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Sociologia
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As Etapas do Pensamento Sociológico Raymond Aron Martins Fontes R lucidez elegante T ècrttilwagijids e a 5 Vgfrm eftção clara nesta ry Vv t u í i i j J u c í c o v v O Jr W i estiltfMn R ftrflViia L de p araçap tar os0sOecfos esseTvfeiais f Z h W fr y s y i tfe um peOrsa JoÇàjs c acfe rísticas tte irm i serçi p r i c t í a rttf r 2 V fttçrk i ra b rá n íftô J S j t VjjftityjV conVibuiçãoranifrcatiiígKri A 1 p araafiiríó n a da ieciofòqi3 camb para uma W na í na ÍS M A I â q l s t a o l ó g t f U iw m N t o f p m íS li fTrtuitü alértlías ppsjCes o n s í s t c ç i t i ç 1 casWçüc BBèVlérrcas í x L C í í i a t í t 0 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Raymond Aron Tradução SÉRGIO BATH Martins Fontes São Paulo 2000 Título original LES ÉTAPES D E LA PENSÉE SOCiOLOGIQU E C opyright bv Éditions Gallimard 1967 Copyright Livraria M artins Fontes Editora Lida São Paulo 1982 para a presente edição 5â edição março de 1999 2 tiragem junho de 2000 Tradução SÉRGIO BATH Revisão da tradução Aureo Pereira de Araújo Revisão gráfica Ivete Batista dos Santos Lígia Silva Produção gráfica Geraldo Alves Dados Internacionais de Catalogação na Publicação C1P Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Aron Raym ond 19051983 As etapas do pensam ento sociológico Raymond A ro n tradução de Scrgio Bath 5 ed São Paulo M artins Fontes 1999 Ensino superior Título original Les étapes de la pensée sociologique Bibliografia ISBN 8533609361 1 Sociologia H istória 1 Título II Série 983332CDD30109 índices para catálogo sistemático 1 Sociologia História 30109 Todos os direitos desta edição reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda Rua Conselheiro Ramalho 330340 01325000 São Paulo SP Brasil Tel II 2393677 Fax 1131056867 email infomartinsfontescom httpwwwmartinsfontescom índice Introdução 1 Nota da edição brasileira 13 PRIMEIRA PARTE OS FUNDADORES CharlesLouis de Secondat barão de Montesquieu 17 A teoria política 19 Da teoria política à sociologia 31 Os fatos e os valores 40 As interpretações possíveis 48 Indicações biográficas 53 Notas 55 Bibliografia 62 Auguste Com te 65 As três etapas do pensamento de Comte 65 A sociedade industrial 72 A sociologia ciência da humanidade 80 Natureza humana e ordem social 88 Da filosofia à religião 96 Indicações biográficas 105 Notas 108 Bibliografia 122 Karl M arx125 A análise socioeconômica do capitalismo129 O capital137 Os equívocos da filosofia marxista 149 Os equívocos da sociologia marxista161 Sociologia e economia170 Conclusão178 Indicações biográficas 181 Notas183 Bibliografia194 Alexis de Tocqueville201 Democracia e liberdade 202 A experiência americana207 O drama político da França 216 O tipo ideal da sociedade democrática226 Indicações biográficas 237 Notas239 Bibliografia245 Os sociólogos e a Revolução de 1848247 Auguste Comte e a Revolução de 1848 248 Alexis de Tocqueville e a Revolução de 1848250 Karl Marx e a Revolução de 1848256 Cronologia da Revolução de 1848 e da II República266 Notas269 Indicações bibliográficas sobre a Revolução de 1848273 SEGUNDA PARTE A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO Introdução da segunda parte 277 Émile Durkheim 287 Da divisão do trabalho social287 O suicídio 1897297 As formas elementares da vida religiosa 1912310 As regras do método sociológico 324 Sociologia e socialismo 334 Sociologia e filosofia348 Indicações biográficas 358 Notas360 Bibliografia 363 Vilfredo Pareto 367 A ação nãológica e a ciência368 Das expressões aos sentimentos379 Resíduos e derivações387 A síntese sociológica404 Ciência e política421 Uma obra contestada428 Indicações biográficas 435 Notas437 Bibliografia 444 Max Weber447 Teoria da ciência448 História e sociologia458 As antinomias da condição humana467 A sociologia da religião 473 Economia e sociedade 491 Weber nosso contemporâneo503 Indicações biográficas 509 Notas512 Bibliografia 521 Conclusão525 Notas536 Introdução Consideradas no passado as ciências libertaram o espírito humano da tutela exercida sobre ele pela teologia e pela metafísica e que indispensá vel à sua infância tendia a prolongála indefinidamente Consideradas no presente elas devem servir seja pelos seus métodos seja por seus resulta dos gerais para determinar a reorganização das teorias sociais Conside radas no futuro serão uma vez sistematizadas a base espiritual permanen te da ordem social enquanto dure a atividade da nossa espécie no planeta Auguste Comte Considérations phílosophiques sur les sciences et les savants 1825 in Système de politique positive t IV Apêndice p 161 Este livro talvez devesse dizer os cursos que lhe deram origem me foi sugerido pela experiência dos congressos mundiais da Associação Interna cional de Sociologia Desde que nossos colegas soviéticos passaram a partici par esses congressos ofereceram uma oportunidade única de ouvir o diálogo entre sociólogos que se baseiam numa doutrina do século passado e que apre sentam suas idéias fundamentais como conquistas definitivas da ciência e de outro lado sociólogos formados nas técnicas modernas de observação e expe rimentação na prática da investigação por meio de sondagens questionários ou entrevistas Devemos considerar os sociólogos soviéticos aqueles que conhe cem as leis da história como pertencendo á mesma profissão científica dos so ciólogos ocidentais Ou devemos vêlos como vítimas de um regime que não pode separar a ciência da ideologia porque transformou uma ideologia resí duo de ciência passada em verdade de Estado que os guardiões da fé batiza ram de ciência Esse diálogo de cientistas ou de professores me fascinava ainda mais por que se confundia com um diálogo históricopolitico e porque os interlocutores principais por caminhos diferentes chegavam sob certos aspectos a resulta dos comparáveis A sociologia de inspiração marxista tende a uma interpreta ção de conjunto das sociedades modernas a fim de situálas no contexto da his tória universal O capitalismo sucede o regime feudal da mesma forma como este sucedeu a economia antiga e será sucedido pelo socialismo A maisvalia foi retirada por uma minoria em prejuízo das massas trabalhadoras no inicio por meio da escravidão depois graças à servidão nos nossos dias graças ao tra balho assalariado No futuro após o regime de trabalho assalariado desapare cerá a maisvalia e com ela os antagonismos de classes Só o modo de produ ção asiático um dos cinco modos de produção enumerados por Marx no pre 2 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO fácio da Contribuição à crítica da economia política é esquecido quem sabe as querelas entre russos e chineses incitarão os primeiros a atribuir ao conceito de modo de produção asiático e de economia hidráulica a importância que lhe dão há alguns anos os sociólogos ocidentais A China Popular é vulnerável a esse conceito como nunca a União Soviética o foi O marxismo contém uma estática social ao lado de uma dinâmica social para usar os termos de Auguste Comte As leis da evolução histórica se funda mentam numa teoria das estruturas sociais e na análise das forças e das rela ções de produção teoria e análises que se baseiam por sua vez numa filosofia conhecida corretamente como materialismo dialético Uma doutrina como essa é ao mesmo tempo sintética ou global histórica e determinista Comparada às ciências sociais particulares caracterizase por uma intenção totalizante e abrange o conjunto ou o todo de cada sociedade apreendida em seu movimento Por conseguinte ela conhece no essencial o que é assim como o que será Ela anuncia o surgimento inevitável de um determi nado modo de produção o socialismo Progressista e ao mesmo tempo determinis ta não duvida de que o regime futuro seja superior aos regimes do passado o desenvolvimento das forças de produção não é simultaneamente a mola da evo lução e a garantia do progresso A maior parte dos sociólogos ocidentais e entre eles principalmente os norteamericanos ouvem com indiferença nos congressos a repetição monóto na das idéias marxistas simplificadas e vulgarizadas Também em seus escritos eles não as discutem mais Ignoram as leis da sociedade e da história as leis da macrossociologia no duplo sentido que pode ter o verbo ignorar não as conhe cem e são indiferentes a elas Não acreditam na veracidade dessas leis Não acre ditam que a sociologia científica seja capaz de formulálas e de demonstrálas que tenha interesse em pesquisálas A sociologia norteamericana que a partir de 1945 exerceu uma influência predominante no desenvolvimento dos estudos sociológicos na Europa e em to dos os países nãocomunistas é essencialmente analítica e empírica Multiplica investigações por meio de questionários e de entrevistas para determinar de que modo vivem pensam julgam os homens em sociedade ou se preferirmos os indivíduos socializados Essa sociedade quer saber como votam os cidadãos nas diversas eleições quais são as variáveis idade sexo lugar de residência cate goria socioprofissional nível de renda religião etc que influenciam o com portamento eleitoral Até que ponto por exemplo esse comportamento é deter minado ou modificado pela propaganda dos candidatos Em que proporção os eleitores mudam de opinião durante a campanha eleitoral Quais são os agen tes dessa mudança Eis aí algumas das questões que poderá propor o sociólo go que estude as eleições presidenciais nos Estados Unidos ou na França ques tões que só podem ser respondidas por pesquisas desse tipo Seria fácil dar INTRODUÇÃO 3 outros exemplos os relativos a operários camponeses relações conjugais rá dio e televisão e elaborando uma lista interminável de questões que o soció logo formula ou pode formular a respeito desses diversos tipos de indivíduos socializados de categorias sociais ou grupos institucionalizados ou não institu cionalizados A finalidade da pesquisa é precisar a correlação entre variáveis a ação de cada uma delas sobre o comportamento de uma ou outra categoria social de constituir não a priori mas mediante o próprio método cientifico os grupos reais os conjuntos definidos seja pela existência de maneiras comuns de agir seja pela adesão a um mesmo sistema de valores ou por uma tendência ã homeóstase em que qualquer alteração súbita tende a provocar reações com pensatórias Não seria correto dizer que esse tipo de sociologia por ser analítica e em pírica só leva em consideração os indivíduos com suas intenções e motivos sen timentos e aspirações Ela pode ao contrário atingir conjuntos ou grupos reais classes latentes que são ignoradas por aqueles que pertencem a elas e que cons tituem totalidades concretas A verdade é que a realidade coletiva parece aos indivíduos menos transcendente do que imanente Só os indivíduos socializados podem ser objeto da observação sociológica existem sociedades não uma socie dade e a sociedade global é composta por uma multiplicidade de sociedades A antítese de uma sociologia sintética e histórica que de fato não passa de uma ideologia e de uma sociologia empírica e analítica que seria em últi ma análise uma mera sociografia é caricatural Já o era há dez anos quando pensei em escrever este livro e hoje ela o é ainda mais mas nos congressos de sociólogos as próprias escolas científicas se caricaturizam levadas que são pela lógica do diálogo e da polêmica A oposição entre ideologia e sociografia não exclui de modo algum que a sociologia tenha funções análogas na União Soviética e nos Estados Unidos Nos dois países a sociologia deixou de ser crítica na acepção marxista do ter mo não questiona a ordem social nos seus traços fundamentais a sociologia marxista porque justifica o poder do Estado e do partido ou do proletariado a sociologia analítica dos Estados Unidos porque admite implicitamente os prin cípios da sociedade norteamericana A sociologia marxista do século XIX era revolucionária saudava antecipa damente a revolução que deveria destruir o regime capitalista Hoje na União Soviética a revolução salvadora não pertence mais ao futuro mas ao passado O rompimento decisivo profetizado por Marx já se realizou Desde então por um processo ao mesmo tempo inevitável e dialético houve uma inversão pas sando do a favor ao contra Uma sociologia que nasceu de uma intenção revolucionária serve de agora em diante para justificar a ordem estabelecida Não há dúvida de que ela mantém ou julga manter uma função revolucionária com relação às sociedades que não são governadas por um partido marxista 4 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO leninista Conservadora na União Soviética a sociologia marxista é revolucio nária ou se esforça por sêlo na França e nos Estados Unidos Mas nossos colegas dos países do Leste conhecem pouco e há dez anos conheciam menos ainda os países que ainda não fizeram sua revolução As circunstâncias os obri gavam a reservar seu rigor para países que eles eram incapazes de estudar dire tamente tratando com uma indulgência sem limites seu próprio meio social A sociologia empírica e analítica dos Estados Unidos não constitui uma ideologia do Estado menos ainda uma exaltação consciente e voluntária da sociedade norteamericana Pareceme que os sociólogos americanos são em sua maioria liberais no sentido em que ali se usa o termo São mais democra tas do que republicanos favoráveis à mobilidade social e á integração dos ne gros hostis às discriminações raciais ou religiosas Criticam a realidade norte americana em nome das idéias ou dos ideais do seu país não hesitam em reco nhecer os muitos defeitos que como a hidra da lenda parecem ressurgir sem pre tão numerosos como na véspera da eliminação ou atenuação das falhas denunciadas anteriormente Os negros poderão exercer agora o direito de voto mas que significa esse direito se os jovens continuam desempregados Alguns estudantes negros entram na universidade mas que importância têm esses acon tecimentos simbólicos se em sua grande maioria as escolas freqüentadas pelos negros são de qualidade inferior Em suma os sociólogos soviéticos são conservadores com relação a sua própria sociedade e revolucionários com relação às demais Os norteameri canos são reformistas quando se trata de sua própria sociedade e implicita mente pelo menos com relação a todas as sociedades Em 1966 essa oposição não parece tão marcante como em 1959 data do congresso mundial a que me refiro Desde então os estudos de caráter empírico segundo o estilo americano se multiplicaram na Europa oriental mais numerosos talvez na Hungria e so bretudo na Polônia do que na União Soviética Mas também na União Soviética se desenvolveu a pesquisa experimental e quantitativa de problemas claramen te delimitados Não é impossível imaginar num futuro relativamente próximo uma sociologia soviética reformista pelo menos com relação à União Soviética combinando a aprovação global com contestações particulares No universo soviético essa combinação não é tão fácil quanto no norteame ricano ou ocidental por dupla razão A ideologia marxista é mais precisa do que a ideologia implícita da escola dominante da sociologia norteamericana ela exige dos sociólogos uma aprovação que não se compatibiliza tão facilmente com os ideais democráticos como a aprovação pelos sociólogos norteamericanos do regime político dos Estados Unidos Além disso a crítica de pormenores não pode ser levada muito longe sem comprometer a validade da própria ideologia Com efeito esta afirma que o rompimento decisivo no curso da história ocorreu em 1917 com a tomada do poder pelo proletariado quando o partido permitiu INTRODUÇÃO 5 a nacionalização de todos os meios de produção Se depois desse rompimento a marcha normal das atividades humanas prossegue sem modificação notável como salvaguardar o dogma da Revolução salvadora Atualmente pareceme legítimo repetir uma observação irônica feita em Stresa depois da leitura de dois relatórios um do professor R N Fedesoev o outro do professor B Barber os sociólogos soviéticos estão mais satisfeitos com sua sociedade do que com sua ciência os sociólogos norteamericanos pelo contrário ainda mais satis feitos com sua ciência do que com sua sociedade Nos países europeus como nos do Terceiro Mundo2 as duas influências ideo lógica revolucionária de um lado empírica reformista de outro se fazem sentir ao mesmo tempo e as circunstâncias determinam se uma ou outra é a mais forte Nos países desenvolvidos especialmente nos da Europa ocidental a socio logia norteamericana leva os sociólogos da revolução às reformas em vez de leválos das reformas à revolução Na França onde o mito revolucionário era particularmente forte muitos jovens universitários se converteram progres sivamente a uma atitude reformista na medida em que o trabalho empírico os fazia substituir as visões globais pela pesquisa analítica e parcial E sempre difícil definir nessa conversão o que se explica pelas mudanças sociais e o que se explica pela prática sociológica Na Europa ocidental a si tuação è cada vez menos revolucionária O rápido crescimento econômico e as maiores possibilidades de promoção social de uma geração para outra deixam de incitar o homem comum à rebeldia Se acrescentarmos a isso o fato de que o partido revolucionário está ligado a uma potência estrangeira e que esta tem um regime que é um exemplo cada vez menos edificante o que surpreende não é o declínio do ardor revolucionário mas sim a fidelidade a despeito de tudo de milhões de eleitores que continuam a votar pelo partido que pretende ser o úni co herdeiro das esperanças revolucionárias Na Europa como nos Estados Unidos a tradição da crítica no sentido marxista e da sociologia sintética e histórica não morreu C Wright Mills e Herbert Marcuse nos Estados Unidos T W Adorno na Alemanha L Goldmann na França baseados no populismo ou no marxismo voltamse ao mesmo tempo contra a teoria formal e ahistórica tal como ela se manifesta na obra de T Parsons e contra as investigações parciais e empíricas características de quase todos os sociólogos que em todo o mundo pretendem fazer trabalho científico A teoria formal e as investigações parciais não são inseparáveis nem lógica nem historicamente Muitos dos que praticam efetivamente as pesquisas parciais são indiferentes ou hostis à teoria geral de T Parsons Por outro lado nem todos os parsonianos se dedicam a pesquisas parcelares cuja multiplicação e diversida de impediriam a unificação e a síntese Na verdade os sociólogos de inspiração marxista interessados em não abandonar a crítica global ou total da ordem exis tente têm como inimigos ao mesmo tempo a teoria formal e as pesquisas par 6 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO celares sem que esses dois inimigos se confundam embora tenham surgido mais ou menos associados na sociedade e na sociologia norteamericanas em determinada época sua conjunção não é necessária nem durável A teoria econômica dita formal ou abstrata foi rejeitada no passado tanto pela escola historicista como pela escola que deseja aplicar o método empírico A despeito da hostilidade comum à teoria abstrata e ahistórica essas duas es colas eram essencialmente diferentes Ambas voltaram a encontrar a teoria e a história Assim também as escolas sociológicas hostis à teoria formal de Parsons ou à sociografia sem teoria voltam a encontrar por diversos caminhos a histó ria e a teoria pelo menos a elaboração conceituai e a busca de proposições de caráter geral qualquer que seja o nível em que se situem essas proposições gené ricas Em certos casos podem chegar mesmo a conclusões revolucionárias mais do que reformistas Quando se interessa pelos países conhecidos atualmente como subdesenvolvidos a sociologia empírica põe em evidência os numerosos obstáculos que as relações sociais ou as tradições religiosas ou morais levan tam no caminho do desenvolvimento e da modernização Em certas circunstân cias uma sociologia empírica moldada por métodos norteamericanos pode chegar à conclusão de que só um poder revolucionário conseguiria quebrar tais resistências Por meio da teoria do desenvolvimento a sociologia analítica reen contra a história o que se explica facilmente pois essa teoria é uma espécie defilosofia formalizada da história contemporânea Ela encontra assim uma teo ria formal pois a comparação entre sociedades exige um sistema conceituai isto é uma das modalidades daquilo que os sociólogos chamam hoje de teoria Há sete anos quando comecei a trabalhar neste livro perguntavame se a sociologia marxista tal como a expunham os sociólogos da Europa oriental e a sociologia empírica na forma como a praticavam os sociólogos ocidentais de modo geral e os norteamericanos em particular tinham algo em comum O retorno às fontes o estudo das grandes doutrinas da sociologia histórica foi esse o título que dei aos dois cursos publicados pelo Centro de Documentação Universitária tinha por finalidade dar uma resposta a essa questão O leitor não encontrará neste livro a resposta que naquele momento eu procurava mas outra coisa Supondo que seja possível uma resposta ela aparecerá no fim do volume que deve se seguir ao presente mas que não foi escrito ainda Não há dúvida de que desde o ponto de partida eu me inclinava a dar uma resposta a essa questão e essa resposta vaga e implícita está presente também neste livro Entre a sociologia marxista do Leste e a sociologia parsoniana do Oeste entre as grandes doutrinas do século passado e as pesquisas parcelares e empíricas de hoje subsiste uma certa solidariedade ou se preferirmos uma certa continuidade Não se pode ignorar a continuidade que existe entre Marx e Max Weber entre Max Weber e Parsons e mesmo entre Auguste Comte e INTRODUÇÃO 7 Durkheim e entre este último Mareei Mauss e Claude LéviStrauss Os soció logos de hoje são claramente sob alguns aspectos os herdeiros e continuado res daqueles que alguns chamam de présociólogos A própria expressão pré sociólogo evidencia a dijiculdade da investigação histórica a que me proponho Qualquer que seja o objeto da história instituição nação ou disciplina cientí fica é preciso definilo delimitálo para acompanhar seu devenir A rigor o historiador da França ou da Europa poderia se limitar a um procedimento mui to simples um pedaço do planeta o hexágono o espaço situado entre o Atlân tico e os Urais seria denominado França ou Europa e o historiador descreve ria o que acontece nesse espaço Na verdade porém ele nunca usa um método tão grosseiro A Europa como a França não são entidades geográficas mas sim históricas elas são definidas tanto uma quanto outra pelo conjunto de ins tituições e de idéias reconhecíveis embora mutáveis e por uma certa extensão territorial Essa definição resulta de um intercâmbio entre o presente e o passado de uma confrontação entre a França e a Europa de hoje e a França e a Europa do século das Luzes ou da Cristandade O bom historiador guarda o sentido do ca ráter específico de cada época da sucessão das épocas e por fim das constan tes que o autorizam a falar de uma só e mesma história Quando o objeto histórico ê uma disciplina científica ou pseudocientífica ou semicientífica a dificuldade é ainda maior Em que data começa a sociolo gia Que autores merecem ser considerados como ancestrais ou fundadores da sociologia Que definição de sociologia devemos adotar Quanto a mim adotei uma definição que reconheço ser vaga embora não a considere arbitrária A sociologia é o estudo que pretende ser científico do social enquanto social seja no nível elementar das relações interpessoais seja no nível macroscópico de vastos conjuntos como as classes as nações as civi lizações ou para empregar a expressão corrente as sociedades globais Esta definição permite mesmo compreender como é difícil escrever uma história da sociologia saber onde ela começa e termina Há muitas maneiras de apreender a intenção científica e o objeto social A sociologia exige a presença concomi tante dessa intenção e desse objeto ou pode começar a existir quando haja ape nas um outro desses caracteres Todas as sociedades tiveram uma certa consciência de si mesmas Muitas conceberam estudos que pretendiam ser objetivos sobre tal ou tal aspecto da vida coletiva A Política de Aristóteles nos parece um tratado de sociologia polí tica ou uma análise comparativa dos regimes políticos Embora comporte tam bém uma análise das instituições familiares e econômicas seu centro é o regi me político a organização das relações de poder em todos os níveis da vida coletiva e em particular no nível em que se realiza por excelência a sociabi lidade do homem a cidade Na medida em que a intenção de apreender o social enquanto tal è constitutiva do pensamento sociológico Montesquieu merece 8 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO figurar neste livro como fundador da sociologia mais do que Aristóteles Por ou tro lado se considerarmos a intenção científica mais essencial do que a orien tação social Aristóteles terá títulos provavelmente iguais aos de Montesquieu e até mesmo aos de Auguste Comte Podese dizer mais ainda A sociologia moderna não tem como origem ex clusiva as doutrinas históricosociais do século passado possui outra fonte as estatísticas administrativas os surveys as pesquisas empíricas Há vários anos que o professor Paul Lazarsfeld realiza com a colaboração dos seus discípulos uma pesquisa histórica sobre esta outra fonte da sociologia moderna Podese alegar com argumentos sólidos que a sociologia empírica e quantitativa dos nossos dias deve mais a Le Play e a Quételet do que a Montesquieu ou a Auguste Comte Afinal os professores da Europa oriental se convertem à sociologia no momento em que não se limitam a lembrar as leis da evolução histórica formu ladas por Marx mas começam a interrogarse por sua vez sobre a realidade so viética com a ajuda de estatísticas questionários e entrevistas A sociologia do século XIX marca incontestavelmente um momento da re flexão dos homens sobre si mesmos momento em que o social enquanto tal é tematizado com seu caráter equívoco ora relação elementar entre indivíduos ora entidade global Exprime também uma intenção não radicalmente nova mas original na sua radicalidade isto é a de um conhecimento propriamente cien tífico segundo o modelo das ciências da natureza e com igual objetivo o co nhecimento científico deveria dar aos homens o controle sobre a sua sociedade e a sua história assim como a física e a química lhes demm o controle das forças naturais Para ser científico esse conhecimento não deveria abandonar as ambi ções sintéticas e globais das grandes doutrinas de sociologia histórica Tendo partido em busca da sociologia moderna cheguei de fato a uma galeria de retratos intelectuais O desligamento ocorreu sem que tivesse chegado a percebêlo claramente Dirigiame a estudantes e falava com a liberdade que a improvisação autoriza Em vez de me perguntar a cada momento quais as ca racterísticas do que temos o direito de chamar de sociologia esforceime por apreender o essencial do pensamento desses sociólogos sem esquecer o que consideramos a intenção específica da sociologia e sem esquecer tampouco que essa intenção no século passado era inseparável das concepções filosóficas e de um ideal político Aliás talvez o mesmo aconteça com os sociólogos da nossa época quando se aventuram no terreno da macrossociologia e esboçam uma interpretação global da sociedade Esses retratos serão de sociólogos ou de filósofos Não discutirei esta dúvi da Digamos que se trata de uma filosofia social de tipo relativamente novo de um modo de pensar sociológico caracterizado pela intenção de ciência e pela orientação social modo de pensar que floresce nesta parte final do século XX O homo sociologicus está em vias de substituir o homo economicus As univer INTRODUÇÃO 9 sidades de todo o mundo sem distinção de regime e de continente multiplicam suas cadeiras de sociologia e de congresso a congresso a taxa de crescimento das publicações sociológicas parece aumentar Os sociólogos preconizam méto dos empíricos praticam pesquisas por sondagem empregam um sistema con ceituai próprio questionam a realidade social sob um certo ângulo possuem uma ótica específica Esse modo de pensar se nutre de tradição cujas origens são mostradas pela galeria de retratos que preparei Por que escolhi estes sete sociólogos Por que razão SaintSimon Proudhon e Herbert Spencer não figuram na minha galeria Poderia sem dificuldades invocar motivos razoáveis Auguste Comte pelo intermédio de Durkheim Marx graças às revoluções do século XX Montesquieu por intermédio de Tocqueville e Tocqueville por intermédio da ideologia norteamericana pertencem ao pre sente Quanto aos três autores da segunda parte foram já reunidos por Talcott Parsons no seu primeiro grande livro The Structure of Social Acíion e são estu dados ainda nas nossas universidades mais como mestres contemporâneos do que como autores clássicos Faltaria contudo à honestidade científica se não con fessasse as razões pessoais dessa escolha Comecei por Montesquieu a quem já tinha consagrado anteriormente um curso com a duração de todo um ano porque o autor de O espírito das leis pode ser considerado ao mesmo tempo um filósofo político e um sociólogo Ele ana lisa e compara os regimes políticos à maneira dos filósofos clássicos simulta neamente esforçase por apreender todos os setores do conjunto social e por definir as relações múltiplas entre as variáveis Epossível que a escolha de Mon tesquieu me tenha sido sugerida pela lembrança do capítulo que Léon Brunschvicg lhe consagrou em Les progrès de la conscience dans la philosophie occidentale apresentandoo não como precursor da sociologia mas como sociólogo por excelência exemplar no emprego do método analítico em contraposição ao mé todo sintético de Auguste Comte e seus discípulos Escolhi Alexis de Tocqueville porque muitos sociólogos o ignoram espe cialmente os franceses Durkheim reconheceu em Montesquieu um precursor Não creio que tenha jamais atribuído o mesmo crédito ao autor de A democracia na América Desde o meu tempo de secundarista ou estudante de faculdade já era possível colecionar diplomas de letras filosofia ou sociologia sem ter ouvi do jamais falar em Tocqueville nome que nenhum estudante do outro lado do Atlântico pode ignorar No fim da vida sob o Segundo Império Alexis de Toc queville se queixava de um sentimento de solidão mais intenso do que o que conhe cera nos desertos do Novo Mundo Seu destino póstumo na França prolongou a experiência de seus últimos anos de vida Depois de ter tido um êxito triunfal com seu primeiro livro esse descendente de uma grande família normanda con vertido à democracia pela razão e com tristeza não pôde desempenhar o papel a que aspirava numa França exposta sucessivamente ao egoísmo sórdido dos 10 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO proprietários à fúria dos revolucionários e ao despotismo de um só Demasiado liberal para o seu partido insuficientemente entusiasta das novas idéias aos olhos dos republicanos ele não foi adotado nem pela direita nem pela esquerda permanecendo suspeito a todos Esta é a sorte reservada na França à escola inglesa ou angloamericana isto é aos franceses que comparam ou compara vam nostalgicamente as peripécias tumultuosas da história da França a partir de 1789 com a liberdade que usufruíram os povos de língua inglesa Politicamente isolado pelo estilo da sua adesão reticente à democracia mo vimento mais irresistível do que ideal Tocqueville se opõe a algumas das idéias diretrizes da escola sociológica da qual Auguste Comte passa por fundador e Durkheim por principal representante pelo menos na França A sociologia im plica a tematização do social enquanto tal mas não necessariamente que as ins tituições políticas o modo de governo possam ser reduzidos à infraestrutura social ou possam ser deduzidos a partir dos traços estruturais da ordem social Ora a passagem da tematização do social para a desvalorização do político ou para a negação do caráter específico da política é muito fácil sob formas dife rentes encontramos esse mesmo desvio em Auguste Comte e em Karl Marx ou Émile Durkheim O conflito histórico do pósguerra entre regimes de democra cia liberal e regimes de partido único todos vinculados a sociedades que Toc queville teria chamado de democráticas e Auguste Comte de industriais dá uma atualidade atraente á alternativa com que termina A democracia na América As nações dos nossos dias não poderiam impedir que suas condições internas fossem iguais depende delas porém que essa igualdade as leve à servidão ou à liberdade às luzes ou à barbárie àprosperidade ou à miséria O leitor poderá especular sobre a razão que me levou a escolher Auguste Comte em lugar de SaintSimon A razão é simples qualquer que seja a impor tância que se atribua ao próprio SaintSimon na linha de pensamento que ele inaugurou sua obra não constitui um conjunto sintético comparável ao pensa mento comtista Supondo que a maior parte dos temas do positivismo já estejam presentes na obra do conde de SaintSimon eco sonoro do espírito do seu tem po esses temas só se organizam com rigor filosófico graças ao gênio estranho do politécnico que teve antes de tudo a ambição de abranger a totalidade do conhecimento da sua época e que logo se encerrou voluntariamente na constru ção intelectual que ele próprio edificou Proudhon não figura nessa galeria de retratos embora sua obra me seja familiar porque o considero mais moralista e socialista do que sociólogo Não que lhe tenha faltado uma visão sociológica do devenir histórico poderseia dizer o mesmo de todos os socialistas no entanto dificilmente se conseguiria extrair dos seus livros o equivalente do que o Curso de filosofia positiva ou O capital oferecem ao historiador do pensamento sociológico Quanto a Herbert INTRODUÇÃO 11 Spencer confesso que seu lugar já estava reservado Mas o retrato exige um co nhecimento intimo do modelo Li várias vezes as principais obras dos sete auto res que chamei de fundadores da sociologia mas não poderia dizer o mesmo das obras de Spencer Os retratos e mais ainda os esboços esses capítulos merecem ser chama dos mais de esboços do que de retratos refletem sempre em algum grau a per sonalidade do pintor Ao reler a primeira parte depois de sete anos e a segun da ao fim de cinco anos penso ter percebido a intenção que orientava cada uma das exposições e da qual provavelmente não tive consciência no momento em que as preparei Com relação a Montesquieu e a Tocqueville quis claramente defender sua causa junto aos sociólogos de estrita observância e assegurar que esse parlamentar da Gironde e esse deputado da Mancha fossem reconhecidos dignos de um lugar entre os fundadores da sociologia embora um e outro tenham evitado o sociologismo e mantido a autonomia no sentido causai e até mesmo uma certa primazia no sentido humano da ordem política com relação à estru tura ou infraestrutura social Como Auguste Comte há muito teve sua legitimidade reconhecida minha exposição de sua doutrina visa a um objetivo diferente interpretar o conjunto da sua obra a partir de uma intuição original E possível que eu tenha sido levado assim a emprestar á filosofia sociológica de Comte ainda mais unidade siste mática do que ela tem o que já era muito A exposição do pensamento marxista é polêmica menos contra Marx do que contra as interpretações que estavam muito em moda há dez anos e que su bordinavam O capital ao Manuscrito econômicofilosófico deixando de levar em conta a ruptura entre as obras da juventude de Marx anteriores a 1845 e as obras da maturidade Ao mesmo tempo quis identificar as idéias de Marx historicamente essenciais que os marxistas da II e da III Internacionais apro veitaram e utilizaram Precisei para isso sacrificar a análise em profundidade que já havia feito em outro curso e que espero retomar algum dia da diferença entre a crítica tal como a entendia Marx entre 1841 e 1844 e a crítica da eco nomia política contida em seus grandes livros Althusser acentuou este ponto decisivo a continuidade ou descontinuidade entre o jovem Marx e o Marx de O capital depende do sentido que tem o termo critica nos dois momentos da sua carreira As três exposições da segunda parte me parecem mais acadêmicas talvez menos orientadas no sentido de um objetivo definido Épossível entretanto que tenha sido injusto com relação a Emile Durkheim pois sempre senti uma antipa tia imediata com relação às suas idéias Provavelmente não suporto bem o so ciologismo para o qual se encaminham com tanta freqüência as análises socio lógicas e as intuições profundas de Durkheim Insisti possivelmente mais do que seria razoável na parte mais contestável da sua obra isto é sua filosofia 12 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Apresentei o autor do Traité de sociologie générale sem nenhum envolvimen to pessoal embora lhe tenha dedicado há trinta anos um artigo apaixonadamen te hostil Pareto é um solitário e ao envelhecer começo a aproximarme dos au tores malditos mesmo se em parte mereceram a maldição que os atingiu Além disso o cinismo paretiano entrou nos costumes Um filósofo meu amigo chama Pareto de imbecil deveria precisar filosoficamente imbecil não conheço mais professores como Célestin Bouglé que há trinta anos não podiam ouvir uma re ferência a Vilfredo Pareto sem uma explosão de cólera provocada pelo simples nome do grande economista autor de um monumento sociológico a que a poste ridade não soube ainda que lugar atribuir na história do pensamento Obrigado a me conformar em reconhecer o mérito de Durkheim e sendo desapaixonado com relação a Pareto conservo por Max Weber a admiração que lhe devoto desde a juventude embora me sinta muito distante dele em uma série de pontos alguns importantes A verdade porém é que Max Weber nunca me irrita mesmo quando não posso concordar com o que diz enquanto até os ar gumentos convincentes de Durkheim me produzem uma sensação de malestar Deixo aos psicanalistas e aos sociólogos o cuidado de interpretar essas reações provavelmente indignas de um homem de ciência Apesar de tudo tomei certas precauções contra mim mesmo multiplicando as citações embora não ignore que a escolha das citações como a escolha das estatísticas tem um importante elemento de arbitrariedade Uma última palavra na conclusão da primeira parte afirmo pertencer à escola dos sociólogos liberais de Montesquieu Tocqueville aos quais junto Elie Halévy Façoo com uma certa ironia descendente retardado que escapou aos críticos deste livro já publicado nos Estados Unidos e na Inglaterra Contudo parece útil acrescentar que nada devo á influência de Montesquieu ou de Toc queville cujas obras só estudei com seriedade nos últimos dez anos Por outro lado há trinta e cinco anos que leio e releio as obras de Marx Várias vezes empreguei o procedimento retórico do paralelismo ou da oposição Tocqueville Marx em particular no primeiro capítulo de Essai sur les libertés Cheguei a Tocqueville a partir do marxismo da filosofia alemã e da observação do mundo atual Nunca hesitei entre A democracia na América e O capital Como a maio ria dos estudantes e professores franceses não tinha lido A democracia na América quando pela primeira vez em 1930 tentei sem o conseguir demons trar a mim mesmo que Marx estava certo e que o capitalismo tinha sido conde nado definitivamente em O capital Quase que a despeito de mim mesmo conti nuo a me interessar mais pelos mistérios de O capital do que pela prosa límpi da e triste de A democracia na América Minhas conclusões pertencem à esco la inglesa minha formação vem sobretudo da escola alemã Este livro foi revisto por Guy Berger auditor do Tribunal de Contas Sua contribuição ultrapassa de muito a correção do material de aula que não havia INTRODUÇÃO 13 sido redigido previamente e que trazia os defeitos da palavra oral O livro lhe deve muito e por isso registro minha viva e amigável gratidão NOTA DA EDIÇÃO BRASILEIRA Na presente edição foi acrescentada às bibliografias de fim de capítulo uma relação das principais edições em língua portuguesa das obras do autor estu dado no capítulo Na medida do possível procuramos também fornecer indica ções das edições em português das outras obras citadas por R Aron As edições utilizadas por R Aron para a citação de textos estão indicadas na bibliografia no final de cada capítulo As traduções que apresentamos dos textos citados foram realizadas a partir dessas citações sendo que as traduções dos textos citados nas notas foram feitas por esta editoria Desta edição não constam os anexos Auguste Comte et Alexis de Tocque ville juges de 1Angleterre Idées politiques et vision historique de Tocqueville et Max Weber et la politique de la puissance NOTAS 1 Esta Introdução foi escrita em 1966 para a edição de 1967 de Les étapes de la pensée sociologique Trad bras As etapas do pensamento sociológico Martins Fontes São Paulo N do T 2 Hoje a expressão mais comum é países em via de desenvolvimento N do T 3 O Hexágono isto é a França metropolitana assim denominada em razão da sua forma geográfica N do E PRIMEIRA PARTE Os fundadores tary turonndn CharlesLouis de Secondat barão de Montesquieu Eu me consideraria o mais ditoso dos mortais se pudesse fazer com que os homens se curassem dos seus preconceitos Chamo de preconcei tos não o que nos faz ignorar certas coisas mas o que nos leva à igno rância de nós mesmos Uesprit des lois prefácio Pode parecer surpreendente começar uma história do pensamento socioló gico pelo estudo de Montesquieu Na França esse autor geralmente é conside rado um precursor da sociologia e se atribui a Auguste Comte o mérito de ter fundado essa ciência o que é verdade se fundador for aquele que criou o termo Contudo se o sociólogo se define por uma intenção específica conhecer cientificamente o social enquanto tal Montesquieu é a meu ver um sociólogo tanto quanto Auguste Comte A interpretação da sociologia implícita em O es pírito das leis é com efeito mais moderna sob certos aspectos do que a de Auguste Comte O que não prova que Montesquieu tenha razão e Auguste Comte não tenha mas simplesmente que Montesquieu a meu modo de ver não é apenas um precursor mas um dos fundadores da sociologia Considerar Montesquieu como sociólogo é responder a uma pergunta for mulada por todos os historiadores em que disciplina se insere Montesquieu A que escola pertence A incerteza é visível na organização universitária francesa Montesquieu pode figurar simultaneamente no programa de graduação em literatura em filosofia e até mesmo em alguns casos em história Num nível mais elevado os historiadores das idéias situam Montesquieu ora entre os homens de letras ora entre os teóricos da política às vezes como historiador do direito outras vezes entre os ideólogos que no séc XVIII dis cutiram os fundamentos das instituições francesas e prepararam a crise revolu cionária e até mesmo entre os economistas1 A verdade é que Montesquieu foi ao mesmo tempo um escritor um jurista um filósofo da política e quase um ro mancista Não há dúvida contudo de que na sua obra O espírito das leis ocupa uma posição central Ora a intenção de O espírito das leis pelo que me parece é evidentemente sociológica 18 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Aliás Montesquieu não faz mistério disso Seu objetivo é tomar a história inteligível deseja compreender o dado histórico Ora este se apresenta a seus olhos sob a forma de uma diversidade quase infinita de costumes idéias leis e instituições O ponto de partida da sua investigação é precisamente essa diver sidade que parece incoerente a finalidade da pesquisa deveria ser a substitui ção desta diversidade incoerente por uma ordem conceituai Exatamente como Max Weber Montesquieu deseja passar do dado incoerente a uma ordem inte ligível Ora esse processo é próprio do sociólogo Mas as duas expressões que utilizei acima diversidade incoerente ordem inteligível colocam evidentemente um problema Como se chegará a desco brir uma ordem inteligível Qual será a natureza dessa ordem inteligível que deve substituir a diversidade radical dos hábitos e costumes Pareceme que há na obra de Montesquieu duas respostas que não são contraditórias ou melhor duas etapas de um mesmo processo de investigação A primeira consiste na afirmação de que além do caos dos acidentes po demse descobrir causas profundas que explicam a aparente irracionalidade dos acontecimentos Em Considérations sur les causes de la grandeur et de la décadence des romains Considerações sobre as causas da grandeza e da decadência dos ro manos Montesquieu escreve Não é o acaso que domina o mundo Podese perguntar aos romanos que tive ram uma fase contínua de prosperidade quando se governavam de uma determina da forma e uma sucessão ininterrupta de reveses quando agiram de outra forma Há causas gerais morais ou físicas que agem em cada monarquia levantandoa mantendoa ou destruindoa Todos os acidentes estão sujeitos a essas causas e se o acaso de uma batalha isto é uma causa particular arruinou um Estado havia uma causa geral que fazia com que esse Estado devesse perecer em uma única bata lha Numa palavra a tendência principal traz consigo todos os acidentes particula res Cap 18 O C t II p 173 E em Lesprit des lois Não foi Poltava que arruinou Carlos XII Se ele não tivesse sido destruído num local teria sido em outro Os acidentes do acaso são facilmente reparados Mas não é possível evitar fatos que nascem continuamente da natureza das coisas Liv X cap 13 O C t II p 387 A idéia subjacente a essas duas citações é a meu ver a primeira idéia pro priamente sociológica de Montesquieu Eu a formularia assim é preciso cap tar por trás da seqüência aparentemente acidental dos acontecimentos as causas profundas que os explicam OS FUNDADORES 19 Uma proposição desse tipo não implica entretanto que as causas profun das tenham feito com que fosse necessário acontecer tudo o que aconteceu A sociologia não se define no seu ponto de partida pelo postulado segundo o qual os acidentes não têm eficácia no curso da história É uma questão de fato de saber se uma vitória ou uma derrota militar foi provocada pela corrupção do Estado ou por erros de técnica ou tática Não é evi dente que uma vitória militar seja ela qual for signifique a grandeza de um Estado ou uma derrota a sua corrupção A segunda resposta de Montesquieu é mais interessante e vai mais longe Consiste em dizer que é possível organizar a diversidade dos hábitos dos cos tumes e das idéias num reduzido número de tipos e não que os acidentes podem ser explicados por causas profundas Entre a diversidade infinita dos costumes e a unidade absoluta de uma sociedade ideal há um termo intermediário O prefácio de Uesprit des lois exprime claramente essa idéia essencial Examinei em primeiro lugar os homens e vi que nessa infinita diversidade de leis e de costumes eles não eram conduzidos exclusivamente por suas fantasias A fórmula implica que a variedade das leis possa ser explicada já que as leis próprias a cada sociedade são determinadas por certas causas que atuam às vezes sem que os homens delas tenham consciência Continua Montesquieu Coloquei os princípios e vi os casos particulares se enquadrarem como que por si mesmos vi as histórias de todas as nações sendo apenas conseqüências de les e vi cada lei particular associada com uma outra lei ou dependendo de uma outra mais geral O C t II p 229 Assim é possível explicar de duas maneiras a diversidade dos costumes que se observa de um lado remontando às causas responsáveis pelas leis par ticulares que se observam neste ou naquele caso de outro isolando os princí pios ou tipos que constituem um nível intermediário entre a diversidade incoe rente e um esquema universalmente válido Tornamos inteligível o devenir por que apreendemos as causas profundas que determinaram o andamento geral dos acontecimentos Tornamos a diversidade inteligível quando a organizamos dentro de um pequeno número de tipos ou de conceitos A teoria política O problema do aparelho conceituai de Montesquieu esse aparelho que lhe permite substituir uma diversidade incoerente por uma ordem pensada se 20 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO reduz mais ou menos à questão clássica entre os intérpretes do plano de O espírito das leis Essa obra nos oferece uma ordem inteligível ou uma cole ção de observações mais ou menos sutis sobre este ou aquele aspecto da reali dade histórica O espírito das leis se divide em várias partes cuja aparente heterogeneida de foi muitas vezes constatada Do meu ponto de vista a obra contém essen cialmente três grandes partes Em primeiro lugar os treze primeiros livros que desenvolvem a teoria bem conhecida dos três tipos de governo isto é o que chamaríamos uma sociolo gia política um esforço para reduzir a diversidade das formas de governo a alguns tipos cada um dos quais definido ao mesmo tempo pela sua natureza e pelo seu princípio A segunda parte vai do livro XIV ao XIX É consagrada às causas materiais ou físicas quer dizer essencialmente à influência do clima e do solo sobre os homens seus costumes e instituições A terceira parte que vai do livro XX ao XXVI estuda sucessivamente a influência das causas so ciais comércio moeda número de habitantes e religião sobre os hábitos os cos tumes e as leis Portanto essas três partes são aparentemente por um lado uma sociologia da política e por outro um estudo sociológico das causas umas físicas e outras morais que agem sobre a organização das sociedades Restaria mencionar além dessas três partes principais os últimos livros de O espírito das leis que consagrados ao estudo da legislação romana e feudal apresentam ilustrações históricas bem como o livro XXIX que é difícil de classificar em qualquer dessas grandes divisões e que procura responder à ques tão como compor uma elaboração pragmática das conseqüências que se dedu zem do estudo científico Finalmente há um livro também difícil de classificar nesse plano de con junto o livro XIX que trata do espírito geral de uma nação Não está asso ciado a nenhuma causa particular nem ao aspecto