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LACOS DE FAMÍLIA DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos bem como o simples teste da qualidade da obra com o fim exclusivo de compra futura É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda aluguel ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa Você pode encontrar mais obras em nosso site LeLivroslink ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento e não mais lutando por dinheiro e poder então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível Maria L Inspectora Clarice Lispector LAÇOS DE FAMÍLIA CONTOS SUMÁRIO Devaneio e embriaguez duma rapariga Amor Uma galinha A imitação da rosa Feliz aniversário A menor mulher do mundo O jantar Preciosidade Os laços de família Começos de uma fortuna Mistério em São Cristóvão O crime do professor de matemática O búfalo Créditos A Autora DEVANEIO E EMBRIAGUEZ DUMA RAPARIGA Pelo quarto parecialhe estarem a se cruzar os elétricos a estremeceremlhe a imagem refletida Estava a se pentear vagarosamente diante da penteadeira de três espelhos os braços brancos e fortes arrepiavamse à frescurazita da tarde Os olhos não se abandonavam os espelhos vibravam ora escuros ora luminosos Cá fora duma janela mais alta caiu à rua uma cousa pesada e fofa Se os miúdos e o marido estivessem à casa já lhe viria à ideia que seria descuido deles Os olhos não se despregavam da imagem o pente trabalhava meditativo o roupão aberto deixava aparecerem nos espelhos os seios entrecortados de várias raparigas A Noite gritou o jornaleiro ao vento brando da Rua do Riachuelo e alguma cousa arrepiouse pressagiada Jogou o pente à penteadeira cantou absorta quem viu o pardal zito passou pela janela voou pralém do Minho mas colérica fechouse dura como um leque Deitouse abanavase impaciente com um jornal a farfalhar no quarto Pegou o lenço aspiravao a comprimir o bordado áspero com os dedos avermelhados Punhase de novo a abanarse quase a sorrir Ai ai suspirou a rir Teve a visão de seu sorriso claro de rapariga ainda nova e sorriu mais fechando os olhos a abanarse mais profundamente Ai ai vinha da rua como uma borboleta Bons dias sabes quem veio a me procurar cá à casa pensou como assunto possível e interessante de palestra Pois não sei quem perguntaramlhe com um sorriso galanteador uns olhos tristes numa dessas caras pálidas que a uma pessoa fazem tanto mal A Maria Quitéria homem respondeu garrida de mão à ilharga E se mo permite quem é esta rapariga insistiram galante mas já agora sem fisionomia Tu cortou ela com leve rancor a palestra que chatura Ai que quarto suculento ela se abanava no Brasil O sol preso pelas persianas tremia na parede como uma guitarra A Rua do Riachuelo sacudiase ao peso arquejante dos elétricos que vinham da Rua Mem de Sá Ela ouvia curiosa e entediada o estremecimento do guarda loiça na sala das visitas Dimpaciência virouselhe o corpo de bruços e enquanto estava a esticar com amor os dedos dos pés pequeninos aguardava seu próximo pensamento com os olhos abertos Quem encontrou buscou dissese em forma de rifão rimado o que sempre terminava por parecer com alguma verdade Até que adormeceu com a boca aberta a baba a umedecerlhe o travesseiro Só acordou com o marido a voltar do trabalho e a entrar pelo quarto adentro Não quis jantar nem sair de seus cuidados dormiu de novo o homem lá que se regalasse com as sobras do almoço E já que os filhos estavam na quinta das titias em Jacarepaguá ela aproveitou para amanhecer esquisita túrbida e leve na cama um desses caprichos sabese lá O marido apareceulhe já trajado e ela nem sabia o que o homem fizera para o seu pequeno almoço e nem olhoulhe o fato se estava ou não por escovar pouco se lhe importava se hoje era dia dele tratar os negócios na cidade Mas quando ele se inclinou para beijála sua leveza crepitou como folha seca Largate daí E o que tens perguntalhe o homem atônito a ensaiar imediatamente carinho mais eficaz Obstinada ela não saberia responder estava tão rasa e princesa que não tinha sequer onde se lhe buscar uma resposta Zangouse Ai que não me maces não me venhas a rondar como um galo velho Ele pareceu pensar melhor e declarou Ó rapariga estás doente Ela aceitou surpreendida lisonjeada Durante o dia inteiro ficouse na cama a ouvir a casa tão silenciosa sem o bulício dos miúdos sem o homem que hoje comeria seus cozidos pela cidade Durante o dia inteiro ficouse à cama Sua cólera era tênue ardente Só se levantava mesmo para ir à casa de banhos donde voltava nobre ofendida A manhã tornouse uma longa tarde inflada que se tornou noite sem fundo amanhecendo inocente pela casa toda Ela ainda à cama tranquila improvisada Ela amava Estava previamente a amar o homem que um dia ela ia amar Quem sabe lá isso às vezes acontecia e sem culpas nem danos para nenhum dos dois Na cama a pensar a pensar quase a rir como a uma bisbilhotice A pensar a pensar O quê ora lá ela sabia Assim deixouse a ficar Dum momento para outro com raiva estava de pé Mas nas fraquezas do primeiro instante parecia doida e delicada no quarto que rodava que rodava até ela conseguir às apalpadelas deitarse de novo à cama surpreendida de que talvez fosse verdade ó mulher vê lá se me vais mesmo adoecer disse desconfiada Levou a mão à testa para ver se lhe tinham vindo febres Nessa noite até dormir fantasticou fantasticou por quantos minutos até que tombou adormecidona a ressonar com o marido Acordou com o dia atrasado as batatas por descascar os miúdos que voltariam à tarde das titias ai que até me faltei ao respeito dia de lavar roupa e cerzir as peúgas ai que vagabunda que me saíste censurouse curiosa e satisfeita ir às compras não esquecer o peixe o dia atrasado a manhã pressurosa de sol Mas no sábado à noite foram à tasca da Praça Tiradentes a atenderem ao convite do negociante tão próspero ela com vestidito novo que se não era cheio denfeites era de bom pano superior desses que lhe iam a durar pela vida afora No sábado à noite embriagada na Praça Tiradentes embriagada mas com o marido ao lado a garantila e ela cerimoniosa diante do outro homem tão mais fino e rico procurando darlhe palestras pois que ela não era nenhuma parola daldeia e já vivera em Capital Mas borrachona a mais não poder E se seu marido não estava borracho é que não queria faltar ao respeito ao negociante e cheio dempenho e dhumildade deixavalhe ao outro o cantar de galo O que assentava bem para a ocasião fina mas lhe punha a ela uma dessas vontades de rir um desses desprezos olhava o marido metido no fato novo e achavalhe uma tal piada Borrachona a mais não poder mas sem perder o brio de rapariga E o vinho verde a esvaziarselhe do copo E quando estava embriagada como num ajantarado farto de domingo tudo o que pela própria natureza é separado um do outro cheiro dazeite dum lado homem doutro terrina dum lado criado de mesa doutro uniase esquisitamente pela própria natureza e tudo não passava duma semvergonhice só duma só marotagem E se lhe estavam brilhantes e duros os olhos se seus gestos eram etapas difíceis até conseguir enfim atingir o paliteiro em verdade por dentro estavase até lá muito bem erase aquela nuvem plena a se transladar sem esforço Os lábios engrossados e os dentes brancos e o vinho a inchála E aquela vaidade de estar embriagada a facilitarlhe um tal desdenho por tudo a tornála madura e redonda como uma grande vaca Naturalmente que ela palestrava Pois que lhe não faltavam os assuntos nem as capacidades Mas as palavras que uma pessoa pronunciava quando estava embriagada era como se estivesse prenhe palavras apenas na boca que pouco tinham a ver com o centro secreto que era como uma gravidez Ai que esquisita estava No sábado à noite a alma diária perdida e que bom perdêla e como lembrança dos outros dias apenas as mãos pequenas tão maltratadas e ela agora com os cotovelos sobre a toalha de xadrez vermelha e branca da mesa como sobre uma mesa de jogo profundamente lançada numa vida baixa e revolucionante E esta gargalhada essa gargalhada que lhe estava a sair misteriosamente duma garganta cheia e branca em resposta à finura do negociante gargalhada vinda da profundeza daquele sono e da profundeza daquela segurança de quem tem um corpo Sua carne alva estava doce como a de uma lagosta as pernas duma lagosta viva a se mexer devagar no ar E aquela vontade de se sentir mal para aprofundar a doçura em bem ruim E aquela maldadezita de quem tem um corpo Palestrava e ouvia com curiosidade o que ela mesma estava a responder ao negociante abastado que em tão boa hora os convidara e pagavalhes o pasto Ouvia intrigada e deslumbrada o que ela mesma estava a responder o que dissesse nesse estado valeria para o futuro em augúrio já agora ela não era lagosta era um duro signo escorpião Pois que nascera em novembro Um holofote enquanto se dorme que percorre a madrugada tal era a sua embriaguez errando lenta pelas alturas Ao mesmo tempo que sensibilidade mas que sensibilidade quando olhava o quadro tão bem pintado do restaurante ficava logo com sensibilidade artística Ninguém lhe tiraria cá das ideias que nascera mesmo para outras cousas Ela sempre fora pelas obras darte Mas que sensibilidade agora não apenas por causa do quadro de uvas e peras e peixe morto brilhando nas escamas Sua sensibilidade incomodava sem ser dolorosa como uma unha quebrada E se quisesse podia permitirse o luxo de se tornar ainda mais sensível ainda podia ir mais adiante porque era protegida por uma situação protegida como toda a gente que atingiu uma posição na vida Como uma pessoa a quem lhe impedem de ter a sua desgraça Ai que infeliz que sou minha mãe Se quisesse podia deitar ainda mais vinho no copo e protegida pela posição que alcançara na vida emborracharse ainda mais contanto que não perdesse o brio E assim mais emborrachada ainda percorria os olhos pelo restaurante e que desprezo pelas pessoas secas do restaurante nenhum homem que fosse homem a valer que fosse triste mesmo Que desprezo pelas pessoas secas do restaurante enquanto ela estava grossa e pesada generosa a mais não poder E tudo no restaurante tão distante um do outro como se jamais um pudesse falar com o outro Cada um por si e lá Deus por toda a gente Seus olhos de novo fitaram aquela rapariga que já dentrada lhe fizera subir a mostarda ao nariz Logo dentrada perceberaa sentada a uma mesa com seu homem toda cheia dos chapéus e dornatos loira como um escudo falso toda santarrona e fina que rico chapéu que tinha vai ver que nem casada era e a ostentar aquele ar de santa E com seu rico chapéu bem posto Pois que bem lhe aproveitasse a beatice e que se não lhe entornasse a fidalguia na sopa As mais santazitas eram as que mais cheias estavam de patifaria E o criado de mesa o grande parvo a servila cheio das atenções o finório e o homem amarelo que a acompanhava a fazer vistas grossas E a santarrona toda vaidosa de seu chapéu toda modesta de sua cinturita fina vai ver que não era capaz de parirlhe ao seu homem um filho Ai que não tinha nada a ver com isso a bem dizer mas já dentrada cresceralhe a vontade dir e dencherlhe à cara de santa loira da rapariga uns bons sopapos a fidalguita de chapéu Que nem roliça era era chata de peito E vai ver que com todos os seus chapéus não passava duma vendeira dhortaliça a se fazer passar por grande dama Oh como estava humilhada por ter vindo à tasca sem chapéu a cabeça agora parecialhe nua E a outra com seus ares de senhora a fingir de delicada Bem sei o que te falta fidalguita e ao teu homem amarelo E se pensas que tinvejo e ao teu peito chato fica a saber que me ralo que bem me ralo de teus chapéus A patifas sem brio como tu a se fazerem de rogadas eu lhas encho de sopapos Na sua sagrada cólera estendeu com dificuldade a mão e tomou um palito Mas finalmente a dificuldade de chegar em casa desapareceu remexiase agora dentro da realidade familiar de seu quarto agora sentada no bordo de sua cama com a chinela a se balançar no pé E como entrefechara os olhos toldados tudo ficou de carne o pé da cama de carne a janela de carne na cadeira o fato de carne que o marido jogara e tudo quase doía E ela cada vez maior vacilante túmida gigantesca Se conseguisse chegar mais perto de si mesma ver seia inda maior Cada braço seu poderia ser percorrido por uma pessoa na ignorância de que se tratava de um braço e em cada olho podiaselhe mergulhar dentro e nadar sem saber que era um olho E ao redor tudo a doer um pouco As coisas feitas de carne com nevralgia Fora o friozito que a tomara ao sair da casa de pasto Estava sentada à cama conformada cética E isso ainda não era nada só Deus sabia ela sabia muito bem que isso inda não era nada Que nesse momento lhe estavam a acontecer cousas que só mais tarde iriam a doer mesmo e a valer quando ela voltasse ao seu tamanho comum o corpo anestesiado estaria a acordar latejando e ela iria a pagar pelas comilanças e vinhos Então já que isso terminaria mesmo por acontecer tanto se me faz abrir agora mesmo os olhos o que fez e tudo ficou menor e mais nítido embora sem nenhuma dor Tudo no fundo estava igual só que menor e familiar Estava sentada bem tesa na sua cama o estômago tão cheio absorta resignada com a delicadeza de quem espera sentado que outro acorde Empanturraste e eu que pague o pato dissese melancólica a olhar os deditos brancos do pé Olhava ao redor paciente obediente Ai palavras palavras objetos do quarto alinhados em ordem de palavras a formarem aquelas frases turvas e maçantes que quem souber ler lerá Aborrecimento aborrecimento ai que chatura Que maçada Enfim ai de mim seja lá o que Deus bem quiser Que é que se havia de fazer Ai é uma tal cousa que se me dá que nem bem sei dizer Enfim seja lá bem o que Deus quiser E dizer que se divertira tanto esta noite e dizer que fora tão bom e a gosto seu o restaurante ela sentada fina à mesa Mesa gritoulhe o mundo Mas ela nem sequer a responderlhe a alçar os ombros com um muxoxo amuado importunada que não me venhas a maçar com carinhos desiludida resignada empanturrada casada contente a vaga náusea Foi nesse instante que ficou surda faltoulhe um sentido Enviou à orelha uma tapona de mão espalmada o que só fez entornar mais o caldo pois encheuselhe o ouvido de um rumor de elevador a vida de repente sonora e aumentada nos menores movimentos Das duas uma estava surda ou a ouvir demais reagiu a essa nova solicitação com uma sensação maliciosa e incômoda com um suspiro de saciedade conformada Pros raios que os partam disse suave aniquilada E quando no restaurante lembrouse de repente Quando estivera no restaurante o protetor do marido encostara ao seu pé um pé embaixo da mesa e por cima da mesa a cara dele Porque calhara ou de propósito O mafarrico Uma pessoa a falar verdade que era lá bem interessante Alçou os ombros E quando no seu decote redondo em plena Praça Tiradentes pensou ela a abanar a cabeça incrédula a mosca se lhe pousara na pele nua Ai que malícia Havia certas cousas boas porque eram quase nauseantes o ruído como de elevador no sangue enquanto o homem roncava ao lado os filhos gorditos empilhados no outro quarto a dormirem os desgraçadinhos Ai que cousa que se me dá pensou desesperada Teria comido demais ai que cousa que se me dá minha santa mãe Era a tristeza Os dedos do pé a brincarem com a chinela O chão lá não muito limpo Que relaxada e preguiçosa que me saíste Amanhã não porque não estaria lá muito bem das pernas Mas depois de amanhã aquela sua casa havia de ver darlheia um esfregaço com água e sabão que se lhe arrancariam as sujidades todas a casa havia de ver ameaçou ela colérica Ai que se sentia tão bem tão áspera como se ainda estivesse a ter leite nas mamas tão forte Quando o amigo do marido a viu tão bonita e gorda ficou logo com respeito por ela E quando ela ficava a se envergonhar não sabia aonde havia de fitar os olhos Ai que tristeza Que é que se há de fazer Sentada no bordo da cama a pestanejar resignada Que bem que se via a lua nessas noites de verão Inclinouse um pouquito desinteressada resignada A lua Que bem que se via A lua alta e amarela a deslizar pelo céu a coitadita A deslizar a deslizar Alta alta A lua Então a grosseria explodiulhe em súbito amor cadela disse a rir AMOR Um pouco cansada com as compras deformando o novo saco de tricô Ana subiu no bonde Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar Recostouse então no banco procurando conforto num suspiro de meia satisfação Os filhos de Ana eram bons uma coisa verdadeira e sumarenta Cresciam tomavam banho exigiam para si malcriados instantes cada vez mais completos A cozinha era enfim espaçosa o fogão enguiçado dava estouros O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembravalhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa olhando o calmo horizonte Como um lavrador Ela plantara as sementes que tinha na mão não outras mas essas apenas E cresciam árvores Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz crescia a água enchendo o tanque cresciam seus filhos crescia a mesa com comidas o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome o canto importuno das empregadas do edifício Ana dava a tudo tranquilamente sua mão pequena e forte sua corrente de vida Certa hora da tarde era mais perigosa Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela Quando nada mais precisava de sua força inquietavase No entanto sentiase mais sólida do que nunca seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos a grande tesoura dando estalidos na fazenda Todo o seu desejo vagamente artístico encaminharase há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos com o tempo seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa a vida podia ser feita pela mão do homem No fundo Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas E isso um lar perplexamente lhe dera Por caminhos tortos viera a cair num destino de mulher com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado O homem com quem casara era um homem verdadeiro os filhos que tivera eram filhos verdadeiros Sua juventude anterior parecialhe estranha como uma doença de vida Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia abolindoa encontrara uma legião de pessoas antes invisíveis que viviam como quem trabalha com persistência continuidade alegria O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável Criara em troca algo enfim compreensível uma vida de adulto Assim ela o quisera e escolhera Sua precaução reduziase a tomar cuidado na hora perigosa da tarde quando a casa estava vazia sem precisar mais dela o sol alto cada membro da família distribuído nas suas funções Olhando os móveis limpos seu coração se apertava um pouco em espanto Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar cuidando do lar e da família à revelia deles Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiamna Assim chegaria a noite com sua tranquila vibração De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos como se voltassem arrependidos Quanto a ela mesma fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo E alimentava anonimamente a vida Estava bom assim Assim ela o quisera e escolhera O bonde vacilava nos trilhos entrava em ruas largas Logo um vento mais úmido soprava anunciando mais que o fim da tarde o fim da hora instável Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher O bonde se arrastava em seguida estacava Até Humaitá tinha tempo de descansar Foi então que olhou para o homem parado no ponto A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado De pé suas mãos se mantinham avançadas Era um cego O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança Alguma coisa intranquila estava sucedendo Então ela viu o cego mascava chicles Um homem cego mascava chicles Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar o coração batialhe violento espaçado Inclinada olhava o cego profundamente como se olha o que não nos vê Ele mastigava goma na escuridão Sem sofrimento com os olhos abertos O movimento da mastigação faziao parecer sorrir e de repente deixar de sorrir sorrir e deixar de sorrir como se ele a tivesse insultado Ana olhavao E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio Mas continuava a olhálo cada vez mais inclinada o bonde deu uma arrancada súbita jogandoa desprevenida para trás o pesado saco de tricô despencouse do colo ruiu no chão Ana deu um grito o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava o bonde estacou os passageiros olharam assustados Incapaz de se mover para apanhar suas compras Ana se aprumava pálida Uma expressão de rosto há muito não usada ressurgiralhe com dificuldade ainda incerta incompreensível O moleque dos jornais ria entregandolhe o volume Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras tentando inutilmente pegar o que acontecia O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor o bonde deu a nova arrancada de partida Poucos instantes depois já não a olhavam mais O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre Mas o mal estava feito A rede de tricô era áspera entre os dedos não íntima como quando a tricotara A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido não sabia o que fazer com as compras no colo E como uma estranha música o mundo recomeçava ao redor O mal estava feito Por quê teria esquecido de que havia cegos A piedade a sufocava Ana respirava pesadamente Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso tinham um ar mais hostil perecível O mundo se tornara de novo um malestar Vários anos ruíam as gemas amarelas escorriam Expulsa de seus próprios dias parecialhe que as pessoas na rua eram periclitantes que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão e por um momento a falta de sentido deixavaas tão livres que elas não sabiam para onde ir Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente como se pudesse cair do bonde como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram O que chamava de crise viera afinal E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas sofrendo espantada O calor se tornara mais abafado tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução as grades dos esgotos estavam secas o ar empoeirado Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavamna com o vigor que possuíam Junto dela havia uma senhora de azul com um rosto Desviou o olhar depressa Na calçada uma mulher deu um empurrão no filho Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo E o cego Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa Ela apaziguara tão bem a vida cuidara tanto para que esta não explodisse Mantinha tudo em serena compreensão separava uma pessoa das outras as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podiase escolher pelo jornal o filme da noite tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro E um cego mascando goma despedaçava tudo isso E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce até a boca Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida Na fraqueza em que estava tudo a atingia com um susto desceu do bonde com pernas débeis olhou em torno de si segurando a rede suja de ovo Por um momento não conseguia orientarse Parecia ter saltado no meio da noite Era uma rua comprida com muros altos amarelos Seu coração batia de medo ela procurava inutilmente reconhecer os arredores enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeavalhe o rosto Ficou parada olhando o muro Enfim pôde localizarse Andando um pouco mais ao longo de uma sebe atravessou os portões do Jardim Botânico Andava pesadamente pela alameda central entre os coqueiros Não havia ninguém no Jardim Depositou os embrulhos na terra sentouse no banco de um atalho e ali ficou muito tempo A vastidão parecia acalmála o silêncio regulava sua respiração Ela adormecia dentro de si De longe via a aleia onde a tarde era clara e redonda Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho Ao seu redor havia ruídos serenos cheiro de árvores pequenas surpresas entre os cipós Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada Como por um zunido de abelhas e aves Tudo era estranho suave demais grande demais Um movimento leve e íntimo a sobressaltou voltouse rápida Nada parecia se ter movido Mas na aleia central estava imóvel um poderoso gato Seus pelos eram macios Em novo andar silencioso desapareceu Inquieta olhou em torno Os ramos se balançavam as sombras vacilavam no chão Um pardal ciscava na terra E de repente com malestar pareceulhe ter caído numa emboscada Faziase no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber Nas árvores as frutas eram pretas doces como mel Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções como pequenos cérebros apodrecidos O banco estava manchado de sucos roxos Com suavidade intensa rumorejavam as águas No tronco da árvore pregavamse as luxuosas patas de uma aranha A crueza do mundo era tranquila O assassinato era profundo E a morte não era o que pensávamos Ao mesmo tempo que imaginário era um mundo de se comer com os dentes um mundo de volumosas dálias e tulipas Os troncos eram percorridos por parasitas folhudos o abraço era macio colado Como a repulsa que precedesse uma entrega era fascinante a mulher tinha nojo e era fascinante As árvores estavam carregadas o mundo era tão rico que apodrecia Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome a náusea subiulhe à garganta como se ela estivesse grávida e abandonada A moral do Jardim era outra Agora que o cego a guiara até ele estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante sombrio onde vitóriasrégias boiavam monstruosas As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas mas cor de mau ouro e escarlates A decomposição era profunda perfumada Mas todas as pesadas coisas ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo A brisa se insinuava entre as flores Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno Era quase noite agora e tudo parecia cheio pesado um esquilo voou na sombra Sob os pés a terra estava fofa Ana aspiravaa com delícia Era fascinante e ela sentia nojo Mas quando se lembrou das crianças diante das quais se tornara culpada ergueuse com uma exclamação de dor Agarrou o embrulho avançou pelo atalho obscuro atingiu a alameda Quase corria e via o Jardim em torno de si com sua impersonalidade soberba Sacudiu os portões fechados sacudiaos segurando a madeira áspera O vigia apareceu espantado de não a ter visto Enquanto não chegou à porta do edifício parecia à beira de um desastre Correu com a rede até o elevador sua alma batialhe no peito o que sucedia A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia mas o mundo lhe parecia seu sujo perecível seu Abriu a porta de casa A sala era grande quadrada as maçanetas brilhavam limpas os vidros da janela brilhavam a lâmpada brilhava que nova terra era essa E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceulhe um modo moralmente louco de viver O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu que corria e a abraçava Apertouo com força com espanto Protegiase trêmula Porque a vida era periclitante Ela amava o mundo amava o que fora criado amava com nojo Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava avisandoa Abraçou o filho quase a ponto de machucálo Como se soubesse de um mal o cego ou o belo Jardim Botânico agarravase a ele a quem queria acima de tudo Fora atingida pelo demônio da fé A vida é horrível disselhe baixo faminta O que faria se seguisse o chamado do cego Iria sozinha Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela Ela precisava deles Tenho medo disse Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços ouviu o seu choro assustado Mamãe chamou o menino Afastouo olhou aquele rosto seu coração crispouse Não deixe mamãe te esquecer disselhe A criança mal sentiu o abraço se afrouxar escapou e correu até a porta do quarto de onde olhou a mais segura Era o pior olhar que jamais recebera O sangue subiulhe ao rosto esquentandoo Deixouse cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede De que tinha vergonha Não havia como fugir Os dias que ela forjara haviamse rompido na crosta e a água escapava Estava diante da ostra E não havia como não olhála De que tinha vergonha É que já não era mais piedade não era só piedade seu coração se enchera com a pior vontade de viver Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lado dos que lhe haviam ferido os olhos O Jardim Botânico tranquilo e alto lhe revelava Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo e que nome se deveria dar à sua misericórdia violenta Seria obrigada a beijar o leproso pois nunca seria apenas sua irmã Um cego me levou ao pior de mim mesma pensou espantada Sentiase banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes Ah era mais fácil ser um santo que uma pessoa Por Deus pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas Mas era uma piedade de leão Humilhada sabia que o cego preferiria um amor mais pobre E estremecendo também sabia por quê A vida do Jardim Botânico chamavaa como um lobisomem é chamado pelo luar Oh mas ela amava o cego pensou com os olhos molhados No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja Estou com medo disse sozinha na sala Levantouse e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar Mas a vida arrepiavaa como um frio Ouvia o sino da escola longe e constante O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão onde descobriu a pequena aranha Carregando a jarra para mudar a água havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha Perto da lata de lixo esmagou com o pé a formiga O pequeno assassinato da formiga O mínimo corpo tremia As gotas dágua caíam na água parada do tanque Os besouros de verão O horror dos besouros inexpressivos Ao redor havia uma vida silenciosa lenta insistente Horror horror Andava de um lado para outro na cozinha cortando os bifes mexendo o creme Em torno da cabeça em ronda em torno da luz os mosquitos de uma noite cálida Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim Entre os dois seios escorria o suor A fé a quebrantava o calor do forno ardia nos seus olhos Depois o marido veio vieram os irmãos e suas mulheres vieram os filhos dos irmãos Jantaram com as janelas todas abertas no nono andar Um avião estremecia ameaçando no calor do céu Apesar de ter usado poucos ovos o jantar estava bom Também suas crianças ficaram acordadas brincando no tapete com as outras Era verão seria inútil obrigálas a dormir Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros Depois do jantar enfim a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas Eles rodeavam a mesa a família Cansados do dia felizes em não discordar tão dispostos a não ver defeitos Riamse de tudo com o coração bom e humano As crianças cresciam admiravelmente em torno deles E como a uma borboleta Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu Depois quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas ela era uma mulher bruta que olhava pela janela A cidade estava adormecida e quente O que o cego desencadeara caberia nos seus dias Quantos anos levaria até envelhecer de novo Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças Mas com uma maldade de amante parecia aceitar que da flor saísse o mosquito que as vitóriasrégias boiassem no escuro do lago O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico Se fora um estouro do fogão o fogo já teria pegado em toda a casa pensou correndo para a cozinha e deparando com seu marido diante do café derramado O que foi gritou vibrando toda Ele se assustou com o medo da mulher E de repente riu entendendo Não foi nada disse sou um desajeitado Ele parecia cansado com olheiras Mas diante do estranho rosto de Ana espioua com maior atenção Depois atraiua a si em rápido afago Não quero que lhe aconteça nada nunca disse ela Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro respondeu ele sorrindo Ela continuou sem força nos seus braços Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara e na casa toda havia um tom humorístico triste É hora de dormir disse ele é tarde Num gesto que não era seu mas que pareceu natural segurou a mão da mulher levandoa consigo sem olhar para trás afastandoa do perigo de viver Acabarase a vertigem de bondade E se atravessara o amor e o seu inferno penteavase agora diante do espelho por um instante sem nenhum mundo no coração Antes de se deitar como se apagasse uma vela soprou a pequena flama do dia UMA GALINHA Era uma galinha de domingo Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã Parecia calma Desde sábado encolherase num canto da cozinha Não olhava para ninguém ninguém olhava para ela Mesmo quando a escolheram apalpando sua intimidade com indiferença não souberam dizer se era gorda ou magra Nunca se adivinharia nela um anseio Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo inchar o peito e em dois ou três lances alcançar a murada do terraço Um instante ainda vacilou o tempo da cozinheira dar um grito e em breve estava no terraço do vizinho de onde em outro voo desajeitado alcançou um telhado Lá ficou em adorno deslocado hesitando ora num ora noutro pé A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé O dono da casa lembrandose da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta hesitante e trêmula escolhia com urgência outro rumo A perseguição tornouse mais intensa De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem nenhum auxílio de sua raça O rapaz porém era um caçador adormecido E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado Sozinha no mundo sem pai nem mãe ela corria arfava muda concentrada Às vezes na fuga pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento E então parecia tão livre Estúpida tímida e livre Não vitoriosa como seria um galo em fuga Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser A galinha é um ser É verdade que não se poderia contar com ela para nada Nem ela própria contava consigo como o galo crê na sua crista Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma Afinal numa das vezes em que parou para gozar sua fuga o rapaz alcançoua Entre gritos e penas ela foi presa Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência Ainda tonta sacudiuse um pouco em cacarejos roucos e indecisos Foi então que aconteceu De pura afobação a galinha pôs um ovo Surpreendida exausta Talvez fosse prematuro Mas logo depois nascida que fora para a maternidade parecia uma velha mãe habituada Sentouse sobre o ovo e assim ficou respirando abotoando e desabotoando os olhos Seu coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida Mal porém conseguiu desvencilharse do acontecimento despregouse do chão e saiu aos gritos Mamãe mamãe não mate mais a galinha ela pôs um ovo ela quer o nosso bem Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente Esquentando seu filho esta não era nem suave nem arisca nem alegre nem triste não era nada era uma galinha O que não sugeria nenhum sentimento especial O pai a mãe e a filha olhavam já há algum tempo sem propriamente um pensamento qualquer Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha O pai afinal decidiuse com certa brusquidão Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida Eu também jurou a menina com ardor A mãe cansada deu de ombros Inconsciente da vida que lhe fora entregue a galinha passou a morar com a família A menina de volta do colégio jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha O pai de vez em quando ainda se lembrava E dizer que a obriguei a correr naquele estado A galinha tornarase a rainha da casa Todos menos ela o sabiam Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos usando suas duas capacidades a de apatia e a do sobressalto Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam têla esquecido enchiase de uma pequena coragem resquícios da grande fuga e circulava pelo ladrilho o corpo avançando atrás da cabeça pausado como num campo embora a pequena cabeça a traísse mexendose rápida e vibrátil com o velho susto de sua espécie já mecanizado Uma vez ou outra sempre mais raramente lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado prestes a anunciar Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e se fosse dado às fêmeas cantar ela não cantaria mas ficaria muito mais contente Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse Na fuga no descanso quando deu à luz ou bicando milho era uma cabeça de galinha a mesma que fora desenhada no começo dos séculos Até que um dia mataramna comeramna e passaramse anos A IMITAÇÃO DA ROSA Antes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e ela própria já no vestido marrom para que pudesse atender o marido enquanto ele se vestia e então sairiam com calma de braço dado como antigamente Há quanto tempo não faziam isso Mas agora que ela estava de novo bem tomariam o ônibus ela olhando como uma esposa pela janela o braço no dele e depois jantariam com Carlota e João recostados na cadeira com intimidade Há quanto tempo não via Armando enfim se recostar com intimidade e conversar com um homem A paz de um homem era esquecido de sua mulher conversar com outro homem sobre o que saía nos jornais Enquanto isso ela falaria com Carlota sobre coisas de mulheres submissa à bondade autoritária e prática de Carlota recebendo enfim de novo a desatenção e o vago desprezo da amiga a sua rudeza natural e não mais aquele carinho perplexo e cheio de curiosidade e vendo enfim Armando esquecido da própria mulher E ela mesma enfim voltando à insignificância com reconhecimento Como um gato que passou a noite fora e como se nada tivesse acontecido encontrasse sem uma palavra um pires de leite esperando As pessoas felizmente ajudavam a fazêla sentir que agora estava bem Sem a fitarem ajudavamna ativamente a esquecer fingindo elas próprias o esquecimento como se tivessem lido a mesma bula do mesmo vidro de remédio Ou tinham esquecido realmente quem sabe Há quanto tempo não via Armando enfim se recostar com abandono esquecido dela E ela mesma Interrompendo a arrumação da penteadeira Laura olhouse ao espelho e ela mesma há quanto tempo Seu rosto tinha uma graça doméstica os cabelos eram presos com grampos atrás das orelhas grandes e pálidas Os olhos marrons os cabelos marrons a pele morena e suave tudo dava a seu rosto já não muito moço um ar modesto de mulher Por acaso alguém veria naquela mínima ponta de surpresa que havia no fundo de seus olhos alguém veria nesse mínimo ponto ofendido a falta dos filhos que ela nunca tivera Com seu gosto minucioso pelo método o mesmo que a fazia quando aluna copiar com letra perfeita os pontos da aula sem compreendêlos com seu gosto pelo método agora reassumido planejava arrumar a casa antes que a empregada saísse de folga para que uma vez Maria na rua ela não precisasse fazer mais nada senão 1º calmamente vestirse 2º esperar Armando já pronta 3º o terceiro o que era Pois é Era isso mesmo o que faria E poria o vestido marrom com gola de renda creme Com seu banho tomado Já no tempo do Sacré Coeur ela fora arrumada e limpa com um gosto pela higiene pessoal e um certo horror à confusão O que não fizera nunca com que Carlota já naquele tempo um pouco original a admirasse A reação das duas sempre fora diferente Carlota ambiciosa e rindo com força ela Laura um pouco lenta e por assim dizer cuidando em se manter sempre lenta Carlota não vendo perigo em nada E ela cuidadosa Quando lhe haviam dado para ler a Imitação de Cristo com um ardor de burra ela lera sem entender mas que Deus a perdoasse ela sentira que quem imitasse Cristo estaria perdido perdido na luz mas perigosamente perdido Cristo era a pior tentação E Carlota nem ao menos quisera ler mentira para a freira dizendo que tinha lido Pois é Poria o vestido marrom com gola de renda verdadeira Mas quando viu as horas lembrouse num sobressalto que a fez levar a mão ao peito que se esquecera de tomar o copo de leite Encaminhouse para a cozinha e como se tivesse culposamente traído com seu descuido Armando e os amigos devotados ainda junto da geladeira bebeu os primeiros goles com um devagar ansioso concentrandose em cada gole com fé como se estivesse indenizando a todos e se penitenciando Se o médico dissera Tome leite entre as refeições nunca fique com o estômago vazio pois isso dá ansiedade então mesmo sem ameaça de ansiedade ela tomava sem discutir gole por gole dia após dia não falhara nunca obedecendo de olhos fechados com um ligeiro ardor para que não pudesse enxergar em si a menor incredulidade O embaraçante é que o médico parecia contradizerse quando ao mesmo tempo que recomendava uma ordem precisa que ela queria seguir com o zelo de uma convertida dissera também Abandonese tente tudo suavemente não se esforce por conseguir esqueça completamente o que aconteceu e tudo voltará com naturalidade E lhe dera uma palmada nas costas o que a lisonjeara e a fizera corar de prazer Mas na sua humilde opinião uma ordem parecia anular a outra como se lhe pedissem para comer farinha e assobiar ao mesmo tempo Para fundilas numa só ela passara a usar um engenho aquele copo de leite que terminara por ganhar um secreto poder que tinha dentro de cada gole quase o gosto de uma palavra e renovava a forte palmada nas costas aquele copo de leite ela o levava à sala onde se sentava com muita naturalidade fingindo falta de interesse não se esforçando e assim cumprindo espertamente a segunda ordem Não tem importância que eu engorde pensou o principal nunca fora a beleza Sentouse no sofá como se fosse uma visita na sua própria casa que tão recentemente recuperada arrumada e fria lembrava a tranquilidade de uma casa alheia O que era tão satisfatório ao contrário de Carlota que fizera de seu lar algo parecido com ela própria Laura tinha tal prazer em fazer de sua casa uma coisa impessoal de certo modo perfeita por ser impessoal Oh como era bom estar de volta realmente de volta sorriu ela satisfeita Segurando o copo quase vazio fechou os olhos com um suspiro de cansaço bom Passara a ferro as camisas de Armando fizera listas metódicas para o dia seguinte calculara minuciosamente o que gastara de manhã na feira não parara na verdade um instante sequer Oh como era bom estar de novo cansada Se uma pessoa perfeita do planeta Marte descesse e soubesse que as pessoas da Terra se cansavam e envelheciam teria pena e espanto Sem entender jamais o que havia de bom em ser gente em sentirse cansada em diariamente falir só os iniciados compreenderiam essa nuance de vício e esse refinamento de vida E ela retornara enfim da perfeição do planeta Marte Ela que nunca ambicionara senão ser a mulher de um homem reencontrava grata sua parte diariamente falível De olhos fechados suspirou reconhecida Há quanto tempo não se cansava Mas agora sentiase todos os dias quase exausta e passara por exemplo as camisas de Armando sempre gostara de passar a ferro e sem modéstia era uma passadeira de mão cheia E depois ficava exausta como uma recompensa Não mais aquela falta alerta de fadiga Não mais aquele ponto vazio e acordado e horrivelmente maravilhoso dentro de si Não mais aquela terrível independência Não mais a facilidade monstruosa e simples de não dormir nem de dia nem de noite que na sua discrição a fizera subitamente superhumana em relação a um marido cansado e perplexo Ele com aquele hálito que tinha quando estava mudo de preocupação o que dava a ela uma piedade pungente sim mesmo dentro de sua perfeição acordada a piedade e o amor ela superhumana e tranquila no seu isolamento brilhante e ele quando tímido vinha visitála levando maçãs e uvas que a enfermeira com um levantar de ombros comia ele fazendo visita de cerimônia como um namorado com o hálito infeliz e um sorriso fixo esforçandose no seu heroísmo por compreender ele que a recebera de um pai e de um padre e que não sabia o que fazer com essa moça da Tijuca que inesperadamente como um barco tranquilo se empluma nas águas se tornara superhumana Agora nada mais disso Nunca mais Oh fora apenas uma fraqueza o gênio era a pior tentação Mas depois ela voltara tão completamente que até já começava de novo a precisar de tomar cuidado para não amolar os outros com seu velho gosto pelo detalhe Ela bem se lembrava das colegas do Sacré Coeur lhe dizendo Você já contou isso mil vezes ela se lembrava com um sorriso constrangido Voltara tão completamente agora todos os dias ela se cansava todos os dias seu rosto decaía ao entardecer e a noite então tinha a sua antiga finalidade não era apenas a perfeita noite estrelada E tudo se completava harmonioso E como para todo o mundo cada dia a fatigava como todo o mundo humana e perecível Não mais aquela perfeição não mais aquela juventude Não mais aquela coisa que um dia se alastrara clara como um câncer a sua alma Abriu os olhos pesados de sono sentindo o bom copo sólido nas mãos mas fechouos de novo com um sorriso confortável de cansaço banhandose como um novorico em todas as suas partículas nessa água familiar e ligeiramente enjoativa Sim ligeiramente enjoativa que importância tinha pois se também ela era um pouco enjoativa bem sabia Mas o marido não achava e então que importância tinha pois se graças a Deus ela não vivia num ambiente que exigisse que ela fosse mais arguta e interessante e até do ginásio que tão embaraçosamente exigira que ela fosse alerta ela se livrara Que importância tinha No cansaço passara as camisas de Armando sem contar que fora de manhã à feira e demorara tanto lá com aquele gosto que tinha em fazer as coisas renderem no cansaço havia um lugar bom para ela o lugar discreto e apagado de onde com tanto constrangimento para si e para os outros saíra uma vez Mas como ia dizendo graças a Deus voltara E se procurasse com mais crença e amor encontraria dentro do cansaço aquele lugar ainda melhor que seria o sono Suspirou com prazer por um momento de travessura maliciosa tentada a ir de encontro ao hálito morno que era sua respiração já sonolenta por um instante tentada a cochilar Um instante só só um instantezinho pediuse lisonjeada por ter tanto sono pedia cheia de manha como se pedisse a um homem o que sempre agradara muito Armando Mas não tinha verdadeiramente tempo de dormir agora nem sequer de tirar um cochilo pensou vaidosa e com falsa modéstia ela era uma pessoa tão ocupada sempre invejara as pessoas que diziam não tive tempo e agora ela era de novo uma pessoa tão ocupada iam jantar com Carlota e tudo tinha que estar ordeiramente pronto era o primeiro jantar fora desde que voltara e ela não queria chegar atrasada tinha que estar pronta quando bem eu já disse isso mil vezes pensou encabulada Bastaria dizer uma só vez não queria chegar atrasada pois isso era motivo suficiente se nunca suportara sem enorme vexame ser um transtorno para alguém agora então mais que nunca não deveria Não não havia a menor dúvida não tinha tempo de dormir O que devia fazer mexendose com familiaridade naquela íntima riqueza da rotina e magoavaa que Carlota desprezasse seu gosto pela rotina o que devia fazer era 1º esperar que a empregada estivesse pronta 2º darlhe o dinheiro para ela já trazer a carne de manhã chã de dentro como explicar que a dificuldade de achar carne boa era até um assunto bom mas se Carlota soubesse a desprezaria 3º começar minuciosamente a se lavar e a se vestir entregandose sem reserva ao prazer de fazer o tempo render O vestido marrom combinava com seus olhos e a golinha de