reco nheceuo e disse vagarosamente ao companheiro Lá está seu Coronel Afonso Milkau cumprimentou tirando cortesmente o chapéu o homem lá no alto correspondeu erguendo indolente o sombreiro de palha O dono da fazenda de pés nus calça de zuarte camisa de chita sem goma parecia com a barba branca muito velho atestando na alvura da tez a pureza da geração A fisionomia era triste como se ele tivesse consciência de que sobre si recaía o peso do descalabro da raça e da família o olhar turvo apagado para os aspectos da vida como o de um idiota o esgotamento das suas faculdades das emoções e sensações era completo e o reduzira a uma atitude miseranda de autômato Mas ainda assim ele representava a figu ra humana a mesma vida superior envolta na queda das coisas arrastada na ruína geral E não há quadro mais doloroso do que este em que a ação do tempo a força da destruição não se limita somente às tradições e aos inanimados mas envolvendo no descalabro as pessoas e as paralisa e ful mina fazendo delas o eixo central da morte e aumentando a sensação de soladora de uma melancolia infinita Quase à beira do caminho estava a casa do forno onde se preparava a farinha Era um velho barracão coberto de telha carcomida e negra sobre a qual um limo verde crescia qual espessa e microscópica floresta No CANAÃ interior estava armada a bolandeira como uma sobrevivência das antigas moendas e ao lado a roda onde no tempo do serviço se ralava a mandio ca Havia também dois tachos em que se mexia a farinha pelo processo ru dimentar das pás Eram de cobre e destoavam do resto da engenhoca Milkau notou além disso no grande desleixo da casa abandonada res tos de maquinismos espalhados pelo chão tubos caldeiras rodas den tadas atestando ter havido ali uma instalação melhor que o homem caindo de prostração em prostração perdendo todo o polido de uma civilização artificial abandonara agora em sua decadência para se ser vir dos aparelhos primitivos que se harmonizavam com a feição em brutecida do seu espírito Milkau prosseguia pela estrada abrangendo ainda com os olhos o qua dro dessa triste fazenda O vulto do coronel ficava imóvel na soleira da escada presidindo com o olhar pasmado ao desmoronar silencioso daque les restos de cultura esperando na lúgubre atitude do inconsciente a lenta invasão do mato que numa desforra triunfante vinha vindo circunscre vendo apertando o homem e as coisas humanas Os viajantes continuavam a moverse dentro daquela paisagem onde as forças da vida parecia estarem paralisadas e onde tudo tinha a fixidez e a perfeição da imobilidade quando quebrando o caminho à direita eles enfrentaram quase subitamente com um rancho de moradores Era um pardieiro armado em cruz coberto de palha cujas línguas se projetavam desordenadas da cumeeira O pequeno guia adiantouse para a casa ins tintivamente como movido por longo hábito A porta do rancho um ve lho cafuzo com os olhos nevoados fitava vagamente o espaço encostado ao moirão apenas trajava uma usada calça o tronco estava nu e sob a pele ressequida desenhavase a envergadura de um esqueleto de atleta sobre o dorso como em moribundo cepo de árvore crescia uma penugem bran ca encaracolada que subia até ao queixo e formava uma rasteira barba GRAÇA ARANHA A sua postura era de adoração rudimentar de um nunca terminado pasmo diante do esplendor e da glória do mundo No batente da porta sentavase uma mulata moça Toda ela era a pró pria indolência Os cabelos não penteados faziam pontas como chifres a camisa suja caía à toa no colo descarnado e os peitos de muxiba pen diam moles sobre o ventre em pé ao seu lado um negrinho vestido apenas de um cordão ao pescoço donde se dependuravam uma figa de pau e um signo de Salomão mirava embasbacado os cavaleiros que se achegavam ao tijupá Milkau cumprimentou o grupo que sem o menor alvoroço o deixava aproximarse Apenas o velho disse respondendo à saudação Se apeie moço Não obrigado Quero chegar cedo Eh meu sinhô daqui ao Cachoeiro é um instantinho Olhe só ven cendo duas curvas do rio estáse na cidade Depois o velho como se refletisse um momento e sentisse despertar em si uma ânsia de comunicabilidade insistiu com Milkau para que se apeasse O guia não esperou mais pulou da sela e abandonando o seu cavalo segurou pelo freio o do viajante enquanto este punha o pé em terra e bocejava numa satisfação de repouso O estrangeiro apertou a mão calos a e áspera do velho que abriu os lábios numa rude expressão de riso mostrando as gengivas roxas e desdentadas A cafuza não se mexeu apenas mudando vagarosamente o olhar descansouo cheio de preguiça e desalento no rosto do via jante A criança acolheuse a ela boquiaberta com a baba a escorrer dos beiços túmidos Da porta Milkau via claramente o interior da habitação A cobertura era alta no centro e pendia em declive tão rápido para os lados que nas ex tremidades um homem não podia ficar em pé a mobilia miserável e sim ís 3 2 L CANAÃ pIes compunhase de uma rede cor de urucu armada num canto e outra dobrada em rolo e suspensa num gancho uma esteira estendida no chão de soque dois banquinhos rasteiros um remo molhos de linha de pescar e alguns pobres instrumentos de lavoura Uma pequena divisão de palha como um biombo fixo separava um dos cantos da peça formando um quarto onde se viam uma esteira e uma espingarda No fundo a porta abria para uma clareira do mato na qual uma touça de bananeiras se mul tiplicava e junto a essa porta pedras negras que se misturavam a restos de tições apagados indicavam a cozinha Mora aqui há muito tempo perguntou Milkau Fui nascido e criado nessas bandas sinhô moço Ali perto do Mangaraí6 E tateando o espaço estendia a mão para o outro lado do rio Não vê um casarão lá no fundo Foi ali que me fiz homem na fazenda do Capitão Matos defunto meu sinhô que Deus haja O estrangeiro acompanhando o gesto apenas divisava ao longe um amontoado de ruínas que interrompia a verdura da mata E a conversa foi continuando por uma série de perguntas de Milkau sobre a vida passada daquela região às quais o velho respondia gostoso por ter ocasião de relembrar os tempos de outrora sentindose incapaz como todos os humildes e primitivos de tomar a iniciativa dos assuntos Ele contou por frases gaguejadas a sua triste vida toda ela um pobre drama sem movimento sem lances sem variedade mas de quão intensa e profunda agonia Contou a velha casa cheia de escravos as festas sim ples os trabalhos e os castigos E na tosca linguagem balbuciava com a figura em êxtase a sua turva recordação Ah tudo isso meu sinhô moço se acabou Cadê fazenda Defunto meu sinhô morreu filho dele foi vivendo até que Governo tirou os es cravos Tudo debandou Patrão se mudou com a família para Vitória onde tem seu emprego meus parceiros furaram esse mato grande e cada um levantou casa aqui e acolá onde bem quiseram Eu com minha gente vim para cá para essas terras de seu coronel Tempo hoje anda triste Governo acabou com as fazendas e nos pôs todos no olho do mundo a caçar de comer a comprar de vestir a trabalhar como boi para viver Ah tempo bom de fazenda A gente trabalhava junto quem apanhava café apanhava quem debulhava milho debulhava tudo de parceria bandão de gente mulatas cafuzas Que importava feitor Nunca ninguém morreu de pancada Comida sempre havia e quando era sábado véspera de domingo ah meu sinhô tambor velho roncava até de madrugada E assim o antigo escravo ia misturando no tempero travoso da saudade a lembrança dos prazeres de ontem da sua vida congregada amparada na domesticidade da fazenda com o desespero do isolamento de agora com a melancolia de um mundo desmoronado Mas meu amigo disse Milkau você aqui ao menos está no que é seu tem sua casa sua terra é dono de si mesmo Qual terra qual nada Rancho é do marido de minha filha que está ali assentada terra é de seu coronel arrendada por dez milréis por ano Hoje em dia tudo aqui é de estrangeiro Governo não faz nada por brasileiro só pune por alemão Num estremecimento o preto velho com o olhar perdido no vácuo a mão estendida fazendo gestos tardos e incertos prosseguia no seu monólogo Voscemê vai ficar aqui Daqui a um ano está podre de rico Todos seus patrícios eu vi chegar sem nada com as mãos abanando E agora Todos têm uma casa têm cafezal burrada De brasileiro Governo tirou tudo fazenda cavalo e negro Não me tirando a graça de Deus E os seus olhos tristes obscureceramse A névoa que os cobria tornouse mais densa como que sobrecarregada agora da pesada visão da conquista da terra pátria pelos bandos invasores CANAÃ Seguiuse um opressivo silêncio Milkau recolhia o eco daquele quei xume de eterno escravo daquela mal definida resignação dos esmagados Havia alguma coisa de aleijão nesse protesto e a incapacidade de uma expressão livre e elevada fazia crescer a angústia O velho continuava me neando a cabeça e resmungando um choro A figura da filha de uma in dolência sinistra dava maior opressão a tudo Milkau sentia um estran gulamento como se o peso de toda a responsabilidade da sorte daquela gente caísse também sobre ele Lá dentro de si mesmo batiase em vão para encontrar a claridade de um sentimento a limpidez de uma palavra consoladora Nada achou Num gesto contrafeito despediuse Adeus até à vista meu velho O preto abandonoulhe a mão Os outros da família ficaram quietos apatetados Milkau caminhava pela grande luz da manhã agora de todo inflamada Os ventos começaram a soprar mais espertos e como que agitavam as almas das coisas arrancandoas do torpor para a vida O rio descia em di reção contrária à marcha dos viajantes e esses movimentos opostos davam a impressão de que toda a paisagem se animava e docemente ia desfilando aos olhos do cavaleiro A fazenda lá no alto sumiase no fundo do longín quo horizonte o imigrante notava o manso desenrolar do panorama co mo o de fitas mágicas casas de moradores homens tudo ia passando rolando mansamente mas arrastado por uma força incessante que nada deixava repousar A estrada se alargava outras vinham aparecendo desconhecidas infini tas e incertas como são os caminhos do homem sobre a terra A brisa fres ca encanavase pelas duas ordens fronteiras de colinas paralelas ao rio e trazia ao encontro do viajante um mugido sonoro de cascata O rolar do Santa Maria batendo sobre pedras amontoadas despedaçandose como um louco nas lajes aumentava e as suas águas revoltas espumantes re GRAÇA ARANHA colhiam e reverberavam a luz do sol como um vacilante espelho Milkau viu ao longe na mata ainda fumegante de névoas uma larga mancha branca Na frente o guia estendendo o braço gritoulhe Porto do Cachoeiro Milkau como se despertasse respirou sôfrego o corpo se lhe agitou e estremeceu nessa ânsia de quem penetra na terra desejada mas o sangue em alvoroço saudou a aparição do povoado os nervos a vontade trans mitiam um fluido ativo ao lerdo animal que ao sopro da viração ao con tato dos lugares próximos à cidade fIm das suas jornadas também se transformou em vida e agora de narinas escancaradas bufando sacudia as crinas relinchava asperamente mordia o freio curvava o pescoço e acelerava brioso o passo Então de uma pequena elevação que ia galgando Milkau o olhar espraiado na paisagem dominava a povoação apertada entre a montanha e o Santa Maria Cheia de luz com a sua casaria toda branca em plena glória da cor da claridade e da música feita dos sons da cachoeira repre sa do férvido rio que se liberta em franjas de prata a cidadezinha era naquele delicioso e rápido instante a fIlha do sol e das águas Os viajantes continuavam apressados as primeiras casas iam chegando eram pobres habitações como soltas na estrada para saudarem alvissa reiras os viandantes Mirandoas atentamente Milkau observou que essas casas eram moradas de gente preta da raça dos antigos escravos e adi vinhouos batidos pela invasão dos brancos mas ainda assim procurando os derradeiros e longínquos raios do calor humano e deitandose à soleira das cidades para eles estrangeiras e proibidas Os viajantes desceram a rampa e foram ter a uma porteira que o pe queno tomando a frente escancarou para dar passagem a Milkau Entra vam agora mais devagar na cidade Onde se apeia patrão perguntoU solícito o guia Em casa do Sr Roberto Schultz Conhece Ah nhor sim quem não sabe O maior sobrado da cidade Domingo passado levei também um moço para lá Os cavalos arfavam dando à marcha fatigada uma sensação de movimentos irregulares como se descessem com medo montanhas pedregosas uma espuma abundante ensopavaos e abandonados de rédeas iam tropeçando nas pedras soltas da rua Os olhos de Milkau tinham os estremecimentos das passagens bruscas dos panoramas contrários não possuíam fixidez nem calma para precisar qualquer observação apenas guardavam na retina inconsciente a vaga sensação de uma cidadezinha alemã no meio da selva tropical Ao espírito do imigrante desceu uma confusão e tênue recordação de outros tempos ao entrever essa população toda branca e ao sentir a irradiação do sol batendo sobre as cabeças das crianças como refulgentes chapas de ouro Chegados a um grande sobrado o guia pulou lesto do cavalo e ajudou Milkau a apea despediramse como bons amigos e enquanto o viajante penetrava na loja o menino voltava com os animais O armazém de Roberto Schultz era vasto Tinha quatro portas de frente e as mercadorias inúmeras davamlhe uma feição de grandeza e opulência Ali se negociava em tudo em fazendas em vinhos em instrumentos de lavoura em café era um desses tipos de armazéns de colônia que são uma abreviação de todo o comércio e conservam na profusão e multiplicidade das coisas certo traço de ordem e de harmonia A loja àquela hora já estava cheia de gente e Milkau para chegar até ao balcão foi desviando os fregueses ali amontoados em pé todos indecisos pesados brancos e tardos alemães Disseram a Roberto que havia um viajante à sua procura e imediatamente Milkau foi conduzido ao escritório onde um homem taurino e barbado o recebeu O imigrante entregoulhe uma carta de apresentação que ele principiou a ler interrompendose de vez em quando para fitar o GRAÇA ARANHA recémchegado Dos olhos deste baixava uma claridade suave uma calma dominadora que perturbava o velho negociante ora a ler ora a mirar pensativo e aborrecido Afinal dobrou vagaroso a carta e pôsse a tambo rilar na secretária Então disse por dizer vem com a idéia de ficar aqui Milkau afirmou essa resolução Roberto começou a aconselhálo a que não se decidisse antes de ver bem as coisas por si Isto aqui é triste e enfadonho Vaise aborrecer afiançolhe Talvez fosse melhor ir para o Rio ou São Paulo Aí sim são os grandes centros de comércio onde acharia um emprego com facilidade A colônia é um engano noutro tempo ganhavase algum dinheiro porém agora os negó cios não marcham Mas quis interromper Milkau Roberto não o atendia e continuava a arredálo com as suas palavras para longe do Cachoeiro Na minha opinião o senhor deve voltar hoje mesmo nós estamos abarrotados de pessoal Aqui em minha casa tenho gente demais que vou despedir em nenhuma casa de negócio da colônia o senhor se pode em pregar Que vale hoje o comércio com os impostos com o câmbio e com as contribuições da política porque nós aqui apesar de estrangeiros ou talvez por isso mesmo somos os que sustentamos os partidos do Estado As eleições não tardam por aí já devem vir os chefes de Vitória temos de hospedálos dar festas arranjar eleitores ora tudo isto nos vai empobre cendo o que se ganha é uma miséria para esses extraordinários Mas eu não vim com destino ao comércio afirmou decisivo o viajante ComoVem com o plano de ir para o café E Roberto não ocultou a surpresa de ver um colono naquele imigrante tão bem vestido para um simples cultivador Ah isto é outra coisa continuou o negociante agora amável Não há nada como a lavoura vá para o mato arranje a sua colônia e daqui a pouco tempo está rico Olhe a nossa casa está às suas ordens nós lhe fornecemos tudo de que precisar e quando puder vá nos mandando café É o costume aqui nós nos pagamos em gêneros o que é uma vantagem para o colono acrescentou baixando ligeiramente o olhar Chegou em boa hora para arranjar um excelente prazo nas novas terras do Rio Doce que se vão abrir aos imigrantes O juiz comissário mandou pregar o edital para as medições e arrendamentos o agrimensor o Sr Fe licíssimo9 está no Porto do Cachoeiro de viagem para as terras É um rapaz alegre que sempre nos aparece por cá ele o senhor sabe é fre guês da casa e é do partido Milkau agradeceu os oferecimentos do negociante e dispunhase a par tir em busca de uma estalagem quando o outro reclamou Não vale a pena ir para o hotel Aqui fica melhor temos muitos cômodos para hóspedes como é de uso Depois o senhor me pode ser útil agora fazendo companhia a um moço chegado anteontem e também de família importante Imagine filho do General Barão von Lentz O rapaz porém anda triste e sorumbático Não sei o que será Talvez ver gonha de ter imigrado Ah estes rapazes E sorrindo malicioso ergueuse pedindo a Milkau que o acom panhasse Este quase ia arrebatado no meio de agrados e cortesias de vidas a um futuro freguês Ambos atravessaram para o outro lado do balcão dirigindose à escada do sobrado Os olhos de Milkau deslumbraramse à luz da manhã alegre e viva A porta da loja uma velha de nariz adunco de rosto de pergaminho franzido chegava montada em sua mula e entre dois alforjes suspensos dos ganchos da cangalha Na rua passava uma tropa de burros carregados de canastras de café e repicando campainhas 3 9 GRAÇA ARANHA No quarto em que entraram Roberto e Milkau um moço que estava a escrever levantouse para saudálos O Tragolhe um companheiro anunciou o dono da casa este patrí cio que se deseja estabelecer no Rio Doce Voltandose para Milkau repetiulhe que estivesse como em sua casa e perguntoulhe pela bagagem O outro explicoulhe que vinha tudo pela canoa devendo chegar à noite Roberto deixou os novos imigrantes Pode continuar o seu trabalho disse Milkau delicadamente Não o que eu estava a fazer não é urgente Apenas matava o tempo E os dois se puseram a conversar sobre coisas vagas sobre a viagem o tempo a natureza E enquanto se entretinham Milkau admirava a mobi lidade da fisionomia do jovem von Lentz e não se cansava de observar o fulgor de seus olhos fulvos dominando o rosto sem barba cujas linhas eram acentuadas e fortes e se projetavam de uma cabeça ampla roliça como a de um patrício romano Mas de par com este súbito entusiasmo pela expressão escultural daquela jovem figura Milkau sentiase cons trangido por ter encontrado naquelas paragens estranhas e remotas um fi lho de general alemão um ser privilegiado na sua pátria como um evadido do seu próprio e grande mundo que viera sepultar sem dúvida no mis tério das colônias uma parcela de angústia de desespero e de desilusão Daí a momentos os dois novos se achavam na grande sala de almoço dos empregados do armazém e tomavam lugares à mesa A sala era des guarnecida as paredes simplesmente caiadas não tinham o menor en feite os criados serviam automáticos como soldados ao regimento de caixeiros que comiam silenciosos Em todas as fisionomias daqueles ho mens tão diferentes alguns velhos de pele enrugada outros moços de perpétua adolescência viase estampado o pensamento único de cum prir o dever prático de caminhar para a frente no conjunto harmônico de um só corpo Mi1kau lia naquele ajuntamento de alemães o caráter CANAÃ camponês e militar que fundou a obediência e a tenacidade na sua raça e reduziu tudo o que ela podia ter de beleza de elevação moral à mono tonia de um precipitado único Onde estava a Alemanha sagrada a pátria do individualismo o recanto suave do gênio livre perguntava a si mesmo Milkau no sussurro regular do almoço contemplando o es quadrão de homens louros e refletindo sobre a alma alemã pensava que talvez somente se pudesse explicar a incógnita dessa alma pelas imagens e expressões incertas da vaga e simbólica metafísica Quem sabe con tinuava quase em sonho quem sabe se não foram um dia dois espíritos que se encontraram disparatados em um mesmo corpo um servil à matéria ambicioso cúpido procurando absorver o outro que voava docemente e pairava sempre no alto zombando de tudo de homens e deuses gerando puramente sem conjunções torpes nas regiões plácidas do ideal as figuras da poesia e do sonho E quem sabe como foi longo e pertinaz o combate entre as duas forças Mas houve um momento em que o demônio da terra venceu o espírito de beleza e de liberdade e o corpo aí está hoje sossegado sem ânsias sem lutas qual uma massa de escravos a devorar os últimos restos do gênio do passado divino ali mento donde brota essa luz que ainda o ilumina na sua lúgubre e devas tadora marcha sobre a terra Findo o almoço os caixeiros saíram em ordem Milkau e Lentz iam por último vagarosamente como hóspedes despreocupados No quarto re solveram visitar a cidade e quando daí a momentos passavam pelo ar mazém em direção à rua Roberto os chamou Está aqui exatamente o Sr Felidssimo que segue depois de amanhã para o Rio Doce a fim de fazer as medições 1 1 Dizendo isto indicava um moço magro baixo e moreno com o rosto talhado em triângulo cheio de marcas de bexigas uma chata cabeça de bacurau em que os olhos negros cintilavam vivos e secos O Sr Milkau continuou Roberto acaba de chegar com o propósito de arrematar um lote de terras Expliqueilhe que neste momento o que há de melhor é o Rio Doce e que o senhor me faria o favor de arranjarlhe um prazo bem situado Pois não acudiu o agrimensor solícito e com um gesto de quem quer abraçar Sigo amanhã a me encontrar com a turma que está em Santa Teresa depois de amanhã bem cedinho nos pomos em marcha e quando for lá pelas onze acampamos no porto do Ingá no Rio Doce Os senhores quando vão Lentz ficou embaraçado e meio confuso respondeu Para o campo Ainda não sei afinal o que farei na colônia Dependo muito do Sr Roberto O negociante coçou a cabeça e disse solene em murmúrio como se invocasse o testemunho dos mais O Sr von Lentz prefere uma colocação na cidade no comércio Mas o Sr Felicíssimo é que pode dizer quanto isto é difícil as casas estão cheias a ocasião é má Esperemos esperemos Felicíssimo perguntou a Milkau o dia da partida É só para combinar tudo e quando chegar lá não haver demora O negócio é fácil o senhor requer um prazo e o juiz comissário que está agora para os lados do Guandu despacha mas não precisamos dele para fazer a medição Na sua ausência estou autorizado a tudo até mesmo a entregar os lotes aos colonos que os vão trabalhando Entre nós as coisas não são feitas com luxo Não temos formalidades Tudo se arranja e legaliza depois O que é preciso é pagar logo as custas Milkau interrompeuo para se informar das distâncias Daqui a Santa Teresa quantas léguas Cinco E de lá ao Rio Doce outras tantas O senhor deve ir daqui até o alto de Santa Teresa aí dormir e no dia seguinte tocar para o Rio Doce CANAÃ É preciso um guia Não Estrada sem errada e batida Roberto ofereceuse para mandar guiar o imigrante por tropeiros que iam diariamente para essas bandas Milkau agradeceu dispensando o obséquio Deixando Roberto saíram os três do armazém Felicíssimo que dizia não ter nada a fazer naquelas horas propôs acompanhar os estrangeiros dando assim expansão aos instintos da sua nativa e tranqüila vadiagem Agora o Porto do Cachoeiro abrasado de sol desvendavase todo A ci dade era dividida em duas partes que uma ponte ligava mas podia dizer se que só à margem esquerda era crescente porque do outro lado as ha bitações se contavam salteadas e raras As casas daquela banda enfileira vamse monótonas em frente ao rio e nem um jardim quebrava a aus teridade das moradas nem um quintal margeava os caminhos nem uma árvore sombreava as ruas Pela primeira vez porventura nos trópicos os habitantes de uma pequena cidade como essa não conheciam prazeres do convívio dos animais domésticos nem tinham a expansiva preocupação da cultura das plantas e das flores Uma esterilidade rigorosa e sistemática estampavase no perfil das casas que eram apenas o abrigo de uma popu lação de negociantes Na rua Milkau ia adivinhando a explicação moral daquela localidade e uma impressão de angústia emanada da branca aridez da cidade o turbava pois parecialhe que o bafo dos traficantes tinha matado a poesia a graça daquele canto excepcional da natureza onde eles haviam levantado as tendas da especulação Felicíssimo ia pres suroso contando os milagres da fortuna comercial daquela gente Este sobrado aqui dizia ele apontando para uma casa esguia e igual às outras da rua é de Frederico Bacher13 chefe do partido da oposição é o rival e o inimigo de Roberto Chegou aqui sem nada hoje veja como está rico E aqui são todos assim todos têm muito dinheiro Podese dizer que o 43 G RAÇA ARANHA comércio do Cachoeiro é mais forte do que o de Vitória Ainda não se deu um caso de quebra Estes alemães têm olho Se fossem brasi leiros estava tudo arrebentado E o agrimensor continuava nesse tom a fazer o elogio das virtudes germânicas para os negócios a economia a facilidade de assimilação a energia no trabalho dando como contraste a elas as qualidades infe riores dos brasileiros que ele se comprazia em proclamar no gáudio de se mostrar aos companheiros de passeio justo e superior e ao mesmo tempo com propósito lisonjeiro Para se dar ar de importância e intimi dade com os moradores de instante a instante deixava Milkau e Lentz na rua e penetrava pelos armazéns adentro para trocar uma palavra com o dono da casa Algumas vezes conseguia arrastar do fundo das lojas até à porta os negociantes com quem à vista dos novos tomava liberdades dandolhes palmadinhas nas costas beliscões na barriga e dizendolhes injúrias por gracejo ao que os alemães complacentes sorriam muito rubicundos murmurando em tom de desculpa aos outros Esse Sr Felicíssimo Isto é um diabo Os três iam seguindo assim despertando pelos gestos e pelas vozes altas do agrimensor a atenção da rua mirados pelos tropeiros que descar regavam os animais e pelos fregueses que procuravam as lojas Lentz não tinha o menor interesse em andar de casa em casa à maneira fastidiosa e vulgar de Felicíssimo e então para se ver livre dessa obrigação enfado nha de correr passos de porta em porta propôs que subissem a um dos morros que cercavam e abafavam ao mesmo tempo a cidade e de lá des frutassem a vista da região Os outros concordaram e assim foram guia dos por Felicíssimo Para galgar a montanha mais acessível tiveram de passar além da ponte por sobre a cachoeira cujos cavos borbotões os ensurdeciam e os passos dos homens na ponte de madeira em cima das águas que se quebravam embaixo tinham vibrações sonoras e poderosas CANAÃ como se sobre ela passasse o pesado tropel da cavalaria Do outro lado estava a montanha que se puseram a subir por uma vereda pedregosa e de cascalho solto dando à marcha um movimento irregular e fatigante Felicíssimo ia mais lépido na frente enquanto os outros não acostuma dos ao calor caminhavam dificilmente alagados em suor A proporção que eles subiam morriam as vozes da cachoeira vinham ao seu encontro o hálito perfumado das plantas montanhesas e o ar leve para lhes acalmar os ardores A princípio dentro do circuito dos morros a perspectiva era estreita Em cima porém eles dominavam a vasta região acidentada e os olhos dos estrangeiros tiveram um delicioso instante de êxtase O con torno arredondado das montanhas cobertas de uma relva basta rente ful gurante nas suas cores matizadas o rio por entre os vales o ar límpido e seco mantendo estável a atmosfera a força da claridade desdobrando pelas colinas o panorama a abóbada celeste de um imenso azul cobrindo docemente a terra todo esse conjunto de luz de cor de traços dava à paisagem um aspecto total de grandeza e confiança Felicíssimo era o intérprete da região Como perfeito sabedor dava o nome às coisas e designava os lugares Milkau estava sereno no alto da montanha Descobrira a cabeça de um louro de ninfa e sobre ela e na barba revolta a luz do sol batia numa fulguração de resplendor Era um varão forte com uma pele rósea e branda de mulher e cujos poderosos olhos da cor do infinito absorviam recolhiam docemente a visão segura do que ia passando A mocidade ainda persistia em não o abandonar mas na harmonia das linhas tranqüilas do seu rosto já repousava a calma da madureza que ia chegando Felicíssimo apontava em torno e ia designando os pontos do horizonte os outros acompanhavamlhe os gestos rápidos e como em sonho não podiam fixar os nomes bárbaros e estranhos que lhes feriam os ouvidos mas se interessavam em guardar e acentuar as impressões que lhes vinham GRAÇA ARANHA da região Para o oriente era a terra do Queimado cujo caminho se desen rola longo e sinuoso ora numa planície descampada e risonha ora por entre o verde de um mato raro até a um pequeno grupo de casas que for mam o porto do Mangaraí à beira do Santa Maria ali orgulhoso e folga do com as águas desembaraçadas dos cachoeiros Para o norte para o sul para o poente as montanhas vão crescendo amontandose como massa de pintura Ali o Guandu acolá Santa Teresa duas regiões sombrias que os colonos vão arrancando do silêncio misterioso da solidão Sobre um vale cheio de sol um fio d água cai longo e transparente como um grande véu de noiva Para o poente o Santa Maria margeia os cafezais as casas de lavoura e luta com as lajes negras que porfiam em retêlo Milkau nesse panorama aberto lia a história simples daquela obscu ra terra Porto do Cachoeiro era o limite de dois mundos que se to cavam Um traduzia na paisagem triste e esbatida do nascente o pas sado onde a marca do cansaço se gravava nas coisas minguadas Aí se viam destroços de fazendas casas abandonadas senzalas em ruínas ca pelas tudo com o perfume e a sagração da morte A cachoeira é um marco E para o outro lado dela o conjunto do panorama rasgavase mais forte mais tenebroso Era uma terra nova pronta a abrigar a avalancha que vinha das regiões frias do outro hemisfério e lhe descia aos seios quentes e fartos e ali havia de germinar o futuro povo que cobriria um dia todo o solo e a cachoeira não dividiria mais dois mun dos duas histórias duas raças que se combatem uma com a pérfida lascívia outra com a temerosa energia até se confundirem num mes mo grande e fecundante amor Eles desceram da montanha e entravam pela cidade quando os ar mazéns se fechavam para se reabrirem depois da hora do jantar Nesse momento viase pelas ruas um movimento maior de gente que deixava as lojas e se recolhia às casas Aqui perguntou Lentz ao agrimensor quase todos são alemães Sim poucos brasileiros No comércio podese dizer não há nenhum Então em que se ocupam os brasileiros do Cachoeiro indagou Milkau Os que temos aqui são os do foro os juízes escrivães meirinhos Outros são também empregados públicos coletor agente de correio E professores perguntou Lentz Só um porque a língua que se ensina por essas matas é o alemão e os professores são alemães exceto o da cidade Padres também não temos nem igreja como devem ter reparado Também não há necessidade porque raros são aqui os católicos e para os protestantes há três pastores nas capelas do Luxemburgo Jequitibá e Altona Os católicos do município são o povo do Queimado do Mangaraí e outros pontos onde está hoje a gente antiga da terra Felicíssimo continuava a dar notícias do lugar os outros ouviamno em silêncio e a conversa foi assim espreguiçando até chegarem à porta da casa de Roberto O agrimensor despediuse prometendo voltar no dia seguinte para os acompanhar em novas excursões Depois do jantar que tinha corrido como o almoço os dois novos subiram ao quarto incapazes de sair à rua e de se ir meter às primeiras horas da noite na fábrica de cerveja na outra margem do rio como era o costume ali Milkau estava fatigado da viagem e do passeio do dia Lentz sentiase esbraseado e abalado pela emoção vinda do encontro com o seu recémchegado patrício que por motivos dele não percebidos já tanto o seduzia e o prendia Sentaramse os dois junto à janela aberta A calma da tarde imobilizava as coisas dandolhes a tranqüilidade o repouso e a fixidez das pinturas Nessa hora a natureza excediase a si mesma tomando a expressão serena da arte Os primeiros perfumes dos matos da redondeza desciam para GRAÇA ARANHA embalsamar o panorama e sombras leves vinham envolvendo o mundo Os dois imigrantes contemplavam em silêncio e uma saudade estranha segredandolhes explicava o mistério dos quadros sonhados e nunca vis tos a nostalgia de ilusões que ali se realizavam agora Parece que j á vi este quadro em algum lugar disse Milkau cis mando Mas não este ar este conjunto suave este torpor instantâ neo e que se percebe vai passar daqui a pouco é seguramente a pri meira vez que conheço E por quanto tempo aqui ficaremos disse o outro num bocejo de desalento e o seu olhar pairava preguiçosamente sobre a paisagem Não meço o tempo respondeu Milkau porque não sei até quan do viverei e agora espero que este seja o quadro definitivo da minha existência Sou um imigrado e tenho a alma do repouso este será o meu último movimento na terra Mas nada o agita Nada o impelirá para fora daqui fora desta paz dolorosa que é uma sepultura para nós Aqui fico E se aqui está a paz é a paz que procuro exatamente Eu me conservarei na humildade em torno de mim desejarei uma harmo nia infinita É então por isso que vai para o mato Não seria melhor ficar aqui no comércio Não Procuro uma vida estável e livre e o comércio é torturado pela avidez e ambição Além disso penso que o trabalho digno do homem é a lavoura nos países novos e férteis como este e a indústria no velho continente O comércio não me atrai com suas formas grosseiras seus estímulos baixos sua posição intermediária na so ciedade Não me sinto solicitado senão por coisas mais simples e aproximadas da situação do futuro O senhor persiste em se dedicar aos negócios Não sei bem o que faça Estou indeciso irresoluto Penso que se o comércio pode ser um meio de fortuna e de dar vazão às ânsias de jogador que há em cada homem é também um caminho baixo e vil Estou indeciso e não fosse o medo do tédio da mata e da morte da agitação eu talvez me abalançasse a ir trabalhar na lavoura A cidade estava iluminada frouxamente com espaços longos de sombra mas em outros pontos as luzes da rua e das casas caíam sobre as águas do rio que as multiplicavam em seu espelho trêmulo Lentz se calara Perdiase na noite o seu olhar como em uma grande cisma o seu rosto não tinha serenidade as linhas estavam perturbadas dando à fisionomia uma expressão de rancor e de inquietação Parecia que dentro dele num monólogo íntimo e doloroso se prolongava a queixa contra o destino e ele se debatia em vão dentro dos muros fechados da sua sorte num esforço de ave ferida para pairar nas regiões do seu sonho Milkau apiedouse daquele silêncio aflitivo e deixandose levar pelos bons impulsos da sua confiança abundante disse ao jovem companheiro Por que não iremos trabalhar no Rio Doce O senhor talvez se ache aí mais feliz e mais independente Podemos requerer um mesmo prazo e como não temos família faremos uma sociedade e nos auxiliaremos mutuamente E se se arrepender poderá partir que me não queixarei de ficar só pois esse é ainda até agora o meu destino Estas palavras eram brandas e boas e foram ditas com muita pureza de coração Pelos lábios de Lentz passou um sorriso tão suave como franjas de um lago manso em que rapidamente se transformaram as fúrias de mar revolto que era pouco antes a sua alma Sim veremos Eu lhe agradeço muito Por que não murmurou numa emoção que por orgulho procurava domar Milkau regozijouse na perspectiva de ter um companheiro precisando de amparo e conforto no exílio E também se alegrava por si mesmo GRAÇA ARANHA porque sentia os seus instintos de comunicação espraiaremse no convívio daquele rapaz que lhe parecia tão inteligente e cujos desígnios revelavam pelo menos uma alma em aspiração Todavia não quis de um modo brus co e imprevisto decidir a sorte do outro imigrante pela sua Esperava que ele refletisse mais antes de se determinar a acompanhálo Em Lentz o que predispunha a aceitar a companhia de Milkau era a indecisão em que estava de se abandonar à vida rude e mesquinha de caixeiro era também a sedução intelectual por esse companheiro de acaso Milkau não quis insistir e delicadamente desviou o assunto Passou a conversar negligente mente sobre outras coisas Então temlhe agradado a terra esta verdura de primavera o es plendor do sol a vegetação possante Sim tudo isto é forte e belo mas eu prefiro os campos europeus com suas mutações o seu quadro de montanhas o seu colorido mais distinto A Europa atalhou Milkau tem a tradição que nos priva da liber dade de julgamento Fora dela não sei se o Reno vale o Santa Maria que sem lendas sem passado reflete em mim por seus próprios merecimen tos tanto encanto com suas margens incultas sua água límpida e borbu lhante seus chorões curvos Oh este sol implacável Aqui não há descanso para uma suave matização da cor Sempre este amarelo a nos perseguir E com um gesto de mão sobre a cabeça Lentz parecia querer arrancar de si a obsessão da luz onipotente Breve se acostumará e há de amar esta natureza até à paixão Eu já venho de longe e cada vez a admiro mais Ah não é esta a primeira vez que vem ao interior do Brasil Por este lado é a primeira vez Antes estive de passagem em Minas Gerais logo que cheguei ao país levando o plano de me estabelecer ali mas não encontrando facilidade dirigime para cá CANAÃ Em que lugar de Minas esteve No oeste E foi uma grande viagem para mim São João del Rei é uma impressão única Como interrogou curioso Lentz Ali me pareceu ter penetrado no passado intacto do Brasil Oh Foi uma volta deliciosa aos tempos mortos hoje por toda a parte e que ainda lá prolongam a sua vida Lentz embebeuse nas palavras de Milkau que começou a contarlhe a sua visita à velha cidade mineira No Cachoeiro era silêncio a luz das casas se apagara os lampiões da rua espaçadamente ponteavam de luz as sombras da noite diáfana da noite de verão que é apenas um instantâneo descanso do dia A cachoeira mugia sempre e o seu rl1llor igual e constante passava imperceptível aos ouvidos de Lentz todo à escuta da narração de Milkau Logo à primeira madrugada o meu sono de viajante fatigado foi cor tado pelo repicar de sinos de muitas igrejas o que me produziu um doce encantamento Como a todo homem habituado às grandes cidades mo dernas a música dos sinos erame desconhecida na força e na sonoridade que tinha naquela manhã mas no entanto essa música estranha não me feria e eu a recolhia quase em êxtase como se fosse uma antiga e revivi da sensação pois parecia que era entendida por uma alma longínqua que se despertava dentro de mim e tomava posse do meu ser Deixeime ficar deitado embalado pelas carícias do sono E sonhava O espaço estava cheio de sons o ar leve da montanha flutuava como se todo ele estivesse impregnado de música a natureza despertada pela alegria dos sinos volatizavase e libravase leve no ar a cidade fugia da terra carrega da nas harmonias voava para os céus cantando E eu sonhava ouvindo repicar procurando a calma o sono e o esquecimento A Idade Média representavase no meu sonho povoados castelos feudais mosteiros GRAÇA ARANHA homens e coisas todos ligados pelas vozes do campanário que marcava no espaço a vida e a morte Milkau continuava a falar da velha cidade mineira que ele definia como um santuário O espírito da religião ali localizado davalhe o caráter e a significação Dentro do seu recinto montanhoso irregular e feio depara vase de instante em instante com uma igreja todas elas singelas tristes erguidas mais pela necessidade da devoção que pelos carinhos da arte As casas acompanhavam esse tom severo e despretensioso e eram assinaladas por pequenas cruzes negras nas paredes desbotadas Tudo ali tinha um aspecto sacerdotal tudo falava de religião igrejas freqüentadas quase todas as horas do dia devotas procurando a solidão dos altares as festas religiosas preocupando o povo e divertindoo durante o ano inteiro Na quaresma a irrupção religiosa era ainda mais crescente Nesse tempo às noites um padre saía à rua acompanhado da multidão cantando rezas Uma cruz negra envolta nas dobras alvas do sudário meia dúzia de tochas ace sas e era tudo E lá a viasacra percorrendo os passos da cidade Numa devoção alegre e radiante na mais completa e bela confusão de classes o povo seguia rezando pela rua em um murmúrio alto fazendo coro às orações começadas pelo padre e quando chegava aos passos oratórios abertos nas ruas cantava músicas suaves e ingênuas A multidão ajoe lhada sob o céu límpido iluminada pelos raios da lua acariciada pela brisa fresca das alturas implorava num sorriso misericórdia Cercada de morros a cidade era guardada ainda por igrejas postadas nas alturas como de atalaia Pelas encostas das montanhas subiam os devo tos em romarias piedosas aos santos padroeiros das capelinhas humildes Nas tardes de verão recordava Milkau costumava desfilar um cortejo de seminaristas em férias e às vezes esse cordão negro sucedia cruzar com o bando infantil e branco das colegiais dirigidas por irmãs de caridade os dois grupos não se aproximavam e se desviavam reverentes subindo e CANAÃ descendo pelos morros sobre os quais iam descrevendo longas e marciais teorias até se sumirem no horizonte E se à hora da avemaria um devo to retardatário passando por aquelas montanhas saudava os seminaristas em nome de Cristo os rapazes erguiam a cabeça com altivez para o céu num relâmpago se descobriam irrompendolhes do peito um grande fer voroso grito que a solidão da tarde no deserto tornava solene Para sem pre seja louvado A cidade ainda falava a outras tradições do velho Brasil Sobre o seu terreno acidentado sulcos abertos e profundos indicavam a passagem do homem terrível que por ali desentranhou o ouro A paisagem está toda marcada de cicatrizes das feridas da terra que assim maltratada e hedionda clama às gerações de hoje contra a devastação do passado O homem moderno limpo de coração não deixará de sentir um frêmito de terror reconstruindo no espetáculo daquela paragem morta todo o quadro de uma época feita de escravidão de ouro e de sangue Há casas ali que deviam ser zeladas como relíquias das me lhores páginas da história de uma nação por elas passaram mártires nelas viveram sonhadores e os habitantes do lugar ainda sabem ler nas paredes dessas casas conservadas e povoadas dos restos de outrora a poesia da liberdade e da grandeza de todo o País E essa mistura de fé religiosa e patriótica dá um caráter distinto àquela antiga cidade purificandoa momentaneamente dos vícios em que se vão dissolven do as outras Rematou Milkau esse quadro com algumas reflexões Doume por muito feliz em ter ido a tempo de ver tudo isto porque não muito longe esse conjunto de poesia de tradição nacional vai acabar Na verdade é com mágoa que sinto estar prestes o desmoronamento daquela cidade circundada de colônias estrangeiras que a estreitam lenta mente até um dia a vencer e transformar sem piedade GRAÇA ARANHA Mas isto é a lei da vida e o destino fatal deste País Nós renovaremos a Nação nos espalharemos sobre ela a cobriremos com os nossos corpos brancos e a engrandeceremos para a eternidade A velha cidade mineira da sua narração não me interessa os meus olhos se projetam para o futuro Porto do Cachoeiro tem mais significação moral hoje pela força de vida de energia que em si contém do que os lugares mortos de um país que se vai extinguir Falandolhe com a maior franqueza a civilização dessa terra está na iIrigração de europeus mas é preciso que cada um de nós traga a vontade de governar e dirigir Nas suas palavras mesmas disse Milkau está escrita a nossa grande responsabilidade É provável que o nosso destino seja transformar de baixo acima este País de substituir por outra civilização toda a cultura a religião e as tradições de um povo É uma nova conquista lenta tenaz pacífica em seus meios mas terrível em seus projetos de ambição É pre ciso que a substituição seja tão pura e tão luminosa que sobre ela não caia a amargura e a maldição das destruições E por ora nós somos apenas um dissolvente da raça desta terra Nós penetramos na argamassa da Nação e a vamos amolecendo nós nos misturamos a este povo matamos as suas tradições e espalhamos a confusão Ninguém mais se entende as línguas estão baralhadas indivíduos vindos de toda parte trazem na alma a som bra de deuses diferentes todos são estranhos os pensamentos não se comunicam os homens e as mulheres não se amam com as mesmas pala vras Tudo se desagrega uma civilização cai e se transforma no desco nhecido O remodelamento vai sendo demorado Há uma tragédia na alma do brasileiro quando ele sente que não se desdobrará mais até ao infinito Toda a lei da criação é criar à própria semelhança E a tradição rompeuse o pai não transmitirá mais ao filho a sua iInagem a língua vai morrer os velhos sonhos da raça os longínquos e fundos desejos da per sonalidade emudeceram o futuro não entenderá o passado 2 N ão vejo nada claro disse Lentz E fechando os olhos feridos pela luz grandiosa do dia sentia dentro das pálpebras na câmara rubra das pupilas fuzilar relâmpagos de sol Quem me dera murmurava então Milkau que o sol se não apa gasse A pátria do homem devia limitarse a um canto da terra onde não houvesse sombra E os dois caminhavam afastandose do Porto do Cachoeiro na direção de Santa Teresa A princípio a estrada cortava por cima de pequenos mor ros descobertos onde numa paisagem acidentada e limpa passeavam errantes as sombras das nuvens daí a momentos ela morria na boca da mata Milkau e Lentz ao penetrarem na escuridão repentina e fria sen tiram pelos olhos o véu de uma ligeira vertigem Pouco a pouco eles se recompuseram e então admiraram A floresta tropical é o esplendor da força na desordem Árvores de to dos os tamanhos e de todas as feições árvores que se alteiam umas ere tas procurando emparelharse com as iguais e desenhar a linha de uma ordem ideal quando outras lhes saem ao encontro interrompendo a sime tria entre elas se curvam e derreiam até ao chão a farta e sombria coma Árvores umas largas traçando um raio de sombra para acampar um esquadrão estas de tronco pejado que cinco homens unidos não abarcaríam aquelas tão leves e esguias erguendose para espiar o céu e metendo a cabeça por cima do imenso chão verde e trêmulo que é a copa de todas as outras Há seiva para tudo força para a expansão da maior beleza de cada uma Toda aquela vasta flora traduz a Antiguidade e a vida Não se sente nela sombra de um sacrifício que seria o triunfo e o prêmio da morte Dentro as parasitas se enroscam pelos velhos troncos com a graça de um adorno e de uma carícia Há mesmo árvores que são mães de árvores e suportam com fácil e poderosa galhardia a filha que lhe sai do regaço e mais esplendorosa às vezes que a rija e bela progenitora Uma infinita variedade de arbustos cresce às plantas dos gigantes verdes é uma florazinha miúda compacta e atrevida dentro do bojo de outra mais ampla e opulenta E tudo se ergue e tudo se expande sobre a terra compondo um conjunto brutal enorme feito de membros aspérrimos entretecido no alto pela cabeleira basta e densa das árvores e embaixo pela rede intérmina das fortes e indomáveis raízes todo ele se entrelaça enroscandose pelos braços gigantescos prendendose como por tenazes numa grande solidariedade orgânica e viva Pelas frestas das árvores pela transparência das folhas desce uma claridade discreta e nessa suave iluminação se desenrola dentro do mato o cenário pomposo das cores Elas são em si vivas e quentes mas a gradação da sombra que ora avança ora se afasta comunicalhes da negrura do verde ao desmaio do branco a matização completa triunfal E lá em cada boca da estrada as portas da mata formam um círculo longínquo azulado como portas feitas só de luz e de uma luz zodiacal e docemente infinita De todo o corpo colossal das folhas novas e das folhas mortas dos troncos verdes e dos troncos carunchosos das parasitas das orquídeas das flores selvagens da resina que se derrama vagarosa ao longo C ANAÃ das árvores dos pássaros dos insetos dos animais ocultos no segredo da selva se desprende um cheiro misterioso e singular que se volatiliza e se difunde no imenso todo e tal como o aroma das catedrais acalma embria ga e adormece as coisas Na volúpia harmoniosa desse perfume que é acre e tonteante com a claridade que é branda está a fonte do repouso da ma ta O silêncio que mora na floresta é tão profundo tão sereno que parece eterno Feito das vozes baixas dos murmúrios dos movimentos rítmicos dos vegetais é completo e absoluto na sua perfeita harmonia Se por entre as folhas secas amontoadas no solo se escapa um réptil então o ligeiro far falhar delas corta a doce combinação do silêncio há no ar uma deslocação fugaz como um relâmpago pelos nervos de todo o mato perpassa um arre pio e os viajantes que caminham cheios da solidão augusta voltamse in quietos sentindo no corpo o frio elétrico e instantâneo do pavor Extraordinário disse Lentz saindo do seu espanto Milkau replicou A sensação que aqui recebemos é muito diferente da que nos deixa a paisagem européia E mirando para o alto e para a frente continuou Aqui o espírito é esmagado pela estupenda majestade da natureza Nós nos dissolvemos na contemplação E afinal aquele que se perde na adoração é o escravo de uma hipnose a personalidade se escapa para se difundir na alma do Todo A floresta no Brasil é sombria e trágica Ela tem em si o tédio das coisas eternas A floresta européia é mais diáfana e passageira transformase infinitamente pelos toques da morte e da res surreição que nela se revezam como os dias e as noites Mas este espetáculo de uma grande mata brasileira é assombroso não é interrogou Lentz É A verdade porém é que ao tocarmos a região do assombro tal espetáculo nos priva da liberdade de ser e afinal nos constrange É o que sucede com esta força esta luz esta abundância Nós passamos por aqui em êxtase não compreendemos o mistério E mudos continuavam a caminhar pela estrada coberta os olhos de ambos a desmancharemse de admiração Passado algum tempo Lentz exprimiu alto o que ia pensando15 Não é possível haver civilização neste país A terra só por si com esta violência esta exuberância é um embaraço imenso Ora interrompeu Milkau tu sabes bem como se tem vencido aqui a natureza como o homem vai triunfando Mas o que se tem feito é quase nada e ainda assim é o esforço do europeu O homem brasileiro não é um fator do progresso é um híbrido E a civilização não se fará jamais nas raças inferiores Vê a História MILKAU Um dos erros dos intérpretes da História está no preconceito aristocrático com que concebem a idéia de raça Ninguém porém até hoje soube definir a raça e ainda menos como se distinguem umas das outras fazemse sobre isto jogos de palavras mas que são como esses desenhos de nuvens que ali vemos no alto aparições fantásticas do nada E depois qual é a raça privilegiada para que só ela seja o teatro e o agente da civilização Houve um tempo na História em que o semita brilhava em Babilônia e no Egito o hindu nas margens sagradas do Ganges e eles eram a civilização toda o resto do mundo era a nebulosa de que se não cogitava E no entanto é junto ao Sena e ao Tâmisa que a cultura se esgota hoje numa volúpia farta e alquebrada O que eu vejo neste vasto panorama da História para que me volto ansioso e interrogante é a civilização deslocandose sem interrupção indo de grupo a grupo através de todas as raças numa fatal apresentação gradual de grandes trechos da terra à sua luz e calor Uns se vão iluminando enquanto outros descem às trevas CANAÃ LENTZ Até agora não vejo probabilidade da raça negra atingir a ci vilização dos brancos Jamais a África MILKAU O tempo da África chegará As raças civilizamse pela fusão é no encontro das raças adiantadas com as raças virgens selvagens que es tá o repouso conservador o milagre do rejuvenescimento da civilização O papel dos povos superiores é o instintivo impulso do desdobramento da cultura transfundindo de corpo a corpo o produto dessa fusão que passa da a treva da gestação leva mais longe o capital acumulado nas infinitas gerações Foi assim que a Gália se tornou França e a Germânia Alemanha LENTZ Não acredito que da fusão com espécies radicalmente incapazes resulte uma raça sobre que se possa desenvolver a civilização Será sempre uma cultura inferior civilização de mulatos eternos escravos em revoltas e quedas Enquanto não se eliminar a raça que é o produto de tal fusão a ci vilização será sempre um misterioso artificio todos os minutos rotos pelo sensualismo pela bestialidade e pelo servilismo inato do negro O proble ma social para o progresso de uma região como o Brasil está na substituição de uma raça lúbrida como a dos mulatos por europeus A imigração não é simplesmente para o futuro da região do País um caso de simples estética é antes de tudo uma questão complexa que interessa o futuro humano MILKAU A substituição de uma raça não é remédio ao mal de qual quer civilização Eu tenho para mim que o progresso se fará numa evo lução constante e indefinida Nesta grande massa da humanidade há na ções que chegam ao maior adiantamento depois definham e morrem outras que apenas esboçam um princípio de cultura para desaparecerem imediatamente mas o conjunto humano formado dos povos das raças das nações não pára em sua marcha caminha progredindo sempre e os seus eclipses os seus desmaios não são mais que períodos de transfor mações para épocas fecundas e melhores É a fatalidade do Universo que se cumpre nesse Todo que é uma parte dele Quando não há um tra balho à flor das coisas luminoso e doce há uma elaboração subterrânea tenebrosa e forte Às vezes é num ponto isolado da superfície que se dá a opacidade das trevas e pela fusão um povo aí se forma recapitulando a civilização desde o seu ponto inicial e preparandose para levar o progresso mais longe que os povos geradores LENTZ Como então o contato dos povos da arte com os selvagens determina um precipitado que excede àqueles na capacidade estética MILKAU A arte Lentz pode diminuir ou aumentar em alguma das suas expressões segundo várias solicitações do meio e da época mas pelo fato de não florescer certa forma de Arte o progresso artístico não deixa de ser maior Se a verdade estivesse na conclusão contrária então a humanidade teria retrocedido depois do período do grego e da Renascença porque até agora a História não conta épocas tão felizes para a Escultura e para a Pintura LENTZ Mas toda a questão está na compreensão do progresso moral MILKAU Quando a humanidade partiu do silêncio das florestas para o tumulto das cidades veio descrevendo uma longa parábola da maior escravidão à maior liberdade Todo o alvo humano é o aumento da solidariedade é a ligação do homem ao homem diminuídas as causas de separação No princípio era a força no fim será o amor LENTZ Não Milkau a força é eterna e não desaparecerá cada dia ela subjugará o escravo Essa civilização que é o sonho da democracia da fraternidade é uma triste negação de toda a arte de toda a liberdade e da própria vida O homem deve ser forte e querer viver e aquele que um dia atinge a consciência de sua personalidade que se entrega a uma livre expansão dos seus desejos aquele que na opulência de uma poesia mágica cria para si um mundo e o goza aquele que faz tremer o solo e que é ele próprio uma floração da força e da beleza esse é homem e senhor O fim de toda a sua vida não é a ligação vulgar e mesquinha entre os homens CANAÃ o que ele busca no mundo é realizar as expressões as inspirações da Arte as nobres indomáveis energias os sonhos e as visões do poeta para con duzir como chefe como pastor o rebanho Que importam a solidariedade e o amor Viver a vida na igualdade é apodrecer num charco MILKAU Toda a marcha humana é uma aspiração da liberdade esta é o verdadeiro apoio o estímulo a razão de ser de uma sociedade A or dem não é um princípio moral é apenas um fator preexistente e indis pensável ao conceito social não pode haver sociedade sem ordem como cálculo sem números a harmonia existirá por momentos mesmo num regímen de escravos e de senhores mas será instável e sem a liberdade não há ordem possível a busca e a realização da liberdade como funda mento da solidariedade são o fim de toda a existência Mas para aí che gar que caminho não percorrer o homem A liberdade é como a pró pria vida nasce e cresce na dor LENTZ Oh mas essa dor deita gotas de amargura sobre a vitória Não o verdadeiro homem é o que se libertou de todo o sofrimento aquele cujos nervos não se contraem nas agonias o que é sereno e não sofre o que é soberano o que é onipotente o que tem sua integridade completa e fulgurante o que não ama porque o amor é um desdobra mento doloroso da personalidade MILKAU O que nos une solidariamente na humanidade é o sofrimen to Ele é a fonte do amor da religião e da arte e não se pode substituir a sua consciência fecunda pelo império de uma insensibilidade feroz LENTZ Quanto a mim penso que devemos voltar atrás apagar até aos últimos traços as manchas desta civilização de humildes de sofre dores de doentes purificarnos do seu veneno que nos mata depois de nos entristecer MILKAU Eu vejo na exaltação das tuas palavras que há em nós uma tristeza diversa diante do quadro da vida dos homens mas sempre tris teza e desespero O mal é universal ninguém está satisfeito por estes tempos todos se lamentam e nem senhores nem escravos nem ricos nem pobres nem cultivados nem simples têm o seu quinhão de alegria de satisfação como queriam E quando numa sociedade o indivíduo sofre essa gota de agonia é bastante para condenar todo o fundamento da comunhão Há uma crise em tudo o próprio solo é vacilante e trêmulo o mundo está abalado a atmosfera é irrespirável No meio de confusas aspirações neste contato estranho de sentimentos tão vários podese acaso fundar a harmonia sossegada e doce da vida A religião foise ela é do tempo e como o próprio tempo uma vez perdida não volta mais Uma civilização de guerreiros persiste no meio do surto da alma pacífica do homem Tudo se confunde se mistura e se repele num torvelinho de desespero A sombra do passado penetra demasiado na morada do homem moderno e enchelhe a casa de espectros e visões que o detêm e o perturbam E o futuro mensageiro do gesto consolador vem avançando a medo como um ladrão noturno Mas eu não esperei o seu passo vacilante e tardo despi a minha roupagem pesada e lépido então fui buscar o perfume e os alimentos que vagaroso e divino ele vem trazendo aos homens E como dentro em mim é doce a salvação LENTZ E para aí chegares Deixaste pátria família sociedade uma civilização superior MILKAU Deixei o que era vão LENTZ E à Europa e à Alemanha nada mais te prende MILKAU Somente o que elas têm de grande no passado Mas isto é o incorpóreo é o invisível e eu não preciso de me sentar sobre as ruínas para amálo É a obra da imaginação e da memória O meu culto ao que é humano é ativo reside na dupla consciência da continuidade e da indefinidade do progresso O que a Europa nos mostra como forma da vi CANAÃ da é apenas um prolongamento desarmônico das forças de ontem e das solicitações do presente LENTZ Não compreendo como por um ato de vontade se possa tro car Berlim pelo Cachoeiro De que cidade da Alemanha és tu MILKAU Sou de Heidelberg e de lá guardo as minhas mais longínquas recordações Vejome ao lado de meu pai dia e noite ligados como o cor po e a sombra Ele era um professor de colégio um desses universitários muito instruídos mas como a maior parte deles indeciso em sua vasta cultura escolar Meu pai Lentz era a própria doçura e as imagens que dele conservo no fundo da minha pupila são de um homem feito de sor risos suaves e inextinguíveis tinha uma inteligência sutil e aérea mas o pudor da audácia o entorpecia e por isso todo o seu grande capital de bon dade e de amor ficou sepultado no fundo do seu coração e o mundo o ignorou Ele continha e refreava a imaginação Oh como ele mesmo cria va barreiras ao seu espírito Os preconceitos chegavamlhe ao apelo da sua timidez e ele os acariciava como se fossem numes protetores Mas em tudo isto havia uma infelicidade funda que lhe devia ser o amargor da vida As suas expressões nunca transpiraram o sangue de todo o seu amor humano Foi o perfume que guardou no interior da alma sem o transfundir além e desse excesso de concentração veiolhe a morte LENTZ E nesse tempo que idade tinhas MILKAU Eu saía da universidade e entrava no mundo quando meu pai morria Minha mãe com lágrimas molhava noite e dia as saudades plan tadas no seu coração Ela foi mesquinha de dor e eu ameia até à sua morte como uma filha tamanhinha e mofina LENTZ E então MILKAU Depois de três anos dessa existência entre a recordação e a piedade parti de Heidelberg com a alma cheia de um grande silêncio Comecei a ouvir os acentos da minha própria voz GRAÇA ARANHA LENTZ E não te veio ao encontro uma voz de mulher MILKAU Não LENTZ E nunca amaste a mulher MILKAU Aos dez anos o amor começou em mim mas como tudo que nasce prematuro essa paixão de infância foi meio doença meio êxtase místico O que há em mim de sentimento religioso se desenvolveu então na adoração daquilo que eu buscava bens e males da minha vida eu atribuía só a esta influência poderosa e mortificadora E no entanto ela fugia de mim Longos tempos se passaram nessa enganadora caça todos os meus estudos os meus brincos os meus sonhos de criança tiveram a forma dos pequenos e intensos martírios eles vertiam lágrimas e suavam sangue Como estremeço ao lembrarme de tanta vida de tanto amor consumido por uma sombra Em vão Não sei Quando volto ao meu passado é ainda esse trecho do caminho da vida que mais me deleita sinto quanto ele é embalsamado pelo amor que aí passou como esse perfume que foi a minha purificação da adolescência vem até mim E a grande ventura quem sabe foi que sobre essa montanha de fogo formada em minha alma jamais desceu o sorriso a brandura a carícia que resfria e que funde e então eu ascendi ascendi Aos vinte anos estava tudo acabado A morte dela veio habitar a minha existência e não me consolei longo tempo até que outro amor e esse o grande o único me viesse possuir sempre E Milkau foi interrompido pelo repique de campainhas que descia pela estrada redobrando a amplidão das vozes sonoras no silêncio da mata Pou co a pouco estes sons perdiam a doçura melancólica e se confundiam com gritos humanos e tropel de animais Não tardou que os dois amigos vissem uma tropa que vinha das terras altas em direção ao Porto do Cachoeiro 16 A mula da frente marchava enfeitada de fitas de cor que lhe embaraçavam os meneios da cabeça Milkau e o companheiro encostaramse para a beira CANAÃ da estrada apoiandose nas árvores e ainda assim os animais procurando o trilho habitual roçavamlhes ao corpo as bruacas de café e os olhavam com os seus olhos de besta imensos tristes e insondáveis Os tropeiros em sua maioria eram mais brancos que mulatos porém os gritos as ordens as pragas de uns e outros eram ditos espontaneamente na língua de cada um A tropa passou caminho abaixo levando consigo o seu violento barulho que quebrava além o sono das coisas Atrás dela ficara um odor acre de café verde de poeira levantada e de lama revolvida a qual ali na sombra e umi dade das árvores não se extingue nunca Os dois amigos caminharam algum tempo calados mas uma ânsia de confissão e de abandono os estimulava naquele mundo estranho e eles ladeados de árvores sem fim tornavam com frenesi com excitação ao diálogo perpétuo dos temas eternos LENTZ Na verdade há muito pouco tempo eu não poderia imaginar me aqui nesta floresta Nós somos governados na vida pelo im previsto A história é muito simples disse Lentz como respondendo a uma interrogação escrita nos olhos de Milkau Questão de amor ou antes questão de consciência Amei uma mulher que pensei ser a criatura sublime que fraca ama o forte que humilde ama o soberbo E nós fomos assim pelo caminho suntuoso da minha fantasia arrastandoa eu após mim já pela solidão das montanhas de neve já pelos lagos verdes que refrescam as terras já pelas cidades traficantes e vis Minha amada conheceu as vibrações infinitas da volúpia minha amada amou no san gue na carne e depois disto eu a julgava recompensada e feliz mas um dia revoltouse e a alma da mulher do ocidente que a longa cobardia dos homens já fez eterna nela se despertou para exigir de mim a minha escravidão Encontrou apoio nos preconceitos cristãos de meu pai nos escrúpulos e temores de mina mãe que me procurava dissolver ao bafo de sua ternura mórbida Resisti O pai de minha amada era um velho general companheiro de armas do meu e ele pedia a minha família uma reparação por aquilo que tinha sido o ato da independência da minha extrema sensibilidade E o que é pior no meu grupo social formouse em torno de mim uma atmosfera de reprovação todos se julgavam limpos de consciência para se afastarem de mim com desdém E confesso oh vergonha não pude suportar essa pressão coletiva dos meus camaradas dos indivíduos da minha classe O homem levará ainda muito tempo Milkau a libertarse do grupo a que pertence a emancipase dessa tirania poderosa que lhe anula a individualidade e lhe traça na fisionomia as linhas de uma máscara comum e sem distinção própria ou seja a família ou seja a classe ou seja a raça A minha arrogância entibiouse o que há em mim de cobarde de escravo entorpeceu a energia de minha atitude o que há em mim de aquisição intelectual conjunto de idéias árdegas e aceleradas foi morto pelo antigo e implacável sentimento Então fugi deixando os meus estudos de universidade a minha posição a minha família a minha fortuna O que eu buscava em troca de tudo que deixei era um mundo maior ainda virgem e intemerato do contato lascivo e deprimente dessa moral cristã era um verdadeiro domínio para o homem novo para quem saltando por cima dos séculos da humildade quer dar a mão aos antigos e com eles e sob o influxo deles renovar a civilização e produzir um mundo que seja o reino da força radiante e da beleza triunfal E parti então para a virgindade destas selvas com o ímpeto de viver nelas solitário na exaltação do meu ideal ou de um dia as transformar em um império branco que é o desejo e a razão do meu sangue Viajei longamente até agora O mar foi para mim a primeira grande sensação da liberdade sobre ele sonhei e vivi intensamente o gozo do pensamento puro mas não vivi o mar porque não atuei sobre ele e a vida é a ação MILKAU O que cada um de nós procura é tão diverso Também como tu deixei terra natal sociedade civilização em troca de bens CANAÃ maiores de bens eternos A minha trajetória vem de época mais remo ta Depois da morte de minha mãe o meu primeiro desejo foi sair de Heidelberg e buscar a vida em outra parte Berlim me atraía e julguei aí encontrar uma solução à minha existência então vaga e sem objetivo O que mais me atormentava era a consciência de que começava a viver por viver sem interesse na vida Afastado de qualquer crença religiosa sem uma idéia moral que fosse meu apoio o infinito para mim não existia a sociedade não me preocupava e a consolação não me podia vir do nada A minha existência era vagar com os companheiros fortuitos sem saber aonde os meus passos iriam findar Vivia vacilante e fugitivo buscando no exterior a calma para o espírito eram passeios intermináveis eternas caminhadas pelas ruas pelos parques da cidade pelos bosques calados Mas as minhas cismas eram as mesmas e eu sempre me prendia ao pas sado do meu coração invocando as três imagens dos que amei e cujos retratos povoavam o meu quarto e elas as minhas saudades Nesta época a minha não conformação ao mundo era cada vez maior sentiame cres cer dentro de mim mesmo numa aspiração indefinível de amor de calma de sonho que sempre me fugiam a minha tortura era infinita a minha melancolia acabrunhadora Minha amada minha mãe meu pai Custavame já resistir a tanto a minha doença moral pareciame irre mediável a mim torturado de um desejo de realidades quando tudo me era indeciso e intangíveL Nada havia que me prendesse à vida o que eu amara tinha desaparecido o que amo hoje não me tinha chegado Vivia na desilusão a minha dúvida tinha espaços tão ilimitados que meu espíri to oscilava e se perdia no mundo das idéias e das emoções E então tive aquela ânsia torturante de resolver de qualquer modo de terminar as minhas vacilações e desalentado procurei realizar a ação pela única for ma que me parecia positiva na vida isto é pela morte Mas a contem plação da miséria moral em torno de mim susteve aquilo a que em minha insânia eu chamava o ato da vontade Todos os sofrimentos estranhos se infiltravam em minha alma as lentas agonias e os duros sacrifícios alheios eram o pasto da minha piedade No estado de espírito em que me achava só tinha inclinação para os que se assemelhavam a mim Eu sofria e a dor pela sua mão forte e santa me conduziu aos outros homens Refleti se todos sofrem e se resignam é porque a vida é mais desejável do que a morte e não é o suicídio uma salvação que deve ser coletiva Não se trata de libertar um só dos mártires é preciso que todos se salvem E o suicídio começou a morrer no meu pensamento enquanto o clarão benfazejo da solidariedade aí apontava Não me restava agora para combater o desespero senão procurar na mesma vida a razão que me curasse do mal da morte e fosse um desafogo aos meus novos sentimentos Olhei todas as vias que se podiam abrir diante de mim Compreendi logo que não podia continuar na posição que tinha de crítico literário em um jornal de Berlim faltavame agora o ânimo de falar de livros inspirados em uma arte vazia sem ideal e saturada de sensualidade Convencime ainda mais da falsa situação em que estava fazendo parte do grupo de ignorantes e dogmáticos que envolvidos nos mistérios da imprensa exploram os outros homens cuja credulidade voluntária é ali como em toda a parte a forma de sua cumplicidade na perpetuação do mal sobre a terra E agora para onde ir perguntava eu humilhado Que profissão será a minha neste quadro do mundo A política A diplomacia A guerra Lentz Sim a guerra Porque ela é forte é digna O mundo deve ser a morada deliciosa do guerreiro Milkau Aquelas duas vidas a do político e a do diplomata eram vãs para quem não escutava a voz da comodidade ou da ambição para quem não queria definhar na esterilidade e no egoísmo para quem buscava o que é eterno A guerra é uma volta ao passado a um ideal morto para CANAÃ a civilização e de que o meu novo pensamento ainda mais se afastava Não tinha aonde ir e neste embaraço a minha crise prolongavase pois não era mais escolher entre a vida e a morte e sim entre qualquer vida e uma vida Essa uma vida que eu sonhava que eu queria e por toda a parte procurava não podia descobrir Não podia ir às oficinas ir à indústria porque aí não encontrava ainda a atmosfera para a minha inde pendência e o meu amor Não se tratava só de trabalho tratavase tam bém de uma livre expansão da individualidade e a indústria nesta velha civilização é um desfiladeiro apertado de combate no meio da sociedade que ela divide em senhores e escravos ricos e pobres A minha angús tia continuava e por entre esses tormentos a minha existência solitária se ia passando na contemplação reconfortante da Arte A Beleza entrava no meu espírito como um doce sustento Ou mirando a linha triunfal da estatuária ou agitandome ao vivo movimento do gesto ou aquietando me à serenidade da atitude repousada eternamente no mármore ou embebendome na poesia infinita da cor no enigma insondável da figu ra humana o meu espírito descansava e apoiavase para a existência E então pusme a viajar longos dias pelas antigas paragens onde a arte busca ainda a sua fonte de mistério e rejuvenescimento Foi pela arte que comecei a amar a natureza pois até então a minha atenção ao mundo exterior era vaga e incerta eu só tinha os olhos voltados para o meu caso pessoal para as minhas cismas longas e indefinidas No momento em que tratei a arte em que me possuí da beleza a minha vista se alongou pelo mundo afora e eu vi o esplendor por toda a parte Os panoramas do céu passaram a interessarme profundamente dias inteiros a admirar a lim pidez da atmosfera outros a perder os olhos no cristalino do ar outros a sonhar na imensidade das cúpulas azuis límpidas e infinitas que são o espaço Vi o mar o pequeno mar do sul da Europa suntuoso e doce que estreita a terra cheia de anfractuosidades as quais são abrigos para os GRAÇA ARANHA homens mar que não espanta mar amigo que é um traço de união entre as gentes e de outras praias brancas imensas espiei o outro mar o mar tenebroso que apavora que domina e que é em si mesmo como a pró pria liberdade inacessível tentador e indomáveL O meu deslumbra mento pela natureza afastavame de tudo o que não fosse contemplação Carregando por toda a parte a minha admiração sucediame passar lon gos tempos solitário nas florestas nos lagos e nos campos num êxtase de louco a extrair das coisas a suma da beleza Vivia mais das impressões da luz sobre o quadro onde se desenrola a vida que dos alimentos da terra No outono o sol abrasa as árvores amarelas e sobre elas a Morte é uma glória de ouro No inverno os esqueletos das árvores cobremse de branco como uma paisagem fantástica e morta e desce sobre a terra uma neve abundante vadia pelos ares leve como arminho farfalhante como a areia No tempo dessa única preocupação reinava em meu espírito um esquecimento do futuro e esse olvido me parecia a felici dade pela hipnose com que adormecia a minha consciência Assim vivi longo tempo e tão engolfado no meu culto que atravessava estranho e silencioso o mundo Viajava dentro do meu êxtase que era como um carro de ouro levado pelos cavalos árdegos da imaginação e transporta do pelos caminhos deslumbrantes das regiões plácidas e misteriosas da beleza imortaL Ao estado de desvario artístico sucedia em mim um desejo de mortificação e sofrimento Ressuscitar em pleno domínio do sensualismo a vida solitária dos monges evaporar a minha animalidade e dissolvêla na combustão de um sentimento ativo e fecundo tal foi a nova via por que caminhei Concentrado num lugarejo encravado no coração dos Alpes da Baviera absorvime no estudo e na cisma LENTZ E a consolação Não te veio MILKAU A princípio iludime pensando que não havia outra exis tência tão forte tão nobre mas os velhos monges tinham como sus tento o con solo da adoração O meu isolamento era apenas intelectual uma forma de desdém do mundo uma expressão mesquinha de quem foge do seu lugar na vida Depois dos primeiros momentos de prazer e tranqüilidade a minha cobardia me atormentava infinitamente e a solidão passou a ser um estado aflitivo Hoje Lentz quando penso no isolamento a que um homem se consagra penso sempre no deleite desse refúgio penso que é um sacrifício mas também que é uma manifestação de estéril orgulho O ascetismo é como uma ilha solitária que arde no meio do mar os seus fogos deslumbrantes têm um fantástico poder de iluminação sobre o mundo mas as suas labaredas afastam dela os homens E eu não podia consumirme nessas chamas pois já trazia dentro de mim a porção de humanidade que me conduzia à vida Então uma manhã desci das alturas Aqui nos meus olhos ainda tenho guardado até hoje o último espetáculo das montanhas glaciais Nunca mais tornarei à geleira fumegante nem sobre os blocos de gelos das brancas e frias pedras verei mais descansar a luz rósea do sol Paisagem solitária e morta como se fosse um fundo de mar seco e sobre ele os fragmentos da vida passando carregados ao sopro do vento gelado Adeus montanhas de silêncio de consolo e de imolação Quando cheguei abaixo era outro homem O amor dentro de mim sorria amparavame e um bemestar infinito nunca mais me deixou O que eu amava era fazer amar gerar o amor ligarme aos espíritos dissolverme no espaço universal e deixar que toda a essência de minha vida se espalhasse por toda a parte penetrasse nas mínimas moléculas como uma forca de bondade Lentz Não não A vida é a luta é o crime Todo o gozo humano tem o sabor do sangue tudo representa a vitória e a expansão do guerreiro Tu eras grande quando a sua sombra sinistra de solitário passeava nos Alpes e amedrontava os ursos Mas quando o amor penetrou em ti começaste a minguar a tua figura de homem vai se apan do e eu verei o teu semblante um dia sem luz sem vida sem força mirrado pasto da tristeza Milkau O princípio do amor me sustenta e protege Eu sou daqueles que foram por ele consolados Ia terminar o drama íntimo do meu espírito e concluirse a passagem dolorosa de um estado de moral hereditária para uma consciência pessoal Refletindo sobre a condição humana o meu pensamento se esclareceu quando vi a marcha da humanidade partindo da escravidão inicial No princípio era o caos massas informes apresentavamse como manchas de nebulosas cobrindo a terra pouco a pouco dessa confusão cósmica os homens se destacaram e as personalidades surgiram enquanto os outros ainda jazem informes na matéria geradora Mas um dia chegará também para estes a hora da criação o amor os reclamará à vida pois criar homens é a sua obra Um dia será a subordinação de tudo a todos para maior liberdade de cada um E a parábola que descreve a vida da grande escravidão para a maior individualidade Lentz Olhando a floresta Vê como tudo te desmente Esta mata que atravessamos é o fruto da luta a vitória do forte Cem combates travou cada árvore para chegar à sua esplêndida florescência a sua história é a derrota de muitas espécies a beleza de cada uma é o preço da morte de muitas coisas que desde o primeiro contato da semente poderosa foram destruídas Como é magnífica aquela árvore amarela Milkau O ipê o sagrado paudarco dos gentios desta terra Lentz O ipê é uma glória de luz é como uma umbela dourada no meio da nave verde da floresta o sol queimalhe as folhas e ele é o espelho do sol Para chegar àquele esplendor de cor de luz de expansão carnal quanto não matou o belo ipê A beleza é assassina e por isso os homens a adoram mais O processo é o mesmo por toda a seu espontâneo e feliz início Era um pequeno núcleo industrial da colônia Enquanto por toda a parte na mata espessa outros se batiam com a terra aquela pouca gente se entretinha nos seus humildes ofícios Milkau e Lentz percorriam o lugarejo notando a música vivaz e alegre formada pelos vários ruídos do trabalho17 Na oficina um velho sapateiro de longa barba e mãos muito brancas e esguias batia sola Lentz achouo venerável como um santo Um alfaiate passava a ferro um pano grosso mulheres fiavam nos seus quartos cantarolando outras amassavam o trigo e preparavam o pão outras em harmônicos movimentos peneiravam o milho para o fubá sempre o pequeno trabalho manual humilde e doce sem o grito do vapor e apenas como única máquina um pequeno engenho para mover os grandes foles de uma forja de ferreiro que a água de uma represa fazia rodar com estrépito sonoro E todo esse ruído era vivo e abençoado todo ele se entretécia sem violência e mesmo o malhar do ferro não destoava do metálico clangor de uma clarineta em que o mestre da banda de música de Santa Teresa dava a lição matinal aos seus discípulos Havia uma felicidade naquele conjunto de vida primitiva naquele rápido retrocesso aos começos do mundo Ao espírito desmedido e repentista de Lentz esse inesperado encontro com o Passado parecia a revelação de um mistério Isto é uma glória disse ele interrompendo o silêncio em que iam estes pobres que trabalham mediocrement com as próprias mãos estes homens que se não mancham nos fumos de carvão que se não embrutecem no barulho das máquinas que conservam toda a frescura da alma que se bastam a si mesmos que fazem cantando o pão as vestes são os criadores simples e naturais e a criação é neles uma feliz satisfação do inconsciente Milkau também admirava orgulhoso de ser homem naquele alto de montanha onde o trabalho tinha o seu cenário tranqüilo mas como enxergasse no louvor de Lentz o espírito negativo deste observou G R AÇA ARAN H A assim O s seres são desiguais mas para chegarmos à unidade cada um tem de contribuir com uma porção de amor O mal está na força é necessário renunciar a toda a autoridade É preciso não perturbar a harmonia dos movimentos e da espontaneidade de todos os seres Diante da obra da civilização o papel de cada um é igual ao do outro a ação dos grandes e dos pequenos confundese no resultado A História testemunha que a cultura não é somente a obra do crime e do sangue ao lado da ação moral concorrem as alavancas da simpatia A obra do passado é ainda venerável porque é sobre ela que se fun dará o futuro Não amaldiçoemos a civilização que nos veio no sangue antigo mas façamos que este sangue seja cada dia mais amoroso e menos carniceiro Que os nossos mais entranhados instintos da ani malidade se transformem no vôo luminoso da piedade da dedicação e do amor Era finda a viagem Os dois homens fitavam o sol que rubro rola va para debaixo das montanhas Os dois homens fitavam a Morte que se vinha apoderando docemente das coisas 74 3 M ilkau sentado à porta da pequena estalagem de Santa Teresa onde dormira estava contemplando a vida que se despertava em torno quando Lentz saindo por sua vez do quarto veio encontrálo com uma expressão repousada e jovial levemente excitado pela fres cura e sutileza do ar Milkau alegrouse vendo o seu companheiro de destino e saudouo com um sorriso de ternura Pouco depois iam jun tos pela pequena povoação agora acordada e radiante na sua ingênua simplicidade As pequenas casas todas brancas e toscas abriamse cheias de luz como olhos que acordassem Assim escancaradas e iguais se enfileiravam em ordem O seu conjunto uniforme era o de um pombal suspenso na altura silenciosa da montanha Em roda circunscrevendo a povoação um parque verde assinalado de árvores salteadas e por onde passavam cantantes fios de água corrente que eram a alma da paisagem Os dois imigrantes sentiamse transformados por uma paz íntima por uma consoladora esperança diante do quadro que lhes mostrava a população Viam todo o povo trabalhando às portas e no interior das casas com tranqüilidade e todas as artes ali renascer na singeleza do parte e o caminho da civilização é também pelo sangue e pelo crime Para viver a vida é preciso ir ao último grau de energia é preciso não a contrariar Aqueles que cruzam as armas são os mortos Os grandes seres absorvem os pequenos É a lei do mundo a lei monárquica o mais forte atrai o mais fraco o senhor arrasta o escravo o homem a mulher Tudo é subordinação e governo Milkau Olhando a mata A natureza inteira o conjunto de seres de coisas e homens as múltiplas e infinitas formas da matéria no cosmo tudo eu vejo como um só imenso todo sustentando em suas ínfimas moléculas por uma coesão de forças uma recíproca e incessante permuta num sistema de compensação de liga eterna que faz a trama e o princípio vital do mundo orgânico E tudo concorre para tudo Sol astro terra inseto planta peixe fera pássaro homem formam a cooperação da vida sobre o planeta O mundo é uma expressão da harmonia e do amor universal E apontando para a vegetação no alto de uma rocha Na verdade a vida dos homens na terra é como a daquelas sobre a pedra O cume da montanha era uma laje estéril e sobre ela não frutificavam as sementes de árvores e de grandes plantas trazidas pelos pássaros e pelos ventos Um dia enfim trouxeram eles sementes de algas e vegetais primitivos para os quais o mineral da terra é um alimento Muito tempo passado quando aquelas sementes primeiro rejeitadas foram de novo para ali carregadas já encontraram a terra formada pelas algas e sobre elas medraram espalhando pelo chão a sombra protegendo os primitivos moradores da pedra que então ousaram crescer entrelaçandose nos troncos das árvores no corpo de suas filhas Do muito amor da solidariedade infinita e íntima surgiu aquilo que nós admiramos um jardim tropical expandindose em luz em cor em aromas no alto da montanha que ele engrinalda como uma coroa de triunfo A vida humana deve ser também CANAÃ Realmente é um belo quadro esse que vemos e o espetáculo de um trabalho livre e individual nos embriaga de prazer Mas no fundo assistimos a um começo de civilização é o homem que ainda não venceu grande parte das forças da natureza e está ao lado dela numa postura humilde e servil Mas quem pode negar que o homem servo da máquina se vai afun dando num embrutecimento pior que o do selvagem replicou Lentz Para mim há uma ilusão nesse sentimento romântico Sim a má quina especializando e eliminando os homens tiroulhes a percepção integral da indústria hoje porém que o homem a transformou em um instrumento de movimentos próprios ele se libertou readquiriu a sua inteligência dirigindo o maquinismo engrandecido quase à altura de um operário Nós não podemos fazer que a massa da civilização retroceda a esse antigo período da indústria A poesia que há nele é o perfume mis terioso do passado para o qual nos voltamos atemorizados mas há tam bém uma poesia mais forte e mais sedutora na vida industrial de hoje e é preciso considerála pelo seu prisma luminoso como uma aurora Pois eu repetia Lentz inabalável enquanto passeava ao lado de Milkau tenho como sagrada toda essa gente merecem mais o meu amor que essa infinidade de proletários cheios de ambições famintos e pavorosos procurando governar o mundo Ao menos estes aqui puros de todo o pecado de orgulho são bons e ingênuos e suportam o seu jogo com um sorriso Passearam ainda algum tempo sentindo uma entranhada dificuldade em abandonar aquele lugar Dirigiram os passos para os caminhos que abeiravam Santa Teresa Procuravam as pequenas elevações giravam abaixo e acima pelo parque paravam à porta das casas miravam aten tos o serviço que nelas se fazia sorriam às crianças e perseguindo com olhos de admiração as saudáveis raparigas enrubesciamnas E em tudo isso GRAÇA ARANHA se recreavam mansamente deixandose ir na inconsciência desses atos espontâneos que os retinham alguns minutos no povoado Mas afinal tive ram de se arrancar ao descuidado repouso Uma filha da hoteleira levouos até à boca do caminho do Timbuí Com mil perguntas a prenderam uns instantes agradados do seu rosto delicado da sua forte e fulva cabeleira Lentz via na rapariga uma divindade estranha naquela floresta verde mas uma divindade meiga como eram os habitantes de Santa Teresa A jovem estendeu o braço longo indicandolhes o caminho Eles admiraram lhe o gesto o ar a graça e partiram como num sonho A princípio iam meio apreensivos e calados como quem parte para o desconhecido A estrada por cima dos morros descampados ora des cia ora subia O panorama largo ousado fecundo variava de aspectos cheio de montes vales florestas ribeiros e cascatas Era um trecho de uma região poderosa e opulenta da terra brasileira Dentro dela se abrigava a multidão de bárbaros e de estranhos ali recebidos com bran dura e carinho Milkau e Lentz passaram pelas casas de colonos agricul tores as quais viam pela primeira vez e sem nelas penetrarem pu nhamse a mirar de fora esses retiros encantados de verdura de tran qüilidade e abundância E as casinhas sucediamse por todo o vale abrigadas umas no fundo seio dos morros outras dependuradas na en costa destes todas com disposição e graça uniformes Havia fumo em todas as chaminés mulheres em suas ocupações do mésticas animais e crianças debaixo das árvores homens metidos na som bra fresca dos cafezais que rodeavam as habitações E os dois imigrantes no silêncio dos caminhos unidos enfim numa mesma comunhão de es perança e admiração puseramse a louvar a Terra de Canaã Eles disseram que ela era formosa com os seus trajes magníficos vesti das de sol coberta com o manto do voluptuoso e infinito azul que era animada pelas coisas sobre o seu colo águas dos rios fazem voltas e outras enlaçamlhe a cintura desejada as estrelas numa vertigem de admiração se precipitam sobre ela como lágrimas de uma alegria divina as flores a perfumam com aroma estranho os pássaros a celebram ventos suaves lhe penteiam e frisam os cabelos verdes o mar o longo mar com a espuma dos seus beijos afagalhe eternamente o corpo Eles disseram que ela era opulenta porque no seu bojo fantástico guarda a riqueza inumerável o ouro puro e a pedra iluminada porque os seus rebanhos fartam as suas nações e o fruto das suas árvores consola o amargor da existência porque um só grão das suas areias fecundas fertilizaria o mundo inteiro e apagaria para sempre a miséria e a fome entre os homens Oh poderosa Eles disseram que ela amorosa enfraquece o sol com as suas sombras para o orvalho da noite fria tem o calor da pele aquecida e os homens encontram nela tão meiga e consoladora o esquecimento instantâneos da agonia eterna Eles disseram que ela era feliz entre as outras porque era a mãe abastada a casa de ouro a providência dos filhos despreocupados que a não enjeitam por outra não deixam as suas vestes protetoras e a recompensam com o gesto perpetuamente infantil e carinhoso e cantamlhe hinos saídos de um peito alegre Eles disseram que ela era generosa porque distribui os seus dons preciosos aos que deles têm desejo a sua porta não se fecha as suas riquezas não têm dono não é perturbada pela ambição e pelo orgulho os seus olhos suaves e divinos não distinguem as separações miseráveis o seu seio maternal se abre a todos com um farto e tépido agasalho Oh esperança nossa Eles disseram estes e outros louvores e caminharam dentro da luz Já traziam cinco horas de Santa Teresa quando chegaram à margem do Rio Doce Mal tiveram tempo de dar uma vista dolhos pela redondeza porque saindo de um barracão verde ali situado o agrimensor Felicíssimo se lhes dirigiu com o triângulo moreno do seu rosto escancarado num grande riso de vida e bondade Então gritou de longe isso são horas de chegar E sem esperar resposta foi ao encontro dos dois alemães com as mãos estendidas Milkau pensou que era o gênio da raça originária e senhora daquela terra que se lhes deparava numa alegria estrepitosa e confortante Ah meu caro disse Lentz por um pouco ficávamos por esses caminhos ajoelhados adorando esta sua bela terra Não há dúvidas isto é mesmo um paraíso concordou com entusiasmo o agrimensor E os outros começaram a contarlhes com exaltação as suas primeiras impressões Felicíssimo porém interrompeuos preocupados pelo instinto da hospitalidade Onde almoçaram Posso arranjar aqui alguma coisa para entreterem o estômago Obrigado disse Milkau Ao sairmos de Santa Teresa comemos alguma coisa que trazíamos e depois no caminho nos fartamos de laranjas no pomar de uma velha colona Ainda lhe trazemos algumas aqui Veja que beleza de fruta Ainda não viram nada respondeu o agrimensor recebendo as la 80 CANAÃ ranjas Não estraguem a admiração porque têm muito de que ficar de boca aberta Olhem não há Brasil como este e em tudo Encaminharamse para uma meiaágua coberta de zinco onde o agrimensor tinha o escritório cujo arranjo não podia ser mais simples alguns instrumentos de campo ao canto sobre uma mesa dois ou três grandes livros que eram o registro dos prazos arrendados ao colonos e na parede um grande mapa dos lotes de terra da região Nem um livro de leitura nem o quadro mais humilde nem uma fotografia ape nas um maço de jornais para desabafo da curiosidade do cearense Felicíssimo fazia também desse barracão o seu quarto de dormir de uma singeleza nômade Ao lado havia outro puxado maior que era o alojamento destinado aos imigrantes enquanto esperassem levantar nos lotes as suas casas Era espaçoso e arrumado como um dormitório de hospital tendo ao fundo uma pequena cozinha Felicíssimo porém abrira gostoso uma exceção para os dois estrangeiros agasalhandoos no barracão do escritório Os hóspedes agradeceram ao brasileiro amável e abancados todos nos quartos de dormir travaram conversas nas quais os imigrantes se foram informando de muitas coisas do lugar até que o agrimensor sentindo que o sol baixava lhes disse Ande daí gente Vamos escolher os lotes Passaram para o escritório e diante da planta dependurada acres centou Para mim o que mais lhes conviria seria o número dez Aí a terra deve ser esplêndida O diabo é que está enterrado em plena mata e vão ter muito trabalho para fazer a limpa Mas olhem que na verdade vale o esforço E Felicíssimo de varinha em punho para apontar no mapa todo assanhado interrogava os outros Milkau sem se preocupar muito com a escolha e querendo ceder por delicadeza à opinião do agrimensor aceitou o lote proposto Ele se rejubilava naquele dia glorioso com a miragem de um grande e santo labor Preparavamse para sair Chegando à porta Felicíssimo farejou o tempo com ares de entendido refletiu e ponderou aos companheiros Daqui ao lote dez é um pedaço não teríamos tempo de ir e voltar com o dia Mas se fazem questão De forma alguma respondeu Lentz é melhor ficar para amanhã Uma doce fadiga entorpecia os viajantes e eles deitados sobre a relva junto à casa em companhia do cearense ouviamlhe as histórias cismavam em coisas vagas e miravam o rio passar preguiçoso Um grupo de homens armados de ferramentas de campo apareceu à distância Vinham vagarosamente arrastandose pela estrada descampada junto à praia do rio Percebendo de longe que havia gente nova caminhavam silenciosos com o impulso sinistro e reservado que é o primeiro movimento do homem para o homem Chegados que foram saudaramsurdamente e calados entraram no interior do armazém para guardar as ferramentas Felicíssimo vendoos passar tão estranhos ficou surpreendido e gritoulhes Então camaradas O rumo está acabado Pronto disseram passando sem parar a um só grito feito da voz de todos e entreolhandose espantados por terem respondido ao mesmo tempo fazendo coro Milkau e Lentz admiravam a robustez daqueles homens com pulsos de ferro torso hercúleo barbas avermelhadas olhos de um azul de abismo muito parecidos como um grupo de irmãos Somente havia um mulato que entre eles se destacava Tinha a cara mascarada pelas bexigas era bronzeado usava uma pequena barba anelada e falha e o cabelo curto em pé sobre a testa Com os olhos rajados de sangue e os dentes pontiagudos de serra tomava por vezes a aparência de um 82 CANAÃ sátiro maligno mas essa impressão não era freqüente e rapidamente a desmanchava um riso fácil e ingênuo No meio da massa indistinta dos companheiros louros e pesados o cabra brasileiro tinha um ar vito rioso um ar espiritualizado Não havia na verdade entre ele e a terra um remoto convívio perpetuado no sangue e transmitido de geração em geração Pouco a pouco os homens foram se aproximando dos recémchega dos ouvindolhes silenciosos a conversa Como o sol se punha e as águas do rio se faziam cor de sangue Felicíssimo apontou para o céu mostrando a Milkau e a Lentz os bandos de aves que passavam na ilu minação do crepúsculo em longas teorias harmônicas Ah Um bom tiro exclamou o mulato saboreando com melan colia os efeitos criados em sua imaginação de caçador Qual Joca ali tu não apanhavas nada cabra disselhe a rir Felicíssimo em alemão Os camaradas aplaudiram Aposto seu cadete replicou o mulato com fanfarrice Se eu tivesse uma boa arma não ficava um bicho daqueles voando Era só pon taria no da frente e se a arma fosse espalhadeira havia de se ver As aves em bando continuavam serenas e soberbas no seu vôo Ou tras vinham ao longe Joca olhava seguindoas pesarosamente Admiravase Lentz do modo corrente por que o mulato falava ale mão apesar de rechear a frase de vocábulos brasileiros 18 E dirigindo se aos trabalhadores alemães perguntoulhes se falavam a língua do país Responderam que não E Felicíssimo observou a propósito Olhe não se admire desses homens que estão aqui há um ano ou pouco mais Há gente na colônia entrada há mais de trinta anos que não fala uma palavra de brasileiro É uma vergonha O que acontece é que os nossos tropeiros e trabalhadores todos falam o alemão Não sei GRAÇA ARAN H A não há povo como o nosso para aprender as línguas alheias Creia que é um dom natural Joca aprovou convicto e ajuntou que ele mesmo j á falava mais alemão que a sua língua e arranhava um pouco o polaco e o italiano No fundo do pensamento de Lentz houve um pequeno júbilo por essas confirmações da insuficiência do meio brasileiro para impor uma lín gua Esta fraqueza não seria a brecha para os futuros destinos ger mânicos daquela magnífica terra E pôsse a cismar com os olhos aber tos e fulgurantes Não estará longe o dia considerou Milkau em que a língua dos brasileiros dominará no seu país O caso das colônias é um acidente devido em grande parte à segregação delas no meio da população nati va Não digo que os idiomas estrangeiros não influam sobre o idioma nacional mas desta mistura resultará ainda uma língua cujo fundo cuja índole serão os do português trabalhado na alma da população por longos séculos fixado na poesia e transportado para o futuro por uma literatura que quer viver E sorria dirigindose a Lentz Nós seremos os vencidos Isto agradou a Felicíssimo Joca que de tudo só apanhou a frase fi nal olhou com superioridade a massa de seus companheiros alemães A profecia davalhe desde já um orgulho de vencedor Enquanto a conversação se ia desenrolando mansamente viram passar pelo caminho à beira do rio um velho muito alto e magro armado de espingarda e carregando um animal morto a gotejar sangue pelas feridas que Joca declarou ser uma paca O caçador era seguido por um bando de cães que o rodeavam ou o precediam todos muito árdegos de orelhas ora empinadas ora baixas exaustos da caçada boca aberta e língua de fora trêmulos nervosos a resfolegar quei mando o ar frio com ardente e inquieta respiração numa combustão CANAÃ que os envolvia de ligeiro fumo O caçador caminhava com passo rápi do os cães o acompanhavam ganindo e excitados pelo cheiro de san gue que escorria da caça Ah murmurou Joca com pena se nós apanhássemos aquele bichinho para a panela O caçador passou sem os cumprimentar É um selvagem disse Felicíssimo Mora por aqui interrogou Milkau É o vizinho mais perto do barracão mas nem por isso nos salva passa pela gente como se fôssemos cachorros respondeu Joca Há de ser algum solitário supôs Lentz Um arredio replicou o agrimensor não fala com pessoa algu ma que eu saiba vive só com aqueles cachorros que são valentes como feras E o velho sempre caminhava indiferente ao grupo de homens que o observavam até que se sumiu no mato Continuavam a tratar da vida singular que levava o caçador quando um dos camaradas se achegou a Felicíssimo prevenindoo de que po diam ir cear Ergueramse da relva uns espreguiçando os braços ou tros bocejando e tranqüilos e morosos entraram todos em casa Os trabalhadores do barracão armaram a mesa das refeições no dor mitório dos imigrantes e aí puseramse a cear A comida era simples e pobre o peixe salgado e a carneseca alimentação habitual dos ho mens do campo nos lugares do seu serviço e todos se banqueteavam alegremente alguns num prazer discreto e moroso outros espertos e faladores como Felicíssimo e Joca Lentz olhava agora as duas raças ali reunidas à mesa admirava o que havia de sólido e repousado nos gigantes alemães enquanto a facúndia interminável e mole do cearense e do mulato lhe trazia a sensação de enjôo de mar GRA Ç A ARA NHA No entanto Milkau estava solícito com todos alegrandose naquela co munhão entre as raças distintas vendo alargarse o destino da sobrevivente mesa comum que caía dos tempos como uma relíquia do patriarcado A sala era alumiada por um lampião de querosene e a luz turva e indecisa mas suficiente para que o novos colonos pudessem distinguir a fisionomia de cada trabalhador europeu até então para ele confundi dos numa só massa Uns eram já homens maduros e experimentados por longos sofrimentos outros novos e joviais geralmente fortes e mostrando uma calma indolente nos movimentos e nos olhos um longo descanso Comiam mais ou menos igualmente com medo e devagar Além do fundo uniforme da sua própria classe uma longa intimidade lhes dera em muitos pontos uma só feição Entretevese Milkau para conversar com os seus patrícios em inda gar dos lugares donde era cada um deles Quase todos procediam da Prússia Oriental da Pomerânia havia porém alguns que vinham das bandas do Reno De que lugar é perguntou Milkau ao trabalhador mais idoso De Germersheim Então somo quase vizinhos porque sou de Heidelberg O trabalhador sorriu feliz por ter encontrado um conterrâneo mas a sua alegria não passava de um gesto dolorosamente incompleto com o próprio espírito Para Milkau um compatriota era o apareci mento súbito e inesperado de todo o seu passado Uma incompreen sível saudade dos seus primeiros anos o mortificou um instante era como um arrependimento de não ter sido nos princípios da vida o homem de hoje Um desejo de voltar atrás de começar de novo de pagar em amor toda a indiferença que tivera pelas coisas da sua terra pelos homens da sua cidade pelo quadro enfim onde passara a sua mocidade silenciosa 86 Ah exclamou ligeiramente pensativo Então é da terra de Soror Marta Conheceu o Rochedo da Monja Sim Lentz perguntou se isso se ligava a alguma lenda E Milkau pediu ao trabalhador que narrasse essa tradição ignorada pelos que ali estavam Todos se voltaram para o emigrado do Reno O homem interrogado ficou um segundo atônito e irresoluto em sair da obscuridade coletiva e anônima em que até então estivera na mesa A princípio não disse uma palavra Coçava embaraçado a cabeça Joca a quem o silêncio de um instante perturbava e afligia voltouse para o companheiro alemão com os olhos esgazeados Desembucha homem de Deus é segredo gritou o cabra O alemão afinal resolveuse a falar olhando para todos muito espantado de se ver naquela situação saliente Na sua linguagem tosca contou que no tempo das cruzadas um duque apenas se casara partira a pelejar pela Fé Sua mulher ficara inconsolável com a separação temendo a morte do esposo fez voto de que se tornasse a vêlo o primeiro filho que tivessem seria consagrado ao serviço de Deus Voltou o duque e passado algum tempo nasceulhes uma filha que se chamou Marta A menina era de uma deslumbrante beleza e com pesar os nobres vizinhos que a queriam para esposa dos filhos viramna crescer morta para o mundo Apenas Marta se tornou moça entrou para o convento onde a sua piedade encantava ainda mais que a sua peregrina formosura O duque morreu na outra cruzada e a viúva sem mais filhos ficou isolada no castelo Eralhe único conforto ver a filha que de tempos a tempos ia visitála vestida de monja Uma vez quando esta atravessava o bosque para uma dessas visitas de consolação aconteceulhe encontrarse com um jo 87 GRAÇA ARANHA vem caçador filho de um conde palatino Deslumbrado o rapaz ficou louco de amor pela freira e silencioso seguiua até o castelo Lutou consigo por esconder a paixão criminosa mas foi impossível e venci do ansiado e ardente planejou raptar a monja Uma tarde disfarçado em aldeão o jovem conde bateu à porta do mosteiro para dizer a Marta que a duquesa estava a morrer A freira partiu logo para a casa de sua mãe O conde acompanhoua e quando chegaram ao lugar mais solitário descobriu o seu ardil e propôslhe fugirem e ocultarem o seu amor em outras terras Marta espavorida e virtuosa põese a correr O moço alucinado perseguea Vão os dois pela floresta como loucos A freira transviada toma um caminho que a afasta do castelo e no deses pero da fuga chega até o rio onde o conde a vai alcançando Um rochedo se abre e recolhe no seio da pedra a jovem monja Não acre ditou o conde na proteção de Deus e teimou em esperar a saída de Marta Ficou assim dias e dias ali vivendo encostado ao penhasco De dentro em vez de maldições vinha o eco das súplicas da freira pela sal vação da alma de seu malfeitor Passaramse meses anos o conde envelhecia a barba embranquecida alongouseIhe até aos pés e afinal o coração amolecido pelas orações da monja ficou expurgado da ten tação e ele convertido penitente entoava os hinos que Marta lhe ensi nava de dentro do rochedo inviolável Jurou então consagrarse ao serviço de Deus e no propósito de fundar uma ordem religiosa des pediuse da freira por entre lágrimas de arrependimento Partiu cur vado velho e cheio do espírito divino Abrese a rocha Marta sai na mesma juventude com que entrara Para ela assistida e alimentada pelos anjos o tempo não havia percorrido e restavalhe a ilusão de ter apenas passado um dia encerrada na pedra Confusa medrosa parte para o convento Durante a sua ausência as freiras ouvindo contar na sua cela uma voz celestial passaram todo o tempo ajoelhadas à porta rx 8 8 L CANAÃ embevecidas presas à melodia rezando em êxtase Quando Soror Marta saiu do rochedo parou a voz na cela e as freiras desprenderam se do encanto voltando aos seus labores Marta corria para o mosteiro e no seu caminho o tempo que era de inverno iase mudando em primavera abrindose em flores o campo mirrado Entrou no con vento e tudo estava como deixara anos antes Ali também o tempo não correra Arrojouse a monja aos pés da superiora confessando os perigos da sua ausência A pobre madre acreditou que era um instante de alucinação e disselhe que ela não se tinha afastado do quarto onde cantara os mais belos louvores a Deus Atônita Marta recolheuse ao seu aposento de onde no mesmo momento viu sair um anjo que a substituíra na ausência e que era a sua imagem A ceia iase acabando sob a apreensão vaga que no ânimo dos traba lhadores deixava a evocação das lendas natais Pouco a pouco cada um se foi erguendo e deixando a sala Não tardaram a se juntar fora no ter reiro à aragem fria da noite Milkau e Lentz também se chegaram aos outros e todos na solidão que era ali se reuniam mais e mais em Íntima comunhão Os homens deitaramse na relva voltados para o rio que era uma faixa fosforescente e trêmula de que parecia irradiar toda a luz que atenuava a escuridão da noite A conversa era morna e trôpega coxean do sobre assuntos incertos pois mais forte que estes havia em cada espírito uma idéia Íntima longínqua e poderosa que teimava em se fixar E um dos homens foi o intérprete de todos quando disse Há muito encantamento neste mundo de Deus Sempre se deve andar prevenido pois ninguém sabe o que lhe está reservado sofrer e ver Donde menos se espera surge um perigo Os outros pensativos concordaram num brando murmúrio caindo outra vez em silêncio Lentz quis levantarlhes o espírito e pôsse a negar GRAÇA ARANHA bruxas milagres e encantados Falou longamente mas sem força de abalar as convicções plantadas desde séculos às fontes daquelas almas E quando ele acabava dizendo As bruxas já morreram há muito tempo e elas sempre foram estas mesmas mulheres que vocês amam um dos mais velhos não gostou do tom da negação e replicou Não diga tal moço os homens devem tomar cautela nos seus amores Quantas desgraças não lhes acontecem por se fiarem em vozes e cantigas de mulheres Cada um lembrou uma história da sua localidade originária Ali no serão da terra tropical surgiram chamados pelas evocações dos emi grados os heróis os semideuses saxões as ninfas do Reno os gigantes com o seu cortejo de anões fantásticos Os dois brasileiros interes savamse ardentemente por esses contos vindos de um mundo desco nhecido e que lhes sugeriam a reminiscência de tantas outras histórias européias a eles transmitidas e adulteradas pelos povos brancos pri meiros geradores da sua raça mestiça Mas agora as lendas volviam às suas origens vinham mais puras mais lindas com o seu caráter imune de contatos estranhos e com que sabor não escutaram as façanhas de Siegfried filho de Sigisberto as suas proezas no castelo do Nivelino seu combate com o gigante a derrota do anão Alberico guarda dos tesouros fabulosos e depois as suas lutas as porfias com a bruxa Brunhilde rainha da Islândia em que ele combatia invisível pela força mágica do seu chapéu encantado vencendo a mulher para entregála ao esposo até que um dia morre o herói atravessado por uma lança que o atinge no único ponto vulnerável do corpo E com que paixão não ouviram eles tratar da bela Lorelei ora benfazeja protegendo os habitantes de sua vizinhança ora vingativa fazendo abrir as águas do Reno para engolirem os ousados que procuravam verlhe o semblante misterioso e que antes de morrer enlouqueciam ouvindo os seus cân CANAÃ ticos Vinha nessa história a paixão do conde palatino pela fada se duzido pelas suas vozes mágicas até que um dia avistando Lorelei so bre o rochedo com a lira na mão desmaiou e a fada o transportou para o seu palácio de cristal no fundo das águas azuis E a tristeza no caste lo o velho pai louco a procurar o filho até que vendo a ninfa lhe pede que o restitua e ela soberana divina como um símbolo responde ao som da harpa O meu risonho palácio de cristal é no seio da onda e para lá longe do vosso mundo levei o meu amante fiel e leaL Quando essa história acabou alguns passaram a comentála no cír culo de suas nevoadas idéias E Joca declarou que não tinha medo de mãesd água Como Os outros escarnecessem dele instou fanfarrão Não se arreceia de mulheres mesmo diabas ou feiticeiras quem já teve trabalho com currupira Milkau achou esse termo estranho de um belo e raro acento de lin guagem considerouo como uma dessas palavras ricas de som do idioma brasileiro enxertadas no velho tronco da língua mas como não soubesse a significação do nome nem a lenda nativa que a ele se prende disse num tom familiar ao mulato Contenos isso Joca Ah respondeu este preparandose para narrar não foi por estas bandas foi no Maranhão porque eu sou de lá Meu tio Manoel Pereira na Fazenda do Pindobal me dizia sempre Rapaz sossega com essas via gens noite e dia no mato por causa de rapariga que uma vez currupira te pega Toma tento contigo Moleque que era eu desempenado e de topete ria das palavras do velho Eh meu tio Deixe de abusão para ame drontar gente pavorosa Qual currupira é fantasmagoria E tio Manoel Pereira passava a me contar rodelas e sempre arrematava Rapaz Toma tento Um dia nós tínhamos acabado de recolher o gado ao curral Meu cavalo estava esfalfado de cercar um garrote arisco que depois de muito pelejar eu trouxe da restinga na ponta do laço Chegados que fomos peei o Ventania que coitado lá se foi para o campo frouxo e meio descadeirado Meu tio gritou para pôr a janta O sol já estava esfriando quando nos pusemos à mesa meu tio que era o vaqueiro da fazenda e nós seus quatro ajudantes Os cabras traziam uma fome canina que espantava minha tia Eh gente dizia a velha nos servindo parece uma fome de Satanás Tesconjuro O que é certo é que as curimatás voaram para dentro as bananas não ficaram atrás e nós rematamos a bóia com um trago da branca Depois nos assentamos na soleira da porta em frente ao curral Àquela hora as vacas choravam de cortar o coração lambendo a bezerrada que do outro lado se roçava na cerca Eu estava derreado como um bode lasso Os outros estavam na mesma conformidade Mas vai o Manoel Formoso e me diz Tu não sabes do baile da Maria Benedita Oh cabeça que era minha não me lembrava mais desse ajuntamento marcado para aquela noite No sábado passado tinha tratado com a Chiquinha Rosa nos encontrarmos na ramada onde era a festa Eu andava de namoro com a cabocla moça espigada como palmeira com sua cabecinha de sururina Uma vontade de ver a Chiquinha me assanhou o corpo e me fez espertar Pois sim Vamos daí Manoelzinho E o Formoso se desculpou disfarçando só ouvir o cabra se via logo que tinha algum negócio estipulado para outra banda Os outros camaradas eram já maduros e casados não formavam para a patuscada Fiquei um tempinho meio desalentado