político das instituições mas ao que constitui talvez o princípio unificador do todo social E de qualquer forma um dos mais importantes da obra e representa a transição ou ligação entre a primeira parte de O espírito das leis a sociologia política e as duas ou tras que estudam as causas físicas ou morais Esta recapitulação do plano de O espírito das leis nos permite situar os pro blemas essenciais da interpretação de Montesquieu As diferenças entre a pri meira parte da obra e as duas outras têm causado espécie a todos os historiado res Sempre que observam essa aparente heterogeneidade entre as partes de um mesmo livro sentemse tentados a recorrer a uma interpretação histórica pro curando determinar a data em que cada uma delas foi escrita No caso de Montesquieu essa interpretação histórica pode ser desenvolvi da sem grandes dificuldades Os primeiros livros de O espírito das leis se não o OS FUNDADORES 21 primeiro pelo menos do II ao VIII isto é os que analisam os três tipos de go verno têm inspiração aristotélica Foram escritos antes da viagem do seu autor à Inglaterra numa época em que se encontrava sob a influência predominante da filosofia política clássica Ora na tradição clássica a Política de Aristóteles era considerada a obra essencial Assim não se pode duvidar de que Montes quieu tenha escrito os primeiros livros tendo ao lado a Política Em quase todas as páginas podemse encontrar referências a Aristóteles sob a forma de alusões ou críticas Os livros seguintes em especial o famoso livro XI sobre a Constituição da Inglaterra e a separação dos poderes foram escritos provavelmente mais tarde depois da estada na Inglaterra sob a influência das observações feitas por ocasião dessa viagem Quanto aos livros de sociologia consagrados ao estudo das causas físicas ou morais foram escritos provavelmente ainda mais tarde A partir desse ponto seria fácil mas pouco satisfatório apresentar O espí rito das leis como a justaposição de dois modos de pensar de duas maneiras de estudar a realidade Montesquieu seria por um lado um discípulo dos filósofos clássicos Nes se sentido desenvolveu uma teoria dos tipos de governo que mesmo se afastan do em alguns pontos da teoria clássica de Aristóteles pertence ainda ao clima e à tradição desses filósofos Montesquieu seria também por outro lado um soció logo que investiga a influência que o clima a natureza do solo a quantidade de pessoas e a religião podem exercer sobre os diferentes aspectos da vida coletiva Assim como o autor é pensador político e ao mesmo tempo sociólogo O espirito das leis seria uma obra incoerente não um livro ordenado por uma intenção predominante e um sistema conceituai embora reúna trechos de data e talvez de inspiração diferentes Antes de nos resignarmos a uma interpretação que supõe que o historiador seja mais inteligente do que o autor e capaz de perceber de imediato a contra dição que teria escapado ao gênio é preciso procurar a ordem interna que Mon tesquieu com ou sem razão encontrava no seu próprio pensamento O proble ma que aqui se coloca é o da compatibilidade entre a teoria dos tipos de gover no e a teoria das causas Montesquieu distingue três modalidades de governo a república a monar quia e o despotismo Cada um desses tipos é definido em relação a dois con ceitos que o autor chama de natureza e de princípio do governo A natureza do governo é o que faz com que ele seja o que é O princípio do governo é o sentimento que deve animar os homens dentro de um tipo de governo para que este funcione harmoniosamente Assim a virtude é o princí pio da república o que não significa que numa república os homens sejam vir tuosos mas apenas que deveriam sêlo e que as repúblicas só prosperam na medida em que seus cidadãos são virtuosos2 22 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A natureza de cada governo é determinada pelo número dos que detêm a soberania Neste sentido escreve Montesquieu Suponho três definições ou antes três fatos um é o de que o governo republicano é aquele em que o povo coletivamente ou só uma parte do povo tem o poder soberano no monárqui co um só governa mas por meio de leis fixas e estabelecidas no despotismo porém uma só pessoa sem lei e sem regras tudo arrasta com sua vontade e seus caprichos O espírito das leis livro II cap 1 O C t II p 239 A dis tinção aplicada à república o povo coletivamente ou só uma parte dele tem por objetivo lembrar as duas espécies de governo republicano a democracia e a aristocracia Essas definições nos revelam imediatamente que a natureza de um gover no não depende somente do número dos que detêm o poder soberano mas tam bém do modo como este é exercido Tanto a monarquia quanto o despotismo são regimes que implicam um só detentor do poder mas no caso do regime monárquico esse detentor único governa de acordo com leis fixas e estabeleci das e no despotismo governa sem leis e sem regras Temos assim dois critérios ou em jargão moderno duas variáveis para precisar a natureza de cada gover no de um lado quem detém o poder soberano de outro a forma como esse poder é exercido Convém acrescentar um terceiro critério o do princípio do governo Um tipo de governo não é suficientemente definido pela característica quase jurídi ca da posse do poder soberano Cada tipo de governo se caracteriza além disso pelo sentimento sem o qual não pode durar ou prosperar Ora segundo Montesquieu existem três sentimentos políticos fundamen tais e cada um deles assegura a estabilidade de um tipo de governo a repúbli ca depende da virtude a monarquia da honra o despotismo do medo A virtude da república não é uma virtude moral mas política consiste no respeito às leis e no devotamento do indivíduo à coletividade A honra como diz Montesquieu é filosoficamente falando uma falsa honra É o respeito de cada um pelo que ele deve à sua posição na sociedade3 Quanto ao medo não é necessário definilo Tratase de sentimento ele mentar por assim dizer infrapolítico Mas é um sentimento que foi tratado por todos os pensadores políticos porque muitos deles a partir de Hobbes o con sideraram como o sentimento mais humano o mais radical aquele a partir do qual se explica o próprio Estado Montesquieu porém não é um pessimista co mo Hobbes A seus olhos um regime baseado no medo é essencialmente cor rupto quase a negação mesma da política Os súditos que só obedecem movi dos pelo medo quase não são mais homens Essa classificação dos regimes é original com relação à tradição clássica Montesquieu considera inicialmente a democracia e a aristocracia que na classificação aristotélica constituem dois tipos distintos como duas modalida os FUNDADORES 23 des de um mesmo regime chamado republicano e o distingue da monarquia Na opinião de Montesquieu Aristóteles não reconheceu a verdadeira natureza da monarquia o que se explica facilmente já que a monarquia como ele a conce be só se realizou autenticamente nas monarquias européias4 Existe uma razão profunda que explica essa concepção original A distinção dos tipos de governo em Montesquieu é ao mesmo tempo uma distinção das organizações e das estruturas sociais Aristóteles tinha elaborado uma teoria dos regimes à qual atribuíra aparentemente um valor geral mas que pressu punha como base social a cidade grega A monarquia a aristocracia e a demo cracia eram os três tipos de organização política das cidades gregas Era legíti mo assim distinguir os tipos de governo segundo o número dos que detinham o poder soberano Mas esse tipo de análise implicava que os três regimes cor respondessem para empregar uma expressão moderna à superestrutura políti ca de uma certa forma de sociedade A filosofia política clássica não se preocupara muito com as relações entre os tipos de superestrutura política e as bases sociais Não havia formulado niti damente a questão até que ponto é possível classificar os regimes políticos sem levar em conta a organização social A contribuição decisiva de Montesquieu consiste precisamente em retomar o problema na sua generalidade e combinar a análise dos regimes com a análise das organizações sociais de tal modo que cada governo apareça ao mesmo tempo como uma sociedade determinada A relação entre regime político e sociedade é estabelecida em primeiro lugar e de modo explícito na tomada de consciência da dimensão da socieda de Segundo Montesquieu cada um dos três tipos de governo corresponde a uma certa dimensão da sociedade As fórmulas não faltam É próprio da natureza de uma república ter apenas um pequeno território de outra forma é quase impossível que ela possa subsistir Liv VIII cap 16 O C t II p 362 Um Estado monárquico deve ter tamanho médio Se fosse pequeno ele se constituiria em república Se muito extenso os chefes de Estado importantes por si mesmos não estando sob os olhos do príncipe com sua corte fora da corte do soberano protegidos aliás pela lei e pelos costumes contra a necessidade de obe diência imediata poderiam deixar de obedecêlo Um grande império supõe uma autoridade despótica naquele que o governa Liv VIII cap 19 O C t II p 365 Se quiséssemos traduzir essas fórmulas em proposições de lógica rigoro sa provavelmente não empregaríamos a linguagem da causalidade isto é afir mar que quando o território de um Estado ultrapassa determinada dimensão o despotismo é inevitável mas diríamos que há uma relação natural entre o volu me da sociedade e seu tipo de governo Isso aliás não deixa de colocar para o 24 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO observador um problema difícil se a partir de um certo tamanho um Estado não pode deixar de ser despótico o sociólogo não estará forçado a admitir a neces sidade de um regime que considera humana e moralmente mau A não ser que para evitar essa conseqüência indesejável afirme que os Estados não devam ultrapassar uma certa dimensão De qualquer forma por meio desta teoria da dimensão do Estado Montes quieu vincula a classificação dos regimes ao que chamamos hoje de morfolo gia social ou o volume das sociedades para usar a expressão de Durkheim Montesquieu associa também a classificação dos regimes à análise das so ciedades baseandose na noção do princípio de governo isto é daquilo que deve ser o sentimento indispensável ao funcionamento de cada regime A teo ria do princípio leva claramente a uma teoria da organização social Se a virtude numa república é o amor às leis o devotamento à coletivida de o patriotismo para usar uma expressão moderna ela implica em última análise um certo sentido de igualdade Uma república é um regime no qual os homens vivem pela e para a coletividade e no qual se sentem cidadãos o que implica que sejam e se sintam iguais entre si Por oposição o princípio da monarquia é a honra Montesquieu elabora uma teoria sobre esse ponto num tom que parece às vezes polêmico e irônico Nas monarquias a política faz realizar as grandes coisas com o mínimo possí vel de virtude Como nas melhores máquinas a técnica emprega o mínimo possível de forças e de engrenagens o Estado subsiste independentemente do amor à pátria do desejo da glória autêntica da renúncia a si mesmo do sacrifício dos interesses pes soais mais caros e de todas essas virtudes heróicas que encontramos nos antigos e das quais apenas ouvimos falar Liv III cap 6 O C p 255 O governo monárquico supõe como dissemos a existência de distinções ní veis hierárquicos e até mesmo a nobreza de origem A natureza da honra consiste em exigir privilégios e distinções por isso mesmo ela fundamenta esse tipo de go verno Na república a ambição é perniciosa Ela tem bons efeitos na monarquia ela dá vida a esse governo com a vantagem de que não é perigosa porque sempre pode ser reprimida Liv III cap 7 O C t II p 257 Esta análise não é inteiramente nova Desde que se puseram a refletir sobre a política os homens sempre oscilaram entre duas teses extremas ou um Estado só é próspero quando os homens querem diretamente o bem da coleti vidade ou então uma vez que isso é impossível um bom regime é aquele em que os vícios dos homens conspiram para o bem de todos A teoria da honra de Montesquieu é uma modalidade dessa segunda tese O bem da coletivida de está assegurado se não pelos vícios dos cidadãos pelo menos por qualida des inferiores até mesmo por atitudes que do ponto de vista moral seriam repreensíveis OS FUNDADORES 25 Pessoalmente acho que nas idéias de Montesquieu a respeito da honra há duas atitudes ou intenções dominantes de um lado uma relativa desvaloriza ção da honra em relação à verdadeira virtude política a dos antigos e a das repúblicas do outro uma valorização da honra enquanto princípio das relações sociais e proteção do Estado contra o mal supremo o despotismo Com efeito se os dois tipos de governo o republicano e o monárquico dife rem em essência porque um se fundamenta na igualdade e o outro na desigualda de um na virtude política dos cidadãos e o outro num substitutivo de virtude que é a honra estes dois regimes possuem no entanto uma característica comum são moderados e neles ninguém comanda de modo arbitrário à revelia das leis Há porém um terceiro tipo de governo o despótico que não pertence à mesma categoria dos regimes moderados Montesquieu combina uma classifi cação dualista dos governos moderados e nãomoderados com a classificação tríplice tradicional A república e a monarquia são moderadas mas o despotis mo não É preciso acrescentar uma terceira espécie de classificação que chamaria de dialética para render homenagem à moda A república se baseia numa orga nização igualitária das relações entre os membros da coletividade A monarquia tem base essencialmente na diferenciação e na desigualdade Quanto ao des potismo ele marca o retorno à igualdade Porém se a igualdade republicana é uma igualdade na virtude e na participação de todos no poder soberano a igual dade despótica é a igualdade no medo na impotência e na nãoparticipação no poder soberano Montesquieu mostra no despotismo por assim dizer o mal político abso luto É verdade que o despotismo talvez seja inevitável quando os Estados se tomam grandes demais ao mesmo tempo é o regime em que uma só pessoa governa sem regras nem leis em que em conseqüência reina o medo Temse a tentação de dizer que a partir do momento em que o despotismo se estabelece cada um tem medo de todos No pensamento político de Montesquieu em última análise a oposição decisiva está entre o despotismo em que todos têm medo de todos e os regi mes de liberdade em que nenhum cidadão teme a nenhum outro Montesquieu exprimiu de forma direta e clara essa segurança que a liberdade dá a cada um nos capítulos do Livro XI consagrados à Constituição inglesa No despotismo há um único limite ao poder absoluto do governante a religião E mesmo assim esta proteção é precária Esta síntese não deixa de provocar discussões e críticas Podese pergun tar antes de mais nada se o despotismo é um tipo político concreto no mesmo sentido em que a república ou a monarquia o são Montesquieu esclarece que o modelo da república nos é oferecido pelas repúblicas antigas em particular 26 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO pela romana antes do período das grandes conquistas Os modelos da monar quia são os reinos europeus do seu tempo o inglês e o francês Quanto aos mo delos do despotismo são os impérios que chama de asiáticos amalgamando assim o Império Persa e o Chinês o Indiano e o Japonês Não há dúvida de que os conhecimentos que Montesquieu tinha da Ásia eram fragmentários contudo ele dispunha de documentação que lhe teria permitido matizar mais sua con cepção do despotismo asiático As idéias de Montesquieu constituem a origem de uma interpretação da his tória asiática que ainda não desapareceu de todo e que é característica do pensa mento europeu os regimes asiáticos seriam essencialmente despóticos sem es trutura política sem instituições nem moderação Visto por Montesquieu o des potismo asiático é o deserto da servidão O soberano absoluto é único todopode roso pode delegar poderes a um grãovizir mas quaisquer que sejam as relações entre o déspota e os que o cercam não há classes sociais em equilíbrio ordens ou níveis hierárquicos estáveis Não encontramos nele nem o equivalente da vir tude antiga nem o da honra européia O medo pesa sobre milhões de pessoas através de imensos espaços onde o Estado só se pode manter sob a condição de que um só governe com poder absoluto Esta teoria do despotismo asiático não será também e sobretudo a imagem ideal do mal político cuja invocação é feita com certa intenção polêmica a respei to das monarquias européias Não esqueçamos a frase famosa Todas as monar quias se vão perder no despotismo como todos os rios no mar A idéia do des potismo asiático reflete a obsessão com o destino que podem ter as monarquias quando perdem o respeito das hierarquias sociais da nobreza dos corpos inter mediários sem os quais o poder absoluto e arbitrário de uma só pessoa perde toda moderação Na medida em que estabelece uma correspondência entre as dimensões territoriais do Estado e a forma de governo a teoria de Montesquieu se arrisca também a incorrer numa forma de fatalismo Em O espírito das leis notase uma oscilação entre dois extremos Seria fácil levantar o número de textos segundo os quais existe uma espécie de hierarquia a república seria o melhor regime seguido da monarquia e do despotismo De outro lado porém se cada regime está ligado irresistivelmente a uma certa di mensão do corpo social estamos diante de um determinismo inexorável e não de uma hierarquia de valores Há enfim uma última crítica ou incerteza que abrange o essencial e que diz respeito à relação entre os regimes políticos e os tipos sociais Essa relação pode ser formulada de diferentes maneiras O sociólogo ou o filósofo podem considerar que um regime político é suficientemente definido por um único critério por exemplo o número dos que detêm o poder sobera no estabelecendo assim uma classificação de significado suprahistórico Essa o s FUNDADORES 27 era a concepção implícita na filosofia política clássica na medida em que esta fazia uma teoria dos regimes não levando em conta a organização da socieda de pressupondo por assim dizer a validade intemporal dos tipos políticos Mas é também possível conforme Montesquieu deixa mais ou menos cla ro fazer uma combinação estrita entre o regime político e o tipo social Nesse caso chegase ao que Max Weber chamaria de três tipos ideais o da cidade an tiga Estado de pequenas dimensões governado como república democracia ou aristocracia o tipo ideal da monarquia européia cuja essência é a diferen ciação das ordens sociais uma monarquia legal e moderada e por fim o tipo ideal do despotismo asiático Estado de grande extensão com o poder absolu to nas mãos de uma só pessoa constituindo a religião o único limite da arbitra riedade do soberano Nesse tipo social a igualdade é restaurada mas com a impotência de todos Montesquieu prefere esta segunda concepção da relação entre regime polí tico e tipo social Ao mesmo tempo porém podese perguntar em que medida os regimes políticos são separáveis das entidades históricas em que se realizam De qualquer forma o fato é que a idéia essencial é esse laço estabelecido entre de um lado o modo de governo o tipo de regime e de outro o estilo das relações interpessoais De fato para Montesquieu não é tão decisivo que o po der soberano pertença a uma só pessoa ou a várias o que é mais decisivo é que a autoridade seja exercida de acordo com as leis e uma ordem ou então ao con trário arbitrariamente de forma violenta A vida social difere em função do modo como o governo é exercido Essa idéia conserva todo o seu alcance den tro de uma sociologia dos regimes políticos Além disso qualquer que seja nossa interpretação das relações entre a classificação dos regimes políticos e dos tipos sociais não se pode negar a Mon tesquieu o mérito de ter colocado claramente o problema Duvido que o tenha resolvido de forma definitiva Contudo alguém mais conseguiu isso A distinção entre governo moderado e governo nãomoderado é provavel mente central no pensamento de Montesquieu e permite integrar as considera ções sobre a Inglaterra do livro XI na teoria dos tipos de governo dos primei ros livros O texto essencial neste particular é o capítulo 6 do livro XI no qual Mon tesquieu estuda a Constituição da Inglaterra5 Esse capítulo teve tal influência que muitos constitucionalistas ingleses interpretaram as instituições do seu país de acordo com a visão de Montesquieu O prestígio do seu gênio foi tal que os ingleses acharam que era possível compreender melhor suas próprias institui ções lendo O espírito das leis6 Montesquieu descobriu na Inglaterra um Estado que tem como objeto pró prio a liberdade política e também o fato e a idéia da representação política 28 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Embora todos os Estados tenham de modo geral um mesmo objetivo que é o de se manter cada Estado tem no entanto uma finalidade que lhe é particular escreve Montesquieu A expansão era o objetivo de Roma a guer ra o da Lacedemônia a religião o das leis judaicas o comércio o de Marse lha Há também uma nação no mundo que tem como objetivo próprio da sua Constituição a liberdade política Uesprit des lois liv XV cap 5 O C t II p 396 Quanto à representação a idéia não figurava em primeiro plano na teo ria da república As repúblicas em que pensa Montesquieu são antigas nelas havia uma assembléia do povo e não uma assembléia eleita pelo povo e com posta de representantes do povo Só na Inglaterra ele pôde observar plenamen te realizada a instituição representativa Esse tipo de governo que tem por objeto a liberdade e no qual o povo é representado por assembléias tem como característica principal o que se deno minou separação dos poderes doutrina que permanece atual e a propósito da qual já se especulou indefinidamente Montesquieu constata que na Inglaterra quem detém o poder executivo é um monarca Como esse poder exige rapidez de decisão e de ação é oportuno que uma só pessoa o detenha O poder legislativo é encarnado por duas assem bléias a Câmara dos Lordes que representa a nobreza e a Câmara dos Comuns que representa o povo Os poderes legislativo e executivo são exercidos por pessoas ou institui ções distintas Montesquieu descreve a cooperação desses órgãos e analisa sua separação Mostra com efeito o que cada um dos poderes pode e deve fazer com relação ao outro Há também um terceiro poder o de julgar Mas Montesquieu esclarece que o poder de julgar tão terrível entre os homens se torna por assim dizer invi sível e nulo porque não está ligado a nenhuma profissão nem a nenhum grupo da sociedade E L liv XI cap 6 O C t II p 398 O que parece indicar que como o poder judiciário é essencialmente o intérprete das leis deve ter o míni mo possível de iniciativa e personalidade Não é um poder de pessoas mas o poder das leis o que se teme é a magistratura não os magistrados Ibid O poder legislativo coopera com o executivo deve examinar em que medi da as leis estão sendo aplicadas corretamente por este último Quanto ao poder executivo não deve debater os casos mas manter relação cooperativa com o le gislativo através daquilo que ele chama de sua faculdade de impedir Montes quieu acrescenta ainda que o orçamento deve ser votado anualmente Se o po der legislativo estabelece o levantamento dos dinheiros públicos de modo per manente e não a cada ano corre o risco de perder sua liberdade pois o poder executivo deixará de depender dele ibid p 405 A votação anual do orça mento é assim uma condição da liberdade o s FUNDADORES 29 Diante destes dados gerais alguns intérpretes têm acentuado a diferença entre o poder executivo e o poder legislativo outros o fato de que deve haver uma cooperação permanente entre eles Temse aproximado o texto de Montesquieu dos de Locke sobre o mesmo assunto De fato certas excentricidades da exposição de Montesquieu são expli cáveis se nos referimos ao texto de Locke7 Em particular no princípio do capí tulo 6 há duas definições do poder executivo A primeira o define como o que decide as coisas que dependem do direito das gentes ibid p 396 o que pa rece limitálo à política exterior Um pouco mais adiante é apresentado como o poder que executa as decisões públicas ibid p 397 o que lhe dá uma exten são bem maior Nessas passagens Montesquieu segue o texto de Locke Entre Locke e Montesquieu porém há uma diferença fundamental de intenção O ob jetivo de Locke é limitar o poder real mostrar que se o monarca ultrapassa cer tos limites ou desrespeita determinadas obrigações o povo fonte verdadeira da soberania tem o direito de reagir A idéia essencial de Montesquieu porém não é a separação de poderes no sentido jurídico mas o que se poderia chamar de equilíbrio dos poderes sociais condição da liberdade política Em toda sua análise da Constituição inglesa Montesquieu supõe a existên cia de uma nobreza e duas Câmaras uma representando o povo a outra a aris tocracia Insiste em que os nobres só devem ser julgados por seus pares De fato os grandes estão sempre expostos à inveja e se fossem julgados pelo povo po deriam correr perigo sem o privilégio que tem o mais modesto dos cidadãos num Estado livre o de ser julgado pelos seus pares É preciso portanto que os nobres respondam àquela parte do corpo legislativo que é composta de nobres e não perante os tribunais ordinários da nação ibid p 404 Em outros ter mos na sua análise da Constituição inglesa Montesquieu procura reencontrar a diferenciação social a distinção das classes e das hierarquias sociais de acor do com a essência da monarquia tal como ele a define e que é indispensável à moderação do poder Comentando Montesquieu eu diria que um Estado é livre quando nele o poder limita o poder O que há de mais marcante para justificar essa interpre tação é que no livro XI depois de terminar o exame da Constituição inglesa ele volta a falar de Roma e analisa o conjunto da história romana em termos das relações entre a plebe e o patriciado O que o interessa é a rivalidade entre as classes Essa competição social é a condição do regime moderado porque as diversas classes são capazes de se equilibrar Quanto à própria Constituição é bem verdade que Montesquieu indica com detalhes como cada um dos poderes tem este ou aquele direito e como devem cooperar entre si Mas essa formalização constitucional não é mais do 30 ÀS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO que a expressão de um Estado livre ou melhor dizendo de uma sociedade livre na qual nenhum poder se estende além dos seus limites porque ele é contido por outros poderes Uma passagem de Considérations sur les causes de la grandeur et de la dé cadence des romains resume perfeitamente esse tema central de Montesquieu Como regra geral sempre que virmos todo o mundo tranqüilo num Estado que se diz uma república podemos ter certeza de que não existe ali a liberdade O que se chama de união num corpo político é coisa muito equívoca A verdadeira união é feita de harmonia que induz todas as partes por mais opostas que nos pa reçam a concorrerem para o bem geral da sociedade como as dissonâncias na mú sica concorrem para o acorde total Pode haver união num Estado em que se pensa ver apenas perturbação isto é uma harmonia da qual resulta a felicidade que é a única paz verdadeira como as partes deste universo que são eternamente ligadas pela ação de umas e a reação de outras Cap 9 O C t II p 119 A idéia de consenso social é a de um equilíbrio de forças ou da paz esta belecida pela ação e reação dos grupos sociais8 Se esta análise é correta a teoria da Constituição inglesa é uma parte cen tral da sociologia política de Montesquieu não porque seja um modelo para todos os países mas porque permite encontrar no mecanismo constitucional de uma monarquia os fundamentos do Estado moderado e livre graças ao equilí brio entre as classes sociais graças ao equilíbrio entre os poderes políticos Mas essa Constituição modelo de liberdade é aristocrática e por isso tem merecido diversas interpretações A primeira interpretação que foi durante muito tempo a dos juristas e que foi ainda provavelmente a dos constituintes franceses de 1958 é uma teoria da separação concebida em termos jurídicos dos poderes dentro do regime re publicano O Presidente da República e o Primeiroministro de um lado o Par lamento de outro têm seus direitos bem definidos chegandose a um equilíbrio no estilo e dentro das tradições de Montesquieu justamente pelo agenciamen to preciso das relações entre os diversos órgãos9 Uma segunda interpretação insiste no equilíbrio dos poderes sociais como eu o fiz acentuando também o caráter aristocrático da concepção de Montes quieu Essa idéia do equilíbrio dos poderes sociais supõe a existência de uma nobreza ela serviu de justificativa aos corpos intermediários do século XVIII no momento em que estes estavam a ponto de desaparecer Desse ponto de vis ta Montesquieu é um representante da aristocracia o qual luta contra o poder monárquico em nome de sua classe que é uma classe condenada Vítima do ardil da história ele se levanta contra o rei pretendendo agir em favor da nobre za mas sua polêmica só favorecerá de fato a causa do povo10 o s FUNDADORES 31 Pessoalmente acredito que existe uma terceira interpretação que retoma a linha da segunda porém ultrapassandoa no sentido do aufheben de Hegel isto é vai mais adiante conservando a parte de verdade É certo que Montesquieu só concebia o equilíbrio dos poderes sociais con dição da liberdade baseado no modelo de uma sociedade aristocrática Pensava que os bons governos eram moderados e que os governos só podiam ser mode rados quando o poder freava o poder ou ainda quando nenhum cidadão tivesse medo dos demais Os nobres só se podiam sentir seguros se seus direitos fos sem garantidos pela própria organização política A concepção social do equi líbrio exposta em O espírito das leis está associada a uma sociedade aristocrá tica e no debate da sua época sobre a Constituição da monarquia francesa Montesquieu pertence ao partido aristocrático e não ao do rei ou ao do povo Resta saber porém se a idéia de Montesquieu sobre as condições da liber dade e da moderação não continua válida independentemente do modelo aris tocrático que tinha em mente Montesquieu provavelmente teria dito que é pos sível conceber uma evolução social pela qual a diferenciação das ordens e hie rarquias sociais tende a se apagar Poderseia no entanto imaginar uma socie dade sem ordens e hierarquias sociais um Estado sem pluralidade de poderes que fosse ao mesmo tempo moderado e no qual os cidadãos fossem livres Podese argumentar que Montesquieu lutando pela nobreza e contra o monarca trabalhou na realidade em favor do movimento popular democrático Os acontecimentos porém justificaram em larga medida sua doutrina demons trando que um regime democrático em que o poder soberano pertence a todos nem por isso é um governo moderado e livre Pareceme que Montesquieu tem toda razão ao manter a distinção radical entre o poder do povo e a liberdade dos cidadãos Pode acontecer que o povo seja soberano e a segurança dos cidadãos e a moderação no exercício do poder desapareçam Além da formulação aristocrática da sua doutrina do equilíbrio dos pode res sociais e da cooperação dos poderes políticos11 Montesquieu elaborou o princípio segundo o qual a condição para o respeito às leis e para a segurança dos cidadãos é a de que nenhum poder seja ilimitado Este é o tema essencial de sua sociologia política Da teoria política à sociologia Essas análises da sociologia política de Montesquieu permitem formular os principais problemas da sociologia geral O primeiro deles tem a ver com a inserção da sociologia política na socio logia do conjunto social Como passar do aspecto fundamental o tipo de go verno para a compreensão de toda a sociedade A questão é comparável à que 32 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO se coloca a propósito do marxismo quando se quer passar do seu aspecto pri vilegiado a organização econômica para a compreensão do todo O segundo problema é o da relação entre o fato e o valor entre a com preensão das instituições e a determinação do regime desejável ou bom Com efeito de que modo se podem ao mesmo tempo apresentar certas instituições como determinadas isto é impostas à vontade dos homens e fazer julgamen tos políticos sobre elas Será possível para um sociólogo afirmar que um regi me que ele considera em certos casos como inevitável contraria a natureza humana O terceiro problema é o das relações entre o universalismo racional e as particularidades históricas Para Montesquieu o despotismo é contrário à natureza humana Mas o que é a natureza humana A natureza de todos os homens em todas as latitudes e em todas as épocas Até onde vão as características do homem enquanto homem e como se pode combinar o recurso a uma natureza do homem com o reconhe cimento da infinita variedade dos costumes dos hábitos e das instituições A resposta ao primeiro problema comporta três etapas ou três momentos de análise Quais são as causas exteriores ao regime político que retêm a aten ção de Montesquieu Qual o caráter das relações que ele estabelece entre as causas e os fenômenos a explicar Há ou não em O espírito das leis uma inter pretação sintética da sociedade considerada como um todo ou há simplesmen te uma enumeração de causas e uma justaposição de relações distintas entre tal determinante e tal determinado sem que se possa dizer que nenhum desses de terminantes seja decisivo A enumeração das causas não apresenta aparentemente nenhum caráter sistemático Montesquieu estuda inicialmente o que chamamos de influência do meio geográfico subdividindose este em clima e solo Quando considera o solo ele se pergunta como os homens cultivam a terra e repartem a propriedade em fun ção da natureza do solo Depois de estudar a influência do meio geográfico Montesquieu passa no livro XIX à análise do espírito geral de uma nação expressão bastante equívo ca pois não se percebe à primeira vista se se trata de um determinante resul tado do conjunto dos outros determinantes ou se se trata de um determinante isolável Em seguida Montesquieu considera não mais as causas físicas porém as causas sociais entre as quais o comércio e a moeda Poderseia dizer que ele trata essencialmente então do aspecto econômico da vida coletiva se não negli genciasse quase inteiramente um elemento que para nós é essencial na análise da economia a saber os meios de produção para empregar a expressão mar OS FUNDADORES 33 xista ou os utensílios e os instrumentos técnicos de que os homens dispõem Para Montesquieu a economia é essencialmente ou bem o regime de proprie dade em particular o da terra ou bem o comércio o intercâmbio as comuni cações entre as coletividades ou enfim a moeda que a seus olhos constitui um aspecto essencial das relações entre os homens dentro das coletividades ou entre coletividades Tal como a vê a economia é essencialmente agricultura e comércio Ele não ignora o que chama as artes o começo daquilo que hoje chamamos de indústria A seus olhos contudo as cidades que dominam a vida econômica são centros de atividades mercantis ou de comércio como Atenas Veneza e Gênova Em outros termos há uma antítese essencial entre as coletivi dades cuja preocupação dominante é a atividade militar e aquelas em que a preo cupação dominante é o comércio Essa noção era tradicional na filosofia polí tica prémoderna A originalidade das sociedades modernas que está associa da ao desenvolvimento da indústria não era percebida pela filosofia política clássica Neste particular Montesquieu pertence àquela tradição Neste senti do podese mesmo dizer que é anterior aos enciclopedistas está longe de ter compreendido plenamente as implicações das descobertas tecnológicas para a transformação dos modos de trabalho e de toda a sociedade Depois do comércio e da moeda vem o estudo da população do número de habitantes Historicamente o problema demográfico pode ser colocado de duas formas Às vezes tratase de lutar contra a redução da população o que para Mon tesquieu é o caso mais freqüente porque segundo ele o que ameaça a maior parte das sociedades é o despovoamento Mas ele conhece também o desafio oposto a luta contra um desenvolvimento da população além dos recursos dis poníveis Finalmente examina o papel da religião que considera como uma das in fluências mais eficazes sobre a organização da vida coletiva Não há dúvida portanto de que Montesquieu passa em revista um certo número de causas Parece que a distinção mais importante para ele é a das cau sas físicas e morais O clima e a natureza do solo pertencem às causas físicas enquanto o espírito geral de uma nação e a religião constituem causas morais Ele poderia facilmente ter feito do comércio e do número de habitantes uma categoria distinta a categoria das características da vida coletiva que atuam so bre os outros aspectos dessa mesma vida coletiva Mas Montesquieu não fez nenhuma teoria sistemática das diversas causas Bastaria contudo alterar a ordem para chegar a uma enumeração satisfató ria Partindo do meio geográfico com as duas noções elaboradas com mais precisão de clima e de natureza do solo passaríamos ao número de habitan tes pois é mais lógico passar do meio físico que limita o volume da socieda de para o número de habitantes A partir daí chegaríamos então às causas pro priamente sociais entre as quais Montesquieu distinguiu assim mesmo as 34 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO duas mais importantes de um lado o conjunto das crenças que ele chama de religião seria fácil ampliar esta noção e de outro a organização do trabalho e do comércio Terminaríamos com aquilo que é o verdadeiro ponto culminan te da sociologia de Montesquieu o conceito do espírito geral de uma nação Quanto aos determinados isto é o que Montesquieu procura explicar pelas causas que examina penso que emprega essencialmente três noções de leis de costumes e de hábitos que define com precisão Costumes moeurs e hábitos manières são usos que as leis não estabelece ram não puderam ou não quiseram estabelecer A diferença entre as leis e os cos tumes é que as primeiras regulam mais as ações do cidadão e os costumes regulam mais as ações do homem Costumes e hábitos diferem no sentido de que os costu mes regulam mais a conduta interior e os hábitos a exterior E L liv XIX cap 16 O C t II p 566 A primeira distinção entre leis e costumes corresponde à que fazem os sociólogos entre o que é decretado pelo Estado e o que é imposto pela socieda de Num caso há regras explicitamente formuladas sancionadas pelo próprio Estado no outro regras positivas ou negativas ordens ou proibições que se impõem aos membros de uma coletividade sem uma lei que as tome obrigató rias e sem que haja sanções legalmente previstas em caso de violação A distinção entre costumes moeurs e hábitos manières inclui a diferença entre os imperativos interiorizados e as maneiras de agir puramente exteriores ordenados pela coletividade Montesquieu distingue ainda essencialmente três tipos principais de leis as leis civis relativas à organização da vida familiar as leis penais pelas quais se interessa apaixonadamente como todos os seus contemporâneos12 e as leis constitutivas do regime político Para compreender as relações estabelecidas por Montesquieu entre as causas e as instituições tomarei como exemplo os célebres livros que tratam do meio geográfico Neles aparece mais claramente o caráter da análise de Montesquieu No meio geográfico considera essencialmente o clima e o solo mas sua elaboração conceituai é bastante pobre Com respeito ao clima limitase quase que à oposição frioquente moderadoextremado Desnecessário dizer que os geógrafos modernos utilizam noções muito mais precisas distinguindo muitos diferentes tipos de clima Quanto ao solo Montesquieu considera sobretudo sua fertilidade ou esterilidade e subsidiariamente o relevo e sua distribuição por sobre um continente determinado Em todos esses pontos aliás é pouco origi nal muitas de suas idéias provêm de um médico inglês Arbuthnot13 O que nos interessa aqui porém é a natureza lógica das relações causais formuladas os FUNDADORES 35 Em muitos casos Montesquieu explica diretamente pelo clima o tempera mento dos homens sua sensibilidade a maneira de ser Diz por exemplo Nos países frios encontraremos menor sensibilidade para os prazeres que será maior nos países temperados e extrema nos países quentes Da mesma forma como se distinguem os climas pelos graus de latitude podese distinguilos por assim dizer pelos graus de sensibilidade Vi as óperas inglesas e italianas As peças e os atores são os mesmos mas a mesma música produz efeitos tão dife rentes nas duas nações numa é tão calma e na outra tão exaltada que isso nos parece inconcebível E L liv XIV cap 2 O C t II p 476 A sociologia seria fácil se as proposições deste tipo fossem verdadeiras Montesquieu parece acreditar que um certo meio físico determina diretamente uma certa maneira de ser fisiológica nervosa e psicológica dos homens Outras explicações porém são mais complexas como aquelas célebres relativas à escravidão No livro XV cujo título é Como as leis da escravidão civil estão relacionadas com a natureza do clima lêse Há países onde o calor enfraquece o corpo e debilita de tal forma a disposi ção que os homens só cumprem um dever penoso movidos pelo medo de serem castigados Nesses países portanto a escravidão choca menos a razão E como o senhor é tão covarde com relação ao príncipe quanto o escravo com relação ao se nhor a escravidão civil é acompanhada da escravidão política Cap 7 O C t II p 495 Um texto como esse é revelador das diferentes facetas do espírito de Mon tesquieu Há em primeiro lugar uma explicação simples quase simplória da relação entre clima e escravidão Na mesma passagem se encontra a fórmula Nesses países portanto a escravidão choca menos a razão o que implica que a escravidão enquanto tal choca a razão e contém implicitamente uma refe rência à concepção universal da natureza humana Nessa passagem encontramos justapostos os dois aspectos da interpretação de um lado interpretação deter minista das instituições enquanto fatos de outro o julgamento sobre essas ins tituições feito em nome de valores universalmente válidos A compatibilidade desses dois modos de pensar é assegurada aqui pela fórmula choca menos a razão Afirmando que a escravidão é como tal contrária à essência da nature za humana Montesquieu encontra na influência do clima razão para justificála Contudo uma tal proposição só é admissível logicamente na medida em que o clima influencia uma instituição ou a favorece sem tornála inevitável De fato se houvesse aí uma relação necessária de causa e efeito estaríamos eviden temente diante da contradição entre uma condenação moral e um determinismo demonstrado cientificamente 36 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Esta interpretação é confirmada no capítulo seguinte Montesquieu conclui com estas linhas típicas do seu pensamento Não sei se é a mente ou o coração que me dita este artigo Talvez não haja na terra esse clima que não permita levar homens livres a trabalhar Por haver leis mal feitas surgiram homens preguiçosos Como esses homens eram preguiçosos foram transformados em escravos Livro XV cap 8 p 497 Aparentemente este último texto nega o precedente que parece atribuir a escravidão ao clima ao passo que aqui ela resulta das más leis e a frase pre cedente implica que em nenhuma parte o clima é tal que a escravidão se torne necessária Na verdade Montesquieu está embaraçado como todos os sociólo gos diante de fenômenos dessa natureza Se vão até o fim da sua explicação causai e descobrem que a instituição que abominam foi inevitável precisam tudo aceitar Isso ainda passa quando se trata de instituições de séculos anterio res o passado estando definitivamente estabelecido não é necessário perguntar o que teria sido possível mas se aplicarmos essas considerações às sociedades atuais e se as aplicarmos às sociedades passadas por que não as aplicar às sociedades atuais chegaremos a um impasse como poderia o sociólogo acon selhar reformas se as instituições mais desumanas são inevitáveis Esses textos só podem ser compreendidos a meu ver se admitirmos que as explicações das instituições pelo meio geográfico são do tipo que um sociólo go moderno chamaria de relação de influência e não de relação de necessida de causai Uma certa causa torna determinada instituição mais provável do que outra Além do mais o trabalho do legislador consiste muitas vezes em con trabalançar as influências diretas dos fenômenos naturais em inserir no tecido do determinismo leis humanas cujos efeitos se opõem aos efeitos diretos e es pontâneos dos fenômenos naturais14 Montesquieu acredita menos do que se tem afirmado no determinismo rigoroso do clima É verdade que admitiu como muitos outros em sua época e com grande simplicidade que o temperamento e a sensibilidade dos homens eram função direta do clima e que de outro lado procurou estabelecer relações de probabilidade entre os dados externos e cer tas instituições mas também é verdade que reconheceu a pluralidade das cau sas e a possibilidade da atuação do legislador também suas análises significam que o meio não determina as instituições mas as influencia contribuindo para orientálas num sentido determinado15 Examinando os outros determinantes Montesquieu se pergunta sobre a re lação entre o número de habitantes e as artes16 colocando o problema para nós fundamental do volume da população que depende evidentemente dos meios de produção e da organização do trabalho o s FUNDADORES 37 De um modo geral o número de habitantes é função das possibilidades da produção agrícola Numa determinada coletividade pode haver tantas pessoas quantas possam ser alimentadas pelos agricultores Se o solo for bem cultiva do os agricultores serão capazes não só de produzir alimentos para se alimen tar mas para alimentar outras pessoas É preciso porém que os agricultores queiram produzir além daquilo que é necessário para sua subsistência Convém portanto incentivar os agricultores a produzir o máximo possível e encorajar a troca entre os bens produzidos nas cidades pelas artes ou indústria e os bens produzidos no campo Montesquieu conclui que para incitar os camponeses a pro duzir é bom despertarlhes o gosto pelo supérfluo Essa é outra idéia que corresponde à verdade Só se pode iniciar o proces so de expansão nas sociedades subdesenvolvidas criando novas necessidades para os agricultores que vivem nas condições tradicionais É preciso que dese jem possuir mais do que aquilo a que estão acostumados Ora diz Montesquieu só os artesãos produzem esse supérfluo Mas continua Essas máquinas cujo objeto é poupar o esforço nem sempre são úteis Se um produto tem preço moderado que convém igualmente a quem o compra e ao ope rário que o produziu as máquinas que simplificassem sua produção isto é redu zissem o número de operários seriam perniciosas se os moinhos dágua não esti vessem implantados em toda a parte não os consideraria tão úteis quanto se afirma porque fizeram parar uma infinidade de braços privando muita gente do uso da água o que fez com que muitas terras perdessem sua fecundidade E L liv XXIII cap 15 O C t II p 692 Este texto é interessante Essas máquinas cuja finalidade é abreviar a arte em estilo moderno inferior ao de Montesquieu são máquinas que reduzem o tempo de trabalho necessário à produção de objetos manufaturados O que preo cupa Montesquieu portanto é o que chamaríamos de desemprego tecnológico Se com a ajuda de uma máquina é possível produzir o mesmo objeto com menos tempo de trabalho um certo número de operários deverá ser afastado do processo de produção Isso preocupa Montesquieu como preocupou muitos ou tros homens a cada geração nos últimos dois séculos Esse raciocínio omite evidentemente aquilo que se tornou o princípio de toda a economia moderna a idéia de produtividade Se se pode produzir o mesmo objeto com menos tempo de trabalho a mãodeobra liberada poderá ser empregada em outra atividade aumentando assim a produção disponível para toda a coletividade Esse texto demonstra que falta a nosso autor um elemento de doutrina que era conhecido em seu século os Enciclopedistas já o tinham compreendido Montesquieu não entendeu o alcance econômico do progresso científico e tecnológico lacuna bastante curiosa porque se interessava muito 38 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO pela ciência e a tecnologia tendo escrito vários ensaios sobre as ciências e as descobertas tecnológicas Não chegou contudo a compreender o mecanismo pelo qual a diminuição do tempo de trabalho necessário para produzir um bem de terminado permite empregar mais trabalhadores e aumentar o volume global da produção17 Chego agora à terceira etapa do meu questionário sobre o método de Mon tesquieu Em que medida sua investigação ultrapassa a sociologia analítica e a pluralidade de causas De que forma consegue reconstituir o conjunto Penso que se existe uma concepção sintética da sociedade em Lesprit des lois ela está no livro XIX consagrado ao espírito geral de uma nação Montesquieu escreve Várias coisas governam os homens o clima a religião as leis as máximas do governo os exemplos das coisas passadas os costumes os hábitos disso resulta um espírito geral À medida que em cada nação uma dessas causas age com mais força as outras lhe cedem lugar A natureza e o clima dominam de modo quase exclusivo a vida dos selvagens os hábitos governam os chineses as leis tiranizam o Japão os costu mes davam outrora o tom na Lacedemônia e as máximas de governo e os costumes antigos davamno em Roma E L liv XIX cap 4 O C t II p 558 Esse texto merece um comentário No primeiro parágrafo aparece a plura lidade de causas de novo com uma enumeração aparentemente mais empírica do que sistemática As coisas que governam os homens são os fenômenos naturais como o clima e as instituições sociais como a religião as leis as máxi mas de governo são também por outro lado a