renda creme davalhe alguma coisa de infantil como um menino antigo E de volta à paz noturna da Tijuca não mais aquela luz cega das enfermeiras penteadas e alegres saindo para as folgas depois de têla lançado como a uma galinha indefesa no abismo da insulina de volta à paz noturna da Tijuca de volta à sua verdadeira vida ela iria de braço dado com Armando andando devagar para o ponto do ônibus com aquelas coxas baixas e grossas que a cinta empacotava numa só fazendo dela uma senhora distinta mas quando sem jeito ela dizia a Armando que isso vinha de insuficiência ovariana ele que se sentia lisonjeado com as coxas de sua mulher respondia com muita audácia De que me adiantava casar com uma bailarina era isso o que ele respondia Ninguém diria mas Armando podia ser às vezes muito malicioso ninguém diria De vez em quando eles diziam a mesma coisa Ela explicava que era por causa de insuficiência ovariana Então ele falava assim De que é que me adiantava ser casado com uma bailarina Às vezes ele era muito semvergonha ninguém diria Carlota ficaria espantada se soubesse que eles também tinham vida íntima e coisas a não contar mas ela não contaria era uma pena não poder contar Carlota na certa pensava que ela era apenas ordeira e comum e um pouco chata e se ela era obrigada a tomar cuidado para não importunar os outros com detalhes com Armando ela às vezes relaxava e era chatinha o que não tinha importância porque ele fingia que ouvia mas não ouvia tudo o que ela lhe contava o que não a magoava ela compreendia perfeitamente bem que suas conversas cansavam um pouquinho uma pessoa mas era bom poder lhe contar que não encontrara carne mesmo que Armando balançasse a cabeça e não ouvisse a empregada e ela conversavam muito na verdade mais ela mesma que a empregada e ela também tomava cuidado para não cacetear a empregada que às vezes continha a impaciência e ficava um pouco malcriada a culpa era mesmo sua porque nem sempre ela se fazia respeitar Mas como ela ia dizendo de braço dado baixinha e ele alto e magro mas ele tinha saúde graças a Deus e ela castanha Ela castanha como obscuramente achava que uma esposa devia ser Ter cabelos pretos ou louros eram um excesso que na sua vontade de acertar ela nunca ambicionara Então em matéria de olhos verdes parecialhe que se tivesse olhos verdes seria como se não dissesse tudo a seu marido Não é que Carlota desse propriamente o que falar mas ela Laura que se tivesse oportunidade a defenderia ardentemente mas nunca tivera a oportunidade ela Laura era obrigada a contragosto a concordar que a amiga tinha um modo esquisito e engraçado de tratar o marido oh não por ser de igual para igual pois isso agora se usava mas você sabe o que quero dizer E Carlota era até um pouco original isso até ela já comentara uma vez com Armando e Armando concordara mas não dera muita importância Mas como ela ia dizendo de marrom com a golinha o devaneio enchiaa com o mesmo gosto que tinha em arrumar gavetas chegava a desarrumálas para poder arrumálas de novo Abriu os olhos e como se fosse a sala que tivesse tirado um cochilo e não ela a sala parecia renovada e repousada com suas poltronas escovadas e as cortinas que haviam encolhido na última lavagem com calças curtas demais e a pessoa olhando cômica para as próprias pernas Oh como era bom rever tudo arrumado e sem poeira tudo limpo pelas suas próprias mãos destras e tão silencioso e com um jarro de flores como uma sala de espera Sempre achara lindo uma sala de espera tão respeitoso tão impessoal Como era rica a vida comum ela que enfim voltara da extravagância Até um jarro de flores Olhouo Ah como são lindas exclamou seu coração de repente um pouco infantil Eram miúdas rosas silvestres que ela comprara de manhã na feira em parte porque o homem insistira tanto em parte por ousadia Arrumaraas no jarro de manhã mesmo enquanto tomava o sagrado copo de leite das dez horas Mas à luz desta sala as rosas estavam em toda a sua completa e tranquila beleza Nunca vi rosas tão bonitas pensou com curiosidade E como se não tivesse acabado de pensar exatamente isso vagamente consciente de que acabara de pensar exatamente isso e passando rápida por cima do embaraço em se reconhecer um pouco cacete pensou numa etapa mais nova de surpresa sinceramente nunca vi rosas tão bonitas Olhouas com atenção Mas a atenção não podia se manter muito tempo como simples atenção transformavase logo em suave prazer e ela não conseguia mais analisar as rosas era obrigada a interromperse com a mesma exclamação de curiosidade submissa como são lindas Eram algumas rosas perfeitas várias no mesmo talo Em algum momento tinham trepado com ligeira avidez umas sobre as outras mas depois o jogo feito haviam se imobilizado tranquilas Eram algumas rosas perfeitas na sua miudez não de todo desabrochadas e o tom rosa era quase branco Parecem até artificiais disse em surpresa Poderiam dar a impressão de brancas se estivessem totalmente abertas mas com as pétalas centrais enrodilhadas em botão a cor se concentrava e como num lóbulo de orelha sentiase o rubor circular dentro delas Como são lindas pensou Laura surpreendida Mas sem saber por quê estava um pouco constrangida um pouco perturbada Oh nada demais apenas acontecia que a beleza extrema incomodava Ouviu os passos da empregada no ladrilho da cozinha e pelo som oco reconheceu que ela estava de salto alto devia pois estar pronta para sair Então Laura teve uma ideia de certo modo muito original por que não pedir a Maria para passar por Carlota e deixarlhe as rosas de presente E também porque aquela beleza extrema incomodava Incomodava Era um risco Oh não por que risco apenas incomodava eram uma advertência oh não por que advertência Maria daria as rosas a Carlota D Laura mandou diria Maria Sorriu pensativa Carlota estranharia que Laura podendo trazer pessoalmente as rosas já que desejava presenteálas mandasseas antes do jantar pela empregada Sem falar que acharia engraçado receber as rosas acharia refinado Essas coisas não são necessárias entre nós Laura diria a outra com aquela franqueza um pouco bruta e Laura diria num abafado grito de arrebatamento Oh não não não é por causa do convite para jantar é que as rosas eram tão lindas que tive o impulso de dar a você Sim se na hora desse jeito e ela tivesse coragem era assim mesmo que diria Como é mesmo que diria precisava não esquecer diria Oh não etc E Carlota se surpreenderia com a delicadeza de sentimentos de Laura ninguém imaginaria que Laura tivesse também suas ideiazinhas Nesta cena imaginária e aprazível que a fazia sorrir beata ela chamava a si mesma de Laura como a uma terceira pessoa Uma terceira pessoa cheia daquela fé suave e crepitante e grata e tranquila Laura a da golinha de renda verdadeira vestida com discrição esposa de Armando enfim um Armando que não precisava mais se forçar a prestar atenção em todas as suas conversas sobre empregada e carne que não precisava mais pensar na sua mulher como um homem que é feliz como um homem que não é casado com uma bailarina Não pude deixar de lhe mandar as rosas diria Laura essa terceira pessoa tão mas tão E dar as rosas era quase tão bonito como as próprias rosas E mesmo ela ficaria livre delas E o que é mesmo que aconteceria então Ah sim como ia dizendo Carlota surpreendida com aquela Laura que não era inteligente nem boa mas que tinha também seus sentimentos secretos E Armando Armando a olharia com um pouco de bom espanto pois é essencial não esquecer que de forma alguma ele está sabendo que a empregada levou de tarde as rosas Armando encararia com benevolência os impulsos de sua pequena mulher e de noite eles dormiriam juntos E ela teria esquecido as rosas e a sua beleza Não pensou de súbito vagamente avisada Era preciso tomar cuidado com o olhar de espanto dos outros Era preciso nunca mais dar motivo para espanto ainda mais com tudo ainda tão recente E sobretudo poupar a todos o mínimo sofrimento da dúvida E que não houvesse nunca mais necessidade da atenção dos outros nunca mais essa coisa horrível de todos olharemna mudos e ela em frente a todos Nada de impulsos Mas ao mesmo tempo viu o copo vazio na mão e pensou também ele disse que eu não me esforce por conseguir que não pense em tomar atitudes apenas para provar que já estou Maria disse então ao ouvir de novo os passos da empregada E quando esta se aproximou disselhe temerária e desafiadora você poderia passar pela casa de d Carlota e deixar estas rosas para ela Você diz assim D Carlota d Laura mandou Você diz assim D Carlota Sei sei disse a empregada paciente Laura foi buscar uma velha folha de papel de seda Depois tirou com cuidado as rosas do jarro tão lindas e tranquilas com os delicados e mortais espinhos Queria fazer um ramo bem artístico E ao mesmo tempo se livraria delas E poderia se vestir e continuar seu dia Quando reuniu as rosinhas úmidas em buquê afastou a mão que as segurava olhouas a distância entortando a cabeça e entrefechando os olhos para um julgamento imparcial e severo E quando olhouas viu as rosas E então incoercível suave ela insinuou em si mesma não dê as rosas elas são lindas Um segundo depois muito suave ainda o pensamento ficou levemente mais intenso quase tentador não dê elas são suas Laura espantouse um pouco porque as coisas nunca eram dela Mas estas rosas eram Rosadas pequenas perfeitas eram Olhouas com incredulidade eram lindas e eram suas Se conseguisse pensar mais adiante pensaria suas como nada até agora tinha sido E mesmo podia ficar com elas pois já passara aquele primeiro desconforto que fizera com que vagamente ela tivesse evitado olhar demais as rosas Por que dálas então lindas e dálas Pois quando você descobre uma coisa boa então você vai e dá Pois se eram suas insinuavase ela persuasiva sem encontrar outro argumento além do mesmo que repetido lhe parecia cada vez mais convincente e simples Não iam durar muito por que então dálas enquanto estavam vivas O prazer de têlas não significava grande risco enganouse ela pois quisesse ou não quisesse em breve seria forçada a se privar delas e nunca mais então pensaria nelas pois elas teriam morrido elas não iam durar muito por que então dálas O fato de não durarem muito parecia tirarlhe a culpa de ficar com elas numa obscura lógica de mulher que peca Pois viase que iam durar pouco ia ser rápido sem perigo E mesmo argumentou numa última e vitoriosa rejeição de culpa não fora de modo algum ela quem quisera comprar o vendedor insistira muito e ela se tornava sempre tão tímida quando a constrangiam não fora ela quem quisera comprar ela não tinha culpa nenhuma Olhouas com enlevo pensativa profunda E sinceramente nunca vi na minha vida coisa mais perfeita Bem mas agora ela já falara com Maria e não teria jeito de voltar atrás Seria então tarde demais assustouse vendo as rosinhas que aguardavam impassíveis na sua própria mão Se quisesse não seria tarde demais Poderia dizer a Maria ô Maria resolvi que eu mesma levo as rosas quando for jantar E é claro não as levaria E Maria nunca precisaria saber E antes de mudar de roupa ela se sentaria no sofá por um instante só por um instante para olhálas E olhar aquela tranquila isenção das rosas Sim porque já tendo feito a coisa mais valia aproveitar não seria boba de ficar com a fama sem o proveito Era isso mesmo o que faria Mas com as rosas desembrulhadas na mão ela esperava Não as depunha no jarro não chamava Maria Ela sabia por quê Porque devia dálas Oh ela sabia por quê E também porque uma coisa bonita era para se dar ou para se receber não apenas para se ter E sobretudo nunca para se ser Sobretudo nunca se deveria ser a coisa bonita A uma coisa bonita faltava o gesto de dar Nunca se devia ficar com uma coisa bonita assim como que guardada dentro do silêncio perfeito do coração Embora se ela não desse as rosas nunca ninguém no mundo ia saber que ela pretendera dálas quem iria jamais descobrir era horrivelmente fácil e ao alcance da mão ficar com elas pois quem iria descobrir e elas seriam suas e as coisas ficariam por isso mesmo e não se fala mais nisso Então e então indagouse vagamente inquieta Então não O que devia fazer era embrulhálas e mandálas sem nenhum prazer agora embrulhálas e decepcionada mandálas e espantada ficar livre delas Também porque uma pessoa tinha que ter coerência seus pensamentos deviam ter congruência se espontaneamente resolvera cedêlas a Carlota deveria manter a resolução e dálas Pois ninguém mudava de ideia de um momento para outro Mas qualquer pessoa pode se arrepender revoltouse de súbito Pois se só no momento de pegar as rosas é que notei quanto as achava lindas pela primeira vez na verdade ao pegálas notara que eram lindas Ou um pouco antes E mesmo elas eram suas E mesmo o próprio médico lhe dera a palmada nas costas e dissera não se esforce por fingir que a senhora está bem porque a senhora está bem e depois a palmada forte nas costas Assim pois ela não era obrigada a ter coerência não tinha que provar nada a ninguém e ficaria com as rosas E mesmo e mesmo elas eram suas Estão prontas perguntou Maria Estão disse Laura surpreendida Olhouas tão mudas na sua mão Impessoais na sua extrema beleza Na sua extrema tranquilidade perfeita de rosas Aquela última instância a flor Aquele último aperfeiçoamento a luminosa tranquilidade Como uma viciada ela olhava ligeiramente ávida a perfeição tentadora das rosas com a boca um pouco seca olhavaas Até que devagar austera enrolou os talos e espinhos no papel de seda Tão absorta estivera que só ao estender o ramo pronto notou que Maria não estava mais na sala e ficou sozinha com seu heróico sacrifício Vagamente dolorosa olhouas assim distantes como estavam na ponta do braço estendido e a boca ficou ainda mais enxuta aquela inveja aquele desejo Mas elas são minhas disse com enorme timidez Quando Maria voltou e pegou o ramo por um mínimo instante de avareza Laura encolheu a mão retendo as rosas um segundo mais consigo elas são lindas e são minhas é a primeira coisa linda e minha e foi o homem que insistiu não fui eu que procurei foi o destino quem quis oh só dessa vez só essa vez e juro que nunca mais Ela poderia pelo menos tirar para si uma rosa nada mais que isso uma rosa para si E só ela saberia e depois nunca mais oh ela se prometia que nunca mais se deixaria tentar pela perfeição nunca mais E no segundo seguinte sem nenhuma transição sem nenhum obstáculo as rosas estavam na mão da empregada não eram mais suas como uma carta que já se pôs no correio não se pode mais recuperar nem riscar os dizeres não adianta gritar não foi isso o que quis dizer Ficou com as mãos vazias mas seu coração obstinado e rancoroso ainda dizia você pode pegar Maria nas escadas você bem sabe que pode e tirar as rosas de sua mão e roubálas Por que tirálas agora seria roubar Roubar o que era seu Pois era assim que uma pessoa que não tivesse nenhuma pena dos outros faria roubaria o que era seu por direito Oh tem piedade meu Deus Você pode recuperar tudo insistia com cólera E então a porta da rua bateu Então a porta da rua bateu Então devagar ela se sentou calma no sofá Sem apoiar as costas Só para descansar Não não estava zangada oh nem um pouco Mas o ponto ofendido no fundo dos olhos estava maior e pensativo Olhou o jarro Cadê minhas rosas disse então muito sossegada E as rosas faziamlhe falta Haviam deixado um lugar claro dentro dela Tirase de uma mesa limpa um objeto e pela marca mais limpa que ficou então se vê que ao redor havia poeira As rosas haviam deixado um lugar sem poeira e sem sono dentro dela No seu coração aquela rosa que ao menos poderia ter tirado para si sem prejudicar ninguém no mundo faltava Como uma falta maior Na verdade como a falta Uma ausência que entrava nela como uma claridade E também ao redor da marca das rosas a poeira ia desaparecendo O centro da fadiga se abria em círculo que se alargava Como se ela não tivesse passado nenhuma camisa de Armando E na clareira as rosas faziam falta Cadê minhas rosas queixouse sem dor alisando as preguinhas da saia Como se pinga limão no chá escuro e o chá escuro vai se clareando todo Seu cansaço ia gradativamente se clareando Sem cansaço nenhum aliás Assim como o vagalume acende Já que não estava mais cansada ia então se levantar e se vestir Estava na hora de começar Mas com os lábios secos procurou um instante imitar por dentro de si as rosas Não era sequer difícil Até bom que não estava cansada Assim iria até mais fresca para o jantar Por que não pôr na golinha de renda verdadeira o camafeu que o major trouxera da guerra na Itália Arremataria bem o decote Quando estivesse pronta ouviria o barulho da chave de Armando na porta Precisava se vestir Mas ainda era cedo Com a dificuldade de condução ele demorava Ainda era de tarde Uma tarde muito bonita Aliás já não era mais de tarde Era de noite Da rua subiam os primeiros ruídos da escuridão e as primeiras luzes Aliás a chave penetrou com familiaridade no buraco da fechadura Armando abriria a porta Apertaria o botão de luz E de súbito no enquadramento da porta se desnudaria aquele rosto expectante que ele procurava disfarçar mas não podia conter Depois sua respiração suspensa se transformaria enfim num sorriso de grande desopressão Aquele sorriso embaraçado de alívio que ele nunca suspeitara que ela percebia Aquele alívio que provavelmente com uma palmada nas costas tinham aconselhado seu pobre marido a ocultar Mas que para o coração tão cheio de culpa da mulher tinha sido cada dia a recompensa por ter enfim dado de novo àquele homem a alegria possível e a paz sagradas pela mão de um padre austero que permitia aos seres apenas a alegria humilde e não a imitação de Cristo A chave virou na fechadura o vulto escuro e precipitado entrou a luz inundou violenta a sala E na porta mesmo ele estacou com aquele ar ofegante e de súbito paralisado como se tivesse corrido léguas para não chegar tarde demais Ela ia sorrir Para que ele enfim desmanchasse a ansiosa expectativa do rosto que sempre vinha misturada com a infantil vitória de ter chegado a tempo de encontrála chatinha boa e diligente e mulher sua Ela ia sorrir para que de novo ele soubesse que nunca mais haveria o perigo dele chegar tarde demais Ia sorrir para ensinarlhe docemente a confiar nela Fora inútil recomendaremlhes que nunca falassem no assunto eles não falavam mas tinham arranjado uma linguagem de rosto onde medo e confiança se comunicavam e pergunta e resposta se telegrafavam mudas Ela ia sorrir Estava demorando um pouco porém ia sorrir Calma e suave ela disse Voltou Armando Voltou Como se nunca fosse entender ele enviesou um rosto sorridente desconfiado Seu principal trabalho no momento era procurar reter o fôlego ofegante da corrida pelas escadas já que triunfantemente não chegara atrasado já que ela estava ali a sorrirlhe Como se nunca fosse entender Voltou o quê perguntou afinal num tom inexpressivo Mas enquanto procurava não entender jamais o rosto cada vez mais suspenso do homem já entendera sem que um traço se tivesse alterado Seu trabalho principal era ganhar tempo e se concentrar em reter a respiração O que de repente já não era mais difícil Pois inesperadamente ele percebia com horror que a sala e a mulher estavam calmas e sem pressa Mais desconfiado ainda como quem fosse terminar enfim por dar uma gargalhada ao constatar o absurdo ele no entanto teimava em manter o rosto enviesado de onde a olhava em guarda quase seu inimigo E de onde começava a não poder se impedir de vêla sentada com mãos cruzadas no colo com a serenidade do vagalume que tem luz No olhar castanho e inocente o embaraço vaidoso de não ter podido resistir Voltou o quê disse ele de repente com dureza Não pude impedir disse ela e a derradeira piedade pelo homem estava na sua voz o último pedido de perdão que já vinha misturado à altivez de uma solidão já quase perfeita Não pude impedir repetiu entregandolhe com alívio a piedade que ela com esforço conseguira guardar até que ele chegasse Foi por causa das rosas disse com modéstia Como se fosse para tirar o retrato daquele instante ele manteve ainda o mesmo rosto isento como se o fotógrafo lhe pedisse apenas um rosto e não a alma Abriu a boca e involuntariamente a cara tomou por um instante a expressão de desprendimento cômico que ele usara para esconder o vexame quando pedira aumento ao chefe No instante seguinte desviou os olhos com vergonha pelo despudor de sua mulher que desabrochada e serena ali estava Mas de súbito a tensão caiu Seus ombros se abaixaram os traços do rosto cederam e uma grande pesadez relaxouo Ele a olhou envelhecido curioso Ela estava sentada com o seu vestidinho de casa Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável Com timidez e respeito ele a olhava Envelhecido cansado curioso Mas não tinha uma palavra sequer a dizer Da porta aberta via sua mulher que estava sentada no sofá sem apoiar as costas de novo alerta e tranquila como num trem Que já partira FELIZ ANIVERSÁRIO A família foi pouco a pouco chegando Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana A nora de Olaria apareceu de azulmarinho com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta O marido não veio por razões óbvias não queria ver os irmãos Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles acompanhada dos três filhos duas meninas já de peito nascendo infantilizadas em babados corderosa e anáguas engomadas e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata Tendo Zilda a filha com quem a aniversariante morava disposto cadeiras unidas ao longo das paredes como numa festa em que se vai dançar a nora de Olaria depois de cumprimentar com cara fechada aos de casa aboletouse numa das cadeiras e emudeceu a boca em bico mantendo sua posição de ultrajada Vim para não deixar de vir dissera ela a Zilda e em seguida sentarase ofendida As duas mocinhas de corderosa e o menino amarelos e de cabelo penteado não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da mãe impressionados com seu vestido azulmarinho e com os paetês Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá O marido viria depois E como Zilda a única mulher entre os seis irmãos homens e a única que estava decidido já havia anos tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante e como Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches ficaram a nora de Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao lado a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocuparse com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria a babá ociosa e uniformizada com a boca aberta E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos Zilda a dona da casa arrumara a mesa cedo encheraa de guardanapos de papel colorido e copos de papelão alusivos à data espalhara balões sungados pelo teto em alguns dos quais estava escrito Happy Birthday em outros Feliz Aniversário No centro havia disposto o enorme bolo açucarado Para adiantar o expediente enfeitara a mesa logo depois do almoço encostara as cadeiras à parede mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumar a mesa E para adiantar o expediente vestira a aniversariante logo depois do almoço Puseralhe desde então a presilha em torno do pescoço e o broche borrifaralhe um pouco de águade colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado sentaraa à mesa E desde as duas horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia tesa na sala silenciosa De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos Olhando curiosa um ou outro balão estremecer aos carros que passavam E de vez em quando aquela angústia muda quando acompanhava fascinada e impotente o voo da mosca em torno do bolo Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo mais a situação de estar sentada defronte da concunhada de Olaria que cheia das ofensas passadas não via um motivo para desfitar desafiadora a nora de Ipanema entraram enfim José e a família E mal eles se beijavam a sala começou a ficar cheia de gente que ruidosa se cumprimentava como se todos tivessem esperado embaixo o momento de em afobação de atraso subir os três lances de escada falando arrastando crianças surpreendidas enchendo a sala e inaugurando a festa Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais de modo que ninguém podia saber se ela estava alegre Estava era posta à cabeceira Tratavase de uma velha grande magra imponente e morena Parecia oca Oitenta e nove anos sim senhor disse José filho mais velho agora que Jonga tinha morrido Oitenta e nove anos sim senhora disse esfregando as mãos em admiração pública e como sinal imperceptível para todos Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo mais oficial Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família toda Sim senhor disseram alguns sorrindo timidamente Oitenta e nove anos ecoou Manoel que era sócio de José É um brotinho disse espirituoso e nervoso e todos riram menos sua esposa A velha não se manifestava Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum Outros trouxeram saboneteira uma combinação de jérsei um broche de fantasia um vasinho de cactos nada nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos nada que a própria aniversariante pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia a dona da casa guardava os presentes amarga irônica Oitenta e nove anos repetiu Manoel aflito olhando para a esposa A velha não se manifestava Então como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem com um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda continuaram a fazer a festa sozinhos comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que por apetite brincando de que todos estavam morrendo de fome O ponche foi servido Zilda suava nenhuma cunhada ajudou propriamente a gordura quente dos croquetes dava um cheiro de piquenique e de costas para a aniversariante que não podia comer frituras eles riam inquietos E Cordélia Cordélia a nora mais moça sentada sorrindo Não senhor respondeu José com falsa severidade hoje não se fala em negócios Está certo está certo recuou Manoel depressa olhando rapidamente para sua mulher que de longe estendia um ouvido atento Nada de negócios gritou José hoje é o dia da mãe Na cabeceira da mesa já suja os copos maculados só o bolo inteiro ela era a mãe A aniversariante piscou os olhos E quando a mesa estava imunda as mães enervadas com o barulho que os filhos faziam enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras então fecharam a inútil luz do corredor para acender a vela do bolo uma vela grande com um papelzinho colado onde estava escrito 89 Mas ninguém elogiou a ideia de Zilda e ela se perguntou angustiada se eles não estariam pensando que fora por economia de velas ninguém se lembrando de que ninguém havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa que ela Zilda servia como uma escrava os pés exaustos e o coração revoltado Então acenderam a vela E então José o líder cantou com muita força entusiasmando com um olhar autoritário os mais hesitantes ou surpreendidos vamos todos de uma vez e todos de repente começaram a cantar alto como soldados Despertada pelas vozes Cordélia olhou esbaforida Como não haviam combinado uns cantaram em português e outros em inglês Tentaram então corrigir e os que haviam cantado em inglês passaram a português e os que haviam cantado em português passaram a cantar bem baixo em inglês Enquanto cantavam a aniversariante à luz da vela acesa meditava como junto de uma lareira Escolheram o bisneto menor que debruçado no colo da mãe encorajadora apagou a chama com um único sopro cheio de saliva Por um instante bateram palmas à potência inesperada do menino que espantado e exultante olhava para todos encantado A dona da casa esperava com o dedo pronto no comutador do corredor e acendeu a lâmpada Viva mamãe Viva vovó Viva d Anita disse a vizinha que tinha aparecido Happy birthday gritaram os netos do Colégio Bennett Bateram ainda algumas palmas ralas A aniversariante olhava o bolo apagado grande e seco Parta o bolo vovó disse a mãe dos quatro filhos é ela quem deve partir assegurou incerta a todos com ar íntimo e intrigante E como todos aprovassem satisfeitos e curiosos ela se tornou de repente impetuosa parta o bolo vovó E de súbito a velha pegou na faca E sem hesitação como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente deu a primeira talhada com punho de assassina Que força segredou a nora de Ipanema e não se sabia se estava escandalizada ou agradavelmente surpreendida Estava um pouco horrorizada Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com mais fôlego do que eu disse Zilda amarga Dada a primeira talhada como se a primeira pá de terra tivesse sido lançada todos se aproximaram de prato na mão insinuandose em fingidas acotoveladas de animação cada um para a sua pazinha Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos num silêncio cheio de rebuliço As crianças pequenas com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível desta acompanhavam a distribuição com muda intensidade As passas rolavam do bolo entre farelos secos As crianças angustiadas viam se desperdiçarem as passas acompanhavam atentas a queda E quando foram ver não é que a aniversariante já estava devorando o seu último bocado E por assim dizer a festa estava terminada Cordélia olhava ausente para todos sorria Já lhe disse hoje não se fala em negócios respondeu José radiante Está certo está certo recolheuse Manoel conciliador sem olhar a esposa que não o desfitava Está certo tentou Manoel sorrir e uma contração passoulhe rápido pelos músculos da cara Hoje é dia da mãe disse José Na cabeceira da mesa a toalha manchada de CocaCola o bolo desabado ela era a mãe A aniversariante piscou Eles se mexiam agitados rindo a sua família E ela era a mãe de todos E se de repente não se ergueu como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos a aniversariante ficou mais dura na cadeira e mais alta Ela era a mãe de todos E como a presilha a sufocasse ela era a mãe de todos e impotente à cadeira desprezavaos E olhava os piscando Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho pensou de repente como se cuspisse Rodrigo o neto de sete anos era o único a ser a carne de seu coração Rodrigo com aquela carinha dura viril e despenteada Cadê Rodrigo Rodrigo com olhar sonolento e entumescido naquela cabecinha ardente confusa Aquele seria um homem Mas piscando ela olhava os outros a aniversariante Oh o desprezo pela vida que falhava Como como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos com braços moles e rostos ansiosos Ela a forte que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem obediente e independente ela respeitara a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos O tronco fora bom Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos sem capacidade sequer para uma boa alegria Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos fracos sem austeridade O rancor roncava no seu peito vazio Uns comunistas era o que eram uns comunistas Olhouos com sua cólera de velha Pareciam ratos se acotovelando a sua família Incoercível virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão Mamãe gritou mortificada a dona da casa Que é isso mamãe gritou ela passada de vergonha e não queria sequer olhar os outros sabia que os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha e não faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia Mamãe que é isso disse baixo angustiada A senhora nunca fez isso acrescentou alto para que todos ouvissem queria se agregar ao espanto dos outros quando o galo cantar pela terceira vez renegarás tua mãe Mas seu enorme vexame suavizouse quando ela percebeu que eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a velha não passava agora de uma criança Ultimamente ela deu pra cuspir terminou então confessando contrita para todos Todos olharam a aniversariante compungidos respeitosos em silêncio Pareciam ratos se acotovelando a sua família Os meninos embora crescidos provavelmente já além dos cinquenta anos que sei eu os meninos ainda conservavam os traços bonitinhos Mas que mulheres haviam escolhido E que mulheres os netos ainda mais fracos e mais azedos haviam escolhido Todas vaidosas e de pernas finas com aqueles colares falsificados de mulher que na hora não aguenta a mão aquelas mulherezinhas que casavam mal os filhos que não sabiam pôr uma criada em seu lugar e todas elas com as orelhas cheias de brincos nenhum nenhum de ouro A raiva a sufocava Me dá um copo de vinho disse O silêncio se fez de súbito cada um com o copo imobilizado na mão Vovozinha não vai lhe fazer mal insinuou cautelosa a neta roliça e baixinha Que vovozinha que nada explodiu amarga a aniversariante Que o diabo vos carregue corja de maricas cornos e vagabundas me dá um copo de vinho Dorothy ordenou Dorothy não sabia o que fazer olhou para todos em pedido cômico de socorro Mas como máscaras isentas e inapeláveis de súbito nenhum rosto se manifestava A festa interrompida os sanduíches mordidos na mão algum pedaço que estava na boca a sobrar seco inchando tão fora de hora a bochecha Todos tinham ficado cegos surdos e mudos com croquetes na mão E olhavam impassíveis Desamparada divertida Dorothy deu o vinho astuciosamente apenas dois dedos no copo Inexpressivos preparados todos esperaram pela tempestade Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que Dorothy lhe dera como não mexeu no copo Seu olhar estava fixo silencioso Como se nada tivesse acontecido Todos se entreolharam polidos sorrindo cegamente abstratos como se um cachorro tivesse feito pipi na sala Com estoicismo recomeçaram as vozes e risadas A nora de Olaria que tivera o seu primeiro momento uníssono com os outros quando a tragédia vitoriosamente parecia prestes a se desencadear teve que retornar sozinha à sua severidade sem ao menos o apoio dos três filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros De sua cadeira reclusa ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo sem um drapeado a mania que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas o que não era moda coisa nenhuma não passava era de economia Examinando distante os sanduíches que quase não tinham levado manteiga Ela não se servira de nada de nada Só comera uma coisa de cada para experimentar E por assim dizer de novo a festa estava terminada As pessoas ficaram sentadas benevolentes Algumas com a atenção voltada para dentro de si à espera de alguma coisa a dizer Outras vazias e expectantes com um sorriso amável o estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome As crianças já incontroláveis gritavam cheias de vigor Umas já estavam de cara imunda as outras menores já molhadas a tarde caía rapidamente E Cordélia Cordélia olhava ausente com um sorriso estonteado suportando sozinha o seu segredo Que é que ela tem alguém perguntou com uma curiosidade negligente indicandoa de longe com a cabeça mas também não responderam Acenderam o resto das luzes para precipitar a tranquilidade da noite as crianças começavam a brigar Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão pálida da tarde E o crepúsculo de Copacabana sem ceder no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como um peso Tenho que ir disse perturbada uma das noras levantandose e sacudindo os farelos da saia Vários se ergueram sorrindo A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar fosse uma armadilha E impassível piscando recebeu aquelas palavras propositadamente atropeladas que lhe diziam tentando dar um final arranco de efusão ao que não era mais senão passado a noite já viera quase totalmente A luz da sala parecia então mais amarela e mais rica as pessoas envelhecidas As crianças já estavam histéricas Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar indagavase a velha nas suas profundezas Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava E para aqueles que junto da porta ainda a olharam uma vez a aniversariante era apenas o que parecia ser sentada à cabeceira da mesa imunda com a mão fechada sobre a toalha como encerrando um cetro e com aquela mudez que era a sua última palavra Com um punho fechado sobre a mesa nunca mais ela seria apenas o que ela pensasse Sua aparência afinal a ultrapassara e superandoa se agigantava serena Cordélia olhoua espantada O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez É preciso que se saiba É preciso que se saiba Que a vida é curta Que a vida é curta Porém nenhuma vez mais repetiu Porque a verdade era um relance Cordélia olhoua estarrecida E para nunca mais nenhuma vez repetiu enquanto Rodrigo o neto da aniversariante puxava a mão daquela mãe culpada perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve num ímpeto dilacerante enfim agarrar a sua derradeira chance e viver Mais uma vez Cordélia quis olhar Mas a esse novo olhar a aniversariante era uma velha à cabeceira da mesa Passara o relance E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo a nora seguiuo espantada Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno da mãe pigarreou José lembrandose de que Jonga é quem fazia os discursos Da mãe vírgula riu baixo a sobrinha e a prima mais lenta riu sem achar graça Nós temos disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a esposa Nós temos esse grande privilégio disse distraído enxugando a palma úmida das mãos Mas não era nada disso apenas o malestar da despedida nunca se sabendo ao certo o que dizer José esperando de si mesmo com perseverança e confiança a próxima frase do discurso Que não vinha Que não vinha Que não vinha Os outros aguardavam Como Jonga fazia falta nessas horas José enxugou a testa com o lenço como Jonga fazia falta nessas horas Também fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara e isso dera a Jonga tanta segurança E quando ele morrera a velha nunca mais falara nele pondo um muro entre sua morte e os outros Esquecerao talvez Mas não esquecera aquele mesmo olhar firme e direto com que desde sempre olhara os outros filhos fazendoos sempre desviar os olhos Amor de mãe era duro de suportar José enxugou a testa heroico risonho E de repente veio a frase Até o ano que vem disse José subitamente com malícia encontrando assim sem mais nem menos a frase certa uma indireta feliz Até o ano que vem hein repetiu com receio de não ser compreendido Olhoua orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia mais um ano No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso esclareceu melhor o filho Manoel aperfeiçoando o espírito do sócio Até o ano que vem mamãe e diante do bolo aceso disse ele bem explicado perto de seu ouvido enquanto olhava obsequiador para José E a velha de súbito cacarejou um riso frouxo compreendendo a alusão Então ela abriu a boca e disse Pois é Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo José gritoulhe emocionado grato com os olhos úmidos No ano que vem nos veremos mamãe Não sou surda disse a aniversariante rude acarinhada Os filhos se olharam rindo vexados felizes A coisa tinha dado certo As crianças foram saindo alegres com o apetite estragado A nora de Olaria deu um cascudo de vingança no filho alegre demais e já sem gravata As escadas eram difíceis escuras incrível insistir em morar num prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia menos dia e na ação de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as noras pisado o último degrau com alívio os convidados se encontraram na tranquilidade fresca da rua Era noite sim Com o seu primeiro arrepio Adeus até outro dia precisamos nos ver Apareçam disseram rapidamente Alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio Alguns abotoavam os casacos das crianças olhando o céu à procura de um sinal do tempo Todos sentindo obscuramente que na despedida se poderia talvez agora sem perigo de compromisso ser bom e dizer aquela palavra a mais que palavra eles não sabiam propriamente e olhavamse sorrindo mudos Era um instante que pedia para ser vivo Mas que era morto Começaram a se separar andando meio de costas sem saber como se desligar dos parentes sem brusquidão Até o ano que vem repetiu José a indireta feliz acenando a mão com vigor efusivo os cabelos ralos e brancos esvoaçavam Ele estava era gordo pensaram precisava tomar cuidado com o coração Até o ano que vem gritou José eloquente e grande e sua altura parecia desmoronável Mas as pessoas já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro Além de alguns pensarem que felizmente havia mais do que uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se encontrar diante do bolo aceso enquanto que outros já mais no escuro da rua pensavam se a velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência de Zilda mas eles sinceramente nada podiam fazer a respeito Pelo menos noventa anos pensou melancólica a nora de Ipanema Para completar uma data bonita pensou sonhadora Enquanto isso lá em cima sobre escadas e contingências estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa erecta definitiva maior do que ela mesma Será que hoje não vai ter jantar meditava ela A morte era o seu mistério A MENOR MULHER DO MUNDO Nas profundezas da África Equatorial o explorador francês Marcel Pretre caçador e homem do mundo topou com uma tribo de pigmeus de uma pequenez surpreendente Mais surpreso pois ficou ao ser informado de que menor povo ainda existia além de florestas e distâncias Então mais fundo ele foi No Congo Central descobriu realmente os menores pigmeus do mundo E como uma caixa dentro de uma caixa dentro de uma caixa entre os menores pigmeus do mundo estava o menor dos menores pigmeus do mundo obedecendo talvez à necessidade que às vezes a Natureza tem de exceder a si própria Entre mosquitos e árvores mornas de umidade entre as folhas ricas do verde mais preguiçoso Marcel Pretre defrontouse com uma mulher de quarenta e cinco centímetros madura negra calada Escura como um macaco informaria ele à imprensa e que vivia no topo de uma árvore com seu pequeno concubino Nos tépidos humores silvestres que arredondam cedo as frutas e lhes dão uma quase intolerável doçura ao paladar ela estava grávida Ali em pé estava portanto a menor mulher do mundo Por um instante no zumbido do calor foi como se o francês tivesse inesperadamente chegado à conclusão última Na certa apenas por não ser louco é que sua alma não desvairou nem perdeu os limites Sentindo necessidade imediata de ordem e de dar nome ao que existe apelidoua de Pequena Flor E para conseguir classificála entre as realidades reconhecíveis logo passou a colher dados a seu respeito Sua raça de gente está aos poucos sendo exterminada Poucos exemplares humanos restam dessa espécie que não fosse o sonso perigo da África seria povo alastrado Fora doença infectado hálito de águas comida deficiente e feras rondantes o grande risco para os escassos Likoualas está nos selvagens Bantos ameaça que os rodeia em ar silencioso como em madrugada de batalha Os Bantos os caçam em redes como fazem com os macacos E os comem Assim caçamnos em redes e os comem A racinha de gente sempre a recuar e a recuar terminou aquarteirandose no coração da África onde o explorador afortunado a descobriria Por defesa estratégica moram nas árvores mais altas De onde as mulheres descem para cozinhar milho moer mandioca e colher verduras os homens para caçar Quando um filho nasce a liberdade lhe é dada quase que imediatamente É verdade que muitas vezes a criança não usufruirá por muito tempo dessa liberdade entre feras Mas é verdade que pelo menos não se lamentará que para tão curta vida longo tenha sido o trabalho Pois mesmo a linguagem que a criança aprende é breve e simples apenas essencial Os Likoualas usam poucos nomes chamam as coisas por gestos e sons animais Como avanço espiritual têm um tambor Enquanto dançam ao som do tambor um machado pequeno fica de guarda contra os Bantos que virão não se sabe de onde Foi pois assim que o explorador descobriu toda em pé e a seus pés a coisa humana menor que existe Seu coração bateu porque esmeralda nenhuma é tão rara Nem os ensinamentos dos sábios da Índia são tão raros Nem o homem mais rico do mundo já pôs olhos sobre tanta estranha graça Ali estava uma mulher que a gulodice do mais fino sonho jamais pudera imaginar Foi então que o explorador disse timidamente e com uma delicadeza de sentimentos de que sua esposa jamais o julgaria capaz Você é Pequena Flor Nesse instante Pequena Flor coçouse onde uma pessoa não se coça O explorador como se estivesse recebendo o mais alto prêmio de castidade a que um homem sempre tão idealista ousa aspirar o explorador tão vivido desviou os olhos A fotografia de Pequena Flor foi publicada no suplemento colorido dos jornais de domingo onde coube em tamanho natural Enrolada num pano com a barriga em estado adiantado O nariz chato a cara preta os olhos fundos os pés espalmados Parecia um cachorro Nesse domingo num apartamento uma mulher ao olhar no jornal aberto o retrato de Pequena Flor não quis olhar uma segunda vez porque me dá aflição Em outro apartamento uma senhora teve tal perversa ternura pela pequenez da mulher africana que sendo tão melhor prevenir que remediar jamais se deveria deixar Pequena Flor sozinha com a ternura da senhora Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho A senhora passou um dia perturbada dirseia tomada pela saudade Aliás era primavera uma bondade perigosa estava no ar Em outra casa uma menina de cinco anos de idade vendo o retrato e ouvindo os comentários ficou espantada Naquela casa de adultos essa menina fora até agora o menor dos seres humanos E se isso era fonte das melhores carícias era também fonte deste primeiro medo do amor tirano A existência de Pequena Flor levou a menina a sentir com uma vaguidão que só anos e anos depois por motivos bem diferentes havia de se concretizar em pensamento levoua a sentir numa primeira sabedoria que a desgraça não tem limites Em outra casa na sagração da primavera a moça noiva teve um êxtase de piedade Mamãe olhe o retratinho dela coitadinha olhe só como ela é tristinha Mas disse a mãe dura e derrotada e orgulhosa mas é tristeza de bicho não é tristeza humana Oh mamãe disse a moça desanimada Foi em outra casa que um menino esperto teve uma ideia esperta Mamãe e se eu botasse essa mulherzinha africana na cama de Paulinho enquanto ele está dormindo quando ele acordasse que susto hein que berro vendo ela sentada na cama E a gente então brincava tanto com ela a gente fazia ela o brinquedo da gente hein A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro e lembrouse do que uma cozinheira lhe contara do tempo de orfanato Não tendo boneca com que brincar e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas Guardaram o cadáver num armário até a freira sair e brincaram com a menina morta deramlhe banhos e comidinhas puseramna de castigo somente para depois poder beijála consolandoa Disso a mãe se lembrou no banheiro e abaixou mãos pensas cheias de grampos E considerou a cruel necessidade de amar Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz Considerou a ferocidade com que queremos brincar E o número de vezes em que mataremos por amor Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho E teve horror da própria alma que mais que seu corpo havia engendrado aquele ser apto à vida e à felicidade Assim olhou ela com muita atenção e um orgulho inconfortável aquele menino que já estava