mas a idéia da rapariga me levantou o corpo cansado Ah meu sangue fica quieto Bem então já que ninguém me acompanha vou só porque filho de meu pai não enjeita divertimento disse meio arrevesado aos cabras moles Levanteime em direção à fonte e tio Pereira que me circundava num tudo entrou a ralhar Rapaz tu estás maluco Larga de banho a esta hora que tu apanhas maleitas Depois é só trabalho para os outros CANAÃ Não me importei com a fala do velho e parti para a fonte Ainda era bem de dia Atireime à água que me deu um frio nos ossos Dei um mer gulho e umas parapernadas com intenção de espantar algum jacaré que andasse na vadiação Passei depressa para meu rancho para mudar de roupa prepareime com camisa e calça alva enrolei no pescoço o lenço encarnado que tinha comprado a um barqueiro no porto Bati na porta de tia Benta pedi um pouco da sua pomada de cheiro e com poucas estava na ordem O meu lenço branco estava desde a semana passada com a Chi quinha para guardar no seio e perfumar com o seu cheiro Ela havia de me dar no baile Tio Pereira me vendo de viagem disse Volta cedo que de manhãzinha logo ao entrar da lua nós vamos fazer matalotagem na Fazenda da Marambaia Sim meu tio Vosmecê pode ficar sossegado que estou de volta a tempo no seu quarto às horas Não quis mais conversa com o velho E me pus no olho do mundo com passo de ema escabreada Do Pindobal à ramada da Maria Bene dita eram bem umas duas horas de marcha Atravessei todo o campo da nossa fazenda com vista a alcançar a ponta do Guariba e me lembro como se fosse hoje tudo estava bem seco o pouco gado magro que havia estava parado com os olhos tristes de peixe morto virados para o lado do sol que se sumia só se ouvia um barulho de porcos que focinhavam a terra à cata de minhoca Quando cheguei para furar a ponta esbarrei primeiro no negócio de seu Zé Marinheiro Então Joca aonde se bota tão paramentado perguntoume o português Brincar um pouco patrão na ramada da Maria Benedita Olha que tem passado por aqui muita rapaziada A brincadeira deve estar influÍ da Olha pinga não falta tudo lhe mandei eu por ordem do Pedro Tupinambá já se saber Não sei se foi a falação do Zé Marinheiro que me escaldou mais o sangue eu senti como tudo a rodar o coração a querer pular pela boca c 9 3 GRAÇA ARAN HA e as pernas me fraqueando Mas tomei sustância em mim e me agüen tei valente e ainda pude logo dizer ao patrão do negócio Eu vou correndo para lá Mas a gente não se deve aproveitar dos outros deve estar prevenido do seu E vosmecê me encha aí um quarto de restilo e me corte duas toras de fumo de mascar Dito e feito atireime para o caminho O sol já estava escondido e os vagalumes começavam a correr no ar parado mas perdiam o seu serviço porque a lua estava esclarecendo tudo Principiei a cortar por uma picada que encurtava a distância e saía no campinho onde ficava do outro lado a casa da festa A areia estava mais quente aí dentro que no meio do campo um grande calor me tomava o corpo andei andei Os lagartos corriam estremecendo o mato de vez em quando um pica pau num tronco da madeira seca batia as horas da tarde Não havia viva alma e eu com a pressa de chegar comia poeira que era gosto Só pare cia que encontrava o terço acabado e a Chiquinha me largando de esperar com seu par fixo para toda a noite Pernas para que te quero A cabeça porém não estava muito boa parecia me estalar dos lábios e do estômago me subia de vez em quando um enjôo Lá no fundo da mata havia uma aberta e me parecia que um vulto caminhava para mim Não dei importância ao sujeito e disse comigo Há de ser o filho do Zé Marinheiro que se recolhe porque o pai não o deixa ir à festa De repente ouço um assobio fino que vinha de detrás Pensei É algum camarada que se vai divertir e me chama Voltei a cabeça e não vi ninguém Assuntei de novo nada Continuei a andar Outro assobio me passava cortando os ouvidos outro outro de toda a parte se apitava do fundo do mato da boca da estrada por cima das árvores Que bandão de corujas por esta noite Há de ser agouro Tive assim um arrepio de frio e para me sossegar quis me valer do encontro com o filho do Zé Marinheiro Mas olhei firme para a frente 94 CANAÃ e não vi ninguém Onde se meteu o diabo do pequeno Os asso bios iam me rodeando sempre eu já estava com a cabeça tonta o coração me batia a galope Outra vez vi o pequeno na minha frente reparei bem porque ele estava perto e vi que não era o filho do por tuguês A modo que não conheço este caboclinho Nós estávamos assim a umas cem braças um do outro quando o pequeno se sumiu de novo Os assobios de coruja não largavam Eu resmunguei Que faz esse sujeitinho que desaparece de vez em quando Isto não é coisa boa E ele torna a repontar Então gritei com voz de susto bem alto para intimar o cabra Olá amigo que conversa é essa Você anda me fazendo visagens Não digo nada boca para que falaste A mataria toda passou a assobiar como demônio e eu comecei a ficar apavorado com a matinada O caboclinho estava agora a umas dez varas de mim O sangue me fervia a cabeça me queimava Não digo nada o certo é que avancei para o pequeno com raiva de cego Ah seu diabo tu me pagas Armei o pau para cima Mas quando eu me vi estava seguro pelos pulsos Larga berrei O caboclinho com olhos de sangue me encarava Larga e eu sempre seguro Fiquei como um garrote ferroado Avancei para o cabra com mais zanga do que quando me atraquei com o Antônio Pimenta uma feita numa vaquejada Lembrei me de quanto boi valente deitei por terra e agora ali zombado por uma caturra Nós lutamos para baixo para cima eu dava de cabeça na cara do bicho metialhe os pés na canela e ele sempre duro o mal encarado Com o cabo de poucos minutos eu ouvi um berro de es trondo um berro de onça ah pensei que o malvado me deixava Mas foi pior porque outros berros se repetiram caititu vinha batendo queixo gatos bravos miavam ouvi cascavel tocar seu chocalho Com poucas eu estava no chão com o caboclo em cima de mim Toda a bicharia se agitava no mato e caminhava para nós as árvores mesmo se 95 GRAÇA ARANHA curvavam me abafando os gaviões desciam os urubus cheiravam minha carniça Eu senti um medo mole e abandonei as forças Comecei a tremer de frio o suor me alagava a roupa e eu disse Vou morrer meu São João E os olhos se me fecharam como de morto Levei um tempão desacordado sentindo os bichos me rodeando comandados pelo endia brado Depois tudo foi caindo no sossego os meus pulsos estavam desembaraçados um grande calor me fervia o corpo abri os olhos deva garinho tudo parado tudo tinha desaparecido a lua era clara como o dia Eu estava afadigado de tanta luta a língua estava seca e dura que nem de papagaio Abri bem os olhos e não vi mais nada nem o caboclo nem os bichos brabos Mas tive então um grande medo e tratei de abalar daí Passei a mão em roda de mim caçando minha garrafInha de restilo e as toras de fumo Para espertar não há melhor que um gole de cana e uma masca Mas não encontrei nada cacei cacei Nada Pus a excogitar que toda pendenga que o caboclo me fez foi para me bater a garrafa Velho tio Pereira me veio à cabeça com suas palavras Currupira te assombra Para tu te veres livre dá logo que o avistes cachaça e fumo E eu vi que naquela noite tive trabalho com currupira Levanteime de um pulo Quis correr para a ramada da Maria Benedita o samba devia estar aceso àquela hora Olhei para a frente a estrada ia acabar longe muito longe Tive medo de novo encontro Voltei para trás vinha como preto bêbado cai aqui cai acolá saí no campo esbarrando com o gado os olhos me ardiam todo o meu sangue batia para saltar de dentro a boca estava grossa eu trazia uma sede de jabuti mas lá vim assim mesmo navegando até à porta do rancho Não tive conversa atireime vestido na rede que com meu corpo sacudia como uma canoa no Boqueirão Dei por mim quando ouvi falar alto na porta Era a voz de meu tio com o Formoso Eles abriram a tramela e um clarão da madrugada alu miou o quarto São horas Joca Levanta daí Quis me erguer mas as forças não acudiam O velho segurou no punho da rede que estava balançando meu corpo tremia como se houvesse uma dança de todos os meus ossos Meu tio mandou o Formoso abrir a porta e a janela Ficou como dia Ele pôs a mão em cima de mim e eu abri os olhos cheios de fogo E meu tio Pereira sem mais aquela resmungou zangado Eu não te disse Apanhaste a maldita Quem te mandou tomar banho cansado àquela hora Não respondi Tive vergonha de relatar ao velho que era assombração de currupira Depois da narração os colonos ficaram cismando vagamente Cada qual remontou por instante aos princípios da sua vida e as recordações do passado encheramlhes a alma de sombras e saudades Felicíssimo achou que era tarde e os convidou a se recolherem sendo o primeiro a erguerse do chão Os outros levantaramse bocejando um princípio de sono chegava como uma carícia espreguiçaramse satisfeitos seduzidos pela idéia de um suave repouso Do Rio Doce e da floresta vinham murmúrios brandos e os colonos em silêncio interpretavam esses sons da noite ou como vozes das mãesdágua cobiçosos do amor humano ou como ruídos das vagabundagens tenebrosas dos currupiras errantes Já no dormitório os trabalhadores ressonavam sobre os colchões estendidos no chão e Joca ainda se remexia inquieto sem poder dormir Era uma noite em claro que ele passava tinha a garganta seca sentia por vezes a pele arder e não achava agasalho na cama fofa e tranqüila A evocação da terra natal ali no meio da floresta do Rio Doce estranha a seus olhos e sentimentos faziao remontar aos quadros da sua vida passada no lugar do nascimento nesses campos de Cajapió vários e inconstantes cuja mobilidade se transmitia à alma plástica dos homens aí formados No Espírito Santo sentiase Joca em terra alheia os montes o apertavam os desfiladeiros o sufocavam de terror e então uma saudade o transportava para a longa planície onde vivera Via no verão o pasto todo morto o amor violento do sol trazia o vasto campo fendido e cortado em pedaços sem um fio verde por toda a parte a secura e com ela a morte Nem uma gota dágua o deserto árido e triste e sobre ele passava arrastandose longo esguio sinuoso o caminho feito pelos pés do homem e pelo rasto do animal Nos dias claros sem nuvens quando todos suplicam chuva o horizonte se confunde com o céu Outras vezes nuvens descem quase a tocar a terra o sol rubro as tinge as miragens se formam estreitando o círculo visual tudo se encerra num espaço limitado e o viajante caminha para elas que se afastam inatingíveis fazendo evoluções como um exército em campo aberto E assim a mobilidade do céu ameniza a esterilidade fixa da terra Nem uma gota dágua para refrescar ao menos a vista De espaço a espaço passa um boi faminto esquelético movendo os ossos num ruído desencontrado e surdo Varas de porcos vão fossando a terra comendo as cobras que se estendem lúbricas e felizes ao sol Manadas de gado se apresentam no horizonte como que surgindo súbitas do chão galopando loucamente farejando o ar doidas sedentas passando num turbilhão como um ciclone levantando o pó tranqüilo que perturbado no seu repouso as segue envolvendoas sufocandoas implacável veloz e rubro como uma coluna de fogo Ao recordarse dessas emigrações de animais Joca teve um arrepio e um ímpeto para se erguer do colchão onde se revolvia agitademente E sempre a terra a visão da planície o perseguia Agora era depois das primeiras chuvas sobre o campo Uma manhã lá no Cajapió Joca lembravase como se fora na véspera acordara depois de uma grande tor menta no fim do verão A madrugada estava orvalhada mas serena e ele se erguer a de sua rede para ver o tempo Um grande tapete de verdura fresca e úmida parecia ter descido do céu e coberto como um manto misterioso o campo ontem mirrado Os olhos perdiamse na campina alegre o gado festejava o rebentar da vida na terra e comia a erva tenra um bando de marrecas passava grasnando pousava aqui levantava o vôo acolá buscava ainda mais longe a região dos eternos lagos Dias inteiros de chuvas o pasto agora era farto a água porfiava em vencêlo e quando mais tarde o dilúvio se interrompia viamse na vasta savana verde pontos claros que eram o refrigério dos olhos Eram os primeiros lagos Em volta deles uma multidão de aves aquáticas brincavam descuidadosas e ostentavam as penas de cores vivas e quentes Vinham pássaros de toda a parte pernaltas com o seu bico de colher marrecas em algazarra jaçanãs leves e tímidas e à tarde quando o céu se vestia de nuvens cinzentas notavase desfilar ora o bando marcial e rubro dos guarás ora a ala virgínea e branca das garças No fundo dos lagos multidões de peixes borbulhavam por encanto E em tudo o mesmo milagre de ressurreição de rejuvenescimento de expansão e de vida Mas as chuvas continuam a água sempre crescente vai engolindo o campo o gado mostrase inquieto e começa a outra emigração a do inverno para os tesos ligeiras elevações da planície Vão lentos e vigorosos ou aproveitando a terra firme os metidos nágua ou nadando mas sem recuar caminhando para os refúgios Já no meio do inverno a água quase apagou o campo um ou outro ponto aparece como ilha e nelas o gado se amontoa Em um grande lago manso transformouse aquilo que fora meses antes o deserto ardente e fero Sobre ele repousam os grandes nenúfares as múltiplas plantas aquáticas verdes largas vogando como pássaros A vida mudara descansava na cocheira a cavalo e Joca sonhavase a empurrar a canoa refletindose o seu vulto espigado à flor silenciosa das águas 99 4 Na manhã seguinte Milkau e Lentz muito cedo estavam admirando o lugar No seu passeio aproximaramse do Rio Doce que depois de se fatigar em curvas de réptil por entre os brandos contornos da terra maravilhosa do Espírito Santo ali se desdobrava a perder de vista As grandes chuvas dos dias anteriores tinham enchido fartamente o rio sobre cujo dorso luzidio e dormente a brisa perpassava volátil estremecendo num leve arrepio a úmida superfície Era a única quebra da imobilidade A onipotente amplidão das águas engolira as margens devorara a vegetação das praias e o tronco das árvores cujos galhos outrora pendidos como chorões simulavam sorver a água e agora quase submersos tingiam numa orla verde o cinzentopérola do rio A cheia domina toda a paisagem avassalando com singular grandeza o perfil da mata crivada de clareiras e a tímida linha de montanhas ao longe Emanadas das águas suspensas sob o céu névoas densas apagam por instantes o sol a sombra cobre a terra e faz a cor Abrese uma trégua para o eterno conflito da luz e dos tons e o panorama que se apresenta não é o constante dia de sol pleno inundando de um só colorido fulvoamarelo o espaço e as 109 mesmo tempo molhando uma pena em tinta encarnada marcou o lote com uma cruz à semelhança dos outros que já tinham sido concedidos As folhas dos requerimentos eram fórmulas impressas e em uma delas Milkau teve de encher com as indicações especiais de identidade os pontos em claro Isto feito os dois companheiros entregaram a petição assinada pagaram as custas da medição e da planta e foi esta a última formalidade para a entrega do prazo pois graças à condescendência do chefe Felicíssimo punha e dispunha das terras a distribuir E eis como pensava Milkau toda a complicada engrenagem do Estado com as suas repartições custosas os seus inúmeros funcionários afinal se concentra nas mãos reduzidas de um humilde agrimensor que de fato é o senhor absoluto desses bens públicos Vamos à bóia que já vai ficando tarde e vocês devem estar dando horas pois ainda não puseram nada no alforje disse Felicíssimo passando a mão espreguiçada no ombro de Lentz Este furtou instintivamente o corpo como para não ser esmagado pelo gesto da intimidade Os trabalhadores já rodeavam a mesa preparada pobremente para o almoço quando os outros entraram na sala A refeição a princípio correu ruidosa todos estavam expansivos pela fome e pelo começo da familiaridade Para o fim Felicíssimo passou a entristecer uma súbita preocupação se apossou dele e por mais que lutasse para disfarçar não pôde resistir e caiu numa cisma profunda Isto espalhava na mesa uma leve melancolia que refreava a expansão Mal acabou o almoço os homens da turma habituados a essa aflição íntima do agrimensor e que era o prenúncio das medições dos lotes retiraramse do barracão donde o semblante do chefe carregado de sombras os expelia mais depressa No terreiro cercaram um barril dágua em que mergu GRAÇA ARANHA Milkau nesse tempo cismava enquanto o sono o não arrebatava para o esquecimento Tinha saboreado as lendas ouvidas aos tropeiros e parecialhe ter arregaçado o véu que cobria a alma daqueles homens e desfrutado deliciosamente as paisagens distintas de cada espírito e os panoramas longínquos que foram os quadros da infância de cada povo gerador Nas lendas alemãs Milkau via passar o Reno como um grande rio sagrado que foi o centro e o nervo do mundo germânico todo cheio de encantamento e cujas louras ninfas eram as espumas das próprias águas Ele via os quadros recuados no tempo e os quadros novos da época medieval bruxas cavaleiros andantes e castelos Todo o idealismo da raça estava ali e que nascera nas águas do rio criando fantasias e mitos mantinhase inalterável os novos deuses latinos pe netrando no seu espírito transmudaramse em divindades bárbaras as suas santas eram aquelas mesmas fadas do Reno e os santos os velhos deuses sombrios e batalhadores Na lenda do currupira outro mundo se descortinava que era toda a alma do tropeiro maranhense Ali es tavam a mata tenebrosa as forças eternas da natureza que assombra vam e cujo símbolo era essa divindade errante que anima as árvores que sacode do torpor tropical as feras ou que protege a natureza intimidando o homem seu perpétuo inimigo Ela espanta vingase e beneficia transvestese em mil figuras em crença maligna que é a sua encarnação preferida em animal ou vegetal conforme a astúcia ou a força o exigem Milkau sentia naquelas legendas o encontro dos vários aspectos dos feitiços e cada um traduzia os instintos os desejos os hábitos diferentes dos homens Mundo encantado e misterioso esse das almas dos povos O verdadeiro filósofo pensava Milkau será aque le que conhecer as origens não só da História ou da sociedade mas de uma alma isolada aquele que tiver o segredo de ponderar os espíritos de desvendar nas células cerebrais as remotas sensações vitais dos CANAÃ povos e que possuir a intuição para distinguir na inteligência de um homem a dosagem perfeita do estranho precipitado da treva com a pureza do ódio ingênito de uma raça com o amor orgânico de outra E Milkau ia lentamente adormecendo feliz e sossegado naquela ben fazeja noite tropical no meio de homens primitivos no seio de uma nova terra suave e forte e o que era cisma da vigília se ia pouco a pou co transformando no puro sonho em que ele entrevia num horizonte iluminado surgindo docemente uma nova raça que seria a incógnita feliz do amor de todas as outras que repovoaria o mundo e sobre a qual se fundaria a cidade aberta e universal onde a luz se não apague a escravidão se não conheça onde a vida fácil risonha perfumada seja um perpétuo deslumbramento de liberdade e de amor Lentz se esforçava por dormir e se debatia inutilmente para afastar os tumultuosos pensamentos que lhe galopavam na cabeça As visões acumuladas nos últimos dias da travessia da mata persistiam em toda a sua força Ora sentiase esbraseado com o sol que inflamava as coisas e lhe queimava o sangue ora sentiase passar pela sombra úmida da floresta cuja exuberância e vida se filtravam deliciosamente até à sua alma ora era o rio imenso pujante que corria para ele impelido por uma força desse poder misterioso que animava as moléculas mais ínti mas de todo aquele mundo novo E Lentz via por toda a parte o homem branco apossandose resolutamente da terra e expulsando definitivamente o homem moreno que ali se gerara E Lentz sorria com orgulho na perspectiva da vitória e do domínio de sua raça Um desdém pelo mulato em que ele exprimia o seu desprezo pela lan guidez pela fatuidade e fragilidade deste turvoulhe a visão radiosa que a natureza do país lhe imprimira no espírito Tudo nele era agora um sonho de grandeza e triunfo Aquelas terras seriam o lar dos batalhadores eternos aquelas florestas seriam consagradas aos cultos 1 0 1 GRAÇA ARANHA temerosos das virgens ferozes e louras Era tudo um recapitular da antiga Germânia Ele percebia no seu cérebro exaltado que os alemães chegariam não em pequenas invasões humildes de escravos e trafi cantes não para lavrar a terra para recreio do mulato não para mendi gar a propriedade defendida pelos soldados negros Eles viriam agora em grandes massas galeras imensas e numerosas os desembarcariam em todo o país Eles viriam numa ânsia de posse e de domínio com sua áspera virgindade de bárbaros em coortes infinitas matando os ho mens lascivos e loucos que ali se formaram e macularam com suas tor pezas a terra formosa eles os eliminariam com o ferro e com o fogo eles se espalhariam pelo continente fundariam um novo império se revigorariam eternamente na força da natureza que dominariam como uma vassala e senhores e ricos e poderosos e eternos repousariam para sempre na alegria da luz Mas no sonho de Lentz sobre as naus que velejavam sobre os exércitos que caminhavam uma massa imensa e preta marchava no céu qual uma nuvem condutora e depois se trans formava numa figura estranha e agigantada cujos olhos penetrantes desciam do alto envolvendo as terras e os homens com uma força invencível e magnética Então Lentz viu pairar sobre a terra do Brasil a águia negra da Germânia 1 0 2 GRAÇA ARANHA coisas não é a larga e quente paisagem monótona indistinta onde o crepúsculo é um sonho fugaz e a noite cai como uma cortina negra que fecha bruscamente o dia Milkau e Lentz sentiram naquela cer ração o delicioso momento da ressurreição das cores esplêndidas e nestas voluptuosamente repastavam o faminto apetite da vista Não há nada dizia Milkau enquanto andavam como esta tran qüilidade para formar o quadro da vida E hoje me sinto feliz como jamais pensei que o seria É que a felicidade é o esquecimento e a esperança Pareceme que atingimos uma região onde não chegam os gemidos humanos aqui não há um sinal de sofrimento tudo é vida fácil risonha e amável No fundo a natureza humana é feita para o gozo por isso mesmo o prazer lhe é mais inerente e imperceptível e a dor sensação estranha e rude o espalha como um tufão Quantos elementos porém não estão em nós para afastar a dor com que facilidade não a esquecemos e como um só minuto de descanso não nos dá a ilusão da eterna calma É que nós somos vítimas dos divertimentos da natureza que por esses pérfidos e doces venenos cujos segredos ela possui nos acor renta à vida para martirizarnos ao seu sabor Mas a vida é mais natural do que a morte o prazer mais do que o sofrimento E tu emprestas à natureza uma consciência que ela não tem Ela não existe como entidade distinguindose pela vontade A nossa superioridade sobre ela tu sabes está exatamente nessa cons ciência que é nossa que percebe as suas leis as suas fatalidades e nos obriga a tomar o caminho mais seguro para a harmonia geral E hoje aqui situados neste mundo que começa ainda virgem de sacrifícios temos de tirar o verdadeiro sentido da nossa excepcional situação Ador meçamos as tristezas do nosso passado já que não podemos apagálas de todo e a vida nova se abra para nós como um sonho realizado CANAÃ E eu também vejo aqui a terra imaculada com as suas grandes energias de felicidade e nela viverei para ver reconstruída a cidade antiga forte dominadora que saltando pelos séculos de humi lhação venha renascer neste grande cenário A esperança dizia Milkau a sorrir apoderase de nós e arreba tanos para o futuro Não é verdade que somos felizes Pela linha da praia que a enchente comendo o mato tornava ape nas uma vereda continuavam eles o passeio Muitas vezes tinham de abandonar o caminho e cortar pelas picadas dentro da vegetação outras passavam aos pulos de pedra em pedra E riam com essa gi nástica abandonados à sensação agradável da fresca manhã e à vo lúpia das ilusões Por longo espaço o panorama era imutável mas o que havia de monótono não fatigava porque a vastidão das águas a sua opulência eliminava o enfado como que alargando o espírito num conforto amplo e benfazejo Hoje disse Milkau quando chegaram a um trecho desem baraçado da praia devemos escolher o local para a nossa casa Oh não haverá dificuldade neste deserto de talhar o nosso pequeno lote desdenhou Lentz Quanto a mim replicou Milkau uma ligeira inquietação de vago terror se mistura ao prazer extraordinário de recomeçar a vida pela fundação do domicílio e pelas minhas próprias mãos O que é lamentável nesta solenidade primitiva é a intervenção inútil do Estado O Estado que no nosso caso é o agrimensor Felicíssimo Não seria muito mais perfeito que a terra e as suas coisas fossem propriedade de todos sem venda sem posse O que eu vejo é o contrário disto É antes a venalidade de tudo a ambição que chama a ambição e espraia o instinto da posse O que GRAÇA ARANHA está hoje fora do domínio amanhã será a presa do homem Não acre ditas que o próprio ar que escapa à nossa posse será vendido mais tarde nas cidades suspensas como é hoje a terra Não será uma nova forma da expansão da conquista e da propriedade Ou melhor não vês a propriedade tornarse cada dia mais cole tiva numa grande ânsia de aquisição popular que se vai alastrando e que um dia depois de se apossar dos jardins dos palácios dos museus das estradas se estenderá a tudo O sentimento da posse morrerá com a desnecessidade com a supressão da idéia da defesa pessoal que nele tinha o seu repouso Pois eu ponderou Lentz se me fixar na idéia de converter me em colono desejarei ir alargando o meu terreno chamar a mim outros trabalhadores e fundar um novo núcleo que signifique fortu na e domínio Porque só pela riqueza ou pela força nos emanci paremos da servidão O meu quinhão de terra explicou Milkau será o mesmo que hoje receber não o ampliarei não me abandonarei à ambição ficarei sempre alegremente reduzido à situação de um homem humilde entre gente simples Desde que chegamos sinto um perfeito encan tamento não é só a natureza que me seduz aqui que me festeja é também a suave contemplação do homem Todos mostram a sua doçura íntima estampada na calma das linhas do rosto há como um longínquo afastamento da cólera e do ódio Há em todos uma resig nação amorosa Os naturais da terra são expansivos e alvissareiros da felicidade de que nos parecem os portadores Os que vieram de longe esqueceram as suas amarguras estão tranqüilos e amáveis não há grandes separações o próprio chefe troca no lar o seu prestígio pela espontaneidade niveladora que é o feliz gênio da sua raça Vendoos eu adivinho o que é todo este País um recanto de bon CANAÃ dade de olvido e de paz Há de haver uma grande união entre todos não haverá conflitos de orgulho e ambição a justiça será perfeita não se imolarão vítimas aos rancores abandonados na estrada do exílio Todos se purificarão e nós também nos devemos esquecer de nós mesmos e dos nossos preconceitos para só pensarmos nos outros e não perturbarmos a serenidade desta vida No encalço deles uma voz clamava tirandoos da divagação Mas então que fugida foi essa Para onde se botam Voltaramse como se despertassem e viram a cara triangular e interrogativa do agrimensor que vinha quase a correr Bomdia disse Milkau agarrando com entusiasmo as duas mãos de Felicíssimo que se atirava a ele num gesto festivo e bondoso Pregaramme uma peça Acordo vistome num pulo vou procurálos para um dedo de prosa e os meus amigos já tinham azu lado Tivemos pena de acordálo pois havia um grande silêncio na casa quando saímos E distraídos viemos até aqui Pois eu insistiu o agrimensor pusme à caça de vocês farejei aqui e acolá e fui bem feliz em ter virado para esta banda e nem tomaram café nem nada Não acha disse Lentz melhor desistirmos disso e aproveitar mos o tempo para um passeio mais longo Seja Voltaremos ao barracão à hora do almoço Por que não aproveitamos para ver o lote de que ontem lhes falei De que lado fica perguntou Milkau Aqui mesmo nesta direção Felicíssimo olhando rapidamente para os lados concluía orientado Aqui devemos estar no lote vinte mais ou menos andemos um pouco um quilômetro e eu lhes mostrarei o número dez G R AÇA ARANHA Felicíssimo tomou a frente seguido pelos outros caminhando um a um na estreita beirada A conversa iase fazendo em vozes altas seguia imprevista sem seqüência aos saltos e trambolhões E o sol que se desprendia das nuvens transformava com violência o repou sado quadro da manhã nevoenta Inundado subitamente de amarelo o rio chamejava em ouro como se fosse toda a grande e incandes cente massa do sol derretida correndo sobre a Terra Estão cansados gritou Felicíssimo Que juízo faz de nós perguntou Lentz É por causa do caminho porque realmente tomamos pelo pior se tivéssemos vindo por cima tudo ia bem Oh diabo O agrimensor num falso movimento meteu o pé nágua saltando ligeiro para diante Lentz que o seguia recomendoulhe cautela Algumas vezes tinham de se baixar para se desviarem dos galhos e dos arbustos outras era preciso agüentálos com a mão O agrimensor divertiase em gritar para trás de instante em instante Galho à direi ta Agüenta Com a mão segurava o ramo e quando via este susti do pelo companheiro largavao Às vezes era precipitado e uma lam bada forte e farfalhante batia no rosto ou no corpo do vizinho Cuidado Implorava o outro a sorrir E assim foram até que em fren te a um atalho Felicíssimo enveredou por este à direita e virouse para os imigrantes tomando um largo fôlego Arre Que brincadeira Nunca pensei que o rio estivesse tão cheio Agora cortemos por aqui que vamos cair mesmo dentro do lote Passando para a ligeira sombra do mato e caminhando pela picada que não era muito batida nem destocada iam vagarosamente evi tando os tropeços e as poças d água Lentz calado suspirava bocejando Tudo aqui será uma grande dificuldade pensava ele não há estradas não há a menor sombra CANAÃ de conforto tudo é agreste e selvagem Não é melhor que eu desista de fazer esta vida de colono e me enterre aí num armazém de comér cio onde o caminho já esteja aberto e tudo aparelhado pelos outros Realmente que loucura atirarme nesta campanha contra a natureza inculta Não é preferível toda e qualquer outra vida a esta Não é E os seus olhos descansaram em Mi1kau que lhe sorria como um bemaventurado Que delicioso deserto dizialhe este ao penetrarem mais e mais no mato espesso É pena que a estrada não seja melhor para gozarmos desem baraçados este passeio respondeu o outro quase tímido receoso de deixar transparecer o seu desalento Oh descansa que havemos de abrir caminhos por tudo isto limparemos as estradas prepararemos o terreno e matando a so lidão levantaremos uma habitação risonha que nos recompense Não é verdade Aqui não falta em que trabalhar cortou o agrimensor Em geral os colonos não querem fazer nada limitamse à sua casa ao seu terreno e esperam que o Governo se mexa que lhes dê estradas pontes e tldo mais e que não se faça Lá vai uma queixa por inter médio do Roberto ou de qualquer outro figurão ao Governador e sabe a política se mete no meio e nós estamos a levar carões todos os dias Imagino que o senhor deve ter muitos aborrecimentos disse complacente Mi1kau Não faltam amofinações Agora mesmo tenho um ofício do ins petor mandando o engenheiro informar a respeito de uma represen tação dos colonos sobre uma ponte que está com o madeiramento estragado Creio mesmo que já caíram uns paus nós pedimos verba GRAÇA ARANHA e como de costume o inspetor não se importou com o que disse o pessoal os colonos porém que são matreiros foram à fonte limpa e Roberto arranjou com eles um abaixoassinado que mandou para a Vitória o Governador se assanhou logo com medo das eleições mandou o papel ao inspetor que por sua vez o mandou para cá ao engenheiro a fim de fazer o orçamento das obras Isto leva ainda um ror de tempo E a minha vingança é que quando vier o dinheiro será muito pouco porque o tempo não descansa o pau vai apo drecendo dia a dia e é preciso fazer a ponte de novo Lá vem outra vez segundo barulho E neste tempo que recurso têm os moradores se a ponte cair perguntou inquieto Milkau Ora muito simples Botam uma pingueI a de lado a lado e vão vi vendo Sou um seu criado e estou me ninando para o Governo ins petor e toda essa récua A zanga do agrimensor era dessas que passam à medida que é es praiada num desabafo de linguagem Imediatamente depois ele tinha esquecido tudo e voltava à sua jovialidade Andaram mais um pouco pela picada e saíram perpendicularmente em um caminho mais lar go e mais limpo Está aqui o lote que lhes recomendo disse Felicíssimo andan do mais uns passos pela nova estrada Os outros olharam um matagal cinzento com as árvores crescidas e todo tapado pela vegetação que era forte e traduzia a fertilidade do solo Não viam nada de lado a lado a vereda fora aberta em plena mata e tudo era encerrado numa sombra infinita e cálida Ficaram mudos e como ligeiramente apavorados pelo recolhimen to das coisas e como se uma sensação de isolamento de separação do mundo os mortificasse por instantes Felicíssimo em cujo espírito CANAÃ trêfego e intempestivo o silêncio não tinha abrigo impacientouse por uma resposta acrescentando Este lote é muito bom vejam que terra cada pau de respeito É preciso um pouco de trabalho não nego Depois do roçado o que não é nada a dificuldade está na limpa Vocês porém fazem um arranjo com a turma e eles acabam isto num abrir e fechar de olhos Oh Há de ser um gosto Aqui estamos bem concordou Milkau a quem uma onda de ilusão sacudia o torpor da instantânea cobardia E apoiouse negligentemente a uma sucupira Estou por tudo disse Lentz arrastado e dissimulando a diva gação de outros pensamentos O agrimensor olhou a árvore Faz pena disse compassivo botar tudo isso abaixo Eu por mim acudiu Milkau levado pelo mesmo sentimento preferiria um lote onde não fosse preciso esse sacrifício Não há nenhum respondeu Felicíssimo O homem notou Lentz a sorrir com ar de triunfo há de sem pre destruir a vida para criar a vida E depois que alma tem esta árvore E que tivesse Nós a eliminaríamos para nos expandirmos E Milkau disse com a calma da resignação Compreendo bem que é ainda a nossa contingência essa necessi dade de ferir a Terra de arrancar do seu seio pela força e pela vio lência a nossa alimentação mas virá o dia em que o homem adap tandose ao meio cósmico por uma extraordinária longevidade da espécie receberá a força orgânica da sua própria e pacífica harmonia com o ambiente como sucede com os vegetais e então dispensará para subsistir o sacrifício dos animais e da plantas Por hora nos con formaremos com este momento de transição Sinto dolorosamente G RAÇA ARANHA que atacando a Terra ofendo a fonte da nossa própria vida e firo menos o que há de material nela do que o seu prestígio religioso e imortal na alma humana Enquanto os outros assim discursavam Felicíssimo no seu amor ingênuo à natureza mirava as velhas árvores e com a mão meiga fes tejavalhes os troncos como os últimos afagos dados às vítimas no momento do sacrifício Dentro da mata penetrava o vento da manhã e nas folhas passava brandamente levando um murmúrio baixo humilde que se escapava de todas as árvores como as queixas surdas dos moribundos Então que decidem perguntou aos outros o agrimensor Os imigrantes concordaram de bom grado em se estabelecer no terreno indicado Fazem muito bem porque esta situação é admirável para o café e além disto é muito cômoda aqui à beira da estrada E vêse bem o rio indagou Lentz Sem dúvida é só desbastar o mato ali está à vista o estirão d agua Será uma delícia uma casinha neste belo ponto comentou Milkau numa irradiação de íntimo bemestar Hão de ver E agora toquemos para o barracão são horas do almoço E hoje mesmo voltaremos com os homens para a medição Puseramse a caminho alvoroçados com os vários sentimentos que os trabalhavam Na estrada falavam alto espantando os pássaros dor mentes e sacudindo do voluptuoso letargo os calangos que se escapuliam pelas folhas secas numa música de chocalho Chegados ao barracão foram logo para o escritório e aí em frente ao grande mapa dos terrenos o agrimensor mostroulhes a posição do prazo escolhido continuando nos calorosos elogios e ao G R AÇA ARANHA lharam as mãos esfregando depois as caras com estrépido bufando O bocal do barril era pequeno para tanta gente e os homens rindo disputavam entre si a precedência Uma alegre algazarra se formou cada qual esmurrava o companheiro arrastavao no meio de amáveis insultos rindo sem saber de quê mas alvar e gostosamente Vamos aviemse gritou Felicíssimo E à voz de comando a alma obediente dos homens serenou e todos em ordem terminaram a ablução Depois armaramse com os instrumentos e ferramentas e puseramse em marcha na frente Felicíssimo com os novos colonos ia atrás Por vezes no caminho Milkau cortesmente procurou con versar com o agrimensor que soturno se metia consigo mal res pondendo às perguntas Então seguiam em silêncio ruminando os seus pensamentos abrasados pelo calor do sol que mesmo no mato coberto era abafadiço Houve um momento depois de andarem bas tante em que Felicíssimo deu voz de alto Todos pararam mecanicamente É aqui que temos de abrir o rumo Os trabalhadores começaram a desatrelar os instrumentos e os seus apetrechos acessórios O agrimensor acompanhavaos com uma compenetração religiosa e foi com certa sofreguidão que viu abrir se uma caixa e dela se retirar um instrumento que recebeu em suas mãos com febril ansiedade Pediu a tripeça que um homem lhe apresentou rápido e sobre aquela o agrimensor a atarraxar o instru mento Havia uma calma grave em todos e o moço cearense entre gavase à sua tarefa com extrema atenção Depois de algum tempo tomou posição com o seu aparelho e ordenou a três trabalhadores que seguissem pela frente da estrada com balizas pintadas em zonas brancas e encarnadas E virandose para Milkau e Lentz disse com solenidade CANAÃ Não sei se os senhores conhecem Isto é o teodolito Estupenda invenção Dispensa grande trabalho para levantar as plantas Hoje fazemos medições enquanto o diabo esfrega um olho porque como sabem é a combinação do nível e da altura tomase um ângulo ho rizontal e um ângulo vertical ao mesmo tempo Grande invento Sem ele não sei como me arranjaria Os novos colonos conheceram pasmos um novo Felicíssimo e não sorriram O agrimensor calouse ainda mais solene e entregouse todo ao instrumento mirava na objetiva abaixavase erguiase para espiar por cima voltava a retificar as lentes torcendoas ora demais ora de menos sempre com insucesso Já o tomava a angústia de não acertar mas ora teimava em seus movimentos ora abandonava o aparelho e ia mirálo de longe Voltava ao instrumento tornava a ajeitálo espiava outra vez e sempre o mesmo resultado negativo Em roda faziam um tímido silêncio os trabalhadores que conheciam esse momento terrível do teodolito E só neles Felicíssimo se transforma va a ponto de insultar e espancar os seus homens Cada um o temia e instintivamente se ia afastando do aparelho perturbador com medo de algum desabafo E a aflição do agrimensor naquele dia redobrava à vista de Milkau e Lentz para quem ele preparava a cena da sabedo ria O sol esquentava no chão os pés queimavam um suor frio e extenuante alagava o agrimensor O tempo ia correndo sem resol verse a medição e para Felicíssimo atado em sua angústia parecia interminável Ah disse aos hóspedes Ele tem hoje o diabo no corpo não con sigo ver nada Com certeza foi quebrado por algum desses miseráveis E olhava raivoso o grupo de trabalhadores que agradeciam com os olhos a presença dos novos evitando maiores conseqüências da cólera do chefe GRAÇA ARANHA N este tempo os homens das balizas estavam fatigados e começavam negligentes a oscilar os marcos Felicíssimo arremessouse ao primeiro Oh seu ordinário eu logo vi que era você que não me deixava pôr em ordem o teodolito afastando o pau da linha O homem desculpouse dizendo que arriava o marco quando o chefe já não estava no aparelho Felicíssimo ficou colérico mas a ân sia e a vergonha do insucesso não davam forças à sua ira Ao contrá rio enfraqueciamno tornavamno gago murcho Voltou ao instru mento e agora definhava no desespero de conseguir qualquer obser vação Uma grande tristeza apoderouse dele Milkau com pena disselhe É melhor deixarmos isto para amanhã Hoje está muito quente almoçamos bem tínhamos andado antes o senhor está fatigado Deixe para amanhã com a fresca E depois quem sabe o teodolito pode estar quebrado e em casa mais à vontade o desarma para ver Sim é melhor Com certeza há alguma coisa ali dentro Mas para não perdermos tempo se fizéssemos a medição com a fita É um sistema atrasado e de que não gosto mas enfim se o aparelho está quebrado não há remédio Com certeza Guarde isto ordenou Felicíssimo a um homem apontando des denhoso para o instrumento Os trabalhadores miravamse todos com ar inteligente Cumpria se a velha e costumada comédia do teodolito Eles sabiam que o agri mensor em mais de duzentas medições não conseguia trabalhar com o maldito instrumento que sobre ele exercia uma influência satâni ca lhe alterava o caráter o punha fora de si e era causa desse terror cujos prenúncios lhe sombreavam o espírito desde o fim do almoço À medida que o teodolito ia desaparecendo na caixa a alma de Felicíssimo iase libertando da angústia e o seu jovial humor o retomava francamente pagando os traços da agonia científica Estes mulatos dizia em aparte Lentz a Milkau E como o agrimensor se aproximasse deles desinteressado do teodolito o alemão parou disfarçou alteando a voz um pouco sarcástico Vamos à fita A medição fezse como sempre As medidas foram tomadas na fachada da frente do terreno e nos fundos dentro da mata postes fincados nos quatro ângulos assinalavam o lote adquirido pelos dois imigrantes Faltava porém abrir o rumo que separasse de lado a lado este quinhão de terra dos outros Milkau dirigiuse a Felicíssimo e perguntoulhe se podia contratar com os homens esse serviço para aquela hora mesma O cearense objetou que a planta não estava tirada Não seja essa a dúvida disse Milkau os marcos estão colocados e o rumo irá sendo aberto com as balizas e medidas rigorosas Nós tomamos a responsabilidade de abrir novo rumo se este não sair de acordo com a planta O agrimensor bondoso e serviçal aquiesceu e Milkau entendeuse com os homens Momentos depois os trabalhadores estavam a derrubar o mato a princípio iam escolhendo para cortar os pequenos arbustos ladeando quando se encontravam com uma árvore mais robusta ainda receosos de acometer o trabalho O rumo ia saindo acanhado e torto Mas quando miraram o serviço feito os homens como que despertaram da sua instintiva preguiça e estimulados à vista dos estranhos atiraramse duramente à derrubada O machado cantava com energia no âmago dos troncos e derrubadores em gru po combatiam ao mesmo tempo uma pobre árvore Havia uma raiva uma fúria histérica de destruição e em pouco tempo estavam completamente alheios a tudo e entregues à sua vertigem malvada O ferro não descansava nos braços sempre em movimento num compasso vagaroso Ouviase cair o machado deslocando o ar e arrancando um ronco forte dos robustos peitos dos devastadores Quando estes encontravam um pau mais duro redobravam de ardor o suor lhes escorria o golpe era tirado bem do chão e no impulso furibundo o ferro penetrava tanto que para desprendêlo o homem tinha de fazer um esforço desesperado Iam para adiante agora harmônicos e regulares A pequena fadiga fazia bem aos seus membros hercúleos e a alegria se lhes espraiava nos rostos congestos Não mais roncavam com a ânsia dos primeiros movimentos agora habituados ao exercício serenavam distraíamse e das suas bocas rudes deixavam sair os velhos cantos amados Joca fora o primeiro a soltar a voz Os alemães instintivamente o imitavam e cada um em sua própria língua cantava versos bebidos na fonte natal O mulato maranhense dizia as saudades do seu coração tudo o que mais amava com as íntimas energias do seu ser humano E cantava num tom que era um longo soluço Adeus campo e adeus mato Adeus casa onde morei Já que é forçoso partir Algum dia te verei Era o grande acontecimento o drama da sua vida esse abandono da terra natal E ele o cantava sem atender a ninguém cravando mecanicamente o machado nas árvores Em outros momentos abandonava esse queixume e dos seus lábios inconscientes saíam versos de outro caráter Vi o teu rasto na areia E pusme a considerar CANAÃ Qye encantos não tem teu corpo Se o teu rasto Jaz chorar Nesta imagem tão fina e tão superior de um sentimento animal Joca expandiase em gritos voluptuosos Perpassava na cadência e no pensamento da estrofe o frêmito da luxúria meiga e doce de toda a sua raça A esta solitária voz brasileira juntavamse os acentos fortes e musi cais das vozes alemãs Elas cantavam em coro e os versos que diziam eram ecos das tabernas do país germânico e por um momento ali mesmo em plena selva tropical os imigrantes sonhavam pela su gestão das cantigas que se reuniam a beber joviais e ruidosos Die alten Deutschen trinken noch ein noch ein os velhos alemães bebem mais um mais um A derrubada do rumo prosseguia mais ativa e mais alegre Os ecos recolhiam as rimas singulares da duas raças que se casavam no ar numa união estranha Teu rasto Jaz chorar Noch ein noch ein Milkau havia uns dias no alojamento dos imigrantes deixava em bebido na contemplação correr o tempo e se não decidia a começar essa vida arquitetada pelo seu coração em longo sonho Uma piedade indefinida diante do sacrifício da mata o entor pecera Sentia que um pouco da beleza e do esplendor da terra ia morrer E Milkau vibrava com a recordação de todo o sofrimento que o homem tem causado no mundo passando indiferente sem ouvir o gemido do mar rasgado a queixa da floresta ardente o estremeci mento do ar cortado por toda a parte destruindo como um fatal por tador da morte a integridade da forma E em roda dele a vida em tudo na terra geradora na mulher que ele ama no pó que pisa Tudo vive tudo tem uma voz uma alma na harmonia eterna do Uni G R AÇA ARANHA verso Mas ainda assim Milkau perdoava ao homem Compreendia a fatalidade do seu destino e resignavase numa subordinação indis cutível e indefinida à necessidade Amanhecia quando se chegou a Lentz e disse resolutamente Temos de queimar o mato A idéia do fogo chamejou no espírito do companheiro Pouco depois os homens foram reunidos e todos penetraram na floresta com um recolhimento sacerdotal de quem vai cumprir os ritos de cultos infernais Num dos ângulos da mata lançaram fogo à primeira moita que lhes pareceu mais ressequida Antes que a labareda apon tasse para o alto as línguas ardentes rubras rápidas uma fumaça grossa se desprendia do fundo da touça suspendiase no ar leve da floresta vagando na direção dos caminhos como pastosas nuvens Começara a queima O fogo erguerase e lambia num anseio satâni co os troncos das árvores Toda a ramagem da base foi ardendo e as parasitas como rastilho de pólvora levavam as chamas à copa e a fumaça aumentando entupia as veredas e arremessava para a frente o bafo quente do fogo que lhe seguia no encalço Muitas árvores estavam contaminadas ardiam como tochas monstruosas e esten dendo os braços uma às outras espalhavam por toda a parte a voragem do incêndio O vento penetrava pelos claros abertos e esfu ziava atiçando as chamas Pesados galhos de árvores que caíam tron cos verdes que estalavam resinas que se derretiam estrepitosas faziam a música desesperada de uma imensa e aterradora fuzilaria Os homens olhavamse atônitos diante do clamor geral das vítimas Línguas de fogo viperinas procuravam atingilos Recuavam fugindo à perseguição das colunas que marchavam Pelos cimos da mata se escapavam aves espantadas remontando às alturas num vôo desespe rado pairando sobre o fumo Uma araponga feria o ar com um grito CANAÃ metálico e cruciante Os ninhos dependurados arderam e um piar choroso entrou no coro como nota suave e triste Pelas abertas do mato corriam os animais destocados pelo furor das chamas Alguns libertavamse do perigo outros caíam inertes na fornalha Num alvoroço de alegria os homens viam amarelecer a folhagem verde que era a carne e fenderse os troncos firmes eretos que eram a ossadura do monstro Mas o fogo avançava sobre eles inter rompendolhes o prazer Surpresos atônitos repararam que a devas tação tétrica lhes ameaçava a vida e era invencível pelo mato adentro quase pelas terras alheias E feros e duros atiravamse à enxada para cavar o aceiro Do lado da praia o trabalho foi fácil o terreno estava desbastado e limpo Aí abriram rápido o sulco protetor Do outro lado no meio da floresta nos limites da área do lote a luta foi tre menda A nevrose do pavor centuplicoulhes as forças Os pigmeus que se não mediam com as árvores e que não podendo vencêlas tinham recorrido ao fogo agora sob o aguilhão da defesa própria se arrojavam contra os paus com o denodo de gigantes E afogueados enegrecidos cavaram a trincheira pelo rumo e se encontravam o embaraço de algum tronco atacavamno a machado com raiva com ânsia com febre O aceiro foi sendo aberto até que o fogo se apro ximou a coluna como um ser animado avançava solene sôfrega por saciar o apetite Sobre a terra queimada na superfície aquecida até ao seio continuava a queda dos galhos O fogo não tardou a penetrar num pequeno taquaral Ouviramse sucessivas e medonhas descargas de um tiroteio quando a taboca estalava nas chamas O fumo crescia e subia ao ar rubro incendiado os estampidos redobravam as laba redas esguichavam enquanto a fogueira circundava num abraço a moita de bambus A cem metros de separação os colonos cavavam sempre Farto de devorar a carne dura do bambual o fogo desafo gouse e célere e lépido foi veredeando por um atalho sorvendo os arbustos que se erguiam à margem até chegar ao aceiro Já os homens num esforço imenso se tinham adiantado As chamas abeiraramse da vala e diante do espaço aberto e intransitável detiveramse e espalharamse para a direita e para a esquerda continuando a sua obra Os colonos e trabalhadores semimortos voltavam a casa logo que se reconheceram senhores do perigo invencíveis sacrificadores da terra À noite da varanda do barracão quando as estrelas em ritmo moroso pareciam caminhar em no céu Milkau chamava na sua imaginação a vinda dos tempos sem violência e os outros miravam numa diabólica satisfação a mata esbraseada a estorcer nas agonias do incêndio felicidade de Milkau era perfeita Tinha limitado o inquieto desejo apagado do espírito as manchas da ambição do domínio e do orgu lho e deixado que a simplicidade do coração o retomasse e inspirasse Trabalhava mansamente no quinhão de terra que ocupava A sua peque na habitação erguida no silêncio da mata era humilde como as outras dos colonos nada existia ali que fosse a traição de um gosto refinado ou uma pequena consolação da volúpia Apenas quebrando a uniforme monotonia rústica o quarto de dormir de Milkau impressionava como uma capela ardente de amor de veneração e de saudade Estava povoa do de retratos como veladores Penates que o homem transporta nas suas migrações sobre a terra Aí se viam pessoas da família essa mãe quase filha com grandes olhos de dor e súplica perene o pai iluminado por um sorriso de mártir e a mulher criança que amara quando ela pas sou diante dos seus olhos transfigurandose para morrer Os mais eram retratos das grandes figuras humanas poetas amorosos sofredores Era com essas imagens que Milkau vivia na comunhão funda e religiosa que dá a alegria perpétua e que enche o vazio do isolamento Sentiase am parado por um fluido de esperança de resignação que emanado do G R AÇA AR ANHA amor e das lembranças o envolvia dandolhe uma armadura invencível E a vida dentro desse quadro sorrialhe como uma deslumbrante res surreição O trabalho pelas próprias mãos davalhe a sensação positiva da sua dignidade humana Os seus olhos procuravam em torno o mundo para onde ele se queria dirigir num forte desejo de afeição feliz e en grandecido não pelo que tinha feito mas pelo que aspirava fazer Sem demora Milkau espraiavase em relações com o grupo colonial do Rio Doce Achava um encanto em conviver com essa gente primitiva que o recebia sem desconfiança e que se ia deixando infiltrar da sua cordura e meiguice Milkau sem orgulho de inteligência conformavase com todas as lições que lhe davam os antigos e experientes colonos sobre as coisas da lavoura Vendoo assim atento mais lhe queriam os camponeses que ele não atemorizava com a sua educação e em sua presença tinham instintiva mente uma atitude cheia de simpatia e respeito Milkau estava destinado a ser pouco a pouco a figura central daquela região e sem reparo os colonos iam absorvendo o seu imortal prestígio como a terra bebe imper ceptivelmente as finas gotas do orvalho até ficar saciada Ao contrário do seu companheiro Lentz vivia triste num íntimo e reservado desespero A vida que tomara era para ele uma grande humi lhação torturandoo essa pungente agonia de praticar a existência con denada pela idéia Ficara ali ao lado de Milkau incapaz de abandonálo preso às seduções do camarada que eram o estímulo para a agitação do seu pensamento O caráter fraco traía a audácia do sonhador e a bon dade do sentimento entorpecialhe as maldades grandiosas do seu idea lismo E assim inativo paralisado caminhando na doce sombra de Milkau ele o criador da força o apóstolo da energia completavase na con tradição como um verdadeiro homem Para se distrair e dar um pouco de fadiga aos nervos Lentz encar regavase das viagens das compras da casa e sentia uma expansão de ale CANAÃ gria quando atravessava solitário as montanhas em silêncio e sobre elas dava grandeza aos seus sonhos de vida Outras vezes caçava extenuan dose e acalmandose num esforço tenaz e porfiado Era então que lhe sucedia encontrar no mato o vizinho taciturno que passara na tarde da sua chegada defronte do barracão Sempre calado desdenhando qual quer conversa o velho alemão ágil enérgico primitivo seguia cercado da sua árdega matilha cujos cães o festejavam aos saltos ou iam à sua frente de orelhas caídas farejando o chão Uma tarde Lentz voltava de Santa Teresa trazendo a notícia de que no dia imediato haveria uma festa em Jequitibá19 O novo pastor cele brava o seu primeiro serviço religioso com o concurso dos pastores de Altona e Luxemburgo Em Santa Teresa e nas casas dos colonos por onde Lentz passara todos se preparavam para essa diversão Milkau que se queria identificar com os hábitos da nova sociedade a que se consagrava resolveu ir ao Jequitibá E na madrugada seguinte os dois amigos parti ram marchando sempre por um caminho de montanhas Raras vezes a paisagem transmitira a Milkau uma emoção maior do que naqueles terrenos altos Estava ele todo possuído pelo espírito da ascensão e sua alma escalara também as regiões silenciosas plácidas e vastas do infinito Sob a transparência cristalina do firmamento a terra intumescida parecia à hora do amanhecer sair de si mesma e querer se alevantar para o céu para o espaço num soberbo movimento de força e desespero E também as essências místicas que ainda viviam em Milkau naquele instante de exaltação e vertigem levavamno a desejar atingir a eternidade e dissolverse no infinito Quando já se avizinhavam do Jequitibá iam pelo caminho encontran do colonos a pé ou montados formando caravanas Família e grupos ininterruptos enchiam as estradas Todos vinham radiantes excitados pela fresca da manhã e pela esperança do prazer em sociedade pois havia GRAÇA ARANHA muitos meses que não se abria a capela e os colonos não se reuniam desde essa época era como uma alegria de recémchegados que se sau davam mutuamente Alguns passavam a galope e esse ardor comunican dose aos outros então era de ver a carreira folgazã de toda a gente pelos caminhos Quanto mais perto da igreja mais a multidão se engrossava Em certos pontos havia necessidade de demorar o passo para não se atropelarem e tomavam uma rítmica marcha de procissão Os dois ami gos depois de algumas horas de viagem ao saírem de um atalho cober to descortinaram a capela do equitibá Esta ficavalhes à frente e os olhos deles abrangiam todo o panora ma claro feito de uma dourada luz e de pequenas elevações como ondas regulares brandas e fixas de um oceano manso Pela encosta do morro que vai ter à capela viase a subida dos pigmeus A multidão desembocando ali de toda a parte parecia borbulhar de dentro da terra Ao longe a capela branca rodeada pela multidão que fervilha va que ondeava parecia moverse como uma presa arrastada vaga rosamente por um formigueiro Acharamse depois à base da colina e seguindo outros subiam por uns degraus de madeira fincados na terra e que muito espaçados che gavam até ao alto à casa do pastor que era no fim da igrejinha A medi da que galgavam iam vendo viajantes que chegavam em bestas apearse e amarrar os animais nas estacas passandolhes o embornal O cimo onde se erguia a capela formava uma esplanada e nela a massa de gente remexia acotovelandose Um vozear confuso enchia os ares e turbava Milkau e Lentz já tão descansados e entorpecidos na solidão bonançosa Mas logo se habituaram e entretiveramse enquanto a capela se não abria em mirar o povo Era um grande ajuntamento de colonos da região Alguns estavam ali havia trinta anos e a sua pele era amarela encolhida como pergaminho CANAÃ outros ainda eram louros e jovens Trajavam as suas melhores roupas o que fazia também uma mistura de modas de muitas épocas conservadas religiosamente em trajes que se não acabavam mais Cada uma das mu lheres ainda tinha o seu vestido segundo o uso do momento em que deixara o país O vestido largo de cintura curta e babados o corpinho fino esguio as crinolinas as rendas o casaco severo as toucas de seda os simples panos brancos envolvendo a cabeça o chapéu de veludo tra jes aldeãos trajes de cidade reviviam nas serras do Espírito Santo como se fosse uma revista retrospectiva de modas ou a combinação fantasista de um baile de máscaras Só isto paga a viagem disse Lentz gracejando um perito pode ria fixar pelos vestuários a época de cada migração É verdade concordou Milkau acompanhando as observações que o amigo fazia sobre os detalhes das vestes Mas também admiremos a felicidade deste povo Até os velhos A alegria dos velhos é um mandamento para a vida Misturado com o aroma da terra o cheiro das flores que as raparigas traziam ao cabelo e das roupas domingueiras guardadas longo tempo nos baús amenizava o odor forte das multidões O povo continuava no seu burburinho tumultuoso e alegre Milkau mirava para todos os lados e ao longe descobriu Felicíssimo Joca e o grupo de trabalhadores da comissão de terras que desde algum tempo tinha deixado o Rio Doce continuan do as medições para outras bandas O agrimensor estava com um cravo ao peito e do bolso do paletó pontas de lenço saíam espalmadas Cum primentou de longe com uma barretada e um riso desdentado Ora disse Lentz em voz baixa depois de algum tempo afmal de contas já vimos o melhor E está ficando quente Que nos importa a missa do pastor Vamos esperar o fim da festa para assistirmos à saída do X I 2 79 GRA ÇA ARANHA povo dando um passeio por essas montanhas ou deitados à sombra de alguma árvore Não fiquemos aqui e acompanhemos esta boa gente Nós nos diver tiremos vendo divertirse os outros Mas francamente eles podiam se divertir de outra forma Essa religião Ela é venerável como toda e qualquer outra Haverá um tempo em que o homem há de enterrar com os antepas sados o culto que eles nos legaram Tudo será esquecido E o homem viverá sem terror Milkau fitou muito calmo o amigo Esteve um instante calado hesi tando se devia responder Afmal disse O espírito religioso é irredutível Para destruílo é preciso que o homem explique o Universo e a vida e o conhecimento por mais que se alargue e avance não esgota o mundo dos fenômenos A marcha da ciên cia no nosso espírito é como a nossa na planície do deserto o horizonte foge sempre é inatingível à medida que caminhamos Além além há sempre o desconhecido E o culto que o idealiza e o culto seja do que for de um deus ou de uma abstração como a que diviniza a sociedade humana é inseparável do homem Ele é a expressão da nossa emoção imorredoura do nosso eterno pasmo no Universo ou a exaltação do nosso amor e é sempre uma força salutar divina Defronte deles no começo da ladeira do morro três homens che gavam esporeando com força os animais que subiam arquejantes Quando se apearam Milkau reparou que eram os mais bem vestidos de todos O mais velho era um sujeito de cabeça grande meio bar rigudo de monóculo escuro e costeletas o outro muito jovem moreno e imberbe enquanto o terceiro tinha no seu rosto claro com uma moldura de barba castanha um ar de fadiga e preguiça Lentz CANAÃ teve curiosidade de saber quem eram Um dos vizinhos disselhe se rem as autoridades do Cachoeiro Com efeito era o triunvirato judiciário da comarca20 Fitandoos percebiase que sentiam a consciência de uma posição superior Olhavam os colonos como uma massa amorfa e subordinada e o velho de mo nóculo empertigado esperava solene silencioso os cumprimentos Dois ou três homens da cidade rompendo a aglomeração acercaramse deles muito prazenteiros outros mais afastados cumprimentaram muito reverentes e pressurosos de se recomendar Por contágio e por instintivo sinal de respeito dos humildes colonos as saudações propa gavamse e daí só se viam as cabeças abaixandose na direção dos ma gistrados que correspondiam desdenhosos O sol já esquentava muito e sob os seus ardores a impaciência cres cia Todos olhavam as portas cerradas da capela praguejando contra o hábito de os deixarem de fora Os homens tiravam o chapéu limpavam o suor e muitos cobriram a cabeça com o lenço As moças atavam tam bém o seu ao pescoço enquanto mulheres velhas agitavam as saias re frescandose com estrépito Abafavase e murmuravase Alguns se es gueiravam para as escassas sombras das paredes um grupo para se pro teger do sol apertavase debaixo de um mísero arbusto os animais bufavam espanavamse com os rabos triturando surdamente o milho A multidão impeliase lentamente para as portas num movimento inconsciente de quem ia forçálas Mas estacava empurrando para trás para adiante zumbindo e espalhando o calor de corpo a corpo A porta afmal abriuse e foi uma invasão alvoroçada na capela sombria e fresca Milkau e Lentz conseguiram lugar num dos bancos de madeira e aí repousados observaram a singeleza do interior que bem se casava com a simplicidade externa Não havia a menor pretensão de enfeite na bran cura das paredes estavam inscritos versículos da Bíblia no centro o púl GRAÇA ARANHA pito baixo de madeira não envernizada e ornado de listas alvas cheias de palavras santas em negro ao fundo uma cruz preta com um sudário branco pendente Muito triste muito nu como sempre dizia em surdina Lentz ao camarada O tom protestante é plebeu inestético mil vezes uma igreja católica com a sua pompa as suas cerimônias de finas ex pressões simbólicas Milkau concordou com um aceno de cabeça Em volta deles outras conversas prosseguiam em voz baixa Ainda não o viu perguntava uma velha aludindo ao novo pastor Não respondia outra Há muito tempo que não ando por estes lados E onde você o viu No armazém do Jacob Müller outro dia Parece uma pessoa muito de bem2 Também se não fosse para que lhe darmos o nosso dinheiro Ah isso você sabe não há remédio senão darmos Não fomos nós que encomendamos um pastor a Roberto Seja como for temos de o agüentar Depois do descanso do primeiro momento à sombra recomeçava a impaciência que se esforçavam por conter mas que se percebia nos bocejos nos movimentos de pernas e de braços Não tardou porém que um acorde de harmonium soasse chamando todos à respeitosa con tinência A multidão apaziguouse e o instrumento continuou a cantar os solos como murmúrios de piano e de flauta seguidos de um acompa nhamento misterioso de vozes múltiplas infInitas A música fIltravase nos nervos dos ouvintes e os amansava molemente Milkau vibrava A música enchia a sua alma capaz de sentir os mais intangíveis e deliciosos segredos do som e de se transportar além de si mesma perdendo a pró pria essência na mais copiosa e alucinadora emoção Música Que con CANAÃ junto de sensações não se acumularam desde as remotas almas progeni toras que rios de sangue não correram de pais a filhos longamente car regando as vibrações recolhidas em cada célula dolorosas lentas tra balhando afinando o mundo dos nervos até enfim se formar no homem a derradeira das suas almas a alma musical E enquanto o órgão no alto da capela cantava lá ia Milkau tomado pela saudade carregado nas harmonias à sua vida primeira Era numa igreja de Heidelberg na terra antiga no passado E Milkau agora de olhos cerrados não percebia mais as fronteiras do sonho e da realidade Tudo se confundia estra nhamente Ele vê uma figura de mulher que entra na sombra silenciosa e brandamente vai sentarse Os olhos dela embebemse na Bíblia e sobre esta os seus cabelos caem numa chuva de ouro como uma bênção e uma luz do céu iluminando o livro santo Música também lá em Heidelberg uma melodia fantástica angélica enche a igreja Música Canta a mulher que Milkau amou Um sonho dentro de um sonho na volúpia infinita de um templo enquanto ela recolhida mística e crente entoava hinos ele debaixo das harmonias escrevia poemas sagrados porque escrever é cantar com a pena Música Cessou o órgão na capela do Jequitibá Milkau teve um ligeiro sobres salto e despertou Os seus olhos meio atônitos descansaram em uma jovem que parecia entretida em vêlo dormitar Milkau ficou indeciso um instante Continuava o sonho ou era aquela mulher a sua visão realizada Parecialhe já ter visto em outra vida aquela mesma cabeça de macios e crespos cabelos de infante com a mesma suave e meiga expressão E ela o olhava vagamente distraída E quando reparou que era examinada moveuse curvando o pescoço devagarinho sobre o peito num gesto de recolhimento de ave mansa Subia ao púlpito o novo pastor cercado pela curiosidade do povo Era um homem alto com uma barba fulva que lhe caía sobre o casaco preto 1 3 1 GR AÇA A R A NHA em rico contraste Pelas mãos calejadas pela cor vermelha do áspero rosto pelo acento da voz pelas frases Milkau reconheceu nele um cam ponês e voltaramlhe à memória as observações de Lentz sobre o protestantismo que sempre entendeu como uma religião seca e simples aquela que mais se liga ao judaísmo pela austeridade pelo rigor excessi vo de seu monoteísmo uma religião rústica cujos melhores intérpretes eram homens rudes violentos e radicais Na cisão da Igreja cada uma parte ficara com a porção dos espíritos que lhe era própria e peculiar a gente do Norte inculta bárbara independente revoltarase natural mente contra os civilizados nos quais o catolicismo se desenrola como um sucessor natural do paganismo astuto elegante e pomposo Numa toada humilde e tímida o pastor ia desenvolvendo o seu ale mão religioso Este primeiro contato com os colonos era para ele uma crise e em vez de continuar desembaraçado o sermão detinhase a examinar o povo a refletir sobre si e os seus embaraços e muitas vezes parava distraído outras ia tropeçando para adiante Os ouvintes desin teressavamse da atrapalhada e vagarosa prédica e preocupavamse com o pregador e sua família Ao lado de Milkau um homem explicava a uma mulher que bisbilho tava a respeito de duas outras que se viam no coro da capela Aquela mais magra e morena Tem cara de judia Sim mas me parece muito boa pessoa É a mulher do novo pastor Ah E a outra é que é a irmã dele Quem vê um vê outro A cara não engana E de onde as conhece Daqui mesmo Outro dia vim preparar a horta que estava toda abandonada Agora se pode ver creio que o pastor tem gosto pelas plantas A irmã metese em tudo CANAÃ E Frau Pastor Não sei pareceume uma alma penada em casa Pobre Então que lhe fazem O colono não respondeu porque vendo que as suas palavras eram recolhidas por outros ouvidos da vizinhança volveu concentrado e hipócrita à sua Bíblia Na tribuna o pastor ia rolando o sermão procurando com vão esforço esquentarse tentando vociferar e clamar a religião A sua voz logo es morecia e caía na morna toada Do outro lado em frente a Milkau estava Felicíssimo muito nervoso a fazer sinais de impaciência O cearense arregalava os olhos para os seus amigos do Rio Doce sacudia a cabeça num gesto de contrafeita resig nação e em caretas sucessivas transformava a sua móvel fisionomia Lentz não pôde deixar de murmurar com certo desdém a Milkau que seguia complacente o agrimensor Que macaco O grupo dos ma gistrados também não estava resignado ao enfado da cerimônia Sen taramse os três juntos num banco ao lado do púlpito e enfrentavam solenes a multidão o mais velho que era o Juiz de Direito não se cansa va de gesticular ora tirava o lenço enxugando a testa que se franzia em grandes rugas ora limpava o monóculo que mal assestado ao olho direi to caía logo obrigandoo a repetir indefinidamente os movimentos ao seu lado o Promotor crispava as mãos aborrecido e de lábios cerrados agitava a perna suando muito fitando com desprezo e rancor o pastor e os colonos o terceiro o Juiz Municipal coçando a barba por desfastio num grande abandono e bocejando às vezes murmurava alguma coisa ao Juiz de Direito e este pondo maquinal o monóculo para melhor entender sorria benévola e cavalheirosamente Os alemães cheios de respeito não se moviam concentravamse recolhidos ao livro de orações ou de olhos fechados voltavamse para o GRAÇA ARANHA abismo vazio do seu espírito que miravam absortos e suspensos sem a menor vibração íntima sem um pensamento E o tédio envolvia a capela até que o novo pastor terminou a prédi ca e a música do órgão as vozes das cantoras vieram numa desabafada desforra levantar os ânimos Os três pastores reuniramse no fundo da igreja e leram sucessivamente os salmos a música foi suspensa um instante para recomeçar um coro a que o povo respondia O velho pas tor de Luxemburgo com a cara toda raspada e de óculos tinha uma voz rouca que se ia apagando enquanto o pastor de Altona com uma barba muito curta e dura espraiava o seu ar desabusado e insolente No meio dos dois o novo pastor de Jequitibá muito grande e de olhos meigos tinha uma atitude de gigante tímido Em breve acabou o serviço reli gioso os pastores sentaramse vendo o povo retirarse em ordem lentamente tangido pela música levando cada um o eco longínquo dos cantos Fora todos ficaram deslumbrados com o sol e apressaramse a partir Os burros foram desamarrados os embornais vazios embrulha dos e escondidos debaixo da sela e daí a pouco homens e mulheres mon tavam descendo toda a massa de gente pelo morro abaixo como uma represa de água escura que se tivesse aberto sobre a verdura da pai sagem Escorregando vagarosamente ninguém se apressava com receio de um perigoso atropelo E o grande vozerio de comentários de galho fas as grandes gargalhadas e gritos festivos rebentavam das mil bocas da multidão matando a tranqüilidade da região silenciosa Milkau e o com panheiro vinhamse também arrastando partilhando da alegria e esque cidos de si para se misturarem na comunhão ali formada pelo acaso e pelo impulso comunicativo Embaixo na cruz das estradas o povo começou a debandar alguns tomavam a dianteira galopando na estrada e envoltos na poeira outros corriam mesmo a pé as mulheres arre gaçavam as saias de cima por economia e cobriam com elas as cabeças CANAÃ enquanto os homens se descalçavam levando nas mãos as botinas ou os chinelos E a gente iase escoando pelos caminhos procurando as suas casas ou as tabernas próximas onde costumavam passar o domingo Milkau voltouse sentindo um toque no ombro Era Felicíssimo que lhe falava de cima de um burro Bons olhos os vejam Há quanto tempo não nos avistamos E para onde se botam agora Para a casa naturalmente respondeu Milkau Pois eu lhes proporia O quê perguntou Lentz interrompendo Irem à casa de acob Müller onde há um grande baile à noite e já agora de dia começa o pagode Mas não tivemos convite Oh isto é uma conversa Aqui na colônia não há convites Em se sabendo que há uma festa a gente não tem mais que se apresentar porque isso também faz parte do negócio Que negócio interrogou Milkau Que negócio repetiu o agrimensor respondendo Então não sabe O sujeito arranja a festa com olho de fornecer a comida vender muita cerveja e tudo mais Ora vamos daí É verdade que estou mon tado e não podemos ir juntos Mas não há dificuldade o caminho é este da esquerda vai descendo depois torna a subir e quando chega no alto vocês têm um pequeno pouso com uma venda passem pela frente tomem à direita e vão seguindo sem se desviar Quando toparem um sobrado brando com um terreiro é aí Não há confusão a casa está em festa e vocês a reconhecem logo Os dois amigos consultaramse com o olhar meio indecisos mas Lentz não demorou em responder Pois sim iremos G RAÇA ARANHA Assim é que eu gosto da rapaziada disse radiante o agrimensor que não tem história nem maçadas Falouse em patuscada não enjeita Bem eu vou indo vou na frente mando guardar três lugares na mesa para nós Temos muito que desenferrujar E apontava com a mão livre a língua Depois tomado de uma repenti na excitação passou a fazer trejeitos inconsiderados com a cabeça a rir muito Até log Picou o burro com veemência deulhe chicotadas gritou para a frente e se foi num galope espantando os colonos com os berros e a correria Os outros executaram as indicações do cearense e foram andando apressados pela estrada No alto estava realmente a venda onde já se aglomeravam muitas pes soas formando grupos diferentes todos alegres A taberna era limpa bem arrumada e com duas portas largas Dentro encostados ao balcão os alemães bebiam em geral cerveja fabricada no Cachoeiro e alguns tomavam cachaça algumas mulheres de várias idades agruparamse aos homens e entre todos trocavamse saudações e oferecimentos amáveis de bebidas A dona da casa e uma fIlha moça e loura de um louro lava do em que uma rosa traduzia e eterna faceirice da mulher serviam lestos os fregueses Fora uma grande latada corria pelo oitão da casa e na sombra larga debaixo do caramanchão sentadas às mesas toscas famílias almoçavam e eram atendidas pelo dono da casa Como esta sombra convida a descansar disse Lentz fatigado do sol Podemonos demorar aqui um pouco e fazer a caminhada mais à vontade concordou Milkau Não Se não estás morto continuemos porque receio uma vez em casa não tornar a sair por este sol E lá se foram deitando um olhar de cobiça ao caramanchão ruidoso onde o verde das folhas entrançadas nas grades formava quadro para as cores simples álacres dos vestidos das mulheres CANAÃ No caminho viram muita gente que tomava o rumo da casa da festa E quando chegaram à lombada de um morro avistaram embaixo um fio d água veloz e à beira o sobrado onde se percebia mesmo de cima o movimento de uma reunião Apertemos o passo propôs Lentz que não vale a pena mais nos pouparmos quando lá está o nosso refúgio Sim isto agora vai depressa é só descer E ao lado deles passavam rapazes e raparigas a correr pelo morro abaixo gritando de júbilo e levados pela excitação de chegar sem demo ra Isto transmitiulhes também o desejo de correr de se perder na ale gria do ar na vertigem da descida E correram também mas daí a pouco pararam e sorriram vexados da inconsciência que os tomara Ora esta disse Lentz estávamos a imitar Não foi isso o que me fez parar mas é que nós nos estávamos es gotando ponderou Milkau desconhecendose naquele arranco de ex pansão jovial e contente com este rejuvenescimento do seu espírito Afmal a natureza readquiriu os seus direitos pensava ele Desamordaçavamselhe os nervos e uma invasão de luz punhao em misteriosa e infrangível harmonia com o Mundo jovem verde e glorioso Ergueu a cabeça num gesto de desafogo sacudindo a barba de ouro Os seus olhos azuis estavam radiantes de paz e calma e foi com o passo cheio de majestade e de graça simples que baixou da montanha Nas cercanias da casa de Jacob Müller a paisagem tinha o realce e a vida comunicada pelo movimento da gente que se ia reunindo Muitos a pé ou montados vinham da capela do Jequitibá outros de Santa Teresa e outros do Cachoeiro A casa tinha uma bela situação no centro de várias estradas e era um dos maiores pontos do comércio do interior da colô nia e aos domingos um dos mais procurados pelos habitantes do lugar GRAÇA ARANHA por moradores de longe e até pelos caixeiros da cidade Era um sobra do branco no fundo de um vale e à margem de um endiabrado ribeiro que descia em tropel infindo do morro para o Santa Maria A roda dele o terreno estava limpo de plantação e havia um pequeno campo de relva tenra e fresca que brilhava ao sol O sobrado ficava destacado das grandes massas de árvores e de folhagem que vestiam as pedras dos morros Ao chegarem ao terreiro da casa já as vozes da festa vinham ao encon tro dos dois novos colonos e eles foram entrando no meio do ruído da agitação dos alemães à sombra da varanda quando a tarde começava a refrescar e a luz a esmorecer Venham venham meus amigos E Felicíssimo gritando corria para eles arrastandoos Os outros espantados da efusão do agrimensor perguntavam para onde os levava Vamos a um copo de cerveja Não obrigado arranjemos antes um lugar aqui à sombra disse Milkau porque precisamos de descansar O agrimensor ficou meio amuado Ora bolas E os deixou brusca mente Milkau acompanhouo para lhe dar uma explicação da recusa mas o outro levado pelo rompante lá se foi metendose pelos grupos e entrando no armazém Milkau desistiu de seguilo e voltou a Lentz procurando ambos um lugar para descansar Acharamno enfim em um banco debaixo de uma laranjeira em frente à casa A gente moviase muito Bandos de moças de branco passavam de mãos dadas rapazes cor riam pelo campo em mangas de camisa em apostas brincalhonas uma pequenada vadia espalhavase guinchando pelo terreiro como um bando desesperado de maitacas Outros entravam e saíam do armazém cantarolando com a voz rouca e a gesticulação de embriagados O estrondo dos pés que dançavam no sobrado ecoando no vasto armazém e o som langoroso de um realejo CANAÃ incessante desciam do alto atordoando a gente E nas janelas muitas pes soas com ar indiferente debruçavamse para o terreiro olhando a agi tação em volta e fitando pasmadamente a paisagem que parecia tam bém moverse toda arrebatada pela celeridade do regato Milkau que se tinha conservado mudo a contemplar satisfeito o prazer alheio viu um rosto amigo que se aproximava Era Joca que em mangas de camisa de lenço ao pescoço e um cinturão de couro segu rando a calça vinha saudálo abrindo a boca em que se apertavam os dentes felinos Então vieram divertirse um pouco Sim senhores já é coragem que do Rio Doce aqui é um estirãol Saímos de madrugada e fizemos a viagem sem grande fadiga respondeu Milkau Lá isso não interrompeu Lentz porque eu estou que não me posso mexer Começo a ter fome também O que não falta é comida Olhem só lá para dentro do armazém por cima das cabeças desta gente vejam que povo está ali agarrado ao balcão parece urubu cercando carniça E atrás nas salas as mesas já estão apinhadas para a hora do jantar O que é preciso é marcar os lu gares desde já Seu chefe se encarregou disso referiu Lentz sumiuse de nós e esqueceuse de nos dizer o que arranjou Mas ele há de voltar concluiu confiante Milkau e estou certo de que temos tudo arranjado e você Joca que fim levou Rolando amigo De um lado para outro a fazer medição agora lá para o Guandu Isso é estes dias nós descemos ao Cachoeiro para fol gar um pouco E como vão lá no prazo Já sei que a casa está bonitinha E o cafezal Plantado G R A Ç A A R A N H A No roçado que fizemos Sim ao lado da casa E quando beberemos desse café A resposta foi um gesto de mão indicando o tempo remoto Por um instante uma ligeira sobre excitação coloriu as faces de Lentz que tremia em pensar no vago da distância ainda à sua frente e naquela vida estra nha que levava Ah agora a coisa vai ser mais animada disse em sobressalto o mulato olhando alvoroçado para o fundo lá vem a banda Os músicos da filarmônica do Cachoeiro vinham chegando ao arraial e todas as vistas se voltavam para eles Um grande rebuliço fezse no povo e repentinamente todos se foram aproximando da banda que caminhando lentamente e como por um velho hábito se dirigia para um pátio ladrilhado de cimento que era o lugar destinado para secar o café comprado por Jacob Müller Nos dias de semana uma grade de arame protegia esse pátio da invasão dos animais e da criançada Aos domingos quando havia festa a grade era retirada e todos tinham a liberdade de penetrar na área Joca deixou Milkau e foi se postar ao lado dos músicos alguns dos quais eram seus conhecidos e camaradas Então minha gente vocês hoje estavam com preguiça de desu nhar A rapaziada aqui já andava impaciente O velho Martinho já está com o braço morto de tocar realejo para entreter o povo lá em cima Vamos à gaita E contente o mulato começou a dar vivas à banda do Cachoeiro Um alarido de gargalhadas e aclamações acompanhou os vivas Os homens da música sorriam rubros de vexames e todos automaticamente tiraram o chapéu agradecendo Foi um delírio para o maranhense que começou a dar outros vivas ao povo do Cachoeiro a Jacob Müller à união da rapaziada Todos se G R A Ç A A R A N H A cara de jenipapo murcho entrou no terreiro para dirigir o baile infan til Foi um instante de sossego O homem mandou que os pequenos se ordenassem pelos sexos e começou depois a distribuir os pares cha mando cada criança pelo seu nome Alberto e Ema Hermann e Sofia Guilherme e Ida Às vezes um dos pequenos recalcitrava contra o arranjo Mas eu estou comprometido professor Como Com quem Com Augusta Feltz Mas não é possível você tão miúdo e ela tão crescida replicava o velho tremendolhe as mandíbulas moles No círculo as mães intervinham acompanhadas por outras vozes de mulheres Deixe senhor professor Que é que tem Cada um escolhe a que deseja O mestre resignavase e Augusta Feltz com os seus doze anos de canelas compridas e olhos mansos de veada lá ia para a forma inclinan do o pescoço para o cavalheiro que a levava de braço fitandoa muito ancho ArmaI o professor conseguia arranjar as quadrilhas e a música rompia a dança Os pequenos estavam exercitados de modo que tudo corria em ordem sem confusão Das pessoas grandes muitas ficavam entretidas acompanhando a festa das crianças outras porém fatigavam se da atenção e punhamse a passear pelo arraial indo à beira do rio deitandose na relva para verem passar a água alguns de braço como noivos iam se perdendo pelo mato adentro e outros se reuniam ao bal cão a beber e a cantar as velhas estrofes do prazer e do convívio humano que na ilusão instantânea os transportavam à terra abandonada Em tu do no menor movimento no mais pequeno gesto a reunião ali na esta ção do Cajá dava a sensação do esquecimento e da alegria C A N A Ã Era isto o que eu procurava dizia Milkau a Lentz quando passeavam pelo terreiro ao ritmo da música e olhando a cena Era isto que eu procurava e que enfim achei Viver no meio de gente simples partilhar com ela o seu doce esquecimento da dor matar o ódio Compara este povo com os homens de outras terras onde cada um parece possuído do espírito do demônio solto sobre a face do mundo devastandoa nos seus impulsos de loucura e estrebuchando para mor rer num espasmo de maldade Aqui ao menos é a serenidade é a calma é a alegria Mas observa Lentz traçando no rosto um gesto de desdém no fundo isto é a estagnação é uma existência vazia e inútil E não é o amor a ação por excelência E não é ele a força que aqui na colônia no canto do Universo move os homens Que queremos mais Aproximaramse do baile das crianças que prosseguia vivo e anima do Agora havia uma grande roda dos dançantes que ora célere ora vagarosa se ia movendo aos cantos infantis estridentes e desafinados E quando a meninada estava muito entretida um sujeito mascarado saltou no pátio disfarçado em palhaço maltrapilho besuntada de alvaiade a cara e beiços e faces pintados de vermelhão Uma imensa risada dos grandes o recebeu e os meninos pararam a dança meio espantados abrindo o círculo O palhaço começou a cabriolar a gritar imitando ani mais e daí a pouco no meio da algazarra geral metiase na roda das cri anças de olhos tapados a divertilas E Felicíssimo que não nos procurou mais lembrou Milkau afas tandose do círculo com o amigo pelo braço É verdade Creio que desconfiou conosco Vamos procurálo propôs Milkau É tempo mesmo porque já podíamos ir jantando acedeu Lentz Já àquela hora o sol esfriando transformava magicamente o panorama 1 43 G RAÇA ARAN H A graduando a cor que parecia surgir pouco a pouco do seio secreto das coisas e se expandir mais livre à superfície luminosa A aragem refresca va o tempo passando volátil pelas cabeças louras das mulheres brincan dolhes nos cabelos num leve arrepio que lhes descia da nuca A paz da tarde avançando sutil reinava sobre as gentes entorpecendoas com a sua doce perfídia Mas onde se meteu o agrimensor Onde se meteu ele ia dizen do Lentz passando de grupo em grupo e mirando por toda a parte Hoje ele está misterioso conosco Também por que não lhe aceita mos o copo de cerveja Não custava nada uma amabilidade E não se perdia um camarada tão idiota concluiu Lentz Oh Também vais logo aos extremos Procuraram o agrimensor pelo terreiro dando volta por trás da casa Uma caminhada inútil Foram até à margem do regato chegaram até à beira das estradas e precipitaramse para onde avistavam grupos de gente na esperança de achar o cearense Tudo em vão E entraram no mato Debaixo de uma carregada sombra um par amoroso cochichan do descansava Com a presença dos estranhos o jovem abaixou a cabeça enleado disfarçando a remexer nos gravetos esparsos no chão a rapari ga porém numa tranqüilidade altiva com seus olhos serenos e francos expulsou os perturbadores Quando tornaram à clareira desistiram de procurar Felicíssimo no arraial e se encaminharam para casa O balcão continuava sempre cercado bebiase largamente e numa língua arrastada enfadonha cantavase Os dois amigos lançaram uma vista d olhos pelo armazém e não viram o agrimensor A mulher de Jacob percebendoos indecisos fezlhes um gesto perguntandolhes o que bebiam Milkau desviando delicadamente alguns colonos pesados e oscilantes chegouse a ela indagando de Felicíssimo A mulher aconse C A N A Ã lhouos a subir à sala do fundo onde se servia o jantar pois talvez aí o encontrassem e faloulhes dos lugares encomendados para três De fato no sobrado enquanto a sala da frente se achava quase deserta e apenas com algumas pessoas à janela vendo o baile das crianças a sala do fundo estava num grande burburinho À mesa muita gente sentada comia avida mente Em pé uns com pratos na mão tomavam caldos e outros agarran do lingüiças fatias de pão mastigavam com uma fome voraz e com os olhos injetados fixos num espasmo de satisfação bestial Um cheiro de alho vinagre e pimenta excitava a multidão e entretinha a sua voracidade Felicíssimo estava numa cabeceira da mesa com dois lugares vazios de cada lado e quando avistou os companheiros chamouos num sobressalto Aqui Aqui Os outros foram rompendo caminho e tomaram os seus lugares Até que afmal vocês resolveram vir Pensei que não quisessem saber de mim hoje pois tão entretidos andavam Viram passarinho verde Ora respondeu Lentz não mude os papéis Foi você exatamente que nos deixou e meio amuado não se importou mais conosco que sem nenhum conhecimento temos andado vagando à matroca Não me conte histórias patife Imagino quantas amizades não tem por aí com quanta rapariga não tem falado Vamos lá nada de segredos O alemão enrubesceu e não sabia como replicar Milkau veio em socorro Lentz não se preocupa com isso V á pregar noutra freguesia seu maganão O nosso interesse é misturarmonos à alegria deste povo com preender a sua vida e felicidade Felicíssimo olhouo com os olhos miúdos caídos e vagos Depois com uma cara feita de um riso complacente e velhaco arrastando a voz G R A Ç A A R A N H A Qual camarada não me conte rodelas então você mesmo você que lá na sua língua procura misturarse à alegria desta gente que quer mais senão O pior meu amigo é que com esta discussão nós vamos ficando sem jantar cortou Lentz Oh é verdade gritou o agrimensor erguendose apoiado nas mãos Em pé berrava chamando os criados Afinal uma rapariga atendeu postandose em frente ao cearense à espera de uma ordem Felicíssimo miroua com malícia piscando os olhos para o companheiro e depois como a alemã enleada quisesse partir ele resolveuse a falar Meu bem meu amor você traga jantar igual ao que me tem trazi do para este dois amigos comecemos por um caldo de ervas A criada desapareceu rapidamente com um movimento airoso como uma passo de dança Felicíssimo estalou a língua atirandolhe os olhos que a seguiram como servos amorosos Ah esta vida esta vida murmurava o agrimensor melancolica mente e sem saber o que dizia Puxou o copo de cerveja e bebeu Olhou a garrafa que esvaziara bateu na mesa pedindo que lhe trouxesse outras seis Nós não tomamos tanto objetou Milkau Se vocês fizeram voto eu não fiz beberei todas seis Milkau e Lentz começaram a jantar dos pratos rústicos que serviam no meio de algazarra e de desordem Muitos caixeiros da cidade mais bem trajados que os camponeses recusavam a comida ordinária e pe diam aves em conserva de que se serviam bebendo o vinho do Reno Alguns destes rapazes que eram da casa de Roberto reconheceram os antigos hóspedes nos novos colonos e os cumprimentaram com gestos C A N A Ã de cabeça numa expressão amável Dos seus lugares ofereciamlhes vinho acenando com a garrafa Milkau agradecia com outro gesto e o grupo continuava a beber indiferente e desdenhoso do resto da gente Felicíssimo bebia sempre com grande alarde e tanto barulho fazia que não tardou muito a atrair sobre ele a curiosidade geral Excitado por essa atenção o agrimensor exibiase por todas as formas cantava dançava trepado na cadeira de copo em punho levantando brindes Os cam poneses o admiravam numa alegria infantil os rapazes da cidade o deprimiam com aplausos irônicos com frases insultuosas ditas no meio de risadas A estes o agrimensor respondia improvisando versos em por tuguês versos dessa toada sertaneja que lhe falava tão intimamente Muitos não o entendiam mas a cadência dos versos os enternecia e era com amor que pediam ao cearense que não parasse Este variava o seu repertório cantando canções alemãs que estropiava mas que ao seu la do eram retomadas com brio com entusiasmo pelos colonos Produzia se um berreiro descomunal feito de vozes de velhos moços e mulheres aumentado pelos repiques nos copos e nos pratos e pelo som estridente de um realejo tangido num impulso frenético para acompanhar as canções cujas notas graves eram abafadas no barulho destacandose apenas os agudos violentos e ferozes O dono da casa querendo conter a matinada tomou Felicíssimo pelo braço para forçálo a descer da cadeira O agrimensor o repeliu continuando a gritaria e outros o cer caram protegendoo contra Jacob que foi expulso da sala aos empur rões O agrimensor ordenou por sua conta mais cerveja que mandava distribuir em torno Disputavase cada garrafa das mãos das criadas e na confusão na desordem na desatenção o líquido espalhavase pela mesa dos copos entornados na sofreguidão da conquista Milkau temendo pelo agrimensor propôslhe saírem um pouco a desfrutar o resto da tarde no terreiro G R A Ç A A R A N H A Daqui não arredo gritava ele E os alemães embriagados o acompanhavam num berreiro Não arreda não arreda E de então em diante estas palavras serviam disparatadamente de estribilho a cada canção Os que ainda tinham consciência riam gostosa mente da ira dos outros e mais que tudo do efeito dos próprios cantos cheios de versos de amor de idílios campesinos casados com aquele es tribilho do cearense Milkau e Lentz julgaramse no meio de doidos que se fitavam com expressões várias de desdém e de divertimento E os dois foramse es gueirando da sala sem cólera perseguidos pela vaia dos que ficavam Fora a lua vinha rompendo e a claridade que dela descia apoderava se furtivamente do domínio da várzea abandonada pelo sol E nesse instante indeciso intermediário o vento extinguiase e todos se sen tiam sob um encanto misterioso de saudade de repouso com os olhos pregados no espaço abismados em melancolia No terreiro as crianças fatigadas estavam serenas intimidadas pelo silêncio que elas mesmas faziam e as mais pequenas cabeceando de sono encontravamse às mães sentadas no chão Os músicos recolhiam os instrumentos e vinham vagarosos jantar Os dois amigos caminharam até ao rio e o foram margeando descuidosos por algum tempo Detiveramse e sentaramse nas pedras E mais tarde como esfriasse e ouvissem de novo a música volveram à casa da festa Quando a descobriram ela estava iluminada e a luz rubra e quente que saía das janelas e das portas abria um círculo de fogo em fosforescência dentro da claridade mansa e leitosa do luar No terreiro já não havia quase ninguém as crianças tinham debandado os grandes haviam partido para as colônias ou se tinham recolhido ao salão do baile Subiram ao sobrado onde na sala da frente se come çavam a dançar Ali a música tocava uma valsa arrastada e langorosa e divertiam gesticulavam dançavam descompassados acompanhando a banda Os músicos instalaramse num dos ângulos do pátio largo liso lavado que recebia em seu lajedo para irradiála a força do sol Num momento ficou coalhado da gente simples e fácil de contentar desses que são amados da alegria e em quem ela não encontra atropelo para reinar livremente Colocadas as estantes os músicos sentaramse e começaram a tocar uma marcha de que cada qual entusiasmado ia repetindo os compassos Joca cantando marcialmente com os olhos acesos e as narinas arregçadas perseguia um bando de raparigas louras coradas que fugiam rindo num fingido susto Alguns velhos já ébrios de cachimbo ao queijo arrastavam as vozes fazendo mesuras às mulheres que riam destemperadamente As crianças invadiam o terreiro vindo em grupo abrindo espaço aos empurrões O dono da casa todo de branco em mangas de camisa e com um grande chapéu de palha na cabeça apareceu no pátio e depois de se entender com o mestre da banda principiou a falar dando ordens Algumas velhas aplicavamlhe palmadas nas costas outras puxavamlhe levemente a barba ele respondia aos socos berrando A festa é das crianças Limpa o terreiro Arreda Vocês têm baile à noite E depois persuasivamente viravase para os mais teimosos Anda meu velho ajudame que tenho de atender à freguesia Olha vai tomar um copo lá dentro Era o argumento irresistível e proveitoso porque a miragem desse copo afastava o homem daí e dava algum lucro ao armazém O lugar ficou limpo da gente grande que se enfileirou aos lados formando o quadro do pátio A criançada agora sobre ele girava doidamente a rodar a rodar como se fosse movida por um pédevento A música acabou a marcha e deu o sinal de uma quadrilha Um velho alto com uma longa sobrecasaca preta e surrada de óculos azuis e uma 137 pouca gente dançava pois muitos ainda permaneciam à mesa ou se postavam encostados às portas e às janelas tímidos e negligentes Em geral os pares compunhamse de raparigas que enlaçadas umas às outras rolavam provocadoras sacudindo com os seus movimentos o torpor dos rapazes até que estes estimulados viessem separálas tomando uma delas para seu par fixo Não se passou muito tempo sem que o baile entrasse em plena animação A sala depois que a noite avançara fora mais iluminada a música não cessava de tocar e todos se divertiam alegremente Agora é que se podia ver a variedade de gente aglomerada na casa de Jacob Ali estavam negociantes do Cachoeiro com as mulheres caixeiros da cidade tropeiros lavradores criadas e todos reunidos numa grande promiscuidade sem separação de classes Diante de Milkau que sentado a uma janela aberta acompanhava a festa passou na série de pares de uma marcha polaca uma jovem de flexível graça de movimentos ondulantes voluptuosos distinguindose do resto das outras raparigas desengonçadas ou morosas arrastadas com estrépito pelos seus pares Um homem de tosca figura que estava ao lado de Milkau referiuse a ela Não há nenhuma que seja capaz de chegar a Luíza Wolf22 Realmente é muito graciosa Ah É preciso conhecêla para saber que não é só no baile é em tudo assim Parece que não cansa de levantar aquela cabecinha Amanhã estará trabalhando com o mesmo ar Naturalmente é uma colona Não é criada no Cachoeiro e o patrão dela é aquele mesmo que é o seu par Martin Fidel Não conhece Não Pois admira é um dos negociantes mais ricos da cidade a família está toda aqui A mulher já é velha como ele Ah lá vai ela ao braço daquele 155 Maria não podia esquecer os fugitivos momentos do seu encontro com Milkau Muito das palavras do desconhecido se impregnara no seu espírito e ela guardava recordações desse dia do baile como de uma festa tranqüila para a sua alma de um pequeno clarão dentro da amargura da sua vida A história de Maria Perutz era simples com a miséria Nasecera na colônia na mesma casa onde ainda vivia Filha de imigrantes não conhecera o pai morto ao chegar ao Brasil no barracão da Vitória a mãe viúva e quase mendiga empregarase como criada na casa do velho Augusto Kraus antigo colono estabelecido no Jequitibá longe do Porto do Cachoeiro A colônia era próspera e os outros habitantes eram o filho casado e um neto que nascera um ano antes de Maria Viviase tranqüilamente as crianças cresciam como irmãos e o velho Augusto tendo quase chegado ao extremo da curva desse círculo em que as idades se tocam entretinhase em encher as almas dos meninos de recordações da sua vida de coisas longínquas da pátria germânica Esquecera Maria a morte da mãe o fato devia ter acontecido na sua remota infância não lhe deixando traço na memória A sua família o G R A Ç A A R A N H A mocinho alto de nariz grande não vê É um colono e filho de colono no Je quitibá O pai dele também está dançando é aquele baixo gorducho bar bado e de chapéu na cabeça o par é a criada uma desenxabida como vê Os dançantes continuavam no compasso marcial da polaca executan do variadas figuras ora desenhando meiasluas ora separandose em alas marchando frente a frente ora fazendo evoluções de homens e mu lheres separadas para se reunirem depois de diferentes voltas Os movi mentos eram tardos e pesados dentro de sapatos grossos ferrados batendo fortemente os pés no assoalho arrastandose com esforço fa ziam um barulho seco enorme que dominava as vozes dos instrumen tos Quando a contradança parava os pares voltavamse num mesmo instante como por uma combinação mágica e todos livres se moviam vagarosamente procurando os bancos encostados às paredes das salas ou aos cantos das janelas Muitos saíam até ao terreiro para se refrescar na morados passeavam ali no escuro abraçados velhos fumavam o seu cachimbo resmungando conversas preguiçosas até que de novo a músi ca dava o sinal e todos voltavam à sala em ordem sem o menor em baraço passando a dançar automaticamente de charuto ou cachimbo ao queixo e chapéu na cabeça enquanto as mulheres amarravam lenços ao pescoço por causa do suor que lhes escorria da fronte Milkau estava só o seu informante tinhao abandonado farto de lhe relatar coisas da colônia Lentz desde muito tempo não aparecia na sala e o amigo pensou que fatigado daquelas simples e monótonas danças estivesse no terreiro passeando solitário Felicíssimo saía da sala de jan tar onde com amigos alemães continuava a cantar e a beber De vez em quando ao menor silêncio da música as vozes deles alegres entoadas entravam num grande alvoroço Junto de Milkau no mesmo banco sentaramse duas mulheres Numa delas reconheceu ele a mesma que na capela o fitara durante o seu sono C A N A Ã Estavam ali a descansar bem perto dele aqueles mesmos olhos meigos e infinitos sobre os quais via boiar imagens doloridas que seriam a vida e o amor da rapariga Esta respirava ofegante tinha um ar fatigado e sen tavase num pesado abandono Também da sua parte ela não deixou de acompanhar a furto o vizinho e às vezes mesmo com certa ousadia o mirava nos olhos plácida e inocente Havia nela certa beleza uma dis tinção maior do que era comum nos colonos o porte era gracioso o busto erguido porém de um contorno farto e as mãos brancas talvez longas demais saíam dos braços como cabeças de galgo Mas o que ela tinha de superior era a fronte aberta era o cabelo louro fofo volátil era a expressão da boca da sua boca descorada mas úmida e bondosa Alguns minutos depois tocou de novo a música uma valsa e quase todos foram dançar Milkau então falou à vizinha Não dança Ela não se intimidou ouvindo a voz dele até então silencioso e tran qüilo Respondeu prontamente Não não posso pois não me sinto bem mas se que um par aqui tem esta minha amiga que é uma das melhores na valsa E com gesto de carinho quase maternal pegou na mão da outra rapariga que se deixou acariciar negligentemente como habituada àquelas maneiras da amiga Milkau ficou meio confuso e desculpouse confessando que não sabia dançar E a sua interlocutora É o que me acontece pretextar quando não me sinto bem Mas ninguém me acredita Vejam só E sorriu levemente A voz dela era um canto íntimo sonoro e como que rasgava um tênue véu para mostrar a deliciosa paisagem da sua alma E como em toda a voz humana o acento da sua era uma revelação da personalidade íntima pela voz que traduz a música do cérebro per G R A Ç A A R A N H A cebemse as qualidades secretas de cada espírito conhecese a nobreza ou a grosseria da raça ou do grupo moral a que pertencemos Um rapaz se aproximou e sem dizer uma palavra à moda do lugar tomou pelo pulso a outra moça arrastandoa para a dança A rapariga ergueuse e voltandose para a amiga disse radiante e rápida Maria onde me esperas Não quero me separar de ti Tenho tanto que te dizer 23 Por aqui mesmo Neste banco ou na janela Quando a jovem partiu arrebatada pelo par Maria disse a Milkau Não lhe parece tão boazinha É filha de um colono do Luxemburgo há muito tempo não nos víamos e hoje tem sido um regalo Oh desde manhã andamos nesta rodaviva Lembrome de têla visto na capela do Jequitibá referiu Milkau Sim É verdade recordome bem de que não estávamos muito longe um do outro Por sinal que eu dormi Maria enrubesceu mas imediatamente retomou o fio da conversa Fazia um calor terríveL E o pastor não o divertia não é verdade Não sei Ao contrário sentia um bemestar imenso e o sono me veio como um arrebatamento feliz Deixe lá replicou meio confiada e íntima que às vezes seria me lhor passar a vida a dormir Já vejo que converso com uma grande preguiçosa Eu Nunca volveu com vivacidade a rapariga Não é por preguiça seria para esquecer tantos aborrecimentos que desejaria um grande sono Acabou a frase com uma voz sumida e vagarosa Aborrecimentos Imagino a que coisas simples dá este triste nome observou Milkau CANAÃ Ela não respondeu e ligeiramente abaixou os olhos quando logo depois os ergueu mudou de assunto Como é belo dançar Com a sua mão fina fazia um aceno afável às amigas que passavam alu cinadas no movimento aéreo da valsa Milkau ia achando prazer em se entreter com a rapariga que também ao seu lado não sentia o menor constrangimento e se exprimia sem embaraço como a um velho conhecido Quando a música parou os pares se desfizeram e cada um dos dan çantes tomou direção diversa Tu vês disse Maria à amiga não me mexi daqui à tua espera Eu sabia E agora queres dar um passeio ou preferes ficar aqui per guntou a outra arquejando de cansaço e sentandose instintivamente Oh meu Deus Passear quando estás que não podes Não amor descansa um pouco Talvez observou Milkau fosse preferível para sua companheira sentarse à janela as cadeiras ali estão desocupadas Vamos para lá o ar fresco lhe dará forças Levantouse e as moças correram sôfregas para as cadeiras indi cadas receosas de perdêlas O primeiro olhar deles foi para o qua dro de fora Toda a terra estava inundada de um luar branco as nu vens descendo do céu desmanchavamse no horizonte e o grande campo vaporoso livre sem estrelas e desmaiado ia se transformando em um pavimento de cristal puro rijo transparente O verde das árvores adoçavase à luz diamantina a torrente rolava borbulhando um vento manso balançava os ramos e destes as sombras ainda lon gas dançavam inquietas Que é isto interrogou Maria meio assustada por um grande barulho de vozes que vinha da sala de jantar para o lugar do baile G R A Ç A A R A N H A Todos se precipitaram para indagar do que se passava Havia grande discussão em vozes altas e agudas mas tudo cortado por atroadoras e bruscas gargalhadas Todavia Maria e a companheira não estavam tran qüilas pensando que uma grande rixa se travava ali Milkau saiu para ver o que se passava e pouco tempo depois voltou Não é nada O agrimensor Felidssimo entende que já basta destas danças estrangeiras e que agora se deve passar às danças brasileiras Os músicos não sabem como executálas os rapazes protestam contra a ino vação que eles ignoram o agrimensor insiste ensaia alguns passos asso bia quer forçar os músicos a tocarem E afmaI perguntou Maria Afmal parece que Felidssimo vencerá e veremos alguma dança da terra De fato o agrimensor conseguira impor os seus desejos e arranjara que os músicos de experiência em experiência lhe dessem uma peça cujos compassos seriam mais ou menos os da dança que premeditara Depois deste acordo os músicos vieram para os seus lugares e a gente ansiosa correu para a sala num burburinho de risadas para conseguir um bom lugar Depois sucedeu um silêncio de espera ninguém se movia mais na sala livre para a dança quase todos estavam sentados e muitos amon toados às portas e janelas Junto aos músicos Felidssimo cantarolava o andamento Não tardou porém que a orquestra agora afinada come çasse a tocar uma peça arrastada e voluptuosa Alguém perguntou ao agri mensor o que ia ele dançar Felidssimo cambaleando com olhos tortos e compridos saiu para o meio da sala gritando com voz difícil É o chorado meu povo E erguendo e abaixando os braços ensinava estalar os dedos como castanholas Mas nenhum som produziam as suas mãos dormentes A música suspirava gemidos lânguidos e o dançarino só no meio da casa C A N A Ã fazia trejeitos desconexos desengonçados medonhos Rodava sobre si mesmo acocoravase arrastava a perna e jamais um gesto se casava com o compasso da música Riam em torno achando aquilo estúpido e gro tesco A embriaguez do agrimensor era completa e o inutilizava inteira mente Felicíssimo deu mais algumas voltas e afinal como numa guina da de navio o seu corpo se arrojou rápido violento contra a parede Foi uma barafunda todos gritavam de susto uns fugiam abandonando os lugares outros riam do espetáculo O agrimensor apoiouse com a mão à parede livrando a cabeça e caiu brusco e pesado numa cadeira vazia Por entusiasmo por prazer a música continuava Felicíssimo ainda ten tou erguerse mas os seus vizinhos o sustiveram na cadeira com medo de alguma queda desastrada Ele deixouse prender agradecendolhes com o enternecido olhar de bêbado manso Durante algum tempo ninguém se moveu e a música prosseguia so litária nos seus largos e chorosos compassos Mas de repente como um fauno antigo Joca pulou na sala e principiou a dançar A sua alma nativa esquecia por um momento essa dolorosa expatriação na própria terra entre gente de outros mundos Arrebatado pela música que lhe falava às mais remotas e imorredouras essências da vida o mulato transportava se para longe de si mesmo e transfiguravase numa altiva e extraordinária alegria Todo o seu corpo se agitava num só ritmo a cabeça erguida tomava uma expressão de prazer ilimitado a boca entreaberta com os dentes em serra sorria os cabelos animavamse livremente ou empina dos e eriçados ou moles caindo sobre a fronte os pés voavam no assoa lho e às vezes paravam sacudindose os membros numa dança desen freada as mãos ora baixas estalando castanholas ora unidas saindo dos braços retesados ora espalmadas no ar e nesse gesto ébrio de música perfilado nas pontas dos pés ele parecia com os braços abertos querer voar Umas vezes corria pela sala saracoteando o corpo com os pés jun G R A Ç A A R A N H A tos num passo miúdo e repinicado outras obedecendo ao compasso da música vinha lânguido requebrado de cabeça inclinada e olhos com pridos e achegavase a alguma mulher quase de rastos suspenso que rendo arrebatála numa volúpia contida mas que se adivinhava febril vertiginosa Depois erguiase num salto de tigre retomava a sua doi dice como num grande ataque satânico agitavase todo convulso trê mulo quase pairando no ar numa vibração de todos os nervos rápido imperceptível que dava a ilusão de um instantâneo repouso em pleno espaço como a dança de um beijaflor Nesse momento a orquestra podia parar fazer um silêncio que desequilibrasse tudo Joca não perce beria a falta dos instrumentos pois todo ele no seu corpo triunfal na sua alegria rara no impulso da sua alma vivendo espraiandose na velha dança da raça todo ele era movimento era vibração era música A cena continuou algum tempo com esse único personagem Joca procurou um par uma mulher que acudisse aos seus apelos que corres pondesse aos seus movimentos Ninguém veio ninguém sentiu o ímpeto de sacudirse de remexerse ao ritmo daquela dança Todos tinham curiosidade e nada mais Desolado tomado de uma repentina tristeza de uma saudade das suas companheiras de mocidade das mulheres negras que sentiam como ele pouco a pouco foi cansando O peito ofegava as pernas morenas não se retesavam com a mesma energia de pouco antes com a flexibilidade vigorosa do paudarco Exausto ele derreou o corpo combalido e o último intérprete das danças nacionais foi cedendo o terreno aos vencedores enquanto outra música outra dança invadia o cenário Era a valsa alemã clara larga fluente como um rio N a sala os pares voavam num frenesi e entre estes se foi a amiga de Maria Fora havia mais luar as sombras minguando se resumiam mais C A N A Ã fixas Numa das janelas um par cochilava esquecido de dançar Era uma longa infindável e sussurrante palestra Um momento a rapariga alteou a voz e toda entregue à paixão declamou como na velha balada Ob ich dich liebe Frage den Stern Maria estremeceu ouvindo o canto de amor e sem saber o que fazia fitando com os olhos ardentes o céu apontou a lua dizendo com voz sumida e trêmula Que tristeza O pensamento de Milkau como obedecendo a um chamado estra nho subiu ao astro morto Ela imaginou a solidão de um mundo sem vida essa terra deserta marchando como um cadáver fantástico na estrada do infinito Ele pensou que algum dia também aqui nesta Terra radiante viçosa e feliz toda a vida se acabaria e uma imensa tristeza um grande silêncio reinaria nestes mesmos cantos cheios de movimento e de alegria E para quantos não começara o isolamento princípio da morte Pensou na sua própria vida no seu destino nesta solidão em que ia passando a existência envolto como num véu intangível que o não deixava sair para o mundo nem permitia que o mundo viesse a ele Sua vida triste sem uma companheira sua vida casta e mística pior que o eterno frio Acabara a dança e era hora da separação Um velho chegou à janela onde estava Maria e chamoua A moça despediuse de Milkau como de um antigo conhecido que no dia seguinte se tornaria a ver Por sua vez Milkau já