tradição a continuidade histó rica característica de toda a sociedade e que Montesquieu chama de exemplos das coisas passadas Todas essas coisas juntas formam o espírito geral Este portanto não é uma causa parcial comparável às outras mas a resultante do con junto das causas físicas sociais e morais O espírito geral é uma resultante mas uma resultante que permite apreen der o que constitui a originalidade e a unidade de uma determinada coletivida de Há um espírito geral da França um espírito geral da Inglaterra Passase da pluralidade das causas à unidade do espírito geral sem que este exclua as cau salidades parciais O espírito geral não é uma causa dominante todopoderosa que possa apagar as outras São as características que uma determinada coleti vidade adquire através do tempo como resultado da pluralidade das influências que atuam sobre ela Montesquieu acrescenta uma proposição que logicamente não está impli cada nas duas precedentes pode ocorrer no curso da história que uma causa se tome progressivamente predominante Esboça assim uma teoria ainda hoje o s FUNDADORES 39 clássica a de que nas sociedades arcaicas o domínio das causas materiais é mais forte do que nas sociedades complexas ou como ele diria civilizadas Provavelmente nosso autor afirmaria que no caso de nações antigas como a França e a Inglaterra a ação das causas físicas do clima ou do solo é mode rada comparativamente à ação das causas morais Num certo momento da his tória determinada causa deixa sua marca e impõe seu modelo ao comporta mento de uma coletividade Inclinome a crer que Montesquieu chama de espírito geral de uma nação o que os antropólogos norteamericanos denominam de cultura de uma nação is to é um certo estilo de vida e de relações em comum que é menos uma causa do que um efeito resultado do conjunto das influências físicas e morais que através do tempo modelaram a coletividade Existem contudo em Montesquieu implícita ou explicitamente duas idéias de síntese possíveis Uma seria a influência predominante do regime político e a outra o espírito geral de uma nação Em relação à primeira a da influência predominante das instituições polí ticas podese hesitar entre duas interpretações Tratase de uma influência pre dominante no sentido causai do termo ou de uma influência predominante com relação ao que interessa antes de tudo ao observador como diríamos em lingua gem moderna com relação aos nossos valores isto é com relação à hierarquia da importância que estabelecemos entre diferentes aspectos da vida coletiva Entre essas duas interpretações os textos não permitem uma escolha cate górica Muitas vezes temos a impressão de que Montesquieu admite as duas si multaneamente Entre as causas que agem historicamente ele entende que cabe às instituições políticas a ação mais importante Mas se lhe tivéssemos pergun tado ou objetado a ação mais importante em relação a quê Ele teria provavel mente respondido em relação à grandeza das nações seus êxitos e infortúnios isto é em última análise em relação ao que constitui o objeto privilegiado da curiosidade científica Quanto ao espírito geral de uma nação ele retorna à teoria das instituições políticas dos primeiros livros pois um regime só se mantém na medida em que o sentimento que lhe é necessário existe no povo O espírito geral de uma nação é o que mais contribui para manter esse sentimento ou princípio indispensável à continuidade do regime O espírito geral de uma nação não pode ser comparado à vontade criadora de uma pessoa ou coletividade Não se parece com a escolha existencial de Kant ou de Sartre decisão única que está na originalidade da pluralidade dos atos ou episódios de uma existência individual ou coletiva O espírito geral de uma nação é a maneira de ser de agir de pensar e de sentir de uma coletividade tal como o fizeram a geografia e a história 40 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Preenche sem dúvida duas funções permite o reagrupamento das expli cações parciais sem representar uma explicação última que englobaria todas as demais permite além disso passar da sociologia política para a sociologia do todo social Montesquieu escreve assim Os povos das ilhas são mais inclinados à li berdade do que os povos do continente As ilhas são ordinariamente de peque na extensão uma parte da população não pode ser empregada para oprimir a outra o mar as separa dos grandes impérios e a tirania não pode chegar até lá Os conquistadores esbarram no mar os insulares não são envolvidos pelas con quistas e conservam mais facilmente suas leis E L liv XVIII cap 5 O C t II p 534 Várias dessas afirmações são discutíveis porém tratase apenas de definir o método de Montesquieu Ora nesse capítulo vemos como uma certa situação geográfica favorece uma espécie de instituição política sem contudo determinála Igualmente o capítulo 27 do livro XIX intitulado Como as leis podem contribuir para a formação dos costumes dos hábitos e do caráter de uma na ção e que trata da Inglaterra mostra também quando o lemos depois do cap 6 do livro XI dedicado à constituição britânica como a teoria do princípio reencontra a teoria do espírito geral de uma nação e como as explicações múl tiplas de caráter parcial podem ser reagrupadas na interpretação global de uma determinada coletividade sem que essa interpretação totalizante esteja em con tradição com a pluralidade das explicações parciais Os fatos e os valores A questão fundamental de toda sociologia histórica poderia ser formulada do seguinte modo o sociólogo estaria condenado a observar a diversidade das instituições sem formular um juízo de valor sobre elas Em outras palavras ele deve explicar a escravidão assim como as instituições liberais sem ter possi bilidade de estabelecer uma discriminação e uma hierarquia entre os méritos morais ou humanos de uma ou de outra instituição Em segundo lugar na me dida em que constata uma diversidade de instituições estaria ele obrigado a passar em revista essa diversidade sem integrála num sistema ou ao contrário ele poderia para além dessa variedade encontrar elementos comuns Essas duas antíteses não se sobrepõem exatamente Contudo sem serem equivalentes podem aproximarse desde que os critérios que determinam nossos juízos de valor sejam também critérios universalmente válidos Para analisar esses problemas será melhor tomar como ponto de partida uma noção central de O espírito das leis a saber a própria noção de lei Afinal o s FUNDADORES 41 a grande obra de Montesquieu se chama O espírito das leis e é na análise da noção ou das noções de lei que encontramos a resposta para os problemas que acabo de formular Para nós modernos formados pela filosofia de Kant e pela lógica ensinada nas escolas o termo lei tem duas significações Pode significar primeiramente uma prescrição do legislador uma ordem dada pela autoridade competente que nos obriga a fazer isso ou a não fazer aquilo Chamemos esse primeiro sentido de leipreceito e precisemos que a leipreceito a lei positiva a lei do legislador difere dos costumes e dos hábitos por ser formulada explicitamente enquanto as obrigações e interdições propostas pelos costumes não são elaboradas nem codificadas e de modo geral não têm o mesmo tipo de sanção Podese entender também por lei uma relação de causalidade entre um de terminante e um efeito Por exemplo se afirmamos que a escravidão é uma con seqüência necessária de determinado clima temos uma lei causai que estabele ce uma relação constante entre um meio geográfico de um tipo determinado e uma instituição particular a escravidão Ora Montesquieu escreve que não trata das leis mas do espírito das leis As leis positivas afirma devem estar relacionadas ao aspecto do país seu cli ma frio quente ou temperado à qualidade do solo à sua situação à sua exten são ao tipo de vida dos povos agricultores caçadores ou pastores Elas devem se referir ao grau de liberdade que a Constituição pode suportar à religião dos habitantes às suas inclinações às suas riquezas ao seu número ao seu comér cio a seus costumes e hábitos Enfim as leis têm relação entre si com sua ori gem com o objeto do legislador com a ordem das coisas sobre as quais estão estabelecidas Fazse necessário considerálas É o que pretendo fazer neste livro Examinarei todas essas relações elas formam um conjunto ao qual cha mo de Espírito das leis E L liv I cap 3 O C t II p 238 Montesquieu procura portanto as leis causais que explicam as leisprecei tos De acordo com o texto acima o espírito das leis é precisamente o conjunto das relações entre as leispreceitos das diversas sociedades humanas e os fato res suscetíveis de influenciálas ou de determinálas O espírito das leis é o con junto das relações de causalidade que explicam as leispreceitos Contudo o fato de utilizarmos o termo lei nesses dois sentidos como o faz Montesquieu traz o perigo de malentendidos e dificuldades Se o pensamento de Montesquieu se resumisse às fórmulas precedentes sua interpretação seria fácil As leispreceitos constituiriam o objeto de estudo e as relações de causalidade seriam a explicação dessas leis Se essa interpretação fosse exata seria fiel o reirato de Montesquieu feito por Auguste Comte e alguns outros intérpretes modernos L Althusser por exemplo sustenta que Montes quieu deveria ter pensado assim mesmo supondose que não o tenha feito18 Nes sa hipótese tudo seria bem simples Montesquieu admitiria uma filosofia deter 42 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO minista das leis Essa filosofia constataria a diversidade das legislações e a ex plicaria pela multiplicidade das influências que se exercem sobre as coletividades humanas A filosofia do determinismo se associaria à filosofia da diversidade indefinida das formas de existência coletiva Montesquieu se limitaria a extrair do estudo causai suas conseqüências pragmáticas pressupondo os objetivos do legislador Existem aliás textos bastante conhecidos que têm esse sentido Por exemplo Não escrevo para censurar o que foi estabelecido em nenhum país Cada na ção encontrará aqui as razões das suas máximas e concluiremos naturalmente que em conseqüência só àqueles que tiveram a felicidade de nascer com condições para penetrar com um ato de genialidade toda a constituição de um Estado compete propor alterações Se pudesse fazer com que todo o mundo tivesse novas razões para gostar de suas obrigações amar seu soberano sua pátria suas leis que as pessoas pudessem sentir melhor sua felicidade em cada país em cada governo em cada função em que se encontre eu me consideraria o mais feliz de todos os mortais Prefácio E L O C t II p 230 É verdade que este texto está no prefácio de O espírito das leis e poderia ser explicado pelas circunstâncias Mas também é verdade que na medida em que Montesquieu tivesse sustentado uma filosofia rigorosamente determinista poderia ser também rigorosamente conservador Se admitirmos que as institui ções de uma coletividade são determinadas necessariamente por um conjunto de circunstâncias será fácil escorregar para a conclusão de que as instituições existentes são as melhores Restaria saber se seria o caso de acrescentar no melhor ou no pior dos mundos possíveis É preciso acrescentar que há também em Montesquieu numerosos textos em que ele formula conselhos aos legisladores Esses conselhos é verdade não são contraditórios com uma filosofia de terminista e particularista Se uma instituição é explicada por uma certa influên cia temos o direito de procurar o que seria necessário fazer para atingir deter minados objetivos Por exemplo se demonstrarmos que a legislação decorre do espírito de uma nação será lógico retirar daí o seguinte conselho devemse adap tar as leispreceitos a serem promulgadas segundo o espírito dessa nação O célebre capítulo sobre o espírito da nação francesa termina com o conselho Deixaio fazer seriamente as coisas frívolas e alegremente as coisas sérias E L liv XIX cap 5 O C t II p 559 Também quando um regime foi re duzido a sua natureza e a seu princípio é fácil demonstrar as leis que são apro priadas Assim se a república se fundamenta na igualdade dos homens tirase daí a conseqüência lógica de que as leis da educação ou da economia devem favorecer o sentido de igualdade ou impedir a formação de grandes fortunas o s FUNDADORES 43 A filosofia determinista não exclui os conselhos se esses conselhos per manecem relativos a uma determinada situação geográfica ao espírito de uma nação ou à natureza do regime Em outras palavras tratase de imperativos con dicionais ou hipotéticos O legislador se coloca numa determinada conjuntura e estabelece os preceitos que se impõem na medida em que ele deseja manter um regime ou permitir que a nação prospere Esses tipos de conselhos perten cem à ordem do que LévyBruhl teria chamado de arte racional extraída da ciência essas são as conseqüências pragmáticas de uma sociologia científica Há contudo em O espírito das leis muitos outros textos em que Montesquieu não formula conselhos pragmáticos ao legislador mas condena moralmente determinadas instituições Os textos mais célebres neste particular são os capí tulos do livro XV relativos à escravidão ou o capítulo 13 do livro XXV intitu lado Minha humilde admoestação aos inquisidores de Espanha e de Portu gal um eloqüente protesto contra a Inquisição Muitas vezes Montesquieu dá livre curso a sua indignação a propósito de certas modalidades de organização coletiva Em todos esses textos Montesquieu julga e julga não como sociólogo mas como moralista Podemse explicar esses protestos dizendo que Montesquieu é um homem e não apenas um sociólogo Como sociólogo ele explica a escravidão Quando se indigna é o homem que fala Ao condenar ou defender esquece que está escrevendo um livro de sociologia Mas essa interpretação que atribuiria os julgamentos morais ao Montes quieu homem e não ao Montesquieu cientista contradiz alguns dos textos mais essenciais os do primeiro livro de O espírito das leis em que Montesquieu ela bora uma teoria dos diversos tipos de leis Desde o primeiro capítulo do livro I Montesquieu afirma que existem re lações de justiça ou de injustiça anteriores às leis positivas Ora se formos até o fundo da filosofia da particularidade e do determinismo diremos que o que é justo ou injusto é constituído como tal pelas leis positivas pelos preceitos do legislador e a tarefa do sociólogo consistiria pura e simplesmente em estudar o que os legisladores em diferentes épocas e diferentes sociedades consideraram justo ou injusto Mas Montesquieu afirma de modo bem explícito que não é assim E preciso confessar a existência de relações de eqüidade anteriores à lei positiva que as estabelece Ou ainda Dizer que não há nada justo ou injusto além do que ordenam ou proíbem as leis positivas corresponde a afirmar que antes de termos traçado o círculo nem todos os seus raios eram iguais E L liv I cap 1 O C t II p 233 Em outras palavras se levamos a sério essa formulação devemos admitir que Montesquieu acredita nas relações de eqüidade e nos princípios de justiça anteriores à lei positiva e universalmente válidos Essas relações de eqüidade 44 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO anteriores à lei positiva são por exemplo que admitindo a existência de socie dades de homens seria justo respeitar suas leis que se seres inteligentes tives sem recebido benefício de algum outro deveriam ficarlhe gratos que se um ser inteligente tivesse criado um outro ser inteligente o ser criado deveria per manecer na dependência que existiu desde a sua origem que um ser inteligen te que fez mal a um outro ser inteligente merece receber o mesmo mal e assim por diante Ibid Esta enumeração não tem caráter sistemático Vêse porém que no fundo tudo se reduz a duas noções a de igualdade humana e a de reciprocidade Essas leis da razão essas leis supremas baseiamse na igualdade natural dos homens e nas obrigações de reciprocidade que dela decorrem Essas leis anteriores às leis positivas não são evidentemente leis causais mas leispreceitos que não se originam da vontade de legisladores particulares mas são consubstanciais à natureza ou à razão do homem Haveria portanto uma terceira espécie de lei Além das leis positivas de cretadas em diferentes sociedades além das leis causais que estabelecem rela ções entre as leis positivas e as influências que agem sobre elas há também leis preceitos universalmente válidas cujo legislador é desconhecido a não ser que seja o próprio Deus o que é sugerido por Montesquieu sem que se possa afir mar que seja o seu pensamento profundo Chegamos assim ao problema central da interpretação de O espírito das leis É possível com efeito considerar que essas leis naturais essas leis da razão universalmente válidas não podem ter um lugar no pensamento original de Montesquieu Este as teria conservado por prudência ou por hábito os revo lucionários são sob certos aspectos mais conservadores do que imaginam O que seria revolucionário em Montesquieu seria a explicação sociológica das leis positivas o determinismo aplicado à natureza social A lógica do seu pen samento comportaria apenas três elementos a observação da diversidade das leis positivas a explicação dessa diversidade em função de causas múltiplas e por fim os conselhos práticos dados ao legislador com base na explicação científica das leis Neste caso Montesquieu seria um verdadeiro sociólogo posi tivista que explica aos homens por que eles vivem de determinada maneira O sociólogo compreende os outros homens melhor do que eles próprios se com preendem descobre as causas que explicam a forma assumida pela existência coletiva em diferentes climas e em épocas diferentes ajuda cada sociedade a viver de acordo com sua própria essência isto é de acordo com seu regime seu clima seu espírito geral Os juízos de valor estão sempre subordinados ao obje tivo que adotamos e que é sugerido pela realidade Nesse esquema não há lugar para as leis universais da razão ou da natureza humana O capítulo 1 do livro I o s FUNDADORES 45 de O espírito das leis não teria conseqüências ou seria na doutrina de Montes quieu um resíduo de um modo de pensar tradicional Pessoalmente não acredito que esta interpretação faça justiça a Montes quieu Não creio que se possa explicar o capítulo 1 do livro I unicamente pela prudência Por outro lado não estou convencido de que alguém tenha aceito al gum dia até suas últimas conseqüências essa filosofia integralmente determi nista Se fôssemos até as últimas conseqüências desse tipo de filosofia não seria possível dizer nada de universalmente válido para apreciar os méritos compa rados da república ou do despotismo Ora certamente Montesquieu deseja ao mesmo tempo explicar a diversidade das instituições e conservar o direito de julgar essa diversidade Qual é então a filosofia para a qual ele tende de modo mais ou menos confuso Montesquieu desejaria de um lado explicar de modo causai a diversidade das leis positivas e em segundo lugar desejaria dispor de critérios válidos e universais para fundamentar os juízos de valor ou morais relativos às institui ções consideradas Esses critérios do modo como ele os formula são extrema mente abstratos e estão todos associados a uma noção de igualdade ou de reci procidade Finalmente as instituições que condena de modo radical a escra vidão ou o despotismo são a seus olhos contrárias às características do homem enquanto homem São instituições que contradizem as aspirações naturais do homem Como solução Montesquieu sugere no primeiro capítulo do livro I uma espécie de hierarquia dos seres da natureza inorgânica até o homem Todos os seres têm suas leis a Divindade tem suas leis o mundo material tem suas leis as inteligências superiores ao homem têm suas leis os animais têm suas leis o homem tem suas leis O C t II p 232 Quando se trata da matéria essas leis são pura e simplesmente leis causais essas são leis necessárias que não podem ser violadas Quando chegamos à vida as leis são também leis causais embora de natureza mais complexa Finalmente quando chegamos ao homem essas leis nos diz Montesquieu impondose a um ser inteligente podem ser violadas porque a liberdade acompanha a inteligência As leis relativas à con duta humana não são mais do tipo de causalidade necessária Em outros termos a filosofia que permite a combinação da explicação científica das leis positivas com a manutenção de imperativos universalmente válidos é uma filosofia da hierarquia dos seres que levaria a uma diversidade de leis hierarquia que começa com a natureza inorgânica comandada por leis invariáveis e vai até o homem submetido a leis racionais que ele é capaz de violar Daí a fórmula que sempre pareceu paradoxal É preciso que o mundo in teligente seja tão bem governado quanto o mundo físico porque embora o pri 46 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO meiro tenha também leis que por sua natureza são invariáveis não as segue constantemente como o mundo físico segue as suas próprias A razão está em que os seres inteligentes particulares são limitados por sua natureza e em con seqüência estão sujeitos ao erro Por outro lado é próprio de sua natureza agi rem por si mesmos E L liv I cap 1 O C t II p 233 Esse texto parece enunciar uma inferioridade do mundo inteligente com relação ao mundo físico porque as leis do mundo inteligente leis racionais que comandam seres inte ligentes podem ser violadas Com efeito o filósofo não é obrigado a consi derar a violação possível das leis racionais como uma prova da inferioridade do mundo inteligente com relação ao mundo físico mas pode pelo contrário interpretála como expressão e prova da liberdade humana Podese acusar Montesquieu a propósito dessa concepção da hierarquia dos seres e da heterogeneidade das leis segundo a natureza dos seres de con fundir as duas noções de leis causais e de leispreceitos A teoria da hierarquia dos seres parece classificar na mesma categoria as leis necessárias da matéria as leis do movimento e as leispreceitos da razão Não creio que Montesquieu faça essa confusão Ele estabelece uma dife rença entre as leis positivas promulgadas por um legislador as relações causais que se encontram na história como na natureza e finalmente as leis universal mente válidas associadas de modo intrínseco à razão O que ele pretende é sim plesmente encontrar uma filosofia que lhe permita combinar a explicação de terminista das particularidades sociais com julgamentos morais e filosóficos que sejam universalmente válidos Quando L Althusser critica Montesquieu por essa referência às leis uni versais da razão e propõe contentarse com a explicação determinista das leis na sua particularidade e com os conselhos práticos tirados dessa explicação ele pensa como marxista Ora se o marxismo condena a referência às leis uni versais da razão é porque encontra o equivalente no movimento da história em direção a um regime que realizaria todas as aspirações dos homens e dos sécu los passados De fato uns ultrapassam a filosofia determinista fazendo apelo ao futuro outros a critérios universais le caráter formal Montesquieu escolheu este últi mo caminho para ir além da particularidade Não creio que já se tenha demons trado que sua escolha tenha sido errada O segundo aspecto da filosofia de Montesquieu depois da hierarquia dos seres é constituído pelo capítulo 2 do livro I no qual ele especifica o que seja o homem natural isto é sua concepção do homem enquanto homem anterior por assim dizer à sociedade A expressão anterior à sociedade não significa que na sua opinião tenha havido homens que vivessem afastados da sociedade mas apenas que podemos tentar conceber pela razão o que é o homem sem levar o s FUNDADORES 47 em conta a influência da coletividade em que vive Nesse capítulo Montesquieu pretende refutar a concepção da natureza em Hobbes Essa refutação constitui a meu ver uma maneira de penetrar na compreensão dos temas fundamentais do seu pensamento Montesquieu quer demonstrar que em si mesmo o homem não é belico so O estado da natureza não implica um estado de guerra de todos contra todos mas se não uma paz verdadeira pelo menos um estado estranho à distinção pazguerra Montesquieu quer refutar Hobbes porque este considerando que o homem se acha no estado natural em hostilidade para com seus semelhantes justifica o poder absoluto que é o único capaz de impor a paz e dar segurança a uma espécie belicosa Montesquieu porém não vê a origem da guerra no es tado da natureza Para ele o homem não é intrinsecamente inimigo do homem e a guerra é um fenômeno mais social do que humano Se a guerra e a desigual dade estão ligadas à essência da sociedade e não à essência do homem o obje tivo da política não será eliminar a guerra e a desigualdade inseparáveis da vida coletiva mas simplesmente atenuálas ou moderálas Esses dois raciocínios aparentemente paradoxais são no fundo bastante lógicos Se a guerra é humana podese sonhar com a paz absoluta Se é social apoiamos simplesmente o ideal da moderação Comparando as idéias de Montesquieu com as de JeanJacques Rousseau observase oposição comparável à que acabamos de notar entre Montesquieu e Hobbes Rousseau se refere a um estado da natureza concebido pela razão hu mana que serve por assim dizer de critério à sociedade Esse critério o leva a uma concepção da soberania absoluta do povo Nosso autor se limita a consta tar que as desigualdades provêm da sociedade o que não o leva a concluir que é preciso retornar a uma igualdade natural mas que na medida do possível é preciso atenuar as desigualdades que têm raiz na própria sociedade A concepção de estado de natureza de Montesquieu não só é reveladora do conjunto da sua filosofia política mas está também na origem dos livros IX e X consagrados ao direito das gentes O direito das gentes se fundamenta naturalmente no princípio de que as diver sas nações devem fazer durante a paz o maior bem umas às outras e na guerra o menor mal possível sem prejudicar seus interesses verdadeiros O objetivo da guer ra é a vitória o da vitória a conquista o da conquista a conservação Deste princí pio e do precedente devem derivar todas as leis que compõem o direito das gentes E L liv I cap 3 O C t II p 237 Esse texto mostra que há em O espírito das leis não somente explicação cien tífica causai das leis positivas mas também a análise das leis que presidem as relações entre as coletividades em função do objetivo atribuído por Montesquieu 48 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ao direito das gentes O que significa em outros termos que o fim para o qual se encaminham as coletividades pode ser determinado pela análise racional As interpretações possíveis A filosofia de Montesquieu não é nem a filosofia determinista simplifica da que Auguste Comte por exemplo lhe atribuía nem uma filosofia tradicio nal do direito natural mas uma tentativa de combinação das duas Assim se explicam as muitas interpretações dadas ao seu pensamento O historiador alemão Meinecke que dedicou a Montesquieu um capítulo do seu livro clássico Die Entstehung des Historismus A formação do historicismo considera que a doutrina de Montesquieu oscila entre o universalismo racional característico do pensamento do século XVIII e o sentido histórico das particula ridades que deveria expandirse nas escolas históricas do século XIX É verdade que encontramos em Montesquieu fórmulas inspiradas pela filosofia de uma ordem racional e universal e ao mesmo tempo fórmulas que acentuam a diversidade dos costumes e das coletividades históricas Resta sa ber se é preciso considerar o pensamento de Montesquieu como uma concilia ção precária dessas duas inspirações como uma etapa no caminho da descoberta do historicismo integral ou como uma tentativa legítima e imperfeita de com binar dois tipos de considerações sem eliminar completamente nenhum deles A interpretação de L Althusser é uma nova versão de um Montesquieu contraditório contradição que haveria entre seu gênio inovador e suas opiniões reacionárias Essa interpretação tem uma parte de verdade Nos conflitos de ideo logias do século XVIII Montesquieu pertence a um partido que se pode quali ficar efetivamente de reacionário porque ele recomendava o retorno a institui ções que tinham existido em passado mais ou menos lendário Durante o século XVIII sobretudo durante a primeira metade desse século a grande querela dos escritores políticos franceses era marcada pela teoria da monarquia19 e a situação da aristocracia na monarquia Em linhas gerais duas escolas se opunham A escola romanista alegava que a monarquia francesa des cendia do império soberano de Roma de que o rei da França seria o herdeiro Neste caso a história justificava a pretensão do rei francês ao absolutismo A segunda escola chamada germânica alegava que a situação privilegiada da no breza francesa derivava da conquista do país pelos francos Esse debate deu ori gem a doutrinas que se prolongaram no século seguinte chegando a ideologias propriamente racistas por exemplo a doutrina segundo a qual os nobres seriam germânicos e o povo galoromano A distinção entre aristocracia e povo cor responderia à diferença entre conquistadores e conquistados Esse direito de o s FUNDADORES 49 conquista que hoje justifica mal a manutenção de uma desigualdade era visto no século XVIII como fundamento legítimo e sólido da hierarquia social20 Nessa disputa de duas escolas Montesquieu basta ler os três primeiros livros de O espírito das leis para percebêlo se coloca do lado da escola germâ nica embora com nuanças com reservas e com maior sutileza do que os teóri cos que defendiam com intransigência os direitos da nobreza No fim do capí tulo sobre a constituição da Inglaterra encontramos a fórmula célebre a liber dade inglesa fundada no equilíbrio dos poderes nasceu nas florestas isto é nas florestas da Germânia De um modo geral Montesquieu se mostra preocupado com os privilégios da nobreza e o reforço dos corpos intermediários21 Não é em absoluto um dou trinário da igualdade e menos ainda da soberania popular Associando a de sigualdade social à essência da ordem social ele se acomoda bem com a desi gualdade E se admitirmos como L Althusser que a soberania popular e a igualdade são as fórmulas políticas que triunfaram ao longo das revoluções dos séculos XIX e XX através da Revolução Francesa e da Revolução Russa se acreditarmos que a história caminha no sentido da soberania popular e da igual dade é justo dizer que Montesquieu é um ideólogo do antigo regime e que nesse sentido é propriamente um reacionário Pareceme contudo que a questão é mais complexa Montesquieu acredita de fato que sempre houve desigualdades sociais que o governo sempre é exer cido por privilegiados mas quaisquer que sejam as instituições historicamen te definidas às quais se refere sua última idéia é a de que a ordem social é em essência heterogênea e que a liberdade tem como condição o equilíbrio dos po deres sociais e o governo dos notáveis atribuindose ao termo notáveis o sen tido mais genérico e mais vago que engloba tanto os melhores cidadãos de uma democracia igualitária quanto a nobreza na monarquia ou mesmo num regime de tipo soviético os militantes do partido comunista Em outras palavras a essência da filosofia política de Montesquieu é o li beralismo o objetivo da ordem política é assegurar a moderação do poder pelo equilíbrio dos poderes o equilíbrio entre povo nobreza e rei na monarquia francesa ou na monarquia inglesa o equilíbrio entre o povo e privilegiados en tre plebe e patriciado na república romana Esses são exemplos diversos da mes ma concepção fundamental de uma sociedade heterogênea e hierárquica em que a moderação do poder exige o equilíbrio dos poderes Se esse é o pensamento final de Montesquieu não fica demonstrado que ele tenha sido um reacionário Incontestavelmente foi um reacionário nas que relas do século XVIII Nem previu nem desejou a Revolução Francesa É pos sível talvez que a tenha preparado porque nunca se conhece nem antes nem depois a responsabilidade histórica de cada um conscientemente porém Montesquieu não desejou a Revolução Francesa Na medida em que se pode 50 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO saber o que um homem teria feito em circunstâncias diferentes daquelas em que viveu imaginase que Montesquieu teria sido a rigor um constituinte Logo depois teria passado para a oposição e teria que escolher como os libe rais desse período entre a emigração a guilhotina ou a emigração interna lon ge das peripécias violentas da Revolução Contudo embora politicamente reacionário Montesquieu talvez represen te uma maneira de pensar que não se pode considerar ultrapassada ou anacrô nica Qualquer que seja a estrutura da sociedade numa certa época é sempre possível pensar como Montesquieu isto é analisar a forma própria de hetero geneidade de uma determinada sociedade procurando pelo equilíbrio dos po deres em confronto a garantia da moderação e da liberdade Encontramos uma última interpretação do pensamento de Montesquieu no curto capítulo que Léon Brunschvicg lhe consagra no seu livro Le progrès de la conscience dans la philosophie occidentale Brunschvicg considera o pensa mento de Montesquieu essencialmente contraditório22 De acordo com essa crítica Montesquieu nos deu de um certo modo a obraprima da sociologia pura isto é da sociologia analítica estabelecendo relações múltiplas entre tal fator e tal outro sem uma tentativa de síntese filo sófica sem pretensão a determinar o fator predominante ou a origem profunda de cada sociedade Fora dessa sociologia pura não haveria para Brunschvicg nenhum sistema em Montesquieu Citando a fórmula É preciso que o mundo inteligível seja tão bem governado quanto o físico Brunschvicg pensa que esse paradoxo ver uma inferioridade pelo menos aparente do mundo inteligente na possibili dade de violar as leis a que está submetido corresponde a uma confusão entre lei causai e leipreceito Brunschvicg mostra também a oscilação de Montesquieu entre as fórmu las cartesianas do tipo antes de se traçar o círculo todos os seus raios já são iguais assim também existe o justo e o injusto antes da promulgação de leis positivas e uma classificação dos tipos de regime que deriva da tradição aris totélica Finalmente Brunschvicg não encontra nem unidade nem coerência em O espírito das leis limitandose a concluir que os leitores de qualquer forma viram aí uma filosofia implícita do progresso inspirada por valores liberais Pessoalmente acho esse julgamento severo É verdade que não há sistema em Montesquieu o que talvez esteja conforme com o espírito de uma certa sociologia histórica Mas espero ter demonstrado que o pensamento de Montes quieu está longe de ser tão contraditório como muitas vezes se afirma Como sociólogo Montesquieu procurou combinar duas idéias que não podem ser abandonadas mas que são difíceis de combinar De um lado afirma implicitamente a pluralidade indefinida das explicações parciais Demonstrou assim como são numerosos os aspectos de uma coletividade que é preciso o s FUNDADORES 51 explicar como são numerosas as determinantes a que se podem atribuir as dife rentes facetas da vida coletiva De outro lado buscou o meio de ir além da jus taposição de relações parciais de apreender algo que constitui a unidade dos conjuntos históricos Pensou encontrar de maneira mais ou menos clara esse princípio de unificação que não contradiz a pluralidade indefinida das expli cações parciais na noção de espírito de um povo associado à teoria política por meio do princípio de governo Em O espírito das leis percebemse nitidamente muitas espécies de explica ções ou de relações abrangentes como as que os sociólogos de hoje procuram elaborar Essas relações abrangentes devem servir de orientação para os reda tores das leis e são de diversas ordens Por exemplo tendo enunciado o tipo ideal de um determinado governo Montesquieu pode logicamente mostrar co mo devem ser as diferentes categorias de leis leis da educação leis fiscais leis comerciais leis suntuárias a fim de que o tipo ideal de regime seja plenamen te realizado Dá conselhos sem sair do plano científico supondo simplesmen te que os legisladores desejam ajudar o regime a se manter Há também referências à finalidade de uma atividade social particular Um exemplo é o do direito das gentes Outra questão é a de saber em que medida Montesquieu demonstrou realmente que as diversas nações devem fazerse o maior bem na paz e o menor mal possível na guerra Essas afirmações louvá veis são antes colocadas dogmaticamente e não demonstradas cientificamen te De qualquer forma a sociologia de Montesquieu tal como se apresenta a nós implica a possibilidade de associar as leis de um setor determinado à fina lidade imanente de uma atividade humana Há por fim em Montesquieu a referência a leis universais da natureza humana que dão o direito se não de determinar o que deve ser concretamente uma certa instituição pelo menos de condenar certas instituições por exemplo a escravidão Estaria bastante inclinado a dizer que a noção de um direito natu ral formal de significação negativa tal como aparece na filosofia política de Eric Weil já está presente em O espírito das leis1 Em Montesquieu todas as leis racionais da natureza humana são concebidas de modo suficientemente abstra to para excluir a dedução a partir delas do que devem ser as instituições par ticulares e para autorizar a condenação de certas práticas O pensamento sociológico de Montesquieu se caracteriza em último lugar pela cooperação incessante entre o que se poderia chamar de pensamento sin crônico e o pensamento diacrônico isto é pela combinação perpetuamente re novada da explicação das partes contemporâneas de uma sociedade umas pelas outras com a explicação dessa mesma sociedade pelo passado e pela história A distinção entre o que Comte chama de estática e dinâmica já é visível no mé todo sociológico de O espírito das leis 52 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Por que então Montesquieu é considerado apenas um precursor da socio logia e não um sociólogo Como se justificariam os que não o colocam entre os fundadores dessa disciplina A primeira razão é que a palavra sociologia não existia no tempo de Mon tesquieu e que o termo que entrou pouco a pouco nos costumes foi forjado por Auguste Comte A segunda razão muito mais profunda é que Montesquieu não meditou sobre a sociedade moderna Os autores considerados normalmente como funda dores da sociologia Auguste Comte ou Marx tiveram como objeto do seu estu do as características típicas da sociedade moderna isto é da sociedade consi derada como essencialmente industrial ou capitalista Montesquieu não tem por objeto de reflexão a sociedade moderna e além disso as categorias que empre ga são em grande parte as da filosofia política clássica Enfim não há em O espírito das leis nem o primado da economia nem o primado da sociedade com relação ao Estado Num certo sentido Montesquieu é o último dos filósofos clássicos em outro é o primeiro dos sociólogos Ainda é um filósofo clássico na medida em que considera que uma sociedade se define essencialmente pelo seu regime político e na medida em que chega a uma concepção da liberdade Em outro sentido porém reinterpretou o pensamento político clássico no interior de uma concepção global da sociedade e procurou explicar sociologicamente todos os aspectos das coletividades Acrescentemos por fim que Montesquieu ignora a crença no progresso Mas não é surpreendente que não tenha acreditado no progresso no sentido em que acreditou Comte Na medida em que concentrava sua atenção nos regimes políticos era levado a não ver no curso da história um movimento unilateral na direção do melhor De fato como Montesquieu o percebeu depois de muitos outros o devenir político até nossos dias é feito efetivamente de alternâncias de movimentos de progresso e depois de decadência Montesquieu devia por tanto ignorar a idéia de progresso que surge naturalmente quando se considera a economia ou a inteligência A filosofia econômica do progresso nós a encon tramos em Marx a filosofia do progresso humano pela ciência nós a encontra mos em Auguste Comte Indicações biográficas 1689 18 de janeiro Nascimento de CharlesLouis de Secondat no castelo de La Brède perto de Bordéus 17001705 Estudos secundários em Juilly com os Oratorianos 17081709 Estudos de direito em Bordéus e depois em Paris 1714 Conselheiro do Parlamento de Bordéus 1715 Casamento com Jeanne de Lartigue 1716 Eleição para a Academia de Ciências de Bordéus Charles de Secondat herda de um tio todos os seus bens e o nome de Montes quieu Herda também o cargo de Presidente do Parlamento de Bordéus 17171721 Estuda as ciências e prepara diversas memórias sobre o eco as funções das glândulas renais a transparência o peso dos corpos etc 1721 Publicação anônima de Lettrespersanes que alcança imediatamente um êxito con siderável 17221725 Estada em Paris onde leva uma vida mundana Freqüenta o círculo do du que de Bourbon o presidente Henault a marquesa de Prie o salão de Mme Lambert o clube de Entresol onde ele lê o seu Dialogue de Sylla et d Eucrate 1725 Publicação anônima de Temple de Gnide Viaja a Bordéus cede seu cargo de Pre sidente do Parlamento e volta a Paris Mais tarde escreverá em Pensées O que sempre me fez ter sobre mim uma opi nião desfavorável é que há poucos cargos na República para os quais eu seria verdadeiramente apto Exerci com retidão de coração o meu cargo de presidente tinha boa compreensão das questões mas não entendia nada dos problemas de regimento interno Assim mesmo fui um presidente aplicado Mas o que mais me desgostava era ver por assim dizer em verdadeiros animais o mesmo talento que de mim fugia O C t I p 977 1728 Eleição para a Academia Francesa Viagem pela Alemanha Áustria Suíça Itália e Holanda de onde lorde Chesterfield o levou à Inglaterra 17291730 Estada na Inglaterra 1731 Retomo ao castelo de La Brède onde se dedicará a escrever O espírito das leis 54 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 1734 Publicação de Considèrations sur les causes de la grandeur et de la dècadence des romains 1748 Publicação anônima em Genebra de O espírito das leis Grande êxito mas o livro é mais comentado do que lido 1750 Défense de Uesprit des lois em resposta aos ataques dos jesuítas e jansenistas 1754 Elabora Essai sur le goüt para a Encyclopédie por solicitação de dAlembert pu blicado em 1756 1755 Morte em Paris no dia 10 de fevereiro Notas 1 Cabe lembrar a referência irônica aliás muito discutível de J M Keynes no prefácio que escreveu para a edição francesa da sua Teoria geral Montesquieu o maior economista francês que se pode comparar com justiça a Adam Smith e que ultrapassa amplamente os fisiocratas pela sua perspicácia pela clareza de idéias e bom senso qualidades que todo economista deveria ter Trad de J de Largentaye Paris Payot 1953 p 13 2 A diferença entre a natureza do governo e seu princípio consiste em que a natu reza é o que o faz ser como é o princípio o que o faz agir A primeira é sua estrutura particular e o segundo as paixões humanas que o movem As leis são tão relativas ao princípio de cada governo quanto à sua natureza E L liv III cap 1 O C t II pp 250 e 251 3 Está claro que numa monarquia na qual quem manda executar as leis se julga acima delas temse menos necessidade da virtude do que num governo popular no qual aquele que manda executar as leis sente que ele próprio também está sujeito a elas e que será obrigado a carregar seu peso Quando desaparece esta virtude o arbitrário entra no coração dos que podem recebêlo e a avareza entra no coração de todos E L liv III cap 7 O C t II p 257 4 Na verdade a distinção fundamental entre república e monarquia já se encon tra em Maquiavel Todos os governos todas as seigneuries que tiveram ou têm coman do sobre os homens foram e são Repúblicas ou Principados Leprince cap 1 O C Pléiade p 290 5 Vide o livro de E T H Fletcher Montesquieu and English Politics Londres 1939 bem como Montesquieu in America 17601801 de P M Spurlin Louisiana State University 1940 6 Desnecessário dizer que não entrarei aqui num estudo pormenorizado do que era a Constituição inglesa no século XVIII nem daquilo que Montesquieu pensou que fosse tampouco daquilo que ela se tomou no século XX Meu objetivo é apenas mos trar como as idéias essenciais de Montesquieu sobre a Inglaterra se integram na sua con cepção geral da politica 56 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 7 Os textos de Locke sobre os quais Montesquieu trabalhou são os do Dois trata dos de governo in the former the false principies and foundation of Sir Robert Filmer and his followers and detected and overthrown the later is an Essay conceming the true Origin Extend and End of Civil Government editados pela primeira vez em Londres em 1690 O segundo desses dois tratados Ensaios sobre a verdadeira ori gem extensão e finalidade do poder civil foi traduzido para o francês por David Ma zel e publicado em Amsterdam por A Wolfgang em 1691 com o título Du gouverne ment civil ou l on traité de Vorigine des fondements de la nature dupouvoir et des fins des sociétés politiques Essa tradução de Mazel teve várias edições durante o sé culo XVIII Existe uma tradução moderna de J L Fyot com o título Essai sur le pou voir civil Paris PUF 1953 A teoria dos poderes e das relações entre estes de Locke está exposta nos capítu los XI a XIV do Essai sur le pouvoir civil No capítulo XII Locke distingue três tipos de poder o legislativo o executivo e o federativo O Poder legislativo é o que tem direito de determinar o modo como será empregada a força do Estado para proteger a co munidade e seus membros O Poder executivo é um poder sempre em exercício para zelar pela execução das leis que permanecem em vigor Abrange portanto ao mesmo tempo a administração e a justiça Além disso existe em cada Estado um outro poder que podemos chamar natural porque corresponde a uma faculdade que todo homem possuía naturalmente antes de entrar em sociedade Considerada globalmente a co munidade forma um corpo que está no estado de natureza com relação a todos os outros Estados ou com relação a todas as pessoas que não fazem parte dela Esse poder com preende o direito de paz e de guerra o direito de formar ligas e alianças e de entabular qualquer tipo de negociação com as pessoas e as comunidades estranhas ao Estado Podemos chamálo federativo Os dois poderes executivo e federativo são sem dúvi da em si mesmos realmente distintos um trata da aplicação das leis dentro da socie dade a todos aqueles que fazem parte dessa sociedade o outro está encarregado da segu rança e dos interesses exteriores da comunidade diante daqueles que lhe podem servir ou prejudicar por isso eles estão quase sempre unidos Aliás não se poderia confiar o poder executivo e o poder federativo a pessoas que pudessem agir separadamente porque a força pública estaria nesse caso colocada sob comandos diferentes o que só poderia acarretar cedo ou tarde desordens e catástrofes Éditions Fyot pp 158 e 159 8 Esta concepção não é inteiramente nova A interpretação da constituição roma na do ponto de vista da divisão e do equilíbrio dos poderes e das forças sociais já pode ser encontrada na teoria do regime misto de Políbio e Cícero autores que de forma mais ou menos explícita viam em tal divisão e nesse equilíbrio uma condição de liberdade Contudo é em Maquiavel que encontramos certas fórmulas que prenunciam as de Montesquieu Afirmo para aqueles que condenam as querelas do Senado e do povo que eles estão condenando o que foi o princípio da liberdade e que eles se impressionam mais com os gritos è barulho que elas ocasionavam em praça pública do que com os bons efeitos que elas produziam Em toda República existem dois partidos o dos gran des e o do povo e todas as leis favoráveis à liberdade só podem nascer da sua oposição Discours sur la première décade de TiteLive liv I cap 4 O C Pléiade p 390 os FUNDADORES 57 9 A separação dos poderes é um dos temas principais da doutrina constitucional de De Gaulle Todos os princípios e todas as experiências exigem que os poderes públicos legislativo executivo judiciário sejam nitidamente separados e fortemen te equilibrados Discurso de Bayeux 16 de junho de 1946 A respeito da interpretação jurídica da teoria da separação dos poderes de Mon tesquieu vejase L Duguit Traité de droit constitutionnel vol 1 R Carré de Malberg Contribution à la théorie générale de l État Paris Sirey t I 1920 t II 1922 Ch Eisenmann Uesprit des lois et la séparation des pouvoirs in Mélanges Carré de Mal berg Paris 1933 p 190 La pensée constitutionnelle de Montesquieu in Recueil sirey du bicentenaire de Uesprit des lois Paris 1952 10 Esta é a interpretação de Louis Althusser em Montesquieu la politique et Vhistoire Paris PUF 1959 11 Na análise da república segundo Montesquieu a despeito da idéia essencial de que a natureza da república reside na igualdade dos cidadãos voltase a encontrar a diferença entre a massa e as elites 12 Diderot os Enciclopedistas sobretudo Voltaire que defendeu Calas Sirven La Barre e outras vítimas da justiça da época e autor de Es sai sur la probabilité en fa it de justice 1772 mostram o grande interesse que as questões penais suscitam no sécu lo XVIII O ponto culminante deste debate penal foi a publicação em 1764 do Traité des délits et despeines do milanês Cesare Beccaria 17381794 Esta obra escrita por Beccaria aos vinte e seis anos foi comentada imediatamente por toda a Europa em especial pelo abade Morellet por Voltaire e Diderot O tratado de Beccaria desenvolve a idéia de que a pena deve ser fundamentada não no princípio do restitutio juris mas no princípio relativista e pragmático do punitur ne peccetur Critica ademais de modo radical o processo ou falta de processo penal da época propondo que os castigos fossem proporcionais aos crimes Essa obra inaugura a criminologia moderna e é a ori gem direta das reformas posteriores em matéria penal Vide M T Maestro Voltaire and Beccaria as Reformers o f Criminal Law Nova York 1942 13 A respeito do problema das influências exercidas