sem os dois dentes da frente a evolução a evolução se fazendo dente caindo para nascer o que melhor morde Vou comprar um terno novo para ele resolveu olhandoo absorta Obstinadamente enfeitava o filho desdentado com roupas finas obstinadamente queriao bem limpo como se limpeza desse ênfase a uma superficialidade tranquilizadora obstinadamente aperfeiçoando o lado cortês da beleza Obstinadamente afastandose e afastandoo de alguma coisa que devia ser escura como um macaco Então olhando para o espelho do banheiro a mãe sorriu intencionalmente fina e polida colocando entre aquele seu rosto de linhas abstratas e a cara crua de Pequena Flor a distância insuperável de milênios Mas com anos de prática sabia que este seria um domingo em que teria de disfarçar de si mesma a ansiedade o sonho e milênios perdidos Em outra casa junto a uma parede deramse ao trabalho alvoroçado de calcular com fita métrica os quarenta e cinco centímetros de Pequena Flor E foi aí mesmo que em delícia se espantaram ela era ainda menor que o mais agudo da imaginação inventaria No coração de cada membro da família nasceu nostálgico o desejo de ter para si aquela coisa miúda e indomável aquela coisa salva de ser comida aquela fonte permanente de caridade A alma ávida da família queria devotarse E mesmo quem já não desejou possuir um ser humano só para si O que é verdade nem sempre seria cômodo há horas em que não se quer ter sentimentos Aposto que se ela morasse aqui terminava em briga disse o pai sentado na poltrona virando definitivamente a página do jornal Nesta casa tudo termina em briga Você José sempre pessimista disse a mãe A senhora já pensou mamãe de que tamanho será o nenenzinho dela disse ardente a filha mais velha de treze anos O pai mexeuse atrás do jornal Deve ser o bebê preto menor do mundo respondeu a mãe derretendose de gosto Imagine só ela servindo a mesa aqui em casa e de barriguinha grande Chega dessas conversas engrolou o pai Você há de convir disse a mãe inesperadamente ofendida que se trata de uma coisa rara Você é que é insensível E a própria coisa rara Enquanto isso na África a própria coisa rara tinha no coração quem sabe se negro também pois numa Natureza que errou uma vez já não se pode mais confiar enquanto isso a própria coisa rara tinha no coração algo mais raro ainda assim como o segredo do próprio segredo um filho mínimo Metodicamente o explorador examinou com o olhar a barriguinha do menor ser humano maduro Foi neste instante que o explorador pela primeira vez desde que a conhecera em vez de sentir curiosidade ou exaltação ou vitória ou espírito científico o explorador sentiu malestar É que a menor mulher do mundo estava rindo Estava rindo quente quente Pequena Flor estava gozando a vida A própria coisa rara estava tendo a inefável sensação de ainda não ter sido comida Não ter sido comida era algo que em outras horas lhe dava o ágil impulso de pular de galho em galho Mas neste momento de tranquilidade entre as espessas folhas do Congo Central ela não estava aplicando esse impulso numa ação e o impulso se concentrara todo na própria pequenez da própria coisa rara E então ela estava rindo Era um riso como somente quem não fala ri Esse riso o explorador constrangido não conseguiu classificar E ela continuou fruindo o próprio riso macio ela que não estava sendo devorada Não ser devorado é o sentimento mais perfeito Não ser devorado é o objetivo secreto de toda uma vida Enquanto ela não estava sendo comida seu riso bestial era tão delicado como é delicada a alegria O explorador estava atrapalhado Em segundo lugar se a própria coisa rara estava rindo era porque dentro de sua pequenez grande escuridão puserase em movimento É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se pode chamar de Amor Ela amava aquele explorador amarelo Se soubesse falar e dissesse que o amava ele inflaria de vaidade Vaidade que diminuiria quando ela acrescentasse que também amava muito o anel do explorador e que amava muito a bota do explorador E quando este desinchasse desapontado Pequena Flor não compreenderia por quê Pois nem de longe seu amor pelo explorador podese mesmo dizer seu profundo amor porque não tendo outros recursos ela estava reduzida à profundeza pois nem de longe seu profundo amor pelo explorador ficaria desvalorizado pelo fato de ela também amar sua bota Há um velho equívoco sobre a palavra amor e se muitos filhos nascem desse equívoco tantos outros perderam o único instante de nascer apenas por causa de uma suscetibilidade que exige que seja de mim de mim que se goste e não de meu dinheiro Mas na umidade da floresta não há desses refinamentos cruéis e amor é não ser comido amor é achar bonita uma bota amor é gostar da cor rara de um homem que não é negro amor é rir de amor a um anel que brilha Pequena Flor piscava de amor e riu quente pequena grávida quente O explorador tentou sorrirlhe de volta sem saber exatamente a que abismo seu sorriso respondia e então perturbouse como só homem de tamanho grande se perturba Disfarçou ajeitando melhor o chapéu de explorador corou pudico Tornouse uma cor linda a sua de um rosa esverdeado como a de um limão de madrugada Ele devia ser azedo Foi provavelmente ao ajeitar o capacete simbólico que o explorador se chamou à ordem recuperou com severidade a disciplina de trabalho e recomeçou a anotar Aprendera a entender algumas das poucas palavras articuladas da tribo e a interpretar os sinais Já conseguia fazer perguntas Pequena Flor respondeulhe que sim Que era muito bom ter uma árvore para morar sua sua mesmo Pois e isso ela não disse mas seus olhos se tornaram tão escuros que o disseram pois é bom possuir é bom possuir é bom possuir O explorador pestanejou várias vezes Marcel Pretre teve vários momentos difíceis consigo mesmo Mas pelo menos ocupouse em tomar notas e notas Quem não tomou notas é que teve de se arranjar como pôde Pois olhe declarou de repente uma velha fechando o jornal com decisão pois olhe eu só lhe digo uma coisa Deus sabe o que faz O JANTAR Ele entrou tarde no restaurante Certamente ocuparase até agora em grandes negócios Poderia ter uns sessenta anos era alto corpulento de cabelos brancos sobrancelhas espessas e mãos potentes Num dedo o anel de sua força Sentouse amplo e sólido Perdio de vista e enquanto comia observei de novo a mulher magra de chapéu Ela ria com a boca cheia e rebrilhava os olhos escuros No momento em que eu levava o garfo à boca olheio Eilo de olhos fechados mastigando pão com vigor e mecanismo os dois punhos cerrados sobre a mesa Continuei comendo e olhando O garçom dispunha os pratos sobre a toalha Mas o velho mantinha os olhos fechados A um gesto mais vivo do criado ele os abriu com tal brusquidão que este mesmo movimento se comunicou às grandes mãos e um garfo caiu O garçom sussurrou palavras amáveis abaixandose para apanhálo ele não respondia Porque agora desperto virava subitamente a carne de um lado e de outro examinavaa com veemência a ponta da língua aparecendo apalpava o bife com as costas do garfo quase o cheirava mexendo a boca de antemão E começava a cortálo com um movimento inútil de vigor de todo o corpo Em breve levava um pedaço a certa altura do rosto e como se tivesse que apanhálo em voo abocanhouo num arrebatamento de cabeça Olhei para o meu prato Quando fiteio de novo ele estava em plena glória do jantar mastigando de boca aberta passando a língua pelos dentes com o olhar fixo na luz do teto Eu já ia cortar a carne de novo quando o vi parar inteiramente E exatamente como se não suportasse mais o quê pega rápido no guardanapo e comprime as órbitas dos olhos com as mãos cabeludas Parei em guarda Seu corpo respirava com dificuldade crescia Tira afinal o guardanapo da vista e olha entorpecido de muito longe Respira abrindo e fechando desmesuradamente as pálpebras limpa os olhos com cuidado e mastiga devagar o resto de comida ainda na boca Daqui a um segundo porém está refeito e duro apanha uma garfada de salada com o corpo todo e come inclinado o queixo ativo o azeite umedecendo os lábios Interrompese um instante enxuga de novo os olhos balança brevemente a cabeça e nova garfada de alface com carne é apanhada no ar Diz ao garçom que passa Não é este o vinho que mandei trazer A voz que esperava dele voz sem réplicas possíveis pela qual eu via que jamais se poderia fazer alguma coisa por ele Senão obedecêlo O garçom se afastou cortês com a garrafa na mão Mas eis que o velho se imobiliza de novo como se tivesse o peito contraído e barrado Sua violenta potência sacodese presa Ele espera Até que a fome parece assaltálo e ele recomeça a mastigar com apetite de sobrancelhas franzidas Eu é que já comia devagar um pouco nauseado sem saber por quê participando também não sabia de quê De repente eilo a estremecer todo levando o guardanapo aos olhos e apertandoos numa brutalidade que me enleva Abandono com certa decisão o garfo no prato eu próprio com um aperto insuportável na garganta furioso quebrado em submissão Mas o velho demora pouco com o guardanapo nos olhos Desta vez quando o tira sem pressa as pupilas estão extremamente doces e cansadas e antes dele enxugarse eu vi Vi a lágrima Inclinome sobre a carne perdido Quando finalmente consigo encarálo do fundo de meu rosto pálido vejo que também ele se inclinou com os cotovelos apoiados sobre a mesa a cabeça entre as mãos E exatamente ele não suportava mais As sobrancelhas grossas estavam juntas A comida devia ter parado pouco abaixo da garganta sob a dureza da emoção pois quando ele pôde continuar fez um gesto terrível de esforço para engolir e passou o guardanapo pela testa Eu não podia mais a carne no meu prato era crua eu é que não podia mais Porém ele ele comia O garçom trouxe a garrafa dentro de uma vasilha de gelo Eu anotava tudo já sem discriminar a garrafa era outra o criado de casaca a luz aureolava a cabeça robusta de Plutão que se movia agora com curiosidade guloso e atento Por um instante o garçom cobre minha visão do velho e vejo apenas as asas negras duma casaca sobrevoando a mesa vertia vinho vermelho na taça e aguardava de olhos quentes porque lá estava seguramente um senhor de boas gorjetas um desses velhos que ainda estão no centro do mundo e da força O velho engrandecido tomou um gole com segurança largou a taça e consultou com amargura o sabor na boca Batia um lábio no outro estalava a língua com desgosto como se o que era bom fosse intolerável Eu esperava o garçom esperava ambos nos inclinávamos suspensos Afinal ele fez uma careta de aprovação O criado curvou a cabeça luzente com sujeição ao agradecimento saiu inclinado e eu respirava com alívio Ele agora misturava à carne os goles de vinho na grande boca e os dentes postiços mastigavam pesados enquanto eu o espreitava em vão Nada mais acontecia O restaurante parecia irradiarse com dupla força sob o tilintar dos vidros e talheres na dura coroa brilhante da sala os murmúrios cresciam e se apaziguavam em vaga doce a mulher do chapéu grande sorria de olhos entrefechados tão magra e bela o garçom derramava com lentidão o vinho no copo Mas eis que ele faz um gesto Com a mão pesada e cabeluda onde na palma as linhas eram cravadas com tal fatalidade faz um gesto de pensamento Diz com a mímica o mais que pode e eu eu não compreendo E como se não suportasse mais larga o garfo no prato Desta vez foste bem agarrado velho Fica respirando acabado ruidoso Pega então no copo de vinho e bebe de olhos fechados em rumorosa ressurreição Meus olhos ardem e a claridade é alta persistente Estou tomado pelo êxtase arfante da náusea Tudo me parece grande e perigoso A mulher magra cada vez mais bela estremece séria entre as luzes Ele terminou Sua cara se esvazia de expressão Fecha os olhos distende os maxilares Procuro aproveitar este momento em que ele não possui mais o próprio rosto para ver afinal Mas é inútil A grande aparência que vejo é desconhecida majestosa cruel e cega O que eu quero olhar diretamente pela força extraordinária do ancião não existe neste instante Ele não quer Vem a sobremesa um creme derretido e eu me surpreendo pela decadência da escolha Ele come devagar tira uma colherada e espia o líquido pastoso escorrer Ingere tudo porém faz uma careta e crescido alimentado afasta o prato Então já sem fome o grande cavalo apoia a cabeça na mão O primeiro sinal mais claro aparece O velho comedor de crianças pensa nas suas profundezas Com palidez vejoo levar o guardanapo à boca Imagino ouvir um soluço Ambos permanecemos em silêncio no centro do salão Talvez ele tivesse comido depressa demais Porque apesar de tudo não perdeste a fome hein instigavao eu com ironia cólera e exaustão Mas ele se desmoronava a olhos vistos Os traços agora caídos e dementes ele balançava a cabeça de um lado para outro de um lado para outro sem se conter mais com a boca apertada os olhos cerrados embalandose o patriarca estava chorando por dentro A ira me asfixiava Vio botar os óculos e ficar mais velho muitos anos Enquanto contava o troco batia os dentes projetando o queixo para a frente entregandose um instante à doçura da velhice Eu mesmo tão atento estivera a ele que não o vira tirar o dinheiro para pagar nem examinar a conta e não notara a volta do garçom com o troco Afinal tirou os óculos bateu os dentes enxugou os olhos fazendo caretas inúteis e penosas Passou a mão quadrada pelos cabelos brancos alisandoos com poder Levantouse segurando o bordo da mesa com as mãos vigorosas E eis que depois de liberto de um apoio ele parece mais fraco embora ainda enorme e ainda capaz de apunhalar qualquer um de nós Sem que eu possa fazer nada põe o chapéu acariciando a gravata ao espelho Atravessa o aspecto luminoso do salão desaparece Mas eu sou um homem ainda Quando me traíram ou assassinaram quando alguém foi embora para sempre ou perdi o que de melhor me restava ou quando soube que vou morrer eu não como Não sou ainda esta potência esta construção esta ruína Empurro o prato rejeito a carne e seu sangue PRECIOSIDADE Para Mafalda De manhã cedo era sempre a mesma coisa renovada acordar O que era vagaroso desdobrado vasto Vastamente ela abria os olhos Tinha quinze anos e não era bonita Mas por dentro da magreza a vastidão quase majestosa em que se movia como dentro de uma meditação E dentro da nebulosidade algo precioso Que não se espreguiçava não se comprometia não se contaminava Que era intenso como uma joia Ela Acordava antes de todos pois para ir à escola teria que pegar um ônibus e um bonde o que lhe tomaria uma hora O que lhe daria uma hora De devaneio agudo como um crime O vento da manhã violentando a janela e o rosto até que os lábios ficavam duros gelados Então ela sorria Como se sorrir fosse em si um objetivo Tudo isso aconteceria se tivesse a sorte de ninguém olhar para ela Quando de madrugada se levantava passado o instante de vastidão em que se desenrolava toda vestiase correndo mentia para si mesma que não havia tempo de tomar banho e a família adormecida jamais adivinhara quão poucos ela tomava Sob a luz acesa da sala de jantar engolia o café que a empregada se coçando no escuro da cozinha requentara Mal tocava no pão que a manteiga não amolecia Com a boca fresca de jejum os livros embaixo do braço abria enfim a porta transpunha a mornidão insossa da casa galgandose para a gélida fruição da manhã Então já não se apressava mais Tinha que atravessar a longa rua deserta até alcançar a avenida do fim da qual um ônibus emergiria cambaleando dentro da névoa com as luzes da noite ainda acesas no farol Ao vento de junho o ato misterioso autoritário e perfeito era erguer o braço e já de longe o ônibus trêmulo começava a se deformar obedecendo à arrogância de seu corpo representante de um poder supremo de longe o ônibus começava a tornarse incerto e vagaroso vagaroso e avançando cada vez mais concreto até estacar no seu rosto em fumaça e calor em calor e fumaça Então subia séria como uma missionária por causa dos operários no ônibus que poderiam lhe dizer alguma coisa Aqueles homens que não eram mais rapazes Mas também de rapazes tinha medo medo também de meninos Medo que lhe dissessem alguma coisa que a olhassem muito Na gravidade da boca fechada havia a grande súplica respeitassemna Mais que isso Como se tivesse prestado voto era obrigada a ser venerada e enquanto por dentro o coração batia de medo também ela se venerava ela a depositária de um ritmo Se a olhavam ficava rígida e dolorosa O que a poupava é que os homens não a viam Embora alguma coisa nela à medida que dezesseis anos se aproximava em fumaça e calor alguma coisa estivesse intensamente surpreendida e isso surpreendesse alguns homens Como se alguém lhes tivesse tocado no ombro Uma sombra talvez No chão a enorme sombra de moça sem homem cristalizável elemento incerto que fazia parte da monótona geometria das grandes cerimônias públicas Como se lhes tivessem tocado no ombro Eles olhavam e não a viam Ela fazia mais sombra do que existia No ônibus os operários eram silenciosos com a marmita na mão o sono ainda no rosto Ela sentia vergonha de não confiar neles que eram cansados Mas até que os esquecesse o desconforto É que eles sabiam E como também ela sabia então o desconforto Todos sabiam o mesmo Também seu pai sabia Um velho pedindo esmola sabia A riqueza distribuída e o silêncio Depois com andar de soldado atravessava incólume o Largo da Lapa onde era dia A essa altura a batalha estava quase ganha Escolhia no bonde um banco se possível vazio ou se tivesse sorte sentavase ao lado de alguma asseguradora mulher com uma trouxa de roupa no colo por exemplo e era a primeira trégua Ainda teria de enfrentar na escola o longo corredor onde os colegas estariam de pé conversando e onde os tacos de seus sapatos faziam um ruído que as pernas tensas não podiam conter como se ela quisesse inutilmente fazer parar de bater um coração sapatos com dança própria Faziase um vago silêncio entre os rapazes que talvez sentissem sob o seu disfarce que ela era uma das devotas Passava entre as alas dos colegas crescendo e eles não sabiam o que pensar nem como comentála Era feio o ruído de seus sapatos Rompia o próprio segredo com tacos de madeira Se o corredor demorasse um pouco mais ela como que esqueceria seu destino e correria com as mãos tapando os ouvidos Só tinha sapatos duráveis Como se fossem ainda os mesmos que em solenidade lhe haviam calçado quando nascera Atravessava o corredor interminável como a um silêncio de trincheira e no seu rosto havia algo tão feroz e soberbo também por causa de sua sombra que ninguém lhe dizia nada Proibitiva ela os impedia de pensar Até que enfim a classe de aula Onde de repente tudo se tornava sem importância e mais rápido e leve onde seu rosto tinha algumas sardas os cabelos caíam nos olhos e onde ela era tratada como um rapaz Onde era inteligente A astuciosa profissão Parecia ter estudado em casa Sua curiosidade informavalhe mais que respostas Adivinhava sentindo na boca o gosto cítrico das dores heroicas adivinhava a repulsão fascinada que sua cabeça pensante criava nos colegas que de novo não sabiam como comentála Cada vez mais a grande fingida se tornava inteligente Aprendera a pensar O sacrifício necessário assim ninguém tinha coragem Às vezes enquanto o professor falava ela intensa nebulosa fazia riscos simétricos no caderno Se um risco que tinha que ser ao mesmo tempo forte e delicado saía fora do círculo imaginário em que deveria caber tudo desabaria ela se concentrava ausente guiada pela avidez do ideal Às vezes em vez de riscos desenhava estrelas estrelas estrelas estrelas tantas e tão altas que desse trabalho anunciador saía exausta erguendo uma cabeça mal acordada A volta para casa era tão cheia de fome que a impaciência e o ódio roíam seu coração Na volta parecia outra cidade no Largo da Lapa centenas de pessoas reverberadas pela fome pareciam ter esquecido e se lhes lembrassem arreganhariam dentes O sol delineava cada homem com carvão preto Sua própria sombra era uma estaca negra Nesta hora em que o cuidado tinha que ser maior ela era protegida pela espécie de feiura que a fome acentuava seus traços escurecidos pela adrenalina que escurecia a carne dos animais de caça Na casa vazia toda a família na repartição gritava com a empregada que nem sequer lhe respondia Comia como um centauro A cara perto do prato os cabelos quase na comida Magrinha mas como devora dizia a empregada esperta Pro diabo gritavalhe sombria Na casa vazia sozinha com a empregada já não andava como um soldado já não precisava tomar cuidado Mas sentia falta da batalha das ruas Melancolia da liberdade com o horizonte ainda tão longe Derase ao horizonte Mas a nostalgia do presente O aprendizado da paciência o juramento da espera Do qual talvez não soubesse jamais se livrar A tarde transformandose em interminável e até todos voltarem para o jantar e ela poder se tornar com alívio uma filha era o calor o livro aberto e depois fechado uma intuição o calor sentavase com a cabeça entre as mãos desesperada Quando tinha dez anos relembrou um menino que a amava jogaralhe um rato morto Porcaria berrara branca com a ofensa Fora uma experiência Jamais contara a ninguém Com a cabeça entre as mãos sentada Dizia quinze vezes sou vigorosa sou vigorosa sou vigorosa depois percebia que apenas prestara atenção à contagem Suprindo com a quantidade disse mais uma vez sou vigorosa dezesseis E já não estava mais à mercê de ninguém Desesperada porque vigorosa livre não estava mais à mercê Perdera a fé Foi conversar com a empregada antiga sacerdotisa Elas se reconheciam As duas descalças de pé na cozinha a fumaça do fogão Perdera a fé mas à beira da graça procurava na empregada apenas o que esta já perdera não o que ganhara Faziase pois distraída e conversando evitava a conversa Ela imagina que na minha idade devo saber mais do que sei e é capaz de me ensinar alguma coisa pensou a cabeça entre as mãos defendendo a ignorância como a um corpo Faltavamlhe elementos mas não os queria de quem já os esquecera A grande espera fazia parte Dentro da vastidão maquinando Tudo isso sim Longo cansado a exasperação Mas na madrugada seguinte como uma avestruz lenta se abre ela acordava Acordou no mesmo mistério intacto abrindo os olhos ela era a princesa do mistério intacto Como se a fábrica já tivesse apitado vestiuse correndo bebeu de um sorvo o café Abriu a porta de casa E então já não se apressou mais A grande imolação das ruas Sonsa atenta mulher de apache Parte do rude ritmo de um ritual Era uma manhã ainda mais fria e escura que as outras ela estremeceu no suéter A branca nebulosidade deixava o fim da rua invisível Tudo estava algodoado não se ouviu sequer o ruído de algum ônibus que passasse pela avenida Foi andando para o imprevisível da rua As casas dormiam nas portas fechadas Os jardins endurecidos de frio No ar escuro mais que no céu no meio da rua uma estrela Uma grande estrela de gelo que não voltara ainda incerta no ar úmida informe Surpreendida no seu atraso arredondavase na hesitação Ela olhou a estrela próxima Caminhava sozinha na cidade bombardeada Não ela não estava sozinha Com os olhos franzidos pela incredulidade no fim longínquo de sua rua de dentro do vapor viu dois homens Dois rapazes vindo Olhou ao redor como se pudesse ter errado de rua ou de cidade Mas errara os minutos saíra de casa antes que a estrela e dois homens tivessem tempo de sumir Seu coração se espantou O primeiro impulso diante de seu erro foi o de refazer para trás os passos dados e entrar em casa até que eles passassem Eles vão olhar para mim eu sei não há mais ninguém para eles olharem e eles vão me olhar muito Mas como voltar e fugir se nascera para a dificuldade Se toda a sua lenta preparação tinha o destino ignorado a que ela por culto tinha que aderir Como recuar e depois nunca mais esquecer a vergonha de ter esperado em miséria atrás de uma porta E mesmo talvez não houvesse perigo Eles não teriam coragem de dizer nada porque ela passaria com o andar duro de boca fechada no seu ritmo espanhol De pernas heroicas continuou a andar Cada vez que se aproximava eles que também se aproximavam então todos se aproximavam a rua ficou cada vez um pouco mais curta Os sapatos dos dois rapazes misturavamse ao ruído de seus próprios sapatos era ruim ouvir Era insistente ouvir Os sapatos eram ocos ou a calçada era oca A pedra do chão avisava Tudo era eco e ela ouvia sem poder impedir o silêncio do cerco comunicandose pelas ruas do bairro e via sem poder impedir que as portas mais fechadas haviam ficado Mesmo a estrela retirarase Na nova palidez da escuridão a rua entregue aos três Ela andava ouvia os homens já que não poderia olhálos e já que precisava sabêlos Ela os ouvia e surpreendia se com a própria coragem em continuar Mas não era coragem Era o dom E a grande vocação para um destino Ela avançava sofrendo em obedecer Se conseguisse pensar em outra coisa não ouviria os sapatos Nem o que eles pudessem dizer Nem o silêncio com que cruzariam Com brusca rigidez olhouos Quando menos esperava traindo o voto de segredo viuos rápida Eles sorriam Não estavam sérios Não deveria ter visto Porque vendo ela por um instante arriscavase a tornarse individual e também eles Era do que parecia ter sido avisada enquanto executasse um mundo clássico enquanto fosse impessoal seria filha dos deuses e assistida pelo que tem que ser feito Mas tendo visto o que olhos ao verem diminuem arriscarase a ser um elamesma que a tradição não amparava Por um instante hesitou toda perdida de um rumo Mas era tarde demais para recuar Só não seria tarde demais se corresse Mas correr seria como errar todos os passos e perder o ritmo que ainda a sustentava o ritmo que era o seu único talismã o que lhe fora entregue à orla do mundo onde era para ser sozinha à orla do mundo onde se tinham apagado todas as lembranças e como incompreensível lembrete restara o cego talismã ritmo que era de seu destino copiar executandoo para a consumação do mundo Não a própria Se ela corresse a ordem se alteraria E nunca lhe seria perdoado o pior a pressa E mesmo quando se foge correm atrás são coisas que se sabem Rígida catequista sem alterar por um segundo a lentidão com que avançava ela avançava Eles vão olhar para mim eu sei Mas tentava por instinto de uma vida anterior não lhes transmitir susto Adivinhava o que o medo desencadeia Ia ser rápido sem dor Só por uma fração de segundo se cruzariam rápido instantâneo por causa da vantagem a seu favor dela estar em movimento e deles virem em movimento contrário o que faria com que o instante se reduzisse ao essencial necessário à queda do primeiro dos sete mistérios que tão secretos eram que deles ficara apenas uma sabedoria o número sete Fazei com que eles não digam nada fazei com que eles só pensem pensar eu deixo Ia ser rápido e um segundo depois da transposição ela diria maravilhada galgandose para outras e outras ruas quase não doeu Mas o que se seguiu não teve explicação O que se seguiu foram quatro mãos difíceis foram quatro mãos que não sabiam o que queriam quatro mãos erradas de quem não tinha a vocação quatro mãos que a tocaram tão inesperadamente que ela fez a coisa mais certa que poderia ter feito no mundo dos movimentos ficou paralisada Eles cujo papel predeterminado era apenas o de passar junto do escuro de seu medo e então o primeiro dos sete mistérios cairia eles que representariam apenas o horizonte de um só passo aproximado eles não compreenderam a função que tinham e com a individualidade dos que têm medo haviam atacado Foi menos de uma fração de segundo na rua tranquila Numa fração de segundo a tocaram como se a eles coubessem todos os sete mistérios Que ela conservou todos e mais larva se tornou e mais sete anos de atraso Ela não os olhou porque sua cara ficou voltada com serenidade para o nada Mas pela pressa com que a magoaram soube que eles tinham mais medo do que ela Tão assustados que já não estavam mais ali Corriam Tinham medo que ela gritasse e as portas das casas uma por uma se abrissem raciocinou eles não sabiam que não se grita Ficou de pé ouvindo com tranquila loucura os sapatos deles em fuga A calçada era oca ou os sapatos eram ocos ou ela própria era oca No oco dos sapatos deles ouvia atenta o medo dos dois O som batia nítido nas lajes como se batessem à porta sem parar e ela esperasse que desistissem Tão nítido na nudez da pedra que o sapateado não parecia distanciarse era ali a seus pés como um sapateado de vitória De pé ela não tinha por onde se sustentar senão pelos ouvidos A sonoridade não esmorecia o afastamento eralhe transmitido por um apressado cada vez mais preciso de tacos Os tacos não ecoavam mais na pedra ecoavam no ar como castanholas cada vez mais delicadas Depois percebeu que há muito não ouvia nenhum som E trazidos de volta pela brisa o silêncio e uma rua vazia Até esse instante mantiverase quieta de pé no meio da calçada Então como se houvesse várias etapas da mesma imobilidade ficou parada Daí a pouco suspirou E em nova etapa mantevese parada Depois mexeu a cabeça e então ficou mais profundamente parada Depois recuou devagar até um muro corcunda bem devagar como se tivesse um braço quebrado até que se encostou toda no muro onde ficou inscrita E então mantevese parada Não se mover é o que importa pensou de longe não se mover Depois de um tempo provavelmente terseia dito assim agora mova um pouco as pernas mas bem devagar Porque bem devagar moveu as pernas Depois do que suspirou e ficou quieta olhando Ainda estava escuro Depois amanheceu Devagar reuniu os livros espalhados pelo chão Mais adiante estava o caderno aberto Quando se abaixou para recolhêlo viu a letra redonda e graúda que até esta manhã fora sua Então saiu Sem saber com que enchera o tempo senão com passos e passos chegou à escola com mais de duas horas de atraso Como não tinha pensado em nada não sabia que o tempo decorrera Pela presença do professor de Latim constatou com uma surpresa polida que na classe já haviam começado a terceira hora Que foi que te aconteceu sussurrou a menina da carteira ao lado Por quê Você está branca Está sentindo alguma coisa Não disse tão claro que vários colegas olharamna Levantouse e disse bem alto Dá licença Foi para o lavatório Onde diante do grande silêncio dos ladrilhos gritou aguda supersônica Estou sozinha no mundo Nunca ninguém vai me ajudar nunca ninguém vai me amar Estou sozinha no mundo Estava ali perdendo também a terceira aula no longo banco do lavatório em frente a várias pias Não faz mal depois copio os pontos peço emprestado os cadernos para copiar em casa estou sozinha no mundo interrompeuse batendo várias vezes a mão fechada no banco O ruído dos quatro sapatos de repente começou como uma chuva miúda e rápida Ruído cego nada se refletiu nos ladrilhos brilhantes Só a nitidez de cada sapato que não se emaranhou nenhuma vez com outro sapato Como nozes caindo Era só esperar como se espera que parem de bater à porta Então pararam Quando foi molhar os cabelos diante do espelho ela era tão feia Ela possuía tão pouco e eles haviam tocado Ela era tão feia e preciosa Estava pálida os traços afinados As mãos umedecendo os cabelos sujas de tinta ainda do dia anterior Preciso cuidar mais de mim pensou Não sabia como A verdade é que cada vez sabia menos como A expressão do nariz era a de um focinho apontando na cerca Voltou ao banco e ficou quieta com um focinho Uma pessoa não é nada Não retrucouse em mole protesto não diga isso pensou com bondade e melancolia Uma pessoa é alguma coisa disse por gentileza Mas no jantar a vida tomou um senso imediato e histérico Preciso de sapatos novos os meus fazem muito barulho uma mulher não pode andar com salto de madeira chama muita atenção Ninguém me dá nada Ninguém me dá nada e estava tão frenética e estertorada que ninguém teve coragem de lhe dizer que não os ganharia Só disseram Você não é uma mulher e todo salto é de madeira Até que assim como uma pessoa engorda ela deixou sem saber por que processo de ser preciosa Há uma obscura lei que faz com que se proteja o ovo até que nasça o pinto pássaro de fogo E ela ganhou os sapatos novos OS LAÇOS DE FAMÍLIA A mulher e a mãe acomodaramse finalmente no táxi que as levaria à Estação A mãe contava e recontava as duas malas tentando convencerse de que ambas estavam no carro A filha com seus olhos escuros a que um ligeiro estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria e frieza assistia Não esqueci de nada perguntava pela terceira vez a mãe Não não não esqueceu de nada respondia a filha divertida com paciência Ainda estava sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe e seu marido na hora da despedida Durante as duas semanas da visita da velha os dois mal se haviam suportado os bonsdias e as boastardes soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir Mas eis que na hora da despedida antes de entrarem no táxi a mãe se transformara em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro Perdoe alguma palavra mal dita dissera a velha senhora e Catarina com alguma alegria vira Antônio não saber o que fazer das malas nas mãos a gaguejar perturbado em ser o bom genro Se eu rio eles pensam que estou louca pensara Catarina franzindo as sobrancelhas Quem casa um filho perde um filho quem casa uma filha ganha mais um acrescentara a mãe e Antônio aproveitara sua gripe para tossir Catarina de pé observava com malícia o marido cuja segurança se desvanecera para dar lugar a um homem moreno e miúdo forçado a ser filho daquela mulherzinha grisalha Foi então que a vontade de rir tornouse mais forte Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha vontade de rir seus olhos tomavam uma expressão esperta e contida tornavamse mais estrábicos e o riso saía pelos olhos Sempre doía um pouco ser capaz de rir Mas nada podia fazer contra desde pequena rira pelos olhos desde sempre fora estrábica Continuo a dizer que o menino está magro disse a mãe resistindo aos solavancos do carro E apesar de Antônio não estar presente ela usava o mesmo tom de desafio e acusação que empregava diante dele Tanto que uma noite Antônio se agitara não é por culpa minha Severina Ele chamava a sogra de Severina pois antes do casamento projetava serem sogra e genro modernos Logo à primeira visita da mãe ao casal a palavra Severina tornarase difícil na boca do marido e agora então o fato de chamála pelo nome não impedira que Catarina olhavaos e ria O menino sempre foi magro mamãe respondeulhe O táxi avançava monótono Magro e nervoso acrescentou a senhora com decisão Magro e nervoso assentiu Catarina paciente Era um menino nervoso distraído Durante a visita da avó tornarase ainda mais distante dormira mal perturbado pelos carinhos excessivos e pelos beliscões de amor da velha Antônio que nunca se preocupara especialmente com a sensibilidade do filho passara a dar indiretas à sogra a proteger uma criança Não esqueci de nada recomeçou a mãe quando uma freada súbita do carro lançouas uma contra a outra e fez despencarem as malas Ah ah exclamou a mãe como a um desastre irremediável ah dizia balançando a cabeça em surpresa de repente envelhecida e pobre E Catarina Catarina olhava a mãe e a mãe olhava a filha e também a Catarina acontecera um desastre seus olhos piscaram surpreendidos ela ajeitava depressa as malas a bolsa procurando o mais rapidamente possível remediar a catástrofe Porque de fato sucedera alguma coisa seria inútil esconder Catarina fora lançada contra Severina numa intimidade de corpo há muito esquecida vinda do tempo em que se tem pai e mãe Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado ou beijado Do pai sim Catarina sempre fora mais amiga Quando a mãe enchialhes os pratos obrigandoos a comer demais os dois se olhavam piscando em cumplicidade e a mãe nem notava Mas depois do choque no táxi e depois de se ajeitarem não tinham o que falar por que não chegavam logo à Estação Não esqueci de nada perguntou a mãe com voz resignada Catarina não queria mais fitála nem responderlhe Tome suas luvas disselhe recolhendoas do chão Ah ah minhas luvas exclamava a mãe perplexa Só se espiaram realmente quando as malas foram dispostas no trem depois de trocados os beijos a cabeça da mãe apareceu na janela Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e tinha os olhos brilhantes O trem não partia e ambas esperavam sem ter o que dizer A mãe tirou o espelho da bolsa e examinouse no seu chapéu novo comprado no mesmo chapeleiro da filha Olhavase compondo um ar excessivamente severo onde não faltava alguma admiração por si mesma A filha observava divertida Ninguém mais pode te amar senão eu pensou a mulher rindo pelos olhos e o peso da responsabilidade deulhe à boca um gosto de sangue Como se mãe e filha fossem vida e repugnância Não não se podia dizer que amava sua mãe Sua mãe lhe doía era isso A velha guardara o espelho na bolsa e fitavaa sorrindo O rosto usado e ainda bem esperto parecia esforçarse por dar aos outros alguma impressão da qual o chapéu faria parte A campainha da Estação tocou de súbito houve um movimento geral de ansiedade várias pessoas correram pensando que o trem já partia mamãe disse a mulher Catarina disse a velha Ambas se olhavam espantadas a mala na cabeça de um carregador interrompeu lhes a visão e um rapaz correndo segurou de passagem o braço de Catarina deslocandolhe a gola do vestido Quando puderam verse de novo Catarina estava sob a iminência de lhe perguntar se não esquecera de nada não esqueci de nada perguntou a mãe Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa e ambas se olhavam atônitas porque se realmente haviam esquecido agora era tarde demais Uma mulher arrastava uma criança a criança chorava novamente a campainha da Estação soou Mamãe disse a mulher Que coisa tinham esquecido de dizer uma a outra e agora era tarde demais Parecialhe que deveriam um dia ter dito assim sou tua mãe Catarina E ela deveria ter respondido e eu sou tua filha Não vá pegar corrente de ar gritou Catarina Ora menina sou lá criança disse a mãe sem deixar porém de se preocupar com a própria aparência A mão sardenta um pouco trêmula arranjava com delicadeza a aba do chapéu e Catarina teve subitamente vontade de lhe perguntar se fora feliz com seu pai Dê lembranças a titia gritou Sim sim Mamãe disse Catarina porque um longo apito se ouvira e no meio da fumaça as rodas já se moviam Catarina disse a velha de boca aberta e olhos espantados e ao primeiro solavanco a filha viua levar as mãos ao chapéu este caíralhe até o nariz deixando aparecer apenas a nova dentadura O trem já andava e Catarina acenava O rosto da mãe desapareceu um instante e reapareceu já sem o chapéu o coque dos cabelos desmanchado caindo em mechas brancas sobre os ombros como as de uma donzela o rosto estava inclinado sem sorrir talvez mesmo sem enxergar mais a filha distante No meio da fumaça Catarina começou a caminhar de volta as sobrancelhas franzidas e nos olhos a malícia dos estrábicos Sem a companhia da mãe recuperara o modo firme de caminhar sozinha era mais fácil Alguns homens a olhavam ela era doce um pouco pesada de corpo Caminhava serena moderna nos trajes os cabelos curtos pintados de acaju E de tal modo haviamse disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade tudo estava tão vivo e tenro ao redor a rua suja os velhos bondes cascas de laranja a força fluía e refluía no seu coração com pesada riqueza Estava muito bonita neste momento tão elegante integrada na sua época e na cidade onde nascera como se a tivesse escolhido Nos olhos vesgos qualquer pessoa adivinharia o gosto que essa mulher tinha pelas coisas do mundo Espiava as pessoas com insistência procurando fixar naquelas figuras mutáveis seu prazer ainda úmido de lágrimas pela mãe Desviouse dos carros conseguiu aproximarse do ônibus burlando a fila espiando com ironia nada impediria que essa pequena mulher que andava rolando os quadris subisse mais um degrau misterioso nos seus dias O elevador zumbia no calor da praia Abriu a porta do apartamento enquanto se libertava do chapeuzinho com a outra mão parecia disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito Antônio mal levantou os olhos do livro A tarde de sábado sempre fora sua e logo depois da partida de Severina ele a retomava com prazer junto à escrivaninha Ela foi Foi sim respondeu Catarina empurrando a porta do quarto de seu filho Ah sim lá estava o menino pensou com alívio súbito Seu filho Magro e nervoso Desde que se pusera de pé caminhara firme mas quase aos quatro anos falava como se desconhecesse verbos constatava as coisas com frieza não as ligando entre si Lá estava ele mexendo na toalha molhada exato e distante A mulher sentia um calor bom e gostaria de prender o menino para sempre a este momento puxoulhe a toalha das mãos em censura este menino Mas o menino olhava indiferente para o ar comunicandose consigo mesmo Estava sempre distraído Ninguém conseguira ainda chamarlhe verdadeiramente a atenção A mãe sacudia a toalha no ar e impedia com sua forma a visão do quarto mamãe disse o menino Catarina voltouse rápida Era a primeira vez que ele dizia mamãe nesse tom e sem pedir nada Fora mais que uma constatação mamãe A mulher continuou a sacudir a toalha com violência e perguntouse a quem poderia contar o que sucedera mas não encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse explicar Desamarrotou a toalha com vigor antes de pendurála para secar Talvez pudesse contar se mudasse a forma Contaria que o filho dissera mamãe quem é Deus Não talvez mamãe menino quer Deus Talvez Só em símbolos a verdade caberia só em símbolos é que a receberiam Com os olhos sorrindo de sua mentira necessária e sobretudo da própria tolice fugindo de Severina a mulher inesperadamente riu de fato para o menino não só com os olhos o corpo todo riu quebrado quebrado um invólucro e uma aspereza aparecendo como uma rouquidão Feia disse então o menino examinandoa Vamos passear respondeu corando e pegandoo pela mão Passou pela sala sem parar avisou ao marido vamos sair e bateu a porta do apartamento Antônio mal teve tempo de levantar os olhos do livro e com surpresa espiava a sala já vazia Catarina chamou mas já se ouvia o ruído do elevador descendo Aonde foram perguntouse inquieto tossindo e assoando o nariz Porque sábado era seu mas ele queria que sua mulher e seu filho estivessem em casa enquanto ele tomava o seu sábado Catarina chamou aborrecido embora soubesse que ela não poderia mais ouvilo Levantouse foi à janela e um segundo depois enxergou sua mulher e seu filho na calçada Os dois haviam parado a mulher talvez decidindo o caminho a tomar E de súbito pondo se em marcha Por que andava ela tão forte segurando a mão da criança pela janela via sua mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa com os olhos fixos adiante e mesmo sem ver o homem adivinhava sua boca endurecida A criança não se sabia por que obscura compreensão também olhava fixo para a frente surpreendida e ingênua Vistas de cima as duas figuras perdiam a perspectiva familiar pareciam achatadas ao solo e mais escuras à luz do mar Os cabelos da criança voavam O marido repetiuse a pergunta que mesmo sob a sua inocência de frase cotidiana inquietouo aonde vão Via preocupado que sua mulher guiava a criança e temia que neste momento em que ambos estavam fora de seu alcance ela transmitisse a seu filho mas o quê Catarina pensou Catarina esta criança ainda é inocente Em que momento é que a mãe apertando uma criança davalhe esta prisão de amor que se abateria para sempre sobre o futuro homem Mais tarde seu filho já homem sozinho estaria de pé diante desta mesma janela batendo dedos nesta vidraça preso Obrigado a responder a um morto Quem saberia jamais em que momento a mãe transferia ao filho a herança E com que sombrio prazer Agora mãe e filho compreendendose dentro do mistério partilhado Depois ninguém saberia de que negras raízes se alimenta a liberdade de um homem Catarina pensou com cólera a criança é inocente Tinham porém desaparecido pela praia O mistério partilhado Mas e eu e eu perguntou assustado Os dois tinham ido embora sozinhos E ele ficara Com o seu sábado E sua gripe No apartamento arrumado onde tudo corria bem Quem sabe se sua mulher estava fugindo com o filho da sala de luz bem regulada dos móveis bem escolhidos das cortinas e dos quadros fora isso o que ele lhe dera Apartamento de um engenheiro E sabia que se a mulher aproveitava da situação de um marido moço e cheio de futuro deprezavaa também com aqueles olhos sonsos fugindo com seu filho nervoso e magro O homem inquietouse Porque não poderia continuar a lhe dar senão mais sucesso E porque sabia que ela o ajudaria a conseguilo e odiaria o que conseguissem Assim era aquela calma mulher de trinta e dois anos que nunca falava propriamente como se tivesse vivido sempre As relações entre ambos eram tão tranquilas Às vezes ele procurava humilhála entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque sabia que ela detestava ser vista nua Por que precisava humilhála no entanto ele bem sabia que ela só seria de um homem enquanto fosse orgulhosa Mas tinha se habituado a tornála feminina deste modo humilhavaa com ternura e já agora ela sorria sem rancor Talvez de tudo isso tivessem nascido suas relações pacíficas e aquelas conversas em voz tranquila que faziam a atmosfera do lar para a criança Ou esta se irritava às vezes Às vezes o menino se irritava batia os pés gritava sob pesadelos De onde nascera esta criaturinha vibrante senão do que sua mulher e ele haviam cortado da vida diária Viviam tão tranquilos que se se aproximava um momento de alegria eles se olhavam rapidamente quase irônicos e os olhos de ambos diziam não vamos gastálo não vamos ridiculamente usálo Como se tivessem vivido desde sempre Mas ele a olhara da janela viraa andar depressa de mãos dadas com o filho e disserase ela está tomando o momento de alegria sozinha Sentirase frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela E ela conseguia tomar seus momentos sozinha Por exemplo que fizera sua mulher entre o trem e o apartamento não que a suspeitasse mas inquietavase A última luz da tarde estava pesada e abatiase com gravidade sobre os objetos As areias estalavam secas O dia inteiro estivera sob essa ameaça de irradiação Que nesse momento sem rebentar embora se ensurdecia cada vez mais e zumbia no elevador ininterrupto do edifício Quando Catarina voltasse eles jantariam afastando as mariposas O menino gritaria no primeiro sono Catarina interromperia um momento o jantar e o elevador não pararia por um instante sequer Não o elevador não pararia um instante Depois do jantar iremos ao cinema resolveu o homem Porque depois do cinema seria enfim noite e este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador COMEÇOS DE UMA FORTUNA Era uma daquelas manhãs que parecem suspensas no ar E que mais se assemelham à ideia que fazemos do tempo A varanda estava aberta mas a frescura se congelara fora e nada entrava do jardim como se qualquer transbordamento fosse uma quebra de harmonia Só algumas moscas brilhantes haviam penetrado na sala de jantar e sobrevoavam o açucareiro A essa hora Tijuca não havia despertado de todo Se eu tivesse dinheiro pensava Artur e um desejo de entesourar de possuir com tranquilidade dava a seu rosto um ar desprendido e contemplativo Não sou um jogador Deixe de tolices respondeu a mãe