recomposto daquele instantâneo desfalecimento foi procurar Lentz encontrandoo entre vários colonos no terreiro ao ar livre Oh pensei que fosse o último a deixar esta casa gritou Lentz recebendo jovial o companheiro Não sabia que eras tão grande apai xonado de festas Distraíme vendo os outros alegres e quis te dar a liberdade de te divertires a teu modo G R A Ç A A R A N H A Aqui estive a conversar sobre a Alemanha com estes amigos E fa lamos também de outra Alemanha que há de vir no futuro Não é ver dade camaradas Os outros aplaudiram a profecia Bem disse Milkau mas agora cuidemos de ir para casa A caminho Adeus amigos Até um dia Bateram durante horas e horas a mesma estrada de manhã percorrida Um momento depois de passarem por um grande cafezal belo em sua viçosa negrura na encosta de uma montanha majestosa começaram a ver cruzes pretas e pedras brancas por entre os pés de café Que é isto perguntou Lentz Um cemitério respondeu Milkau E acrescentou Vê tu Não há em Canaã lugar para a morte A terra dá o menos pos sível aos túmulos eles escassos e raros na fralda da montanha não apagam a Luz nem dão sombra sobre a Vida que os enlaça e domina na força do seu triunfo Ah Prepare tudo para se arrolar Não esconda nada senão cadeia Não lhe deixo contrafé porque de nada serve Era só o que faltava mais essa maçada Picou o burro e solene lá se foi num chouto pelo caminho Antes de passar a cancela voltouse para a casa Kraus estava pregado no mesmo lugar com o chapéu a rolar nas duas mãos O meirinho gritou Comida e dormida para cinco Veja lá Desapareceu e o colono ficou por algum tempo na mesma postura O nome mágico da Justiça aterravao Na colônia quando se falava em tribunais e processos todos se confrangiam A Lei e o Direito tinham ali um prestígio inquietador Franz Kraus não teve mais ânimo de ir para o trabalho Entrou em casa A mulher que o viu em tão estranho abatimento arrancoulhe palavra por palavra a narrativa da intimação Depois ambos ficaram mudos o dia inteiro Maria tentou confortálos mas o terror dos outros um terror como se tivesse havido ali uma visita da morte fazia ainda aumentar a própria tristeza dela tirandolhe as energias para distrair os patrões Apenas quando foi a tarde Maria lembrou os hóspedes do dia seguinte e o interesse que deviam empregar para recebêlos do melhor modo Compreendendo isso Franz animouse e auxiliado por Ema e a criada começou a arranjar a hospedagem As mulheres matavam galinhas preparavam o pão negro dos colonos arrumavam a casa remexendo velhos baús esquecidos nos quartos Tudo se fazia debaixo de conselho cada qual como sucede nos dias de desgraça querendo apoiarse no outro todos conchegandose numa desfalecida cobardia Na manhã seguinte a colônia estava ordenada Kraus vestido como nos domingos pôsse inquieto a andar no terreiro espreitando a chegada dos magistrados As mulheres também vestidas com os seus melhores fatos não se arredavam do trabalho da cozinha C A N A Ã paiol de algodão Uma noite e foi a última a rapariga achouo der rubado de bruços no chão e gelado Depois da morte do velho a situação de Maria na família foi se modificando Já a tristeza entrando no seu espírito lhe revelava o de sencanto da existência já a ambição dos colonos donos da casa temerosos que da convivência do filho com a rapariga resultasse algu ma ligação de amor lhe traçava a separação entre ambos Mas apesar de todas as preocupações tomadas Maria foi amante do jovem Moritz Kraus Estes amores eram como em geral os amores da colônia e deviam acabar por um casamento Assim esperava Maria Mas a cupi da ambição dos já então velhos Kraus não permitiu que as coisas seguissem o curso habitual Queriam que o filho se casasse com Emília Schenker uma das mais ricas moças do lugar Não era a distinção de classes que não existe entre os colonos quase todos da mesma ori gem que os levava a afastar Maria de Moritz era apenas o interesse a avidez de incorporar o filho à família Schenker Assim os pais sem sus peitarem do ponto a que tinham chegado as relações entre Moritz e a criada e no desejo de cortar uma simples inclinação que a convivência tornara inevitável ligandoos inexoravelmente deliberara mandar o filho para outra colônia longe do Jequitibá onde o alugaram como traba lhador esperando esquecesse o amor enquanto preparavam o espírito dos Schenker para anuir ao desejado casamento Maria viu com grande pasmo a docilidade do amante que lhe pare cia entrar gostoso nos planos dos pais O seu abandono foi completo não teve meio de comunicar com Moritz nem ânimo de exigir o casa mento Que era ela senão uma miserável uma pobre criada que po deria ser lançada de um momento para outro na estrada Como poderia embaraçar com a sua pessoa com os seus desejos e ambições os pla nos da família Para o rapaz aquela ligação fora uma simples conse 1 6 1 G R A Ç A A R A N H A qüência da vida em companhia de uma rapariga fora apenas uma con clusão animal e desde que lhe acenavam com outra mulher rica ele prestavase manso e satisfeito a esposála Pouco a pouco Maria já não era a mesma galharda e resistente serva Um grande desânimo a tomava e de vez em quando fraqueza que não lhe vinha só do desalento moral mas também da misteriosa perturbação do organismo tinha tonteiras e tudo se lhe turvava nos olhos um grande suor frio inundavalhe a fronte e à garganta subiam lhe náuseas Quando no cafezal lhe vinham subitamente esses mo mentos de cansaço esqueciase da tarefa deitavase ao sol num com pleto abandono os cabelos amarelos misturavamse com a relva ver de os seios arfavam intumescidos e ela desapertavaos num gesto de desafogo a boca umedeciase os olhos semicerrados perdiamse no azul do infinito e tudo céus terra parecia balançar como em alto mar Indo às festas da colônia alvoroçouse pensando encontrarse com Moritz Este porém não foi à capela nem ao baile de Jacob Müller e Maria cada hora mais abandonada mais inquieta com a fatalidade de sua sorte teve dolorosa provação de se confundir com a alegria dos outros e reprimindo os sobressaltos retendo uma imensa vontade de chorar ouvia frases e juramentos de amores alheios que lhe enchiam os ouvidos redobrandolhe a agonia E por isso não esquecia a sua conserva com Milkau As palavras dele sem significação sem alcance vazias mesmo eram ainda assim repassadas de uma infinita brandura que caía sobre ela como um refrigério para sua ânsia E no desespero no abatimento vivendo em si mesma como hipnotizada em funda agonia ela se apegava a essa lembrança como a um trecho de verdura no deserto imenso desolador que era a sua nova existência Quem era ele Quando o veria mais E sabia que tudo tinha passado como o rasto do pássaro no ar mas teimava 1 6 2 C A N A Ã em reproduzir de memória aqueles momentos a que pouco a pouco a turvada imaginação e a frágil lembrança tudo pervertendo numa doce conspiração iam dando outro relevo outra sensação mais for te mais expressiva Uma manhã o dono da casa ia partir para o cafezal próximo da habitação quando um mulato montado numa besta se aproximou dele vagarosamente 24 Você se chama Franz Kraus perguntou o mulato de cima da montaria desdobrando uma folha de papel que tirara do bolso O colono disse que sim Pois então tome conhecimento disto E desdenhoso entregou o papel ao outro Kraus olhou o escrito e como apesar de estar no Brasil havia trin ta anos não sabia ler o português ficou embaraçado Não posso ler Que é Também vocês vivem aqui na terra a vida inteira e estão sempre na mesma bradou o mulato Venho por aqui furando este mundo e de casa em casa sempre a mesma coisa ninguém sabe a nossa língua Que raça O colono ficou aturdido com aquele tom insolente Ia replicar meio encolerizado quando o mulato continuou Pois fique sabendo que isto é um mandado da justiça É um man dado do senhor juiz Municipal para que vosmecê dê a inventário os bens de seu pai Augusto Kraus Não era assim o nome dele A audiên cia é amanhã aqui ao meiodia A justiça pernoita em sua casa Prepare do que comer e do melhor E os quartos São três juízes o Escrivão e eu que sou o oficial do juízo que também se conta O colono ouvindo falar em justiça tirou o chapéu submisso e ficou como fulminado seu lar era aquele em que fora recolhida Ignorando a própria história por muitos anos viveu como inconsciente passando a existência sem perceber o mundo de que se não distinguia e com o qual mesmo se confundia numa grande inocência Viver puramente viver por viver na completa felicidade é adaptarse definitivamente ao Universo como vive a árvore Sentir a vida é sofrer a consciência só é despertada pela Dor O grande amigo de Maria era o velho de quem ela crescida e já moça cuidava como de uma criança Com ele conversava longo tempo para ele cantava coisas cujo sentido não entendia bem amores fabulosos lendários paisagens estranhas mas que falavam como o sol à alma cansada e saudosa do colono Só se separavam à noite depois da ceia quando o ancião vinha para o meio do terreiro e aí sentando num tronco seco de árvore se punha a fumar cismando O sonho era sempre o mesmo o anseio de tornar à sua terra de rever essas montanhas da Silésia onde dormira quando pequeno vigiando o gado Nesse tempo conhecia pelos nomes as solitárias estrelas Ele as viu sempre nessa marcha de forçados no campo azul até que na época da sua migração ao balanço do mar desceram do céu baixaram às águas para desaparecerem uma noite e serem trocadas por outras Mas ainda de vez em quando neste outro mundo lá vinham algumas das antigas conhecidas como perdidas das companheiras e ele as saudava pelos nomes num rejuvenescimento infantil E assim para ver as velhas estrelas Augusto Kraus se sentava ao ar livre até que adormecia tranquilo como um pássaro As mulheres Ema que assim se chamava a nora e Maria se ocupavam em arranjar os leitos e quando a tarefa se concluía e as duas voltavam ao silêncio Maria saía a buscar o velho despertandoo de mansinho Enfiavalhe o braço arrastavao brandamente até ao quarto e deitavao na cama fofa farta como um CANAÃ Era mais de meiodia quando a Justiça entrou senhorilmente na colônia Os magistrados montavam excelentes bestas que segundo o costume eram emprestadas pelos negociantes ricos do Cachoeiro O colono correu a recebêlos de chapéu na mão solícito em ajudá los a apearemse das montarias Um dos juízes largoulhe o animal os outros da comitiva amarraram os seus nas árvores e todos espanaram com chicote a poeira das botas batendo no chão ruidosamente com os pés Estou morto disse o Juiz Municipal espreguiçandose Uma estafa Quatro horas de viagem Ainda o senhor veio por obrigação mas nós dois eu e o colega que nada temos com isto e só pelo passeio Enfim sempre a gente se diverte disse o Juiz de Direito procurando fitar com o monóculo o Promotor Perdão então não terei ocasião de funcionar perguntou viva mente o Promotor adaptando a luneta azul aos olhos Ah é verdade senhor Curador de órfão Mas aqui não há disto Todos meu doutor são maiores atalhou com um riso de escárnio um mulato velho cor de azeitona recor dando nas linhas e na expressão inquieta a cara do gato maracajá co mo era a sua alcunha Era o Escrivão Mas senhores entremos A casa é nossa em nome da Lei disse o Juiz de Direito encaminhadose para dentro Mas onde está esse inventariante imbecil perguntou com arrogância o Promotor O sandeu fica todo este tempo a arranjar os animais e nos deixa aqui ao deusdará explicou o Escrivão E todos passeavam pela sala com estrépito batendo com o chicote nos móveis ou praguejando ou rindo das pobres estampas nas paredes ou fare jando para dentro de onde vinha um capitoso cheiro de comida G R A Ç A A R A N H A Delicioso esse tempero Promete exclamou o juiz de Direito Moça bonita que saia gritou rindo o Promotor Não haverá alguma por aí Ouvindo tanto rumor Kraus correu à sala atarantado como se já tivesse cometido o primeiro delito e pôsse como um criado à espera das ordens Traga parati ordenou o Escrivão Mas que seja do bom2s O colono sumiuse para logo voltar com uma garrafa e um cálice Não há mais copos nesta casa perguntou com desprezo o Escrivão O colono tornou ao interior e depois reapareceu balbuciando des culpas e pôs em cima da mesa quatro copos Vamos a isto meus senhores propôs o Promotor Segurou a garrafa serviu no cálice ao juiz de Direito Dr Itapecuru como mais graduado E foi distribuindo a cachaça nos copos Você quer Muito pouco um nada Tome lá seu fracalhão Sr Escrivão continuou o Promotor distribuindo Mas Dr Brederodes o senhor me afronta com este copo quase cheio Rindo contente o maracajá começou a beber estalando os beiços É bom Esses diabos de colonos a primeira coisa que aprendem aqui na terra é a conhecer parati Meus senhores uma consulta disse Brederodes uma consulta de direito O Oficial de justiça pode beber antes da audiência Na porta em pé o meirinho esperava a sua vez Os outros riram sem responder à pergunta C A N A Ã Senhor doutor para clarear as idéias E meio desconfiado o mulato chegouse à mesa com o braço estendido V á lá depois se esqueça de tocar a campainha e temos processo nulo Não há risco De um trago engoliu a aguardente com medo que esta lhe escapasse Uma onda de sangue enegreceulhe o rosto os olhos cheios dágua tingiamselhe de vermelho Este sujeito não nos dá almoço Olhe que já é tarde Faça favor de ver isto Sr Escrivão O senhor é o nosso mordomo disse o Dr Itapecuru olhando pelo monóculo o subalterno O Escrivão entrou pela habitação adentro procurando o colono Quando voltou disse Vamos almoçar o homem tinha tudo preparado O melhor é deixarmos essas nossas cerimônias tomarmos conta da casa porque se formos esperar que esta gente se mova estamos convidados Não sairemos daqui Olhem se querem lavar as mãos o quarto é este Indicou os aposentos todos o seguiram e se viram em um quarto com duas camas altas de grandes colchões de palha farfalhantes e cômodos O Juiz Municipal apalpou com volúpia um dos leitos Ah que sono divino aqui Mas como é isto Só duas camas e somos quatro observou in quieto o Promotor Aqui ao lado há outro quarto E empurrando a porta de comuni cação o Escrivão mostrouo Nós hoje não sairemos daqui não é exato inquiriu o Juiz de Direito Pois bem vou me pôr à vontade Manoel veja as chinelas O Oficial de Justiça obedeceu Os colegas do Juiz de Direito o imi taram e logo depois todos três mudados de roupa lavados e refres GRAÇA ARANHA cados como se estivessem em suas fazendas entraram radiantes na sala onde o almoço os esperava Comeram com apetite as comidas da colônia beberam cerveja em quantidade O dono da casa e o Oficial de Justiça serviam a refeição e só no fim do almoço Maria que estivera todo o tempo na cozinha entrou com o café Única mulher no meio desses homens ela ficou vexadíssima e rubra sentindo por instinto a crueza e a lubricidade dos olhares excitados e cobiçosos Oh lá Caça estranha Não é nenhuma asneira disse afoita mente o Promotor Sossega Brederodes observou sorrindo o Juiz Municipal dan dolhe de manso uma palmada nas costas Maria meio perturbada foi depondo as xícaras de café defronte de cada hóspede Eles agradeciam a sorrir intencionalmente enfiando os olhos nos olhos da rapariga Até o Sr Dr Souza Itapecuru notou o Escrivão dirigindose ao Juiz de Direito que de monóculo na mão ficou atrapalhado com um sorriso parvo enchendolhe a cara Oh é só para ver E a pobre moça finda a tarefa desapareceu num andar incerto e balanceado E enquanto os outros comentavam divertindose com a cena Brederodes ficou pensativo Nos seus olhos turvos passavam miragens de volúpia e ele sentiu ímpetos de se apossar da mulher Depois do almoço puseramse a fumar descansados e quando um grande torpor ia dominando a companhia entendeu o Escrivão es pertáIa dizendo ao Juiz Municipal Senhor doutor V sa não manda abrir a audiência O Dr Paulo Maciel espreguiçouse bocejando como se o convi dassem à mais enfadonha das tarefas 26 C A N A Ã Pois sim Vamos lá seu Pantoja O maracajá pôs os óculos e armouos na testa enquanto arranja va a mesa para o serviço O Oficial de Justiça apresentoulhe um bauzinho de onde ele tirou utensílios para escrever e um formulário que abriu em página marcada Procurou a melhor luz sentouse e principiou debruçado sobre o papel de margem dobrada a lançar os termos do processo Paulo Maciel tomou um lugar à cabeceira da mesa e com ar fatigado e distante começou a acompanhar o serviço do Escrivão Bem está pronto o termo Sim senhor então abra a audiência ordenou o Juiz Municipal ao meirinho Este de campainha em punho foi até à porta e começou a badalar passeando na frente da casa clamando com voz fanhosa Audiência do Sr Dr Juiz MunicipaL Audiência do Sr Dr Juiz MunicipaL Sob a força do sol de fogo na grande calmaria do mundo esses gri tos estridentes avolumandose no silêncio total aterravam os mora dores da colônia Depois foi apregoado o dono da casa que entrou na sala confuso e medroso O seu olhar não retinha da cena senão uma vaga impressão começara por desconhecer sua própria casa transformada em tribunal governada por aqueles homens que se tinham apoderado dela e onde ele parecia estranho e prisioneiro Ordenaram que se aproximasse e fize ramlhe perguntas a que respondia com voz apagada e trêmula Quando declarou que o pai era morto havia quatro anos o Escrivão resmungou Vejam só Este herói aqui na posse dos bens desfrutandoos como se já fossem dele sem dar contas à justiça nem à Fazenda Na cional Paulo Maciel desinteressado levantouse e disse ao Escrivão Seu Pantoja vá tomando as declarações E passou para o quarto onde os colegas fumavam tranquilos e preguiçosos estirados na cama Tirou o paletó e deitouse como eles Na sala Pantoja atormentava o colono com perguntas e de vez em quando se interrompia para ameaçálo Se você me ocultar qualquer coisa aqui da casa ou das terras ou do cafezal tem de se haver com a justiça Vocês são finos mas eu sou macaco velho São as penas da sonegação Penas terríveis Assim envolvia as suas ameaças nas dobras dos termos técnicos com que ainda mais amedrontava o alemão O processo foise fazendo com estes dois únicos personagens sentados numa cadeira junto à janela cochilava o meirinho abrindo de tempos a tempos os olhos rubros de sono que se fechavam logo do quarto não vinha mais o som da conversa apenas um roncar monótono e regular de alguém a dormir enchia a casa onde tudo se entorpecera num grande sossego Duas horas levou o Escrivão a trabalhar no inventário prosseguindo à sua descrição deixando apenas em claro as assinaturas do juiz e dos avaliadores que ele dava como presentes e que eram seus homensdepalha numa costumada fraude que lhe rendia mais custas Acabado o serviço despediu o dono da casa que assinou tudo quanto ele mandou sem receber a menor explicação Depois Pantoja tirou os óculos e manso sorrateiro veio ao quarto em que estava o Juiz Municipal Pronto senhor doutor Maciel espantouse com a voz do subalterno que curvado sobre ele sorria fitandoo com os olhos endiabrados e sinistros Ah o senhor Já acabou Tudo Havendo milho meu doutor vai depressa que é um gosto E aqui há bastante Tenho prontos alguns mandados para intimar uns C A N A Ã colonos desta vizinhança que não fazem inventário há muito tempo comendo os espólios à tripa forra sem nos dar satisfação Venha V S a assinar os mandados para se fazerem amanhã esses inventários aqui mesmo É coisa pouca mas Ora seu Pantoja é melhor deixar essa pobre gente em paz Não sendo coisa grande não nos adianta Não meu doutor tudo o que cai na rede é peixe e quando se sabe espremer a mandioca podese ver o que rende no fim da festa Seu Pantoja seu Pantoja disse o Juiz Municipal como se quisesse suster aqueles apetites do Escrivão Afinal condescendente e resignado levantouse e em mangas de camisa e chinelos veio à mesa da audiência assinar os mandados Neves ponhase em campo ordenou o Escrivão ao Oficial E lendo os papéis repetia alto os nomes das pessoas a intimar Viúva Schultz Viúva Koelner Otto Bergweg tudo é perto Para ama nhã às nove horas aqui Às ordens seu capitão Com poucas estou de volta O meirinho meteu os mandados no bolso e foi selar o burro Mas que malandrice disse o Juiz Municipal voltando ao quar to onde descansavam os colegas Com este belo dia deitados Ora meus senhores vamos passear E abrindo as janelas deixou que entrasse no aposento uma luz bran da amortecida no verde da folhagem das árvores que envolviam a casa Os dois outros abriram os olhos Que boa soneca doutor disse Maciel ao Juiz de Direito E voltandose para o Promotor Você temse fartado de dormir Para que serve o colono senão para isso Para sustentar e regalar a Justiça Olhe Maciel no seu caso se fosseeu o juiz dos inventários não sairia das colônias G R A Ç A A R A N H A Muito bem Dr Brederodes devemos sempre fazer as nossas de sobrigas como os vigários Esta é a nossa religião Mas não é com o Dr Maciel que se consegue isto O senhor bem sabe o trabalho que tivemos para arranjar esta pequena excursão Tenho pena ia dizendo o juiz Municipal De quê senhor doutor interrogou vivamente o Escrivão Desta pobre gente destes miseráveis Na miséria anda a justiça O senhor deve ter pena é de si da sua família e dos seus patrícios Não é Sr Dr juiz de Direito Itapecuru que de pé se penteava dividindo o cabelo ralo voltou se gravemente acudindo à interpelação e assentando o monóculo meteuse entre os discutidores A quem pergunta Fui juiz Municipal doze anos na Bahia Vão lá saber a minha fama Fui o terror dos inventários Não deixei um só por fazer ia de porta em porta em nome da Lei quando me constava que havia um falecimento tomava nota e trinta dias depois o manda do fazia mexer os recalcitrantes Ah todos prosperamos no foro eu movia a máquina Estes moços de hoje se dão outros ares Capitão Pantoja é por essa falta de espírito prático que o País vai mal Nós somos de outra escola nós os velhos Havia nessas palavras um prazer refinado de meterse de cama radagem com o subalterno que era o chefe político do lugar Perdão Dr Itapecuru não me envolva na classe dos românticos protestou Brederodes com interesse Comigo aqui o capitão sabe colono anda fino Paulo Maciel viuse assim excluído daquela comunhão e ficou meio desdenhoso mirando os colegas dominados pelo olhar felino do es crivão Todos triunfantes escarneciam do juiz Municipal e nos seus risos entravam suas almas compondo um conjunto extravagante um CANAÃ era o riso tumultuoso alvar de Itapecuru outro era o riso canino rápido cortante de Brederodes o do Escrivão era o riso silencioso sem energia para o ruído perdendo a força em se estampar demora do na fisionomia Vieram todos para o terreiro e se puseram a passear vagarosos O sol já ia fraco e a tarde era amena Os colonos encurralados na cozinha não apareciam A Justiça reinava livremente na casa e no pomar De chinelos e em mangas de camisa os jovens magistrados fartavamse do belo ar da tarde o Juiz de Direito que não os acompanhava em tamanho desalinho ia com um paletó de palha de seda muito penteado engravatado com um gorro de veludo na cabeça O Escrivão conservava a sobrecasaca de alpaca preta já muito ruça Cobria a cabeça com uma espécie de solidéu de lã que lhe tapava a calva Deram algumas voltas examinando cada detalhe do sítio e quando estavam debaixo do laranjal carregado de frutos amarelos e verme lhos frutos novos ou sazonados notou Paulo Maciel É admirável a ordem e o asseio desta colônia Nada falta aqui tudo prospera tudo nos encanta Que diferença em viajar nas terras cultivadas por brasileiros só desleixo abandono e com a relaxação a tristeza e a miséria E ainda se fala contra a imigração Então pela sua teoria interrompeu o Promotor devemos entregar tudo aos alemães Apoiado comentou o Escrivão É a conseqüência do que diz o Dr Maciel Sim confirmou este para mim era indiferente que o País fosse entregue aos estrangeiros que soubessem apreciálo mais do que nós Não pensa assim Dr Itapecuru O Juiz de Direito tomou um ar solene Sim e não como se diz na velha escolástica Não há dúvida que falta ao brasileiro o espírito de análise E quando digo brasileiro refirome a todos nós E que se pode fazer sem análise É o destino da Espanha caiu em nome da filosofia Não podia entrar em concorrência com um povo analítico Como doutor gritou o Juiz Municipal Então os Estados Unidos Terra de análise meu amigo Terra invencível Olhe eu sou um fanático da análise Quando vejo um indivíduo estudolhe todos os hábitos não preciso saber das suas idéias basta uma circunstância por exemplo o que esse homem come e eu concluo sem medo de errar quais os sentimentos psicológicos do meu examinado Ah Porque uma vez apanhado classificoo É meu O doutor é terrível disse Maciel trocando um olhar com o Promotor Ah Tenho confiança nos novos povos formados nesta escola Quando estive em França não deixei de ir ao Parlamento e admirei os jovens espíritos que ali estão dissecando o orçamento analisando os impostos Falase em Lamartine Um sujeito e até patrício nosso me disse uma vez em Paris veja os seus oradores de hoje Anões Lembrese de Berryer de Lamartine Quando falavam aqui dentro estávamos no Palais Bourbon a voz deles era ouvida no mundo inteiro E a destes de agora nem na Praça da Concórdia E que respondeu Pensa que embatuquei disse com o seu riso volumoso o magistrado Vai ver Não respondi eu não há inferioridade antigamente esses homens falavam por falar Só retórica nada de sério E a sua loucura era tão grande que pagavam pela língua Idiotas Veja hoje essa gente nova rapazes quase imberbes educados na ciência C A N A Ã positiva cheios do espírito de análise Não reparemos na forma olhe mos a essência Aí é que está tudo Não olhe você como eles dizem mas sim o que eles dizem E depois Mateio como vê O Brasil voltando à nossa questão morre por esse mesmo espírito de retórica É uma fatalidade Até certo ponto convenho com o Sr Dr Maciel que devemos ceder o passo ao mais forte Ao mais ditoso cedo o ingresso como diz o poeta E Itapecuru arrependeuse profundamente de ter dito isto porque leu nos olhos de Pantoja a sua condenação Teve um frio de medo e quis gaguejando remendar o pensamento Mas o Escrivão não lhe deu lugar e acudiu rancoroso Admirame ouvir de dois magistrados uma tal linguagem Não há mais patriotismo não há mais nada Os senhores podem querer entregar a Pátria ao estrangeiro podem vendêla mas enquanto hou ver um mulato que ame este Brasil que é seu as coisas não vão tão simples meus doutores E o pardo cerrou os punhos rangeu os dentes estampandoseIhe na cara um sorriso tenebroso Mas capitão escute obtemperou o Juiz de Direito com uma voz de melíflua cobardia não duvide dos meus sentimentos patrióti cos Quem aplaudiu mais do que eu a resposta do Marechal A bala sim meu capitão à bala quando eles vierem E não há de tardar muito o momento disse o Promotor Patriotismo vaise ver em breve Sim é preciso desmascarar os patriotas de barriga disse soturno Pantoja E quando é esse famoso momento perguntou calmo e desde nhoso Maciel G R A Ç A A R A N H A Quando esse imperador da Alemanha que você admira tanto replicou Brederodes mandar a sua esquadra bloquear os nossos portos E que fazem vocês para se oporem Pensa você Brederodes que com o nosso exército diminuto com a nossa marinha insignificante podemos arrostar a alguém Brederodes deu uma gargalhada e disse vitorioso E os Estados Unidos meu caro É verdade ajuntou também rindo Itapecuru E a grande América cruzaria os braços Não sei até que ponto se meteriam nisto os Estados Unidos Depois que lucro teríamos nessa intervenção Passaríamos de um senhor para outro Nada mais E a Doutrina de Monroe A América para os americanos do Norte Como eles mesmos dizem concluiu gracejando Maciel De toda a parte O nosso combate será com os europeus Ninguém pode dominar um país quando o povo não quer interveio o Escrivão Meu doutor com uma caixa de fósforos se li quida um exército e toda essa canalha européia Como capitão perguntou cortês e lisonjeiro o Juiz de Direito esperando com ar admirativo a resposta Como respondeu o escrivão com uma satisfação sinistra Tocando fogo nas casas no mato nas cidades Um grande incêndio que há de espantar o mundo Sei disto A Polônia e o Transvaal também prometiam tanto observou irônico o Juiz Municipal Os polacos eram aristocratas e por isto indignos os bôeres são uns miseráveis que têm o que perder disse fora de si Brederodes C A N A Ã Ali há mais amor ao dinheiro às minas do que à honra Os brasileiros não Não temos nada a perder felizmente e isto decide o povo Bravo doutor O senhor é dos nossos Capitão não duvide dos meus sentimentos disse interessado o Juiz de Direito O Escrivão encolheu os ombros com desprezo Os senhores falam em independência observou então cáusti co o Juiz Municipal mas eu não a vejo O Brasil é e tem sido sem pre colônia O nosso regímen não é livre somos um povo protegido Por quem interrompeu Brededores gesticulando com a luneta Espere homem Ouça Digame você onde está a nossa inde pendência financeira Qual é a verdadeira moeda que nos domina Onde o nosso ouro Para que serve o nosso miserável papel senão para comprar a libra inglesa Onde está a nossa fortuna pública O pouco que temos hipotecado As rendas das alfândegas nas mãos dos ingleses vapores não temos estradas de ferro também não tudo do estrangeiro É ou não o regímen colonial com o nome disfarçado de nação livre escute Você não me acredita eu desejaria poder salvar o nosso patrimônio moral intelectual a nossa língua enfim mas a continuar esta miséria esta torpeza a que chegamos é melhor que viesse de uma vez para cá um caixeiro de Rothschild para governar as fortunas e um coronel alemão para endireitar isto Você é um cínico insultouo Brederodes pálido com os lá bios a tremer Houve um pequeno silêncio O Escrivão saboreou a disputa Itapecu ru temeu um conflito mas Paulo Maciel sorriu logo com superioridade Descomponhame como quiser o que você não pode negar é a evidência dos fatos Colônia somos n6s e seremos repetiu frio e insistente G R A Ç A A R A N H A o outro enrubesceu e obedecendo a uma excitação fula prosse guiu atrevido Colônia enquanto houver miseráveis como você Menino menino deixe de ser malcriado disse secamente Ma ciel E retomando o seu jeito continuou Se na verdade não entramos ainda na órbita de um grande povo é porque aproveitamos da disputa entre as nações fortes Temos sobre o continente projetada a sombra dos Estados Unidos Isto reconheço mas um dia fatigados de impedir que outros se apossem de nós eles nos comerão como fizeram a Cuba Dizem que a Alemanha tem planos Dizem O colega sabe que em questões desta ordem não convém falar sem toda a segurança comentou profundamente o Dr Itapecuru E a sua cobardia solene punha uma certa brandura na discussão Pode afirmar sem medo disse o Escrivão que estamos sendo cer cados pela cobiça dos alemães O próprio Imperador paga do seu bolsi nho missionários e professores no Rio Grande e em Santa Catarina E o Governo que faz a tudo isso perguntou Brederodes E ele mesmo respondeu Cruza os braços cuida de eleições de poli ticagem Nós precisamos capitão varrer esta corja que se apossa do poder para enriquecer esquecendose de que o povo sofre e o estrangeiro só tem a ganhar com a nossa miséria As eleições vêm aí Por que não fazem os senhores um mani festo propôs o Juiz Municipal O negócio não é para manifesto nem para eleições Isto é coisa à parte coisa do interesse dos partidos dos amigos respondeu o Escrivão tomando a sério o que dizia Maciel Eis o que nos prejudica replicou Brederodes é essa mania eleitoral por causa de partidos deixase naufragar o País C A N A Ã E até se aproveitam dos votos do estrangeiro acrescentou Paulo Maciel Porque esses alemães não serão nunca brasileiros e são os melhores eleitores aqui do Capitão Pantoja O Escrivão ficou embaraçado no seu duplo sentimento de chefe de partido na localidade e de nativista Mas esses alemães não fazem nada São muito respeitadores e mansos Um rebanho de carneiros por esses respondo eu Brederodes deu uma risada escarnecendo Está aí o perigo Os alemães são uns velhacos metemse em nossa casa muito quietinhos obedientes nós nos aproveitamos deles do seu número do seu dinheiro e eles vão na sombra engrossando até um dia se despejarem sobre nós e avassalarem o País Capitão deixe de conversa fogo no estrangeiro nativista sempre A bala Paulo Maciel parecia desinteressarse da discussão e descuidado foise afastando na direção da casa tirando de passagem folhas das laranjeiras que ia aspirando nervoso Os companheiros o seguiam empenhados no assunto Maciel pensava É o debate diário da vida brasileira Ser ou não ser uma nação Momento doloroso em que se joga o destino de um povo Ai dos fra cos Que podemos fazer para resistir aos lobos Com a bondade ingênita da raça a nativa fraqueza a descuidada inércia como nos oporemos a que eles venham Tudo vai acabar e se transformar Pobre Brasil Foi uma tentativa falha de nacionalidade Paciência E que nos adiantam os Estados Unidos Será sempre um senhor Todo este continente está destinado ao pasto das feras Sul América Ri dículo Mas não haverá uma salvação não haverá um Deus ou uma força que paralise o raio armado contra nós Enfim vá lá Mea culpa e está acabado Temos o que merecemos Daí pode ser que seja melhor A Terra prosperará Melhor administração mais polícia e é só Vale a pena E o mundo é só isso Vale a pena viver para ter mais polícia E a língua A raça esta associação degradada se quiserem mesquinha sim fraca quase a esfacelarse mas amorável boa e amada apesar de tudo porque é nossa nossa Oh muito nossa Caminhando assim chegaram à casa onde eram esperados para jantar Puseramse à mesa e o meirinho já de volta das intimações ajudava o serviço Saindo do seu esconderijo Maria rodava pela sala sempre perseguida pelos homens A pobre porém parecia fria e indiferente às frases atrevidas imorais com que a cobriam os sujeitos da Justiça Acabado o jantar estes puseram as cadeiras do lado da casa e entretiveramse a conversar pela noite adentro enquanto as estrelas se vinham abrindo numerosas e infinitas O Juiz de Direito não desanimava em desmanchar qualquer impressão sobre a sua falta de patriotismo que porventura ficasse no espírito de Pantoja temido pela sua influência política e voltava ao assunto O meu nacionalismo capitão é antigo Desde a Academia fui um exaltado em questões de patriotismo Ah nunca transigi Mas isso foi noutro tempo creio que hoje ia interrompendo Maciel por brincadeira Hoje com a idade respondeu empenhado Itapecuru pondo o monóculo redobrou o meu nativismo Não dou tréguas ao estrangeiro Aqui para nós sou até jacobino Mas divertiuse bem na Europa e com certeza se pudesse não sairia de lá objetou Maciel Nunca abandonaria minha Pátria Não nego que a Europa tenha alguma coisa de bom Aqueles que como o senhor sentem desgosto de ser brasileiros devem dar uma vista dolhos ao velho mundo É salutar creia Os meus sentimentos nacionais confesso estavam C A N A Ã enfraquecendo mas vendo a decadência da Europa tive orgulho deste Brasil e voltei ao meu furor Não é debalde que me chamo Itapecuru É a marca nativista que trago da Academia Como assim inquiriu Brederodes Quando Gonçalves Dias e Alencar deram o grito de alarma pelo Brasil pelo caboclo nós estudantes respondemos ao nosso modo Eu me chamava Manoel Antônio de Sousa E só Sousa cheirava a galego Acrescentei Itapecuru Manoel Antônio de Sousa Itapecuru Foi um movimento geral Cada um tomou um nome indígena e daí os Tupinambás os Itabaianas os Gurupis Quando mais tarde a palestra esmoreceu o Juiz de Direito disse aos companheiros Meus senhores que propõem para matar o tempo Vamos a uma partida de manilha Paulo Maciel não temia o tempo e ao contrário dos companheiros era mais feliz quando o deixavam só com os seus pensamentos Não conte comigo doutor Estou cansado e vou deitarme Boa noite eu os espero no quarto Os outros logo que Maciel partiu entraram a detraíIo É uma pena disse Itapecuru não dá para nada Também pouco se perde acrescentou Brederodes Presunção não lhe falta mas no fim de contas que tem feito Sim desembuche para vermos o que tem tão escondido escar neceu o Escrivão Uma coisa afirmo nada sabe do ofício Eu podia contar impagáveis Se um dia escrever para a Capital para os jor nais havemos de rir muito Será bonito e asseado O que ele sabe é descompor o Brasil maldizer de tudo o que é nosso disse o Dr Itapecuru acentuando a frase com vistas ao Es crivão Pantoja que ajuntou por sua vez 1 8 1 G R A Ç A A R A N H A Mas o dinheirinho no fim do mês não se enjeita esse nem por ser brasileiro fede Pode ser que quando isto for da Alemanha receba o dobro dos seus patrões disse o Promotor É verdade insinuou Itapecuru que não larga a gramática alemã Sim está se preparando para nos governar respondeu Bre derodes Riram e ergueramse para jogar O Juiz de Direito trazia sempre um baralho de cartas na mala para essas excursões judiciárias em que nada tinha a fazer e que acompanhava por divertimento Os três jogaram algum tempo até que o Promotor pretextando cansaço abandonou o seu lugar Neste caso capitão desafioo para uma bisca disse pressuroso o Juiz de Direito não querendo desistir de jogar com aquele vago receio do tédio que tanto o perseguia Pois sim doutor agüentese para uma sova aquiesceu Pantoja por entre baforadas da fumaça de cigarro Brederodes no terreiro chamava em voz baixa o meirinho Neves Neves Pronto seu doutor O Oficial de Justiça estava a cochilar deitado na relva e ergueuse meio atordoado O Promotor deulhe uma ordem que ele partiu a cumprir Brederodes ficando só passeava nervoso agitado de desejos lúbricos Não tardou o Oficial de Justiça Então perguntou o Promotor quando o viu ainda de longe Qual seu doutor Não vejo jeito Como assim A bicha é arisca como quê Só se Vossa Senhoria visse o nojo que me olhou Nem me respondeu como se ainda tivesse o que perder Vossa Senhoria não reparou como já vai bem adiantada Brederodes ficou colérico Uma fluxão de sangue subiulhe à cabeça rangeu os dentes e os olhos na noite escura brilharam felinos e maus Ela me paga Deixe estar Ainda que tudo isto aqui arrebente Corja de alemães Vossa Senhoria não se zangue Vou ver se ainda dou uma volta no caso E desapareceu na direção da casa fugindo ao desabafo do Promotor Este ficou só numa meia alucinação ruminando vinganças Na casa tudo se aquietara Os dois parceiros mortos de sono tinhamse resignado a deixar o baralho e estavam deitados nos quartos os colonos não davam sinal de vida o meirinho não voltara Farto de esperar e um pouco acalmado no seu furor Brederodes resolveu vir para o quarto Aí o seu companheiro que era o escrivão ressonava Ele deitouse de manso e pôsse à espera de que a noite avançasse Tornavaselhe o sangue impetuoso de desejos e na mente nevrótica passavam perturbadoras miragens sensuais Levantouse sorrateiro e apenas alumiado pela frouxa luz de um candeeiro de azeite que estava na sala seguiu pela casa adentro e quando na volta do corredor o clarão se acabou às apalpadelas foi tateando as paredes Ao dar com alguma porta punhase à escuta para ver se por um movimento um sinal qualquer reconhecia o quarto de Maria E um momento acreditou descobrilo Tentou abrir a porta Mas esta estava fechada a chave Miserável pensou com raiva o Promotor Um impulso de arrombar a porta apoderouse dele mas um vago vislumbre da consciência da sua falsa posição tolheulhe o movimento Pode ser que não seja aqui Isto naturalmente é o quarto dos velhos G RAÇA A RANHA E com esta esperança passou adiante nas trevas Outra porta estava em frente Escutou nada Pôs a mão no trinco a tramela levantou se e com a pressão a porta abriuse rangendo Brederodes palpitou alvoroçado De dentro ouviu um rumor de alguém que acordara e uma voz assustada de velha perguntar Quem é És tu Maria Brederodes recuou para o corredor e deixando a porta deslizou nas pontas dos pés num instinto salvador que lhe fazia adivinhar no escuro o caminho do quarto No dia seguinte às nove da manhã o meirinho anunciava ao toque de campainha a audiência dos inventários dos vizinhos de Kraus N a sala o Juiz Municipal e o Escrivão estavam no seu posto à mesa o Promotor e o Juiz de Direito à janela conversavam voltados para dentro em pé encostados à parede duas mulheres e um homem rodeados de crianças seguiam atemorizados a cena esperan do ser chamados Sr Or Brederodes Vossa Senhoria tem de funcionar como curador de órfãos nos três inventários Há uns desvalidos que precisam da pro teção legal de Vossa Senhoria disse o Escrivão motejando O Promotor teve um risozinho de satisfação e veio sentarse à mesa Não é possível arranjar alguma fatia para mim nesta festa per guntou o Or Itapecuru num sorriso idiota Vossa Senhoria sabe que é depois no fim do negócio que se pre cisa da sua bênção Todos comerão do bolo Bem neste caso como nada tenho a fazer enquanto os senhores preparam o prato vou dar um giro aí fora Pondo o chapéu assestou o monóculo nos intimados e saiu ma jestoso seguido pelo sorriso zombador dos que ficavam C A N A Ã Viúva Schultz chamou Pantoja Depois de alguma hesitação uma camponesa alta ainda moça se aproximou Há quanto tempo seu marido é morto perguntou o Escrivão iniciando o interrogatório diante da apatia do Juiz Municipal Há dois anos Sempre o mesmo Ninguém cumpre a lei aqui todos herdam sem a menor cerimônia Isto vai acabar Juro Em seguida passou a tomar as primeiras declarações da viúva que triste e subjugada por aquele aparato judiciário ia respondendo docil mente a tudo O Juiz Municipal e o Promotor despreocupados da audiência levantaramse e foram entretidos para a janela A mulher a cada passo sofria descomposturas insolentes de Pantoja e um imen so pejo a assaltava Quantos pés de café tem a sua colônia Quinhentos Só Não minta senão temos conversa no Cachoeiro Mas senhor pode ser que tenha mais ou menos não contei um por um meu defunto marido avaliava em quatrocentos eu plantei uns cem nestes dois anos Bem eu arredondo a cifra E calado sem nada dizer à interessada que além de tudo não sabia ler o português escreveu Mil e quinhentos pés de café Continuava Pantoja a lançar os termos do inventário segundo o seu velho processo de tudo fazer ele mesmo aumentando descaradamente o valor dos bens para acrescer os seus lucros Depois de algum tempo disse à colona Agora pode ir Daqui a duas semanas apareça no Cachoeiro no meu Cartório para receber os seus papéis GRAÇA ARAN HA A mulher ia se retirando radiante de alívio Espere lá Que desembaraço Ainda não lhe disse o principal observou com acento escarninho o maracajá Num papel escreveu várias parcelas somouas resmungando e disse consigo afinal cento e oitenta milréis Está direito olhe leve consigo o dinheiro das custas Trezentos milréis Ouviu Trezentos milréis Trezentos milréis Meu senhor Não tem meu senhor nem nada aqui não se faz esmola e dêse por muito feliz porque não houve demanda Se tivesse de meter um advogado é que havia de ser bonito Trezentos milréis Nada de conversa e bico calado Se seu souber que vosmecê andou batendo a boca pelo mundo tem de se haver comigo A colona lançou olhos de súplica para os dois magistrados que con tinuavam indiferentes a sua palestra Sem um apoio esmagada saiu cabisbaixa da sala da audiência Pantoja chamou o colono que espe rava a sua vez de ser apregoado E depois de repetir com ele a mesma coisa passou a se ocupar da última intimada A mulher vestida de luto muito baixa e ainda jovem com um ar apa tetado e longínquo o ar da miséria aproximouse Uma filha de cinco anos seguravalhe o vestido e ela carregava ao colo outra cuja cabeça dourada se realçava radiante por entre a pretidão das roupas da mãe Paulo Maciel cansado de estar em pé veio sentarse no seu lugar e interessouse um pouco por esse grupo É viúva há pouco tempo perguntou ele Dois meses respondeu a moça E desde quando está no Brasil Há um ano apenas Meu marido que já vinha doente do peito não durou muito Estavam principando a vida Não é verdade Apenas houve tempo de levantar a casa fazer o roçado para a plantação Não se plantou nada É triste E como vive você inquiriu compassivo A mulher ficou pensativa sem responder Naturalmente tem algum amigo que substitui o defunto disse Pantoja para se vingar do interesse do juiz o que ele habituado a fazer tudo considerava como uma invasão dos seus privilégios Paulo Maciel para evitar uma discussão com o subalterno no fundo de todos eles temido fingiu não ouvir A colona afinal disse Estou em trato para vender a minha casa e vou me empregar como criada em outra colônia No fim de contas seu Pantoja opinou Maciel não há inventário a fazer É melhor mandála embora Como é isto disse trêmulo o Escrivão Vossa Senhoria tem competência para dispensar na lei Ora esta é muito boa Que diz a isto Dr Brederodes Vossa Senhoria é o principal interessado Tratase de órfãos Não concordo na dispensa do inventário acudiu vivamente o Promotor E se o senhor não quer fazer exofficio Dr Juiz Municipal eu requeiro Paulo Maciel ficou sem saber o que dizer diante de tais atitudes O seu sentimento era suspender prender este Escrivão insolente seu subordinado legal era dispensar o inventário era ainda por cima dar dinheiro do seu bolso à desgraçada e mandála embora envolvendoa num clarão de bondade Mas para isso que soma de energia de fluido nervoso não precisava de consumir Valeria a pena As suas poucas forças o traíram e a inteligência fina distinta descortinoulhe pérfida o desenrolar de uma luta com os seus colegas com esse Escrivão chefe político mandão da localidade luta inglória em que ele não se queria estragar Os juízes passam e os escrivães ficam Está bom cheguemos a um acordo Façase apenas um arrolamento sumário dos bens em vez de um inventário formal propôs com uma voz fatigada Pantoja mediuo triunfante Isto é uma novidade para iludir a Lei aqui está o formulário oficial e Vossa Senhoria não me mostra esses arrolamentos Inventário é inventário senhor doutor respondeulhe o Escrivão apossandose da situação que o superior lhe abandonava Homem deixe de luxos seu Maciel disse o Promotor Que mal há em fazerse o inventário Que mal obrigar esta pobre mulher a pagar mais custas É pouco As custas são o azeite da máquina do foro objetou alegremente Pantoja E o inventário foi feito como os outros com as mesmas extorsões e violências No fim quando o Escrivão intimou a colona a que lhe desse duzentos milréis esta começou a chorar Deixemos de cenas Querem obrigar a Justiça a trabalhar de graça Era só o que faltava Mas não posso arranjar tanto dinheiro Venda a casa Sim meu senhor vou vender o que tenho para pagar as dívidas de meu marido dívidas da moléstia e depois trabalhar para outras novas Primeiro a Justiça Se não quiser nos pagar não venderá a casa nem o roçado eu prendo os papéis e agora vamos ver Capitão Pantoja ia dizendo o Juiz Municipal Deixe o caso comigo atalhou o Escrivão colérico e intratável C A N A Ã Vossa Senhoria é rapaz não entende disto veio ontem ao mundo mas a mim ninguém me embaça Lágrimas Todas elas choram E voltandose para a colona Vá à mulher moça não falta dinheiro Deu uma risada seca Atordoada como uma sonâmbula a colona saiu arrastando os filhos Depois do almoço os animais estavam selados para a partida O dia era abafadiço e dominado pelo sol que mantinha sempre com a luz poderosa um grande silêncio Os juízes vieram para montar ajudados pelo meirinho e pelo dono da casa Pantoja chegouse ao grupo e disse ao Promotor apontando o colono Ainda não tive a minha conversa aqui com o amigo E batendo no ombro de Franz Kraus que o fitou espantado da intimidade acrescentou num gesto de irônica cortesia Muito obrigado pela hospedagem camarada mas ainda falta alguma coisa Que é interrogou inquieto o colono As nossas custas meu amigo Você pode E por isso dênos logo Está me cheirando maI o fiado vá buscar Quatrocentos milréis O homem vacilou como para cair Uma vertigem o ia tomando na garganta a voz morreulhe num espasmo O Escrivão empurrouo de manso dizendolhe zombeteiro Vá amigo não se espante Olhe que o negócio podia ser pior Advogados demandas penhoras Sob aquela pressão o colono foi caminhando automaticamente para casa Bravo capitão o senhor é de força observou lisonjeiro o Juiz de Direito Ainda não viram nada respondeu o Escrivão estimulado Depois de alguma demora que os ia impacientando apareceu o velho Kraus Tinha os olhos vermelhos as faces inchadas e rubras Chorara Pantoja recebeu o dinheiro e contou O colono olhavao mudo e abatido Muito bem Agora tudo está em ordem Fiquemos bons amigos Procure os papéis no Cartório no fim do mês E montou A cavalgada partiu Parabéns disse Itapecuru a Paulo Maciel está chovendo na sua roça O Juiz Municipal sem darlhe resposta olhouo com um grande nojo Em pé no meio do terreiro de chapéu na mão a cabeça ao sol o colono via com os olhos desvairados a Justiça sumirse na estrada E quando ela desapareceu e tudo voltou ao sossego profundo ficou ele longo tempo com a vista pregada na mesma direção Subitamente numa raiva imensa e cobarde murmurou olhando medroso para os lados Ladrões 7 C ontinuava Maria na colônia de Franz Kraus no seu mesquinho penar Desesperada da volta de Moritz vigiada pelos olhos cupi dos e inquisidores dos velhos vivia como uma louca volte ando apate tada pela casa nos serviços domésticos e sem poder dormir noites e noites na aflitiva ânsia de querer salvarse da desonra que o tempo indiferente e implacável trazia cada vez mais à flor Assaltavaa muitas vezes um desespero de fugir de ir para longe desconhecida e forte sem preocupações alheias esperar que das próprias entranhas lhe viesse a salvação e o consolo futuro Outras vezes definhava lan guidamente presa de um grande temor de uma imensa e mofina ver gonha e queria morrer Mas fraca cobarde as forças não lhe acudiam para qualquer resolução e ela se deixava ficar na colônia e na vida no mesmo ruminar de desespero e de agonia Os velhos não tinham mais ilusão sobre o estado da rapariga e vendo a moverse pela casa num passo trôpego com o ar transfigurado que lhe punha a amargurada maternidade sentiam um ódio surdo contra ela erguida ali como um estorvo ao desafogo da ambição deles Viam des feito o casamento do filho com a herdeira dos Schenker tudo fora tarde G R A Ç A A R A N H A diziam inconsoláveis E agora passavam os dias muito unidos em cochi chos de vingança ou em planos para se verem livres de Maria Mas as suas cabeças não eram inventivas nem mesmo para a maldade ficavam irre solutos com medo de processos subjugados pelo infinito e crescente terror que lhes deixara a visita da Justiça E deste modo a vida naquela colônia era uma tortura para todos Não se conversava mais não havia mais o esquecimento do tempo mais a indiferença pela existência que é o único encanto desta A todo o momento eram ralhos e insultos eram exigências de serviço à pobre rapariga na doentia obsessão de vêla abandonar a casa Já lhe não davam quase comida dobravamlhe os tra balhos e era com desespero nevrótico que viam a miséria inabalável sem um movimento de revolta num constante gesto de sonâmbula Assim viveram algum tempo esses desgraçados E como uma ma nhã Maria já fatigada de trabalhar com as mãos trêmulas tomada de um suor frio deixasse cair um prato que se quebrou a velha Ema en fureceuse e começou a insultála num berreiro Franz correu à co zinha e transbordandoseIhe o ódio avançou colérico para Maria que intimidada ia recuando fugindo atordoada do alarido E foi en tão que Ema gritou Miserável Vaite embora Sai Sai O marido comunicado do mesmo furor agarrou uma acha de lenha e brandiua numa ameaça de morte Fora canalha Fora ordinária Maria correu ao quarto querendo se refugiar o velho alcançoua e com violento empurrão impediua de fechar a porta a rapariga lívida ofegante colouse à parede protegendo o ventre com as mãos Franz estacou diante dela rangendo os dentes uma baba viscosa a escorrerlhe da boca contorcida Ema segurou a moça pelo braço que apertou com violência e ordenoulhe CANAÃ Parte peste Carrega teus trapos suja Vaite daqui A rapariga obedeceu automaticamente A excitação dos velhos de súbita que fora não deixava de prolongarse e foi debaixo de maldições de pragas rancorosas que a mísera entrouxou algumas roupas Fora e já berrava Ema possessa Maria saiu para o terreiro e levada pelo impulso das ordens violentas caminhava firme sem hesitação para o desconhecido Por entre a fo lhagem verde os seus cabelos descobertos iam espalhando o fogo do soL Não dizia uma palavra não murmurava uma queixa Era uma estátua marchando e os olhos grandes e limpos tinham o ilustre cristalino e seco dos frios espelhos Atrás seguialhe no encalço como um latido de cão a voz de Ema Vai miseráveL Vai perdição de minha casa Maldita Maria andou algum tempo inconsciente e desvairada Sob a grande e funda emoção as idéias tinhamse congelado enquanto a sua visão dilatada ia notando e retendo os pequenos incidentes da paisagem Uma árvore cortada um cafezal verde um fio dágua um reflexo de sol um animal que se movia no fundo negro da mata tudo era apa nhado pela sua aguçada retina E foi caminhando sem dar fé da sua direção até que lhe chegou a fadiga na energia em que se mantinha os nervos trazendolhe uma sensação de desânimo que lhe entorpecia os passos e lhe despertava a consciência Viase expulsa da velha casa que lhe fora o lar o jardim o mundo E na memória os quadros da sua vida desde a infância Tudo cortado Tudo acabado sem expli cação num Ímpeto de cólera cuja razão não percebia bem Quis tornar à casa entrar sem rancor desmanchar com o sorriso o pesade lo monstruoso Sim voltar voltar Mas quando se dispunha a retro ceder reconheceu numa insondável desolação que desvairava ima ginando poder tão simplesmente restabelecer o que estava extinto 1 9 3 GRAÇA A RANH A Parada com a cabeça pendida sobre o seio os olhos embebidos no próprio corpo chorava Uma vaga inquietação de não encontrar um pouso um abrigo naque le deserto começou a agitála dandolhe ânimo para prosseguir no silêncio da estrada Encaminhouse para os lugares mais ínvios pois um grande pejo a afastava das casas conhecidas Não tardou que o seu apelo de salvação fosse para o pastor de Je quitibá Desde aquela manhã da missa não o tornara a ver mas da sua tímida e doce figura de campônio ficaralhe uma agradável impressão Na pequena alma de mulher rústica e simples de Maria houve um rebate de esperança que ela seguiu confiadamente Quando depois de duas horas de marcha a rapariga avistou a igreja e a morada do pastor um sobressalto de terror sacudiulhe o corpo Mas foi instantânea a hesitação porque a falta absoluta de outro apoio no mundo lhe impunha uma estranha intrepidez Começou a subir A paisagem era limpa e os dois pequenos edifícios de atalaia davam maior tristeza à solidão Lembravam habitações hu manas perdidas no deserto lembravam o isolamento o sacrifício o abandono E à proporção que Maria subia recordavase da última festa da colônia e com a saudade ia enchendo povoando de gente de vozes e gestos de movimento de vida o vazio descampado das montanhas e dos vales calados Ela recompunha também os instantes em que vira Milkau e levada por essa corrente de evocações ia cismando com a música do harmonium que soava na capelinha enquanto ele dormia Quando chegou ao alto viu a terra em roda da casa talhada e prepara da para jardim o que era a paixão do novo pastor De uma porta aberta vinham vozes de crianças soletrando monótonas e cantantes Era aí a escola regida pela irmã do padre Maria passou cabisbaixa e a voz infan til mais forte e estridente deulhe um tremor Olhou de soslaio e viu C A N A Ã uma sala escura uma mulher de preto no fundo na parede uma cruz negra envolta no sudário cabeças alvas de crianças movendose curiosas para ela Passou adiante e em face da porta fechada da casa tremeu mais De dentro nenhum outro rumor vinha para abafar a voz da criança na escola que prosseguia desarticulada sinistra infatigá vel Maria quis fugir mas o medo da solidão da montanha deserta o terror do recolhimento daquela casa arrancoulhe as forças Alagada em suor frio desfalecida um instante atirou ao chão a trouxa de roupa e apoiouse à parede Depois veiolhe um novo esforço de valor e num impulso nervoso tocou a campainha que retiniu alar mante naquele repouso universal A mulher do pastor acudiu à porta assustada pelo barulho com uma expressão de espanto que ainda mais atemorizou Maria ArmaI depois de confusas explicações entrou esta para falar ao pastor que veio logo à sala onde a rapariga o esperava Quando Maria o viu ficou petrificada O homem ereto como um sol dado e vestido como um jardineiro tinha uma voz de uma doçura ines perada e que se não casava com o seu porte rústico Que deseja minha filha Maria não respondeu Pôs os olhos no chão muito vermelha e trê mula Depois grandes lágrimas rolaramlhe pelas faces Vamos que lhe aconteceu interveio com meiguice Frau Pastor Eu eu queria um agasalho respondeu soluçando a miserável O pastor ficou confuso achando estranho o pedido Você não tem uma casa uma colônia Nós não precisamos de mais criadas disse ele sempre com a sua voz macia que lhe saía do peito de touro como um balido de ovelha Maria ficou calada Frau Pastor aproximouse bateulhe no ombro Que lhe aconteceu Perdeu seu emprego G R A Ç A A R A N H A Agora a este mofrno contato da piedade Maria chorava sem pejo abundantemente As pessoas da casa querendo arrancarlhe alguma coi sa sobre a sua situação e daremlhe mais confiança prosseguiam no in terrogatório Pouco a pouco ela se foi acalmando e pelo instinto da obe diência respondia por entre lágrimas Fora uma grande algazarra se fez e gritos festivos de crianças soltas se foram perdendo pela encosta da montanha abaixo Era o alegre rumor da liberdade A irmã do pastor rústica e marcial como ele entrou na sala O irmão explicoulhe o assunto e essa mulher severa e silenciosa fiel aos seus hábitos de nunca perguntar esperou que tudo se explicasse O pastor a temia e ela o tinha submisso amedrontandoo com as regras religiosas Na casa onde Frau Pastor era uma sombra do marido a autoridade da cunha da era decisiva Vamos dizia o sacerdote com o jeito astuto do campônio trocan do um olhar com a irmã Vamos ainda não me disse por que deixou a casa de Kraus Como posso tomála sem saber de tudo Não me quiseram mais fui expulsa Oh Oh Então o negócio é grave Que falta cometeu você filha para tamanha punição A professora que mirava com olhos devassadores a rapariga inter rompeu o inquérito com uma risada seca Frau Pastor temendo a ex plosão da cunhada ergueuse por instinto para deixar a sala Mas a cu riosidade reteve a sua alma de criança 27 Ora deixemos de comédia clamou zombeteira a professora Eu sei bem por que os seus patrões que devem ser gente honrada a puse ram na estrada Divertiuse Por que chora Temos nós culpa dos seus prazeres Olhe mulher já que entrou nesse caminho não era para aqui que se devia dirigir Esta é uma casa de respeito a morada de Deus V á para a sua vida Vá Fora C A N A Ã Era o grande ódio o maior de todos o que vem do sentimento se xual a incendiar a irmã do pastor Não era ela a mulher incompleta a inabalada a torre fechada enquanto a outra a mesquinha Maria era a perturbadora a consoladora a amiga do homem Oh minha senhora que mal lhe fiz Ergueuse da cadeira o pastor e muito solene com aquela maldita e doce voz disse Em nossa casa não se encontra o prazer aqui é o lugar do amor de Deus Vá regenerese Lembrese de que todo o pecado tem uma punição O seu é horrível Desencadeouse a ira do Senhor Maria cessou de chorar e pensou espantada que ali também todos estivessem loucos Um olhar de piedade infantil escapava de Frau Pastor Mas era uma compaixão sem agasalho inane medrosa Maria lho re tribuiu e talvez o coração que tudo faz compreender lhe inspirasse maior piedade por aquela esvaída sombra de gente O pastor empurrou a de leve para a porta acariciandoa paternalmente E ao passo que a rapariga ia deixando a casa a voz do padre se reves tia de um acento cada vez mais delicioso de ternura Vá filha minha pobre filha que pena Como sofro em não poder conservála em minha casa Se este lugar não fosse sagrado Se não fosse terrível a morada de Deus Vá filha vá E quando Maria se viu no alto da montanha e olhou deslumbrada alu cinada a voz do pastor ainda lhe cantava ao ouvido V á filha cuidado na descida cuidado com os caminhos Isto aqui é muito solitário Depois a porta fechouse e tudo o que era humano ali desapareceu num imenso silêncio Ficando só Maria arrastada pelo medo e por um assomo de vergonha começou a descer a montanha correndo e na sua febre sentiase como que apertada sufocada pelos morros e enterrandose G R AÇA ARANHA neles Ao chegar abaixo à cruz das estradas pôsse a caminhar pela que levava a Santa Teresa No seu coração inocente na sua inteligência confusa todas as cenas violentas desse dia se misturavam estranhas como num pesadelo Era o sofrimento animal numa alma rudimentar e o que a impelia para a frente era um vago terror da noite o desespero do desamparo na mata Transmontava o sol e as encostas dos morros os vales apaziguados e enfim livres do grande incêndio do dia embebiam se na luz serena da tarde Transformavase a expressão das coisas as primeiras sombras deitandose longas preguiçosas como tomadas de sonho sobre a relva aveludada e voluptuosamente verde os pequenos ventos acalmando a febre da terra inflamada a viagem dos pássaros na limpidez do céu dilatado pela claridade cristalina do ar N o fundo do vale Maria viu um núcleo de colônias engastadas na ve getação Das chaminés saía fumaça e àquela hora em cada uma das ca sinhas da mata brasileira as famílias dos emigrados se reuniam num olvi do feliz e em torno da mesa esperavam a ceia A miserável sentouse desalentada sobre a borda do morro com a vista perdida nas habitações Aos seus ouvidos subiam vozes humanas que ela escutava como uma música sussurrante deliciosa Outra fraqueza a pungia que não era só o cansaço da corrida a fadiga angustiosa da maternidade mas o vácuo da fome ali na opulenta terra de Canaã Maria teve o ímpeto de se pre cipitar do alto sobre as casas que estavam a seus pés sentindose atraída pelo feixe de forças humanas reunidas naquelas vivendas E então impelida pelo imperioso desejo de partilhar o conchego o calor a sim patia dos semelhantes Maria esquecida da sua triste situação sem o menor pejo arrebatada pela fome ergueuse e desceu rápida para o grupo de casas Quando aí chegou não havia ninguém fora Os cães a receberam num atroador alarido mas ela prosseguia pelo terreiro adentro e com sua CANAÃ calma de louca tornava inofensivos os animais Da primeira morada saÍ ram para ver a razão do alarma Homens e mulheres chegaram à porta ainda mastigando e aborrecidos de ser interrompidos Ao enfrentar a gente a fugitiva como que despertou e ficou intimidada sem saber o que dizer Assaltaramna de perguntas E como no seu enleio a miserável respondesse por disparates alguém disse É com certeza uma maluca Foi um pânico que se comunicou subitamente e todos se julgaram em presença de alguma perigosa doida vagabunda Correram as mulheres para o interior da casa os homens pegaram em paus e avançaram para ela amedrontandoa Fora maluca fora Maria recuou escorraçada sem perceber bem o que se passava Os cães excitados ladravam furiosamente e das outras casas a gente saía para o pátio fazendo coro com os vizinhos num grande berreiro Fora maluca maluca A moça fugiu numa desabalada corrida Homens e cães a perseguiram alguns momentos raivosos e ululantes Maluca maluca Já Maria voltara à estrada e ainda continuava mesmo ofegante a cor rer fugindo espavorida para longe daquele ponto Na sua carreira chegou até uma pequena mata que o caminho cortava A claridade da tarde aí dentro esmorecia ainda mais Maria parou com medo de pene trar na sombra e postada na abertura da floresta tomada de um calafrio espiou para dentro até perder os olhos na outra longínqua porta de luz Pela estrada interior iam e vinham borboletas enormes azuis e pardas num vôo cativo e arquejante Maria ficou pregada à beira da mata sem ânimo para entrar sem ânimo para fugir e uma inex plicável e funda atração por aquele sombrio e tenebroso mundo a retinha GRAÇA A RANHA extática Das mãos trêmulas e desapercebidas caiulhe a trouxa de roupa Esgotada de forças aterrada vendose colhida em pleno deserto pela noite desamparada batida a mesquinha derreouse aos pés secu lares de uma árvore e de olhos dilatados ouvidos apurados ela esprei tava o rumor e o curso das coisas E o poder de visão redobrava à medida que a sombra surgia misteriosa nos meandros da floresta como o bafo vaporoso impalpável da Terra Na sua imaginação perturbada sentia a natureza toda agitandose para sufocála Aumentavam as som bras No céu nuvens colossais e túmidas rolavam para o abismo do ho rizonte Na várzea ao clarão indeciso do crepúsculo os seres tomavam ares de monstros As montanhas subindo ameaçadoras da terra per filavamse tenebrosas Os caminhos espreguiçandose sobre os cam pos animavamse quais serpentes infInitas As árvores soltas choravam ao vento como carpideiras fantásticas da natureza morta Os aflitivos pássaros noturnos gemiam agouros com pios fúnebres Maria quis fugir mas os membros cansados não acudiam aos ímpetos do medo e dei xavamna prostrada em uma angústia desesperada Os primeiros vagalumes começavam no bojo da mata a correr as suas lâmpadas divinas No alto as estrelas miúdas e sucessivas principiavam também a iluminar Os pirilampos iamse multiplicando dentro da flo resta e insensivelmente brotavam silenciosos e inumeráveis nos troncos das árvores como se as raízes se abrissem em pontos luminosos A des graçada abatida por um grande torpor pouco a pouco foi vencida pelo sono e deitada às plantas da árvore começou a dormir Serenavam aquelas primeiras ânsias da Natureza ao penetrar no mistério da noite O que havia de vago de indistinto no desenho das coisas transformava se em límpida nitidez As montanhas acalmavamse na imobilidade per pétua as árvores esparsas na várzea perdiam o aspecto de fantasmas desvairados No ar luminoso tudo retomava a fIsionomia impassível C A N A Ã Os pirilampos já não voavam e miríades e miríades deles cobriam os troncos das árvores que faiscavam cravados de diamantes e topázios Era uma iluminação deslumbrante e gloriosa dentro da mata tropical e os fogos dos vagalumes espalhavam aí uma claridade verde sobre a qual passavam camadas de ondas amarelas alaranjadas e brandamente azuis As figuras das árvores desenhavamse envoltas numa fosforescência zo diacal E os pirilampos se incrustavam nas folhas e aqui ali e além mescla dos com os pontos escuros cintilavam esmeraldas safiras rubis ametis tas e as mais pedras que guardam parcelas das cores divinas e eternas Ao poder dessa luz o mundo era de um silêncio religioso não se ouvia mais o agouro dos pássaros da morte o vento que agita e perturba calara se Por toda a parte a benfazeja tranqüilidade da luz Maria foi cerca da pelos pirilampos que vinham cobrir o pé da árvore em que adorme cera A sua imobilidade era absoluta e assim ela recebeu num halo dourado a cercadura triunfal e interrompendo a combinação luminosa da mata a carne da mulher desmaiada transparente era como uma opala encravada no seio verde de uma esmeralda Depois os vagalumes incon táveis cobriramna os andrajos desapareceram numa profusão infinita de pedrarias e a desgraçada vestida de pirilampos dormindo impertur bável como tocada de uma morte divina parecia partir para uma festa fantástica no céu para um noivado com Deus E os pirilampos desciam em maior quantidade sobre ela como lágrimas das estrelas Sobre a cabeça dourada brilhavam reflexos azulados violáceos e daí a pouco braços mãos colo cabelos sumiamse no montão de fogo inocente E vagalumes vinham mais e mais como se a floresta se desmanchasse toda numa pulverização de luz caindo sobre o corpo de Maria até o sepul tarem numa tumba mágica Um momento a rapariga inquieta ergueu docemente a cabeça abriu os olhos que se deslumbraram pirilampos espantados faiscavam relâmpagos de cores Maria pensou que o sonho 2 0 1 GRAÇA ARANHA a levara ao abismo dourado de uma estrela e recaiu adormecida na face iluminada da Terra O silêncio da noite foi perturbado pelas primeiras brisas mensageiras da madrugada As estrelas abandonam o céu os vagalumes vão se apa gando medrosos e ocultandose no segredo das selvas enquanto os seus derradeiros lampejos na mata se misturam ao clarão do dia nascente for mando uma luz turva indecisa incolor Na árvore que agasalha Maria começa o canto dos pássaros e sem tardar de todos os galhos da floresta sai uma nota musical que enche os ouvidos da mulher com o acento de uma felicidade inextinguível E aves surgiam e tudo se esclarecia de ou tra luz e o ruído começava e um perfume concentrado durante a noite espalhavase capitoso pelo mundo despertado Abandonada pelos piri lampos despida das jóias misteriosas Maria foi emergindo do sonho e a sua inocência de todo o pecado a sua perfeita confusão com o Universo acabou ao rebate violento da consciência E a infatigável me mória lembroulhe a agonia Maria conheceuse a si mesma Arrancada pelo pavor dos perigos porventura passados naquele deserto ergueuse de um salto e partiu correndo E enquanto atravessava a mata apesar do medo que a tomara na sua lembrança persistia um clarão que lhe descia dessa miragem entrevista no espetáculo da noite maravilhosa E quando chegou aos caminhos descobertos já encontrou o sol a cuja temível potência morreu toda a ilusão do sonho A miserável marchou seguidamente duas horas passando já por de sertos que lhe engrandeciam a desolação já por vales repletos de colô nias que lhe recordavam a sua vida de ontem Em todas as casas começa va com o dia o trabalho vultos de mulheres moviamse em roda das vacas na densa evaporação dos currais homens rachavam toros de lenha crianças corriam nos terreiros limpos e de todas as chaminés aquele suave e inefável fumo da manhã que anuncia sem pejo da fome 2 0 2 C A N A Ã alheia a fartura do homem Maria continuou a subir as montanhas até ao alto de Santa Teresa Quando aí atingiu ficou mais tímida receosa de perturbar com o seu ar de vagabunda a serenidade da população ativa e silenciosa do lugarejo E foi num grande rubor gerado da acabrunhado ra humilhação que se dirigiu vacilando para a estalagem Na taberna que era o único pouso daquelas alturas viajantes toma vam a primeira refeição da manhã Maria ficou parada à porta numa postura de mendiga A dona da casa ocupada em servir não reparou nela mas a filha menos atarefada vendoa veio à porta inquirir de que necessitava Com a voz sumida Maria disse que tinha fome A jovem a convidou a entrar mas depois como que arrependida deixoua brusca mente e foi falar à mãe A estalajadeira veio examinar a foragida e quan do esta lhe explicou que buscava abrigo e trabalho a velha perguntou E que dinheiro traz você Maria que não tinha pensado nisso ficou embaraçada em responder A outra insistiu Afinal a rapariga confessou que nada trazia E então como quer você que lhe dê de comer Maria fitoua aterrada com os olhos secos e vidrados A estalajadeira tornou Mas que traz você aí nesse embrulho A mendiga abriao para lhe mostrar as roupas quando de dentro os passageiros gritaram pela dona da casa insultandoa A velha virou como um corrupio dizendo Bem entre para a cozinha que já lhe falo A moça atravessou o corredor sem olhar para o refeitório Na cozi nha onde entrou uma massa repulsiva moviase como uma lesma ao lado do grosseiro fogão de barro Era a criada do albergue E Maria teve um confrangido asco não ousando sentarse esperando de pé num embrutecimento de faminta a comida que lhe iam dar Os viajantes par 2 3 GRAÇA ARANHA tiram e a estalajadeira foi à cozinha Depois de examinar o que Maria trazia declarou Por esta roupa doulhe comida e dormida dois dias E foi se apoderando da trouxa diante da complacente apatia da rapari ga a quem deu um pedaço de pão e uma tigela de café A desgraçada cheia de fome comeu numa volúpia desprezível Maria passou o dia inteiro a vagar pela povoação e por toda a parte onde chegava ia despertando a curiosidade e dando a impressão de tristeza que apavorava a descuidada gente do lugar Ninguém lhe falava e ela absorta alheia rolava vagarosa arrastandose como um animal empestado Mergulhada na desgraça Maria ia rapidamente sendo governada por uma velha alma mais rudimentar mais primitiva que recalcava todos os ligeiros vislumbres de uma sensibilidade menos grosseira E para o meio dia era quase sem pudor que pedia trabalho de casa em casa Ninguém a queria repeliamna escorraçavamna num instinto de apertada defe sa Ali na tranqüilidade do povoado na conchegada e bonançosa vida aldeã não era ela o estranho fantasma da miséria À tarde depois do jantar quando o sol baixava a população se apre sentava à porta das casas repousada e esquecida No meio da felicidade dos outros sentiu Maria crescer a sua solidão Percorreu a estrada que corta Santa Teresa e foi até ao fim onde acabava a povoação quis ir além pela mata adentro mas não teve ânimo de se afastar daquela atmosfera de desespero de se evadir do raio do calor humano Voltou Naquela primeira noite quando foi a hora de se recolher ao albergue a dona deste mostroulhe um colchão estendido num quarto infecto Está aí a sua cama Alumiada por uma candeia de luz mortiça a infeliz ficou um instante só O bafio do quarto tonteoua e numa vertigem ela caiu desalentada C A N A Ã sobre o colchão de palha podre Não tardou que um vulto entrasse no quarto e fosse sentarse noutro monturo de palhas que ficava em frente àquele em que se achava Maria Era a velha criada Tirou o casaco e ficou em camisa e saia mostrando uma magreza de bruxa Os cabelos despen teados caíamlhe sobre o pescoço à luz turva os olhos brilhavam num fulgor de loucura Sobressaltada diante da megera a moça permaneceu petrificada na mesma postura e foi com um revoltado nojo que viu na tíbia claridade a sua companheira meter a mão esquelética na palha nau seabunda e retirar dali um pedaço de carne que começou a devorar As duas miseráveis não se falaram Mas os olhos da megera se incen diavam de ódio contra a rapariga que lhe aparecia como uma inimiga a invasora do seu círculo de independência naquele imundo aposento que ainda assim era o refúgio da indeclinável liberdade Vencida pela pros tração não tardou muito a tombar dormindo sobre a palha Maria acompanhava o arfar daquele corcovado corpo e o latejar das grossas artérias e com inquieto receio não podia dormir Tudo a prendia à vigília o medonho quarto o mau cheiro e o terror da bruxa E quando ia cabeceando derrubada por alguma rajada de sono via num instantâ neo pesadelo a velha erguerse lívida satânica alongando as mãos de esqueleto para a estrangular Despertava convulsa e gelada espichava a cabeça até junto da outra que continuava a dormir Pela noite adentro no maior silêncio da casa ratos começaram a sur gir no quarto Guinchando farejando corriam doidamente passeavam pelo corpo da velha como sobre um cadáver e no seu colchão comeram os restos de carne que ela deixara Maria sentiuse endoidecer de pavor Os ratos largaram a comida e continuaram a sua infatigável investigação no aposento indo e vindo a todos os cantos incessantes irrequietos A lamparina principiou a se extinguir crepitando e o quarto ora se escu recia ora se iluminava em sucessivos relâmpagos até cair tudo numa G R A Ç A A R A N H A profunda escuridão Maria sempre alerta acompanhava o ruído ater rador dos ratos e semimorta sentiu passar sobre a cabeça o vôo tene broso de um morcego Correram os dois dias marcados pela estalajadeira sem que Maria pudesse encontrar trabalho suas implorações e suas súplicas eram des denhadas e num instante a sua miséria tornouse o ludibrio da gente amparada e farta daquele retiro do mundo A dona do albergue intimoua a deixar a casa e Maria teve um pânico terrível em se ver de novo obri gada a bater as estradas sem pão e sem guarida Desatou a chorar ati randose aos pés da velha para que a deixasse permanecer ali até encon trar um emprego A filha abalada por tanta miséria teve ânimo para intervir e Maria ficou na hospedaria como criada em companhia da ou tra E assim viveu alguns dias apática esmagada mas nesse maldito ape go à vida que é o alimento da desgraça Uma manhã Milkau em viagem para o Porto do Cachoeiro onde ia comprar mantimentos almoçava sossegadamente no albergue de Santa Teresa quando viu Maria passar no corredor entrando da rua Apesar da miserável situação em que ela estava Milkau reconheceu a sua jovem companheira do baile de Jacob Müller e que entrevira primeiro na capela de Jequitibá num delicioso momento Ficou uns instantes pen sativo procurando explicar por vãs conjeturas o novo encontro Depois de alguma hesitação chamou a dona da casa e perguntoulhe quem era a mulher que ele acabava de ver Ah disse ela é uma vagabunda que recolhi Não sei donde veio apareceu aqui sem um vintém e tanto chorou que a fui deixando ficar É sua criada hoje Qual Um trambolho O que ela me faz não é nada em relação ao que lhe faço O melhor é que se vá para outras bandas aqui ninguém a quer Também era só o que faltava Aquilo no estado em que está sem CAN AÃ eira nem beira desmoraliza uma casa E então breve que tem de ir para a cama Essa linguagem atordoou o espírito de Milkau Prontamente pediu que chamasse a rapariga e a velha obedecendo retirouse Milkau numa grande aflição interrompeu o almoço Alguns momentos depois a esta lajadeira entrava empurrando Maria que tendo por sua vez reconhe cido Milkau vinha arrastada com imensa vergonha Vendoo agora pôs se ela a chorar Milkau levantouse comovido e procurou acalmála A dona do albergue espantada da cena motejava Olhem vejam só coitadinha Estáse a lhe arranjar emprego e ainda fica amuada Esta não quer me largar a sopal Não continuou porque da cozinha a chamaram e ela acudiu para lá deixando Milkau e Maria a sós A confiante meiguice das palavras de Milkau a decidiu a contarlhe a sua desventura Por vezes embaraçava se vergonhosa e delicadamente Milkau a desviava dos pontos íntimos e mais dolorosos Maria porém retomada de um inesperado ardor abria lhe todos os cantos da sua humilde existência E quando naquela sala da hospedaria Milkau acabou de ouvir a narrativa pôsse a cismar Era a primeira vez em que na sua vida nova se esbarrava com a Desgraça E num instante esse encontro lhe apagava todos os longos meses de felici dade de ressurreição A dor impunhase com a sua força solene devas tadora e os sentimentos de Milkau galopavam para o passado mergu lhandose outra vez nos ciclos sombrios do sofrimento donde pensara terse libertado para sempre Se ele não desse ouvidos se passasse adiante deixasse no caminho a miséria alheia e continuasse no seu em bevecimento de felicidade Não tinha ele fugido à maldade humana abandonado a velha sociedade odiosa e recomeçado a existência na vir gindade de um mundo imaculado onde a paz devia ser inalterável Por que então o espectro do sofrimento o perseguia ainda ali G R A Ç A A R A N H A Milkau divagava num fundo desespero Maria o fitava serena esperan do que ele falasse Passouse longo tempo nesse silêncio triste Bem disse afinal Milkau com o semblante iluminado tenho uma colônia onde posso empregála É uma casa de conhecidos meus no Rio Doce Tenho medo porém de que não agüente a viagem É longe e está tão abatida Era a salvação Maria sorriu encantada Abatida Oh não Estou pronta para caminhar Vai ver como não me canso Depois refletindo Mas o senhor não ia para o Cachoeiro Por que então abandona a sua viagem e volta ao Rio Doce Por amor de mim Ora isto não vale nada respondeu Milkau sem afetação Depois de vêla amparada tornarei ao Cachoeiro Amanhã mesmo Vamos disse ele com meiga decisão Chamaram a estalajadeira a quem Milkau comunicou que a rapariga seguia com ele A mulher fez uma careta zombeteira Oh meu senhor Ela não é minha filha pode tomála como qui ser Uma vagabunda Que bem me importa a mim Digame uma coisa quanto devia pagar esta pobre moça aqui na sua estalagem inquiriu Milkau sem se importar com o que estava tagare lando a velha Esta pôsse a contar nos dedos e depois pediu um preço exagerado Milkau não replicou e dando o dinheiro Eis aqui a importância que você pede A mulher ficou pasmada e recolheu as cédulas contentíssima Agora acrescentou Milkau peço que restitua a roupa que foi o penhor do pagamento A dona do albergue tornouse fula como se fosse roubada 208 C A N A Ã Esta é boa negócio é negócio A roupa foi coisa à parte Milkau explicou mansamente que ela tinha de optar entre os vestidos e o dinheiro e a velha assim compelida preferiu ficar com a quantia e restituir os objetos de que não necessitava e foi buscálos resmungan do malcriada Maria seguiua E quando voltou à sala vinha de roupa mudada com uma fita azul no cabelo faceira risonha Milkau festejou num sorriso o despertar da mulher Partiram A estalajadeira fincada na porta enquanto eles atraves savam o povoado clamava aos vizinhos Vejam só Não é que a desavergonhada teve sorte E aquele sujeito com uma cara de santo Pouca vergonha Quando deixaram Santa Teresa e tomaram o caminho do Timbuí Milkau recordouse da sua primeira viagem com Lentz atravessando num êxtase a pomposa região para se libertar do Mal A sua viagem de hoje era ainda um combate contra o sofrimento contra o ódio entre os homens Mas afastando as apreensões de uma irremediável desilusão o seu espírito tomava outro caminho e confiava que aquele doloroso incidente interrompendo a descuidada bemaventurança passaria rápi do e tudo voltaria à doce calma Amanhã pensava ele Maria tornará a ser feliz o seu amante arrependido virá buscála e todas as ligeiras feri das da dor serão curadas por um sopro de bondade Isto deulhe novas forças e esquecendo a tristeza a miséria da sorte da companheira foi alegre conversando com ela Debaixo do sol ardente desciam e subiam morros e durante as primeiras horas Maria marchava lépida apesar de tudo Mais tarde co meçou a fraquear e era com dificuldade que prosseguia Sentaramse à sombra das árvores à beira dos caminhos Descendo das regiões férteis passavam tropas de burros carregados para o Porto do Cachoeiro passa vam viajantes montados escoteiros passava gente a pé e só eles descuida dos se deixavam ficar ali Com o avançar da tarde Milkau ficou inquieto percebendo que lhes era impossível alcançar o Rio Doce naquele dia Pediu a Maria continuassem a caminhar até descobrirem uma colônia onde pernoitar Andaram mais um pouco e uma colônia se lhes deparou no alto da montanha Milkau propôs subirem pela vereda que levava até lá onde talvez conseguissem agasalho Maria fez um esforço e foi subindo vagarosamente A colônia para onde se dirigiam era um pequeno jardim europeu que quebrava a uniformidade das habitações dos imigrantes À medida que se aproximavam iam sendo maravilhados Embaixo estendiase uma série de vales recortados em mil aspectos diversos ora montanhas baixas formando massas enormes secas áridas ora matas folhudas negras ora despenhadeiros planícies riachos plantações casas tudo numa abundância de criação num capricho de linhas de desenho como numa paisagem extravagante Os viajantes foramse deliciando com o cenário perfumado com os aromas que vinham do jardim até que chegando à cancela Milkau bateu palmas Os cães ladraram atirandose sobre a cerca e logo um velho acudiu sossegandoos com alegre autoridade Olá patifes assim é que se recebem visitas Os cães afastaramse rosnando e o velho alisando a longa barba branca falou aos viajantes mostrando no riso uma fila de dentes sãos Milkau explicoulhe o que os levava aí E o velho radiante escancarou a porta num gesto de agasalho fácil e espontâneo Penetraram no jardim que estava em triunfal floração Os olhos não se podiam fixar em nenhum pormenor A impressão que tiveram foi de um só conjunto de cores desdobradas ao infinito A vista se lhes estendia farta e satisfeita sobre uma tela mágica uma zona cambiante uma irradiação espectral divina e rara Levouos o velho para dentro da casa e ofereceulhes jantar servindoos à mesa e obsequiandoos como podia Entretanto ialhes contando que era viúvo morava ali só havia muitos anos as filhas eram casadas e os filhos viviam na vizinhança o que o entretinha era cultivar flores o cafezal também o distraía e da janela apontou as plantações no morro próximo tratadas com o carinho de uma horta Findo o jantar vieram os três para o jardim O homem da colônia deixou os hóspedes e foi regar as plantas Milkau ficou um momento admirando os movimentos espertos e juvenis do ancião e depois seguido de Maria começou a passear pelo jardim Ela parecia nunca ter sofrido uma resignação de nômade apagara rapidamente os vestígios da miséria E um instantâneo olvido encerrou a sua agonia Agora toda era encanto por Milkau e com os olhos postos nele ficava embebida num humilde enlevo Encerrado ali Milkau julgavase fora da natureza tropical via interrompida a eterna verdura substituída a tragédia da natureza brasileira pela doçura européia trazida nas flores que peregrinaram até aí E o jardim lembrou a Milkau a terra que abandonara e ele transportouse no vôo da saudade para a velha Germânia Naquela mesma hora era ali a hora da primavera Tudo ressuscitava saindo da morte gelada Recordouse dos bosques dos jardins das casas da gente num regozijo de novidade ao calor benfazejo do sol E o ânimo de Milkau amolentado pelo violento encontro da dor entristecido abatido apontou no momento do crepúsculo uma ligeira sombra de nostalgia Maria estava meio fatigada e inconscientemente apoiou a mão no ombro de Milkau Este sentiu uma fulminante carícia e o calor emanado das entranhas geradoras da mulher infiltrouse nos seus nervos entorpecendoos bruscamente E foram caminhando como espectros olhos perdidos no vago mudos e sonhadores Com a queda do dia as plantas cheiravam ainda mais Quando eles passavam esquecidos absortos borboletas voavam saindo das plantas como flores aladas Andaram até onde o jardim ia acabar num lugar seco descampado onde como uma mulher bela e daninha uma palmeira se alteava G R A Ç A A R A N H A esterilizando a terra Sentaramse em uma pedra Os olhos depois de mergulharem no tremendal que ficava embaixo no despenhadeiro da montanha ergueramse para o céu e acompanharam a morte do sol Era uma representação fantástica Sem raios sem reverberação o imenso globo ostentava uma sucessiva gradação de cores como se dentro dele um mágico se divertisse em iluminálo O mundo inteiro tinha parado para assistir aos espetáculos O grande ator foi descendo no espaço sem nuvens sobre a sua superfície as cores ainda continuavam numa infinita mutação até que afinal ele mergulhou no horizonte e a terra tingiuse de sangue e em seus mil nervos agitouse toda Era noite O colono acabara o serviço e veio ter com os hóspedes convidandoos a se reco lherem Dentro à mesa os três conversaram sem interesse até que o dono da casa caindo de sono propôs irem dormir Mostrou a Milkau dois quartos contíguos onde lhes tinha preparado as camas E já a casa estava em sossego e Milkau no seu leito sem poder dormir acompanhava o sono de Maria O ressonar leve e regular da mu lher vinhalhe aos ouvidos como uma música estranha que se lhe infil trava aquecendoo Seguia deliciosamente todo aquele brando respirar e pouco a pouco uma funda perturbação lhe alvoroçava o sangue Mulher pensava ele E esta palavra evocadora dilatavalhe os horizontes da restringida e quase apagada sensualidade Mulher E lá vinham os esquecimentos onde jaziam sepultadas as visões lúbricas e lascivas Mulher E um torpor um espreguiçamento dos músculos o desequilibrou de uma vez e o atirou a uma vertigem de volúpia Milkau levantouse trêmulo o coração galopando a garganta estrangulada a boca seca Chegouse à porta entreaberta do quarto de Maria Cresceulhe o tremor e uma lânguida moleza o deteve dandolhe um instante de consciência e um profundo vexame O homem forte ficou envergonhado desse momento de lou C A N A Ã cura e abrindo a janela pôsse a cismar debruçado sobre a noite di vina Amaldiçoouse e teve nojo de si viuse o ludíbrio do desejo e descreu da redenção Maria continuava a dormir tranqüilamente o seu respirar chegava sempre aos ouvidos de Milkau enchendoo de um gozo infInito Não era um ressonar de adormecida era um suspiro de amante debaixo de cujas camadas sonoras se sente o mistério do instrumento que nos can ta O cheiro do jardim transtornava as coisas Milkau estremeceu outra vez sacudido pela volúpia Era noite e todos se amavam Àque la hora chegavalhe do Universo inteiro o eco do amor Só ele era mu do E o seu olhar perscrutava as sombras da imensidade Tudo se ilu minava ao poder formidável da sua alucinação E tudo era uma cisão de amor as bocas se beijavam com febre os braços se apertavam enlaçados os corpos misturados gemiam num frenesi de doidos O solitário também amou O sangue dentro dele o jovem sangue parado pela ilu são degelouse num momento e quente e sôfrego clamou o corpo da mulher Milkau deixou a noite tentadora e entrou no quarto de Maria Os cabelos dela estavam soltos e caíam sobre o colo nu Milkau reco lheu a quentura do corpo feminino que amornava o aposento e nos cabelos de Maria como em frocos macios e louros mergulhou a mão até ao fundo E fIcou trêmulo num frêmito convulso mudo e refreado Deslumbrado pela vertigem vialhe os cabelos descer pelo corpo abai xo correntios luminosos como um rio de ouro Ficou assim séculos pregado àquele corpo sem poder ir além numa arquejante respiração que acordou a rapariga Ela com os olhos meio cerrados perguntou Já são horas de partir A voz inocente caiu sobre Milkau como uma rajada de frio Retirou a mão e voltando rapidamente a si fugiu murmurando Não não Dorme Sossega Não é nada G R A Ç A A R A N H A Voltou à janela E para ele que não era mais o mesmo a noite era outra não tinha mais aqueles acentos de volúpia aqueles transportes de luxúria Era serena e benfazeja como a face de uma irmã Ficou longo tempo ali humilhado confuso arrependido e com a brisa mis turou os queixumes da sua agonia sexual e com o orvalho que a madrugada para o sarar lhe derramou sobre a cabeça confundiu as suas lágrimas de solitário De manhã ao deixarem a casa o velho os acompanhou até à porta do jardim encantado sorrindolhes com carinhosa malícia como se costu ma sorrir aos noivos Maria retribuiu a saudação sem saber o que esta dizia Milkau sentiu uma pungente tortura com aquele sorriso mas logo erguendo a cabeça partiu altivo como o vencedor de si mesmo 8 A passagem da miséria na nova vida de Milkau deixara o seu vestígio perturbador No espírito dele uma melancolia teimosa se espraiava infInita vaga entorpecedora e agora o pensamento rolava vertiginoso para o desânimo Não podia esquecer a desgraça de Maria Não há sofri mento cismava ele tão insignifIcante que não clame aos que passam piedade e reparação com o alarido de cem mil bocas Não há desgraça pequena Toda a dor é imensa E para afugentar a persistente tristeza que o cercava e lhe estendia os braços amorosos Milkau consagravase ainda mais ao trabalho Já por esses tempos a colônia tinha um belo e florescente aspecto Todo o prazo estava cultivado e os pés de café que brotavam num indomável viço cobriam como um manto a antiga hediondez do roçado Desaparecera a coivara o terreno semelhava um verdejante parque cercado das árvores imensas da floresta apenas interrompida e a humilde casinha dos dois emigrados estava coberta de trepadeiras que se abriam em flores dando àquele jardim ali nos trópicos um perpétuo ar festivo à vivenda Milkau era agricultor por instinto e todas as suas faculdades de atenção de imaginação as empregava com desvelo e ardor no trabalho com as GRAÇA ARANHA próprias mãos que enobrecia o seu destino humano Lentz era o caçador Restringido a um círculo de limitada atividade o seu espírito sempre retrógrado buscava expandirse nessa forma inicial e selvagem da civiliza ção Caçava lutava com os animais devastava as matas e aliado a outros colonos de igual inclinação em poucos meses para ele já não havia segre dos na floresta brasileira No mesmo teto esses dois homens exprimiam duas culturas diferentes Um oferecia ao mundo façanhas matanças sacri fícios de sangue e o outro simples lavrador frutos da terra flores do seu jardim Mas longe do ódio da luta fratricida entre esses dois intérpretes sucessivos da vida formarase uma atração uma solda inquebrantável e que ainda significava a imagem dessa impulsiva liga entre todos no mundo que cada dia será crescente até se tornar universal e indestrutível Milkau trabalhava sempre E quando curvado sobre a enxada a fronte suada os nervos cansados um repouso suave um esquecimento devia adormecerlhe os pensamentos lá vinha ainda nesses instantes o tormen to da piedade o contínuo testemunhar da desgraça alheia como uma man cha na sua visão radiante Não é no trabalho que está a salvação da miséria nem o estímulo para o desalento Que importa que nos fatiguemos que ensopemos a terra com o nosso suor que cubramos o mundo de flores saídas das nossas mãos infatigáveis se ali adiante ao nosso lado vive a dor se todo esse sangue essas flores esses frutos não são bálsamos para aquela ferida estranha Que bem fariam a cor o perfume e o sabor das coisas ao padecer de Maria Como remediar sarar a morte do sonho a decepção enfim Também ele não mourejava dia e noite no trabalho como um forçado E a consolação lhe vinha Oh não é preciso haver outra coisa no mundo Outra coisa mais santa mais poderosa mais doce mais divina mais sutil mais benfazeja mais vasta e mais misteriosa O Amor Assim pensava Milkau enquan to a enxada manejada pelos braços inconscientes cavava a terra C A N A Ã Várias vezes fora à colônia onde Maria se empregara para levarlhe algum conforto Ela se retraía cada vez mais e nem mesmo a ele confia va os passos do seu martírio Milkau respeitava esse pejo e sem insistir em desnudarlhe o coração recomendava à gente da casa a maior cari dade para a desgraçada pedindo que velassem por ela e a não desam parassem na próxima crise Os colonos prometiamlhe tudo mas na ver dade o sentimento deles era outro tratavam a miserável com desdém mesmo com rancor como uma intrusa que lhes ia roubar a tranqüili dade darlhes trabalho e aumentarlhes o custeio da casa Maria não se queixava Aos antigos tormentos juntava o desprezo e o ódio dos novos patrões E ainda assim se agarrava a essas raras migalhas de uma desde nhosa condescendência humana atormentada pelo medo do doloroso momento que se aproximava Por aquele tempo a vida de Milkau continuava a ser minada pela tris teza E também para o companheiro fora da caça nada havia na colônia capaz de encherlhe a imaginação Durante o dia trabalhavam mudos e abismados nas suas cismas e era com um passo moroso e incerto que vagavam às tardes pelas habitações vizinhas Num desses passeios foram até uma colônia que ainda não tinham visto A porta estava um ancião que os convidou a repousar um pouco e enquanto a família se entretinha nos arranjos domésticos e no trato dos animais os dois amigos ficaram a con versar com o velho Falaram da Alemanha e o ancião narroulhes sem demora traços da sua vida Era um veterano do exército prussiano cuja memória estava cheia de lembranças da última guerra Lentz se interessa va pelos pormenores dessas histórias e o velho falava satisfeito e vaidoso de entreter os jovens Na sua narrativa imaginosa passavam cidades estra nhas desfilavam exércitos estrondeava o tumulto das batalhas desabavam cargas de cavalaria a chuva oblíqua da metralha mudava em lama san guinolenta a miserável e inquieta poeira humana varrida em turbilhões G R A Ç A A R A N H A heróicos pelo tufão da Conquista O velho soldado terminou por contar que uma vez num reconhecimento caíra do cavalo e por cima do peito lhe passara num galope o animal de um camarada e como abandonado a vomitar sangue fora por um acaso colhido na estrada Desde então dera baixa e emigrara para o Brasil onde o clima quente lhe mantinha a vida A essas lembranças misturava outros episódios da invasão quadros da cul tura estrangeira apenas entrevista e que recolhera à retina com essa sen sação de deslumbramento maravilhoso como a que ficava do minuto de um Bárbaro no seio da civilização Ainda o apavorava o terror da discipli na Escapara de ser fuzilado porque uma noite de dezembro em França fazendo parte de uma guarnição exigira dos moradores da casa onde se acampara uns cobertores E essa extorsão além do que era permitido re clamar ele ia pagando com a vida Lentz aplaudiu então a força imortal que comandava e era temida E sorria como havia muito tempo não lhe era dado Entusiasmado o veterano ergueuse e caminhando trôpego levou os vizinhos para dentro da casa para mostrarlhes velhos retratos de reis vistas da Prússia estampas da guerra Tudo era antigo mobilias quadros e lembranças Tudo ali era uma volta ao Passado Em caminho para a colônia disse Lentz Que consolo senti indo à casa desse velho Parecia ter penetrado um instante no passado intato da Prússia Mas é preciso não amares demais esse passado observou Milkau E por que não me retemperarei nas fontes da minha raça pergun tou Lentz com um tom enfático de superioridade Por quê Porque respondeu Milkau o que estimas nesse passado é exatamanete o que ele tem de humilhante e vergonhoso Amas o seu es pírito de destruição o demônio que o agitava a alma senhoril a servidão a guerra o sangue tudo o que separa e destrói dia a dia será reduzido o campo da veneração pelas instituições da Antigilidade Amemos o sacrm C A N A Ã cio feito pelo amor humano a ciência a arte Mas aquele amor incon siderado por tudo o que é passado tudo o que foi é um dos sopros mais poderosos para a desordem universal E eu tenho que o estudo das coisas antigas o prestígio das próprias letras mortas são outros tantos venenos que acobardam a alma do homem de hoje e dão um encanto crescente ao mistério da autoridade Os que se colocam no passado aqueles cujas almas se fazem artificialmente antigas esses são os verdadeiros inimigos do gênero humano são os pregadores da desordem os profetas do tédio e da morte Tu sabes bem interrompeu Lentz não é tudo do passado que eu amo mas regozijome quando testemunho nele a ostentação das fortes qualidades humanas da nossa Pátria E que beneficio resulta dessa força dessa grandeza da Pátria Oh Exatamente o que nela venero é a tendência imperial a fibra belicosa a expansão universal a tenacidade o gênio militar a disciplina Mas que é a Pátria A Pátria ora Milkau tu não sabes É a raça uma civilização parti cular que nos fala no sangue o nosso eu a nossa própria projeção no mundo a soma de nós mesmos multiplicados ao infinito Não há ninguém que fuja da sua atmosfera Imortal Não meu querido Lentz a Pátria é uma abstração transitória e que vai morrer Sobre ela nada se fundou Nem arte nem religião nem ciên cia Nada absolutamente nada tem uma forma elevada sendo patriótico O gênio humano é universaL A Pátria é o aspecto secundário das coisas uma expressão da política a desordem a guerra A Pátria é pequenina mesquinha uma limitação para o amor dos homens uma restrição que é preciso quebrar Entraram em casa e durante a noite largo tempo debateram essas idéias No dia seguinte quando Milkau trabalhava solitário rolavalhe na cabeça a discussão da véspera e sentia um malestar lembrandose da viva contrariedade que opusera aos sentimentos do amigo Não há dúvida pensava ele penitenciandose é assim por natureza Quando dois homens se colocam frente a frente uma instintiva animalidade surge entre eles perturbando a simpatia É o querer inato de subjugar ou pela força ou pela superioridade da inteligência ou pela consciência da própria perfeição Assim também sou eu procuro reduzir Lentz a mim dominálo até ao fundo das suas idéias do seu próprio ser Oh orgulho daninho Quando a própria humildade deixará de ter no seu mais íntimo recesso a desfiguração o amargor da vaidade da soberba do domínio Milkau reconheceuse inferior às suas idéias humilhado por uma força inconsciente Depois tornava aos mesmos pensamentos Compreendia que no seu companheiro essa exageração do amor da pátria era talvez um sintoma de nostalgia uma ânsia pela terra das origens E não é isto uma consequência doentia da educação patriótica Mas naquele instante de angústia quando por sua vez se examinava mais de perto revelavase a si mesmo Fitou o céu imenso desvelado de uma serenidade de um brilho e de uma firmeza de cristal e sentiuse estranho a ele Admirou ao longe o corte das montanhas a negrura da mata a fronde das árvores Debaixo dos seus pés a terra vermelha como embebida de sangue e das plantas tenebrosas o cheiro que tonteia e excita O morno sossego do Universo E tudo lhe era estranho Ele e o Mundo ele e tudo mais a dualidade a distinção irremediável Eu não estou em ti tu não estás em mim Ainda assim eu te amo mas tu não és eu Numa dor funda Milkau devorado de mágoa combalido sentiuse também expatriado Não havia entre ele e todas as coisas em volta de si a sutil intimidade que nos prende eternamente a elas o imperceptível e misterioso fluido de comunicação que faz de tudo o mesmo ser E perce bia num grande desalento que o conjunto tropical do país do sol o deixava extático errante e incompreensível e que a sua alma emigrava dali incapaz de uma comunhão perfeita de uma infiltração definitiva com a terra Que sou eu então Que verme que átomo miserável que se não governa que não pode amar o que quer que se não pode identificar com todas as moléculas do mundo Que sou eu onde leis imperiosas perversas me dominam me vencem o novo sangue Outros vizinhos vieram algum tempo depois se estabelecer no Rio Doce na campina que saindo da mata morre sobre as águas Era uma pequena família magiar composta do pai viúvo duas filhas e um filho a que se juntaram outro rapaz da mesma raça que era noivo de uma das raparigas e um cigano Viviam unidos em uma só comunhão de desânimo e de espanto na casinha feita de madeira tosca com teto de telhas de pau incendiada pelo sol nos dias quentes varada pelo vento invadida pela chuva nos dias de tormenta Aí cumpriam o ritual dos costumes pátrios Sob a pressão cobarde do isolamento apegavamse como a um refúgio às intatas tradições transportadas de sangue a sangue e mantidas pelo temor religioso desde os antepassados O cigano partira também arrastado pelo instinto vagabundo Na longa travessia o eterno caminante da planície imaginavase prisioneiro no vapor que lhe parecia uma jaula movediça e endemoninhada O oceano contemplado da terra atraíao pela irresistível sedução da imensidade O infinito é uma miragem atormentadora em que se perde a essência humana No meio das águas ilimitadas sitiado pelo perigo assaltado pelo terror o espírito dissolvendo as suas forças vitais numa desagregação contínua transforma aquela atração impulsiva e ilusória em uma persistente impressão de assombro e de pavor e a orla de terra que se lhe escapou ao longe e para onde se volta incessante recebe os queixumes da saudade O homem só é senhor da sua individualidade na porção de espaço cujo horizonte pode medir com os olhos naquilo que é finito e limitado Passaram entorpecidamente os primeiros tempos esmagados pela perspectiva do desconhecido com a alma em suspensão Até então não se trabalhará os homens corriam as vizinhanças caçavam vagavam pelos montes e iam aos povoados as mulheres viviam no lar Quando caía a sombra o cigano deitavase sobre a relva à beira do rio e pregava os olhos preguiçosos no poente vendo morrer o sol Aos domingos a família se reunia na varanda o velho a um canto boné enterrado até os olhos cachimbo na boca quilotava repousadamente as longas barbas amarelas e as rugas da cara as raparigas e os dois rapazes como legítimos magiares ornavamse com as belas roupas do seu país e vinham faustososo e garridos entregarse ao grande prazer da sua raça à dança Às vezes Milkau e Lentz nos seus passeios pela margem do rio ficavamse debaixo de alguma árvore assistindo àquelas festas no silêncio da grande solidão O músico era o cigano com o inseparável violino sentado ao lado do velho Dado o sinal os pares punhamse em ordem e iniciavam as marchas polacas A música tangia a festa Os seus compassos a princípio langorosos iam ganhando movimento e a largos impulsos do som arrastavam os figurantes Faziam rápidas voltas meiasluas harmônicas enroscavam os braços uns nos outros e balouçavamse cadenciados como suspensos sobre as notas formando em sua graça artística grupos de estatuária clássica Ao findar a contradança respirávam satisfação espalhandoselhes no semblante o orgulho da sua mestria Mas o cigano os não deixava sossegar vibrava o violino e logo todos sentiam o despertar nervoso da paixão Com a rabeca presa sob o queixo e empunhada por uma mão convulsa enquanto a outra manejava o arco o músico arrancava do instrumento uns C A N A Ã longos e cantantes gritos Os homens trazendo chapéu de feltro com lin das plumas paletó e calça de veludo e à cinta uma larga faixa de seda carmesim enlaçavam as raparigas cujo corpinho meio aberto ao colo ves tia o busto esbelto e cujas saias ornadas de veludo e seda lhes envolviam as formas poderosas Naquele espaço estreito na varanda quase debruça da sobre o rio selvagem e estranho àquelas melodias reuniamse na fraternidade do destino e da arte as duas raças a que tem o sentimento inato da música e a que tem a espontaneidade da dança Continuava a valsa Os artistas da dança acompanhavam a loucura da rabeca num vôo quase imperceptível e para diante para diante por sua vez no sublime surto dos sentidos improvisavam novas figuras Quando estavam no auge do prazer a mais moça das raparigas amparada nos braços do irmão deslizava ale gre feliz com o rosto iluminado embevecido a fitar o músico amado com aveludados e longos olhos que sorriam primeiro que a boca E quando a música ia morrendo a outra rapariga transportada em êxtase a cabeça loura reclinada sobre o ombro do noivo numa vertigem aérea respirava a pequenos haustos com a boca entreaberta sua boca vermelha como o sangue úmida como o orvalho A turma de Felicíssimo voltara para novas medições O agrimensor depois do trabalho ia todas as tardes conversar na colônia de Milkau e com a sua vivacidade e alegria entretinha os dois emigrados contando episódios da sua vida aventureira cenas do Norte desse Ceará trágico em cujas areias sedentas e implacáveis se vazam se fundem na resig nação na dor na energia e na esperança a alma dos homens Quando não havia serviço urgente Joca juntavase a Lentz e os dois se embre nhavam no mato a caçar Na convivência com esses sertanejos Milkau apaziguava as ânsias em que se vinha batendo seu espírito A espon taneidade de raça a coragem e a bondade deles eram novos arrimos para a ilusão G R A Ç A A R A N H A Nenhum incidente perturbava o calmo viver de imigrantes e traba lhadores até que uma manhã o agrimensor e os seus ajudantes sentados à porta do barracão viram uma mancha preta passar velejando majestosa serena no céu claro Urubu disse Felicíssimo Ah temos carniça por aqui opinou Joca indagando com os olhos atilados o vôo do corvo A grande ave solitária descia vagarosa boiando negligente num vasto círculo do espaço como um barco de velas negras Logo depois outra subia no horizonte e não tardou muito que outras mais viessem sujar a limpidez do azul E daí a pouco se ia baixando e restringindo a um ponto da mata o vôo dos infectos urubus que os trabalhadores acompanhavam curiosos e divertidos em suas almas infantis Mas ali naquele ponto é a casa do bruxo observou um dos homens designando assim a morada do intratável e velho caçador que habitava aquelas margens do rio Vai ver que é algum dos cachorros que morreu Também que o diabo os leve a todos praguejou o mulato Que a peste os acabe Malvados ajuntou outro E mais o dono Quá para mim não morreu bicho nenhum Se fosse o velho o teria enterrado como a um fIlho concluiu Felicíssimo Sim e não haveria carniça Quem sabe se não é o velho que está morto conjeturou um tra balhador Homem é verdade acudiu um camarada Há dias que o não vejo Quem sabe também eu declararam outros do grupo Vamos ver seu cadete propôs Joca ao agrimensor C A N A Ã E todos se levantaram e seguiram na direção da morada do caçador Ao aproximaremse ouviram latidos e uivos de cães Mais perto quando descortinaram a casa viram os cães ladrando correndo como demos doi dos para os urubus que teimavam em baixar à terra As aves negras ras teavam quase o chão e quando os cães se arremessavam sobre elas erguiam o vôo e iam pousar logo adiante Vocês não vêem A carniça é o velho gritou numa gargalhada alvar um dos homens Que fedor Este diabo está podre há muitos dias berrou outro Instintivamente todos pararam como num conselho Então seu cadete que se faz perguntou Joca ao agrimensor Ora vamos a enterrar o velho Deus lhe perdoe a alma Nós lhe cuidaremos do corpo disse decisivo o cearense Os homens não hesitaram mais agora inspirados pelo impulso de pie dade de Felicíssimo e todos caminharam para dentro do cercado Vendo os aproximarse a matilha de cães abandonou os urubus e avançou como uma só massa atroadora furibunda terrível contra os homens Apro veitando a diversão os corvos caminhavam no terreiro e numa dança macabra iam invadindo a casa num riso infernal espichando voluptuosos as cabeças petulantes de harpais descabeladas Diante do arranco dos cães os homens fugiram e na porteira da cerca os defensores da casa pararam arreganhando os dentes uivando ladrando as sanguíneas bocas escancaradas Como podemos afrontar essa canalha perguntou um dos traba lhadores quando já estavam fora do perigo Joca vá com outros buscar os ferros para darmos uma lição àquela cachorrada ordenou Felicíssimo saboreando uma vingança Vamos daí disse Joca e partiu acompanhado de mais dois Os outros ficaram atirando pedras aos cães que estacados na cancela não se arredavam furiosos e tremendo Os urubus descendo em maior número dos ares continuavam em cortejo a penetrar na casa Um horrível e crescente fétido mesmo à distância tonteava os homens dandolhes ânsias de vomitar Oh que demora resmungava impaciente Felicíssimo esperando na estrada a volta de Joca E ia gritando Pedra rapaziada mão certeira Os cães latiam mostrando os dentes brancos e afiados E os urubus continuavam a baixar do céu Afinal pela estrada vieram correndo esbaforidos Joca e os companheiros carregados de enxadas foices e paus Cada um se armou e Felicíssimo ordenou com entusiasmo Agora avança meu povo Os homens resolutos e raivosos precipitaramse sobre a cancela que ao choque dos seus corpos unidos espatifouse dandolhes passagem os cães não retrocederam e lançaramse sobre eles mordendoos desesperadamente Os invasores berravam na dor Mata mata E a pau e foice arremeteramse contra os animais Num momento estavam os agressores todos rotos e o sangue lhes corria das feridas E da peleja umas vezes saía um cão gritando ganindo quando uma paulada certeira e furibunda lhe quebrava as pernas outras eram homens que debandados isolados fugiam pelo terreiro perseguidos Estes trataram logo de se unir traçando com os instrumentos um círculo de defesa Não afrouxem ordenava Felicíssimo Avança avança Para dentro para dentro Recuaram os cães ante a energia do ataque e correndo sumiramse como por encanto Os homens indolhes no encalço penetraram na casa brandindo as armas Mas entontecidos pelo cheiro sufocante estacaram C A N A Ã indecisos e apavorados diante de um quadro medonho Dentro os urubus comiam um cadáver humano que jazia por terra