sobre Montesquieu é preci so recorrer aos trabalhos de J Dedieu um dos mais competentes comentaristas de Mon tesquieu Montesquieu et la tradition politique anglaise en France Les sources anglai ses de Uesprit des lois Paris LecofFre 1909 Montesquieu Paris 1913 14 O cap 5 do livro XIV é intitulado De como os maus legisladores são os que favoreceram os vícios do clima e os bons são os que se opuseram a eles Escreve Mon tesquieu Quanto mais os fatores físicos levam os homens ao repouso mais as causas morais devem dele afastálos O C t II p 480 15 A teoria da influência do clima dá lugar a muitas observações curiosas e engra çadas por parte de Montesquieu Sempre preocupado com a Inglaterra ele procura assim acentuar as particularidades da vida inglesa e do clima das ilhas britânicas Mas não é sem dificuldade que ele consegue Numa nação em que uma doença do clima afeta de tal modo a alma que ela poderia trazer a aversão por todas as coisas até chegar à aver são pela vida vêse bem que o governo que melhor conviria às pessoas para as quais tudo seria insuportável seria aquele em que elas não pudessem responsabilizar a um só como causador de seus males e em que mais do que os homens fossem as leis que gover 58 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO nassem de tal modo que para mudar o Estado fosse necessário derrubar as próprias leis E L liv XIV cap 13 Esta frase complicada parece querer dizer que o clima da Inglaterra força os ho mens ao desespero a tal ponto que é necessário renunciar ao governo de uma única pes soa a fim de que a amargura natural dos habitantes das ilhas britânicas só possa se diri gir contra o conjunto das leis e não a um único homem A análise do clima da Inglaterra prossegue nesse tom durante alguns parágrafos Que se a mesma nação tivesse ainda recebido do clima um certo caráter de impaciência que não lhe permitisse suportar por muito tempo as mesmas coisas verseia claramente que o governo de que acabamos de falar seria ainda mais conveniente Ibid A impaciência do povo britânico está portanto em harmonia sutil com um regime em que os cidadãos não podendo respon sabilizar um único detentor do poder estão de certa forma paralisados na expressão da sua impaciência Nos livros sobre o clima Montesquieu multiplica as fórmulas desse tipo que são como se costuma dizer nesses casos mais brilhantes do que convincentes 16 A palavra art arte é empregada no sentido da atividade dos artesãos Trata se portanto das atividades que hoje chamamos secundárias destinadas a produzir obje tos e a transformálos não a cultivar diretamente a terra 17 Seria injusto reduzir as análises econômicas de Montesquieu a esse único erro Na verdade Montesquieu apresenta um quadro de modo geral pormenorizado e quase sempre exato dos fatores que intervém no desenvolvimento das economias Montes quieu como economista é pouco sistemático Não pertence nem à escola mercantilista nem à fisiocrática Podese no entanto como se fez recentemente considerálo como o sociólogo que se antecipou ao estudo moderno do desenvolvimento econômico to mando em consideração os muitos fatores que o afetam Analisa o trabalho dos campo neses o próprio fundamento da existência das coletividades Faz uma discriminação entre os sistemas de propriedade procura as conseqüências dos diferentes sistemas de propriedade sobre o número de trabalhadores e sobre o rendimento das culturas rela ciona sistemas de propriedade e trabalho agrícola com o volume da população Em se guida relaciona o volume da população com a diversidade das classes sociais Esboça o que se poderia denominar de uma teoria do luxo é preciso haver classes ricas para sustentar o comércio dos objetos inúteis objetos que não atendem a necessidades im periosas da vida Relaciona também o comércio interno entre diferentes classes sociais com o comércio exterior da coletividade Introduz a noção de moeda e acompanha o papel que ela desempenha dentro das coletividades e entre elas Finalmente procura saber em que medida um determinado regime político favorece ou não a prosperidade econômica No sentido estrito do termo é uma análise menos parcial e menos esquemática do que a dos economistas A ambição de Montesquieu é realizar uma sociologia geral que englobe a teoria econômica propriamente dita Numa análise desse tipo há sempre perpetuamente ação recíproca dos diferentes elementos O modo de propriedade reage sobre a qualidade do trabalho agrícola e esta por sua vez reage sobre as relações das classes sociais A estrutura das classes sociais age sobre o comércio interior e exterior A idéia central é a da ação recíproca indefini da dos diferentes setores do todo social uns sobre os outros os FUNDADORES 59 18 Segundo Althusser no seu livro Montesquieu la politique et l histoire o autor de O espírito das leis originou uma verdadeira revolução teórica Esta revolução impli ca que seja possível aplicar às matérias da política e da história uma categoria newto niana da lei Implica que se possa a partir das próprias instituições humanas pensar a sua diversidade como uma unidade e a sua mudança como uma constância a lei da sua diversificação a lei do seu devenir Não se trata mais de uma ordem ideal mas de uma relação imanente aos fenômenos Não será da intuição das essências que sairá essa lei mas dos próprios fatos sem idéia preconcebida da pesquisa e da comparação das ten tativas sucessivas p 26 Mas o sociólogo não lida como faz o físico com um obje to o corpo que obedece a um determinismo simples e segue uma linha da qual ele não se afasta ele lida com um tipo de objeto muito particular os homens que se afastam até mesmo das leis que estabelecem para si O que dizer então dos homens em rela ção às suas leis Que eles as modificam as reformam ou as violam Mas isso em nada impede que se possa tirar da sua conduta submissa ou rebelde indiferentemente a idéia de uma lei que eles seguem sem saber e que se possa de seus próprios erros extrair a verdade Para desistir de descobrir as leis da conduta dos homens é preciso ter a simpli cidade de tomar as leis que eles estabelecem para si mesmos com a necessidade que as governa Na verdade seu erro a aberração de seu humor a violação e as alterações de suas leis fazem parte simplesmente da sua conduta É preciso apenas descobrir as leis da violação das leis ou da sua alteração Esta atitude supõe um princípio metodológico muito fecundo que consiste em não tomar os motivos da ação humana como aquilo que os mobiliza os fins e as razões que os homens se propõem conscientemente como as cau sas reais quase sempre inconscientes que os fazem agir pp 28 e 29 19 Sobre toda essa questão da querela ideológica do séc XVIII ver a tese de Elie Carcassonne Montesquieu et le problème de la constitution française au XV11T siècle Paris 1927 20 Louis Althusser resume assim o debate Uma idéia dominou toda a literatura política do século XVIII a idéia de que a monarquia absoluta foi estabelecida contra a nobreza e que o rei se apoiou nos nãonobres para contrabalançar o poder dos adver sários feudais e reduzilos à sua vontade A grande querela dos germanistas e dos roma nistas sobre a origem do sistema feudal e da monarquia absoluta se desenvolve tendo como pano de fundo esta convicção geral De um lado os germanistas SaintSimon Boulainvilliers e Montesquieu este último mais informado com mais nuança mas mui to seguro evocam com nostalgia os tempos da monarquia primitiva um rei eleito pelos nobres e par entre seus pares como era na origem nas florestas da Germânia para Pola à monarquia que se tomou absoluta um rei combatendo e sacrificando os gran des para tomar seus altos funcionários e seus aliados na plebe De outro lado o parti do absolutista de inspiração burguesa os romanistas Fabbé Dubos esse autor de uma conjuração contra a nobreza E L XXX 10 e alvo dos últimos livros de Uesprit des lois e os enciclopedistas celebram seja em Luís XIV seja no déspota esclarecido o ideal do príncipe que sabe preferir os méritos e os títulos da burguesia laboriosa às pre tensões peremptas dos senhores feudais Op cit pp 104 e 105 Na origem do tradicionalismo germanista está uma obra inédita do abade Le La boureur incumbido ena 13 de março de 1664 pelos pares de França de descobrir na his 60 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tória as provas dos direitos e prerrogativas ligados à sua classe Le Laboureur cujo tra balho quase com certeza SaintSimon conheceu acreditou ter encontrado a origem da nobreza na conquista dos francos e desenvolveu a teoria da nobreza participando do governo com o rei fora das assembléias do Campo de Marte ou do Campo de Maio O duque de SaintSimon 16751775 nos seus projetos de governo redigidos por volta de 1715 o conde de Boulainvilliers 16581722 em sua Histoire de Tancien gouvernement de la France 1727 sua Mémoire présenté à Monseigneur le Duc d Orléans Régent 1727 seu Essai sur la noblesse de France 1732 desenvolveram essa apologia da antiga monarquia le règne de Pincomparable Charlemagne dividindo segundo as tradições dos francos seus poderes com os grandes vassalos O feudalismo germanis ta devia continuar até a primeira metade do século XIX Montlosier em seu Traité de la monarchie française retoma ainda em 1814 os temas de Boulainvilliers para defen der os direitos históricos da nobreza E essa forma de argumentação provoca por rea ção a vocação de muitos dos grandes historiadores da geração de 1815 principalmen te Augustin Thierry cujas primeiras obras Histoire véritable de Jacques Bonhomme de 1820 poderiam trazer como exergo a fórmula de Sieyès Por que o Terceiro Estado não manda para as florestas da Francônia todas essas famílias que conservam a louca pretensão de terem saído da raça dos conquistadores O germanismo de Le Laboureur e de Boulainvilliers era ao mesmo tempo racis ta no sentido de partidários dos direitos da conquista e liberal na medida em que era hostil ao poder absoluto e favorável à fórmula parlamentar Mas os dois elementos eram dissociáveis Sob forma de referência às tradições francas de liberdade e às Assembléias das florestas da Germânia essa doutrina políticohistórica não estava portanto totalmente ligada aos interesses da nobreza O abade Mably em suas Observations sur Vhistoire de France 1765 um dos livros que sem dúvida mais influenciaram as gerações revolu cionárias dá uma versão que justifica a convocação dos Etats généraux e as ambições políticas do Terceiro Estado Quando em 1815 Napoleão quis se conciliar com o povo e a liberdade retirou do livro de Mably a idéia da Assembléia extraordinária do Campo de Maio Também no século XIX Guizot que foi qualificado de historiador da ascen são legítima da burguesia é como Mably germanista convicto cf Essais sur l histoire de France de 1823 ou as Lições de 1928 em Histoire générale de la civilization en Europe Tocqueville e Gobineau são sem dúvida os últimos herdeiros da ideologia germa nista Com Tocqueville o feudalismo se transforma em queixas pela ascensão do abso lutismo monárquico e reforça as convicções liberais do coração e as convicções demo cráticas da razão Com Gobineau que através de seu tio e Montlosier tirou sua inspira ção diretamente dos doutrinadores aristocráticos do século XVIII desaparece a veia liberal em favor do racismo ver a correspondência TocquevilleGobineau no tomo IX da edição de Oeuvres complètes de Tocqueville Paris Gallimard 1959 e principal mente o prefácio de J J Chevalier 21 O que não impede sua visão lúcida do próprio meio Não faltam em suas obras críticas aos vícios dos nobres e cortesãos E bem verdade que a sátira aos corte sãos é mais uma sátira contra aquilo que a monarquia fez da nobreza do que contra a os FUNDADORES 61 própria nobreza ou contra a nobreza tal como ela deveria ser isto é livre e indepen dente na sua riqueza Assim O corpo de lacaios é mais respeitável na França do que em outros lugares é um seminário de grandes senhores Ele preenche o vazio dos ou tros Estados Lettres persanes carta 98 O C 11 p 277 ou ainda Nada está mais próximo da ignorância das pessoas da corte de França do que a dos eclesiásticos da Itá lia Mespensées O C 11 p 1315 22 Léon Brunschvicg Le progrès de la conscience dans la philosophie occiden tale pp 489501 23 Cf Éric Weil Philosophie politique Paris Librairie Philosophique J Vrin 1956 pp 36 a 38 Éric Weil escreve notadamente O direito natural do filósofo cons titui o fundamento de toda crítica do direito positivo histórico assim como o princípio da moral fundamenta toda a crítica das máximas individuais junto com o direito posi tivo ele determina para todos os homens o que em determinada situação histórica deve fazer deve admitir e pode exigir só critica um sistema coerente na medida em que este não leva em conta a igualdade dos homens enquanto seres racionais ou nega o caráter racional do homem O direito natural não fornece suas premissas materiais mas tomaas tais como as encontra para desenvolvêlas segundo o seu próprio critério O direito natural enquanto instância crítica deve portanto decidir se os papéis previstos pela lei positiva não estão em conflito e se o sistema que forma o seu conjunto não contradiz o princípio da igualdade dos homens enquanto seres racionais Toda resposta a esta ques tão será ao mesmo tempo formal e histórica o direito natural desde que procure se apli car se aplica necessariamente a um sistema positivo histórico O que se aplica assim ao direito positivo e o transforma considerandoo em sua totalidade não faz parte do direito positivo Bibliografia OBRAS DE MONTESQUIEU Uesprit des lois organizado e apresentado por Jean Brethe de la Gressaye Paris Les BellesLettres 4 tomos 19501961 Oeuvres completes organizada por É Laboulaye Paris Gamier 7 vols 18751879 não inclui Correspondance voyages scipilège pensées e mélanges Oeuvres complètes texto apresentado e anotado por Roger Caillois la Pléiade Paris Gallimard 11 1949 t II 1951 não inclui Correspondance Esta é a edição uti lizada e citada pelo autor deste livro Oeuvres complètes publicadas sob a direção de André Masson Paris Nagel 3 vols 19501955 Contém Correspondance e alguns outros textos inéditos OBRAS GERAIS Brunschvicg Léon Le progrès de la conscience dans la philosophie occidentale Paris Alcan 1927 Cassirer Emst La philosophie des lumières Paris Fayard 1966 Chevallier JeanJacques Les grandes oeuvres politiques Paris A Colin 1949 Laski J H The Rise o f European Liberalism An Essay in Interpretation Londres Allen Unwin 1936 Leroy Maxime Histoire des idées sociales en France I De Montesquieu à Robes pierre Paris Gallimard 1946 Martin Kingsley French Liberal Thought in the Eighteenth Century a study of politi cal ideas from Bayle to Condorcet Londres Turnstile Press 1954 Meinecke Friedrich Die Entstehung des Historismus Munique Berlim R Oldern burg 2 vols 1936 Vaughan C E Studies in the History ofPolitical Philosophy before and after Rousseau editado por A G Little Manchester University Press 2 vols 1939 os FUNDADORES 63 OBRAS SOBRE MONTESQUIEU Althusser L Montesquieu la politique et Vhistoire Paris PUF 1959 Barkhausen H Montesquieu ses idées et ses oeuvres d après les papiers de La Brède Paris Hachette 1907 Barrière P Un grand provincial CharlesLouis de Secondat baron de la Brède et de Montesquieu Bordeaux Delmas 1946 Carcassonne E Montesquieu et le problème de la constitution française au XVIII siè cle Paris Presses Universitaires s d 1927 Cotta A Le développement économique dans la pensée de Montesquieu Revue dhistoire économique et sociale 1957 Cotta S Montesquieu e la scienza delia politica Turim Ramella 1953 Courtney C P Montesquieu and Burke Oxford Basil Blackwell 1963 Dedieu J Montesquieu et la tradition politique anglaise en France les sources anglai ses de Lesprit des lois Paris J Gabalda 1909 Dedieu J Montesquieu 1homme et Voeuvre Paris Boivin 1943 Durkheim E Montesquieu et Rousseau précurseurs de la sociologie nota introdutória de G Davy Paris M Rivière 1953 Ehrard J Politique de Montesquieu Paris A Colin 1965 Eisenmann Ch Lesprit des lois et la séparation des pouvoirs in Mélanges Carré de Malberg Paris 1933 Étiemble Montesquieu in Histoire des littèratures III Encyclopédie de la Pléiade Paris Gallimard 1958 p 696710 Faguet E La politique comparée de Montesquieu Rousseau et Voltaire Paris Société française dimprimerie et de librairie 1902 Flechter F T H Montesquieu and English Politics 17501800 Londres E Amold 1939 Groethuysen B Philosophie de la Révolution Française precedido de Montesquieu Paris Gallimard 1956 Shackleton A Montesquieu a Criticai Biography Londres Oxford University Press 1961 Sorel A Montesquieu Paris Hachette 1887 Starobinski J Montesquieu par luimême Paris Le Seuil 1957 OBRAS COLETIVAS DEDICADAS A MONTESQUIEU Congrès Montesquieu de Bordeaux 1955 Atas do Congresso Montesquieu reunido em Bordeaux de 23 a 26 de maio de 1955 em comemoração ao segundo centená rio da morte de Montesquieu Bordeaux Delmas 1956 La pensée politique et constitutionnelle de Montesquieu Bicentenário de Uesprit des lois 17481948 Direção de Boris MirkineGuetzevitch e H Puget com a colabo ração de P Barrière P Bastid J Brethe de La Gressaye R Cassin Ch Eisenmann Paris Sirey 1952 64 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Revue de métaphysique et de morale número especial de outubro de 1939 vol 46 con sagrado a Montesquieu por ocasião do 250 aniversário do seu nascimento Textos de R Hubert G Davy G Gurvitch OBRAS EM PORTUGUÊS Althusser L Montesquieu e política e a história tradução de Luiz Cary e Luísa Costa Lisboa Presença 1972 Chevalier JeanJacques As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias tra dução de Lydia Cristina 3 ed Rio de Janeiro Agir 1973 Laski J H O liberalismo europeu tradução de Álvaro Cabral São Paulo Mestre Jou 1973 Do espírito das leis texto organizado com introdução e notas de Gonzague Truc tra dução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues São Paulo Difusão Européia 1962 2 vols Do espírito das leis com as anotações de Voltaire de Grevier de Mably de la Harpe tradução direta do original de Gabriela de Andrade Bias Barbosa São Paulo Brasil Editora 1960 2 vols São Paulo Abril Cultural 1973 ilust Os Pensadores 21 Cartas persas com um estudo de Abel Grenier tradução e notas de Mário Barreto Belo Horizonte Itatiaia 1960 Grandeza e decadência dos romanos comentários e reflexões tradução de Manoel Carlos São Paulo Cultura Moderna sd Auguste Comte A sã política não deveria ter por objeto fazer avançar a espécie hu mana que se move por impulso próprio seguindo uma lei tão necessária quanto a da gravidade embora mais modificável ela tem por finalidade facilitar sua marcha iluminandoa Système de politique positive Apêndice III Plan des travaux scientifiques nécessaires pour réorganiser la société 1828 p 95 Montesquieu é antes de tudo o sociólogo consciente da diversidade hu mana e social Para ele o objetivo da ciência é pôr ordem num caos aparente é o que consegue concebendo tipos de governo ou de sociedade enumerando determinantes que influenciam todas as coletividades e talvez mesmo em últi ma análise identificando alguns princípios racionais de validade universal embora sujeitos a eventuais violações aqui e ali Montesquieu parte da diver sidade para chegar não sem esforço à unidade humana Auguste Comte ao contrário é antes de mais nada o sociólogo da unidade humana e social da unidade da história humana Leva sua concepção da unidade até o ponto em que a dificuldade é inversa tem dificuldade em encontrar e fun damentar a diversidade Como só há um tipo de sociedade absolutamente válido toda a humanidade deverá segundo sua filosofia chegar a esse tipo de socie dade As três etapas do pensamento de Comte Pareceme que podemos apresentar as etapas da evolução filosófica de Auguste Comte como representando as três formas pelas quais a tese da unida de humana é afirmada explicada e justificada Essas três etapas estão marca das pelas três obras principais de Comte A primeira entre 1820 e 1826 é a dos Opuscules de philosophie sociale Somm aire appréciation sur Tensem ble du passé m oderne Opúsculos de filo sofia social apreciação sumária do conjunto do passado moderno abril de 1820 Prospectus des travaux scientifiques nécessaires p o u r réorganiser la société Prospecto dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade abril de 1822 Considérations philosophiques sur les idées et les savants Con 66 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO siderações filosóficas sobre as idéias e os cientistas novembrodezembro de 1825 Considérations sur le pouvoir spirituel Considerações sobre o poder espiritual 18251826 A segunda etapa está constituída pelas lições do Cours de philosophie positive Curso de filosofia positiva 18301842 a terceira pe lo Système de politique positive ou traité de sociologie instituant la religion de 1humanité Sistema de política positiva ou tratado de sociologia instituindo a religião da humanidade publicado de 1851 a 1854 Na primeira etapa nos Opúsculos republicados por Comte no fim do tomo IV do Système de politique positive para marcar a unidade do seu pensa mento o jovem polytechnicien reflete sobre a sociedade do seu tempo A maior parte dos sociólogos toma como ponto de partida uma interpretação da sua épo ca Auguste Comte é nesse aspecto exemplar Os Opúsculos constituem a des crição e a interpretação do momento histórico vivido pela sociedade européia no princípio do século XIX Segundo Auguste Comte um certo tipo de sociedade caracterizado pelos dois adjetivos teológico e militar está em vias de desaparecer O cimento da sociedade medieval era a fé transcendental interpretada pela Igreja Católica O modo de pensar teológico era contemporâneo da predominância da atividade militar cuja expressão era a atribuição das primeiras posições aos homens de guerra Um outro tipo de sociedade científica e industrial está em vias de nas cer A sociedade que nasce é científica no sentido em que a sociedade que morre era teológica o modo de pensar dos tempos passados era o dos teólogos e sacerdotes Os cientistas substituem os sacerdotes e teólogos como a catego ria social que dá a base intelectual e moral da ordem social Estão em vias de receber dos sacerdotes como herança o poder espiritual que segundo os pri meiros Opúsculos de Comte se encarnou necessariamente em cada época nos que oferecem o modelo do modo de pensar predominante e fornecem as idéias correspondentes aos princípios da ordem social Assim como os cientistas subs tituem os sacerdotes os industriais no sentido mais amplo isto é os empreen dedores diretores de fábricas banqueiros estão assumindo o lugar dos mili tares A partir do momento em que os homens pensam cientificamente a ativi dade principal das coletividades deixa de ser a guerra de homens contra homens para se transformar na luta dos homens contra a natureza ou na exploração racional dos recursos naturais Desde essa época Auguste Comte conclui a partir da análise da sociedade em que vive que a reforma social tem como condição fundamental a reforma intelectual Os imponderáveis de uma revolução ou a violência não permitem reor ganizar a sociedade em crise Para isso é preciso uma síntese das ciências e a criação de uma política positiva Como muitos de seus contemporâneos Auguste Comte considera que a sociedade moderna está em crise e encontra explicação dos probslemas sociais OS FUNDADORES 67 na contradição entre uma ordem histórica teológicomilitar em vias de desapare cer e uma ordem social científicaindustrial que nasce A conseqüência dessa interpretação da crise da sua época é que Comte reformador não é um doutrinário da revolução ao modo de Marx nem um dou trinário das instituições livres à maneira de Montesquieu ou de Tocqueville é um doutrinário da ciência positiva e da ciência social A orientação geral do pensamento e sobretudo os planos de transforma ção de Comte decorrem dessa interpretação da sociedade da época Assim como Montesquieu observava a crise da monarquia francesa e essa observação constituía uma das origens da sua concepção de conjunto Auguste Comte observa a contradição de dois tipos sociais que segundo ele só pode ser resol vida pelo triunfo do tipo social que chama de científico e industrial Essa vitó ria é inevitável mas pode ser mais ou menos acelerada ou retardada Com efeito a função da sociologia é compreender o devenir necessário isto é indispensável e inevitável da história de modo a ajudar a realização da ordem fundamental Na segunda etapa a do Curso de filosofia positiva as idéias diretrizes são as mesmas mas a perspectiva é ampliada Nos Opúsculos Auguste Comte considera essencialmente as sociedades da época e seu passado isto é a histó ria da Europa Seria fácil para um nãoeuropeu mostrar que nos primeiros opúsculos Auguste Comte tem a ingenuidade de conceber a história da Europa como se ela absorvesse a história de todo o gênero humano ou ainda pressu põe o caráter exemplar da história européia admitindo que a ordem social para a qual tende será a ordem social de toda a espécie humana Durante essa segun da etapa isto é no Curso de filosofia positiva Auguste Comte não renova esses temas mas aprofunda e executa o programa cujas grandes linhas tinha fixado em suas obras de juventude Passa em revista as diversas ciências desenvolve e confirma as duas leis essenciais que já tinha enunciado nos opúsculos a lei dos três estados e a clas sificação das ciências1 Segundo a lei dos três estados o espírito humano teria passado por três fa ses sucessivas Na primeira o espírito humano explica os fenômenos atribuin doos a seres ou forças comparáveis ao próprio homem Na segunda invoca entidades abstratas como a natureza Na terceira o homem se limita a obser var os fenômenos e a fixar relações regulares que podem existir entre eles seja num momento dado seja no curso do tempo renuncia a descobrir as causas dos fatos e se contenta em estabelecer as leis que os governam A passagem da idade teológica para a idade metafísica e depois para a ida le positiva não se opera simultaneamente em todas as disciplinas intelectuais No pensamento de Comte a lei dos três estados só tem um sentido rigoroso quan do combinada com a classificação das ciências A ordem segundo a qual são or 68 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO denadas as diversas ciências nos revela a ordem em que a inteligência se toma positiva nos vários domínios2 Em outras palavras a maneira de pensar positiva se impôs mais cedo nas matemáticas na física na química e depois na biologia É normal aliás que o positivismo apareça mais tarde nas disciplinas que têm por objeto matérias mais complexas Quanto mais simples uma matéria mais fácil pensar sobre ela positivamente Há mesmo alguns fenômenos cuja observação se impõe por si mesma de sorte que nesses casos a inteligência é imediatamente positiva A combinação da lei dos três estados com a classificação das ciências tem por objetivo provar que a maneira de pensar que triunfou na matemática na astronomia na física na química e na biologia deve por fim se impor à polí tica levando à constituição de uma ciência positiva da sociedade a sociologia Mas essa combinação não tem unicamente por objeto demonstrar a neces sidade de criar a sociologia A partir de uma certa ciência a biologia intervém uma reviravolta decisiva em termos de metodologia as ciências deixam de ser analíticas para serem necessária e essencialmente sintéticas Essa inversão irá dar um fundamento à concepção sociológica da unidade histórica Esses dois termos analítico e sintético têm na linguagem de Auguste Comte múltiplas significações Neste exemplo preciso as ciências da nature za inorgânica a física e a química são analíticas no sentido de que estabelecem leis entre fenômenos isolados e isolados necessária e legitimamente Na biolo gia porém é impossível explicar um órgão ou uma função sem considerar o ser vivo como um todo É com relação ao organismo como um todo que um fato biológico particular tem significado e pode ser explicado Se quiséssemos se parar arbitrária e artificialmente um elemento de um ser vivo teríamos diante de nós apenas matéria morta A matéria viva enquanto tal é intrinsecamente glo bal ou total Essa idéia da primazia do todo sobre os elementos deve ser transposta para a sociologia É impossível compreender o estado de um fenômeno social parti cular se não o recolocarmos no todo social Não se pode entender a situação da religião ou a forma precisa do Estado numa sociedade particular sem consi derar o conjunto dessa sociedade Mas tal prioridade do todo sobre os elemen tos não se aplica apenas a um momento artificialmente recortado do devenir histórico Só se compreenderá o estado da sociedade francesa no princípio do século XIX se recolocarmos esse momento histórico na continuidade do deve nir francês A Restauração só pode ser compreendida pela Revolução e a Re volução pelos séculos de regime monárquico O declínio do espírito teológico e militar só se explica pelas suas origens nos séculos passados Da mesma for ma como só é possível compreender um elemento do todo social considerando esse mesmo todo não se pode entender um momento da evolução histórica sem levar em conta o conjunto dessa evolução OS FUNDADORES 69 Continuando porém a pensar nessa linha defrontamonos com uma difi culdade evidente Isso porque para compreender um momento da evolução da nação francesa será necessário se referir à totalidade da história da espécie humana A lógica do princípio da prioridade do todo sobre o elemento leva à idéia de que o verdadeiro objeto da sociologia é a história da espécie humana Auguste Comte era um homem lógico formado nas disciplinas da Escola Politécnica Como tinha enunciado a prioridade da síntese sobre a análise de veria concluir que a ciência social que pretendia fundar teria por objeto de estu do a história da espécie humana considerada como uma unidade o que seria indispensável para a compreensão das funções particulares do todo social e de um momento particular do devenir No Curso de filosofia positiva é criada a nova ciência a sociologia que admitindo a prioridade do todo sobre o elemento e da síntese sobre a análise tem por objeto a história da espécie humana Vêse aqui a inferioridade ou superioridade a meu ver a inferioridade de Auguste Comte em relação a Montesquieu Enquanto Montesquieu parte do fato que é a diversidade Auguste Comte com a intemperança lógica caracte rística dos grandes homens e de alguns homens menos grandes parte da uni dade da espécie humana e atribui à sociologia como objeto de estudo a histó ria da espécie humana Convém acrescentar que Auguste Comte considerando que a sociologia é uma ciência à maneira das ciências precedentes não hesita em retomar a fór mula que já empregara nos Opúsculos assim como não há liberdade de cons ciência na matemática ou na astronomia não pode haver também em matéria de sociologia Como os cientistas impõem seu veredicto aos ignorantes e aos amadores em matemática e astronomia devem logicamente fazer o mesmo em sociologia e política O que pressupõe evidentemente que a sociologia possa determinar o que é o que será e o que deve ser A sociologia sintética de Augus te Comte sugere aliás tal competência ciência do todo histórico ela determi na não só o que foi e o que é mas também o que será no sentido da necessida de do determinismo O que será é justificado como sendo conforme com aqui lo que os filósofos do passado teriam chamado a natureza humana com aquilo que Auguste Comte chama simplesmente de realização da ordem humana e social Na terceira etapa do seu pensamento ele justifica por uma teoria da na tureza humana e da natureza social essa unidade da história humana O Système de politique positive é posterior à aventura do seu autor com Clotilde de Vaux O estilo e a linguagem são um pouco diferentes do que en contramos no Curso de filosofia positiva Contudo o Système corresponde a uma tendência do pensamento comtista que já é visível na primeira e sobretu do na segunda etapa 70 ÀS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO De fato se como creio é possível explicar o itinerário de Auguste Comte pela vontade de justificar a idéia da unidade da história humana é normal que no seu último livro ele tenha dado uma fundamentação filosófica a esta noção Para que a história humana seja uma só é preciso que o homem tenha uma certa natureza reconhecível e definível através de todos os tempos e de todas as sociedades É preciso em segundo lugar que toda sociedade comporte uma ordem essencial que se possa reconhecer através da diversidade das organiza ções sociais Finalmente é preciso que essa natureza humana e essa natureza so cial sejam tais que possamos inferir delas as principais características do devenir histórico Ora creio que se pode explicar o essencial do Système de politique positive por essas três idéias A teoria da natureza humana está incluída no que Auguste Comte chama de quadro cerebral conjunto de concepções relativas às localizações cerebrais Deixando de lado algumas extravagâncias esse quadro cerebral corresponde a uma precisão das diferentes atividades características do homem enquanto ho mem A ordem social básica que se pode reconhecer através da diversidade das instituições está descrita e analisada no tomo II que tem como objeto La sta tique sociale A estática social Finalmente o quadro cerebral e a estática social servem de fundamento para o tomo III do Système de politique positive consa grado à dinâmica Toda a história tende à realização da ordem fundamental da sociedade analisada no tomo II e à realização do que existe de melhor na natu reza humana descrito no quadro cerebral do tomo I O ponto de partida do pensamento de Comte é portanto uma reflexão so bre a contradição interna da sociedade do seu tempo entre o tipo teológico militar e o tipo científicoindustrial Como esse momento histórico é caracteri zado pela generalização do pensamento científico e da atividade industrial o único meio de pôr fim à crise é acelerar o devenir criando o sistema de idéias cien tíficas que presidirá à ordem social como o sistema de idéias teológicas presi diu à ordem social do passado Daí Comte passa ao Curso de filosofia positiva isto é à síntese do con junto da obra científica da humanidade para identificar os métodos que foram aplicados nas várias disciplinas e os resultados essenciais obtidos em cada uma delas Esta síntese dos métodos e dos resultados deve servir de base para a cria ção da ciência que ainda está faltando a sociologia Mas a sociologia que Comte quer criar não é a sociologia prudente modes ta analítica de Montesquieu que se esforça por multiplicar as explicações a fim de mostrar a extrema diversidade das instituições humanas Sua função é Vrejolver a crise do mundo moderno isto é fornecer o sistema de idéias cientí f i c a que presidirá à reorganização social os FUNDADORES 71 Ora para que uma ciência possa preencher esse papel é preciso que apre sente resultados indubitáveis e exprima verdades tão incontestáveis quanto as da matemática e da astronomia É preciso também que a natureza dessas verdades seja de um certo tipo A sociologia analítica de Montesquieu sugere aqui e ali algumas reformas dá alguns conselhos ao legislador Admitindo porém que as instituições de qualquer sociedade são condicionadas por uma multiplicidade de fatores não se pode conceber uma realidade institucional fundamentalmente diferente da que existe Auguste Comte deseja ser ao mesmo tempo um cientis ta e um reformador Qual é pois a ciência que pode ser certa nas suas afirma ções e ao mesmo tempo imperativa para um reformador Incontestavelmente seria uma ciência sintética conforme a concebe Auguste Comte ciência que par tindo de leis mais gerais das leis fundamentais da evolução humana descobris se um determinismo global que os homens pudessem de um certo modo utilizar segundo a expressão positivista uma fatalidade modificável A sociologia de Auguste Comte começa por aquilo que é mais interessan te saber Deixa os pormenores aos historiadores isto é aos que nosso autor con sidera empreiteiros obscuros perdidos em erudição medíocre e que são des prezados pelos que apreenderam de imediato a lei mais geral do devenir Montesquieu e Tocqueville atribuem uma certa primazia à política à forma do Estado Marx à organização econômica A doutrina de Auguste Comte se baseia na idéia de que toda sociedade se mantém pelo acordo dos espíritos3 Só há sociedade na medida em que seus membros têm as mesmas crenças E a ma neira de pensar que caracteriza as diferentes etapas da humanidade e a etapa final será marcada pela generalização triunfante do pensamento positivo Tendo levado assim até as últimas conseqüências a concepção de uma his tória humana unificada Auguste Comte se vê portanto obrigado a fundamentar essa unidade e só poderá fundamentála em termos filosóficos referindose a uma concepção da natureza humana constante e também de uma ordem social fundamental também constante A filosofia de Comte pressupõe portanto três grandes temas O primeiro é o de que a sociedade industrial a sociedade da Europa ociden tal é exemplar e se tomará a sociedade de todos os homens Ainda não está pro vado que Auguste Comte estivesse errado quando acreditava que certos aspectos da sociedade industrial da Europa tinham uma vocação universal A organização científica do trabalho característica da sociedade européia é tão mais eficaz do que todas as outras organizações que a partir do momento em que seu segredo foi descoberto por um povo todas as partes da humanidade têm necessidade de aprendêlo pois ele é a condição da prosperidade e do poder O segundo é a dupla universalidade do pensamento científico No campo da Matemática da física ou da biologia o pensamento positivo tem vocação uni versal no sentido de que todas as partes da espécie humana adotam esse modo 72 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de pensar quando os êxitos atribuíveis a ele se tornam visíveis Neste particu lar Comte tinha razão a ciência ocidental é hoje a ciência de toda a humani dade tratese de matemática astronomia física química e até mesmo em lar ga medida de biologia Mas a universalidade da ciência tem outro sentido No momento em que se começa a pensar positivamente em astronomia ou física não se pode pensar de outro modo em termos de política ou de religião O mé todo positivo que alcançou êxito nas ciências da natureza inorgânica deve ser estendido a todos os aspectos do pensamento Ora essa generalização do méto do positivo é evidente Estaremos condenados então a reproduzir em sociolo gia moral ou em política o método da matemática e da física O que se pode dizer é que esse debate continua O terceiro tema fundamental de Auguste Comte é o do Système de politique positive Como é possível em última análise explicar a diversidade se a natureza humana é basicamente a mesma se a ordem social é basicamente a mesma Em outras palavras a concepção comtista da unidade humana assume três formas nos três momentos principais da sua carreira A sociedade que se desenvolve no Ocidente é exemplar e será seguida como modelo por toda a humanidade A história da humanidade é a história do espírito enquanto devenir do pen samento positivo ou enquanto aprendizado do positivismo pelo conjunto da humanidade A história da humanidade é o desenvolvimento da natureza humana Esses três temas que não se contradizem estão de certa forma presentes em todos os momentos da carreira de Auguste Comte embora com ênfase desi gual Representam três interpretações possíveis do tema da unidade da espécie humana A sociedade industrial As idéias fundamentais de Auguste Comte durante seus anos de juventu de não são idéias pessoais Ele recolheu no clima da época a convicção de que o pensamento teológico pertencia ao passado que Deus estava morto para em pregar a fórmula de Nietzsche que o pensamento científico comandaria daquele momento em diante a inteligência dos homens modernos que com a teologia desapareceria a estrutura feudal e a organização monárquica que os cientistas e os industriais dominariam a sociedade do nosso tempo Todos esses temas são desprovidos de originalidade mas é importante compreender a escolha feita por Auguste Comte entre as idéias correntes para definir sua própria interpretação da sociedade da época OS FUNDADORES 73 O fato novo que chama a atenção de todos os observadores da sociedade no princípio do século XIX é a indústria Todos consideram que algo de original está acontecendo com relação ao passado Mas em que consiste a originalidade da indústria moderna Pareceme que os traços característicos da indústria tais como os observam os homens do começo do século XIX são em número de seis IP A indústria se baseia na organização científica do trabalho Em vez de se organizar segundo o costume a produção é ordenada com vistas ao rendi mento máximo 2 Graças à aplicação da ciência à organização do trabalho a humanidade desenvolve prodigiosamente seus recursos 3 A produção industrial leva à concentração dos trabalhadores nas fábri cas e nas periferias das cidades surge um novo fenômeno social as massas operárias 4 Essas concentrações de trabalhadores nos locais de trabalho determi nam uma oposição latente ou aberta entre empregados e empregadores entre proletários de um lado e empresários ou capitalistas do outro 5 Enquanto a riqueza graças ao caráter científico do trabalho não pára de aumentar multiplicamse crises de superprodução que têm por conseqüência criar a pobreza no meio da abundância Enquanto milhões de indivíduos sofrem as carências da pobreza mercadorias deixam de ser vendidas para escândalo do espírito 6 O sistema econômico associado à organização industrial e científica do trabalho se caracteriza pela liberdade de trocas e pela busca do lucro por parte dos empresários e comerciantes Alguns teóricos concluem daí que a condição essencial do desenvolvimento da riqueza é precisamente a busca do lucro e a concorrência e que quanto menos o Estado intervier na economia mais rapi damente aumentará a produção e a riqueza As interpretações diferem conforme a importância atribuída a cada uma dessas características Auguste Comte considera as três primeiras como decisi vas A indústria se define pela organização científica do trabalho que produz o crescimento constante das riquezas e a concentração dos operários nas fábricas essa última característica é a contrapartida da concentração de capitais ou dos meios de produção nas mãos de um pequeno número de pessoas Para ele a quarta característica oposição entre operários e empresários é secundária4 Resulta da má organização da sociedade industrial e pode ser cor rigida por meio de reformas A seus olhos as crises são fenômenos episódicos e superficiais O liberalismo para Comte não é a essência da nova sociedade mas um elemento patológico um momento de crise no desenvolvimento de uma organização que será muito mais estável do que aquela fundada no livre jogo da concorrência 74 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Naturalmente segundo os socialistas as duas características decisivas são a quarta e a quinta O pensamento socialista como o dos economistas pessimis tas da primeira metade do século XIX se desenvolve a partir da constatação do conflito proletáriosempresários e da freqüência das crises consideradas como seqüela inevitável da anarquia capitalista É a partir dessas duas características que Marx edifica sua teoria do capitalismo e a interpretação histórica do siste ma capitalista Quanto à sexta característica o livre comércio é a acentuada pelos teóri cos liberais que a consideram a causa decisiva do progresso econômico No princípio do século XIX todo o mundo constatava a ocorrência simul tânea de três fenômenos o crescimento da riqueza a aplicação da ciência à in dústria e um regime liberal de intercâmbios As interpretações variavam segundo a responsabilidade atribuída a cada um destes dois últimos fenômenos no de senvolvimento do primeiro Auguste Comte define sua própria teoria da sociedade industrial pelas crí ticas que dirige aos economistas liberais e aos socialistas Sua versão da socie dade industrial não é nem liberal nem socialista mas poderia ser definida como a teoria da organização se essa palavra não tivesse sido utilizada para a tradu ção francesa do livro de Bumham The Managerial Révolution5 pois os organi zadores de Auguste Comte são muito diferentes dos organizadores ou mana gers de Bumham Auguste Comte acusa de metafísicos os economistas liberais que se inter rogam sobre o valor e se esforçam por determinar em abstrato o funcionamento do sistema O pensamento metafísico segundo ele é um pensamento abstrato é um pensamento por conceitos como a seus olhos o pensamento dos economis tas de seu tempo6 Esses metafísicos cometem além disso o erro de considerar os fenômenos econômicos separandoos do todo social A economia política começa pelo iso lamento ilegítimo de um setor do todo social que só pode ser compreendido rigorosamente no interior desse conjunto Essas duas críticas foram retomadas pela maior parte dos sociólogos fran ceses da escola de Durkheim e determinaram a atitude de semihostilidade da queles que hoje chamamos de sociólogos com relação aos que chamamos de economistas pelo menos nas universidades francesas Finalmente Auguste Comte critica os liberais por superestimar a eficácia dos mecanismos de troca e de competição no desenvolvimento da riqueza Os economistas têm o mérito contudo de afirmar que a longo prazo os in teresses privados se ajustam A oposição essencial entre liberais e socialistas está no fato de que os primeiros acreditam na conciliação final dos interesses e os segundos admitem o caráter fundamental da luta de classes Auguste Comte sobre este ponto essencial está do lado dos liberais Não acredita numa OS FUNDADORES 75 oposição fundamental de interesses entre proletários e empresários Podem existir de modo temporário e secundário rivalidades pela repartição da rique za Contudo como os economistas liberais Comte acha que o desenvolvimen to da produção se ajusta por definição aos interesses de todos A lei da socie dade industrial é o desenvolvimento da riqueza que postula ou implica a con ciliação final dos interesses Comparativamente aos economistas que consideram a liberdade e a con corrência como causas essenciais do crescimento o fundador do positivismo pertence à escola daqueles que chamarei de polytechniciens organisateurs po litécnicos organizadores Há hoje dois economistas franceses que representam duas tendências do espí rito politécnico O primeiro é Maurice Aliais que acredita na importância decisi va dos mecanismos da concorrência para o processo de regulagem da economia7 O segundo Alfred Sauvy muito menos simpático aos mecanismos do mercado do que Maurice Aliais ou Jacques RuefF representa a tendência que valoriza a efi ciência da organização8 Auguste Comte pode ser considerado como o patrono da escola da organização Comte este politécnico organizador é hostil ao socialismo ou para ser mais exato àqueles que chama de comunistas isto é os doutrinários ou teóri cos do seu tempo inimigos da propriedade privada É um organizador que acre dita nas virtudes não tanto da concorrência mas da propriedade privada e até mesmo o que é mais curioso nas virtudes da propriedade privada das riquezas concentradas Com efeito Comte justifica a concentração de capitais e dos meios de pro dução que não lhe parece contraditória com a propriedade privada Para ele tal concentração é antes de mais nada inevitável o que significa segundo o otimis mo providencial tão característico da sua filosofia da história que é igualmente benéfica Está em conformidade com a tendência fundamental que se observa no curso da história humana A civilização material só se pode desenvolver se cada geração produzir mais do que é necessário para sua sobrevivência transmitindo assim à geração seguinte um estoque de riqueza maior do que o recebido da gera ção precedente A capitalização dos meios de produção é característica do desen volvimento da civilização material e leva à concentração Auguste Comte não é sensível ao argumento de que a importância dos ca pitais concentrados deveria determinar o caráter público da propriedade A con centração dos meios de produção não o faz concluir que a nacionalização seja necessária Pelo contrário é indiferente à oposição entre propriedade privada e propriedade pública porque considera que a autoridade econômica ou políti ca é sempre pessoal Em toda sociedade são homens em pequeno número que comandam Um dos motivos consciente ou inconsciente da reivindicação da 76 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO propriedade pública é a crença bem ou mal fundamentada de que a substituição do regime de propriedade modificaria a estrutura da ordem social Ora Comte é cético a este respeito São sempre os ricos que detêm a parte do poder que não pode deixar de acompanhar a riqueza e que é inevitável em qualquer ordem social Em toda a parte há homens que comandam é bom que os homens que detêm o capital concentrado sejam os que exerçam a autoridade econômica e social indispensável Mas a propriedade pessoal deve ser esvaziada do seu caráter arbitrariamen te pessoal pois o que ele chama de patrícios os chefes temporais industriais banqueiros devem conceber sua função como uma função social A proprieda de privada é necessária inevitável indispensável mas só é tolerável quando assumida não como o direito de usar e abusar mas como o exercício de uma função coletiva por aqueles que a sorte ou mérito pessoal designou para isso9 Comte assume portanto uma posição intermediária entre o liberalismo e o socialismo Não é um doutrinário da propriedade privada concebida à manei ra do direito romano Não é um reformador que se inclina à socialização dos meios de produção É um organizador que deseja manter a propriedade priva da e transformar seu sentido para que embora exercida por alguns indivíduos tenha também uma função social Essa concepção não se afasta muito de cer tas doutrinas do