Não recomece com histórias de dinheiro Na realidade ele não tinha vontade de iniciar nenhuma conversa premente que terminasse em soluções Um pouco da mortificação do jantar da véspera sobre mesadas com o pai misturando autoridade e compreensão e a mãe misturando compreensão e princípios básicos um pouco da mortificação da véspera pedia no entanto prosseguimento Só que era inútil procurar em si a urgência de ontem Cada noite o sono parecia responder a todas as suas necessidades E de manhã ao contrário dos adultos que acordam escuros e barbados ele despertava cada vez mais imberbe Despenteado mas diferente da desordem do pai a quem parecia terem acontecido coisas durante a noite Também sua mãe saía do quarto um pouco desfeita e ainda sonhadora como se a amargura do sono tivesse lhe dado satisfação Até tomarem café todos estavam irritados ou pensativos inclusive a empregada Não era esse o momento de pedir coisas Mas para ele era uma necessidade pacífica a de estabelecer domínios de manhã cada vez que acordava era como se precisasse recuperar os dias anteriores Tanto o sono cortava suas amarras todas as noites Não sou um jogador nem um gastador Artur disse a mãe irritadíssima já me bastam as minhas preocupações Que preocupações perguntou ele com interesse A mãe olhouo seca como a um estranho No entanto ele era muito mais parente que seu pai que por assim dizer entrara na família Apertou os lábios Todo o mundo tem preocupações meu filho corrigiuse ela entrando então em nova modalidade de relações entre maternal e educadora E daí em diante sua mãe assumira o dia Dissiparase a espécie de individualidade com que acordava e Artur já podia contar com ela Desde sempre ou aceitavamno ou reduziamno a ser ele mesmo Em pequeno brincavam com ele jogavamno para o ar enchiamno de beijos e de repente ficavam individuais largavamno diziam gentilmente mas já intangíveis agora acabou e ele ficava todo vibrante de carícias com tantas gargalhadas ainda por dar Tornavase implicante mexia num e noutro com o pé cheio de uma cólera que no entanto se transformaria no mesmo instante em delícia em pura delícia se eles apenas quisessem Coma Artur concluiu a mãe e de novo ele já podia contar com ela Assim imediatamente tornouse menor e mais malcriado Eu também tenho as minhas preocupações mas ninguém liga Quando digo que preciso de dinheiro parece que estou pedindo para jogar ou para beber Desde quando é que o senhor admite que podia ser para jogar ou para beber disse o pai entrando na sala e encaminhandose para a cabeceira da mesa Ora essa que pretensão Ele não contara com a chegada do pai Desnorteado porém habituado começou Mas papai sua voz desafinou numa revolta que não chegava a ser indignada Como contrapeso a mãe já estava dominada mexendo tranquilamente o café com leite indiferente à conversa que parecia não passar de mais algumas moscas Afastavaas do açucareiro com mão mole Vá saindo que está na sua hora cortou o pai Artur virouse para sua mãe Mas esta passava manteiga no pão absorta e prazerosa Fugira de novo A tudo diria sim sem dar nenhuma importância Fechando a porta ele de novo tinha a impressão de que a cada momento entregavamno à vida Assim é que a rua parecia recebêlo Quando eu tiver minha mulher e meus filhos tocarei a campainha daqui e farei visitas e tudo será diferente pensou A vida fora de casa era completamente outra Além da diferença de luz como se somente saindo ele visse que tempo realmente fazia e que disposições haviam tomado as circunstâncias durante a noite além da diferença de luz havia a diferença do modo de ser Quando era pequeno a mãe dizia fora de casa ele é uma doçura em casa um demônio Mesmo agora atravessando o pequeno portão ele se tornara visivelmente mais moço e ao mesmo tempo menos criança mais sensível e sobretudo sem assunto Mas com um interesse dócil Não era uma pessoa que procurasse conversas mas se alguém lhe perguntava como agora menino de que lado fica a igreja ele se animava com suavidade inclinava o longo pescoço pois todos eram mais baixos que ele e informava atraído como se nisso houvesse uma troca de cordialidades e um campo aberto à curiosidade Ficou atento olhando a senhora dobrar a esquina em caminho da igreja pacientemente responsável pelo seu itinerário Mas dinheiro é feito pra gastar e você sabe com quê disselhe Carlinhos intenso Quero para comprar coisas respondeu um pouco vago Uma bicicletinha riu Carlinhos ofensivo corado na intriga Artur riu desagradado sem prazer Sentado na carteira esperou que o professor se erguesse O pigarro deste prefaciando o começo da aula foi o sinal habitual para os alunos se sentarem mais para trás abrirem os olhos com atenção e não pensarem em nada Em nada foi a resposta perturbada de Artur ao professor que o interpelava irritado Em nada era vagamente em conversas anteriores em decisões pouco definitivas sobre um cinema à tarde em em dinheiro Ele precisava de dinheiro Mas durante a aula obrigado a estar imóvel e sem nenhuma responsabilidade qualquer desejo tinha como base o repouso Você então não viu logo que Glorinha estava querendo ser convidada pro cinema disse Carlinhos e ambos olharam com curiosidade a menina que se afastava segurando a pasta Pensativo Artur continuou a andar ao lado do amigo olhando as pedras do chão Se você não tem dinheiro para duas entradas eu empresto você paga depois Pelo visto do momento em que tivesse dinheiro seria obrigado a empregálo em mil coisas Mas depois eu tenho que devolver a você e já estou devendo ao irmão de Antônio respondeu evasivo E então que é que tem explicou o outro prático e veemente E então pensou com uma pequena cólera e então pelo visto logo que alguém tem dinheiro aparecem os outros querendo aplicálo explicando como se perde dinheiro Pelo visto disse desviando do amigo a raiva pelo visto basta você ter uns cruzeirinhos que mulher logo fareja e cai em cima Os dois riram Depois disso ele ficou mais alegre mais confiante Sobretudo menos oprimido pelas circunstâncias Mas depois já era meiodia e qualquer desejo se tornava mais árido e mais duro de suportar Durante todo o almoço ele pensou com rispidez em fazer ou não fazer dívidas e sentiase um homem aniquilado Ou ele estuda demais ou não come bastante de manhã disse a mãe O fato é que acorda bemdisposto mas aparece para o almoço com essa cara pálida Fica logo com as feições duras é o primeiro sinal Não é nada é o desgaste natural do dia disse o pai bemhumorado Olhandose ao espelho do corredor antes de sair realmente era a cara de um desses rapazes que trabalham cansados e moços Sorriu sem mexer os lábios satisfeito no fundo dos olhos Mas à porta do cinema não pôde deixar de pedir emprestado a Carlinhos porque lá estava Glorinha com uma amiga Vocês preferem sentar na frente ou no meio perguntava Glorinha Diante disso Carlinhos pagou a entrada da amiga e Artur recebeu disfarçado o dinheiro da entrada de Glorinha Pelo visto o cinema está estragado disse de passagem para Carlinhos Arrependeuse logo depois de ter falado pois o colega mal ouvira ocupado com a menina Não era necessário diminuirse aos olhos do outro para quem uma sessão de cinema só tinha a ganhar com uma garota Na realidade o cinema só esteve estragado no começo Logo depois ele relaxou o corpo esqueceuse da presença ao lado e passou a ver o filme Somente perto do meio teve consciência de Glorinha e num sobressalto olhoua disfarçado Com um pouco de surpresa constatou que ela não era propriamente a exploradora que ele supusera lá estava Glorinha inclinada para a frente a boca aberta pela atenção Aliviado recostouse de novo na poltrona Mais tarde porém indagouse se tinha ou não sido explorado E sua angústia foi tão intensa que ele parou diante da vitrina com uma cara de horror O coração batia como um punho Além do rosto espantado solto no vidro da vitrina havia panelas e utensílios de cozinha que ele olhou com certa familiaridade Pelo visto fui concluiu e não conseguia sobrepor sua cólera ao perfil sem culpa de Glorinha Aos poucos a própria inocência da menina tornouse a sua culpa maior Então ela explorava explorava e depois ficava toda satisfeita vendo o filme Seus olhos se encheram de lágrimas Ingrata pensou ele escolhendo mal uma palavra de acusação Como a palavra era um símbolo de queixa mais do que de raiva ele se confundiu um pouco e sua raiva acalmouse Parecialhe agora de fora para dentro e sem nenhuma vontade que ela deveria ter pago daquele modo a entrada do cinema Mas diante dos livros e cadernos fechados seu rosto desanuviavase Deixou de ouvir as portas que batiam o piano da vizinha a voz da mãe no telefone Havia um grande silêncio no seu quarto como num cofre E o fim de tarde parecia com uma manhã Estava longe longe como um gigante que pudesse estar fora mantendo no aposento apenas os dedos absortos que viravam e reviravam um lápis Havia instantes em que respirava pesado como um velho A maior parte do tempo porém seu rosto mal aflorava o ar do quarto Já estudei gritou para a mãe que interpelava sobre o barulho da água Lavando cuidadosamente os pés na banheira ele pensou que a amiga de Glorinha era melhor que Glorinha Nem tinha procurado reparar se Carlinhos aproveitara ou não da outra A essa ideia saiu muito depressa da banheira e parou diante do espelho da pia Até que o ladrilho esfriou seus pés molhados Não não queria explicarse com Carlinhos e ninguém lhe diria como usar o dinheiro que teria e Carlinhos podia pensar que era com bicicletas mas se fosse o que é que tem e se nunca mas nunca quisesse gastar o seu dinheiro e cada vez ficasse mais rico que é que há está querendo briga você pensa que pode ser que você esteja muito ocupado com seus pensamentos disse a mãe interrompendoo mas ao menos coma o seu jantar e de vez em quando diga uma palavra Então ele em súbita volta à casa paterna Ora a senhora diz que na mesa não se fala ora quer que eu fale ora diz que não se fala com a boca cheia ora Olhe o modo como você fala com sua mãe disse o pai sem severidade Papai chamou Artur docilmente com as sobrancelhas franzidas papai como é promissórias Pelo visto disse o pai com prazer pelo visto o ginásio não serve para nada Coma mais batata Artur tentou a mãe inutilmente arrastar os dois homens para si Promissórias dizia o pai afastando o prato é assim digamos que você tenha uma dívida MISTÉRIO EM SÃO CRISTÓVÃO Numa noite de maio os jacintos rígidos perto da vidraça a sala de jantar de uma casa estava iluminada e tranquila Ao redor da mesa por um instante imobilizados achavamse o pai a mãe a avó três crianças e uma mocinha magra de dezenove anos O sereno perfumado de São Cristóvão não era perigoso mas o modo como as pessoas se agrupavam no interior da casa tornava arriscado o que não fosse o seio de uma família numa noite fresca de maio Nada havia de especial na reunião acabarase de jantar e conversavase ao redor da mesa os mosquitos em torno da luz O que tornava particularmente abastada a cena e tão desabrochado o rosto de cada pessoa é que depois de muitos anos quase se apalpava afinal o progresso nessa família pois numa noite de maio após o jantar eis que as crianças têm ido diariamente à escola o pai mantém os negócios a mãe trabalhou durante anos nos partos e na casa a mocinha está se equilibrando na delicadeza de sua idade e a avó atingiu um estado Sem se dar conta a família fitava a sala feliz vigiando o raro instante de maio e sua abundância Depois cada um foi para o seu quarto A velha estendeuse gemendo com benevolência O pai e a mãe fechadas todas as portas deitaramse pensativos e adormeceram As três crianças escolhendo as posições mais difíceis adormeceram em três camas como em três trapézios A mocinha na sua camisola de algodão abriu a janela do quarto e respirou todo o jardim com insatisfação e felicidade Perturbada pela umidade cheirosa deitouse prometendose para o dia seguinte uma atitude inteiramente nova que abalasse os jacintos e fizesse as frutas estremecerem nos ramos no meio de sua meditação adormeceu Passaramse horas E quando o silêncio piscava nos vagalumes as crianças penduradas no sono a avó ruminando um sonho difícil os pais cansados a mocinha adormecida no meio de sua meditação abriuse a casa de uma esquina e dela saíram três mascarados Um era alto e tinha a cabeça de um galo Outro era gordo e vestirase de touro E o terceiro mais novo por falta de ideias disfarçarase em cavalheiro antigo e pusera máscara de demônio através da qual surgiam seus olhos cândidos Os três mascarados atravessaram a rua em silêncio Quando passaram pela casa escura da família aquele que era um galo e tinha quase todas as ideias do grupo parou e disse Olha só Os companheiros tornados pacientes pela tortura da máscara olharam e viram uma casa e um jardim Sentindose elegantes e miseráveis esperaram resignados que o outro completasse o pensamento Afinal o galo acrescentou Podemos colher jacintos Os outros dois não responderam Aproveitaram a parada para se examinar desolados e procurar um meio de respirar melhor dentro da máscara Um jacinto para cada um pregar na fantasia concluiu o galo O touro agitouse inquieto à ideia de mais um enfeite a ter que proteger na festa Mas passado um instante em que os três pareciam pensar profundamente para resolver sem que na verdade pensassem em coisa alguma o galo adiantouse subiu ágil pela grade e pisou na terra proibida do jardim O touro seguiuo com dificuldade O terceiro apesar de hesitante num só pulo achouse no próprio centro dos jacintos com um baque amortecido que fez os três aguardarem assustados sem respirar o galo o touro e o cavalheiro do diabo perscrutaram o escuro Mas a casa continuava entre trevas e sapos E no jardim sufocado de perfume os jacintos estremeciam imunes Então o galo avançou Poderia colher o jacinto que estava à sua mão Os maiores porém que se erguiam perto de uma janela altos duros frágeis cintilavam chamandoo Para lá o galo se dirigiu na ponta dos pés e o touro e o cavalheiro acompanharamno O silêncio os vigiava Mal porém quebrara a haste do jacinto maior o galo interrompeuse gelado Os dois outros pararam num suspiro que os mergulhou em sono Atrás do vidro escuro da janela estava um rosto branco olhandoos O galo imobilizarase no gesto de quebrar o jacinto O touro quedarase de mãos ainda erguidas O cavalheiro exangue sob a máscara rejuvenescera até encontrar a infância e o seu horror O rosto atrás da janela olhava Nenhum dos quatro saberia quem era o castigo do outro Os jacintos cada vez mais brancos na escuridão Paralisados eles se espiavam A simples aproximação de quatro máscaras na noite de maio parecia ter percutido ocos recintos e mais outros e mais outros que sem o instante no jardim ficariam para sempre nesse perfume que há no ar e na imanência de quatro naturezas que o acaso indicara assinalando hora e lugar o mesmo acaso preciso de uma estrela cadente Os quatro vindos da realidade haviam caído nas possibilidades que tem uma noite de maio em São Cristóvão Cada planta úmida cada seixo os sapos roucos aproveitavam a silenciosa confusão para se disporem em melhor lugar tudo no escuro era muda aproximação Caídos na cilada eles se olhavam aterrorizados fora saltada a natureza das coisas e as quatro figuras se espiavam de asas abertas Um galo um touro o demônio e um rosto de moça haviam desatado a maravilha do jardim Foi quando a grande lua de maio apareceu Era um toque perigoso para as quatro imagens Tão arriscado que sem um som quatro mudas visões recuaram sem se desfitarem temendo que no momento em que não se prendessem pelo olhar novos territórios distantes fossem feridos e que depois da silenciosa derrocada restassem apenas os jacintos donos do tesouro do jardim Nenhum espectro viu o outro desaparecer porque todos se retiraram ao mesmo tempo vagarosos na ponta dos pés Mal porém se quebrara o círculo mágico de quatro livres da vigilância mútua a constelação se desfez com terror três vultos pularam como gatos as grades do jardim e um outro arrepiado e engrandecido afastouse de costas até o limiar de uma porta de onde num grito se pôs a correr Os três cavalheiros mascarados que por ideia funesta do galo pretendiam fazer uma surpresa num baile tão longe do carnaval foram um triunfo no meio da festa já começada A música interrompeuse e os dançarinos ainda enlaçados entre risos viram três mascarados ofegantes parar como indigentes à porta Afinal depois de várias tentativas os convidados tiveram que abandonar o desejo de tornálos os reis da festa porque assustados os três não se separavam um alto um gordo e um jovem um gordo um jovem e um alto desequilíbrio e união os rostos sem palavras embaixo de três máscaras que vacilavam independentes Enquanto isso a casa dos jacintos iluminarase toda A mocinha estava sentada na sala A avó com os cabelos brancos entrançados segurava o copo dágua a mãe alisava os cabelos escuros da filha enquanto o pai percorria a casa A mocinha nada sabia explicar parecia ter dito tudo no grito Seu rosto apequenarase claro toda a construção laboriosa de sua idade se desfizera ela era de novo uma menina Mas na imagem rejuvenescida de mais de uma época para o horror da família um fio branco aparecera entre os cabelos da fronte Como persistisse em olhar em direção da janela deixaramna sentada a repousar e com castiçais na mão estremecendo de frio nas camisolas saíram em expedição pelo jardim Em breve as velas se espalhavam dançando na escuridão Heras aclaradas se encolhiam os sapos saltavam iluminados entre os pés frutos se douravam por um instante entre as folhas O jardim despertado no sonho ora se engrandecia ora se extinguia borboletas voavam sonâmbulas Finalmente a velha boa conhecedora dos canteiros apontou o único sinal visível no jardim que se esquivava o jacinto ainda vivo quebrado no talo Então era verdade alguma coisa sucedera Voltaram iluminaram a casa toda e passaram o resto da noite a esperar Só as três crianças dormiam ainda mais profundamente A mocinha aos poucos recuperou sua verdadeira idade Somente ela não vivia a perscrutar Mas os outros que nada tinham visto tornaramse atentos e inquietos E como o progresso naquela família era frágil produto de muitos cuidados e de algumas mentiras tudo se desfez e teve que se refazer quase do princípio a avó de novo pronta a se ofender o pai e a mãe fatigados as crianças insuportáveis toda a casa parecendo esperar que mais uma vez a brisa da abastança soprasse depois de um jantar O que sucederia talvez noutra noite de maio O CRIME DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA Quando o homem atingiu a colina mais alto os sinos tocavam na cidade embaixo Viamse apenas os tetos irregulares das casas Perto dele estava a única árvore da chapada O homem estava de pé com um saco pesado na mão Olhou para baixo com olhos míopes Os católicos entravam devagar e miúdos na igreja e ele procurava ouvir as vozes esparsas das crianças espalhadas na praça Mas apesar da limpidez da manhã os sons mal alcançavam o planalto Via também o rio que de cima parecia imóvel e pensou é domingo Viu ao longe a montanha mais alta com as escarpas secas Não fazia frio mas ele ajeitou o paletó agasalhandose melhor Afinal pousou com cuidado o saco no chão Tirou os óculos talvez para respirar melhor porque com os óculos na mão respirou muito fundo A claridade batia nas lentes que enviaram sinais agudos Sem os óculos seus olhos piscaram claros quase jovens infamiliares Pôs de novo os óculos tornouse um senhor de meiaidade e pegou de novo no saco pesava como se fosse de pedra pensou Forçou a vista para perceber a correnteza do rio inclinou a cabeça para ouvir algum ruído o rio estava parado e apenas o som mais duro de uma voz atingiu por um instante a altura sim ele estava bem só O ar fresco era inóspito ele que morara numa cidade mais quente A única árvore da chapada balançava os ramos Ele olhoua Ganhava tempo Até que achou que não havia por que esperar mais E no entanto aguardava Certamente os óculos o incomodavam porque de novo os tirou respirou fundo e guardouos no bolso Abriu então o saco espiou um pouco Depois meteu dentro a mão magra e foi puxando o cachorro morto Todo ele se concentrava apenas na mão importante e ele mantinha os olhos profundamente fechados enquanto puxava Quando os abriu o ar estava ainda mais claro e os sinos alegres tocaram novamente chamando os fiéis para o consolo da punição O cachorro desconhecido estava à luz Então ele se pôs metodicamente a trabalhar Pegou no cachorro duro e negro depositouo numa baixa do terreno Mas como se já tivesse feito muito pôs os óculos sentouse ao lado do cão e começou a observar a paisagem Viu muito claramente e com certa inutilidade a chapada deserta Mas observou com precisão que estando sentado já não enxergava a cidadezinha embaixo Respirou de novo Remexeu no saco e tirou a pá E pensou no lugar que escolheria Talvez embaixo da árvore Surpreendeuse refletindo que embaixo da árvore enterraria este cão Mas se fosse o outro o verdadeiro cão enterráloia na verdade onde ele próprio gostaria de ser sepultado se estivesse morto no centro mesmo da chapada a encarar de olhos vazios o sol Então já que o cão desconhecido substituía o outro quis que ele para maior perfeição do ato recebesse precisamente o que o outro receberia Não havia nenhuma confusão na cabeça do homem Ele se entendia a si próprio com frieza sem nenhum fio solto Em breve por excesso de escrúpulo estava ocupado demais em procurar determinar rigorosamente o meio da chapada Não era fácil porque a única árvore se erguia num lado e tendose como falso centro dividia assimetricamente o planalto Diante da dificuldade o homem concedeu não era necessário enterrar no centro eu também enterraria o outro digamos bem onde eu estivesse neste mesmo instante em pé Porque se tratava de dar ao acontecimento a fatalidade do acaso a marca de uma ocorrência exterior e evidente no mesmo plano das crianças na praça e dos católicos entrando na igreja tratavase de tornar o fato ao máximo visível à superfície do mundo sob o céu Tratavase de exporse e de expor um fato e de não lhe permitir a forma íntima e impune de um pensamento À ideia de enterrar o cão onde estivesse nesse mesmo momento em pé o homem recuou com uma agilidade que seu corpo pequeno e singularmente pesado não permitia Porque lhe pareceu que sob os pés se desenhara o esboço da cova do cão Então ele começou a cavar ali mesmo com pá rítmica Às vezes se interrompia para tirar e de novo botar os óculos Suava penosamente Não cavou muito mas não porque quisesse poupar seu cansaço Não cavou muito porque pensou lúcido se fosse para o verdadeiro cão eu cavaria pouco enterráloia bem à tona Ele achava que o cão à superfície da terra não perderia a sensibilidade Afinal largou a pá pegou com delicadeza o cachorro desconhecido e pousouo na cova Que cara estranha o cão tinha Quando com um choque descobrira o cão morto numa esquina a ideia de enterrálo tornara seu coração tão pesado e surpreendido que ele nem sequer tivera olhos para aquele focinho duro e de baba seca Era um cão estranho e objetivo O cão era um pouco mais alto que o buraco cavado e depois de coberto com terra seria uma excrescência apenas sensível do planalto Era assim precisamente que ele queria Cobriu o cão com terra e aplainoua com as mãos sentindo com atenção e prazer sua forma nas palmas como se o alisasse várias vezes O cão era agora apenas uma aparência do terreno Então o homem se levantou sacudiu a terra das mãos e não olhou nenhuma vez mais a cova Pensou com certo gosto acho que fiz tudo Deu um suspiro fundo e um sorriso inocente de libertação Sim fizera tudo Seu crime fora punido e ele estava livre E agora ele podia pensar livremente no verdadeiro cão Pôsse então imediatamente a pensar no verdadeiro cão o que ele evitara até agora O verdadeiro cão que agora mesmo devia vagar perplexo pelas ruas do outro município farejando aquela cidade onde ele não tinha mais dono Pôsse então a pensar com dificuldade no verdadeiro cão como se tentasse pensar com dificuldade na sua verdadeira vida O fato do cachorro estar distante na outra cidade dificultava a tarefa embora a saudade o aproximasse da lembrança Enquanto eu te fazia à minha imagem tu me fazias à tua pensou então com auxílio da saudade Deite o nome de José para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma E tu como saber jamais que nome me deste Quanto me amaste mais do que te amei refletiu curioso Nós nos compreendíamos demais tu com o nome humano que te dei eu com o nome que me deste e que nunca pronunciaste senão com o olhar insistente pensou o homem sorrindo com carinho livre agora de se lembrar à vontade Lembrome de ti quando eras pequeno pensou divertido tão pequeno bonitinho e fraco abanando o rabo me olhando e eu surpreendendo em ti uma nova forma de ter minha alma Mas desde então já começavas a ser todos os dias um cachorro que se podia abandonar Enquanto isso nossas brincadeiras tornavamse perigosas de tanta compreensão lembrouse o homem satisfeito tu terminavas me mordendo e rosnando eu terminava jogando um livro sobre ti e rindo Mas quem sabe o que já significava aquele meu riso sem vontade Eras todos os dias um cão que se podia abandonar E como cheiravas as ruas pensou o homem rindo um pouco na verdade não deixaste pedra por cheirar Este era o teu lado infantil Ou era o teu verdadeiro cumprimento de ser cão e o resto apenas brincadeira de ser meu Porque eras irredutível E abanando tranquilo o rabo parecias rejeitar em silêncio o nome que eu te dera Ah sim eras irredutível eu não queria que comesses carne para que não ficasses feroz mas pulaste um dia sobre a mesa e entre os gritos felizes das crianças agarraste a carne e com uma ferocidade que não vem do que se come me olhaste mudo e irredutível com a carne na boca Porque embora meu nunca me cedeste nem um pouco de teu passado e de tua natureza E inquieto eu começava a compreender que não exigias de mim que eu cedesse nada da minha para te amar e isso começava a me importunar Era no ponto de realidade resistente das duas naturezas que esperavas que nos entendêssemos Minha ferocidade e a tua não deveriam se trocar por doçura era isso o que pouco a pouco me ensinavas e era isto também que estava se tornando pesado Não me pedindo nada me pedias demais De ti mesmo exigias que fosses um cão De mim exigias que eu fosse um homem E eu eu disfarçava como podia Às vezes sentado sobre as patas diante de mim como me espiavas Eu então olhava o teto tossia dissimulava olhava as unhas Mas nada te comovia tu me espiavas A quem irias contar Finge diziame eu finge depressa que és outro dá a falsa entrevista fazlhe um afago jogalhe um osso mas nada te distraía tu me espiavas Tolo que eu era Eu fremia de horror quando eras tu o inocente que eu me virasse e de repente te mostrasse meu rosto verdadeiro e eriçado atingido erguerteias até a porta ferido para sempre Oh eras todos os dias um cão que se podia abandonar Podiase escolher Mas tu confiante abanavas o rabo Às vezes tocado pela tua acuidade eu conseguia ver em ti a tua própria angústia Não a angústia de ser cão que era a tua única forma possível Mas a angústia de existir de um modo tão perfeito que se tornava uma alegria insuportável davas então um pulo e vinhas lamber meu rosto com amor inteiramente dado e certo perigo de ódio como se fosse eu quem pela amizade te houvesse revelado Agora estou bem certo de que não fui eu quem teve um cão Foste tu que tiveste uma pessoa Mas possuíste uma pessoa tão poderosa que podia escolher e então te abandonou Com alívio abandonoute Com alívio sim pois exigias com a incompreensão serena e simples de quem é um cão heroico que eu fosse um homem Abandonoute com uma desculpa que todos em casa aprovaram porque como poderia eu fazer uma viagem de mudança com bagagem e família e ainda mais um cão com a adaptação ao novo colégio e à nova cidade e ainda mais um cão Que não cabe em parte alguma disse Marta prática Que incomodará os passageiros explicou minha sogra sem saber que previamente me justificava e as crianças choraram e eu não olhava nem para elas nem para ti José Mas só tu e eu sabemos que te abandonei porque eras a possibilidade constante do crime que eu nunca tinha cometido A possibilidade de eu pecar o que no disfarçado de meus olhos já era pecado Então pequei logo para ser logo culpado E este crime substitui o crime maior que eu não teria coragem de cometer pensou o homem cada vez mais lúcido Há tantas formas de ser culpado e de perderse para sempre e de se trair e de não se enfrentar Eu escolhi a de ferir um cão pensou o homem Porque eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem Porque eu sabia que esse crime não era punível Sentado na chapada sua cabeça matemática estava fria e inteligente Só agora ele parecia compreender em toda sua gélida plenitude que fizera com o cão algo realmente impune e para sempre Pois ainda não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições Um homem ainda conseguia ser mais esperto que o Juízo Final Este crime ninguém o condenava Nem a Igreja Todos são meus cúmplices José Eu teria que bater de porta em porta e mendigar que me acusassem e me punissem todos me bateriam a porta com uma cara de repente endurecida Este crime ninguém me condena Nem tu José me condenarias Pois bastaria esta pessoa poderosa que sou escolher de te chamar e do teu abandono nas ruas num pulo me lamberias a face com alegria e perdão Eu te daria a outra face a beijar O homem tirou os óculos respirou botouos de novo Olhou a cova coberta Onde ele enterrara um cão desconhecido em tributo ao cão abandonado procurando enfim pagar a dívida que inquietantemente ninguém lhe cobrava Procurando punirse com um ato de bondade e ficar livre de seu crime Como alguém dá uma esmola para enfim poder comer o bolo por causa do qual o outro não comeu o pão Mas como se José o cão abandonado exigisse dele muito mais que a mentira como se exigisse que ele num último arranco fosse um homem e como homem assumisse o seu crime ele olhava a cova onde enterrara a sua fraqueza e a sua condição E agora mais matemático ainda procurava um meio de não se ter punido Ele não devia ser consolado Procurava friamente um modo de destruir o falso enterro do cão desconhecido Abaixouse então e solene calmo com movimentos simples desenterrou o cão O cão escuro apareceu afinal inteiro infamiliar com a terra nos cílios os olhos abertos e cristalizados E assim o professor de matemática renovara o seu crime para sempre O homem então olhou para os lados e para o céu pedindo testemunha para o que fizera E como se não bastasse ainda começou a descer as escarpas em direção ao seio de sua família O BÚFALO Mas era primavera Até o leão lambeu a testa glabra da leoa Os dois animais louros A mulher desviou os olhos da jaula onde só o cheiro quente lembrava a carnificina que ela viera buscar no Jardim Zoológico Depois o leão passeou enjubado e tranquilo e a leoa lentamente reconstituiu sobre as patas estendidas a cabeça de uma esfinge Mas isso é amor é amor de novo revoltouse a mulher tentando encontrarse com o próprio ódio mas era primavera e dois leões se tinham amado Com os punhos nos bolsos do casaco olhou em torno de si rodeada pelas jaulas enjaulada pelas jaulas fechadas Continuou a andar Os olhos estavam tão concentrados na procura que sua vista às vezes se escurecia num sono e então ela se refazia como na frescura de uma cova Mas a girafa era uma virgem de tranças recémcortadas Com a tola inocência do que é grande e leve e sem culpa A mulher do casaco marrom desviou os olhos doente doente Sem conseguir diante da aérea girafa pousada diante daquele silencioso pássaro sem asas sem conseguir encontrar dentro de si o ponto pior de sua doença o ponto mais doente o ponto de ódio ela que fora ao Jardim Zoológico para adoecer Mas não diante da girafa que mais era paisagem que um ente Não diante daquela carne que se distraíra em altura e distância a girafa quase verde Procurou outros animais tentava aprender com eles a odiar O hipopótamo o hipopótamo úmido O rolo roliço de carne carne redonda e muda esperando outra carne roliça e muda Não Pois havia tal amor humilde em se manter apenas carne tal doce martírio em não saber pensar Mas era primavera e apertando o punho no bolso do casaco ela mataria aqueles macacos em levitação pela jaula macacos felizes como ervas macacos se entrepulando suaves a macaca com olhar resignado de amor e a outra macaca dando de mamar Ela os mataria com quinze secas balas os dentes da mulher se apertaram até o maxilar doer A nudez dos macacos O mundo que não via perigo em ser nu Ela mataria a nudez dos macacos Um macaco também a olhou segurando as grades os braços descarnados abertos em crucifixo o peito pelado exposto sem orgulho Mas não era no peito que ela mataria era entre os olhos do macaco que ela mataria era entre aqueles olhos que a olhavam sem pestanejar De repente a mulher desviou o rosto é que os olhos do macaco tinham um véu branco gelatinoso cobrindo a pupila nos olhos a doçura da doença era um macaco velho a mulher desviou o rosto trancando entre os dentes um sentimento que ela não viera buscar apressou os passos ainda voltou a cabeça espantada para o macaco de braços abertos ele continuava a olhar para a frente Oh não não isso pensou E enquanto fugia disse Deus me ensine somente a odiar Eu te odeio disse ela para um homem cujo crime único era o de não amála Eu te odeio disse muito apressada Mas não sabia sequer como se fazia Como cavar na terra até encontrar a água negra como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a si mesma Andou pelo Jardim Zoológico entre mães e crianças Mas o elefante suportava o próprio peso Aquele elefante inteiro a quem fora dado com uma simples pata esmagar Mas que não esmagava Aquela potência que no entanto se deixaria docilmente conduzir a um circo elefante de crianças E os olhos numa bondade de velho presos dentro da grande carne herdada O elefante oriental Também a primavera oriental e tudo nascendo tudo escorrendo pelo riacho A mulher então experimentou o camelo O camelo em trapos corcunda mastigando a si próprio entregue ao processo de conhecer a comida Ela se sentiu fraca e cansada há dois dias mal comia Os grandes cílios empoeirados do camelo sobre olhos que se tinham dedicado à paciência de um artesanato interno A paciência a paciência a paciência só isso ela encontrava na primavera ao vento Lágrimas encheram os olhos da mulher lágrimas que não correram presas dentro da paciência de sua carne herdada Somente o cheiro de poeira do camelo vinha de encontro ao que ela viera ao ódio seco não a lágrimas Aproximouse das barras do cercado aspirou o pó daquele tapete velho onde sangue cinzento circulava procurou a tepidez impura o prazer percorreu suas costas até o malestar mas não ainda o malestar que ela viera buscar No estômago contraiuse em cólica de fome a vontade de matar Mas não o camelo de estopa Oh Deus quem será meu par neste mundo Então foi sozinha ter a sua violência No pequeno parque de diversões do Jardim Zoológico esperou meditativa na fila de namorados pela sua vez de se sentar no carro da montanharussa E ali estava agora sentada quieta no casaco marrom O banco ainda parado a maquinaria da montanharussa ainda parada Separada de todos no seu banco parecia estar sentada numa Igreja Os olhos baixos viam o chão entre os trilhos O chão onde simplesmente por amor amor amor não o amor onde por puro amor nasciam entre os trilhos ervas de um verde leve tão tonto que a fez desviar os olhos em suplício de tentação A brisa arrepioulhe os cabelos da nuca ela estremeceu recusando em tentação recusando sempre tão mais fácil amar Mas de repente foi aquele voo de vísceras aquela parada de um coração que se surpreende no ar aquele espanto a fúria vitoriosa com que o banco a precipitava no nada e imediatamente a soerguia como uma boneca de saia levantada o profundo ressentimento com que ela se tornou mecânica o corpo automaticamente alegre o grito das namoradas seu olhar ferido pela grande surpresa a ofensa faziam dela o que queriam a grande ofensa o grito das namoradas a enorme perplexidade de estar espasmodicamente brincando faziam dela o que queriam de repente sua candura exposta Quantos minutos os minutos de um grito prolongado de trem na curva e a alegria de um novo mergulho no ar insultandoa como um pontapé ela dançando descompassada ao vento dançando apressada quisesse ou não quisesse o corpo sacudiase como o de quem ri aquela sensação de morte às gargalhadas morte sem aviso de quem não rasgou antes os papéis da gaveta não a morte dos outros a sua sempre a sua Ela que poderia ter aproveitado o grito dos outros para dar seu urro de lamento ela se esqueceu ela só teve espanto E agora este silêncio também súbito Estavam de volta a terra a maquinaria de novo inteiramente parada Pálida jogada fora de uma Igreja olhou a terra imóvel de onde partira e aonde de novo fora entregue Ajeitou as saias com recato Não olhava para ninguém Contrita como no dia em que no meio de todo o mundo tudo o que tinha na bolsa caíra no chão e tudo o que tivera valor enquanto secreto na bolsa ao ser exposto na poeira da rua revelara a mesquinharia de uma vida íntima de precauções pó de arroz recibo canetatinteiro ela recolhendo do meiofio os andaimes de sua vida Levantouse do banco estonteada como se estivesse se sacudindo de um atropelamento Embora ninguém prestasse atenção alisou de novo a saia fazia o possível para que não percebessem que estava fraca e difamada protegia com altivez os ossos quebrados Mas o céu lhe rodava no estômago vazio a terra que subia e descia a seus olhos ficava por momentos distante a terra que é sempre tão difícil Por um momento a mulher quis num cansaço de choro mudo estender a mão para a terra difícil sua mão se estendeu como a de um aleijado pedindo Mas como se tivesse engolido o vácuo o coração surpreendido Só isso Só isto Da violência só isto Recomeçou a andar em direção aos bichos O quebranto da montanharussa deixaraa suave Não conseguiu ir muito adiante teve que apoiar a testa na grade de uma jaula exausta a respiração curta e leve De dentro da jaula o quati olhoua Ela o olhou Nenhuma palavra trocada Nunca poderia odiar o quati que no silêncio de um corpo indagante a olhava Perturbada desviou os olhos da ingenuidade do quati O quati curioso lhe fazendo uma pergunta como uma criança pergunta E ela desviando os olhos escondendo dele a sua missão mortal A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava A jaula era sempre do lado onde ela estava deu um gemido que pareceu vir da sola dos pés Depois outro gemido Então nascida do ventre de novo subiu implorante em onda vagarosa a vontade de matar seus olhos molharamse gratos e negros numa quase felicidade não era o ódio ainda por enquanto apenas a vontade atormentada de ódio como um desejo à promessa do desabrochamento cruel um tormento como de amor a vontade de ódio se prometendo sagrado sangue e triunfo a fêmea rejeitada espiritualizarase na grande esperança Mas onde onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ter o seu próprio ódio o ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava onde aprender a odiar para não morrer de amor E com quem O mundo de primavera o mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas que arranham mas não dói oh não mais esse mundo não mais esse perfume não esse arfar cansado não mais esse perdão em tudo o que um dia vai morrer como se fora para dar se Nunca o perdão se aquela mulher perdoasse mais uma vez uma só vez que fosse sua vida estaria perdida deu um gemido áspero e curto o quati sobressaltouse enjaulada olhou em torno de si e como não era pessoa em quem prestassem atenção encolheuse como uma velha assassina solitária uma criança passou correndo sem vêla Recomeçou então a andar agora apequenada dura os punhos de novo fortificados nos bolsos a assassina incógnita e tudo estava preso no seu peito No peito que só sabia resignar se que só sabia suportar só sabia pedir perdão só sabia perdoar que só aprendera a ter a doçura da infelicidade e só aprendera a amar a amar a amar Imaginar que talvez nunca experimentasse o ódio de que sempre fora feito o seu perdão fez seu coração gemer sem pudor ela começou a andar tão depressa que parecia ter encontrado um súbito destino Quase corria os sapatos a desequilibravam e davamlhe uma fragilidade de corpo que de novo a reduzia a fêmea de presa os passos tomaram mecanicamente o desespero implorante dos delicados ela que não passava de uma delicada Mas pudesse tirar os sapatos poderia evitar a alegria de andar descalça como não amar o chão em que se pisa Gemeu de novo parou diante das barras de um cercado encostou o rosto quente no enferrujado frio do ferro De olhos profundamente fechados procurava enterrar a cara entre a dureza das grades a cara tentava uma passagem impossível entre barras estreitas assim como antes vira o macaco recémnascido buscar na cegueira da fome o peito da macaca Um conforto passageiro veio lhe do modo como as grades pareceram odiála opondolhe a resistência de um ferro gelado Abriu os olhos devagar Os olhos vindos de sua própria escuridão nada viram na desmaiada luz da tarde Ficou respirando Aos poucos recomeçou a enxergar aos poucos as formas foram se solidificando ela cansada esmagada pela doçura de um cansaço Sua cabeça ergueuse em indagação para as árvores de brotos nascendo os olhos viram as pequenas nuvens brancas Sem esperança ouviu a leveza de um riacho Abaixou de novo a cabeça e ficou olhando o búfalo ao longe Dentro de um casaco marrom respirando sem interesse ninguém interessado nela ela não interessada em ninguém Certa paz enfim A brisa mexendo nos cabelos da testa como nos de pessoa recémmorta de testa ainda suada Olhando com isenção aquele grande terreno seco rodeado de grades altas o terreno do búfalo O búfalo negro estava imóvel no fundo do terreno Depois passeou ao longe com os quadris estreitos os quadris concentrados O pescoço mais grosso que as ilhargas contraídas Visto de frente a grande cabeça mais larga que o corpo impedia a visão do resto do corpo como uma cabeça decepada E na cabeça os cornos De longe ele passeava devagar com seu torso Era um búfalo negro Tão preto que a distância a cara não tinha traços Sobre o negror a alvura erguida dos cornos A mulher talvez fosse embora mas o silêncio era bom no cair da tarde E no silêncio do cercado os passos vagarosos a poeira seca sob os cascos secos De longe no seu calmo passeio o búfalo negro olhoua um instante No instante seguinte a mulher de novo viu apenas o duro músculo do corpo Talvez não a tivesse olhado Não podia saber porque das trevas da cabeça ela só distinguia os contornos Mas de novo ele pareceu tê la visto ou sentido A mulher aprumou um pouco a cabeça recuoua ligeiramente em desconfiança Mantendo o corpo imóvel a cabeça recuada ela esperou E mais uma vez o búfalo pareceu notála Como se ela não tivesse suportado sentir o que sentira desviou subitamente o rosto e olhou uma árvore Seu coração não bateu no peito o coração batia oco entre o estômago e os intestinos O búfalo deu outra volta lenta A poeira A mulher apertou os dentes o rosto todo doeu um pouco O búfalo com o torso preto No entardecer luminoso era um corpo enegrecido de tranquila raiva a mulher suspirou devagar Uma coisa branca espalharase dentro dela branca como papel fraca como papel intensa como uma brancura A morte zumbia nos seus ouvidos Novos passos do búfalo trouxeramna a si mesma e em novo longo suspiro ela voltou à tona Não sabia onde estivera Estava de pé muito débil emergida daquela coisa branca e remota onde estivera E de onde olhou de novo o búfalo O búfalo agora maior O búfalo negro Ah disse de repente com uma dor O búfalo de costas para ela imóvel O rosto esbranquiçado da mulher não sabia como chamálo Ah disse provocandoo Ah disse ela Seu rosto estava coberto de mortal brancura o rosto subitamente emagrecido era de pureza e veneração Ah instigouo com os dentes apertados Mas de costas para ela o búfalo inteiramente imóvel Apanhou uma pedra no chão e jogou para dentro do cercado A imobilidade do torso mais negra ainda se aquietou a pedra rolou inútil Ah disse sacudindo as barras Aquela coisa branca se espalhava dentro dela viscosa como uma saliva O búfalo de costas Ah disse Mas dessa vez porque dentro dela escorria enfim um primeiro fio de sangue negro O primeiro instante foi de dor Como se para que escorresse este sangue se tivesse contraído o mundo Ficou parada ouvindo pingar como numa grota aquele primeiro óleo amargo a fêmea desprezada Sua força ainda estava presa entre barras mas uma coisa incompreensível e quente enfim incompreensível acontecia uma coisa como uma alegria sentida na boca Então o búfalo voltouse para ela O búfalo voltouse imobilizouse e a distância encaroua Eu te amo disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querêla Eu te odeio disse implorando amor ao búfalo Enfim provocado o grande búfalo aproximouse sem pressa Ele se aproximava a poeira erguiase A mulher esperou de braços pendidos ao longo do casaco Devagar ele se aproximava Ela não recuou um só passo Até que ele chegou às grades e ali parou Lá estavam o búfalo e a mulher frente a frente Ela não olhou a cara nem a boca nem os cornos Olhou seus olhos E os olhos do búfalo os olhos olharam seus olhos E uma palidez tão funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente De pé em sono profundo Olhos pequenos e vermelhos a olhavam Os olhos do búfalo A mulher tonteou surpreendida lentamente meneava a cabeça O búfalo calmo Lentamente a mulher meneava a cabeça espantada com o ódio com que o búfalo tranquilo de ódio a olhava Quase inocentada meneando uma cabeça incrédula a boca entreaberta Inocente curiosa entrando cada vez mais fundo dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam ingênua num suspiro de sono sem querer nem poder fugir presa ao mútuo assassinato Presa como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara Presa enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo Copyright 1960 Clarice Lispector Paulo Gurgel Valente e Pedro Gurgel Valente Direitos desta edição reservados à EDITORA ROCCO LTDA Av Presidente Wilson 231 8º andar 20030021 Rio de Janeiro RJ Tel 21 35252000 Fax 21 35252001 roccoroccocombr wwwroccocombr Arquivo ePub produzido pela Simplíssimo Livros Edição digital fevereiro 2013 CIPBrasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ L753L Lispector Clarice 19201977 Laços de família recurso eletrônico Clarice Lispector 1ed Rio de Janeiro Rocco Digital 2013 recurso digital ISBN 9788581221939 recurso eletrônico 1 Conto brasileiro 2 Livros eletrônicos I Título CDD 86993 130984 CDU 8211343813 A Autora Uma escritora decidida a desvendar as profundezas da alma Essa é Clarice Lispector que escolheu a literatura como bússola em sua busca pela essência humana Sua tentativa de transcender o cotidiano revelase em personagens na iminência de um milagre uma explosão ou uma singela descoberta Todos suscetíveis aos acontecimentos do dia a dia Vidas que se perdem e se encontram em labirintos formados por uma linguagem única meticulosamente estruturada E é por essa linguagem que Clarice Lispector constrói uma obra de caráter tão profundo quanto universal