o corpo do solitário e abandonado imigrante Os olhos tinham sido devorados e as cavidades imensas e rubras escancaravamlhe a testa Alucinados em seu gozo satâni co os corvos sem dar fé da gente continuavam a picar a comer avida mente embebidos Os cães esquecidos deles faziam frente aos invasores Xô Xô canalha atroou um grito de Joca desesperado de nojo E num ímpeto de compaixão avançou para o cadáver para livrálo dos urubus Agarrandoo pelas canelas e pelas roupas os cães o detiveram Os camaradas acudiram prontos em sua defesa Diante do alarido da luta os urubus esbordoados largaram a presa e abrindo as asas espalhando com o vôo ainda mais o fedor incapazes de se afastarem daquela nau seabunda atmosfera pousaram morosos pesados nas traves da casa e aí se postaram fünebres medonhos como testemunhas do combate dos ho mens e dos cães Quando Joca conseguiu tocar o cadáver recrudesceu o furor das feras Não temiam mais os ferros e os cacetes e atacavam os inimigos que se apossavam do amo Foi um desvario homens e animais se batiam corpo a corpo se feriam e se despedaçavam como num com bate de doidos Os homens estavam estraçalhados e sobre as pernas nuas e brancas de muitos deles corria um sangue quente Guinchando os cães corriam estorcendose como possessos e atirandose sobre o cadáver do velho Depois de muito tempo de luta alguns trabalhadores puderam apos sarse do corpo e o foram carregando para fora enquanto os companheiros os defendiam num esforçado arrojo O resto dos cães ainda arremetiam contra eles mas eram logo mortos Os que ainda restavam não esmoreceram e mais alucinados investiam Um deles cravou as presas na coxa de um homem com tal fúria que este picandoo com o ferro e tentando arrancálo com as mãos não conseguiu O cão cada vez mais se enterrava pelas suas carnes adentro Correu outro homem G R A Ç A A R A N H A em seu socorro e com um certeiro e violento golpe de foice cortou o pescoço do animal a cabeça ficou segura na carne da vítima e das artérias rotas jorrava o sangue Não havia mais cães a matar O terreiro ficara alastrado de corpos decepados mutilados de membros esparsos Os homens maltratados doloridos deitaram no chão o velho Em revoada os urubus vieram assa nhados para o terreiro avançando impávidos para o cadáver que os traba lhadores extenuados já lhes queriam abandonar Não gritou zangado Felidssimo Não Havemos de enterrar o pobre velho Era só o que faltava seus miseráveis Pega enxada E o cearense agarrou também numa delas e começou a cavar a cova Muitos murmurando obedeceram Alguns porém ficaram enxotan do as aves Mais funda ordenou ainda o agrimensor Assim os urubus o desenterrariam Faz dó ver uma pobre criatura de Deus desamparada sem ninguém neste mundo comido por estes sujos Em breve a cova ficou pronta e nela enterraram o imigrante caçador Felidssimo ajoelhouse e rezou Padre nosso que estais no Céu Do minados por uma compaixão súbita e estranha os homens rudes ajoe lhavamse e de chapéu na mão tristes acabrunhados em face da morte que só agora se lhes revelava rezaram Depois mudos encheram a cova de terra A medida que o cadáver ia sendo coberto remontavam os urubus um a um às alturas secretas Naquela noite quando os trabalhadores da turma de Felidssimo se reuniram à porta do barracão ouviram na mata um clamor uma roncaria aterradora quebrando o silêncio benfajezo Era uma vara de queixadas que passava E Joca explicou Lá vão as almas dos cachorros feitas caititus para desenterrar e ressus citar o velho demônio C A N A Ã Formavase assim um novo mito no Rio Doce Nas noites de tempes tade ainda hoje quando o caititu matraca no mato todos se recolhem medrosos melancólicos pensando nos cães encantados Ao amanhecer de um dia de nevoeiro a paisagem perdera o seu contorno exato e regular As linhas definitivas dos objetos confun diamse as montanhas enterravam as cabeças nas nuvens a cabeleira das árvores fumegava o rio sem horizonte sem limite como uma grande pasta cinzenta ligavase ao céu baixo e denso O desenho apa garase a bruma mascarava os perfis das coisas e o colorido surgia com a sombra numa sublime desforra Por toda a parte manchas es plêndidas se ostentavam E sobre a campina esverdeada vaporosa uma dessas manchas ligeiramente azulada moviase arqueavase abaixavase erguiase e se ia lentamente dissipando O sol não tardou a vir e a natureza sacudiuse a névoa fugiu o Céu espanouse e dila touse em maravilhosa limpidez A mancha móvel sobre a planície de finiuse no perfil de um pobre cavalo que passeava na verdura os seus olhos de velhice e fadiga tristes e longos De passada com os túmi dos e negros beiços afagava a erva triturandoa com fastio e desâni mo enquanto a sua atenção de cavalo experimentado estava voltada para a cabana a cuja porta os seus donos os novos colonos magiares o miravam com interesse A neblina leve veloz vinha distraílo da quela postura de curiosidade humilde e acariciava num frio elétrico o seu pêlo ralo e falhado Estremecia num gozo manso e estendendo o focinho arregaçando os beiços sensual e grato beijava o ar Não mais encontrava a névoa que fugira para os montes levada pela brisa co mo se fosse o imperceptível véu que envolvesse alguma deusa errante e retardada Um raio de sol porém descera a brincarlhe nos olhos e incendiavalhe a pupila Meiguices da natureza G R A Ç A A R A N H A Um dos jovens magiares levando uma corda caminhou para o cavalo O animal entregoulhe a cabeça numa mistura de abandono e tédio O rapaz passoulhe o cabresto e o levou ao poste fronteiro à casa onde o amarrou Os colonos tinham resolvido principiar naquele dia a plantação do prazo e o velho deu ordem de partir para a queimada Os filhos armaramse das ferramentas de lavoura o cigano saindo de sua modorra e apenas armado de um chicote acompanhou os outros que desamar rando o cavalo seguiram com ele para o roçado As raparigas que ficavam em casa cheias de instintivo pavor viam o grupo afastarse vagarosamente Chegaram ao aceiro que aberto como uma larga ferida sobre o dorso da terra era um sulco de alguns metros de largura circundando a quei mada Da mata carbonizada ainda resistiam de pé alguns troncos despoja dos enegrecidos Milkau e Lentz passeando àquela hora passaram perto do roçado e viram chegar aí o grupo dos vizinhos Ainda bem disse Milkau eles vão trabalhar faziame dó ver esta gente apática irresoluta entorpecida na preguiça Mas para que trazem eles quase arrastado aquele cavalo perguntou Lentz E os dois se afastaram um pouco e ficaram à distância acompanhando os movimentos do grupo O velho colono segurou o animal pelo cabresto e o colocou no meio da vala Os filhos puseramse de lado num recolhimento religioso O pai puxou o cavalo para a frente De chicote em punho o cigano seguia atrás e a primeira vergastada cortando o ar num sibilo caiu em cheio sobre o animal Este como arrancandose de si mesmo pinoteou assustado Novas lambadas foram arremessadas por mão vigorosa Estirou o cavalo o pes coço para a frente abaixouse alongouse encostando quase o ventre à terra como para se libertar do flagelo que vinha do alto Os seus mem bros se estorciam confrangidos sob a dor imensa E desapiedadamente puxavamno para diante levandoo ao furor do açoite Naquele sacrifício cumpriase uma missão sagrada ligavase à nova terra o nervo da tradição da terra antiga Quando os antepassados tártaros desceram do planalto asiático e no solo europeu renunciaram à vida errante dos pastores para lavrar o campo e buscar na cultura a satisfação da vida sacrificaram aos deuses o velho companheiro de peregrinação nas brancas estepes E assim a imolação ficou sempre no espírito dos descendentes como um dever cujas raízes se estendem até ao fundo da alma das raças Continuava o grupo a caminhar O velho como um sacerdote conduzia a vítima seguida do cigano em cujo rosto se recompunha a antiga expressão infernal e terrível dos antepassados num retrocesso harmônico e rápido produzido pelo singular efeito da paixão sanguinária Os outros assistiam mudos à cerimônia O chicote vibrava incessante as suas pontas de ferro cortavam o lombo do animal O ar leve e frio penetrando nos fios de carne viva causava uma dor fina aguda acerba e a vista e o cheiro do sangue excitavam ainda mais a energia do flagelador Veiolhe uma histérica insensibilidade uma rudimentar anestesia uma assassina obsessão Estonteouo uma vertigem mas o açoite não parou Os sulcos na carne abriamse mais fundos o sangue escorria frouxo Mofino de dor o cavalo prosseguia arrastado regando a terra Gotas vermelhas respingavam sobre a descoberta cabeça do velho magiar de uma brancura de açucena As suas narinas dilatavamse em lânguido gozo Cavos gemidos ressoavam no peito da besta E no seu olhar infinito de moribundo traduziamse os humildes protestos e os tímidos apelos de misericórdia E o relho soava enquanto o mártir ia lento de pescoço estirado pernas trôpegas esvaindose pelas veias abertas como torneiras de sangue O cigano mais terrível mais feroz transfiguravase e da sua garganta afinada irrompeu brusco sonoro o canto de guerra dos velhos tártaros O chicote cruel e rápido marcava o compasso desse ritmo estranho G R A Ç A A R A N H A o contágio do furor apoderouse dos outros que imobilizados assistiam ao sacrmcio E embriagados pouco a pouco pelas frases da música pela sugestão do rito pelo odor de carne sangrenta acompanhavam o canto num coro infernal O animal exausto caíra de lado como um peso inerte O açoite inexorável ainda o levantou uma vez e no solo como numa verônica ficou estampada a imagem do seu corpo impressa em sangue Prosseguia sem interrupção fogoso lúgubre o canto que feria asperamente o ar e era o eco da melodia satânica da morte O cavalo deu mais alguns passos cambaleando como um alucinado e afmal prostrou se sobre a terra Arquejante resfolegando num espaçado estertor mor ria vagarosamente Nas suas pupilas de moribundo fotografaramse num derradeiro clarão as fisionomias dos algozes E esta imagem medonha que se lhe guardara no interior dos olhos era a infinita tortura que o acompanharia além da própria morte presidindo à dolorosa decom posição da sua carne de mártir Cessaram as vozes Os homens agruparamse em torno do cadáver re zando como fantasmas loucos Poças e fios vermelhos manchavam o sulco A camada de argila lisa escorregadia como uma couraça tornava o seio da terra impenetrável ao sangue que sorvido pelo sol se evaporava e dis solvia no ar Era a rejeição do sacrmcio o repúdio da imolação rompen do a cruenta tradição do passado A nova Terra juntava a sua contribuição aos límpidos ideais dos novos homens E para quê dizia Milkau comovido até às lágrimas e para que a tortura a fecundação pelo sangue se Ela risonha e alegre como uma rapariga bela e fresca lhes daria os seus frutos cedendo tãosomente às brandas violências do amor 9 E o que tinha de acontecer acontecia No meio do cafezal que es tava a limpar Maria que já desde a véspera vinha sofrendo sen tiu repentinamente uma dor aguda nas entranhas como de uma vio lenta punhalada Caiu pesada no chão o corpo se lhe retorceu todo e o rosto desmaiado desfigurouse numa contorsão medonha A dor fora viva e passageira e logo que a rapariga voltou a si assaltada por um grande terror o seu primeiro movimento foi de se recolher à casa e aí no abrigo doméstico esperar o desenlace da crise Teve porém medo de afrontar a ira dos patrões que dia e noite ameaçavam despe dila para se furtarem ao incômodo do tratamento Resistiu e conti nuou a labutar debaixo dos pés de café sozinha no silêncio do dia O trabalho não prosseguia bem das mãos entorpecida deixava cair frou xa a enxada e as pernas trôpegas volumosas não se sustinham fir mes De espaço a espaço a mesma dor voltava como se lhe dila cerasse o ventre Maria se amparava apertandose com as mãos para sufocar o sofrimento estranho e vergonhoso que sentia Nos interva los erguiase esforçandose por trabalhar desbastando o mato tecido ao cafezal mas logo era derrubada exausta alagada em suor frio Às vezes tinha ímpetos de gritar e contra toda a vontade gemia alto clamando socorro Quando serenava espantavase dos seus inconscientes desabafos e tremia de pavor pensando que lhe viriam acudir Sabia bem que qualquer auxílio dos amos importaria em um aumento de tortura de aviltamento e seguramente em uma expulsão imediata daquele lar desagasalhado mas ainda assim um lar As dores inexoráveis prosseguiam amiudadas e a desgraçada sem mais esperança viu chegada a hora da maternidade Tomada de medo abandonou o serviço e afastandose o mais possível da casa deixou o cafezal e aventurouse para o lado do rio onde era mais deserto Aí no terreno inculto e bravio as únicas árvores que havia eram esparsos cajueiros muito derreados esgalhandose pelo chão Maria sentouse debaixo duma dessas árvores que naquela época estavam em flor O aroma forte invadiulhe a cabeça E ela combalida deixouse pender sobre a terra No vão das dores os olhos indiferentes se estendiam sobre o campo e recolhiam a pomposa fosforescência do rio faiscante Nada se movia ali na solidão a não ser uma manada de porcos que vinha ao longe focinhando e escavando a terra Maria gemia livremente estorcendose na agonia Os seus gritos eram finos e estridentes e às vezes ressoavam asperamente como estrangulada gargalhada histérica Rasgavamselhe as entranhas dilatandose à força Depois a dor se interrompeu de novo e o suor frio banhoulhe o corpo que jazia desfalecido e inerte até que arrancos lancinantes o agitaram outra vez Os porcos pouco a pouco se iam aproximando e a miserável alheia a si mesma entretinhase em acompanharlhes a morosa viagem Sempre as mesmas dores agora mais miúdas mais cortantes acabando num grito soluçante que se perdia num longo espasmo Sofria muito o corpo lhe tremia convulso os dentes batiam de frio nervoso as mãos róseas cerravamse como molas de ferro Tudo nela era desor C A N A Ã dem OS cabelos desprendendose caíam enovelados sobre o rosto as faces túmidas estalavam de sangue o vestido arrebentando deixava ver o colo nu e arquejante E de repente sentiuse mais desfalecida parecen do que se ia desmanchando numa umidade viscosa repugnante A morte devia ser assim Oh pior que a morte Novas dores vie ram abafadas quase surdas sacudindoa violentamente dandolhe ânsias de apertar alguma coisa contra si Maria abraçouse ao tronco deitado do cajueiro Os seus olhos desvairados não viam mais nada Nos ouvidos entravalhe o resfolegar roufenho dos porcos que a cer cavam atraídos pelo cheiro que daí se exalava E ela agarravase à árvore estreitandoa com os níveos braços nus e mordia o tronco cravandolhe os dentes desesperadamente convulsivamente Em torno fungavam os porcos remexendo as folhas secas do cajueiro chegando mesmo alguns mais atrevidos mais vorazes a lamber afoi tamente o chão Maria horrorizada queria afugentálos mas as do res a retomavam imperiosas nem mesmo tinha forças para um grito agudo e só podia gemer estrebuchando numa mistura de sofrimento e de gozo que a estimulava estranhamente E os porcos persistiam sinistros ameaçadores Subitamente ela caiu extenuada largando a árvore Um vagido de criança misturouse aos roncos dos animais A mulher fez um cansado gesto para apanhar o filho mas exangue débil o braço morreulhe sobre o corpo Uma vertigem turboulhe a visão enfraqueceulhe os ouvidos e numa volúpia de bemestar pare cia deliciosamente suspensa nos ares longe da Terra longe do sofri mento ouvindo no arfar dos porcos o resfolegar longínquo e adorme cedor do mar E os animais sedentos enchafurdavamse gUinchando atropelandose no sangue que corria Um novo gemido saiu do peito de Maria despertandoa em sobressalto Os porcos afastaramse es pantados e ela meio consciente contorceuse mirou atônita a G R A Ç A A R A N H A criança que vagia estrangulada Depois quando um grande vácuo se lhe fez de todo nas entranhas a dor cessou e Maria mergulhou afundada em outra vertigem Os porcos sentindoa sossegada precipitaramse sobre os resíduos sangrentos espalhados no chão Devoraram tudo sôfregos tremendos sorveram o sangue e na excitação da voracidade arremes saramse à criança que às primeiras dentadas soltou um grito forte des pertando a mãe Quando esta abriu os olhos deu um salto brusco e pondose de pé lívida hirta alucinada viu o filho aos trambolhões par tilhado pelos porcos que fugiam pelo campo afora A filha dos patrões em busca de Maria chegava nesse instante e vendo a espantosa cena sem nada indagar retrocedeu à casa alarma da gritando numa espontânea e comunicativa maldade que a criada tinha matado o filho Dois dias depois Maria estava na cadeia do Cachoeiro A população germânica ficou horrorizada com a notícia do crime e os sustentáculos da colônia os ricos negociantes os pastores os proprietários unidos agitaramse para a vingança e o exemplo Uma manhã antes da audiência em casa do Dr Itapecuru este despachava autos com o Escrivão Pantoja o Dr Brederodes percorria uns jornais políticos da capital quando Roberto Schultz vestido como nos domingos entrou solene Seja bemvindo a esta casa saudou com servilismo o Juiz de Direito O alemão cumprimentou a todos com uma palavra amável para cada um muito macio e delicado Entretiveramse algum tempo sem pretexto numa conversa que prosseguia aos arrancos Itapecuru pressentia que Roberto tinha o que lhe comunicar em reserva Que será pensava o Juiz de Direito Algum despacho que vem pedir como de costume Ou quem sabe vem exigir o pagamento da minha C A N A Ã conta Aqui Itapecuru longe do assunto ficou nervoso sorrindo es túpido e sem propósito aos outros Não se atrevia a chamar o alemão em particular e demorava com jeito o escrivão que também cheio de curiosidade se não apressava Não não é para uma questão de autos pensava o juiz senão não estaria tão grave Com esse ar de impaciên cia Há de ser a conta E o magistrado ficou abatido aniquilado Senhor doutor disse por fim Roberto já maçado o que me traz aqui Itapecuru respirou Não não era cobrança Assim diante de gen te Não não era a conta Oh meu bom amigo o senhor manda não pede Aqui estamos todos para servilo Não é Dr Brederodes O Promotor resmungou sacudindo os ombros Depende Se for de direito Como senhor doutor Julga Vossa Senhoria que eu seria capaz de falar à Justiça senão de coisas sérias perguntou o alemão sorrindo acariciando o ombro do Promotor que enrubesceu com a imperti nente familiaridade Está claro acudiu Pantoja Nós somos amigos velhos e nunca o senhor me pediu nada desarrazoado Nem a mim capitão acrescentou ltapecuru espraiando as bochechas num riso grotesco que o desarmou do monóculo Mas de que se trata interrogou abelhudo o maracajá Meus senhores eu venho aqui em nome da colônia pedir a pu nição dessa miserável que matou o filho O crime é horrível e a dig nidade dos alemães exige uma lição severa A colônia sabe disse gravemente Itapecuru que aqui não falta Justiça Havemos de examinar tudo com o cuidado que sempre em pregamos em nossa missão G R A Ç A A R A N H A O que nós receamos é que algum dos senhores tenha uma fraque za de coração pela sorte da ré e Oh impossível A Justiça tem os olhos vendados considerou o Juiz de Direito fitando o Escrivão E em que termos está o proces so capitão O Dr Brederodes deu ontem a denúncia Já expedi os manda dos para a formação da culpa Ah Então doutor e caro colega não há dúvida sobre a crimina lidade da acusada perguntou Itapecuru ao Promotor O Senhor que viu nos autos Brederodes não respondeu e continuou de lado a folhear os jornais Não pode haver dúvida observou Roberto Há testemunhas de vista que afirmam ter ela lançado a criança aos porcos E depois os precedentes Ah Sim Uma perdida O filho lhe seria um trambolho Vossa Senhoria compreende Mas não há de ser aqui que pegarão esses maus exemplos Imagine Vossa Senhoria se ficasse impune o delito se nós passássemos a mão por cima que seria da moralidade das famílias dos colonos para o futuro Mas como podiam os senhores abafar o crime perguntou Brederodes secamente Não denunciando não prendendo empenhandonos para não haver andamento no processo arriscou o alemão É muita petulância Eu não digo capitão que o Sr Roberto e os seus patrícios nos têm aqui como seus criados E Brederodes deu um violento murro na mesa Dr Brederodes Senhor doutor Os outros queriam evitar o desabafo do jovem promotor Este continuava a vociferar quase esbordoando o negociante que procurava com um riso cobarde amparar a fúria do brasileiro Sim criados Vem aqui à casa do Juiz de Direito um bolas qualquer porque enriqueceu furtando o nosso dinheiro exigir em nome da colônia Que colônia Exigir que se cumpra a lei É boa Mas não há inconveniente creio colega que o povo Qual povo qual nada Ladrões mandões de aldeia estrangeiros Qual povo O que eles querem é exatamente justiça Tartufo miseráveis Como viram uma das filhas apanhada com a boca na botija e como não há remédio algum se alvoroçam todos para reclamar justiça Muito boa A nossa moralidade teve forças de dizer o alemão Moralidade Fingimento hipocrisia A moralidade de salteadores que se apossam de nossas terras e enriquecem Então Vossa Senhoria pensa que não há crime no caso interrogou Pantoja para desviar a questão Se há Oh esta miserável conheçoa bem replicou Brederodes motejando É aquela perguntou o maracajá com intenção Sim a mesma fezse de fina de pudica comigo e aí está o que ela era mas agora liquidaremos contas Aproveitarei a ocasião para levar esse processo até ao fim desmascarar toda esta corja daqui Este fato não é o único Para mim todas estas alemãs matam os filhos quando Havemos de ver Não sou Promotor Exigências comigo Não isso não Não pôde mais vociferar engasgado pela cólera Pegou no chapéu e mal apertando a mão de Itapecuru que ainda o quis demorar saiu olhando com raiva a figura farta e desmoralizada de Roberto G R A Ç A A R A N H A Tem graça disse Pantoja quando ficaram a sós querendo iludir a impressão deixada pelos desmandos da ira do Promotor É verdade Nós gostamos muito de bolir com ele para vêlo se queimar ajuntou por disfarce Itapecuru Lá se vai batendo com as mãos falando sozinho Que danado rapaziadas comentava o Escrivão que ia acompanhando da janela a marcha de Brederodes na rua O alemão não dizia nada Não era ali que havia de confessar os seus rancores O defeito principal dos moços de hoje considerou o Or Itapecuru balançando o monóculo é a falta de atenção com os ele mentos conservadores do País São simples revolucionários Pensam que o progresso é a revolução Eu também admiro os direitos do homem sou liberal mas como magistrado sei dar a cada um o que é seu Suum cuique tribuere É o hábito da justiça cortou o escrivão já principiando a enfadarse Sim a justiça para todos velhos e jovens Que pode fazer uma sociedade sem ordem É a base É preciso termos sempre em vista o elemento conservador do País Por exemplo aqui na colônia onde repousa este salutar elemento Ninguém respondeu Itapecuru sorriu da incapacidade do mudo auditório e continuou Onde está o elemento Nos senhores negociantes nos proprie tários nos colonos estabelecidos enfim nas classes respeitáveis que têm o que perder E não é maltratandoas que se tem uma perfeita organização social Os senhores jacobinos não compreendem este princípio admirável Para eles a política é só destruir e botar abaixo Pois é pena C A N A Ã Roberto impaciente levantouse O Juiz de Direito suspendeu o discurso Bem seu doutor Posso responder à colônia que não há meio da criminosa escapar A colônia sabe que pelas minhas teorias ia dizendo Itapecuru Mas Roberto não esperou o resto fezlhe uma grande cortesia e foi saindo Pantoja acompanhouo com passo sorrateiro Oh seu Escrivão E os nossos autos interrogou aflito o Juiz de Direito ainda mais que tudo aborrecido por ficar só sem ouvinte Espere um pouco já venho retrucou o Escrivão sem se voltar E se foi esgueirando ao lado do alemão E que tal o promotorzinho disse na rua Roberto ao maracajá Maluco Maluco Canalha vou j á escrever para o Cachoeiro armandolhe a cama É É gaguejou o Escrivão embaraçado O diabo é que esses jacobinos são muito fortes Todos se protegem Uma irman dade E não vá o Governador não atender Donnerwetter praguejou o alemão E logo prosseguiu na língua do país É boa Os senhores querem o nosso auxílio nas eleições qui nhentos votos só aqui nesta colônia e quando se trata de castigar um insolente que vive a nos insultar fogem com o corpo Tem razão tem razão Olhe eu mesmo vou escrever ao Go vernador em segredo pedindo pelo menos a remoção do Bredero des Basta a remoção Não é Que vá para o inferno Sim para o inferno repetiu o outro maquinal e pensativo Então escreva Posso contar GRAÇA ARANHA Oh comigo o senhor sempre conta Que não faço pelo partido Mas segredo Muito entre nós Porque sabe os jacobinos E o tal processo interrompeu Roberto mudando de assunto Veja há muito pedido do centro Realmente é um caso mons truoso A colônia não pode abafar Que se diria Que as alemãs do Ca choeiro são umas perdidas e atiram os filhos aos porcos É muito sério compreendo Os jacobinos de quem o senhor fala tanto Ah a política gritarão como fez o Sr Brederodes Além disso nas outras colônias em Itapemirim Benevides por toda a parte os nossos patrí cios haviam de nos desmoralizar Nada é preciso um exemplo para que se calem Pode ficar tranqüilo que respondo pelo resultado desse negócio E o Promotor Não viu Com a idéia de se vingar dos colonos e mesmo por tolices pessoais perseguirá a tal sujeita até às últimas É cabeçudo O Juiz de Direito esse coitado já se sabe é nosso Sim É meu posso dizer proclamou o negociante batendo com alarde no bolso da calça Pantoja sorriu acompanhando o gesto Quanto ao Juiz MunicipaL continuou o Escrivão É verdade é um senhor cheio de maçadas esse Dr Maciel Não faça caso Um imbecil Dáse um berro com ele e tudo vai direito E depois temos o Itapecuru e as testemunhas E eu esse seu criado que mói a mandioca concluiu com jactância o cabra Sim perfeito ninguém discrepa Bom adeus não esqueça a carta Pantoja e o alemão separaramse seguindo direções diversas Mas logo o maracajá voltou sobre os passos e gritou para o outro C A N A Ã Iame passando Depois aproximandose abaixou a voz Tenho precisão urgente hoje de cem milréis Apareça Muito obrigado Não é para mim ajuntou pressuroso É para a caixa do partido A cadeia do Porto do Cachoeiro resto do antigo povoado já existente antes da colonização talvez fosse a mais velha e pior habitação da cidade As paredes eram negras e as grades enferrujadas da janela quase soltas den tro dos buracos da cravação Um corredor dividia a casa ao meio de um lado a prisão e do outro o alojamento dos dois únicos soldados que ser viam de guardas efetivos aos detidos O carcereiro aí aparecia raramente tinhamlhe dado como é o hábito no país o emprego para remunerar serviços eleitorais em que era excelente Entre presos e soldados havia a mais relaxada camaradagem Os acusados passavam nessa casa apenas co mo por uma estação durante o processo depois de condenados eram re metidos para as prisões da capital Mas o que sofriam esses miseráveis qua se sem alimento dormindo sobre estrados de madeira sem roupas numa promiscuidade animal ao frio à umidade e numa incrível imundície Maria não compreendia bem por que a prendiam A inteligência nela adormecera e apenas de longe em longe lhe vinham vislumbres da exata noção do que tinha acontecido Trazialhe a memória o quadro medonho que os seus olhos uma vez tiveram a suprema ago nia de ver E ela se exaltava se debatia em gemidos de horror em súplicas em choros até que de novo o torpor benfazejo lhe arre batava a consciência Em outros intervalos quando mais calma se sentia sofrer esmagada pelo temeroso peso do mundo e ainda assim fraca acobardada quase a morrer o seu maior tormento era a G R A Ç A A R A N H A desesperada ânsia por seu filho entrevisto tão belo no nevoeiro da vertigem Não tardou muito que Milkau soubesse da sorte de Maria E foi um rugido no seu coração Compreendeu logo por instinto de bondade e pela cristalina claridade da sua alma desanuviada que atrás dessa acusação havia um drama um tecido de cobardia de vingança de es tupidez tão fértil nos humanos E teve pejo de ser homem vergonha desprezo de si mesmo e de tudo o que era vida Chegaralhe o momento doloroso em que o divino sonho se desmancha ao sopro da maldade Tudo o que julgara como o doce convívio da bondade do esquecimento e da paz não era senão o baixo conúbio de todas as vilezas sociais Na tarde desse mesmo dia Milkau disse a Lentz Vou ao Cachoeiro por algum tempo E que te leva lá perguntou o amigo A simpatia pelo destino dessa infeliz rapariga E por isso me deixas Abandonas os nossos interesses a nossa colônia É meu dever como é o teu esse socorro Não compreendo replicou secamente Lentz esperando uma resposta Não compreendes respondeu Milkau com calma Então não vês que essa desgraçada é uma vítima E desde que eu a tenho por tal devo correr para o seu lado Quem sabe da verdade E quando não fosse inocente o seu crime não seria antes a culpa dos que a repeliram e a levaram ao desespero Mas tu não estás em causa pareceme escarneceu Lentz Todo o homem está em causa quando há um sofrimento no Universo C A N A Ã E partiu só No dia seguinte chegando ao Cachoeiro a cidadezinha não tinha mais para ele o encanto daquela primeira manhã em que a saudara como filha do sol e das águas A tristeza que trazia comunicavase à paisagem e toda a antiga maravilha desta se desfazia misteriosa mente Apertado entre duas linhas de morros o povoado parecialhe abafado e condenado a uma irremediável angústia O sol infernal cas tigava sem piedade as habitações e sobre as rochas abrasadas colos sais viamse estampadas a esterilidade e a aridez O rio quase sem água quebrandose nas pedras negras informes fervilhava o seu cachão monótono Sobre as ruas barrentas descalçadas erguiamse olhando para o rio casas desiguais sem arte feitas às pressas como para um povo apenas acampado sobre a terra Eram pequenos sobra dos verdadeiros aleijões dolorosamente nus fazendo ver nas linhas inconscientes figuras deformadas de seres monstruosos E aí na embrionária e abortada cidade a gente grosseira e rude mostrava o ar embrutecido torturado pela ávida cobiça Tudo o que era natureza tinha o aspecto sinistro trágico desolador e o que era humano mes quinho e ridículo O único desejo de Milkau era estar imediatamente com Maria Todavia hesitava com receio de se ver num instante desiludido sobre a inocência dela e de ouvir a lúgubre confissão do crime E agitado trêmulo dirigiase impelido por ímpetos confusos e irresistíveis à cadeia A porta um mulato moço vestido de soldado de farda desa botoada desarmado era o guarda da prisão Milkau pediu permis são para falar à prisioneira O homem sem mesmo se levantar da soleira da porta mostroulhe dali com a mão preguiçosa o cor redor da casa e apontoulhe o quarto onde ela estava Milkau en trou apreensivo G R A Ç A A R A N H A As grades não deixavam penetrar no aposento toda a luz do dia e na minguada claridade viu Maria sentada sobre o estrado que lhe servia de cama Ela muito assustada com a aparição tremia e ne nhum dos dois por algum tempo disse uma palavra Ela curvava humilhada a cabeça sem olhar o homem depois muito branca fitouo implorando misericórdia A compaixão foi crescendo em Milkau ao aspecto miserável da mulher O que fora nesta de gra cioso de sedutor de docemente feminino tinhase apagado e só restava uma triste carcaça uma face lívida donde espiavam cintilantes olhos em que dançava a loucura Sofres tanto não é disse Milkau tateandolhe levemente a cabeça Maria recebeu daquelas mãos e daquela voz um fluido de ternura estranha e de bondade nunca sentida Foi um gozo sutil que ela cur vada como para lhe recolher toda a carícia queria se prolongasse indefinidamente E nos lábios da desgraçada chegou a abotoar um sor riso sorriso infantil e humilde Milkau não esperou que ela falasse Ia por diante arrebatado pela simpatia que o não deixava premeditar nas palavras e nos gestos Sofres Eu sei Mas isto vai acabar Terás ainda tanta felici dade neste mundo Tanta E sentouse na única cadeira que havia no quarto puxando para si a cabeça de Maria que inerte lhe deixou afagar os cabelos tecidos emaranhados e secos como um ninho dourado E sobre os joelhos dele descansou muda submissa a fronte Ele não lhe via a face volta da para o chão mas à medida que falava sentia sobre o corpo a morna umidade das lágrimas É preciso cuidares de ti Erguer o espírito Estás tão fraqui nha e doente Não isto vai acabar Haverá piedade da tua sorte Tu sairás daqui E ainda a felicidade C A N A Ã Instintivamente hesitava em acusála Para que levantar ali o es pectro do crime E ela se reanimava e pouco a pouco ao poder mis terioso da bondade ia surgindo a sua consciência entorpecida Olha Não te abandono continuava Milkau e direi aos outros que a culpa não é tua Sim foram eles os responsáveis Eles te perdoarão confessando a sua terrível falta Porque Não é são os mais culpados Maria estremeceu As lágrimas secaramlhe instantaneamente Milkau prosseguia arrastado pela deliciosa ânsia de confortar Foi num momento de alucinação Não eras tu bem sei Era a loucura Abandonada perdida não quiseste desgraçada que foste ver o teu filho sofrer como tu A miserável ergueu a cabeça e olhandoo firme aterrada recuou para o fundo do estrado Não não murmurou arquejante Eu me compadeço de ti Não tenhas medo disse Milkau querendo atraíla Não vai vai E com o gesto incerto o expelia da sua vista Desgraçada Que te resta se me repeles Vai vai Meu Deus E as mãos ora crispadas se torciam jun tas num aperto ora pesadas comprimiam como tenazes a cabeça Não Eu fico para te salvar afirmou Milkau obstinado Eles não te perdoam Eles te pedirão conta de teu próprio filho Meu filho sim meu filho Que tu mataste Eu Tu Num impulso frenético de arrancar a confissão de tudo saber Milkau alucinado perdiase desvairadamente G R A Ç A A R A N H A Sim tu Assassina Não Meu filho Não Não me lembro bem Arrancaramno de mim para o devorar Oh meu Deus é horrível E os seus olhos pungentes e frios atravessaram os de Milkau que espantado confuso emudecera Agora era ela que falava Assassina Meu filho Oh Por que me vem perseguir na minha miséria Oh Deixeme deixeme A cólera de Milkau abrandara em presença desse desespero e humilhado ele se arrependia do seu transporte inconsciente Maria recomeçou com uma voz apagada eu te peço por tudo que amas dizeme que estavas louca que não eras tu quando mataste teu filho Dizeme Deixeme Deixeme murmurava sufocada a pobre Não Fico Devo ficar É para o teu bem Hás de me dizer tudo Maria ficou acobardada sentindo a enérgica decisão com que foram ditas essas palavras O seu espírito frágil debateuse ainda para lutar mas apenas pairou um momento livre e logo caiu vencido aniquilado aos pés do dominador Quero saber quero insistia Milkau A rapariga esperava submissa Por que não me chamaste em teu socorro quando te viste desamparada perseguida Por quê Não confiavas em mim Tinha medo Vergonha disse com uma voz imperceptível Vergonha E por isso Calouse pensativo tomado de uma tristeza infinita Natureza humana Vergonha disseste E por isso mataste teu filhinho miserável teu filhinho Mas eu não matei ninguém gritou num esforço a infeliz Não negues Eles te acusam C A N A Ã Eles são maus E quem matou Anda responde suplicou angustiado Milkau Ela obedeceu Quando foi Pensei estar tão longe Pensei estar morrendo E depois Ouvi ao meu lado a vozinha dele Chorava Meu Deus Depois um roncar de porcos em roda de nós Depois eles o carregaram e foram comendo comendo Estes fragmentos de frases eram bastante para aclarar o espírito de Milkau e a espantosa cena se lhe representou exata na imaginação aguçada pela simpatia E então iluminado de novo chamoua a si ca rinhoso e terno Vem Escuta A essa voz cheia de meiguice ela se aproximou dócil e abandon ada Curvouse outra vez sobre os joelhos dele e ali na infecta e tenebrosa prisão os dois desgraçados foram recompondo tudo lugu bremente Tu te sentiste desfalecer Uma vertigem derruboute E os porcos Vieram O sangue corria A criança a criança Chorava aos teus pés E os porcos Arrebataramna Meu filho Tu despertaste e viste ao longe teu filho ensangüentado aos pedaços nos dentes dos porcos Meu filho G R A Ç A A R A N H A Perguntaramte por ele Não te escutaram Acusaramte pren deramte E agora amaldiçoada presa Nada mais me resta nada mais Desde aquele momento a vida de Milkau transformouse de novo Todas as forças do seu coração votouas à defesa e salvação de Maria O processo demorava e enquanto não começava Milkau não desam parava a desgraçada Fazialhe amiudadas visitas e sendo ela a única prisioneira os guardas deixavamlhe liberdade de entrar na detenção quando quisesse Maria chegou a sentirse feliz na sua miséria Longos momentos havia em que presa à voz à doçura do amigo fica va deliciosamente esquecida do próprio infortúnio Por sua vez ele vendoa diariamente encantavase em sondar essa alma primitiva rica de emoção e de bemaventurada ingenuidade Nas conversas narravalhe sempre as suas viagens e a sua vida de peregrino no mundo Tudo ela ouvia com sofreguidão acompanhando fielmente os casos por ele praticados ou conhecidos Ora erravam nas pequenas cidades do Reno e ressuscitavam lendas Subiam aos Alpes gelados e guardavam nas pupilas as cores maravilhosas do sol a morrer Ora nas grandes cidades tumultuosas sem piedade onde há fome Ou no mar balançados pelos ventos arrastados pelas tempestades E ainda no mar glacial esclarecido vagamente pela lua e brancos navios avolumados na fosforescência da noite a passarem sinistros para se mergulhar sumir engolidos pela treva insondáveL E ela como sombra sempre o seguindo sempre atrás Outras vezes não contava lialhe poemas de que ela não percebia bem o sentido mas a cuja misteriosa música vibrava chorando perdidamente sem saber por quê C A N A Ã Na cidade Milkau começou a ser notado e a princípio com curio sidade depois com rancor acompanhavam a sua estranha conduta Formaramse ali como se formariam em qualquer parte do mundo as mais indignas conjeturas Acreditouse que era ele o amante de Maria e um ódio coletivo não poupava o homem que se ligava ainda talvez como cúmplice à mulher que lhe matara o filho Todos o evi tavam em casa de Roberto Schultz seu correspondente para os fornecimentos da colônia era tratado com desdém e Milkau na sua força na sua superioridade amorosa resignouse a ser o inimigo co mum E assim repelido pelos outros quando não ia à cadeia passea va solitário pelos arredores do povoado Dias depois Felicíssimo chegou ao Cachoeiro e alojouse no mes mo hotel em que estava Milkau O cearense com a sua índole franca e bondosa não participava do preconceito da cidade e indiferente a isso era o companheiro de Milkau nos passeios e com inquietação amiga observavalhe os silêncios profundos De volta de uma dessas caladas excursões entraram uma manhã na cidade e viram um movimento desacostumado na rua principal Às portas das lojas e nas calçadas a gente do lugar e os tropeiros e colonos do centro seguiam pasmados um grupo que passava Era Maria ladeada dos dois soldados que ia responder ao processo Vinha transfigurada e à claridade do dia a sua lividez era cadavérica os olhos postos no chão tinham grinaldas roxas e na boca morrialhe um nenúfar bran co úmido gelado Milkau comovido mudo deixou passar aquela visão que lhe pare cia o fantasma da Inocência levada para o martírio Ao longe ela se foi perdendo apagandose Milkau abandonou Felicíssimo e preci pitouse no encalço para o Juízo O agrimensor compadecido não procurou detêlo G R A Ç A A R A N H A Depois da primeira audiência seguiramse outras a que Milkau não faltava As testemunhas depunham contestes contra Maria A trama esta va bem tecida e fatalmente a acusada não poderia rompêla Pedro Maciel era o juiz da instrução dirigindo desprevenido e inteligente o processo com uma inútil cordura A persistência de Milkau tornavao um familiar das audiências e muitas vezes depois de acabado o trabalho Maciel entretinhase muito à vontade com ele Por seu lado Milkau achava o Juiz Municipal uma esplêndida natureza e o ia estimando Não era seguramente a posição do magistrado que o atraía Quando estava diante de outro homem Milkau imaginavase no deserto o seu espírito eliminava todas as separações que vêm da sociedade e instintivamente não conhecia as vãs distinções de posição de fortuna de família de raça Apenas via um ser igual que tratava sempre com simpatia e às vezes com respeito quando pela sadia inteligência pelo sofrimento augusto pela superioridade moral esse homem lhe inspirava tal sentimento Os dias dessa acabrunhadora vida no Porto do Cachoeiro se iam sucedendo sem alteração para Milkau quando voltando da cadeia uma tarde encontrou Felicíssimo muito sobressaltado Que desgraça que desgraça foilhe dizendo abrupto o cearense Que foi perguntou Milkau interessado Uma desgraça O pequenino Fritz o filhinho de Otto Bauer acaba de ser esmagado por um barril de vinho no armazém do pai 30 Que horror Pobrezinho E onde está Ali mais abaixo apontou Felicíssimo Em casa deles Fui chamar o médico e volto para lá Vamos Quando chegaram a casa estava em alvoroço A notícia tinhase espalhado e muita gente apiedada viera aglomerarse aí invadindo C A N A Ã com a familiaridade da compaixão o aposento onde deitada em uma mesa a criança morria A mãe ainda jovem debruçavase sobre ela devorandoa com os olhos numa dor sombria confusa de animal O pai vagava a tremer pela sala atordoado com o desastre Ouviamse lamentos e choros em roda O pequeno Fritz agitava de vez em quando os bracinhos estrebuchando Pelos cantos da boquinha escarlate saíam espumas de sangue Os olhos azuis arregalavamse desmedidos e as pupi las imensas de tão dilatadas parecia não lhes caberem mais A cabeça estava intacta o esmagamento tinha sido no tórax Pobre criança gemeu Milkau não duvidando da morte E atrás dele uma voz lhe pediu Veja se dá um remédio para a salvação Milkau voltouse e fitou Joca Este tinha o ar trágico de um sátiro em dor A criança era o carinho do tropeiro quando ele vinha à cidade Os pais lha confiavam aos seus desvelos quase maternais e o cabra sentiase desvanecido feliz quando o trazia nos braços de loja em loja ou quando lhe dava com o cuidado de uma ama a mão na rua para ir ensaiando os passinhos vacilantes Milkau ficou sensibilizado vendo aquela face de homem primitivo e bárbaro molhada de lágri mas e sem a menor esperança fez com auxílio do tropeiro alguns curativos O médico não tardou Viu o que estava praticado e sacu dindo a cabeça murmurou Era o que se podia fazer Não há mais nada E nas tenebrosas torturas da meningite morreu o pequeno Fritz Na vigília da noite eram todos os que guardavam o cadaverzinho muito silenciosos divagando em cismas De fora vinha pelas janelas abertas o doloroso mugido da cachoeira Pouco a pouco o silêncio em que estavam e a fadiga do coração foi entorpecendo e adormecendo a quase todos E na frouxa claridade das velas mortuárias desenhavase G R A Ç A A R A N H A fugitivamente O vulto de uma velhinha a bisavó do pequenino quase extinta incorpórea de uma transparência vítrea a vida só nos olhi nhos limpos e de uma cintilação sinistra A mãe de Fritz também fechou os olhos e o sono lhe foi vindo ao tempo que a respiração ofe gante moderava e as cores rubras das faces inchadas se iam apagando até uma palidez absoluta Depois a fisionomia serenou tomando uma expressão sossegada e feliz Era uma bela mulher de uma ca beleira farta e negra com um perfil delicado e fino Tudo nela ex primia saúde e força e a dor lhe vinha como uma hóspeda estranha e importuna Os que ainda alerta a contemplavam tiveram uma pun gente tortura vendo essa mãe bonita e moça dormindo a sorrir vol tada para o filho morto No canto da sala uma imagem de Nossa Se nhora iluminada por uma lâmpada presidia a morte A família católica revelavase E Milkau refletia diante do admirável símbolo Tinha a impressão de que todo o culto se ia restringindo em torno da Virgem Maria Lembravase das catedrais dos templos onde passara e onde sempre os altares dEla atraíam mais os corações das gentes enquanto os outros mesmo os do Cristo ficavam quase deser tos E por quê Talvez pela maior conformidade entre o gênero hu mano e a mulher E essa tendência universal para divinizar exaltar as deusas as santas não vinha acaso de longe de muito longe não esta va agora em plena culminância no culto de Maria que ia insensivel mente apagando absorvendo todos os outros Toda a noite passou Milkau a confortar a família Ele estava também esmagado e abatido E quando olhava o mortozinho cismava É dolorosa ainda mais do que as outras a morte de uma criança É a dor diante do inacabado do apenas ensaiado do que nos ia com pletar Não viver E os que morrem sem ter vivido os que foram apenas esboços da existência deixamnos uma piedade torturante C A N A Ã Quando morre uma criança nós também morremos um pouco nela porque aí morre uma ilusão nossa No outro dia foi o enterro Toda a gente da cidade numa espon tânea unidade de sentimentos participava de um mesmo pesar tor nando a tristeza coletiva A manhã era límpida lavada e azul Uma banda de música alegre ruidosa como nos enterros de anjos puxava o préstito em que o povo vinha sorumbático e lúgubre Foi um luto geral na povoação espantada com a catástrofe as escolas fecharamse e grupos de meni nos vestidos de branco enfileiraramse alongando o cortejo os ar mazéns também cessaram o trabalho e de todas as casas e lojas vinha gente incorporarse ao enterro mesmo os inimigos e competidores do pai de Fritz que traziam flores suspendendo constrangidos e ater rados os seus ódios As autoridades brasileiras vieram exceto Brederodes que não per doava ao estrangeiro nem mesmo na desgraça E a marcha ia nessa mistura de amargura ruído e música alegre desenrolandose pela rua principal do povoado Entre os que carregavam o esquife estava Joca a mirar embevecido o seu amado menino vestido de marinheiro e embarcado como num brinco infernal naquela gondolazinha dourada e vermelha em viagem para o céu Quando deixou a rua à margem do rio o enterro tomou a direção da cadeia que ficava perto do cemitério Lá à prisão chegou primeiro matinal e alvissareira a música e Maria que tudo ignorava sentiu uma fresca claridade nalma com aquelas carícias do som imortal E des percebida atraída por ela veio à grade e pôsse a mirar O enterro vinha vindo marcial e solene Maria espreitava o seu olhar de aluci nada saía violento pelas grades da prisão e repousava ardente no morto Afinal ali na morte passava o triunfo a vitória da força e da G R A Ç A A R A N H A felicidade Ela ouvia agora confundidas na harmonia dos sons ou tras vozes abafadas cavernosas Vinham de longe do desconhecido mas tão persistentes tão terríveis que dominavam os cantos dos instrumentos E Maria na sua sensibilidade desvairada ia ouvindo ia vendo o enterro do próprio filho levado pela música macabra do resfolegar dos porcos Com o rosto descomposto os cabelos pen dentes a boca cerrada numa contorsão ficara hirta agarrada às gra des Da multidão só Milkau olhava para ela tomado de uma com paixão infinita Os mais apavorados e rancorosos desviavamse da figura infernal da desgraçada A colônia passava unida na piedade como no ódio 1 0 P aulo Maciel agora depois das audiências do processo arrastava Milkau diariamente à sua casa e em longas e nobres palestras dignas de homens a amizade se ia formando entre eles Para Maciel sobretudo que se sentia separado de todos daquela terra esses momentos eram sagrados tinham o perfume da liberdade e jamais depois que o doce veneno da dúvida lhe corrompera a alma fora ele tão feliz e fecundo 31 Não vejo meio de evitar um mau desenlace ao processo disse o magistrado logo que se encerraram no escritório respondendo a uma pergunta de Milkau Como Está convencido da culpa de Maria Perutz perguntou Milkau inquieto Meu amigo não estou convencido de coisa alguma Apenas lhe explico que pelos depoimentos pela prova dada a pronúncia é fatal e a condenação Mas testemunhas cortou Milkau vêm insinuadas foram indus triadas para essa desgraçada conclusão A quem o diz É sempre assim entre nós não há um processo em que se possa fazer justiça Digolhe isto eu que sou juiz Que exprimem as C A N A Ã uma virtude conservadora não há um fundo moral comum Posso acres centar mesmo não há dois brasileiros iguais sobre cada um de nós seria fútil erguer o quadro de virtudes e defeitos da comunhão Onde está mudando de ponto de vista a nossa virtude social Nem mesmo a bravu ra que é a mais rudimentar e instintiva nós a temos com equilíbrio e constância e de um modo superior A valentia aqui é um impulso ner voso Veja as nossas guerras de quanta cobardia nos enchem a lem brança Houve tempo em que se proclamava a nossa piedade a nossa bondade Coletivamente como Nação somos tão maus tão histerica mente inutilmente maus Calouse como levado a tristes recordações Milkau compadecido das torturas daquela alma de brasileiro fitavao com imensa simpatia Repare o que se passa com o patriotismo prosseguiu depois Maciel No Brasil a grande massa da população não tem esse sentimen to aqui há um cosmopolismo dissolvente não que seja a expressão duma larga e generosa filosofia mas simples sintoma de inércia moral indício da perda precoce de um sentimento que se devia casar com o estado atra sado de nossa cultura Note que os poucos patriotas que temos são ainda homens de ódios de sangue enfim logicamente selvagens Não há dúvida ponderou Milkau interessado nesta análise franca de Maciel que há profunda disparidade entre as várias camadas da popu lação E a falta de homogeneidade será talvez a maior causa deste dese quilíbrio desta instabilidade O juiz refletiu e debruçandose um pouco sobre a mesa voltado para Milkau replicou a este num tom mais decisivo e vibrante Tem razão O aspecto da sociedade brasileira é uma singular fisiono mia de decrepitude e de infantilidade A decadência aqui é um misto doloroso de selvageria dos povos que despontam para o mundo e do esgo tamento das raças acabadas Há uma confusão geral As correntes da G R A Ç A A R A N H A imoralidade vagueiam sobre a sociedade e não encontram resistência em nenhuma instituição Uma tal nação está preparada para receber o pior dos males que pode cair sobre o mundo a geração dos governos arbi trários e despóticos Se a sociedade é uma obra de sugestão que se pode esperar dos sentimentos da idealização das massas incultas quando a imaginação delas é deslumbrada pelo espetáculo da mais desbragada per versão dos governantes Que reações sobre cérebros obscuros não provo cará o desamor desses condutores das gentes ao ideal às coisas supe riores e seu apego às posições e ao ganho E não é só o Governo É a ma gistratura subserviente e aparelhada para explorar os restos da fortuna privada são os funcionários os militares o clero tudo num declive em que se vão resvalando horrivelmente deformados Levantouse muito nervoso abriu a janela que dava para o rio e pôs se a mirar absorto e vago a cachoeira enquanto a claridade da tarde mansa e suave invadia o aposento Milkau sem se mover do seu lugar encheulhe os ouvidos de louvores à natureza E Maciel voltouse Ainda é uma vantagem viverse na roça nesta hora tenebrosa Ao menos temos a benignidade da calma e a tranqüilidade da família E por quanto tempo não sei O clima A peste se apodera do corpo miserável da Nação A família vem sendo demolida pela força impe riosa dos vícios Parou e como resumindo todas as suas decepções e anelos murmurou num desalento O meu desejo é largar tudo isto expatriarme abandonar o País e com os meus ir viver tranqüilo num canto da Europa A Europa A Europa Sim ao menos até passar a crise E quando ia sendo arrebatado pela expansão dos seus mais Íntimos anseios Maciel contevese com esforço ficou repentinamente mudo CANAÃ fitando com os olhos vermelhos e úmidos o estrangeiro Milkau faloulhe com brandura e as palavras caíam frescas e consoladoras sobre os campos desertos daquele coração Não quero diminuir disse ele a exatidão dos seus conceitos Mas lembrese de que não há sociedade sem abalos Ou melhor que não há nada fixo e eterno tudo vai de passagem tudo está sempre em crise pro curando perpétuas e incessantes combinações de ser Por outro lado esse terror que nos vem dos acontecimentos presentes é também um pouco uma questão de perspectiva Quando estamos dentro deles tudo se mostra grandioso ou ridículo terrível e formidável tudo parece ir acabar numa desagregação irremediável mas no futuro eles minguam à força de distância parecem normais e suaves e nós começamos a louválos como uma engenhosa e admirável expressão dos melhores tempos que são sempre os passados Deixa que lhe repita uma velha imagem É assim como se estivéssemos no mar no meio das ondas e dos ventos o es petáculo do oceano enchenos a alma de terror porém depois que o atravessamos e o olhamos de longe as ondulações das vagas são como um leve sorriso E Maciel também sorriu festejando a metáfora Muito bem replicou tornandose subitamente jovial mas aqui se passa uma verdadeira tormenta É natural e não podia ser de outro modo Do que tenho observado e adivinhado um pouco é ela conseqüência da primitiva formação do País Desde o princípio houve vencedores e vencidos sob a forma de se nhores e escravos desde dois séculos estes lutavam por vencer aqueles Todas as revoluções da história brasileira têm a significação de uma lu ta de classe de dominados contra dominadores O povo brasileiro foi por longos anos apenas uma expressão nominal de um conjunto de raças e castas separadas E isso se manteria assim por muitos séculos se a forte e C A N A Ã o pequeno mundo da colônia tangido pelo Escrivão representouse no espírito de Milkau como um resumo bem claro de todo o País Todos os nacionais que ali dominavam saíam fatalmente do núcleo da fusão das raças enquanto aquele jovem de uma inteligência mais frna de uma sen sibilidade maior e mais distinta era aniquilado vencido pelos outros Tinha razão Faltavalhe a gota de sangue negro para que tudo nele se equilibrasse Vê meu amigo É fatal disse Maciel negligentemente não há sal vação possível para o nosso caso é uma incapacidade de raça para a ci vilização Oh não Isto não se pode concluir dos meus pensamentos A crise da cultura aqui é motivada pela divergência dos estudos de civilização das várias classes do povo É preciso um pouco mais de identificação como dolorosamente já se está fazendo Não há raças capazes ou incapazes de civilização toda a trama da História é um processo de fusão só as raças estacionadas isto é as que se não fundem com outras sejam brancas ou negras se mantêm no estado selvagem Se não tivesse havido a fatal mis tura de povos mais adiantados com populações atrasadas a civilização não teria caminhado no mundo E no Brasil fique certo a cultura se fará re gularmente sobre esse mesmo fundo de população mestiça porque já houve o toque divino da fusão criadora Nada mais pode embaraçar o seu vôo nem a cor da pele nem a aspereza dos cabelos E no futuro remoto a época dos mulatos passará para voltar a idade dos novos brancos vin dos da recente invasão aceitando com reconhecimento o patrimônio dos seus predecessores mestiços que terão edificado alguma coisa porque nada passa inutilmente na terra O País será branco em breve suspirou Maciel quando for con quistado pelas armas da Europa G R A Ç A A R A N H A E Milkau disse ao brasileiro Essa Europa para onde daqui se voltam os vossos longos olhos de sonhadores e moribundos as vossas cansadas almas cobiçosas de felici dade de cultura de arte de vida essa Europa também sofre do mal que desagrega e mata Não vos deixeis deslumbrar pela exausta pompa da sua civilização pela força inútil dos seus exércitos pelo lustre perigoso do seu gênio Não a temais nem a invejeis Como vós ela está no desespero consumida de ódio devorada de separações Ainda ali se combate a velha e tremenda batalha entre senhores e escravos Não há calma para a cons ciência não há tranqüilidade no gozo quando ao vosso lado sempre alguém morre de fome É uma sociedade que acaba não é o sonhado mundo que se renova todos os dias sempre jovem sempre belo E ainda para manter tais ruínas os governantes armam homens contra homens e entretêmlhes os ancestrais apetites de lobos com a pilhagem de outras nações Tudo que se apresenta à flor da vida não corresponde mais aos fun damentos da Vida As leis nascidas de fontes impuras para matar a liber dade fecunda não exprimem o novo Direito são o escudo perturbador do Governo e da riqueza e quem diz autoridade diz posse diz servidão e destruição Por tais leis os povos chegaram a esse excesso de grandeza que é o primeiro toque da decadência Por elas tudo se baralha toda a huma nidade parece sem raízes na terra passando como se estivesse para mor rer sem cuidar dos que vêm surgindo após Está vacilante inquieta nesse momento indeciso em que não teme mais a justiça vingadora e póstuma que amedrontava no passado os espíritos e nem pratica a maravilhosa jus tiça que vai chegar amanhã para dar a todos o que é de todos N ada corresponde ao Tempo O espírito que morreu ainda anima debilmente o mundo As raças deixaram de ser guerreiras e ainda se armam Os povos abandonaram a religião e conservam os templos e o sacerdócio A arte não exprime a vida nem a alma do momento C A N A Ã a poesia voltase para o passado e a sua língua sutil fina e mesquinha sem seiva nem vigor não é a lâmina poderosa e refulgente onde se reflete a imagem dos novos homens E por tudo isto que enlanguesce e definha passa o veneno sensual mórbido e pérfido tirando a força ao homem e a bondade ao leite da mulher Não a temais que vos não pode escravizar antes que se erga contra vós ela se despedaçará Não longe os seus exércitos não se poderão mover pois como a essas figu ras carbonizadas desentranhadas da terra do passado um sopro de vento os reduzirá a pó o sopro benfazejo que tudo invade tudo ven ce como o bafo sagrado das divindades do futuro e que são as forças redentoras da ciência da indústria da arte da inteligência do ódio e do amor e de mil outras potências ainda incógnitas misteriosas e san tas E já as posições vão sendo tomadas insensivelmente pelos que as desprezam É um grande mal disse involuntariamente Maciel numa voz imperceptível É o primeiro passo e um grande bem Que o Exército a Magis tratura o Governo o Parlamento a Diplomacia a Universidade e tudo mais que deva finar caia nas mãos dos que julgam tais instituições como instrumentos do mal criações grosseiras ou ridículas Então os exércitos não marcharão Não será a conquista fatal do País onde isto primeiro se der arriscou o jovem brasileiro Se tais conseqüências resultarem serão tão fugazes e passageiras que não devemos delas cogitar O domínio do vencedor dessas lutas inferiores será instantâneo porque aquelas forças da ressurreição se comunicam invisíveis entre os homens do nosso grupo de cultura e conduzem ao mesmo resultado neste sistema planetário onde destacandose da nebu losa inicial entrou o Brasil para sofrer conosco os mesmos sacrifícios as G R A Ç A A R A N H A mesmas transformações e numa semelhança de destino mais funda que aparente sonhar os mesmos sonhos Quando Milkau partiu o juiz ficando só cismava em tudo o que acabava de entrever deliciosamente nesse mundo a transfigurarse nes sas ânsias para novas e mais belas expressões da vida nessa esperança luminosa e feiticeira E apesar do deslumbramento da visão as atribu lações do momento venciamno Tudo desmorona em torno de mim Já ninguém aqui se entende e não tarda que eu mesmo seja estranho a tudo e nada mais sinta de comum com aqueles que são os homens de minha terra O que me resta é ainda este sossego da família este amor de mulher que me conforta e esta criança que nos rejuvenesce enquanto lá fora tudo vai desabando Não ouvindo mais rumor de conversa no escritório do marido a mulher de Paulo Maciel entrou aí discretamente como tinha por hábito todos os dias antes do jantar Era esbelta magra e ainda muito jovem A palidez bra sileira doentia e diáfana dilatavalhe os olhos negros faiscantes Sentouse no seu lugar de retiro e daí arrancando o marido das cismas em que esta va foise reclinando suavemente para ele Maciel eternamente fascinado por ela acalmouse e sem demora esquecido de suas devastadoras angús tias e débeis revoltas foi em sussurro entretecendo com a companheira co mo em fios de brando e macio cabelo de mulher uma doce e infrnda con versação A noite vinha vindo avançando e estendendolhes em silêncio os braços cheios de ternura misteriosa E tudo foi uma volúpia casta e sutil Mas não tardou que passos miúdos e velozes os sacudissem desse vaporoso adormecimento e logo invadisse o aposento a figura em desor dem de uma criança Trazia as faces vivas e acesas tremialhe o narizinho os cabelos vinham debandados e pela testa corria um suor gelado Caiu nos braços da senhora vibrando abafada C A N A Ã Mamãe Esta aflita e estupefata olhandoa sem ver recolheulhe ansiosa o cor pinho Glória Glória murmurou O marido achegouse a ela e tomandolhe uma das mãos beijou a criança Sosseguem Esta palavra foi dita varonilmente e trouxe lágrimas à mulher como uma reação de alento e Glória a criança enterrou mais a cabeça no colo onde se agasalhara Neste momento entrou no aposento a criada que agitada começou a explicar a angústia da menina reconstituin do com largos gestos e grandes vozes quase numa algazarra um epi sódio da rua Passeavam ambas quando uns imigrantes mendigos se acercaram delas pedindo esmola Algumas mulheres do bando dese javam com mãos descarnadas apossarse das jóias da menina e uma mais ousada beijoulhe o rosto e enquanto forçava por tirarlhe a pul seira o filho arrancoulhe o laço de fita correndo numa gargalhada de triunfo A criada defendera Glória repelindo o grupo com o chapéu desol mas à sua energia tonta correspondera uma vozeria desbraga da Se não fosse a intervenção de dois homens que passavam a luta não se terminaria logo Mal puderam escapar partiram desvairadas para a casa no meio de imprecações de fúria Durante a narração a moça segurava a menina pela cabeça beijandolhe freqüentemente os amortecidos olhos de sonâmbula Paulo Maciel para diminuir nesta o natural e invencível horror aos pobres tentou disfarçar o acontecimento sorrindo daqueles sustos A criança encarouo indecisa O medo davalhe o justo sentimento do real e tornava vãs as palavras Procuraram distraíla e desviar para coisas alegres e diversas a sua atenção pois já aos cinco anos uma precoce e mórbida fantasia eralhe G R A Ç A A R A N H A doença d alma A invenção dos grandes não foi feliz e fértil naquele momento as idéias lhe fugiam eles paravam cismavam e apenas como recurso lançavamlhe ao argumento que nunca trai beijos que foram então arquejantes A grande calma do crepúsculo aquietavalhes como num remanso as perturbações e só a menina de vez em quando tremia segurandose à senhora a quem não sobrava regaço para ocultála e abrigála mais e envolvêla com os braços perfidamente maternalmente Tenho medo mamãe Depois um soluço histérico outro mais outro sucedendo uma mo dorra interrompida de instante a instante pelo crispar de suas garrazinhas aferradas aos pulsos da senhora que tentava inutilmente adormecêla Os seus sentidos saíam do pesadelo numa dolorida expressão de susto e de fadiga Levantou a cabeça fitou os outros com um sorriso leve melan cólico que traduzia uma imensa agonia rudimentar inconsciente a indizível tristeza das almas rudes primitivas ou infantis Moveu os lábios como quem ia falar e os dois esperaram em súbita transformação de alívio a sua voz Ah nós também fomos como eles hein mamãe murmurou Glória brandamente A mulher de Maciel a princípio não percebeu toda a extensão daquele pensamento mas do pouco que compreendeu ficou aterrada Maciel que estava a ler deixou cair o livro e enfiou olhos agudos na menina Sim mamãe há muito tempo longe noutra terra Nós andávamos na rua toda a hora dormíamos na rua você me carregava quando eu não podia mais papai me dava tanto A sua fisionomia transfiguravase com essa recordação e em êxtase voltada para a janela parecia buscar dias passados Os outros cismavam Você se lembra quando a gente não tinha que comer e ia pedindo di C A N A Ã nheiroVocê me beliscava para eu chorar e me empurrava dentro das lojas para pedir comida Glória disse Maciel que tolices são essas Não fales nisso A menina moveu para ele o rosto Quedouse um momento calada obedecendo à intimação Ouviuse um grande suspiro Mas daí a pouco como que irresistivelmente Ah que frio fazia lá Aqui não se treme não cai neve Por quê mamãe Você se lembra daquele chapéu que você tirou do menino na rua e me deu Ih correram atrás de nós não foi mamãe Mas nós nos escondemos naquela casa escura e eu fiquei com o chapéu bonito Glória Glória teve a moça forças de exclamar Paulo Maciel levantouse convulso tomoua ao colo e mostroulhe uma estampa que tirou precipitadamente do armário Que bonito Não se conteve a criança Me dá papai Dou se não disseres mais tolices Ela pagoulhe com um beijo Voltaria à realidade o seu espírito desanu viado das névoas que o envolviam pensou Maciel E pousou Glória no chão com a gravura A criança porém pouco se demorou em admirála voltou à senhora que estava a chorar Mamãe não chore Você tem tanto dinheiro Você não apanha Não é papai Faziase escuro A criada tardava em trazer o candeeiro No completo repouso da casa à sombra que abafava os últimos clarões da luz a figura e as palavras de Glória como a imagem e a voz de um passado horrível que ressurgia em meio da felicidade tinham ares de monstros E ainda assim Maciel gozava um absurdo e requintado prazer intelectual naque las tenebrosas visões da criança Você não era assim mamãe como agora boa para mim Eu não ti nha boneca não tinha criada nem cama Andava suja Não era Você não G R A Ç A A R A N H A errante desalentavao e imortal e infinito mergulhava o espírito no tempo imemorial e tremia de tristeza E assim na região do silêncio as ânsias da criação agitaram o homem forte O princípio da vida o ímpeto de repetirse eternamente erguiase nele súplice e imperioso Lentz quis que as suas forças Íntimas e essenciais desagregandose se fra cionassem em parcelas imponderáveis e invisíveis como partículas de luz numa misteriosa fecundação do Nada Ansiado inquieto doloroso delirava e uma ilusão perversa descortinava a sua imagem multiplica da em miríades de corpos formosos e serenos como a geração de um deus Deliciouse extasiado nos olhos da sua raça nos cabelos nos mem bros e traços de glória em que cada um resumia a beleza e a força do Universo E tudo era belo e tudo era bom porque tudo era ele Depois não tardou a chegarlhe a invencível monotonia de se ver a si a si indefInidamente No desespero quis voltar ao incriado extinguir tudo e gerar novos seres que não fossem a sua imagem que não fossem divinos que gemessem que morressem e fossem humanos O criador lutou com o próprio espírito e o espírito como uma força diabólica in destrutível venceuo criando sempre a mesma expressão sem ele só Ele E as formas que saíam da força solitária e desdenhosa acompa nhavamno eternas e fatais Lentz horrorizavase de se ver a si mesmo numa multiplicação infernal Do alto da montanha onde chegara pre cipitouse fugindo da multidão de fantasmas que o perseguiam amo rosos e escravos e que eram ele sempre ele Aproximouse do rio voou sobre este num impulso de salvação num desejo estranho de aniquilamento de alívio e parou Sobre o cristal das águas a sua ima gem o espreitava para o seguir ainda na morte E o delírio se repetia sob mil terríveis combinações nos dias serenos que abrasavam a alma frágil e desvairada do solitário E quan do nas noites sossegadas os tormentos da nova vida sobrehumana C A N A Ã não o mortificavam ele penetrava na solidão infecunda do espírito e errava pelo deserto ululando amesquinhado e cobarde Implorava a companhia tenebrosa do vento e o vento se calava àquela invocação satânica com os olhos ardentes e devoradores buscava em vão rea nimar as coisas que adormeciam A lua voltava para ele a sua lívida face de cadáver Um movimento de piedade trouxe Milkau à colônia Durante todo aquele tempo não esquecera o seu companheiro de destino E quando houve uma parada no processo veio ao Rio Doce Era ainda madrugada quando entrou no prazo e logo no jardim abandonado invadido pelo mato que não perdoa e está sempre atento ao descuido do homem Milkau adivinhou tudo A casa estava aberta e derrubado no chão ador mecia pesado o corpo de Lentz Permaneceram juntos na colônia até o dia seguinte O contato de Milkau alevantava e restabelecia o espírito do infeliz E agora num incomensurável pavor da solidão este se ia deixando governar pelo instinto da ligação universal e prendiase numa afeição estranhada e decidida a Milkau que o chamava ao Cachoeiro à defesa e ao consolo do sofrimento Um raio da luz que irrompia do martírio de Maria chegou a Lentz que obedecendo ao poder do inconsciente contra que tanto lutara curvou a cabeça e seguiu o amigo Na estrada quando tudo se animava à passagem deles e ventos e pás saros e árvores cantavam em volta Lentz recapitulando a curta história da sua desilusão dizia consigo Ah como tenho saudades dos meus sonhos de audácia dos meus desejos de ambições E tudo isto que eu e ele ambicionávamos fazer é nada Encontramos no nosso caminho a dor mesquinha e poderosa e ela nos guia e nos transforma G R A Ç A A R A N H A Toda a maldade nele era obra da imaginação refletia Milkau acom panhandoo com o carinho dos olhos Mas não é a idéia que governa o homem é o sentimento A nossa força individual não é nada em com paração à força acumulada na vida Que pode um só contra a corrente imperiosa e dominadora formada pelas primeiras lágrimas descendo das origens do mundo avolumandose tudo arrastando tudo vencendo até que um dia seja um perene preamar de bondade e doçura Que pode o homem insignificante e inútil erguer para desviar o curso o Ímpeto da piedade e da simpatia Chegando ao Cachoeiro foram logo à cadeia Durante a ausência de Milkau tinha conhecido Maria uma nova tortura a que sai das perse guições da sensualidade Com a sua brancura com a estranheza da sua raça ela vinha já de algum tempo alvoroçando os soldados negros A princípio o aspecto severo da desgraça os afastara envolvendoa num círculo de respeito e de proteção imperceptivelmente porém a con vivência e a familiaridade foram permitindo que neles se erguesse o desenfreado desejo Procuraram seduzila comunicandolhe por instin to a lubricidade mas quando a viram insensível e obstinada nas suas recusas fugindo ao velho costume da prisão onde as mulheres encar ceradas eram amantes dos guardas enfureceramse e empregaram para vencêla o medo a força e a crueldade As suas noites eram agitadas escapando ela sempre de ser violada pelos soldados assanhados e bêba dos Debatiase nas mãos deles e salvavase ou pela disputa sensual da posse que entre os dois pretos se formava ou pelo alarido levantado diante do qual se recolhiam cobardes e espavoridos E os dias que lhe concediam eram para vingar as lutas da noite obrigandoa a trabalhar para eles como uma escrava dandolhe pancadas negandolhe alimento E Milkau agora na frouxa luz da prisão notava surpreendido quão ter rível fora a devastação da miséria no corpo da rapariga Não se engana C A N A Ã va ele sobre a exata situação da pobre vítima por mais que esta lhe sor risse mostrandolhe vislumbres de esperança e traços de resignação querendo com esforço apagar a história do seu martírio escrita in delevelmente nos olhos famintos no rosto murcho nas mãos de esqueleto e no peito mirrado Milkau teve a impetuosa ânsia de arre batála dali e carregála afoitamente para longe e pôla onde as feras não fossem homens Durante o tempo que aí passaram Lentz ficou silencioso Pela pri meira vez se via num cárcere misturandose com criminosos e répro bos A sua velha alma aristocrática estremecia de repugnância e o espíri to de sonhador soberano e forte que não se lhe tinha extinguido de vez estranhava o contato da miséria revoltavase por se libertar da moleza da piedade ardendo em remontar às alturas do silêncio e do império Mas era tarde a garra da compaixão o prendia ao mundo que ele tam bém assim fecundava com o seu quinhão de sofrimento Na rua quando saíram da cadeia Milkau ouviu como um eco do seu próprio coração estes murmúrios Pobre mulher Como é triste a vida Era o novo Lentz que falava Comovidos e angustiados os dois amigos separaramse Enquanto o outro voltava a se recolher ao repugnante albergue do Cachoeiro Milkau seguia sem propósito vagando para as bandas do Queimado a região abandonada onde fora a antiga cultura do lugar e que atravessara no dia de esperança em que chegou à colônia Entrou na velha terra exausta e morta Ainda no chão que pisava estavam os marcos deixados pela geração extinta e vencida Um dia tudo o que fora vida já por ali transitara E agora restos disformes de habitações humanas se sustinham petrificados dolorosos e nus e trepadeiras mesquinhas e bravas se esforçavam por cobrirlhes o pejo de G R A Ç A A R A N H A ruínas mutiladas Nas colinas baixas e humildes da redondeza destroços de pedras miravam com suas caladas máscaras de monstros a grande Terra em frente as altas e viçosas montanhas onde se fartava a força dos invasores Perdido no largo e desdobrado espaço o Santa Maria desembaraçado das pedras que antes o faziam vibrar alegre e vivaz pas sava vagando mofmo e lento Tudo era lânguido e vazio e descampado e deserto Num canto da planície uma moita de árvores extinguiase mansamente Elas vinham de outrora e ainda eram a derradeira vida que ali restava Cadáveres de árvores derrubadas desmanchavamse em pó e outras de pé tocadas pela morte vestiamse de púrpura e ouro numa transfiguração gloriosa O sol impaciente precipitavase a mergulhar nos braços verdejantes e opulentos da Terra futura e mostrava ao passado a outra face roxa fria e morta No silêncio dos ventos cabras aconche gadas aos filhos roçavamse nos oitões das ruínas ruminando pre guiçosas Pássaros no céu desmaiado buscavam o pouco da noite Àquela hora no teatro da Agonia Milkau cismava Não eu não te fujo doce Tristeza Tu és a reveladora do meu ser a razão da minha energia a força do meu pensamento Sobre ti me recli no como se foras um insondável e voluptuoso abismo tu me atrais e estendote os braços nesse doloroso e invencrvel amor com que o sonho ama o passado a morte ama a vida Antes de te conhecer pérfida ilusão me entorpecia os sentidos e a minha frívola existência foi a lúgubre mar cha do inconsciente risonho por um caminho de dores Nesse momento eu ainda te não buscava sol moribundo No meu rosto se estampava o riso contínuo e fatigante e ele afastava de mim os homens para quem a eterna alegria é morte Mas tu Tristeza não estavas longe Tu te sen taste à minha porta numa postura de resignação e silêncio E como esperaste Um dia a alegria de cansada se extinguiu e então soou para CANAÃ mim a hora da paz e da calma Entraste E como desde logo amei a nobreza do teu gesto Oh Melancolia minha alma é a morada tranqüi la onde reinas docemente Milkau caminhou ainda iluminado pelos últimos clarões da luz No céu não passavam mais os bandos das aves O sol resvalara de todo no fundo do horizonte A aragem se calara O débil vagido da cachoeira ia se perdendo para sempre E Milkau cismava A dor é boa porque faz despertar em nós uma consciência perdida a dor é bela porque une os homens É a liga intensa da solidariedade universal A dor é fecunda porque é a fonte do nosso desenvolvimento a perene criadora da poesia a força da arte A dor é religiosa porque nos aperfeiçoa e nos explica a nossa fraqueza nativa Tristeza tu me fazes ir até ao fundo das remotas raízes do meu espírito Por ti compreendo a agonia da vida por ti que és o guia do sofrimento humano por ti faço da dor universal a minha própria dor Que o meu rosto não mais se desfigure pelas visagens do riso cansado e matador dáme a tua serenidade a tua séria e nobre figura Tristeza não me desampares Não deixes que o meu espírito seja a presa da vã alegria Curvate sobre mim envolveme com o teu céu protetor Conduzeme oh benfazeja aos outros homens Tristeza salutar Melancolia 1 2 Maria A desgraçada estremeceu e com as mãos hirtas estiradas afastou de si o rosto que se inclinara sobre ela Nas torturas do pesadelo parecia lhe que beiços roxos sedentos e viscosos lhe buscavam os lábios Maria sou eu repetiu Milkau Ela abriu os olhos e ficou deslumbrada A sua mão agora branda e lân guida tateava incerta para se certificar da súbita e estranha aparição do amigo E gestos infantis e leves roçavam pela barba de Milkau numa inconsciente carícia Vamos Levantate disselhe ele baixo e com firmeza sacudin do o morno carinho recolhendo e enfeixando com energia as suas forças mais intensas Obedecendo Maria ergueuse e pela mão de Milkau foi seguindo pe la casa meio escura No corredor a claridade da noite que entrava pela porta da rua aberta como de costume deixava ver o corpo de um sol dado negro dormindo numa postura brutal como uma figura tosca e arcaica A prisioneira alarmada quis recuar Milkau tomoulhe as mãos G R A Ç A A R A N H A com império e passou com ela sereno e forte ao lado da sentinela con duzindoa para a noite e para a liberdade Fora o ar sutil e frio que lhe penetrava nas carnes sonolentas e tépi das o céu cristalino a cintilação das estrelas a largueza a imensidade do espaço davam à fugitiva uma deliciosa vertigem e num esmorecido colapso ela vacilou e veio se apoiar nos braços de Milkau que a foi ar rastando vagarosamente Enlaçados caminhavam pela cidade calada e adormecida Iam mo rosos os passos dela eram vacilantes e os pés por tanto tempo entor pecidos tropeçavam nas pedras soltas da rua O silêncio inquietador enchialhe o espírito do antigo pavor que se não extingue nunca Uma ou outra vez cães sonolentos despertavam com o passar dos vultos e ladrando se arremessavam em vão contra eles E depois tudo voltava ao sossego ameaçador que parecia ser a cada instante bruscamente inter rompido pelas vozes da perseguição surgindo das casas acordadas Mas só lhes chegava o chiar monótono e eterno da cachoeira Dobraram de cautela espiando com os olhos imensos e dilatados pela treva as formas apagadas e sinistras do mundo Era no ouvido dela assustadiça e trêmu la que Milkau ia falando Fujamos para sempre de tudo o que te persegue vamos além aos outros homens em outra parte onde a bondade corra espontânea e abundante como a água sobre a terra Vem Subamos àquelas monta nhas de esperança Repousemos depois na perpétua alegria Vamos correl2 Deixaram a cidade e agora sem receio de despertála galgavam a montanha lépidos e radiantes A fria rigidez criada pelo terror se fora dos braços de Maria que se prendiam aos de Milkau tépidos e brandos Subindo perdiam eles de instante a instante a vista do Cachoeiro embaixo aos seus pés coberto pelo manto cinzento e vaporoso da bru C A N A Ã ma sobre que passava a luz exausta da noite úmida levantando ali uma fosforescência vaga de nebulosa E debaixo desse manto se desenhavam seres fantásticos colossais gigantescos sem forma ainda imaginada Um trecho do Santa Maria lívido morto cortava como um gládio fume gante a várzea do Queimado onde as colinas baixas semelhavam corpos deitados de heróis antigos e mutilados corcundas e aleijões Depois nada mais viram subiram ainda e entraram no bojo da mata Os braços de Maria retesaramse de novo e apertaram os de Milkau Havia um rumor contínuo e aflitivo de vento mau nas folhas da grande massa Iam inquietos afundando os olhos na infindável negrura donde vinha o clamor do mistério e do sofrimento das árvores castigadas E o vento implacável ia passando fazendoas gemer rumorosamente No vão das trevas de espaço a espaço pelas frestas descia a claridade e do jorro de luz se formava dentro da floresta uma coluna alevantada do chão para o céu atravessando o teto ondeante e docemente iluminada pelos reflexos das árvores espectrais Estreitados um ao outro aspirando o aroma capitoso e perturbador que se desprendia das flores noturnas caminhavam velozes Milkau repetia no ouvido da companheira o seu apelo de sedução É a felicidade que te prometo Ela é da Terra e havemos de achá la Quando vier a luz encontraremos outros homens outro mundo e aí É a felicidade Vem vem Assim espantava o terror e Maria já se animava recolhendo nessa voz acariciadora o canto mágico dos seus esponsais com a ventura Subiram voando voando O caminho deixou a mata sombria e saiu pelas alturas descobertas Era pedregoso escasso margeando o despenhadeiro O passo da fuga moderou Cautelosos e arquejantes escalavam a subida Milkau não mais falava e os seus olhos mergulhavam no abismo e se perdiam fascinados C A N A Ã confuso e dos seus braços esvaídos desprendeu Maria Ela lívida espa vorida sentindose em liberdade deitou a correr veloz pela vereda de pedra que aos seus pés medrosos e vivos se tornava macia e segura Milkau reanimandose seguiua E as duas sombras enormes na obscuridade da treva iam desfilando sinistras e rápidas pela aresta da barranca Num momento galgaram o alto da montanha e pasmaram a vista nos livres descampados por onde descia a estrada A agonia de Milkau se desmanchava à vista da planície dilatada e benfazeja os ruídos desesperados e atraentes do rio morriam atrás o abismo negro e assom broso passava como o tormento de uma vertigem e agora eles se pre cipitavam numa campina suavemente esclarecida pela noite maravilhosa e límpida Corriam corriam Atrás de si ouvia ela a voz de Milkau vibrando como a modulação de um hino Adiante Adiante Não pares Eu vejo Canaã Canaã Mas o horizonte na planície se estendia pelo seio da noite e se con fundia com os céus Milkau não sabia para onde o impulso os levava era o desconhecido que atraía com a poderosa e magnética força da ilusão Começava a sentir a angustiada sensação de uma corrida no Infinito Canaã Canaã suplicava ele em pensamento pedindo à noite que lhe revelasse a estrada da Promissão E tudo era silêncio e mistério Corriam corriam E o mundo pare cia sem fim e a terra do Amor mergulhada sumida na névoa incomen surável E Milkau num sofrimento devorador ia vendo que tudo era o mesmo horas e horas fatigados de voar e nada variava e nada lhe apare cia Corriam corriam Apenas na sua frente uma visão deliciosa era a transfiguração de Ma ria Animada transmudada pelo misterioso poder do Sonho a Mulher enchia de novas carnes o seu esqueleto de prisioneira e mártir novo sangue batialhe vitorioso nas artérias inflamandoas os cabelos cres G R A Ç A A R A N H A ciamlhe milagrosos como florestas douradas deitando ramagens que cobriam e beneficiavam o mundo os olhos iam iluminando o caminho e Milkau envolto no foco dessa gloriosa luz acompanhava em amargu rado êxtase a sombra que o arrebatava Corriam corriam E tudo era imutável na noite A figura fantástica sempre diante veloz e intangí vel ele atrás ansiado naquela busca fatigante e vã sem a poder alcançar e temendo dissolver com a sua voz mortal a dourada forma da Ilusão que seguia amando Canaã Canaã pedia ele no coração para fim do seu martírio E nunca jamais lhe aparecia a terra desejada Nunca jamais Corriam corriam A noite enganadora recolhiase o mundo cansava de ser igual Milkau festejou num frêmito de esperança a deliciosa transição Enfim Canaã ia revelarse A nova luz sem mistério chegou e esclareceu a várzea Milkau viu que tudo era vazio que tudo era deserto que os novos ho mens ainda ali não tinham surgido Com as suas mãos desesperançadas tocou a Visão que o arrastara Ao contato humano ela parou e Maria volveu outra vez para Milkau a primitiva face moribunda os mesmos olhos pisados a mesma boca murcha a mesma figura de mártir Vendoa assim na miseranda realidade ele disse Não te canses em vão Não corras É inútil A terra da Pro missão que eu te ia mostrar e que também ansioso buscava não a vejo mais Ainda não despontou à Vida Paremos aqui e esperemos que ela venha vindo no sangue das gerações redimidas Não desesperes Sejamos fiéis à doce ilusão da Miragem Aquele que vive o Ideal contrai um empréstimo com a Eternidade Cada um de nós a soma de todos nós exprime a força criadora da utopia é em nós mesmos como num indefinido ponto de transição que se fará a passagem dolorosa do sofri mento Purifiquemos os nossos corpos nós que viemos do mal ori ginário que é a Violência O que seduz na vida é o sentimento da per C A N A Ã petuidade Nós nos prolongaremos desdobraremos infinitamente a nossa personalidade iremos viver longe muito longe na alma dos descendentes Façamos dela o vaso sagrado da nossa ternura onde depositaremos tudo o que é puro e santo e divino Aproximemonos uns dos outros suavemente Todo o mal está na Força e só o Amor pode conduzir os homens Tudo o que vês todos os sacrifícios todas as agonias todas as revoltas todos os martírios são formas errantes da Liberdade E essas expressões desesperadas angustiosas passam no curso dos tempos morrem passageiramente esperando a hora da ressurreição Eu não sei se tudo o que é vida tem um ritmo eterno indestrutível ou se é informe e transitório Os meus olhos não atingem os limites inabor dáveis do Infinito a minha visão se confina em volta de ti Mas eu te digo se isto tem de acabar para se repetir em outra parte o ciclo da existência ou se um dia nos extinguirmos com a última onda de calor que venha do seio maternal da Terra ou se tivermos de nos des pedaçar com ela no Universo desagregarnos dissolvernos na estra da dos céus não nos separemos para sempre um do outro nesta ati tude de rancor Eu te suplico a ti e à tua ainda inumerável geração abandonemos os nossos ódios destruidores reconciliemonos antes de chegar ao instante da Morte Notas 1 Queimado Povoação onde em 1 9 de março de 1 849 se deu célebre revolta de escravos que acreditavam que ajudando na construção da igreja de São José seriam alforriados por seus senhores o que não ocorreu Dali se partia a cavalo para o Porto do Cachoeiro 2 Porto do Cachoeiro hoje Santa Leopoldina municipio com 7 1 3 km de extensão a 44 km da capital Vitória Era na época em que Graça Aranha lá judicou o maior municipio do Estado do Espírito Santo ocupando um quarto de sua extensão ou cerca de 10000 km e ainda influenciava economicamente a região do rio Doce Minas Gerais A palavra cachoeira forma masculina é registrada em 1 817 por Francisco Alberto Rubim na Memória estatística da Província do Espírito Santo revista do Instituto Histórico e GeoBTlpco Brasileiro tomo XIX p 301 Rio 1 900 Conquanto não se tenha determinado a origem desse uso não é termo regional exclusivo do Espírito Santo como o diz o dicionarista Aurélio pois Alberto Lamego O homem e a serra Rio 1 950 p 224 e 229 registra cachoeira no Estado do Rio nome antigo da atual Cardoso Moreira 3 Santa Maria da Vitória rio que nasce na serra do Garrafão e desce encachoeirado até o Porto do Cachoeiro sendo antigamente navegável por lanchas e canoas daí até a baía de Vitória onde deságua em forma de delta no manguezal conhecido como Lameirão Não con fundir com o Santa Maria do Rio Dolce afluente deste que deságua na cidade de Colatina 4 O guia foi identificado como Antônio Nunes de Siqueira Orgulhavase de figurar como personagem do romance célebre e foi apelidado de Canaã Foi empregado de comércio escrivão de coletoria e oficial do Registro Civil em Santa Leopoldina C A N A Ã 1 5 Este longo diálogo como outras conversas de Milkau com Lentz reflete as idéias filosó ficas de Graça Aranha hauridas no monismo aprendido no Recife com Tobias Barreto Os estudiosos encontram nele traços de Schopenhauer e Nietzsche 16 Toda a movimentação da produção do café na região elevado enquanto fértil e nova a terra era conduzida para o porto fluvial em tropas de burros Dai seguia para Vitória em grandes canoas que levavam até oitenta sacas e eram manejadas pelos barqueiros Cf Canoeiras do Santa Maria de João Ribas da Costa Rio IBGE e Por vales e serras do Espírito Santo a epopéia de tropas e tropeiros de Ormando Moraes 2a ed IHGES 2000 17 Estas figuras foram em parte identificadas por Augusto Lins O velho sapateiro venerando como um santo era Andréa Gasparini tronco de tradicional família capixaba O ferreiro era José Tommasi e o alfaiate era Bortolo Armani Não foi identificado o mestre da banda 1 8 O autor pretende dar uma explicação sociológica sobre a língua mostrando que o colono não desejava aprender português enquanto os brasileiros logo aprendiam a falar alemão 1 9 A festa em Jequitibá teria sido realizada em casa do comerciante Florêncio Friebe pro prietário de dez tropas de burros A localidade Altona não foi identificada conquanto seja nome de uma cidade próxima a Hamburgo na Alemanha Luxemburgo é povoação do mu nicípio de Santa Maria do Jetibá corruptela de Jequitibá localizado a 78 km da capital Vitória um dos núcleos onde há maior número de descendentes de pomeranos no Brasil 20 O autor descreve com desprezo o triunvirato judiciário notoriamente representante de uma estrutura externa incompreensível para os colonos Notese que Graça Aranha era juiz municipal mas como se demonstra na Introdução saiu da comarca incompatibilizado com seus colegas 2 1 Jacob Müller foi identificado como Florêncio Friebe embora Augusto Lins diga que se trata do comerciante Alberto Ricardo Dietze 22 Luíza Wolf e Martin Fidel Colonos não identificados pelas pesquisas 23 Maria Perutz é a Guilhermina Lübke da vida real Ver Introdução para acompanhar o processo judicial contra ela G R A Ç A A R A N H A 24 Este episódio demonstra mais uma vez a profunda insatisfação do autor com a justiça que se praticava então 25 Uso da cachaça Num esforço adaptativo os imigrantes logo aderiram à cachaça à fa rinha de mandioca ao inhame que substituía o trigo no fabrico do brote pão que ainda hoje se faz 26 Paulo Maciel é o alter eao do autor O capitão escrivão Pantoja apelidado por Graça Aranha de Maracajá é o politico coronel Francisco Rodrigues dos Passos Augusto Lins con testa op cito na Bibliografia p 22 e 223 o perfil negativo que dele traça o autor de Canaã 27 Inflexibilidade da irmã do pastor Diversos pesquisadores têm demonstrado o conflito e a pretensa superioridade dos que falam lingua alta ou seja o alemão para com os que se expressam no dialeto da Pomeroinia 28 Episódio dos ciganos por certo lembrança da infância do autor no Maranhão Não se verificou a existência de ciganos na área da colônia 29 A partir daqui é relatado o drama da escorraçada Maria Perutz a Guilhermina da vida real descrição fortemente realista 30 O pequeno Fritz era Franz Eugênio Holzmeister esmagado por um barril de vinho no dia 7 de novembro de 1 890 no armazém do pai Luiz que no romance se chama Otto Bauer Graça Aranha comungou do sofrimento da família e visitoua no dia do infausto acontecimento Um ramo da família voltou para Innsbruck Áustria de onde era originária tendo Urbano se tornado professor do Instituto Bíblico do Vaticano e Clemens granjeado fama como arquiteto No local do acidente encontrase hoje o Museu do Colono 3 1 O diálogo entre Paulo Maciel e Milkau é na verdade um monólogo do autor seu fluxo de consciência 32 A fuga de Milkau e Maria totalmente fictícia se dá pela descrição do autor subindo o rio Santa Maria desde o Porto do Cachoeiro em direção às montanhas centrais do Espírito Santo Esta obra composta em Perpétua 1 2 1 7 foi impressa com miolo em papel offset 75g e capa em cartão supremo 250g Impressão e Acabamento Gráfica e Editora Alaúde Itda R Santo Irineu 170 SP Fone 11 55754378 I R O M A N C E I Canaã é um romance de idéias Canaã é a história de uma paixão a fuga de Milkau e Maria em direção à terra da promissão e do amor Documento social poema em prosa debate filosófico o livro de Graça Aranha é um marco da literatura brasileira Nesta edição que comemora 1 00 anos da sua publicação original Canaã comprova sua condição de clássico continuando a exercer fascínio e interesse sobre os leitores das novas geraçõ s Visitenos wwwediourocombr

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GRAÇA ARANHA CANAÃ CANAÃ GRAÇA ARANHA CANAÃ 2ª Edição A68c Copyright 2002 by Ediouro Publicações SA Direitos cedidos pela Fundação Graça Aranha Coordenação Editorial SHEILA KAPLAN Preparação de Originais MARIA J OSÉ DE SANT ANNA Produção Editorial CRISTlANE MARINHO Assistentes de Produção J ULlANA FREIRE FELIPE SCHUERY CHRISTlANE CARDOZO E GILMAR MIRÂNDOLA Revisão RITA GODOY E FLAVIO MELLO Fotogrcifias HUMBERTO CAPAI Capa Projeto Gréifico e Editoração MIRIAM LERNER Imagem da Capa Domingo Garcia y Vásquez Paisaaem com rio c 1900 Óleo sobre tela 25 x 35 em 04 Gerência de PCP LUCIENE BAPTISTA Produção Gréifica J AQUELlNE LAVÓR CIP BRASIL CATALOGAÇAONAFONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ Aranha Graça 18681931 Canaã Graça Aranha prefácio de Renato Pacheco Ed anotada e ilustrada Rio de Janeiro Ediouro 2002 n Edição comemorativa do centenário da primeira edição ISBN 8500010509 1 Romance brasileiro l Pacheco Renato 1928 lI Título 020510 CDD 86993 CDU 8690813 876 5 43 2 Todos os direitos reservados ü Ediouro Publicações Ltda Rua Nova Jerusalém 345 Bonsucesso Rio de Janeiro RJ CEP 21042230 Te 021 38828200 Fax 21 38828212 I 8313 wwwediourocombr Prefácio e agosto de 1960 a agosto de 1964 vivi em Santa Leopoldina ES antigo Porto do Cachoeira ombro a ombro com os descendentes daqueles lusobrasileiros e imigrantes de origem germânica e italiana tão bem descritos por Graça Aranha no Canaã Embebime do ambiente e ele me enfeitiçou A época a região atra vessava um dos seus piores momentos fruto da decadência que se acen tuara desde a crise de 29 culminando em mais uma das grandes en chentes periódicas do rio Santa Maria desta feita em março de 1960 Naquele tempo no Espírito Santo havia um pequenino círculo de admiradores do romance de Graça Aranha o desembargador Eurípedes Queiroz do Valle presidente da Academia Espíritosantense de Letras o promotor de justiça Luiz Holzmeister o professor Guilherme Santos Neves o médico e escritor Ciro Vieira da Cunha o também médico Cristiano Ferreira Fraga e sobretudo o advogado Augusto Emílio Este lita Lins autor da mais importante obra sobre o assunto Graça Aranha e o Canaã A eles aderi entusiasticamente quando do centenário do nasci mento do escritor maranhense em 1968 juntandose a nós no Rio de Janeiro os membros da Fundação Graça Aranha com o ministro Renato 7 GRAÇA ARANHA Almeida à frente bem como o advogado Clóvis Ramalhete futuro mi nistro do Supremo Tribunal Federal e o jornalista Theomar Jones Tentei mesmo sem maior êxito dar continuidade à história com meu romance Fuga de Canaã em que estudo a decadência de uma família ale mã no Espírito Santo romance editado em 1981 pela Fundação Ce ciliano Abel de Almeida e transformado em filme pelo cineasta Sérgio Medeiros Sem maior êxito reafirmo porque outros eram os tempos e o livro de Graça Aranha em sua singularidade é insuperável Por tais motivos com imensa satisfação participo deste trabalho con junto da Ediouro e do Programa de PósGraduação em Letras da Uni versidade Federal do Espírito Santo para no ano do centenário da pri meira edição do Canaã lançarmos esta edição comemorativa anotada e ilustrada do clássico romance O leitor verá que muitos problemas versados em forma de ficção nos primórdios da República especialmente referentes à organização política e também judiciária do país ainda nos afligem nos dias iniciais do Século XXI Poderá ainda apreciar as elevadas preocupações filosóficas e o alto nível estético da obra O autor procurou trazer para seu romance as idéias modernas de então o que confirma sem favor algum a opinião antiga do crítico José Veríssimo de que se trata de um grande escritor Vitória do Espírito Santo junho de 2001 Renato Pacheco da CulturalES pesquisador associado do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espirito Santo Programa de PósGraduação em Letras Universidade Federal do Espirito Santo 8 Canaã Romance Singular INTRODUÇÃO 1 o cenário mbora o incentivo ao povoamento das terras virgens do Brasil com estímulo à imigração de mãodeobra livre tenha ocorrido logo após a vinda da família real portuguesa para nosso país em 1808 somente de 1841 em diante é que com verbas orçamentárias próprias tal apoio se tornou efetivo Estes imigrantes passaram a chamarse genericamente de colonos por extensão aos que viessem trabalhar em fazendas como par ceiros notadamente nas fazendas de café em São Paulo O governo cen tral empreendeu então criar colônias imperiais no Rio Grande do Sul Santa Catarina Paraná Espírito Santo e Bahia A preocupação com a imi gração se acentuou com o fim do tráfico de escravos e a vontade política de que fossem ocupadas as grandes áreas devolutas isto é terras perten centes ao governo No caso do Espírito Santo que estamos examinando 90 do território eram cobertos por exuberante floresta da Mata Atlântica Sua região cen tral tem relevo montanhoso solo oriundo de rochas cristalinas bom suprimento de água muitas cachoeiras e estreitos e férteis vales Estes 9 GRAÇA ARANHA solos no entanto são ácidos e pobres e se não forem convenientemente trabalhados são invadidos por samambaias Em 1857 o presidente da província Pereira de Barros mandou fazer grandes derribadas e queimadas nas áreas escolhidas para abrigar os imi grantes e como havia dificuldade de mãodeobra capaz de enfrentar a flo resta virgem usou para a abertura de picadas e definição de lotes índios moradores de Santa Cruz no litoral norte da província A medição dos lotes ou prazos porque o ressarcimento de seu preço era feito a prazo geralmente de 25 a 30 hectares era feita de modo precário por agrimensores práticos com correntes de ferro de 10 a 30 metros o que na ultrapassagem de obstáculos como córregos ou pedras causava grandes diferenças objeto de futuras controvérsias legais entre os compradores O barão suíço Tschudi em Relatório de 1860 chega a informar que alguns agri mensores fixavam as parcelas a olho nu declarando que alguns colonos de suas 62500 braças só haviam recebido 6000 a 8000 braças quadradas o que é confirmado pelo Relatório do Ministério da Agricultura de 1867 A despeito de enormes dificuldades iniciais muitos colonos graças ao plantio do café em terras novas prosperaram Esta prosperidade se refletiu entre os comerciantes do Porto do Cachoeiro hoje Santa Leopoldina que tinha uma longa rua do Comércio de cerca de um quilômetro à beira do rio Santa Maria da Vitória O frnanciamento aos agricultores rendia por tentosos lucros aos comerciantes que enriqueceram em sua quase totali dadeAo tempo de Graça Aranha eram eles entre outrosAlberto Sebastião WoIkart Luiz Holzmeister Franz Meyer Frederico Ewald João Vervloet e Inácio Bermudes Este município muito florescente em 1890 se originara da colônia Santa Leopoldina antes chamada de Santa Maria nome do rio que lhe banha as terras e foi a segunda colônia criada na então província do Espírito Santo através do Aviso de 27 de fevereiro de 1856 do Ministério do Im 10 período o Ministério da Agricultura só foi criado em 1860 No ano de 1860 de volta de sua viagem de inspeção às províncias do norte o imperador Pedro II também visitou o Espírito Santo e suas florescentes colônias Em Santa Leopoldina após a tradicional recepção com fogos de artifício missas e banquetes o imperador enquanto lhe encilhavam os cavalos conversou em alemão com filhas dos colonos as quais para renderlhe homenagem dançaram uma valsa ao som de uma gaita de fole Em seu Diário o jovem imperador registrou que ficara satisfeito com esta festa inocente Em 1879 já contava a colônia com cerca de 7000 habitantes e uma produção de café estimada em 100000 arrobas anuais sendo depois de Blumenau e Dona Francisca em Santa Catarina a maior colônia imperial A emancipação de Santa Leopoldina já então adotando o nome de Porto do Cachoeiro se deu em 1884 Em 24 de dezembro de 1889 pouco após a instalação do governo republicano foi instalada a comarca por ordem de um filho da terra o primeiro presidente republicano do Estado Afonso Cláudio de Freitas Rosa É neste cenário às margens do rio Santa Maria em meio a estreitos vales entre elevadas montanhas que José Pereira da Graça Aranha o jovem juiz municipal vai viver de agosto a novembro de 1890 2 O autor Quem era José Pereira da Graça Aranha que aos 22 anos vinha ser juiz municipal na zona de colonização teutoitaliana das montanhas centrais do Espírito Santo Ele nascera em São Luís do Maranhão em 1868 Aluno e seguidor de Tobias Barreto na Faculdade de Direito do Recife absorveulhe as idéias filosóficas e nunca se separou dele intelectualmente GRAÇA ARANHA Muito jovem ainda aos 18 anos fora professor de direito e logo de pois de formado promotor público em Guimarães e Rosário e juiz de direito em Vitória e Arari localidades todas essas no Maranhão nos anos de 1886 a 1889 e em Campos RJ Para o Porto do Cachoeiro foi nomeado em 1890 como juiz muni cipal com atribuições na área de inventários órfãos e preparo de proces sos criminais Passou a ser subordinado hierarquicamente ao juiz de direito no caso Domingos de Andrade Com a ressalva de que algum processo se tenha extraviado ou per dido verificamos na comarca de Santa Leopoldina que Graça Aranha lá esteve de 11 de agosto a 25 de novembro de 1890 pouco mais de três meses Seus despachos são manuscritos simples e salvo os dias de via gens ao interior para abertura de arrolamentos são no máximo 4 por dia com a curiosidade de que alguns foram dados em domingos Ao maranhense causou espécie a grande movimentação da próspera cidade então centro comercial importante porque ponto final das tropas de burros que traziam café de vasta região que se estendia oeste adentro até o rio Doce em Minas Gerais do Porto do Cachoeiro o produto era conduzido pelo rio Santa Maria em grandes canoas até o porto maríti mo de Vitória A deduzir da leitura do Canaã no qual o juiz municipal Paulo Maciel é o alter ego do autor Graça Aranha não se deu bem com seus colegas nem com os serventuários da Justiça Com pouco tempo no dia 28 de novembro o escrivão interino Francisco Pereira das Neves informou nos autos que a Justiça Pública movia contra João Dumer e outros que o juiz municipal tinha sido chamado a serviço público à capital do Estado Não mais voltou ao cargo não tendo sido encontrado ato de sua exoneração O que teria acontecido com o jovem magistrado O que teria impeli do Graça Aranha a deixar inopinadamente seu cargo de juiz municipal 1 2 Possivelmente duas querelas processuais Primeiro a pressão para que não tivesse andamento o inventário de Manoel Pinto dAlvarenga Rosa da família do presidente do Estado no qual havia diversos pedidos conflitantes e no qual contra as solicitações gerais o juiz municipal em 19 de novembro nomeara curador na pessoa de Manoel Lírio de Sales farmacêutico da cidade Esta decisão seria em 4 de novembro do ano seguinte anulada pelo suplente de juiz substituto Joaquim SantAna de Passos O segundo caso mais grave ocorreu no inventário de Simão Walker em que era inventariante Ana Gonring Walker No dia seguinte à assunção no cargo Graça Aranha ouvindo pessoas idôneas a saber João Vervloet José Gregório Silva e Luiz Holzmeister julgou boa a justificacão da venda de um lote de terra o que em tom de censura foi anulado com ordem de sobrepartilha às fls 42 v dos autos também a 19 de novembro pelo juiz de direito Domingos Marcondes de Andrade O prolator da decisão anulada com letra tremida na mesma data deu um despacho em tempo mandando avaliar o lote e determinou se cumprisse a decisão que contraria seu prévio entendimento Deixa a comarca abespinhado e sua exoneração do cargo só ocorreria em 19 de janeiro do ano seguinte quando no Espírito Santo ele não mais estava A nosso ver essa briga notória com seu superior foi um bem pois tirou o jovem bacharel da judicatura lançandoo na diplomacia e na literatura e dando origem ao Canaã editado 11 anos após na França GRAÇA ARANHA 3 E o que tinha de acontecer acontecia Canaã é um romance de entrecho simples Milkau e Lentz são dois imigrantes alemães que resolvem trabalhar na zona rural da colônia imperial de Santa Leopoldina na província do Es pírito Santo Em suas conversas relembram diversos passos de suas vidas e travam acalorados debates envolvendo o futuro da colônia e do Brasil Em um baile da roça Milkau se encanta com Maria Perutz bela colona a qual vai encontrar novamente caída em desgraça grávida e alojada em uma pensão por favor trocando casa e comida por seu trabalho O drama da moça é relatado no romance Quando a criança nasce e morre ao lado de um chiqueiro Maria é presa e processada por infanticídio Milkau não se conforma com o que considera injustiça e consegue tirar a moça da cadeia fugindo com ela para as montanhas ouvindo o marulhar dos cachoeiras e com a promessa de nova vida baseada no amor O livro portanto além de suas reflexões filosóficas e análises socioló gicas contém um segundo romance dentro do romance que será objeto de nosso interesse nesta seção Maria Perutz no romance Guilhermina Lübke na realidade era uma jo vem de 23 anos criada ou seja empregada doméstica em casa de Fre derico Küster no distrito de jequitibá Na madrugada de 3 de agosto de 1889 deu à luz sem qualquer assistência uma criança do sexo masculino jamais se poderá saber se a criança nasceu viva ou morta diante da fraque za das provas existentes nos autos No romance Graça Aranha dáa como nascida viva e morta pelos porcos na clássica seqüência do capítulo nono Hitta Küster filha do patrão de Guilhermina de 16 anos indo procu rar um ninho de pato encontrou junto a um chiqueiro o cadáver de uma criança recémnascida sobre umas pedras e deixando o mesmo no esta do em que o tinha visto correu e foi dar parte a sua mãe 14 CANAÃ Henriqueta a mãe de 54 anos natural da Prússia imediatamente cha mou a mulher do vizinho Rodolfo Stuhr assim como Carlos Nink e sua mulher para verificar a ocorrência no local referido pela filha Nink escolhido para retirar o corpinho que jazia entre as pedras notou que ele tinha no pescoço rolos de ramas de capoeira e a seguir deposi touo dentro de um caixão cobrindoo segundo depoimento de sua esposa Augusta prussiana de 49 anos com umas pedras para não ser o cadáver estragado pelos animais Stuhr foi encarregado de comunicar o fato ao subdelegado Luiz Manoel dos Passos Ferreira o qual de imediato nomeou peritos nas pessoas de João Pereira da Conceição residente no Recreio e de Guilherme Hasenack pastor luterano de Jequitibá atuando como testemunhas Ernesto Berger e o denunciante Às nove horas da noite do mesmo dia procedeuse à perícia tendo o laudo assinalado a presença de cadáver de uma criança recémnascida a trinta passadas de distância da casa de Küster a qual estava dentro de um caixão e nas proximidades de um chiqueiro de porcos era de cor branca do sexo masculino e estava com uma corda no pescoço e a cabeça esma gada Os peritos concluíram que a morte se dera por violência com estrangulamento com uso de corda Ouvida Guilhermina Lübke como suspeita de infanticídio declarou ainda na fase policial ser criada natural da Alemanha mais tarde diria ter 23 anos de idade e informou que botou um cipó no pescoço da criança a fim de participar à mulher de Küster e que não enterrou o cadáver a boas horas porque tinha temor do dono da casa Quatro dias depois foi concluído o inquérito policial tendo sido re metido então ao juiz municipal em Vitória pois ainda não fora criada a co marca de Porto do Cachoeiro O juiz Martins Rodrigues em 19 do mes mo mês de agosto deu visita do inquérito policial ao promotor Manoel I Pedro Vilaboim que ofereceu denúncia contra Guilhermina Lübke no dia 2 de outubro seguinte data em que o mesmo juiz municipal determinou se fizesse o sumário de culpa Entrementes foi proclamada a República e criada a comarca na antiga colônia O processo dormiu longo sono cartorário como que esperando que Graça Aranha entrasse em cena No dia 18 de agosto de 1890 foram conclusos os autos e daí para a frente o processo andou celeremente o promotor Antônio Buarque dos Reis pedira a máxima brevidade na inquirição das testemunhas pressionado talvez pelos líderes comunitários como se deduz do texto do romance A 26 de agosto sob a presidência de Graça Aranha foi qualificada a denunciada que se declarou analfabeta natural da Pomerânia e filha de João Lübke Na mesma data e no dia seguinte foram ouvidas as testemunhas já referidas no inquérito Pedro Alexandrino Mascarenhas foi nomeado curador da acusada a qual tendo como intérprete o cidadão Vítor Hugo foi finalmente interrogada a 16 de setembro seguinte Nesta peça processual declarou que seu filho nascera morto não se lembrando das circunstâncias em que se dera o parto por causa das muitas dores que lhe sobrevieram Não estão aí a mão e a mente do escritor penalizado com a situação da acusada traduzindo para o português a pobreza vocabular pomerana da jovem analfabeta O curador em sete laudas manuscritas em letra miúda em papel azul de forma romântica e passional porém convincente examina a prova e conclui por haver nascido morto o filho de sua curatelada A despeito da vibrante defesa Graça Aranha em despacho lacônico não fundamentado como se novo Pilatos lhe desagradasse não absolver uma inocente mandoua lavando as mãos a julgamento do Tribunal do Júri da comarca Seu recurso exofficio dentro da processualística da época foi negado pelo juiz de direito Domingos Marcondes de Andrade em despacho do dia 14 de CANAÃ novembro e logo no dia seguinte foi marcado o julgamento que não se realizou em virtude do impedimento de vários jurados O processo que estivera parado por mais de um ano agora em um mês e seis dias apesar de ser de difícil preparo por causa da barreira lingüísti ca e numa época em que não havia estradas viu seu rápido término fican do pronto para julgamento Graça Aranha toma as medidas burocráticas para a realização do novo julgamento e lavra seu derradeiro despacho nos autos em 24 de novembro e deixa como já vimos a comarca Ficou no entanto em sua memória a figura da jovem Guilhermina que a sua imaginação fértil iria transformar na imortal Maria Perutz Ele mesmo o confessa ao se defender da acusa ção de que plagiara a cena dos porcos de um conto de Júlia Lopes de Al meida em carta a José Venssimo datada de Londres 22 de maio de 1902 uma vez eu estava numa audiência e assisti processarse uma pobre mu lher por ter lançado aos porcos o filho no momento de nascer A acusação era clara a defesa obscura mas essa mulher pôs em mim olhos de um ape lo de misericórdia e de piedade que ainda tenho e terei toda a vida sobre mim esse olhar Acreditei na sua inocência e quando tive de escrever a ce na do Canaã o meu amor a minha compaixão reabilitava a ignorada víti ma que talvez esteja por aí em alguma prisão pagando um crime de que a minha emoção a declara inocente Essa é a fonte de minha inspiração O julgamento se realizou no dia 1 O de dezembro seguinte tendo a ré sido absolvida por seis votos contra um No dia 17 de fevereiro seguinte o juiz de direito apelou da decisão para o Superior Tribunal da Relação no Rio de Janeiro então Distrito Federal Lá o procurador interino Seves Navarro em longo parecer embasado nos conhecimentos mais atuais da medicina legal opinou pela manutenção da absolvição o que foi aceito pelos magistrados firmandose o v acórdão em 30 de junho do referido ano de 1891 1 7 Somente a 28 de