catolicismo social Além dessa teoria da propriedade privada Comte enuncia outra idéia que adquire importância sobretudo em seus últimos livros o Système de politique positive a idéia do caráter secundário da hierarquia temporal O doutrinário do positivismo inclinase a aceitar a concentração da rique za e a autoridade dos industriais porque a existência dos indivíduos não se de fine exclusivamente pelo lugar que ocupam na hierarquia econômica e social Além da ordem temporal que comanda o poder há uma ordem espiritual que é a dos méritos morais O operário que se encontra embaixo na hierarquia tem poral pode ocupar uma posição superior na hierarquia espiritual se seu mere cimento pessoal e devotamento à coletividade forem maiores do que os de seus superiores hierárquicos Essa ordem espiritual não é transcendente como a religião cristã a conce beria Não é a ordem da vida eterna É uma ordem daqui deste mundo mas que substitui a hierarquia temporal do poder e da riqueza por uma ordem espiritual dos méritos morais O objetivo supremo de todos deve ser alcançar o primeiro lugar não na ordem do poder mas na ordem dos méritos Auguste Comte limita suas ambições de reforma econômica porque a sociedade industrial só pode existir de maneira estável se for regulada mode rada e transfigurada por um poder espiritual E na medida em que sua inten ção de reforma se concentra na criação do poder espiritual ele parece em ter mos de reforma econômica um moderado os FUNDADORES 77 Essa interpretação da sociedade industrial desempenhou um papel quase nulo no desenvolvimento das doutrinas econômicas e sociais pelo menos na Europa A concepção comtista da sociedade industrial ficou como uma espécie de curiosidade à margem da rivalidade entre as doutrinas Nenhum partido po lítico da esquerda ou da direita a tomou como fundamento exceto alguns indi víduos isolados Destes alguns da extrema direita outros da esquerda Entre os pensadores franceses deste século há dois que recolheram as idéias de Comte Um foi Charles Maurras teórico da monarquia e o outro foi Alain teórico do radicalismo Ambos se declaravam positivistas por razões distintas Maurras era positivista porque via em Comte o doutrinário da organização da autoridade e do poder espiritual renovado10 Alain era positivista porque inter pretava Comte à luz de Kant para ele a idéia essencial do pensamento positi vista consistia na desvalorização da hierarquia temporal Que o melhor cozi nheiro seja feito rei mas que não nos obrigue a beijar as panelas11 Podemos identificar em Auguste Comte estes dois aspectos a aceitação de uma ordem temporal autoritária e hierárquica e a superposição de uma ordem espiritual à hierarquia temporal Comte só aceitava a filosofia de Hobbes na or dem temporal isto é a filosofia do poder acrescentandolhe a filosofia de Kant Só o espírito é respeitável só o valor moral é digno de respeito Como escre veu Alain A ordem nunca é venerável Por que a concepção de Auguste Comte permaneceu fora da grande cor rente de idéias filosóficas da sociedade moderna A questão precisa ser colo cada Num certo sentido a doutrina de Comte está hoje mais perto das doutri nas em moda do que muitas outras doutrinas do século XIX Todas as teorias que atualmente salientam a semelhança de um grande número de instituições dos dois lados da cortina de ferro desvalorizam a importância da concorrência e procuram identificar os traços fundamentais da civilização industrial pode riam ser aproximadas do pensamento de Auguste Comte Ele é o teórico da so ciedade industrial aquém ou à margem das querelas entre liberais e socialistas entre doutrinários do mercado e apologistas da planificação Os temas comtistas fundamentais o trabalho livre a aplicação da ciência à indústria a predominância da organização são bem característicos da concep ção atual da sociedade industrial Por que então Auguste Comte foi esquecido ou é desconhecido A primeira razão é que embora as idéias principais do positivismo sejam profundas sua descrição minuciosa da sociedade industrial notadamente no Système de politique positive se presta muitas vezes à ironia fácil Comte quis explicar em pormenor a organização da hierarquia temporal a posição exata dos chefes temporais industriais e banqueiros Quis mostrar por que os que exercem as funções mais gerais teriam maior autoridade e se situariam mais alto na hierarquia da sociedade Quis precisar o número de habitantes de cada cida 78 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de o número dos patrícios Quis explicar como as riquezas seriam transmitidas Em suma traçou um plano preciso dos seus sonhos ou dos sonhos aos quais cada um de nós pode se abandonar nos momentos em que se considera Deus De outro lado a concepção da sociedade industrial de Auguste Comte está associada à afirmação de que as guerras seriam anacrônicas12 Ora não foi o que se viu no período entre 1840 e 1945 Na primeira metade deste século houve várias guerras de excepcional violência que causaram decepção aos discípulos fiéis da escola positivista13 Esta tinha decretado o fim das guerras na vanguar da da humanidade isto é na Europa ocidental E foi justamente na Europa oci dental que ocorreram as guerras do século XX Segundo Auguste Comte a minoria ocidental que felizmente estava à testa do desenvolvimento da humanidade não devia conquistar os povos de outras raças para imporlhes sua civilização Explicara com excelentes argumentos isto é com argumentos que lhe pareciam excelentes e que nos parecem exce lentes graças à lição dos acontecimentos que os ocidentais não deveriam con quistar a África e a Ásia que se cometessem o erro de expandir sua civiliza ção pelas armas o resultado seria desastroso para todos Se Comte acertou foi à custa de terse enganado Durante todo um século os acontecimentos não esti veram de acordo com o que havia anunciado14 Auguste Comte falou como profeta da paz porque acreditava que a guerra não tinha mais função na sociedade industrial A guerra tinha sido necessária para obrigar ao trabalho regular homens naturalmente anárquicos e preguiço sos para criar Estados de grande extensão para que surgisse a unidade do Império Romano na qual se difundiu o cristianismo e do qual surgiria final mente o positivismo A guerra tinha desempenhado uma dupla função históri ca o aprendizado do trabalho e a formação de grandes Estados No século XIX porém ela não tinha mais nenhum papel a desempenhar as sociedades eram definidas pelo primado e pelos valores do trabalho não havia mais uma classe militar nem motivo para combater15 As conquistas tinham representado no passado um meio legítimo ou pelo menos racional para os que se beneficiavam delas de aumentar os recursos Mas numa época em que a riqueza depende da organização científica do tra balho os ganhos de guerra perdem significado se tomam anacrônicos A trans missão dos bens se faria doravante pela doação e pela troca e segundo Comte a doação exerceria um papel de crescente importância reduzindo em certa me dida o da troca16 Finalmente a filosofia de Auguste Comte não se centrava realmente na in terpretação da sociedade industrial Tendia sobretudo à reforma da organização temporal pelo poder espiritual que deveria ser exercido pelos cientistas e filó sofos que substituiriam os sacerdotes O poder espiritual deve regular os sen os FUNDADORES 79 timentos dos homens unilos com vistas a um trabalho comum consagrar os di reitos daqueles que governam moderar o arbítrio ou o egoísmo dos poderosos A sociedade sonhada pelos positivistas não se caracteriza tanto pela dupla rejei ção do liberalismo e do socialismo mas sobretudo pela criação de um poder es piritual que seria na idade positiva o equivalente ao das Igrejas e dos sacerdo tes nas idades teológicas do passado É neste ponto provavelmente que a história mais decepcionou os discípulos de Comte Embora a organização temporal da sociedade industrial lembre a que foi imaginada por Auguste Comte o poder espiritual dos filósofos e cientistas ainda não foi instituído O que há de poder espiritual é exercido ou pelas Igrejas do passado ou por ideólogos que Comte não reconheceria como verdadeiros cientistas ou como verdadeiros filósofos Na medida em que os homens que pretendem interpretar cientificamente a ordem social exercem um poder espiritual na União Soviética por exemplo acentuam não os traços comuns a todas as sociedades industriais mas uma dou trina particular da organização das sociedades industriais Nem de um lado nem do outro se toma como patrono o pensador que desvalorizou os conflitos ideo lógicos dos quais viveram as sociedades européias e que causaram a morte de milhões de pessoas Auguste Comte teria desejado um poder espiritual exercido pelos intérpre tes da organização social que tivesse ao mesmo tempo reduzido a importância moral da hierarquia temporal Esse gênero de poder espiritual nunca existiu e não existe hoje Provavelmente os homens preferem sempre o que os divide ao que os une Provavelmente cada sociedade se sente obrigada a insistir naquilo que tem de particular em vez de acentuar as características que tem em comum com todas as outras sociedades Provavelmente também as sociedades ainda não estão bastante convencidas das virtudes que Auguste Comte atribuía à so ciedade industrial Comte pensava com efeito que a organização científica da sociedade in dustrial levaria a atribuir a cada indivíduo um lugar proporcional à sua capaci dade realizando assim a justiça social Havia muito otimismo nesse ponto de vista No passado a idade ou o berço determinavam a posição privilegiada ocupa da na sociedade por um indivíduo doravante na sociedade do trabalho seria a aptidão individual que determinaria cada vez mais a posição de cada um Um sociólogo inglês Michael Young dedicou um livro satírico a um regime que chamou de meritocracia isto é a idéia comtiana de como seria a ordena ção da sociedade industrial17 O autor não cita Comte e este não teria reencon trado suas esperanças na descrição de uma tal ordem Michael Young mostra com humor que se cada um ocupar uma posição proporcional à sua capacida de os que estiveiiMKs escalões inferiores estarão condenados ao desespero 80 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO pois não poderão mais acusar a sorte ou a injustiça Se todos os homens estive rem convencidos de que a ordem social é justa esta será de certo modo para alguns insuportável a menos que simultaneamente os homens sejam conven cidos pelos ensinamentos de Auguste Comte de que a hierarquia das qualida des intelectuais não é nada ao lado da verdadeira hierarquia a única que conta a dos méritos e do coração Não é fácil porém convencer a humanidade de que a ordem temporal é secundária A sociologia ciência da humanidade Nos três últimos volumes do Curso de filosofia positiva e especialmente no tomo IV Auguste Comte expôs sua concepção da nova ciência chamada sociologia Ele diz apoiarse em três autores que apresenta como seus inspiradores ou predecessores Montesquieu Condorcet e Bossuet sem contar Aristóteles a res peito do qual falarei mais adiante Esses três nomes introduzem a alguns dos temas fundamentais do seu pensamento sociológico Auguste Comte atribui a Montesquieu o mérito eminente de ter afirmado o determinismo dos fenômenos históricos e sociais Oferece uma interpretação simplificada de O espírito das leis cuja idéia central seria enunciada na fórmu la famosa do livro I As leis são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas Auguste Comte vê nessa fórmula o princípio do determinismo aplicado à diversidade dos fenômenos sociais e ao devenir das sociedades Por outro lado para que pudesse fundar a sociologia faltava a Montesquieu a idéia do progresso Auguste Comte vai descobrila em Condorcet no famoso Esquisse d un tableau historique des progrès de Vesprit humainx que preten de descobrir no passado um certo número de fases pelas quais passou o espíri to humano Essas fases têm um número definido e sua seqüência tem uma or dem necessária Comte colhe em Condorcet a idéia de que o progresso do espí rito humano é o fundamento do devenir das sociedades humanas Combinando o tema de Montesquieu do determinismo com o de Con dorcet das etapas necessárias segundo uma ordem inelutável dos progressos do espírito humano chegase à concepção central de Comte os fenômenos sociais estão sujeitos a um determinismo rigoroso que se apresenta sob a forma de um devenir inevitável das sociedades humanas comandado pelos progres sos do espírito humano Esse modo de conceber o devenir histórico leva a uma visão da história totalmente unificada em marcha para um estado definitivo do espírito humano e das sociedades humanas muito comparável ao providencialismo de Bossuet que Comte saúda como a mais eminente tentativa que precedeu a sua própria os FUNDADORES 81 É sem dúvida a nosso grande Bossuet que devemos sempre atribuir a primei ra tentativa importante feita pelo espírito humano para contemplar de um ponto de vista suficientemente elevado o conjunto do passado social Sem dúvida os recur sos fáceis mas ilusórios de toda filosofia teológica para estabelecer uma certa ligação aparente entre os acontecimentos humanos não permitem utilizar hoje na construção direta da verdadeira ciência do desenvolvimento social explicações que se caracterizam inevitavelmente pela preponderância então irresistível nesse gênero de uma tal filosofia Mas essa admirável composição na qual o espírito de universalidade indispensável a qualquer concepção desse tipo é apreciado com tanta força e até mesmo mantido sempre que a natureza do método empregado o permite nunca deixará de ser um modelo imponente sempre o mais apropriado para marcar com clareza o objetivo geral que nossa inteligência deve propor sem cessar como resultado final de todas as nossas análises históricas isto é a coorde nação racional da série fundamental dos diferentes acontecimentos humanos segun do um desígnio único mais real e ao mesmo tempo mais amplo do que o imagina do por Bossuet Cours de phüosophie positive t iy p 147 A fórmula a coordenação racional da série fundamental dos diferentes acontecimentos humanos segundo um desígnio único é a chave da concepção sociológica de Comte Ele é bem o sociólogo da unidade humana Seu objeti vo é reduzir a infinita diversidade das sociedades humanas no espaço e no tem po a uma série fundamental o devenir da espécie humana e a um projeto único o de chegar a um estado final do espírito humano Vêse assim como aquele que se considera o fundador da ciência positi va também pode ser apresentado como o último discípulo do providencialismo cristão vemos como pode se dar a passagem entre a interpretação da história pela providência e a interpretação pelas leis gerais Quer se trate das intenções da providência quer das leis necessárias do devenir humano a história é concebi da como una e necessária Seu desígnio é único porque foi fixado por Deus ou pela natureza humana a evolução é necessária porque ou a providência deter minou suas etapas e seu fim ou a própria natureza do homem e da sociedade determinou as leis Dessa forma o pensamento de Auguste Comte mesmo no Curso de filo sofia positiva em que aparece em sua forma mais científica passa facilmente de uma certa concepção da ciência a uma nova versão da providência O desígnio único da história segundo Auguste Comte é o progresso do es pírito humano Se este dá unidade ao conjunto do passado social é porque a mesma maneira de pensar deve se impor em todos os domínios Auguste Comte sabemos constata que o método positivo é hoje neces sário nas ciências e conclui que este método baseado na observação na expe rimentação e na formulação de leis deve ser estendido aos domínios que ainda hoje são deixados à teologia e à metafísica isto é são deixados às explicações 82 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO por meio de seres transcendentais ou entidades ou ainda das causas últimas dos fenômenos Para ele há um modo de pensar o positivo que tem validade uni versal tanto em política como em astronomia19 Simultaneamente Comte insiste numa proposição complementar à prece dente embora pareça contradizêla Afirma que só pode haver verdadeira uni dade numa sociedade quando o conjunto das idéias diretrizes adotadas pelos diferentes membros da coletividade forma um todo coerente A sociedade é caótica quando nela se justapõem modos de pensar contraditórios e idéias extraídas de filosofias incompatíveis Ao que parece seria possível extrair desse tema a conclusão de que no pas sado as sociedades que não viviam em crise deviam ter um conjunto de idéias coerentes unindo ao mesmo tempo as inteligências e a coletividade Mas essa conclusão só poderia ser parcialmente válida pois Auguste Comte demonstrou quê as diversas ciências alcançam o estado positivo em momentos diferentes da História As primeiras ciências a atingirem o estado positivo são as que estão em primeiro lugar numa classificação das ciências que marca as etapas da difu são do pensamento positivo Em todas as épocas houve ciências que já eram parcialmente positivas enquanto outras disciplinas intelectuais ainda eram feti chistas ou teológicas A coerência do pensamento objetivo final de Comte jamais foi realizada plenamente no curso da história Desde a aurora dos tem pos históricos certos elementos das ciências tinham chegado ao estado positi vo enquanto em outros domínios continuava a reinar o espírito teológico Em outras palavras uma das molas do movimento histórico tem sido pre cisamente a incoerência dos modos de pensar em cada etapa da história Antes do positivismo houve um só período marcado por verdadeira coerência intelec tual o fetichismo que é o modo de pensar imediato e espontâneo do espírito humano e que consiste em atribuir animação a todas as coisas vivas ou inani madas e em supor que as coisas e os seres são semelhantes aos homens ou à consciência humana O espírito só tomará a encontrar uma verdadeira coerên cia na fase final quando o positivismo se estender ao conjunto das disciplinas intelectuais inclusive a política e a moral Entre o fetichismo e o positivismo porém a regra é a diversidade dos métodos de pensamento diversidade que é provavelmente o que impede a história de se deter É verdade que Comte tomou como ponto de partida no princípio da sua carreira a idéia de que não podia haver duas filosofias diferentes numa socie dade mas o desenvolvimento do seu pensamento o forçou irresistivelmente a re conhecer que a pluralidade das filosofias predominou quase sempre no decor rer da história Por fim o objetivo do devenir social é levar o pensamento hu mano à coerência à qual ele está destinado e que só pode ser realizada de duas formas pelo fetichismo espontâneo ou pelo positivismo finai Ou o espírito os FUNDADORES 83 explica todas as coisas supondoas animadas ou renuncia a qualquer explica ção causai teológica ou metafísica e se limita a estabelecer leis Nestas condições porém podese perguntar por que existe uma história Se o estado final e normal da inteligência humana é a filosofia positiva por que precisou a humanidade passar por tantas etapas sucessivas Por que foi neces sário esperar tantos séculos ou milênios para que surgisse o homem que en fim tomasse consciência daquilo que devia ser o espírito humano isto é o pró prio Auguste Comte A razão profunda é que o positivismo só pode ser uma filosofia tardia ou seja não pode ser uma filosofia espontânea Com efeito ele consiste para o homem em reconhecer uma ordem que lhe é exterior em confessar sua inca pacidade de dar uma explicação última e em se contentar em decifrála O espí rito positivo observa os fenômenos analisaos descobre as leis que comandam suas relações Ora é impossível pela observação e análise descobrir imediata e rapidamente essa ordem exterior Antes de filosofar o homem precisa viver Des de a primeira fase da aventura da espécie humana foi possível a rigor explicar certos fenômenos simples de maneira científica A queda de um corpo por exemplo pôde ser explicada espontaneamente de forma positiva20 Mas a filo sofia positivista filosofia da observação da experimentação da análise e do de terminismo não podia se fundamentar na explicação autenticamente científica desses poucos fenômenos Na fase inicial da história era preciso outra filosofia diferente daquela que no final é sugerida pela descoberta das leis Essa outra filosofia que Comte chama a princípio de teológica e depois de fetichista permitia à humanidade viver Confortava o homem apresentandolhe o mundo como inteligente benevolente povoado de seres semelhantes a ele A filosofia fetichista dá à espécie humana uma síntese provisória válida intelectualmente para lhe dar certeza da inteligibilidade da natureza exterior e moralmente para lhe dar confiança em si mesmo e na sua capacidade de superar obstáculos Contudo se a história é necessária por que precisa ir até o fim Comte res ponde uma vez que fenômenos são explicados científica e positivamente desde 0 ponto de partida uma pausa no progresso do espírito humano é no fundo in concebível A contradição entre o positivismo parcial e a síntese fetichista ator menta a humanidade e impede o espírito humano de parar antes de atingir a fase final do positivismo universal Acrescentemos todavia que segundo Comte diversas partes da humanida de se detiveram em sínteses provisórias em uma ou outra das fases intermediá rias No fim da sua vida Comte chegou a pensar que certas populações poderiam Passar da síntese inicial do fetichismo à síntese final do positivismo sem passar Por todas as e ta p a sd m a m ic a social 84 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A concepção da história de Comte coloca outro problema se a história é essencialmente a história do progresso do espírito humano quais são as rela ções entre este progresso dos conhecimentos e as outras atividades humanas No Curso de filosofia positiva Comte afirma que tomada no seu conjun to a história é essencialmente o devenir da inteligência humana A parte principal dessa evolução a que mais influenciou o progresso geral consiste sem dúvida no desenvolvimento contínuo do espírito científico desde os trabalhos primitivos dos Tales e dos Pitágoras até os dos Lagrande e dos Bichat Nenhum homem esclarecido duvidaria hoje que nessa longa sucessão de esforços e de descobertas o gênio humano tenha seguido sempre um caminho exatamente determinado cujo conhecimento prévio exato teria permitido de alguma forma a uma inteligência suficientemente informada prever antes da sua realização mais ou menos próxima os progressos essenciais reservados a cada época segundo o fe liz esboço já indicado no começo do século passado pelo ilustre Fontenelle T IV p 195 Assim o progresso necessário do espírito é o aspecto essencial da história da humanidade21 Auguste Comte deixa pouca coisa ao acaso e aos acidentes Afirma que os momentos principais do espírito humano poderiam ser previstos por uma inteligência superior porque lhe correspondiam a uma necessidade O fato de o progresso do espírito humano ser o aspecto mais característico do devenir histórico não significa que o movimento da inteligência determine a transformação dos outros fenômenos sociais Aliás Comte não coloca o pro blema nesses termos Em nenhum momento ele se pergunta qual é a relação entre o progresso da inteligência humana e as transformações da economia da guerra ou da política E fácil no entanto tirar de suas análises a solução desse problema Não se trata mais para Auguste Comte da determinação do conjunto social pela inteligência como não se trata na obra de Montesquieu da determinação do conjunto social pelo regime político A diferença entre os dois está em que para um o aspecto mais característico é o estado da inteligência para o outro o regime político Em um como em outro porém o movimento histórico se reali za por ação e reação entre os diferentes setores da realidade social global22 Na dinâmica social tanto no tomo V do Curso de filosofia positiva como no tomo III do Système de politique positive a passagem de uma etapa para outra tem como força motriz a contradição entre os diferentes setores da sociedade De acordo com o caso o fator que provoca a desagregação de iam certo conjunto e o advento da etapa seguinte se encontra na política na economia ou na inteligência O primado do devenir da inteligência porém não deixa de subsistir Com efeito as grandes etapas da história da humanidade são fixadas pelo modo de pensar a etapa final é a do positivismo universal e a impulsão última do deve os FUNDADORES 85 nir é a crítica incessante que o positivismo ao nascer e ao amadurecer exerce sobre as sínteses provisórias do fetichismo da teologia e da metafísica É a inteligência que indica a direção da história e marca o que será o pleno desenvolvimento da sociedade e da natureza humana na sua fase final Compreendese que a história humana possa ser considerada como a de um único povo Se a história fosse a história da religião para postular a uni dade da história humana seria necessário admitir uma religião universalizável Mas se a história é a da inteligência é suficiente para que toda a história seja a história de um único povo que exista uma maneira de pensar válida para to dos os homens o que é relativamente fácil de conceber Assim as matemáticas de hoje nos parecem verdadeiras para todos os homens de todas as raças Está claro que esta proposição não é inteiramente evidente Spengler afirmava ter havido uma matemática dos gregos como existe hoje uma matemática moder na Mas o próprio Spengler entendia essa fórmula num sentido particular Acha va que o modo de pensar matemático era influenciado pelo estilo próprio de uma cultura Não creio que tivesse negado que os teoremas matemáticos fossem uni versalmente verdadeiros23 Se a ciência ou a filosofia positiva é válida para todos os homens e se a história é a história da inteligência concebese que ela deva ser pensada como a história de um único povo Contudo se a história é a história de um só povo se suas etapas são necessá rias e se há uma marcha inevitável em busca de um objetivo determinado por que diferentes partes da humanidade têm histórias particulares diferentes entre si Assim como o problema de Montesquieu é explicar a unidade o de Auguste Comte é explicar a diversidade Se por uma espécie de experiência intelectual formos até o fundo desta maneira de pensar o próprio Comte não iria talvez tão longe o que é misterioso é o fato de que existam ainda histórias isto é que as diferentes partes da humanidade não tenham o mesmo passado Auguste Comte justifica essa diversidade enumerando três fatores de va riação a raça o clima e a ação política24 Sobretudo no Système de politique positive ele interpretou a diversidade das raças atribuindo a cada uma a predo minância de certas disposições Assim segundo ele a raça negra deveria carac terizarse sobretudo pela propensão à afetividade o que na última parte de sua carreira lhe parecia aliás uma superioridade moral As diferentes partes da humanidade não evoluíram do mesmo modo porque no ponto de partida não tinham os mesmos dons Mas é evidente que éssa diversidade se desenvol ve tendo como pano de fundo uma natureza comum Quanto ao clima ele designa o conjunto das condições naturais em que se encontra cada parte da humanidade Cada sociedade teve de vencer obstáculos 86 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mais ou menos difíceis conheceu circunstâncias geográficas mais ou menos fa voráveis o que permite explicar até certo ponto a diversidade da sua evolução25 Examinando o papel da ação política voltamos a encontrar o providencia lismo De fato Comte se propõe antes de mais nada a fazer com que os políti cos e os reformadores sociais percam a ilusão de que um indivíduo por mais importante que seja possa modificar substancialmente o curso necessário da história Não se recusa a admitir que depende das circunstâncias dos encontros ou dos grandes homens que a evolução necessária se produza de modo mais ou menos acelerado e que o resultado de qualquer modo inevitável seja mais ou menos custoso Se tomarmos porém o caso de Napoleão por exemplo não teremos dificuldade em descobrir os limites da eficácia possível dos grandes homens De acordo com Comte Napoleão como o imperador Juliano ou Filipe II da Espanha não compreendeu o espírito do seu tempo ou como se diria hoje o sentido da história Fez uma vã tentativa de restauração do regime militar Lan çou a França à conquista da Europa multiplicando conflitos levantou os povos da Europa contra a Revolução Francesa e no fim nada resultou dessa aberração temporária Por maior que seja um soberano quando comete o erro de se enga nar a respeito da natureza da sua época não deixa finalmente nenhum rastro26 Essa teoria que afirma a incapacidade dos indivíduos de alterar o rumo dos acontecimentos desemboca numa crítica dos reformadores sociais dos uto pistas e revolucionários de todos os que acreditam que é possível transformar a marcha da história traçando o plano de uma nova sociedade ou empregando a violência É verdade que à medida que passamos do mundo das leis físicas para o das leis históricas a fatalidade é cada vez mais modificável Graças à sociolo gia que descobre a ordem essencial da história a humanidade poderá talvez apressar o surgimento do positivismo e reduzir o seu custo Mas Auguste Comte com base em sua teoria do curso inevitável da história se opõe às ilusões dos grandes homens e às utopias dos reformistas Há sobre esse ponto uma passagem significativa Numa palavra como indiquei no meu trabalho de 1822 a marcha da civili zação não se realiza propriamente segundo uma linha reta mas segundo uma sé rie de oscilações desiguais e variáveis como na locomoção animal em tomo de um movimento médio que tende sempre a predominar e cujo conhecimento exato permite regularizar previamente a preponderância natural diminuindo as oscila ções e as hesitações mais ou menos funestas que lhes correspondem Seria con tudo exagerar o alcance real de tal arte embora cultivada tão racionalmente quan to possível e aplicada em toda a extensão conveniente atribuirlhe a propriedade de impedir em todos os casos as revoluções violentas que nascem dos obstáculos que se opõem ao curso espontâneo da evolução humana No organismo social em os FUNDADORES 87 virtude da sua maior complexidade as doenças e crises são necessariamente ain da mais inevitáveis sob muitos aspectos do que no organismo individual No en tanto enquanto a ciência real é forçada a reconhecer sua impotência momentânea e fundamental diante de desordens profundas ou de pressões irresistíveis pode ainda contribuir utilmente para atenuar e sobretudo para abreviar as crises graças à apreciação exata de seu caráter principal e à previsão racional da sua solução final sem renunciar jamais a uma intervenção prudente a menos que sua impos sibilidade seja suficientemente constatada Aqui como em outros pontos e mais ainda do que em outros não se trata de controlar os fenômenos mas apenas de modificar seu desenvolvimento espontâneo isso exige é evidente o conhecimen to prévio de suas leis reais Cours de philosophie positive t IY pp 213214 A nova ciência social proposta por Auguste Comte é o estudo das leis do desenvolvimento histórico Ela se fundamenta na observação e na comparação portanto em métodos análogos aos empregados por outras ciências notadamen te a biologia Mas esses métodos se enquadrarão de certo modo nas idéias dire trizes da doutrina positivista pela sua concepção da estática e da dinâmica ambas sintéticas Para compreender a ordem de uma sociedade determinada ou as grandes linhas da história nos dois casos o espírito subordina as observações parciais à compreensão anterior do conjunto Estática e dinâmica são as duas categorias centrais da sociologia de Au guste Comte A estática consiste essencialmente no estudo do que ele chama de consenso social Uma sociedade se assemelha a um organismo vivo Assim co mo é impossível estudar o funcionamento de um órgão sem situálo no conjun to do ser vivo é impossível estudar a política e o Estado sem situálos no con junto da sociedade num dado momento A estática social comporta portanto de um lado a análise anatômica da estrutura da sociedade num certo momento de outro a análise dos elementos que determinam o consenso isto é que fazem do conjunto dos indivíduos ou famílias uma coletividade e da pluralidade das instituições uma unidade Mas se a estática é o estudo do consenso ela nos le va a procurar saber quais são os órgãos essenciais de toda sociedade a ultra passar por conseguinte a diversidade das sociedades históricas para descobrir os princípios que regem toda ordem social Assim a estática social que começa como uma simples análise positiva da anatomia das diversas sociedades e dos laços de solidariedade recíproca entre as instituições de uma coletividade particular leva no tomo II do Système de Politique positive ao estudo da ordem essencial de toda coletividade humana A dinâmica em seu ponto de partida é apenas a descrição das etapas su cessivas percorridas pelas sociedades humanas Partindo do conjunto sabemos que o devenir das sociedades humanas e o espírito humano são comandados por leis Como o conjunto do passado constitui uma unidade a dinâmica social não 88 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO se parece com a história dos historiadores que colecionam fatos ou observam a sucessão das instituições A dinâmica social percorre as etapas sucessivas ou necessárias do devenir do espírito humano e das sociedades humanas A estática social trouxe à luz a ordem essencial de toda sociedade huma na a dinâmica social retraça as vicissitudes pelas quais passou essa ordem fun damental antes de alcançar o termo final do positivismo A dinâmica está subordinada à estática É a partir da ordem de toda socie dade humana que se pode compreender a história A estática e a dinâmica levam aos termos de ordem e progresso que figuram nas bandeiras do positivismo e do Brasil27 O progresso é o desenvolvimento da ordem No ponto de partida estática e dinâmica são simplesmente o estudo da coexistência e da sucessão No ponto de chegada são o estudo da ordem huma na e social essencial de suas transformações e de seu desenvolvimento Mas a passagem da fórmula aparentemente científica estática e dinâmica para a fór mula aparentemente filosófica ordem e progresso é necessária em virtude das duas idéias de Comte o primado do todo e das leis que se aplicam ao conjun to e a confusão entre o movimento inevitável da história e uma espécie de pro vidência Natureza humana e ordem social Numa primeira análise a estática social é comparável à anatomia estuda como se organizam os diferentes elementos do corpo social Contudo como a sociologia tem por objeto a história da humanidade considerada como forman do um só povo esta estética anatômica se torna facilmente a análise da estru tura de toda sociedade humana Fundamentalmente só há uma história assim pelo estudo estático é possível identificar as características de toda sociedade Comte expõe com clareza os objetivos da estática É preciso mediante uma abstração provisória estudar primeiramente a ordem humana como se fosse imóvel Apreciaremos assim as diversas leis funda mentais necessariamente comuns a todos os tempos e lugares Esta base sistemá tica nos permitirá depois a explicação geral de uma evolução gradual que nunca pôde consistir senão na realização crescente do regime próprio à verdadeira natu reza humana e do qual todos os germes essenciais devem ter existido sempre Este segundo volume deve caracterizar sucessivamente a ordem humana sob todos os diversos aspectos fundamentais que lhe são próprios No que diz respeito a cada um deles é preciso antes de mais nada determinar o regime normal que cor responde a nossa verdadeira natureza e explicar em seguida a necessidade que subordina seu aparecimento decisivo a uma longa preparação gradual Système de politique positive t II pp 34 os FUNDADORES 89 É no Système de politique positive que esta concepção comtista da estáti ca encontra seu desenvolvimento completo O tomo II do Système de politique positive é inteiramente consagrado à estática social e tem um subtítulo bem característico Traité abstrait de lordre humain Tratado abstrato da ordem hu mana No Curso de filosofia positiva há sem dúvida o esboço de uma estáti ca mas esta só tem um capítulo e as idéias estão apenas delineadas28 Esta estática pode ser decomposta logicamente em duas partes o estudo preliminar da estrutura da natureza humana contido no tomo I do Système de politique positive e o estudo propriamente dito da estrutura da natureza social Auguste Comte expôs suas idéias sobre a natureza humana no que chamou de quadro cerebral tableau cérébral apresentado como um estudo científi co das localizações cerebrais O quadro indica onde se situam no cérebro os cor respondentes anatômicos das diferentes disposições humanas Esta teoria das localizações cerebrais é o que menos nos interessa é o aspecto menos defensá vel do pensamento de Comte Podemos abandonála sem prejudicar e sem trair o pensamento do seu autor que é o primeiro a admitir que essas localizações são em certa medida hipotéticas A interpretação fisiológica leva a uma hipótese anatômica que não passa da transposição de uma interpretação do funcionamento do espírito Há certamente uma grande diferença entre a maneira como Auguste Comte expôs o que é a natureza humana e o modo como Platão poderia fazêlo En contramos em Platão um esboço de localizações se não cerebrais pelo menos físicas Depois de distinguir o nous do thymos Platão situa diferentes aspectos da natureza humana em diferentes partes do corpo Também neste caso pode mos deixar de lado a teoria da localização das disposições do corpo retendo apenas a imagem que Platão tinha do homem29 Auguste Comte indica que se pode considerar a natureza humana como dupla ou tripla Podese dizer que o homem se compõe de um coração e de uma inteligência ou dividir o coração em sentimento ou afeição e atividade con siderando que o homem é ao mesmo tempo sentimento atividade e inteligên cia Comte afirma que o duplo sentido da palavra coração é uma ambigüidade reveladora Ter coração avoir du coeur é ter sentimento ou coragem As duas noções são expressas pela mesma palavra como se a linguagem tivesse cons ciência do vínculo existente entre afeição e coragem O homem é sentimental ativo e inteligente É antes de tudo um ser essen cialmente ativo No fim da sua vida Comte retoma as fórmulas que já se encon travam nos Opúsculos e escreve no Système de politique positive que o homem não foi feito para perder seu tempo em especulações e dúvidas sem fim Foi fei to para agir Mas o impulso da atividade virá sempre do coração no sentido de senti mento O homem nunca age movido pela inteligência isto é o pensamento 90 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO abstrato nunca é o fator determinante da sua ação Contudo a atividade anima da pela afeição precisa ser controlada pela inteligência Segundo uma fórmula célebre é preciso agir por afeição e pensar para agir Desta concepção decorre a crítica de uma interpretação intelectualista do racionalismo segundo a qual o desenvolvimento histórico faria da inteligência progressivamente o órgão determinante da conduta humana Segundo Comte não pode ser assim O impulso virá sempre do sentimento alma da humanidade e mo tor da ação A inteligência nunca será mais do que um órgão de direção ou de controle Com isso não se desvaloriza a inteligência pois na filosofia positivista existe a idéia de uma relação inversa entre a força e a nobreza O mais nobre é o mais fraco Pensar que a inteligência não determina a ação não é depreciála Ela não é nem pode ser a força precisamente porque de certo modo ela é o que há de mais elevado As localizações cerebrais desses três elementos da natureza humana não passam da transposição das idéias relativas ao seu funcionamento Comte colo ca a inteligência na parte anterior do cérebro de modo a relacionála com os ór gãos da percepção ou os órgãos dos sentidos A afeição está atrás de modo a ficar diretamente ligada aos órgãos motores Podese distinguir em seguida nos sentimentos o que está relacionado com o egoísmo e o que está relacionado com o altruísmo e a abnegação A classifi cação dos sentimentos feita por Comte é bastante curiosa Enumera os instintos puramente egoístas nutritivo sexual maternal e a seguir acrescenta as incli nações que embora egoístas já estão voltadas para as relações com os outros as militares e as industriais que são a transposição na natureza humana dos dois tipos de sociedade que pensou observar na sua época O instinto militar é o que nos impulsiona a destruir os obstáculos o instinto industrial ao contrá rio é o que nos induz a construir meios Acrescenta ainda dois sentimentos que podem ser reconhecidos sem dificuldade o orgulho e a vaidade O orgulho é o instinto da dominação a vaidade a procura da aprovação dos outros Pela vai dade de certo modo já passamos do egoísmo para o altruísmo As inclinações nãoegoístas são três a amizade de uma pessoa por outra no mesmo pé de igualdade a veneração que já amplia o círculo ou então é a disposição do filho em relação ao pai do discípulo ao mestre do inferior ao superior finalmente a bondade que em princípio tem extensão universal e que deve se realizar plenamente na religião da humanidade A inteligência pode ser decomposta em concepção e expressão A concepção por sua vez é passiva ou ativa Quando passiva é abstrata ou concreta Quando ativa é indutiva ou dedutiva A expressão pode ser mímica oral ou escrita A atividade por fim se divide em três tendências a virtude para empre gar uma expressão da filosofia clássica pressupõe a coragem de empreender a prudência na execução e a firmeza na realização ou perseverança os FUNDADORES 91 Essa é a teoria da natureza humana Em virtude do quadro cerebral fica claro que o homem é antes de mais nada egoísta mas não exclusivamente egoísta As inclinações voltadas para os outros que desabrocham em abnegação e amor exis tem desde o inicio A história não altera a natureza humana O primado atribuído à estática eqüivale à afirmação do caráter eterno das disposições características do ho mem enquanto homem Auguste Comte não teria escrito como Sartre que O homem é o futuro do homem e que o homem se cria a si mesmo através do tempo Para Comte as inclinações essenciais estão presentes desde a origem Disso não resulta porém que a sucessão das sociedades não traga nada ao homem Pelo contrário a história lhe dá a possibilidade de realizar o que há de mais nobre na sua natureza e favorece o desenvolvimento progressivo das dis posições altruístas Dálhe a possibilidade de utilizar plenamente a inteligência como guia de sua ação A inteligência nunca será para o homem mais do que um órgão de controle mas não pode ser no princípio da sua evolução um con trole válido da atividade pois como foi dito acima o pensamento positivo não é espontâneo Ser positivo significa descobrir as leis que governam os fenôme nos Ora é preciso tempo para tirar da observação e da experiência o conheci mento dessas leis A história é indispensável para que a inteligência humana atinja seu fim imanente e realize sua vocação própria As relações estruturais entre as partes da natureza humana permanecerão sempre o que já são no ponto de partida Auguste Comte se opõe assim a uma versão otimista e racionalista da evolução da humanidade Contra aqueles que imaginam que a razão poderia ser o determinante essencial do comportamento do homem afirma que os homens serão sempre movidos pelos sentimentos O verdadeiro objetivo consiste em fazer com que sejam movidos cada vez mais por sentimentos desinteressados e não por instintos egoístas e que o órgão de controle que dirige a atividade humana possa realizar plenamente sua função descobrindo as leis que comandam a realidade Essa interpretação da natureza humana nos permite passar à análise da natureza social Nos sete capítulos do primeiro tomo do Système de politique positive Au guste Comte esboça sucessivamente uma teoria da religião uma teoria da pro priedade uma teoria da família uma teoria da linguagem uma teoria do orga nismo social ou da divisão do trabalho antes de terminar consagrando um capí tulo à existência social sistematizada pelo sacerdócio esboço da sociedade humana que se tomou positivista e outro relativo aos limites gerais de varia ção próprios à ordem humana explicação estática da possibilidade da dinâmi ca ou ainda explicação a partir das leis da estática da possibilidade e neces 92 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO sidade das variações históricas Esses diferentes capítulos constituem uma teo ria da estrutura fundamental das sociedades A análise da religião tem por objetivo mostrar a função da religião em toda sociedade humana A religião resulta de uma dupla exigência Toda sociedade comporta necessariamente consenso isto é acordo entre as partes união dos membros que a constituem A unidade social exige o reconhecimento de um prin cípio de unidade por todos os indivíduos isto é uma religião A religião implica a divisão temária característica da natureza humana Comporta um aspecto intelectual o dogma um aspecto afetivo o amor que se exprime no culto e um aspecto prático que Comte chama de regime O culto regula os sentimentos e o regime o comportamento privado ou público dos crentes A religião reproduz as diferenças da natureza humana criando a uni dade precisa dirigirse simultaneamente à inteligência ao sentimento e à ação isto é a todas as disposições do ser humano Esta concepção não é fundamentalmente diferente da que Comte havia ex posto no princípio da sua carreira ao afirmar que as idéias da inteligência fixa vam as etapas da história da humanidade Contudo na época do Système de p o litique positive não considera mais as simples idéias diretrizes ou a filosofia como o fundamento de cada organização social É a religião que constitui a base da ordem social e a religião é afeição e atividade ao mesmo tempo que dogma ou crença Neste tratado a religião será sempre caracterizada pelo estado de plena har monia própria à existência humana tanto coletiva como individual quando todas as suas partes são dignamente coordenadas Esta definição a única que é comum aos diversos casos principais diz respeito igualmente ao coração e ao espírito cujo concurso é indispensável a tal unidade A religião constitui portanto para a alma um consenso normal comparável exatamente à saúde com relação ao cor po Système de politique positive t II p 8 Devese fazer uma aproximação dos dois capítulos relativos à propriedade e à linguagem Essa aproximação pode parecer surpreendente mas correspon de ao pensamento profundo de Auguste Comte30 Propriedade e linguagem têm de fato uma mútua correspondência A propriedade é a projeção da atividade na sociedade enquanto a linguagem é a projeção da inteligência A lei comum à propriedade e à linguagem é a lei da acumulação Há progresso na civilização porque as conquistas materiais e intelectuais não desaparecem com aqueles que as realizaram A humanidade existe porque há tradição isto é transmissão A propriedade é a acumulação dos bens transmitidos de uma geração a outra A lin guagem é por assim dizer o receptáculo no qual são conservadas as aquisições os FUNDADORES 93 da inteligência Ao receber uma linguagem recebemos uma cultura criada pe los nossos antepassados É preciso não nos deixarmos impressionar pelo termo propriedade com sua ressonância política ou sectária Para Auguste Comte o importante não é que a propriedade seja pública ou privada Para ele a propriedade enquanto função essencial da civilização é o fato que permite que as obras materiais dos homens durem além da existência dos seus criadores e que possamos transmitir a nos sos descendentes o que produzimos Os dois capítulos propriedade e lingua gem são dedicados aos dois instrumentos essenciais da civilização basean dose esta na continuidade das gerações e na retomada pelos vivos do pensa mento dos que morreram Daí as célebres frases A humanidade se compõe mais de mortos do que de vivos Os mortos governam cada vez mais os vivos Essas fórmulas merecem reflexão Uma das originalidades de Auguste Comte é o fato de que partindo da idéia da sociedade industrial convencido de que as sociedades científicas são fundamentalmente diferentes das sociedades do pas sado ele não tenha chegado como a maioria dos sociólogos modernos à de preciação do passado e à exaltação do futuro mas a uma espécie de reabilita ção do passado Utopista sonhando com um futuro mais perfeito do que todas as sociedades conhecidas permanece contudo como um homem da tradição com uma percepção aguda da unidade humana através do tempo31 Entre o capítulo dedicado à propriedade e o capítulo consagrado à lingua gem há intercalado um capítulo sobre a família ao qual está relacionado o ca pítulo dedicado ao organismo social ou à divisão do trabalho Esses dois capí tulos correspondem a dois dos elementos da natureza humana A família é es sencialmente a unidade afetiva e o organismo social ou a divisão do trabalho corresponde ao elemento ativo da natureza humana A teoria da família de Comte toma como modelo e considera implicita mente como exemplar a família do tipo ocidental o que naturalmente tem sido objeto de crítica Comte afasta definitivamente como patológicos certos tipos de organização familiar que existiram em diferentes países e em épocas distin tas tais como a poligamia Sem dúvida ele é demasiadamente sistemático e categórico Na sua des crição da família confunde muitas vezes características de uma sociedade par ticular com características universais Não creio porém que esta crítica fácil esgote o assunto O doutrinário do positivismo esforçase sobretudo por demons trar que as relações existentes dentro da família eram características ou exem plares das diversas relações que podem existir entre as pessoas humanas e tam bém que a afetividade humana