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LACOS DE FAMÍLIA DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos bem como o simples teste da qualidade da obra com o fim exclusivo de compra futura É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda aluguel ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa Você pode encontrar mais obras em nosso site LeLivroslink ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento e não mais lutando por dinheiro e poder então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível Maria L Inspectora Clarice Lispector LAÇOS DE FAMÍLIA CONTOS SUMÁRIO Devaneio e embriaguez duma rapariga Amor Uma galinha A imitação da rosa Feliz aniversário A menor mulher do mundo O jantar Preciosidade Os laços de família Começos de uma fortuna Mistério em São Cristóvão O crime do professor de matemática O búfalo Créditos A Autora DEVANEIO E EMBRIAGUEZ DUMA RAPARIGA Pelo quarto parecialhe estarem a se cruzar os elétricos a estremeceremlhe a imagem refletida Estava a se pentear vagarosamente diante da penteadeira de três espelhos os braços brancos e fortes arrepiavamse à frescurazita da tarde Os olhos não se abandonavam os espelhos vibravam ora escuros ora luminosos Cá fora duma janela mais alta caiu à rua uma cousa pesada e fofa Se os miúdos e o marido estivessem à casa já lhe viria à ideia que seria descuido deles Os olhos não se despregavam da imagem o pente trabalhava meditativo o roupão aberto deixava aparecerem nos espelhos os seios entrecortados de várias raparigas A Noite gritou o jornaleiro ao vento brando da Rua do Riachuelo e alguma cousa arrepiouse pressagiada Jogou o pente à penteadeira cantou absorta quem viu o pardal zito passou pela janela voou pralém do Minho mas colérica fechouse dura como um leque Deitouse abanavase impaciente com um jornal a farfalhar no quarto Pegou o lenço aspiravao a comprimir o bordado áspero com os dedos avermelhados Punhase de novo a abanarse quase a sorrir Ai ai suspirou a rir Teve a visão de seu sorriso claro de rapariga ainda nova e sorriu mais fechando os olhos a abanarse mais profundamente Ai ai vinha da rua como uma borboleta Bons dias sabes quem veio a me procurar cá à casa pensou como assunto possível e interessante de palestra Pois não sei quem perguntaramlhe com um sorriso galanteador uns olhos tristes numa dessas caras pálidas que a uma pessoa fazem tanto mal A Maria Quitéria homem respondeu garrida de mão à ilharga E se mo permite quem é esta rapariga insistiram galante mas já agora sem fisionomia Tu cortou ela com leve rancor a palestra que chatura Ai que quarto suculento ela se abanava no Brasil O sol preso pelas persianas tremia na parede como uma guitarra A Rua do Riachuelo sacudiase ao peso arquejante dos elétricos que vinham da Rua Mem de Sá Ela ouvia curiosa e entediada o estremecimento do guarda loiça na sala das visitas Dimpaciência virouselhe o corpo de bruços e enquanto estava a esticar com amor os dedos dos pés pequeninos aguardava seu próximo pensamento com os olhos abertos Quem encontrou buscou dissese em forma de rifão rimado o que sempre terminava por parecer com alguma verdade Até que adormeceu com a boca aberta a baba a umedecerlhe o travesseiro Só acordou com o marido a voltar do trabalho e a entrar pelo quarto adentro Não quis jantar nem sair de seus cuidados dormiu de novo o homem lá que se regalasse com as sobras do almoço E já que os filhos estavam na quinta das titias em Jacarepaguá ela aproveitou para amanhecer esquisita túrbida e leve na cama um desses caprichos sabese lá O marido apareceulhe já trajado e ela nem sabia o que o homem fizera para o seu pequeno almoço e nem olhoulhe o fato se estava ou não por escovar pouco se lhe importava se hoje era dia dele tratar os negócios na cidade Mas quando ele se inclinou para beijála sua leveza crepitou como folha seca Largate daí E o que tens perguntalhe o homem atônito a ensaiar imediatamente carinho mais eficaz Obstinada ela não saberia responder estava tão rasa e princesa que não tinha sequer onde se lhe buscar uma resposta Zangouse Ai que não me maces não me venhas a rondar como um galo velho Ele pareceu pensar melhor e declarou Ó rapariga estás doente Ela aceitou surpreendida lisonjeada Durante o dia inteiro ficouse na cama a ouvir a casa tão silenciosa sem o bulício dos miúdos sem o homem que hoje comeria seus cozidos pela cidade Durante o dia inteiro ficouse à cama Sua cólera era tênue ardente Só se levantava mesmo para ir à casa de banhos donde voltava nobre ofendida A manhã tornouse uma longa tarde inflada que se tornou noite sem fundo amanhecendo inocente pela casa toda Ela ainda à cama tranquila improvisada Ela amava Estava previamente a amar o homem que um dia ela ia amar Quem sabe lá isso às vezes acontecia e sem culpas nem danos para nenhum dos dois Na cama a pensar a pensar quase a rir como a uma bisbilhotice A pensar a pensar O quê ora lá ela sabia Assim deixouse a ficar Dum momento para outro com raiva estava de pé Mas nas fraquezas do primeiro instante parecia doida e delicada no quarto que rodava que rodava até ela conseguir às apalpadelas deitarse de novo à cama surpreendida de que talvez fosse verdade ó mulher vê lá se me vais mesmo adoecer disse desconfiada Levou a mão à testa para ver se lhe tinham vindo febres Nessa noite até dormir fantasticou fantasticou por quantos minutos até que tombou adormecidona a ressonar com o marido Acordou com o dia atrasado as batatas por descascar os miúdos que voltariam à tarde das titias ai que até me faltei ao respeito dia de lavar roupa e cerzir as peúgas ai que vagabunda que me saíste censurouse curiosa e satisfeita ir às compras não esquecer o peixe o dia atrasado a manhã pressurosa de sol Mas no sábado à noite foram à tasca da Praça Tiradentes a atenderem ao convite do negociante tão próspero ela com vestidito novo que se não era cheio denfeites era de bom pano superior desses que lhe iam a durar pela vida afora No sábado à noite embriagada na Praça Tiradentes embriagada mas com o marido ao lado a garantila e ela cerimoniosa diante do outro homem tão mais fino e rico procurando darlhe palestras pois que ela não era nenhuma parola daldeia e já vivera em Capital Mas borrachona a mais não poder E se seu marido não estava borracho é que não queria faltar ao respeito ao negociante e cheio dempenho e dhumildade deixavalhe ao outro o cantar de galo O que assentava bem para a ocasião fina mas lhe punha a ela uma dessas vontades de rir um desses desprezos olhava o marido metido no fato novo e achavalhe uma tal piada Borrachona a mais não poder mas sem perder o brio de rapariga E o vinho verde a esvaziarselhe do copo E quando estava embriagada como num ajantarado farto de domingo tudo o que pela própria natureza é separado um do outro cheiro dazeite dum lado homem doutro terrina dum lado criado de mesa doutro uniase esquisitamente pela própria natureza e tudo não passava duma semvergonhice só duma só marotagem E se lhe estavam brilhantes e duros os olhos se seus gestos eram etapas difíceis até conseguir enfim atingir o paliteiro em verdade por dentro estavase até lá muito bem erase aquela nuvem plena a se transladar sem esforço Os lábios engrossados e os dentes brancos e o vinho a inchála E aquela vaidade de estar embriagada a facilitarlhe um tal desdenho por tudo a tornála madura e redonda como uma grande vaca Naturalmente que ela palestrava Pois que lhe não faltavam os assuntos nem as capacidades Mas as palavras que uma pessoa pronunciava quando estava embriagada era como se estivesse prenhe palavras apenas na boca que pouco tinham a ver com o centro secreto que era como uma gravidez Ai que esquisita estava No sábado à noite a alma diária perdida e que bom perdêla e como lembrança dos outros dias apenas as mãos pequenas tão maltratadas e ela agora com os cotovelos sobre a toalha de xadrez vermelha e branca da mesa como sobre uma mesa de jogo profundamente lançada numa vida baixa e revolucionante E esta gargalhada essa gargalhada que lhe estava a sair misteriosamente duma garganta cheia e branca em resposta à finura do negociante gargalhada vinda da profundeza daquele sono e da profundeza daquela segurança de quem tem um corpo Sua carne alva estava doce como a de uma lagosta as pernas duma lagosta viva a se mexer devagar no ar E aquela vontade de se sentir mal para aprofundar a doçura em bem ruim E aquela maldadezita de quem tem um corpo Palestrava e ouvia com curiosidade o que ela mesma estava a responder ao negociante abastado que em tão boa hora os convidara e pagavalhes o pasto Ouvia intrigada e deslumbrada o que ela mesma estava a responder o que dissesse nesse estado valeria para o futuro em augúrio já agora ela não era lagosta era um duro signo escorpião Pois que nascera em novembro Um holofote enquanto se dorme que percorre a madrugada tal era a sua embriaguez errando lenta pelas alturas Ao mesmo tempo que sensibilidade mas que sensibilidade quando olhava o quadro tão bem pintado do restaurante ficava logo com sensibilidade artística Ninguém lhe tiraria cá das ideias que nascera mesmo para outras cousas Ela sempre fora pelas obras darte Mas que sensibilidade agora não apenas por causa do quadro de uvas e peras e peixe morto brilhando nas escamas Sua sensibilidade incomodava sem ser dolorosa como uma unha quebrada E se quisesse podia permitirse o luxo de se tornar ainda mais sensível ainda podia ir mais adiante porque era protegida por uma situação protegida como toda a gente que atingiu uma posição na vida Como uma pessoa a quem lhe impedem de ter a sua desgraça Ai que infeliz que sou minha mãe Se quisesse podia deitar ainda mais vinho no copo e protegida pela posição que alcançara na vida emborracharse ainda mais contanto que não perdesse o brio E assim mais emborrachada ainda percorria os olhos pelo restaurante e que desprezo pelas pessoas secas do restaurante nenhum homem que fosse homem a valer que fosse triste mesmo Que desprezo pelas pessoas secas do restaurante enquanto ela estava grossa e pesada generosa a mais não poder E tudo no restaurante tão distante um do outro como se jamais um pudesse falar com o outro Cada um por si e lá Deus por toda a gente Seus olhos de novo fitaram aquela rapariga que já dentrada lhe fizera subir a mostarda ao nariz Logo dentrada perceberaa sentada a uma mesa com seu homem toda cheia dos chapéus e dornatos loira como um escudo falso toda santarrona e fina que rico chapéu que tinha vai ver que nem casada era e a ostentar aquele ar de santa E com seu rico chapéu bem posto Pois que bem lhe aproveitasse a beatice e que se não lhe entornasse a fidalguia na sopa As mais santazitas eram as que mais cheias estavam de patifaria E o criado de mesa o grande parvo a servila cheio das atenções o finório e o homem amarelo que a acompanhava a fazer vistas grossas E a santarrona toda vaidosa de seu chapéu toda modesta de sua cinturita fina vai ver que não era capaz de parirlhe ao seu homem um filho Ai que não tinha nada a ver com isso a bem dizer mas já dentrada cresceralhe a vontade dir e dencherlhe à cara de santa loira da rapariga uns bons sopapos a fidalguita de chapéu Que nem roliça era era chata de peito E vai ver que com todos os seus chapéus não passava duma vendeira dhortaliça a se fazer passar por grande dama Oh como estava humilhada por ter vindo à tasca sem chapéu a cabeça agora parecialhe nua E a outra com seus ares de senhora a fingir de delicada Bem sei o que te falta fidalguita e ao teu homem amarelo E se pensas que tinvejo e ao teu peito chato fica a saber que me ralo que bem me ralo de teus chapéus A patifas sem brio como tu a se fazerem de rogadas eu lhas encho de sopapos Na sua sagrada cólera estendeu com dificuldade a mão e tomou um palito Mas finalmente a dificuldade de chegar em casa desapareceu remexiase agora dentro da realidade familiar de seu quarto agora sentada no bordo de sua cama com a chinela a se balançar no pé E como entrefechara os olhos toldados tudo ficou de carne o pé da cama de carne a janela de carne na cadeira o fato de carne que o marido jogara e tudo quase doía E ela cada vez maior vacilante túmida gigantesca Se conseguisse chegar mais perto de si mesma ver seia inda maior Cada braço seu poderia ser percorrido por uma pessoa na ignorância de que se tratava de um braço e em cada olho podiaselhe mergulhar dentro e nadar sem saber que era um olho E ao redor tudo a doer um pouco As coisas feitas de carne com nevralgia Fora o friozito que a tomara ao sair da casa de pasto Estava sentada à cama conformada cética E isso ainda não era nada só Deus sabia ela sabia muito bem que isso inda não era nada Que nesse momento lhe estavam a acontecer cousas que só mais tarde iriam a doer mesmo e a valer quando ela voltasse ao seu tamanho comum o corpo anestesiado estaria a acordar latejando e ela iria a pagar pelas comilanças e vinhos Então já que isso terminaria mesmo por acontecer tanto se me faz abrir agora mesmo os olhos o que fez e tudo ficou menor e mais nítido embora sem nenhuma dor Tudo no fundo estava igual só que menor e familiar Estava sentada bem tesa na sua cama o estômago tão cheio absorta resignada com a delicadeza de quem espera sentado que outro acorde Empanturraste e eu que pague o pato dissese melancólica a olhar os deditos brancos do pé Olhava ao redor paciente obediente Ai palavras palavras objetos do quarto alinhados em ordem de palavras a formarem aquelas frases turvas e maçantes que quem souber ler lerá Aborrecimento aborrecimento ai que chatura Que maçada Enfim ai de mim seja lá o que Deus bem quiser Que é que se havia de fazer Ai é uma tal cousa que se me dá que nem bem sei dizer Enfim seja lá bem o que Deus quiser E dizer que se divertira tanto esta noite e dizer que fora tão bom e a gosto seu o restaurante ela sentada fina à mesa Mesa gritoulhe o mundo Mas ela nem sequer a responderlhe a alçar os ombros com um muxoxo amuado importunada que não me venhas a maçar com carinhos desiludida resignada empanturrada casada contente a vaga náusea Foi nesse instante que ficou surda faltoulhe um sentido Enviou à orelha uma tapona de mão espalmada o que só fez entornar mais o caldo pois encheuselhe o ouvido de um rumor de elevador a vida de repente sonora e aumentada nos menores movimentos Das duas uma estava surda ou a ouvir demais reagiu a essa nova solicitação com uma sensação maliciosa e incômoda com um suspiro de saciedade conformada Pros raios que os partam disse suave aniquilada E quando no restaurante lembrouse de repente Quando estivera no restaurante o protetor do marido encostara ao seu pé um pé embaixo da mesa e por cima da mesa a cara dele Porque calhara ou de propósito O mafarrico Uma pessoa a falar verdade que era lá bem interessante Alçou os ombros E quando no seu decote redondo em plena Praça Tiradentes pensou ela a abanar a cabeça incrédula a mosca se lhe pousara na pele nua Ai que malícia Havia certas cousas boas porque eram quase nauseantes o ruído como de elevador no sangue enquanto o homem roncava ao lado os filhos gorditos empilhados no outro quarto a dormirem os desgraçadinhos Ai que cousa que se me dá pensou desesperada Teria comido demais ai que cousa que se me dá minha santa mãe Era a tristeza Os dedos do pé a brincarem com a chinela O chão lá não muito limpo Que relaxada e preguiçosa que me saíste Amanhã não porque não estaria lá muito bem das pernas Mas depois de amanhã aquela sua casa havia de ver darlheia um esfregaço com água e sabão que se lhe arrancariam as sujidades todas a casa havia de ver ameaçou ela colérica Ai que se sentia tão bem tão áspera como se ainda estivesse a ter leite nas mamas tão forte Quando o amigo do marido a viu tão bonita e gorda ficou logo com respeito por ela E quando ela ficava a se envergonhar não sabia aonde havia de fitar os olhos Ai que tristeza Que é que se há de fazer Sentada no bordo da cama a pestanejar resignada Que bem que se via a lua nessas noites de verão Inclinouse um pouquito desinteressada resignada A lua Que bem que se via A lua alta e amarela a deslizar pelo céu a coitadita A deslizar a deslizar Alta alta A lua Então a grosseria explodiulhe em súbito amor cadela disse a rir AMOR Um pouco cansada com as compras deformando o novo saco de tricô Ana subiu no bonde Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar Recostouse então no banco procurando conforto num suspiro de meia satisfação Os filhos de Ana eram bons uma coisa verdadeira e sumarenta Cresciam tomavam banho exigiam para si malcriados instantes cada vez mais completos A cozinha era enfim espaçosa o fogão enguiçado dava estouros O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembravalhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa olhando o calmo horizonte Como um lavrador Ela plantara as sementes que tinha na mão não outras mas essas apenas E cresciam árvores Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz crescia a água enchendo o tanque cresciam seus filhos crescia a mesa com comidas o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome o canto importuno das empregadas do edifício Ana dava a tudo tranquilamente sua mão pequena e forte sua corrente de vida Certa hora da tarde era mais perigosa Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela Quando nada mais precisava de sua força inquietavase No entanto sentiase mais sólida do que nunca seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos a grande tesoura dando estalidos na fazenda Todo o seu desejo vagamente artístico encaminharase há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos com o tempo seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa a vida podia ser feita pela mão do homem No fundo Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas E isso um lar perplexamente lhe dera Por caminhos tortos viera a cair num destino de mulher com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado O homem com quem casara era um homem verdadeiro os filhos que tivera eram filhos verdadeiros Sua juventude anterior parecialhe estranha como uma doença de vida Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia abolindoa encontrara uma legião de pessoas antes invisíveis que viviam como quem trabalha com persistência continuidade alegria O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável Criara em troca algo enfim compreensível uma vida de adulto Assim ela o quisera e escolhera Sua precaução reduziase a tomar cuidado na hora perigosa da tarde quando a casa estava vazia sem precisar mais dela o sol alto cada membro da família distribuído nas suas funções Olhando os móveis limpos seu coração se apertava um pouco em espanto Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar cuidando do lar e da família à revelia deles Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiamna Assim chegaria a noite com sua tranquila vibração De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos como se voltassem arrependidos Quanto a ela mesma fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo E alimentava anonimamente a vida Estava bom assim Assim ela o quisera e escolhera O bonde vacilava nos trilhos entrava em ruas largas Logo um vento mais úmido soprava anunciando mais que o fim da tarde o fim da hora instável Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher O bonde se arrastava em seguida estacava Até Humaitá tinha tempo de descansar Foi então que olhou para o homem parado no ponto A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado De pé suas mãos se mantinham avançadas Era um cego O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança Alguma coisa intranquila estava sucedendo Então ela viu o cego mascava chicles Um homem cego mascava chicles Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar o coração batialhe violento espaçado Inclinada olhava o cego profundamente como se olha o que não nos vê Ele mastigava goma na escuridão Sem sofrimento com os olhos abertos O movimento da mastigação faziao parecer sorrir e de repente deixar de sorrir sorrir e deixar de sorrir como se ele a tivesse insultado Ana olhavao E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio Mas continuava a olhálo cada vez mais inclinada o bonde deu uma arrancada súbita jogandoa desprevenida para trás o pesado saco de tricô despencouse do colo ruiu no chão Ana deu um grito o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava o bonde estacou os passageiros olharam assustados Incapaz de se mover para apanhar suas compras Ana se aprumava pálida Uma expressão de rosto há muito não usada ressurgiralhe com dificuldade ainda incerta incompreensível O moleque dos jornais ria entregandolhe o volume Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras tentando inutilmente pegar o que acontecia O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor o bonde deu a nova arrancada de partida Poucos instantes depois já não a olhavam mais O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre Mas o mal estava feito A rede de tricô era áspera entre os dedos não íntima como quando a tricotara A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido não sabia o que fazer com as compras no colo E como uma estranha música o mundo recomeçava ao redor O mal estava feito Por quê teria esquecido de que havia cegos A piedade a sufocava Ana respirava pesadamente Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso tinham um ar mais hostil perecível O mundo se tornara de novo um malestar Vários anos ruíam as gemas amarelas escorriam Expulsa de seus próprios dias parecialhe que as pessoas na rua eram periclitantes que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão e por um momento a falta de sentido deixavaas tão livres que elas não sabiam para onde ir Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente como se pudesse cair do bonde como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram O que chamava de crise viera afinal E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas sofrendo espantada O calor se tornara mais abafado tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução as grades dos esgotos estavam secas o ar empoeirado Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavamna com o vigor que possuíam Junto dela havia uma senhora de azul com um rosto Desviou o olhar depressa Na calçada uma mulher deu um empurrão no filho Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo E o cego Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa Ela apaziguara tão bem a vida cuidara tanto para que esta não explodisse Mantinha tudo em serena compreensão separava uma pessoa das outras as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podiase escolher pelo jornal o filme da noite tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro E um cego mascando goma despedaçava tudo isso E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce até a boca Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida Na fraqueza em que estava tudo a atingia com um susto desceu do bonde com pernas débeis olhou em torno de si segurando a rede suja de ovo Por um momento não conseguia orientarse Parecia ter saltado no meio da noite Era uma rua comprida com muros altos amarelos Seu coração batia de medo ela procurava inutilmente reconhecer os arredores enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeavalhe o rosto Ficou parada olhando o muro Enfim pôde localizarse Andando um pouco mais ao longo de uma sebe atravessou os portões do Jardim Botânico Andava pesadamente pela alameda central entre os coqueiros Não havia ninguém no Jardim Depositou os embrulhos na terra sentouse no banco de um atalho e ali ficou muito tempo A vastidão parecia acalmála o silêncio regulava sua respiração Ela adormecia dentro de si De longe via a aleia onde a tarde era clara e redonda Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho Ao seu redor havia ruídos serenos cheiro de árvores pequenas surpresas entre os cipós Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada Como por um zunido de abelhas e aves Tudo era estranho suave demais grande demais Um movimento leve e íntimo a sobressaltou voltouse rápida Nada parecia se ter movido Mas na aleia central estava imóvel um poderoso gato Seus pelos eram macios Em novo andar silencioso desapareceu Inquieta olhou em torno Os ramos se balançavam as sombras vacilavam no chão Um pardal ciscava na terra E de repente com malestar pareceulhe ter caído numa emboscada Faziase no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber Nas árvores as frutas eram pretas doces como mel Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções como pequenos cérebros apodrecidos O banco estava manchado de sucos roxos Com suavidade intensa rumorejavam as águas No tronco da árvore pregavamse as luxuosas patas de uma aranha A crueza do mundo era tranquila O assassinato era profundo E a morte não era o que pensávamos Ao mesmo tempo que imaginário era um mundo de se comer com os dentes um mundo de volumosas dálias e tulipas Os troncos eram percorridos por parasitas folhudos o abraço era macio colado Como a repulsa que precedesse uma entrega era fascinante a mulher tinha nojo e era fascinante As árvores estavam carregadas o mundo era tão rico que apodrecia Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome a náusea subiulhe à garganta como se ela estivesse grávida e abandonada A moral do Jardim era outra Agora que o cego a guiara até ele estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante sombrio onde vitóriasrégias boiavam monstruosas As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas mas cor de mau ouro e escarlates A decomposição era profunda perfumada Mas todas as pesadas coisas ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo A brisa se insinuava entre as flores Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno Era quase noite agora e tudo parecia cheio pesado um esquilo voou na sombra Sob os pés a terra estava fofa Ana aspiravaa com delícia Era fascinante e ela sentia nojo Mas quando se lembrou das crianças diante das quais se tornara culpada ergueuse com uma exclamação de dor Agarrou o embrulho avançou pelo atalho obscuro atingiu a alameda Quase corria e via o Jardim em torno de si com sua impersonalidade soberba Sacudiu os portões fechados sacudiaos segurando a madeira áspera O vigia apareceu espantado de não a ter visto Enquanto não chegou à porta do edifício parecia à beira de um desastre Correu com a rede até o elevador sua alma batialhe no peito o que sucedia A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia mas o mundo lhe parecia seu sujo perecível seu Abriu a porta de casa A sala era grande quadrada as maçanetas brilhavam limpas os vidros da janela brilhavam a lâmpada brilhava que nova terra era essa E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceulhe um modo moralmente louco de viver O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu que corria e a abraçava Apertouo com força com espanto Protegiase trêmula Porque a vida era periclitante Ela amava o mundo amava o que fora criado amava com nojo Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava avisandoa Abraçou o filho quase a ponto de machucálo Como se soubesse de um mal o cego ou o belo Jardim Botânico agarravase a ele a quem queria acima de tudo Fora atingida pelo demônio da fé A vida é horrível disselhe baixo faminta O que faria se seguisse o chamado do cego Iria sozinha Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela Ela precisava deles Tenho medo disse Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços ouviu o seu choro assustado Mamãe chamou o menino Afastouo olhou aquele rosto seu coração crispouse Não deixe mamãe te esquecer disselhe A criança mal sentiu o abraço se afrouxar escapou e correu até a porta do quarto de onde olhou a mais segura Era o pior olhar que jamais recebera O sangue subiulhe ao rosto esquentandoo Deixouse cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede De que tinha vergonha Não havia como fugir Os dias que ela forjara haviamse rompido na crosta e a água escapava Estava diante da ostra E não havia como não olhála De que tinha vergonha É que já não era mais piedade não era só piedade seu coração se enchera com a pior vontade de viver Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lado dos que lhe haviam ferido os olhos O Jardim Botânico tranquilo e alto lhe revelava Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo e que nome se deveria dar à sua misericórdia violenta Seria obrigada a beijar o leproso pois nunca seria apenas sua irmã Um cego me levou ao pior de mim mesma pensou espantada Sentiase banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes Ah era mais fácil ser um santo que uma pessoa Por Deus pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas Mas era uma piedade de leão Humilhada sabia que o cego preferiria um amor mais pobre E estremecendo também sabia por quê A vida do Jardim Botânico chamavaa como um lobisomem é chamado pelo luar Oh mas ela amava o cego pensou com os olhos molhados No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja Estou com medo disse sozinha na sala Levantouse e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar Mas a vida arrepiavaa como um frio Ouvia o sino da escola longe e constante O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão onde descobriu a pequena aranha Carregando a jarra para mudar a água havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha Perto da lata de lixo esmagou com o pé a formiga O pequeno assassinato da formiga O mínimo corpo tremia As gotas dágua caíam na água parada do tanque Os besouros de verão O horror dos besouros inexpressivos Ao redor havia uma vida silenciosa lenta insistente Horror horror Andava de um lado para outro na cozinha cortando os bifes mexendo o creme Em torno da cabeça em ronda em torno da luz os mosquitos de uma noite cálida Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim Entre os dois seios escorria o suor A fé a quebrantava o calor do forno ardia nos seus olhos Depois o marido veio vieram os irmãos e suas mulheres vieram os filhos dos irmãos Jantaram com as janelas todas abertas no nono andar Um avião estremecia ameaçando no calor do céu Apesar de ter usado poucos ovos o jantar estava bom Também suas crianças ficaram acordadas brincando no tapete com as outras Era verão seria inútil obrigálas a dormir Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros Depois do jantar enfim a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas Eles rodeavam a mesa a família Cansados do dia felizes em não discordar tão dispostos a não ver defeitos Riamse de tudo com o coração bom e humano As crianças cresciam admiravelmente em torno deles E como a uma borboleta Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu Depois quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas ela era uma mulher bruta que olhava pela janela A cidade estava adormecida e quente O que o cego desencadeara caberia nos seus dias Quantos anos levaria até envelhecer de novo Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças Mas com uma maldade de amante parecia aceitar que da flor saísse o mosquito que as vitóriasrégias boiassem no escuro do lago O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico Se fora um estouro do fogão o fogo já teria pegado em toda a casa pensou correndo para a cozinha e deparando com seu marido diante do café derramado O que foi gritou vibrando toda Ele se assustou com o medo da mulher E de repente riu entendendo Não foi nada disse sou um desajeitado Ele parecia cansado com olheiras Mas diante do estranho rosto de Ana espioua com maior atenção Depois atraiua a si em rápido afago Não quero que lhe aconteça nada nunca disse ela Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro respondeu ele sorrindo Ela continuou sem força nos seus braços Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara e na casa toda havia um tom humorístico triste É hora de dormir disse ele é tarde Num gesto que não era seu mas que pareceu natural segurou a mão da mulher levandoa consigo sem olhar para trás afastandoa do perigo de viver Acabarase a vertigem de bondade E se atravessara o amor e o seu inferno penteavase agora diante do espelho por um instante sem nenhum mundo no coração Antes de se deitar como se apagasse uma vela soprou a pequena flama do dia UMA GALINHA Era uma galinha de domingo Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã Parecia calma Desde sábado encolherase num canto da cozinha Não olhava para ninguém ninguém olhava para ela Mesmo quando a escolheram apalpando sua intimidade com indiferença não souberam dizer se era gorda ou magra Nunca se adivinharia nela um anseio Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo inchar o peito e em dois ou três lances alcançar a murada do terraço Um instante ainda vacilou o tempo da cozinheira dar um grito e em breve estava no terraço do vizinho de onde em outro voo desajeitado alcançou um telhado Lá ficou em adorno deslocado hesitando ora num ora noutro pé A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé O dono da casa lembrandose da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta hesitante e trêmula escolhia com urgência outro rumo A perseguição tornouse mais intensa De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem nenhum auxílio de sua raça O rapaz porém era um caçador adormecido E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado Sozinha no mundo sem pai nem mãe ela corria arfava muda concentrada Às vezes na fuga pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento E então parecia tão livre Estúpida tímida e livre Não vitoriosa como seria um galo em fuga Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser A galinha é um ser É verdade que não se poderia contar com ela para nada Nem ela própria contava consigo como o galo crê na sua crista Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma Afinal numa das vezes em que parou para gozar sua fuga o rapaz alcançoua Entre gritos e penas ela foi presa Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência Ainda tonta sacudiuse um pouco em cacarejos roucos e indecisos Foi então que aconteceu De pura afobação a galinha pôs um ovo Surpreendida exausta Talvez fosse prematuro Mas logo depois nascida que fora para a maternidade parecia uma velha mãe habituada Sentouse sobre o ovo e assim ficou respirando abotoando e desabotoando os olhos Seu coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida Mal porém conseguiu desvencilharse do acontecimento despregouse do chão e saiu aos gritos Mamãe mamãe não mate mais a galinha ela pôs um ovo ela quer o nosso bem Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente Esquentando seu filho esta não era nem suave nem arisca nem alegre nem triste não era nada era uma galinha O que não sugeria nenhum sentimento especial O pai a mãe e a filha olhavam já há algum tempo sem propriamente um pensamento qualquer Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha O pai afinal decidiuse com certa brusquidão Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida Eu também jurou a menina com ardor A mãe cansada deu de ombros Inconsciente da vida que lhe fora entregue a galinha passou a morar com a família A menina de volta do colégio jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha O pai de vez em quando ainda se lembrava E dizer que a obriguei a correr naquele estado A galinha tornarase a rainha da casa Todos menos ela o sabiam Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos usando suas duas capacidades a de apatia e a do sobressalto Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam têla esquecido enchiase de uma pequena coragem resquícios da grande fuga e circulava pelo ladrilho o corpo avançando atrás da cabeça pausado como num campo embora a pequena cabeça a traísse mexendose rápida e vibrátil com o velho susto de sua espécie já mecanizado Uma vez ou outra sempre mais raramente lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado prestes a anunciar Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e se fosse dado às fêmeas cantar ela não cantaria mas ficaria muito mais contente Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse Na fuga no descanso quando deu à luz ou bicando milho era uma cabeça de galinha a mesma que fora desenhada no começo dos séculos Até que um dia mataramna comeramna e passaramse anos A IMITAÇÃO DA ROSA Antes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e ela própria já no vestido marrom para que pudesse atender o marido enquanto ele se vestia e então sairiam com calma de braço dado como antigamente Há quanto tempo não faziam isso Mas agora que ela estava de novo bem tomariam o ônibus ela olhando como uma esposa pela janela o braço no dele e depois jantariam com Carlota e João recostados na cadeira com intimidade Há quanto tempo não via Armando enfim se recostar com intimidade e conversar com um homem A paz de um homem era esquecido de sua mulher conversar com outro homem sobre o que saía nos jornais Enquanto isso ela falaria com Carlota sobre coisas de mulheres submissa à bondade autoritária e prática de Carlota recebendo enfim de novo a desatenção e o vago desprezo da amiga a sua rudeza natural e não mais aquele carinho perplexo e cheio de curiosidade e vendo enfim Armando esquecido da própria mulher E ela mesma enfim voltando à insignificância com reconhecimento Como um gato que passou a noite fora e como se nada tivesse acontecido encontrasse sem uma palavra um pires de leite esperando As pessoas felizmente ajudavam a fazêla sentir que agora estava bem Sem a fitarem ajudavamna ativamente a esquecer fingindo elas próprias o esquecimento como se tivessem lido a mesma bula do mesmo vidro de remédio Ou tinham esquecido realmente quem sabe Há quanto tempo não via Armando enfim se recostar com abandono esquecido dela E ela mesma Interrompendo a arrumação da penteadeira Laura olhouse ao espelho e ela mesma há quanto tempo Seu rosto tinha uma graça doméstica os cabelos eram presos com grampos atrás das orelhas grandes e pálidas Os olhos marrons os cabelos marrons a pele morena e suave tudo dava a seu rosto já não muito moço um ar modesto de mulher Por acaso alguém veria naquela mínima ponta de surpresa que havia no fundo de seus olhos alguém veria nesse mínimo ponto ofendido a falta dos filhos que ela nunca tivera Com seu gosto minucioso pelo método o mesmo que a fazia quando aluna copiar com letra perfeita os pontos da aula sem compreendêlos com seu gosto pelo método agora reassumido planejava arrumar a casa antes que a empregada saísse de folga para que uma vez Maria na rua ela não precisasse fazer mais nada senão 1º calmamente vestirse 2º esperar Armando já pronta 3º o terceiro o que era Pois é Era isso mesmo o que faria E poria o vestido marrom com gola de renda creme Com seu banho tomado Já no tempo do Sacré Coeur ela fora arrumada e limpa com um gosto pela higiene pessoal e um certo horror à confusão O que não fizera nunca com que Carlota já naquele tempo um pouco original a admirasse A reação das duas sempre fora diferente Carlota ambiciosa e rindo com força ela Laura um pouco lenta e por assim dizer cuidando em se manter sempre lenta Carlota não vendo perigo em nada E ela cuidadosa Quando lhe haviam dado para ler a Imitação de Cristo com um ardor de burra ela lera sem entender mas que Deus a perdoasse ela sentira que quem imitasse Cristo estaria perdido perdido na luz mas perigosamente perdido Cristo era a pior tentação E Carlota nem ao menos quisera ler mentira para a freira dizendo que tinha lido Pois é Poria o vestido marrom com gola de renda verdadeira Mas quando viu as horas lembrouse num sobressalto que a fez levar a mão ao peito que se esquecera de tomar o copo de leite Encaminhouse para a cozinha e como se tivesse culposamente traído com seu descuido Armando e os amigos devotados ainda junto da geladeira bebeu os primeiros goles com um devagar ansioso concentrandose em cada gole com fé como se estivesse indenizando a todos e se penitenciando Se o médico dissera Tome leite entre as refeições nunca fique com o estômago vazio pois isso dá ansiedade então mesmo sem ameaça de ansiedade ela tomava sem discutir gole por gole dia após dia não falhara nunca obedecendo de olhos fechados com um ligeiro ardor para que não pudesse enxergar em si a menor incredulidade O embaraçante é que o médico parecia contradizerse quando ao mesmo tempo que recomendava uma ordem precisa que ela queria seguir com o zelo de uma convertida dissera também Abandonese tente tudo suavemente não se esforce por conseguir esqueça completamente o que aconteceu e tudo voltará com naturalidade E lhe dera uma palmada nas costas o que a lisonjeara e a fizera corar de prazer Mas na sua humilde opinião uma ordem parecia anular a outra como se lhe pedissem para comer farinha e assobiar ao mesmo tempo Para fundilas numa só ela passara a usar um engenho aquele copo de leite que terminara por ganhar um secreto poder que tinha dentro de cada gole quase o gosto de uma palavra e renovava a forte palmada nas costas aquele copo de leite ela o levava à sala onde se sentava com muita naturalidade fingindo falta de interesse não se esforçando e assim cumprindo espertamente a segunda ordem Não tem importância que eu engorde pensou o principal nunca fora a beleza Sentouse no sofá como se fosse uma visita na sua própria casa que tão recentemente recuperada arrumada e fria lembrava a tranquilidade de uma casa alheia O que era tão satisfatório ao contrário de Carlota que fizera de seu lar algo parecido com ela própria Laura tinha tal prazer em fazer de sua casa uma coisa impessoal de certo modo perfeita por ser impessoal Oh como era bom estar de volta realmente de volta sorriu ela satisfeita Segurando o copo quase vazio fechou os olhos com um suspiro de cansaço bom Passara a ferro as camisas de Armando fizera listas metódicas para o dia seguinte calculara minuciosamente o que gastara de manhã na feira não parara na verdade um instante sequer Oh como era bom estar de novo cansada Se uma pessoa perfeita do planeta Marte descesse e soubesse que as pessoas da Terra se cansavam e envelheciam teria pena e espanto Sem entender jamais o que havia de bom em ser gente em sentirse cansada em diariamente falir só os iniciados compreenderiam essa nuance de vício e esse refinamento de vida E ela retornara enfim da perfeição do planeta Marte Ela que nunca ambicionara senão ser a mulher de um homem reencontrava grata sua parte diariamente falível De olhos fechados suspirou reconhecida Há quanto tempo não se cansava Mas agora sentiase todos os dias quase exausta e passara por exemplo as camisas de Armando sempre gostara de passar a ferro e sem modéstia era uma passadeira de mão cheia E depois ficava exausta como uma recompensa Não mais aquela falta alerta de fadiga Não mais aquele ponto vazio e acordado e horrivelmente maravilhoso dentro de si Não mais aquela terrível independência Não mais a facilidade monstruosa e simples de não dormir nem de dia nem de noite que na sua discrição a fizera subitamente superhumana em relação a um marido cansado e perplexo Ele com aquele hálito que tinha quando estava mudo de preocupação o que dava a ela uma piedade pungente sim mesmo dentro de sua perfeição acordada a piedade e o amor ela superhumana e tranquila no seu isolamento brilhante e ele quando tímido vinha visitála levando maçãs e uvas que a enfermeira com um levantar de ombros comia ele fazendo visita de cerimônia como um namorado com o hálito infeliz e um sorriso fixo esforçandose no seu heroísmo por compreender ele que a recebera de um pai e de um padre e que não sabia o que fazer com essa moça da Tijuca que inesperadamente como um barco tranquilo se empluma nas águas se tornara superhumana Agora nada mais disso Nunca mais Oh fora apenas uma fraqueza o gênio era a pior tentação Mas depois ela voltara tão completamente que até já começava de novo a precisar de tomar cuidado para não amolar os outros com seu velho gosto pelo detalhe Ela bem se lembrava das colegas do Sacré Coeur lhe dizendo Você já contou isso mil vezes ela se lembrava com um sorriso constrangido Voltara tão completamente agora todos os dias ela se cansava todos os dias seu rosto decaía ao entardecer e a noite então tinha a sua antiga finalidade não era apenas a perfeita noite estrelada E tudo se completava harmonioso E como para todo o mundo cada dia a fatigava como todo o mundo humana e perecível Não mais aquela perfeição não mais aquela juventude Não mais aquela coisa que um dia se alastrara clara como um câncer a sua alma Abriu os olhos pesados de sono sentindo o bom copo sólido nas mãos mas fechouos de novo com um sorriso confortável de cansaço banhandose como um novorico em todas as suas partículas nessa água familiar e ligeiramente enjoativa Sim ligeiramente enjoativa que importância tinha pois se também ela era um pouco enjoativa bem sabia Mas o marido não achava e então que importância tinha pois se graças a Deus ela não vivia num ambiente que exigisse que ela fosse mais arguta e interessante e até do ginásio que tão embaraçosamente exigira que ela fosse alerta ela se livrara Que importância tinha No cansaço passara as camisas de Armando sem contar que fora de manhã à feira e demorara tanto lá com aquele gosto que tinha em fazer as coisas renderem no cansaço havia um lugar bom para ela o lugar discreto e apagado de onde com tanto constrangimento para si e para os outros saíra uma vez Mas como ia dizendo graças a Deus voltara E se procurasse com mais crença e amor encontraria dentro do cansaço aquele lugar ainda melhor que seria o sono Suspirou com prazer por um momento de travessura maliciosa tentada a ir de encontro ao hálito morno que era sua respiração já sonolenta por um instante tentada a cochilar Um instante só só um instantezinho pediuse lisonjeada por ter tanto sono pedia cheia de manha como se pedisse a um homem o que sempre agradara muito Armando Mas não tinha verdadeiramente tempo de dormir agora nem sequer de tirar um cochilo pensou vaidosa e com falsa modéstia ela era uma pessoa tão ocupada sempre invejara as pessoas que diziam não tive tempo e agora ela era de novo uma pessoa tão ocupada iam jantar com Carlota e tudo tinha que estar ordeiramente pronto era o primeiro jantar fora desde que voltara e ela não queria chegar atrasada tinha que estar pronta quando bem eu já disse isso mil vezes pensou encabulada Bastaria dizer uma só vez não queria chegar atrasada pois isso era motivo suficiente se nunca suportara sem enorme vexame ser um transtorno para alguém agora então mais que nunca não deveria Não não havia a menor dúvida não tinha tempo de dormir O que devia fazer mexendose com familiaridade naquela íntima riqueza da rotina e magoavaa que Carlota desprezasse seu gosto pela rotina o que devia fazer era 1º esperar que a empregada estivesse pronta 2º darlhe o dinheiro para ela já trazer a carne de manhã chã de dentro como explicar que a dificuldade de achar carne boa era até um assunto bom mas se Carlota soubesse a desprezaria 3º começar minuciosamente a se lavar e a se vestir entregandose sem reserva ao prazer de fazer o tempo render O vestido marrom combinava com seus olhos e a golinha de