março de 1892 foi determinado se oficiasse ao secretário de Justiça e Segurança Pública em Vitória onde se encontrava presa a ré para que a pusessem imediatamente em liberdade isso quase três anos depois de sua prisão Nenhuma notícia se conseguiu desde então sobre o destino de Guilhermina Lübke mas por certo ela se incorporou ao contingente das criadas da capital vivendo anonimamente sem a grandeza do retrato simbolista que dela faz o escritor maranhense 4 O livro e a crítica Depois que saiu abruptamente do Porto do Cachoeiro Graça Aranha partiu para a realização de seu elevado destino O ano de 1891 é uma incógnita em sua vida e passa em branco na biografia conhecida do autor Renato Almeida amigo de Graça Aranha e estudioso de sua obra nos confidenciou faz quase 50 anos que o escritor esteve naquele ano como hóspede de seu tio o gramático Heráclito Graça morador no bairro de Santa Teresa no Rio provavelmente escrevendo o primeiro esboço do Canaã e fazendo com a coragem e inteligência de sua juventude o círculo de amizades que lhe foram extremamente valiosas no futuro Um desses amigos foi Joaquim Nabuco que Graça Aranha conheceu na Revista Brasileira e que o tratava como a um filho tendolhe essa amizade valido o ingresso na carreira diplomática O livro deve ter sido concluído em Londres quando Graça Aranha foi secretário de Nabuco na missão relacionada com a Guiana Inglesa por entre névoas e fumaça tendo como perspectiva telhados e chaminés ocasião em que evocou a luz a cor e a magia florestal do Brasil CANAÃ A prova da longa elaboração é que Joaquim Nabuco pondo fé na obra em construção indicou o seu autor como um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras o que foi aceito por seus pares provocando muita inveja entre os intelectuais da época Neste ano de 1897 sob o pseudôni mo de Flávia Amaral Graça Aranha publicou na Revista Brasileira alguns trechos do livro e no ano seguinte na mesma revista com o mesmo nome feminino publicou Imolação também incluído mais tarde no Canaã O Canaã entrou no prelo em Paris a 9 de fevereiro de 1901 e segun do informa Afrânio Coutinho foi lançado no Brasil pela Editora Garnier em 1902 A obra é predominantemente simbolista em sua estrutura mas tem muito do romantismo ao tratar da paixão de Milkau por Maria e do rea lismo à Zola quando relata o nascimento do filho da heroína Seu fecho é um novo delírio simbolista quando a jovem é retirada da cadeia inician do o casal a desesperada fuga em direção à terra da promissão e do amor Canaã é também documento social poema em prosa debate filosófico num caos que só a inquieta inteligência do autor no dizer de Josué Montello poderia superar tornandoo de característica universal sem dúvida um romance singular Como já tem sido acentuado pela crítica o autor foi influenciado pelas idéias da época e entre elas a da inferioridade do brasileiro Ao descrever o guia que leva Milkau ao Porto do Cachoeiro chamao de rebento pena do de uma raça que se ia extinguindo sob a influência do coronel desca labro da raça O agrimensor cearense Felicíssimo é ridicularizado quan do embriagado pede aos colonos que se divirtam com a dança brasileira Obra sociológica chamoua Gilberto Freyre em Graça Aranha que significa para o Brasil de hoje na edição do centenário de nascimento do autor Porém nela é necessário separar o que se pode considerar como fruto de observação participante daquilo que é oriundo de elucubração GRAÇA ARANHA filosófica à luz de Tobias Barreto e através dele de Empédocles Darwin Nietzsche Schopenhauer assim como um conjunto de variações estéticas de um poeta em prosa de invulgar poder criativo A crítica o recebeu de braços abertos José Veríssimo amigo e admirador disse Este livro estréia como não me lembro outro em nossa literatura é a revelação nela de um grande escritor Novo pelo tema novo pelo estilo Canaã é a primeira e única manifestação benemérita de apreço das novas correntes intelectuais e so ciais que por toda a parte estão surgindo na literatura e na arte É ver dadeiramente superior esse é o primeiro romance de seu gênero no Brasil e em Portugal Estudos de literatura brasileira S série p 30 Sílvio Romero rival do anterior não viu o livro tão favoravelmente e faz pesada crítica ao autor Ao exaltar Euclides da Cunha que se deitou obscuro e acordou célebre diz que outros escritores inclusive Graça Aranha que se formaram e cresceram a seu lado não merecem idêntica avaliação a despeito das belas carreiras diplomáticas que de anos a esta parte têm andado a fazer História da literatura brasileira S2 volume Rio José Olympiolnstituto Nacional do Livro 7 ed 1980 Na mesma obra inclui Graça Aranha com Raul Pompéia na corrente que chama de psico logismo idealista com tendências simbólicas colocandoo em segundo plano entre os novos autores Mas confessa Canaã a despeito da incon veniência da maior parte dos tipos que o autor põe em ação contém páginas descritivas de mérito Op cit p 1777 1807 1809 e 1820 Mais recentemente Roberto Schwarz em A sereia e o descorifiado en saios críticos Rio Paz e Terra 2 ed 1981 considera Canaã um roman ce malsucedido por não solucionar o que propõe p 31 Diz mais que a obra foi revolucionária entre nós pela intenção uma novidade pois não havíamos tido ainda o romance de idéias conceitualmente era retró grada herdeira atrasada e chocha do vitalismo alemão p 32 Quanto 2 0 CANAÃ ao célebre diálogo entre Milkau e Lentz declarao grotesco p 33 ca racterizado por Lúcia Miguel Pereira como sendo o choque das posições de Tolstói e Nietzsche Do mesmo teor é o estudo de José C Garbuglio O universo estéticosen sorial de Graça Aranha São Paulo Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Assis 1966 que examina em profundidade as limitações e contradi ções da obra com a idéia obsessiva da unidade cósmica oriunda do monismo naturalista divulgado por Haeckel e aprendido por Graça Ara nha com Tobias Barreto nos bancos da Escola do Recife Daí por que Canaã se desenvolve à feição de longa sinfonia cuja linha melódica cen tral repousa no princípio de concordância homemuniverso integração que tem no amor sua força motriz p 49 Em 1910 o livro foi editado na tradução de Clément Gazet em francês pela editora Plon com prefácio do conde Prozon e logo granjeou elogios de luminares europeus como Guglielmo Ferrero e Paul Claudel Não se disse tudo Mas digase o que se disser na síntese de Ronald de Carvalho Canaã é o poema das raças novas que se vêm fundir com a na cionalidade já esboçada Milkau e Lentz representam a ideologia européia em face do tumulto americano 5 Depois do Canaã utor consagrado de obra única Graça Aranha continuou por mais vinte anos na diplomacia brasileira como ministro na Noruega Holanda e França Em 1911 publicou a peça Malazarte teatro de tese em que muitos viram influências de Goethe ou Ibsen súmula do pensamento estético do autor Seus desafetos no Brasil perguntavam Que fez Graça Aranha em Paris E respondiam Fez mal às artes 2 1 GRAÇA ARANHA Durante a Primeira Guerra Mundial 19141918 foi intensa a sua atividade para que o Brasil entrasse no conflito a favor dos Aliados contra os Impérios Centrais Voltando à nossa terra publicou a Estética da vida obra que trouxe o modernismo da Europa tentativa de ser um preâmbulo literário a uma política de renovação nacional Álvaro Moreyra As amarBas não Rio Lux si d p 142 narra Graça Aranha abriu o primeiro programa da Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal da capital artística do Brasil com estas palavras Para muitos de vós a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos hoje é uma aglomeração de horrores Aquele Gênio supliciado aquele homem amarelo aquele carnaval alucinante aquela paisagem invertida se não são jogos de fantasia de artistas zombeteiros são seguramente des vairadas interpretações da natureza e da vida Não está terminado o vosso espanto Outros horrores vos esperam Daqui a pouco juntandose a esta coleção de disparates uma poesia liberta uma música extravagante mas transcendente virão revoltar aqueles que reagem movidos pela força do passado Para estes retardatários a arte ainda é o belo Como se tratava do autor de um livro que muitos tinham lido e muitos conheciam de nome Graça Aranha conseguiu silêncio durante e as palmas no fim não se mis turaram com barulhos diferentes A pateada principiou com VillaLobos Em 1925 depois do beauBeste do desligamento da Academia Brasileira de Letras Graça Aranha publicou O espírito moderno A viaBem maravilhosa é de 1930 e O meu próprio romance memórias ficou inacabado e foi publica do postumamente em 1931 Graça Aranha faleceu em 26 de janeiro daquele ano sempre batalhando pela renovação nacional pois achava que a tragédia fundamental da exis tência está nas relações do espírito humano com o universo a ser conce bido esteticamente coisa que não acontecia entre nós 2 2 CANAÃ Temos segundo ele de vencer a natureza sua metafísica sua inteligên cia Não nos podemos deixar esmagar pela natureza Embora tais formu lações não fossem aceitas pelos seus jovens seguidores houve um influxo favorável do homem de ação de personalidade marcante para que com sua adesão à revolta das novas gerações literárias estas se sentissem for talecidas em sua luta por um novo Brasil O universo disse Graça Aranha em A viagem maravilhosa deixa de ser espetáculo transformase em vida quando a energia do amor o conquista para a viagem maravilhosa que realizamos nos espíritos e nas cousas Rio Garnier 1929 p 173 Graça Aranha sem favor algum foi um grande escritor brasileiro e estava realmente interessado na melhoria de nossa vida intelectual embo tada por questiúnculas entre escritores As paisagens do Maranhão a forte influência de Tobias Barreto no Recife o impacto da Mata Atlântica quando de sua judicatura no Espírito Santo e depois sua vivência na Europa deramlhe ampla visão do que para ele era a maior missão de sua vida a renovação estética do Brasil Se falhou foi porque o país é muito grande e caótico e de nada valeram as boas intenções e o esforço do escritor maranhense Seu trabalho no entanto não pode ser esquecido e conquanto muitos modernistas não o considerem um verdadeiro modernista sua presença foi marcante para que o país aderisse às novas idéias Coubelhe defender a formação do novo homem que surgiria da mis cigenação pacífica das raças nesta terra de Canaã terra prometida terra do Brasil Em suas mãos leitor amigo Canaã singular romance brasileiro 2 3 I M ilkau cavalgava molemente o cansado cavalo que alugara para ir do Queimado à cidade do Porto do Cachoeiro no Espírito Santo2 Os seus olhos de imigrante pasciam na doce redondeza do panorama Nessa região a terra exprime uma harmonia perfeita no conjunto das coi sas nem o rio é largo e monstruoso precipitandose como espantosa tor rente nem a serra se compõe de grandes montanhas dessas que enterram a cabeça nas nuvens e fascinam e atraem como inspiradoras de cultos tene brosos convidando à morte como a um tentador abrigo O Santa Maria3 é um pequeno filho das alturas ligeiro em seu começo depois embaraçado longo trecho por pedras que o encachoeiram e das quais se livra num ter rível esforço mugindo de dor para alcançar afinal a sua velocidade ardente e alegre Escapase então por entre uma floresta sem grandezas insinuase no seio de colinas torneadas e brandas que parece entregaremse compla centes àquela risonha e úmida loucura Elas por sua vez se alteiam gra ciosas vestidas de uma relva curva que suave lhes desce pelos flancos como túnica fulva envolvendoas numa carícia quente e infinita A solidão for mada pelo rio e pelos morros era naquele glorioso momento luminosa e calma Sobre ela não pairava a menor angústia de terror Absorto na contemplação Milkau deixava o cavalo tomar um passo indolente e desencontrado a rédea caía frouxa sobre o pescoço do animal que balançava moroso a cabeça baixando de quando em quando as pálpebras pesadas e longas sobre os olhos viscosos Tudo era um abandono preguiçoso um arrastar lânguido por entre a tranqüilidade da paisagem Os humildes ruídos da natureza contribuíam para uma voluptuosa sensação de silêncio A aragem mansa o sussurro do rio as vozezihas dos pequeninos insetos ainda tornavam mais sedativa e profunda a inquebrantável imobilidade das coisas Interrompiase ali o ruído incessante da vida o movimento perturbador que cria e destrói o próprio sol nascente vinha erguendose repousado na calmaria da noite e os seus raios não tinham ainda a potência de alvoroçar as entranhas da terra sossegada Milkau caía em longa cisma funda e consoladora Quem não esteve em repouso absoluto não viveu em si mesmo no turbilhão a sua boca proferiu acentos que não percebia hoje sereno ele mesmo se espanta do fluido perturbador que emanava dos seus nervos doloridos e maus As eternas as boas as santas criações do espírito e do coração são todas geradas nas forças misteriosas e fecundas do silêncio Na frente do imigrante vinha como guia um menino4 filho de um alugador de animais no Queimado O pequeno muito enfastiado daquela viagem e do companheiro deixavase conduzir pelo seu velho cavalo Umas vezes soltava uma palavra que ficava morta no ar outras para se expandir resmungava com o animal esporeavao e o fazia galopar descompassado e arquejante Milkau nesses momentos atentava no menino e se compungia diante da tréfega e ossuda criança que era essa rebento fanado de uma raça que se ia extinguindo na dor surda e inconsciente das espécies que nunca chegam a uma florescência superior a uma plena expansão da individualidade E o viajante saía da contemplação surgia do fundo dos seus pensamentos e chamando a si o pequeno Então vens sempre ao Cachoeiro Ah disse o menino como que espantado de ouvir uma voz humana Venho sempre quando há freguês ainda anteontem vim mas desde muito não chegava ninguém de Vitória Também choveu tanto estes dias De que gostas mais da tua casa ou da cidade Da cidade nhor sim Teu serviço em casa de teu pai é só acompanhar os passageiros para o Cachoeiro continuou Milkau no seu interrogatório que despertava e alegrava a criança Esta respondeulhe agora prontamente Ah nhor não Que fazes então A gente ajuda o pai Às vezes de madrugadinha vamos para a pescaria levantar a rede Hoje antes do patrão chegar estávamos já de volta Também foi só cocoroca e um pinguinho Só quatro O rio está escasso Seu Zé Francisco diz que é porque a água está fria mas tia Rita diz que agora é tempo de lua e a mãedágua não deixa o peixe sair O melhor é pescar com bombas mas o subdelegado não consente e a gente tem que se cansar por nada Aí no Queimado vocês não têm carne Ah nhor sim carneseca na venda do pai mas é para a freguesia Nós comemos peixe e quando falta a gente bebe mingau Continuavam a marchar pela estrada adentro A paisagem não variava no desenho apenas o sol começava a incendiar o espaço Milkau fitava com bondade o pequeno guia este sorria agradecido abrindo os lábios descorados mostrando os dentes verdes e pontiagudos como afiada serra mas o rosto macilento se esclarecia com a grande doçura de uma longa resignação de raça Quanto falta para chegarmos meu filho perguntou ainda o viajante Mais da metade do caminho ainda não se avista a Fazenda da Samambaia e de lá à cidade é o mesmo que para o Queimado Tu voltas logo para casa ou queres descansar um pouco Fica até à tarde Oh patrão O pai diz que eu volte já hoje é dia de ir com a mãe fazer lenha após tratar dos animais consertar a rede que a canoa de seu Zé Francisco arrebentou esta madrugada e nós vamos à noite antes da lua aparecer deitar a rede porque hoje se a água estiver quente é noite de peixe O pai disse O imigrante compadecido testemunhava naqueles nove anos do desgraçado a assombrosa precocidade dos filhos dos miseráveis O pequeno animado pela conversa alinhavase garboso no velho cavalo empunhava as rédeas com firmeza fincava as pernas de esqueleto e punha o animal num trote esperto Milkau acompanhava instintivamente essa atividade e os dois assim fugitiva ligação da piedade e da miséria avançavam pelo caminho afora Pouco tempo depois numa curva da estrada o menino apontou para diante e voltandose disse ao companheiro Estamos na Samambaia 5 Lá no alto da colina um casarão pardacento misturavase à bruma azul acinzentada do longe e à medida que Milkau prosseguia o horizonte se ia estreitando o morro na frente tapava a estrada e parecia que esta estirandose num esforço ia morrer sobre ele Os viajantes margeavam ora o cafezal plantado na encosta das colinas ora a roça de mandioca na baixada A terra era cansada e a plantação medíocre ao cafezal faltava o matiz verdechumbo tradução da força da seiva e coloriase de um verdeclaro brilhando aos tons dourados da luz os pés de mandioca finos delgados oscilavam como se lhes faltassem raízes e pudessem ser levados pelo ven to enquanto o sol esclarecia docemente o grande céu e o ar era cheio dos cantos do rio e das vozes dos pássaros que prolongavam a ilusão da madrugada Sentiase ao contemplar aquela terra sem forças exausta e risonha uma turva mistura de desfalecimento e de prazer mofino A terra morria ali como uma bela mulher ainda moça com o sorriso gentil no rosto violáceo mas extenuada para a vida infecunda para o amor Milkau e o guia chegaram a uma porteira que fechava a estrada no trecho em que esta cortava as terras da Samambaia O menino empurrou a cancela e com uma das mãos foi abrindoa enquanto ela rangia com um grito agudo Milkau passou e atrás dele uma pancada surda cerrou a estrada Esta logo ao penetrar nas terras da fazenda descrevia uma curva que abraçava o vale e se aproximava da barranca do rio O caminho barrento pegajoso e úmido cheio de sulcos de carro de boi desprendia um cheiro de lama e estrume Da estrada pelo morro acima o terreno era inculto coberto de matapasto crescido e sobre ele viamse bois agitando com o movimento inquieto das cabeças a sineta que traziam ao pescoço bufando e catando insofridos a erva Desenhavase sob a pele dos pobres animais a rija ossadura Faziamlhes companhia aves de mau agouro anuns que trepavam nas suas costas de esqueletos piando como pássaros da morte Quando Milkau se viu em frente à casa largou esquecidas as rédeas do cavalo e pôsse a mirar em torno O casarão à vista agora era grande e acachapado com uma imensa varanda em volta sem janelas e para onde se abriam as desbotadas portas do interior Fora branco mas estava enegrecido com uma cor parda e desigual aqui e ali o bolor sobre as paredes traçava estranhas e disformes visagens da varanda descia uma escada de madeira já com falta de degraus e com os corrimãos arrancados na frente crescia livre a erva com touceiras de mato rasteiro apenas cortado pelas picadas que levavam da estrada e de outras direções à casa de vivenda Ao GRAÇA ARANHA lado uma capela havia muitos anos fechada guardando no seu silêncio a voz da devoção que por ali passara transformada em ignorado e miste rioso relicário de antigas imagens de santos talvez belezas ingênuas de uma arte primitiva simples e religiosa E dentro da igrejinha velados pe las divindades enclausuradas jaziam no chão sagrado os túmulos de se nhores e de escravos igualados pela morte e pelo esquecimento O cavalo de Milkau continuava a passo o guia bocejava indiferente e erguendo uma perna alçavaa sobre a sela num gesto de resignação Vol tandose para a casa viu um vulto que chegava à soleira da varanda reco nheceuo e disse vagarosamente ao companheiro Lá está seu Coronel Afonso Milkau cumprimentou tirando cortesmente o chapéu o homem lá no alto correspondeu erguendo indolente o sombreiro de palha O dono da fazenda de pés nus calça de zuarte camisa de chita sem goma parecia com a barba branca muito velho atestando na alvura da tez a pureza da geração A fisionomia era triste como se ele tivesse consciência de que sobre si recaía o peso do descalabro da raça e da família o olhar turvo apagado para os aspectos da vida como o de um idiota o esgotamento das suas faculdades das emoções e sensações era completo e o reduzira a uma atitude miseranda de autômato Mas ainda assim ele representava a figu ra humana a mesma vida superior envolta na queda das coisas arrastada na ruína geral E não há quadro mais doloroso do que este em que a ação do tempo a força da destruição não se limita somente às tradições e aos inanimados mas envolvendo no descalabro as pessoas e as paralisa e ful mina fazendo delas o eixo central da morte e aumentando a sensação de soladora de uma melancolia infinita Quase à beira do caminho estava a casa do forno onde se preparava a farinha Era um velho barracão coberto de telha carcomida e negra sobre a qual um limo verde crescia qual espessa e microscópica floresta No CANAÃ interior estava armada a bolandeira como uma sobrevivência das antigas moendas e ao lado a roda onde no tempo do serviço se ralava a mandio ca Havia também dois tachos em que se mexia a farinha pelo processo ru dimentar das pás Eram de cobre e destoavam do resto da engenhoca Milkau notou além disso no grande desleixo da casa abandonada res tos de maquinismos espalhados pelo chão tubos caldeiras rodas den tadas atestando ter havido ali uma instalação melhor que o homem caindo de prostração em prostração perdendo todo o polido de uma civilização artificial abandonara agora em sua decadência para se ser vir dos aparelhos primitivos que se harmonizavam com a feição em brutecida do seu espírito Milkau prosseguia pela estrada abrangendo ainda com os olhos o qua dro dessa triste fazenda O vulto do coronel ficava imóvel na soleira da escada presidindo com o olhar pasmado ao desmoronar silencioso daque les restos de cultura esperando na lúgubre atitude do inconsciente a lenta invasão do mato que numa desforra triunfante vinha vindo circunscre vendo apertando o homem e as coisas humanas Os viajantes continuavam a moverse dentro daquela paisagem onde as forças da vida parecia estarem paralisadas e onde tudo tinha a fixidez e a perfeição da imobilidade quando quebrando o caminho à direita eles enfrentaram quase subitamente com um rancho de moradores Era um pardieiro armado em cruz coberto de palha cujas línguas se projetavam desordenadas da cumeeira O pequeno guia adiantouse para a casa ins tintivamente como movido por longo hábito A porta do rancho um ve lho cafuzo com os olhos nevoados fitava vagamente o espaço encostado ao moirão apenas trajava uma usada calça o tronco estava nu e sob a pele ressequida desenhavase a envergadura de um esqueleto de atleta sobre o dorso como em moribundo cepo de árvore crescia uma penugem bran ca encaracolada que subia até ao queixo e formava uma rasteira barba GRAÇA ARANHA A sua postura era de adoração rudimentar de um nunca terminado pasmo diante do esplendor e da glória do mundo No batente da porta sentavase uma mulata moça Toda ela era a pró pria indolência Os cabelos não penteados faziam pontas como chifres a camisa suja caía à toa no colo descarnado e os peitos de muxiba pen diam moles sobre o ventre em pé ao seu lado um negrinho vestido apenas de um cordão ao pescoço donde se dependuravam uma figa de pau e um signo de Salomão mirava embasbacado os cavaleiros que se achegavam ao tijupá Milkau cumprimentou o grupo que sem o menor alvoroço o deixava aproximarse Apenas o velho disse respondendo à saudação Se apeie moço Não obrigado Quero chegar cedo Eh meu sinhô daqui ao Cachoeiro é um instantinho Olhe só ven cendo duas curvas do rio estáse na cidade Depois o velho como se refletisse um momento e sentisse despertar em si uma ânsia de comunicabilidade insistiu com Milkau para que se apeasse O guia não esperou mais pulou da sela e abandonando o seu cavalo segurou pelo freio o do viajante enquanto este punha o pé em terra e bocejava numa satisfação de repouso O estrangeiro apertou a mão calos a e áspera do velho que abriu os lábios numa rude expressão de riso mostrando as gengivas roxas e desdentadas A cafuza não se mexeu apenas mudando vagarosamente o olhar descansouo cheio de preguiça e desalento no rosto do via jante A criança acolheuse a ela boquiaberta com a baba a escorrer dos beiços túmidos Da porta Milkau via claramente o interior da habitação A cobertura era alta no centro e pendia em declive tão rápido para os lados que nas ex tremidades um homem não podia ficar em pé a mobilia miserável e sim ís 3 2 L CANAÃ pIes compunhase de uma rede cor de urucu armada num canto e outra dobrada em rolo e suspensa num gancho uma esteira estendida no chão de soque dois banquinhos rasteiros um remo molhos de linha de pescar e alguns pobres instrumentos de lavoura Uma pequena divisão de palha como um biombo fixo separava um dos cantos da peça formando um quarto onde se viam uma esteira e uma espingarda No fundo a porta abria para uma clareira do mato na qual uma touça de bananeiras se mul tiplicava e junto a essa porta pedras negras que se misturavam a restos de tições apagados indicavam a cozinha Mora aqui há muito tempo perguntou Milkau Fui nascido e criado nessas bandas sinhô moço Ali perto do Mangaraí6 E tateando o espaço estendia a mão para o outro lado do rio Não vê um casarão lá no fundo Foi ali que me fiz homem na fazenda do Capitão Matos defunto meu sinhô que Deus haja O estrangeiro acompanhando o gesto apenas divisava ao longe um amontoado de ruínas que interrompia a verdura da mata E a conversa foi continuando por uma série de perguntas de Milkau sobre a vida passada daquela região às quais o velho respondia gostoso por ter ocasião de relembrar os tempos de outrora sentindose incapaz como todos os humildes e primitivos de tomar a iniciativa dos assuntos Ele contou por frases gaguejadas a sua triste vida toda ela um pobre drama sem movimento sem lances sem variedade mas de quão intensa e profunda agonia Contou a velha casa cheia de escravos as festas sim ples os trabalhos e os castigos E na tosca linguagem balbuciava com a figura em êxtase a sua turva recordação Ah tudo isso meu sinhô moço se acabou Cadê fazenda Defunto meu sinhô morreu filho dele foi vivendo até que Governo tirou os es cravos Tudo debandou Patrão se mudou com a família para Vitória onde tem seu emprego meus parceiros furaram esse mato grande e cada um levantou casa aqui e acolá onde bem quiseram Eu com minha gente vim para cá para essas terras de seu coronel Tempo hoje anda triste Governo acabou com as fazendas e nos pôs todos no olho do mundo a caçar de comer a comprar de vestir a trabalhar como boi para viver Ah tempo bom de fazenda A gente trabalhava junto quem apanhava café apanhava quem debulhava milho debulhava tudo de parceria bandão de gente mulatas cafuzas Que importava feitor Nunca ninguém morreu de pancada Comida sempre havia e quando era sábado véspera de domingo ah meu sinhô tambor velho roncava até de madrugada E assim o antigo escravo ia misturando no tempero travoso da saudade a lembrança dos prazeres de ontem da sua vida congregada amparada na domesticidade da fazenda com o desespero do isolamento de agora com a melancolia de um mundo desmoronado Mas meu amigo disse Milkau você aqui ao menos está no que é seu tem sua casa sua terra é dono de si mesmo Qual terra qual nada Rancho é do marido de minha filha que está ali assentada terra é de seu coronel arrendada por dez milréis por ano Hoje em dia tudo aqui é de estrangeiro Governo não faz nada por brasileiro só pune por alemão Num estremecimento o preto velho com o olhar perdido no vácuo a mão estendida fazendo gestos tardos e incertos prosseguia no seu monólogo Voscemê vai ficar aqui Daqui a um ano está podre de rico Todos seus patrícios eu vi chegar sem nada com as mãos abanando E agora Todos têm uma casa têm cafezal burrada De brasileiro Governo tirou tudo fazenda cavalo e negro Não me tirando a graça de Deus E os seus olhos tristes obscureceramse A névoa que os cobria tornouse mais densa como que sobrecarregada agora da pesada visão da conquista da terra pátria pelos bandos invasores CANAÃ Seguiuse um opressivo silêncio Milkau recolhia o eco daquele quei xume de eterno escravo daquela mal definida resignação dos esmagados Havia alguma coisa de aleijão nesse protesto e a incapacidade de uma expressão livre e elevada fazia crescer a angústia O velho continuava me neando a cabeça e resmungando um choro A figura da filha de uma in dolência sinistra dava maior opressão a tudo Milkau sentia um estran gulamento como se o peso de toda a responsabilidade da sorte daquela gente caísse também sobre ele Lá dentro de si mesmo batiase em vão para encontrar a claridade de um sentimento a limpidez de uma palavra consoladora Nada achou Num gesto contrafeito despediuse Adeus até à vista meu velho O preto abandonoulhe a mão Os outros da família ficaram quietos apatetados Milkau caminhava pela grande luz da manhã agora de todo inflamada Os ventos começaram a soprar mais espertos e como que agitavam as almas das coisas arrancandoas do torpor para a vida O rio descia em di reção contrária à marcha dos viajantes e esses movimentos opostos davam a impressão de que toda a paisagem se animava e docemente ia desfilando aos olhos do cavaleiro A fazenda lá no alto sumiase no fundo do longín quo horizonte o imigrante notava o manso desenrolar do panorama co mo o de fitas mágicas casas de moradores homens tudo ia passando rolando mansamente mas arrastado por uma força incessante que nada deixava repousar A estrada se alargava outras vinham aparecendo desconhecidas infini tas e incertas como são os caminhos do homem sobre a terra A brisa fres ca encanavase pelas duas ordens fronteiras de colinas paralelas ao rio e trazia ao encontro do viajante um mugido sonoro de cascata O rolar do Santa Maria batendo sobre pedras amontoadas despedaçandose como um louco nas lajes aumentava e as suas águas revoltas espumantes re GRAÇA ARANHA colhiam e reverberavam a luz do sol como um vacilante espelho Milkau viu ao longe na mata ainda fumegante de névoas uma larga mancha branca Na frente o guia estendendo o braço gritoulhe Porto do Cachoeiro Milkau como se despertasse respirou sôfrego o corpo se lhe agitou e estremeceu nessa ânsia de quem penetra na terra desejada mas o sangue em alvoroço saudou a aparição do povoado os nervos a vontade trans mitiam um fluido ativo ao lerdo animal que ao sopro da viração ao con tato dos lugares próximos à cidade fIm das suas jornadas também se transformou em vida e agora de narinas escancaradas bufando sacudia as crinas relinchava asperamente mordia o freio curvava o pescoço e acelerava brioso o passo Então de uma pequena elevação que ia galgando Milkau o olhar espraiado na paisagem dominava a povoação apertada entre a montanha e o Santa Maria Cheia de luz com a sua casaria toda branca em plena glória da cor da claridade e da música feita dos sons da cachoeira repre sa do férvido rio que se liberta em franjas de prata a cidadezinha era naquele delicioso e rápido instante a fIlha do sol e das águas Os viajantes continuavam apressados as primeiras casas iam chegando eram pobres habitações como soltas na estrada para saudarem alvissa reiras os viandantes Mirandoas atentamente Milkau observou que essas casas eram moradas de gente preta da raça dos antigos escravos e adi vinhouos batidos pela invasão dos brancos mas ainda assim procurando os derradeiros e longínquos raios do calor humano e deitandose à soleira das cidades para eles estrangeiras e proibidas Os viajantes desceram a rampa e foram ter a uma porteira que o pe queno tomando a frente escancarou para dar passagem a Milkau Entra vam agora mais devagar na cidade Onde se apeia patrão perguntoU solícito o guia Em casa do Sr Roberto Schultz Conhece Ah nhor sim quem não sabe O maior sobrado da cidade Domingo passado levei também um moço para lá Os cavalos arfavam dando à marcha fatigada uma sensação de movimentos irregulares como se descessem com medo montanhas pedregosas uma espuma abundante ensopavaos e abandonados de rédeas iam tropeçando nas pedras soltas da rua Os olhos de Milkau tinham os estremecimentos das passagens bruscas dos panoramas contrários não possuíam fixidez nem calma para precisar qualquer observação apenas guardavam na retina inconsciente a vaga sensação de uma cidadezinha alemã no meio da selva tropical Ao espírito do imigrante desceu uma confusão e tênue recordação de outros tempos ao entrever essa população toda branca e ao sentir a irradiação do sol batendo sobre as cabeças das crianças como refulgentes chapas de ouro Chegados a um grande sobrado o guia pulou lesto do cavalo e ajudou Milkau a apea despediramse como bons amigos e enquanto o viajante penetrava na loja o menino voltava com os animais O armazém de Roberto Schultz era vasto Tinha quatro portas de frente e as mercadorias inúmeras davamlhe uma feição de grandeza e opulência Ali se negociava em tudo em fazendas em vinhos em instrumentos de lavoura em café era um desses tipos de armazéns de colônia que são uma abreviação de todo o comércio e conservam na profusão e multiplicidade das coisas certo traço de ordem e de harmonia A loja àquela hora já estava cheia de gente e Milkau para chegar até ao balcão foi desviando os fregueses ali amontoados em pé todos indecisos pesados brancos e tardos alemães Disseram a Roberto que havia um viajante à sua procura e imediatamente Milkau foi conduzido ao escritório onde um homem taurino e barbado o recebeu O imigrante entregoulhe uma carta de apresentação que ele principiou a ler interrompendose de vez em quando para fitar o GRAÇA ARANHA recémchegado Dos olhos deste baixava uma claridade suave uma calma dominadora que perturbava o velho negociante ora a ler ora a mirar pensativo e aborrecido Afinal dobrou vagaroso a carta e pôsse a tambo rilar na secretária Então disse por dizer vem com a idéia de ficar aqui Milkau afirmou essa resolução Roberto começou a aconselhálo a que não se decidisse antes de ver bem as coisas por si Isto aqui é triste e enfadonho Vaise aborrecer afiançolhe Talvez fosse melhor ir para o Rio ou São Paulo Aí sim são os grandes centros de comércio onde acharia um emprego com facilidade A colônia é um engano noutro tempo ganhavase algum dinheiro porém agora os negó cios não marcham Mas quis interromper Milkau Roberto não o atendia e continuava a arredálo com as suas palavras para longe do Cachoeiro Na minha opinião o senhor deve voltar hoje mesmo nós estamos abarrotados de pessoal Aqui em minha casa tenho gente demais que vou despedir em nenhuma casa de negócio da colônia o senhor se pode em pregar Que vale hoje o comércio com os impostos com o câmbio e com as contribuições da política porque nós aqui apesar de estrangeiros ou talvez por isso mesmo somos os que sustentamos os partidos do Estado As eleições não tardam por aí já devem vir os chefes de Vitória temos de hospedálos dar festas arranjar eleitores ora tudo isto nos vai empobre cendo o que se ganha é uma miséria para esses extraordinários Mas eu não vim com destino ao comércio afirmou decisivo o viajante ComoVem com o plano de ir para o café E Roberto não ocultou a surpresa de ver um colono naquele imigrante tão bem vestido para um simples cultivador Ah isto é outra coisa continuou o negociante agora amável Não há nada como a lavoura vá para o mato arranje a sua colônia e daqui a pouco tempo está rico Olhe a nossa casa está às suas ordens nós lhe fornecemos tudo de que precisar e quando puder vá nos mandando café É o costume aqui nós nos pagamos em gêneros o que é uma vantagem para o colono acrescentou baixando ligeiramente o olhar Chegou em boa hora para arranjar um excelente prazo nas novas terras do Rio Doce que se vão abrir aos imigrantes O juiz comissário mandou pregar o edital para as medições e arrendamentos o agrimensor o Sr Fe licíssimo9 está no Porto do Cachoeiro de viagem para as terras É um rapaz alegre que sempre nos aparece por cá ele o senhor sabe é fre guês da casa e é do partido Milkau agradeceu os oferecimentos do negociante e dispunhase a par tir em busca de uma estalagem quando o outro reclamou Não vale a pena ir para o hotel Aqui fica melhor temos muitos cômodos para hóspedes como é de uso Depois o senhor me pode ser útil agora fazendo companhia a um moço chegado anteontem e também de família importante Imagine filho do General Barão von Lentz O rapaz porém anda triste e sorumbático Não sei o que será Talvez ver gonha de ter imigrado Ah estes rapazes E sorrindo malicioso ergueuse pedindo a Milkau que o acom panhasse Este quase ia arrebatado no meio de agrados e cortesias de vidas a um futuro freguês Ambos atravessaram para o outro lado do balcão dirigindose à escada do sobrado Os olhos de Milkau deslumbraramse à luz da manhã alegre e viva A porta da loja uma velha de nariz adunco de rosto de pergaminho franzido chegava montada em sua mula e entre dois alforjes suspensos dos ganchos da cangalha Na rua passava uma tropa de burros carregados de canastras de café e repicando campainhas 3 9 GRAÇA ARANHA No quarto em que entraram Roberto e Milkau um moço que estava a escrever levantouse para saudálos O Tragolhe um companheiro anunciou o dono da casa este patrí cio que se deseja estabelecer no Rio Doce Voltandose para Milkau repetiulhe que estivesse como em sua casa e perguntoulhe pela bagagem O outro explicoulhe que vinha tudo pela canoa devendo chegar à noite Roberto deixou os novos imigrantes Pode continuar o seu trabalho disse Milkau delicadamente Não o que eu estava a fazer não é urgente Apenas matava o tempo E os dois se puseram a conversar sobre coisas vagas sobre a viagem o tempo a natureza E enquanto se entretinham Milkau admirava a mobi lidade da fisionomia do jovem von Lentz e não se cansava de observar o fulgor de seus olhos fulvos dominando o rosto sem barba cujas linhas eram acentuadas e fortes e se projetavam de uma cabeça ampla roliça como a de um patrício romano Mas de par com este súbito entusiasmo pela expressão escultural daquela jovem figura Milkau sentiase cons trangido por ter encontrado naquelas paragens estranhas e remotas um fi lho de general alemão um ser privilegiado na sua pátria como um evadido do seu próprio e grande mundo que viera sepultar sem dúvida no mis tério das colônias uma parcela de angústia de desespero e de desilusão Daí a momentos os dois novos se achavam na grande sala de almoço dos empregados do armazém e tomavam lugares à mesa A sala era des guarnecida as paredes simplesmente caiadas não tinham o menor en feite os criados serviam automáticos como soldados ao regimento de caixeiros que comiam silenciosos Em todas as fisionomias daqueles ho mens tão diferentes alguns velhos de pele enrugada outros moços de perpétua adolescência viase estampado o pensamento único de cum prir o dever prático de caminhar para a frente no conjunto harmônico de um só corpo Mi1kau lia naquele ajuntamento de alemães o caráter CANAÃ camponês e militar que fundou a obediência e a tenacidade na sua raça e reduziu tudo o que ela podia ter de beleza de elevação moral à mono tonia de um precipitado único Onde estava a Alemanha sagrada a pátria do individualismo o recanto suave do gênio livre perguntava a si mesmo Milkau no sussurro regular do almoço contemplando o es quadrão de homens louros e refletindo sobre a alma alemã pensava que talvez somente se pudesse explicar a incógnita dessa alma pelas imagens e expressões incertas da vaga e simbólica metafísica Quem sabe con tinuava quase em sonho quem sabe se não foram um dia dois espíritos que se encontraram disparatados em um mesmo corpo um servil à matéria ambicioso cúpido procurando absorver o outro que voava docemente e pairava sempre no alto zombando de tudo de homens e deuses gerando puramente sem conjunções torpes nas regiões plácidas do ideal as figuras da poesia e do sonho E quem sabe como foi longo e pertinaz o combate entre as duas forças Mas houve um momento em que o demônio da terra venceu o espírito de beleza e de liberdade e o corpo aí está hoje sossegado sem ânsias sem lutas qual uma massa de escravos a devorar os últimos restos do gênio do passado divino ali mento donde brota essa luz que ainda o ilumina na sua lúgubre e devas tadora marcha sobre a terra Findo o almoço os caixeiros saíram em ordem Milkau e Lentz iam por último vagarosamente como hóspedes despreocupados No quarto re solveram visitar a cidade e quando daí a momentos passavam pelo ar mazém em direção à rua Roberto os chamou Está aqui exatamente o Sr Felidssimo que segue depois de amanhã para o Rio Doce a fim de fazer as medições 1 1 Dizendo isto indicava um moço magro baixo e moreno com o rosto talhado em triângulo cheio de marcas de bexigas uma chata cabeça de bacurau em que os olhos negros cintilavam vivos e secos O Sr Milkau continuou Roberto acaba de chegar com o propósito de arrematar um lote de terras Expliqueilhe que neste momento o que há de melhor é o Rio Doce e que o senhor me faria o favor de arranjarlhe um prazo bem situado Pois não acudiu o agrimensor solícito e com um gesto de quem quer abraçar Sigo amanhã a me encontrar com a turma que está em Santa Teresa depois de amanhã bem cedinho nos pomos em marcha e quando for lá pelas onze acampamos no porto do Ingá no Rio Doce Os senhores quando vão Lentz ficou embaraçado e meio confuso respondeu Para o campo Ainda não sei afinal o que farei na colônia Dependo muito do Sr Roberto O negociante coçou a cabeça e disse solene em murmúrio como se invocasse o testemunho dos mais O Sr von Lentz prefere uma colocação na cidade no comércio Mas o Sr Felicíssimo é que pode dizer quanto isto é difícil as casas estão cheias a ocasião é má Esperemos esperemos Felicíssimo perguntou a Milkau o dia da partida É só para combinar tudo e quando chegar lá não haver demora O negócio é fácil o senhor requer um prazo e o juiz comissário que está agora para os lados do Guandu despacha mas não precisamos dele para fazer a medição Na sua ausência estou autorizado a tudo até mesmo a entregar os lotes aos colonos que os vão trabalhando Entre nós as coisas não são feitas com luxo Não temos formalidades Tudo se arranja e legaliza depois O que é preciso é pagar logo as custas Milkau interrompeuo para se informar das distâncias Daqui a Santa Teresa quantas léguas Cinco E de lá ao Rio Doce outras tantas O senhor deve ir daqui até o alto de Santa Teresa aí dormir e no dia seguinte tocar para o Rio Doce CANAÃ É preciso um guia Não Estrada sem errada e batida Roberto ofereceuse para mandar guiar o imigrante por tropeiros que iam diariamente para essas bandas Milkau agradeceu dispensando o obséquio Deixando Roberto saíram os três do armazém Felicíssimo que dizia não ter nada a fazer naquelas horas propôs acompanhar os estrangeiros dando assim expansão aos instintos da sua nativa e tranqüila vadiagem Agora o Porto do Cachoeiro abrasado de sol desvendavase todo A ci dade era dividida em duas partes que uma ponte ligava mas podia dizer se que só à margem esquerda era crescente porque do outro lado as ha bitações se contavam salteadas e raras As casas daquela banda enfileira vamse monótonas em frente ao rio e nem um jardim quebrava a aus teridade das moradas nem um quintal margeava os caminhos nem uma árvore sombreava as ruas Pela primeira vez porventura nos trópicos os habitantes de uma pequena cidade como essa não conheciam prazeres do convívio dos animais domésticos nem tinham a expansiva preocupação da cultura das plantas e das flores Uma esterilidade rigorosa e sistemática estampavase no perfil das casas que eram apenas o abrigo de uma popu lação de negociantes Na rua Milkau ia adivinhando a explicação moral daquela localidade e uma impressão de angústia emanada da branca aridez da cidade o turbava pois parecialhe que o bafo dos traficantes tinha matado a poesia a graça daquele canto excepcional da natureza onde eles haviam levantado as tendas da especulação Felicíssimo ia pres suroso contando os milagres da fortuna comercial daquela gente Este sobrado aqui dizia ele apontando para uma casa esguia e igual às outras da rua é de Frederico Bacher13 chefe do partido da oposição é o rival e o inimigo de Roberto Chegou aqui sem nada hoje veja como está rico E aqui são todos assim todos têm muito dinheiro Podese dizer que o 43 G RAÇA ARANHA comércio do Cachoeiro é mais forte do que o de Vitória Ainda não se deu um caso de quebra Estes alemães têm olho Se fossem brasi leiros estava tudo arrebentado E o agrimensor continuava nesse tom a fazer o elogio das virtudes germânicas para os negócios a economia a facilidade de assimilação a energia no trabalho dando como contraste a elas as qualidades infe riores dos brasileiros que ele se comprazia em proclamar no gáudio de se mostrar aos companheiros de passeio justo e superior e ao mesmo tempo com propósito lisonjeiro Para se dar ar de importância e intimi dade com os moradores de instante a instante deixava Milkau e Lentz na rua e penetrava pelos armazéns adentro para trocar uma palavra com o dono da casa Algumas vezes conseguia arrastar do fundo das lojas até à porta os negociantes com quem à vista dos novos tomava liberdades dandolhes palmadinhas nas costas beliscões na barriga e dizendolhes injúrias por gracejo ao que os alemães complacentes sorriam muito rubicundos murmurando em tom de desculpa aos outros Esse Sr Felicíssimo Isto é um diabo Os três iam seguindo assim despertando pelos gestos e pelas vozes altas do agrimensor a atenção da rua mirados pelos tropeiros que descar regavam os animais e pelos fregueses que procuravam as lojas Lentz não tinha o menor interesse em andar de casa em casa à maneira fastidiosa e vulgar de Felicíssimo e então para se ver livre dessa obrigação enfado nha de correr passos de porta em porta propôs que subissem a um dos morros que cercavam e abafavam ao mesmo tempo a cidade e de lá des frutassem a vista da região Os outros concordaram e assim foram guia dos por Felicíssimo Para galgar a montanha mais acessível tiveram de passar além da ponte por sobre a cachoeira cujos cavos borbotões os ensurdeciam e os passos dos homens na ponte de madeira em cima das águas que se quebravam embaixo tinham vibrações sonoras e poderosas CANAÃ como se sobre ela passasse o pesado tropel da cavalaria Do outro lado estava a montanha que se puseram a subir por uma vereda pedregosa e de cascalho solto dando à marcha um movimento irregular e fatigante Felicíssimo ia mais lépido na frente enquanto os outros não acostuma dos ao calor caminhavam dificilmente alagados em suor A proporção que eles subiam morriam as vozes da cachoeira vinham ao seu encontro o hálito perfumado das plantas montanhesas e o ar leve para lhes acalmar os ardores A princípio dentro do circuito dos morros a perspectiva era estreita Em cima porém eles dominavam a vasta região acidentada e os olhos dos estrangeiros tiveram um delicioso instante de êxtase O con torno arredondado das montanhas cobertas de uma relva basta rente ful gurante nas suas cores matizadas o rio por entre os vales o ar límpido e seco mantendo estável a atmosfera a força da claridade desdobrando pelas colinas o panorama a abóbada celeste de um imenso azul cobrindo docemente a terra todo esse conjunto de luz de cor de traços dava à paisagem um aspecto total de grandeza e confiança Felicíssimo era o intérprete da região Como perfeito sabedor dava o nome às coisas e designava os lugares Milkau estava sereno no alto da montanha Descobrira a cabeça de um louro de ninfa e sobre ela e na barba revolta a luz do sol batia numa fulguração de resplendor Era um varão forte com uma pele rósea e branda de mulher e cujos poderosos olhos da cor do infinito absorviam recolhiam docemente a visão segura do que ia passando A mocidade ainda persistia em não o abandonar mas na harmonia das linhas tranqüilas do seu rosto já repousava a calma da madureza que ia chegando Felicíssimo apontava em torno e ia designando os pontos do horizonte os outros acompanhavamlhe os gestos rápidos e como em sonho não podiam fixar os nomes bárbaros e estranhos que lhes feriam os ouvidos mas se interessavam em guardar e acentuar as impressões que lhes vinham GRAÇA ARANHA da região Para o oriente era a terra do Queimado cujo caminho se desen rola longo e sinuoso ora numa planície descampada e risonha ora por entre o verde de um mato raro até a um pequeno grupo de casas que for mam o porto do Mangaraí à beira do Santa Maria ali orgulhoso e folga do com as águas desembaraçadas dos cachoeiros Para o norte para o sul para o poente as montanhas vão crescendo amontandose como massa de pintura Ali o Guandu acolá Santa Teresa duas regiões sombrias que os colonos vão arrancando do silêncio misterioso da solidão Sobre um vale cheio de sol um fio d água cai longo e transparente como um grande véu de noiva Para o poente o Santa Maria margeia os cafezais as casas de lavoura e luta com as lajes negras que porfiam em retêlo Milkau nesse panorama aberto lia a história simples daquela obscu ra terra Porto do Cachoeiro era o limite de dois mundos que se to cavam Um traduzia na paisagem triste e esbatida do nascente o pas sado onde a marca do cansaço se gravava nas coisas minguadas Aí se viam destroços de fazendas casas abandonadas senzalas em ruínas ca pelas tudo com o perfume e a sagração da morte A cachoeira é um marco E para o outro lado dela o conjunto do panorama rasgavase mais forte mais tenebroso Era uma terra nova pronta a abrigar a avalancha que vinha das regiões frias do outro hemisfério e lhe descia aos seios quentes e fartos e ali havia de germinar o futuro povo que cobriria um dia todo o solo e a cachoeira não dividiria mais dois mun dos duas histórias duas raças que se combatem uma com a pérfida lascívia outra com a temerosa energia até se confundirem num mes mo grande e fecundante amor Eles desceram da montanha e entravam pela cidade quando os ar mazéns se fechavam para se reabrirem depois da hora do jantar Nesse momento viase pelas ruas um movimento maior de gente que deixava as lojas e se recolhia às casas Aqui perguntou Lentz ao agrimensor quase todos são alemães Sim poucos brasileiros No comércio podese dizer não há nenhum Então em que se ocupam os brasileiros do Cachoeiro indagou Milkau Os que temos aqui são os do foro os juízes escrivães meirinhos Outros são também empregados públicos coletor agente de correio E professores perguntou Lentz Só um porque a língua que se ensina por essas matas é o alemão e os professores são alemães exceto o da cidade Padres também não temos nem igreja como devem ter reparado Também não há necessidade porque raros são aqui os católicos e para os protestantes há três pastores nas capelas do Luxemburgo Jequitibá e Altona Os católicos do município são o povo do Queimado do Mangaraí e outros pontos onde está hoje a gente antiga da terra Felicíssimo continuava a dar notícias do lugar os outros ouviamno em silêncio e a conversa foi assim espreguiçando até chegarem à porta da casa de Roberto O agrimensor despediuse prometendo voltar no dia seguinte para os acompanhar em novas excursões Depois do jantar que tinha corrido como o almoço os dois novos subiram ao quarto incapazes de sair à rua e de se ir meter às primeiras horas da noite na fábrica de cerveja na outra margem do rio como era o costume ali Milkau estava fatigado da viagem e do passeio do dia Lentz sentiase esbraseado e abalado pela emoção vinda do encontro com o seu recémchegado patrício que por motivos dele não percebidos já tanto o seduzia e o prendia Sentaramse os dois junto à janela aberta A calma da tarde imobilizava as coisas dandolhes a tranqüilidade o repouso e a fixidez das pinturas Nessa hora a natureza excediase a si mesma tomando a expressão serena da arte Os primeiros perfumes dos matos da redondeza desciam para GRAÇA ARANHA embalsamar o panorama e sombras leves vinham envolvendo o mundo Os dois imigrantes contemplavam em silêncio e uma saudade estranha segredandolhes explicava o mistério dos quadros sonhados e nunca vis tos a nostalgia de ilusões que ali se realizavam agora Parece que j á vi este quadro em algum lugar disse Milkau cis mando Mas não este ar este conjunto suave este torpor instantâ neo e que se percebe vai passar daqui a pouco é seguramente a pri meira vez que conheço E por quanto tempo aqui ficaremos disse o outro num bocejo de desalento e o seu olhar pairava preguiçosamente sobre a paisagem Não meço o tempo respondeu Milkau porque não sei até quan do viverei e agora espero que este seja o quadro definitivo da minha existência Sou um imigrado e tenho a alma do repouso este será o meu último movimento na terra Mas nada o agita Nada o impelirá para fora daqui fora desta paz dolorosa que é uma sepultura para nós Aqui fico E se aqui está a paz é a paz que procuro exatamente Eu me conservarei na humildade em torno de mim desejarei uma harmo nia infinita É então por isso que vai para o mato Não seria melhor ficar aqui no comércio Não Procuro uma vida estável e livre e o comércio é torturado pela avidez e ambição Além disso penso que o trabalho digno do homem é a lavoura nos países novos e férteis como este e a indústria no velho continente O comércio não me atrai com suas formas grosseiras seus estímulos baixos sua posição intermediária na so ciedade Não me sinto solicitado senão por coisas mais simples e aproximadas da situação do futuro O senhor persiste em se dedicar aos negócios Não sei bem o que faça Estou indeciso irresoluto Penso que se o comércio pode ser um meio de fortuna e de dar vazão às ânsias de jogador que há em cada homem é também um caminho baixo e vil Estou indeciso e não fosse o medo do tédio da mata e da morte da agitação eu talvez me abalançasse a ir trabalhar na lavoura A cidade estava iluminada frouxamente com espaços longos de sombra mas em outros pontos as luzes da rua e das casas caíam sobre as águas do rio que as multiplicavam em seu espelho trêmulo Lentz se calara Perdiase na noite o seu olhar como em uma grande cisma o seu rosto não tinha serenidade as linhas estavam perturbadas dando à fisionomia uma expressão de rancor e de inquietação Parecia que dentro dele num monólogo íntimo e doloroso se prolongava a queixa contra o destino e ele se debatia em vão dentro dos muros fechados da sua sorte num esforço de ave ferida para pairar nas regiões do seu sonho Milkau apiedouse daquele silêncio aflitivo e deixandose levar pelos bons impulsos da sua confiança abundante disse ao jovem companheiro Por que não iremos trabalhar no Rio Doce O senhor talvez se ache aí mais feliz e mais independente Podemos requerer um mesmo prazo e como não temos família faremos uma sociedade e nos auxiliaremos mutuamente E se se arrepender poderá partir que me não queixarei de ficar só pois esse é ainda até agora o meu destino Estas palavras eram brandas e boas e foram ditas com muita pureza de coração Pelos lábios de Lentz passou um sorriso tão suave como franjas de um lago manso em que rapidamente se transformaram as fúrias de mar revolto que era pouco antes a sua alma Sim veremos Eu lhe agradeço muito Por que não murmurou numa emoção que por orgulho procurava domar Milkau regozijouse na perspectiva de ter um companheiro precisando de amparo e conforto no exílio E também se alegrava por si mesmo GRAÇA ARANHA porque sentia os seus instintos de comunicação espraiaremse no convívio daquele rapaz que lhe parecia tão inteligente e cujos desígnios revelavam pelo menos uma alma em aspiração Todavia não quis de um modo brus co e imprevisto decidir a sorte do outro imigrante pela sua Esperava que ele refletisse mais antes de se determinar a acompanhálo Em Lentz o que predispunha a aceitar a companhia de Milkau era a indecisão em que estava de se abandonar à vida rude e mesquinha de caixeiro era também a sedução intelectual por esse companheiro de acaso Milkau não quis insistir e delicadamente desviou o assunto Passou a conversar negligente mente sobre outras coisas Então temlhe agradado a terra esta verdura de primavera o es plendor do sol a vegetação possante Sim tudo isto é forte e belo mas eu prefiro os campos europeus com suas mutações o seu quadro de montanhas o seu colorido mais distinto A Europa atalhou Milkau tem a tradição que nos priva da liber dade de julgamento Fora dela não sei se o Reno vale o Santa Maria que sem lendas sem passado reflete em mim por seus próprios merecimen tos tanto encanto com suas margens incultas sua água límpida e borbu lhante seus chorões curvos Oh este sol implacável Aqui não há descanso para uma suave matização da cor Sempre este amarelo a nos perseguir E com um gesto de mão sobre a cabeça Lentz parecia querer arrancar de si a obsessão da luz onipotente Breve se acostumará e há de amar esta natureza até à paixão Eu já venho de longe e cada vez a admiro mais Ah não é esta a primeira vez que vem ao interior do Brasil Por este lado é a primeira vez Antes estive de passagem em Minas Gerais logo que cheguei ao país levando o plano de me estabelecer ali mas não encontrando facilidade dirigime para cá CANAÃ Em que lugar de Minas esteve No oeste E foi uma grande viagem para mim São João del Rei é uma impressão única Como interrogou curioso Lentz Ali me pareceu ter penetrado no passado intacto do Brasil Oh Foi uma volta deliciosa aos tempos mortos hoje por toda a parte e que ainda lá prolongam a sua vida Lentz embebeuse nas palavras de Milkau que começou a contarlhe a sua visita à velha cidade mineira No Cachoeiro era silêncio a luz das casas se apagara os lampiões da rua espaçadamente ponteavam de luz as sombras da noite diáfana da noite de verão que é apenas um instantâneo descanso do dia A cachoeira mugia sempre e o seu rl1llor igual e constante passava imperceptível aos ouvidos de Lentz todo à escuta da narração de Milkau Logo à primeira madrugada o meu sono de viajante fatigado foi cor tado pelo repicar de sinos de muitas igrejas o que me produziu um doce encantamento Como a todo homem habituado às grandes cidades mo dernas a música dos sinos erame desconhecida na força e na sonoridade que tinha naquela manhã mas no entanto essa música estranha não me feria e eu a recolhia quase em êxtase como se fosse uma antiga e revivi da sensação pois parecia que era entendida por uma alma longínqua que se despertava dentro de mim e tomava posse do meu ser Deixeime ficar deitado embalado pelas carícias do sono E sonhava O espaço estava cheio de sons o ar leve da montanha flutuava como se todo ele estivesse impregnado de música a natureza despertada pela alegria dos sinos volatizavase e libravase leve no ar a cidade fugia da terra carrega da nas harmonias voava para os céus cantando E eu sonhava ouvindo repicar procurando a calma o sono e o esquecimento A Idade Média representavase no meu sonho povoados castelos feudais mosteiros GRAÇA ARANHA homens e coisas todos ligados pelas vozes do campanário que marcava no espaço a vida e a morte Milkau continuava a falar da velha cidade mineira que ele definia como um santuário O espírito da religião ali localizado davalhe o caráter e a significação Dentro do seu recinto montanhoso irregular e feio depara vase de instante em instante com uma igreja todas elas singelas tristes erguidas mais pela necessidade da devoção que pelos carinhos da arte As casas acompanhavam esse tom severo e despretensioso e eram assinaladas por pequenas cruzes negras nas paredes desbotadas Tudo ali tinha um aspecto sacerdotal tudo falava de religião igrejas freqüentadas quase todas as horas do dia devotas procurando a solidão dos altares as festas religiosas preocupando o povo e divertindoo durante o ano inteiro Na quaresma a irrupção religiosa era ainda mais crescente Nesse tempo às noites um padre saía à rua acompanhado da multidão cantando rezas Uma cruz negra envolta nas dobras alvas do sudário meia dúzia de tochas ace sas e era tudo E lá a viasacra percorrendo os passos da cidade Numa devoção alegre e radiante na mais completa e bela confusão de classes o povo seguia rezando pela rua em um murmúrio alto fazendo coro às orações começadas pelo padre e quando chegava aos passos oratórios abertos nas ruas cantava músicas suaves e ingênuas A multidão ajoe lhada sob o céu límpido iluminada pelos raios da lua acariciada pela brisa fresca das alturas implorava num sorriso misericórdia Cercada de morros a cidade era guardada ainda por igrejas postadas nas alturas como de atalaia Pelas encostas das montanhas subiam os devo tos em romarias piedosas aos santos padroeiros das capelinhas humildes Nas tardes de verão recordava Milkau costumava desfilar um cortejo de seminaristas em férias e às vezes esse cordão negro sucedia cruzar com o bando infantil e branco das colegiais dirigidas por irmãs de caridade os dois grupos não se aproximavam e se desviavam reverentes subindo e CANAÃ descendo pelos morros sobre os quais iam descrevendo longas e marciais teorias até se sumirem no horizonte E se à hora da avemaria um devo to retardatário passando por aquelas montanhas saudava os seminaristas em nome de Cristo os rapazes erguiam a cabeça com altivez para o céu num relâmpago se descobriam irrompendolhes do peito um grande fer voroso grito que a solidão da tarde no deserto tornava solene Para sem pre seja louvado A cidade ainda falava a outras tradições do velho Brasil Sobre o seu terreno acidentado sulcos abertos e profundos indicavam a passagem do homem terrível que por ali desentranhou o ouro A paisagem está toda marcada de cicatrizes das feridas da terra que assim maltratada e hedionda clama às gerações de hoje contra a devastação do passado O homem moderno limpo de coração não deixará de sentir um frêmito de terror reconstruindo no espetáculo daquela paragem morta todo o quadro de uma época feita de escravidão de ouro e de sangue Há casas ali que deviam ser zeladas como relíquias das me lhores páginas da história de uma nação por elas passaram mártires nelas viveram sonhadores e os habitantes do lugar ainda sabem ler nas paredes dessas casas conservadas e povoadas dos restos de outrora a poesia da liberdade e da grandeza de todo o País E essa mistura de fé religiosa e patriótica dá um caráter distinto àquela antiga cidade purificandoa momentaneamente dos vícios em que se vão dissolven do as outras Rematou Milkau esse quadro com algumas reflexões Doume por muito feliz em ter ido a tempo de ver tudo isto porque não muito longe esse conjunto de poesia de tradição nacional vai acabar Na verdade é com mágoa que sinto estar prestes o desmoronamento daquela cidade circundada de colônias estrangeiras que a estreitam lenta mente até um dia a vencer e transformar sem piedade GRAÇA ARANHA Mas isto é a lei da vida e o destino fatal deste País Nós renovaremos a Nação nos espalharemos sobre ela a cobriremos com os nossos corpos brancos e a engrandeceremos para a eternidade A velha cidade mineira da sua narração não me interessa os meus olhos se projetam para o futuro Porto do Cachoeiro tem mais significação moral hoje pela força de vida de energia que em si contém do que os lugares mortos de um país que se vai extinguir Falandolhe com a maior franqueza a civilização dessa terra está na iIrigração de europeus mas é preciso que cada um de nós traga a vontade de governar e dirigir Nas suas palavras mesmas disse Milkau está escrita a nossa grande responsabilidade É provável que o nosso destino seja transformar de baixo acima este País de substituir por outra civilização toda a cultura a religião e as tradições de um povo É uma nova conquista lenta tenaz pacífica em seus meios mas terrível em seus projetos de ambição É pre ciso que a substituição seja tão pura e tão luminosa que sobre ela não caia a amargura e a maldição das destruições E por ora nós somos apenas um dissolvente da raça desta terra Nós penetramos na argamassa da Nação e a vamos amolecendo nós nos misturamos a este povo matamos as suas tradições e espalhamos a confusão Ninguém mais se entende as línguas estão baralhadas indivíduos vindos de toda parte trazem na alma a som bra de deuses diferentes todos são estranhos os pensamentos não se comunicam os homens e as mulheres não se amam com as mesmas pala vras Tudo se desagrega uma civilização cai e se transforma no desco nhecido O remodelamento vai sendo demorado Há uma tragédia na alma do brasileiro quando ele sente que não se desdobrará mais até ao infinito Toda a lei da criação é criar à própria semelhança E a tradição rompeuse o pai não transmitirá mais ao filho a sua iInagem a língua vai morrer os velhos sonhos da raça os longínquos e fundos desejos da per sonalidade emudeceram o futuro não entenderá o passado 2 N ão vejo nada claro disse Lentz E fechando os olhos feridos pela luz grandiosa do dia sentia dentro das pálpebras na câmara rubra das pupilas fuzilar relâmpagos de sol Quem me dera murmurava então Milkau que o sol se não apa gasse A pátria do homem devia limitarse a um canto da terra onde não houvesse sombra E os dois caminhavam afastandose do Porto do Cachoeiro na direção de Santa Teresa A princípio a estrada cortava por cima de pequenos mor ros descobertos onde numa paisagem acidentada e limpa passeavam errantes as sombras das nuvens daí a momentos ela morria na boca da mata Milkau e Lentz ao penetrarem na escuridão repentina e fria sen tiram pelos olhos o véu de uma ligeira vertigem Pouco a pouco eles se recompuseram e então admiraram A floresta tropical é o esplendor da força na desordem Árvores de to dos os tamanhos e de todas as feições árvores que se alteiam umas ere tas procurando emparelharse com as iguais e desenhar a linha de uma ordem ideal quando outras lhes saem ao encontro interrompendo a sime tria entre elas se curvam e derreiam até ao chão a farta e sombria coma Árvores umas largas traçando um raio de sombra para acampar um esquadrão estas de tronco pejado que cinco homens unidos não abarcaríam aquelas tão leves e esguias erguendose para espiar o céu e metendo a cabeça por cima do imenso chão verde e trêmulo que é a copa de todas as outras Há seiva para tudo força para a expansão da maior beleza de cada uma Toda aquela vasta flora traduz a Antiguidade e a vida Não se sente nela sombra de um sacrifício que seria o triunfo e o prêmio da morte Dentro as parasitas se enroscam pelos velhos troncos com a graça de um adorno e de uma carícia Há mesmo árvores que são mães de árvores e suportam com fácil e poderosa galhardia a filha que lhe sai do regaço e mais esplendorosa às vezes que a rija e bela progenitora Uma infinita variedade de arbustos cresce às plantas dos gigantes verdes é uma florazinha miúda compacta e atrevida dentro do bojo de outra mais ampla e opulenta E tudo se ergue e tudo se expande sobre a terra compondo um conjunto brutal enorme feito de membros aspérrimos entretecido no alto pela cabeleira basta e densa das árvores e embaixo pela rede intérmina das fortes e indomáveis raízes todo ele se entrelaça enroscandose pelos braços gigantescos prendendose como por tenazes numa grande solidariedade orgânica e viva Pelas frestas das árvores pela transparência das folhas desce uma claridade discreta e nessa suave iluminação se desenrola dentro do mato o cenário pomposo das cores Elas são em si vivas e quentes mas a gradação da sombra que ora avança ora se afasta comunicalhes da negrura do verde ao desmaio do branco a matização completa triunfal E lá em cada boca da estrada as portas da mata formam um círculo longínquo azulado como portas feitas só de luz e de uma luz zodiacal e docemente infinita De todo o corpo colossal das folhas novas e das folhas mortas dos troncos verdes e dos troncos carunchosos das parasitas das orquídeas das flores selvagens da resina que se derrama vagarosa ao longo C ANAÃ das árvores dos pássaros dos insetos dos animais ocultos no segredo da selva se desprende um cheiro misterioso e singular que se volatiliza e se difunde no imenso todo e tal como o aroma das catedrais acalma embria ga e adormece as coisas Na volúpia harmoniosa desse perfume que é acre e tonteante com a claridade que é branda está a fonte do repouso da ma ta O silêncio que mora na floresta é tão profundo tão sereno que parece eterno Feito das vozes baixas dos murmúrios dos movimentos rítmicos dos vegetais é completo e absoluto na sua perfeita harmonia Se por entre as folhas secas amontoadas no solo se escapa um réptil então o ligeiro far falhar delas corta a doce combinação do silêncio há no ar uma deslocação fugaz como um relâmpago pelos nervos de todo o mato perpassa um arre pio e os viajantes que caminham cheios da solidão augusta voltamse in quietos sentindo no corpo o frio elétrico e instantâneo do pavor Extraordinário disse Lentz saindo do seu espanto Milkau replicou A sensação que aqui recebemos é muito diferente da que nos deixa a paisagem européia E mirando para o alto e para a frente continuou Aqui o espírito é esmagado pela estupenda majestade da natureza Nós nos dissolvemos na contemplação E afinal aquele que se perde na adoração é o escravo de uma hipnose a personalidade se escapa para se difundir na alma do Todo A floresta no Brasil é sombria e trágica Ela tem em si o tédio das coisas eternas A floresta européia é mais diáfana e passageira transformase infinitamente pelos toques da morte e da res surreição que nela se revezam como os dias e as noites Mas este espetáculo de uma grande mata brasileira é assombroso não é interrogou Lentz É A verdade porém é que ao tocarmos a região do assombro tal espetáculo nos priva da liberdade de ser e afinal nos constrange É o que sucede com esta força esta luz esta abundância Nós passamos por aqui em êxtase não compreendemos o mistério E mudos continuavam a caminhar pela estrada coberta os olhos de ambos a desmancharemse de admiração Passado algum tempo Lentz exprimiu alto o que ia pensando15 Não é possível haver civilização neste país A terra só por si com esta violência esta exuberância é um embaraço imenso Ora interrompeu Milkau tu sabes bem como se tem vencido aqui a natureza como o homem vai triunfando Mas o que se tem feito é quase nada e ainda assim é o esforço do europeu O homem brasileiro não é um fator do progresso é um híbrido E a civilização não se fará jamais nas raças inferiores Vê a História MILKAU Um dos erros dos intérpretes da História está no preconceito aristocrático com que concebem a idéia de raça Ninguém porém até hoje soube definir a raça e ainda menos como se distinguem umas das outras fazemse sobre isto jogos de palavras mas que são como esses desenhos de nuvens que ali vemos no alto aparições fantásticas do nada E depois qual é a raça privilegiada para que só ela seja o teatro e o agente da civilização Houve um tempo na História em que o semita brilhava em Babilônia e no Egito o hindu nas margens sagradas do Ganges e eles eram a civilização toda o resto do mundo era a nebulosa de que se não cogitava E no entanto é junto ao Sena e ao Tâmisa que a cultura se esgota hoje numa volúpia farta e alquebrada O que eu vejo neste vasto panorama da História para que me volto ansioso e interrogante é a civilização deslocandose sem interrupção indo de grupo a grupo através de todas as raças numa fatal apresentação gradual de grandes trechos da terra à sua luz e calor Uns se vão iluminando enquanto outros descem às trevas CANAÃ LENTZ Até agora não vejo probabilidade da raça negra atingir a ci vilização dos brancos Jamais a África MILKAU O tempo da África chegará As raças civilizamse pela fusão é no encontro das raças adiantadas com as raças virgens selvagens que es tá o repouso conservador o milagre do rejuvenescimento da civilização O papel dos povos superiores é o instintivo impulso do desdobramento da cultura transfundindo de corpo a corpo o produto dessa fusão que passa da a treva da gestação leva mais longe o capital acumulado nas infinitas gerações Foi assim que a Gália se tornou França e a Germânia Alemanha LENTZ Não acredito que da fusão com espécies radicalmente incapazes resulte uma raça sobre que se possa desenvolver a civilização Será sempre uma cultura inferior civilização de mulatos eternos escravos em revoltas e quedas Enquanto não se eliminar a raça que é o produto de tal fusão a ci vilização será sempre um misterioso artificio todos os minutos rotos pelo sensualismo pela bestialidade e pelo servilismo inato do negro O proble ma social para o progresso de uma região como o Brasil está na substituição de uma raça lúbrida como a dos mulatos por europeus A imigração não é simplesmente para o futuro da região do País um caso de simples estética é antes de tudo uma questão complexa que interessa o futuro humano MILKAU A substituição de uma raça não é remédio ao mal de qual quer civilização Eu tenho para mim que o progresso se fará numa evo lução constante e indefinida Nesta grande massa da humanidade há na ções que chegam ao maior adiantamento depois definham e morrem outras que apenas esboçam um princípio de cultura para desaparecerem imediatamente mas o conjunto humano formado dos povos das raças das nações não pára em sua marcha caminha progredindo sempre e os seus eclipses os seus desmaios não são mais que períodos de transfor mações para épocas fecundas e melhores É a fatalidade do Universo que se cumpre nesse Todo que é uma parte dele Quando não há um tra balho à flor das coisas luminoso e doce há uma elaboração subterrânea tenebrosa e forte Às vezes é num ponto isolado da superfície que se dá a opacidade das trevas e pela fusão um povo aí se forma recapitulando a civilização desde o seu ponto inicial e preparandose para levar o progresso mais longe que os povos geradores LENTZ Como então o contato dos povos da arte com os selvagens determina um precipitado que excede àqueles na capacidade estética MILKAU A arte Lentz pode diminuir ou aumentar em alguma das suas expressões segundo várias solicitações do meio e da época mas pelo fato de não florescer certa forma de Arte o progresso artístico não deixa de ser maior Se a verdade estivesse na conclusão contrária então a humanidade teria retrocedido depois do período do grego e da Renascença porque até agora a História não conta épocas tão felizes para a Escultura e para a Pintura LENTZ Mas toda a questão está na compreensão do progresso moral MILKAU Quando a humanidade partiu do silêncio das florestas para o tumulto das cidades veio descrevendo uma longa parábola da maior escravidão à maior liberdade Todo o alvo humano é o aumento da solidariedade é a ligação do homem ao homem diminuídas as causas de separação No princípio era a força no fim será o amor LENTZ Não Milkau a força é eterna e não desaparecerá cada dia ela subjugará o escravo Essa civilização que é o sonho da democracia da fraternidade é uma triste negação de toda a arte de toda a liberdade e da própria vida O homem deve ser forte e querer viver e aquele que um dia atinge a consciência de sua personalidade que se entrega a uma livre expansão dos seus desejos aquele que na opulência de uma poesia mágica cria para si um mundo e o goza aquele que faz tremer o solo e que é ele próprio uma floração da força e da beleza esse é homem e senhor O fim de toda a sua vida não é a ligação vulgar e mesquinha entre os homens CANAÃ o que ele busca no mundo é realizar as expressões as inspirações da Arte as nobres indomáveis energias os sonhos e as visões do poeta para con duzir como chefe como pastor o rebanho Que importam a solidariedade e o amor Viver a vida na igualdade é apodrecer num charco MILKAU Toda a marcha humana é uma aspiração da liberdade esta é o verdadeiro apoio o estímulo a razão de ser de uma sociedade A or dem não é um princípio moral é apenas um fator preexistente e indis pensável ao conceito social não pode haver sociedade sem ordem como cálculo sem números a harmonia existirá por momentos mesmo num regímen de escravos e de senhores mas será instável e sem a liberdade não há ordem possível a busca e a realização da liberdade como funda mento da solidariedade são o fim de toda a existência Mas para aí che gar que caminho não percorrer o homem A liberdade é como a pró pria vida nasce e cresce na dor LENTZ Oh mas essa dor deita gotas de amargura sobre a vitória Não o verdadeiro homem é o que se libertou de todo o sofrimento aquele cujos nervos não se contraem nas agonias o que é sereno e não sofre o que é soberano o que é onipotente o que tem sua integridade completa e fulgurante o que não ama porque o amor é um desdobra mento doloroso da personalidade MILKAU O que nos une solidariamente na humanidade é o sofrimen to Ele é a fonte do amor da religião e da arte e não se pode substituir a sua consciência fecunda pelo império de uma insensibilidade feroz LENTZ Quanto a mim penso que devemos voltar atrás apagar até aos últimos traços as manchas desta civilização de humildes de sofre dores de doentes purificarnos do seu veneno que nos mata depois de nos entristecer MILKAU Eu vejo na exaltação das tuas palavras que há em nós uma tristeza diversa diante do quadro da vida dos homens mas sempre tris teza e desespero O mal é universal ninguém está satisfeito por estes tempos todos se lamentam e nem senhores nem escravos nem ricos nem pobres nem cultivados nem simples têm o seu quinhão de alegria de satisfação como queriam E quando numa sociedade o indivíduo sofre essa gota de agonia é bastante para condenar todo o fundamento da comunhão Há uma crise em tudo o próprio solo é vacilante e trêmulo o mundo está abalado a atmosfera é irrespirável No meio de confusas aspirações neste contato estranho de sentimentos tão vários podese acaso fundar a harmonia sossegada e doce da vida A religião foise ela é do tempo e como o próprio tempo uma vez perdida não volta mais Uma civilização de guerreiros persiste no meio do surto da alma pacífica do homem Tudo se confunde se mistura e se repele num torvelinho de desespero A sombra do passado penetra demasiado na morada do homem moderno e enchelhe a casa de espectros e visões que o detêm e o perturbam E o futuro mensageiro do gesto consolador vem avançando a medo como um ladrão noturno Mas eu não esperei o seu passo vacilante e tardo despi a minha roupagem pesada e lépido então fui buscar o perfume e os alimentos que vagaroso e divino ele vem trazendo aos homens E como dentro em mim é doce a salvação LENTZ E para aí chegares Deixaste pátria família sociedade uma civilização superior MILKAU Deixei o que era vão LENTZ E à Europa e à Alemanha nada mais te prende MILKAU Somente o que elas têm de grande no passado Mas isto é o incorpóreo é o invisível e eu não preciso de me sentar sobre as ruínas para amálo É a obra da imaginação e da memória O meu culto ao que é humano é ativo reside na dupla consciência da continuidade e da indefinidade do progresso O que a Europa nos mostra como forma da vi CANAÃ da é apenas um prolongamento desarmônico das forças de ontem e das solicitações do presente LENTZ Não compreendo como por um ato de vontade se possa tro car Berlim pelo Cachoeiro De que cidade da Alemanha és tu MILKAU Sou de Heidelberg e de lá guardo as minhas mais longínquas recordações Vejome ao lado de meu pai dia e noite ligados como o cor po e a sombra Ele era um professor de colégio um desses universitários muito instruídos mas como a maior parte deles indeciso em sua vasta cultura escolar Meu pai Lentz era a própria doçura e as imagens que dele conservo no fundo da minha pupila são de um homem feito de sor risos suaves e inextinguíveis tinha uma inteligência sutil e aérea mas o pudor da audácia o entorpecia e por isso todo o seu grande capital de bon dade e de amor ficou sepultado no fundo do seu coração e o mundo o ignorou Ele continha e refreava a imaginação Oh como ele mesmo cria va barreiras ao seu espírito Os preconceitos chegavamlhe ao apelo da sua timidez e ele os acariciava como se fossem numes protetores Mas em tudo isto havia uma infelicidade funda que lhe devia ser o amargor da vida As suas expressões nunca transpiraram o sangue de todo o seu amor humano Foi o perfume que guardou no interior da alma sem o transfundir além e desse excesso de concentração veiolhe a morte LENTZ E nesse tempo que idade tinhas MILKAU Eu saía da universidade e entrava no mundo quando meu pai morria Minha mãe com lágrimas molhava noite e dia as saudades plan tadas no seu coração Ela foi mesquinha de dor e eu ameia até à sua morte como uma filha tamanhinha e mofina LENTZ E então MILKAU Depois de três anos dessa existência entre a recordação e a piedade parti de Heidelberg com a alma cheia de um grande silêncio Comecei a ouvir os acentos da minha própria voz GRAÇA ARANHA LENTZ E não te veio ao encontro uma voz de mulher MILKAU Não LENTZ E nunca amaste a mulher MILKAU Aos dez anos o amor começou em mim mas como tudo que nasce prematuro essa paixão de infância foi meio doença meio êxtase místico O que há em mim de sentimento religioso se desenvolveu então na adoração daquilo que eu buscava bens e males da minha vida eu atribuía só a esta influência poderosa e mortificadora E no entanto ela fugia de mim Longos tempos se passaram nessa enganadora caça todos os meus estudos os meus brincos os meus sonhos de criança tiveram a forma dos pequenos e intensos martírios eles vertiam lágrimas e suavam sangue Como estremeço ao lembrarme de tanta vida de tanto amor consumido por uma sombra Em vão Não sei Quando volto ao meu passado é ainda esse trecho do caminho da vida que mais me deleita sinto quanto ele é embalsamado pelo amor que aí passou como esse perfume que foi a minha purificação da adolescência vem até mim E a grande ventura quem sabe foi que sobre essa montanha de fogo formada em minha alma jamais desceu o sorriso a brandura a carícia que resfria e que funde e então eu ascendi ascendi Aos vinte anos estava tudo acabado A morte dela veio habitar a minha existência e não me consolei longo tempo até que outro amor e esse o grande o único me viesse possuir sempre E Milkau foi interrompido pelo repique de campainhas que descia pela estrada redobrando a amplidão das vozes sonoras no silêncio da mata Pou co a pouco estes sons perdiam a doçura melancólica e se confundiam com gritos humanos e tropel de animais Não tardou que os dois amigos vissem uma tropa que vinha das terras altas em direção ao Porto do Cachoeiro 16 A mula da frente marchava enfeitada de fitas de cor que lhe embaraçavam os meneios da cabeça Milkau e o companheiro encostaramse para a beira CANAÃ da estrada apoiandose nas árvores e ainda assim os animais procurando o trilho habitual roçavamlhes ao corpo as bruacas de café e os olhavam com os seus olhos de besta imensos tristes e insondáveis Os tropeiros em sua maioria eram mais brancos que mulatos porém os gritos as ordens as pragas de uns e outros eram ditos espontaneamente na língua de cada um A tropa passou caminho abaixo levando consigo o seu violento barulho que quebrava além o sono das coisas Atrás dela ficara um odor acre de café verde de poeira levantada e de lama revolvida a qual ali na sombra e umi dade das árvores não se extingue nunca Os dois amigos caminharam algum tempo calados mas uma ânsia de confissão e de abandono os estimulava naquele mundo estranho e eles ladeados de árvores sem fim tornavam com frenesi com excitação ao diálogo perpétuo dos temas eternos LENTZ Na verdade há muito pouco tempo eu não poderia imaginar me aqui nesta floresta Nós somos governados na vida pelo im previsto A história é muito simples disse Lentz como respondendo a uma interrogação escrita nos olhos de Milkau Questão de amor ou antes questão de consciência Amei uma mulher que pensei ser a criatura sublime que fraca ama o forte que humilde ama o soberbo E nós fomos assim pelo caminho suntuoso da minha fantasia arrastandoa eu após mim já pela solidão das montanhas de neve já pelos lagos verdes que refrescam as terras já pelas cidades traficantes e vis Minha amada conheceu as vibrações infinitas da volúpia minha amada amou no san gue na carne e depois disto eu a julgava recompensada e feliz mas um dia revoltouse e a alma da mulher do ocidente que a longa cobardia dos homens já fez eterna nela se despertou para exigir de mim a minha escravidão Encontrou apoio nos preconceitos cristãos de meu pai nos escrúpulos e temores de mina mãe que me procurava dissolver ao bafo de sua ternura mórbida Resisti O pai de minha amada era um velho general companheiro de armas do meu e ele pedia a minha família uma reparação por aquilo que tinha sido o ato da independência da minha extrema sensibilidade E o que é pior no meu grupo social formouse em torno de mim uma atmosfera de reprovação todos se julgavam limpos de consciência para se afastarem de mim com desdém E confesso oh vergonha não pude suportar essa pressão coletiva dos meus camaradas dos indivíduos da minha classe O homem levará ainda muito tempo Milkau a libertarse do grupo a que pertence a emancipase dessa tirania poderosa que lhe anula a individualidade e lhe traça na fisionomia as linhas de uma máscara comum e sem distinção própria ou seja a família ou seja a classe ou seja a raça A minha arrogância entibiouse o que há em mim de cobarde de escravo entorpeceu a energia de minha atitude o que há em mim de aquisição intelectual conjunto de idéias árdegas e aceleradas foi morto pelo antigo e implacável sentimento Então fugi deixando os meus estudos de universidade a minha posição a minha família a minha fortuna O que eu buscava em troca de tudo que deixei era um mundo maior ainda virgem e intemerato do contato lascivo e deprimente dessa moral cristã era um verdadeiro domínio para o homem novo para quem saltando por cima dos séculos da humildade quer dar a mão aos antigos e com eles e sob o influxo deles renovar a civilização e produzir um mundo que seja o reino da força radiante e da beleza triunfal E parti então para a virgindade destas selvas com o ímpeto de viver nelas solitário na exaltação do meu ideal ou de um dia as transformar em um império branco que é o desejo e a razão do meu sangue Viajei longamente até agora O mar foi para mim a primeira grande sensação da liberdade sobre ele sonhei e vivi intensamente o gozo do pensamento puro mas não vivi o mar porque não atuei sobre ele e a vida é a ação MILKAU O que cada um de nós procura é tão diverso Também como tu deixei terra natal sociedade civilização em troca de bens CANAÃ maiores de bens eternos A minha trajetória vem de época mais remo ta Depois da morte de minha mãe o meu primeiro desejo foi sair de Heidelberg e buscar a vida em outra parte Berlim me atraía e julguei aí encontrar uma solução à minha existência então vaga e sem objetivo O que mais me atormentava era a consciência de que começava a viver por viver sem interesse na vida Afastado de qualquer crença religiosa sem uma idéia moral que fosse meu apoio o infinito para mim não existia a sociedade não me preocupava e a consolação não me podia vir do nada A minha existência era vagar com os companheiros fortuitos sem saber aonde os meus passos iriam findar Vivia vacilante e fugitivo buscando no exterior a calma para o espírito eram passeios intermináveis eternas caminhadas pelas ruas pelos parques da cidade pelos bosques calados Mas as minhas cismas eram as mesmas e eu sempre me prendia ao pas sado do meu coração invocando as três imagens dos que amei e cujos retratos povoavam o meu quarto e elas as minhas saudades Nesta época a minha não conformação ao mundo era cada vez maior sentiame cres cer dentro de mim mesmo numa aspiração indefinível de amor de calma de sonho que sempre me fugiam a minha tortura era infinita a minha melancolia acabrunhadora Minha amada minha mãe meu pai Custavame já resistir a tanto a minha doença moral pareciame irre mediável a mim torturado de um desejo de realidades quando tudo me era indeciso e intangíveL Nada havia que me prendesse à vida o que eu amara tinha desaparecido o que amo hoje não me tinha chegado Vivia na desilusão a minha dúvida tinha espaços tão ilimitados que meu espíri to oscilava e se perdia no mundo das idéias e das emoções E então tive aquela ânsia torturante de resolver de qualquer modo de terminar as minhas vacilações e desalentado procurei realizar a ação pela única for ma que me parecia positiva na vida isto é pela morte Mas a contem plação da miséria moral em torno de mim susteve aquilo a que em minha insânia eu chamava o ato da vontade Todos os sofrimentos estranhos se infiltravam em minha alma as lentas agonias e os duros sacrifícios alheios eram o pasto da minha piedade No estado de espírito em que me achava só tinha inclinação para os que se assemelhavam a mim Eu sofria e a dor pela sua mão forte e santa me conduziu aos outros homens Refleti se todos sofrem e se resignam é porque a vida é mais desejável do que a morte e não é o suicídio uma salvação que deve ser coletiva Não se trata de libertar um só dos mártires é preciso que todos se salvem E o suicídio começou a morrer no meu pensamento enquanto o clarão benfazejo da solidariedade aí apontava Não me restava agora para combater o desespero senão procurar na mesma vida a razão que me curasse do mal da morte e fosse um desafogo aos meus novos sentimentos Olhei todas as vias que se podiam abrir diante de mim Compreendi logo que não podia continuar na posição que tinha de crítico literário em um jornal de Berlim faltavame agora o ânimo de falar de livros inspirados em uma arte vazia sem ideal e saturada de sensualidade Convencime ainda mais da falsa situação em que estava fazendo parte do grupo de ignorantes e dogmáticos que envolvidos nos mistérios da imprensa exploram os outros homens cuja credulidade voluntária é ali como em toda a parte a forma de sua cumplicidade na perpetuação do mal sobre a terra E agora para onde ir perguntava eu humilhado Que profissão será a minha neste quadro do mundo A política A diplomacia A guerra Lentz Sim a guerra Porque ela é forte é digna O mundo deve ser a morada deliciosa do guerreiro Milkau Aquelas duas vidas a do político e a do diplomata eram vãs para quem não escutava a voz da comodidade ou da ambição para quem não queria definhar na esterilidade e no egoísmo para quem buscava o que é eterno A guerra é uma volta ao passado a um ideal morto para CANAÃ a civilização e de que o meu novo pensamento ainda mais se afastava Não tinha aonde ir e neste embaraço a minha crise prolongavase pois não era mais escolher entre a vida e a morte e sim entre qualquer vida e uma vida Essa uma vida que eu sonhava que eu queria e por toda a parte procurava não podia descobrir Não podia ir às oficinas ir à indústria porque aí não encontrava ainda a atmosfera para a minha inde pendência e o meu amor Não se tratava só de trabalho tratavase tam bém de uma livre expansão da individualidade e a indústria nesta velha civilização é um desfiladeiro apertado de combate no meio da sociedade que ela divide em senhores e escravos ricos e pobres A minha angús tia continuava e por entre esses tormentos a minha existência solitária se ia passando na contemplação reconfortante da Arte A Beleza entrava no meu espírito como um doce sustento Ou mirando a linha triunfal da estatuária ou agitandome ao vivo movimento do gesto ou aquietando me à serenidade da atitude repousada eternamente no mármore ou embebendome na poesia infinita da cor no enigma insondável da figu ra humana o meu espírito descansava e apoiavase para a existência E então pusme a viajar longos dias pelas antigas paragens onde a arte busca ainda a sua fonte de mistério e rejuvenescimento Foi pela arte que comecei a amar a natureza pois até então a minha atenção ao mundo exterior era vaga e incerta eu só tinha os olhos voltados para o meu caso pessoal para as minhas cismas longas e indefinidas No momento em que tratei a arte em que me possuí da beleza a minha vista se alongou pelo mundo afora e eu vi o esplendor por toda a parte Os panoramas do céu passaram a interessarme profundamente dias inteiros a admirar a lim pidez da atmosfera outros a perder os olhos no cristalino do ar outros a sonhar na imensidade das cúpulas azuis límpidas e infinitas que são o espaço Vi o mar o pequeno mar do sul da Europa suntuoso e doce que estreita a terra cheia de anfractuosidades as quais são abrigos para os GRAÇA ARANHA homens mar que não espanta mar amigo que é um traço de união entre as gentes e de outras praias brancas imensas espiei o outro mar o mar tenebroso que apavora que domina e que é em si mesmo como a pró pria liberdade inacessível tentador e indomáveL O meu deslumbra mento pela natureza afastavame de tudo o que não fosse contemplação Carregando por toda a parte a minha admiração sucediame passar lon gos tempos solitário nas florestas nos lagos e nos campos num êxtase de louco a extrair das coisas a suma da beleza Vivia mais das impressões da luz sobre o quadro onde se desenrola a vida que dos alimentos da terra No outono o sol abrasa as árvores amarelas e sobre elas a Morte é uma glória de ouro No inverno os esqueletos das árvores cobremse de branco como uma paisagem fantástica e morta e desce sobre a terra uma neve abundante vadia pelos ares leve como arminho farfalhante como a areia No tempo dessa única preocupação reinava em meu espírito um esquecimento do futuro e esse olvido me parecia a felici dade pela hipnose com que adormecia a minha consciência Assim vivi longo tempo e tão engolfado no meu culto que atravessava estranho e silencioso o mundo Viajava dentro do meu êxtase que era como um carro de ouro levado pelos cavalos árdegos da imaginação e transporta do pelos caminhos deslumbrantes das regiões plácidas e misteriosas da beleza imortaL Ao estado de desvario artístico sucedia em mim um desejo de mortificação e sofrimento Ressuscitar em pleno domínio do sensualismo a vida solitária dos monges evaporar a minha animalidade e dissolvêla na combustão de um sentimento ativo e fecundo tal foi a nova via por que caminhei Concentrado num lugarejo encravado no coração dos Alpes da Baviera absorvime no estudo e na cisma LENTZ E a consolação Não te veio MILKAU A princípio iludime pensando que não havia outra exis tência tão forte tão nobre mas os velhos monges tinham como sus tento o con solo da adoração O meu isolamento era apenas intelectual uma forma de desdém do mundo uma expressão mesquinha de quem foge do seu lugar na vida Depois dos primeiros momentos de prazer e tranqüilidade a minha cobardia me atormentava infinitamente e a solidão passou a ser um estado aflitivo Hoje Lentz quando penso no isolamento a que um homem se consagra penso sempre no deleite desse refúgio penso que é um sacrifício mas também que é uma manifestação de estéril orgulho O ascetismo é como uma ilha solitária que arde no meio do mar os seus fogos deslumbrantes têm um fantástico poder de iluminação sobre o mundo mas as suas labaredas afastam dela os homens E eu não podia consumirme nessas chamas pois já trazia dentro de mim a porção de humanidade que me conduzia à vida Então uma manhã desci das alturas Aqui nos meus olhos ainda tenho guardado até hoje o último espetáculo das montanhas glaciais Nunca mais tornarei à geleira fumegante nem sobre os blocos de gelos das brancas e frias pedras verei mais descansar a luz rósea do sol Paisagem solitária e morta como se fosse um fundo de mar seco e sobre ele os fragmentos da vida passando carregados ao sopro do vento gelado Adeus montanhas de silêncio de consolo e de imolação Quando cheguei abaixo era outro homem O amor dentro de mim sorria amparavame e um bemestar infinito nunca mais me deixou O que eu amava era fazer amar gerar o amor ligarme aos espíritos dissolverme no espaço universal e deixar que toda a essência de minha vida se espalhasse por toda a parte penetrasse nas mínimas moléculas como uma forca de bondade Lentz Não não A vida é a luta é o crime Todo o gozo humano tem o sabor do sangue tudo representa a vitória e a expansão do guerreiro Tu eras grande quando a sua sombra sinistra de solitário passeava nos Alpes e amedrontava os ursos Mas quando o amor penetrou em ti começaste a minguar a tua figura de homem vai se apan do e eu verei o teu semblante um dia sem luz sem vida sem força mirrado pasto da tristeza Milkau O princípio do amor me sustenta e protege Eu sou daqueles que foram por ele consolados Ia terminar o drama íntimo do meu espírito e concluirse a passagem dolorosa de um estado de moral hereditária para uma consciência pessoal Refletindo sobre a condição humana o meu pensamento se esclareceu quando vi a marcha da humanidade partindo da escravidão inicial No princípio era o caos massas informes apresentavamse como manchas de nebulosas cobrindo a terra pouco a pouco dessa confusão cósmica os homens se destacaram e as personalidades surgiram enquanto os outros ainda jazem informes na matéria geradora Mas um dia chegará também para estes a hora da criação o amor os reclamará à vida pois criar homens é a sua obra Um dia será a subordinação de tudo a todos para maior liberdade de cada um E a parábola que descreve a vida da grande escravidão para a maior individualidade Lentz Olhando a floresta Vê como tudo te desmente Esta mata que atravessamos é o fruto da luta a vitória do forte Cem combates travou cada árvore para chegar à sua esplêndida florescência a sua história é a derrota de muitas espécies a beleza de cada uma é o preço da morte de muitas coisas que desde o primeiro contato da semente poderosa foram destruídas Como é magnífica aquela árvore amarela Milkau O ipê o sagrado paudarco dos gentios desta terra Lentz O ipê é uma glória de luz é como uma umbela dourada no meio da nave verde da floresta o sol queimalhe as folhas e ele é o espelho do sol Para chegar àquele esplendor de cor de luz de expansão carnal quanto não matou o belo ipê A beleza é assassina e por isso os homens a adoram mais O processo é o mesmo por toda a seu espontâneo e feliz início Era um pequeno núcleo industrial da colônia Enquanto por toda a parte na mata espessa outros se batiam com a terra aquela pouca gente se entretinha nos seus humildes ofícios Milkau e Lentz percorriam o lugarejo notando a música vivaz e alegre formada pelos vários ruídos do trabalho17 Na oficina um velho sapateiro de longa barba e mãos muito brancas e esguias batia sola Lentz achouo venerável como um santo Um alfaiate passava a ferro um pano grosso mulheres fiavam nos seus quartos cantarolando outras amassavam o trigo e preparavam o pão outras em harmônicos movimentos peneiravam o milho para o fubá sempre o pequeno trabalho manual humilde e doce sem o grito do vapor e apenas como única máquina um pequeno engenho para mover os grandes foles de uma forja de ferreiro que a água de uma represa fazia rodar com estrépito sonoro E todo esse ruído era vivo e abençoado todo ele se entretécia sem violência e mesmo o malhar do ferro não destoava do metálico clangor de uma clarineta em que o mestre da banda de música de Santa Teresa dava a lição matinal aos seus discípulos Havia uma felicidade naquele conjunto de vida primitiva naquele rápido retrocesso aos começos do mundo Ao espírito desmedido e repentista de Lentz esse inesperado encontro com o Passado parecia a revelação de um mistério Isto é uma glória disse ele interrompendo o silêncio em que iam estes pobres que trabalham mediocrement com as próprias mãos estes homens que se não mancham nos fumos de carvão que se não embrutecem no barulho das máquinas que conservam toda a frescura da alma que se bastam a si mesmos que fazem cantando o pão as vestes são os criadores simples e naturais e a criação é neles uma feliz satisfação do inconsciente Milkau também admirava orgulhoso de ser homem naquele alto de montanha onde o trabalho tinha o seu cenário tranqüilo mas como enxergasse no louvor de Lentz o espírito negativo deste observou G R AÇA ARAN H A assim O s seres são desiguais mas para chegarmos à unidade cada um tem de contribuir com uma porção de amor O mal está na força é necessário renunciar a toda a autoridade É preciso não perturbar a harmonia dos movimentos e da espontaneidade de todos os seres Diante da obra da civilização o papel de cada um é igual ao do outro a ação dos grandes e dos pequenos confundese no resultado A História testemunha que a cultura não é somente a obra do crime e do sangue ao lado da ação moral concorrem as alavancas da simpatia A obra do passado é ainda venerável porque é sobre ela que se fun dará o futuro Não amaldiçoemos a civilização que nos veio no sangue antigo mas façamos que este sangue seja cada dia mais amoroso e menos carniceiro Que os nossos mais entranhados instintos da ani malidade se transformem no vôo luminoso da piedade da dedicação e do amor Era finda a viagem Os dois homens fitavam o sol que rubro rola va para debaixo das montanhas Os dois homens fitavam a Morte que se vinha apoderando docemente das coisas 74 3 M ilkau sentado à porta da pequena estalagem de Santa Teresa onde dormira estava contemplando a vida que se despertava em torno quando Lentz saindo por sua vez do quarto veio encontrálo com uma expressão repousada e jovial levemente excitado pela fres cura e sutileza do ar Milkau alegrouse vendo o seu companheiro de destino e saudouo com um sorriso de ternura Pouco depois iam jun tos pela pequena povoação agora acordada e radiante na sua ingênua simplicidade As pequenas casas todas brancas e toscas abriamse cheias de luz como olhos que acordassem Assim escancaradas e iguais se enfileiravam em ordem O seu conjunto uniforme era o de um pombal suspenso na altura silenciosa da montanha Em roda circunscrevendo a povoação um parque verde assinalado de árvores salteadas e por onde passavam cantantes fios de água corrente que eram a alma da paisagem Os dois imigrantes sentiamse transformados por uma paz íntima por uma consoladora esperança diante do quadro que lhes mostrava a população Viam todo o povo trabalhando às portas e no interior das casas com tranqüilidade e todas as artes ali renascer na singeleza do parte e o caminho da civilização é também pelo sangue e pelo crime Para viver a vida é preciso ir ao último grau de energia é preciso não a contrariar Aqueles que cruzam as armas são os mortos Os grandes seres absorvem os pequenos É a lei do mundo a lei monárquica o mais forte atrai o mais fraco o senhor arrasta o escravo o homem a mulher Tudo é subordinação e governo Milkau Olhando a mata A natureza inteira o conjunto de seres de coisas e homens as múltiplas e infinitas formas da matéria no cosmo tudo eu vejo como um só imenso todo sustentando em suas ínfimas moléculas por uma coesão de forças uma recíproca e incessante permuta num sistema de compensação de liga eterna que faz a trama e o princípio vital do mundo orgânico E tudo concorre para tudo Sol astro terra inseto planta peixe fera pássaro homem formam a cooperação da vida sobre o planeta O mundo é uma expressão da harmonia e do amor universal E apontando para a vegetação no alto de uma rocha Na verdade a vida dos homens na terra é como a daquelas sobre a pedra O cume da montanha era uma laje estéril e sobre ela não frutificavam as sementes de árvores e de grandes plantas trazidas pelos pássaros e pelos ventos Um dia enfim trouxeram eles sementes de algas e vegetais primitivos para os quais o mineral da terra é um alimento Muito tempo passado quando aquelas sementes primeiro rejeitadas foram de novo para ali carregadas já encontraram a terra formada pelas algas e sobre elas medraram espalhando pelo chão a sombra protegendo os primitivos moradores da pedra que então ousaram crescer entrelaçandose nos troncos das árvores no corpo de suas filhas Do muito amor da solidariedade infinita e íntima surgiu aquilo que nós admiramos um jardim tropical expandindose em luz em cor em aromas no alto da montanha que ele engrinalda como uma coroa de triunfo A vida humana deve ser também CANAÃ Realmente é um belo quadro esse que vemos e o espetáculo de um trabalho livre e individual nos embriaga de prazer Mas no fundo assistimos a um começo de civilização é o homem que ainda não venceu grande parte das forças da natureza e está ao lado dela numa postura humilde e servil Mas quem pode negar que o homem servo da máquina se vai afun dando num embrutecimento pior que o do selvagem replicou Lentz Para mim há uma ilusão nesse sentimento romântico Sim a má quina especializando e eliminando os homens tiroulhes a percepção integral da indústria hoje porém que o homem a transformou em um instrumento de movimentos próprios ele se libertou readquiriu a sua inteligência dirigindo o maquinismo engrandecido quase à altura de um operário Nós não podemos fazer que a massa da civilização retroceda a esse antigo período da indústria A poesia que há nele é o perfume mis terioso do passado para o qual nos voltamos atemorizados mas há tam bém uma poesia mais forte e mais sedutora na vida industrial de hoje e é preciso considerála pelo seu prisma luminoso como uma aurora Pois eu repetia Lentz inabalável enquanto passeava ao lado de Milkau tenho como sagrada toda essa gente merecem mais o meu amor que essa infinidade de proletários cheios de ambições famintos e pavorosos procurando governar o mundo Ao menos estes aqui puros de todo o pecado de orgulho são bons e ingênuos e suportam o seu jogo com um sorriso Passearam ainda algum tempo sentindo uma entranhada dificuldade em abandonar aquele lugar Dirigiram os passos para os caminhos que abeiravam Santa Teresa Procuravam as pequenas elevações giravam abaixo e acima pelo parque paravam à porta das casas miravam aten tos o serviço que nelas se fazia sorriam às crianças e perseguindo com olhos de admiração as saudáveis raparigas enrubesciamnas E em tudo isso GRAÇA ARANHA se recreavam mansamente deixandose ir na inconsciência desses atos espontâneos que os retinham alguns minutos no povoado Mas afinal tive ram de se arrancar ao descuidado repouso Uma filha da hoteleira levouos até à boca do caminho do Timbuí Com mil perguntas a prenderam uns instantes agradados do seu rosto delicado da sua forte e fulva cabeleira Lentz via na rapariga uma divindade estranha naquela floresta verde mas uma divindade meiga como eram os habitantes de Santa Teresa A jovem estendeu o braço longo indicandolhes o caminho Eles admiraram lhe o gesto o ar a graça e partiram como num sonho A princípio iam meio apreensivos e calados como quem parte para o desconhecido A estrada por cima dos morros descampados ora des cia ora subia O panorama largo ousado fecundo variava de aspectos cheio de montes vales florestas ribeiros e cascatas Era um trecho de uma região poderosa e opulenta da terra brasileira Dentro dela se abrigava a multidão de bárbaros e de estranhos ali recebidos com bran dura e carinho Milkau e Lentz passaram pelas casas de colonos agricul tores as quais viam pela primeira vez e sem nelas penetrarem pu nhamse a mirar de fora esses retiros encantados de verdura de tran qüilidade e abundância E as casinhas sucediamse por todo o vale abrigadas umas no fundo seio dos morros outras dependuradas na en costa destes todas com disposição e graça uniformes Havia fumo em todas as chaminés mulheres em suas ocupações do mésticas animais e crianças debaixo das árvores homens metidos na som bra fresca dos cafezais que rodeavam as habitações E os dois imigrantes no silêncio dos caminhos unidos enfim numa mesma comunhão de es perança e admiração puseramse a louvar a Terra de Canaã Eles disseram que ela era formosa com os seus trajes magníficos vesti das de sol coberta com o manto do voluptuoso e infinito azul que era animada pelas coisas sobre o seu colo águas dos rios fazem voltas e outras enlaçamlhe a cintura desejada as estrelas numa vertigem de admiração se precipitam sobre ela como lágrimas de uma alegria divina as flores a perfumam com aroma estranho os pássaros a celebram ventos suaves lhe penteiam e frisam os cabelos verdes o mar o longo mar com a espuma dos seus beijos afagalhe eternamente o corpo Eles disseram que ela era opulenta porque no seu bojo fantástico guarda a riqueza inumerável o ouro puro e a pedra iluminada porque os seus rebanhos fartam as suas nações e o fruto das suas árvores consola o amargor da existência porque um só grão das suas areias fecundas fertilizaria o mundo inteiro e apagaria para sempre a miséria e a fome entre os homens Oh poderosa Eles disseram que ela amorosa enfraquece o sol com as suas sombras para o orvalho da noite fria tem o calor da pele aquecida e os homens encontram nela tão meiga e consoladora o esquecimento instantâneos da agonia eterna Eles disseram que ela era feliz entre as outras porque era a mãe abastada a casa de ouro a providência dos filhos despreocupados que a não enjeitam por outra não deixam as suas vestes protetoras e a recompensam com o gesto perpetuamente infantil e carinhoso e cantamlhe hinos saídos de um peito alegre Eles disseram que ela era generosa porque distribui os seus dons preciosos aos que deles têm desejo a sua porta não se fecha as suas riquezas não têm dono não é perturbada pela ambição e pelo orgulho os seus olhos suaves e divinos não distinguem as separações miseráveis o seu seio maternal se abre a todos com um farto e tépido agasalho Oh esperança nossa Eles disseram estes e outros louvores e caminharam dentro da luz Já traziam cinco horas de Santa Teresa quando chegaram à margem do Rio Doce Mal tiveram tempo de dar uma vista dolhos pela redondeza porque saindo de um barracão verde ali situado o agrimensor Felicíssimo se lhes dirigiu com o triângulo moreno do seu rosto escancarado num grande riso de vida e bondade Então gritou de longe isso são horas de chegar E sem esperar resposta foi ao encontro dos dois alemães com as mãos estendidas Milkau pensou que era o gênio da raça originária e senhora daquela terra que se lhes deparava numa alegria estrepitosa e confortante Ah meu caro disse Lentz por um pouco ficávamos por esses caminhos ajoelhados adorando esta sua bela terra Não há dúvidas isto é mesmo um paraíso concordou com entusiasmo o agrimensor E os outros começaram a contarlhes com exaltação as suas primeiras impressões Felicíssimo porém interrompeuos preocupados pelo instinto da hospitalidade Onde almoçaram Posso arranjar aqui alguma coisa para entreterem o estômago Obrigado disse Milkau Ao sairmos de Santa Teresa comemos alguma coisa que trazíamos e depois no caminho nos fartamos de laranjas no pomar de uma velha colona Ainda lhe trazemos algumas aqui Veja que beleza de fruta Ainda não viram nada respondeu o agrimensor recebendo as la 80 CANAÃ ranjas Não estraguem a admiração porque têm muito de que ficar de boca aberta Olhem não há Brasil como este e em tudo Encaminharamse para uma meiaágua coberta de zinco onde o agrimensor tinha o escritório cujo arranjo não podia ser mais simples alguns instrumentos de campo ao canto sobre uma mesa dois ou três grandes livros que eram o registro dos prazos arrendados ao colonos e na parede um grande mapa dos lotes de terra da região Nem um livro de leitura nem o quadro mais humilde nem uma fotografia ape nas um maço de jornais para desabafo da curiosidade do cearense Felicíssimo fazia também desse barracão o seu quarto de dormir de uma singeleza nômade Ao lado havia outro puxado maior que era o alojamento destinado aos imigrantes enquanto esperassem levantar nos lotes as suas casas Era espaçoso e arrumado como um dormitório de hospital tendo ao fundo uma pequena cozinha Felicíssimo porém abrira gostoso uma exceção para os dois estrangeiros agasalhandoos no barracão do escritório Os hóspedes agradeceram ao brasileiro amável e abancados todos nos quartos de dormir travaram conversas nas quais os imigrantes se foram informando de muitas coisas do lugar até que o agrimensor sentindo que o sol baixava lhes disse Ande daí gente Vamos escolher os lotes Passaram para o escritório e diante da planta dependurada acres centou Para mim o que mais lhes conviria seria o número dez Aí a terra deve