recebia educação e formação na família As relações familiares podem ser relações de igualdade entre irmãos rela ções de veneração entre filhos e pais relações de bondade entre pais e filhos 94 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO relações complexas de comando e obediência entre o homem e a mulher Se gundo Auguste Comte com efeito é evidente que o homem deve comandar Ativo e inteligente deve ser obedecido pela mulher que é essencialmente sen sibilidade Contudo essa supremacia baseada de certo modo na força é de outro ponto de vista uma inferioridade Na família o poder espiritual isto é o mais nobre pertence à mulher Auguste Comte tinha o sentido de igualdade dos seres mas para ele essa igualdade se baseava numa diferenciação radical das funções e disposições Ao dizer que a mulher é intelectualmente inferior ao homem estava perto de ver nisso uma situação de superioridade ao mesmo tempo a mulher tem para ele o poder espiritual o poder do amor que é mais importante do que a vã supe rioridade da inteligência Vale lembrar a bela fórmula de Comte Cansamonos de agir e até mesmo de pensar mas nunca nos cansamos de amar Ao mesmo tempo na família os homens têm a experiência da continuidade histórica e aprendem o que corresponde à condição básica da civilização a trans missão de geração para geração do capital físico e das aquisições intelectuais As idéias essenciais de Comte sobre a divisão do trabalho são as da dife renciação das atividades e da cooperação entre os homens ou para empregar os termos exatos a da separação dos ofícios e a da combinação dos esforços Mas o princípio fundamental do positivismo que pode parecer chocante é de reconhecer e até mesmo de proclamar o primado da força na organização prá tica da sociedade Enquanto organização das atividades humanas a sociedade é dominada pela força e não pode ser de outro modo Auguste Comte só reconhece dois filósofos políticos Aristóteles e Hobbes Segundo ele Hobbes é o único ou quase filósofo político que merece ser cita do entre ele próprio A Comte e Aristóteles Hobbes viu que toda sociedade é governada e deve ser governada nos dois sentidos de inevitável e de confor me ao que deve ser pela força E a força na sociedade é constituída pelo nú mero ou pela riqueza32 Comte rejeita uma certa forma de idealismo Para ele a sociedade é e será dominada pela força do número ou da riqueza ou por combinação dessas for ças ficando entendido que entre uma e outra não há uma diferença essencial de qualidade É normal que a força leve a melhor E como poderia ser diferen te quando consideramos a vida real como ela é e as sociedades tais como são Todos os que se chocam com a proposição de Hobbes achariam estranho sem dúvida que em vez de fundamentar a ordem política na força quiséssemos funda mentála na fraqueza Ora este seria o resultado da sua inútil crítica segundo mi nha análise fundamental dos três elementos necessários de todo poder social De fato na ausência de uma verdadeira força material seriamos obrigados a encon trar no espírito e no coração as bases primitivas que esses frágeis elementos são sem pre incapazes de proporcionar Exclusivamente aptos a modific acdgnamente uma os FUNDADORES 95 ordem preexistente não poderiam exercer nenhuma função social se a força ma terial não tivesse estabelecido prévia e adequadamente um regime qualquer Sys tème de politique positive t II pp 229300 Entretanto uma sociedade ajustada à natureza humana deve comportar uma contrapartida ou correção ao domínio da força que seria o poder espiritual do qual Comte desenvolve a teoria opondoa à sua concepção realista da ordem social O poder espiritual é uma exigência permanente das sociedades huma nas enquanto entidades de ordem temporal porque estas serão sempre domi nadas pela força Há um duplo poder espiritual o da inteligência e o do sentimento ou da afeição No princípio da sua carreira Auguste Comte apresentava o poder espi ritual como o da inteligência No fim de sua carreira o poder espiritual se toma essencialmente o da afeição ou do amor Contudo qualquer que seja sua forma exata a distinção entre poder temporal e espiritual é permanente através dos tempos embora só se realize plenamente na fase positiva isto é na fase final da história humana O poder espiritual tem diversas funções Rege a vida interior dos homens uneos para que possam viver e agir em comum consagra o poder temporal para convencer os indivíduos da necessidade da obediência a vida social não é pos sível sem que alguns indivíduos comandem e os outros obedeçam Para o filóso fo pouco importa saber quem comanda e quem obedece Os que comandam são e serão sempre os poderosos O poder espiritual não deve apenas reger unir consagrar mas também mo derar e limitar o poder temporal Para esse fim contudo é preciso que a dife renciação social já tenha sido levada muito longe Quando o poder espiritual consagra o poder temporal isto é quando os sacerdotes afirmam que os reis são ungidos por Deus ou que governam em nome de Deus o poder espiritual aumen ta a autoridade do poder temporal Essa consagração dos fortes pelo espírito pode ter sido necessária no curso da história Era necessário que houvesse uma ordem social e uma ordem social aceita mesmo se o espírito não tivesse en contrado as verdadeiras leis da ordem exterior e menos ainda as leis verdadei ras da ordem social Na fase final o poder espiritual concederá apenas uma con sagração parcial ao poder temporal Os cientistas explicarão a necessidade da ordem industrial e da ordem social dando em conseqüência autoridade moral ao poder dos empresários e dos banqueiros Mas sua função essencial será menos consagrar do que moderar e limitar isto é lembrar os poderosos de que se de vem limitar a executar uma função social e que sua situação de comando não implica superioridade moral ou espiritual Para que o poder espiritual preencha todas as suas funções e para que a verdadeira distinção éntre o temporal e o espiritual seja enfim reconhecida e 96 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO aplicada é necessária a história uma necessidade descoberta pela análise está tica da distinção entre os dois poderes Esse estudo da estática elucida o sentido da dinâmica do tríplice ponto de vista da inteligência da atividade e do sentimento A história da inteligência vai do fetichismo ao positivismo isto é da sín tese baseada na subjetividade e na projeção sobre o mundo exterior de uma rea lidade semelhante à da consciência até a descoberta e a constituição das leis que comandam os fenômenos sem pretensão a identificar suas causas A atividade passa da fase militar à fase industrial isto é em termos marxistas da luta dos homens entre si até a luta vitoriosa do homem com a natureza com a reserva de que Auguste Comte não nutre esperanças exageradas sobre os resultados que dará o domínio do homem sobre as forças da natureza Finalmente a história da afetividade é a do desenvolvimento progressivo das disposições altruístas sem que o homem deixe jamais de ser espontânea e primariamente egoísta Essa tríplice significação da história resulta da estática que permite com preender a história com relação à estrutura fundamental da sociedade A história leva simultaneamente a uma diferenciação crescente das fun ções sociais e a uma unificação crescente das sociedades Poder temporal e po der espiritual serão mais distintos do que nunca na fase final e essa distinção será condição para um consenso mais estreito e para uma unidade profunda mais sólida Os homens aceitarão a hierarquia temporal porque terão consciên cia da precariedade dessa hierarquia e reservarão seu apreço supremo para a ordem espiritual que talvez seja a inversão da hierarquia temporal33 Da filosofia à religião Depois de identificar seus traços característicos Auguste Comte conside ra a sociedade industrial como a forma universalizável da organização social j No Curso de filosofia positiva considerou a história como a de um povo único Por fim fundamentou essa unidade da espécie humana na constância da natu reza do homem que se exprime no plano social por meio de uma ordem fun damental que podemos encontrar através da diversidade das instituições his tóricas O sociólogo da unidade humana tem portanto um ponto de vista filosófi co que comanda a fundação da sociologia Auguste Comte é filósofo enquan to sociólogo e sociólogo enquanto filósofo A vinculação indissolúvel entre filosofia e sociologia resulta do princípio do seu pensamento isto é a afirma ção da unidade humana que implica uma determinada concepção do homem da sua natureza da sua vocação da relação entre indivíduo e coletividade os FUNDADORES 97 Convém também identificar as idéias filosóficas de Comte referenciando o seu pensamento às três intenções que encontramos em sua obra a intenção do re formador social a intenção do filósofo que sintetiza os métodos e os resultados das ciências e por fim a intenção do homem que assume a posição de pontífi ce de uma nova religião a religião da humanidade A maioria dos sociólogos de uma forma ou de outra se preocuparam em agir ou em exercer influência sobre a evolução social Todas as grandes doutrinas sociológicas do século XIX talvez mesmo as de hoje comportam uma passa gem do pensamento à ação ou da ciência à política e à moral Uma tal intenção coloca um certo número de questões De que forma o so ciólogo passa da teoria à prática Qual o gênero de conselhos para a ação que se pode tirar da sua sociologia Devese propor uma solução global para o con junto do problema social ou soluções parciais para uma multiplicidade de pro blemas particulares Enfim uma vez concebida essa solução como pensa o so ciólogo transformála em realidade Sob esse aspecto a comparação de Montesquieu com Auguste Comte é ilustrativa Montesquieu deseja compreender a diversidade das instituições so ciais e históricas mas é muito prudente quando se trata de passar da ciência cuja função é compreender para a política cuja função é ordenar ou aconse lhar Não há dúvida de que sua obra contém sugestões dirigidas aos legisladores embora se discutam ainda hoje as preferências de Montesquieu a respeito de de terminados aspectos bastante importantes da organização social Mesmo quan do Montesquieu dá conselhos prefere antes condenar determinadas maneiras de agir a recomendar o que é preciso fazer Suas lições implícitas são mais nega tivas do que positivas Explica que a escravidão enquanto tal lhe parece contrá ria à natureza humana que uma certa igualdade entre os homens está ligada à própria essência da humanidade Mas quando se trata de uma sociedade deter minada numa época dada o conselho supremo que se extrai da sua obra é observai o povo o meio em que vive levai em consideração sua evolução seu caráter e procurai não vos afastar do bom senso Um excelente programa mas que não é muito preciso Essa imprecisão aliás reflete a essência de um pen samento que não concebe uma solução global para o que se chamou no século XIX de crise da civilização isto é o problema social As conseqüências que podem ser deduzidas legitimamente da obra de Mon tesquieu são portanto conselhos metodológicos válidos para um engenheiro social consciente do fato de que há certas características comuns a todas as socie dades mas que uma política apropriada a alguns casos pode ser má em outros Em outras palavras Montesquieu só admite uma passagem prudente e li mitada da ciência para a ação soluções parciais não uma solução global Não recomenda o emprego da violência para transformar as sociedades existentes 98 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de acordo com a idéia que possa ter da ordem social justa Não tem receitas mila grosas para que o príncipe se comporte com sabedoria e não recomenda que con selheiros do príncipe leiam O espírito das leis Em suma Montesquieu é modes to Ora a modéstia não é decerto a qualidade dominante em Auguste Comte o reformador social Como a história da humanidade é uma só e a ordem funda mental é o tema em tomo do qual se fazem variações não hesita em imaginar o que devem ser a realização da vocação humana e a realização perfeita da ordem fundamental Acredita possuir a solução para o problema social Na sua representação da reforma necessária Comte desvaloriza o econô mico e o político em favor da ciência e da moral A organização científica do trabalho é necessária mas essa organização lhe parece afinal relativamente fácil de realizar Não é esta a essência da reforma que porá fim à crise das so ciedades modernas Comte vê a política com o duplo desprezo do homem de ciências e do fun dador de religião Convencido de que as sociedades têm os poderes públicos que merecem e que correspondem ao estado da sua organização social não acredi ta que com a mudança do regime e da constituição o homem possa pôr fim às perturbações sociais profundas Reformador social quer transformar a maneira de pensar dos homens di vulgar o pensamento positivista e estendêlo ao domínio da sociedade elimi nando os resíduos da mentalidade feudal e teológica Quer convencer seus con temporâneos de que as guerras são anacrônicas e as conquistas coloniais ab surdas Para ele porém esses fatos são tão evidentes que não dedica o essen cial da sua obra a esse tipo de demonstração Preocupase antes de mais nada em difundir uma maneira de pensar que levará por si mesma à justa organiza ção da sociedade e do Estado Sua tarefa é fazer com que todos se tomem posis tivistas mostrar a todos que a organização positivista é racional para a ordem temporal ensinarlhes o altruísmo e o amor na ordem espiritual ou moral O paf radoxo é que a ordem fundamental que Auguste Comte quer fazer entrar na rea lidade deve segundo sua filosofia realizarse por si mesma De fato se as lei da estática são as de uma ordem constante as da dinâmica dão a garantia de que a ordem fundamental se realizará Daí o determinismo histórico que desvalori za a intenção e os esforços do reformador Há aí uma dificuldade que encontramos também sob outra forma no pen sarnento de Marx mas que Comte conhece igualmente e resolve de modo mui to diferente Como Montesquieu e mais ainda do que Montesquieu Comte é avesso à violência Não acredita que a revolução poderá resolver a crise moderna e levar as sociedades à plena realização da sua vocação Admite que é necessá rio tempo para que as sociedades dilaceradas de hoje se transformem nas socie dades harmoniosas do futuro Simultaneamente aceita o papel da ação e justi fica os esforços dos homens de boa vontade pelo caráter transformável da fata os FUNDADORES 99 lidade A história está sujeita a leis e não ignoramos mais em que sentido evo luem espontaneamente as sociedades humanas Mas essa evolução pode tomar mais ou menos tempo custar mais ou menos esforço e sangue A liberdade reservada aos homens se manifesta na duração e nas modalidades da evolução em si mesma inevitável Segundo Comte quanto mais nos elevamos na escala dos seres indo dos mais simples até os mais complexos mais se amplia a mar gem de liberdade a margem de transformabilidade da fatalidade O que exis te de mais complexo é a sociedade ou talvez o ser humano individual objeto da moral sétima ciência última na classificação comtiana É na história que as leis deixam aos homens mais liberdade34 Portanto para Comte o sociólogo reformador social não é um engenheiro de reformas parciais no estilo de Montesquieu ou à maneira dos sociólogos de hoje que não são positivistas mas sim positivos Comte não é também um pro feta da violência como Marx É o anunciador sereno dos novos tempos É o ho mem que sabe qual é essencialmente a ordem humana e por conseguinte qual será a sociedade do futuro quando os homens se tiverem aproximado do obje tivo do seu empreendimento comum O sociólogo é uma espécie de profeta pacífico que instrui os espíritos congrega as almas e secundariamente atua como grande sacerdote da religião sociológica Desde sua juventude Comte teve dois objetivos principais reformar a so ciedade e estabelecer a síntese dos conhecimentos científicos A vinculação entre estas duas idéias é clara Com efeito a única reforma social válida seria a que transformasse o modo de pensar teológico e difundisse a atitude própria ao po sitivismo Ora essa reforma das crenças coletivas só pode ser uma conseqüên cia do desenvolvimento científico A melhor maneira de criar de acordo com a ciência nova é seguir através da história e por meio da ciência atualmente exis tente os progressos do espírito positivo Não se pode duvidar de que no pensamento de Comte houvesse uma solida riedade entre os três primeiros volumes do Curso de filosofia positiva em que se encontra realizada sua ambição de síntese das ciências e os três volumes seguin tes que fundam a sociologia e esboçam os temas da estática e da dinâmica A síntese das ciências permite fundamentar e enquadrar as idéias sociais Mas as idéias sociológicas não são rigorosamente dependentes da síntese das ciências embora essa síntese só seja possível em função de uma concepção da ciência que em si mesma está estreitamente associada às intenções do re formador social e do sociólogo As interpretações comtistas da ciência expli cam a passagem do positivismo da primeira época para o positivismo da última u também do pensamento do Curso para o pensamento do Système passagem jue muitos positivistas tais como É Littré e J S Mill que seguiram Comte desde a primeira parte da sua carreira consideraram uma negação das suas no Ções iniciais 100 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A síntese filosófica das ciências pode ser ordenada em tomo de quatro idéias 1 Tal como é concebida por Auguste Comte a ciência não é uma aventu ra uma busca incessante e indefinida é uma fonte de dogmas Auguste Comte quer eliminar os últimos traços de espírito teológico mas de certo modo ele nasceu com algumas das pretensões dos teólogos no sentido caricatural do ter mo Procura verdades definitivas que não possam ser questionadas Está con vencido de que o homem não foi feito para duvidar mas para crer Terseá equi vocado É possível que o homem seja feito para crer e não para duvidar Mas se dissermos que a ciência é uma mistura de dúvida e de fé será preciso acres centar que Comte tinha muito mais consciência da necessidade da fé do que da legitimidade da dúvida As leis estabelecidas pelos cientistas são para Comte comparáveis a dogmas devem ser aceitas de uma vez por todas e não perpe tuamente questionadas Se as ciências levam à sociologia isso se deve em gran de parte ao fato de que proporcionam um conjunto de proposições verificadas que constituem o equivalente dos dogmas do passado 2 Auguste Comte acredita que o conteúdo essencial da verdade científica é representado pelo que se chama de leis isto é relações necessárias entre fenômenos ou fatos dominantes ou constantes característicos de um certo tipo de ser A ciência de Auguste Comte não é uma busca de explicações últimas não pretende atingir as causas Ela se limita a constatar a ordem que reina no mun do menos por curiosidade desinteressada para com a verdade do que para ter condições de explorar os recursos que nos oferece a natureza e para pôr ordemj em nosso próprio espírito Portanto a ciência é duplamente pragmática É o princípio de que são tira i das as receitas técnicas como conseqüências inelutáveis tem valor educativo para nossa inteligência ou antes para nossa consciência Se não houvesse no mundo exterior uma ordem que descobrimos e que é a origem e o princípio da nossa inteligência nossa própria consciência seria caótica as impressões sub jetivas para usar a linguagem de Comte se misturariam confusamente e nadaproí duziriam de inteligível35 Essa concepção da ciência leva logicamente à sociologia e à moral como ao seu resultado e à realização da sua intenção imanente Se a ciência fosse an seio pela verdade uma busca indefinida de explicações intenção de perceber uma inteligibilidade que nos escapa talvez ela se assemelhasse mais ao que ela é na realidade levaria mais dificilmente à sociologia do que à ciência dogmá tica e pragmática concebida por Auguste Comte Não tenho dúvida de que o fundador do positivismo ficaria indignado com os sputniks e a pretensão de explorar o espaço para além do sistema solar Con sideraria um tal empreendimento insensato por que ir tão longe se não sabe OS FUNDADORES 101 mos o que fazer no lugar onde estamos Por que explorar regiões do espaço que como não agem diretamente sobre a espécie humana não lhe dizem respeito Toda ciência que não tivesse o mérito de nos revelar uma ordem ou de nos per mitir agir era a seus olhos inútil e portanto injustificável Dogmático Auguste Comte condenava o cálculo de probabilidades Já que as leis em geral são ver dadeiras por que essa preocupação excessiva com os detalhes por que essas precisões que não servem para nada Por que pôr em questão as leis sólidas que tomam o mundo inteligível 3 Quando Comte procura reunir os resultados e os métodos das ciências descobre ou pensa descobrir uma estrutura do real essencial para a compreen são do homem por ele mesmo e das sociedades pelos sociólogos uma estrutu ra hierárquica dos seres segundo a qual cada categoria está sujeita a determi nadas leis Há na natureza uma hierarquia que vai dos fenômenos mais simples até os mais complexos da natureza inorgânica à orgânica e por fim aos seres vivos e ao homem Estrutura que no fundo é quase imutável E a hierarquia que é um dado da natureza A idéiachave dessa interpretação do mundo é a de que o inferior condicio na o superior mas não o determina Essa visão hierárquica permite situar os fe nômenos sociais no seu lugar e ao mesmo tempo determinar a própria hierar quia social o superior é condicionado pelo inferior como os fenômenos da vida são condicionados mas não determinados pelos fenômenos físicos e químicos 4 As ciências que constituem a expressão e a realização do espírito posi tivo e proporcionam os dogmas da sociedade moderna são espreitadas por um perigo permanente ligado à sua natureza o da dispersão na análise Auguste Comte não cessa de criticar seus colegas cientistas por uma dupla especializa ção que lhe parece excessiva Os cientistas estudam um pequeno setor da rea lidade uma pequena parte de uma ciência e se desinteressam por tudo o mais Por outro lado os cientistas não estão tão convencidos quanto Comte de que re presentam os sacerdotes da sociedade modema e devem exercer uma espécie de magistratura espiritual Deploravelmente tendem a se contentar com o tra balho de cientista sem ambição de reformar a sociedade Modéstia culpável di zia Auguste Comte aberração fatal Ciências puramente analíticas terminariam por ser mais prejudiciais que úteis De que nos serve uma acumulação indefi nida de conhecimentos E necessário que ocorra uma síntese das ciências que tenha como centro ou princípio a própria sociologia Todas as ciências convergem para a sociologia que representa o nível mais alto de complexidade de nobreza e de fragilidade Ao estabelecer essa síntese das ciências para chegar à sociologia Auguste Comte apenas segue a tendência natural das ciências que se dirigem para a ciên cia da sociedade como para o seu fim no duplo sentido de termo e de objetivo Não somente a síntese das ciências se realiza objetivamente com relação à so 102 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ciologia ciência da espécie humana mas a sociologia é o único princípio sub jetivo de síntese possível a reunião dos conhecimentos e métodos só é possível se se toma como ponto de referência a humanidade Se estivéssemos animados por curiosidade pura e simples poderíamos limitarnos a observar indefinida mente a diversidade dos fenômenos e as suas relações Para que haja uma sín tese é necessário pensar objetivamente a hierarquia dos seres que se elevam até a espécie humana e subjetivamente os conhecimentos adquiridos pela humani dade cuja situação eles explicam e que são úteis ao homem para explorar os recursos naturais e para viver de acordo com a ordem Encontramos também no tomo IV do Système de politique positive uma es pécie de filosofia primeira é assim que se exprime Auguste Comte utilizando uma fórmula de Bacon Compreende quinze leis chamadas leis da filosofia primeira Umas são objetivas outras subjetivas permitem compreender como a sociologia sintetiza os resultados das ciências que objetiva e subjetivamente só se podem unificar tomando como referência a humanidade36 Para Comte a sociologia é portanto a ciência do entendimento O homem só pode entender o espírito humano se observar sua atividade e sua obra na so ciedade e através da história O espírito humano não pode ser conhecido por in trospecção à maneira dos psicólogos ou pelo método da análise reflexiva à maneira de Kant Essa verdadeira ciência do entendimento é o que chamaríamos hoje de socio logia do conhecimento É observação análise e compreensão das capacidades do espírito humano tais como se manifestam a nós pelas suas obras na duração his tórica A sociologia é também a ciência do entendimento porque o modo de pen sar e a atividade do espírito são em todos os momentos solidários com o con texto social Não há um eu transcendental que se pudesse apreender pela aná lise reflexiva O espírito é social e histórico O espírito de cada época e de cada pensador está vinculado a um contexto social É preciso compreender esse con texto para poder compreender como funciona o espírito humano Conforme es creve Comte no início da dinâmica social do Système de politique positive O século atual será caracterizado principalmente pela preponderância irre vogável da história na filosofia na política e até mesmo na poesia Essa suprema cia universal do ponto de vista histórico constitui o princípio essencial do positi vismo e o seu resultado geral Como a verdadeira positividade consiste sobretu do na substituição do relativo pelo absoluto sua primazia se toma completa quando a mobilidade regulada já reconhecida com relação ao objeto está conveniente mente ampliada ao próprio sujeito cujas variações dominam assim nossos pen samentos quaisquer que sejam Système de politique positive t III p 1 os FUNDADORES 103 A religião comtista tem hoje pouca ressonância Fazer rir de Auguste Comte é fácil mais importante porém é compreender o que há de profundo nas suas ingenuidades Comte é o fundador de uma religião e assim se considerava Acreditava que a religião da nossa época pode e deve ter inspiração positivista Não pode ser mais a religião do passado que implica um modo de pensar ultrapassado O ho mem de espírito científico não pode crer na revelação no catecismo da Igreja ou na divindade de acordo com a concepção tradicional Por outro lado a religião cor responde a uma necessidade permanente do homem O homem tem necessidade de religião porque precisa amar algo que seja maior do que ele As sociedades têm necessidade da religião porque precisam de um poder espiritual que consagre e modere o poder temporal e lembre aos homens que a hierarquia das capacidades não é nada ao lado da hierarquia dos méritos Só uma religião pode pôr no seu ver dadeiro lugar a hierarquia técnica das capacidades e lhe sobrepor uma hierarquia eventualmente contrária a hierarquia dos méritos A religião que puder atender a essas necessidades constantes da humani dade que busque o amor e a unidade será a religião da humanidade Como a hierarquia dos méritos morais que é preciso criar pode contrariar a hierarquia temporal a humanidade que Auguste Comte nos convida a amar não é a huma nidade que conhecemos grosseira e injusta O Grande Ser não é a totalidade dos homens mas entre os homens aqueles que sobrevivem nos seus descendentes porque viveram de modo a deixar uma obra ou um exemplo Se é verdade que a humanidade se compõe mais de mortos do que de vi vos isso não ocorre porque estatisticamente haja menos vivos do que o nú mero total dos mortos A razão é que só os mortos constituem a humanidade só eles sobrevivem na humanidade que devemos amar e são dignos do que Comte chama de imortalidade subjetiva37 Em outros termos o Grande Ser que Auguste Comte nos convida a amar é o que os homens tiveram ou fizeram de melhor É finalmente aquilo que no ho mem ultrapassa os homens ou pelo menos o que emalguns homens a huma nidade essencial realizou Essa humanidade essencial que amamos no Grande Ser será muito diferen te da humanidade das religiões tradicionais Sem dúvida há uma diferença fun damental entre amar a humanidade como Auguste Comte recomenda e amar o deus transcendente das religiões tradicionais Contudo o deus do Cristianismo se fez homem Entre a humanidade essencial e a divindade na religião da tra dição ocidental há uma relação que se presta a várias interpretações Pessoalmente acredito que a religião de Comte que como se sabe não teve grande êxito temporal é menos absurda do que ordinariamente se acredita Ela rne parece superior a muitas outras concepções religiosas ou semireligiosas que outros sociólogos difundiram deliberadamente ou não A amar alguma coi 104 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO sa na humanidade além de pessoas determinadas mais vale amar a humanida de essencial representada e simbolizada pelos grandes homens do que amar apai xonadamente uma ordem econômica e social a ponto de querer a morte de to dos os que não acreditam nessa doutrina da salvação Se é preciso retirar uma religião da sociologia o que pessoalmente não dese jo fazer a única que me parece no final das contas razoável é a de Auguste Comte Ela não ensina a amar uma sociedade entre outras o que seria fanatismo tribal ou a amar a ordem social do futuro que ninguém conhece e em nome da qual se exterminam os céticos O que Auguste Comte nos recomenda é o amor à excelência de que alguns homens foram capazes e na direção da qual todos os homens devem se elevar e não o amor à sociedade francesa de hoje nem à socie dade russa de amanhã ou à norteamericana de depois de amanhã Pode ser que a humanidade essencial não seja um objeto de amor que to que a maioria dos homens contudo de todas as religiões sociológicas a socio cracia de Comte me parece também filosoficamente melhor Aliás talvez por isso tenha sido a mais fraca politicamente Desde que não amem realidades trans cendentes os homens têm muita dificuldade em amar o que os une e em não amar o que os divide Resta dizer porém que Auguste Comte provavelmente não teria concebido a religião da humanidade se não tivesse vivido sua aventura com Clotilde de Vaux Podese portanto considerar a religião que criou como um acidente biográ fico Se minha interpretação de Auguste Comte é correta este acidente biográfi co pareceme ter um sentido profundo Afirmei que Comte foi o sociólogo da unidade humana ora uma das realizações possíveis se não necessárias da socio logia da unidade humana é a religião da unidade humana A religião do Grande Ser é o que há de melhor no homem transfigurado em princípio de unidade de todos os homens Comte quer que os homens embora destinados a viver indefinidamente em sociedades temporais fechadas estejam unidos por convicções comuns e um obje to único de amor Como esse objeto não pode mais existir na transcendência have ria outra saída além da de conceber os homens reunidos no culto da sua própria unidade pela vontade de realizar e de amar o que através dos séculos e dos gru pos ultrapassa as particularidades é válido para todos e em conseqüência justi fica a unidade não como um fato mas como um objetivo ou um ideal Indicações biográficas 1791 Em 19 de janeiro nasce Auguste Comte em Montpellier de família católica e mo narquista Seu pai é funcionário de nível médio 18071814 Estudos secundários no liceu de Montpellier Comte abandona muito cedo a fé católica atraído por idéias liberais e revolucionárias 18141816 Estudo na École Polytechnique onde foi admitido em primeiro lugar na lista do Sul 1816 Em abril o governo da Restauração decide fechar provisoriamente a École Poly technique suspeita de jacobinismo Comte volta a Montpellier por alguns meses e ali segue alguns cursos de medicina e fisiologia De volta a Paris ganha a vida dando lições de matemática 1817 Em agosto Comte se torna secretário de SaintSimon de quem será colaborador e amigo até 1824 Durante todo este período estará associado às diversas publi cações do filósofo do industrialismo Uindustrie Le politique Uorganisateur Du système industriei e Catéchisme des industrieis 1819 Séparation générale entre les opinions et les désirs Colabora com o Censeur de Charles Comte e Charles Dunoyer 1820 Sommaire appréciation sur l ensemble du passé moderne publicado em abril em Uorganisateur 1822 Prospectus des travaux scientifiques nécessaires pour réorganiser la société publicado no Système industriei 1824 Système de politique positive 11 1 parte Em abril Comte vende este trabalho a SaintSimon que o apresenta no Catéchisme des industrieis sem indicação de autor Comte protesta seguese o rompimento Seu patrão considerao como a terceira parte de um todo que se intitula Catéchisme des industrieis e que expõe o industrialismo de SaintSimon O jovem considerao como a primeira parte de um todo que se denomina Système de politique positive e que expõe o positivis mo de Auguste Comte H Gouhier A partir daqui Comte passará a falar da desastrosa influência que uma funesta relação com um malabarista depra vado exerceu sobre ele 106 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 1825 Considêrations philosophiques sur les sciences et les savants Considérations sur le pouvoir spirituel Estas duas obras ainda foram publicadas em Le Pro ducteur de SaintSimon Casamento de Comte com Caroline Massin uma antiga prostituta Este casa mento realizado por um cálculo generoso foi dirá Comte o único erro real mente grave de toda a minha vida Caroline Massin deixará várias vezes o do micílio comum 1826 Em abril princípio das aulas públicas do Curso de filosofia positiva Entre os seus alunos estão Humbolt H Camot o fisiólogo Blainville e o matemático Poinsot 18261827 Crise mental perturbado por uma primeira fuga da mulher e estafa intelec tual teve de ser internado Sai depois de oito meses não curado e tenta pouco depois o suicídio Logo a crise nervosa se aplaca Consciente das causas dessa crise impõese um regime físico e mental muito severo para prevenir qualquer nova crise 1829 Reinicia o Curso de filosofia positiva em 4 de janeiro 1830 Publicação do tomo I do Curso de filosofia positiva Os outros tomos serão pu blicados sucessivamente em 1835 1838 1839 1841 e 1842 1831 Início do curso gratuito de astronomia popular que continua a ser dado até 1848 Comte se candidata sem êxito à cadeira de análise da École Polytechnique 1832 Nomeado assistente de análise e de mecânica na École Polytechnique 1833 Comte solicita a Guizot a criação de uma cadeira de história das ciências no Collège de France que ele próprio ocuparia Recusa A cadeira de geometria da École Poly technique lhe é igualmente recusada em razão de suas opiniões republicanas 1836 Nomeado examinador da admissão à École Polytechnique 1842 Separação definitiva da esposa 1843 Traité élémentaire de géométrie analytique 1844 Discours sur Tesprit positif preâmbulo ao Traité philosophique d astronomie populaire Comte perde seu cargo de examinador na École Polytechnique passa a viver do livre subsídio positivista enviado inicialmente em 1845 por J S Mill e alguns ingleses ricos e depois a partir de 1848 por É Littré e uma centena de discí pulos e admiradores franceses Em outubro Comte encontra Clotilde de Vaux irmã de um exaluno que com cerca de trinta anos vive separada do marido e sabe que está com a doença 1845 O ano sem igual Comte declara seu amor a Clotilde de Vaux que só lhe ofe rece amizade declarandose impotente para tudo o que ultrapasse os limites da afeição 1846 5 de abril Clotilde de Vaux morre sob os olhos de Auguste Comte que a partir desse momento passa a dedicarlhe um verdadeiro culto 1847 Comte proclama a religião da Humanidade 1848 Fundação da Sociedade Positivista Discours sur l ensemble du positivisme 1851 Comte perde seu cargo de assistente na École Polytechnique Publicação do pri meiro tomo do Système de politique positive ou Traité de sociologie instituant la os FUNDADORES 107 religion de l humanité Os outros tomos serão publicados em 18521853 e 1854 Em 22 de abril Comte escreve a M de Thoulouze Estou convencido de que antes de 1860 pregarei o positivismo em NotreDame como a única religião real e completa Em dezembro Littré e vários discípulos chocados com a aprovação de Comte ao golpe de Estado de Luís Napoleão e apreensivos com a orientação da nova filo sofia se afastam da Sociedade Positivista 1852 Catéchisme positiviste ou Sommaire exposition de la religion universelle 1853 Appel aux conservateurs 1856 Synthèse subjective ou Système universel des conceptions propres à Uétat nor mal de 1humanité Comte propõe ao SuperiorGeral dos Jesuítas uma aliança contra a irrupção anárquica do delírio ocidental 1857 Morte em Paris no dia 5 de setembro na presença de seus discípulos Notas 1 Auguste Comte concebeu a lei dos três estados em fevereiro ou março de 1822 expondoa pela primeira vez no Prospectus des travaux scientifiques nécessaires pour réorganiser la société publicado em abril de 1822 num volume de SaintSimon intitu lado Suite des travaux ayant pour objet de fonder le système industriei Essa obra que Comte chamará no prefácio do Système de politique positive o Opuscule fondamental e que é citada às vezes com o título de Premier système de politique positive nome da edição de 1824 será reeditada no tomo IV do Système de politique positive sob o títu lo Plan des travaux scientifiques nécessaires pour réorganiser la société A lei dos três estados é objeto da primeira lição do Cours de philosophie positive 5 ed 11 pp 28 a classificação das ciências é objeto da segunda Ibid pp 3263 Sobre a descoberta da lei dos três estados e da classificação das ciências ver Henri Gouhier La jeunesse dAuguste Comte et laformation du positivisme tomo III Auguste Comte et SaintSimon Paris Vrin 1941 pp 289291 2 Ao estudar o desenvolvimento total da inteligência humana nas suas diversas esferas de atividade desde sua primeira e mais simples manifestação até os nossos dias creio ter descoberto uma grande lei fundamental à qual esse desenvolvimento está sujeito por necessidade invariável e que me parece poder ser solidamente demonstra da seja por meio das provas racionais fornecidas pelo conhecimento da nossa organi zação seja pelas verificações históricas resultantes de um exame atento do passado Essa lei consiste no seguinte cada uma das nossas principais concepções cada ramo dos nossos conhecimentos passa sucessivamente por três estados teóricos distintos o estado teológico ou fictício o estado metafísico ou abstrato e o estado científico ou positivo Em outras palavras o espírito humano por sua própria natureza emprega su cessivamente em cada uma de suas buscas três métodos de filosofar cujo caráter é essencialmente diferente e até mesmo radicalmente oposto a princípio o método teoló gico em seguida o metafísico e por fim o positivo Daí a existência de três modalida des de filosofia ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto dos fenômenos que se excluem mutuamente a primeira é o ponto de partida necessário da inteligência os FUNDADORES 109 humana a terceira seu estado fixo e definitivo a segunda está destinada unicamente a servir de transição No estado positivo o espírito humano reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas desiste de procurar a origem e o destino do universo e de conhecer as causas internas dos fenômenos para se dedicar a descobrir pelo uso bem combinado do raciocínio e da observação suas leis efetivas isto é suas relações invariáveis de su cessão e de semelhança A explicação de fatos reduzida então a seus termos reais passa a ser apenas a ligação que se estabelece entre os diversos fenômenos particulares e al guns fatos gerais cujo número tende a ser cada vez mais reduzido pelo progresso das ciências Cours de philosophie positive 11 pp 23 3 Comte escreve As idéias governam e revolucionam o mundo em outras pala vras todo o mecanismo social repousa afinal sobre opiniões A grande crise política e moral das sociedades atuais está ligada em última análise à anarquia intelectual Com efeito nosso mal mais grave consiste nessa profunda divergência que existe hoje entre todos os espíritos com relação a todas as máximas fundamentais cuja fixidez é a condição primeira de uma ordem social autêntica Enquanto as inteligências indivi duais não tiverem aderido por assentimento unânime a um certo número de idéias ge rais capazes de formar uma doutrina social comum é impossível dissimular o fato de que obrigatoriamente as nações permanecerão em estado essencialmente revolucioná rio a despeito de todos os paliativos políticos que se possam adotar e comportando ape nas instituições provisórias Cours de philosophie positive 11 p 25 4 Auguste Comte não esconde a sua importância Na falta de um impulso geral para tudo coordenar sem nada perturbar a vida industrial suscita apenas classes que se ligam de modo imperfeito e isso constitui o principal problema da civilização moder na Uma verdadeira solução só será possível se for baseada na coesão cívica Systè me de politique positive t III p 364 Desde a abolição da servidão pessoal as mas sas proletárias não se incorporam verdadeiramente ao sistema social deixandose de lado a oratória anárquica O poder do capital a princípio meio natural de emancipação e depois de independência tornouse agora exorbitante nas transações do diaadia apesar da justa preponderância que ele deva necessariamente exercer em razão de uma generalidade e responsabilidade superiores segundo a sã teoria hierárquica Cours de philosophie positive t VI p 512 A principal desordem é a que afeta hoje a existên cia material em que os dois elementos necessários da força dirigente isto é o número e a riqueza vivem em estado de hostilidade mútua crescente pelo qual são igualmente culpados Système de politique positive t II p 391 5 James Bumham The Managerial Révolution Nova York 1941 livro traduzido ern francês com o título Lère des organisateurs em 1947 com prefácio de Léon Blum 6 O exame da natureza e do objeto da economia política consta da 47 lição do Cours de philosophie positive Comte estudou a economia política da sua época isto é a economia clássica e liberal quando era secretário de SaintSimon e em suas críticas res salva o caso eminentemente excepcional do ilustre e judicioso filósofo Adam Smith Suas críticas são endereçadas sobretudo aos sucessores de Smith Se os nossos economistas são de fato os sucessores científicos de Adam Smith que nos mostrem então em que eles efetivamente aperfeiçoaram ou completaram a doutrina desse mes 110 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tre imortal que descobertas verdadeiramente novas acrescentaram às brilhantes obser vações iniciais que foram ao contrário desfiguradas em sua essência por uma exibição inútil e pueril de formas científicas Observando com imparcialidade as estéreis contestações que os dividem sobre as noções mais elementares de valor de utilidade de produção etc parece que estamos assistindo aos mais estranhos debates dos escolásticos da Idade Média sobre as atri buições fundamentais de suas puras entidades metafísicas com as quais as concepções econômicas se assemelham cada vez mais à medida que vão se tomando mais dogmá ticas e mais sutis ibid p 141 No entanto o que Comte critica fundamentalmente nos economistas é querer criar uma ciência autônoma isolada do conjunto da filosofia social Porque pela natureza do sujeito nos estudos sociais assim como em todos os estudos relativos aos corpos vivos os diversos aspectos gerais são de modo neces sário mutuamente solidários e racionalmente inseparáveis a ponto de não poderem ser convincentemente esclarecidos uns pelos outros quando se passa do mundo das enti dades para as especulações reais tomase claro que a análise econômica ou industrial da sociedade não poderia ser positivamente realizada não considerando sua análise intelectual moral e política no passado ou mesmo no presente de tal modo que reci procamente essa operação irracional fomece um sintoma irrecusável de natureza es sencialmente metafísica das doutrinas que a tomam por base Ibid p 142 7 Maurice Aliais professor de economia na École des Mines autor entre outros livros de Economie et intérêt Paris Imprimerie Nationale 1947 2 vols Traité dêco nomie pure Paris Imprimerie Nationale 1952 Economie pure et rendement social Paris Sirey 1945 LEurope unie route de laprospérité Paris CalmannLévy 1960 Le Tiers Monde au carrefour Bruxelas Les cahiers africains 2 vols 1963 8 Alfred Sauvy professor do Collège de France autor entre outros livros de Théorie générale de la population Paris PUF 11 1963 t II 1959 La nature sociale Paris Armand Colin 1957 De Malthus à Mao TséToung Paris Denoêl 1958 La mon tée des jeunes Paris CalmannLévy 1960 Le Plan Sauvy Paris CalmannLévy 1960 Mythologies de notre temps Paris Payot 1965 Histoire économique de la France entre les deux guerres 11 De Tarmistice à la dévaluation de la livre Paris Fayard 1965 9 Assim escreve Comte Depois de ter explicado as leis naturais que devem de terminar no sistema da sociabilidade moderna a indispensável concentração das rique zas entre os líderes industriais a filosofia positiva mostrará que para os interesses populares pouco importa em que mãos habitualmente se encontram os capitais contan to que sua utilização normal seja necessariamente útil à massa social Ora esta condi ção essencial pela sua natureza depende muito mais dos meios morais do que de medi das políticas Por mais laboriosos entraves que as opiniões estreitas e as paixões ranco rosas possam instituir legalmente contra a acumulação espontânea dos capitais mesmo correndo o risco de paralisar diretamente toda a verdadeira atividade social é claro que esses procedimentos tirânicos teriam uma eficácia real muito menor do que a reprova ção universal aplicada pela moral positiva a qualquer uso demasiado egoísta das rique zas reprovação tanto mais irresistível quanto aqueles mesmos que deveriam sofrêla não poderiam recusar o princípio inculcado em todos pela educação fundamental comum co mo foi demonstrado pelo catolicismo na época da sua predominância Contudo mos os FUNDADORES 111 trando ao povo a natureza essencialmente moral de suas reclamações mais graves a mesma filosofia fará que também as classes superiores sintam de modo necessário o peso dessa apreciação impondolhes com energia em nome de princípios que não são mais contestáveis abertamente as grandes obrigações morais inerentes à sua posição de modo que a propósito da propriedade por exemplo os ricos se considerarão moral mente como depositários necessários dos capitais públicos cujo emprego efetivo embora não possa acarretar nenhuma responsabilidade política salvo em alguns casos excepcionalmente aberrantes será contudo sujeito a escrupulosa discussão moral aces sível necessariamente a todos sob condições apropriadas e cuja autoridade espiritual constituirá ulteriormente o órgão normal Segundo um estudo aprofundado da evolução moderna a filosofia positiva mostrará que desde a abolição da servidão pessoal as mas sas proletárias ainda não estão não levando em conta a oratória anárquica verdadei ramente incorporadas ao sistema social que o poder do capital inicialmente meio natu ral de emancipação e a seguir de independência tomouse agora exorbitante nas tran sações do diaadia por mais justa que seja a preponderância do papel que esse poder deva necessariamente exercer em função de uma generalidade e de uma responsabili dade superiores segundo a sã teoria hierárquica Em síntese essa filosofia mostrará que as relações industriais em vez de continuarem à mercê de um empirismo perigoso e de um antagonismo opressivo devem ser sistematizadas segundo as leis morais da har monia universal Cours dephüosophie positive t VI pp 357358 10 Maurras escreveu um estudo sobre Auguste Comte que foi publicado com oütros ensaios Le romantisme féminin Mademoiselle Mank in Uavenir de l intelligence Paris Nouvelle Librairie Nationale 1918 Maurras escreve sobre Comte Se é certo que exis tem mestres se é falso que o céu e a terra e os meios de interpretálos só tenham vindo ao mundo no dia em que nascemos não sei de nenhum outro nome de homem que deva ser pronunciado com um sentimento de reconhecimento mais vivo Sua imagem não pòde ser evocada sem emoção Alguns dentre nós eram uma anarquia viva Ele lhes deu a ordem ou o seu equivalente a esperança da ordem Ele lhes mostrou a bela face da Unidade sor rindo em um céu que não parece tão distante 11 Há constantes referências a Comte na obra de Alain Vide notadamente Pro Ps sur le christianisme Paris Rieder 1924 Idées Paris Hartmann 1932 reeditado na Coleção 1018 Paris Union Générale dÉditions 1964 este último volume contém um estudo dedicado a Comte A política de Alain está exposta em Éléments dune doctrine radicale Paris Gallimard 1925 e Le citoyen contre les pouvoirs Paris S Kra 1926 12 Abordei o tema da guerra no pensamento de Auguste Comte em La société in dustrielle et la guerre Paris Plon 1959 principalmente o primeiro ensaio texto de uma Auguste Comte Memorial Lecture pronunciada na London School of Economics and Political Science 13 Há muitos anos participei da banca examinadora de uma tese sobre Alain feita Por um homem que se tinha convertido ao positivismo através dos ensinamentos de Alain e que quase rejeitou as idéias de Alain e de Comte quando eclodiu a guerra de 1939 Falso profeta aquele Me anunciava a paz num século de guerra 112 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 14 Auguste Comte escreveu numa época de transição da história colonial no momento em que os impérios constituídos do século XVI ao XVIII acabavam de se dissolver e no limiar da criação dos impérios do século XIX A emancipação das colô nias americanas da Espanha havia terminado a GrãBretanha perdera suas