renda creme davalhe alguma coisa de infantil como um menino antigo E de volta à paz noturna da Tijuca não mais aquela luz cega das enfermeiras penteadas e alegres saindo para as folgas depois de têla lançado como a uma galinha indefesa no abismo da insulina de volta à paz noturna da Tijuca de volta à sua verdadeira vida ela iria de braço dado com Armando andando devagar para o ponto do ônibus com aquelas coxas baixas e grossas que a cinta empacotava numa só fazendo dela uma senhora distinta mas quando sem jeito ela dizia a Armando que isso vinha de insuficiência ovariana ele que se sentia lisonjeado com as coxas de sua mulher respondia com muita audácia De que me adiantava casar com uma bailarina era isso o que ele respondia Ninguém diria mas Armando podia ser às vezes muito malicioso ninguém diria De vez em quando eles diziam a mesma coisa Ela explicava que era por causa de insuficiência ovariana Então ele falava assim De que é que me adiantava ser casado com uma bailarina Às vezes ele era muito semvergonha ninguém diria Carlota ficaria espantada se soubesse que eles também tinham vida íntima e coisas a não contar mas ela não contaria era uma pena não poder contar Carlota na certa pensava que ela era apenas ordeira e comum e um pouco chata e se ela era obrigada a tomar cuidado para não importunar os outros com detalhes com Armando ela às vezes relaxava e era chatinha o que não tinha importância porque ele fingia que ouvia mas não ouvia tudo o que ela lhe contava o que não a magoava ela compreendia perfeitamente bem que suas conversas cansavam um pouquinho uma pessoa mas era bom poder lhe contar que não encontrara carne mesmo que Armando balançasse a cabeça e não ouvisse a empregada e ela conversavam muito na verdade mais ela mesma que a empregada e ela também tomava cuidado para não cacetear a empregada que às vezes continha a impaciência e ficava um pouco malcriada a culpa era mesmo sua porque nem sempre ela se fazia respeitar Mas como ela ia dizendo de braço dado baixinha e ele alto e magro mas ele tinha saúde graças a Deus e ela castanha Ela castanha como obscuramente achava que uma esposa devia ser Ter cabelos pretos ou louros eram um excesso que na sua vontade de acertar ela nunca ambicionara Então em matéria de olhos verdes parecialhe que se tivesse olhos verdes seria como se não dissesse tudo a seu marido Não é que Carlota desse propriamente o que falar mas ela Laura que se tivesse oportunidade a defenderia ardentemente mas nunca tivera a oportunidade ela Laura era obrigada a contragosto a concordar que a amiga tinha um modo esquisito e engraçado de tratar o marido oh não por ser de igual para igual pois isso agora se usava mas você sabe o que quero dizer E Carlota era até um pouco original isso até ela já comentara uma vez com Armando e Armando concordara mas não dera muita importância Mas como ela ia dizendo de marrom com a golinha o devaneio enchiaa com o mesmo gosto que tinha em arrumar gavetas chegava a desarrumálas para poder arrumálas de novo Abriu os olhos e como se fosse a sala que tivesse tirado um cochilo e não ela a sala parecia renovada e repousada com suas poltronas escovadas e as cortinas que haviam encolhido na última lavagem com calças curtas demais e a pessoa olhando cômica para as próprias pernas Oh como era bom rever tudo arrumado e sem poeira tudo limpo pelas suas próprias mãos destras e tão silencioso e com um jarro de flores como uma sala de espera Sempre achara lindo uma sala de espera tão respeitoso tão impessoal Como era rica a vida comum ela que enfim voltara da extravagância Até um jarro de flores Olhouo Ah como são lindas exclamou seu coração de repente um pouco infantil Eram miúdas rosas silvestres que ela comprara de manhã na feira em parte porque o homem insistira tanto em parte por ousadia Arrumaraas no jarro de manhã mesmo enquanto tomava o sagrado copo de leite das dez horas Mas à luz desta sala as rosas estavam em toda a sua completa e tranquila beleza Nunca vi rosas tão bonitas pensou com curiosidade E como se não tivesse acabado de pensar exatamente isso vagamente consciente de que acabara de pensar exatamente isso e passando rápida por cima do embaraço em se reconhecer um pouco cacete pensou numa etapa mais nova de surpresa sinceramente nunca vi rosas tão bonitas Olhouas com atenção Mas a atenção não podia se manter muito tempo como simples atenção transformavase logo em suave prazer e ela não conseguia mais analisar as rosas era obrigada a interromperse com a mesma exclamação de curiosidade submissa como são lindas Eram algumas rosas perfeitas várias no mesmo talo Em algum momento tinham trepado com ligeira avidez umas sobre as outras mas depois o jogo feito haviam se imobilizado tranquilas Eram algumas rosas perfeitas na sua miudez não de todo desabrochadas e o tom rosa era quase branco Parecem até artificiais disse em surpresa Poderiam dar a impressão de brancas se estivessem totalmente abertas mas com as pétalas centrais enrodilhadas em botão a cor se concentrava e como num lóbulo de orelha sentiase o rubor circular dentro delas Como são lindas pensou Laura surpreendida Mas sem saber por quê estava um pouco constrangida um pouco perturbada Oh nada demais apenas acontecia que a beleza extrema incomodava Ouviu os passos da empregada no ladrilho da cozinha e pelo som oco reconheceu que ela estava de salto alto devia pois estar pronta para sair Então Laura teve uma ideia de certo modo muito original por que não pedir a Maria para passar por Carlota e deixarlhe as rosas de presente E também porque aquela beleza extrema incomodava Incomodava Era um risco Oh não por que risco apenas incomodava eram uma advertência oh não por que advertência Maria daria as rosas a Carlota D Laura mandou diria Maria Sorriu pensativa Carlota estranharia que Laura podendo trazer pessoalmente as rosas já que desejava presenteálas mandasseas antes do jantar pela empregada Sem falar que acharia engraçado receber as rosas acharia refinado Essas coisas não são necessárias entre nós Laura diria a outra com aquela franqueza um pouco bruta e Laura diria num abafado grito de arrebatamento Oh não não não é por causa do convite para jantar é que as rosas eram tão lindas que tive o impulso de dar a você Sim se na hora desse jeito e ela tivesse coragem era assim mesmo que diria Como é mesmo que diria precisava não esquecer diria Oh não etc E Carlota se surpreenderia com a delicadeza de sentimentos de Laura ninguém imaginaria que Laura tivesse também suas ideiazinhas Nesta cena imaginária e aprazível que a fazia sorrir beata ela chamava a si mesma de Laura como a uma terceira pessoa Uma terceira pessoa cheia daquela fé suave e crepitante e grata e tranquila Laura a da golinha de renda verdadeira vestida com discrição esposa de Armando enfim um Armando que não precisava mais se forçar a prestar atenção em todas as suas conversas sobre empregada e carne que não precisava mais pensar na sua mulher como um homem que é feliz como um homem que não é casado com uma bailarina Não pude deixar de lhe mandar as rosas diria Laura essa terceira pessoa tão mas tão E dar as rosas era quase tão bonito como as próprias rosas E mesmo ela ficaria livre delas E o que é mesmo que aconteceria então Ah sim como ia dizendo Carlota surpreendida com aquela Laura que não era inteligente nem boa mas que tinha também seus sentimentos secretos E Armando Armando a olharia com um pouco de bom espanto pois é essencial não esquecer que de forma alguma ele está sabendo que a empregada levou de tarde as rosas Armando encararia com benevolência os impulsos de sua pequena mulher e de noite eles dormiriam juntos E ela teria esquecido as rosas e a sua beleza Não pensou de súbito vagamente avisada Era preciso tomar cuidado com o olhar de espanto dos outros Era preciso nunca mais dar motivo para espanto ainda mais com tudo ainda tão recente E sobretudo poupar a todos o mínimo sofrimento da dúvida E que não houvesse nunca mais necessidade da atenção dos outros nunca mais essa coisa horrível de todos olharemna mudos e ela em frente a todos Nada de impulsos Mas ao mesmo tempo viu o copo vazio na mão e pensou também ele disse que eu não me esforce por conseguir que não pense em tomar atitudes apenas para provar que já estou Maria disse então ao ouvir de novo os passos da empregada E quando esta se aproximou disselhe temerária e desafiadora você poderia passar pela casa de d Carlota e deixar estas rosas para ela Você diz assim D Carlota d Laura mandou Você diz assim D Carlota Sei sei disse a empregada paciente Laura foi buscar uma velha folha de papel de seda Depois tirou com cuidado as rosas do jarro tão lindas e tranquilas com os delicados e mortais espinhos Queria fazer um ramo bem artístico E ao mesmo tempo se livraria delas E poderia se vestir e continuar seu dia Quando reuniu as rosinhas úmidas em buquê afastou a mão que as segurava olhouas a distância entortando a cabeça e entrefechando os olhos para um julgamento imparcial e severo E quando olhouas viu as rosas E então incoercível suave ela insinuou em si mesma não dê as rosas elas são lindas Um segundo depois muito suave ainda o pensamento ficou levemente mais intenso quase tentador não dê elas são suas Laura espantouse um pouco porque as coisas nunca eram dela Mas estas rosas eram Rosadas pequenas perfeitas eram Olhouas com incredulidade eram lindas e eram suas Se conseguisse pensar mais adiante pensaria suas como nada até agora tinha sido E mesmo podia ficar com elas pois já passara aquele primeiro desconforto que fizera com que vagamente ela tivesse evitado olhar demais as rosas Por que dálas então lindas e dálas Pois quando você descobre uma coisa boa então você vai e dá Pois se eram suas insinuavase ela persuasiva sem encontrar outro argumento além do mesmo que repetido lhe parecia cada vez mais convincente e simples Não iam durar muito por que então dálas enquanto estavam vivas O prazer de têlas não significava grande risco enganouse ela pois quisesse ou não quisesse em breve seria forçada a se privar delas e nunca mais então pensaria nelas pois elas teriam morrido elas não iam durar muito por que então dálas O fato de não durarem muito parecia tirarlhe a culpa de ficar com elas numa obscura lógica de mulher que peca Pois viase que iam durar pouco ia ser rápido sem perigo E mesmo argumentou numa última e vitoriosa rejeição de culpa não fora de modo algum ela quem quisera comprar o vendedor insistira muito e ela se tornava sempre tão tímida quando a constrangiam não fora ela quem quisera comprar ela não tinha culpa nenhuma Olhouas com enlevo pensativa profunda E sinceramente nunca vi na minha vida coisa mais perfeita Bem mas agora ela já falara com Maria e não teria jeito de voltar atrás Seria então tarde demais assustouse vendo as rosinhas que aguardavam impassíveis na sua própria mão Se quisesse não seria tarde demais Poderia dizer a Maria ô Maria resolvi que eu mesma levo as rosas quando for jantar E é claro não as levaria E Maria nunca precisaria saber E antes de mudar de roupa ela se sentaria no sofá por um instante só por um instante para olhálas E olhar aquela tranquila isenção das rosas Sim porque já tendo feito a coisa mais valia aproveitar não seria boba de ficar com a fama sem o proveito Era isso mesmo o que faria Mas com as rosas desembrulhadas na mão ela esperava Não as depunha no jarro não chamava Maria Ela sabia por quê Porque devia dálas Oh ela sabia por quê E também porque uma coisa bonita era para se dar ou para se receber não apenas para se ter E sobretudo nunca para se ser Sobretudo nunca se deveria ser a coisa bonita A uma coisa bonita faltava o gesto de dar Nunca se devia ficar com uma coisa bonita assim como que guardada dentro do silêncio perfeito do coração Embora se ela não desse as rosas nunca ninguém no mundo ia saber que ela pretendera dálas quem iria jamais descobrir era horrivelmente fácil e ao alcance da mão ficar com elas pois quem iria descobrir e elas seriam suas e as coisas ficariam por isso mesmo e não se fala mais nisso Então e então indagouse vagamente inquieta Então não O que devia fazer era embrulhálas e mandálas sem nenhum prazer agora embrulhálas e decepcionada mandálas e espantada ficar livre delas Também porque uma pessoa tinha que ter coerência seus pensamentos deviam ter congruência se espontaneamente resolvera cedêlas a Carlota deveria manter a resolução e dálas Pois ninguém mudava de ideia de um momento para outro Mas qualquer pessoa pode se arrepender revoltouse de súbito Pois se só no momento de pegar as rosas é que notei quanto as achava lindas pela primeira vez na verdade ao pegálas notara que eram lindas Ou um pouco antes E mesmo elas eram suas E mesmo o próprio médico lhe dera a palmada nas costas e dissera não se esforce por fingir que a senhora está bem porque a senhora está bem e depois a palmada forte nas costas Assim pois ela não era obrigada a ter coerência não tinha que provar nada a ninguém e ficaria com as rosas E mesmo e mesmo elas eram suas Estão prontas perguntou Maria Estão disse Laura surpreendida Olhouas tão mudas na sua mão Impessoais na sua extrema beleza Na sua extrema tranquilidade perfeita de rosas Aquela última instância a flor Aquele último aperfeiçoamento a luminosa tranquilidade Como uma viciada ela olhava ligeiramente ávida a perfeição tentadora das rosas com a boca um pouco seca olhavaas Até que devagar austera enrolou os talos e espinhos no papel de seda Tão absorta estivera que só ao estender o ramo pronto notou que Maria não estava mais na sala e ficou sozinha com seu heróico sacrifício Vagamente dolorosa olhouas assim distantes como estavam na ponta do braço estendido e a boca ficou ainda mais enxuta aquela inveja aquele desejo Mas elas são minhas disse com enorme timidez Quando Maria voltou e pegou o ramo por um mínimo instante de avareza Laura encolheu a mão retendo as rosas um segundo mais consigo elas são lindas e são minhas é a primeira coisa linda e minha e foi o homem que insistiu não fui eu que procurei foi o destino quem quis oh só dessa vez só essa vez e juro que nunca mais Ela poderia pelo menos tirar para si uma rosa nada mais que isso uma rosa para si E só ela saberia e depois nunca mais oh ela se prometia que nunca mais se deixaria tentar pela perfeição nunca mais E no segundo seguinte sem nenhuma transição sem nenhum obstáculo as rosas estavam na mão da empregada não eram mais suas como uma carta que já se pôs no correio não se pode mais recuperar nem riscar os dizeres não adianta gritar não foi isso o que quis dizer Ficou com as mãos vazias mas seu coração obstinado e rancoroso ainda dizia você pode pegar Maria nas escadas você bem sabe que pode e tirar as rosas de sua mão e roubálas Por que tirálas agora seria roubar Roubar o que era seu Pois era assim que uma pessoa que não tivesse nenhuma pena dos outros faria roubaria o que era seu por direito Oh tem piedade meu Deus Você pode recuperar tudo insistia com cólera E então a porta da rua bateu Então a porta da rua bateu Então devagar ela se sentou calma no sofá Sem apoiar as costas Só para descansar Não não estava zangada oh nem um pouco Mas o ponto ofendido no fundo dos olhos estava maior e pensativo Olhou o jarro Cadê minhas rosas disse então muito sossegada E as rosas faziamlhe falta Haviam deixado um lugar claro dentro dela Tirase de uma mesa limpa um objeto e pela marca mais limpa que ficou então se vê que ao redor havia poeira As rosas haviam deixado um lugar sem poeira e sem sono dentro dela No seu coração aquela rosa que ao menos poderia ter tirado para si sem prejudicar ninguém no mundo faltava Como uma falta maior Na verdade como a falta Uma ausência que entrava nela como uma claridade E também ao redor da marca das rosas a poeira ia desaparecendo O centro da fadiga se abria em círculo que se alargava Como se ela não tivesse passado nenhuma camisa de Armando E na clareira as rosas faziam falta Cadê minhas rosas queixouse sem dor alisando as preguinhas da saia Como se pinga limão no chá escuro e o chá escuro vai se clareando todo Seu cansaço ia gradativamente se clareando Sem cansaço nenhum aliás Assim como o vagalume acende Já que não estava mais cansada ia então se levantar e se vestir Estava na hora de começar Mas com os lábios secos procurou um instante imitar por dentro de si as rosas Não era sequer difícil Até bom que não estava cansada Assim iria até mais fresca para o jantar Por que não pôr na golinha de renda verdadeira o camafeu que o major trouxera da guerra na Itália Arremataria bem o decote Quando estivesse pronta ouviria o barulho da chave de Armando na porta Precisava se vestir Mas ainda era cedo Com a dificuldade de condução ele demorava Ainda era de tarde Uma tarde muito bonita Aliás já não era mais de tarde Era de noite Da rua subiam os primeiros ruídos da escuridão e as primeiras luzes Aliás a chave penetrou com familiaridade no buraco da fechadura Armando abriria a porta Apertaria o botão de luz E de súbito no enquadramento da porta se desnudaria aquele rosto expectante que ele procurava disfarçar mas não podia conter Depois sua respiração suspensa se transformaria enfim num sorriso de grande desopressão Aquele sorriso embaraçado de alívio que ele nunca suspeitara que ela percebia Aquele alívio que provavelmente com uma palmada nas costas tinham aconselhado seu pobre marido a ocultar Mas que para o coração tão cheio de culpa da mulher tinha sido cada dia a recompensa por ter enfim dado de novo àquele homem a alegria possível e a paz sagradas pela mão de um padre austero que permitia aos seres apenas a alegria humilde e não a imitação de Cristo A chave virou na fechadura o vulto escuro e precipitado entrou a luz inundou violenta a sala E na porta mesmo ele estacou com aquele ar ofegante e de súbito paralisado como se tivesse corrido léguas para não chegar tarde demais Ela ia sorrir Para que ele enfim desmanchasse a ansiosa expectativa do rosto que sempre vinha misturada com a infantil vitória de ter chegado a tempo de encontrála chatinha boa e diligente e mulher sua Ela ia sorrir para que de novo ele soubesse que nunca mais haveria o perigo dele chegar tarde demais Ia sorrir para ensinarlhe docemente a confiar nela Fora inútil recomendaremlhes que nunca falassem no assunto eles não falavam mas tinham arranjado uma linguagem de rosto onde medo e confiança se comunicavam e pergunta e resposta se telegrafavam mudas Ela ia sorrir Estava demorando um pouco porém ia sorrir Calma e suave ela disse Voltou Armando Voltou Como se nunca fosse entender ele enviesou um rosto sorridente desconfiado Seu principal trabalho no momento era procurar reter o fôlego ofegante da corrida pelas escadas já que triunfantemente não chegara atrasado já que ela estava ali a sorrirlhe Como se nunca fosse entender Voltou o quê perguntou afinal num tom inexpressivo Mas enquanto procurava não entender jamais o rosto cada vez mais suspenso do homem já entendera sem que um traço se tivesse alterado Seu trabalho principal era ganhar tempo e se concentrar em reter a respiração O que de repente já não era mais difícil Pois inesperadamente ele percebia com horror que a sala e a mulher estavam calmas e sem pressa Mais desconfiado ainda como quem fosse terminar enfim por dar uma gargalhada ao constatar o absurdo ele no entanto teimava em manter o rosto enviesado de onde a olhava em guarda quase seu inimigo E de onde começava a não poder se impedir de vêla sentada com mãos cruzadas no colo com a serenidade do vagalume que tem luz No olhar castanho e inocente o embaraço vaidoso de não ter podido resistir Voltou o quê disse ele de repente com dureza Não pude impedir disse ela e a derradeira piedade pelo homem estava na sua voz o último pedido de perdão que já vinha misturado à altivez de uma solidão já quase perfeita Não pude impedir repetiu entregandolhe com alívio a piedade que ela com esforço conseguira guardar até que ele chegasse Foi por causa das rosas disse com modéstia Como se fosse para tirar o retrato daquele instante ele manteve ainda o mesmo rosto isento como se o fotógrafo lhe pedisse apenas um rosto e não a alma Abriu a boca e involuntariamente a cara tomou por um instante a expressão de desprendimento cômico que ele usara para esconder o vexame quando pedira aumento ao chefe No instante seguinte desviou os olhos com vergonha pelo despudor de sua mulher que desabrochada e serena ali estava Mas de súbito a tensão caiu Seus ombros se abaixaram os traços do rosto cederam e uma grande pesadez relaxouo Ele a olhou envelhecido curioso Ela estava sentada com o seu vestidinho de casa Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável Com timidez e respeito ele a olhava Envelhecido cansado curioso Mas não tinha uma palavra sequer a dizer Da porta aberta via sua mulher que estava sentada no sofá sem apoiar as costas de novo alerta e tranquila como num trem Que já partira FELIZ ANIVERSÁRIO A família foi pouco a pouco chegando Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana A nora de Olaria apareceu de azulmarinho com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta O marido não veio por razões óbvias não queria ver os irmãos Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles acompanhada dos três filhos duas meninas já de peito nascendo infantilizadas em babados corderosa e anáguas engomadas e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata Tendo Zilda a filha com quem a aniversariante morava disposto cadeiras unidas ao longo das paredes como numa festa em que se vai dançar a nora de Olaria depois de cumprimentar com cara fechada aos de casa aboletouse numa das cadeiras e emudeceu a boca em bico mantendo sua posição de ultrajada Vim para não deixar de vir dissera ela a Zilda e em seguida sentarase ofendida As duas mocinhas de corderosa e o menino amarelos e de cabelo penteado não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da mãe impressionados com seu vestido azulmarinho e com os paetês Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá O marido viria depois E como Zilda a única mulher entre os seis irmãos homens e a única que estava decidido já havia anos tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante e como Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches ficaram a nora de Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao lado a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocuparse com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria a babá ociosa e uniformizada com a boca aberta E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos Zilda a dona da casa arrumara a mesa cedo encheraa de guardanapos de papel colorido e copos de papelão alusivos à data espalhara balões sungados pelo teto em alguns dos quais estava escrito Happy Birthday em outros Feliz Aniversário No centro havia disposto o enorme bolo açucarado Para adiantar o expediente enfeitara a mesa logo depois do almoço encostara as cadeiras à parede mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumar a mesa E para adiantar o expediente vestira a aniversariante logo depois do almoço Puseralhe desde então a presilha em torno do pescoço e o broche borrifaralhe um pouco de águade colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado sentaraa à mesa E desde as duas horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia tesa na sala silenciosa De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos Olhando curiosa um ou outro balão estremecer aos carros que passavam E de vez em quando aquela angústia muda quando acompanhava fascinada e impotente o voo da mosca em torno do bolo Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo mais a situação de estar sentada defronte da concunhada de Olaria que cheia das ofensas passadas não via um motivo para desfitar desafiadora a nora de Ipanema entraram enfim José e a família E mal eles se beijavam a sala começou a ficar cheia de gente que ruidosa se cumprimentava como se todos tivessem esperado embaixo o momento de em afobação de atraso subir os três lances de escada falando arrastando crianças surpreendidas enchendo a sala e inaugurando a festa Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais de modo que ninguém podia saber se ela estava alegre Estava era posta à cabeceira Tratavase de uma velha grande magra imponente e morena Parecia oca Oitenta e nove anos sim senhor disse José filho mais velho agora que Jonga tinha morrido Oitenta e nove anos sim senhora disse esfregando as mãos em admiração pública e como sinal imperceptível para todos Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo mais oficial Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família toda Sim senhor disseram alguns sorrindo timidamente Oitenta e nove anos ecoou Manoel que era sócio de José É um brotinho disse espirituoso e nervoso e todos riram menos sua esposa A velha não se manifestava Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum Outros trouxeram saboneteira uma combinação de jérsei um broche de fantasia um vasinho de cactos nada nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos nada que a própria aniversariante pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia a dona da casa guardava os presentes amarga irônica Oitenta e nove anos repetiu Manoel aflito olhando para a esposa A velha não se manifestava Então como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem com um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda continuaram a fazer a festa sozinhos comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que por apetite brincando de que todos estavam morrendo de fome O ponche foi servido Zilda suava nenhuma cunhada ajudou propriamente a gordura quente dos croquetes dava um cheiro de piquenique e de costas para a aniversariante que não podia comer frituras eles riam inquietos E Cordélia Cordélia a nora mais moça sentada sorrindo Não senhor respondeu José com falsa severidade hoje não se fala em negócios Está certo está certo recuou Manoel depressa olhando rapidamente para sua mulher que de longe estendia um ouvido atento Nada de negócios gritou José hoje é o dia da mãe Na cabeceira da mesa já suja os copos maculados só o bolo inteiro ela era a mãe A aniversariante piscou os olhos E quando a mesa estava imunda as mães enervadas com o barulho que os filhos faziam enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras então fecharam a inútil luz do corredor para acender a vela do bolo uma vela grande com um papelzinho colado onde estava escrito 89 Mas ninguém elogiou a ideia de Zilda e ela se perguntou angustiada se eles não estariam pensando que fora por economia de velas ninguém se lembrando de que ninguém havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa que ela Zilda servia como uma escrava os pés exaustos e o coração revoltado Então acenderam a vela E então José o líder cantou com muita força entusiasmando com um olhar autoritário os mais hesitantes ou surpreendidos vamos todos de uma vez e todos de repente começaram a cantar alto como soldados Despertada pelas vozes Cordélia olhou esbaforida Como não haviam combinado uns cantaram em português e outros em inglês Tentaram então corrigir e os que haviam cantado em inglês passaram a português e os que haviam cantado em português passaram a cantar bem baixo em inglês Enquanto cantavam a aniversariante à luz da vela acesa meditava como junto de uma lareira Escolheram o bisneto menor que debruçado no colo da mãe encorajadora apagou a chama com um único sopro cheio de saliva Por um instante bateram palmas à potência inesperada do menino que espantado e exultante olhava para todos encantado A dona da casa esperava com o dedo pronto no comutador do corredor e acendeu a lâmpada Viva mamãe Viva vovó Viva d Anita disse a vizinha que tinha aparecido Happy birthday gritaram os netos do Colégio Bennett Bateram ainda algumas palmas ralas A aniversariante olhava o bolo apagado grande e seco Parta o bolo vovó disse a mãe dos quatro filhos é ela quem deve partir assegurou incerta a todos com ar íntimo e intrigante E como todos aprovassem satisfeitos e curiosos ela se tornou de repente impetuosa parta o bolo vovó E de súbito a velha pegou na faca E sem hesitação como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente deu a primeira talhada com punho de assassina Que força segredou a nora de Ipanema e não se sabia se estava escandalizada ou agradavelmente surpreendida Estava um pouco horrorizada Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com mais fôlego do que eu disse Zilda amarga Dada a primeira talhada como se a primeira pá de terra tivesse sido lançada todos se aproximaram de prato na mão insinuandose em fingidas acotoveladas de animação cada um para a sua pazinha Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos num silêncio cheio de rebuliço As crianças pequenas com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível desta acompanhavam a distribuição com muda intensidade As passas rolavam do bolo entre farelos secos As crianças angustiadas viam se desperdiçarem as passas acompanhavam atentas a queda E quando foram ver não é que a aniversariante já estava devorando o seu último bocado E por assim dizer a festa estava terminada Cordélia olhava ausente para todos sorria Já lhe disse hoje não se fala em negócios respondeu José radiante Está certo está certo recolheuse Manoel conciliador sem olhar a esposa que não o desfitava Está certo tentou Manoel sorrir e uma contração passoulhe rápido pelos músculos da cara Hoje é dia da mãe disse José Na cabeceira da mesa a toalha manchada de CocaCola o bolo desabado ela era a mãe A aniversariante piscou Eles se mexiam agitados rindo a sua família E ela era a mãe de todos E se de repente não se ergueu como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos a aniversariante ficou mais dura na cadeira e mais alta Ela era a mãe de todos E como a presilha a sufocasse ela era a mãe de todos e impotente à cadeira desprezavaos E olhava os piscando Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho pensou de repente como se cuspisse Rodrigo o neto de sete anos era o único a ser a carne de seu coração Rodrigo com aquela carinha dura viril e despenteada Cadê Rodrigo Rodrigo com olhar sonolento e entumescido naquela cabecinha ardente confusa Aquele seria um homem Mas piscando ela olhava os outros a aniversariante Oh o desprezo pela vida que falhava Como como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos com braços moles e rostos ansiosos Ela a forte que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem obediente e independente ela respeitara a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos O tronco fora bom Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos sem capacidade sequer para uma boa alegria Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos fracos sem austeridade O rancor roncava no seu peito vazio Uns comunistas era o que eram uns comunistas Olhouos com sua cólera de velha Pareciam ratos se acotovelando a sua família Incoercível virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão Mamãe gritou mortificada a dona da casa Que é isso mamãe gritou ela passada de vergonha e não queria sequer olhar os outros sabia que os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha e não faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia Mamãe que é isso disse baixo angustiada A senhora nunca fez isso acrescentou alto para que todos ouvissem queria se agregar ao espanto dos outros quando o galo cantar pela terceira vez renegarás tua mãe Mas seu enorme vexame suavizouse quando ela percebeu que eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a velha não passava agora de uma criança Ultimamente ela deu pra cuspir terminou então confessando contrita para todos Todos olharam a aniversariante compungidos respeitosos em silêncio Pareciam ratos se acotovelando a sua família Os meninos embora crescidos provavelmente já além dos cinquenta anos que sei eu os meninos ainda conservavam os traços bonitinhos Mas que mulheres haviam escolhido E que mulheres os netos ainda mais fracos e mais azedos haviam escolhido Todas vaidosas e de pernas finas com aqueles colares falsificados de mulher que na hora não aguenta a mão aquelas mulherezinhas que casavam mal os filhos que não sabiam pôr uma criada em seu lugar e todas elas com as orelhas cheias de brincos nenhum nenhum de ouro A raiva a sufocava Me dá um copo de vinho disse O silêncio se fez de súbito cada um com o copo imobilizado na mão Vovozinha não vai lhe fazer mal insinuou cautelosa a neta roliça e baixinha Que vovozinha que nada explodiu amarga a aniversariante Que o diabo vos carregue corja de maricas cornos e vagabundas me dá um copo de vinho Dorothy ordenou Dorothy não sabia o que fazer olhou para todos em pedido cômico de socorro Mas como máscaras isentas e inapeláveis de súbito nenhum rosto se manifestava A festa interrompida os sanduíches mordidos na mão algum pedaço que estava na boca a sobrar seco inchando tão fora de hora a bochecha Todos tinham ficado cegos surdos e mudos com croquetes na mão E olhavam impassíveis Desamparada divertida Dorothy deu o vinho astuciosamente apenas dois dedos no copo Inexpressivos preparados todos esperaram pela tempestade Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que Dorothy lhe dera como não mexeu no copo Seu olhar estava fixo silencioso Como se nada tivesse acontecido Todos se entreolharam polidos sorrindo cegamente abstratos como se um cachorro tivesse feito pipi na sala Com estoicismo recomeçaram as vozes e risadas A nora de Olaria que tivera o seu primeiro momento uníssono com os outros quando a tragédia vitoriosamente parecia prestes a se desencadear teve que retornar sozinha à sua severidade sem ao menos o apoio dos três filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros De sua cadeira reclusa ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo sem um drapeado a mania que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas o que não era moda coisa nenhuma não passava era de economia Examinando distante os sanduíches que quase não tinham levado manteiga Ela não se servira de nada de nada Só comera uma coisa de cada para experimentar E por assim dizer de novo a festa estava terminada As pessoas ficaram sentadas benevolentes Algumas com a atenção voltada para dentro de si à espera de alguma coisa a dizer Outras vazias e expectantes com um sorriso amável o estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome As crianças já incontroláveis gritavam cheias de vigor Umas já estavam de cara imunda as outras menores já molhadas a tarde caía rapidamente E Cordélia Cordélia olhava ausente com um sorriso estonteado suportando sozinha o seu segredo Que é que ela tem alguém perguntou com uma curiosidade negligente indicandoa de longe com a cabeça mas também não responderam Acenderam o resto das luzes para precipitar a tranquilidade da noite as crianças começavam a brigar Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão pálida da tarde E o crepúsculo de Copacabana sem ceder no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como um peso Tenho que ir disse perturbada uma das noras levantandose e sacudindo os farelos da saia Vários se ergueram sorrindo A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar fosse uma armadilha E impassível piscando recebeu aquelas palavras propositadamente atropeladas que lhe diziam tentando dar um final arranco de efusão ao que não era mais senão passado a noite já viera quase totalmente A luz da sala parecia então mais amarela e mais rica as pessoas envelhecidas As crianças já estavam histéricas Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar indagavase a velha nas suas profundezas Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava E para aqueles que junto da porta ainda a olharam uma vez a aniversariante era apenas o que parecia ser sentada à cabeceira da mesa imunda com a mão fechada sobre a toalha como encerrando um cetro e com aquela mudez que era a sua última palavra Com um punho fechado sobre a mesa nunca mais ela seria apenas o que ela pensasse Sua aparência afinal a ultrapassara e superandoa se agigantava serena Cordélia olhoua espantada O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez É preciso que se saiba É preciso que se saiba Que a vida é curta Que a vida é curta Porém nenhuma vez mais repetiu Porque a verdade era um relance Cordélia olhoua estarrecida E para nunca mais nenhuma vez repetiu enquanto Rodrigo o neto da aniversariante puxava a mão daquela mãe culpada perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve num ímpeto dilacerante enfim agarrar a sua derradeira chance e viver Mais uma vez Cordélia quis olhar Mas a esse novo olhar a aniversariante era uma velha à cabeceira da mesa Passara o relance E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo a nora seguiuo espantada Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno da mãe pigarreou José lembrandose de que Jonga é quem fazia os discursos Da mãe vírgula riu baixo a sobrinha e a prima mais lenta riu sem achar graça Nós temos disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a esposa Nós temos esse grande privilégio disse distraído enxugando a palma úmida das mãos Mas não era nada disso apenas o malestar da despedida nunca se sabendo ao certo o que dizer José esperando de si mesmo com perseverança e confiança a próxima frase do discurso Que não vinha Que não vinha Que não vinha Os outros aguardavam Como Jonga fazia falta nessas horas José enxugou a testa com o lenço como Jonga fazia falta nessas horas Também fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara e isso dera a Jonga tanta segurança E quando ele morrera a velha nunca mais falara nele pondo um muro entre sua morte e os outros Esquecerao talvez Mas não esquecera aquele mesmo olhar firme e direto com que desde sempre olhara os outros filhos fazendoos sempre desviar os olhos Amor de mãe era duro de suportar José enxugou a testa heroico risonho E de repente veio a frase Até o ano que vem disse José subitamente com malícia encontrando assim sem mais nem menos a frase certa uma indireta feliz Até o ano que vem hein repetiu com receio de não ser compreendido Olhoua orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia mais um ano No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso esclareceu melhor o filho Manoel aperfeiçoando o espírito do sócio Até o ano que vem mamãe e diante do bolo aceso disse ele bem explicado perto de seu ouvido enquanto olhava obsequiador para José E a velha de súbito cacarejou um riso frouxo compreendendo a alusão Então ela abriu a boca e disse Pois é Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo José gritoulhe emocionado grato com os olhos úmidos No ano que vem nos veremos mamãe Não sou surda disse a aniversariante rude acarinhada Os filhos se olharam rindo vexados felizes A coisa tinha dado certo As crianças foram saindo alegres com o apetite estragado A nora de Olaria deu um cascudo de vingança no filho alegre demais e já sem gravata As escadas eram difíceis escuras incrível insistir em morar num prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia menos dia e na ação de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as noras pisado o último degrau com alívio os convidados se encontraram na tranquilidade fresca da rua Era noite sim Com o seu primeiro arrepio Adeus até outro dia precisamos nos ver Apareçam disseram rapidamente Alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio Alguns abotoavam os casacos das crianças olhando o céu à procura de um sinal do tempo Todos sentindo obscuramente que na despedida se poderia talvez agora sem perigo de compromisso ser bom e dizer aquela palavra a mais que palavra eles não sabiam propriamente e olhavamse sorrindo mudos Era um instante que pedia para ser vivo Mas que era morto Começaram a se separar andando meio de costas sem saber como se desligar dos parentes sem brusquidão Até o ano que vem repetiu José a indireta feliz acenando a mão com vigor efusivo os cabelos ralos e brancos esvoaçavam Ele estava era gordo pensaram precisava tomar cuidado com o coração Até o ano que vem gritou José eloquente e grande e sua altura parecia desmoronável Mas as pessoas já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro Além de alguns pensarem que felizmente havia mais do que uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se encontrar diante do bolo aceso enquanto que outros já mais no escuro da rua pensavam se a velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência de Zilda mas eles sinceramente nada podiam fazer a respeito Pelo menos noventa anos pensou melancólica a nora de Ipanema Para completar uma data bonita pensou sonhadora Enquanto isso lá em cima sobre escadas e contingências estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa erecta definitiva maior do que ela mesma Será que hoje não vai ter jantar meditava ela A morte era o seu mistério A MENOR MULHER DO MUNDO Nas profundezas da África Equatorial o explorador francês Marcel Pretre caçador e homem do mundo topou com uma tribo de pigmeus de uma pequenez surpreendente Mais surpreso pois ficou ao ser informado de que menor povo ainda existia além de florestas e distâncias Então mais fundo ele foi No Congo Central descobriu realmente os menores pigmeus do mundo E como uma caixa dentro de uma caixa dentro de uma caixa entre os menores pigmeus do mundo estava o menor dos menores pigmeus do mundo obedecendo talvez à necessidade que às vezes a Natureza tem de exceder a si própria Entre mosquitos e árvores mornas de umidade entre as folhas ricas do verde mais preguiçoso Marcel Pretre defrontouse com uma mulher de quarenta e cinco centímetros madura negra calada Escura como um macaco informaria ele à imprensa e que vivia no topo de uma árvore com seu pequeno concubino Nos tépidos humores silvestres que arredondam cedo as frutas e lhes dão uma quase intolerável doçura ao paladar ela estava grávida Ali em pé estava portanto a menor mulher do mundo Por um instante no zumbido do calor foi como se o francês tivesse inesperadamente chegado à conclusão última Na certa apenas por não ser louco é que sua alma não desvairou nem perdeu os limites Sentindo necessidade imediata de ordem e de dar nome ao que existe apelidoua de Pequena Flor E para conseguir classificála entre as realidades reconhecíveis logo passou a colher dados a seu respeito Sua raça de gente está aos poucos sendo exterminada Poucos exemplares humanos restam dessa espécie que não fosse o sonso perigo da África seria povo alastrado Fora doença infectado hálito de águas comida deficiente e feras rondantes o grande risco para os escassos Likoualas está nos selvagens Bantos ameaça que os rodeia em ar silencioso como em madrugada de batalha Os Bantos os caçam em redes como fazem com os macacos E os comem Assim caçamnos em redes e os comem A racinha de gente sempre a recuar e a recuar terminou aquarteirandose no coração da África onde o explorador afortunado a descobriria Por defesa estratégica moram nas árvores mais altas De onde as mulheres descem para cozinhar milho moer mandioca e colher verduras os homens para caçar Quando um filho nasce a liberdade lhe é dada quase que imediatamente É verdade que muitas vezes a criança não usufruirá por muito tempo dessa liberdade entre feras Mas é verdade que pelo menos não se lamentará que para tão curta vida longo tenha sido o trabalho Pois mesmo a linguagem que a criança aprende é breve e simples apenas essencial Os Likoualas usam poucos nomes chamam as coisas por gestos e sons animais Como avanço espiritual têm um tambor Enquanto dançam ao som do tambor um machado pequeno fica de guarda contra os Bantos que virão não se sabe de onde Foi pois assim que o explorador descobriu toda em pé e a seus pés a coisa humana menor que existe Seu coração bateu porque esmeralda nenhuma é tão rara Nem os ensinamentos dos sábios da Índia são tão raros Nem o homem mais rico do mundo já pôs olhos sobre tanta estranha graça Ali estava uma mulher que a gulodice do mais fino sonho jamais pudera imaginar Foi então que o explorador disse timidamente e com uma delicadeza de sentimentos de que sua esposa jamais o julgaria capaz Você é Pequena Flor Nesse instante Pequena Flor coçouse onde uma pessoa não se coça O explorador como se estivesse recebendo o mais alto prêmio de castidade a que um homem sempre tão idealista ousa aspirar o explorador tão vivido desviou os olhos A fotografia de Pequena Flor foi publicada no suplemento colorido dos jornais de domingo onde coube em tamanho natural Enrolada num pano com a barriga em estado adiantado O nariz chato a cara preta os olhos fundos os pés espalmados Parecia um cachorro Nesse domingo num apartamento uma mulher ao olhar no jornal aberto o retrato de Pequena Flor não quis olhar uma segunda vez porque me dá aflição Em outro apartamento uma senhora teve tal perversa ternura pela pequenez da mulher africana que sendo tão melhor prevenir que remediar jamais se deveria deixar Pequena Flor sozinha com a ternura da senhora Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho A senhora passou um dia perturbada dirseia tomada pela saudade Aliás era primavera uma bondade perigosa estava no ar Em outra casa uma menina de cinco anos de idade vendo o retrato e ouvindo os comentários ficou espantada Naquela casa de adultos essa menina fora até agora o menor dos seres humanos E se isso era fonte das melhores carícias era também fonte deste primeiro medo do amor tirano A existência de Pequena Flor levou a menina a sentir com uma vaguidão que só anos e anos depois por motivos bem diferentes havia de se concretizar em pensamento levoua a sentir numa primeira sabedoria que a desgraça não tem limites Em outra casa na sagração da primavera a moça noiva teve um êxtase de piedade Mamãe olhe o retratinho dela coitadinha olhe só como ela é tristinha Mas disse a mãe dura e derrotada e orgulhosa mas é tristeza de bicho não é tristeza humana Oh mamãe disse a moça desanimada Foi em outra casa que um menino esperto teve uma ideia esperta Mamãe e se eu botasse essa mulherzinha africana na cama de Paulinho enquanto ele está dormindo quando ele acordasse que susto hein que berro vendo ela sentada na cama E a gente então brincava tanto com ela a gente fazia ela o brinquedo da gente hein A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro e lembrouse do que uma cozinheira lhe contara do tempo de orfanato Não tendo boneca com que brincar e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas Guardaram o cadáver num armário até a freira sair e brincaram com a menina morta deramlhe banhos e comidinhas puseramna de castigo somente para depois poder beijála consolandoa Disso a mãe se lembrou no banheiro e abaixou mãos pensas cheias de grampos E considerou a cruel necessidade de amar Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz Considerou a ferocidade com que queremos brincar E o número de vezes em que mataremos por amor Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho E teve horror da própria alma que mais que seu corpo havia engendrado aquele ser apto à vida e à felicidade Assim olhou ela com muita atenção e um orgulho inconfortável aquele menino que já estava