ser esplêndida O diabo é que está enterrado em plena mata e vão ter muito trabalho para fazer a limpa Mas olhem que na verdade vale o esforço E Felicíssimo de varinha em punho para apontar no mapa todo assanhado interrogava os outros Milkau sem se preocupar muito com a escolha e querendo ceder por delicadeza à opinião do agrimensor aceitou o lote proposto Ele se rejubilava naquele dia glorioso com a miragem de um grande e santo labor Preparavamse para sair Chegando à porta Felicíssimo farejou o tempo com ares de entendido refletiu e ponderou aos companheiros Daqui ao lote dez é um pedaço não teríamos tempo de ir e voltar com o dia Mas se fazem questão De forma alguma respondeu Lentz é melhor ficar para amanhã Uma doce fadiga entorpecia os viajantes e eles deitados sobre a relva junto à casa em companhia do cearense ouviamlhe as histórias cismavam em coisas vagas e miravam o rio passar preguiçoso Um grupo de homens armados de ferramentas de campo apareceu à distância Vinham vagarosamente arrastandose pela estrada descampada junto à praia do rio Percebendo de longe que havia gente nova caminhavam silenciosos com o impulso sinistro e reservado que é o primeiro movimento do homem para o homem Chegados que foram saudaramsurdamente e calados entraram no interior do armazém para guardar as ferramentas Felicíssimo vendoos passar tão estranhos ficou surpreendido e gritoulhes Então camaradas O rumo está acabado Pronto disseram passando sem parar a um só grito feito da voz de todos e entreolhandose espantados por terem respondido ao mesmo tempo fazendo coro Milkau e Lentz admiravam a robustez daqueles homens com pulsos de ferro torso hercúleo barbas avermelhadas olhos de um azul de abismo muito parecidos como um grupo de irmãos Somente havia um mulato que entre eles se destacava Tinha a cara mascarada pelas bexigas era bronzeado usava uma pequena barba anelada e falha e o cabelo curto em pé sobre a testa Com os olhos rajados de sangue e os dentes pontiagudos de serra tomava por vezes a aparência de um 82 CANAÃ sátiro maligno mas essa impressão não era freqüente e rapidamente a desmanchava um riso fácil e ingênuo No meio da massa indistinta dos companheiros louros e pesados o cabra brasileiro tinha um ar vito rioso um ar espiritualizado Não havia na verdade entre ele e a terra um remoto convívio perpetuado no sangue e transmitido de geração em geração Pouco a pouco os homens foram se aproximando dos recémchega dos ouvindolhes silenciosos a conversa Como o sol se punha e as águas do rio se faziam cor de sangue Felicíssimo apontou para o céu mostrando a Milkau e a Lentz os bandos de aves que passavam na ilu minação do crepúsculo em longas teorias harmônicas Ah Um bom tiro exclamou o mulato saboreando com melan colia os efeitos criados em sua imaginação de caçador Qual Joca ali tu não apanhavas nada cabra disselhe a rir Felicíssimo em alemão Os camaradas aplaudiram Aposto seu cadete replicou o mulato com fanfarrice Se eu tivesse uma boa arma não ficava um bicho daqueles voando Era só pon taria no da frente e se a arma fosse espalhadeira havia de se ver As aves em bando continuavam serenas e soberbas no seu vôo Ou tras vinham ao longe Joca olhava seguindoas pesarosamente Admiravase Lentz do modo corrente por que o mulato falava ale mão apesar de rechear a frase de vocábulos brasileiros 18 E dirigindo se aos trabalhadores alemães perguntoulhes se falavam a língua do país Responderam que não E Felicíssimo observou a propósito Olhe não se admire desses homens que estão aqui há um ano ou pouco mais Há gente na colônia entrada há mais de trinta anos que não fala uma palavra de brasileiro É uma vergonha O que acontece é que os nossos tropeiros e trabalhadores todos falam o alemão Não sei GRAÇA ARAN H A não há povo como o nosso para aprender as línguas alheias Creia que é um dom natural Joca aprovou convicto e ajuntou que ele mesmo j á falava mais alemão que a sua língua e arranhava um pouco o polaco e o italiano No fundo do pensamento de Lentz houve um pequeno júbilo por essas confirmações da insuficiência do meio brasileiro para impor uma lín gua Esta fraqueza não seria a brecha para os futuros destinos ger mânicos daquela magnífica terra E pôsse a cismar com os olhos aber tos e fulgurantes Não estará longe o dia considerou Milkau em que a língua dos brasileiros dominará no seu país O caso das colônias é um acidente devido em grande parte à segregação delas no meio da população nati va Não digo que os idiomas estrangeiros não influam sobre o idioma nacional mas desta mistura resultará ainda uma língua cujo fundo cuja índole serão os do português trabalhado na alma da população por longos séculos fixado na poesia e transportado para o futuro por uma literatura que quer viver E sorria dirigindose a Lentz Nós seremos os vencidos Isto agradou a Felicíssimo Joca que de tudo só apanhou a frase fi nal olhou com superioridade a massa de seus companheiros alemães A profecia davalhe desde já um orgulho de vencedor Enquanto a conversação se ia desenrolando mansamente viram passar pelo caminho à beira do rio um velho muito alto e magro armado de espingarda e carregando um animal morto a gotejar sangue pelas feridas que Joca declarou ser uma paca O caçador era seguido por um bando de cães que o rodeavam ou o precediam todos muito árdegos de orelhas ora empinadas ora baixas exaustos da caçada boca aberta e língua de fora trêmulos nervosos a resfolegar quei mando o ar frio com ardente e inquieta respiração numa combustão CANAÃ que os envolvia de ligeiro fumo O caçador caminhava com passo rápi do os cães o acompanhavam ganindo e excitados pelo cheiro de san gue que escorria da caça Ah murmurou Joca com pena se nós apanhássemos aquele bichinho para a panela O caçador passou sem os cumprimentar É um selvagem disse Felicíssimo Mora por aqui interrogou Milkau É o vizinho mais perto do barracão mas nem por isso nos salva passa pela gente como se fôssemos cachorros respondeu Joca Há de ser algum solitário supôs Lentz Um arredio replicou o agrimensor não fala com pessoa algu ma que eu saiba vive só com aqueles cachorros que são valentes como feras E o velho sempre caminhava indiferente ao grupo de homens que o observavam até que se sumiu no mato Continuavam a tratar da vida singular que levava o caçador quando um dos camaradas se achegou a Felicíssimo prevenindoo de que po diam ir cear Ergueramse da relva uns espreguiçando os braços ou tros bocejando e tranqüilos e morosos entraram todos em casa Os trabalhadores do barracão armaram a mesa das refeições no dor mitório dos imigrantes e aí puseramse a cear A comida era simples e pobre o peixe salgado e a carneseca alimentação habitual dos ho mens do campo nos lugares do seu serviço e todos se banqueteavam alegremente alguns num prazer discreto e moroso outros espertos e faladores como Felicíssimo e Joca Lentz olhava agora as duas raças ali reunidas à mesa admirava o que havia de sólido e repousado nos gigantes alemães enquanto a facúndia interminável e mole do cearense e do mulato lhe trazia a sensação de enjôo de mar GRA Ç A ARA NHA No entanto Milkau estava solícito com todos alegrandose naquela co munhão entre as raças distintas vendo alargarse o destino da sobrevivente mesa comum que caía dos tempos como uma relíquia do patriarcado A sala era alumiada por um lampião de querosene e a luz turva e indecisa mas suficiente para que o novos colonos pudessem distinguir a fisionomia de cada trabalhador europeu até então para ele confundi dos numa só massa Uns eram já homens maduros e experimentados por longos sofrimentos outros novos e joviais geralmente fortes e mostrando uma calma indolente nos movimentos e nos olhos um longo descanso Comiam mais ou menos igualmente com medo e devagar Além do fundo uniforme da sua própria classe uma longa intimidade lhes dera em muitos pontos uma só feição Entretevese Milkau para conversar com os seus patrícios em inda gar dos lugares donde era cada um deles Quase todos procediam da Prússia Oriental da Pomerânia havia porém alguns que vinham das bandas do Reno De que lugar é perguntou Milkau ao trabalhador mais idoso De Germersheim Então somo quase vizinhos porque sou de Heidelberg O trabalhador sorriu feliz por ter encontrado um conterrâneo mas a sua alegria não passava de um gesto dolorosamente incompleto com o próprio espírito Para Milkau um compatriota era o apareci mento súbito e inesperado de todo o seu passado Uma incompreen sível saudade dos seus primeiros anos o mortificou um instante era como um arrependimento de não ter sido nos princípios da vida o homem de hoje Um desejo de voltar atrás de começar de novo de pagar em amor toda a indiferença que tivera pelas coisas da sua terra pelos homens da sua cidade pelo quadro enfim onde passara a sua mocidade silenciosa 86 Ah exclamou ligeiramente pensativo Então é da terra de Soror Marta Conheceu o Rochedo da Monja Sim Lentz perguntou se isso se ligava a alguma lenda E Milkau pediu ao trabalhador que narrasse essa tradição ignorada pelos que ali estavam Todos se voltaram para o emigrado do Reno O homem interrogado ficou um segundo atônito e irresoluto em sair da obscuridade coletiva e anônima em que até então estivera na mesa A princípio não disse uma palavra Coçava embaraçado a cabeça Joca a quem o silêncio de um instante perturbava e afligia voltouse para o companheiro alemão com os olhos esgazeados Desembucha homem de Deus é segredo gritou o cabra O alemão afinal resolveuse a falar olhando para todos muito espantado de se ver naquela situação saliente Na sua linguagem tosca contou que no tempo das cruzadas um duque apenas se casara partira a pelejar pela Fé Sua mulher ficara inconsolável com a separação temendo a morte do esposo fez voto de que se tornasse a vêlo o primeiro filho que tivessem seria consagrado ao serviço de Deus Voltou o duque e passado algum tempo nasceulhes uma filha que se chamou Marta A menina era de uma deslumbrante beleza e com pesar os nobres vizinhos que a queriam para esposa dos filhos viramna crescer morta para o mundo Apenas Marta se tornou moça entrou para o convento onde a sua piedade encantava ainda mais que a sua peregrina formosura O duque morreu na outra cruzada e a viúva sem mais filhos ficou isolada no castelo Eralhe único conforto ver a filha que de tempos a tempos ia visitála vestida de monja Uma vez quando esta atravessava o bosque para uma dessas visitas de consolação aconteceulhe encontrarse com um jo 87 GRAÇA ARANHA vem caçador filho de um conde palatino Deslumbrado o rapaz ficou louco de amor pela freira e silencioso seguiua até o castelo Lutou consigo por esconder a paixão criminosa mas foi impossível e venci do ansiado e ardente planejou raptar a monja Uma tarde disfarçado em aldeão o jovem conde bateu à porta do mosteiro para dizer a Marta que a duquesa estava a morrer A freira partiu logo para a casa de sua mãe O conde acompanhoua e quando chegaram ao lugar mais solitário descobriu o seu ardil e propôslhe fugirem e ocultarem o seu amor em outras terras Marta espavorida e virtuosa põese a correr O moço alucinado perseguea Vão os dois pela floresta como loucos A freira transviada toma um caminho que a afasta do castelo e no deses pero da fuga chega até o rio onde o conde a vai alcançando Um rochedo se abre e recolhe no seio da pedra a jovem monja Não acre ditou o conde na proteção de Deus e teimou em esperar a saída de Marta Ficou assim dias e dias ali vivendo encostado ao penhasco De dentro em vez de maldições vinha o eco das súplicas da freira pela sal vação da alma de seu malfeitor Passaramse meses anos o conde envelhecia a barba embranquecida alongouseIhe até aos pés e afinal o coração amolecido pelas orações da monja ficou expurgado da ten tação e ele convertido penitente entoava os hinos que Marta lhe ensi nava de dentro do rochedo inviolável Jurou então consagrarse ao serviço de Deus e no propósito de fundar uma ordem religiosa des pediuse da freira por entre lágrimas de arrependimento Partiu cur vado velho e cheio do espírito divino Abrese a rocha Marta sai na mesma juventude com que entrara Para ela assistida e alimentada pelos anjos o tempo não havia percorrido e restavalhe a ilusão de ter apenas passado um dia encerrada na pedra Confusa medrosa parte para o convento Durante a sua ausência as freiras ouvindo contar na sua cela uma voz celestial passaram todo o tempo ajoelhadas à porta rx 8 8 L CANAÃ embevecidas presas à melodia rezando em êxtase Quando Soror Marta saiu do rochedo parou a voz na cela e as freiras desprenderam se do encanto voltando aos seus labores Marta corria para o mosteiro e no seu caminho o tempo que era de inverno iase mudando em primavera abrindose em flores o campo mirrado Entrou no con vento e tudo estava como deixara anos antes Ali também o tempo não correra Arrojouse a monja aos pés da superiora confessando os perigos da sua ausência A pobre madre acreditou que era um instante de alucinação e disselhe que ela não se tinha afastado do quarto onde cantara os mais belos louvores a Deus Atônita Marta recolheuse ao seu aposento de onde no mesmo momento viu sair um anjo que a substituíra na ausência e que era a sua imagem A ceia iase acabando sob a apreensão vaga que no ânimo dos traba lhadores deixava a evocação das lendas natais Pouco a pouco cada um se foi erguendo e deixando a sala Não tardaram a se juntar fora no ter reiro à aragem fria da noite Milkau e Lentz também se chegaram aos outros e todos na solidão que era ali se reuniam mais e mais em Íntima comunhão Os homens deitaramse na relva voltados para o rio que era uma faixa fosforescente e trêmula de que parecia irradiar toda a luz que atenuava a escuridão da noite A conversa era morna e trôpega coxean do sobre assuntos incertos pois mais forte que estes havia em cada espírito uma idéia Íntima longínqua e poderosa que teimava em se fixar E um dos homens foi o intérprete de todos quando disse Há muito encantamento neste mundo de Deus Sempre se deve andar prevenido pois ninguém sabe o que lhe está reservado sofrer e ver Donde menos se espera surge um perigo Os outros pensativos concordaram num brando murmúrio caindo outra vez em silêncio Lentz quis levantarlhes o espírito e pôsse a negar GRAÇA ARANHA bruxas milagres e encantados Falou longamente mas sem força de abalar as convicções plantadas desde séculos às fontes daquelas almas E quando ele acabava dizendo As bruxas já morreram há muito tempo e elas sempre foram estas mesmas mulheres que vocês amam um dos mais velhos não gostou do tom da negação e replicou Não diga tal moço os homens devem tomar cautela nos seus amores Quantas desgraças não lhes acontecem por se fiarem em vozes e cantigas de mulheres Cada um lembrou uma história da sua localidade originária Ali no serão da terra tropical surgiram chamados pelas evocações dos emi grados os heróis os semideuses saxões as ninfas do Reno os gigantes com o seu cortejo de anões fantásticos Os dois brasileiros interes savamse ardentemente por esses contos vindos de um mundo desco nhecido e que lhes sugeriam a reminiscência de tantas outras histórias européias a eles transmitidas e adulteradas pelos povos brancos pri meiros geradores da sua raça mestiça Mas agora as lendas volviam às suas origens vinham mais puras mais lindas com o seu caráter imune de contatos estranhos e com que sabor não escutaram as façanhas de Siegfried filho de Sigisberto as suas proezas no castelo do Nivelino seu combate com o gigante a derrota do anão Alberico guarda dos tesouros fabulosos e depois as suas lutas as porfias com a bruxa Brunhilde rainha da Islândia em que ele combatia invisível pela força mágica do seu chapéu encantado vencendo a mulher para entregála ao esposo até que um dia morre o herói atravessado por uma lança que o atinge no único ponto vulnerável do corpo E com que paixão não ouviram eles tratar da bela Lorelei ora benfazeja protegendo os habitantes de sua vizinhança ora vingativa fazendo abrir as águas do Reno para engolirem os ousados que procuravam verlhe o semblante misterioso e que antes de morrer enlouqueciam ouvindo os seus cân CANAÃ ticos Vinha nessa história a paixão do conde palatino pela fada se duzido pelas suas vozes mágicas até que um dia avistando Lorelei so bre o rochedo com a lira na mão desmaiou e a fada o transportou para o seu palácio de cristal no fundo das águas azuis E a tristeza no caste lo o velho pai louco a procurar o filho até que vendo a ninfa lhe pede que o restitua e ela soberana divina como um símbolo responde ao som da harpa O meu risonho palácio de cristal é no seio da onda e para lá longe do vosso mundo levei o meu amante fiel e leaL Quando essa história acabou alguns passaram a comentála no cír culo de suas nevoadas idéias E Joca declarou que não tinha medo de mãesd água Como Os outros escarnecessem dele instou fanfarrão Não se arreceia de mulheres mesmo diabas ou feiticeiras quem já teve trabalho com currupira Milkau achou esse termo estranho de um belo e raro acento de lin guagem considerouo como uma dessas palavras ricas de som do idioma brasileiro enxertadas no velho tronco da língua mas como não soubesse a significação do nome nem a lenda nativa que a ele se prende disse num tom familiar ao mulato Contenos isso Joca Ah respondeu este preparandose para narrar não foi por estas bandas foi no Maranhão porque eu sou de lá Meu tio Manoel Pereira na Fazenda do Pindobal me dizia sempre Rapaz sossega com essas via gens noite e dia no mato por causa de rapariga que uma vez currupira te pega Toma tento contigo Moleque que era eu desempenado e de topete ria das palavras do velho Eh meu tio Deixe de abusão para ame drontar gente pavorosa Qual currupira é fantasmagoria E tio Manoel Pereira passava a me contar rodelas e sempre arrematava Rapaz Toma tento Um dia nós tínhamos acabado de recolher o gado ao curral Meu cavalo estava esfalfado de cercar um garrote arisco que depois de muito pelejar eu trouxe da restinga na ponta do laço Chegados que fomos peei o Ventania que coitado lá se foi para o campo frouxo e meio descadeirado Meu tio gritou para pôr a janta O sol já estava esfriando quando nos pusemos à mesa meu tio que era o vaqueiro da fazenda e nós seus quatro ajudantes Os cabras traziam uma fome canina que espantava minha tia Eh gente dizia a velha nos servindo parece uma fome de Satanás Tesconjuro O que é certo é que as curimatás voaram para dentro as bananas não ficaram atrás e nós rematamos a bóia com um trago da branca Depois nos assentamos na soleira da porta em frente ao curral Àquela hora as vacas choravam de cortar o coração lambendo a bezerrada que do outro lado se roçava na cerca Eu estava derreado como um bode lasso Os outros estavam na mesma conformidade Mas vai o Manoel Formoso e me diz Tu não sabes do baile da Maria Benedita Oh cabeça que era minha não me lembrava mais desse ajuntamento marcado para aquela noite No sábado passado tinha tratado com a Chiquinha Rosa nos encontrarmos na ramada onde era a festa Eu andava de namoro com a cabocla moça espigada como palmeira com sua cabecinha de sururina Uma vontade de ver a Chiquinha me assanhou o corpo e me fez espertar Pois sim Vamos daí Manoelzinho E o Formoso se desculpou disfarçando só ouvir o cabra se via logo que tinha algum negócio estipulado para outra banda Os outros camaradas eram já maduros e casados não formavam para a patuscada Fiquei um tempinho meio desalentado mas a idéia da rapariga me levantou o corpo cansado Ah meu sangue fica quieto Bem então já que ninguém me acompanha vou só porque filho de meu pai não enjeita divertimento disse meio arrevesado aos cabras moles Levanteime em direção à fonte e tio Pereira que me circundava num tudo entrou a ralhar Rapaz tu estás maluco Larga de banho a esta hora que tu apanhas maleitas Depois é só trabalho para os outros CANAÃ Não me importei com a fala do velho e parti para a fonte Ainda era bem de dia Atireime à água que me deu um frio nos ossos Dei um mer gulho e umas parapernadas com intenção de espantar algum jacaré que andasse na vadiação Passei depressa para meu rancho para mudar de roupa prepareime com camisa e calça alva enrolei no pescoço o lenço encarnado que tinha comprado a um barqueiro no porto Bati na porta de tia Benta pedi um pouco da sua pomada de cheiro e com poucas estava na ordem O meu lenço branco estava desde a semana passada com a Chi quinha para guardar no seio e perfumar com o seu cheiro Ela havia de me dar no baile Tio Pereira me vendo de viagem disse Volta cedo que de manhãzinha logo ao entrar da lua nós vamos fazer matalotagem na Fazenda da Marambaia Sim meu tio Vosmecê pode ficar sossegado que estou de volta a tempo no seu quarto às horas Não quis mais conversa com o velho E me pus no olho do mundo com passo de ema escabreada Do Pindobal à ramada da Maria Bene dita eram bem umas duas horas de marcha Atravessei todo o campo da nossa fazenda com vista a alcançar a ponta do Guariba e me lembro como se fosse hoje tudo estava bem seco o pouco gado magro que havia estava parado com os olhos tristes de peixe morto virados para o lado do sol que se sumia só se ouvia um barulho de porcos que focinhavam a terra à cata de minhoca Quando cheguei para furar a ponta esbarrei primeiro no negócio de seu Zé Marinheiro Então Joca aonde se bota tão paramentado perguntoume o português Brincar um pouco patrão na ramada da Maria Benedita Olha que tem passado por aqui muita rapaziada A brincadeira deve estar influÍ da Olha pinga não falta tudo lhe mandei eu por ordem do Pedro Tupinambá já se saber Não sei se foi a falação do Zé Marinheiro que me escaldou mais o sangue eu senti como tudo a rodar o coração a querer pular pela boca c 9 3 GRAÇA ARAN HA e as pernas me fraqueando Mas tomei sustância em mim e me agüen tei valente e ainda pude logo dizer ao patrão do negócio Eu vou correndo para lá Mas a gente não se deve aproveitar dos outros deve estar prevenido do seu E vosmecê me encha aí um quarto de restilo e me corte duas toras de fumo de mascar Dito e feito atireime para o caminho O sol já estava escondido e os vagalumes começavam a correr no ar parado mas perdiam o seu serviço porque a lua estava esclarecendo tudo Principiei a cortar por uma picada que encurtava a distância e saía no campinho onde ficava do outro lado a casa da festa A areia estava mais quente aí dentro que no meio do campo um grande calor me tomava o corpo andei andei Os lagartos corriam estremecendo o mato de vez em quando um pica pau num tronco da madeira seca batia as horas da tarde Não havia viva alma e eu com a pressa de chegar comia poeira que era gosto Só pare cia que encontrava o terço acabado e a Chiquinha me largando de esperar com seu par fixo para toda a noite Pernas para que te quero A cabeça porém não estava muito boa parecia me estalar dos lábios e do estômago me subia de vez em quando um enjôo Lá no fundo da mata havia uma aberta e me parecia que um vulto caminhava para mim Não dei importância ao sujeito e disse comigo Há de ser o filho do Zé Marinheiro que se recolhe porque o pai não o deixa ir à festa De repente ouço um assobio fino que vinha de detrás Pensei É algum camarada que se vai divertir e me chama Voltei a cabeça e não vi ninguém Assuntei de novo nada Continuei a andar Outro assobio me passava cortando os ouvidos outro outro de toda a parte se apitava do fundo do mato da boca da estrada por cima das árvores Que bandão de corujas por esta noite Há de ser agouro Tive assim um arrepio de frio e para me sossegar quis me valer do encontro com o filho do Zé Marinheiro Mas olhei firme para a frente 94 CANAÃ e não vi ninguém Onde se meteu o diabo do pequeno Os asso bios iam me rodeando sempre eu já estava com a cabeça tonta o coração me batia a galope Outra vez vi o pequeno na minha frente reparei bem porque ele estava perto e vi que não era o filho do por tuguês A modo que não conheço este caboclinho Nós estávamos assim a umas cem braças um do outro quando o pequeno se sumiu de novo Os assobios de coruja não largavam Eu resmunguei Que faz esse sujeitinho que desaparece de vez em quando Isto não é coisa boa E ele torna a repontar Então gritei com voz de susto bem alto para intimar o cabra Olá amigo que conversa é essa Você anda me fazendo visagens Não digo nada boca para que falaste A mataria toda passou a assobiar como demônio e eu comecei a ficar apavorado com a matinada O caboclinho estava agora a umas dez varas de mim O sangue me fervia a cabeça me queimava Não digo nada o certo é que avancei para o pequeno com raiva de cego Ah seu diabo tu me pagas Armei o pau para cima Mas quando eu me vi estava seguro pelos pulsos Larga berrei O caboclinho com olhos de sangue me encarava Larga e eu sempre seguro Fiquei como um garrote ferroado Avancei para o cabra com mais zanga do que quando me atraquei com o Antônio Pimenta uma feita numa vaquejada Lembrei me de quanto boi valente deitei por terra e agora ali zombado por uma caturra Nós lutamos para baixo para cima eu dava de cabeça na cara do bicho metialhe os pés na canela e ele sempre duro o mal encarado Com o cabo de poucos minutos eu ouvi um berro de es trondo um berro de onça ah pensei que o malvado me deixava Mas foi pior porque outros berros se repetiram caititu vinha batendo queixo gatos bravos miavam ouvi cascavel tocar seu chocalho Com poucas eu estava no chão com o caboclo em cima de mim Toda a bicharia se agitava no mato e caminhava para nós as árvores mesmo se 95 GRAÇA ARANHA curvavam me abafando os gaviões desciam os urubus cheiravam minha carniça Eu senti um medo mole e abandonei as forças Comecei a tremer de frio o suor me alagava a roupa e eu disse Vou morrer meu São João E os olhos se me fecharam como de morto Levei um tempão desacordado sentindo os bichos me rodeando comandados pelo endia brado Depois tudo foi caindo no sossego os meus pulsos estavam desembaraçados um grande calor me fervia o corpo abri os olhos deva garinho tudo parado tudo tinha desaparecido a lua era clara como o dia Eu estava afadigado de tanta luta a língua estava seca e dura que nem de papagaio Abri bem os olhos e não vi mais nada nem o caboclo nem os bichos brabos Mas tive então um grande medo e tratei de abalar daí Passei a mão em roda de mim caçando minha garrafInha de restilo e as toras de fumo Para espertar não há melhor que um gole de cana e uma masca Mas não encontrei nada cacei cacei Nada Pus a excogitar que toda pendenga que o caboclo me fez foi para me bater a garrafa Velho tio Pereira me veio à cabeça com suas palavras Currupira te assombra Para tu te veres livre dá logo que o avistes cachaça e fumo E eu vi que naquela noite tive trabalho com currupira Levanteime de um pulo Quis correr para a ramada da Maria Benedita o samba devia estar aceso àquela hora Olhei para a frente a estrada ia acabar longe muito longe Tive medo de novo encontro Voltei para trás vinha como preto bêbado cai aqui cai acolá saí no campo esbarrando com o gado os olhos me ardiam todo o meu sangue batia para saltar de dentro a boca estava grossa eu trazia uma sede de jabuti mas lá vim assim mesmo navegando até à porta do rancho Não tive conversa atireime vestido na rede que com meu corpo sacudia como uma canoa no Boqueirão Dei por mim quando ouvi falar alto na porta Era a voz de meu tio com o Formoso Eles abriram a tramela e um clarão da madrugada alu miou o quarto São horas Joca Levanta daí Quis me erguer mas as forças não acudiam O velho segurou no punho da rede que estava balançando meu corpo tremia como se houvesse uma dança de todos os meus ossos Meu tio mandou o Formoso abrir a porta e a janela Ficou como dia Ele pôs a mão em cima de mim e eu abri os olhos cheios de fogo E meu tio Pereira sem mais aquela resmungou zangado Eu não te disse Apanhaste a maldita Quem te mandou tomar banho cansado àquela hora Não respondi Tive vergonha de relatar ao velho que era assombração de currupira Depois da narração os colonos ficaram cismando vagamente Cada qual remontou por instante aos princípios da sua vida e as recordações do passado encheramlhes a alma de sombras e saudades Felicíssimo achou que era tarde e os convidou a se recolherem sendo o primeiro a erguerse do chão Os outros levantaramse bocejando um princípio de sono chegava como uma carícia espreguiçaramse satisfeitos seduzidos pela idéia de um suave repouso Do Rio Doce e da floresta vinham murmúrios brandos e os colonos em silêncio interpretavam esses sons da noite ou como vozes das mãesdágua cobiçosos do amor humano ou como ruídos das vagabundagens tenebrosas dos currupiras errantes Já no dormitório os trabalhadores ressonavam sobre os colchões estendidos no chão e Joca ainda se remexia inquieto sem poder dormir Era uma noite em claro que ele passava tinha a garganta seca sentia por vezes a pele arder e não achava agasalho na cama fofa e tranqüila A evocação da terra natal ali no meio da floresta do Rio Doce estranha a seus olhos e sentimentos faziao remontar aos quadros da sua vida passada no lugar do nascimento nesses campos de Cajapió vários e inconstantes cuja mobilidade se transmitia à alma plástica dos homens aí formados No Espírito Santo sentiase Joca em terra alheia os montes o apertavam os desfiladeiros o sufocavam de terror e então uma saudade o transportava para a longa planície onde vivera Via no verão o pasto todo morto o amor violento do sol trazia o vasto campo fendido e cortado em pedaços sem um fio verde por toda a parte a secura e com ela a morte Nem uma gota dágua o deserto árido e triste e sobre ele passava arrastandose longo esguio sinuoso o caminho feito pelos pés do homem e pelo rasto do animal Nos dias claros sem nuvens quando todos suplicam chuva o horizonte se confunde com o céu Outras vezes nuvens descem quase a tocar a terra o sol rubro as tinge as miragens se formam estreitando o círculo visual tudo se encerra num espaço limitado e o viajante caminha para elas que se afastam inatingíveis fazendo evoluções como um exército em campo aberto E assim a mobilidade do céu ameniza a esterilidade fixa da terra Nem uma gota dágua para refrescar ao menos a vista De espaço a espaço passa um boi faminto esquelético movendo os ossos num ruído desencontrado e surdo Varas de porcos vão fossando a terra comendo as cobras que se estendem lúbricas e felizes ao sol Manadas de gado se apresentam no horizonte como que surgindo súbitas do chão galopando loucamente farejando o ar doidas sedentas passando num turbilhão como um ciclone levantando o pó tranqüilo que perturbado no seu repouso as segue envolvendoas sufocandoas implacável veloz e rubro como uma coluna de fogo Ao recordarse dessas emigrações de animais Joca teve um arrepio e um ímpeto para se erguer do colchão onde se revolvia agitademente E sempre a terra a visão da planície o perseguia Agora era depois das primeiras chuvas sobre o campo Uma manhã lá no Cajapió Joca lembravase como se fora na véspera acordara depois de uma grande tor menta no fim do verão A madrugada estava orvalhada mas serena e ele se erguer a de sua rede para ver o tempo Um grande tapete de verdura fresca e úmida parecia ter descido do céu e coberto como um manto misterioso o campo ontem mirrado Os olhos perdiamse na campina alegre o gado festejava o rebentar da vida na terra e comia a erva tenra um bando de marrecas passava grasnando pousava aqui levantava o vôo acolá buscava ainda mais longe a região dos eternos lagos Dias inteiros de chuvas o pasto agora era farto a água porfiava em vencêlo e quando mais tarde o dilúvio se interrompia viamse na vasta savana verde pontos claros que eram o refrigério dos olhos Eram os primeiros lagos Em volta deles uma multidão de aves aquáticas brincavam descuidadosas e ostentavam as penas de cores vivas e quentes Vinham pássaros de toda a parte pernaltas com o seu bico de colher marrecas em algazarra jaçanãs leves e tímidas e à tarde quando o céu se vestia de nuvens cinzentas notavase desfilar ora o bando marcial e rubro dos guarás ora a ala virgínea e branca das garças No fundo dos lagos multidões de peixes borbulhavam por encanto E em tudo o mesmo milagre de ressurreição de rejuvenescimento de expansão e de vida Mas as chuvas continuam a água sempre crescente vai engolindo o campo o gado mostrase inquieto e começa a outra emigração a do inverno para os tesos ligeiras elevações da planície Vão lentos e vigorosos ou aproveitando a terra firme os metidos nágua ou nadando mas sem recuar caminhando para os refúgios Já no meio do inverno a água quase apagou o campo um ou outro ponto aparece como ilha e nelas o gado se amontoa Em um grande lago manso transformouse aquilo que fora meses antes o deserto ardente e fero Sobre ele repousam os grandes nenúfares as múltiplas plantas aquáticas verdes largas vogando como pássaros A vida mudara descansava na cocheira a cavalo e Joca sonhavase a empurrar a canoa refletindose o seu vulto espigado à flor silenciosa das águas 99 4 Na manhã seguinte Milkau e Lentz muito cedo estavam admirando o lugar No seu passeio aproximaramse do Rio Doce que depois de se fatigar em curvas de réptil por entre os brandos contornos da terra maravilhosa do Espírito Santo ali se desdobrava a perder de vista As grandes chuvas dos dias anteriores tinham enchido fartamente o rio sobre cujo dorso luzidio e dormente a brisa perpassava volátil estremecendo num leve arrepio a úmida superfície Era a única quebra da imobilidade A onipotente amplidão das águas engolira as margens devorara a vegetação das praias e o tronco das árvores cujos galhos outrora pendidos como chorões simulavam sorver a água e agora quase submersos tingiam numa orla verde o cinzentopérola do rio A cheia domina toda a paisagem avassalando com singular grandeza o perfil da mata crivada de clareiras e a tímida linha de montanhas ao longe Emanadas das águas suspensas sob o céu névoas densas apagam por instantes o sol a sombra cobre a terra e faz a cor Abrese uma trégua para o eterno conflito da luz e dos tons e o panorama que se apresenta não é o constante dia de sol pleno inundando de um só colorido fulvoamarelo o espaço e as 109 mesmo tempo molhando uma pena em tinta encarnada marcou o lote com uma cruz à semelhança dos outros que já tinham sido concedidos As folhas dos requerimentos eram fórmulas impressas e em uma delas Milkau teve de encher com as indicações especiais de identidade os pontos em claro Isto feito os dois companheiros entregaram a petição assinada pagaram as custas da medição e da planta e foi esta a última formalidade para a entrega do prazo pois graças à condescendência do chefe Felicíssimo punha e dispunha das terras a distribuir E eis como pensava Milkau toda a complicada engrenagem do Estado com as suas repartições custosas os seus inúmeros funcionários afinal se concentra nas mãos reduzidas de um humilde agrimensor que de fato é o senhor absoluto desses bens públicos Vamos à bóia que já vai ficando tarde e vocês devem estar dando horas pois ainda não puseram nada no alforje disse Felicíssimo passando a mão espreguiçada no ombro de Lentz Este furtou instintivamente o corpo como para não ser esmagado pelo gesto da intimidade Os trabalhadores já rodeavam a mesa preparada pobremente para o almoço quando os outros entraram na sala A refeição a princípio correu ruidosa todos estavam expansivos pela fome e pelo começo da familiaridade Para o fim Felicíssimo passou a entristecer uma súbita preocupação se apossou dele e por mais que lutasse para disfarçar não pôde resistir e caiu numa cisma profunda Isto espalhava na mesa uma leve melancolia que refreava a expansão Mal acabou o almoço os homens da turma habituados a essa aflição íntima do agrimensor e que era o prenúncio das medições dos lotes retiraramse do barracão donde o semblante do chefe carregado de sombras os expelia mais depressa No terreiro cercaram um barril dágua em que mergu GRAÇA ARANHA Milkau nesse tempo cismava enquanto o sono o não arrebatava para o esquecimento Tinha saboreado as lendas ouvidas aos tropeiros e parecialhe ter arregaçado o véu que cobria a alma daqueles homens e desfrutado deliciosamente as paisagens distintas de cada espírito e os panoramas longínquos que foram os quadros da infância de cada povo gerador Nas lendas alemãs Milkau via passar o Reno como um grande rio sagrado que foi o centro e o nervo do mundo germânico todo cheio de encantamento e cujas louras ninfas eram as espumas das próprias águas Ele via os quadros recuados no tempo e os quadros novos da época medieval bruxas cavaleiros andantes e castelos Todo o idealismo da raça estava ali e que nascera nas águas do rio criando fantasias e mitos mantinhase inalterável os novos deuses latinos pe netrando no seu espírito transmudaramse em divindades bárbaras as suas santas eram aquelas mesmas fadas do Reno e os santos os velhos deuses sombrios e batalhadores Na lenda do currupira outro mundo se descortinava que era toda a alma do tropeiro maranhense Ali es tavam a mata tenebrosa as forças eternas da natureza que assombra vam e cujo símbolo era essa divindade errante que anima as árvores que sacode do torpor tropical as feras ou que protege a natureza intimidando o homem seu perpétuo inimigo Ela espanta vingase e beneficia transvestese em mil figuras em crença maligna que é a sua encarnação preferida em animal ou vegetal conforme a astúcia ou a força o exigem Milkau sentia naquelas legendas o encontro dos vários aspectos dos feitiços e cada um traduzia os instintos os desejos os hábitos diferentes dos homens Mundo encantado e misterioso esse das almas dos povos O verdadeiro filósofo pensava Milkau será aque le que conhecer as origens não só da História ou da sociedade mas de uma alma isolada aquele que tiver o segredo de ponderar os espíritos de desvendar nas células cerebrais as remotas sensações vitais dos CANAÃ povos e que possuir a intuição para distinguir na inteligência de um homem a dosagem perfeita do estranho precipitado da treva com a pureza do ódio ingênito de uma raça com o amor orgânico de outra E Milkau ia lentamente adormecendo feliz e sossegado naquela ben fazeja noite tropical no meio de homens primitivos no seio de uma nova terra suave e forte e o que era cisma da vigília se ia pouco a pou co transformando no puro sonho em que ele entrevia num horizonte iluminado surgindo docemente uma nova raça que seria a incógnita feliz do amor de todas as outras que repovoaria o mundo e sobre a qual se fundaria a cidade aberta e universal onde a luz se não apague a escravidão se não conheça onde a vida fácil risonha perfumada seja um perpétuo deslumbramento de liberdade e de amor Lentz se esforçava por dormir e se debatia inutilmente para afastar os tumultuosos pensamentos que lhe galopavam na cabeça As visões acumuladas nos últimos dias da travessia da mata persistiam em toda a sua força Ora sentiase esbraseado com o sol que inflamava as coisas e lhe queimava o sangue ora sentiase passar pela sombra úmida da floresta cuja exuberância e vida se filtravam deliciosamente até à sua alma ora era o rio imenso pujante que corria para ele impelido por uma força desse poder misterioso que animava as moléculas mais ínti mas de todo aquele mundo novo E Lentz via por toda a parte o homem branco apossandose resolutamente da terra e expulsando definitivamente o homem moreno que ali se gerara E Lentz sorria com orgulho na perspectiva da vitória e do domínio de sua raça Um desdém pelo mulato em que ele exprimia o seu desprezo pela lan guidez pela fatuidade e fragilidade deste turvoulhe a visão radiosa que a natureza do país lhe imprimira no espírito Tudo nele era agora um sonho de grandeza e triunfo Aquelas terras seriam o lar dos batalhadores eternos aquelas florestas seriam consagradas aos cultos 1 0 1 GRAÇA ARANHA temerosos das virgens ferozes e louras Era tudo um recapitular da antiga Germânia Ele percebia no seu cérebro exaltado que os alemães chegariam não em pequenas invasões humildes de escravos e trafi cantes não para lavrar a terra para recreio do mulato não para mendi gar a propriedade defendida pelos soldados negros Eles viriam agora em grandes massas galeras imensas e numerosas os desembarcariam em todo o país Eles viriam numa ânsia de posse e de domínio com sua áspera virgindade de bárbaros em coortes infinitas matando os ho mens lascivos e loucos que ali se formaram e macularam com suas tor pezas a terra formosa eles os eliminariam com o ferro e com o fogo eles se espalhariam pelo continente fundariam um novo império se revigorariam eternamente na força da natureza que dominariam como uma vassala e senhores e ricos e poderosos e eternos repousariam para sempre na alegria da luz Mas no sonho de Lentz sobre as naus que velejavam sobre os exércitos que caminhavam uma massa imensa e preta marchava no céu qual uma nuvem condutora e depois se trans formava numa figura estranha e agigantada cujos olhos penetrantes desciam do alto envolvendo as terras e os homens com uma força invencível e magnética Então Lentz viu pairar sobre a terra do Brasil a águia negra da Germânia 1 0 2 GRAÇA ARANHA coisas não é a larga e quente paisagem monótona indistinta onde o crepúsculo é um sonho fugaz e a noite cai como uma cortina negra que fecha bruscamente o dia Milkau e Lentz sentiram naquela cer ração o delicioso momento da ressurreição das cores esplêndidas e nestas voluptuosamente repastavam o faminto apetite da vista Não há nada dizia Milkau enquanto andavam como esta tran qüilidade para formar o quadro da vida E hoje me sinto feliz como jamais pensei que o seria É que a felicidade é o esquecimento e a esperança Pareceme que atingimos uma região onde não chegam os gemidos humanos aqui não há um sinal de sofrimento tudo é vida fácil risonha e amável No fundo a natureza humana é feita para o gozo por isso mesmo o prazer lhe é mais inerente e imperceptível e a dor sensação estranha e rude o espalha como um tufão Quantos elementos porém não estão em nós para afastar a dor com que facilidade não a esquecemos e como um só minuto de descanso não nos dá a ilusão da eterna calma É que nós somos vítimas dos divertimentos da natureza que por esses pérfidos e doces venenos cujos segredos ela possui nos acor renta à vida para martirizarnos ao seu sabor Mas a vida é mais natural do que a morte o prazer mais do que o sofrimento E tu emprestas à natureza uma consciência que ela não tem Ela não existe como entidade distinguindose pela vontade A nossa superioridade sobre ela tu sabes está exatamente nessa cons ciência que é nossa que percebe as suas leis as suas fatalidades e nos obriga a tomar o caminho mais seguro para a harmonia geral E hoje aqui situados neste mundo que começa ainda virgem de sacrifícios temos de tirar o verdadeiro sentido da nossa excepcional situação Ador meçamos as tristezas do nosso passado já que não podemos apagálas de todo e a vida nova se abra para nós como um sonho realizado CANAÃ E eu também vejo aqui a terra imaculada com as suas grandes energias de felicidade e nela viverei para ver reconstruída a cidade antiga forte dominadora que saltando pelos séculos de humi lhação venha renascer neste grande cenário A esperança dizia Milkau a sorrir apoderase de nós e arreba tanos para o futuro Não é verdade que somos felizes Pela linha da praia que a enchente comendo o mato tornava ape nas uma vereda continuavam eles o passeio Muitas vezes tinham de abandonar o caminho e cortar pelas picadas dentro da vegetação outras passavam aos pulos de pedra em pedra E riam com essa gi nástica abandonados à sensação agradável da fresca manhã e à vo lúpia das ilusões Por longo espaço o panorama era imutável mas o que havia de monótono não fatigava porque a vastidão das águas a sua opulência eliminava o enfado como que alargando o espírito num conforto amplo e benfazejo Hoje disse Milkau quando chegaram a um trecho desem baraçado da praia devemos escolher o local para a nossa casa Oh não haverá dificuldade neste deserto de talhar o nosso pequeno lote desdenhou Lentz Quanto a mim replicou Milkau uma ligeira inquietação de vago terror se mistura ao prazer extraordinário de recomeçar a vida pela fundação do domicílio e pelas minhas próprias mãos O que é lamentável nesta solenidade primitiva é a intervenção inútil do Estado O Estado que no nosso caso é o agrimensor Felicíssimo Não seria muito mais perfeito que a terra e as suas coisas fossem propriedade de todos sem venda sem posse O que eu vejo é o contrário disto É antes a venalidade de tudo a ambição que chama a ambição e espraia o instinto da posse O que GRAÇA ARANHA está hoje fora do domínio amanhã será a presa do homem Não acre ditas que o próprio ar que escapa à nossa posse será vendido mais tarde nas cidades suspensas como é hoje a terra Não será uma nova forma da expansão da conquista e da propriedade Ou melhor não vês a propriedade tornarse cada dia mais cole tiva numa grande ânsia de aquisição popular que se vai alastrando e que um dia depois de se apossar dos jardins dos palácios dos museus das estradas se estenderá a tudo O sentimento da posse morrerá com a desnecessidade com a supressão da idéia da defesa pessoal que nele tinha o seu repouso Pois eu ponderou Lentz se me fixar na idéia de converter me em colono desejarei ir alargando o meu terreno chamar a mim outros trabalhadores e fundar um novo núcleo que signifique fortu na e domínio Porque só pela riqueza ou pela força nos emanci paremos da servidão O meu quinhão de terra explicou Milkau será o mesmo que hoje receber não o ampliarei não me abandonarei à ambição ficarei sempre alegremente reduzido à situação de um homem humilde entre gente simples Desde que chegamos sinto um perfeito encan tamento não é só a natureza que me seduz aqui que me festeja é também a suave contemplação do homem Todos mostram a sua doçura íntima estampada na calma das linhas do rosto há como um longínquo afastamento da cólera e do ódio Há em todos uma resig nação amorosa Os naturais da terra são expansivos e alvissareiros da felicidade de que nos parecem os portadores Os que vieram de longe esqueceram as suas amarguras estão tranqüilos e amáveis não há grandes separações o próprio chefe troca no lar o seu prestígio pela espontaneidade niveladora que é o feliz gênio da sua raça Vendoos eu adivinho o que é todo este País um recanto de bon CANAÃ dade de olvido e de paz Há de haver uma grande união entre todos não haverá conflitos de orgulho e ambição a justiça será perfeita não se imolarão vítimas aos rancores abandonados na estrada do exílio Todos se purificarão e nós também nos devemos esquecer de nós mesmos e dos nossos preconceitos para só pensarmos nos outros e não perturbarmos a serenidade desta vida No encalço deles uma voz clamava tirandoos da divagação Mas então que fugida foi essa Para onde se botam Voltaramse como se despertassem e viram a cara triangular e interrogativa do agrimensor que vinha quase a correr Bomdia disse Milkau agarrando com entusiasmo as duas mãos de Felicíssimo que se atirava a ele num gesto festivo e bondoso Pregaramme uma peça Acordo vistome num pulo vou procurálos para um dedo de prosa e os meus amigos já tinham azu lado Tivemos pena de acordálo pois havia um grande silêncio na casa quando saímos E distraídos viemos até aqui Pois eu insistiu o agrimensor pusme à caça de vocês farejei aqui e acolá e fui bem feliz em ter virado para esta banda e nem tomaram café nem nada Não acha disse Lentz melhor desistirmos disso e aproveitar mos o tempo para um passeio mais longo Seja Voltaremos ao barracão à hora do almoço Por que não aproveitamos para ver o lote de que ontem lhes falei De que lado fica perguntou Milkau Aqui mesmo nesta direção Felicíssimo olhando rapidamente para os lados concluía orientado Aqui devemos estar no lote vinte mais ou menos andemos um pouco um quilômetro e eu lhes mostrarei o número dez G R AÇA ARANHA Felicíssimo tomou a frente seguido pelos outros caminhando um a um na estreita beirada A conversa iase fazendo em vozes altas seguia imprevista sem seqüência aos saltos e trambolhões E o sol que se desprendia das nuvens transformava com violência o repou sado quadro da manhã nevoenta Inundado subitamente de amarelo o rio chamejava em ouro como se fosse toda a grande e incandes cente massa do sol derretida correndo sobre a Terra Estão cansados gritou Felicíssimo Que juízo faz de nós perguntou Lentz É por causa do caminho porque realmente tomamos pelo pior se tivéssemos vindo por cima tudo ia bem Oh diabo O agrimensor num falso movimento meteu o pé nágua saltando ligeiro para diante Lentz que o seguia recomendoulhe cautela Algumas vezes tinham de se baixar para se desviarem dos galhos e dos arbustos outras era preciso agüentálos com a mão O agrimensor divertiase em gritar para trás de instante em instante Galho à direi ta Agüenta Com a mão segurava o ramo e quando via este susti do pelo companheiro largavao Às vezes era precipitado e uma lam bada forte e farfalhante batia no rosto ou no corpo do vizinho Cuidado Implorava o outro a sorrir E assim foram até que em fren te a um atalho Felicíssimo enveredou por este à direita e virouse para os imigrantes tomando um largo fôlego Arre Que brincadeira Nunca pensei que o rio estivesse tão cheio Agora cortemos por aqui que vamos cair mesmo dentro do lote Passando para a ligeira sombra do mato e caminhando pela picada que não era muito batida nem destocada iam vagarosamente evi tando os tropeços e as poças d água Lentz calado suspirava bocejando Tudo aqui será uma grande dificuldade pensava ele não há estradas não há a menor sombra CANAÃ de conforto tudo é agreste e selvagem Não é melhor que eu desista de fazer esta vida de colono e me enterre aí num armazém de comér cio onde o caminho já esteja aberto e tudo aparelhado pelos outros Realmente que loucura atirarme nesta campanha contra a natureza inculta Não é preferível toda e qualquer outra vida a esta Não é E os seus olhos descansaram em Mi1kau que lhe sorria como um bemaventurado Que delicioso deserto dizialhe este ao penetrarem mais e mais no mato espesso É pena que a estrada não seja melhor para gozarmos desem baraçados este passeio respondeu o outro quase tímido receoso de deixar transparecer o seu desalento Oh descansa que havemos de abrir caminhos por tudo isto limparemos as estradas prepararemos o terreno e matando a so lidão levantaremos uma habitação risonha que nos recompense Não é verdade Aqui não falta em que trabalhar cortou o agrimensor Em geral os colonos não querem fazer nada limitamse à sua casa ao seu terreno e esperam que o Governo se mexa que lhes dê estradas pontes e tldo mais e que não se faça Lá vai uma queixa por inter médio do Roberto ou de qualquer outro figurão ao Governador e sabe a política se mete no meio e nós estamos a levar carões todos os dias Imagino que o senhor deve ter muitos aborrecimentos disse complacente Mi1kau Não faltam amofinações Agora mesmo tenho um ofício do ins petor mandando o engenheiro informar a respeito de uma represen tação dos colonos sobre uma ponte que está com o madeiramento estragado Creio mesmo que já caíram uns paus nós pedimos verba GRAÇA ARANHA e como de costume o inspetor não se importou com o que disse o pessoal os colonos porém que são matreiros foram à fonte limpa e Roberto arranjou com eles um abaixoassinado que mandou para a Vitória o Governador se assanhou logo com medo das eleições mandou o papel ao inspetor que por sua vez o mandou para cá ao engenheiro a fim de fazer o orçamento das obras Isto leva ainda um ror de tempo E a minha vingança é que quando vier o dinheiro será muito pouco porque o tempo não descansa o pau vai apo drecendo dia a dia e é preciso fazer a ponte de novo Lá vem outra vez segundo barulho E neste tempo que recurso têm os moradores se a ponte cair perguntou inquieto Milkau Ora muito simples Botam uma pingueI a de lado a lado e vão vi vendo Sou um seu criado e estou me ninando para o Governo ins petor e toda essa récua A zanga do agrimensor era dessas que passam à medida que é es praiada num desabafo de linguagem Imediatamente depois ele tinha esquecido tudo e voltava à sua jovialidade Andaram mais um pouco pela picada e saíram perpendicularmente em um caminho mais lar go e mais limpo Está aqui o lote que lhes recomendo disse Felicíssimo andan do mais uns passos pela nova estrada Os outros olharam um matagal cinzento com as árvores crescidas e todo tapado pela vegetação que era forte e traduzia a fertilidade do solo Não viam nada de lado a lado a vereda fora aberta em plena mata e tudo era encerrado numa sombra infinita e cálida Ficaram mudos e como ligeiramente apavorados pelo recolhimen to das coisas e como se uma sensação de isolamento de separação do mundo os mortificasse por instantes Felicíssimo em cujo espírito CANAÃ trêfego e intempestivo o silêncio não tinha abrigo impacientouse por uma resposta acrescentando Este lote é muito bom vejam que terra cada pau de respeito É preciso um pouco de trabalho não nego Depois do roçado o que não é nada a dificuldade está na limpa Vocês porém fazem um arranjo com a turma e eles acabam isto num abrir e fechar de olhos Oh Há de ser um gosto Aqui estamos bem concordou Milkau a quem uma onda de ilusão sacudia o torpor da instantânea cobardia E apoiouse negligentemente a uma sucupira Estou por tudo disse Lentz arrastado e dissimulando a diva gação de outros pensamentos O agrimensor olhou a árvore Faz pena disse compassivo botar tudo isso abaixo Eu por mim acudiu Milkau levado pelo mesmo sentimento preferiria um lote onde não fosse preciso esse sacrifício Não há nenhum respondeu Felicíssimo O homem notou Lentz a sorrir com ar de triunfo há de sem pre destruir a vida para criar a vida E depois que alma tem esta árvore E que tivesse Nós a eliminaríamos para nos expandirmos E Milkau disse com a calma da resignação Compreendo bem que é ainda a nossa contingência essa necessi dade de ferir a Terra de arrancar do seu seio pela força e pela vio lência a nossa alimentação mas virá o dia em que o homem adap tandose ao meio cósmico por uma extraordinária longevidade da espécie receberá a força orgânica da sua própria e pacífica harmonia com o ambiente como sucede com os vegetais e então dispensará para subsistir o sacrifício dos animais e da plantas Por hora nos con formaremos com este momento de transição Sinto dolorosamente G RAÇA ARANHA que atacando a Terra ofendo a fonte da nossa própria vida e firo menos o que há de material nela do que o seu prestígio religioso e imortal na alma humana Enquanto os outros assim discursavam Felicíssimo no seu amor ingênuo à natureza mirava as velhas árvores e com a mão meiga fes tejavalhes os troncos como os últimos afagos dados às vítimas no momento do sacrifício Dentro da mata penetrava o vento da manhã e nas folhas passava brandamente levando um murmúrio baixo humilde que se escapava de todas as árvores como as queixas surdas dos moribundos Então que decidem perguntou aos outros o agrimensor Os imigrantes concordaram de bom grado em se estabelecer no terreno indicado Fazem muito bem porque esta situação é admirável para o café e além disto é muito cômoda aqui à beira da estrada E vêse bem o rio indagou Lentz Sem dúvida é só desbastar o mato ali está à vista o estirão d agua Será uma delícia uma casinha neste belo ponto comentou Milkau numa irradiação de íntimo bemestar Hão de ver E agora toquemos para o barracão são horas do almoço E hoje mesmo voltaremos com os homens para a medição Puseramse a caminho alvoroçados com os vários sentimentos que os trabalhavam Na estrada falavam alto espantando os pássaros dor mentes e sacudindo do voluptuoso letargo os calangos que se escapuliam pelas folhas secas numa música de chocalho Chegados ao barracão foram logo para o escritório e aí em frente ao grande mapa dos terrenos o agrimensor mostroulhes a posição do prazo escolhido continuando nos calorosos elogios e ao G R AÇA ARANHA lharam as mãos esfregando depois as caras com estrépido bufando O bocal do barril era pequeno para tanta gente e os homens rindo disputavam entre si a precedência Uma alegre algazarra se formou cada qual esmurrava o companheiro arrastavao no meio de amáveis insultos rindo sem saber de quê mas alvar e gostosamente Vamos aviemse gritou Felicíssimo E à voz de comando a alma obediente dos homens serenou e todos em ordem terminaram a ablução Depois armaramse com os instrumentos e ferramentas e puseramse em marcha na frente Felicíssimo com os novos colonos ia atrás Por vezes no caminho Milkau cortesmente procurou con versar com o agrimensor que soturno se metia consigo mal res pondendo às perguntas Então seguiam em silêncio ruminando os seus pensamentos abrasados pelo calor do sol que mesmo no mato coberto era abafadiço Houve um momento depois de andarem bas tante em que Felicíssimo deu voz de alto Todos pararam mecanicamente É aqui que temos de abrir o rumo Os trabalhadores começaram a desatrelar os instrumentos e os seus apetrechos acessórios O agrimensor acompanhavaos com uma compenetração religiosa e foi com certa sofreguidão que viu abrir se uma caixa e dela se retirar um instrumento que recebeu em suas mãos com febril ansiedade Pediu a tripeça que um homem lhe apresentou rápido e sobre aquela o agrimensor a atarraxar o instru mento Havia uma calma grave em todos e o moço cearense entre gavase à sua tarefa com extrema atenção Depois de algum tempo tomou posição com o seu aparelho e ordenou a três trabalhadores que seguissem pela frente da estrada com balizas pintadas em zonas brancas e encarnadas E virandose para Milkau e Lentz disse com solenidade CANAÃ Não sei se os senhores conhecem Isto é o teodolito Estupenda invenção Dispensa grande trabalho para levantar as plantas Hoje fazemos medições enquanto o diabo esfrega um olho porque como sabem é a combinação do nível e da altura tomase um ângulo ho rizontal e um ângulo vertical ao mesmo tempo Grande invento Sem ele não sei como me arranjaria Os novos colonos conheceram pasmos um novo Felicíssimo e não sorriram O agrimensor calouse ainda mais solene e entregouse todo ao instrumento mirava na objetiva abaixavase erguiase para espiar por cima voltava a retificar as lentes torcendoas ora demais ora de menos sempre com insucesso Já o tomava a angústia de não acertar mas ora teimava em seus movimentos ora abandonava o aparelho e ia mirálo de longe Voltava ao instrumento tornava a ajeitálo espiava outra vez e sempre o mesmo resultado negativo Em roda faziam um tímido silêncio os trabalhadores que conheciam esse momento terrível do teodolito E só neles Felicíssimo se transforma va a ponto de insultar e espancar os seus homens Cada um o temia e instintivamente se ia afastando do aparelho perturbador com medo de algum desabafo E a aflição do agrimensor naquele dia redobrava à vista de Milkau e Lentz para quem ele preparava a cena da sabedo ria O sol esquentava no chão os pés queimavam um suor frio e extenuante alagava o agrimensor O tempo ia correndo sem resol verse a medição e para Felicíssimo atado em sua angústia parecia interminável Ah disse aos hóspedes Ele tem hoje o diabo no corpo não con sigo ver nada Com certeza foi quebrado por algum desses miseráveis E olhava raivoso o grupo de trabalhadores que agradeciam com os olhos a presença dos novos evitando maiores conseqüências da cólera do chefe GRAÇA ARANHA N este tempo os homens das balizas estavam fatigados e começavam negligentes a oscilar os marcos Felicíssimo arremessouse ao primeiro Oh seu ordinário eu logo vi que era você que não me deixava pôr em ordem o teodolito afastando o pau da linha O homem desculpouse dizendo que arriava o marco quando o chefe já não estava no aparelho Felicíssimo ficou colérico mas a ân sia e a vergonha do insucesso não davam forças à sua ira Ao contrá rio enfraqueciamno tornavamno gago murcho Voltou ao instru mento e agora definhava no desespero de conseguir qualquer obser vação Uma grande tristeza apoderouse dele Milkau com pena disselhe É melhor deixarmos isto para amanhã Hoje está muito quente almoçamos bem tínhamos andado antes o senhor está fatigado Deixe para amanhã com a fresca E depois quem sabe o teodolito pode estar quebrado e em casa mais à vontade o desarma para ver Sim é melhor Com certeza há alguma coisa ali dentro Mas para não perdermos tempo se fizéssemos a medição com a fita É um sistema atrasado e de que não gosto mas enfim se o aparelho está quebrado não há remédio Com certeza Guarde isto ordenou Felicíssimo a um homem apontando des denhoso para o instrumento Os trabalhadores miravamse todos com ar inteligente Cumpria se a velha e costumada comédia do teodolito Eles sabiam que o agri mensor em mais de duzentas medições não conseguia trabalhar com o maldito instrumento que sobre ele exercia uma influência satâni ca lhe alterava o caráter o punha fora de si e era causa desse terror cujos prenúncios lhe sombreavam o espírito desde o fim do almoço À medida que o teodolito ia desaparecendo na caixa a alma de Felicíssimo iase libertando da angústia e o seu jovial humor o retomava francamente pagando os traços da agonia científica Estes mulatos dizia em aparte Lentz a Milkau E como o agrimensor se aproximasse deles desinteressado do teodolito o alemão parou disfarçou alteando a voz um pouco sarcástico Vamos à fita A medição fezse como sempre As medidas foram tomadas na fachada da frente do terreno e nos fundos dentro da mata postes fincados nos quatro ângulos assinalavam o lote adquirido pelos dois imigrantes Faltava porém abrir o rumo que separasse de lado a lado este quinhão de terra dos outros Milkau dirigiuse a Felicíssimo e perguntoulhe se podia contratar com os homens esse serviço para aquela hora mesma O cearense objetou que a planta não estava tirada Não seja essa a dúvida disse Milkau os marcos estão colocados e o rumo irá sendo aberto com as balizas e medidas rigorosas Nós tomamos a responsabilidade de abrir novo rumo se este não sair de acordo com a planta O agrimensor bondoso e serviçal aquiesceu e Milkau entendeuse com os homens Momentos depois os trabalhadores estavam a derrubar o mato a princípio iam escolhendo para cortar os pequenos arbustos ladeando quando se encontravam com uma árvore mais robusta ainda receosos de acometer o trabalho O rumo ia saindo acanhado e torto Mas quando miraram o serviço feito os homens como que despertaram da sua instintiva preguiça e estimulados à vista dos estranhos atiraramse duramente à derrubada O machado cantava com energia no âmago dos troncos e derrubadores em gru po combatiam ao mesmo tempo uma pobre árvore Havia uma raiva uma fúria histérica de destruição e em pouco tempo estavam completamente alheios a tudo e entregues à sua vertigem malvada O ferro não descansava nos braços sempre em movimento num compasso vagaroso Ouviase cair o machado deslocando o ar e arrancando um ronco forte dos robustos peitos dos devastadores Quando estes encontravam um pau mais duro redobravam de ardor o suor lhes escorria o golpe era tirado bem do chão e no impulso furibundo o ferro penetrava tanto que para desprendêlo o homem tinha de fazer um esforço desesperado Iam para adiante agora harmônicos e regulares A pequena fadiga fazia bem aos seus membros hercúleos e a alegria se lhes espraiava nos rostos congestos Não mais roncavam com a ânsia dos primeiros movimentos agora habituados ao exercício serenavam distraíamse e das suas bocas rudes deixavam sair os velhos cantos amados Joca fora o primeiro a soltar a voz Os alemães instintivamente o imitavam e cada um em sua própria língua cantava versos bebidos na fonte natal O mulato maranhense dizia as saudades do seu coração tudo o que mais amava com as íntimas energias do seu ser humano E cantava num tom que era um longo soluço Adeus campo e adeus mato Adeus casa onde morei Já que é forçoso partir Algum dia te verei Era o grande acontecimento o drama da sua vida esse abandono da terra natal E ele o cantava sem atender a ninguém cravando mecanicamente o machado nas árvores Em outros momentos abandonava esse queixume e dos seus lábios inconscientes saíam versos de outro caráter Vi o teu rasto na areia E pusme a considerar CANAÃ Qye encantos não tem teu corpo Se o teu rasto Jaz chorar Nesta imagem tão fina e tão superior de um sentimento animal Joca expandiase em gritos voluptuosos Perpassava na cadência e no pensamento da estrofe o frêmito da luxúria meiga e doce de toda a sua raça A esta solitária voz brasileira juntavamse os acentos fortes e musi cais das vozes alemãs Elas cantavam em coro e os versos que diziam eram ecos das tabernas do país germânico e por um momento ali mesmo em plena selva tropical os imigrantes sonhavam pela su gestão das cantigas que se reuniam a beber joviais e ruidosos Die alten Deutschen trinken noch ein noch ein os velhos alemães bebem mais um mais um A derrubada do rumo prosseguia mais ativa e mais alegre Os ecos recolhiam as rimas singulares da duas raças que se casavam no ar numa união estranha Teu rasto Jaz chorar Noch ein noch ein Milkau havia uns dias no alojamento dos imigrantes deixava em bebido na contemplação correr o tempo e se não decidia a começar essa vida arquitetada pelo seu coração em longo sonho Uma piedade indefinida diante do sacrifício da mata o entor pecera Sentia que um pouco da beleza e do esplendor da terra ia morrer E Milkau vibrava com a recordação de todo o sofrimento que o homem tem causado no mundo passando indiferente sem ouvir o gemido do mar rasgado a queixa da floresta ardente o estremeci mento do ar cortado por toda a parte destruindo como um fatal por tador da morte a integridade da forma E em roda dele a vida em tudo na terra geradora na mulher que ele ama no pó que pisa Tudo vive tudo tem uma voz uma alma na harmonia eterna do Uni G R AÇA ARANHA verso Mas ainda assim Milkau perdoava ao homem Compreendia a fatalidade do seu destino e resignavase numa subordinação indis cutível e indefinida à necessidade Amanhecia quando se chegou a Lentz e disse resolutamente Temos de queimar o mato A idéia do fogo chamejou no espírito do companheiro Pouco depois os homens foram reunidos e todos penetraram na floresta com um recolhimento sacerdotal de quem vai cumprir os ritos de cultos infernais Num dos ângulos da mata lançaram fogo à primeira moita que lhes pareceu mais ressequida Antes que a labareda apon tasse para o alto as línguas ardentes rubras rápidas uma fumaça grossa se desprendia do fundo da touça suspendiase no ar leve da floresta vagando na direção dos caminhos como pastosas nuvens Começara a queima O fogo erguerase e lambia num anseio satâni co os troncos das árvores Toda a ramagem da base foi ardendo e as parasitas como rastilho de pólvora levavam as chamas à copa e a fumaça aumentando entupia as veredas e arremessava para a frente o bafo quente do fogo que lhe seguia no encalço Muitas árvores estavam contaminadas ardiam como tochas monstruosas e esten dendo os braços uma às outras espalhavam por toda a parte a voragem do incêndio O vento penetrava pelos claros abertos e esfu ziava atiçando as chamas Pesados galhos de árvores que caíam tron cos verdes que estalavam resinas que se derretiam estrepitosas faziam a música desesperada de uma imensa e aterradora fuzilaria Os homens olhavamse atônitos diante do clamor geral das vítimas Línguas de fogo viperinas procuravam atingilos Recuavam fugindo à perseguição das colunas que marchavam Pelos cimos da mata se escapavam aves espantadas remontando às alturas num vôo desespe rado pairando sobre o fumo Uma araponga feria o ar com um grito CANAÃ metálico e cruciante Os ninhos dependurados arderam e um piar choroso entrou no coro como nota suave e triste Pelas abertas do mato corriam os animais destocados pelo furor das chamas Alguns libertavamse do perigo outros caíam inertes na fornalha Num alvoroço de alegria os homens viam amarelecer a folhagem verde que era a carne e fenderse os troncos firmes eretos que eram a ossadura do monstro Mas o fogo avançava sobre eles inter rompendolhes o prazer Surpresos atônitos repararam que a devas tação tétrica lhes ameaçava a vida e era invencível pelo mato adentro quase pelas terras alheias E feros e duros atiravamse à enxada para cavar o aceiro Do lado da praia o trabalho foi fácil o terreno estava desbastado e limpo Aí abriram rápido o sulco protetor Do outro lado no meio da floresta nos limites da área do lote a luta foi tre menda A nevrose do pavor centuplicoulhes as forças Os pigmeus que se não mediam com as árvores e que não podendo vencêlas tinham recorrido ao fogo agora sob o aguilhão da defesa própria se arrojavam contra os paus com o denodo de gigantes E afogueados enegrecidos cavaram a trincheira pelo rumo e se encontravam o embaraço de algum tronco atacavamno a machado com raiva com ânsia com febre O aceiro foi sendo aberto até que o fogo se apro ximou a coluna como um ser animado avançava solene sôfrega por saciar o apetite Sobre a terra queimada na superfície aquecida até ao seio continuava a queda dos galhos O fogo não tardou a penetrar num pequeno taquaral Ouviramse sucessivas e medonhas descargas de um tiroteio quando a taboca estalava nas chamas O fumo crescia e subia ao ar rubro incendiado os estampidos redobravam as laba redas esguichavam enquanto a fogueira circundava num abraço a moita de bambus A cem metros de separação os colonos cavavam sempre Farto de devorar a carne dura do bambual o fogo desafo gouse e célere e lépido foi veredeando por um atalho sorvendo os arbustos que se erguiam à margem até chegar ao aceiro Já os homens num esforço imenso se tinham adiantado As chamas abeiraramse da vala e diante do espaço aberto e intransitável detiveramse e espalharamse para a direita e para a esquerda continuando a sua obra Os colonos e trabalhadores semimortos voltavam a casa logo que se reconheceram senhores do perigo invencíveis sacrificadores da terra À noite da varanda do barracão quando as estrelas em ritmo moroso pareciam caminhar em no céu Milkau chamava na sua imaginação a vinda dos tempos sem violência e os outros miravam numa diabólica satisfação a mata esbraseada a estorcer nas agonias do incêndio felicidade de Milkau era perfeita Tinha limitado o inquieto desejo apagado do espírito as manchas da ambição do domínio e do orgu lho e deixado que a simplicidade do coração o retomasse e inspirasse Trabalhava mansamente no quinhão de terra que ocupava A sua peque na habitação erguida no silêncio da mata era humilde como as outras dos colonos nada existia ali que fosse a traição de um gosto refinado ou uma pequena consolação da volúpia Apenas quebrando a uniforme monotonia rústica o quarto de dormir de Milkau impressionava como uma capela ardente de amor de veneração e de saudade Estava povoa do de retratos como veladores Penates que o homem transporta nas suas migrações sobre a terra Aí se viam pessoas da família essa mãe quase filha com grandes olhos de dor e súplica perene o pai iluminado por um sorriso de mártir e a mulher criança que amara quando ela pas sou diante dos seus olhos transfigurandose para morrer Os mais eram retratos das grandes figuras humanas poetas amorosos sofredores Era com essas imagens que Milkau vivia na comunhão funda e religiosa que dá a alegria perpétua e que enche o vazio do isolamento Sentiase am parado por um fluido de esperança de resignação que emanado do G R AÇA AR ANHA amor e das lembranças o envolvia dandolhe uma armadura invencível E a vida dentro desse quadro sorrialhe como uma deslumbrante res surreição O trabalho pelas próprias mãos davalhe a sensação positiva da sua dignidade humana Os seus olhos procuravam em torno o mundo para onde ele se queria dirigir num forte desejo de afeição feliz e en grandecido não pelo que tinha feito mas pelo que aspirava fazer Sem demora Milkau espraiavase em relações com o grupo colonial do Rio Doce Achava um encanto em conviver com essa gente primitiva que o recebia sem desconfiança e que se ia deixando infiltrar da sua cordura e meiguice Milkau sem orgulho de inteligência conformavase com todas as lições que lhe davam os antigos e experientes colonos sobre as coisas da lavoura Vendoo assim atento mais lhe queriam os camponeses que ele não atemorizava com a sua educação e em sua presença tinham instintiva mente uma atitude cheia de simpatia e respeito Milkau estava destinado a ser pouco a pouco a figura central daquela região e sem reparo os colonos iam absorvendo o seu imortal prestígio como a terra bebe imper ceptivelmente as finas gotas do orvalho até ficar saciada Ao contrário do seu companheiro Lentz vivia triste num íntimo e reservado desespero A vida que tomara era para ele uma grande humi lhação torturandoo essa pungente agonia de praticar a existência con denada pela idéia Ficara ali ao lado de Milkau incapaz de abandonálo preso às seduções do camarada que eram o estímulo para a agitação do seu pensamento O caráter fraco traía a audácia do sonhador e a bon dade do sentimento entorpecialhe as maldades grandiosas do seu idea lismo E assim inativo paralisado caminhando na doce sombra de Milkau ele o criador da força o apóstolo da energia completavase na con tradição como um verdadeiro homem Para se distrair e dar um pouco de fadiga aos nervos Lentz encar regavase das viagens das compras da casa e sentia uma expansão de ale CANAÃ gria quando atravessava solitário as montanhas em silêncio e sobre elas dava grandeza aos seus sonhos de vida Outras vezes caçava extenuan dose e acalmandose num esforço tenaz e porfiado Era então que lhe sucedia encontrar no mato o vizinho taciturno que passara na tarde da sua chegada defronte do barracão Sempre calado desdenhando qual quer conversa o velho alemão ágil enérgico primitivo seguia cercado da sua árdega matilha cujos cães o festejavam aos saltos ou iam à sua frente de orelhas caídas farejando o chão Uma tarde Lentz voltava de Santa Teresa trazendo a notícia de que no dia imediato haveria uma festa em Jequitibá19 O novo pastor cele brava o seu primeiro serviço religioso com o concurso dos pastores de Altona e Luxemburgo Em Santa Teresa e nas casas dos colonos por onde Lentz passara todos se preparavam para essa diversão Milkau que se queria identificar com os hábitos da nova sociedade a que se consagrava resolveu ir ao Jequitibá E na madrugada seguinte os dois amigos parti ram marchando sempre por um caminho de montanhas Raras vezes a paisagem transmitira a Milkau uma emoção maior do que naqueles terrenos altos Estava ele todo possuído pelo espírito da ascensão e sua alma escalara também as regiões silenciosas plácidas e vastas do infinito Sob a transparência cristalina do firmamento a terra intumescida parecia à hora do amanhecer sair de si mesma e querer se alevantar para o céu para o espaço num soberbo movimento de força e desespero E também as essências místicas que ainda viviam em Milkau naquele instante de exaltação e vertigem levavamno a desejar atingir a eternidade e dissolverse no infinito Quando já se avizinhavam do Jequitibá iam pelo caminho encontran do colonos a pé ou montados formando caravanas Família e grupos ininterruptos enchiam as estradas Todos vinham radiantes excitados pela fresca da manhã e pela esperança do prazer em sociedade pois havia GRAÇA ARANHA muitos meses que não se abria a capela e os colonos não se reuniam desde essa época era como uma alegria de recémchegados que se sau davam mutuamente Alguns passavam a galope e esse ardor comunican dose aos outros então era de ver a carreira folgazã de toda a gente pelos caminhos Quanto mais perto da igreja mais a multidão se engrossava Em certos pontos havia necessidade de demorar o passo para não se atropelarem e tomavam uma rítmica marcha de procissão Os dois ami gos depois de algumas horas de viagem ao saírem de um atalho cober to descortinaram a capela do equitibá Esta ficavalhes à frente e os olhos deles abrangiam todo o panora ma claro feito de uma dourada luz e de pequenas elevações como ondas regulares brandas e fixas de um oceano manso Pela encosta do morro que vai ter à capela viase a subida dos pigmeus A multidão desembocando ali de toda a parte parecia borbulhar de dentro da terra Ao longe a capela branca rodeada pela multidão que fervilha va que ondeava parecia moverse como uma presa arrastada vaga rosamente por um formigueiro Acharamse depois à base da colina e seguindo outros subiam por uns degraus de madeira fincados na terra e que muito espaçados che gavam até ao alto à casa do pastor que era no fim da igrejinha A medi da que galgavam iam vendo viajantes que chegavam em bestas apearse e amarrar os animais nas estacas passandolhes o embornal O cimo onde se erguia a capela formava uma esplanada e nela a massa de gente remexia acotovelandose Um vozear confuso enchia os ares e turbava Milkau e Lentz já tão descansados e entorpecidos na solidão bonançosa Mas logo se habituaram e entretiveramse enquanto a capela se não abria em mirar o povo Era um grande ajuntamento de colonos da região Alguns estavam ali havia trinta anos e a sua pele era amarela encolhida como pergaminho CANAÃ outros ainda eram louros e jovens Trajavam as suas melhores roupas o que fazia também uma mistura de modas de muitas épocas conservadas religiosamente em trajes que se não acabavam mais Cada uma das mu lheres ainda tinha o seu vestido segundo o uso do momento em que deixara o país O vestido largo de cintura curta e babados o corpinho fino esguio as crinolinas as rendas o casaco severo as toucas de seda os simples panos brancos envolvendo a cabeça o chapéu de veludo tra jes aldeãos trajes de cidade reviviam nas serras do Espírito Santo como se fosse uma revista retrospectiva de modas ou a combinação fantasista de um baile de máscaras Só isto paga a viagem disse Lentz gracejando um perito pode ria fixar pelos vestuários a época de cada migração É verdade concordou Milkau acompanhando as observações que o amigo fazia sobre os detalhes das vestes Mas também admiremos a felicidade deste povo Até os velhos A alegria dos velhos é um mandamento para a vida Misturado com o aroma da terra o cheiro das flores que as raparigas traziam ao cabelo e das roupas domingueiras guardadas longo tempo nos baús amenizava o odor forte das multidões O povo continuava no seu burburinho tumultuoso e alegre Milkau mirava para todos os lados e ao longe descobriu Felicíssimo Joca e o grupo de trabalhadores da comissão de terras que desde algum tempo tinha deixado o Rio Doce continuan do as medições para outras bandas O agrimensor estava com um cravo ao peito e do bolso do paletó pontas de lenço saíam espalmadas Cum primentou de longe com uma barretada e um riso desdentado Ora disse Lentz em voz baixa depois de algum tempo afmal de contas já vimos o melhor E está ficando quente Que nos importa a missa do pastor Vamos esperar o fim da festa para assistirmos à saída do X I 2 79 GRA ÇA ARANHA povo dando um passeio por essas montanhas ou deitados à sombra de alguma árvore Não fiquemos aqui e acompanhemos esta boa gente Nós nos diver tiremos vendo divertirse os outros Mas francamente eles podiam se divertir de outra forma Essa religião Ela é venerável como toda e qualquer outra Haverá um tempo em que o homem há de enterrar com os antepas sados o culto que eles nos legaram Tudo será esquecido E o homem viverá sem terror Milkau fitou muito calmo o amigo Esteve um instante calado hesi tando se devia responder Afmal disse O espírito religioso é irredutível Para destruílo é preciso que o homem explique o Universo e a vida e o conhecimento por mais que se alargue e avance não esgota o mundo dos fenômenos A marcha da ciên cia no nosso espírito é como a nossa na planície do deserto o horizonte foge sempre é inatingível à medida que caminhamos Além além há sempre o desconhecido E o culto que o idealiza e o culto seja do que for de um deus ou de uma abstração como a que diviniza a sociedade humana é inseparável do homem Ele é a expressão da nossa emoção imorredoura do nosso eterno pasmo no Universo ou a exaltação do nosso amor e é sempre uma força salutar divina Defronte deles no começo da ladeira do morro três homens che gavam esporeando com força os animais que subiam arquejantes Quando se apearam Milkau reparou que eram os mais bem vestidos de todos O mais velho era um sujeito de cabeça grande meio bar rigudo de monóculo escuro e costeletas o outro muito jovem moreno e imberbe enquanto o terceiro tinha no seu rosto claro com uma moldura de barba castanha um ar de fadiga e preguiça Lentz CANAÃ teve curiosidade de saber quem eram Um dos vizinhos disselhe se rem as autoridades do Cachoeiro Com efeito era o triunvirato judiciário da comarca20 Fitandoos percebiase que sentiam a consciência de uma posição superior Olhavam os colonos como uma massa amorfa e subordinada e o velho de mo nóculo empertigado esperava solene silencioso os cumprimentos Dois ou três homens da cidade rompendo a aglomeração acercaramse deles muito prazenteiros outros mais afastados cumprimentaram muito reverentes e pressurosos de se recomendar Por contágio e por instintivo sinal de respeito dos humildes colonos as saudações propa gavamse e daí só se viam as cabeças abaixandose na direção dos ma gistrados que correspondiam desdenhosos O sol já esquentava muito e sob os seus ardores a impaciência cres cia Todos olhavam as portas cerradas da capela praguejando contra o hábito de os deixarem de fora Os homens tiravam o chapéu limpavam o suor e muitos cobriram a cabeça com o lenço As moças atavam tam bém o seu ao pescoço enquanto mulheres velhas agitavam as saias re frescandose com estrépito Abafavase e murmuravase Alguns se es gueiravam para as escassas sombras das paredes um grupo para se pro teger do sol apertavase debaixo de um mísero arbusto os animais bufavam espanavamse com os rabos triturando surdamente o milho A multidão impeliase lentamente para as portas num movimento inconsciente de quem ia forçálas Mas estacava empurrando para trás para adiante zumbindo e espalhando o calor de corpo a corpo A porta afmal abriuse e foi uma invasão alvoroçada na capela sombria e fresca Milkau e Lentz conseguiram lugar num dos bancos de madeira e aí repousados observaram a singeleza do interior que bem se casava com a simplicidade externa Não havia a menor pretensão de enfeite na bran cura das paredes estavam inscritos versículos da Bíblia no centro o púl GRAÇA ARANHA pito baixo de madeira não envernizada e ornado de listas alvas cheias de palavras santas em negro ao fundo uma cruz preta com um sudário branco pendente Muito triste muito nu como sempre dizia em surdina Lentz ao camarada O tom protestante é plebeu inestético mil vezes uma igreja católica com a sua pompa as suas cerimônias de finas ex pressões simbólicas Milkau concordou com um aceno de cabeça Em volta deles outras conversas prosseguiam em voz baixa Ainda não o viu perguntava uma velha aludindo ao novo pastor Não respondia outra Há muito tempo que não ando por estes lados E onde você o viu No armazém do Jacob Müller outro dia Parece uma pessoa muito de bem2 Também se não fosse para que lhe darmos o nosso dinheiro Ah isso você sabe não há remédio senão darmos Não fomos nós que encomendamos um pastor a Roberto Seja como for temos de o agüentar Depois do descanso do primeiro momento à sombra recomeçava a impaciência que se esforçavam por conter mas que se percebia nos bocejos nos movimentos de pernas e de braços Não tardou porém que um acorde de harmonium soasse chamando todos à respeitosa con tinência A multidão apaziguouse e o instrumento continuou a cantar os solos como murmúrios de piano e de flauta seguidos de um acompa nhamento misterioso de vozes múltiplas infInitas A música fIltravase nos nervos dos ouvintes e os amansava molemente Milkau vibrava A música enchia a sua alma capaz de sentir os mais intangíveis e deliciosos segredos do som e de se transportar além de si mesma perdendo a pró pria essência na mais copiosa e alucinadora emoção Música Que con CANAÃ junto de sensações não se acumularam desde as remotas almas progeni toras que rios de sangue não correram de pais a filhos longamente car regando as vibrações recolhidas em cada célula dolorosas lentas tra balhando afinando o mundo dos nervos até enfim se formar no homem a derradeira das suas almas a alma musical E enquanto o órgão no alto da capela cantava lá ia Milkau tomado pela saudade carregado nas harmonias à sua vida primeira Era numa igreja de Heidelberg na terra antiga no passado E Milkau agora de olhos cerrados não percebia mais as fronteiras do sonho e da realidade Tudo se confundia estra nhamente Ele vê uma figura de mulher que entra na sombra silenciosa e brandamente vai sentarse Os olhos dela embebemse na Bíblia e sobre esta os seus cabelos caem numa chuva de ouro como uma bênção e uma luz do céu iluminando o livro santo Música também lá em Heidelberg uma melodia fantástica angélica enche a igreja Música Canta a mulher que Milkau amou Um sonho dentro de um sonho na volúpia infinita de um templo enquanto ela recolhida mística e crente entoava hinos ele debaixo das harmonias escrevia poemas sagrados porque escrever é cantar com a pena Música Cessou o órgão na capela do Jequitibá Milkau teve um ligeiro sobres salto e despertou Os seus olhos meio atônitos descansaram em uma jovem que parecia entretida em vêlo dormitar Milkau ficou indeciso um instante Continuava o sonho ou era aquela mulher a sua visão realizada Parecialhe já ter visto em outra vida aquela mesma cabeça de macios e crespos cabelos de infante com a mesma suave e meiga expressão E ela o olhava vagamente distraída E quando reparou que era examinada moveuse curvando o pescoço devagarinho sobre o peito num gesto de recolhimento de ave mansa Subia ao púlpito o novo pastor cercado pela curiosidade do povo Era um homem alto com uma barba fulva que lhe caía sobre o casaco preto 1 3 1 GR AÇA A R A NHA em rico contraste Pelas mãos calejadas pela cor vermelha do áspero rosto pelo acento da voz pelas frases Milkau reconheceu nele um cam ponês e voltaramlhe à memória as observações de Lentz sobre o protestantismo que sempre entendeu como uma religião seca e simples aquela que mais se liga ao judaísmo pela austeridade pelo rigor excessi vo de seu monoteísmo uma religião rústica cujos melhores intérpretes eram homens rudes violentos e radicais Na cisão da Igreja cada uma parte ficara com a porção dos espíritos que lhe era própria e peculiar a gente do Norte inculta bárbara independente revoltarase natural mente contra os civilizados nos quais o catolicismo se desenrola como um sucessor natural do paganismo astuto elegante e pomposo Numa toada humilde e tímida o pastor ia desenvolvendo o seu ale mão religioso Este primeiro contato com os colonos era para ele uma crise e em vez de continuar desembaraçado o sermão detinhase a examinar o povo a refletir sobre si e os seus embaraços e muitas vezes parava distraído outras ia tropeçando para adiante Os ouvintes desin teressavamse da atrapalhada e vagarosa prédica e preocupavamse com o pregador e sua família Ao lado de Milkau um homem explicava a uma mulher que bisbilho tava a respeito de duas outras que se viam no coro da capela Aquela mais magra e morena Tem cara de judia Sim mas me parece muito boa pessoa É a mulher do novo pastor Ah E a outra é que é a irmã dele Quem vê um vê outro A cara não engana E de onde as conhece Daqui mesmo Outro dia vim preparar a horta que estava toda abandonada Agora se pode ver creio que o pastor tem gosto pelas plantas A irmã metese em tudo CANAÃ E Frau Pastor Não sei pareceume uma alma penada em casa Pobre Então que lhe fazem O colono não respondeu porque vendo que as suas palavras eram recolhidas por outros ouvidos da vizinhança volveu concentrado e hipócrita à sua Bíblia Na tribuna o pastor ia rolando o sermão procurando com vão esforço esquentarse tentando vociferar e clamar a religião A sua voz logo es morecia e caía na morna toada Do outro lado em frente a Milkau estava Felicíssimo muito nervoso a fazer sinais de impaciência O cearense arregalava os olhos para os seus amigos do Rio Doce sacudia a cabeça num gesto de contrafeita resig nação e em caretas sucessivas transformava a sua móvel fisionomia Lentz não pôde deixar de murmurar com certo desdém a Milkau que seguia complacente o agrimensor Que macaco O grupo dos ma gistrados também não estava resignado ao enfado da cerimônia Sen taramse os três juntos num banco ao lado do púlpito e enfrentavam solenes a multidão o mais velho que era o Juiz de Direito não se cansa va de gesticular ora tirava o lenço enxugando a testa que se franzia em grandes rugas ora limpava o monóculo que mal assestado ao olho direi to caía logo obrigandoo a repetir indefinidamente os movimentos ao seu lado o Promotor crispava as mãos aborrecido e de lábios cerrados agitava a perna suando muito fitando com desprezo e rancor o pastor e os colonos o terceiro o Juiz Municipal coçando a barba por desfastio num grande abandono e bocejando às vezes murmurava alguma coisa ao Juiz de Direito e este pondo maquinal o monóculo para melhor entender sorria benévola e cavalheirosamente Os alemães cheios de respeito não se moviam concentravamse recolhidos ao livro de orações ou de olhos fechados voltavamse para o GRAÇA ARANHA abismo vazio do seu espírito que miravam absortos e suspensos sem a menor vibração íntima sem um pensamento E o tédio envolvia a capela até que o novo pastor terminou a prédi ca e a música do órgão as vozes das cantoras vieram numa desabafada desforra levantar os ânimos Os três pastores reuniramse no fundo da igreja e leram sucessivamente os salmos a música foi suspensa um instante para recomeçar um coro a que o povo respondia O velho pas tor de Luxemburgo com a cara toda raspada e de óculos tinha uma voz rouca que se ia apagando enquanto o pastor de Altona com uma barba muito curta e dura espraiava o seu ar desabusado e insolente No meio dos dois o novo pastor de Jequitibá muito grande e de olhos meigos tinha uma atitude de gigante tímido Em breve acabou o serviço reli gioso os pastores sentaramse vendo o povo retirarse em ordem lentamente tangido pela música levando cada um o eco longínquo dos cantos Fora todos ficaram deslumbrados com o sol e apressaramse a partir Os burros foram desamarrados os embornais vazios embrulha dos e escondidos debaixo da sela e daí a pouco homens e mulheres mon tavam descendo toda a massa de gente pelo morro abaixo como uma represa de água escura que se tivesse aberto sobre a verdura da pai sagem Escorregando vagarosamente ninguém se apressava com receio de um perigoso atropelo E o grande vozerio de comentários de galho fas as grandes gargalhadas e gritos festivos rebentavam das mil bocas da multidão matando a tranqüilidade da região silenciosa Milkau e o com panheiro vinhamse também arrastando partilhando da alegria e esque cidos de si para se misturarem na comunhão ali formada pelo acaso e pelo impulso comunicativo Embaixo na cruz das estradas o povo começou a debandar alguns tomavam a dianteira galopando na estrada e envoltos na poeira outros corriam mesmo a pé as mulheres arre gaçavam as saias de cima por economia e cobriam com elas as cabeças CANAÃ enquanto os homens se descalçavam levando nas mãos as botinas ou os chinelos E a gente iase escoando pelos caminhos procurando as suas casas ou as tabernas próximas onde costumavam passar o domingo Milkau voltouse sentindo um toque no ombro Era Felicíssimo que lhe falava de cima de um burro Bons olhos os vejam Há quanto tempo não nos avistamos E para onde se botam agora Para a casa naturalmente respondeu Milkau Pois eu lhes proporia O quê perguntou Lentz interrompendo Irem à casa de acob Müller onde há um grande baile à noite e já agora de dia começa o pagode Mas não tivemos convite Oh isto é uma conversa Aqui na colônia não há convites Em se sabendo que há uma festa a gente não tem mais que se apresentar porque isso também faz parte do negócio Que negócio interrogou Milkau Que negócio repetiu o agrimensor respondendo Então não sabe O sujeito arranja a festa com olho de fornecer a comida vender muita cerveja e tudo mais Ora vamos daí É verdade que estou mon tado e não podemos ir juntos Mas não há dificuldade o caminho é este da esquerda vai descendo depois torna a subir e quando chega no alto vocês têm um pequeno pouso com uma venda passem pela frente tomem à direita e vão seguindo sem se desviar Quando toparem um sobrado brando com um terreiro é aí Não há confusão a casa está em festa e vocês a reconhecem logo Os dois amigos consultaramse com o olhar meio indecisos mas Lentz não demorou em responder Pois sim iremos G RAÇA ARANHA Assim é que eu gosto da rapaziada disse radiante o agrimensor que não tem história nem maçadas Falouse em patuscada não enjeita Bem eu vou indo vou na frente mando guardar três lugares na mesa para nós Temos muito que desenferrujar E apontava com a mão livre a língua Depois tomado de uma repenti na excitação passou a fazer trejeitos inconsiderados com a cabeça a rir muito Até log Picou o burro com veemência deulhe chicotadas gritou para a frente e se foi num galope espantando os colonos com os berros e a correria Os outros executaram as indicações do cearense e foram andando apressados pela estrada No alto estava realmente a venda onde já se aglomeravam muitas pes soas formando grupos diferentes todos alegres A taberna era limpa bem arrumada e com duas portas largas Dentro encostados ao balcão os alemães bebiam em geral cerveja fabricada no Cachoeiro e alguns tomavam cachaça algumas mulheres de várias idades agruparamse aos homens e entre todos trocavamse saudações e oferecimentos amáveis de bebidas A dona da casa e uma fIlha moça e loura de um louro lava do em que uma rosa traduzia e eterna faceirice da mulher serviam lestos os fregueses Fora uma grande latada corria pelo oitão da casa e na sombra larga debaixo do caramanchão sentadas às mesas toscas famílias almoçavam e eram atendidas pelo dono da casa Como esta sombra convida a descansar disse Lentz fatigado do sol Podemonos demorar aqui um pouco e fazer a caminhada mais à vontade concordou Milkau Não Se não estás morto continuemos porque receio uma vez em casa não tornar a sair por este sol E lá se foram deitando um olhar de cobiça ao caramanchão ruidoso onde o verde das folhas entrançadas nas grades formava quadro para as cores simples álacres dos vestidos das mulheres CANAÃ No caminho viram muita gente que tomava o rumo da casa da festa E quando chegaram à lombada de um morro avistaram embaixo um fio d água veloz e à beira o sobrado onde se percebia mesmo de cima o movimento de uma reunião Apertemos o passo propôs Lentz que não vale a pena mais nos pouparmos quando lá está o nosso refúgio Sim isto agora vai depressa é só descer E ao lado deles passavam rapazes e raparigas a correr pelo morro abaixo gritando de júbilo e levados pela excitação de chegar sem demo ra Isto transmitiulhes também o desejo de correr de se perder na ale gria do ar na vertigem da descida E correram também mas daí a pouco pararam e sorriram vexados da inconsciência que os tomara Ora esta disse Lentz estávamos a imitar Não foi isso o que me fez parar mas é que nós nos estávamos es gotando ponderou Milkau desconhecendose naquele arranco de ex pansão jovial e contente com este rejuvenescimento do seu espírito Afmal a natureza readquiriu os seus direitos pensava ele Desamordaçavamselhe os nervos e uma invasão de luz punhao em misteriosa e infrangível harmonia com o Mundo jovem verde e glorioso Ergueu a cabeça num gesto de desafogo sacudindo a barba de ouro Os seus olhos azuis estavam radiantes de paz e calma e foi com o passo cheio de majestade e de graça simples que baixou da montanha Nas cercanias da casa de Jacob Müller a paisagem tinha o realce e a vida comunicada pelo movimento da gente que se ia reunindo Muitos a pé ou montados vinham da capela do Jequitibá outros de Santa Teresa e outros do Cachoeiro A casa tinha uma bela situação no centro de várias estradas e era um dos maiores pontos do comércio do interior da colô nia e aos domingos um dos mais procurados pelos habitantes do lugar GRAÇA ARANHA por moradores de longe e até pelos caixeiros da cidade Era um sobra do branco no fundo de um vale e à margem de um endiabrado ribeiro que descia em tropel infindo do morro para o Santa Maria A roda dele o terreno estava limpo de plantação e havia um pequeno campo de relva tenra e fresca que brilhava ao sol O sobrado ficava destacado das grandes massas de árvores e de folhagem que vestiam as pedras dos morros Ao chegarem ao terreiro da casa já as vozes da festa vinham ao encon tro dos dois novos colonos e eles foram entrando no meio do ruído da agitação dos alemães à sombra da varanda quando a tarde começava a refrescar e a luz a esmorecer Venham venham meus amigos E Felicíssimo gritando corria para eles arrastandoos Os outros espantados da efusão do agrimensor perguntavam para onde os levava Vamos a um copo de cerveja Não obrigado arranjemos antes um lugar aqui à sombra disse Milkau porque precisamos de descansar O agrimensor ficou meio amuado Ora bolas E os deixou brusca mente Milkau acompanhouo para lhe dar uma explicação da recusa mas o outro levado pelo rompante lá se foi metendose pelos grupos e entrando no armazém Milkau desistiu de seguilo e voltou a Lentz procurando ambos um lugar para descansar Acharamno enfim em um banco debaixo de uma laranjeira em frente à casa A gente moviase muito Bandos de moças de branco passavam de mãos dadas rapazes cor riam pelo campo em mangas de camisa em apostas brincalhonas uma pequenada vadia espalhavase guinchando pelo terreiro como um bando desesperado de maitacas Outros entravam e saíam do armazém cantarolando com a voz rouca e a gesticulação de embriagados O estrondo dos pés que dançavam no sobrado ecoando no vasto armazém e o som langoroso de um realejo CANAÃ incessante desciam do alto atordoando a gente E nas janelas muitas pes soas com ar indiferente debruçavamse para o terreiro olhando a agi tação em volta e fitando pasmadamente a paisagem que parecia tam bém moverse toda arrebatada pela celeridade do regato Milkau que se tinha conservado mudo a contemplar satisfeito o prazer alheio viu um rosto amigo que se aproximava Era Joca que em mangas de camisa de lenço ao pescoço e um cinturão de couro segu rando a calça vinha saudálo abrindo a boca em que se apertavam os dentes felinos Então vieram divertirse um pouco Sim senhores já é coragem que do Rio Doce aqui é um estirãol Saímos de madrugada e fizemos a viagem sem grande fadiga respondeu Milkau Lá isso não interrompeu Lentz porque eu estou que não me posso mexer Começo a ter fome também O que não falta é comida Olhem só lá para dentro do armazém por cima das cabeças desta gente vejam que povo está ali agarrado ao balcão parece urubu cercando carniça E atrás nas salas as mesas já estão apinhadas para a hora do jantar O que é preciso é marcar os lu gares desde já Seu chefe se encarregou disso referiu Lentz sumiuse de nós e esqueceuse de nos dizer o que arranjou Mas ele há de voltar concluiu confiante Milkau e estou certo de que temos tudo arranjado e você Joca que fim levou Rolando amigo De um lado para outro a fazer medição agora lá para o Guandu Isso é estes dias nós descemos ao Cachoeiro para fol gar um pouco E como vão lá no prazo Já sei que a casa está bonitinha E o cafezal Plantado G R A Ç A A R A N H A No roçado que fizemos Sim ao lado da casa E quando beberemos desse café A resposta foi um gesto de mão indicando o tempo remoto Por um instante uma ligeira sobre excitação coloriu as faces de Lentz que tremia em pensar no vago da distância ainda à sua frente e naquela vida estra nha que levava Ah agora a coisa vai ser mais animada disse em sobressalto o mulato olhando alvoroçado para o fundo lá vem a banda Os músicos da filarmônica do Cachoeiro vinham chegando ao arraial e todas as vistas se voltavam para eles Um grande rebuliço fezse no povo e repentinamente todos se foram aproximando da banda que caminhando lentamente e como por um velho hábito se dirigia para um pátio ladrilhado de cimento que era o lugar destinado para secar o café comprado por Jacob Müller Nos dias de semana uma grade de arame protegia esse pátio da invasão dos animais e da criançada Aos domingos quando havia festa a grade era retirada e todos tinham a liberdade de penetrar na área Joca deixou Milkau e foi se postar ao lado dos músicos alguns dos quais eram seus conhecidos e camaradas Então minha gente vocês hoje estavam com preguiça de desu nhar A rapaziada aqui já andava impaciente O velho Martinho já está com o braço morto de tocar realejo para entreter o povo lá em cima Vamos à gaita E contente o mulato começou a dar vivas à banda do Cachoeiro Um alarido de gargalhadas e aclamações acompanhou os vivas Os homens da música sorriam rubros de vexames e todos automaticamente tiraram o chapéu agradecendo Foi um delírio para o maranhense que começou a dar outros vivas ao povo do Cachoeiro a Jacob Müller à união da rapaziada Todos se G R A Ç A A R A N H A cara de jenipapo murcho entrou no terreiro para dirigir o baile infan til Foi um instante de sossego O homem mandou que os pequenos se ordenassem pelos sexos e começou depois a distribuir os pares cha mando cada criança pelo seu nome Alberto e Ema Hermann e Sofia Guilherme e Ida Às vezes um dos pequenos recalcitrava contra o arranjo Mas eu estou comprometido professor Como Com quem Com Augusta Feltz Mas não é possível você tão miúdo e ela tão crescida replicava o velho tremendolhe as mandíbulas moles No círculo as mães intervinham acompanhadas por outras vozes de mulheres Deixe senhor professor Que é que tem Cada um escolhe a que deseja O mestre resignavase e Augusta Feltz com os seus doze anos de canelas compridas e olhos mansos de veada lá ia para a forma inclinan do o pescoço para o cavalheiro que a levava de braço fitandoa muito ancho ArmaI o professor conseguia arranjar as quadrilhas e a música rompia a dança Os pequenos estavam exercitados de modo que tudo corria em ordem sem confusão Das pessoas grandes muitas ficavam entretidas acompanhando a festa das crianças outras porém fatigavam se da atenção e punhamse a passear pelo arraial indo à beira do rio deitandose na relva para verem passar a água alguns de braço como noivos iam se perdendo pelo mato adentro e outros se reuniam ao bal cão a beber e a cantar as velhas estrofes do prazer e do convívio humano que na ilusão instantânea os transportavam à terra abandonada Em tu do no menor movimento no mais pequeno gesto a reunião ali na esta ção do Cajá dava a sensação do esquecimento e da alegria C A N A Ã Era isto o que eu procurava dizia Milkau a Lentz quando passeavam pelo terreiro ao ritmo da música e olhando a cena Era isto que eu procurava e que enfim achei Viver no meio de gente simples partilhar com ela o seu doce esquecimento da dor matar o ódio Compara este povo com os homens de outras terras onde cada um parece possuído do espírito do demônio solto sobre a face do mundo devastandoa nos seus impulsos de loucura e estrebuchando para mor rer num espasmo de maldade Aqui ao menos é a serenidade é a calma é a alegria Mas observa Lentz traçando no rosto um gesto de desdém no fundo isto é a estagnação é uma existência vazia e inútil E não é o amor a ação por excelência E não é ele a força que aqui na colônia no canto do Universo move os homens Que queremos mais Aproximaramse do baile das crianças que prosseguia vivo e anima do Agora havia uma grande roda dos dançantes que ora célere ora vagarosa se ia movendo aos cantos infantis estridentes e desafinados E quando a meninada estava muito entretida um sujeito mascarado saltou no pátio disfarçado em palhaço maltrapilho besuntada de alvaiade a cara e beiços e faces pintados de vermelhão Uma imensa risada dos grandes o recebeu e os meninos pararam a dança meio espantados abrindo o círculo O palhaço começou a cabriolar a gritar imitando ani mais e daí a pouco no meio da algazarra geral metiase na roda das cri anças de olhos tapados a divertilas E Felicíssimo que não nos procurou mais lembrou Milkau afas tandose do círculo com o amigo pelo braço É verdade Creio que desconfiou conosco Vamos procurálo propôs Milkau É tempo mesmo porque já podíamos ir jantando acedeu Lentz Já àquela hora o sol esfriando transformava magicamente o panorama 1 43 G RAÇA ARAN H A graduando a cor que parecia surgir pouco a pouco do seio secreto das coisas e se expandir mais livre à superfície luminosa A aragem refresca va o tempo passando volátil pelas cabeças louras das mulheres brincan dolhes nos cabelos num leve arrepio que lhes descia da nuca A paz da tarde avançando sutil reinava sobre as gentes entorpecendoas com a sua doce perfídia Mas onde se meteu o agrimensor Onde se meteu ele ia dizen do Lentz passando de grupo em grupo e mirando por toda a parte Hoje ele está misterioso conosco Também por que não lhe aceita mos o copo de cerveja Não custava nada uma amabilidade E não se perdia um camarada tão idiota concluiu Lentz Oh Também vais logo aos extremos Procuraram o agrimensor pelo terreiro dando volta por trás da casa Uma caminhada inútil Foram até à margem do regato chegaram até à beira das estradas e precipitaramse para onde avistavam grupos de gente na esperança de achar o cearense Tudo em vão E entraram no mato Debaixo de uma carregada sombra um par amoroso cochichan do descansava Com a presença dos estranhos o jovem abaixou a cabeça enleado disfarçando a remexer nos gravetos esparsos no chão a rapari ga porém numa tranqüilidade altiva com seus olhos serenos e francos expulsou os perturbadores Quando tornaram à clareira desistiram de procurar Felicíssimo no arraial e se encaminharam para casa O balcão continuava sempre cercado bebiase largamente e numa língua arrastada enfadonha cantavase Os dois amigos lançaram uma vista d olhos pelo armazém e não viram o agrimensor A mulher de Jacob percebendoos indecisos fezlhes um gesto perguntandolhes o que bebiam Milkau desviando delicadamente alguns colonos pesados e oscilantes chegouse a ela indagando de Felicíssimo A mulher aconse C A N A Ã lhouos a subir à sala do fundo onde se servia o jantar pois talvez aí o encontrassem e faloulhes dos lugares encomendados para três De fato no sobrado enquanto a sala da frente se achava quase deserta e apenas com algumas pessoas à janela vendo o baile das crianças a sala do fundo estava num grande burburinho À mesa muita gente sentada comia avida mente Em pé uns com pratos na mão tomavam caldos e outros agarran do lingüiças fatias de pão mastigavam com uma fome voraz e com os olhos injetados fixos num espasmo de satisfação bestial Um cheiro de alho vinagre e pimenta excitava a multidão e entretinha a sua voracidade Felicíssimo estava numa cabeceira da mesa com dois lugares vazios de cada lado e quando avistou os companheiros chamouos num sobressalto Aqui Aqui Os outros foram rompendo caminho e tomaram os seus lugares Até que afmal vocês resolveram vir Pensei que não quisessem saber de mim hoje pois tão entretidos andavam Viram passarinho verde Ora respondeu Lentz não mude os papéis Foi você exatamente que nos deixou e meio amuado não se importou mais conosco que sem nenhum conhecimento temos andado vagando à matroca Não me conte histórias patife Imagino quantas amizades não tem por aí com quanta rapariga não tem falado Vamos lá nada de segredos O alemão enrubesceu e não sabia como replicar Milkau veio em socorro Lentz não se preocupa com isso V á pregar noutra freguesia seu maganão O nosso interesse é misturarmonos à alegria deste povo com preender a sua vida e felicidade Felicíssimo olhouo com os olhos miúdos caídos e vagos Depois com uma cara feita de um riso complacente e velhaco arrastando a voz G R A Ç A A R A N H A Qual camarada não me conte rodelas então você mesmo você que lá na sua língua procura misturarse à alegria desta gente que quer mais senão O pior meu amigo é que com esta discussão nós vamos ficando sem jantar cortou Lentz Oh é verdade gritou o agrimensor erguendose apoiado nas mãos Em pé berrava chamando os criados Afinal uma rapariga atendeu postandose em frente ao cearense à espera de uma ordem Felicíssimo miroua com malícia piscando os olhos para o companheiro e depois como a alemã enleada quisesse partir ele resolveuse a falar Meu bem meu amor você traga jantar igual ao que me tem trazi do para este dois amigos comecemos por um caldo de ervas A criada desapareceu rapidamente com um movimento airoso como uma passo de dança Felicíssimo estalou a língua atirandolhe os olhos que a seguiram como servos amorosos Ah esta vida esta vida murmurava o agrimensor melancolica mente e sem saber o que dizia Puxou o copo de cerveja e bebeu Olhou a garrafa que esvaziara bateu na mesa pedindo que lhe trouxesse outras seis Nós não tomamos tanto objetou Milkau Se vocês fizeram voto eu não fiz beberei todas seis Milkau e Lentz começaram a jantar dos pratos rústicos que serviam no meio de algazarra e de desordem Muitos caixeiros da cidade mais bem trajados que os camponeses recusavam a comida ordinária e pe diam aves em conserva de que se serviam bebendo o vinho do Reno Alguns destes rapazes que eram da casa de Roberto reconheceram os antigos hóspedes nos novos colonos e os cumprimentaram com gestos C A N A Ã de cabeça numa expressão amável Dos seus lugares ofereciamlhes vinho acenando com a garrafa Milkau agradecia com outro gesto e o grupo continuava a beber indiferente e desdenhoso do resto da gente Felicíssimo bebia sempre com grande alarde e tanto barulho fazia que não tardou muito a atrair sobre ele a curiosidade geral Excitado por essa atenção o agrimensor exibiase por todas as formas cantava dançava trepado na cadeira de copo em punho levantando brindes Os cam poneses o admiravam numa alegria infantil os rapazes da cidade o deprimiam com aplausos irônicos com frases insultuosas ditas no meio de risadas A estes o agrimensor respondia improvisando versos em por tuguês versos dessa toada sertaneja que lhe falava tão intimamente Muitos não o entendiam mas a cadência dos versos os enternecia e era com amor que pediam ao cearense que não parasse Este variava o seu repertório cantando canções alemãs que estropiava mas que ao seu la do eram retomadas com brio com entusiasmo pelos colonos Produzia se um berreiro descomunal feito de vozes de velhos moços e mulheres aumentado pelos repiques nos copos e nos pratos e pelo som estridente de um realejo tangido num impulso frenético para acompanhar as canções cujas notas graves eram abafadas no barulho destacandose apenas os agudos violentos e ferozes O dono da casa querendo conter a matinada tomou Felicíssimo pelo braço para forçálo a descer da cadeira O agrimensor o repeliu continuando a gritaria e outros o cer caram protegendoo contra Jacob que foi expulso da sala aos empur rões O agrimensor ordenou por sua conta mais cerveja que mandava distribuir em torno Disputavase cada garrafa das mãos das criadas e na confusão na desordem na desatenção o líquido espalhavase pela mesa dos copos entornados na sofreguidão da conquista Milkau temendo pelo agrimensor propôslhe saírem um pouco a desfrutar o resto da tarde no terreiro G R A Ç A A R A N H A Daqui não arredo gritava ele E os alemães embriagados o acompanhavam num berreiro Não arreda não arreda E de então em diante estas palavras serviam disparatadamente de estribilho a cada canção Os que ainda tinham consciência riam gostosa mente da ira dos outros e mais que tudo do efeito dos próprios cantos cheios de versos de amor de idílios campesinos casados com aquele es tribilho do cearense Milkau e Lentz julgaramse no meio de doidos que se fitavam com expressões várias de desdém e de