principais colônias da América do Norte a França tinha perdido a índia o Canadá e São Domin gos A GrãBretanha no entanto conservara seu império da Ásia e Canadá Entre 1829 e 1842 período em que Comte redige o Curso de filosofia positiva a França começou a construir seu segundo império colonial conquistando a Argélia e pontos de apoio nas costas da África e da Oceânia A GrãBretanha fez o mesmo apoderandose da Nova Ze lândia em 1840 Comte descreve assim o sistema colonial dos séculos XVII e XVIII Sem retomar evidentemente às dissertações declamatórias do século passado sobre as vantagens ou o perigo final dessa ampla operação para o conjunto da humani dade o que é um problema tão inútil quanto insolúvel seria interessante verificar se daí resultou definitivamente uma aceleração ou um atraso para a evolução total nega tiva e positiva ao mesmo tempo das sociedades modernas Ora sob esse aspecto pare ce primeiramente que a nova direção principal que se abria assim ao espírito guerrei ro na terra e no mar bem como o grande recrudescimento impresso igualmente ao es pírito religioso como mais bem adaptado para civilizar populações atrasadas tenderam diretamente a prolongar a duração geral do regime militar e teológico e na seqüência a afastar a reorganização final Mas em primeiro lugar a ampliação gradual a que ten dia desde então o sistema das relações humanas deve ter tomado mais compreensível a verdadeira natureza filosófica de uma tal regeneração mostrandoa como sendo des tinada no final ao conjunto da humanidade isso devia mostrar com toda a evidência a insuficiência radical de uma política que diante da impossibilidade de assimilar as raças humanas era levada como em tantos casos a destruílas sistematicamente Em segundo lugar por uma influência mais direta e mais próxima a nova estimulação ativa que o grande evento europeu teve que imprimir por toda a parte na indústria certamen te aumentou muito sua importância social e mesmo política desse modo tudo compen sado a evolução moderna ao que me parece teve necessariamente uma aceleração real da qual no entanto formamos uma idéia muito exagerada Cours de philosophie po sitive t VI p 68 Comte analisa as conquistas coloniais do século XIX nos seguintes termos Te mos notado é certo a introdução espontânea de um perigoso sofisma que hoje se procura consolidar e que tenderá a conservar indefinidamente a atividade militar atri buindo às sucessivas invasões o enganoso objetivo de estabelecer diretamente no inte resse final da civilização universal a preponderância material dos povos mais evoluí dos sobre os menos evoluídos No lamentável estado atual da filosofia política que per mite a ascendência efêmera de toda e qualquer aberração uma tendência como essa é por certo muito grave como fonte de perturbação universal na sua seqüência lógica che garia sem dúvida depois de ter motivado a opressão mútua das nações a jogar as di versas cidades umas sobre as outras seguindo os seus diferentes graus de desenvolvi mento sociaL Sem chegar até essa rigorosa extrapolação que certamente permanecerá sempre ideal é de fato com o apoio de um pretexto assim que se pretendeu funda mentar a odiosa justificativa da escravidão colonial de acordo com a incontestável su os FUNDADORES 113 perioridade da raça branca Mas apesar de algumas desordens graves que um sofisma como esse possa provocar momentaneamente o instinto característico da sociabilidade moderna deve por certo dissipar toda preocupação irracional que tenderia a ver ali mesmo que unicamente para um futuro próximo uma nova fonte de guerras gerais inteiramente incompatíveis com as mais perseverantes disposições de todas as popula ções civilizadas Antes da formação e da propagação da sã filosofia política a retidão popular terá sem dúvida apreciado suficientemente mesmo que seja por meio de um empirismo confuso esta grosseira imitação retrógrada da grande política romana que vi mos em sentido inverso destinada essencialmente sob condições sociais radicalmen te opostas ao ambiente moderno reprimir por toda a parte exceto em um único povo a expansão iminente da vida militar que esta inútil paródia estimularia ao contrário nas nações de há muito entregues a uma atividade eminentemente pacífica Cours de philosophie positive t VI pp 237238 15 Encontramos em Comte inúmeras fórmulas para afirmar o anacronismo das guer ras enfatizar a contradição entre a sociedade moderna e o fenômeno militar e bélico Todos os espíritos verdadeiramente filosóficos devem reconhecer com facilidade com uma perfeita satisfação moral e intelectual ao mesmo tempo que chegou enfim a época na qual a guerra séria e durável deve desaparecer totalmente da elite da huma nidade Cours de philosophie positive t VI p 239 Ou ainda Todos os diferentes meios gerais de exploração racional aplicáveis às pesquisas políticas já ajudaram a constatar espontaneamente e de modo decisivo a inevitável tendência primitiva da humanidade a uma vida predominantemente militar e a sua des tinação última não menos irresistível a uma existência industrial Assim nenhuma in teligência um pouco avançada se recusa mais a reconhecer de modo mais ou menos ex plícito o decrescimento contínuo do espírito militar e a ascendência gradual do espíri to industrial como uma dupla conseqüência necessária de nossa evolução progressiva que foi em nossos dias avaliada com muito critério sob esse aspecto pela maioria da queles que se ocupam adequadamente de filosofia política Numa época em que a re pugnância característica das sociedades modernas pela vida militar se manifesta conti nuamente das mais variadas formas e com uma energia sempre crescente até no seio das forças armadas quando por exemplo a insuficiência de vocações militares se tor na por toda a parte inegável em razão da própria obrigação dojecrutamento compulsó rio cada dia mais indispensável e ao qual quase nunca se segue a perseverança volun tária na vida militar a experiência cotidiana dispensaria sem dúvida qualquer demons tração direta para um assunto que também de modo gradual caiu no domínio público Apesar do enorme desenvolvimento excepcional determinado momentaneamente no micio deste século pelo envolvimento inevitável que deve ter sucedido a circunstâncias anormais irresistíveis nosso espírito industrial e pacífico não demorou a retomar de uma maneira mais rápida o curso regular do seu desenvolvimento principal de modo a garantir realmente sob esse aspecto o descanso fundamental do mundo civilizado embora freqüentemente a harmonia européia deva parecer comprometida em conse qüência da falta provisória de toda organização sistemática das relações internacionais 0 que sem poder realmente produzir a guerra basta no entanto para inspirar com fre qüência perigosas inquietações Enquanto a atividade industrial apresenta esta ca 114 ÀS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO racterística admirável de poder ser simultaneamente estimulada em todos os indivíduos e em todos os povos sem que o desenvolvimento de uns seja inconciliável com o dos outros a plenitude da vida militar em uma parte notável da humanidade pelo contrá rio supõe e determina no final em todo o resto uma inevitável repressão que consti tui o principal ofício de um tal regime considerando o conjunto do mundo civilizado Igualmente enquanto a época industrial comporta apenas esse único termo geral ainda indeterminado conferido à existência progressiva de nossa espécie pelo sistema das leis naturais a época militar teve de ser essencialmente limitada à época de uma rea lização gradual suficiente das condições prévias que ela estava destinada a realizar Cours de philosophie positive t IV pp 375379 16 Nossas riquezas materiais podem mudar de mãos livremente ou pela força No primeiro caso a transmissão é gratuita ou interessada Da mesma forma a transfe rência involuntária pode ser violenta ou legal Estes são em última análise os quatro mo dos gerais com que se transmitem naturalmente os produtos materiais De acordo com a ordem decrescente da sua dignidade e eficácia devem ser classificados nesta ordem normal o dom a troca a herança e a conquista Somente os dois modos intermediários se tomaram muito comuns entre os povos modernos como sendo os que melhor se adaptam à existência industrial que devia prevalecer Contudo os dois extremos con correram de forma mais importante para a formação inicial dos grandes capitais Embora o último deva cair por fim em desuso completo o mesmo não acontecerá ja mais com o primeiro cuja importância e pureza nosso egoísmo industrial faz hoje des prezar Sistematizada pelo positivismo a tendência à doação deve proporcionar ao re gime final um dos melhores auxiliares temporais da ação contínua do verdadeiro poder espiritual para tomar a riqueza útil e mais respeitada O mais antigo e mais nobre dá todos os modos próprios à transmissão material secundará a organização industrial mai do que a vã metafísica dos nossos toscos economistas pode indicar Système de poli tique positive t II p 155 Esta passagem se aproxima de algumas análises modernas Vide notadamente de François Perroux Le don sa signification économique dans 6 capitalisme contemporain Diogène abril de 1954 reproduzido em Léconomie duXM siècle 1 ed Paris RUF 1961 pp 322344 li 11 Michael Young The Rise of Meritocracy Londres Thames and Hudson 1958 Penguin Books 1961 18 Condorcet Esquisse d un tableau historique des progrès de l esprit humain Està obra escrita em 1793 foi editada pela primeira vez no ano III Para uma edição moderna vide a da Bibliothèque de Philosophie Paris Boivin 1933 Antes de Condorcet Turgcrf havia escrito um Tableau philosophique des progrès successifs de l esprit humain 19 De onde Auguste Comte concluiu que como não há liberdade de consciência em astronomia não deveria havêla em política 20 A filosofia teológica propriamente dita nunca pôde ser rigorosamente univer sal nem mesmo na nossa infância individual ou social isto é para todas e quaisquer ordens de fenômenos os fatos mais simples e mais comuns sempre foram vistos comoS sendo essencialmente sujeitos a leis naturais em lugar de serem atribuídos à vontadej arbitrária dos agentes sobrenaturais Por exemplo o ilustre Adam Smith observou com muita felicidade nos seus ensaios filosóficos que não se podia encontrar em nenhum OS FUNDADORES 115 país em tempo algum um deus para o peso É o que acontece de modo geral mesmo com respeito aos temas mais complicados para todos os fenômenos bastante elemen tares e familiares para que a invariabilidade das suas relações efetivas tenha sempre cha mado a atenção espontaneamente do observador menos preparado Cours de philo sophie positive t IV p 365 21 Apesar da inevitável solidariedade que sem cessar reina entre os diferentes elementos da nossa evolução social segundo os princípios já estabelecidos é preciso também que no meio de suas mútuas reações contínuas uma dessas ordens gerais de pro gresso seja espontaneamente preponderante para que possa imprimir habitualmente a todos os outros um indispensável impulso primitivo ainda que ele mesmo deva rece ber depois por sua vez de sua própria evolução um novo impulso Aqui basta identi ficar imediatamente esse elemento preponderante cujo exame dirigirá o conjunto da nossa exposição dinâmica sem que nos ocupemos expressamente com a subordinação especial dos meios em relação a ele ou entre eles o que a seguir a realização espon tânea de um tal trabalho deixará suficientemente manifesto Ora assim reduzida a de terminação não poderia apresentar nenhuma dificuldade grave porque bastaria distin guir o elemento social do qual se pudesse conceber melhor o desenvolvimento deixan dose de lado o desenvolvimento de todos os demais a despeito da sua conexão necessária e universal enquanto inversamente do exame direto do desenvolvimento destes últi mos a noção se reproduzirá de modo inevitável Neste caráter duplamente decisivo não se poderia hesitar em pôr no primeiro plano a evolução intelectual como princípio necessariamente preponderante do conjunto da evolução da humanidade Se como expliquei no capítulo anterior o ponto de vista intelectual deve predominar no que diz respeito ao simples estudo estático do organismo social propriamente dito com mais razão se dirá o mesmo com respeito ao estudo direto do movimento geral das socieda des humanas Embora nossa fraca inteligência tenha sem dúvida necessidade do des pertar primitivo e da estimulação contínua dos apetites paixões e sentimentos foi sem pre sob sua direção necessária que teve de se realizar o conjunto do desenvolvimento humano em todos os tempos desde a primeira manifestação do gênio filosófico sem pre se reconheceu de modo mais ou menos claro mas constantemente irrecusável que a história da sociedade era dominada principalmente pela história do espírito humano Cours de philosophie positive t IY p 340 22 No Discours sur Vespritpositive Comte escreveu O politeísmo se adaptava sobretudo ao sistema de conquista da antiguidade o monoteísmo à organização defen siva da Idade Média Fazendo prevalecer cada vez mais a vida industrial a sociabilidade moderna deve portanto secundar vigorosamente a grande revolução mental que hoje eleva nossa inteligência de forma definitiva do regime teológico para o positivismo Esta ativa tendência cotidiana ao aperfeiçoamento prático da condição humana é neces sariamente pouco compatível com as preocupações religiosas sempre relativas sobre tudo sob o monoteísmo e com destinação muito diversa Além disso uma tal ativida de é própria para provocar ao final uma oposição universal tão radical quanto espon tânea a toda filosofia teológica Ed 1018 Paris Union Générale dÉditions 1963 PP6263 116 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 23 Oswald Spengler Der Untergang des Abendlandes Munique 1918 1922 Traduzido em francês com o título de Le déclin de l Occident esquisse dune morpho logie de 1histoire universelle Paris Gallimard 2 vols 1938 Esta obra concebida na época da crise de Agadir foi publicada pela primeira vez em 1916 No entanto o suces so que na Alemanha foi fulminante só veio depois da derrota de 1918 24 A meu ver as três fontes gerais da variação social resultam 1 da raça 2 do clima 3 da ação política propriamente dita considerada em toda a sua extensão cientí fica não se pode procurar saber aqui se sua importância relativa está realmente de acordo com esta ordem ou com alguma outra Mesmo que tal determinação não esti vesse evidentemente deslocada no estado nascente da ciência as leis do método obri gariam pelo menos a postergar sua exposição direta para depois do exame do assunto principal para evitar uma confusão irracional entre os fenômenos fundamentais e suas diversas modificações Cours de philosophie positive t IV p 210 25 Colocando no início da lição 52 do Curso de filosofia positiva a questão por que a raça branca possui de modo tão pronunciado o privilégio efetivo do princi pal desenvolvimento social e por que a Europa tem sido o lugar essencial dessa civili zação preponderante Comte depois de precisar que esta grande discussão de socio logia concreta deve ser reservada até depois da primeira elaboração abstrata das leis fundamentais do desenvolvimento social oferece no entanto algumas razões no ções parciais e isoladas necessariamente insuficientes Sem dúvida já se percebe quanto ao primeiro aspecto na organização característica da raça branca e sobretu do quanto ao aparelho cerebral alguns germes positivos de sua superioridade real em bora os naturalistas estejam hoje muito longe de chegar a um acordo a esse respeito Igualmente sob o segundo ponto de vista podemse entrever de um modo um pouco mais satisfatório diversas condições físicas químicas e mesmo biológicas que certa mente tiveram alguma influência sobre a eminente propriedade das regiões européias de servir até hoje de teatro essencial desta evolução preponderante da humanidade E Comte em uma nota dá maiores precisões Tais são por exemplo em relação ao aspecto físico além da situação termológi ca tão vantajosa na zona temperada a existência da admirável bacia do Mediterrâneo ao redor da qual se realizou inicialmente o mais rápido desenvolvimento social a par tir do momento em que a arte náutica se tornou Suficientemente avançada para permi tir a utilização desse precioso intermediário oferecendo ao conjunto nas nações ribei rinhas tanto a contigüidade própria para facilitar a continuidade das relações quanto a diversidade que os toma importantes para uma recíproca estimulação social De modo semelhante sob o ponto de vista químico a abundância mais pronunciada do ferro e do carvão nesses países privilegiados deve ter certamente contribuído muito para ace lerar a evolução humana Enfim sob o aspecto biológico seja fitológico ou zoológico é claro que esse mesmo meio tendo sido mais favorável às principais culturas alimen tares e por outro lado ao desenvolvimento dos animais domésticos mais úteis a civi lização deve ter sido só por esse único aspecto especialmente encorajada Mas qual quer que seja a importância real que já se possa atribuir a essas diversas constatações elas estão ainda muito longe de ser o suficiente para uma explicação verdadeiramente positiva do fenômeno em pauta e quando a formação adequada da dinâmica social ti o s FUNDADORES 117 ver no futuro permitido uma tentativa direta de tal explicação é até mesmo evidente que cada uma das indicações precedentes terá necessidade de ser submetida a uma escru pulosa revisão científica baseada no conjunto da filosofia natural Cours de philoso phie positive t V pp 1213 26 Auguste Comte é extremamente severo com Napoleão Por uma fatalidade pa ra sempre deplorável essa inevitável supremacia militar à qual o grande Hoche pare cia no início tão afortunadamente destinado acabou caindo nas mãos de um homem quase estranho à França saído de uma civilização atrasada e particularmente anima do sob o secreto impulso de uma natureza supersticiosa por uma admiração involuntá ria pela antiga hierarquia social enquanto apesar do seu vasto charlatanismo caracte rístico a imensa ambição que o devorava não estava realmente em harmonia com nenhu ma superioridade mental eminente exceto a relacionada com um incontestável talento para a guerra que sobretudo em nossos dias está muito mais ligado à energia moral do que à força intelectual Hoje não é possível lembrar esse nome sem recordar que bajuladores vis e igno rantes entusiastas ousaram por muito tempo comparar com Carlos Magno um sobera no que sob todos os aspectos esteve tão atrasado em relação ao seu século quanto o admirável tipo da Idade Média esteve adiantado em relação ao dele Embora toda apre ciação pessoal deva permanecer essencialmente estranha à natureza e à finalidade de nossa análise histórica cada filósofo verdadeiro precisa agora segundo penso consi derar um dever social irrecusável apontar à razão pública a perigosa aberração que sob a mentirosa exposição de uma imprensa tão culpada quanto desnorteada leva hoje o conjunto da escola revolucionária a se esforçar por uma cegueira funesta para reabili tar a memória tão justamente execrada no início daquele que organizou da forma mais desastrosa o mais intenso movimento retrógrado de política que a humanidade já pade ceu Cours de philosophie positive t VI p 210 27 A influência do positivismo no Brasil foi muito profunda chegou a tomarse a doutrina quase oficial do Estado Benjamin Constant presidente da República pro moveu a adoção da Enciclopédia das ciências positivas como base para o programa de estudo das escolas oficiais Em 1880 foi fundado um Instituto do Apostolado e no ano seguinte era inaugurado no Rio de Janeiro um templo positivista para celebrar o culto da Humanidade A divisa Ordem e Progresso figura no pavilhão brasileiro cujo ver de é também a cor das bandeiras positivistas 28 Existem diferenças de detalhes entre as idéias do Curso e as do Système que deixarei de lado para examinar as linhas gerais do pensamento de Comte A estática so cial que estou examinando é concebida por Auguste Comte na época em que escreveu o Système de politique positive 29 A distinção entre razão e coerção encontrase em Platão na República e no Fedro É retomada numa descrição fisiológica dos seres vivos mortais no Timeu em que Platão constrói um quadro das localizações corporais situando a alma imortal na cabe Ça e a alma mortal no peito Existem aliás outros pontos de semelhança entre as idéias O autor comete um engano ao afirmar que Benjamin Constant foi presidente da Repú blica N do T 118 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de Platão e as de Comte Assim o mito platônico da atrelagem cf Fedro lembra a dia lética que Comte descobre no homem entre a afeição a ação e a inteligência 30 Sob este aspecto a instituição da linguagem deve ser por fim comparada à da propriedade De fato a primeira tem na vida espiritual da humanidade uma fun ção fundamental que corresponde àquela que a segunda exerce na vida material De pois de ter facilitado essencialmente a aquisição de todos os conhecimentos humanos teóricos ou práticos e dirigido nosso impulso estético a linguagem consagra esta dupla riqueza e a transmite a novos cooperadores Mas a diversidade das contribuições dé pôts estabelece uma diferença fundamental entre as duas instituições conservadoras para a produção destinada a satisfazer a necessidades pessoais que fatalmente as des troem a propriedade deve instituir conservadores individuais cuja eficácia social é até mesmo aumentada por uma sábia concentração com relação porém às riquezas que comportam a posse simultânea sem sofrer nenhuma alteração a linguagem institui na turalmente uma comunidade plena na qual todos servindose livremente do tesouro universal concorrem de forma espontânea à sua conservação Apesar dessa diferença fundamental os dois sistemas de acumulação suscitam abusos que se eqüivalem e que são devidos igualmente ao desejo de desfrutar sem produzir Os conservadores dos bens materiais podem degenerar em árbitros exclusivos do seu emprego dirigido com ex cessiva freqüência para satisfações egoístas Assim também aqueles que nada deposi taram se adornam com ele de modo a usurpar uma parte que os dispensa de todo ser viço real Système de politique positive t II p 254 31 Para Auguste Comte só há uma história da humanidade e sua ambição é inte grar numa síntese todos os momentos do passado Chega a ver nesse sentido da tradi ção uma das principais superioridades do positivismo A anarquia ocidental consiste principalmente na alteração da continuidade humana sucessivamente violada pelo ca tolicismo amaldiçoando a antiguidade o protestantismo reprovando a Idade Média e o deísmo negando toda filiação Nada invoca melhor o positivismo para fornecer enfim à situação revolucionária a única saída que ela comporta superando todas essas doutri nas mais ou menos subversivas que empurraram gradualmente os vivos a se insurgirem contra o conjunto dos mortos Depois desse serviço a história se tornará logo a ciên cia sagrada em conformidade com o seu papel normal o estudo direto dos destinos do Grande Ser cuja noção resume todas as nossas sãs teorias A política sistematizada apoia rá nela todos os seus empreendimentos subordinados naturalmente ao estado corres pondente da grande revolução Mesmo a poesia regenerada buscará aí os quadros des tinados a preparar o futuro idealizando o passado Système de politique positive t III1 P 2 32 Assim só o princípio da cooperação sobre o qual se baseia a sociedade polí tica propriamente dita suscita naturalmente o governo que deve mantêla e desenvol vêla Tal poder se apresenta na verdade como essencialmente material porque resul ta sempre da grandeza ou da riqueza Mas é importante reconhecer que a ordem social nunca pode ter outra base imediata O célebre princípio de Hobbes sobre a dominação espontânea da força constitui no fundo o único passo importante que tenha sido dado de Aristóteles até mim pela teoria positiva do governo A admirável antecipação da Idade Média sobre a divisão dos dois poderes foi devida na verdade numa situação os FUNDADORES 119 favorável mais ao sentimento do que à razão Depois ela só pôde resistir à discussão quando a retomei Todas as críticas carregadas de ódio que recebeu a concepção de Hobbes resultaram exclusivamente de sua origem metafísica e da confusão radical que houve em seguida entre a avaliação estática e a avaliação dinâmica que não era pos sível então distinguir Mas essa dupla imperfeição só teria conseguido com juizes menos malévolos e mais esclarecidos fazer apreciar melhor a dificuldade e a impor tância dessa percepção luminosa que a filosofia positiva seria a única a utilizar adequa damente Système de politique positive t II p 299 33 Mas a harmonia habitual entre as funções e os funcionários terá sempre enor mes imperfeições Ainda que se quisesse pôr cada um no seu lugar a curta duração da nossa vida objetiva impediria necessariamente o êxito pela impossibilidade de exami nar suficientemente os títulos a fim de realizar em tempo as mutações Aliás é preci so reconhecer que a maioria das funções sociais não exige nenhuma aptidão natural que não possa ser plenamente compensada por um exercício adequado do qual nada po deria justificar a dispensa Como o melhor órgão tem sempre necessidade de um apren dizado especial toda posse efetiva tanto de função como de capital deve ser muito res peitada reconhecendose o quanto essa segurança pessoal é importante para a eficácia social Além disso as qualidades naturais constituem causa de orgulho ainda menor do que as vantagens adquiridas porque nelas nossa intervenção é menor Nosso verdadei ro mérito depende portanto assim como nossa felicidade do digno emprego voluntá rio de quaisquer forças que a ordem real artificial ou natural nos proporcione Esta é a sã apreciação de acordo com a qual o poder espiritual deve inspirar continuamente aos indivíduos e às classes uma prudente resignação para com as imperfeições neces sárias da harmonia social que sua complicação superior expõe a mais abusos Essa convicção habitual seria portanto insuficiente para conter as reclamações anacrônicas caso o sentimento que pode justificálas não recebesse ao mesmo tempo uma certa satisfação normal dignamente regrada pelo sacerdócio Ela resulta da capa cidade de avaliação que constitui diretamente a principal característica do poder espi ritual do qual derivam claramente todas as funções sociais de aconselhamento de con sagração e de disciplina Ora esta avaliação que começa necessariamente pelas profis sões deve estenderse aos órgãos individuais O sacerdócio deve sem dúvida esforçar se sempre para conter as mutações pessoais cujo livre curso se tornaria em breve mais funesto que os abusos que as teriam inspirado Mas também deve construir e desenvol ver por contraste com esta ordem objetiva que resultou do poder efetivo uma ordem subjetiva baseada na estima pessoal de acordo com uma avaliação adequada de todos os títulos individuais Embora esta segunda classificação nunca possa nem deva preva lecer exceto no culto sagrado sua justa oposição à primeira suscita aperfeiçoamentos realmente praticáveis consolando também das imperfeições insuperáveis Système de Politique positive t II pp 329330 34 A verdadeira filosofia se propõe a sistematizar na medida do possível toda a existência humana individual e sobretudo coletiva contemplada ao mesmo tempo nas três ordens de fenômenos que a caracterizam pensamentos sentimentos e ações Sob todos esses aspectos a evolução fundamental da humanidade é necessariamente es pontânea e só a apreciação exata da sua marcha natural pode nos oferecer a base geral 120 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO para uma sábia intervenção Mas as modificações sistemáticas que podemos introduzir têm contudo extraordinária importância para diminuir de muito os desvios parciais os atrasos funestos e as incoerências graves próprias a um impulso igualmente complexo se fosse inteiramente abandonado a si mesmo A realização continua desta intervenção indispensável constitui o domínio essencial da política Todavia sua verdadeira con cepção só pode emanar da filosofia que aperfeiçoa sem cessar sua determinação geral Para esta destinação fundamental comum a função própria da filosofia consiste em coordenar entre si todas as partes da existência humana para levar a noção teórica a uma completa unidade Tal síntese só pode ser real na medida em que representa exatamen te o conjunto das relações naturais cujo estudo judicioso se toma assim a condição pré via dessa construção Se a filosofia tentasse influenciar diretamente a vida ativa de outro modo que não fosse por meio de tal sistematização ela usurparia viciosamente a missão necessária da política único árbitro legítimo para toda evolução prática Entre essas duas funções principais do grande organismo a ligação contínua e a separação normal residem ao mesmo tempo na moral sistemática que constitui naturalmente a aplicação característica da filosofia e o guia geral da política Système de politique positive 11 Discurso preliminar p 8 35 Auguste Comte define sua filosofia do conhecimento sobretudo no capítulo so bre a religião da estática social do Système de politique positive A sã filosofia representa todas as leis reais como sendo construídas por nós com materiais do exterior Apreciadas objetivamente sua exatidão nunca será mais do que aproximativa Mas des tinandose unicamente a nossas necessidades sobretudo ativas essas aproximações tort namse plenamente suficientes quando são bem instituídas de acordo com as exigências práticas que estabelecem habitualmente a precisão adequada Além dessa medida prin cipal ainda resta freqüentemente um grau normal de liberdade teórica j Nossa construção fundamental da ordem universal resulta pois de um concuri necessário entre o exterior e o interior As leis reais isto é os fatos gerais nunca são ma do que hipóteses bastante confirmadas pela observação Se a harmonia não existisse modo algum fora de nós nosso espírito seria totalmente incapaz de concebêla mas e impossível proceder à decomposição que nos permite abstrair se não afastássemos o exj vida contemplativa Mas o grau de subjetividade que é comum a toda a nossa espécie per siste normalmente aliás sem nenhum inconveniente grave to tempo isso teria sido percebido por nossas observações ou teria emanado de nossas concepções Mas a sua noção exige o concurso de duas influências heterogêneas apesar de inseparáveis cuja combinação só se pôde desenvolver muito lentamente As diversas leis redutíveis que a compõem formam uma hierarquia natural etn que cada categoria re nenhum caso ela se verifica tanto quanto supomos Nessa cooperação contínua o mun fornece a matéria e o homem a forma de cada noção positiva Ora a fusão desses do elementos só se toma possível por meio de sacrifícios mútuos Um excesso de objel vidade impediria qualquer visão geral sempre baseada na abstração No entanto ser íi cesso natural de subjetividade Cada homem ao se comparar com os outros oculta es pontaneamente às suas próprias observações tudo aquilo que elas têm principalmente de muito pessoal a fim de permitir o acordo social que constitui a principal finalidade daí Se a ordem universal fosse plenamente objetiva ou puramente subjetiva há mui OS FUNDADORES 121 pousa sobre a precedente segundo sua generalidade decrescente e sua complicação cres cente Assim sua sã apreciação deve ter sido sucessiva Système de politique positive t II pp 3234 36 As quinze leis da filosofia primeira estão enunciadas no tomo IV do Système de politique positive cap III pp 173181 37 O Grande Ser é o conjunto dos seres passados futuros e presentes que con correm livremente para aperfeiçoar a ordem universal Système de politique positive t IV p 30 O culto dos homens verdadeiramente superiores forma uma parte essencial do culto da Humanidade Mesmo durante a sua vida objetiva cada um deles constitui uma certa personificação do Grande Ser Essa representação no entanto exige que se afas tem idealmente as graves imperfeições que com freqüência alteram as melhores nature zas Ibid t II p 63 A humanidade não só se compõe de existências suscetíveis de assimilação como também só admite a parte incorporável de cada uma delas esquecendo todo desvio in dividual Ibid t II p 62 Bibliografia OBRAS DE AUGUSTE COMTE Os textos de Auguste Comte não foram reunidos em uma coleção de Obras Com pletas Para uma bibliografia completa podemse consultar as obras de H Gouhier e Ej ArbousseBastide j Aqui mencionamos apenas as principais obras nas edições que utilizamos sI Auguste Comte oeuvres choisies com uma introdução de H Gouhier Paris Aubier 1943Í Essa coletânea contém as duas primeiras lições do Cours de philosophie positive o prefácio que abre o tomo IV do Cours e o Discours sur l esprit positif Auguste Comte sociologie textos selecionados por J Laubier Paris PUF 1957 exí tratos do Système de politique positive Cours de philosophie positive 5 ed idêntica à primeira 6 vols Paris Schleicher Frò res Éditeurs 19071908 1 Discours sur l espritpositif editado por H Gouhier in Oeuvres choisies Paris Aubieí 1943 ou na Coleção 1018 Paris Union Générale dÉditions 1963 i Politique dAuguste Comte extratos apresentados por Pierre Amaud Paris Armand Colifl 1965 com uma grande introdução Système de politique positive 5 ed conforme a primeira 4 vols Paris na sede da Sof ciété Positiviste 10 rue MonsieurlePrince 1929 1 O tomo I inclui também o Discours sur l ensemble du positivisme o tomo IV ol Opuscules de juventude Séparation générale entre les opinions et les désirs Sommairé appréciation sur l ensemble dupassé moderne Plan des travaux scientifiques néces saires pour réorganiser la société Considérations philosophiques sur les sciences ei les savants Considérations sur le pouvoir spirituel Examen du traité de Broussatí sur l irritation Catéchisme positiviste ou sommairé exposition de la religion uni verselle com cronologia introdução e nota de Pierre Amaud Paris GamierFlam marion 1966 Entre os textos escolhidos disponíveis atualmente no comércio citemos o s FUNDADORES 123 OBRAS GERAIS Alain Idées Paris Hartmann 1932 um capítulo sobre A Comte Bayer R Épistémologie et logique depuis Kant jusquà nos jours Paris PUF 1954 um capítulo sobre A Comte Bréhier E Histoire de la philosophie t II 3f parte Alcan 1932 Brunschvicg L Les étapes de la philosophie mathématique Paris Alcan 1912 Le progrès de la conscience dans la philosophie occidentale 2 vols Paris Alcan 1927 Gilson E Lécole des muses Paris Vrin 1951 um capítulo sobre A Comte e Clotilde de Vaux Gurvitch G Auguste Comte Karl Marx et Herbert Spencer Paris CDU 1957 Leroy M Histoire des idées sociales en France Paris Gallimard t II De Babeuf à Tocqueville 1950 t III DAuguste Comte à PJ Proudhon 1954 de Lubac H Le drame de 1humanisme athée Paris Union Générale dEditions Col 1018 1963 reed Spes 1944 a segunda parte sobre Comte e o cristianismo Maurras Ch Lavenir de 1intelligence Paris Nouvelle Librairie Nationale 1916 Vaughan C E Studies in the History of Political Philosophy before and after Rousseau A G Little 2 vols Manchester University Press 1939 Nova York Russel Russel 1960 OBRAS SOBRE AUGUSTE COMTE ArbousseBastilde P La doctrine de Téducation universelle dans la philosophie d Au guste Comte 2 vols Paris PUF 1957 importante bibliografia Audifirent Dr G Centenaire de l École Polytechnique Auguste Comte sa plus puissan te émanation Notice sur sa vie et sa doctrine Paris P Ritti 1894 Delvolve J Réflexions sur la pensée comtienne Paris Alcan 1932 Deroisin Notes sur Auguste Comte par un de ses disciples Paris G Grès 1909 Ducassé P Essai sur les origines intuitives du positivisme Paris Alcan 1939 Dumas Dr Georges Psychologie de deux messies positivistes SaintSimon et Auguste Comte Paris Alcan 1905 Gouhier H La vie d Auguste Comte 2 ed Paris Vrin 1965 La jeunesse d Auguste Comte et la formation du positivisme 3 tomos Paris Vrin I Sous le signe de la liberté 1933 II SaintSimon jusquà la Restauration 2 ed 1964 III Auguste Comte et SaintSimon 1941 Gruber R P Auguste Comte fondateur du positivisme Paris Lethielleux 1892 Halbwachs M Statique et dynamique sociale chez Auguste Comte Paris CDU 1943 Lacroix J La sociologie dAuguste Comte Paris PUF 1956 LévyBruhl L La philosophie d Auguste Comte Paris Alcan 1900 Marvin F S Comte the Founder of Sociology Londres Chapman Hall 1936 Mill J S Auguste Comte and Positivism Ann Arbor University of Michigan Press 1961 124 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Robinet Dr Notice sur Voeuvre et la vie d Auguste Comte 3a ed Paris Société Posi tiviste 1891 Seillière E Auguste Comte Paris Vrin 1924 OBRAS EM PORTUGUÊS Catecismo pozitivista ou sumária expozição da religião da humanidade tradução e notas de Miguel Lemos 2 ed Rio de Janeiro Igreja Pozitivista do Brazil 1895 Catecismo pozitivista ou sumária expozição da religião da humanidade tradução e notas de Miguel Lemos São Paulo Abril Cultural 1973 Os Pensadores 33 Comte Auguste Catecismo positivista ou exposição sumária da religião universal on ze colóquios sistemáticos entre uma mulher e um sacerdote da Humanidade tra dução e notas de Fernando Melro Lisboa Publicações EuropaAmérica Curso de filosofia positivista tradução de José Arthur Giamiotti São Paulo Abril Cul tural 1973 Os Pensadores 33 Discurso sobre o espírito positivo tradução de J A G São Paulo Abril Cultural 1973 Os Pensadores 33 Karl Marx O país mais desenvolvido industrialmente mostra aos que o seguem na escala industrial a imagem do seu próprio futuro Mesmo quando uma sociedade chega a descobrir a pista da lei natural que preside ao seu mo vimento ela não pode ultrapassar de um salto nem abolir por meio de decretos as fases do seu desenvolvimento natural pode contudo reduzir o período de gestação e minorar os males da sua gravidez O capital Prefácio à 1 edição alemã Para analisar o pensamento de Marx procurarei responder às mesmas ques tões formuladas a propósito de Montesquieu e de Comte que interpretação Marx dá de seu tempo Qual a sua teoria do conjunto social Qual a sua visão da his tória Que relação estabelece entre sociologia filosofia da história e política Num certo sentido esta exposição não é mais difícil do que as duas preceden tes Se não existissem milhões de marxistas ninguém teria dúvidas sobre quais teriam sido as idéias diretrizes de Marx Marx não é como disse Axelos o filósofo da tecnologia Também não é como pensam muitos o filósofo da alienação1 Antes de mais nada é o soció logo e o economista do regime capitalista Marx tinha uma teoria sobre esse re gime sobre a influência que exerce sobre os homens e sobre o devenir pelo qual passará Sociólogo e economista do que chamava de capitalismo não tinha uma idéia precisa do que seria o regime socialista e não se cansava de repetir que o homem não podia conhecer o futuro antecipadamente Não tem muito interesse portanto indagar se Marx foi stalinista trotskista partidário de Khruchtchev ou de Mao Karl Marx teve a sorte ou a infelicidade de ter vivi do há um século Não deu respostas às questões que formulamos hoje Pode mos procurar respondêlas por ele mas as respostas serão nossas não dele Um homem sobretudo um sociólogo marxista porque apesar de tudo Marx tinha algumas relações com o marxismo é inseparável da sua época Perguntar o que teria pensado Marx significa querer saber o que um outro Marx teria pensado no lugar do verdadeiro Karl Marx A resposta contudo é possível mas é alea tória e de pouco interesse Mesmo se nos limitarmos a expor o que o Marx que viveu no século XIX Pensava sobre seu tempo e sobre o futuro e não o que ele pensaria de nosso tempo e de nosso futuro essa análise apresentará dificuldades particulares por Muitas razões algumas extrínsecas outras intrínsecas 126 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO As dificuldades extrínsecas têm a ver com o destino póstumo de Marx Hoje quase um bilhão de seres humanos são instruídos numa doutrina que com ou sem razão se denomina de marxismo Uma determinada interpretação da dou trina de Marx se transformou na ideologia oficial do Estado russo e em segui da dos Estados da Europa oriental e do Estado chinês Essa doutrina oficial pretende oferecer uma interpretação autêntica do pen samento de Marx Basta portanto que o sociólogo apresente uma certa interpre tação desse pensamento para que aos olhos dos que seguem a doutrina oficial passe a ser visto como portavoz da burguesia a serviço do capitalismo e do imperialismo Em outras palavras a boafé que sem muita dificuldade me é atribuída quando se trata de Montesquieu ou de Auguste Comte alguns me negam antecipadamente quando se trata de Karl Marx Outra dificuldade extrínseca provém das reações à doutrina oficial dos Es tados soviéticos Essa doutrina apresenta as características de simplificação e exagero inseparáveis das doutrinas oficiais que são ensinadas sob forma de ca tecismo a espíritos de qualidade heterogênea Por outro lado alguns filósofos sutis que vivem às margens do Sena por exemplo e que desejariam ser marxistas sem precisar retornar à infância ima ginaram uma série de interpretações do pensamento último e profundo de Marx cada uma mais inteligente do que a outra2 De minha parte não buscarei uma interpretação supremamente inteligen te de Marx Não que não tenha um certo gosto por estas especulações sutis creio porém que as idéias centrais de Marx são mais simples do que as que se podem encontrar na revista Arguments por exemplo ou nas obras dedicadas aos escritos de juventude de Marx escritos de juventude a que Marx dava tanta importância que os abandonou à crítica dos ratos3 Por isso farei referência es sencialmente aos textos que Marx publicou e que sempre considerou como a principal manifestação do seu pensamento Contudo mesmo se deixarmos de lado o marxismo da União Soviética e dos marxistas mais sutis encontraremos algumas dificuldades intrínsecas Estas di ficuldades se relacionam primeiramente com o fato de que Marx foi um autor fecundo que escreveu muito e que como acontece às vezes com os sociólo gos escreveu tanto artigos de jornal como obras de fôlego Tendo escrito muito nem sempre disse a mesma coisa sobre os mesmos temas Com um pouco de engenho e de erudição é sempre possível encontrar sobre a maioria dos proble mas fórmulas marxistas que não parecem conciliáveis ou que pelo menos se prestam a diferentes interpretações Além disso a obra de Marx comporta textos de teoria sociológica de teo ria econômica de história e às vezes a teoria explícita que se encontra nesses escritos científicos parece estar em contradição com a teoria implícita dos seus livros históricos Por exemplo Marx esboça uma certa teorift das classes so OS FUNDADORES 127 ciais contudo quando estuda historicamente a luta de classes na França entre 1848 e 1850 ou o golpe de Estado de Luís Napoleão ou a história da Comuna as classes que reconhece e que coloca como personagens do drama não são necessariamente as que havia indicado na sua teoria Além da diversidade das obras de Marx é preciso levar em conta a diver sidade dos períodos em que foram escritas Distinguemse em geral dois perío dos principais O primeiro que é chamado de período de juventude compreen de os trabalhos escritos entre 1841 e 18471848 Entre os escritos desse perío do alguns foram publicados enquanto Marx ainda era vivo ensaios e artigos breves como a Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel ou o En saio sobre a questão judaica Os outros só foram publicados depois de sua mor te A publicação de conjunto é de 1931 Foi a partir dessa data que se desen volveu toda uma literatura que reinterpretou o pensamento de Marx à luz dos escritos de juventude Entre esses escritos encontramos um fragmento de uma crítica da filoso fia do direito de Hegel um texto intitulado Manuscrito econômicofilosófico A ideologia alemã As obras mais importantes desse período que já eram conhecidas desde muito tempo incluem A sagrada família e uma polêmica contra Proudhon inti tulada Miséria da filosofia réplica do livro de Proudhon Filosofia da miséria Esse período de juventude se encerra com Miséria da filosofia e sobretu do com a pequena obra clássica intitulada Manifesto comunista obraprima da literatura sociológica de propaganda na qual encontramos expostas pela pri meira vez de maneira tão lúcida quanto brilhànte as idéias diretrizes de Marx Contudo A ideologia alemã de 1845 marca também uma ruptura com a fase anterior A partir de 1848 e até o fim dos seus dias Marx aparentemente deixou de ser filósofo tornandose um sociólogo e sobretudo um economista A maio ria dos que se dizem hoje mais ou menos marxistas tem a peculiaridade de ig norar a economia política do nosso tempo É uma fraqueza da qual Marx não com partilhava Com efeito possuía admirável formação econômica conhecia o pen samento econômico do seu tempo como poucos Era e queria ser um economista no sentido rigoroso e científico do termo No segundo período da sua vida as duas obras mais importantes são um texto de 1859 intitulado Contribuição à crítica da economia política e natural mente sua obraprima o centro do seu pensamento O capital Insisto no fato de que Marx é antes de mais nada o autor de O capital porque essa banalidade é hoje questionada por homens muitíssimo inteligen tes Não há sombra de dúvida de que Marx que tinha por objeto analisar o funcionamento do capitalismo e prever a sua evolução era a seus próprios olhos e acima de qualquer outra coisa o autor de O capital 128 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Marx tem uma certa visão filosófica do devenir histórico É possível e até mesmo provável que tenha dado um sentido filosófico às contradições do capi talismo Contudo o essencial no esforço científico de Marx foi demonstrar cientificamente a evolução a seus olhos inevitável do regime capitalista Qualquer interpretação de Marx que não encontre um lugar para O capi tal ou que seja capaz de resumir esta obra em algumas páginas é aberrante com relação ao que o próprio Marx pensou e pretendeu Naturalmente podese sempre dizer que um grande pensador se equivocou a respeito de si mesmo e que os textos essenciais são justamente os que ele não teve interesse em publicar Mas é preciso estar muito seguro da própria genia lidade para ter certeza de compreender um grande autor de modo tão superior ao do próprio autor Quando não se está tão certo da própria genialidade é me lhor começar compreendendo o autor do modo como ele próprio se compreen deu isto é no caso de Marx colocando no centro do marxismo O capital em lugar do Manuscrito econômicofilosófico rascunho informe medíocre ou genial de um jovem que especula sobre Hegel e sobre o capitalismo numa época em que seguramente conhecia melhor Hegel do que o capitalismo Por isso levando em conta os dois momentos da carreira científica de Marx tomarei como ponto de partida o pensamento da maturidade que irei procurar no Manifesto comunista na Contribuição à crítica da economia política e em O capital reservando para etapa ulterior a procura do substrato filosófico do pensamento histórico e sociológico de Marx Finalmente fora da ortodoxia soviética chamada marxismo há muitas in terpretações filosóficas e sociológicas de Marx Há mais de um século escolas diferentes têm a característica comum de afirmar sua filiação a Marx e dar ver sões diferentes ao seu pensamento Não tentarei expor aqui o pensamento últi mo e secreto de Marx porque confesso não sei qual é Procurarei mostrar por que os temas do pensamento de Marx são simples e falsamente claros e se pres tam assim a várias interpretações entre as quais é quase impossível escolher com segurança Podese apresentar um Marx hegeliano podese também apresentar um Marx kantiano Podese afirmar como Schumpeter que a interpretação econômica da história nada tem a ver com o materialismo filosófico4 Podese demonstrar tam bém que a interpretação econômica da história é solidária com uma filosofia materialista Podese considerar O capital como o fez Schumpeter como uma obra rigorosamente científica de ordem econômica sem nenhuma referência à filosofia E podemos também como o padre Bigo e outros comentaristas mos trar que O capital elabora uma filosofia existencial do homem no campo da economia5 Minha ambição será mostrar por que intrinsecamente os textos de Marx são equívocos o que significa que têm as qualidades necessárias para que sejam comentados indefinidamente e transfigurados em ortodoxia OS FUNDADORES 129 Toda teoria que pretende tomarse ideologia de movimento político ou dou trina oficial de um Estado deve prestarse à simplificação para os simples e à su tileza para os sutis Não há dúvida de que o pensamento de Marx apresenta em grau supremo essas virtudes Cada um pode encontrar somente o que pretende6 Marx era incontestavelmente um sociólogo mas um sociólogo de tipo de terminado sociólogoeconomista convicto de que não podemos compreender a sociedade moderna sem uma referência ao funcionamento do sistema econô mico nem compreender a evolução do sistema econômico se desprezamos a teo ria do funcionamento Enfim como sociólogo ele não distinguia a compreen são do presente da previsão do futuro e da determinação de agir Comparativa mente às sociologias ditas objetivas de hoje era portanto um profeta e um homem de ação além de um cientista Talvez apesar de tudo haja o mérito da franqueza em não negar os laços que encontramos sempre ligando a interpreta ção daquilo que é e o julgamento do que deveria ser  análise sociòeconômica do capitalismo O pensamento de Marx é uma análise e uma compreensão da sociedade capitalista no seu funcionamento atual na sua estrutura presente e no seu deve nir necessário Auguste Comte tinha desenvolvido uma teoria daquilo que ele chamava de sociedade industrial isto é das principais características de todas as sociedades modernas No pensamento de Comte havia uma oposição essen cial entre as sociedades do passado feudais militares e teológicas e as socie dades modernas industriais e científicas