sem os dois dentes da frente a evolução a evolução se fazendo dente caindo para nascer o que melhor morde Vou comprar um terno novo para ele resolveu olhandoo absorta Obstinadamente enfeitava o filho desdentado com roupas finas obstinadamente queriao bem limpo como se limpeza desse ênfase a uma superficialidade tranquilizadora obstinadamente aperfeiçoando o lado cortês da beleza Obstinadamente afastandose e afastandoo de alguma coisa que devia ser escura como um macaco Então olhando para o espelho do banheiro a mãe sorriu intencionalmente fina e polida colocando entre aquele seu rosto de linhas abstratas e a cara crua de Pequena Flor a distância insuperável de milênios Mas com anos de prática sabia que este seria um domingo em que teria de disfarçar de si mesma a ansiedade o sonho e milênios perdidos Em outra casa junto a uma parede deramse ao trabalho alvoroçado de calcular com fita métrica os quarenta e cinco centímetros de Pequena Flor E foi aí mesmo que em delícia se espantaram ela era ainda menor que o mais agudo da imaginação inventaria No coração de cada membro da família nasceu nostálgico o desejo de ter para si aquela coisa miúda e indomável aquela coisa salva de ser comida aquela fonte permanente de caridade A alma ávida da família queria devotarse E mesmo quem já não desejou possuir um ser humano só para si O que é verdade nem sempre seria cômodo há horas em que não se quer ter sentimentos Aposto que se ela morasse aqui terminava em briga disse o pai sentado na poltrona virando definitivamente a página do jornal Nesta casa tudo termina em briga Você José sempre pessimista disse a mãe A senhora já pensou mamãe de que tamanho será o nenenzinho dela disse ardente a filha mais velha de treze anos O pai mexeuse atrás do jornal Deve ser o bebê preto menor do mundo respondeu a mãe derretendose de gosto Imagine só ela servindo a mesa aqui em casa e de barriguinha grande Chega dessas conversas engrolou o pai Você há de convir disse a mãe inesperadamente ofendida que se trata de uma coisa rara Você é que é insensível E a própria coisa rara Enquanto isso na África a própria coisa rara tinha no coração quem sabe se negro também pois numa Natureza que errou uma vez já não se pode mais confiar enquanto isso a própria coisa rara tinha no coração algo mais raro ainda assim como o segredo do próprio segredo um filho mínimo Metodicamente o explorador examinou com o olhar a barriguinha do menor ser humano maduro Foi neste instante que o explorador pela primeira vez desde que a conhecera em vez de sentir curiosidade ou exaltação ou vitória ou espírito científico o explorador sentiu malestar É que a menor mulher do mundo estava rindo Estava rindo quente quente Pequena Flor estava gozando a vida A própria coisa rara estava tendo a inefável sensação de ainda não ter sido comida Não ter sido comida era algo que em outras horas lhe dava o ágil impulso de pular de galho em galho Mas neste momento de tranquilidade entre as espessas folhas do Congo Central ela não estava aplicando esse impulso numa ação e o impulso se concentrara todo na própria pequenez da própria coisa rara E então ela estava rindo Era um riso como somente quem não fala ri Esse riso o explorador constrangido não conseguiu classificar E ela continuou fruindo o próprio riso macio ela que não estava sendo devorada Não ser devorado é o sentimento mais perfeito Não ser devorado é o objetivo secreto de toda uma vida Enquanto ela não estava sendo comida seu riso bestial era tão delicado como é delicada a alegria O explorador estava atrapalhado Em segundo lugar se a própria coisa rara estava rindo era porque dentro de sua pequenez grande escuridão puserase em movimento É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se pode chamar de Amor Ela amava aquele explorador amarelo Se soubesse falar e dissesse que o amava ele inflaria de vaidade Vaidade que diminuiria quando ela acrescentasse que também amava muito o anel do explorador e que amava muito a bota do explorador E quando este desinchasse desapontado Pequena Flor não compreenderia por quê Pois nem de longe seu amor pelo explorador podese mesmo dizer seu profundo amor porque não tendo outros recursos ela estava reduzida à profundeza pois nem de longe seu profundo amor pelo explorador ficaria desvalorizado pelo fato de ela também amar sua bota Há um velho equívoco sobre a palavra amor e se muitos filhos nascem desse equívoco tantos outros perderam o único instante de nascer apenas por causa de uma suscetibilidade que exige que seja de mim de mim que se goste e não de meu dinheiro Mas na umidade da floresta não há desses refinamentos cruéis e amor é não ser comido amor é achar bonita uma bota amor é gostar da cor rara de um homem que não é negro amor é rir de amor a um anel que brilha Pequena Flor piscava de amor e riu quente pequena grávida quente O explorador tentou sorrirlhe de volta sem saber exatamente a que abismo seu sorriso respondia e então perturbouse como só homem de tamanho grande se perturba Disfarçou ajeitando melhor o chapéu de explorador corou pudico Tornouse uma cor linda a sua de um rosa esverdeado como a de um limão de madrugada Ele devia ser azedo Foi provavelmente ao ajeitar o capacete simbólico que o explorador se chamou à ordem recuperou com severidade a disciplina de trabalho e recomeçou a anotar Aprendera a entender algumas das poucas palavras articuladas da tribo e a interpretar os sinais Já conseguia fazer perguntas Pequena Flor respondeulhe que sim Que era muito bom ter uma árvore para morar sua sua mesmo Pois e isso ela não disse mas seus olhos se tornaram tão escuros que o disseram pois é bom possuir é bom possuir é bom possuir O explorador pestanejou várias vezes Marcel Pretre teve vários momentos difíceis consigo mesmo Mas pelo menos ocupouse em tomar notas e notas Quem não tomou notas é que teve de se arranjar como pôde Pois olhe declarou de repente uma velha fechando o jornal com decisão pois olhe eu só lhe digo uma coisa Deus sabe o que faz O JANTAR Ele entrou tarde no restaurante Certamente ocuparase até agora em grandes negócios Poderia ter uns sessenta anos era alto corpulento de cabelos brancos sobrancelhas espessas e mãos potentes Num dedo o anel de sua força Sentouse amplo e sólido Perdio de vista e enquanto comia observei de novo a mulher magra de chapéu Ela ria com a boca cheia e rebrilhava os olhos escuros No momento em que eu levava o garfo à boca olheio Eilo de olhos fechados mastigando pão com vigor e mecanismo os dois punhos cerrados sobre a mesa Continuei comendo e olhando O garçom dispunha os pratos sobre a toalha Mas o velho mantinha os olhos fechados A um gesto mais vivo do criado ele os abriu com tal brusquidão que este mesmo movimento se comunicou às grandes mãos e um garfo caiu O garçom sussurrou palavras amáveis abaixandose para apanhálo ele não respondia Porque agora desperto virava subitamente a carne de um lado e de outro examinavaa com veemência a ponta da língua aparecendo apalpava o bife com as costas do garfo quase o cheirava mexendo a boca de antemão E começava a cortálo com um movimento inútil de vigor de todo o corpo Em breve levava um pedaço a certa altura do rosto e como se tivesse que apanhálo em voo abocanhouo num arrebatamento de cabeça Olhei para o meu prato Quando fiteio de novo ele estava em plena glória do jantar mastigando de boca aberta passando a língua pelos dentes com o olhar fixo na luz do teto Eu já ia cortar a carne de novo quando o vi parar inteiramente E exatamente como se não suportasse mais o quê pega rápido no guardanapo e comprime as órbitas dos olhos com as mãos cabeludas Parei em guarda Seu corpo respirava com dificuldade crescia Tira afinal o guardanapo da vista e olha entorpecido de muito longe Respira abrindo e fechando desmesuradamente as pálpebras limpa os olhos com cuidado e mastiga devagar o resto de comida ainda na boca Daqui a um segundo porém está refeito e duro apanha uma garfada de salada com o corpo todo e come inclinado o queixo ativo o azeite umedecendo os lábios Interrompese um instante enxuga de novo os olhos balança brevemente a cabeça e nova garfada de alface com carne é apanhada no ar Diz ao garçom que passa Não é este o vinho que mandei trazer A voz que esperava dele voz sem réplicas possíveis pela qual eu via que jamais se poderia fazer alguma coisa por ele Senão obedecêlo O garçom se afastou cortês com a garrafa na mão Mas eis que o velho se imobiliza de novo como se tivesse o peito contraído e barrado Sua violenta potência sacodese presa Ele espera Até que a fome parece assaltálo e ele recomeça a mastigar com apetite de sobrancelhas franzidas Eu é que já comia devagar um pouco nauseado sem saber por quê participando também não sabia de quê De repente eilo a estremecer todo levando o guardanapo aos olhos e apertandoos numa brutalidade que me enleva Abandono com certa decisão o garfo no prato eu próprio com um aperto insuportável na garganta furioso quebrado em submissão Mas o velho demora pouco com o guardanapo nos olhos Desta vez quando o tira sem pressa as pupilas estão extremamente doces e cansadas e antes dele enxugarse eu vi Vi a lágrima Inclinome sobre a carne perdido Quando finalmente consigo encarálo do fundo de meu rosto pálido vejo que também ele se inclinou com os cotovelos apoiados sobre a mesa a cabeça entre as mãos E exatamente ele não suportava mais As sobrancelhas grossas estavam juntas A comida devia ter parado pouco abaixo da garganta sob a dureza da emoção pois quando ele pôde continuar fez um gesto terrível de esforço para engolir e passou o guardanapo pela testa Eu não podia mais a carne no meu prato era crua eu é que não podia mais Porém ele ele comia O garçom trouxe a garrafa dentro de uma vasilha de gelo Eu anotava tudo já sem discriminar a garrafa era outra o criado de casaca a luz aureolava a cabeça robusta de Plutão que se movia agora com curiosidade guloso e atento Por um instante o garçom cobre minha visão do velho e vejo apenas as asas negras duma casaca sobrevoando a mesa vertia vinho vermelho na taça e aguardava de olhos quentes porque lá estava seguramente um senhor de boas gorjetas um desses velhos que ainda estão no centro do mundo e da força O velho engrandecido tomou um gole com segurança largou a taça e consultou com amargura o sabor na boca Batia um lábio no outro estalava a língua com desgosto como se o que era bom fosse intolerável Eu esperava o garçom esperava ambos nos inclinávamos suspensos Afinal ele fez uma careta de aprovação O criado curvou a cabeça luzente com sujeição ao agradecimento saiu inclinado e eu respirava com alívio Ele agora misturava à carne os goles de vinho na grande boca e os dentes postiços mastigavam pesados enquanto eu o espreitava em vão Nada mais acontecia O restaurante parecia irradiarse com dupla força sob o tilintar dos vidros e talheres na dura coroa brilhante da sala os murmúrios cresciam e se apaziguavam em vaga doce a mulher do chapéu grande sorria de olhos entrefechados tão magra e bela o garçom derramava com lentidão o vinho no copo Mas eis que ele faz um gesto Com a mão pesada e cabeluda onde na palma as linhas eram cravadas com tal fatalidade faz um gesto de pensamento Diz com a mímica o mais que pode e eu eu não compreendo E como se não suportasse mais larga o garfo no prato Desta vez foste bem agarrado velho Fica respirando acabado ruidoso Pega então no copo de vinho e bebe de olhos fechados em rumorosa ressurreição Meus olhos ardem e a claridade é alta persistente Estou tomado pelo êxtase arfante da náusea Tudo me parece grande e perigoso A mulher magra cada vez mais bela estremece séria entre as luzes Ele terminou Sua cara se esvazia de expressão Fecha os olhos distende os maxilares Procuro aproveitar este momento em que ele não possui mais o próprio rosto para ver afinal Mas é inútil A grande aparência que vejo é desconhecida majestosa cruel e cega O que eu quero olhar diretamente pela força extraordinária do ancião não existe neste instante Ele não quer Vem a sobremesa um creme derretido e eu me surpreendo pela decadência da escolha Ele come devagar tira uma colherada e espia o líquido pastoso escorrer Ingere tudo porém faz uma careta e crescido alimentado afasta o prato Então já sem fome o grande cavalo apoia a cabeça na mão O primeiro sinal mais claro aparece O velho comedor de crianças pensa nas suas profundezas Com palidez vejoo levar o guardanapo à boca Imagino ouvir um soluço Ambos permanecemos em silêncio no centro do salão Talvez ele tivesse comido depressa demais Porque apesar de tudo não perdeste a fome hein instigavao eu com ironia cólera e exaustão Mas ele se desmoronava a olhos vistos Os traços agora caídos e dementes ele balançava a cabeça de um lado para outro de um lado para outro sem se conter mais com a boca apertada os olhos cerrados embalandose o patriarca estava chorando por dentro A ira me asfixiava Vio botar os óculos e ficar mais velho muitos anos Enquanto contava o troco batia os dentes projetando o queixo para a frente entregandose um instante à doçura da velhice Eu mesmo tão atento estivera a ele que não o vira tirar o dinheiro para pagar nem examinar a conta e não notara a volta do garçom com o troco Afinal tirou os óculos bateu os dentes enxugou os olhos fazendo caretas inúteis e penosas Passou a mão quadrada pelos cabelos brancos alisandoos com poder Levantouse segurando o bordo da mesa com as mãos vigorosas E eis que depois de liberto de um apoio ele parece mais fraco embora ainda enorme e ainda capaz de apunhalar qualquer um de nós Sem que eu possa fazer nada põe o chapéu acariciando a gravata ao espelho Atravessa o aspecto luminoso do salão desaparece Mas eu sou um homem ainda Quando me traíram ou assassinaram quando alguém foi embora para sempre ou perdi o que de melhor me restava ou quando soube que vou morrer eu não como Não sou ainda esta potência esta construção esta ruína Empurro o prato rejeito a carne e seu sangue PRECIOSIDADE Para Mafalda De manhã cedo era sempre a mesma coisa renovada acordar O que era vagaroso desdobrado vasto Vastamente ela abria os olhos Tinha quinze anos e não era bonita Mas por dentro da magreza a vastidão quase majestosa em que se movia como dentro de uma meditação E dentro da nebulosidade algo precioso Que não se espreguiçava não se comprometia não se contaminava Que era intenso como uma joia Ela Acordava antes de todos pois para ir à escola teria que pegar um ônibus e um bonde o que lhe tomaria uma hora O que lhe daria uma hora De devaneio agudo como um crime O vento da manhã violentando a janela e o rosto até que os lábios ficavam duros gelados Então ela sorria Como se sorrir fosse em si um objetivo Tudo isso aconteceria se tivesse a sorte de ninguém olhar para ela Quando de madrugada se levantava passado o instante de vastidão em que se desenrolava toda vestiase correndo mentia para si mesma que não havia tempo de tomar banho e a família adormecida jamais adivinhara quão poucos ela tomava Sob a luz acesa da sala de jantar engolia o café que a empregada se coçando no escuro da cozinha requentara Mal tocava no pão que a manteiga não amolecia Com a boca fresca de jejum os livros embaixo do braço abria enfim a porta transpunha a mornidão insossa da casa galgandose para a gélida fruição da manhã Então já não se apressava mais Tinha que atravessar a longa rua deserta até alcançar a avenida do fim da qual um ônibus emergiria cambaleando dentro da névoa com as luzes da noite ainda acesas no farol Ao vento de junho o ato misterioso autoritário e perfeito era erguer o braço e já de longe o ônibus trêmulo começava a se deformar obedecendo à arrogância de seu corpo representante de um poder supremo de longe o ônibus começava a tornarse incerto e vagaroso vagaroso e avançando cada vez mais concreto até estacar no seu rosto em fumaça e calor em calor e fumaça Então subia séria como uma missionária por causa dos operários no ônibus que poderiam lhe dizer alguma coisa Aqueles homens que não eram mais rapazes Mas também de rapazes tinha medo medo também de meninos Medo que lhe dissessem alguma coisa que a olhassem muito Na gravidade da boca fechada havia a grande súplica respeitassemna Mais que isso Como se tivesse prestado voto era obrigada a ser venerada e enquanto por dentro o coração batia de medo também ela se venerava ela a depositária de um ritmo Se a olhavam ficava rígida e dolorosa O que a poupava é que os homens não a viam Embora alguma coisa nela à medida que dezesseis anos se aproximava em fumaça e calor alguma coisa estivesse intensamente surpreendida e isso surpreendesse alguns homens Como se alguém lhes tivesse tocado no ombro Uma sombra talvez No chão a enorme sombra de moça sem homem cristalizável elemento incerto que fazia parte da monótona geometria das grandes cerimônias públicas Como se lhes tivessem tocado no ombro Eles olhavam e não a viam Ela fazia mais sombra do que existia No ônibus os operários eram silenciosos com a marmita na mão o sono ainda no rosto Ela sentia vergonha de não confiar neles que eram cansados Mas até que os esquecesse o desconforto É que eles sabiam E como também ela sabia então o desconforto Todos sabiam o mesmo Também seu pai sabia Um velho pedindo esmola sabia A riqueza distribuída e o silêncio Depois com andar de soldado atravessava incólume o Largo da Lapa onde era dia A essa altura a batalha estava quase ganha Escolhia no bonde um banco se possível vazio ou se tivesse sorte sentavase ao lado de alguma asseguradora mulher com uma trouxa de roupa no colo por exemplo e era a primeira trégua Ainda teria de enfrentar na escola o longo corredor onde os colegas estariam de pé conversando e onde os tacos de seus sapatos faziam um ruído que as pernas tensas não podiam conter como se ela quisesse inutilmente fazer parar de bater um coração sapatos com dança própria Faziase um vago silêncio entre os rapazes que talvez sentissem sob o seu disfarce que ela era uma das devotas Passava entre as alas dos colegas crescendo e eles não sabiam o que pensar nem como comentála Era feio o ruído de seus sapatos Rompia o próprio segredo com tacos de madeira Se o corredor demorasse um pouco mais ela como que esqueceria seu destino e correria com as mãos tapando os ouvidos Só tinha sapatos duráveis Como se fossem ainda os mesmos que em solenidade lhe haviam calçado quando nascera Atravessava o corredor interminável como a um silêncio de trincheira e no seu rosto havia algo tão feroz e soberbo também por causa de sua sombra que ninguém lhe dizia nada Proibitiva ela os impedia de pensar Até que enfim a classe de aula Onde de repente tudo se tornava sem importância e mais rápido e leve onde seu rosto tinha algumas sardas os cabelos caíam nos olhos e onde ela era tratada como um rapaz Onde era inteligente A astuciosa profissão Parecia ter estudado em casa Sua curiosidade informavalhe mais que respostas Adivinhava sentindo na boca o gosto cítrico das dores heroicas adivinhava a repulsão fascinada que sua cabeça pensante criava nos colegas que de novo não sabiam como comentála Cada vez mais a grande fingida se tornava inteligente Aprendera a pensar O sacrifício necessário assim ninguém tinha coragem Às vezes enquanto o professor falava ela intensa nebulosa fazia riscos simétricos no caderno Se um risco que tinha que ser ao mesmo tempo forte e delicado saía fora do círculo imaginário em que deveria caber tudo desabaria ela se concentrava ausente guiada pela avidez do ideal Às vezes em vez de riscos desenhava estrelas estrelas estrelas estrelas tantas e tão altas que desse trabalho anunciador saía exausta erguendo uma cabeça mal acordada A volta para casa era tão cheia de fome que a impaciência e o ódio roíam seu coração Na volta parecia outra cidade no Largo da Lapa centenas de pessoas reverberadas pela fome pareciam ter esquecido e se lhes lembrassem arreganhariam dentes O sol delineava cada homem com carvão preto Sua própria sombra era uma estaca negra Nesta hora em que o cuidado tinha que ser maior ela era protegida pela espécie de feiura que a fome acentuava seus traços escurecidos pela adrenalina que escurecia a carne dos animais de caça Na casa vazia toda a família na repartição gritava com a empregada que nem sequer lhe respondia Comia como um centauro A cara perto do prato os cabelos quase na comida Magrinha mas como devora dizia a empregada esperta Pro diabo gritavalhe sombria Na casa vazia sozinha com a empregada já não andava como um soldado já não precisava tomar cuidado Mas sentia falta da batalha das ruas Melancolia da liberdade com o horizonte ainda tão longe Derase ao horizonte Mas a nostalgia do presente O aprendizado da paciência o juramento da espera Do qual talvez não soubesse jamais se livrar A tarde transformandose em interminável e até todos voltarem para o jantar e ela poder se tornar com alívio uma filha era o calor o livro aberto e depois fechado uma intuição o calor sentavase com a cabeça entre as mãos desesperada Quando tinha dez anos relembrou um menino que a amava jogaralhe um rato morto Porcaria berrara branca com a ofensa Fora uma experiência Jamais contara a ninguém Com a cabeça entre as mãos sentada Dizia quinze vezes sou vigorosa sou vigorosa sou vigorosa depois percebia que apenas prestara atenção à contagem Suprindo com a quantidade disse mais uma vez sou vigorosa dezesseis E já não estava mais à mercê de ninguém Desesperada porque vigorosa livre não estava mais à mercê Perdera a fé Foi conversar com a empregada antiga sacerdotisa Elas se reconheciam As duas descalças de pé na cozinha a fumaça do fogão Perdera a fé mas à beira da graça procurava na empregada apenas o que esta já perdera não o que ganhara Faziase pois distraída e conversando evitava a conversa Ela imagina que na minha idade devo saber mais do que sei e é capaz de me ensinar alguma coisa pensou a cabeça entre as mãos defendendo a ignorância como a um corpo Faltavamlhe elementos mas não os queria de quem já os esquecera A grande espera fazia parte Dentro da vastidão maquinando Tudo isso sim Longo cansado a exasperação Mas na madrugada seguinte como uma avestruz lenta se abre ela acordava Acordou no mesmo mistério intacto abrindo os olhos ela era a princesa do mistério intacto Como se a fábrica já tivesse apitado vestiuse correndo bebeu de um sorvo o café Abriu a porta de casa E então já não se apressou mais A grande imolação das ruas Sonsa atenta mulher de apache Parte do rude ritmo de um ritual Era uma manhã ainda mais fria e escura que as outras ela estremeceu no suéter A branca nebulosidade deixava o fim da rua invisível Tudo estava algodoado não se ouviu sequer o ruído de algum ônibus que passasse pela avenida Foi andando para o imprevisível da rua As casas dormiam nas portas fechadas Os jardins endurecidos de frio No ar escuro mais que no céu no meio da rua uma estrela Uma grande estrela de gelo que não voltara ainda incerta no ar úmida informe Surpreendida no seu atraso arredondavase na hesitação Ela olhou a estrela próxima Caminhava sozinha na cidade bombardeada Não ela não estava sozinha Com os olhos franzidos pela incredulidade no fim longínquo de sua rua de dentro do vapor viu dois homens Dois rapazes vindo Olhou ao redor como se pudesse ter errado de rua ou de cidade Mas errara os minutos saíra de casa antes que a estrela e dois homens tivessem tempo de sumir Seu coração se espantou O primeiro impulso diante de seu erro foi o de refazer para trás os passos dados e entrar em casa até que eles passassem Eles vão olhar para mim eu sei não há mais ninguém para eles olharem e eles vão me olhar muito Mas como voltar e fugir se nascera para a dificuldade Se toda a sua lenta preparação tinha o destino ignorado a que ela por culto tinha que aderir Como recuar e depois nunca mais esquecer a vergonha de ter esperado em miséria atrás de uma porta E mesmo talvez não houvesse perigo Eles não teriam coragem de dizer nada porque ela passaria com o andar duro de boca fechada no seu ritmo espanhol De pernas heroicas continuou a andar Cada vez que se aproximava eles que também se aproximavam então todos se aproximavam a rua ficou cada vez um pouco mais curta Os sapatos dos dois rapazes misturavamse ao ruído de seus próprios sapatos era ruim ouvir Era insistente ouvir Os sapatos eram ocos ou a calçada era oca A pedra do chão avisava Tudo era eco e ela ouvia sem poder impedir o silêncio do cerco comunicandose pelas ruas do bairro e via sem poder impedir que as portas mais fechadas haviam ficado Mesmo a estrela retirarase Na nova palidez da escuridão a rua entregue aos três Ela andava ouvia os homens já que não poderia olhálos e já que precisava sabêlos Ela os ouvia e surpreendia se com a própria coragem em continuar Mas não era coragem Era o dom E a grande vocação para um destino Ela avançava sofrendo em obedecer Se conseguisse pensar em outra coisa não ouviria os sapatos Nem o que eles pudessem dizer Nem o silêncio com que cruzariam Com brusca rigidez olhouos Quando menos esperava traindo o voto de segredo viuos rápida Eles sorriam Não estavam sérios Não deveria ter visto Porque vendo ela por um instante arriscavase a tornarse individual e também eles Era do que parecia ter sido avisada enquanto executasse um mundo clássico enquanto fosse impessoal seria filha dos deuses e assistida pelo que tem que ser feito Mas tendo visto o que olhos ao verem diminuem arriscarase a ser um elamesma que a tradição não amparava Por um instante hesitou toda perdida de um rumo Mas era tarde demais para recuar Só não seria tarde demais se corresse Mas correr seria como errar todos os passos e perder o ritmo que ainda a sustentava o ritmo que era o seu único talismã o que lhe fora entregue à orla do mundo onde era para ser sozinha à orla do mundo onde se tinham apagado todas as lembranças e como incompreensível lembrete restara o cego talismã ritmo que era de seu destino copiar executandoo para a consumação do mundo Não a própria Se ela corresse a ordem se alteraria E nunca lhe seria perdoado o pior a pressa E mesmo quando se foge correm atrás são coisas que se sabem Rígida catequista sem alterar por um segundo a lentidão com que avançava ela avançava Eles vão olhar para mim eu sei Mas tentava por instinto de uma vida anterior não lhes transmitir susto Adivinhava o que o medo desencadeia Ia ser rápido sem dor Só por uma fração de segundo se cruzariam rápido instantâneo por causa da vantagem a seu favor dela estar em movimento e deles virem em movimento contrário o que faria com que o instante se reduzisse ao essencial necessário à queda do primeiro dos sete mistérios que tão secretos eram que deles ficara apenas uma sabedoria o número sete Fazei com que eles não digam nada fazei com que eles só pensem pensar eu deixo Ia ser rápido e um segundo depois da transposição ela diria maravilhada galgandose para outras e outras ruas quase não doeu Mas o que se seguiu não teve explicação O que se seguiu foram quatro mãos difíceis foram quatro mãos que não sabiam o que queriam quatro mãos erradas de quem não tinha a vocação quatro mãos que a tocaram tão inesperadamente que ela fez a coisa mais certa que poderia ter feito no mundo dos movimentos ficou paralisada Eles cujo papel predeterminado era apenas o de passar junto do escuro de seu medo e então o primeiro dos sete mistérios cairia eles que representariam apenas o horizonte de um só passo aproximado eles não compreenderam a função que tinham e com a individualidade dos que têm medo haviam atacado Foi menos de uma fração de segundo na rua tranquila Numa fração de segundo a tocaram como se a eles coubessem todos os sete mistérios Que ela conservou todos e mais larva se tornou e mais sete anos de atraso Ela não os olhou porque sua cara ficou voltada com serenidade para o nada Mas pela pressa com que a magoaram soube que eles tinham mais medo do que ela Tão assustados que já não estavam mais ali Corriam Tinham medo que ela gritasse e as portas das casas uma por uma se abrissem raciocinou eles não sabiam que não se grita Ficou de pé ouvindo com tranquila loucura os sapatos deles em fuga A calçada era oca ou os sapatos eram ocos ou ela própria era oca No oco dos sapatos deles ouvia atenta o medo dos dois O som batia nítido nas lajes como se batessem à porta sem parar e ela esperasse que desistissem Tão nítido na nudez da pedra que o sapateado não parecia distanciarse era ali a seus pés como um sapateado de vitória De pé ela não tinha por onde se sustentar senão pelos ouvidos A sonoridade não esmorecia o afastamento eralhe transmitido por um apressado cada vez mais preciso de tacos Os tacos não ecoavam mais na pedra ecoavam no ar como castanholas cada vez mais delicadas Depois percebeu que há muito não ouvia nenhum som E trazidos de volta pela brisa o silêncio e uma rua vazia Até esse instante mantiverase quieta de pé no meio da calçada Então como se houvesse várias etapas da mesma imobilidade ficou parada Daí a pouco suspirou E em nova etapa mantevese parada Depois mexeu a cabeça e então ficou mais profundamente parada Depois recuou devagar até um muro corcunda bem devagar como se tivesse um braço quebrado até que se encostou toda no muro onde ficou inscrita E então mantevese parada Não se mover é o que importa pensou de longe não se mover Depois de um tempo provavelmente terseia dito assim agora mova um pouco as pernas mas bem devagar Porque bem devagar moveu as pernas Depois do que suspirou e ficou quieta olhando Ainda estava escuro Depois amanheceu Devagar reuniu os livros espalhados pelo chão Mais adiante estava o caderno aberto Quando se abaixou para recolhêlo viu a letra redonda e graúda que até esta manhã fora sua Então saiu Sem saber com que enchera o tempo senão com passos e passos chegou à escola com mais de duas horas de atraso Como não tinha pensado em nada não sabia que o tempo decorrera Pela presença do professor de Latim constatou com uma surpresa polida que na classe já haviam começado a terceira hora Que foi que te aconteceu sussurrou a menina da carteira ao lado Por quê Você está branca Está sentindo alguma coisa Não disse tão claro que vários colegas olharamna Levantouse e disse bem alto Dá licença Foi para o lavatório Onde diante do grande silêncio dos ladrilhos gritou aguda supersônica Estou sozinha no mundo Nunca ninguém vai me ajudar nunca ninguém vai me amar Estou sozinha no mundo Estava ali perdendo também a terceira aula no longo banco do lavatório em frente a várias pias Não faz mal depois copio os pontos peço emprestado os cadernos para copiar em casa estou sozinha no mundo interrompeuse batendo várias vezes a mão fechada no banco O ruído dos quatro sapatos de repente começou como uma chuva miúda e rápida Ruído cego nada se refletiu nos ladrilhos brilhantes Só a nitidez de cada sapato que não se emaranhou nenhuma vez com outro sapato Como nozes caindo Era só esperar como se espera que parem de bater à porta Então pararam Quando foi molhar os cabelos diante do espelho ela era tão feia Ela possuía tão pouco e eles haviam tocado Ela era tão feia e preciosa Estava pálida os traços afinados As mãos umedecendo os cabelos sujas de tinta ainda do dia anterior Preciso cuidar mais de mim pensou Não sabia como A verdade é que cada vez sabia menos como A expressão do nariz era a de um focinho apontando na cerca Voltou ao banco e ficou quieta com um focinho Uma pessoa não é nada Não retrucouse em mole protesto não diga isso pensou com bondade e melancolia Uma pessoa é alguma coisa disse por gentileza Mas no jantar a vida tomou um senso imediato e histérico Preciso de sapatos novos os meus fazem muito barulho uma mulher não pode andar com salto de madeira chama muita atenção Ninguém me dá nada Ninguém me dá nada e estava tão frenética e estertorada que ninguém teve coragem de lhe dizer que não os ganharia Só disseram Você não é uma mulher e todo salto é de madeira Até que assim como uma pessoa engorda ela deixou sem saber por que processo de ser preciosa Há uma obscura lei que faz com que se proteja o ovo até que nasça o pinto pássaro de fogo E ela ganhou os sapatos novos OS LAÇOS DE FAMÍLIA A mulher e a mãe acomodaramse finalmente no táxi que as levaria à Estação A mãe contava e recontava as duas malas tentando convencerse de que ambas estavam no carro A filha com seus olhos escuros a que um ligeiro estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria e frieza assistia Não esqueci de nada perguntava pela terceira vez a mãe Não não não esqueceu de nada respondia a filha divertida com paciência Ainda estava sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe e seu marido na hora da despedida Durante as duas semanas da visita da velha os dois mal se haviam suportado os bonsdias e as boastardes soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir Mas eis que na hora da despedida antes de entrarem no táxi a mãe se transformara em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro Perdoe alguma palavra mal dita dissera a velha senhora e Catarina com alguma alegria vira Antônio não saber o que fazer das malas nas mãos a gaguejar perturbado em ser o bom genro Se eu rio eles pensam que estou louca pensara Catarina franzindo as sobrancelhas Quem casa um filho perde um filho quem casa uma filha ganha mais um acrescentara a mãe e Antônio aproveitara sua gripe para tossir Catarina de pé observava com malícia o marido cuja segurança se desvanecera para dar lugar a um homem moreno e miúdo forçado a ser filho daquela mulherzinha grisalha Foi então que a vontade de rir tornouse mais forte Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha vontade de rir seus olhos tomavam uma expressão esperta e contida tornavamse mais estrábicos e o riso saía pelos olhos Sempre doía um pouco ser capaz de rir Mas nada podia fazer contra desde pequena rira pelos olhos desde sempre fora estrábica Continuo a dizer que o menino está magro disse a mãe resistindo aos solavancos do carro E apesar de Antônio não estar presente ela usava o mesmo tom de desafio e acusação que empregava diante dele Tanto que uma noite Antônio se agitara não é por culpa minha Severina Ele chamava a sogra de Severina pois antes do casamento projetava serem sogra e genro modernos Logo à primeira visita da mãe ao casal a palavra Severina tornarase difícil na boca do marido e agora então o fato de chamála pelo nome não impedira que Catarina olhavaos e ria O menino sempre foi magro mamãe respondeulhe O táxi avançava monótono Magro e nervoso acrescentou a senhora com decisão Magro e nervoso assentiu Catarina paciente Era um menino nervoso distraído Durante a visita da avó tornarase ainda mais distante dormira mal perturbado pelos carinhos excessivos e pelos beliscões de amor da velha Antônio que nunca se preocupara especialmente com a sensibilidade do filho passara a dar indiretas à sogra a proteger uma criança Não esqueci de nada recomeçou a mãe quando uma freada súbita do carro lançouas uma contra a outra e fez despencarem as malas Ah ah exclamou a mãe como a um desastre irremediável ah dizia balançando a cabeça em surpresa de repente envelhecida e pobre E Catarina Catarina olhava a mãe e a mãe olhava a filha e também a Catarina acontecera um desastre seus olhos piscaram surpreendidos ela ajeitava depressa as malas a bolsa procurando o mais rapidamente possível remediar a catástrofe Porque de fato sucedera alguma coisa seria inútil esconder Catarina fora lançada contra Severina numa intimidade de corpo há muito esquecida vinda do tempo em que se tem pai e mãe Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado ou beijado Do pai sim Catarina sempre fora mais amiga Quando a mãe enchialhes os pratos obrigandoos a comer demais os dois se olhavam piscando em cumplicidade e a mãe nem notava Mas depois do choque no táxi e depois de se ajeitarem não tinham o que falar por que não chegavam logo à Estação Não esqueci de nada perguntou a mãe com voz resignada Catarina não queria mais fitála nem responderlhe Tome suas luvas disselhe recolhendoas do chão Ah ah minhas luvas exclamava a mãe perplexa Só se espiaram realmente quando as malas foram dispostas no trem depois de trocados os beijos a cabeça da mãe apareceu na janela Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e tinha os olhos brilhantes O trem não partia e ambas esperavam sem ter o que dizer A mãe tirou o espelho da bolsa e examinouse no seu chapéu novo comprado no mesmo chapeleiro da filha Olhavase compondo um ar excessivamente severo onde não faltava alguma admiração por si mesma A filha observava divertida Ninguém mais pode te amar senão eu pensou a mulher rindo pelos olhos e o peso da responsabilidade deulhe à boca um gosto de sangue Como se mãe e filha fossem vida e repugnância Não não se podia dizer que amava sua mãe Sua mãe lhe doía era isso A velha guardara o espelho na bolsa e fitavaa sorrindo O rosto usado e ainda bem esperto parecia esforçarse por dar aos outros alguma impressão da qual o chapéu faria parte A campainha da Estação tocou de súbito houve um movimento geral de ansiedade várias pessoas correram pensando que o trem já partia mamãe disse a mulher Catarina disse a velha Ambas se olhavam espantadas a mala na cabeça de um carregador interrompeu lhes a visão e um rapaz correndo segurou de passagem o braço de Catarina deslocandolhe a gola do vestido Quando puderam verse de novo Catarina estava sob a iminência de lhe perguntar se não esquecera de nada não esqueci de nada perguntou a mãe Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa e ambas se olhavam atônitas porque se realmente haviam esquecido agora era tarde demais Uma mulher arrastava uma criança a criança chorava novamente a campainha da Estação soou Mamãe disse a mulher Que coisa tinham esquecido de dizer uma a outra e agora era tarde demais Parecialhe que deveriam um dia ter dito assim sou tua mãe Catarina E ela deveria ter respondido e eu sou tua filha Não vá pegar corrente de ar gritou Catarina Ora menina sou lá criança disse a mãe sem deixar porém de se preocupar com a própria aparência A mão sardenta um pouco trêmula arranjava com delicadeza a aba do chapéu e Catarina teve subitamente vontade de lhe perguntar se fora feliz com seu pai Dê lembranças a titia gritou Sim sim Mamãe disse Catarina porque um longo apito se ouvira e no meio da fumaça as rodas já se moviam Catarina disse a velha de boca aberta e olhos espantados e ao primeiro solavanco a filha viua levar as mãos ao chapéu este caíralhe até o nariz deixando aparecer apenas a nova dentadura O trem já andava e Catarina acenava O rosto da mãe desapareceu um instante e reapareceu já sem o chapéu o coque dos cabelos desmanchado caindo em mechas brancas sobre os ombros como as de uma donzela o rosto estava inclinado sem sorrir talvez mesmo sem enxergar mais a filha distante No meio da fumaça Catarina começou a caminhar de volta as sobrancelhas franzidas e nos olhos a malícia dos estrábicos Sem a companhia da mãe recuperara o modo firme de caminhar sozinha era mais fácil Alguns homens a olhavam ela era doce um pouco pesada de corpo Caminhava serena moderna nos trajes os cabelos curtos pintados de acaju E de tal modo haviamse disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade tudo estava tão vivo e tenro ao redor a rua suja os velhos bondes cascas de laranja a força fluía e refluía no seu coração com pesada riqueza Estava muito bonita neste momento tão elegante integrada na sua época e na cidade onde nascera como se a tivesse escolhido Nos olhos vesgos qualquer pessoa adivinharia o gosto que essa mulher tinha pelas coisas do mundo Espiava as pessoas com insistência procurando fixar naquelas figuras mutáveis seu prazer ainda úmido de lágrimas pela mãe Desviouse dos carros conseguiu aproximarse do ônibus burlando a fila espiando com ironia nada impediria que essa pequena mulher que andava rolando os quadris subisse mais um degrau misterioso nos seus dias O elevador zumbia no calor da praia Abriu a porta do apartamento enquanto se libertava do chapeuzinho com a outra mão parecia disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito Antônio mal levantou os olhos do livro A tarde de sábado sempre fora sua e logo depois da partida de Severina ele a retomava com prazer junto à escrivaninha Ela foi Foi sim respondeu Catarina empurrando a porta do quarto de seu filho Ah sim lá estava o menino pensou com alívio súbito Seu filho Magro e nervoso Desde que se pusera de pé caminhara firme mas quase aos quatro anos falava como se desconhecesse verbos constatava as coisas com frieza não as ligando entre si Lá estava ele mexendo na toalha molhada exato e distante A mulher sentia um calor bom e gostaria de prender o menino para sempre a este momento puxoulhe a toalha das mãos em censura este menino Mas o menino olhava indiferente para o ar comunicandose consigo mesmo Estava sempre distraído Ninguém conseguira ainda chamarlhe verdadeiramente a atenção A mãe sacudia a toalha no ar e impedia com sua forma a visão do quarto mamãe disse o menino Catarina voltouse rápida Era a primeira vez que ele dizia mamãe nesse tom e sem pedir nada Fora mais que uma constatação mamãe A mulher continuou a sacudir a toalha com violência e perguntouse a quem poderia contar o que sucedera mas não encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse explicar Desamarrotou a toalha com vigor antes de pendurála para secar Talvez pudesse contar se mudasse a forma Contaria que o filho dissera mamãe quem é Deus Não talvez mamãe menino quer Deus Talvez Só em símbolos a verdade caberia só em símbolos é que a receberiam Com os olhos sorrindo de sua mentira necessária e sobretudo da própria tolice fugindo de Severina a mulher inesperadamente riu de fato para o menino não só com os olhos o corpo todo riu quebrado quebrado um invólucro e uma aspereza aparecendo como uma rouquidão Feia disse então o menino examinandoa Vamos passear respondeu corando e pegandoo pela mão Passou pela sala sem parar avisou ao marido vamos sair e bateu a porta do apartamento Antônio mal teve tempo de levantar os olhos do livro e com surpresa espiava a sala já vazia Catarina chamou mas já se ouvia o ruído do elevador descendo Aonde foram perguntouse inquieto tossindo e assoando o nariz Porque sábado era seu mas ele queria que sua mulher e seu filho estivessem em casa enquanto ele tomava o seu sábado Catarina chamou aborrecido embora soubesse que ela não poderia mais ouvilo Levantouse foi à janela e um segundo depois enxergou sua mulher e seu filho na calçada Os dois haviam parado a mulher talvez decidindo o caminho a tomar E de súbito pondo se em marcha Por que andava ela tão forte segurando a mão da criança pela janela via sua mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa com os olhos fixos adiante e mesmo sem ver o homem adivinhava sua boca endurecida A criança não se sabia por que obscura compreensão também olhava fixo para a frente surpreendida e ingênua Vistas de cima as duas figuras perdiam a perspectiva familiar pareciam achatadas ao solo e mais escuras à luz do mar Os cabelos da criança voavam O marido repetiuse a pergunta que mesmo sob a sua inocência de frase cotidiana inquietouo aonde vão Via preocupado que sua mulher guiava a criança e temia que neste momento em que ambos estavam fora de seu alcance ela transmitisse a seu filho mas o quê Catarina pensou Catarina esta criança ainda é inocente Em que momento é que a mãe apertando uma criança davalhe esta prisão de amor que se abateria para sempre sobre o futuro homem Mais tarde seu filho já homem sozinho estaria de pé diante desta mesma janela batendo dedos nesta vidraça preso Obrigado a responder a um morto Quem saberia jamais em que momento a mãe transferia ao filho a herança E com que sombrio prazer Agora mãe e filho compreendendose dentro do mistério partilhado Depois ninguém saberia de que negras raízes se alimenta a liberdade de um homem Catarina pensou com cólera a criança é inocente Tinham porém desaparecido pela praia O mistério partilhado Mas e eu e eu perguntou assustado Os dois tinham ido embora sozinhos E ele ficara Com o seu sábado E sua gripe No apartamento arrumado onde tudo corria bem Quem sabe se sua mulher estava fugindo com o filho da sala de luz bem regulada dos móveis bem escolhidos das cortinas e dos quadros fora isso o que ele lhe dera Apartamento de um engenheiro E sabia que se a mulher aproveitava da situação de um marido moço e cheio de futuro deprezavaa também com aqueles olhos sonsos fugindo com seu filho nervoso e magro O homem inquietouse Porque não poderia continuar a lhe dar senão mais sucesso E porque sabia que ela o ajudaria a conseguilo e odiaria o que conseguissem Assim era aquela calma mulher de trinta e dois anos que nunca falava propriamente como se tivesse vivido sempre As relações entre ambos eram tão tranquilas Às vezes ele procurava humilhála entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque sabia que ela detestava ser vista nua Por que precisava humilhála no entanto ele bem sabia que ela só seria de um homem enquanto fosse orgulhosa Mas tinha se habituado a tornála feminina deste modo humilhavaa com ternura e já agora ela sorria sem rancor Talvez de tudo isso tivessem nascido suas relações pacíficas e aquelas conversas em voz tranquila que faziam a atmosfera do lar para a criança Ou esta se irritava às vezes Às vezes o menino se irritava batia os pés gritava sob pesadelos De onde nascera esta criaturinha vibrante senão do que sua mulher e ele haviam cortado da vida diária Viviam tão tranquilos que se se aproximava um momento de alegria eles se olhavam rapidamente quase irônicos e os olhos de ambos diziam não vamos gastálo não vamos ridiculamente usálo Como se tivessem vivido desde sempre Mas ele a olhara da janela viraa andar depressa de mãos dadas com o filho e disserase ela está tomando o momento de alegria sozinha Sentirase frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela E ela conseguia tomar seus momentos sozinha Por exemplo que fizera sua mulher entre o trem e o apartamento não que a suspeitasse mas inquietavase A última luz da tarde estava pesada e abatiase com gravidade sobre os objetos As areias estalavam secas O dia inteiro estivera sob essa ameaça de irradiação Que nesse momento sem rebentar embora se ensurdecia cada vez mais e zumbia no elevador ininterrupto do edifício Quando Catarina voltasse eles jantariam afastando as mariposas O menino gritaria no primeiro sono Catarina interromperia um momento o jantar e o elevador não pararia por um instante sequer Não o elevador não pararia um instante Depois do jantar iremos ao cinema resolveu o homem Porque depois do cinema seria enfim noite e este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador COMEÇOS DE UMA FORTUNA Era uma daquelas manhãs que parecem suspensas no ar E que mais se assemelham à ideia que fazemos do tempo A varanda estava aberta mas a frescura se congelara fora e nada entrava do jardim como se qualquer transbordamento fosse uma quebra de harmonia Só algumas moscas brilhantes haviam penetrado na sala de jantar e sobrevoavam o açucareiro A essa hora Tijuca não havia despertado de todo Se eu tivesse dinheiro pensava Artur e um desejo de entesourar de possuir com tranquilidade dava a seu rosto um ar desprendido e contemplativo Não sou um jogador Deixe de tolices respondeu a mãe