divertimento E os dois foramse es gueirando da sala sem cólera perseguidos pela vaia dos que ficavam Fora a lua vinha rompendo e a claridade que dela descia apoderava se furtivamente do domínio da várzea abandonada pelo sol E nesse instante indeciso intermediário o vento extinguiase e todos se sen tiam sob um encanto misterioso de saudade de repouso com os olhos pregados no espaço abismados em melancolia No terreiro as crianças fatigadas estavam serenas intimidadas pelo silêncio que elas mesmas faziam e as mais pequenas cabeceando de sono encontravamse às mães sentadas no chão Os músicos recolhiam os instrumentos e vinham vagarosos jantar Os dois amigos caminharam até ao rio e o foram margeando descuidosos por algum tempo Detiveramse e sentaramse nas pedras E mais tarde como esfriasse e ouvissem de novo a música volveram à casa da festa Quando a descobriram ela estava iluminada e a luz rubra e quente que saía das janelas e das portas abria um círculo de fogo em fosforescência dentro da claridade mansa e leitosa do luar No terreiro já não havia quase ninguém as crianças tinham debandado os grandes haviam partido para as colônias ou se tinham recolhido ao salão do baile Subiram ao sobrado onde na sala da frente se come çavam a dançar Ali a música tocava uma valsa arrastada e langorosa e divertiam gesticulavam dançavam descompassados acompanhando a banda Os músicos instalaramse num dos ângulos do pátio largo liso lavado que recebia em seu lajedo para irradiála a força do sol Num momento ficou coalhado da gente simples e fácil de contentar desses que são amados da alegria e em quem ela não encontra atropelo para reinar livremente Colocadas as estantes os músicos sentaramse e começaram a tocar uma marcha de que cada qual entusiasmado ia repetindo os compassos Joca cantando marcialmente com os olhos acesos e as narinas arregçadas perseguia um bando de raparigas louras coradas que fugiam rindo num fingido susto Alguns velhos já ébrios de cachimbo ao queijo arrastavam as vozes fazendo mesuras às mulheres que riam destemperadamente As crianças invadiam o terreiro vindo em grupo abrindo espaço aos empurrões O dono da casa todo de branco em mangas de camisa e com um grande chapéu de palha na cabeça apareceu no pátio e depois de se entender com o mestre da banda principiou a falar dando ordens Algumas velhas aplicavamlhe palmadas nas costas outras puxavamlhe levemente a barba ele respondia aos socos berrando A festa é das crianças Limpa o terreiro Arreda Vocês têm baile à noite E depois persuasivamente viravase para os mais teimosos Anda meu velho ajudame que tenho de atender à freguesia Olha vai tomar um copo lá dentro Era o argumento irresistível e proveitoso porque a miragem desse copo afastava o homem daí e dava algum lucro ao armazém O lugar ficou limpo da gente grande que se enfileirou aos lados formando o quadro do pátio A criançada agora sobre ele girava doidamente a rodar a rodar como se fosse movida por um pédevento A música acabou a marcha e deu o sinal de uma quadrilha Um velho alto com uma longa sobrecasaca preta e surrada de óculos azuis e uma 137 pouca gente dançava pois muitos ainda permaneciam à mesa ou se postavam encostados às portas e às janelas tímidos e negligentes Em geral os pares compunhamse de raparigas que enlaçadas umas às outras rolavam provocadoras sacudindo com os seus movimentos o torpor dos rapazes até que estes estimulados viessem separálas tomando uma delas para seu par fixo Não se passou muito tempo sem que o baile entrasse em plena animação A sala depois que a noite avançara fora mais iluminada a música não cessava de tocar e todos se divertiam alegremente Agora é que se podia ver a variedade de gente aglomerada na casa de Jacob Ali estavam negociantes do Cachoeiro com as mulheres caixeiros da cidade tropeiros lavradores criadas e todos reunidos numa grande promiscuidade sem separação de classes Diante de Milkau que sentado a uma janela aberta acompanhava a festa passou na série de pares de uma marcha polaca uma jovem de flexível graça de movimentos ondulantes voluptuosos distinguindose do resto das outras raparigas desengonçadas ou morosas arrastadas com estrépito pelos seus pares Um homem de tosca figura que estava ao lado de Milkau referiuse a ela Não há nenhuma que seja capaz de chegar a Luíza Wolf22 Realmente é muito graciosa Ah É preciso conhecêla para saber que não é só no baile é em tudo assim Parece que não cansa de levantar aquela cabecinha Amanhã estará trabalhando com o mesmo ar Naturalmente é uma colona Não é criada no Cachoeiro e o patrão dela é aquele mesmo que é o seu par Martin Fidel Não conhece Não Pois admira é um dos negociantes mais ricos da cidade a família está toda aqui A mulher já é velha como ele Ah lá vai ela ao braço daquele 155 Maria não podia esquecer os fugitivos momentos do seu encontro com Milkau Muito das palavras do desconhecido se impregnara no seu espírito e ela guardava recordações desse dia do baile como de uma festa tranqüila para a sua alma de um pequeno clarão dentro da amargura da sua vida A história de Maria Perutz era simples com a miséria Nasecera na colônia na mesma casa onde ainda vivia Filha de imigrantes não conhecera o pai morto ao chegar ao Brasil no barracão da Vitória a mãe viúva e quase mendiga empregarase como criada na casa do velho Augusto Kraus antigo colono estabelecido no Jequitibá longe do Porto do Cachoeiro A colônia era próspera e os outros habitantes eram o filho casado e um neto que nascera um ano antes de Maria Viviase tranqüilamente as crianças cresciam como irmãos e o velho Augusto tendo quase chegado ao extremo da curva desse círculo em que as idades se tocam entretinhase em encher as almas dos meninos de recordações da sua vida de coisas longínquas da pátria germânica Esquecera Maria a morte da mãe o fato devia ter acontecido na sua remota infância não lhe deixando traço na memória A sua família o G R A Ç A A R A N H A mocinho alto de nariz grande não vê É um colono e filho de colono no Je quitibá O pai dele também está dançando é aquele baixo gorducho bar bado e de chapéu na cabeça o par é a criada uma desenxabida como vê Os dançantes continuavam no compasso marcial da polaca executan do variadas figuras ora desenhando meiasluas ora separandose em alas marchando frente a frente ora fazendo evoluções de homens e mu lheres separadas para se reunirem depois de diferentes voltas Os movi mentos eram tardos e pesados dentro de sapatos grossos ferrados batendo fortemente os pés no assoalho arrastandose com esforço fa ziam um barulho seco enorme que dominava as vozes dos instrumen tos Quando a contradança parava os pares voltavamse num mesmo instante como por uma combinação mágica e todos livres se moviam vagarosamente procurando os bancos encostados às paredes das salas ou aos cantos das janelas Muitos saíam até ao terreiro para se refrescar na morados passeavam ali no escuro abraçados velhos fumavam o seu cachimbo resmungando conversas preguiçosas até que de novo a músi ca dava o sinal e todos voltavam à sala em ordem sem o menor em baraço passando a dançar automaticamente de charuto ou cachimbo ao queixo e chapéu na cabeça enquanto as mulheres amarravam lenços ao pescoço por causa do suor que lhes escorria da fronte Milkau estava só o seu informante tinhao abandonado farto de lhe relatar coisas da colônia Lentz desde muito tempo não aparecia na sala e o amigo pensou que fatigado daquelas simples e monótonas danças estivesse no terreiro passeando solitário Felicíssimo saía da sala de jan tar onde com amigos alemães continuava a cantar e a beber De vez em quando ao menor silêncio da música as vozes deles alegres entoadas entravam num grande alvoroço Junto de Milkau no mesmo banco sentaramse duas mulheres Numa delas reconheceu ele a mesma que na capela o fitara durante o seu sono C A N A Ã Estavam ali a descansar bem perto dele aqueles mesmos olhos meigos e infinitos sobre os quais via boiar imagens doloridas que seriam a vida e o amor da rapariga Esta respirava ofegante tinha um ar fatigado e sen tavase num pesado abandono Também da sua parte ela não deixou de acompanhar a furto o vizinho e às vezes mesmo com certa ousadia o mirava nos olhos plácida e inocente Havia nela certa beleza uma dis tinção maior do que era comum nos colonos o porte era gracioso o busto erguido porém de um contorno farto e as mãos brancas talvez longas demais saíam dos braços como cabeças de galgo Mas o que ela tinha de superior era a fronte aberta era o cabelo louro fofo volátil era a expressão da boca da sua boca descorada mas úmida e bondosa Alguns minutos depois tocou de novo a música uma valsa e quase todos foram dançar Milkau então falou à vizinha Não dança Ela não se intimidou ouvindo a voz dele até então silencioso e tran qüilo Respondeu prontamente Não não posso pois não me sinto bem mas se que um par aqui tem esta minha amiga que é uma das melhores na valsa E com gesto de carinho quase maternal pegou na mão da outra rapariga que se deixou acariciar negligentemente como habituada àquelas maneiras da amiga Milkau ficou meio confuso e desculpouse confessando que não sabia dançar E a sua interlocutora É o que me acontece pretextar quando não me sinto bem Mas ninguém me acredita Vejam só E sorriu levemente A voz dela era um canto íntimo sonoro e como que rasgava um tênue véu para mostrar a deliciosa paisagem da sua alma E como em toda a voz humana o acento da sua era uma revelação da personalidade íntima pela voz que traduz a música do cérebro per G R A Ç A A R A N H A cebemse as qualidades secretas de cada espírito conhecese a nobreza ou a grosseria da raça ou do grupo moral a que pertencemos Um rapaz se aproximou e sem dizer uma palavra à moda do lugar tomou pelo pulso a outra moça arrastandoa para a dança A rapariga ergueuse e voltandose para a amiga disse radiante e rápida Maria onde me esperas Não quero me separar de ti Tenho tanto que te dizer 23 Por aqui mesmo Neste banco ou na janela Quando a jovem partiu arrebatada pelo par Maria disse a Milkau Não lhe parece tão boazinha É filha de um colono do Luxemburgo há muito tempo não nos víamos e hoje tem sido um regalo Oh desde manhã andamos nesta rodaviva Lembrome de têla visto na capela do Jequitibá referiu Milkau Sim É verdade recordome bem de que não estávamos muito longe um do outro Por sinal que eu dormi Maria enrubesceu mas imediatamente retomou o fio da conversa Fazia um calor terríveL E o pastor não o divertia não é verdade Não sei Ao contrário sentia um bemestar imenso e o sono me veio como um arrebatamento feliz Deixe lá replicou meio confiada e íntima que às vezes seria me lhor passar a vida a dormir Já vejo que converso com uma grande preguiçosa Eu Nunca volveu com vivacidade a rapariga Não é por preguiça seria para esquecer tantos aborrecimentos que desejaria um grande sono Acabou a frase com uma voz sumida e vagarosa Aborrecimentos Imagino a que coisas simples dá este triste nome observou Milkau CANAÃ Ela não respondeu e ligeiramente abaixou os olhos quando logo depois os ergueu mudou de assunto Como é belo dançar Com a sua mão fina fazia um aceno afável às amigas que passavam alu cinadas no movimento aéreo da valsa Milkau ia achando prazer em se entreter com a rapariga que também ao seu lado não sentia o menor constrangimento e se exprimia sem embaraço como a um velho conhecido Quando a música parou os pares se desfizeram e cada um dos dan çantes tomou direção diversa Tu vês disse Maria à amiga não me mexi daqui à tua espera Eu sabia E agora queres dar um passeio ou preferes ficar aqui per guntou a outra arquejando de cansaço e sentandose instintivamente Oh meu Deus Passear quando estás que não podes Não amor descansa um pouco Talvez observou Milkau fosse preferível para sua companheira sentarse à janela as cadeiras ali estão desocupadas Vamos para lá o ar fresco lhe dará forças Levantouse e as moças correram sôfregas para as cadeiras indi cadas receosas de perdêlas O primeiro olhar deles foi para o qua dro de fora Toda a terra estava inundada de um luar branco as nu vens descendo do céu desmanchavamse no horizonte e o grande campo vaporoso livre sem estrelas e desmaiado ia se transformando em um pavimento de cristal puro rijo transparente O verde das árvores adoçavase à luz diamantina a torrente rolava borbulhando um vento manso balançava os ramos e destes as sombras ainda lon gas dançavam inquietas Que é isto interrogou Maria meio assustada por um grande barulho de vozes que vinha da sala de jantar para o lugar do baile G R A Ç A A R A N H A Todos se precipitaram para indagar do que se passava Havia grande discussão em vozes altas e agudas mas tudo cortado por atroadoras e bruscas gargalhadas Todavia Maria e a companheira não estavam tran qüilas pensando que uma grande rixa se travava ali Milkau saiu para ver o que se passava e pouco tempo depois voltou Não é nada O agrimensor Felidssimo entende que já basta destas danças estrangeiras e que agora se deve passar às danças brasileiras Os músicos não sabem como executálas os rapazes protestam contra a ino vação que eles ignoram o agrimensor insiste ensaia alguns passos asso bia quer forçar os músicos a tocarem E afmaI perguntou Maria Afmal parece que Felidssimo vencerá e veremos alguma dança da terra De fato o agrimensor conseguira impor os seus desejos e arranjara que os músicos de experiência em experiência lhe dessem uma peça cujos compassos seriam mais ou menos os da dança que premeditara Depois deste acordo os músicos vieram para os seus lugares e a gente ansiosa correu para a sala num burburinho de risadas para conseguir um bom lugar Depois sucedeu um silêncio de espera ninguém se movia mais na sala livre para a dança quase todos estavam sentados e muitos amon toados às portas e janelas Junto aos músicos Felidssimo cantarolava o andamento Não tardou porém que a orquestra agora afinada come çasse a tocar uma peça arrastada e voluptuosa Alguém perguntou ao agri mensor o que ia ele dançar Felidssimo cambaleando com olhos tortos e compridos saiu para o meio da sala gritando com voz difícil É o chorado meu povo E erguendo e abaixando os braços ensinava estalar os dedos como castanholas Mas nenhum som produziam as suas mãos dormentes A música suspirava gemidos lânguidos e o dançarino só no meio da casa C A N A Ã fazia trejeitos desconexos desengonçados medonhos Rodava sobre si mesmo acocoravase arrastava a perna e jamais um gesto se casava com o compasso da música Riam em torno achando aquilo estúpido e gro tesco A embriaguez do agrimensor era completa e o inutilizava inteira mente Felicíssimo deu mais algumas voltas e afinal como numa guina da de navio o seu corpo se arrojou rápido violento contra a parede Foi uma barafunda todos gritavam de susto uns fugiam abandonando os lugares outros riam do espetáculo O agrimensor apoiouse com a mão à parede livrando a cabeça e caiu brusco e pesado numa cadeira vazia Por entusiasmo por prazer a música continuava Felicíssimo ainda ten tou erguerse mas os seus vizinhos o sustiveram na cadeira com medo de alguma queda desastrada Ele deixouse prender agradecendolhes com o enternecido olhar de bêbado manso Durante algum tempo ninguém se moveu e a música prosseguia so litária nos seus largos e chorosos compassos Mas de repente como um fauno antigo Joca pulou na sala e principiou a dançar A sua alma nativa esquecia por um momento essa dolorosa expatriação na própria terra entre gente de outros mundos Arrebatado pela música que lhe falava às mais remotas e imorredouras essências da vida o mulato transportava se para longe de si mesmo e transfiguravase numa altiva e extraordinária alegria Todo o seu corpo se agitava num só ritmo a cabeça erguida tomava uma expressão de prazer ilimitado a boca entreaberta com os dentes em serra sorria os cabelos animavamse livremente ou empina dos e eriçados ou moles caindo sobre a fronte os pés voavam no assoa lho e às vezes paravam sacudindose os membros numa dança desen freada as mãos ora baixas estalando castanholas ora unidas saindo dos braços retesados ora espalmadas no ar e nesse gesto ébrio de música perfilado nas pontas dos pés ele parecia com os braços abertos querer voar Umas vezes corria pela sala saracoteando o corpo com os pés jun G R A Ç A A R A N H A tos num passo miúdo e repinicado outras obedecendo ao compasso da música vinha lânguido requebrado de cabeça inclinada e olhos com pridos e achegavase a alguma mulher quase de rastos suspenso que rendo arrebatála numa volúpia contida mas que se adivinhava febril vertiginosa Depois erguiase num salto de tigre retomava a sua doi dice como num grande ataque satânico agitavase todo convulso trê mulo quase pairando no ar numa vibração de todos os nervos rápido imperceptível que dava a ilusão de um instantâneo repouso em pleno espaço como a dança de um beijaflor Nesse momento a orquestra podia parar fazer um silêncio que desequilibrasse tudo Joca não perce beria a falta dos instrumentos pois todo ele no seu corpo triunfal na sua alegria rara no impulso da sua alma vivendo espraiandose na velha dança da raça todo ele era movimento era vibração era música A cena continuou algum tempo com esse único personagem Joca procurou um par uma mulher que acudisse aos seus apelos que corres pondesse aos seus movimentos Ninguém veio ninguém sentiu o ímpeto de sacudirse de remexerse ao ritmo daquela dança Todos tinham curiosidade e nada mais Desolado tomado de uma repentina tristeza de uma saudade das suas companheiras de mocidade das mulheres negras que sentiam como ele pouco a pouco foi cansando O peito ofegava as pernas morenas não se retesavam com a mesma energia de pouco antes com a flexibilidade vigorosa do paudarco Exausto ele derreou o corpo combalido e o último intérprete das danças nacionais foi cedendo o terreno aos vencedores enquanto outra música outra dança invadia o cenário Era a valsa alemã clara larga fluente como um rio N a sala os pares voavam num frenesi e entre estes se foi a amiga de Maria Fora havia mais luar as sombras minguando se resumiam mais C A N A Ã fixas Numa das janelas um par cochilava esquecido de dançar Era uma longa infindável e sussurrante palestra Um momento a rapariga alteou a voz e toda entregue à paixão declamou como na velha balada Ob ich dich liebe Frage den Stern Maria estremeceu ouvindo o canto de amor e sem saber o que fazia fitando com os olhos ardentes o céu apontou a lua dizendo com voz sumida e trêmula Que tristeza O pensamento de Milkau como obedecendo a um chamado estra nho subiu ao astro morto Ela imaginou a solidão de um mundo sem vida essa terra deserta marchando como um cadáver fantástico na estrada do infinito Ele pensou que algum dia também aqui nesta Terra radiante viçosa e feliz toda a vida se acabaria e uma imensa tristeza um grande silêncio reinaria nestes mesmos cantos cheios de movimento e de alegria E para quantos não começara o isolamento princípio da morte Pensou na sua própria vida no seu destino nesta solidão em que ia passando a existência envolto como num véu intangível que o não deixava sair para o mundo nem permitia que o mundo viesse a ele Sua vida triste sem uma companheira sua vida casta e mística pior que o eterno frio Acabara a dança e era hora da separação Um velho chegou à janela onde estava Maria e chamoua A moça despediuse de Milkau como de um antigo conhecido que no dia seguinte se tornaria a ver Por sua vez Milkau já recomposto daquele instantâneo desfalecimento foi procurar Lentz encontrandoo entre vários colonos no terreiro ao ar livre Oh pensei que fosse o último a deixar esta casa gritou Lentz recebendo jovial o companheiro Não sabia que eras tão grande apai xonado de festas Distraíme vendo os outros alegres e quis te dar a liberdade de te divertires a teu modo G R A Ç A A R A N H A Aqui estive a conversar sobre a Alemanha com estes amigos E fa lamos também de outra Alemanha que há de vir no futuro Não é ver dade camaradas Os outros aplaudiram a profecia Bem disse Milkau mas agora cuidemos de ir para casa A caminho Adeus amigos Até um dia Bateram durante horas e horas a mesma estrada de manhã percorrida Um momento depois de passarem por um grande cafezal belo em sua viçosa negrura na encosta de uma montanha majestosa começaram a ver cruzes pretas e pedras brancas por entre os pés de café Que é isto perguntou Lentz Um cemitério respondeu Milkau E acrescentou Vê tu Não há em Canaã lugar para a morte A terra dá o menos pos sível aos túmulos eles escassos e raros na fralda da montanha não apagam a Luz nem dão sombra sobre a Vida que os enlaça e domina na força do seu triunfo Ah Prepare tudo para se arrolar Não esconda nada senão cadeia Não lhe deixo contrafé porque de nada serve Era só o que faltava mais essa maçada Picou o burro e solene lá se foi num chouto pelo caminho Antes de passar a cancela voltouse para a casa Kraus estava pregado no mesmo lugar com o chapéu a rolar nas duas mãos O meirinho gritou Comida e dormida para cinco Veja lá Desapareceu e o colono ficou por algum tempo na mesma postura O nome mágico da Justiça aterravao Na colônia quando se falava em tribunais e processos todos se confrangiam A Lei e o Direito tinham ali um prestígio inquietador Franz Kraus não teve mais ânimo de ir para o trabalho Entrou em casa A mulher que o viu em tão estranho abatimento arrancoulhe palavra por palavra a narrativa da intimação Depois ambos ficaram mudos o dia inteiro Maria tentou confortálos mas o terror dos outros um terror como se tivesse havido ali uma visita da morte fazia ainda aumentar a própria tristeza dela tirandolhe as energias para distrair os patrões Apenas quando foi a tarde Maria lembrou os hóspedes do dia seguinte e o interesse que deviam empregar para recebêlos do melhor modo Compreendendo isso Franz animouse e auxiliado por Ema e a criada começou a arranjar a hospedagem As mulheres matavam galinhas preparavam o pão negro dos colonos arrumavam a casa remexendo velhos baús esquecidos nos quartos Tudo se fazia debaixo de conselho cada qual como sucede nos dias de desgraça querendo apoiarse no outro todos conchegandose numa desfalecida cobardia Na manhã seguinte a colônia estava ordenada Kraus vestido como nos domingos pôsse inquieto a andar no terreiro espreitando a chegada dos magistrados As mulheres também vestidas com os seus melhores fatos não se arredavam do trabalho da cozinha C A N A Ã paiol de algodão Uma noite e foi a última a rapariga achouo der rubado de bruços no chão e gelado Depois da morte do velho a situação de Maria na família foi se modificando Já a tristeza entrando no seu espírito lhe revelava o de sencanto da existência já a ambição dos colonos donos da casa temerosos que da convivência do filho com a rapariga resultasse algu ma ligação de amor lhe traçava a separação entre ambos Mas apesar de todas as preocupações tomadas Maria foi amante do jovem Moritz Kraus Estes amores eram como em geral os amores da colônia e deviam acabar por um casamento Assim esperava Maria Mas a cupi da ambição dos já então velhos Kraus não permitiu que as coisas seguissem o curso habitual Queriam que o filho se casasse com Emília Schenker uma das mais ricas moças do lugar Não era a distinção de classes que não existe entre os colonos quase todos da mesma ori gem que os levava a afastar Maria de Moritz era apenas o interesse a avidez de incorporar o filho à família Schenker Assim os pais sem sus peitarem do ponto a que tinham chegado as relações entre Moritz e a criada e no desejo de cortar uma simples inclinação que a convivência tornara inevitável ligandoos inexoravelmente deliberara mandar o filho para outra colônia longe do Jequitibá onde o alugaram como traba lhador esperando esquecesse o amor enquanto preparavam o espírito dos Schenker para anuir ao desejado casamento Maria viu com grande pasmo a docilidade do amante que lhe pare cia entrar gostoso nos planos dos pais O seu abandono foi completo não teve meio de comunicar com Moritz nem ânimo de exigir o casa mento Que era ela senão uma miserável uma pobre criada que po deria ser lançada de um momento para outro na estrada Como poderia embaraçar com a sua pessoa com os seus desejos e ambições os pla nos da família Para o rapaz aquela ligação fora uma simples conse 1 6 1 G R A Ç A A R A N H A qüência da vida em companhia de uma rapariga fora apenas uma con clusão animal e desde que lhe acenavam com outra mulher rica ele prestavase manso e satisfeito a esposála Pouco a pouco Maria já não era a mesma galharda e resistente serva Um grande desânimo a tomava e de vez em quando fraqueza que não lhe vinha só do desalento moral mas também da misteriosa perturbação do organismo tinha tonteiras e tudo se lhe turvava nos olhos um grande suor frio inundavalhe a fronte e à garganta subiam lhe náuseas Quando no cafezal lhe vinham subitamente esses mo mentos de cansaço esqueciase da tarefa deitavase ao sol num com pleto abandono os cabelos amarelos misturavamse com a relva ver de os seios arfavam intumescidos e ela desapertavaos num gesto de desafogo a boca umedeciase os olhos semicerrados perdiamse no azul do infinito e tudo céus terra parecia balançar como em alto mar Indo às festas da colônia alvoroçouse pensando encontrarse com Moritz Este porém não foi à capela nem ao baile de Jacob Müller e Maria cada hora mais abandonada mais inquieta com a fatalidade de sua sorte teve dolorosa provação de se confundir com a alegria dos outros e reprimindo os sobressaltos retendo uma imensa vontade de chorar ouvia frases e juramentos de amores alheios que lhe enchiam os ouvidos redobrandolhe a agonia E por isso não esquecia a sua conserva com Milkau As palavras dele sem significação sem alcance vazias mesmo eram ainda assim repassadas de uma infinita brandura que caía sobre ela como um refrigério para sua ânsia E no desespero no abatimento vivendo em si mesma como hipnotizada em funda agonia ela se apegava a essa lembrança como a um trecho de verdura no deserto imenso desolador que era a sua nova existência Quem era ele Quando o veria mais E sabia que tudo tinha passado como o rasto do pássaro no ar mas teimava 1 6 2 C A N A Ã em reproduzir de memória aqueles momentos a que pouco a pouco a turvada imaginação e a frágil lembrança tudo pervertendo numa doce conspiração iam dando outro relevo outra sensação mais for te mais expressiva Uma manhã o dono da casa ia partir para o cafezal próximo da habitação quando um mulato montado numa besta se aproximou dele vagarosamente 24 Você se chama Franz Kraus perguntou o mulato de cima da montaria desdobrando uma folha de papel que tirara do bolso O colono disse que sim Pois então tome conhecimento disto E desdenhoso entregou o papel ao outro Kraus olhou o escrito e como apesar de estar no Brasil havia trin ta anos não sabia ler o português ficou embaraçado Não posso ler Que é Também vocês vivem aqui na terra a vida inteira e estão sempre na mesma bradou o mulato Venho por aqui furando este mundo e de casa em casa sempre a mesma coisa ninguém sabe a nossa língua Que raça O colono ficou aturdido com aquele tom insolente Ia replicar meio encolerizado quando o mulato continuou Pois fique sabendo que isto é um mandado da justiça É um man dado do senhor juiz Municipal para que vosmecê dê a inventário os bens de seu pai Augusto Kraus Não era assim o nome dele A audiên cia é amanhã aqui ao meiodia A justiça pernoita em sua casa Prepare do que comer e do melhor E os quartos São três juízes o Escrivão e eu que sou o oficial do juízo que também se conta O colono ouvindo falar em justiça tirou o chapéu submisso e ficou como fulminado seu lar era aquele em que fora recolhida Ignorando a própria história por muitos anos viveu como inconsciente passando a existência sem perceber o mundo de que se não distinguia e com o qual mesmo se confundia numa grande inocência Viver puramente viver por viver na completa felicidade é adaptarse definitivamente ao Universo como vive a árvore Sentir a vida é sofrer a consciência só é despertada pela Dor O grande amigo de Maria era o velho de quem ela crescida e já moça cuidava como de uma criança Com ele conversava longo tempo para ele cantava coisas cujo sentido não entendia bem amores fabulosos lendários paisagens estranhas mas que falavam como o sol à alma cansada e saudosa do colono Só se separavam à noite depois da ceia quando o ancião vinha para o meio do terreiro e aí sentando num tronco seco de árvore se punha a fumar cismando O sonho era sempre o mesmo o anseio de tornar à sua terra de rever essas montanhas da Silésia onde dormira quando pequeno vigiando o gado Nesse tempo conhecia pelos nomes as solitárias estrelas Ele as viu sempre nessa marcha de forçados no campo azul até que na época da sua migração ao balanço do mar desceram do céu baixaram às águas para desaparecerem uma noite e serem trocadas por outras Mas ainda de vez em quando neste outro mundo lá vinham algumas das antigas conhecidas como perdidas das companheiras e ele as saudava pelos nomes num rejuvenescimento infantil E assim para ver as velhas estrelas Augusto Kraus se sentava ao ar livre até que adormecia tranquilo como um pássaro As mulheres Ema que assim se chamava a nora e Maria se ocupavam em arranjar os leitos e quando a tarefa se concluía e as duas voltavam ao silêncio Maria saía a buscar o velho despertandoo de mansinho Enfiavalhe o braço arrastavao brandamente até ao quarto e deitavao na cama fofa farta como um CANAÃ Era mais de meiodia quando a Justiça entrou senhorilmente na colônia Os magistrados montavam excelentes bestas que segundo o costume eram emprestadas pelos negociantes ricos do Cachoeiro O colono correu a recebêlos de chapéu na mão solícito em ajudá los a apearemse das montarias Um dos juízes largoulhe o animal os outros da comitiva amarraram os seus nas árvores e todos espanaram com chicote a poeira das botas batendo no chão ruidosamente com os pés Estou morto disse o Juiz Municipal espreguiçandose Uma estafa Quatro horas de viagem Ainda o senhor veio por obrigação mas nós dois eu e o colega que nada temos com isto e só pelo passeio Enfim sempre a gente se diverte disse o Juiz de Direito procurando fitar com o monóculo o Promotor Perdão então não terei ocasião de funcionar perguntou viva mente o Promotor adaptando a luneta azul aos olhos Ah é verdade senhor Curador de órfão Mas aqui não há disto Todos meu doutor são maiores atalhou com um riso de escárnio um mulato velho cor de azeitona recor dando nas linhas e na expressão inquieta a cara do gato maracajá co mo era a sua alcunha Era o Escrivão Mas senhores entremos A casa é nossa em nome da Lei disse o Juiz de Direito encaminhadose para dentro Mas onde está esse inventariante imbecil perguntou com arrogância o Promotor O sandeu fica todo este tempo a arranjar os animais e nos deixa aqui ao deusdará explicou o Escrivão E todos passeavam pela sala com estrépito batendo com o chicote nos móveis ou praguejando ou rindo das pobres estampas nas paredes ou fare jando para dentro de onde vinha um capitoso cheiro de comida G R A Ç A A R A N H A Delicioso esse tempero Promete exclamou o juiz de Direito Moça bonita que saia gritou rindo o Promotor Não haverá alguma por aí Ouvindo tanto rumor Kraus correu à sala atarantado como se já tivesse cometido o primeiro delito e pôsse como um criado à espera das ordens Traga parati ordenou o Escrivão Mas que seja do bom2s O colono sumiuse para logo voltar com uma garrafa e um cálice Não há mais copos nesta casa perguntou com desprezo o Escrivão O colono tornou ao interior e depois reapareceu balbuciando des culpas e pôs em cima da mesa quatro copos Vamos a isto meus senhores propôs o Promotor Segurou a garrafa serviu no cálice ao juiz de Direito Dr Itapecuru como mais graduado E foi distribuindo a cachaça nos copos Você quer Muito pouco um nada Tome lá seu fracalhão Sr Escrivão continuou o Promotor distribuindo Mas Dr Brederodes o senhor me afronta com este copo quase cheio Rindo contente o maracajá começou a beber estalando os beiços É bom Esses diabos de colonos a primeira coisa que aprendem aqui na terra é a conhecer parati Meus senhores uma consulta disse Brederodes uma consulta de direito O Oficial de justiça pode beber antes da audiência Na porta em pé o meirinho esperava a sua vez Os outros riram sem responder à pergunta C A N A Ã Senhor doutor para clarear as idéias E meio desconfiado o mulato chegouse à mesa com o braço estendido V á lá depois se esqueça de tocar a campainha e temos processo nulo Não há risco De um trago engoliu a aguardente com medo que esta lhe escapasse Uma onda de sangue enegreceulhe o rosto os olhos cheios dágua tingiamselhe de vermelho Este sujeito não nos dá almoço Olhe que já é tarde Faça favor de ver isto Sr Escrivão O senhor é o nosso mordomo disse o Dr Itapecuru olhando pelo monóculo o subalterno O Escrivão entrou pela habitação adentro procurando o colono Quando voltou disse Vamos almoçar o homem tinha tudo preparado O melhor é deixarmos essas nossas cerimônias tomarmos conta da casa porque se formos esperar que esta gente se mova estamos convidados Não sairemos daqui Olhem se querem lavar as mãos o quarto é este Indicou os aposentos todos o seguiram e se viram em um quarto com duas camas altas de grandes colchões de palha farfalhantes e cômodos O Juiz Municipal apalpou com volúpia um dos leitos Ah que sono divino aqui Mas como é isto Só duas camas e somos quatro observou in quieto o Promotor Aqui ao lado há outro quarto E empurrando a porta de comuni cação o Escrivão mostrouo Nós hoje não sairemos daqui não é exato inquiriu o Juiz de Direito Pois bem vou me pôr à vontade Manoel veja as chinelas O Oficial de Justiça obedeceu Os colegas do Juiz de Direito o imi taram e logo depois todos três mudados de roupa lavados e refres GRAÇA ARANHA cados como se estivessem em suas fazendas entraram radiantes na sala onde o almoço os esperava Comeram com apetite as comidas da colônia beberam cerveja em quantidade O dono da casa e o Oficial de Justiça serviam a refeição e só no fim do almoço Maria que estivera todo o tempo na cozinha entrou com o café Única mulher no meio desses homens ela ficou vexadíssima e rubra sentindo por instinto a crueza e a lubricidade dos olhares excitados e cobiçosos Oh lá Caça estranha Não é nenhuma asneira disse afoita mente o Promotor Sossega Brederodes observou sorrindo o Juiz Municipal dan dolhe de manso uma palmada nas costas Maria meio perturbada foi depondo as xícaras de café defronte de cada hóspede Eles agradeciam a sorrir intencionalmente enfiando os olhos nos olhos da rapariga Até o Sr Dr Souza Itapecuru notou o Escrivão dirigindose ao Juiz de Direito que de monóculo na mão ficou atrapalhado com um sorriso parvo enchendolhe a cara Oh é só para ver E a pobre moça finda a tarefa desapareceu num andar incerto e balanceado E enquanto os outros comentavam divertindose com a cena Brederodes ficou pensativo Nos seus olhos turvos passavam miragens de volúpia e ele sentiu ímpetos de se apossar da mulher Depois do almoço puseramse a fumar descansados e quando um grande torpor ia dominando a companhia entendeu o Escrivão es pertáIa dizendo ao Juiz Municipal Senhor doutor V sa não manda abrir a audiência O Dr Paulo Maciel espreguiçouse bocejando como se o convi dassem à mais enfadonha das tarefas 26 C A N A Ã Pois sim Vamos lá seu Pantoja O maracajá pôs os óculos e armouos na testa enquanto arranja va a mesa para o serviço O Oficial de Justiça apresentoulhe um bauzinho de onde ele tirou utensílios para escrever e um formulário que abriu em página marcada Procurou a melhor luz sentouse e principiou debruçado sobre o papel de margem dobrada a lançar os termos do processo Paulo Maciel tomou um lugar à cabeceira da mesa e com ar fatigado e distante começou a acompanhar o serviço do Escrivão Bem está pronto o termo Sim senhor então abra a audiência ordenou o Juiz Municipal ao meirinho Este de campainha em punho foi até à porta e começou a badalar passeando na frente da casa clamando com voz fanhosa Audiência do Sr Dr Juiz MunicipaL Audiência do Sr Dr Juiz MunicipaL Sob a força do sol de fogo na grande calmaria do mundo esses gri tos estridentes avolumandose no silêncio total aterravam os mora dores da colônia Depois foi apregoado o dono da casa que entrou na sala confuso e medroso O seu olhar não retinha da cena senão uma vaga impressão começara por desconhecer sua própria casa transformada em tribunal governada por aqueles homens que se tinham apoderado dela e onde ele parecia estranho e prisioneiro Ordenaram que se aproximasse e fize ramlhe perguntas a que respondia com voz apagada e trêmula Quando declarou que o pai era morto havia quatro anos o Escrivão resmungou Vejam só Este herói aqui na posse dos bens desfrutandoos como se já fossem dele sem dar contas à justiça nem à Fazenda Na cional Paulo Maciel desinteressado levantouse e disse ao Escrivão Seu Pantoja vá tomando as declarações E passou para o quarto onde os colegas fumavam tranquilos e preguiçosos estirados na cama Tirou o paletó e deitouse como eles Na sala Pantoja atormentava o colono com perguntas e de vez em quando se interrompia para ameaçálo Se você me ocultar qualquer coisa aqui da casa ou das terras ou do cafezal tem de se haver com a justiça Vocês são finos mas eu sou macaco velho São as penas da sonegação Penas terríveis Assim envolvia as suas ameaças nas dobras dos termos técnicos com que ainda mais amedrontava o alemão O processo foise fazendo com estes dois únicos personagens sentados numa cadeira junto à janela cochilava o meirinho abrindo de tempos a tempos os olhos rubros de sono que se fechavam logo do quarto não vinha mais o som da conversa apenas um roncar monótono e regular de alguém a dormir enchia a casa onde tudo se entorpecera num grande sossego Duas horas levou o Escrivão a trabalhar no inventário prosseguindo à sua descrição deixando apenas em claro as assinaturas do juiz e dos avaliadores que ele dava como presentes e que eram seus homensdepalha numa costumada fraude que lhe rendia mais custas Acabado o serviço despediu o dono da casa que assinou tudo quanto ele mandou sem receber a menor explicação Depois Pantoja tirou os óculos e manso sorrateiro veio ao quarto em que estava o Juiz Municipal Pronto senhor doutor Maciel espantouse com a voz do subalterno que curvado sobre ele sorria fitandoo com os olhos endiabrados e sinistros Ah o senhor Já acabou Tudo Havendo milho meu doutor vai depressa que é um gosto E aqui há bastante Tenho prontos alguns mandados para intimar uns C A N A Ã colonos desta vizinhança que não fazem inventário há muito tempo comendo os espólios à tripa forra sem nos dar satisfação Venha V S a assinar os mandados para se fazerem amanhã esses inventários aqui mesmo É coisa pouca mas Ora seu Pantoja é melhor deixar essa pobre gente em paz Não sendo coisa grande não nos adianta Não meu doutor tudo o que cai na rede é peixe e quando se sabe espremer a mandioca podese ver o que rende no fim da festa Seu Pantoja seu Pantoja disse o Juiz Municipal como se quisesse suster aqueles apetites do Escrivão Afinal condescendente e resignado levantouse e em mangas de camisa e chinelos veio à mesa da audiência assinar os mandados Neves ponhase em campo ordenou o Escrivão ao Oficial E lendo os papéis repetia alto os nomes das pessoas a intimar Viúva Schultz Viúva Koelner Otto Bergweg tudo é perto Para ama nhã às nove horas aqui Às ordens seu capitão Com poucas estou de volta O meirinho meteu os mandados no bolso e foi selar o burro Mas que malandrice disse o Juiz Municipal voltando ao quar to onde descansavam os colegas Com este belo dia deitados Ora meus senhores vamos passear E abrindo as janelas deixou que entrasse no aposento uma luz bran da amortecida no verde da folhagem das árvores que envolviam a casa Os dois outros abriram os olhos Que boa soneca doutor disse Maciel ao Juiz de Direito E voltandose para o Promotor Você temse fartado de dormir Para que serve o colono senão para isso Para sustentar e regalar a Justiça Olhe Maciel no seu caso se fosseeu o juiz dos inventários não sairia das colônias G R A Ç A A R A N H A Muito bem Dr Brederodes devemos sempre fazer as nossas de sobrigas como os vigários Esta é a nossa religião Mas não é com o Dr Maciel que se consegue isto O senhor bem sabe o trabalho que tivemos para arranjar esta pequena excursão Tenho pena ia dizendo o juiz Municipal De quê senhor doutor interrogou vivamente o Escrivão Desta pobre gente destes miseráveis Na miséria anda a justiça O senhor deve ter pena é de si da sua família e dos seus patrícios Não é Sr Dr juiz de Direito Itapecuru que de pé se penteava dividindo o cabelo ralo voltou se gravemente acudindo à interpelação e assentando o monóculo meteuse entre os discutidores A quem pergunta Fui juiz Municipal doze anos na Bahia Vão lá saber a minha fama Fui o terror dos inventários Não deixei um só por fazer ia de porta em porta em nome da Lei quando me constava que havia um falecimento tomava nota e trinta dias depois o manda do fazia mexer os recalcitrantes Ah todos prosperamos no foro eu movia a máquina Estes moços de hoje se dão outros ares Capitão Pantoja é por essa falta de espírito prático que o País vai mal Nós somos de outra escola nós os velhos Havia nessas palavras um prazer refinado de meterse de cama radagem com o subalterno que era o chefe político do lugar Perdão Dr Itapecuru não me envolva na classe dos românticos protestou Brederodes com interesse Comigo aqui o capitão sabe colono anda fino Paulo Maciel viuse assim excluído daquela comunhão e ficou meio desdenhoso mirando os colegas dominados pelo olhar felino do es crivão Todos triunfantes escarneciam do juiz Municipal e nos seus risos entravam suas almas compondo um conjunto extravagante um CANAÃ era o riso tumultuoso alvar de Itapecuru outro era o riso canino rápido cortante de Brederodes o do Escrivão era o riso silencioso sem energia para o ruído perdendo a força em se estampar demora do na fisionomia Vieram todos para o terreiro e se puseram a passear vagarosos O sol já ia fraco e a tarde era amena Os colonos encurralados na cozinha não apareciam A Justiça reinava livremente na casa e no pomar De chinelos e em mangas de camisa os jovens magistrados fartavamse do belo ar da tarde o Juiz de Direito que não os acompanhava em tamanho desalinho ia com um paletó de palha de seda muito penteado engravatado com um gorro de veludo na cabeça O Escrivão conservava a sobrecasaca de alpaca preta já muito ruça Cobria a cabeça com uma espécie de solidéu de lã que lhe tapava a calva Deram algumas voltas examinando cada detalhe do sítio e quando estavam debaixo do laranjal carregado de frutos amarelos e verme lhos frutos novos ou sazonados notou Paulo Maciel É admirável a ordem e o asseio desta colônia Nada falta aqui tudo prospera tudo nos encanta Que diferença em viajar nas terras cultivadas por brasileiros só desleixo abandono e com a relaxação a tristeza e a miséria E ainda se fala contra a imigração Então pela sua teoria interrompeu o Promotor devemos entregar tudo aos alemães Apoiado comentou o Escrivão É a conseqüência do que diz o Dr Maciel Sim confirmou este para mim era indiferente que o País fosse entregue aos estrangeiros que soubessem apreciálo mais do que nós Não pensa assim Dr Itapecuru O Juiz de Direito tomou um ar solene Sim e não como se diz na velha escolástica Não há dúvida que falta ao brasileiro o espírito de análise E quando digo brasileiro refirome a todos nós E que se pode fazer sem análise É o destino da Espanha caiu em nome da filosofia Não podia entrar em concorrência com um povo analítico Como doutor gritou o Juiz Municipal Então os Estados Unidos Terra de análise meu amigo Terra invencível Olhe eu sou um fanático da análise Quando vejo um indivíduo estudolhe todos os hábitos não preciso saber das suas idéias basta uma circunstância por exemplo o que esse homem come e eu concluo sem medo de errar quais os sentimentos psicológicos do meu examinado Ah Porque uma vez apanhado classificoo É meu O doutor é terrível disse Maciel trocando um olhar com o Promotor Ah Tenho confiança nos novos povos formados nesta escola Quando estive em França não deixei de ir ao Parlamento e admirei os jovens espíritos que ali estão dissecando o orçamento analisando os impostos Falase em Lamartine Um sujeito e até patrício nosso me disse uma vez em Paris veja os seus oradores de hoje Anões Lembrese de Berryer de Lamartine Quando falavam aqui dentro estávamos no Palais Bourbon a voz deles era ouvida no mundo inteiro E a destes de agora nem na Praça da Concórdia E que respondeu Pensa que embatuquei disse com o seu riso volumoso o magistrado Vai ver Não respondi eu não há inferioridade antigamente esses homens falavam por falar Só retórica nada de sério E a sua loucura era tão grande que pagavam pela língua Idiotas Veja hoje essa gente nova rapazes quase imberbes educados na ciência C A N A Ã positiva cheios do espírito de análise Não reparemos na forma olhe mos a essência Aí é que está tudo Não olhe você como eles dizem mas sim o que eles dizem E depois Mateio como vê O Brasil voltando à nossa questão morre por esse mesmo espírito de retórica É uma fatalidade Até certo ponto convenho com o Sr Dr Maciel que devemos ceder o passo ao mais forte Ao mais ditoso cedo o ingresso como diz o poeta E Itapecuru arrependeuse profundamente de ter dito isto porque leu nos olhos de Pantoja a sua condenação Teve um frio de medo e quis gaguejando remendar o pensamento Mas o Escrivão não lhe deu lugar e acudiu rancoroso Admirame ouvir de dois magistrados uma tal linguagem Não há mais patriotismo não há mais nada Os senhores podem querer entregar a Pátria ao estrangeiro podem vendêla mas enquanto hou ver um mulato que ame este Brasil que é seu as coisas não vão tão simples meus doutores E o pardo cerrou os punhos rangeu os dentes estampandoseIhe na cara um sorriso tenebroso Mas capitão escute obtemperou o Juiz de Direito com uma voz de melíflua cobardia não duvide dos meus sentimentos patrióti cos Quem aplaudiu mais do que eu a resposta do Marechal A bala sim meu capitão à bala quando eles vierem E não há de tardar muito o momento disse o Promotor Patriotismo vaise ver em breve Sim é preciso desmascarar os patriotas de barriga disse soturno Pantoja E quando é esse famoso momento perguntou calmo e desde nhoso Maciel G R A Ç A A R A N H A Quando esse imperador da Alemanha que você admira tanto replicou Brederodes mandar a sua esquadra bloquear os nossos portos E que fazem vocês para se oporem Pensa você Brederodes que com o nosso exército diminuto com a nossa marinha insignificante podemos arrostar a alguém Brederodes deu uma gargalhada e disse vitorioso E os Estados Unidos meu caro É verdade ajuntou também rindo Itapecuru E a grande América cruzaria os braços Não sei até que ponto se meteriam nisto os Estados Unidos Depois que lucro teríamos nessa intervenção Passaríamos de um senhor para outro Nada mais E a Doutrina de Monroe A América para os americanos do Norte Como eles mesmos dizem concluiu gracejando Maciel De toda a parte O nosso combate será com os europeus Ninguém pode dominar um país quando o povo não quer interveio o Escrivão Meu doutor com uma caixa de fósforos se li quida um exército e toda essa canalha européia Como capitão perguntou cortês e lisonjeiro o Juiz de Direito esperando com ar admirativo a resposta Como respondeu o escrivão com uma satisfação sinistra Tocando fogo nas casas no mato nas cidades Um grande incêndio que há de espantar o mundo Sei disto A Polônia e o Transvaal também prometiam tanto observou irônico o Juiz Municipal Os polacos eram aristocratas e por isto indignos os bôeres são uns miseráveis que têm o que perder disse fora de si Brederodes C A N A Ã Ali há mais amor ao dinheiro às minas do que à honra Os brasileiros não Não temos nada a perder felizmente e isto decide o povo Bravo doutor O senhor é dos nossos Capitão não duvide dos meus sentimentos disse interessado o Juiz de Direito O Escrivão encolheu os ombros com desprezo Os senhores falam em independência observou então cáusti co o Juiz Municipal mas eu não a vejo O Brasil é e tem sido sem pre colônia O nosso regímen não é livre somos um povo protegido Por quem interrompeu Brededores gesticulando com a luneta Espere homem Ouça Digame você onde está a nossa inde pendência financeira Qual é a verdadeira moeda que nos domina Onde o nosso ouro Para que serve o nosso miserável papel senão para comprar a libra inglesa Onde está a nossa fortuna pública O pouco que temos hipotecado As rendas das alfândegas nas mãos dos ingleses vapores não temos estradas de ferro também não tudo do estrangeiro É ou não o regímen colonial com o nome disfarçado de nação livre escute Você não me acredita eu desejaria poder salvar o nosso patrimônio moral intelectual a nossa língua enfim mas a continuar esta miséria esta torpeza a que chegamos é melhor que viesse de uma vez para cá um caixeiro de Rothschild para governar as fortunas e um coronel alemão para endireitar isto Você é um cínico insultouo Brederodes pálido com os lá bios a tremer Houve um pequeno silêncio O Escrivão saboreou a disputa Itapecu ru temeu um conflito mas Paulo Maciel sorriu logo com superioridade Descomponhame como quiser o que você não pode negar é a evidência dos fatos Colônia somos n6s e seremos repetiu frio e insistente G R A Ç A A R A N H A o outro enrubesceu e obedecendo a uma excitação fula prosse guiu atrevido Colônia enquanto houver miseráveis como você Menino menino deixe de ser malcriado disse secamente Ma ciel E retomando o seu jeito continuou Se na verdade não entramos ainda na órbita de um grande povo é porque aproveitamos da disputa entre as nações fortes Temos sobre o continente projetada a sombra dos Estados Unidos Isto reconheço mas um dia fatigados de impedir que outros se apossem de nós eles nos comerão como fizeram a Cuba Dizem que a Alemanha tem planos Dizem O colega sabe que em questões desta ordem não convém falar sem toda a segurança comentou profundamente o Dr Itapecuru E a sua cobardia solene punha uma certa brandura na discussão Pode afirmar sem medo disse o Escrivão que estamos sendo cer cados pela cobiça dos alemães O próprio Imperador paga do seu bolsi nho missionários e professores no Rio Grande e em Santa Catarina E o Governo que faz a tudo isso perguntou Brederodes E ele mesmo respondeu Cruza os braços cuida de eleições de poli ticagem Nós precisamos capitão varrer esta corja que se apossa do poder para enriquecer esquecendose de que o povo sofre e o estrangeiro só tem a ganhar com a nossa miséria As eleições vêm aí Por que não fazem os senhores um mani festo propôs o Juiz Municipal O negócio não é para manifesto nem para eleições Isto é coisa à parte coisa do interesse dos partidos dos amigos respondeu o Escrivão tomando a sério o que dizia Maciel Eis o que nos prejudica replicou Brederodes é essa mania eleitoral por causa de partidos deixase naufragar o País C A N A Ã E até se aproveitam dos votos do estrangeiro acrescentou Paulo Maciel Porque esses alemães não serão nunca brasileiros e são os melhores eleitores aqui do Capitão Pantoja O Escrivão ficou embaraçado no seu duplo sentimento de chefe de partido na localidade e de nativista Mas esses alemães não fazem nada São muito respeitadores e mansos Um rebanho de carneiros por esses respondo eu Brederodes deu uma risada escarnecendo Está aí o perigo Os alemães são uns velhacos metemse em nossa casa muito quietinhos obedientes nós nos aproveitamos deles do seu número do seu dinheiro e eles vão na sombra engrossando até um dia se despejarem sobre nós e avassalarem o País Capitão deixe de conversa fogo no estrangeiro nativista sempre A bala Paulo Maciel parecia desinteressarse da discussão e descuidado foise afastando na direção da casa tirando de passagem folhas das laranjeiras que ia aspirando nervoso Os companheiros o seguiam empenhados no assunto Maciel pensava É o debate diário da vida brasileira Ser ou não ser uma nação Momento doloroso em que se joga o destino de um povo Ai dos fra cos Que podemos fazer para resistir aos lobos Com a bondade ingênita da raça a nativa fraqueza a descuidada inércia como nos oporemos a que eles venham Tudo vai acabar e se transformar Pobre Brasil Foi uma tentativa falha de nacionalidade Paciência E que nos adiantam os Estados Unidos Será sempre um senhor Todo este continente está destinado ao pasto das feras Sul América Ri dículo Mas não haverá uma salvação não haverá um Deus ou uma força que paralise o raio armado contra nós Enfim vá lá Mea culpa e está acabado Temos o que merecemos Daí pode ser que seja melhor A Terra prosperará Melhor administração mais polícia e é só Vale a pena E o mundo é só isso Vale a pena viver para ter mais polícia E a língua A raça esta associação degradada se quiserem mesquinha sim fraca quase a esfacelarse mas amorável boa e amada apesar de tudo porque é nossa nossa Oh muito nossa Caminhando assim chegaram à casa onde eram esperados para jantar Puseramse à mesa e o meirinho já de volta das intimações ajudava o serviço Saindo do seu esconderijo Maria rodava pela sala sempre perseguida pelos homens A pobre porém parecia fria e indiferente às frases atrevidas imorais com que a cobriam os sujeitos da Justiça Acabado o jantar estes puseram as cadeiras do lado da casa e entretiveramse a conversar pela noite adentro enquanto as estrelas se vinham abrindo numerosas e infinitas O Juiz de Direito não desanimava em desmanchar qualquer impressão sobre a sua falta de patriotismo que porventura ficasse no espírito de Pantoja temido pela sua influência política e voltava ao assunto O meu nacionalismo capitão é antigo Desde a Academia fui um exaltado em questões de patriotismo Ah nunca transigi Mas isso foi noutro tempo creio que hoje ia interrompendo Maciel por brincadeira Hoje com a idade respondeu empenhado Itapecuru pondo o monóculo redobrou o meu nativismo Não dou tréguas ao estrangeiro Aqui para nós sou até jacobino Mas divertiuse bem na Europa e com certeza se pudesse não sairia de lá objetou Maciel Nunca abandonaria minha Pátria Não nego que a Europa tenha alguma coisa de bom Aqueles que como o senhor sentem desgosto de ser brasileiros devem dar uma vista dolhos ao velho mundo É salutar creia Os meus sentimentos nacionais confesso estavam C A N A Ã enfraquecendo mas vendo a decadência da Europa tive orgulho deste Brasil e voltei ao meu furor Não é debalde que me chamo Itapecuru É a marca nativista que trago da Academia Como assim inquiriu Brederodes Quando Gonçalves Dias e Alencar deram o grito de alarma pelo Brasil pelo caboclo nós estudantes respondemos ao nosso modo Eu me chamava Manoel Antônio de Sousa E só Sousa cheirava a galego Acrescentei Itapecuru Manoel Antônio de Sousa Itapecuru Foi um movimento geral Cada um tomou um nome indígena e daí os Tupinambás os Itabaianas os Gurupis Quando mais tarde a palestra esmoreceu o Juiz de Direito disse aos companheiros Meus senhores que propõem para matar o tempo Vamos a uma partida de manilha Paulo Maciel não temia o tempo e ao contrário dos companheiros era mais feliz quando o deixavam só com os seus pensamentos Não conte comigo doutor Estou cansado e vou deitarme Boa noite eu os espero no quarto Os outros logo que Maciel partiu entraram a detraíIo É uma pena disse Itapecuru não dá para nada Também pouco se perde acrescentou Brederodes Presunção não lhe falta mas no fim de contas que tem feito Sim desembuche para vermos o que tem tão escondido escar neceu o Escrivão Uma coisa afirmo nada sabe do ofício Eu podia contar impagáveis Se um dia escrever para a Capital para os jor nais havemos de rir muito Será bonito e asseado O que ele sabe é descompor o Brasil maldizer de tudo o que é nosso disse o Dr Itapecuru acentuando a frase com vistas ao Es crivão Pantoja que ajuntou por sua vez 1 8 1 G R A Ç A A R A N H A Mas o dinheirinho no fim do mês não se enjeita esse nem por ser brasileiro fede Pode ser que quando isto for da Alemanha receba o dobro dos seus patrões disse o Promotor É verdade insinuou Itapecuru que não larga a gramática alemã Sim está se preparando para nos governar respondeu Bre derodes Riram e ergueramse para jogar O Juiz de Direito trazia sempre um baralho de cartas na mala para essas excursões judiciárias em que nada tinha a fazer e que acompanhava por divertimento Os três jogaram algum tempo até que o Promotor pretextando cansaço abandonou o seu lugar Neste caso capitão desafioo para uma bisca disse pressuroso o Juiz de Direito não querendo desistir de jogar com aquele vago receio do tédio que tanto o perseguia Pois sim doutor agüentese para uma sova aquiesceu Pantoja por entre baforadas da fumaça de cigarro Brederodes no terreiro chamava em voz baixa o meirinho Neves Neves Pronto seu doutor O Oficial de Justiça estava a cochilar deitado na relva e ergueuse meio atordoado O Promotor deulhe uma ordem que ele partiu a cumprir Brederodes ficando só passeava nervoso agitado de desejos lúbricos Não tardou o Oficial de Justiça Então perguntou o Promotor quando o viu ainda de longe Qual seu doutor Não vejo jeito Como assim A bicha é arisca como quê Só se Vossa Senhoria visse o nojo que me olhou Nem me respondeu como se ainda tivesse o que perder Vossa Senhoria não reparou como já vai bem adiantada Brederodes ficou colérico Uma fluxão de sangue subiulhe à cabeça rangeu os dentes e os olhos na noite escura brilharam felinos e maus Ela me paga Deixe estar Ainda que tudo isto aqui arrebente Corja de alemães Vossa Senhoria não se zangue Vou ver se ainda dou uma volta no caso E desapareceu na direção da casa fugindo ao desabafo do Promotor Este ficou só numa meia alucinação ruminando vinganças Na casa tudo se aquietara Os dois parceiros mortos de sono tinhamse resignado a deixar o baralho e estavam deitados nos quartos os colonos não davam sinal de vida o meirinho não voltara Farto de esperar e um pouco acalmado no seu furor Brederodes resolveu vir para o quarto Aí o seu companheiro que era o escrivão ressonava Ele deitouse de manso e pôsse à espera de que a noite avançasse Tornavaselhe o sangue impetuoso de desejos e na mente nevrótica passavam perturbadoras miragens sensuais Levantouse sorrateiro e apenas alumiado pela frouxa luz de um candeeiro de azeite que estava na sala seguiu pela casa adentro e quando na volta do corredor o clarão se acabou às apalpadelas foi tateando as paredes Ao dar com alguma porta punhase à escuta para ver se por um movimento um sinal qualquer reconhecia o quarto de Maria E um momento acreditou descobrilo Tentou abrir a porta Mas esta estava fechada a chave Miserável pensou com raiva o Promotor Um impulso de arrombar a porta apoderouse dele mas um vago vislumbre da consciência da sua falsa posição tolheulhe o movimento Pode ser que não seja aqui Isto naturalmente é o quarto dos velhos G RAÇA A RANHA E com esta esperança passou adiante nas trevas Outra porta estava em frente Escutou nada Pôs a mão no trinco a tramela levantou se e com a pressão a porta abriuse rangendo Brederodes palpitou alvoroçado De dentro ouviu um rumor de alguém que acordara e uma voz assustada de velha perguntar Quem é És tu Maria Brederodes recuou para o corredor e deixando a porta deslizou nas pontas dos pés num instinto salvador que lhe fazia adivinhar no escuro o caminho do quarto No dia seguinte às nove da manhã o meirinho anunciava ao toque de campainha a audiência dos inventários dos vizinhos de Kraus N a sala o Juiz Municipal e o Escrivão estavam no seu posto à mesa o Promotor e o Juiz de Direito à janela conversavam voltados para dentro em pé encostados à parede duas mulheres e um homem rodeados de crianças seguiam atemorizados a cena esperan do ser chamados Sr Or Brederodes Vossa Senhoria tem de funcionar como curador de órfãos nos três inventários Há uns desvalidos que precisam da pro teção legal de Vossa Senhoria disse o Escrivão motejando O Promotor teve um risozinho de satisfação e veio sentarse à mesa Não é possível arranjar alguma fatia para mim nesta festa per guntou o Or Itapecuru num sorriso idiota Vossa Senhoria sabe que é depois no fim do negócio que se pre cisa da sua bênção Todos comerão do bolo Bem neste caso como nada tenho a fazer enquanto os senhores preparam o prato vou dar um giro aí fora Pondo o chapéu assestou o monóculo nos intimados e saiu ma jestoso seguido pelo sorriso zombador dos que ficavam C A N A Ã Viúva Schultz chamou Pantoja Depois de alguma hesitação uma camponesa alta ainda moça se aproximou Há quanto tempo seu marido é morto perguntou o Escrivão iniciando o interrogatório diante da apatia do Juiz Municipal Há dois anos Sempre o mesmo Ninguém cumpre a lei aqui todos herdam sem a menor cerimônia Isto vai acabar Juro Em seguida passou a tomar as primeiras declarações da viúva que triste e subjugada por aquele aparato judiciário ia respondendo docil mente a tudo O Juiz Municipal e o Promotor despreocupados da audiência levantaramse e foram entretidos para a janela A mulher a cada passo sofria descomposturas insolentes de Pantoja e um imen so pejo a assaltava Quantos pés de café tem a sua colônia Quinhentos Só Não minta senão temos conversa no Cachoeiro Mas senhor pode ser que tenha mais ou menos não contei um por um meu defunto marido avaliava em quatrocentos eu plantei uns cem nestes dois anos Bem eu arredondo a cifra E calado sem nada dizer à interessada que além de tudo não sabia ler o português escreveu Mil e quinhentos pés de café Continuava Pantoja a lançar os termos do inventário segundo o seu velho processo de tudo fazer ele mesmo aumentando descaradamente o valor dos bens para acrescer os seus lucros Depois de algum tempo disse à colona Agora pode ir Daqui a duas semanas apareça no Cachoeiro no meu Cartório para receber os seus papéis GRAÇA ARAN HA A mulher ia se retirando radiante de alívio Espere lá Que desembaraço Ainda não lhe disse o principal observou com acento escarninho o maracajá Num papel escreveu várias parcelas somouas resmungando e disse consigo afinal cento e oitenta milréis Está direito olhe leve consigo o dinheiro das custas Trezentos milréis Ouviu Trezentos milréis Trezentos milréis Meu senhor Não tem meu senhor nem nada aqui não se faz esmola e dêse por muito feliz porque não houve demanda Se tivesse de meter um advogado é que havia de ser bonito Trezentos milréis Nada de conversa e bico calado Se seu souber que vosmecê andou batendo a boca pelo mundo tem de se haver comigo A colona lançou olhos de súplica para os dois magistrados que con tinuavam indiferentes a sua palestra Sem um apoio esmagada saiu cabisbaixa da sala da audiência Pantoja chamou o colono que espe rava a sua vez de ser apregoado E depois de repetir com ele a mesma coisa passou a se ocupar da última intimada A mulher vestida de luto muito baixa e ainda jovem com um ar apa tetado e longínquo o ar da miséria aproximouse Uma filha de cinco anos seguravalhe o vestido e ela carregava ao colo outra cuja cabeça dourada se realçava radiante por entre a pretidão das roupas da mãe Paulo Maciel cansado de estar em pé veio sentarse no seu lugar e interessouse um pouco por esse grupo É viúva há pouco tempo perguntou ele Dois meses respondeu a moça E desde quando está no Brasil Há um ano apenas Meu marido que já vinha doente do peito não durou muito Estavam principando a vida Não é verdade Apenas houve tempo de levantar a casa fazer o roçado para a plantação Não se plantou nada É triste E como vive você inquiriu compassivo A mulher ficou pensativa sem responder Naturalmente tem algum amigo que substitui o defunto disse Pantoja para se vingar do interesse do juiz o que ele habituado a fazer tudo considerava como uma invasão dos seus privilégios Paulo Maciel para evitar uma discussão com o subalterno no fundo de todos eles temido fingiu não ouvir A colona afinal disse Estou em trato para vender a minha casa e vou me empregar como criada em outra colônia No fim de contas seu Pantoja opinou Maciel não há inventário a fazer É melhor mandála embora Como é isto disse trêmulo o Escrivão Vossa Senhoria tem competência para dispensar na lei Ora esta é muito boa Que diz a isto Dr Brederodes Vossa Senhoria é o principal interessado Tratase de órfãos Não concordo na dispensa do inventário acudiu vivamente o Promotor E se o senhor não quer fazer exofficio Dr Juiz Municipal eu requeiro Paulo Maciel ficou sem saber o que dizer diante de tais atitudes O seu sentimento era suspender prender este Escrivão insolente seu subordinado legal era dispensar o inventário era ainda por cima dar dinheiro do seu bolso à desgraçada e mandála embora envolvendoa num clarão de bondade Mas para isso que soma de energia de fluido nervoso não precisava de consumir Valeria a pena As suas poucas forças o traíram e a inteligência fina distinta descortinoulhe pérfida o desenrolar de uma luta com os seus colegas com esse Escrivão chefe político mandão da localidade luta inglória em que ele não se queria estragar Os juízes passam e os escrivães ficam Está bom cheguemos a um acordo Façase apenas um arrolamento sumário dos bens em vez de um inventário formal propôs com uma voz fatigada Pantoja mediuo triunfante Isto é uma novidade para iludir a Lei aqui está o formulário oficial e Vossa Senhoria não me mostra esses arrolamentos Inventário é inventário senhor doutor respondeulhe o Escrivão apossandose da situação que o superior lhe abandonava Homem deixe de luxos seu Maciel disse o Promotor Que mal há em fazerse o inventário Que mal obrigar esta pobre mulher a pagar mais custas É pouco As custas são o azeite da máquina do foro objetou alegremente Pantoja E o inventário foi feito como os outros com as mesmas extorsões e violências No fim quando o Escrivão intimou a colona a que lhe desse duzentos milréis esta começou a chorar Deixemos de cenas Querem obrigar a Justiça a trabalhar de graça Era só o que faltava Mas não posso arranjar tanto dinheiro Venda a casa Sim meu senhor vou vender o que tenho para pagar as dívidas de meu marido dívidas da moléstia e depois trabalhar para outras novas Primeiro a Justiça Se não quiser nos pagar não venderá a casa nem o roçado eu prendo os papéis e agora vamos ver Capitão Pantoja ia dizendo o Juiz Municipal Deixe o caso comigo atalhou o Escrivão colérico e intratável C A N A Ã Vossa Senhoria é rapaz não entende disto veio ontem ao mundo mas a mim ninguém me embaça Lágrimas Todas elas choram E voltandose para a colona Vá à mulher moça não falta dinheiro Deu uma risada seca Atordoada como uma sonâmbula a colona saiu arrastando os filhos Depois do almoço os animais estavam selados para a partida O dia era abafadiço e dominado pelo sol que mantinha sempre com a luz poderosa um grande silêncio Os juízes vieram para montar ajudados pelo meirinho e pelo dono da casa Pantoja chegouse ao grupo e disse ao Promotor apontando o colono Ainda não tive a minha conversa aqui com o amigo E batendo no ombro de Franz Kraus que o fitou espantado da intimidade acrescentou num gesto de irônica cortesia Muito obrigado pela hospedagem camarada mas ainda falta alguma coisa Que é interrogou inquieto o colono As nossas custas meu amigo Você pode E por isso dênos logo Está me cheirando maI o fiado vá buscar Quatrocentos milréis O homem vacilou como para cair Uma vertigem o ia tomando na garganta a voz morreulhe num espasmo O Escrivão empurrouo de manso dizendolhe zombeteiro Vá amigo não se espante Olhe que o negócio podia ser pior Advogados demandas penhoras Sob aquela pressão o colono foi caminhando automaticamente para casa Bravo capitão o senhor é de força observou lisonjeiro o Juiz de Direito Ainda não viram nada respondeu o Escrivão estimulado Depois de alguma demora que os ia impacientando apareceu o velho Kraus Tinha os olhos vermelhos as faces inchadas e rubras Chorara Pantoja recebeu o dinheiro e contou O colono olhavao mudo e abatido Muito bem Agora tudo está em ordem Fiquemos bons amigos Procure os papéis no Cartório no fim do mês E montou A cavalgada partiu Parabéns disse Itapecuru a Paulo Maciel está chovendo na sua roça O Juiz Municipal sem darlhe resposta olhouo com um grande nojo Em pé no meio do terreiro de chapéu na mão a cabeça ao sol o colono via com os olhos desvairados a Justiça sumirse na estrada E quando ela desapareceu e tudo voltou ao sossego profundo ficou ele longo tempo com a vista pregada na mesma direção Subitamente numa raiva imensa e cobarde murmurou olhando medroso para os lados Ladrões 7 C ontinuava Maria na colônia de Franz Kraus no seu mesquinho penar Desesperada da volta de Moritz vigiada pelos olhos cupi dos e inquisidores dos velhos vivia como uma louca volte ando apate tada pela casa nos serviços domésticos e sem poder dormir noites e noites na aflitiva ânsia de querer salvarse da desonra que o tempo indiferente e implacável trazia cada vez mais à flor Assaltavaa muitas vezes um desespero de fugir de ir para longe desconhecida e forte sem preocupações alheias esperar que das próprias entranhas lhe viesse a salvação e o consolo futuro Outras vezes definhava lan guidamente presa de um grande temor de uma imensa e mofina ver gonha e queria morrer Mas fraca cobarde as forças não lhe acudiam para qualquer resolução e ela se deixava ficar na colônia e na vida no mesmo ruminar de desespero e de agonia Os velhos não tinham mais ilusão sobre o estado da rapariga e vendo a moverse pela casa num passo trôpego com o ar transfigurado que lhe punha a amargurada maternidade sentiam um ódio surdo contra ela erguida ali como um estorvo ao desafogo da ambição deles Viam des feito o casamento do filho com a herdeira dos Schenker tudo fora tarde G R A Ç A A R A N H A diziam inconsoláveis E agora passavam os dias muito unidos em cochi chos de vingança ou em planos para se verem livres de Maria Mas as suas cabeças não eram inventivas nem mesmo para a maldade ficavam irre solutos com medo de processos subjugados pelo infinito e crescente terror que lhes deixara a visita da Justiça E deste modo a vida naquela colônia era uma tortura para todos Não se conversava mais não havia mais o esquecimento do tempo mais a indiferença pela existência que é o único encanto desta A todo o momento eram ralhos e insultos eram exigências de serviço à pobre rapariga na doentia obsessão de vêla abandonar a casa Já lhe não davam quase comida dobravamlhe os tra balhos e era com desespero nevrótico que viam a miséria inabalável sem um movimento de revolta num constante gesto de sonâmbula Assim viveram algum tempo esses desgraçados E como uma ma nhã Maria já fatigada de trabalhar com as mãos trêmulas tomada de um suor frio deixasse cair um prato que se quebrou a velha Ema en fureceuse e começou a insultála num berreiro Franz correu à co zinha e transbordandoseIhe o ódio avançou colérico para Maria que intimidada ia recuando fugindo atordoada do alarido E foi en tão que Ema gritou Miserável Vaite embora Sai Sai O marido comunicado do mesmo furor agarrou uma acha de lenha e brandiua numa ameaça de morte Fora canalha Fora ordinária Maria correu ao quarto querendo se refugiar o velho alcançoua e com violento empurrão impediua de fechar a porta a rapariga lívida ofegante colouse à parede protegendo o ventre com as mãos Franz estacou diante dela rangendo os dentes uma baba viscosa a escorrerlhe da boca contorcida Ema segurou a moça pelo braço que apertou com violência e ordenoulhe CANAÃ Parte peste Carrega teus trapos suja Vaite daqui A rapariga obedeceu automaticamente A excitação dos velhos de súbita que fora não deixava de prolongarse e foi debaixo de maldições de pragas rancorosas que a mísera entrouxou algumas roupas Fora e já berrava Ema possessa Maria saiu para o terreiro e levada pelo impulso das ordens violentas caminhava firme sem hesitação para o desconhecido Por entre a fo lhagem verde os seus cabelos descobertos iam espalhando o fogo do soL Não dizia uma palavra não murmurava uma queixa Era uma estátua marchando e os olhos grandes e limpos tinham o ilustre cristalino e seco dos frios espelhos Atrás seguialhe no encalço como um latido de cão a voz de Ema Vai miseráveL Vai perdição de minha casa Maldita Maria andou algum tempo inconsciente e desvairada Sob a grande e funda emoção as idéias tinhamse congelado enquanto a sua visão dilatada ia notando e retendo os pequenos incidentes da paisagem Uma árvore cortada um cafezal verde um fio dágua um reflexo de sol um animal que se movia no fundo negro da mata tudo era apa nhado pela sua aguçada retina E foi caminhando sem dar fé da sua direção até que lhe chegou a fadiga na energia em que se mantinha os nervos trazendolhe uma sensação de desânimo que lhe entorpecia os passos e lhe despertava a consciência Viase expulsa da velha casa que lhe fora o lar o jardim o mundo E na memória os quadros da sua vida desde a infância Tudo cortado Tudo acabado sem expli cação num Ímpeto de cólera cuja razão não percebia bem Quis tornar à casa entrar sem rancor desmanchar com o sorriso o pesade lo monstruoso Sim voltar voltar Mas quando se dispunha a retro ceder reconheceu numa insondável desolação que desvairava ima ginando poder tão simplesmente restabelecer o que estava extinto 1 9 3 GRAÇA A RANH A Parada com a cabeça pendida sobre o seio os olhos embebidos no próprio corpo chorava Uma vaga inquietação de não encontrar um pouso um abrigo naque le deserto começou a agitála dandolhe ânimo para prosseguir no silêncio da estrada Encaminhouse para os lugares mais ínvios pois um grande pejo a afastava das casas conhecidas Não tardou que o seu apelo de salvação fosse para o pastor de Je quitibá Desde aquela manhã da missa não o tornara a ver mas da sua tímida e doce figura de campônio ficaralhe uma agradável impressão Na pequena alma de mulher rústica e simples de Maria houve um rebate de esperança que ela seguiu confiadamente Quando depois de duas horas de marcha a rapariga avistou a igreja e a morada do pastor um sobressalto de terror sacudiulhe o corpo Mas foi instantânea a hesitação porque a falta absoluta de outro apoio no mundo lhe impunha uma estranha intrepidez Começou a subir A paisagem era limpa e os dois pequenos edifícios de atalaia davam maior tristeza à solidão Lembravam habitações hu manas perdidas no deserto lembravam o isolamento o sacrifício o abandono E à proporção que Maria subia recordavase da última festa da colônia e com a saudade ia enchendo povoando de gente de vozes e gestos de movimento de vida o vazio descampado das montanhas e dos vales calados Ela recompunha também os instantes em que vira Milkau e levada por essa corrente de evocações ia cismando com a música do harmonium que soava na capelinha enquanto ele dormia Quando chegou ao alto viu a terra em roda da casa talhada e prepara da para jardim o que era a paixão do novo pastor De uma porta aberta vinham vozes de crianças soletrando monótonas e cantantes Era aí a escola regida pela irmã do padre Maria passou cabisbaixa e a voz infan til mais forte e estridente deulhe um tremor Olhou de soslaio e viu C A N A Ã uma sala escura uma mulher de preto no fundo na parede uma cruz negra envolta no sudário cabeças alvas de crianças movendose curiosas para ela Passou adiante e em face da porta fechada da casa tremeu mais De dentro nenhum outro rumor vinha para abafar a voz da criança na escola que prosseguia desarticulada sinistra infatigá vel Maria quis fugir mas o medo da solidão da montanha deserta o terror do recolhimento daquela casa arrancoulhe as forças Alagada em suor frio desfalecida um instante atirou ao chão a trouxa de roupa e apoiouse à parede Depois veiolhe um novo esforço de valor e num impulso nervoso tocou a campainha que retiniu alar mante naquele repouso universal A mulher do pastor acudiu à porta assustada pelo barulho com uma expressão de espanto que ainda mais atemorizou Maria ArmaI depois de confusas explicações entrou esta para falar ao pastor que veio logo à sala onde a rapariga o esperava Quando Maria o viu ficou petrificada O homem ereto como um sol dado e vestido como um jardineiro tinha uma voz de uma doçura ines perada e que se não casava com o seu porte rústico Que deseja minha filha Maria não respondeu Pôs os olhos no chão muito vermelha e trê mula Depois grandes lágrimas rolaramlhe pelas faces Vamos que lhe aconteceu interveio com meiguice Frau Pastor Eu eu queria um agasalho respondeu soluçando a miserável O pastor ficou confuso achando estranho o pedido Você não tem uma casa uma colônia Nós não precisamos de mais criadas disse ele sempre com a sua voz macia que lhe saía do peito de touro como um balido de ovelha Maria ficou calada Frau Pastor aproximouse bateulhe no ombro Que lhe aconteceu Perdeu seu emprego G R A Ç A A R A N H A Agora a este mofrno contato da piedade Maria chorava sem pejo abundantemente As pessoas da casa querendo arrancarlhe alguma coi sa sobre a sua situação e daremlhe mais confiança prosseguiam no in terrogatório Pouco a pouco ela se foi acalmando e pelo instinto da obe diência respondia por entre lágrimas Fora uma grande algazarra se fez e gritos festivos de crianças soltas se foram perdendo pela encosta da montanha abaixo Era o alegre rumor da liberdade A irmã do pastor rústica e marcial como ele entrou na sala O irmão explicoulhe o assunto e essa mulher severa e silenciosa fiel aos seus hábitos de nunca perguntar esperou que tudo se explicasse O pastor a temia e ela o tinha submisso amedrontandoo com as regras religiosas Na casa onde Frau Pastor era uma sombra do marido a autoridade da cunha da era decisiva Vamos dizia o sacerdote com o jeito astuto do campônio trocan do um olhar com a irmã Vamos ainda não me disse por que deixou a casa de Kraus Como posso tomála sem saber de tudo Não me quiseram mais fui expulsa Oh Oh Então o negócio é grave Que falta cometeu você filha para tamanha punição A professora que mirava com olhos devassadores a rapariga inter rompeu o inquérito com uma risada seca Frau Pastor temendo a ex plosão da cunhada ergueuse por instinto para deixar a sala Mas a cu riosidade reteve a sua alma de criança 27 Ora deixemos de comédia clamou zombeteira a professora Eu sei bem por que os seus patrões que devem ser gente honrada a puse ram na estrada Divertiuse Por que chora Temos nós culpa dos seus prazeres Olhe mulher já que entrou nesse caminho não era para aqui que se devia dirigir Esta é uma casa de respeito a morada de Deus V á para a sua vida Vá Fora C A N A Ã Era o grande ódio o maior de todos o que vem do sentimento se xual a incendiar a irmã do pastor Não era ela a mulher incompleta a inabalada a torre fechada enquanto a outra a mesquinha Maria era a perturbadora a consoladora a amiga do homem Oh minha senhora que mal lhe fiz Ergueuse da cadeira o pastor e muito solene com aquela maldita e doce voz disse Em nossa casa não se encontra o prazer aqui é o lugar do amor de Deus Vá regenerese Lembrese de que todo o pecado tem uma punição O seu é horrível Desencadeouse a ira do Senhor Maria cessou de chorar e pensou espantada que ali também todos estivessem loucos Um olhar de piedade infantil escapava de Frau Pastor Mas era uma compaixão sem agasalho inane medrosa Maria lho re tribuiu e talvez o coração que tudo faz compreender lhe inspirasse maior piedade por aquela esvaída sombra de gente O pastor empurrou a de leve para a porta acariciandoa paternalmente E ao passo que a rapariga ia deixando a casa a voz do padre se reves tia de um acento cada vez mais delicioso de ternura Vá filha minha pobre filha que pena Como sofro em não poder conservála em minha casa Se este lugar não fosse sagrado Se não fosse terrível a morada de Deus Vá filha vá E quando Maria se viu no alto da montanha e olhou deslumbrada alu cinada a voz do pastor ainda lhe cantava ao ouvido V á filha cuidado na descida cuidado com os caminhos Isto aqui é muito solitário Depois a porta fechouse e tudo o que era humano ali desapareceu num imenso silêncio Ficando só Maria arrastada pelo medo e por um assomo de vergonha começou a descer a montanha correndo e na sua febre sentiase como que apertada sufocada pelos morros e enterrandose G R AÇA ARANHA neles Ao chegar abaixo à cruz das estradas pôsse a caminhar pela que levava a Santa Teresa No seu coração inocente na sua inteligência confusa todas as cenas violentas desse dia se misturavam estranhas como num pesadelo Era o sofrimento animal numa alma rudimentar e o que a impelia para a frente era um vago terror da noite o desespero do desamparo na mata Transmontava o sol e as encostas dos morros os vales apaziguados e enfim livres do grande incêndio do dia embebiam se na luz serena da tarde Transformavase a expressão das coisas as primeiras sombras deitandose longas preguiçosas como tomadas de sonho sobre a relva aveludada e voluptuosamente verde os pequenos ventos acalmando a febre da terra inflamada a viagem dos pássaros na limpidez do céu dilatado pela claridade cristalina do ar N o fundo do vale Maria viu um núcleo de colônias engastadas na ve getação Das chaminés saía fumaça e àquela hora em cada uma das ca sinhas da mata brasileira as famílias dos emigrados se reuniam num olvi do feliz e em torno da mesa esperavam a ceia A miserável sentouse desalentada sobre a borda do morro com a vista perdida nas habitações Aos seus ouvidos subiam vozes humanas que ela escutava como uma música sussurrante deliciosa Outra fraqueza a pungia que não era só o cansaço da corrida a fadiga angustiosa da maternidade mas o vácuo da fome ali na opulenta terra de Canaã Maria teve o ímpeto de se pre cipitar do alto sobre as casas que estavam a seus pés sentindose atraída pelo feixe de forças humanas reunidas naquelas vivendas E então impelida pelo imperioso desejo de partilhar o conchego o calor a sim patia dos semelhantes Maria esquecida da sua triste situação sem o menor pejo arrebatada pela fome ergueuse e desceu rápida para o grupo de casas Quando aí chegou não havia ninguém fora Os cães a receberam num atroador alarido mas ela prosseguia pelo terreiro adentro e com sua CANAÃ calma de louca tornava inofensivos os animais Da primeira morada saÍ ram para ver a razão do alarma Homens e mulheres chegaram à porta ainda mastigando e aborrecidos de ser interrompidos Ao enfrentar a gente a fugitiva como que despertou e ficou intimidada sem saber o que dizer Assaltaramna de perguntas E como no seu enleio a miserável respondesse por disparates alguém disse É com certeza uma maluca Foi um pânico que se comunicou subitamente e todos se julgaram em presença de alguma perigosa doida vagabunda Correram as mulheres para o interior da casa os homens pegaram em paus e avançaram para ela amedrontandoa Fora maluca fora Maria recuou escorraçada sem perceber bem o que se passava Os cães excitados ladravam furiosamente e das outras casas a gente saía para o pátio fazendo coro com os vizinhos num grande berreiro Fora maluca maluca A moça fugiu numa desabalada corrida Homens e cães a perseguiram alguns momentos raivosos e ululantes Maluca maluca Já Maria voltara à estrada e ainda continuava mesmo ofegante a cor rer fugindo espavorida para longe daquele ponto Na sua carreira chegou até uma pequena mata que o caminho cortava A claridade da tarde aí dentro esmorecia ainda mais Maria parou com medo de pene trar na sombra e postada na abertura da floresta tomada de um calafrio espiou para dentro até perder os olhos na outra longínqua porta de luz Pela estrada interior iam e vinham borboletas enormes azuis e pardas num vôo cativo e arquejante Maria ficou pregada à beira da mata sem ânimo para entrar sem ânimo para fugir e uma inex plicável e funda atração por aquele sombrio e tenebroso mundo a retinha GRAÇA A RANHA extática Das mãos trêmulas e desapercebidas caiulhe a trouxa de roupa Esgotada de forças aterrada vendose colhida em pleno deserto pela noite desamparada batida a mesquinha derreouse aos pés secu lares de uma árvore e de olhos dilatados ouvidos apurados ela esprei tava o rumor e o curso das coisas E o poder de visão redobrava à medida que a sombra surgia misteriosa nos meandros da floresta como o bafo vaporoso impalpável da Terra Na sua imaginação perturbada sentia a natureza toda agitandose para sufocála Aumentavam as som bras No céu nuvens colossais e túmidas rolavam para o abismo do ho rizonte Na várzea ao clarão indeciso do crepúsculo os seres tomavam ares de monstros As montanhas subindo ameaçadoras da terra per filavamse tenebrosas Os caminhos espreguiçandose sobre os cam pos animavamse quais serpentes infInitas As árvores soltas choravam ao vento como carpideiras fantásticas da natureza morta Os aflitivos pássaros noturnos gemiam agouros com pios fúnebres Maria quis fugir mas os membros cansados não acudiam aos ímpetos do medo e dei xavamna prostrada em uma angústia desesperada Os primeiros vagalumes começavam no bojo da mata a correr as suas lâmpadas divinas No alto as estrelas miúdas e sucessivas principiavam também a iluminar Os pirilampos iamse multiplicando dentro da flo resta e insensivelmente brotavam silenciosos e inumeráveis nos troncos das árvores como se as raízes se abrissem em pontos luminosos A des graçada abatida por um grande torpor pouco a pouco foi vencida pelo sono e deitada às plantas da árvore começou a dormir Serenavam aquelas primeiras ânsias da Natureza ao penetrar no mistério da noite O que havia de vago de indistinto no desenho das coisas transformava se em límpida nitidez As montanhas acalmavamse na imobilidade per pétua as árvores esparsas na várzea perdiam o aspecto de fantasmas desvairados No ar luminoso tudo retomava a fIsionomia impassível C A N A Ã Os pirilampos já não voavam e miríades e miríades deles cobriam os troncos das árvores que faiscavam cravados de diamantes e topázios Era uma iluminação deslumbrante e gloriosa dentro da mata tropical e os fogos dos vagalumes espalhavam aí uma claridade verde sobre a qual passavam camadas de ondas amarelas alaranjadas e brandamente azuis As figuras das árvores desenhavamse envoltas numa fosforescência zo diacal E os pirilampos se incrustavam nas folhas e aqui ali e além mescla dos com os pontos escuros cintilavam esmeraldas safiras rubis ametis tas e as mais pedras que guardam parcelas das cores divinas e eternas Ao poder dessa luz o mundo era de um silêncio religioso não se ouvia mais o agouro dos pássaros da morte o vento que agita e perturba calara se Por toda a parte a benfazeja tranqüilidade da luz Maria foi cerca da pelos pirilampos que vinham cobrir o pé da árvore em que adorme cera A sua imobilidade era absoluta e assim ela recebeu num halo dourado a cercadura triunfal e interrompendo a combinação luminosa da mata a carne da mulher desmaiada transparente era como uma opala encravada no seio verde de uma esmeralda Depois os vagalumes incon táveis cobriramna os andrajos desapareceram numa profusão infinita de pedrarias e a desgraçada vestida de pirilampos dormindo impertur bável como tocada de uma morte divina parecia partir para uma festa fantástica no céu para um noivado com Deus E os pirilampos desciam em maior quantidade sobre ela como lágrimas das estrelas Sobre a cabeça dourada brilhavam reflexos azulados violáceos e daí a pouco braços mãos colo cabelos sumiamse no montão de fogo inocente E vagalumes vinham mais e mais como se a floresta se desmanchasse toda numa pulverização de luz caindo sobre o corpo de Maria até o sepul tarem numa tumba mágica Um momento a rapariga inquieta ergueu docemente a cabeça abriu os olhos que se deslumbraram pirilampos espantados faiscavam relâmpagos de cores Maria pensou que o sonho 2 0 1 GRAÇA ARANHA a levara ao abismo dourado de uma estrela e recaiu adormecida na face iluminada da Terra O silêncio da noite foi perturbado pelas primeiras brisas mensageiras da madrugada As estrelas abandonam o céu os vagalumes vão se apa gando medrosos e ocultandose no segredo das selvas enquanto os seus derradeiros lampejos na mata se misturam ao clarão do dia nascente for mando uma luz turva indecisa incolor Na árvore que agasalha Maria começa o canto dos pássaros e sem tardar de todos os galhos da floresta sai uma nota musical que enche os ouvidos da mulher com o acento de uma felicidade inextinguível E aves surgiam e tudo se esclarecia de ou tra luz e o ruído começava e um perfume concentrado durante a noite espalhavase capitoso pelo mundo despertado Abandonada pelos piri lampos despida das jóias misteriosas Maria foi emergindo do sonho e a sua inocência de todo o pecado a sua perfeita confusão com o Universo acabou ao rebate violento da consciência E a infatigável me mória lembroulhe a agonia Maria conheceuse a si mesma Arrancada pelo pavor dos perigos porventura passados naquele deserto ergueuse de um salto e partiu correndo E enquanto atravessava a mata apesar do medo que a tomara na sua lembrança persistia um clarão que lhe descia dessa miragem entrevista no espetáculo da noite maravilhosa E quando chegou aos caminhos descobertos já encontrou o sol a cuja temível potência morreu toda a ilusão do sonho A miserável marchou seguidamente duas horas passando já por de sertos que lhe engrandeciam a desolação já por vales repletos de colô nias que lhe recordavam a sua vida de ontem Em todas as casas começa va com o dia o trabalho vultos de mulheres moviamse em roda das vacas na densa evaporação dos currais homens rachavam toros de lenha crianças corriam nos terreiros limpos e de todas as chaminés aquele suave e inefável fumo da manhã que anuncia sem pejo da fome 2 0 2 C A N A Ã alheia a fartura do homem Maria continuou a subir as montanhas até ao alto de Santa Teresa Quando aí atingiu ficou mais tímida receosa de perturbar com o seu ar de vagabunda a serenidade da população ativa e silenciosa do lugarejo E foi num grande rubor gerado da acabrunhado ra humilhação que se dirigiu vacilando para a estalagem Na taberna que era o único pouso daquelas alturas viajantes toma vam a primeira refeição da manhã Maria ficou parada à porta numa postura de mendiga A dona da casa ocupada em servir não reparou nela mas a filha menos atarefada vendoa veio à porta inquirir de que necessitava Com a voz sumida Maria disse que tinha fome A jovem a convidou a entrar mas depois como que arrependida deixoua brusca mente e foi falar à mãe A estalajadeira veio examinar a foragida e quan do esta lhe explicou que buscava abrigo e trabalho a velha perguntou E que dinheiro traz você Maria que não tinha pensado nisso ficou embaraçada em responder A outra insistiu Afinal a rapariga confessou que nada trazia E então como quer você que lhe dê de comer Maria fitoua aterrada com os olhos secos e vidrados A estalajadeira tornou Mas que traz você aí nesse embrulho A mendiga abriao para lhe mostrar as roupas quando de dentro os passageiros gritaram pela dona da casa insultandoa A velha virou como um corrupio dizendo Bem entre para a cozinha que já lhe falo A moça atravessou o corredor sem olhar para o refeitório Na cozi nha onde entrou uma massa repulsiva moviase como uma lesma ao lado do grosseiro fogão de barro Era a criada do albergue E Maria teve um confrangido asco não ousando sentarse esperando de pé num embrutecimento de faminta a comida que lhe iam dar Os viajantes par 2 3 GRAÇA ARANHA tiram e a estalajadeira foi à cozinha Depois de examinar o que Maria trazia declarou Por esta roupa doulhe comida e dormida dois dias E foi se apoderando da trouxa diante da complacente apatia da rapari ga a quem deu um pedaço de pão e uma tigela de café A desgraçada cheia de fome comeu numa volúpia desprezível Maria passou o dia inteiro a vagar pela povoação e por toda a parte onde chegava ia despertando a curiosidade e dando a impressão de tristeza que apavorava a descuidada gente do lugar Ninguém lhe falava e ela absorta alheia rolava vagarosa arrastandose como um animal empestado Mergulhada na desgraça Maria ia rapidamente sendo governada por uma velha alma mais rudimentar mais primitiva que recalcava todos os ligeiros vislumbres de uma sensibilidade menos grosseira E para o meio dia era quase sem pudor que pedia trabalho de casa em casa Ninguém a queria repeliamna escorraçavamna num instinto de apertada defe sa Ali na tranqüilidade do povoado na conchegada e bonançosa vida aldeã não era ela o estranho fantasma da miséria À tarde depois do jantar quando o sol baixava a população se apre sentava à porta das casas repousada e esquecida No meio da felicidade dos outros sentiu Maria crescer a sua solidão Percorreu a estrada que corta Santa Teresa e foi até ao fim onde acabava a povoação quis ir além pela mata adentro mas não teve ânimo de se afastar daquela atmosfera de desespero de se evadir do raio do calor humano Voltou Naquela primeira noite quando foi a hora de se recolher ao albergue a dona deste mostroulhe um colchão estendido num quarto infecto Está aí a sua cama Alumiada por uma candeia de luz mortiça a infeliz ficou um instante só O bafio do quarto tonteoua e numa vertigem ela caiu desalentada C A N A Ã sobre o colchão de palha podre Não tardou que um vulto entrasse no quarto e fosse sentarse noutro monturo de palhas que ficava em frente àquele em que se achava Maria Era a velha criada Tirou o casaco e ficou em camisa e saia mostrando uma magreza de bruxa Os cabelos despen teados caíamlhe sobre o pescoço à luz turva os olhos brilhavam num fulgor de loucura Sobressaltada diante da megera a moça permaneceu petrificada na mesma postura e foi com um revoltado nojo que viu na tíbia claridade a sua companheira meter a mão esquelética na palha nau seabunda e retirar dali um pedaço de carne que começou a devorar As duas miseráveis não se falaram Mas os olhos da megera se incen diavam de ódio contra a rapariga que lhe aparecia como uma inimiga a invasora do seu círculo de independência naquele imundo aposento que ainda assim era o refúgio da indeclinável liberdade Vencida pela pros tração não tardou muito a tombar dormindo sobre a palha Maria acompanhava o arfar daquele corcovado corpo e o latejar das grossas artérias e com inquieto receio não podia dormir Tudo a prendia à vigília o medonho quarto o mau cheiro e o terror da bruxa E quando ia cabeceando derrubada por alguma rajada de sono via num instantâ neo pesadelo a velha erguerse lívida satânica alongando as mãos de esqueleto para a estrangular Despertava convulsa e gelada espichava a cabeça até junto da outra que continuava a dormir Pela noite adentro no maior silêncio da casa ratos começaram a sur gir no quarto Guinchando farejando corriam doidamente passeavam pelo corpo da velha como sobre um cadáver e no seu colchão comeram os restos de carne que ela deixara Maria sentiuse endoidecer de pavor Os ratos largaram a comida e continuaram a sua infatigável investigação no aposento indo e vindo a todos os cantos incessantes irrequietos A lamparina principiou a se extinguir crepitando e o quarto ora se escu recia ora se iluminava em sucessivos relâmpagos até cair tudo numa G R A Ç A A R A N H A profunda escuridão Maria sempre alerta acompanhava o ruído ater rador dos ratos e semimorta sentiu passar sobre a cabeça o vôo tene broso de um morcego Correram os dois dias marcados pela estalajadeira sem que Maria pudesse encontrar trabalho suas implorações e suas súplicas eram des denhadas e num instante a sua miséria tornouse o ludibrio da gente amparada e farta daquele retiro do mundo A dona do albergue intimoua a deixar a casa e Maria teve um pânico terrível em se ver de novo obri gada a bater as estradas sem pão e sem guarida Desatou a chorar ati randose aos pés da velha para que a deixasse permanecer ali até encon trar um emprego A filha abalada por tanta miséria teve ânimo para intervir e Maria ficou na hospedaria como criada em companhia da ou tra E assim viveu alguns dias apática esmagada mas nesse maldito ape go à vida que é o alimento da desgraça Uma manhã Milkau em viagem para o Porto do Cachoeiro onde ia comprar mantimentos almoçava sossegadamente no albergue de Santa Teresa quando viu Maria passar no corredor entrando da rua Apesar da miserável situação em que ela estava Milkau reconheceu a sua jovem companheira do baile de Jacob Müller e que entrevira primeiro na capela de Jequitibá num delicioso momento Ficou uns instantes pen sativo procurando explicar por vãs conjeturas o novo encontro Depois de alguma hesitação chamou a dona da casa e perguntoulhe quem era a mulher que ele acabava de ver Ah disse ela é uma vagabunda que recolhi Não sei donde veio apareceu aqui sem um vintém e tanto chorou que a fui deixando ficar É sua criada hoje Qual Um trambolho O que ela me faz não é nada em relação ao que lhe faço O melhor é que se vá para outras bandas aqui ninguém a quer Também era só o que faltava Aquilo no estado em que está sem CAN AÃ eira nem beira desmoraliza uma casa E então breve que tem de ir para a cama Essa linguagem atordoou o espírito de Milkau Prontamente pediu que chamasse a rapariga e a velha obedecendo retirouse Milkau numa grande aflição interrompeu o almoço Alguns momentos depois a esta lajadeira entrava empurrando Maria que tendo por sua vez reconhe cido Milkau vinha arrastada com imensa vergonha Vendoo agora pôs se ela a chorar Milkau levantouse comovido e procurou acalmála A dona do albergue espantada da cena motejava Olhem vejam só coitadinha Estáse a lhe arranjar emprego e ainda fica amuada Esta não quer me largar a sopal Não continuou porque da cozinha a chamaram e ela acudiu para lá deixando Milkau e Maria a sós A confiante meiguice das palavras de Milkau a decidiu a contarlhe a sua desventura Por vezes embaraçava se vergonhosa e delicadamente Milkau a desviava dos pontos íntimos e mais dolorosos Maria porém retomada de um inesperado ardor abria lhe todos os cantos da sua humilde existência E quando naquela sala da hospedaria Milkau acabou de ouvir a narrativa pôsse a cismar Era a primeira vez em que na sua vida nova se esbarrava com a Desgraça E num instante esse encontro lhe apagava todos os longos meses de felici dade de ressurreição A dor impunhase com a sua força solene devas tadora e os sentimentos de Milkau galopavam para o passado mergu lhandose outra vez nos ciclos sombrios do sofrimento donde pensara terse libertado para sempre Se ele não desse ouvidos se passasse adiante deixasse no caminho a miséria alheia e continuasse no seu em bevecimento de felicidade Não tinha ele fugido à maldade humana abandonado a velha sociedade odiosa e recomeçado a existência na vir gindade de um mundo imaculado onde a paz devia ser inalterável Por que então o espectro do sofrimento o perseguia ainda ali G R A Ç A A R A N H A Milkau divagava num fundo desespero Maria o fitava serena esperan do que ele falasse Passouse longo tempo nesse silêncio triste Bem disse afinal Milkau com o semblante iluminado tenho uma colônia onde posso empregála É uma casa de conhecidos meus no Rio Doce Tenho medo porém de que não agüente a viagem É longe e está tão abatida Era a salvação Maria sorriu encantada Abatida Oh não Estou pronta para caminhar Vai ver como não me canso Depois refletindo Mas o senhor não ia para o Cachoeiro Por que então abandona a sua viagem e volta ao Rio Doce Por amor de mim Ora isto não vale nada respondeu Milkau sem afetação Depois de vêla amparada tornarei ao Cachoeiro Amanhã mesmo Vamos disse ele com meiga decisão Chamaram a estalajadeira a quem Milkau comunicou que a rapariga seguia com ele A mulher fez uma careta zombeteira Oh meu senhor Ela não é minha filha pode tomála como qui ser Uma vagabunda Que bem me importa a mim Digame uma coisa quanto devia pagar esta pobre moça aqui na sua estalagem inquiriu Milkau sem se importar com o que estava tagare lando a velha Esta pôsse a contar nos dedos e depois pediu um preço exagerado Milkau não replicou e dando o dinheiro Eis aqui a importância que você pede A mulher ficou pasmada e recolheu as cédulas contentíssima Agora acrescentou Milkau peço que restitua a roupa que foi o penhor do pagamento A dona do albergue tornouse fula como se fosse roubada 208 C A N A Ã Esta é boa negócio é negócio A roupa foi coisa à parte Milkau explicou mansamente que ela tinha de optar entre os vestidos e o dinheiro e a velha assim compelida preferiu ficar com a quantia e restituir os objetos de que não necessitava e foi buscálos resmungan do malcriada Maria seguiua E quando voltou à sala vinha de roupa mudada com uma fita azul no cabelo faceira risonha Milkau festejou num sorriso o despertar da mulher Partiram A estalajadeira fincada na porta enquanto eles atraves savam o povoado clamava aos vizinhos Vejam só Não é que a desavergonhada teve sorte E aquele sujeito com uma cara de santo Pouca vergonha Quando deixaram Santa Teresa e tomaram o caminho do Timbuí Milkau recordouse da sua primeira viagem com Lentz atravessando num êxtase a pomposa região para se libertar do Mal A sua viagem de hoje era ainda um combate contra o sofrimento contra o ódio entre os homens Mas afastando as apreensões de uma irremediável desilusão o seu espírito tomava outro caminho e confiava que aquele doloroso incidente interrompendo a descuidada bemaventurança passaria rápi do e tudo voltaria à doce calma Amanhã pensava ele Maria tornará a ser feliz o seu amante arrependido virá buscála e todas as ligeiras feri das da dor serão curadas por um sopro de bondade Isto deulhe novas forças e esquecendo a tristeza a miséria da sorte da companheira foi alegre conversando com ela Debaixo do sol ardente desciam e subiam morros e durante as primeiras horas Maria marchava lépida apesar de tudo Mais tarde co meçou a fraquear e era com dificuldade que prosseguia Sentaramse à sombra das árvores à beira dos caminhos Descendo das regiões férteis passavam tropas de burros carregados para o Porto do Cachoeiro passa vam viajantes montados escoteiros passava gente a pé e só eles descuida dos se deixavam ficar ali Com o avançar da tarde Milkau ficou inquieto percebendo que lhes era impossível alcançar o Rio Doce naquele dia Pediu a Maria continuassem a caminhar até descobrirem uma colônia onde pernoitar Andaram mais um pouco e uma colônia se lhes deparou no alto da montanha Milkau propôs subirem pela vereda que levava até lá onde talvez conseguissem agasalho Maria fez um esforço e foi subindo vagarosamente A colônia para onde se dirigiam era um pequeno jardim europeu que quebrava a uniformidade das habitações dos imigrantes À medida que se aproximavam iam sendo maravilhados Embaixo estendiase uma série de vales recortados em mil aspectos diversos ora montanhas baixas formando massas enormes secas áridas ora matas folhudas negras ora despenhadeiros planícies riachos plantações casas tudo numa abundância de criação num capricho de linhas de desenho como numa paisagem extravagante Os viajantes foramse deliciando com o cenário perfumado com os aromas que vinham do jardim até que chegando à cancela Milkau bateu palmas Os cães ladraram atirandose sobre a cerca e logo um velho acudiu sossegandoos com alegre autoridade Olá patifes assim é que se recebem visitas Os cães afastaramse rosnando e o velho alisando a longa barba branca falou aos viajantes mostrando no riso uma fila de dentes sãos Milkau explicoulhe o que os levava aí E o velho radiante escancarou a porta num gesto de agasalho fácil e espontâneo Penetraram no jardim que estava em triunfal floração Os olhos não se podiam fixar em nenhum pormenor A impressão que tiveram foi de um só conjunto de cores desdobradas ao infinito A vista se lhes estendia farta e satisfeita sobre uma tela mágica uma zona cambiante uma irradiação espectral divina e rara Levouos o velho para dentro da casa e ofereceulhes jantar servindoos à mesa e obsequiandoos como podia Entretanto ialhes contando que era viúvo morava ali só havia muitos anos as filhas eram casadas e os filhos viviam na vizinhança o que o entretinha era cultivar flores o cafezal também o distraía e da janela apontou as plantações no morro próximo tratadas com o carinho de uma horta Findo o jantar vieram os três para o jardim O homem da colônia deixou os hóspedes e foi regar as plantas Milkau ficou um momento admirando os movimentos espertos e juvenis do ancião e depois seguido de Maria começou a passear pelo jardim Ela parecia nunca ter sofrido uma resignação de nômade apagara rapidamente os vestígios da miséria E um instantâneo olvido encerrou a sua agonia Agora toda era encanto por Milkau e com os olhos postos nele ficava embebida num humilde enlevo Encerrado ali Milkau julgavase fora da natureza tropical via interrompida a eterna verdura substituída a tragédia da natureza brasileira pela doçura européia trazida nas flores que peregrinaram até aí E o jardim lembrou a Milkau a terra que abandonara e ele transportouse no vôo da saudade para a velha Germânia Naquela mesma hora era ali a hora da primavera Tudo ressuscitava saindo da morte gelada Recordouse dos bosques dos jardins das casas da gente num regozijo de novidade ao calor benfazejo do sol E o ânimo de Milkau amolentado pelo violento encontro da dor entristecido abatido apontou no momento do crepúsculo uma ligeira sombra de nostalgia Maria estava meio fatigada e inconscientemente apoiou a mão no ombro de Milkau Este sentiu uma fulminante carícia e o calor emanado das entranhas geradoras da mulher infiltrouse nos seus nervos entorpecendoos bruscamente E foram caminhando como espectros olhos perdidos no vago mudos e sonhadores Com a queda do dia as plantas cheiravam ainda mais Quando eles passavam esquecidos absortos borboletas voavam saindo das plantas como flores aladas Andaram até onde o jardim ia acabar num lugar seco descampado onde como uma mulher bela e daninha uma palmeira se alteava G R A Ç A A R A N H A esterilizando a terra Sentaramse em uma pedra Os olhos depois de mergulharem no tremendal que ficava embaixo no despenhadeiro da montanha ergueramse para o céu e acompanharam a morte do sol Era uma representação fantástica Sem raios sem reverberação o imenso globo ostentava uma sucessiva gradação de cores como se dentro dele um mágico se divertisse em iluminálo O mundo inteiro tinha parado para assistir aos espetáculos O grande ator foi descendo no espaço sem nuvens sobre a sua superfície as cores ainda continuavam numa infinita mutação até que afinal ele mergulhou no horizonte e a terra tingiuse de sangue e em seus mil nervos agitouse toda Era noite O colono acabara o serviço e veio ter com os hóspedes convidandoos a se reco lherem Dentro à mesa os três conversaram sem interesse até que o dono da casa caindo de sono propôs irem dormir Mostrou a Milkau dois quartos contíguos onde lhes tinha preparado as camas E já a casa estava em sossego e Milkau no seu leito sem poder dormir acompanhava o sono de Maria O ressonar leve e regular da mu lher vinhalhe aos ouvidos como uma música estranha que se lhe infil trava aquecendoo Seguia deliciosamente todo aquele brando respirar e pouco a pouco uma funda perturbação lhe alvoroçava o sangue Mulher pensava ele E esta palavra evocadora dilatavalhe os horizontes da restringida e quase apagada sensualidade Mulher E lá vinham os esquecimentos onde jaziam sepultadas as visões lúbricas e lascivas Mulher E um torpor um espreguiçamento dos músculos o desequilibrou de uma vez e o atirou a uma vertigem de volúpia Milkau levantouse trêmulo o coração galopando a garganta estrangulada a boca seca Chegouse à porta entreaberta do quarto de Maria Cresceulhe o tremor e uma lânguida moleza o deteve dandolhe um instante de consciência e um profundo vexame O homem forte ficou envergonhado desse momento de lou C A N A Ã cura e abrindo a janela pôsse a cismar debruçado sobre a noite di vina Amaldiçoouse e teve nojo de si viuse o ludíbrio do desejo e descreu da redenção Maria continuava a dormir tranqüilamente o seu respirar chegava sempre aos ouvidos de Milkau enchendoo de um gozo infInito Não era um ressonar de adormecida era um suspiro de amante debaixo de cujas camadas sonoras se sente o mistério do instrumento que nos can ta O cheiro do jardim transtornava as coisas Milkau estremeceu outra vez sacudido pela volúpia Era noite e todos se amavam Àque la hora chegavalhe do Universo inteiro o eco do amor Só ele era mu do E o seu olhar perscrutava as sombras da imensidade Tudo se ilu minava ao poder formidável da sua alucinação E tudo era uma cisão de amor as bocas se beijavam com febre os braços se apertavam enlaçados os corpos misturados gemiam num frenesi de doidos O solitário também amou O sangue dentro dele o jovem sangue parado pela ilu são degelouse num momento e quente e sôfrego clamou o corpo da mulher Milkau deixou a noite tentadora e entrou no quarto de Maria Os cabelos dela estavam soltos e caíam sobre o colo nu Milkau reco lheu a quentura do corpo feminino que amornava o aposento e nos cabelos de Maria como em frocos macios e louros mergulhou a mão até ao fundo E fIcou trêmulo num frêmito convulso mudo e refreado Deslumbrado pela vertigem vialhe os cabelos descer pelo corpo abai xo correntios luminosos como um rio de ouro Ficou assim séculos pregado àquele corpo sem poder ir além numa arquejante respiração que acordou a rapariga Ela com os olhos meio cerrados perguntou Já são horas de partir A voz inocente caiu sobre Milkau como uma rajada de frio Retirou a mão e voltando rapidamente a si fugiu murmurando Não não Dorme Sossega Não é nada G R A Ç A A R A N H A Voltou à janela E para ele que não era mais o mesmo a noite era outra não tinha mais aqueles acentos de volúpia aqueles transportes de luxúria Era serena e benfazeja como a face de uma irmã Ficou longo tempo ali humilhado confuso arrependido e com a brisa mis turou os queixumes da sua agonia sexual e com o orvalho que a madrugada para o sarar lhe derramou sobre a cabeça confundiu as suas lágrimas de solitário De manhã ao deixarem a casa o velho os acompanhou até à porta do jardim encantado sorrindolhes com carinhosa malícia como se costu ma sorrir aos noivos Maria retribuiu a saudação sem saber o que esta dizia Milkau sentiu uma pungente tortura com aquele sorriso mas logo erguendo a cabeça partiu altivo como o vencedor de si mesmo 8 A passagem da miséria na nova vida de Milkau deixara o seu vestígio perturbador No espírito dele uma melancolia teimosa se espraiava infInita vaga entorpecedora e agora o pensamento rolava vertiginoso para o desânimo Não podia esquecer a desgraça de Maria Não há sofri mento cismava ele tão insignifIcante que não clame aos que passam piedade e reparação com o alarido de cem mil bocas Não há desgraça pequena Toda a dor é imensa E para afugentar a persistente tristeza que o cercava e lhe estendia os braços amorosos Milkau consagravase ainda mais ao trabalho Já por esses tempos a colônia tinha um belo e florescente aspecto Todo o prazo estava cultivado e os pés de café que brotavam num indomável viço cobriam como um manto a antiga hediondez do roçado Desaparecera a coivara o terreno semelhava um verdejante parque cercado das árvores imensas da floresta apenas interrompida e a humilde casinha dos dois emigrados estava coberta de trepadeiras que se abriam em flores dando àquele jardim ali nos trópicos um perpétuo ar festivo à vivenda Milkau era agricultor por instinto e todas as suas faculdades de atenção de imaginação as empregava com desvelo e ardor no trabalho com as GRAÇA ARANHA próprias mãos que enobrecia o seu destino humano Lentz era o caçador Restringido a um círculo de limitada atividade o seu espírito sempre retrógrado buscava expandirse nessa forma inicial e selvagem da civiliza ção Caçava lutava com os animais devastava as matas e aliado a outros colonos de igual inclinação em poucos meses para ele já não havia segre dos na floresta brasileira No mesmo teto esses dois homens exprimiam duas culturas