Não recomece com histórias de dinheiro Na realidade ele não tinha vontade de iniciar nenhuma conversa premente que terminasse em soluções Um pouco da mortificação do jantar da véspera sobre mesadas com o pai misturando autoridade e compreensão e a mãe misturando compreensão e princípios básicos um pouco da mortificação da véspera pedia no entanto prosseguimento Só que era inútil procurar em si a urgência de ontem Cada noite o sono parecia responder a todas as suas necessidades E de manhã ao contrário dos adultos que acordam escuros e barbados ele despertava cada vez mais imberbe Despenteado mas diferente da desordem do pai a quem parecia terem acontecido coisas durante a noite Também sua mãe saía do quarto um pouco desfeita e ainda sonhadora como se a amargura do sono tivesse lhe dado satisfação Até tomarem café todos estavam irritados ou pensativos inclusive a empregada Não era esse o momento de pedir coisas Mas para ele era uma necessidade pacífica a de estabelecer domínios de manhã cada vez que acordava era como se precisasse recuperar os dias anteriores Tanto o sono cortava suas amarras todas as noites Não sou um jogador nem um gastador Artur disse a mãe irritadíssima já me bastam as minhas preocupações Que preocupações perguntou ele com interesse A mãe olhouo seca como a um estranho No entanto ele era muito mais parente que seu pai que por assim dizer entrara na família Apertou os lábios Todo o mundo tem preocupações meu filho corrigiuse ela entrando então em nova modalidade de relações entre maternal e educadora E daí em diante sua mãe assumira o dia Dissiparase a espécie de individualidade com que acordava e Artur já podia contar com ela Desde sempre ou aceitavamno ou reduziamno a ser ele mesmo Em pequeno brincavam com ele jogavamno para o ar enchiamno de beijos e de repente ficavam individuais largavamno diziam gentilmente mas já intangíveis agora acabou e ele ficava todo vibrante de carícias com tantas gargalhadas ainda por dar Tornavase implicante mexia num e noutro com o pé cheio de uma cólera que no entanto se transformaria no mesmo instante em delícia em pura delícia se eles apenas quisessem Coma Artur concluiu a mãe e de novo ele já podia contar com ela Assim imediatamente tornouse menor e mais malcriado Eu também tenho as minhas preocupações mas ninguém liga Quando digo que preciso de dinheiro parece que estou pedindo para jogar ou para beber Desde quando é que o senhor admite que podia ser para jogar ou para beber disse o pai entrando na sala e encaminhandose para a cabeceira da mesa Ora essa que pretensão Ele não contara com a chegada do pai Desnorteado porém habituado começou Mas papai sua voz desafinou numa revolta que não chegava a ser indignada Como contrapeso a mãe já estava dominada mexendo tranquilamente o café com leite indiferente à conversa que parecia não passar de mais algumas moscas Afastavaas do açucareiro com mão mole Vá saindo que está na sua hora cortou o pai Artur virouse para sua mãe Mas esta passava manteiga no pão absorta e prazerosa Fugira de novo A tudo diria sim sem dar nenhuma importância Fechando a porta ele de novo tinha a impressão de que a cada momento entregavamno à vida Assim é que a rua parecia recebêlo Quando eu tiver minha mulher e meus filhos tocarei a campainha daqui e farei visitas e tudo será diferente pensou A vida fora de casa era completamente outra Além da diferença de luz como se somente saindo ele visse que tempo realmente fazia e que disposições haviam tomado as circunstâncias durante a noite além da diferença de luz havia a diferença do modo de ser Quando era pequeno a mãe dizia fora de casa ele é uma doçura em casa um demônio Mesmo agora atravessando o pequeno portão ele se tornara visivelmente mais moço e ao mesmo tempo menos criança mais sensível e sobretudo sem assunto Mas com um interesse dócil Não era uma pessoa que procurasse conversas mas se alguém lhe perguntava como agora menino de que lado fica a igreja ele se animava com suavidade inclinava o longo pescoço pois todos eram mais baixos que ele e informava atraído como se nisso houvesse uma troca de cordialidades e um campo aberto à curiosidade Ficou atento olhando a senhora dobrar a esquina em caminho da igreja pacientemente responsável pelo seu itinerário Mas dinheiro é feito pra gastar e você sabe com quê disselhe Carlinhos intenso Quero para comprar coisas respondeu um pouco vago Uma bicicletinha riu Carlinhos ofensivo corado na intriga Artur riu desagradado sem prazer Sentado na carteira esperou que o professor se erguesse O pigarro deste prefaciando o começo da aula foi o sinal habitual para os alunos se sentarem mais para trás abrirem os olhos com atenção e não pensarem em nada Em nada foi a resposta perturbada de Artur ao professor que o interpelava irritado Em nada era vagamente em conversas anteriores em decisões pouco definitivas sobre um cinema à tarde em em dinheiro Ele precisava de dinheiro Mas durante a aula obrigado a estar imóvel e sem nenhuma responsabilidade qualquer desejo tinha como base o repouso Você então não viu logo que Glorinha estava querendo ser convidada pro cinema disse Carlinhos e ambos olharam com curiosidade a menina que se afastava segurando a pasta Pensativo Artur continuou a andar ao lado do amigo olhando as pedras do chão Se você não tem dinheiro para duas entradas eu empresto você paga depois Pelo visto do momento em que tivesse dinheiro seria obrigado a empregálo em mil coisas Mas depois eu tenho que devolver a você e já estou devendo ao irmão de Antônio respondeu evasivo E então que é que tem explicou o outro prático e veemente E então pensou com uma pequena cólera e então pelo visto logo que alguém tem dinheiro aparecem os outros querendo aplicálo explicando como se perde dinheiro Pelo visto disse desviando do amigo a raiva pelo visto basta você ter uns cruzeirinhos que mulher logo fareja e cai em cima Os dois riram Depois disso ele ficou mais alegre mais confiante Sobretudo menos oprimido pelas circunstâncias Mas depois já era meiodia e qualquer desejo se tornava mais árido e mais duro de suportar Durante todo o almoço ele pensou com rispidez em fazer ou não fazer dívidas e sentiase um homem aniquilado Ou ele estuda demais ou não come bastante de manhã disse a mãe O fato é que acorda bemdisposto mas aparece para o almoço com essa cara pálida Fica logo com as feições duras é o primeiro sinal Não é nada é o desgaste natural do dia disse o pai bemhumorado Olhandose ao espelho do corredor antes de sair realmente era a cara de um desses rapazes que trabalham cansados e moços Sorriu sem mexer os lábios satisfeito no fundo dos olhos Mas à porta do cinema não pôde deixar de pedir emprestado a Carlinhos porque lá estava Glorinha com uma amiga Vocês preferem sentar na frente ou no meio perguntava Glorinha Diante disso Carlinhos pagou a entrada da amiga e Artur recebeu disfarçado o dinheiro da entrada de Glorinha Pelo visto o cinema está estragado disse de passagem para Carlinhos Arrependeuse logo depois de ter falado pois o colega mal ouvira ocupado com a menina Não era necessário diminuirse aos olhos do outro para quem uma sessão de cinema só tinha a ganhar com uma garota Na realidade o cinema só esteve estragado no começo Logo depois ele relaxou o corpo esqueceuse da presença ao lado e passou a ver o filme Somente perto do meio teve consciência de Glorinha e num sobressalto olhoua disfarçado Com um pouco de surpresa constatou que ela não era propriamente a exploradora que ele supusera lá estava Glorinha inclinada para a frente a boca aberta pela atenção Aliviado recostouse de novo na poltrona Mais tarde porém indagouse se tinha ou não sido explorado E sua angústia foi tão intensa que ele parou diante da vitrina com uma cara de horror O coração batia como um punho Além do rosto espantado solto no vidro da vitrina havia panelas e utensílios de cozinha que ele olhou com certa familiaridade Pelo visto fui concluiu e não conseguia sobrepor sua cólera ao perfil sem culpa de Glorinha Aos poucos a própria inocência da menina tornouse a sua culpa maior Então ela explorava explorava e depois ficava toda satisfeita vendo o filme Seus olhos se encheram de lágrimas Ingrata pensou ele escolhendo mal uma palavra de acusação Como a palavra era um símbolo de queixa mais do que de raiva ele se confundiu um pouco e sua raiva acalmouse Parecialhe agora de fora para dentro e sem nenhuma vontade que ela deveria ter pago daquele modo a entrada do cinema Mas diante dos livros e cadernos fechados seu rosto desanuviavase Deixou de ouvir as portas que batiam o piano da vizinha a voz da mãe no telefone Havia um grande silêncio no seu quarto como num cofre E o fim de tarde parecia com uma manhã Estava longe longe como um gigante que pudesse estar fora mantendo no aposento apenas os dedos absortos que viravam e reviravam um lápis Havia instantes em que respirava pesado como um velho A maior parte do tempo porém seu rosto mal aflorava o ar do quarto Já estudei gritou para a mãe que interpelava sobre o barulho da água Lavando cuidadosamente os pés na banheira ele pensou que a amiga de Glorinha era melhor que Glorinha Nem tinha procurado reparar se Carlinhos aproveitara ou não da outra A essa ideia saiu muito depressa da banheira e parou diante do espelho da pia Até que o ladrilho esfriou seus pés molhados Não não queria explicarse com Carlinhos e ninguém lhe diria como usar o dinheiro que teria e Carlinhos podia pensar que era com bicicletas mas se fosse o que é que tem e se nunca mas nunca quisesse gastar o seu dinheiro e cada vez ficasse mais rico que é que há está querendo briga você pensa que pode ser que você esteja muito ocupado com seus pensamentos disse a mãe interrompendoo mas ao menos coma o seu jantar e de vez em quando diga uma palavra Então ele em súbita volta à casa paterna Ora a senhora diz que na mesa não se fala ora quer que eu fale ora diz que não se fala com a boca cheia ora Olhe o modo como você fala com sua mãe disse o pai sem severidade Papai chamou Artur docilmente com as sobrancelhas franzidas papai como é promissórias Pelo visto disse o pai com prazer pelo visto o ginásio não serve para nada Coma mais batata Artur tentou a mãe inutilmente arrastar os dois homens para si Promissórias dizia o pai afastando o prato é assim digamos que você tenha uma dívida MISTÉRIO EM SÃO CRISTÓVÃO Numa noite de maio os jacintos rígidos perto da vidraça a sala de jantar de uma casa estava iluminada e tranquila Ao redor da mesa por um instante imobilizados achavamse o pai a mãe a avó três crianças e uma mocinha magra de dezenove anos O sereno perfumado de São Cristóvão não era perigoso mas o modo como as pessoas se agrupavam no interior da casa tornava arriscado o que não fosse o seio de uma família numa noite fresca de maio Nada havia de especial na reunião acabarase de jantar e conversavase ao redor da mesa os mosquitos em torno da luz O que tornava particularmente abastada a cena e tão desabrochado o rosto de cada pessoa é que depois de muitos anos quase se apalpava afinal o progresso nessa família pois numa noite de maio após o jantar eis que as crianças têm ido diariamente à escola o pai mantém os negócios a mãe trabalhou durante anos nos partos e na casa a mocinha está se equilibrando na delicadeza de sua idade e a avó atingiu um estado Sem se dar conta a família fitava a sala feliz vigiando o raro instante de maio e sua abundância Depois cada um foi para o seu quarto A velha estendeuse gemendo com benevolência O pai e a mãe fechadas todas as portas deitaramse pensativos e adormeceram As três crianças escolhendo as posições mais difíceis adormeceram em três camas como em três trapézios A mocinha na sua camisola de algodão abriu a janela do quarto e respirou todo o jardim com insatisfação e felicidade Perturbada pela umidade cheirosa deitouse prometendose para o dia seguinte uma atitude inteiramente nova que abalasse os jacintos e fizesse as frutas estremecerem nos ramos no meio de sua meditação adormeceu Passaramse horas E quando o silêncio piscava nos vagalumes as crianças penduradas no sono a avó ruminando um sonho difícil os pais cansados a mocinha adormecida no meio de sua meditação abriuse a casa de uma esquina e dela saíram três mascarados Um era alto e tinha a cabeça de um galo Outro era gordo e vestirase de touro E o terceiro mais novo por falta de ideias disfarçarase em cavalheiro antigo e pusera máscara de demônio através da qual surgiam seus olhos cândidos Os três mascarados atravessaram a rua em silêncio Quando passaram pela casa escura da família aquele que era um galo e tinha quase todas as ideias do grupo parou e disse Olha só Os companheiros tornados pacientes pela tortura da máscara olharam e viram uma casa e um jardim Sentindose elegantes e miseráveis esperaram resignados que o outro completasse o pensamento Afinal o galo acrescentou Podemos colher jacintos Os outros dois não responderam Aproveitaram a parada para se examinar desolados e procurar um meio de respirar melhor dentro da máscara Um jacinto para cada um pregar na fantasia concluiu o galo O touro agitouse inquieto à ideia de mais um enfeite a ter que proteger na festa Mas passado um instante em que os três pareciam pensar profundamente para resolver sem que na verdade pensassem em coisa alguma o galo adiantouse subiu ágil pela grade e pisou na terra proibida do jardim O touro seguiuo com dificuldade O terceiro apesar de hesitante num só pulo achouse no próprio centro dos jacintos com um baque amortecido que fez os três aguardarem assustados sem respirar o galo o touro e o cavalheiro do diabo perscrutaram o escuro Mas a casa continuava entre trevas e sapos E no jardim sufocado de perfume os jacintos estremeciam imunes Então o galo avançou Poderia colher o jacinto que estava à sua mão Os maiores porém que se erguiam perto de uma janela altos duros frágeis cintilavam chamandoo Para lá o galo se dirigiu na ponta dos pés e o touro e o cavalheiro acompanharamno O silêncio os vigiava Mal porém quebrara a haste do jacinto maior o galo interrompeuse gelado Os dois outros pararam num suspiro que os mergulhou em sono Atrás do vidro escuro da janela estava um rosto branco olhandoos O galo imobilizarase no gesto de quebrar o jacinto O touro quedarase de mãos ainda erguidas O cavalheiro exangue sob a máscara rejuvenescera até encontrar a infância e o seu horror O rosto atrás da janela olhava Nenhum dos quatro saberia quem era o castigo do outro Os jacintos cada vez mais brancos na escuridão Paralisados eles se espiavam A simples aproximação de quatro máscaras na noite de maio parecia ter percutido ocos recintos e mais outros e mais outros que sem o instante no jardim ficariam para sempre nesse perfume que há no ar e na imanência de quatro naturezas que o acaso indicara assinalando hora e lugar o mesmo acaso preciso de uma estrela cadente Os quatro vindos da realidade haviam caído nas possibilidades que tem uma noite de maio em São Cristóvão Cada planta úmida cada seixo os sapos roucos aproveitavam a silenciosa confusão para se disporem em melhor lugar tudo no escuro era muda aproximação Caídos na cilada eles se olhavam aterrorizados fora saltada a natureza das coisas e as quatro figuras se espiavam de asas abertas Um galo um touro o demônio e um rosto de moça haviam desatado a maravilha do jardim Foi quando a grande lua de maio apareceu Era um toque perigoso para as quatro imagens Tão arriscado que sem um som quatro mudas visões recuaram sem se desfitarem temendo que no momento em que não se prendessem pelo olhar novos territórios distantes fossem feridos e que depois da silenciosa derrocada restassem apenas os jacintos donos do tesouro do jardim Nenhum espectro viu o outro desaparecer porque todos se retiraram ao mesmo tempo vagarosos na ponta dos pés Mal porém se quebrara o círculo mágico de quatro livres da vigilância mútua a constelação se desfez com terror três vultos pularam como gatos as grades do jardim e um outro arrepiado e engrandecido afastouse de costas até o limiar de uma porta de onde num grito se pôs a correr Os três cavalheiros mascarados que por ideia funesta do galo pretendiam fazer uma surpresa num baile tão longe do carnaval foram um triunfo no meio da festa já começada A música interrompeuse e os dançarinos ainda enlaçados entre risos viram três mascarados ofegantes parar como indigentes à porta Afinal depois de várias tentativas os convidados tiveram que abandonar o desejo de tornálos os reis da festa porque assustados os três não se separavam um alto um gordo e um jovem um gordo um jovem e um alto desequilíbrio e união os rostos sem palavras embaixo de três máscaras que vacilavam independentes Enquanto isso a casa dos jacintos iluminarase toda A mocinha estava sentada na sala A avó com os cabelos brancos entrançados segurava o copo dágua a mãe alisava os cabelos escuros da filha enquanto o pai percorria a casa A mocinha nada sabia explicar parecia ter dito tudo no grito Seu rosto apequenarase claro toda a construção laboriosa de sua idade se desfizera ela era de novo uma menina Mas na imagem rejuvenescida de mais de uma época para o horror da família um fio branco aparecera entre os cabelos da fronte Como persistisse em olhar em direção da janela deixaramna sentada a repousar e com castiçais na mão estremecendo de frio nas camisolas saíram em expedição pelo jardim Em breve as velas se espalhavam dançando na escuridão Heras aclaradas se encolhiam os sapos saltavam iluminados entre os pés frutos se douravam por um instante entre as folhas O jardim despertado no sonho ora se engrandecia ora se extinguia borboletas voavam sonâmbulas Finalmente a velha boa conhecedora dos canteiros apontou o único sinal visível no jardim que se esquivava o jacinto ainda vivo quebrado no talo Então era verdade alguma coisa sucedera Voltaram iluminaram a casa toda e passaram o resto da noite a esperar Só as três crianças dormiam ainda mais profundamente A mocinha aos poucos recuperou sua verdadeira idade Somente ela não vivia a perscrutar Mas os outros que nada tinham visto tornaramse atentos e inquietos E como o progresso naquela família era frágil produto de muitos cuidados e de algumas mentiras tudo se desfez e teve que se refazer quase do princípio a avó de novo pronta a se ofender o pai e a mãe fatigados as crianças insuportáveis toda a casa parecendo esperar que mais uma vez a brisa da abastança soprasse depois de um jantar O que sucederia talvez noutra noite de maio O CRIME DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA Quando o homem atingiu a colina mais alto os sinos tocavam na cidade embaixo Viamse apenas os tetos irregulares das casas Perto dele estava a única árvore da chapada O homem estava de pé com um saco pesado na mão Olhou para baixo com olhos míopes Os católicos entravam devagar e miúdos na igreja e ele procurava ouvir as vozes esparsas das crianças espalhadas na praça Mas apesar da limpidez da manhã os sons mal alcançavam o planalto Via também o rio que de cima parecia imóvel e pensou é domingo Viu ao longe a montanha mais alta com as escarpas secas Não fazia frio mas ele ajeitou o paletó agasalhandose melhor Afinal pousou com cuidado o saco no chão Tirou os óculos talvez para respirar melhor porque com os óculos na mão respirou muito fundo A claridade batia nas lentes que enviaram sinais agudos Sem os óculos seus olhos piscaram claros quase jovens infamiliares Pôs de novo os óculos tornouse um senhor de meiaidade e pegou de novo no saco pesava como se fosse de pedra pensou Forçou a vista para perceber a correnteza do rio inclinou a cabeça para ouvir algum ruído o rio estava parado e apenas o som mais duro de uma voz atingiu por um instante a altura sim ele estava bem só O ar fresco era inóspito ele que morara numa cidade mais quente A única árvore da chapada balançava os ramos Ele olhoua Ganhava tempo Até que achou que não havia por que esperar mais E no entanto aguardava Certamente os óculos o incomodavam porque de novo os tirou respirou fundo e guardouos no bolso Abriu então o saco espiou um pouco Depois meteu dentro a mão magra e foi puxando o cachorro morto Todo ele se concentrava apenas na mão importante e ele mantinha os olhos profundamente fechados enquanto puxava Quando os abriu o ar estava ainda mais claro e os sinos alegres tocaram novamente chamando os fiéis para o consolo da punição O cachorro desconhecido estava à luz Então ele se pôs metodicamente a trabalhar Pegou no cachorro duro e negro depositouo numa baixa do terreno Mas como se já tivesse feito muito pôs os óculos sentouse ao lado do cão e começou a observar a paisagem Viu muito claramente e com certa inutilidade a chapada deserta Mas observou com precisão que estando sentado já não enxergava a cidadezinha embaixo Respirou de novo Remexeu no saco e tirou a pá E pensou no lugar que escolheria Talvez embaixo da árvore Surpreendeuse refletindo que embaixo da árvore enterraria este cão Mas se fosse o outro o verdadeiro cão enterráloia na verdade onde ele próprio gostaria de ser sepultado se estivesse morto no centro mesmo da chapada a encarar de olhos vazios o sol Então já que o cão desconhecido substituía o outro quis que ele para maior perfeição do ato recebesse precisamente o que o outro receberia Não havia nenhuma confusão na cabeça do homem Ele se entendia a si próprio com frieza sem nenhum fio solto Em breve por excesso de escrúpulo estava ocupado demais em procurar determinar rigorosamente o meio da chapada Não era fácil porque a única árvore se erguia num lado e tendose como falso centro dividia assimetricamente o planalto Diante da dificuldade o homem concedeu não era necessário enterrar no centro eu também enterraria o outro digamos bem onde eu estivesse neste mesmo instante em pé Porque se tratava de dar ao acontecimento a fatalidade do acaso a marca de uma ocorrência exterior e evidente no mesmo plano das crianças na praça e dos católicos entrando na igreja tratavase de tornar o fato ao máximo visível à superfície do mundo sob o céu Tratavase de exporse e de expor um fato e de não lhe permitir a forma íntima e impune de um pensamento À ideia de enterrar o cão onde estivesse nesse mesmo momento em pé o homem recuou com uma agilidade que seu corpo pequeno e singularmente pesado não permitia Porque lhe pareceu que sob os pés se desenhara o esboço da cova do cão Então ele começou a cavar ali mesmo com pá rítmica Às vezes se interrompia para tirar e de novo botar os óculos Suava penosamente Não cavou muito mas não porque quisesse poupar seu cansaço Não cavou muito porque pensou lúcido se fosse para o verdadeiro cão eu cavaria pouco enterráloia bem à tona Ele achava que o cão à superfície da terra não perderia a sensibilidade Afinal largou a pá pegou com delicadeza o cachorro desconhecido e pousouo na cova Que cara estranha o cão tinha Quando com um choque descobrira o cão morto numa esquina a ideia de enterrálo tornara seu coração tão pesado e surpreendido que ele nem sequer tivera olhos para aquele focinho duro e de baba seca Era um cão estranho e objetivo O cão era um pouco mais alto que o buraco cavado e depois de coberto com terra seria uma excrescência apenas sensível do planalto Era assim precisamente que ele queria Cobriu o cão com terra e aplainoua com as mãos sentindo com atenção e prazer sua forma nas palmas como se o alisasse várias vezes O cão era agora apenas uma aparência do terreno Então o homem se levantou sacudiu a terra das mãos e não olhou nenhuma vez mais a cova Pensou com certo gosto acho que fiz tudo Deu um suspiro fundo e um sorriso inocente de libertação Sim fizera tudo Seu crime fora punido e ele estava livre E agora ele podia pensar livremente no verdadeiro cão Pôsse então imediatamente a pensar no verdadeiro cão o que ele evitara até agora O verdadeiro cão que agora mesmo devia vagar perplexo pelas ruas do outro município farejando aquela cidade onde ele não tinha mais dono Pôsse então a pensar com dificuldade no verdadeiro cão como se tentasse pensar com dificuldade na sua verdadeira vida O fato do cachorro estar distante na outra cidade dificultava a tarefa embora a saudade o aproximasse da lembrança Enquanto eu te fazia à minha imagem tu me fazias à tua pensou então com auxílio da saudade Deite o nome de José para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma E tu como saber jamais que nome me deste Quanto me amaste mais do que te amei refletiu curioso Nós nos compreendíamos demais tu com o nome humano que te dei eu com o nome que me deste e que nunca pronunciaste senão com o olhar insistente pensou o homem sorrindo com carinho livre agora de se lembrar à vontade Lembrome de ti quando eras pequeno pensou divertido tão pequeno bonitinho e fraco abanando o rabo me olhando e eu surpreendendo em ti uma nova forma de ter minha alma Mas desde então já começavas a ser todos os dias um cachorro que se podia abandonar Enquanto isso nossas brincadeiras tornavamse perigosas de tanta compreensão lembrouse o homem satisfeito tu terminavas me mordendo e rosnando eu terminava jogando um livro sobre ti e rindo Mas quem sabe o que já significava aquele meu riso sem vontade Eras todos os dias um cão que se podia abandonar E como cheiravas as ruas pensou o homem rindo um pouco na verdade não deixaste pedra por cheirar Este era o teu lado infantil Ou era o teu verdadeiro cumprimento de ser cão e o resto apenas brincadeira de ser meu Porque eras irredutível E abanando tranquilo o rabo parecias rejeitar em silêncio o nome que eu te dera Ah sim eras irredutível eu não queria que comesses carne para que não ficasses feroz mas pulaste um dia sobre a mesa e entre os gritos felizes das crianças agarraste a carne e com uma ferocidade que não vem do que se come me olhaste mudo e irredutível com a carne na boca Porque embora meu nunca me cedeste nem um pouco de teu passado e de tua natureza E inquieto eu começava a compreender que não exigias de mim que eu cedesse nada da minha para te amar e isso começava a me importunar Era no ponto de realidade resistente das duas naturezas que esperavas que nos entendêssemos Minha ferocidade e a tua não deveriam se trocar por doçura era isso o que pouco a pouco me ensinavas e era isto também que estava se tornando pesado Não me pedindo nada me pedias demais De ti mesmo exigias que fosses um cão De mim exigias que eu fosse um homem E eu eu disfarçava como podia Às vezes sentado sobre as patas diante de mim como me espiavas Eu então olhava o teto tossia dissimulava olhava as unhas Mas nada te comovia tu me espiavas A quem irias contar Finge diziame eu finge depressa que és outro dá a falsa entrevista fazlhe um afago jogalhe um osso mas nada te distraía tu me espiavas Tolo que eu era Eu fremia de horror quando eras tu o inocente que eu me virasse e de repente te mostrasse meu rosto verdadeiro e eriçado atingido erguerteias até a porta ferido para sempre Oh eras todos os dias um cão que se podia abandonar Podiase escolher Mas tu confiante abanavas o rabo Às vezes tocado pela tua acuidade eu conseguia ver em ti a tua própria angústia Não a angústia de ser cão que era a tua única forma possível Mas a angústia de existir de um modo tão perfeito que se tornava uma alegria insuportável davas então um pulo e vinhas lamber meu rosto com amor inteiramente dado e certo perigo de ódio como se fosse eu quem pela amizade te houvesse revelado Agora estou bem certo de que não fui eu quem teve um cão Foste tu que tiveste uma pessoa Mas possuíste uma pessoa tão poderosa que podia escolher e então te abandonou Com alívio abandonoute Com alívio sim pois exigias com a incompreensão serena e simples de quem é um cão heroico que eu fosse um homem Abandonoute com uma desculpa que todos em casa aprovaram porque como poderia eu fazer uma viagem de mudança com bagagem e família e ainda mais um cão com a adaptação ao novo colégio e à nova cidade e ainda mais um cão Que não cabe em parte alguma disse Marta prática Que incomodará os passageiros explicou minha sogra sem saber que previamente me justificava e as crianças choraram e eu não olhava nem para elas nem para ti José Mas só tu e eu sabemos que te abandonei porque eras a possibilidade constante do crime que eu nunca tinha cometido A possibilidade de eu pecar o que no disfarçado de meus olhos já era pecado Então pequei logo para ser logo culpado E este crime substitui o crime maior que eu não teria coragem de cometer pensou o homem cada vez mais lúcido Há tantas formas de ser culpado e de perderse para sempre e de se trair e de não se enfrentar Eu escolhi a de ferir um cão pensou o homem Porque eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem Porque eu sabia que esse crime não era punível Sentado na chapada sua cabeça matemática estava fria e inteligente Só agora ele parecia compreender em toda sua gélida plenitude que fizera com o cão algo realmente impune e para sempre Pois ainda não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições Um homem ainda conseguia ser mais esperto que o Juízo Final Este crime ninguém o condenava Nem a Igreja Todos são meus cúmplices José Eu teria que bater de porta em porta e mendigar que me acusassem e me punissem todos me bateriam a porta com uma cara de repente endurecida Este crime ninguém me condena Nem tu José me condenarias Pois bastaria esta pessoa poderosa que sou escolher de te chamar e do teu abandono nas ruas num pulo me lamberias a face com alegria e perdão Eu te daria a outra face a beijar O homem tirou os óculos respirou botouos de novo Olhou a cova coberta Onde ele enterrara um cão desconhecido em tributo ao cão abandonado procurando enfim pagar a dívida que inquietantemente ninguém lhe cobrava Procurando punirse com um ato de bondade e ficar livre de seu crime Como alguém dá uma esmola para enfim poder comer o bolo por causa do qual o outro não comeu o pão Mas como se José o cão abandonado exigisse dele muito mais que a mentira como se exigisse que ele num último arranco fosse um homem e como homem assumisse o seu crime ele olhava a cova onde enterrara a sua fraqueza e a sua condição E agora mais matemático ainda procurava um meio de não se ter punido Ele não devia ser consolado Procurava friamente um modo de destruir o falso enterro do cão desconhecido Abaixouse então e solene calmo com movimentos simples desenterrou o cão O cão escuro apareceu afinal inteiro infamiliar com a terra nos cílios os olhos abertos e cristalizados E assim o professor de matemática renovara o seu crime para sempre O homem então olhou para os lados e para o céu pedindo testemunha para o que fizera E como se não bastasse ainda começou a descer as escarpas em direção ao seio de sua família O BÚFALO Mas era primavera Até o leão lambeu a testa glabra da leoa Os dois animais louros A mulher desviou os olhos da jaula onde só o cheiro quente lembrava a carnificina que ela viera buscar no Jardim Zoológico Depois o leão passeou enjubado e tranquilo e a leoa lentamente reconstituiu sobre as patas estendidas a cabeça de uma esfinge Mas isso é amor é amor de novo revoltouse a mulher tentando encontrarse com o próprio ódio mas era primavera e dois leões se tinham amado Com os punhos nos bolsos do casaco olhou em torno de si rodeada pelas jaulas enjaulada pelas jaulas fechadas Continuou a andar Os olhos estavam tão concentrados na procura que sua vista às vezes se escurecia num sono e então ela se refazia como na frescura de uma cova Mas a girafa era uma virgem de tranças recémcortadas Com a tola inocência do que é grande e leve e sem culpa A mulher do casaco marrom desviou os olhos doente doente Sem conseguir diante da aérea girafa pousada diante daquele silencioso pássaro sem asas sem conseguir encontrar dentro de si o ponto pior de sua doença o ponto mais doente o ponto de ódio ela que fora ao Jardim Zoológico para adoecer Mas não diante da girafa que mais era paisagem que um ente Não diante daquela carne que se distraíra em altura e distância a girafa quase verde Procurou outros animais tentava aprender com eles a odiar O hipopótamo o hipopótamo úmido O rolo roliço de carne carne redonda e muda esperando outra carne roliça e muda Não Pois havia tal amor humilde em se manter apenas carne tal doce martírio em não saber pensar Mas era primavera e apertando o punho no bolso do casaco ela mataria aqueles macacos em levitação pela jaula macacos felizes como ervas macacos se entrepulando suaves a macaca com olhar resignado de amor e a outra macaca dando de mamar Ela os mataria com quinze secas balas os dentes da mulher se apertaram até o maxilar doer A nudez dos macacos O mundo que não via perigo em ser nu Ela mataria a nudez dos macacos Um macaco também a olhou segurando as grades os braços descarnados abertos em crucifixo o peito pelado exposto sem orgulho Mas não era no peito que ela mataria era entre os olhos do macaco que ela mataria era entre aqueles olhos que a olhavam sem pestanejar De repente a mulher desviou o rosto é que os olhos do macaco tinham um véu branco gelatinoso cobrindo a pupila nos olhos a doçura da doença era um macaco velho a mulher desviou o rosto trancando entre os dentes um sentimento que ela não viera buscar apressou os passos ainda voltou a cabeça espantada para o macaco de braços abertos ele continuava a olhar para a frente Oh não não isso pensou E enquanto fugia disse Deus me ensine somente a odiar Eu te odeio disse ela para um homem cujo crime único era o de não amála Eu te odeio disse muito apressada Mas não sabia sequer como se fazia Como cavar na terra até encontrar a água negra como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a si mesma Andou pelo Jardim Zoológico entre mães e crianças Mas o elefante suportava o próprio peso Aquele elefante inteiro a quem fora dado com uma simples pata esmagar Mas que não esmagava Aquela potência que no entanto se deixaria docilmente conduzir a um circo elefante de crianças E os olhos numa bondade de velho presos dentro da grande carne herdada O elefante oriental Também a primavera oriental e tudo nascendo tudo escorrendo pelo riacho A mulher então experimentou o camelo O camelo em trapos corcunda mastigando a si próprio entregue ao processo de conhecer a comida Ela se sentiu fraca e cansada há dois dias mal comia Os grandes cílios empoeirados do camelo sobre olhos que se tinham dedicado à paciência de um artesanato interno A paciência a paciência a paciência só isso ela encontrava na primavera ao vento Lágrimas encheram os olhos da mulher lágrimas que não correram presas dentro da paciência de sua carne herdada Somente o cheiro de poeira do camelo vinha de encontro ao que ela viera ao ódio seco não a lágrimas Aproximouse das barras do cercado aspirou o pó daquele tapete velho onde sangue cinzento circulava procurou a tepidez impura o prazer percorreu suas costas até o malestar mas não ainda o malestar que ela viera buscar No estômago contraiuse em cólica de fome a vontade de matar Mas não o camelo de estopa Oh Deus quem será meu par neste mundo Então foi sozinha ter a sua violência No pequeno parque de diversões do Jardim Zoológico esperou meditativa na fila de namorados pela sua vez de se sentar no carro da montanharussa E ali estava agora sentada quieta no casaco marrom O banco ainda parado a maquinaria da montanharussa ainda parada Separada de todos no seu banco parecia estar sentada numa Igreja Os olhos baixos viam o chão entre os trilhos O chão onde simplesmente por amor amor amor não o amor onde por puro amor nasciam entre os trilhos ervas de um verde leve tão tonto que a fez desviar os olhos em suplício de tentação A brisa arrepioulhe os cabelos da nuca ela estremeceu recusando em tentação recusando sempre tão mais fácil amar Mas de repente foi aquele voo de vísceras aquela parada de um coração que se surpreende no ar aquele espanto a fúria vitoriosa com que o banco a precipitava no nada e imediatamente a soerguia como uma boneca de saia levantada o profundo ressentimento com que ela se tornou mecânica o corpo automaticamente alegre o grito das namoradas seu olhar ferido pela grande surpresa a ofensa faziam dela o que queriam a grande ofensa o grito das namoradas a enorme perplexidade de estar espasmodicamente brincando faziam dela o que queriam de repente sua candura exposta Quantos minutos os minutos de um grito prolongado de trem na curva e a alegria de um novo mergulho no ar insultandoa como um pontapé ela dançando descompassada ao vento dançando apressada quisesse ou não quisesse o corpo sacudiase como o de quem ri aquela sensação de morte às gargalhadas morte sem aviso de quem não rasgou antes os papéis da gaveta não a morte dos outros a sua sempre a sua Ela que poderia ter aproveitado o grito dos outros para dar seu urro de lamento ela se esqueceu ela só teve espanto E agora este silêncio também súbito Estavam de volta a terra a maquinaria de novo inteiramente parada Pálida jogada fora de uma Igreja olhou a terra imóvel de onde partira e aonde de novo fora entregue Ajeitou as saias com recato Não olhava para ninguém Contrita como no dia em que no meio de todo o mundo tudo o que tinha na bolsa caíra no chão e tudo o que tivera valor enquanto secreto na bolsa ao ser exposto na poeira da rua revelara a mesquinharia de uma vida íntima de precauções pó de arroz recibo canetatinteiro ela recolhendo do meiofio os andaimes de sua vida Levantouse do banco estonteada como se estivesse se sacudindo de um atropelamento Embora ninguém prestasse atenção alisou de novo a saia fazia o possível para que não percebessem que estava fraca e difamada protegia com altivez os ossos quebrados Mas o céu lhe rodava no estômago vazio a terra que subia e descia a seus olhos ficava por momentos distante a terra que é sempre tão difícil Por um momento a mulher quis num cansaço de choro mudo estender a mão para a terra difícil sua mão se estendeu como a de um aleijado pedindo Mas como se tivesse engolido o vácuo o coração surpreendido Só isso Só isto Da violência só isto Recomeçou a andar em direção aos bichos O quebranto da montanharussa deixaraa suave Não conseguiu ir muito adiante teve que apoiar a testa na grade de uma jaula exausta a respiração curta e leve De dentro da jaula o quati olhoua Ela o olhou Nenhuma palavra trocada Nunca poderia odiar o quati que no silêncio de um corpo indagante a olhava Perturbada desviou os olhos da ingenuidade do quati O quati curioso lhe fazendo uma pergunta como uma criança pergunta E ela desviando os olhos escondendo dele a sua missão mortal A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava A jaula era sempre do lado onde ela estava deu um gemido que pareceu vir da sola dos pés Depois outro gemido Então nascida do ventre de novo subiu implorante em onda vagarosa a vontade de matar seus olhos molharamse gratos e negros numa quase felicidade não era o ódio ainda por enquanto apenas a vontade atormentada de ódio como um desejo à promessa do desabrochamento cruel um tormento como de amor a vontade de ódio se prometendo sagrado sangue e triunfo a fêmea rejeitada espiritualizarase na grande esperança Mas onde onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ter o seu próprio ódio o ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava onde aprender a odiar para não morrer de amor E com quem O mundo de primavera o mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas que arranham mas não dói oh não mais esse mundo não mais esse perfume não esse arfar cansado não mais esse perdão em tudo o que um dia vai morrer como se fora para dar se Nunca o perdão se aquela mulher perdoasse mais uma vez uma só vez que fosse sua vida estaria perdida deu um gemido áspero e curto o quati sobressaltouse enjaulada olhou em torno de si e como não era pessoa em quem prestassem atenção encolheuse como uma velha assassina solitária uma criança passou correndo sem vêla Recomeçou então a andar agora apequenada dura os punhos de novo fortificados nos bolsos a assassina incógnita e tudo estava preso no seu peito No peito que só sabia resignar se que só sabia suportar só sabia pedir perdão só sabia perdoar que só aprendera a ter a doçura da infelicidade e só aprendera a amar a amar a amar Imaginar que talvez nunca experimentasse o ódio de que sempre fora feito o seu perdão fez seu coração gemer sem pudor ela começou a andar tão depressa que parecia ter encontrado um súbito destino Quase corria os sapatos a desequilibravam e davamlhe uma fragilidade de corpo que de novo a reduzia a fêmea de presa os passos tomaram mecanicamente o desespero implorante dos delicados ela que não passava de uma delicada Mas pudesse tirar os sapatos poderia evitar a alegria de andar descalça como não amar o chão em que se pisa Gemeu de novo parou diante das barras de um cercado encostou o rosto quente no enferrujado frio do ferro De olhos profundamente fechados procurava enterrar a cara entre a dureza das grades a cara tentava uma passagem impossível entre barras estreitas assim como antes vira o macaco recémnascido buscar na cegueira da fome o peito da macaca Um conforto passageiro veio lhe do modo como as grades pareceram odiála opondolhe a resistência de um ferro gelado Abriu os olhos devagar Os olhos vindos de sua própria escuridão nada viram na desmaiada luz da tarde Ficou respirando Aos poucos recomeçou a enxergar aos poucos as formas foram se solidificando ela cansada esmagada pela doçura de um cansaço Sua cabeça ergueuse em indagação para as árvores de brotos nascendo os olhos viram as pequenas nuvens brancas Sem esperança ouviu a leveza de um riacho Abaixou de novo a cabeça e ficou olhando o búfalo ao longe Dentro de um casaco marrom respirando sem interesse ninguém interessado nela ela não interessada em ninguém Certa paz enfim A brisa mexendo nos cabelos da testa como nos de pessoa recémmorta de testa ainda suada Olhando com isenção aquele grande terreno seco rodeado de grades altas o terreno do búfalo O búfalo negro estava imóvel no fundo do terreno Depois passeou ao longe com os quadris estreitos os quadris concentrados O pescoço mais grosso que as ilhargas contraídas Visto de frente a grande cabeça mais larga que o corpo impedia a visão do resto do corpo como uma cabeça decepada E na cabeça os cornos De longe ele passeava devagar com seu torso Era um búfalo negro Tão preto que a distância a cara não tinha traços Sobre o negror a alvura erguida dos cornos A mulher talvez fosse embora mas o silêncio era bom no cair da tarde E no silêncio do cercado os passos vagarosos a poeira seca sob os cascos secos De longe no seu calmo passeio o búfalo negro olhoua um instante No instante seguinte a mulher de novo viu apenas o duro músculo do corpo Talvez não a tivesse olhado Não podia saber porque das trevas da cabeça ela só distinguia os contornos Mas de novo ele pareceu tê la visto ou sentido A mulher aprumou um pouco a cabeça recuoua ligeiramente em desconfiança Mantendo o corpo imóvel a cabeça recuada ela esperou E mais uma vez o búfalo pareceu notála Como se ela não tivesse suportado sentir o que sentira desviou subitamente o rosto e olhou uma árvore Seu coração não bateu no peito o coração batia oco entre o estômago e os intestinos O búfalo deu outra volta lenta A poeira A mulher apertou os dentes o rosto todo doeu um pouco O búfalo com o torso preto No entardecer luminoso era um corpo enegrecido de tranquila raiva a mulher suspirou devagar Uma coisa branca espalharase dentro dela branca como papel fraca como papel intensa como uma brancura A morte zumbia nos seus ouvidos Novos passos do búfalo trouxeramna a si mesma e em novo longo suspiro ela voltou à tona Não sabia onde estivera Estava de pé muito débil emergida daquela coisa branca e remota onde estivera E de onde olhou de novo o búfalo O búfalo agora maior O búfalo negro Ah disse de repente com uma dor O búfalo de costas para ela imóvel O rosto esbranquiçado da mulher não sabia como chamálo Ah disse provocandoo Ah disse ela Seu rosto estava coberto de mortal brancura o rosto subitamente emagrecido era de pureza e veneração Ah instigouo com os dentes apertados Mas de costas para ela o búfalo inteiramente imóvel Apanhou uma pedra no chão e jogou para dentro do cercado A imobilidade do torso mais negra ainda se aquietou a pedra rolou inútil Ah disse sacudindo as barras Aquela coisa branca se espalhava dentro dela viscosa como uma saliva O búfalo de costas Ah disse Mas dessa vez porque dentro dela escorria enfim um primeiro fio de sangue negro O primeiro instante foi de dor Como se para que escorresse este sangue se tivesse contraído o mundo Ficou parada ouvindo pingar como numa grota aquele primeiro óleo amargo a fêmea desprezada Sua força ainda estava presa entre barras mas uma coisa incompreensível e quente enfim incompreensível acontecia uma coisa como uma alegria sentida na boca Então o búfalo voltouse para ela O búfalo voltouse imobilizouse e a distância encaroua Eu te amo disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querêla Eu te odeio disse implorando amor ao búfalo Enfim provocado o grande búfalo aproximouse sem pressa Ele se aproximava a poeira erguiase A mulher esperou de braços pendidos ao longo do casaco Devagar ele se aproximava Ela não recuou um só passo Até que ele chegou às grades e ali parou Lá estavam o búfalo e a mulher frente a frente Ela não olhou a cara nem a boca nem os cornos Olhou seus olhos E os olhos do búfalo os olhos olharam seus olhos E uma palidez tão funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente De pé em sono profundo Olhos pequenos e vermelhos a olhavam Os olhos do búfalo A mulher tonteou surpreendida lentamente meneava a cabeça O búfalo calmo Lentamente a mulher meneava a cabeça espantada com o ódio com que o búfalo tranquilo de ódio a olhava Quase inocentada meneando uma cabeça incrédula a boca entreaberta Inocente curiosa entrando cada vez mais fundo dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam ingênua num suspiro de sono sem querer nem poder fugir presa ao mútuo assassinato Presa como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara Presa enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo Copyright 1960 Clarice Lispector Paulo Gurgel Valente e Pedro Gurgel Valente Direitos desta edição reservados à EDITORA ROCCO LTDA Av Presidente Wilson 231 8º andar 20030021 Rio de Janeiro RJ Tel 21 35252000 Fax 21 35252001 roccoroccocombr wwwroccocombr Arquivo ePub produzido pela Simplíssimo Livros Edição digital fevereiro 2013 CIPBrasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ L753L Lispector Clarice 19201977 Laços de família recurso eletrônico Clarice Lispector 1ed Rio de Janeiro Rocco Digital 2013 recurso digital ISBN 9788581221939 recurso eletrônico 1 Conto brasileiro 2 Livros eletrônicos I Título CDD 86993 130984 CDU 8211343813 A Autora Uma escritora decidida a desvendar as profundezas da alma Essa é Clarice Lispector que escolheu a literatura como bússola em sua busca pela essência humana Sua tentativa de transcender o cotidiano revelase em personagens na iminência de um milagre uma explosão ou uma singela descoberta Todos suscetíveis aos acontecimentos do dia a dia Vidas que se perdem e se encontram em labirintos formados por uma linguagem única meticulosamente estruturada E é por essa linguagem que Clarice Lispector constrói uma obra de caráter tão profundo quanto universal