diferentes Um oferecia ao mundo façanhas matanças sacri fícios de sangue e o outro simples lavrador frutos da terra flores do seu jardim Mas longe do ódio da luta fratricida entre esses dois intérpretes sucessivos da vida formarase uma atração uma solda inquebrantável e que ainda significava a imagem dessa impulsiva liga entre todos no mundo que cada dia será crescente até se tornar universal e indestrutível Milkau trabalhava sempre E quando curvado sobre a enxada a fronte suada os nervos cansados um repouso suave um esquecimento devia adormecerlhe os pensamentos lá vinha ainda nesses instantes o tormen to da piedade o contínuo testemunhar da desgraça alheia como uma man cha na sua visão radiante Não é no trabalho que está a salvação da miséria nem o estímulo para o desalento Que importa que nos fatiguemos que ensopemos a terra com o nosso suor que cubramos o mundo de flores saídas das nossas mãos infatigáveis se ali adiante ao nosso lado vive a dor se todo esse sangue essas flores esses frutos não são bálsamos para aquela ferida estranha Que bem fariam a cor o perfume e o sabor das coisas ao padecer de Maria Como remediar sarar a morte do sonho a decepção enfim Também ele não mourejava dia e noite no trabalho como um forçado E a consolação lhe vinha Oh não é preciso haver outra coisa no mundo Outra coisa mais santa mais poderosa mais doce mais divina mais sutil mais benfazeja mais vasta e mais misteriosa O Amor Assim pensava Milkau enquan to a enxada manejada pelos braços inconscientes cavava a terra C A N A Ã Várias vezes fora à colônia onde Maria se empregara para levarlhe algum conforto Ela se retraía cada vez mais e nem mesmo a ele confia va os passos do seu martírio Milkau respeitava esse pejo e sem insistir em desnudarlhe o coração recomendava à gente da casa a maior cari dade para a desgraçada pedindo que velassem por ela e a não desam parassem na próxima crise Os colonos prometiamlhe tudo mas na ver dade o sentimento deles era outro tratavam a miserável com desdém mesmo com rancor como uma intrusa que lhes ia roubar a tranqüili dade darlhes trabalho e aumentarlhes o custeio da casa Maria não se queixava Aos antigos tormentos juntava o desprezo e o ódio dos novos patrões E ainda assim se agarrava a essas raras migalhas de uma desde nhosa condescendência humana atormentada pelo medo do doloroso momento que se aproximava Por aquele tempo a vida de Milkau continuava a ser minada pela tris teza E também para o companheiro fora da caça nada havia na colônia capaz de encherlhe a imaginação Durante o dia trabalhavam mudos e abismados nas suas cismas e era com um passo moroso e incerto que vagavam às tardes pelas habitações vizinhas Num desses passeios foram até uma colônia que ainda não tinham visto A porta estava um ancião que os convidou a repousar um pouco e enquanto a família se entretinha nos arranjos domésticos e no trato dos animais os dois amigos ficaram a con versar com o velho Falaram da Alemanha e o ancião narroulhes sem demora traços da sua vida Era um veterano do exército prussiano cuja memória estava cheia de lembranças da última guerra Lentz se interessa va pelos pormenores dessas histórias e o velho falava satisfeito e vaidoso de entreter os jovens Na sua narrativa imaginosa passavam cidades estra nhas desfilavam exércitos estrondeava o tumulto das batalhas desabavam cargas de cavalaria a chuva oblíqua da metralha mudava em lama san guinolenta a miserável e inquieta poeira humana varrida em turbilhões G R A Ç A A R A N H A heróicos pelo tufão da Conquista O velho soldado terminou por contar que uma vez num reconhecimento caíra do cavalo e por cima do peito lhe passara num galope o animal de um camarada e como abandonado a vomitar sangue fora por um acaso colhido na estrada Desde então dera baixa e emigrara para o Brasil onde o clima quente lhe mantinha a vida A essas lembranças misturava outros episódios da invasão quadros da cul tura estrangeira apenas entrevista e que recolhera à retina com essa sen sação de deslumbramento maravilhoso como a que ficava do minuto de um Bárbaro no seio da civilização Ainda o apavorava o terror da discipli na Escapara de ser fuzilado porque uma noite de dezembro em França fazendo parte de uma guarnição exigira dos moradores da casa onde se acampara uns cobertores E essa extorsão além do que era permitido re clamar ele ia pagando com a vida Lentz aplaudiu então a força imortal que comandava e era temida E sorria como havia muito tempo não lhe era dado Entusiasmado o veterano ergueuse e caminhando trôpego levou os vizinhos para dentro da casa para mostrarlhes velhos retratos de reis vistas da Prússia estampas da guerra Tudo era antigo mobilias quadros e lembranças Tudo ali era uma volta ao Passado Em caminho para a colônia disse Lentz Que consolo senti indo à casa desse velho Parecia ter penetrado um instante no passado intato da Prússia Mas é preciso não amares demais esse passado observou Milkau E por que não me retemperarei nas fontes da minha raça pergun tou Lentz com um tom enfático de superioridade Por quê Porque respondeu Milkau o que estimas nesse passado é exatamanete o que ele tem de humilhante e vergonhoso Amas o seu es pírito de destruição o demônio que o agitava a alma senhoril a servidão a guerra o sangue tudo o que separa e destrói dia a dia será reduzido o campo da veneração pelas instituições da Antigilidade Amemos o sacrm C A N A Ã cio feito pelo amor humano a ciência a arte Mas aquele amor incon siderado por tudo o que é passado tudo o que foi é um dos sopros mais poderosos para a desordem universal E eu tenho que o estudo das coisas antigas o prestígio das próprias letras mortas são outros tantos venenos que acobardam a alma do homem de hoje e dão um encanto crescente ao mistério da autoridade Os que se colocam no passado aqueles cujas almas se fazem artificialmente antigas esses são os verdadeiros inimigos do gênero humano são os pregadores da desordem os profetas do tédio e da morte Tu sabes bem interrompeu Lentz não é tudo do passado que eu amo mas regozijome quando testemunho nele a ostentação das fortes qualidades humanas da nossa Pátria E que beneficio resulta dessa força dessa grandeza da Pátria Oh Exatamente o que nela venero é a tendência imperial a fibra belicosa a expansão universal a tenacidade o gênio militar a disciplina Mas que é a Pátria A Pátria ora Milkau tu não sabes É a raça uma civilização parti cular que nos fala no sangue o nosso eu a nossa própria projeção no mundo a soma de nós mesmos multiplicados ao infinito Não há ninguém que fuja da sua atmosfera Imortal Não meu querido Lentz a Pátria é uma abstração transitória e que vai morrer Sobre ela nada se fundou Nem arte nem religião nem ciên cia Nada absolutamente nada tem uma forma elevada sendo patriótico O gênio humano é universaL A Pátria é o aspecto secundário das coisas uma expressão da política a desordem a guerra A Pátria é pequenina mesquinha uma limitação para o amor dos homens uma restrição que é preciso quebrar Entraram em casa e durante a noite largo tempo debateram essas idéias No dia seguinte quando Milkau trabalhava solitário rolavalhe na cabeça a discussão da véspera e sentia um malestar lembrandose da viva contrariedade que opusera aos sentimentos do amigo Não há dúvida pensava ele penitenciandose é assim por natureza Quando dois homens se colocam frente a frente uma instintiva animalidade surge entre eles perturbando a simpatia É o querer inato de subjugar ou pela força ou pela superioridade da inteligência ou pela consciência da própria perfeição Assim também sou eu procuro reduzir Lentz a mim dominálo até ao fundo das suas idéias do seu próprio ser Oh orgulho daninho Quando a própria humildade deixará de ter no seu mais íntimo recesso a desfiguração o amargor da vaidade da soberba do domínio Milkau reconheceuse inferior às suas idéias humilhado por uma força inconsciente Depois tornava aos mesmos pensamentos Compreendia que no seu companheiro essa exageração do amor da pátria era talvez um sintoma de nostalgia uma ânsia pela terra das origens E não é isto uma consequência doentia da educação patriótica Mas naquele instante de angústia quando por sua vez se examinava mais de perto revelavase a si mesmo Fitou o céu imenso desvelado de uma serenidade de um brilho e de uma firmeza de cristal e sentiuse estranho a ele Admirou ao longe o corte das montanhas a negrura da mata a fronde das árvores Debaixo dos seus pés a terra vermelha como embebida de sangue e das plantas tenebrosas o cheiro que tonteia e excita O morno sossego do Universo E tudo lhe era estranho Ele e o Mundo ele e tudo mais a dualidade a distinção irremediável Eu não estou em ti tu não estás em mim Ainda assim eu te amo mas tu não és eu Numa dor funda Milkau devorado de mágoa combalido sentiuse também expatriado Não havia entre ele e todas as coisas em volta de si a sutil intimidade que nos prende eternamente a elas o imperceptível e misterioso fluido de comunicação que faz de tudo o mesmo ser E perce bia num grande desalento que o conjunto tropical do país do sol o deixava extático errante e incompreensível e que a sua alma emigrava dali incapaz de uma comunhão perfeita de uma infiltração definitiva com a terra Que sou eu então Que verme que átomo miserável que se não governa que não pode amar o que quer que se não pode identificar com todas as moléculas do mundo Que sou eu onde leis imperiosas perversas me dominam me vencem o novo sangue Outros vizinhos vieram algum tempo depois se estabelecer no Rio Doce na campina que saindo da mata morre sobre as águas Era uma pequena família magiar composta do pai viúvo duas filhas e um filho a que se juntaram outro rapaz da mesma raça que era noivo de uma das raparigas e um cigano Viviam unidos em uma só comunhão de desânimo e de espanto na casinha feita de madeira tosca com teto de telhas de pau incendiada pelo sol nos dias quentes varada pelo vento invadida pela chuva nos dias de tormenta Aí cumpriam o ritual dos costumes pátrios Sob a pressão cobarde do isolamento apegavamse como a um refúgio às intatas tradições transportadas de sangue a sangue e mantidas pelo temor religioso desde os antepassados O cigano partira também arrastado pelo instinto vagabundo Na longa travessia o eterno caminante da planície imaginavase prisioneiro no vapor que lhe parecia uma jaula movediça e endemoninhada O oceano contemplado da terra atraíao pela irresistível sedução da imensidade O infinito é uma miragem atormentadora em que se perde a essência humana No meio das águas ilimitadas sitiado pelo perigo assaltado pelo terror o espírito dissolvendo as suas forças vitais numa desagregação contínua transforma aquela atração impulsiva e ilusória em uma persistente impressão de assombro e de pavor e a orla de terra que se lhe escapou ao longe e para onde se volta incessante recebe os queixumes da saudade O homem só é senhor da sua individualidade na porção de espaço cujo horizonte pode medir com os olhos naquilo que é finito e limitado Passaram entorpecidamente os primeiros tempos esmagados pela perspectiva do desconhecido com a alma em suspensão Até então não se trabalhará os homens corriam as vizinhanças caçavam vagavam pelos montes e iam aos povoados as mulheres viviam no lar Quando caía a sombra o cigano deitavase sobre a relva à beira do rio e pregava os olhos preguiçosos no poente vendo morrer o sol Aos domingos a família se reunia na varanda o velho a um canto boné enterrado até os olhos cachimbo na boca quilotava repousadamente as longas barbas amarelas e as rugas da cara as raparigas e os dois rapazes como legítimos magiares ornavamse com as belas roupas do seu país e vinham faustososo e garridos entregarse ao grande prazer da sua raça à dança Às vezes Milkau e Lentz nos seus passeios pela margem do rio ficavamse debaixo de alguma árvore assistindo àquelas festas no silêncio da grande solidão O músico era o cigano com o inseparável violino sentado ao lado do velho Dado o sinal os pares punhamse em ordem e iniciavam as marchas polacas A música tangia a festa Os seus compassos a princípio langorosos iam ganhando movimento e a largos impulsos do som arrastavam os figurantes Faziam rápidas voltas meiasluas harmônicas enroscavam os braços uns nos outros e balouçavamse cadenciados como suspensos sobre as notas formando em sua graça artística grupos de estatuária clássica Ao findar a contradança respirávam satisfação espalhandoselhes no semblante o orgulho da sua mestria Mas o cigano os não deixava sossegar vibrava o violino e logo todos sentiam o despertar nervoso da paixão Com a rabeca presa sob o queixo e empunhada por uma mão convulsa enquanto a outra manejava o arco o músico arrancava do instrumento uns C A N A Ã longos e cantantes gritos Os homens trazendo chapéu de feltro com lin das plumas paletó e calça de veludo e à cinta uma larga faixa de seda carmesim enlaçavam as raparigas cujo corpinho meio aberto ao colo ves tia o busto esbelto e cujas saias ornadas de veludo e seda lhes envolviam as formas poderosas Naquele espaço estreito na varanda quase debruça da sobre o rio selvagem e estranho àquelas melodias reuniamse na fraternidade do destino e da arte as duas raças a que tem o sentimento inato da música e a que tem a espontaneidade da dança Continuava a valsa Os artistas da dança acompanhavam a loucura da rabeca num vôo quase imperceptível e para diante para diante por sua vez no sublime surto dos sentidos improvisavam novas figuras Quando estavam no auge do prazer a mais moça das raparigas amparada nos braços do irmão deslizava ale gre feliz com o rosto iluminado embevecido a fitar o músico amado com aveludados e longos olhos que sorriam primeiro que a boca E quando a música ia morrendo a outra rapariga transportada em êxtase a cabeça loura reclinada sobre o ombro do noivo numa vertigem aérea respirava a pequenos haustos com a boca entreaberta sua boca vermelha como o sangue úmida como o orvalho A turma de Felicíssimo voltara para novas medições O agrimensor depois do trabalho ia todas as tardes conversar na colônia de Milkau e com a sua vivacidade e alegria entretinha os dois emigrados contando episódios da sua vida aventureira cenas do Norte desse Ceará trágico em cujas areias sedentas e implacáveis se vazam se fundem na resig nação na dor na energia e na esperança a alma dos homens Quando não havia serviço urgente Joca juntavase a Lentz e os dois se embre nhavam no mato a caçar Na convivência com esses sertanejos Milkau apaziguava as ânsias em que se vinha batendo seu espírito A espon taneidade de raça a coragem e a bondade deles eram novos arrimos para a ilusão G R A Ç A A R A N H A Nenhum incidente perturbava o calmo viver de imigrantes e traba lhadores até que uma manhã o agrimensor e os seus ajudantes sentados à porta do barracão viram uma mancha preta passar velejando majestosa serena no céu claro Urubu disse Felicíssimo Ah temos carniça por aqui opinou Joca indagando com os olhos atilados o vôo do corvo A grande ave solitária descia vagarosa boiando negligente num vasto círculo do espaço como um barco de velas negras Logo depois outra subia no horizonte e não tardou muito que outras mais viessem sujar a limpidez do azul E daí a pouco se ia baixando e restringindo a um ponto da mata o vôo dos infectos urubus que os trabalhadores acompanhavam curiosos e divertidos em suas almas infantis Mas ali naquele ponto é a casa do bruxo observou um dos homens designando assim a morada do intratável e velho caçador que habitava aquelas margens do rio Vai ver que é algum dos cachorros que morreu Também que o diabo os leve a todos praguejou o mulato Que a peste os acabe Malvados ajuntou outro E mais o dono Quá para mim não morreu bicho nenhum Se fosse o velho o teria enterrado como a um fIlho concluiu Felicíssimo Sim e não haveria carniça Quem sabe se não é o velho que está morto conjeturou um tra balhador Homem é verdade acudiu um camarada Há dias que o não vejo Quem sabe também eu declararam outros do grupo Vamos ver seu cadete propôs Joca ao agrimensor C A N A Ã E todos se levantaram e seguiram na direção da morada do caçador Ao aproximaremse ouviram latidos e uivos de cães Mais perto quando descortinaram a casa viram os cães ladrando correndo como demos doi dos para os urubus que teimavam em baixar à terra As aves negras ras teavam quase o chão e quando os cães se arremessavam sobre elas erguiam o vôo e iam pousar logo adiante Vocês não vêem A carniça é o velho gritou numa gargalhada alvar um dos homens Que fedor Este diabo está podre há muitos dias berrou outro Instintivamente todos pararam como num conselho Então seu cadete que se faz perguntou Joca ao agrimensor Ora vamos a enterrar o velho Deus lhe perdoe a alma Nós lhe cuidaremos do corpo disse decisivo o cearense Os homens não hesitaram mais agora inspirados pelo impulso de pie dade de Felicíssimo e todos caminharam para dentro do cercado Vendo os aproximarse a matilha de cães abandonou os urubus e avançou como uma só massa atroadora furibunda terrível contra os homens Apro veitando a diversão os corvos caminhavam no terreiro e numa dança macabra iam invadindo a casa num riso infernal espichando voluptuosos as cabeças petulantes de harpais descabeladas Diante do arranco dos cães os homens fugiram e na porteira da cerca os defensores da casa pararam arreganhando os dentes uivando ladrando as sanguíneas bocas escancaradas Como podemos afrontar essa canalha perguntou um dos traba lhadores quando já estavam fora do perigo Joca vá com outros buscar os ferros para darmos uma lição àquela cachorrada ordenou Felicíssimo saboreando uma vingança Vamos daí disse Joca e partiu acompanhado de mais dois Os outros ficaram atirando pedras aos cães que estacados na cancela não se arredavam furiosos e tremendo Os urubus descendo em maior número dos ares continuavam em cortejo a penetrar na casa Um horrível e crescente fétido mesmo à distância tonteava os homens dandolhes ânsias de vomitar Oh que demora resmungava impaciente Felicíssimo esperando na estrada a volta de Joca E ia gritando Pedra rapaziada mão certeira Os cães latiam mostrando os dentes brancos e afiados E os urubus continuavam a baixar do céu Afinal pela estrada vieram correndo esbaforidos Joca e os companheiros carregados de enxadas foices e paus Cada um se armou e Felicíssimo ordenou com entusiasmo Agora avança meu povo Os homens resolutos e raivosos precipitaramse sobre a cancela que ao choque dos seus corpos unidos espatifouse dandolhes passagem os cães não retrocederam e lançaramse sobre eles mordendoos desesperadamente Os invasores berravam na dor Mata mata E a pau e foice arremeteramse contra os animais Num momento estavam os agressores todos rotos e o sangue lhes corria das feridas E da peleja umas vezes saía um cão gritando ganindo quando uma paulada certeira e furibunda lhe quebrava as pernas outras eram homens que debandados isolados fugiam pelo terreiro perseguidos Estes trataram logo de se unir traçando com os instrumentos um círculo de defesa Não afrouxem ordenava Felicíssimo Avança avança Para dentro para dentro Recuaram os cães ante a energia do ataque e correndo sumiramse como por encanto Os homens indolhes no encalço penetraram na casa brandindo as armas Mas entontecidos pelo cheiro sufocante estacaram C A N A Ã indecisos e apavorados diante de um quadro medonho Dentro os urubus comiam um cadáver humano que jazia por terra o corpo do solitário e abandonado imigrante Os olhos tinham sido devorados e as cavidades imensas e rubras escancaravamlhe a testa Alucinados em seu gozo satâni co os corvos sem dar fé da gente continuavam a picar a comer avida mente embebidos Os cães esquecidos deles faziam frente aos invasores Xô Xô canalha atroou um grito de Joca desesperado de nojo E num ímpeto de compaixão avançou para o cadáver para livrálo dos urubus Agarrandoo pelas canelas e pelas roupas os cães o detiveram Os camaradas acudiram prontos em sua defesa Diante do alarido da luta os urubus esbordoados largaram a presa e abrindo as asas espalhando com o vôo ainda mais o fedor incapazes de se afastarem daquela nau seabunda atmosfera pousaram morosos pesados nas traves da casa e aí se postaram fünebres medonhos como testemunhas do combate dos ho mens e dos cães Quando Joca conseguiu tocar o cadáver recrudesceu o furor das feras Não temiam mais os ferros e os cacetes e atacavam os inimigos que se apossavam do amo Foi um desvario homens e animais se batiam corpo a corpo se feriam e se despedaçavam como num com bate de doidos Os homens estavam estraçalhados e sobre as pernas nuas e brancas de muitos deles corria um sangue quente Guinchando os cães corriam estorcendose como possessos e atirandose sobre o cadáver do velho Depois de muito tempo de luta alguns trabalhadores puderam apos sarse do corpo e o foram carregando para fora enquanto os companheiros os defendiam num esforçado arrojo O resto dos cães ainda arremetiam contra eles mas eram logo mortos Os que ainda restavam não esmoreceram e mais alucinados investiam Um deles cravou as presas na coxa de um homem com tal fúria que este picandoo com o ferro e tentando arrancálo com as mãos não conseguiu O cão cada vez mais se enterrava pelas suas carnes adentro Correu outro homem G R A Ç A A R A N H A em seu socorro e com um certeiro e violento golpe de foice cortou o pescoço do animal a cabeça ficou segura na carne da vítima e das artérias rotas jorrava o sangue Não havia mais cães a matar O terreiro ficara alastrado de corpos decepados mutilados de membros esparsos Os homens maltratados doloridos deitaram no chão o velho Em revoada os urubus vieram assa nhados para o terreiro avançando impávidos para o cadáver que os traba lhadores extenuados já lhes queriam abandonar Não gritou zangado Felidssimo Não Havemos de enterrar o pobre velho Era só o que faltava seus miseráveis Pega enxada E o cearense agarrou também numa delas e começou a cavar a cova Muitos murmurando obedeceram Alguns porém ficaram enxotan do as aves Mais funda ordenou ainda o agrimensor Assim os urubus o desenterrariam Faz dó ver uma pobre criatura de Deus desamparada sem ninguém neste mundo comido por estes sujos Em breve a cova ficou pronta e nela enterraram o imigrante caçador Felidssimo ajoelhouse e rezou Padre nosso que estais no Céu Do minados por uma compaixão súbita e estranha os homens rudes ajoe lhavamse e de chapéu na mão tristes acabrunhados em face da morte que só agora se lhes revelava rezaram Depois mudos encheram a cova de terra A medida que o cadáver ia sendo coberto remontavam os urubus um a um às alturas secretas Naquela noite quando os trabalhadores da turma de Felidssimo se reuniram à porta do barracão ouviram na mata um clamor uma roncaria aterradora quebrando o silêncio benfajezo Era uma vara de queixadas que passava E Joca explicou Lá vão as almas dos cachorros feitas caititus para desenterrar e ressus citar o velho demônio C A N A Ã Formavase assim um novo mito no Rio Doce Nas noites de tempes tade ainda hoje quando o caititu matraca no mato todos se recolhem medrosos melancólicos pensando nos cães encantados Ao amanhecer de um dia de nevoeiro a paisagem perdera o seu contorno exato e regular As linhas definitivas dos objetos confun diamse as montanhas enterravam as cabeças nas nuvens a cabeleira das árvores fumegava o rio sem horizonte sem limite como uma grande pasta cinzenta ligavase ao céu baixo e denso O desenho apa garase a bruma mascarava os perfis das coisas e o colorido surgia com a sombra numa sublime desforra Por toda a parte manchas es plêndidas se ostentavam E sobre a campina esverdeada vaporosa uma dessas manchas ligeiramente azulada moviase arqueavase abaixavase erguiase e se ia lentamente dissipando O sol não tardou a vir e a natureza sacudiuse a névoa fugiu o Céu espanouse e dila touse em maravilhosa limpidez A mancha móvel sobre a planície de finiuse no perfil de um pobre cavalo que passeava na verdura os seus olhos de velhice e fadiga tristes e longos De passada com os túmi dos e negros beiços afagava a erva triturandoa com fastio e desâni mo enquanto a sua atenção de cavalo experimentado estava voltada para a cabana a cuja porta os seus donos os novos colonos magiares o miravam com interesse A neblina leve veloz vinha distraílo da quela postura de curiosidade humilde e acariciava num frio elétrico o seu pêlo ralo e falhado Estremecia num gozo manso e estendendo o focinho arregaçando os beiços sensual e grato beijava o ar Não mais encontrava a névoa que fugira para os montes levada pela brisa co mo se fosse o imperceptível véu que envolvesse alguma deusa errante e retardada Um raio de sol porém descera a brincarlhe nos olhos e incendiavalhe a pupila Meiguices da natureza G R A Ç A A R A N H A Um dos jovens magiares levando uma corda caminhou para o cavalo O animal entregoulhe a cabeça numa mistura de abandono e tédio O rapaz passoulhe o cabresto e o levou ao poste fronteiro à casa onde o amarrou Os colonos tinham resolvido principiar naquele dia a plantação do prazo e o velho deu ordem de partir para a queimada Os filhos armaramse das ferramentas de lavoura o cigano saindo de sua modorra e apenas armado de um chicote acompanhou os outros que desamar rando o cavalo seguiram com ele para o roçado As raparigas que ficavam em casa cheias de instintivo pavor viam o grupo afastarse vagarosamente Chegaram ao aceiro que aberto como uma larga ferida sobre o dorso da terra era um sulco de alguns metros de largura circundando a quei mada Da mata carbonizada ainda resistiam de pé alguns troncos despoja dos enegrecidos Milkau e Lentz passeando àquela hora passaram perto do roçado e viram chegar aí o grupo dos vizinhos Ainda bem disse Milkau eles vão trabalhar faziame dó ver esta gente apática irresoluta entorpecida na preguiça Mas para que trazem eles quase arrastado aquele cavalo perguntou Lentz E os dois se afastaram um pouco e ficaram à distância acompanhando os movimentos do grupo O velho colono segurou o animal pelo cabresto e o colocou no meio da vala Os filhos puseramse de lado num recolhimento religioso O pai puxou o cavalo para a frente De chicote em punho o cigano seguia atrás e a primeira vergastada cortando o ar num sibilo caiu em cheio sobre o animal Este como arrancandose de si mesmo pinoteou assustado Novas lambadas foram arremessadas por mão vigorosa Estirou o cavalo o pes coço para a frente abaixouse alongouse encostando quase o ventre à terra como para se libertar do flagelo que vinha do alto Os seus mem bros se estorciam confrangidos sob a dor imensa E desapiedadamente puxavamno para diante levandoo ao furor do açoite Naquele sacrifício cumpriase uma missão sagrada ligavase à nova terra o nervo da tradição da terra antiga Quando os antepassados tártaros desceram do planalto asiático e no solo europeu renunciaram à vida errante dos pastores para lavrar o campo e buscar na cultura a satisfação da vida sacrificaram aos deuses o velho companheiro de peregrinação nas brancas estepes E assim a imolação ficou sempre no espírito dos descendentes como um dever cujas raízes se estendem até ao fundo da alma das raças Continuava o grupo a caminhar O velho como um sacerdote conduzia a vítima seguida do cigano em cujo rosto se recompunha a antiga expressão infernal e terrível dos antepassados num retrocesso harmônico e rápido produzido pelo singular efeito da paixão sanguinária Os outros assistiam mudos à cerimônia O chicote vibrava incessante as suas pontas de ferro cortavam o lombo do animal O ar leve e frio penetrando nos fios de carne viva causava uma dor fina aguda acerba e a vista e o cheiro do sangue excitavam ainda mais a energia do flagelador Veiolhe uma histérica insensibilidade uma rudimentar anestesia uma assassina obsessão Estonteouo uma vertigem mas o açoite não parou Os sulcos na carne abriamse mais fundos o sangue escorria frouxo Mofino de dor o cavalo prosseguia arrastado regando a terra Gotas vermelhas respingavam sobre a descoberta cabeça do velho magiar de uma brancura de açucena As suas narinas dilatavamse em lânguido gozo Cavos gemidos ressoavam no peito da besta E no seu olhar infinito de moribundo traduziamse os humildes protestos e os tímidos apelos de misericórdia E o relho soava enquanto o mártir ia lento de pescoço estirado pernas trôpegas esvaindose pelas veias abertas como torneiras de sangue O cigano mais terrível mais feroz transfiguravase e da sua garganta afinada irrompeu brusco sonoro o canto de guerra dos velhos tártaros O chicote cruel e rápido marcava o compasso desse ritmo estranho G R A Ç A A R A N H A o contágio do furor apoderouse dos outros que imobilizados assistiam ao sacrmcio E embriagados pouco a pouco pelas frases da música pela sugestão do rito pelo odor de carne sangrenta acompanhavam o canto num coro infernal O animal exausto caíra de lado como um peso inerte O açoite inexorável ainda o levantou uma vez e no solo como numa verônica ficou estampada a imagem do seu corpo impressa em sangue Prosseguia sem interrupção fogoso lúgubre o canto que feria asperamente o ar e era o eco da melodia satânica da morte O cavalo deu mais alguns passos cambaleando como um alucinado e afmal prostrou se sobre a terra Arquejante resfolegando num espaçado estertor mor ria vagarosamente Nas suas pupilas de moribundo fotografaramse num derradeiro clarão as fisionomias dos algozes E esta imagem medonha que se lhe guardara no interior dos olhos era a infinita tortura que o acompanharia além da própria morte presidindo à dolorosa decom posição da sua carne de mártir Cessaram as vozes Os homens agruparamse em torno do cadáver re zando como fantasmas loucos Poças e fios vermelhos manchavam o sulco A camada de argila lisa escorregadia como uma couraça tornava o seio da terra impenetrável ao sangue que sorvido pelo sol se evaporava e dis solvia no ar Era a rejeição do sacrmcio o repúdio da imolação rompen do a cruenta tradição do passado A nova Terra juntava a sua contribuição aos límpidos ideais dos novos homens E para quê dizia Milkau comovido até às lágrimas e para que a tortura a fecundação pelo sangue se Ela risonha e alegre como uma rapariga bela e fresca lhes daria os seus frutos cedendo tãosomente às brandas violências do amor 9 E o que tinha de acontecer acontecia No meio do cafezal que es tava a limpar Maria que já desde a véspera vinha sofrendo sen tiu repentinamente uma dor aguda nas entranhas como de uma vio lenta punhalada Caiu pesada no chão o corpo se lhe retorceu todo e o rosto desmaiado desfigurouse numa contorsão medonha A dor fora viva e passageira e logo que a rapariga voltou a si assaltada por um grande terror o seu primeiro movimento foi de se recolher à casa e aí no abrigo doméstico esperar o desenlace da crise Teve porém medo de afrontar a ira dos patrões que dia e noite ameaçavam despe dila para se furtarem ao incômodo do tratamento Resistiu e conti nuou a labutar debaixo dos pés de café sozinha no silêncio do dia O trabalho não prosseguia bem das mãos entorpecida deixava cair frou xa a enxada e as pernas trôpegas volumosas não se sustinham fir mes De espaço a espaço a mesma dor voltava como se lhe dila cerasse o ventre Maria se amparava apertandose com as mãos para sufocar o sofrimento estranho e vergonhoso que sentia Nos interva los erguiase esforçandose por trabalhar desbastando o mato tecido ao cafezal mas logo era derrubada exausta alagada em suor frio Às vezes tinha ímpetos de gritar e contra toda a vontade gemia alto clamando socorro Quando serenava espantavase dos seus inconscientes desabafos e tremia de pavor pensando que lhe viriam acudir Sabia bem que qualquer auxílio dos amos importaria em um aumento de tortura de aviltamento e seguramente em uma expulsão imediata daquele lar desagasalhado mas ainda assim um lar As dores inexoráveis prosseguiam amiudadas e a desgraçada sem mais esperança viu chegada a hora da maternidade Tomada de medo abandonou o serviço e afastandose o mais possível da casa deixou o cafezal e aventurouse para o lado do rio onde era mais deserto Aí no terreno inculto e bravio as únicas árvores que havia eram esparsos cajueiros muito derreados esgalhandose pelo chão Maria sentouse debaixo duma dessas árvores que naquela época estavam em flor O aroma forte invadiulhe a cabeça E ela combalida deixouse pender sobre a terra No vão das dores os olhos indiferentes se estendiam sobre o campo e recolhiam a pomposa fosforescência do rio faiscante Nada se movia ali na solidão a não ser uma manada de porcos que vinha ao longe focinhando e escavando a terra Maria gemia livremente estorcendose na agonia Os seus gritos eram finos e estridentes e às vezes ressoavam asperamente como estrangulada gargalhada histérica Rasgavamselhe as entranhas dilatandose à força Depois a dor se interrompeu de novo e o suor frio banhoulhe o corpo que jazia desfalecido e inerte até que arrancos lancinantes o agitaram outra vez Os porcos pouco a pouco se iam aproximando e a miserável alheia a si mesma entretinhase em acompanharlhes a morosa viagem Sempre as mesmas dores agora mais miúdas mais cortantes acabando num grito soluçante que se perdia num longo espasmo Sofria muito o corpo lhe tremia convulso os dentes batiam de frio nervoso as mãos róseas cerravamse como molas de ferro Tudo nela era desor C A N A Ã dem OS cabelos desprendendose caíam enovelados sobre o rosto as faces túmidas estalavam de sangue o vestido arrebentando deixava ver o colo nu e arquejante E de repente sentiuse mais desfalecida parecen do que se ia desmanchando numa umidade viscosa repugnante A morte devia ser assim Oh pior que a morte Novas dores vie ram abafadas quase surdas sacudindoa violentamente dandolhe ânsias de apertar alguma coisa contra si Maria abraçouse ao tronco deitado do cajueiro Os seus olhos desvairados não viam mais nada Nos ouvidos entravalhe o resfolegar roufenho dos porcos que a cer cavam atraídos pelo cheiro que daí se exalava E ela agarravase à árvore estreitandoa com os níveos braços nus e mordia o tronco cravandolhe os dentes desesperadamente convulsivamente Em torno fungavam os porcos remexendo as folhas secas do cajueiro chegando mesmo alguns mais atrevidos mais vorazes a lamber afoi tamente o chão Maria horrorizada queria afugentálos mas as do res a retomavam imperiosas nem mesmo tinha forças para um grito agudo e só podia gemer estrebuchando numa mistura de sofrimento e de gozo que a estimulava estranhamente E os porcos persistiam sinistros ameaçadores Subitamente ela caiu extenuada largando a árvore Um vagido de criança misturouse aos roncos dos animais A mulher fez um cansado gesto para apanhar o filho mas exangue débil o braço morreulhe sobre o corpo Uma vertigem turboulhe a visão enfraqueceulhe os ouvidos e numa volúpia de bemestar pare cia deliciosamente suspensa nos ares longe da Terra longe do sofri mento ouvindo no arfar dos porcos o resfolegar longínquo e adorme cedor do mar E os animais sedentos enchafurdavamse gUinchando atropelandose no sangue que corria Um novo gemido saiu do peito de Maria despertandoa em sobressalto Os porcos afastaramse es pantados e ela meio consciente contorceuse mirou atônita a G R A Ç A A R A N H A criança que vagia estrangulada Depois quando um grande vácuo se lhe fez de todo nas entranhas a dor cessou e Maria mergulhou afundada em outra vertigem Os porcos sentindoa sossegada precipitaramse sobre os resíduos sangrentos espalhados no chão Devoraram tudo sôfregos tremendos sorveram o sangue e na excitação da voracidade arremes saramse à criança que às primeiras dentadas soltou um grito forte des pertando a mãe Quando esta abriu os olhos deu um salto brusco e pondose de pé lívida hirta alucinada viu o filho aos trambolhões par tilhado pelos porcos que fugiam pelo campo afora A filha dos patrões em busca de Maria chegava nesse instante e vendo a espantosa cena sem nada indagar retrocedeu à casa alarma da gritando numa espontânea e comunicativa maldade que a criada tinha matado o filho Dois dias depois Maria estava na cadeia do Cachoeiro A população germânica ficou horrorizada com a notícia do crime e os sustentáculos da colônia os ricos negociantes os pastores os proprietários unidos agitaramse para a vingança e o exemplo Uma manhã antes da audiência em casa do Dr Itapecuru este despachava autos com o Escrivão Pantoja o Dr Brederodes percorria uns jornais políticos da capital quando Roberto Schultz vestido como nos domingos entrou solene Seja bemvindo a esta casa saudou com servilismo o Juiz de Direito O alemão cumprimentou a todos com uma palavra amável para cada um muito macio e delicado Entretiveramse algum tempo sem pretexto numa conversa que prosseguia aos arrancos Itapecuru pressentia que Roberto tinha o que lhe comunicar em reserva Que será pensava o Juiz de Direito Algum despacho que vem pedir como de costume Ou quem sabe vem exigir o pagamento da minha C A N A Ã conta Aqui Itapecuru longe do assunto ficou nervoso sorrindo es túpido e sem propósito aos outros Não se atrevia a chamar o alemão em particular e demorava com jeito o escrivão que também cheio de curiosidade se não apressava Não não é para uma questão de autos pensava o juiz senão não estaria tão grave Com esse ar de impaciên cia Há de ser a conta E o magistrado ficou abatido aniquilado Senhor doutor disse por fim Roberto já maçado o que me traz aqui Itapecuru respirou Não não era cobrança Assim diante de gen te Não não era a conta Oh meu bom amigo o senhor manda não pede Aqui estamos todos para servilo Não é Dr Brederodes O Promotor resmungou sacudindo os ombros Depende Se for de direito Como senhor doutor Julga Vossa Senhoria que eu seria capaz de falar à Justiça senão de coisas sérias perguntou o alemão sorrindo acariciando o ombro do Promotor que enrubesceu com a imperti nente familiaridade Está claro acudiu Pantoja Nós somos amigos velhos e nunca o senhor me pediu nada desarrazoado Nem a mim capitão acrescentou ltapecuru espraiando as bochechas num riso grotesco que o desarmou do monóculo Mas de que se trata interrogou abelhudo o maracajá Meus senhores eu venho aqui em nome da colônia pedir a pu nição dessa miserável que matou o filho O crime é horrível e a dig nidade dos alemães exige uma lição severa A colônia sabe disse gravemente Itapecuru que aqui não falta Justiça Havemos de examinar tudo com o cuidado que sempre em pregamos em nossa missão G R A Ç A A R A N H A O que nós receamos é que algum dos senhores tenha uma fraque za de coração pela sorte da ré e Oh impossível A Justiça tem os olhos vendados considerou o Juiz de Direito fitando o Escrivão E em que termos está o proces so capitão O Dr Brederodes deu ontem a denúncia Já expedi os manda dos para a formação da culpa Ah Então doutor e caro colega não há dúvida sobre a crimina lidade da acusada perguntou Itapecuru ao Promotor O Senhor que viu nos autos Brederodes não respondeu e continuou de lado a folhear os jornais Não pode haver dúvida observou Roberto Há testemunhas de vista que afirmam ter ela lançado a criança aos porcos E depois os precedentes Ah Sim Uma perdida O filho lhe seria um trambolho Vossa Senhoria compreende Mas não há de ser aqui que pegarão esses maus exemplos Imagine Vossa Senhoria se ficasse impune o delito se nós passássemos a mão por cima que seria da moralidade das famílias dos colonos para o futuro Mas como podiam os senhores abafar o crime perguntou Brederodes secamente Não denunciando não prendendo empenhandonos para não haver andamento no processo arriscou o alemão É muita petulância Eu não digo capitão que o Sr Roberto e os seus patrícios nos têm aqui como seus criados E Brederodes deu um violento murro na mesa Dr Brederodes Senhor doutor Os outros queriam evitar o desabafo do jovem promotor Este continuava a vociferar quase esbordoando o negociante que procurava com um riso cobarde amparar a fúria do brasileiro Sim criados Vem aqui à casa do Juiz de Direito um bolas qualquer porque enriqueceu furtando o nosso dinheiro exigir em nome da colônia Que colônia Exigir que se cumpra a lei É boa Mas não há inconveniente creio colega que o povo Qual povo qual nada Ladrões mandões de aldeia estrangeiros Qual povo O que eles querem é exatamente justiça Tartufo miseráveis Como viram uma das filhas apanhada com a boca na botija e como não há remédio algum se alvoroçam todos para reclamar justiça Muito boa A nossa moralidade teve forças de dizer o alemão Moralidade Fingimento hipocrisia A moralidade de salteadores que se apossam de nossas terras e enriquecem Então Vossa Senhoria pensa que não há crime no caso interrogou Pantoja para desviar a questão Se há Oh esta miserável conheçoa bem replicou Brederodes motejando É aquela perguntou o maracajá com intenção Sim a mesma fezse de fina de pudica comigo e aí está o que ela era mas agora liquidaremos contas Aproveitarei a ocasião para levar esse processo até ao fim desmascarar toda esta corja daqui Este fato não é o único Para mim todas estas alemãs matam os filhos quando Havemos de ver Não sou Promotor Exigências comigo Não isso não Não pôde mais vociferar engasgado pela cólera Pegou no chapéu e mal apertando a mão de Itapecuru que ainda o quis demorar saiu olhando com raiva a figura farta e desmoralizada de Roberto G R A Ç A A R A N H A Tem graça disse Pantoja quando ficaram a sós querendo iludir a impressão deixada pelos desmandos da ira do Promotor É verdade Nós gostamos muito de bolir com ele para vêlo se queimar ajuntou por disfarce Itapecuru Lá se vai batendo com as mãos falando sozinho Que danado rapaziadas comentava o Escrivão que ia acompanhando da janela a marcha de Brederodes na rua O alemão não dizia nada Não era ali que havia de confessar os seus rancores O defeito principal dos moços de hoje considerou o Or Itapecuru balançando o monóculo é a falta de atenção com os ele mentos conservadores do País São simples revolucionários Pensam que o progresso é a revolução Eu também admiro os direitos do homem sou liberal mas como magistrado sei dar a cada um o que é seu Suum cuique tribuere É o hábito da justiça cortou o escrivão já principiando a enfadarse Sim a justiça para todos velhos e jovens Que pode fazer uma sociedade sem ordem É a base É preciso termos sempre em vista o elemento conservador do País Por exemplo aqui na colônia onde repousa este salutar elemento Ninguém respondeu Itapecuru sorriu da incapacidade do mudo auditório e continuou Onde está o elemento Nos senhores negociantes nos proprie tários nos colonos estabelecidos enfim nas classes respeitáveis que têm o que perder E não é maltratandoas que se tem uma perfeita organização social Os senhores jacobinos não compreendem este princípio admirável Para eles a política é só destruir e botar abaixo Pois é pena C A N A Ã Roberto impaciente levantouse O Juiz de Direito suspendeu o discurso Bem seu doutor Posso responder à colônia que não há meio da criminosa escapar A colônia sabe que pelas minhas teorias ia dizendo Itapecuru Mas Roberto não esperou o resto fezlhe uma grande cortesia e foi saindo Pantoja acompanhouo com passo sorrateiro Oh seu Escrivão E os nossos autos interrogou aflito o Juiz de Direito ainda mais que tudo aborrecido por ficar só sem ouvinte Espere um pouco já venho retrucou o Escrivão sem se voltar E se foi esgueirando ao lado do alemão E que tal o promotorzinho disse na rua Roberto ao maracajá Maluco Maluco Canalha vou j á escrever para o Cachoeiro armandolhe a cama É É gaguejou o Escrivão embaraçado O diabo é que esses jacobinos são muito fortes Todos se protegem Uma irman dade E não vá o Governador não atender Donnerwetter praguejou o alemão E logo prosseguiu na língua do país É boa Os senhores querem o nosso auxílio nas eleições qui nhentos votos só aqui nesta colônia e quando se trata de castigar um insolente que vive a nos insultar fogem com o corpo Tem razão tem razão Olhe eu mesmo vou escrever ao Go vernador em segredo pedindo pelo menos a remoção do Bredero des Basta a remoção Não é Que vá para o inferno Sim para o inferno repetiu o outro maquinal e pensativo Então escreva Posso contar GRAÇA ARANHA Oh comigo o senhor sempre conta Que não faço pelo partido Mas segredo Muito entre nós Porque sabe os jacobinos E o tal processo interrompeu Roberto mudando de assunto Veja há muito pedido do centro Realmente é um caso mons truoso A colônia não pode abafar Que se diria Que as alemãs do Ca choeiro são umas perdidas e atiram os filhos aos porcos É muito sério compreendo Os jacobinos de quem o senhor fala tanto Ah a política gritarão como fez o Sr Brederodes Além disso nas outras colônias em Itapemirim Benevides por toda a parte os nossos patrí cios haviam de nos desmoralizar Nada é preciso um exemplo para que se calem Pode ficar tranqüilo que respondo pelo resultado desse negócio E o Promotor Não viu Com a idéia de se vingar dos colonos e mesmo por tolices pessoais perseguirá a tal sujeita até às últimas É cabeçudo O Juiz de Direito esse coitado já se sabe é nosso Sim É meu posso dizer proclamou o negociante batendo com alarde no bolso da calça Pantoja sorriu acompanhando o gesto Quanto ao Juiz MunicipaL continuou o Escrivão É verdade é um senhor cheio de maçadas esse Dr Maciel Não faça caso Um imbecil Dáse um berro com ele e tudo vai direito E depois temos o Itapecuru e as testemunhas E eu esse seu criado que mói a mandioca concluiu com jactância o cabra Sim perfeito ninguém discrepa Bom adeus não esqueça a carta Pantoja e o alemão separaramse seguindo direções diversas Mas logo o maracajá voltou sobre os passos e gritou para o outro C A N A Ã Iame passando Depois aproximandose abaixou a voz Tenho precisão urgente hoje de cem milréis Apareça Muito obrigado Não é para mim ajuntou pressuroso É para a caixa do partido A cadeia do Porto do Cachoeiro resto do antigo povoado já existente antes da colonização talvez fosse a mais velha e pior habitação da cidade As paredes eram negras e as grades enferrujadas da janela quase soltas den tro dos buracos da cravação Um corredor dividia a casa ao meio de um lado a prisão e do outro o alojamento dos dois únicos soldados que ser viam de guardas efetivos aos detidos O carcereiro aí aparecia raramente tinhamlhe dado como é o hábito no país o emprego para remunerar serviços eleitorais em que era excelente Entre presos e soldados havia a mais relaxada camaradagem Os acusados passavam nessa casa apenas co mo por uma estação durante o processo depois de condenados eram re metidos para as prisões da capital Mas o que sofriam esses miseráveis qua se sem alimento dormindo sobre estrados de madeira sem roupas numa promiscuidade animal ao frio à umidade e numa incrível imundície Maria não compreendia bem por que a prendiam A inteligência nela adormecera e apenas de longe em longe lhe vinham vislumbres da exata noção do que tinha acontecido Trazialhe a memória o quadro medonho que os seus olhos uma vez tiveram a suprema ago nia de ver E ela se exaltava se debatia em gemidos de horror em súplicas em choros até que de novo o torpor benfazejo lhe arre batava a consciência Em outros intervalos quando mais calma se sentia sofrer esmagada pelo temeroso peso do mundo e ainda assim fraca acobardada quase a morrer o seu maior tormento era a G R A Ç A A R A N H A desesperada ânsia por seu filho entrevisto tão belo no nevoeiro da vertigem Não tardou muito que Milkau soubesse da sorte de Maria E foi um rugido no seu coração Compreendeu logo por instinto de bondade e pela cristalina claridade da sua alma desanuviada que atrás dessa acusação havia um drama um tecido de cobardia de vingança de es tupidez tão fértil nos humanos E teve pejo de ser homem vergonha desprezo de si mesmo e de tudo o que era vida Chegaralhe o momento doloroso em que o divino sonho se desmancha ao sopro da maldade Tudo o que julgara como o doce convívio da bondade do esquecimento e da paz não era senão o baixo conúbio de todas as vilezas sociais Na tarde desse mesmo dia Milkau disse a Lentz Vou ao Cachoeiro por algum tempo E que te leva lá perguntou o amigo A simpatia pelo destino dessa infeliz rapariga E por isso me deixas Abandonas os nossos interesses a nossa colônia É meu dever como é o teu esse socorro Não compreendo replicou secamente Lentz esperando uma resposta Não compreendes respondeu Milkau com calma Então não vês que essa desgraçada é uma vítima E desde que eu a tenho por tal devo correr para o seu lado Quem sabe da verdade E quando não fosse inocente o seu crime não seria antes a culpa dos que a repeliram e a levaram ao desespero Mas tu não estás em causa pareceme escarneceu Lentz Todo o homem está em causa quando há um sofrimento no Universo C A N A Ã E partiu só No dia seguinte chegando ao Cachoeiro a cidadezinha não tinha mais para ele o encanto daquela primeira manhã em que a saudara como filha do sol e das águas A tristeza que trazia comunicavase à paisagem e toda a antiga maravilha desta se desfazia misteriosa mente Apertado entre duas linhas de morros o povoado parecialhe abafado e condenado a uma irremediável angústia O sol infernal cas tigava sem piedade as habitações e sobre as rochas abrasadas colos sais viamse estampadas a esterilidade e a aridez O rio quase sem água quebrandose nas pedras negras informes fervilhava o seu cachão monótono Sobre as ruas barrentas descalçadas erguiamse olhando para o rio casas desiguais sem arte feitas às pressas como para um povo apenas acampado sobre a terra Eram pequenos sobra dos verdadeiros aleijões dolorosamente nus fazendo ver nas linhas inconscientes figuras deformadas de seres monstruosos E aí na embrionária e abortada cidade a gente grosseira e rude mostrava o ar embrutecido torturado pela ávida cobiça Tudo o que era natureza tinha o aspecto sinistro trágico desolador e o que era humano mes quinho e ridículo O único desejo de Milkau era estar imediatamente com Maria Todavia hesitava com receio de se ver num instante desiludido sobre a inocência dela e de ouvir a lúgubre confissão do crime E agitado trêmulo dirigiase impelido por ímpetos confusos e irresistíveis à cadeia A porta um mulato moço vestido de soldado de farda desa botoada desarmado era o guarda da prisão Milkau pediu permis são para falar à prisioneira O homem sem mesmo se levantar da soleira da porta mostroulhe dali com a mão preguiçosa o cor redor da casa e apontoulhe o quarto onde ela estava Milkau en trou apreensivo G R A Ç A A R A N H A As grades não deixavam penetrar no aposento toda a luz do dia e na minguada claridade viu Maria sentada sobre o estrado que lhe servia de cama Ela muito assustada com a aparição tremia e ne nhum dos dois por algum tempo disse uma palavra Ela curvava humilhada a cabeça sem olhar o homem depois muito branca fitouo implorando misericórdia A compaixão foi crescendo em Milkau ao aspecto miserável da mulher O que fora nesta de gra cioso de sedutor de docemente feminino tinhase apagado e só restava uma triste carcaça uma face lívida donde espiavam cintilantes olhos em que dançava a loucura Sofres tanto não é disse Milkau tateandolhe levemente a cabeça Maria recebeu daquelas mãos e daquela voz um fluido de ternura estranha e de bondade nunca sentida Foi um gozo sutil que ela cur vada como para lhe recolher toda a carícia queria se prolongasse indefinidamente E nos lábios da desgraçada chegou a abotoar um sor riso sorriso infantil e humilde Milkau não esperou que ela falasse Ia por diante arrebatado pela simpatia que o não deixava premeditar nas palavras e nos gestos Sofres Eu sei Mas isto vai acabar Terás ainda tanta felici dade neste mundo Tanta E sentouse na única cadeira que havia no quarto puxando para si a cabeça de Maria que inerte lhe deixou afagar os cabelos tecidos emaranhados e secos como um ninho dourado E sobre os joelhos dele descansou muda submissa a fronte Ele não lhe via a face volta da para o chão mas à medida que falava sentia sobre o corpo a morna umidade das lágrimas É preciso cuidares de ti Erguer o espírito Estás tão fraqui nha e doente Não isto vai acabar Haverá piedade da tua sorte Tu sairás daqui E ainda a felicidade C A N A Ã Instintivamente hesitava em acusála Para que levantar ali o es pectro do crime E ela se reanimava e pouco a pouco ao poder mis terioso da bondade ia surgindo a sua consciência entorpecida Olha Não te abandono continuava Milkau e direi aos outros que a culpa não é tua Sim foram eles os responsáveis Eles te perdoarão confessando a sua terrível falta Porque Não é são os mais culpados Maria estremeceu As lágrimas secaramlhe instantaneamente Milkau prosseguia arrastado pela deliciosa ânsia de confortar Foi num momento de alucinação Não eras tu bem sei Era a loucura Abandonada perdida não quiseste desgraçada que foste ver o teu filho sofrer como tu A miserável ergueu a cabeça e olhandoo firme aterrada recuou para o fundo do estrado Não não murmurou arquejante Eu me compadeço de ti Não tenhas medo disse Milkau querendo atraíla Não vai vai E com o gesto incerto o expelia da sua vista Desgraçada Que te resta se me repeles Vai vai Meu Deus E as mãos ora crispadas se torciam jun tas num aperto ora pesadas comprimiam como tenazes a cabeça Não Eu fico para te salvar afirmou Milkau obstinado Eles não te perdoam Eles te pedirão conta de teu próprio filho Meu filho sim meu filho Que tu mataste Eu Tu Num impulso frenético de arrancar a confissão de tudo saber Milkau alucinado perdiase desvairadamente G R A Ç A A R A N H A Sim tu Assassina Não Meu filho Não Não me lembro bem Arrancaramno de mim para o devorar Oh meu Deus é horrível E os seus olhos pungentes e frios atravessaram os de Milkau que espantado confuso emudecera Agora era ela que falava Assassina Meu filho Oh Por que me vem perseguir na minha miséria Oh Deixeme deixeme A cólera de Milkau abrandara em presença desse desespero e humilhado ele se arrependia do seu transporte inconsciente Maria recomeçou com uma voz apagada eu te peço por tudo que amas dizeme que estavas louca que não eras tu quando mataste teu filho Dizeme Deixeme Deixeme murmurava sufocada a pobre Não Fico Devo ficar É para o teu bem Hás de me dizer tudo Maria ficou acobardada sentindo a enérgica decisão com que foram ditas essas palavras O seu espírito frágil debateuse ainda para lutar mas apenas pairou um momento livre e logo caiu vencido aniquilado aos pés do dominador Quero saber quero insistia Milkau A rapariga esperava submissa Por que não me chamaste em teu socorro quando te viste desamparada perseguida Por quê Não confiavas em mim Tinha medo Vergonha disse com uma voz imperceptível Vergonha E por isso Calouse pensativo tomado de uma tristeza infinita Natureza humana Vergonha disseste E por isso mataste teu filhinho miserável teu filhinho Mas eu não matei ninguém gritou num esforço a infeliz Não negues Eles te acusam C A N A Ã Eles são maus E quem matou Anda responde suplicou angustiado Milkau Ela obedeceu Quando foi Pensei estar tão longe Pensei estar morrendo E depois Ouvi ao meu lado a vozinha dele Chorava Meu Deus Depois um roncar de porcos em roda de nós Depois eles o carregaram e foram comendo comendo Estes fragmentos de frases eram bastante para aclarar o espírito de Milkau e a espantosa cena se lhe representou exata na imaginação aguçada pela simpatia E então iluminado de novo chamoua a si ca rinhoso e terno Vem Escuta A essa voz cheia de meiguice ela se aproximou dócil e abandon ada Curvouse outra vez sobre os joelhos dele e ali na infecta e tenebrosa prisão os dois desgraçados foram recompondo tudo lugu bremente Tu te sentiste desfalecer Uma vertigem derruboute E os porcos Vieram O sangue corria A criança a criança Chorava aos teus pés E os porcos Arrebataramna Meu filho Tu despertaste e viste ao longe teu filho ensangüentado aos pedaços nos dentes dos porcos Meu filho G R A Ç A A R A N H A Perguntaramte por ele Não te escutaram Acusaramte pren deramte E agora amaldiçoada presa Nada mais me resta nada mais Desde aquele momento a vida de Milkau transformouse de novo Todas as forças do seu coração votouas à defesa e salvação de Maria O processo demorava e enquanto não começava Milkau não desam parava a desgraçada Fazialhe amiudadas visitas e sendo ela a única prisioneira os guardas deixavamlhe liberdade de entrar na detenção quando quisesse Maria chegou a sentirse feliz na sua miséria Longos momentos havia em que presa à voz à doçura do amigo fica va deliciosamente esquecida do próprio infortúnio Por sua vez ele vendoa diariamente encantavase em sondar essa alma primitiva rica de emoção e de bemaventurada ingenuidade Nas conversas narravalhe sempre as suas viagens e a sua vida de peregrino no mundo Tudo ela ouvia com sofreguidão acompanhando fielmente os casos por ele praticados ou conhecidos Ora erravam nas pequenas cidades do Reno e ressuscitavam lendas Subiam aos Alpes gelados e guardavam nas pupilas as cores maravilhosas do sol a morrer Ora nas grandes cidades tumultuosas sem piedade onde há fome Ou no mar balançados pelos ventos arrastados pelas tempestades E ainda no mar glacial esclarecido vagamente pela lua e brancos navios avolumados na fosforescência da noite a passarem sinistros para se mergulhar sumir engolidos pela treva insondáveL E ela como sombra sempre o seguindo sempre atrás Outras vezes não contava lialhe poemas de que ela não percebia bem o sentido mas a cuja misteriosa música vibrava chorando perdidamente sem saber por quê C A N A Ã Na cidade Milkau começou a ser notado e a princípio com curio sidade depois com rancor acompanhavam a sua estranha conduta Formaramse ali como se formariam em qualquer parte do mundo as mais indignas conjeturas Acreditouse que era ele o amante de Maria e um ódio coletivo não poupava o homem que se ligava ainda talvez como cúmplice à mulher que lhe matara o filho Todos o evi tavam em casa de Roberto Schultz seu correspondente para os fornecimentos da colônia era tratado com desdém e Milkau na sua força na sua superioridade amorosa resignouse a ser o inimigo co mum E assim repelido pelos outros quando não ia à cadeia passea va solitário pelos arredores do povoado Dias depois Felicíssimo chegou ao Cachoeiro e alojouse no mes mo hotel em que estava Milkau O cearense com a sua índole franca e bondosa não participava do preconceito da cidade e indiferente a isso era o companheiro de Milkau nos passeios e com inquietação amiga observavalhe os silêncios profundos De volta de uma dessas caladas excursões entraram uma manhã na cidade e viram um movimento desacostumado na rua principal Às portas das lojas e nas calçadas a gente do lugar e os tropeiros e colonos do centro seguiam pasmados um grupo que passava Era Maria ladeada dos dois soldados que ia responder ao processo Vinha transfigurada e à claridade do dia a sua lividez era cadavérica os olhos postos no chão tinham grinaldas roxas e na boca morrialhe um nenúfar bran co úmido gelado Milkau comovido mudo deixou passar aquela visão que lhe pare cia o fantasma da Inocência levada para o martírio Ao longe ela se foi perdendo apagandose Milkau abandonou Felicíssimo e preci pitouse no encalço para o Juízo O agrimensor compadecido não procurou detêlo G R A Ç A A R A N H A Depois da primeira audiência seguiramse outras a que Milkau não faltava As testemunhas depunham contestes contra Maria A trama esta va bem tecida e fatalmente a acusada não poderia rompêla Pedro Maciel era o juiz da instrução dirigindo desprevenido e inteligente o processo com uma inútil cordura A persistência de Milkau tornavao um familiar das audiências e muitas vezes depois de acabado o trabalho Maciel entretinhase muito à vontade com ele Por seu lado Milkau achava o Juiz Municipal uma esplêndida natureza e o ia estimando Não era seguramente a posição do magistrado que o atraía Quando estava diante de outro homem Milkau imaginavase no deserto o seu espírito eliminava todas as separações que vêm da sociedade e instintivamente não conhecia as vãs distinções de posição de fortuna de família de raça Apenas via um ser igual que tratava sempre com simpatia e às vezes com respeito quando pela sadia inteligência pelo sofrimento augusto pela superioridade moral esse homem lhe inspirava tal sentimento Os dias dessa acabrunhadora vida no Porto do Cachoeiro se iam sucedendo sem alteração para Milkau quando voltando da cadeia uma tarde encontrou Felicíssimo muito sobressaltado Que desgraça que desgraça foilhe dizendo abrupto o cearense Que foi perguntou Milkau interessado Uma desgraça O pequenino Fritz o filhinho de Otto Bauer acaba de ser esmagado por um barril de vinho no armazém do pai 30 Que horror Pobrezinho E onde está Ali mais abaixo apontou Felicíssimo Em casa deles Fui chamar o médico e volto para lá Vamos Quando chegaram a casa estava em alvoroço A notícia tinhase espalhado e muita gente apiedada viera aglomerarse aí invadindo C A N A Ã com a familiaridade da compaixão o aposento onde deitada em uma mesa a criança morria A mãe ainda jovem debruçavase sobre ela devorandoa com os olhos numa dor sombria confusa de animal O pai vagava a tremer pela sala atordoado com o desastre Ouviamse lamentos e choros em roda O pequeno Fritz agitava de vez em quando os bracinhos estrebuchando Pelos cantos da boquinha escarlate saíam espumas de sangue Os olhos azuis arregalavamse desmedidos e as pupi las imensas de tão dilatadas parecia não lhes caberem mais A cabeça estava intacta o esmagamento tinha sido no tórax Pobre criança gemeu Milkau não duvidando da morte E atrás dele uma voz lhe pediu Veja se dá um remédio para a salvação Milkau voltouse e fitou Joca Este tinha o ar trágico de um sátiro em dor A criança era o carinho do tropeiro quando ele vinha à cidade Os pais lha confiavam aos seus desvelos quase maternais e o cabra sentiase desvanecido feliz quando o trazia nos braços de loja em loja ou quando lhe dava com o cuidado de uma ama a mão na rua para ir ensaiando os passinhos vacilantes Milkau ficou sensibilizado vendo aquela face de homem primitivo e bárbaro molhada de lágri mas e sem a menor esperança fez com auxílio do tropeiro alguns curativos O médico não tardou Viu o que estava praticado e sacu dindo a cabeça murmurou Era o que se podia fazer Não há mais nada E nas tenebrosas torturas da meningite morreu o pequeno Fritz Na vigília da noite eram todos os que guardavam o cadaverzinho muito silenciosos divagando em cismas De fora vinha pelas janelas abertas o doloroso mugido da cachoeira Pouco a pouco o silêncio em que estavam e a fadiga do coração foi entorpecendo e adormecendo a quase todos E na frouxa claridade das velas mortuárias desenhavase G R A Ç A A R A N H A fugitivamente O vulto de uma velhinha a bisavó do pequenino quase extinta incorpórea de uma transparência vítrea a vida só nos olhi nhos limpos e de uma cintilação sinistra A mãe de Fritz também fechou os olhos e o sono lhe foi vindo ao tempo que a respiração ofe gante moderava e as cores rubras das faces inchadas se iam apagando até uma palidez absoluta Depois a fisionomia serenou tomando uma expressão sossegada e feliz Era uma bela mulher de uma ca beleira farta e negra com um perfil delicado e fino Tudo nela ex primia saúde e força e a dor lhe vinha como uma hóspeda estranha e importuna Os que ainda alerta a contemplavam tiveram uma pun gente tortura vendo essa mãe bonita e moça dormindo a sorrir vol tada para o filho morto No canto da sala uma imagem de Nossa Se nhora iluminada por uma lâmpada presidia a morte A família católica revelavase E Milkau refletia diante do admirável símbolo Tinha a impressão de que todo o culto se ia restringindo em torno da Virgem Maria Lembravase das catedrais dos templos onde passara e onde sempre os altares dEla atraíam mais os corações das gentes enquanto os outros mesmo os do Cristo ficavam quase deser tos E por quê Talvez pela maior conformidade entre o gênero hu mano e a mulher E essa tendência universal para divinizar exaltar as deusas as santas não vinha acaso de longe de muito longe não esta va agora em plena culminância no culto de Maria que ia insensivel mente apagando absorvendo todos os outros Toda a noite passou Milkau a confortar a família Ele estava também esmagado e abatido E quando olhava o mortozinho cismava É dolorosa ainda mais do que as outras a morte de uma criança É a dor diante do inacabado do apenas ensaiado do que nos ia com pletar Não viver E os que morrem sem ter vivido os que foram apenas esboços da existência deixamnos uma piedade torturante C A N A Ã Quando morre uma criança nós também morremos um pouco nela porque aí morre uma ilusão nossa No outro dia foi o enterro Toda a gente da cidade numa espon tânea unidade de sentimentos participava de um mesmo pesar tor nando a tristeza coletiva A manhã era límpida lavada e azul Uma banda de música alegre ruidosa como nos enterros de anjos puxava o préstito em que o povo vinha sorumbático e lúgubre Foi um luto geral na povoação espantada com a catástrofe as escolas fecharamse e grupos de meni nos vestidos de branco enfileiraramse alongando o cortejo os ar mazéns também cessaram o trabalho e de todas as casas e lojas vinha gente incorporarse ao enterro mesmo os inimigos e competidores do pai de Fritz que traziam flores suspendendo constrangidos e ater rados os seus ódios As autoridades brasileiras vieram exceto Brederodes que não per doava ao estrangeiro nem mesmo na desgraça E a marcha ia nessa mistura de amargura ruído e música alegre desenrolandose pela rua principal do povoado Entre os que carregavam o esquife estava Joca a mirar embevecido o seu amado menino vestido de marinheiro e embarcado como num brinco infernal naquela gondolazinha dourada e vermelha em viagem para o céu Quando deixou a rua à margem do rio o enterro tomou a direção da cadeia que ficava perto do cemitério Lá à prisão chegou primeiro matinal e alvissareira a música e Maria que tudo ignorava sentiu uma fresca claridade nalma com aquelas carícias do som imortal E des percebida atraída por ela veio à grade e pôsse a mirar O enterro vinha vindo marcial e solene Maria espreitava o seu olhar de aluci nada saía violento pelas grades da prisão e repousava ardente no morto Afinal ali na morte passava o triunfo a vitória da força e da G R A Ç A A R A N H A felicidade Ela ouvia agora confundidas na harmonia dos sons ou tras vozes abafadas cavernosas Vinham de longe do desconhecido mas tão persistentes tão terríveis que dominavam os cantos dos instrumentos E Maria na sua sensibilidade desvairada ia ouvindo ia vendo o enterro do próprio filho levado pela música macabra do resfolegar dos porcos Com o rosto descomposto os cabelos pen dentes a boca cerrada numa contorsão ficara hirta agarrada às gra des Da multidão só Milkau olhava para ela tomado de uma com paixão infinita Os mais apavorados e rancorosos desviavamse da figura infernal da desgraçada A colônia passava unida na piedade como no ódio 1 0 P aulo Maciel agora depois das audiências do processo arrastava Milkau diariamente à sua casa e em longas e nobres palestras dignas de homens a amizade se ia formando entre eles Para Maciel sobretudo que se sentia separado de todos daquela terra esses momentos eram sagrados tinham o perfume da liberdade e jamais depois que o doce veneno da dúvida lhe corrompera a alma fora ele tão feliz e fecundo 31 Não vejo meio de evitar um mau desenlace ao processo disse o magistrado logo que se encerraram no escritório respondendo a uma pergunta de Milkau Como Está convencido da culpa de Maria Perutz perguntou Milkau inquieto Meu amigo não estou convencido de coisa alguma Apenas lhe explico que pelos depoimentos pela prova dada a pronúncia é fatal e a condenação Mas testemunhas cortou Milkau vêm insinuadas foram indus triadas para essa desgraçada conclusão A quem o diz É sempre assim entre nós não há um processo em que se possa fazer justiça Digolhe isto eu que sou juiz Que exprimem as C A N A Ã uma virtude conservadora não há um fundo moral comum Posso acres centar mesmo não há dois brasileiros iguais sobre cada um de nós seria fútil erguer o quadro de virtudes e defeitos da comunhão Onde está mudando de ponto de vista a nossa virtude social Nem mesmo a bravu ra que é a mais rudimentar e instintiva nós a temos com equilíbrio e constância e de um modo superior A valentia aqui é um impulso ner voso Veja as nossas guerras de quanta cobardia nos enchem a lem brança Houve tempo em que se proclamava a nossa piedade a nossa bondade Coletivamente como Nação somos tão maus tão histerica mente inutilmente maus Calouse como levado a tristes recordações Milkau compadecido das torturas daquela alma de brasileiro fitavao com imensa simpatia Repare o que se passa com o patriotismo prosseguiu depois Maciel No Brasil a grande massa da população não tem esse sentimen to aqui há um cosmopolismo dissolvente não que seja a expressão duma larga e generosa filosofia mas simples sintoma de inércia moral indício da perda precoce de um sentimento que se devia casar com o estado atra sado de nossa cultura Note que os poucos patriotas que temos são ainda homens de ódios de sangue enfim logicamente selvagens Não há dúvida ponderou Milkau interessado nesta análise franca de Maciel que há profunda disparidade entre as várias camadas da popu lação E a falta de homogeneidade será talvez a maior causa deste dese quilíbrio desta instabilidade O juiz refletiu e debruçandose um pouco sobre a mesa voltado para Milkau replicou a este num tom mais decisivo e vibrante Tem razão O aspecto da sociedade brasileira é uma singular fisiono mia de decrepitude e de infantilidade A decadência aqui é um misto doloroso de selvageria dos povos que despontam para o mundo e do esgo tamento das raças acabadas Há uma confusão geral As correntes da G R A Ç A A R A N H A imoralidade vagueiam sobre a sociedade e não encontram resistência em nenhuma instituição Uma tal nação está preparada para receber o pior dos males que pode cair sobre o mundo a geração dos governos arbi trários e despóticos Se a sociedade é uma obra de sugestão que se pode esperar dos sentimentos da idealização das massas incultas quando a imaginação delas é deslumbrada pelo espetáculo da mais desbragada per versão dos governantes Que reações sobre cérebros obscuros não provo cará o desamor desses condutores das gentes ao ideal às coisas supe riores e seu apego às posições e ao ganho E não é só o Governo É a ma gistratura subserviente e aparelhada para explorar os restos da fortuna privada são os funcionários os militares o clero tudo num declive em que se vão resvalando horrivelmente deformados Levantouse muito nervoso abriu a janela que dava para o rio e pôs se a mirar absorto e vago a cachoeira enquanto a claridade da tarde mansa e suave invadia o aposento Milkau sem se mover do seu lugar encheulhe os ouvidos de louvores à natureza E Maciel voltouse Ainda é uma vantagem viverse na roça nesta hora tenebrosa Ao menos temos a benignidade da calma e a tranqüilidade da família E por quanto tempo não sei O clima A peste se apodera do corpo miserável da Nação A família vem sendo demolida pela força impe riosa dos vícios Parou e como resumindo todas as suas decepções e anelos murmurou num desalento O meu desejo é largar tudo isto expatriarme abandonar o País e com os meus ir viver tranqüilo num canto da Europa A Europa A Europa Sim ao menos até passar a crise E quando ia sendo arrebatado pela expansão dos seus mais Íntimos anseios Maciel contevese com esforço ficou repentinamente mudo CANAÃ fitando com os olhos vermelhos e úmidos o estrangeiro Milkau faloulhe com brandura e as palavras caíam frescas e consoladoras sobre os campos desertos daquele coração Não quero diminuir disse ele a exatidão dos seus conceitos Mas lembrese de que não há sociedade sem abalos Ou melhor que não há nada fixo e eterno tudo vai de passagem tudo está sempre em crise pro curando perpétuas e incessantes combinações de ser Por outro lado esse terror que nos vem dos acontecimentos presentes é também um pouco uma questão de perspectiva Quando estamos dentro deles tudo se mostra grandioso ou ridículo terrível e formidável tudo parece ir acabar numa desagregação irremediável mas no futuro eles minguam à força de distância parecem normais e suaves e nós começamos a louválos como uma engenhosa e admirável expressão dos melhores tempos que são sempre os passados Deixa que lhe repita uma velha imagem É assim como se estivéssemos no mar no meio das ondas e dos ventos o es petáculo do oceano enchenos a alma de terror porém depois que o atravessamos e o olhamos de longe as ondulações das vagas são como um leve sorriso E Maciel também sorriu festejando a metáfora Muito bem replicou tornandose subitamente jovial mas aqui se passa uma verdadeira tormenta É natural e não podia ser de outro modo Do que tenho observado e adivinhado um pouco é ela conseqüência da primitiva formação do País Desde o princípio houve vencedores e vencidos sob a forma de se nhores e escravos desde dois séculos estes lutavam por vencer aqueles Todas as revoluções da história brasileira têm a significação de uma lu ta de classe de dominados contra dominadores O povo brasileiro foi por longos anos apenas uma expressão nominal de um conjunto de raças e castas separadas E isso se manteria assim por muitos séculos se a forte e C A N A Ã o pequeno mundo da colônia tangido pelo Escrivão representouse no espírito de Milkau como um resumo bem claro de todo o País Todos os nacionais que ali dominavam saíam fatalmente do núcleo da fusão das raças enquanto aquele jovem de uma inteligência mais frna de uma sen sibilidade maior e mais distinta era aniquilado vencido pelos outros Tinha razão Faltavalhe a gota de sangue negro para que tudo nele se equilibrasse Vê meu amigo É fatal disse Maciel negligentemente não há sal vação possível para o nosso caso é uma incapacidade de raça para a ci vilização Oh não Isto não se pode concluir dos meus pensamentos A crise da cultura aqui é motivada pela divergência dos estudos de civilização das várias classes do povo É preciso um pouco mais de identificação como dolorosamente já se está fazendo Não há raças capazes ou incapazes de civilização toda a trama da História é um processo de fusão só as raças estacionadas isto é as que se não fundem com outras sejam brancas ou negras se mantêm no estado selvagem Se não tivesse havido a fatal mis tura de povos mais adiantados com populações atrasadas a civilização não teria caminhado no mundo E no Brasil fique certo a cultura se fará re gularmente sobre esse mesmo fundo de população mestiça porque já houve o toque divino da fusão criadora Nada mais pode embaraçar o seu vôo nem a cor da pele nem a aspereza dos cabelos E no futuro remoto a época dos mulatos passará para voltar a idade dos novos brancos vin dos da recente invasão aceitando com reconhecimento o patrimônio dos seus predecessores mestiços que terão edificado alguma coisa porque nada passa inutilmente na terra O País será branco em breve suspirou Maciel quando for con quistado pelas armas da Europa G R A Ç A A R A N H A E Milkau disse ao brasileiro Essa Europa para onde daqui se voltam os vossos longos olhos de sonhadores e moribundos as vossas cansadas almas cobiçosas de felici dade de cultura de arte de vida essa Europa também sofre do mal que desagrega e mata Não vos deixeis deslumbrar pela exausta pompa da sua civilização pela força inútil dos seus exércitos pelo lustre perigoso do seu gênio Não a temais nem a invejeis Como vós ela está no desespero consumida de ódio devorada de separações Ainda ali se combate a velha e tremenda batalha entre senhores e escravos Não há calma para a cons ciência não há tranqüilidade no gozo quando ao vosso lado sempre alguém morre de fome É uma sociedade que acaba não é o sonhado mundo que se renova todos os dias sempre jovem sempre belo E ainda para manter tais ruínas os governantes armam homens contra homens e entretêmlhes os ancestrais apetites de lobos com a pilhagem de outras nações Tudo que se apresenta à flor da vida não corresponde mais aos fun damentos da Vida As leis nascidas de fontes impuras para matar a liber dade fecunda não exprimem o novo Direito são o escudo perturbador do Governo e da riqueza e quem diz autoridade diz posse diz servidão e destruição Por tais leis os povos chegaram a esse excesso de grandeza que é o primeiro toque da decadência Por elas tudo se baralha toda a huma nidade parece sem raízes na terra passando como se estivesse para mor rer sem cuidar dos que vêm surgindo após Está vacilante inquieta nesse momento indeciso em que não teme mais a justiça vingadora e póstuma que amedrontava no passado os espíritos e nem pratica a maravilhosa jus tiça que vai chegar amanhã para dar a todos o que é de todos N ada corresponde ao Tempo O espírito que morreu ainda anima debilmente o mundo As raças deixaram de ser guerreiras e ainda se armam Os povos abandonaram a religião e conservam os templos e o sacerdócio A arte não exprime a vida nem a alma do momento C A N A Ã a poesia voltase para o passado e a sua língua sutil fina e mesquinha sem seiva nem vigor não é a lâmina poderosa e refulgente onde se reflete a imagem dos novos homens E por tudo isto que enlanguesce e definha passa o veneno sensual mórbido e pérfido tirando a força ao homem e a bondade ao leite da mulher Não a temais que vos não pode escravizar antes que se erga contra vós ela se despedaçará Não longe os seus exércitos não se poderão mover pois como a essas figu ras carbonizadas desentranhadas da terra do passado um sopro de vento os reduzirá a pó o sopro benfazejo que tudo invade tudo ven ce como o bafo sagrado das divindades do futuro e que são as forças redentoras da ciência da indústria da arte da inteligência do ódio e do amor e de mil outras potências ainda incógnitas misteriosas e san tas E já as posições vão sendo tomadas insensivelmente pelos que as desprezam É um grande mal disse involuntariamente Maciel numa voz imperceptível É o primeiro passo e um grande bem Que o Exército a Magis tratura o Governo o Parlamento a Diplomacia a Universidade e tudo mais que deva finar caia nas mãos dos que julgam tais instituições como instrumentos do mal criações grosseiras ou ridículas Então os exércitos não marcharão Não será a conquista fatal do País onde isto primeiro se der arriscou o jovem brasileiro Se tais conseqüências resultarem serão tão fugazes e passageiras que não devemos delas cogitar O domínio do vencedor dessas lutas inferiores será instantâneo porque aquelas forças da ressurreição se comunicam invisíveis entre os homens do nosso grupo de cultura e conduzem ao mesmo resultado neste sistema planetário onde destacandose da nebu losa inicial entrou o Brasil para sofrer conosco os mesmos sacrifícios as G R A Ç A A R A N H A mesmas transformações e numa semelhança de destino mais funda que aparente sonhar os mesmos sonhos Quando Milkau partiu o juiz ficando só cismava em tudo o que acabava de entrever deliciosamente nesse mundo a transfigurarse nes sas ânsias para novas e mais belas expressões da vida nessa esperança luminosa e feiticeira E apesar do deslumbramento da visão as atribu lações do momento venciamno Tudo desmorona em torno de mim Já ninguém aqui se entende e não tarda que eu mesmo seja estranho a tudo e nada mais sinta de comum com aqueles que são os homens de minha terra O que me resta é ainda este sossego da família este amor de mulher que me conforta e esta criança que nos rejuvenesce enquanto lá fora tudo vai desabando Não ouvindo mais rumor de conversa no escritório do marido a mulher de Paulo Maciel entrou aí discretamente como tinha por hábito todos os dias antes do jantar Era esbelta magra e ainda muito jovem A palidez bra sileira doentia e diáfana dilatavalhe os olhos negros faiscantes Sentouse no seu lugar de retiro e daí arrancando o marido das cismas em que esta va foise reclinando suavemente para ele Maciel eternamente fascinado por ela acalmouse e sem demora esquecido de suas devastadoras angús tias e débeis revoltas foi em sussurro entretecendo com a companheira co mo em fios de brando e macio cabelo de mulher uma doce e infrnda con versação A noite vinha vindo avançando e estendendolhes em silêncio os braços cheios de ternura misteriosa E tudo foi uma volúpia casta e sutil Mas não tardou que passos miúdos e velozes os sacudissem desse vaporoso adormecimento e logo invadisse o aposento a figura em desor dem de uma criança Trazia as faces vivas e acesas tremialhe o narizinho os cabelos vinham debandados e pela testa corria um suor gelado Caiu nos braços da senhora vibrando abafada C A N A Ã Mamãe Esta aflita e estupefata olhandoa sem ver recolheulhe ansiosa o cor pinho Glória Glória murmurou O marido achegouse a ela e tomandolhe uma das mãos beijou a criança Sosseguem Esta palavra foi dita varonilmente e trouxe lágrimas à mulher como uma reação de alento e Glória a criança enterrou mais a cabeça no colo onde se agasalhara Neste momento entrou no aposento a criada que agitada começou a explicar a angústia da menina reconstituin do com largos gestos e grandes vozes quase numa algazarra um epi sódio da rua Passeavam ambas quando uns imigrantes mendigos se acercaram delas pedindo esmola Algumas mulheres do bando dese javam com mãos descarnadas apossarse das jóias da menina e uma mais ousada beijoulhe o rosto e enquanto forçava por tirarlhe a pul seira o filho arrancoulhe o laço de fita correndo numa gargalhada de triunfo A criada defendera Glória repelindo o grupo com o chapéu desol mas à sua energia tonta correspondera uma vozeria desbraga da Se não fosse a intervenção de dois homens que passavam a luta não se terminaria logo Mal puderam escapar partiram desvairadas para a casa no meio de imprecações de fúria Durante a narração a moça segurava a menina pela cabeça beijandolhe freqüentemente os amortecidos olhos de sonâmbula Paulo Maciel para diminuir nesta o natural e invencível horror aos pobres tentou disfarçar o acontecimento sorrindo daqueles sustos A criança encarouo indecisa O medo davalhe o justo sentimento do real e tornava vãs as palavras Procuraram distraíla e desviar para coisas alegres e diversas a sua atenção pois já aos cinco anos uma precoce e mórbida fantasia eralhe G R A Ç A A R A N H A doença d alma A invenção dos grandes não foi feliz e fértil naquele momento as idéias lhe fugiam eles paravam cismavam e apenas como recurso lançavamlhe ao argumento que nunca trai beijos que foram então arquejantes A grande calma do crepúsculo aquietavalhes como num remanso as perturbações e só a menina de vez em quando tremia segurandose à senhora a quem não sobrava regaço para ocultála e abrigála mais e envolvêla com os braços perfidamente maternalmente Tenho medo mamãe Depois um soluço histérico outro mais outro sucedendo uma mo dorra interrompida de instante a instante pelo crispar de suas garrazinhas aferradas aos pulsos da senhora que tentava inutilmente adormecêla Os seus sentidos saíam do pesadelo numa dolorida expressão de susto e de fadiga Levantou a cabeça fitou os outros com um sorriso leve melan cólico que traduzia uma imensa agonia rudimentar inconsciente a indizível tristeza das almas rudes primitivas ou infantis Moveu os lábios como quem ia falar e os dois esperaram em súbita transformação de alívio a sua voz Ah nós também fomos como eles hein mamãe murmurou Glória brandamente A mulher de Maciel a princípio não percebeu toda a extensão daquele pensamento mas do pouco que compreendeu ficou aterrada Maciel que estava a ler deixou cair o livro e enfiou olhos agudos na menina Sim mamãe há muito tempo longe noutra terra Nós andávamos na rua toda a hora dormíamos na rua você me carregava quando eu não podia mais papai me dava tanto A sua fisionomia transfiguravase com essa recordação e em êxtase voltada para a janela parecia buscar dias passados Os outros cismavam Você se lembra quando a gente não tinha que comer e ia pedindo di C A N A Ã nheiroVocê me beliscava para eu chorar e me empurrava dentro das lojas para pedir comida Glória disse Maciel que tolices são essas Não fales nisso A menina moveu para ele o rosto Quedouse um momento calada obedecendo à intimação Ouviuse um grande suspiro Mas daí a pouco como que irresistivelmente Ah que frio fazia lá Aqui não se treme não cai neve Por quê mamãe Você se lembra daquele chapéu que você tirou do menino na rua e me deu Ih correram atrás de nós não foi mamãe Mas nós nos escondemos naquela casa escura e eu fiquei com o chapéu bonito Glória Glória teve a moça forças de exclamar Paulo Maciel levantouse convulso tomoua ao colo e mostroulhe uma estampa que tirou precipitadamente do armário Que bonito Não se conteve a criança Me dá papai Dou se não disseres mais tolices Ela pagoulhe com um beijo Voltaria à realidade o seu espírito desanu viado das névoas que o envolviam pensou Maciel E pousou Glória no chão com a gravura A criança porém pouco se demorou em admirála voltou à senhora que estava a chorar Mamãe não chore Você tem tanto dinheiro Você não apanha Não é papai Faziase escuro A criada tardava em trazer o candeeiro No completo repouso da casa à sombra que abafava os últimos clarões da luz a figura e as palavras de Glória como a imagem e a voz de um passado horrível que ressurgia em meio da felicidade tinham ares de monstros E ainda assim Maciel gozava um absurdo e requintado prazer intelectual naque las tenebrosas visões da criança Você não era assim mamãe como agora boa para mim Eu não ti nha boneca não tinha criada nem cama Andava suja Não era Você não G R A Ç A A R A N H A errante desalentavao e imortal e infinito mergulhava o espírito no tempo imemorial e tremia de tristeza E assim na região do silêncio as ânsias da criação agitaram o homem forte O princípio da vida o ímpeto de repetirse eternamente erguiase nele súplice e imperioso Lentz quis que as suas forças Íntimas e essenciais desagregandose se fra cionassem em parcelas imponderáveis e invisíveis como partículas de luz numa misteriosa fecundação do Nada Ansiado inquieto doloroso delirava e uma ilusão perversa descortinava a sua imagem multiplica da em miríades de corpos formosos e serenos como a geração de um deus Deliciouse extasiado nos olhos da sua raça nos cabelos nos mem bros e traços de glória em que cada um resumia a beleza e a força do Universo E tudo era belo e tudo era bom porque tudo era ele Depois não tardou a chegarlhe a invencível monotonia de se ver a si a si indefInidamente No desespero quis voltar ao incriado extinguir tudo e gerar novos seres que não fossem a sua imagem que não fossem divinos que gemessem que morressem e fossem humanos O criador lutou com o próprio espírito e o espírito como uma força diabólica in destrutível venceuo criando sempre a mesma expressão sem ele só Ele E as formas que saíam da força solitária e desdenhosa acompa nhavamno eternas e fatais Lentz horrorizavase de se ver a si mesmo numa multiplicação infernal Do alto da montanha onde chegara pre cipitouse fugindo da multidão de fantasmas que o perseguiam amo rosos e escravos e que eram ele sempre ele Aproximouse do rio voou sobre este num impulso de salvação num desejo estranho de aniquilamento de alívio e parou Sobre o cristal das águas a sua ima gem o espreitava para o seguir ainda na morte E o delírio se repetia sob mil terríveis combinações nos dias serenos que abrasavam a alma frágil e desvairada do solitário E quan do nas noites sossegadas os tormentos da nova vida sobrehumana C A N A Ã não o mortificavam ele penetrava na solidão infecunda do espírito e errava pelo deserto ululando amesquinhado e cobarde Implorava a companhia tenebrosa do vento e o vento se calava àquela invocação satânica com os olhos ardentes e devoradores buscava em vão rea nimar as coisas que adormeciam A lua voltava para ele a sua lívida face de cadáver Um movimento de piedade trouxe Milkau à colônia Durante todo aquele tempo não esquecera o seu companheiro de destino E quando houve uma parada no processo veio ao Rio Doce Era ainda madrugada quando entrou no prazo e logo no jardim abandonado invadido pelo mato que não perdoa e está sempre atento ao descuido do homem Milkau adivinhou tudo A casa estava aberta e derrubado no chão ador mecia pesado o corpo de Lentz Permaneceram juntos na colônia até o dia seguinte O contato de Milkau alevantava e restabelecia o espírito do infeliz E agora num incomensurável pavor da solidão este se ia deixando governar pelo instinto da ligação universal e prendiase numa afeição estranhada e decidida a Milkau que o chamava ao Cachoeiro à defesa e ao consolo do sofrimento Um raio da luz que irrompia do martírio de Maria chegou a Lentz que obedecendo ao poder do inconsciente contra que tanto lutara curvou a cabeça e seguiu o amigo Na estrada quando tudo se animava à passagem deles e ventos e pás saros e árvores cantavam em volta Lentz recapitulando a curta história da sua desilusão dizia consigo Ah como tenho saudades dos meus sonhos de audácia dos meus desejos de ambições E tudo isto que eu e ele ambicionávamos fazer é nada Encontramos no nosso caminho a dor mesquinha e poderosa e ela nos guia e nos transforma G R A Ç A A R A N H A Toda a maldade nele era obra da imaginação refletia Milkau acom panhandoo com o carinho dos olhos Mas não é a idéia que governa o homem é o sentimento A nossa força individual não é nada em com paração à força acumulada na vida Que pode um só contra a corrente imperiosa e dominadora formada pelas primeiras lágrimas descendo das origens do mundo avolumandose tudo arrastando tudo vencendo até que um dia seja um perene preamar de bondade e doçura Que pode o homem insignificante e inútil erguer para desviar o curso o Ímpeto da piedade e da simpatia Chegando ao Cachoeiro foram logo à cadeia Durante a ausência de Milkau tinha conhecido Maria uma nova tortura a que sai das perse guições da sensualidade Com a sua brancura com a estranheza da sua raça ela vinha já de algum tempo alvoroçando os soldados negros A princípio o aspecto severo da desgraça os afastara envolvendoa num círculo de respeito e de proteção imperceptivelmente porém a con vivência e a familiaridade foram permitindo que neles se erguesse o desenfreado desejo Procuraram seduzila comunicandolhe por instin to a lubricidade mas quando a viram insensível e obstinada nas suas recusas fugindo ao velho costume da prisão onde as mulheres encar ceradas eram amantes dos guardas enfureceramse e empregaram para vencêla o medo a força e a crueldade As suas noites eram agitadas escapando ela sempre de ser violada pelos soldados assanhados e bêba dos Debatiase nas mãos deles e salvavase ou pela disputa sensual da posse que entre os dois pretos se formava ou pelo alarido levantado diante do qual se recolhiam cobardes e espavoridos E os dias que lhe concediam eram para vingar as lutas da noite obrigandoa a trabalhar para eles como uma escrava dandolhe pancadas negandolhe alimento E Milkau agora na frouxa luz da prisão notava surpreendido quão ter rível fora a devastação da miséria no corpo da rapariga Não se engana C A N A Ã va ele sobre a exata situação da pobre vítima por mais que esta lhe sor risse mostrandolhe vislumbres de esperança e traços de resignação querendo com esforço apagar a história do seu martírio escrita in delevelmente nos olhos famintos no rosto murcho nas mãos de esqueleto e no peito mirrado Milkau teve a impetuosa ânsia de arre batála dali e carregála afoitamente para longe e pôla onde as feras não fossem homens Durante o tempo que aí passaram Lentz ficou silencioso Pela pri meira vez se via num cárcere misturandose com criminosos e répro bos A sua velha alma aristocrática estremecia de repugnância e o espíri to de sonhador soberano e forte que não se lhe tinha extinguido de vez estranhava o contato da miséria revoltavase por se libertar da moleza da piedade ardendo em remontar às alturas do silêncio e do império Mas era tarde a garra da compaixão o prendia ao mundo que ele tam bém assim fecundava com o seu quinhão de sofrimento Na rua quando saíram da cadeia Milkau ouviu como um eco do seu próprio coração estes murmúrios Pobre mulher Como é triste a vida Era o novo Lentz que falava Comovidos e angustiados os dois amigos separaramse Enquanto o outro voltava a se recolher ao repugnante albergue do Cachoeiro Milkau seguia sem propósito vagando para as bandas do Queimado a região abandonada onde fora a antiga cultura do lugar e que atravessara no dia de esperança em que chegou à colônia Entrou na velha terra exausta e morta Ainda no chão que pisava estavam os marcos deixados pela geração extinta e vencida Um dia tudo o que fora vida já por ali transitara E agora restos disformes de habitações humanas se sustinham petrificados dolorosos e nus e trepadeiras mesquinhas e bravas se esforçavam por cobrirlhes o pejo de G R A Ç A A R A N H A ruínas mutiladas Nas colinas baixas e humildes da redondeza destroços de pedras miravam com suas caladas máscaras de monstros a grande Terra em frente as altas e viçosas montanhas onde se fartava a força dos invasores Perdido no largo e desdobrado espaço o Santa Maria desembaraçado das pedras que antes o faziam vibrar alegre e vivaz pas sava vagando mofmo e lento Tudo era lânguido e vazio e descampado e deserto Num canto da planície uma moita de árvores extinguiase mansamente Elas vinham de outrora e ainda eram a derradeira vida que ali restava Cadáveres de árvores derrubadas desmanchavamse em pó e outras de pé tocadas pela morte vestiamse de púrpura e ouro numa transfiguração gloriosa O sol impaciente precipitavase a mergulhar nos braços verdejantes e opulentos da Terra futura e mostrava ao passado a outra face roxa fria e morta No silêncio dos ventos cabras aconche gadas aos filhos roçavamse nos oitões das ruínas ruminando pre guiçosas Pássaros no céu desmaiado buscavam o pouco da noite Àquela hora no teatro da Agonia Milkau cismava Não eu não te fujo doce Tristeza Tu és a reveladora do meu ser a razão da minha energia a força do meu pensamento Sobre ti me recli no como se foras um insondável e voluptuoso abismo tu me atrais e estendote os braços nesse doloroso e invencrvel amor com que o sonho ama o passado a morte ama a vida Antes de te conhecer pérfida ilusão me entorpecia os sentidos e a minha frívola existência foi a lúgubre mar cha do inconsciente risonho por um caminho de dores Nesse momento eu ainda te não buscava sol moribundo No meu rosto se estampava o riso contínuo e fatigante e ele afastava de mim os homens para quem a eterna alegria é morte Mas tu Tristeza não estavas longe Tu te sen taste à minha porta numa postura de resignação e silêncio E como esperaste Um dia a alegria de cansada se extinguiu e então soou para CANAÃ mim a hora da paz e da calma Entraste E como desde logo amei a nobreza do teu gesto Oh Melancolia minha alma é a morada tranqüi la onde reinas docemente Milkau caminhou ainda iluminado pelos últimos clarões da luz No céu não passavam mais os bandos das aves O sol resvalara de todo no fundo do horizonte A aragem se calara O débil vagido da cachoeira ia se perdendo para sempre E Milkau cismava A dor é boa porque faz despertar em nós uma consciência perdida a dor é bela porque une os homens É a liga intensa da solidariedade universal A dor é fecunda porque é a fonte do nosso desenvolvimento a perene criadora da poesia a força da arte A dor é religiosa porque nos aperfeiçoa e nos explica a nossa fraqueza nativa Tristeza tu me fazes ir até ao fundo das remotas raízes do meu espírito Por ti compreendo a agonia da vida por ti que és o guia do sofrimento humano por ti faço da dor universal a minha própria dor Que o meu rosto não mais se desfigure pelas visagens do riso cansado e matador dáme a tua serenidade a tua séria e nobre figura Tristeza não me desampares Não deixes que o meu espírito seja a presa da vã alegria Curvate sobre mim envolveme com o teu céu protetor Conduzeme oh benfazeja aos outros homens Tristeza salutar Melancolia 1 2 Maria A desgraçada estremeceu e com as mãos hirtas estiradas afastou de si o rosto que se inclinara sobre ela Nas torturas do pesadelo parecia lhe que beiços roxos sedentos e viscosos lhe buscavam os lábios Maria sou eu repetiu Milkau Ela abriu os olhos e ficou deslumbrada A sua mão agora branda e lân guida tateava incerta para se certificar da súbita e estranha aparição do amigo E gestos infantis e leves roçavam pela barba de Milkau numa inconsciente carícia Vamos Levantate disselhe ele baixo e com firmeza sacudin do o morno carinho recolhendo e enfeixando com energia as suas forças mais intensas Obedecendo Maria ergueuse e pela mão de Milkau foi seguindo pe la casa meio escura No corredor a claridade da noite que entrava pela porta da rua aberta como de costume deixava ver o corpo de um sol dado negro dormindo numa postura brutal como uma figura tosca e arcaica A prisioneira alarmada quis recuar Milkau tomoulhe as mãos G R A Ç A A R A N H A com império e passou com ela sereno e forte ao lado da sentinela con duzindoa para a noite e para a liberdade Fora o ar sutil e frio que lhe penetrava nas carnes sonolentas e tépi das o céu cristalino a cintilação das estrelas a largueza a imensidade do espaço davam à fugitiva uma deliciosa vertigem e num esmorecido colapso ela vacilou e veio se apoiar nos braços de Milkau que a foi ar rastando vagarosamente Enlaçados caminhavam pela cidade calada e adormecida Iam mo rosos os passos dela eram vacilantes e os pés por tanto tempo entor pecidos tropeçavam nas pedras soltas da rua O silêncio inquietador enchialhe o espírito do antigo pavor que se não extingue nunca Uma ou outra vez cães sonolentos despertavam com o passar dos vultos e ladrando se arremessavam em vão contra eles E depois tudo voltava ao sossego ameaçador que parecia ser a cada instante bruscamente inter rompido pelas vozes da perseguição surgindo das casas acordadas Mas só lhes chegava o chiar monótono e eterno da cachoeira Dobraram de cautela espiando com os olhos imensos e dilatados pela treva as formas apagadas e sinistras do mundo Era no ouvido dela assustadiça e trêmu la que Milkau ia falando Fujamos para sempre de tudo o que te persegue vamos além aos outros homens em outra parte onde a bondade corra espontânea e abundante como a água sobre a terra Vem Subamos àquelas monta nhas de esperança Repousemos depois na perpétua alegria Vamos correl2 Deixaram a cidade e agora sem receio de despertála galgavam a montanha lépidos e radiantes A fria rigidez criada pelo terror se fora dos braços de Maria que se prendiam aos de Milkau tépidos e brandos Subindo perdiam eles de instante a instante a vista do Cachoeiro embaixo aos seus pés coberto pelo manto cinzento e vaporoso da bru C A N A Ã ma sobre que passava a luz exausta da noite úmida levantando ali uma fosforescência vaga de nebulosa E debaixo desse manto se desenhavam seres fantásticos colossais gigantescos sem forma ainda imaginada Um trecho do Santa Maria lívido morto cortava como um gládio fume gante a várzea do Queimado onde as colinas baixas semelhavam corpos deitados de heróis antigos e mutilados corcundas e aleijões Depois nada mais viram subiram ainda e entraram no bojo da mata Os braços de Maria retesaramse de novo e apertaram os de Milkau Havia um rumor contínuo e aflitivo de vento mau nas folhas da grande massa Iam inquietos afundando os olhos na infindável negrura donde vinha o clamor do mistério e do sofrimento das árvores castigadas E o vento implacável ia passando fazendoas gemer rumorosamente No vão das trevas de espaço a espaço pelas frestas descia a claridade e do jorro de luz se formava dentro da floresta uma coluna alevantada do chão para o céu atravessando o teto ondeante e docemente iluminada pelos reflexos das árvores espectrais Estreitados um ao outro aspirando o aroma capitoso e perturbador que se desprendia das flores noturnas caminhavam velozes Milkau repetia no ouvido da companheira o seu apelo de sedução É a felicidade que te prometo Ela é da Terra e havemos de achá la Quando vier a luz encontraremos outros homens outro mundo e aí É a felicidade Vem vem Assim espantava o terror e Maria já se animava recolhendo nessa voz acariciadora o canto mágico dos seus esponsais com a ventura Subiram voando voando O caminho deixou a mata sombria e saiu pelas alturas descobertas Era pedregoso escasso margeando o despenhadeiro O passo da fuga moderou Cautelosos e arquejantes escalavam a subida Milkau não mais falava e os seus olhos mergulhavam no abismo e se perdiam fascinados C A N A Ã confuso e dos seus braços esvaídos desprendeu Maria Ela lívida espa vorida sentindose em liberdade deitou a correr veloz pela vereda de pedra que aos seus pés medrosos e vivos se tornava macia e segura Milkau reanimandose seguiua E as duas sombras enormes na obscuridade da treva iam desfilando sinistras e rápidas pela aresta da barranca Num momento galgaram o alto da montanha e pasmaram a vista nos livres descampados por onde descia a estrada A agonia de Milkau se desmanchava à vista da planície dilatada e benfazeja os ruídos desesperados e atraentes do rio morriam atrás o abismo negro e assom broso passava como o tormento de uma vertigem e agora eles se pre cipitavam numa campina suavemente esclarecida pela noite maravilhosa e límpida Corriam corriam Atrás de si ouvia ela a voz de Milkau vibrando como a modulação de um hino Adiante Adiante Não pares Eu vejo Canaã Canaã Mas o horizonte na planície se estendia pelo seio da noite e se con fundia com os céus Milkau não sabia para onde o impulso os levava era o desconhecido que atraía com a poderosa e magnética força da ilusão Começava a sentir a angustiada sensação de uma corrida no Infinito Canaã Canaã suplicava ele em pensamento pedindo à noite que lhe revelasse a estrada da Promissão E tudo era silêncio e mistério Corriam corriam E o mundo pare cia sem fim e a terra do Amor mergulhada sumida na névoa incomen surável E Milkau num sofrimento devorador ia vendo que tudo era o mesmo horas e horas fatigados de voar e nada variava e nada lhe apare cia Corriam corriam Apenas na sua frente uma visão deliciosa era a transfiguração de Ma ria Animada transmudada pelo misterioso poder do Sonho a Mulher enchia de novas carnes o seu esqueleto de prisioneira e mártir novo sangue batialhe vitorioso nas artérias inflamandoas os cabelos cres G R A Ç A A R A N H A ciamlhe milagrosos como florestas douradas deitando ramagens que cobriam e beneficiavam o mundo os olhos iam iluminando o caminho e Milkau envolto no foco dessa gloriosa luz acompanhava em amargu rado êxtase a sombra que o arrebatava Corriam corriam E tudo era imutável na noite A figura fantástica sempre diante veloz e intangí vel ele atrás ansiado naquela busca fatigante e vã sem a poder alcançar e temendo dissolver com a sua voz mortal a dourada forma da Ilusão que seguia amando Canaã Canaã pedia ele no coração para fim do seu martírio E nunca jamais lhe aparecia a terra desejada Nunca jamais Corriam corriam A noite enganadora recolhiase o mundo cansava de ser igual Milkau festejou num frêmito de esperança a deliciosa transição Enfim Canaã ia revelarse A nova luz sem mistério chegou e esclareceu a várzea Milkau viu que tudo era vazio que tudo era deserto que os novos ho mens ainda ali não tinham surgido Com as suas mãos desesperançadas tocou a Visão que o arrastara Ao contato humano ela parou e Maria volveu outra vez para Milkau a primitiva face moribunda os mesmos olhos pisados a mesma boca murcha a mesma figura de mártir Vendoa assim na miseranda realidade ele disse Não te canses em vão Não corras É inútil A terra da Pro missão que eu te ia mostrar e que também ansioso buscava não a vejo mais Ainda não despontou à Vida Paremos aqui e esperemos que ela venha vindo no sangue das gerações redimidas Não desesperes Sejamos fiéis à doce ilusão da Miragem Aquele que vive o Ideal contrai um empréstimo com a Eternidade Cada um de nós a soma de todos nós exprime a força criadora da utopia é em nós mesmos como num indefinido ponto de transição que se fará a passagem dolorosa do sofri mento Purifiquemos os nossos corpos nós que viemos do mal ori ginário que é a Violência O que seduz na vida é o sentimento da per C A N A Ã petuidade Nós nos prolongaremos desdobraremos infinitamente a nossa personalidade iremos viver longe muito longe na alma dos descendentes Façamos dela o vaso sagrado da nossa ternura onde depositaremos tudo o que é puro e santo e divino Aproximemonos uns dos outros suavemente Todo o mal está na Força e só o Amor pode conduzir os homens Tudo o que vês todos os sacrifícios todas as agonias todas as revoltas todos os martírios são formas errantes da Liberdade E essas expressões desesperadas angustiosas passam no curso dos tempos morrem passageiramente esperando a hora da ressurreição Eu não sei se tudo o que é vida tem um ritmo eterno indestrutível ou se é informe e transitório Os meus olhos não atingem os limites inabor dáveis do Infinito a minha visão se confina em volta de ti Mas eu te digo se isto tem de acabar para se repetir em outra parte o ciclo da existência ou se um dia nos extinguirmos com a última onda de calor que venha do seio maternal da Terra ou se tivermos de nos des pedaçar com ela no Universo desagregarnos dissolvernos na estra da dos céus não nos separemos para sempre um do outro nesta ati tude de rancor Eu te suplico a ti e à tua ainda inumerável geração abandonemos os nossos ódios destruidores reconciliemonos antes de chegar ao instante da Morte Notas 1 Queimado Povoação onde em 1 9 de março de 1 849 se deu célebre revolta de escravos que acreditavam que ajudando na construção da igreja de São José seriam alforriados por seus senhores o que não ocorreu Dali se partia a cavalo para o Porto do Cachoeiro 2 Porto do Cachoeiro hoje Santa Leopoldina municipio com 7 1 3 km de extensão a 44 km da capital Vitória Era na época em que Graça Aranha lá judicou o maior municipio do Estado do Espírito Santo ocupando um quarto de sua extensão ou cerca de 10000 km e ainda influenciava economicamente a região do rio Doce Minas Gerais A palavra cachoeira forma masculina é registrada em 1 817 por Francisco Alberto Rubim na Memória estatística da Província do Espírito Santo revista do Instituto Histórico e GeoBTlpco Brasileiro tomo XIX p 301 Rio 1 900 Conquanto não se tenha determinado a origem desse uso não é termo regional exclusivo do Espírito Santo como o diz o dicionarista Aurélio pois Alberto Lamego O homem e a serra Rio 1 950 p 224 e 229 registra cachoeira no Estado do Rio nome antigo da atual Cardoso Moreira 3 Santa Maria da Vitória rio que nasce na serra do Garrafão e desce encachoeirado até o Porto do Cachoeiro sendo antigamente navegável por lanchas e canoas daí até a baía de Vitória onde deságua em forma de delta no manguezal conhecido como Lameirão Não con fundir com o Santa Maria do Rio Dolce afluente deste que deságua na cidade de Colatina 4 O guia foi identificado como Antônio Nunes de Siqueira Orgulhavase de figurar como personagem do romance célebre e foi apelidado de Canaã Foi empregado de comércio escrivão de coletoria e oficial do Registro Civil em Santa Leopoldina C A N A Ã 1 5 Este longo diálogo como outras conversas de Milkau com Lentz reflete as idéias filosó ficas de Graça Aranha hauridas no monismo aprendido no Recife com Tobias Barreto Os estudiosos encontram nele traços de Schopenhauer e Nietzsche 16 Toda a movimentação da produção do café na região elevado enquanto fértil e nova a terra era conduzida para o porto fluvial em tropas de burros Dai seguia para Vitória em grandes canoas que levavam até oitenta sacas e eram manejadas pelos barqueiros Cf Canoeiras do Santa Maria de João Ribas da Costa Rio IBGE e Por vales e serras do Espírito Santo a epopéia de tropas e tropeiros de Ormando Moraes 2a ed IHGES 2000 17 Estas figuras foram em parte identificadas por Augusto Lins O velho sapateiro venerando como um santo era Andréa Gasparini tronco de tradicional família capixaba O ferreiro era José Tommasi e o alfaiate era Bortolo Armani Não foi identificado o mestre da banda 1 8 O autor pretende dar uma explicação sociológica sobre a língua mostrando que o colono não desejava aprender português enquanto os brasileiros logo aprendiam a falar alemão 1 9 A festa em Jequitibá teria sido realizada em casa do comerciante Florêncio Friebe pro prietário de dez tropas de burros A localidade Altona não foi identificada conquanto seja nome de uma cidade próxima a Hamburgo na Alemanha Luxemburgo é povoação do mu nicípio de Santa Maria do Jetibá corruptela de Jequitibá localizado a 78 km da capital Vitória um dos núcleos onde há maior número de descendentes de pomeranos no Brasil 20 O autor descreve com desprezo o triunvirato judiciário notoriamente representante de uma estrutura externa incompreensível para os colonos Notese que Graça Aranha era juiz municipal mas como se demonstra na Introdução saiu da comarca incompatibilizado com seus colegas 2 1 Jacob Müller foi identificado como Florêncio Friebe embora Augusto Lins diga que se trata do comerciante Alberto Ricardo Dietze 22 Luíza Wolf e Martin Fidel Colonos não identificados pelas pesquisas 23 Maria Perutz é a Guilhermina Lübke da vida real Ver Introdução para acompanhar o processo judicial contra ela G R A Ç A A R A N H A 24 Este episódio demonstra mais uma vez a profunda insatisfação do autor com a justiça que se praticava então 25 Uso da cachaça Num esforço adaptativo os imigrantes logo aderiram à cachaça à fa rinha de mandioca ao inhame que substituía o trigo no fabrico do brote pão que ainda hoje se faz 26 Paulo Maciel é o alter eao do autor O capitão escrivão Pantoja apelidado por Graça Aranha de Maracajá é o politico coronel Francisco Rodrigues dos Passos Augusto Lins con testa op cito na Bibliografia p 22 e 223 o perfil negativo que dele traça o autor de Canaã 27 Inflexibilidade da irmã do pastor Diversos pesquisadores têm demonstrado o conflito e a pretensa superioridade dos que falam lingua alta ou seja o alemão para com os que se expressam no dialeto da Pomeroinia 28 Episódio dos ciganos por certo lembrança da infância do autor no Maranhão Não se verificou a existência de ciganos na área da colônia 29 A partir daqui é relatado o drama da escorraçada Maria Perutz a Guilhermina da vida real descrição fortemente realista 30 O pequeno Fritz era Franz Eugênio Holzmeister esmagado por um barril de vinho no dia 7 de novembro de 1 890 no armazém do pai Luiz que no romance se chama Otto Bauer Graça Aranha comungou do sofrimento da família e visitoua no dia do infausto acontecimento Um ramo da família voltou para Innsbruck Áustria de onde era originária tendo Urbano se tornado professor do Instituto Bíblico do Vaticano e Clemens granjeado fama como arquiteto No local do acidente encontrase hoje o Museu do Colono 3 1 O diálogo entre Paulo Maciel e Milkau é na verdade um monólogo do autor seu fluxo de consciência 32 A fuga de Milkau e Maria totalmente fictícia se dá pela descrição do autor subindo o rio Santa Maria desde o Porto do Cachoeiro em direção às montanhas centrais do Espírito Santo Esta obra composta em Perpétua 1 2 1 7 foi impressa com miolo em papel offset 75g e capa em cartão supremo 250g Impressão e Acabamento Gráfica e Editora Alaúde Itda R Santo Irineu 170 SP Fone 11 55754378 I R O M A N C E I Canaã é um romance de idéias Canaã é a história de uma paixão a fuga de Milkau e Maria em direção à terra da promissão e do amor Documento social poema em prosa debate filosófico o livro de Graça Aranha é um marco da literatura brasileira Nesta edição que comemora 1 00 anos da sua publicação original Canaã comprova sua condição de clássico continuando a exercer fascínio e interesse sobre os leitores das novas geraçõ s Visitenos wwwediourocombr

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