Incontestavelmente Marx também considera que as sociedades modernas são industriais e científicas em oposi ção às sociedades militares e teológicas Porém em vez de pôr no centro da sua interpretação a antinomia entre as sociedades do passado e a sociedade presen te Marx focaliza a contradição que lhe parece inerente à sociedade moderna que ele chama capitalismo Enquanto no positivismo os conflitos entre trabalhadores e empresários são fenômenos marginais imperfeições da sociedade industrial cuja correção é relativamente fácil para Marx esses conflitos entre os operários e os empresá rios ou para empregar o vocabulário marxista entre o proletariado e os capita listas são o fato mais importante das sociedades modernas o que revela a natu reza essencial dessas sociedades ao mesmo tempo que permite prever o desen volvimento histórico O pensamento de Marx é uma interpretação do caráter contraditório ou antagônico da sociedade capitalista De um certo modo toda a obra de Marx é um esforço destinado a demonstrar que esse caráter contraditório é inseparável 130 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO da estrutura fundamental do regime capitalista e é também o motor do movi mento histórico Os três textos célebres que me proponho a analisar o Manifesto comunis ta o prefácio da Contribuição à crítica da economia política e O capital são três maneiras de explicar de fundamentar e precisar esse caráter antagônico do regime capitalista Se compreendermos bem que o centro do pensamento de Marx é a afirma ção do caráter contraditório do regime capitalista entenderemos imediatamen te por que é impossível separar o sociólogo do homem de ação já que demons trar o caráter antagônico do regime capitalista leva irresistivelmente a anunciar a autodestruição do capitalismo e ao mesmo tempo a incitar os homens a con tribuir com alguma coisa para a realização desse destino já traçado O Manifesto comunista é um texto que se quisermos podemos qualificar de nãocientífico Tratase de uma brochura de propaganda mas nele Marx e Engels apresentaram de forma sucinta algumas das suas idéias científicas O tema central do Manifesto comunista é a luta de classes A história de toda sociedade até nossos dias é a história da luta de classes Homem livre e escravo patrício e plebeu barão e servo mestre de oficio e com panheiro numa palavra opressores e oprimidos se encontraram sempre em cons tante oposição travaram uma luta sem trégua ora disfarçada ora aberta que ter minava sempre por uma transformação revolucionária de toda a sociedade ou en tão pela ruína das diversas classes em luta Manifesto comunista in Oeuvres 11 p 161 Eis aí portanto a primeira idéia decisiva de Marx a história humana se caracteriza pela luta de grupos humanos que chamaremos classes sociais cuja definição que por enquanto permanece equívoca implica uma dupla caracte rística por um lado a de comportar o antagonismo dos opressores e dos opri midos e por outro lado de tender a uma polarização em dois blocos e somen te em dois Todas as sociedades sendo divididas em classes inimigas a sociedade atual capitalista não é diferente das que a precederam No entanto ela apresenta cer tas características novas Para começar a burguesia classe dominante é incapaz de manter seu rei nado sem revolucionar permanentemente os instrumentos da produção A bur guesia não pode existir escreve Marx sem transformar constantemente os ins trumentos de produção portanto as relações de produção portanto o conjunto das condições sociais Ao contrário a primeira condição da existência de todas as classes industriais anteriores era a de conservar inalterado o antigo modo de produção No curso do seu domínio de classe que ainda não tem um século a burguesia criou forças produtivas mais maciças e mais colossais do que as que OS FUNDADORES 131 haviam sido criadas por todas as gerações do passado em conjunto Ibid pp 164 e 1677 Por outro lado as forças de produção que levarão ao regime socia lista estão em processo de amadurecimento dentro da sociedade atual No Manifesto comunista são apresentadas duas formas da contradição ca racterística da sociedade capitalista que aliás encontramos também nas obras científicas de Marx A primeira é a contradição entre as forças e as relações de produção A bur guesia cria incessantemente meios de produção mais poderosos Mas as rela ções de produção isto é ao que parece ao mesmo tempo as relações de pro priedade e a distribuição das rendas não se transformam no mesmo ritmo O regime capitalista é capaz de produzir cada vez mais Ora a despeito desse au mento das riquezas a miséria continua sendo a sorte da maioria Aparece assim uma segunda forma de contradição a que existe entre o aumento das riquezas e a miséria crescente da maioria Dessa contradição sairá um dia ou outro uma crise revolucionária O proletariado que constitui e cons tituirá cada vez mais a imensa maioria da população se constituirá em classe isto é numa unidade social que aspira à tomada do poder e à transformação das relações sociais Ora a revolução do proletariado será diferente por sua natu reza de todas as revoluções do passado Todas as revoluções do passado eram feitas por minorias em benefício de minorias A revolução do proletariado será feita pela imensa maioria em benefício de todos A revolução proletária mar cará assim o fim das classes e do caráter antagônico da sociedade capitalista Essa revolução que provocará a supressão simultânea do capitalismo e das classes será obra dos próprios capitalistas Os capitalistas não podem deixar de transformar a organização social Empenhados numa concorrência inexpiável não podem deixar de aumentar os meios de produção de ampliar ao mesmo tem po o número dos proletários e sua miséria O caráter contraditório do capitalismo se manifesta no fato de que o cresci mento dos meios de produção em vez de se traduzir pela elevação do nível de vida dos trabalhadores leva a um duplo processo de proletarização e pauperização Marx não nega a existência de muitos grupos intermediários entre os capi talistas e os proletários como artesãos pequenos burgueses comerciantes cam poneses proprietários de terras Mas faz duas afirmações que à medida que evolui o regime capitalista haverá uma tendência para a cristalização das rela ções sociais em dois e somente dois grupos os proletários e os capitalistas que duas e somente duas classes representam uma possibilidade de regime político e uma idéia de regime social As classes intermediárias não têm inicia tiva nem dinamismo histórico Só duas classes têm condições de imprimir sua marca na sociedade Uma é a classe capitalista e a outra a classe proletária No dia do conflito decisivo todos serão obrigados a se alinhar seja com os capita listas seja com os proletários 132 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Quando a classe proletária tiver tomado o poder haverá uma ruptura decisi va com o curso da história precedente Com efeito o caráter contraditório de to das as sociedades conhecidas até o presente terá desaparecido Marx escreve Quando no curso do desenvolvimento os antagonismos de classes tiverem de saparecido e toda a produção estiver concentrada nas mãos dos indivíduos asso ciados o poder público perderá seu caráter político No sentido estrito do termo o poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de uma outra Se na luta contra a burguesia o proletariado é forçado a se unir em uma classe se através de uma revolução ele se constitui em classe dominante e como tal abole pela violência as antigas relações de produção então ao suprimir o sistema de produção ele elimina ao mesmo tempo as condições de existência do antagonismo de classe então ao suprimir as classes em geral ele elimina pelo mesmo ato sua própria dominação enquanto classe A antiga sociedade burguesa com suas clas ses e seus conflitos de classe será substituída por uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um será a condição do livre desenvolvimento de todos Manifesto comunista Oeuvres 11 pp 182183 Esse texto é bem característico de um dos temas essenciais da teoria de Marx A tendência dos escritores do começo do século XIX é considerar a polí tica ou o Estado como um fenômeno secundário em relação aos fenômenos essenciais econômicos ou sociais Marx participa desse movimento geral tam bém ele considera que a política e o Estado são fenômenos secundários com relação ao que acontece na sociedade Por isso apresenta o poder político como a expressão dos conflitos sociais O poder político é o meio pelo qual a classe dominante a classe exploradora mantém seu domínio e sua exploração Nesta linha de raciocínio a supressão das contradições de classe deve levar logicamente ao desaparecimento da política e do Estado pois política e Estado são na aparência o subproduto ou a expressão dos conflitos sociais Esses são os temas da visão histórica e também da propaganda política de Marx Tratase de uma expressão simplificada mas a ciência de Marx tem por fím demonstrar rigorosamente essas proposições o caráter antagônico da sociedade capitalista a autodestruição inevitável dessa sociedade contraditória a explosão revolucionária que porá fim ao caráter antagônico da sociedade atual Portanto o centro do pensamento de Marx é a interpretação do regime ca pitalista enquanto contraditório isto é dominado pela luta de classes Auguste Comte considerava que faltava consenso à sociedade do seu tempo por causa da justaposição de instituições que vinham das sociedades teológicas e feudais e instituições da sociedade industrial Observando à sua volta essa falta de con senso procurava no passado os princípios de consenso das sociedades históri cas Marx observa ou pensa observar a luta de classes na sociedade capitalista OS FUNDADORES 133 e encontra em diferentes sociedades históricas o equivalente à luta de classes do presente Segundo Marx a luta de classes tenderá a uma simplificação Os diferentes grupos sociais se polarizarão em tomo da burguesia e do proletariado e é o de senvolvimento das forças produtivas que será o motor do movimento histórico levando pela proletarização e pela pauperização à explosão revolucionária e ao surgimento pela primeira vez na história de uma sociedade nãoantagônica A partir desses temas gerais da interpretação histórica de Marx temos duas tarefas a cumprir dois fundamentos a buscar Em primeiro lugar qual é no pen samento de Marx a teoria geral da sociedade que explica as contradições da sociedade atual e o caráter antagônico de todas as sociedades conhecidas Em se gundo lugar qual a estrutura qual o funcionamento qual a evolução da socieda de capitalista que explica a luta de classes e o final revolucionário do regime ca pitalista Em outras palavras partindo dos temas marxistas que encontramos no Ma nifesto comunista precisamos explicar a teoria geral da sociedade isto é aquilo a que se chama vulgarmente materialismo histórico as idéias econômicas essenciais de Marx que encontramos em O capital O próprio Marx num texto que é talvez o mais célebre de todos os que es creveu resumiu o conjunto da sua concepção sociológica No prefácio da Con tribuição à crítica da economia política publicada em Berlim em 1859 ele assim se exprime Eis em poucas palavras o resultado geral a que cheguei e que uma vez al cançado serviume como fio condutor para meus estudos Na produção social da sua existência os homens estabelecem relações determinadas necessárias inde pendentemente da sua vontade Essas relações de produção correspondem a um cer to grau de evolução das suas forças produtivas materiais O conjunto de tais rela ções forma a estrutura econômica da sociedade o fundamento real sobre o qual se levanta um edifício jurídico e político e ao qual respondem formas determinadas da consciência social O modo de produção da vida material domina em geral o de senvolvimento da vida social política e intelectual Não é a consciência dos homens que determina sua existência mas ao contrário é sua existência social que deter mina a sua consciência Num certo grau de desenvolvimento as forças produtivas materiais da sociedade colidem com as relações de produção existentes ou com as relações de propriedade dentro das quais se vinham movimentando até aquele momento e que não passam da sua expressão jurídica Essas condições que ainda ontem eram formas de desenvolvimento das forças produtivas se transformam ago ra em sérios obstáculos Começa então uma era de revolução social A transforma ção dos fundamentos econômicos é acompanhada de mudança mais ou menos 134 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO rápida em todo esse enorme edifício Ao considerarmos tais mudanças é preciso distinguir duas ordens de coisas Há a transformação material das condições de pro dução econômica que se deve constatar com o espírito rigoroso das ciências natu rais Mas há também as formas jurídicas políticas religiosas artísticas filosófi cas em suma as formas ideológicas com as quais os homens tomam consciência desse conflito e o levam até o fim Não se julga uma pessoa pela idéia que tem de si própria Não se julga uma época de revolução de acordo com a consciência que ela tem de si mesma Esta consciência pode ser mais bem explicada pelas contrarie dades da vida material pelo conflito que opõe as forças produtivas sociais e as re lações de produção Nunca uma sociedade expira antes de que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela pode comportar nunca se estabelecem relações de produção superiores sem que as condições materiais da sua existência tenham nascido no próprio seio da antiga sociedade A humanidade nunca se propõe tare fas que não possa realizar Considerando mais atentamente as coisas veremos sem pre que a tarefa surge lá onde as condições materiais da sua realização já se forma ram ou estão em vias de se criar Reduzidos a suas grandes linhas os modos de pro dução asiático antigo feudal e burguês moderno aparecem como épocas progres sivas da formação econômica da sociedade As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo social da produção Não se trata aqui de um antagonismo individual nós o entendemos antes como o produto das con dições sociais da existência dos indivíduos mas as forças produtivas que se desen volvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições mate riais próprias para resolver esse antagonismo Com esse sistema social encerrase portanto a préhistória da sociedade humana Contribuição à critica da economia politica Introdução Oeuvres 11 pp 272275 Encontramos nessa passagem todas as idéias essenciais da interpretação econômica da história com a única reserva de que nem a noção de classes nem o conceito de luta de classes aparecem aí explicitamente No entanto é fácil reintroduzilos nessa concepção geral 1 Primeira idéia e idéia essencial os homens entram em relações determi nadas necessárias que são independentes da sua vontade Em outras palavras convém seguir o movimento da história analisando a estrutura das sociedades as forças de produção e as relações de produção e não adotando como origem da interpretação o modo de pensar dos homens Há relações sociais que se impõem aos indivíduos não se levando em conta suas preferências A compreensão do processo histórico está condicionada à compreensão de tais relações sociais su praindividuais 2 Em toda sociedade podemos distinguir a base econômica ou infraestru tura e a superestrutura A primeira é constituída essencialmente pelas forças e pelas relações de produção na superestrutura figuram as instituições jurídicas e políticas bem como os modos de pensar as ideologias a filosofias OS FUNDADORES 135 3 O motor do movimento histórico é a contradição em cada momento da história entre as forças e as relações de produção As forças de produção são ao que parece essencialmente a capacidade de uma certa sociedade de produ zir capacidade que é função dos conhecimentos científicos do aparelhamento técnico da própria organização do trabalho coletivo As relações de produção que não aparecem definidas precisamente nesse texto parecem caracterizadas es sencialmente pelas relações de propriedade Existe com efeito a fórmula as relações de produção existentes ou aquilo que é apenas sua expressão jurídica as relações de propriedade dentro das quais elas atuaram até aquele momento Contudo as relações de produção não se confundem necessariamente com as relações de propriedade ou quando menos as relações de produção podem in cluir também a distribuição da renda nacional mais ou menos estreitamente de terminada pelas relações de propriedade Em outras palavras a dialética da história é constituída pelo movimento das forças produtivas que entram em contradição em certas épocas revolucioná rias com as relações de produção isto é tanto as relações de propriedade como a distribuição da renda entre os indivíduos ou grupos da coletividade 4 Nessa contradição entre forças e relações de produção é fácil introdu zir a luta de classes embora o texto não faça alusão Basta considerar que nos períodos revolucionários isto é nos períodos de contradição entre jorgas e rela ções de produção uma classe está associada às antigas relações de produção que constituem um obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas enquan to outra classe é progressiva renresenta novas relações de produção que em vez de serem um obstáculo no caminho do desenvolvimento de forças produti vas favorecerão ao máximo o desenvolvimento dessas forças Passemos dessas fórmulas abstratas à interpretação do capitalismo Na so ciedade capitalista a burguesia está associada à propriedade privada dos meios de produção e por isso mesmo a uma certa distribuição da renda nacional Em contrapartida o proletariado que constitui o outro pólo da sociedade que repre senta uma outra organização da coletividade se toma num certo momento da his tória o representante de uma nova organização da sociedade organização que será mais progressiva do que a organização capitalista Esta nova organização marcará uma fase ulterior do processo histórico um desenvolvimento mais avan çado das forças produtivas 5 Essa dialética das forças e das relações da produção sugere uma teoria das revoluções Com efeito dentro dessa visão histórica as revoluções não são acidentais mas sim a expressão de uma necessidade histórica As revoluções preenchem funções necessárias e se produzem quando ocorrem determinadas condições As relações de produção capitalistas se desenvolveram a princípio no seio da sociedade feudal A Revolução Francesa se realizou no momento em que as 136 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO novas relações de produção capitalistas atingiram certo grau de maturidade Pelo menos nesse texto Marx prevê um processo análogo para a passagem do capitalismo ao socialismo As forças de produção devem desenvolverse no seio da sociedade capitalista as relações de produção socialistas devem amadurecer dentro da sociedade atual antes que se produza a revolução que marcará o fim da préhistória da humanidade Em função dessa teoria da revolução a II Interna cional a socialdemocracia se inclinava para a atitude relativamente passiva Era preciso o amadurecimento natural das forças e das relações de produção do futuro antes que ocorresse a revolução Marx diz que a humanidade nunca colo ca problemas que não pode resolver a socialdemocracia tinha medo de reali zar a revolução cedo demais é por isso aliás que ela nunca a realizou 6 Nesta interpretação histórica Marx não distingue só a infra e a superestru tura mas também a realidade social e a consciência não é a consciência dos homens que determina a realidade mas ao contrário é a realidade social que determina sua consciência Daí a concepção de conjunto segundo a qual é preciso explicar a ma neira de pensar dos homens pelas relações sociais às quais estão integrados Proposições como essa podem servir de fundamento para aquilo que hoje chamamos de sociologia do conhecimento 7 Finalmente o último tema que está incluído no texto Marx esboça em largos traços as etapas da história humana Assim como Auguste Comte dis tinguia os momentos do processo do devenir humano segundo o modo de pen sar Marx distingue as etapas da história humana a partir dos regimes econômi cos Determina quatro regimes ou para empregar sua terminologia quatro mo dos de produção o asiático o antigo o feudal e o burguês Esses quatro modos de produção podem ser divididos em dois grupos Os modos de produção antigo feudal e burguês se sucederam na história do Ocidente Representam as três etapas da história ocidental caracterizadas por determinado tipo de relações entre os homens que trabalham O modo de pro dução antigo é caracterizado pela escravidão o modo de produção feudal pela servidão o modo de produção burguês pelo trabalho assalariado Eles consti tuem três modos distintos de exploração do homem pelo homem O modo de pro dução burguês constitui a última formação social antagônica porque ou na me dida em que o modo de produção socialista isto é a associação dos produtores não implica mais a exploração do homem pelo homem a subordinação dos tra balhadores manuais a uma classe detentora da propriedade dos meios de produ ção e do poder político Por outro lado o modo de produção asiático não parece constituir uma eta pa da história do Ocidente Na verdade os intérpretes de Marx têm discutido incansavelmente a respeito da unidade ou falta de unidade do processo histó rico Com efeito se o modo de produção asiático caracteriza uma civilização dis tinta da do Ocidente é provável que várias linhas de evolução histórica sejam possíveis segundo os grupos humanos OS FUNDADORES 137 Além disso o modo de produção asiático não parece definido pela subor dinação de escravos de servos ou assalariados a uma classe proprietária dos meios de produção mas pela subordinação de todos os trabalhadores ao Estado Se esta interpretação do modo de produção asiático é correta sua estrutura social não seria caracterizada pela luta de classes no sentido ocidental do termo mas pela exploração de toda a sociedade pelo Estado ou pela classe burocrática Percebese logo o uso que se pode dar à noção de modo de produção asiá tico Podese conceber que no caso da socialização dos meios de produção o ca pitalismo não conduza para o fim de toda a exploração mas para a difusão do modo de produção asiático através de toda a humanidade Os sociólogos que não são favoráveis à sociedade soviética comentaram extensamente estas refe rências rápidas ao modo de produção asiático Chegaram mesmo a encontrar nos escritos de Lenin certas passagens em que ele manifestava o temor de que uma revolução socialista levasse não ao fim daexploração do homem pelo homem mas à instalação do modo de produção asiático tirando daí conclusões de or dem política fáceis de adivinhar8 Essas são a meu ver as idéias diretrizes de uma interpretação econômica da história Não encontramos até aqui problemas filosóficos complicados Cabe perguntar até que ponto essa interpretação é solidária ou não com uma meta física materialista Qual o sentido exato que se deve atribuir ao termo dialéti ca No momento é suficiente limitarmonos às idéias fundamentais expostas por Marx e que contêm um certo equívoco uma vez que a determinação dos li mites precisos da infraestrutura e da superestrutura pode levar e tem levado a discussões infindáveis O capital O capital tem sido objeto de dois tipos de interpretação Segundo alguns como Schumpeter é essencialmente uma obra de econorfiia científica sem im plicações filosóficas Segundo outros como o padre Bigo por exemplo é uma espécie de análise fenomenológica ou existencial da economia e algumas pas sagens que se prestam a uma interpretação filosófica como o capítulo sobre o fetichismo das mercadorias forneceriam a chave do pensamento de Marx Sem entrar nessa controvérsia direi qual é minha interpretação pessoal Creio que Marx se considerava um economista científico à maneira dos economistas ingleses em que se baseou Com efeito ele acreditava ser herdeiro e crítico da economia política inglesa Estava convencido de ter captado o que havia de melhor naquela economia corrigindolhe os erros e ultrapassando suas limitações atribuíveis à perspectiva capitalista ou burguesa Ao analisar o valor a troca a exploração a maisvalia o lucro Marx se coloca como econo 138 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mista puro Não lhe ocorreria justificar uma proposição científica inexata ou discutível invocando uma intenção filosófica Marx levava a sério a ciência Contudo Marx não é um economista clássico por razões muito precisas que ele próprio revela e que nos permitem compreender onde se situa sua obra Marx critica os economistas clássicos por terem considerado que as leis da economia capitalista eram universalmente válidas Ora para ele cada regi me econômico tem suas próprias leis As leis econômicas clássicas não pas sam nas circunstâncias em que são verdadeiras de leis do regime capitalista Marx passa assim da idéia de uma teoria econômica universalmente válida para a idéia do caráter específico das leis de cada regime Por outro lado um regime econômico não pode ser compreendido abstrain dose sua estrutura social Existem leis econômicas características de cada regi me porque as leis econômicas constituem a expressão abstrata de relações so ciais que definem um determinado modo de produção No regime capitalista por exemplo é a estrutura social que explica o fenômeno capitalista essencial da ex ploração e que determina a autodestruição inevitável do regime capitalista O resultado é que Marx assume como objetivo explicar o modo de funcio namento do regime capitalista com base na sua estrutura social e o desenvol vimento desse regime com base no seu modo de funcionamento Em outras palavras O capital é um empreendimento grandioso e digamos num sentido estrito um empreendimento genial destinado a explicar simultaneamente o modo de funcionamento a estrutura social e a história do regime capitalista Marx é um economista que pretende ser também um sociólogo A compreen são do funcionamento do capitalismo deve permitir compreender por que os homens são explorados no regime da propriedade privada e por que esse regi me está condenado por suas próprias contradições a evoluir no sentido de uma revolução que o destruirá A análise do desenvolvimento e da história do capitalismo proporciona também uma visão da história da humanidade através dos modos de produção O capital é um livro de economia que é ao mesmo tempo uma sociologia do capitalismo e uma história filosófica da humanidade embaraçada nos seus pró prios conflitos até o fim da préhistória Uma tal tentativa é evidentemente grandiosa mas acrescento imediata mente que não creio que tenha dado certo Aliás até hoje nenhuma tentativa dessa ordem deu certo A ciência econômica ou sociológica de hoje dispõe de análises parciais válidas do modo de funcionamento do capitalismo dispõe de análises sociológicas válidas da condição dos homens ou das classes num regime capitalista dispõe de certas análises históricas que explicam a transfor mação do regime capitalista mas não existe uma teoria de conjunto que vincu le de modo necessário estrutura social modo de funcionam ento destino dos homens no regime evolução do regime E se não existe uma teoria que consi OS FUNDADORES 139 ga abraçar o conjunto talvez seja porque esse conjunto não exista e a história talvez não seja tão racional e necessária De qualquer forma compreender O capital é compreender como Marx quis analisar o funcionamento e o devenir do regime e descrever a condição dos ho mens no interior do regime O capital compreende três livros Só o primeiro foi publicado pelo próprio Marx Os livros II e III são póstumos Foram extraídos por Engels dos volumo sos manuscritos de Marx e não foram terminados As interpretações que en contramos nos livros II e III se prestam à contestação porque algumas passa gens podem parecer contraditórias Não pretendo resumir aqui o conjunto de O capital mas não me parece impossível separar os temas essenciais que são aliás aqueles que Marx considerava os mais importantes e também os que tive ram maior influência na história O primeiro desses temas é que a essência do capitalismo é antes de tudo a busca do lucro Na medida em que se baseia na propriedade privada dos ins trumentos de produção o capitalismo está fundamentado também na busca do lucro pelos empresários ou produtores Quando na sua última obra Stalin escreveu que a lei fundamental do capi talismo era a busca do lucro máximo enquanto a lei fundamental do socialis mo era a satisfação das necessidades e a elevação do nível cultural delas ele levou evidentemente o pensamento de Marx do nível do ensino superior para o nível do ensino primário mas não há dúvida de que reiterou o tema inicial da análise marxista que vamos encontrar nas primeiras páginas de O capital em que Marx opõe dois tipos de troca9 Existe um tipo de troca que vai da mercadoria à mercadoria passando ou não pelo dinheiro Possuímos um bem de que não fazemos uso trocamolo por um bem de que temos necessidade entregando o bem que possuímos àquele que o deseja Quando isso se opera de modo direto tratase de uma simples troca Mas essa troca pode ser feita de modo indireto por intermédio do dinheiro que é o equivalente universal das mercadorias A troca que vai da mercadoria à mercadoria é podese dizer troca imedia tamente inteligível imediatamente humana mas é também troca que não pro porciona lucro ou excedente Enquanto passamos da mercadoria para a merca doria mantemonos numa relação de igualdade Contudo há um segundo tipo de troca que vai do dinheiro ao dinheiro pas sando pela mercadoria com a particularidade de que no fim do processo de tro ca possuímos uma quantia em dinheiro superior àquela da fase inicial Este tipo de troca que vai do dinheiro ao dinheiro passando pela mercadoria é caracterís tico do capitalismo No capitalismo o empresário ou produtor não passa de uma mercadoria q u e é in ú til para ele para outra que lhe é útil por intermédio Hn di 140 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO nheiro a essência da troca capitalista consiste em passar do dinheiro ao dinhei ro passando pela mercadoria para ter no fim do processo mais dinheiro do que no ponto de partida Para Marx este é o tipo de troca capitalista por excelência e o mais mis terioso Como é possível adquirir pela troca o que não se possuía ou quando menos ter mais do que o que se tinha no ponto de partida O problema princi pal do capitalismo segundo Marx poderia ser assim formulado qual a origem do lucro Como é possível um regime em que o motor essencial da atividade é a busca do lucro e em que em suma produtores e comerciantes podem lucrar Marx está convencido de que tem uma resposta plenamente satisfatória pa ra essa questão Com a teoria da maisvalia ele demonstra que tudo é trocado pelo seu valor e que no entanto existe uma fonte de lucro As etapas da sua demonstração são a teoria do valor do salário e por fim a teoria da maisvalia Primeira proposição o valor de qualquer mercadoria é de modo geral pro porcional à quantidade de trabalho social médio nela contida É o que chamamos de teoria do valortrabalho Marx não pretende que a lei do valor seja rigorosamente respeitada em to da e qualquer troca O preço de uma mercadoria oscila abaixo e acima do seu valor em função do estado da oferta e da demanda Marx não só conhece essas variações como afirma claramente a sua existência Por outro lado reconhece que as mercadorias só têm valor na medida em que existe uma demanda por elas Em outros termos se houvesse trabalho cristalizado numa mercadoria mas ne nhum poder de compra fosse dirigido a ela esta mercadoria não teria mais va lor isto é a proporcionalidade entre o valor e a quantidade de trabalho pressu põe por assim dizer uma demanda normal da mercadoria considerada Isso eqüivale em suma a deixar de lado um dos fatores das variações do preço da mercadoria No entanto se supomos uma demanda normal para a mercadoria considerada existe segundo Marx uma certa proporcionalidade entre o valor dessa mercadoria expresso no preço e a quantidade de trabalho social médio cristalizado nessa mercadoria Por que é assim O argumento essencial que Marx apresenta é o de que a quantidade de trabalho é o único elemento quantificável que se descobriu na mer cadoria Se consideramos o valor de uso estamos diante de um elemento rigo rosamente qualitativo Não é possível comparar o uso de uma caneta com o de uma bicicleta Tratase de dois usos estritamente subjetivos e sob esse aspecto não podem ser comparáveis um com o outro Como procuramos saber em que consiste o valor de troca das mercadorias precisamos encontrar um elemento que seja quantificável como o próprio valor de troca E diz Marx o único valor quantificável é a quantidade de trabalho que está inserido integrado cristaliza do em cada uma delas OS FUNDADORES 141 Naturalmente existem dificuldades que Marx admite igualmente a saber as desigualdades do trabalho social O trabalho do operário não qualificado e do operário especializado não têm o mesmo valor ou a mesma capacidade criado ra de valor que o trabalho do contramestre ou do engenheiro Admitindo essas diferenças qualitativas de trabalho Marx acrescenta que para resolver a difi culdade basta reduzir esses diferentes tipos de trabalho à unidade que é o tra balho social médio Segunda proposição o valor do trabalho pode ser medido como o valor de qualquer mercadoria O salário pago pelo capitalista ao trabalhador assalaria do como contrapartida da força de trabalho que este último lhe vende eqüiva le à quantidade de trabalho social necessário para produzir mercadorias indis pensáveis à vida do trabalhador e de sua família O trabalho humano é pago pelo seu valor de acordo com a lei geral do valor aplicável a todas as mercadorias Marx apresenta essa proposição domo evidente por si mesma Ora nor malmente quando se toma uma afirmação como evidente isto significa que ela se presta à discussão Marx afirma como o operário chega ao mercado de trabalho para vender sua força de trabalho é preciso que ela seja paga pelo seu valor E Marx acres centa que o valor só pode ser nesse caso o que ele é em todos os casos isto é o valor medido pela quantidade de trabalho Porém não se trata exatamente da quantidade de trabalho necessária para produzir um trabalhador o que nos faria sair do campo das trocas sociais para ingressar no terreno das trocas biológi cas E preciso admitir que é a quantidade de trabalho que vai medir o valor da sua força de trabalho o das mercadorias de que o operário necessita para sobre viver ele e a família A dificuldade dessa proposição está em que a teoria do valortrabalho se baseia no caráter quantificável do trabalho enquanto princípio do valor e que na segunda proposição quando se trata das mercadorias necessárias para a sub sistência do operário e de sua família aparentemente deixase o terreno do quan tificável Neste último caso tratase com efeito do montante definido pelos cos tumes e pela psicologia coletiva conforme o próprio Marx reconhece Por isto Schumpeter afirmou que a segunda proposição da teoria da exploração não passa de um jogo de palavras Terceira proposição o tempo de trabalho necessário para o operário pro duzir um valor igual ao que recebe sob forma de salário é inferior à duração efetiva do seu trabalho O operário produz por exemplo em cinco horas um va lor igual ao que está contido no seu salário mas na verdade trabalha dez horas Portanto trabalha metade do tempo para si mesmo e a outra metade para o do no da empresa A maisvalia é a quantidade de valor produzido pelo trabalha dor além do tempo de trabalho necessário isto é do tempo de trabalho neces sário para produzir um valor igual ao que recebe sob a forma jde salário 142 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A parte da jornada de trabalho necessária para produzir o valor cristaliza do no salário é o chamado trabalho necessário o resto é o sobretrabalho O valor produzido durante o sobretrabalho é chamado maisvalia E a taxa de explora ção é definida pela relação entre a maisvalia e o capital variável isto é o capi tal que corresponde ao pagamento do salário Se admitirmos as duas primeiras proposições teremos de aceitar logica mente a terceira desde que o tempo de trabalho necessário para produzir o valor encarnado no salário seja inferior à duração total do trabalho Marx afirma pura e simplesmente a existência dessa diferença entre a jor nada de trabalho e o trabalho necessário Está convencido de que a jornada de trabalho do seu tempo que era de 10 horas às vezes de 12 horas era muito superior à duração do trabalho necessário isto é do trabalho necessário para criar o valor encarnado no próprio salário A partir desse ponto Marx desenvolve uma casuística da luta pela duração do trabalho Invoca um grande número de fenômenos do seu tempo em parti cular o fato de que os empresários pretendiam só ter lucro com a última ou as duas últimas horas de trabalho Sabese aliás que há um século que os empre sários protestam cada vez que se reduz a jornada de trabalho Em 1919 alega vam que com uma jornada de 8 horas não conseguiriam equilibrarse Os argu mentos dos empresários ilustravam a teoria de Marx que implica que o lucro só seja obtido na parte final da jornada de trabalho Existem dois procedimentos fundamentais para aumentar a maisvalia às custas dos assalariados isto é para elevar a taxa de exploração Um consiste em prolongar a duração do trabalho o outro em reduzir o mais possível o tra balho necessário Um dos meios de conseguir reduzir a duração do trabalho é aumentar a produtividade isto é produzir o valor igual ao do salário num tempo mais curto Isso explica o mecanismo da tendência pela qual a economia capitalista procura aumentar constantemente a produtividade do trabalho O aumento dessa produtividade do trabalho proporciona automaticamente uma redução do trabalho necessário e em conseqüência uma evolução da taxa de maisvalia se for mantido o nível dos salários nominais Compreendemse assim a origem do lucro e o modo como um sistema eco nômico em que tudo se troca de acordo com o seu valor pode ao mesmo tempo produzir maisvalia isto é lucro para os empresários Há uma mercadoria que tem esta particularidade de ser paga pelo seu valor e ao mesmo tempo produ zir mais que seu valor é o trabalho humano Uma análise desse tipo parecia a Marx puramente científica já que expli cava o lucro por um mecanismo inevitável ligado intrinsecamente ao regime capitalista Contudo esse mesmo mecanismo se prestava a denúncias e a invec tivas uma vez que se tudo se passar conforme a lei do capitalismo o operário estará sendo explorado trabalhando uma parte do seu tempo para si e outra OS FUNDADORES 143 parte do seu tempo para o capitalista Marx era um cientista mas era também um profeta Estes são num lembrete rápido os elementos essenciais da teoria da ex ploração Teoria que tem para Marx uma dupla importância Em primeiro lugar ela parece resolver uma dificuldade intrínseca da economia capitalista que po de ser formulada nos seguintes termos uma vez que nas trocas há igualdade de valores qual a origem do lucro Em segundo lugar ao resolver um enigma cien tífico Marx tem a sensação de dar um fundamento rigoroso e racional ao pro testo contra um determinado tipo de organização econômica Finalmente sua teo ria da exploração dá uma base sociológica para usar linguagem moderna às leis econômicas do funcionamento da economia capitalista Marx acredita que as leis econômicas são históricas e que cada regime tem suas próprias leis A teoria da exploração é um exemplo dessas leis históricas pois o mecanismo da maisvalia e da exploração pressupõe a distinção de clas ses na sociedade Uma classe a dos empresários ou proprietários dos meios de produção adquire a força de trabalho dos operários A relação econômica entre capitalistas e proletários é função de uma relação social de poder entre duas ca tegorias sociais A teoria da maisvalia tem uma dupla função científica e moral A conjun ção desses dois elementos deu ao marxismo uma influência incomparável Os es píritos racionais encontraram nela uma satisfação e os espíritos idealistas ou re voltados também Esses dois tipos de satisfação se multiplicavam um pelo outro Até aqui analisei apenas o primeiro livro de O capital o único publicado durante a vida de Marx Conforme notei dos dois livros seguintes ele deixou os manuscritos que foram publicados por Engels O livro II estuda a circulação do capital Deveria explicar o funcionamen to do sistema econômico capitalista considerado como um todo Em termos modernos poderíamos dizer que a partir de uma análise microeconômica da estrutura do capitalismo e do seu funcionamento contida no livro I Marx teria elaborado no livro II uma teoria macroeconômica comparável ao Tableau éco nomique de Quesnay e também uma teoria das crises cujos elementos encon tramos dispersos em vários pontos Na minha opinião não há em Marx uma teoria geral das crises É verdade que ele tentou elaborar essa teoria mas não a completou e é possível a partir das indicações dispersas do livro II reconstruir várias teorias e atribuílas a Marx A única idéia que não se presta a dúvidas é a de que segundo Marx o caráter concorrencial anárquico do mecanismo capi talista e a necessidade da circulação do capital criam uma possibilidade perma nente de hiato entre a produção e a repartição do poder de compra O que eqüi vale a dizer que é da natureza de uma economia anárquica comportar crises Qual é o esqueOW ou o mecanismo que faz com que essas crises ocorram Iilas 144 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO são regulares ou irregulares Qual a conjuntura econômica da qual brota a crise Sobre todos esses pontos encontramos em Marx indicações mas não uma teo ria acabada10 O livro III é o esboço de uma teoria do desenvolvimento histórico do regi me capitalista baseada na análise da sua estrutura e do seu funcionamento O problema central do livro III é o seguinte se considerarmos o esquema do livro I veremos que quanto mais trabalho houver numa determinada empre sa ou num determinado setor da economia mais haverá maisvalia nessa empresa ou nesse setor ou então que a porcentagem do capital variável em relação ao ca pital total é mais elevada Para Marx o capital constante é a parte do capital das empresas que corres ponde seja às máquinas seja às matériasprimas investidas na produção No es quematismo do livro I o capital constante se transfere para o valor dos produtos sem criar maisvalia A maisvalia provém toda do capital variável corresponden te ao pagamento dos salários A composição orgânica do capital é a relação entre o capital variável e o capital constante A taxa de exploração é a relação entre a maisvalia e o capital variável Se considerarmos pois essa relação abstrata característica da análise es quemática do livro I de O capital chegaremos necessariamente à conclusão de que numa empresa ou num setor determinado da economia haverá maisvalia proporcional ao capital variável a maisvalia diminuirá na medida em que a composição orgânica do capital evoluir para a redução da relação entre capital variável e capital constante Em termos concretos deveria haver uma quantida de menor de maisvalia na medida em que houvesse uma maior mecanização da empresa ou do setor Ora salta aos olhos que não é o que acontece e Marx tem perfeita cons ciência do fato de que as aparências da economia parecem contradizer as rela ções fundamentais que ele postula na sua análise esquemática Enquanto o livro III de O capital não havia sido publicado os marxistas e seus críticos se per guntavam se a teoria da exploração é válida por que razão as empresas e os setores da economia que aumentam o capital constante em relação ao capital variável conseguem maiores lucros Em outras palavras o modo aparente do lucro parece contradizer o modo essencial da maisvalia A resposta de Marx é a seguinte a taxa de lucro é calculada não com rela ção ao capital variável como a taxa de exploração mas com relação ao conjunto do capital isto é a soma do capital constante e do variável Por que motivo a taxa de lucro é proporcional não à maisvalia mas ao conjunto do capital constante e variável O capitalismo não poderia funcionar evidentemente se a taxa de lucro fosse proporcional ao capital variável Com efeito atingiríamos uma desigualdade extrema da taxa de lucro já que em dife rentes setores da economia a composição orgânica do capital isto é a relação OS FUNDADORES 145 entre capital variável e capital constante é muito diferente Portanto a taxa de lucro é efetivamente proporcional ao conjunto do capital e não ao capital variá vel pois de outra forma o regime capitalista não poderia funcionar Mas por que essa aparência do modo do lucro é diferente da realidade es sencial do modo da maisvalia Há duas respostas a esta questão a resposta ofi cial de Marx e a dos nãomarxistas ou dos antimarxistas Schumpeter por exemplo tem uma resposta muito simples a teoria da maisvalia é falsa O fato de que a aparência do lucro esteja em contradição di reta com a essência da maisvalia prova apenas que o esquematismo da mais valia não corresponde à realidade Quando se verifica que a realidade contra diz uma teoria podese evidentemente conciliar a teoria com a realidade fando intervir um certo número de hipóteses suplementares Há porém outra solu ção mais lógica que consiste em reconhecer que o esquematismo teórico foi mal construído A resposta de Marx é a seguinte o capitalismo não poderia funcionar se a taxa de lucro fosse proporcional à maisvalia e não ao conjunto do capital Há assim uma taxa de lucro média em cada economia Essa taxa de lucro média é formada pela concorrência entre as empresas e os vários setores da economia A concorrência força o lucro no sentido de uma taxa média não há proporcio nalidade da taxa de lucro com relação à maisvalia em cada empresa ou setor mas o conjunto da maisvalia constitui no conjunto da economia um montante global que se distribui entre os vários setores em proporção ao capital total constante e variável investido em cada setor É assim porque não pode ser de outro modo Se houvesse um hiato muito grande entre as taxas de lucro dos vários setores o sistema não funcionaria Se houvesse num determinado setor taxa de lucro de 30 a 40 e num outro uma taxa de 3 a 4 não se encontraria capital para investir nos setores em que a taxa de lucro fosse baixa O próprio exemplo fornece a argumentação marxista não pode ser assim portanto devese constituir pela concorrência uma taxa de lucro média que garanta ao final que a massa global da maisvalia seja repar tida entre os setores com base na importância do capital investido em cada um deles Esta teoria conduz à teoria do devenir àquilo que Marx chama de lei da tendência para a baixa da taxa de lucro O ponto de partida de Marx foi uma constatação que todos os economistas do seu tempo faziam ou pensavam fazer a saber que existe uma tendência se cular para a baixa da taxa de lucro Marx sempre desejoso de explicar aos eco nomistas ingleses até que ponto ele graças ao seu método lhes era superior pensou ter descoberto no seu esquematismo a explicação histórica da tendên cia para a baixa da taxa de lucro11 146 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO O lucro médio é proporcional ao conjunto do capital isto é ao total do ca pital constante e do capital variável A maisvalia porém deriva apenas do capi tal variável isto é do trabalho dos homens Ora a composição orgânica do ca pital se transforma com a evolução capitalista e a mecanização da produção e a parte do capital variável com relação ao capital total tende a diminuir Marx conclui daí que a taxa de lucro tende a baixar à medida que a composição orgâ nica do capital se modifica reduzindo a parte do capital variável no capital total Essa lei da tendência para a baixa da taxa de lucro proporcionava a Marx uma grande satisfação intelectual Com efeito acreditava ter demonstrado de modo cientificamente satisfatório um fato constatado pelos observadores mas não explicado ou mal explicado Além disso acreditava ter encontrado mais uma vez aquilo que seu mestre Hegel teria chamado de astúcia da razão isto é a autodestruição do capitalismo por mecanismo inexorável passando ao mes mo tempo pela ação dos homens e por cima de suas cabeças De fato a modificação da composição orgânica do capital tomase inevi tável pela concorrência e também pelo desejo dos empresários de diminuir o tempo de trabalho necessário A concorrência das empresas capitalistas aumenta a produtividade o aumento da produtividade se traduz normalmente pela me canização da produção isto é pela redução do capital variável em relação ao capital constante Em outras palavras o mecanismo da concorrência de uma eco nomia baseada no lucro tende à acumulação do capital à mecanização da pro dução à redução da parte do capital variável no capital total Esse mecanismo inexorável é ao mesmo tempo o que provoca a tendência para a baixa da taxa de lucro isto é o que toma cada vez mais difícil o funcionamento de uma eco nomia cujo eixo fundamental é a busca do lucro Encontramos uma vez mais o esquema fundamental do pensamento mar xista O de uma sociedade histórica que passa pela ação dos homens e ao mesmo tempo é superior à ação de cada um deles o de um mecanismo histórico que tende a destruir o regime pelo jogo das leis intrínsecas do seu funcionamento O centro e a originalidade do pensamento marxista estão a meu ver na conjunção de uma análise do funcionamento e de uma análise de um devenir ine vitável Cada indivíduo agindo racionalmente em função do seu interesse con tribui para destruir o interesse comum de todos ou pelo menos de todos os que estão interessados em salvaguardar o regime Essa teoria é uma espécie de inversão das proposições básicas dos liberais Para eles cada indivíduo trabalha pelo interesse da coletividade ao trabalhar pelo interesse próprio Para Marx acontece o contrário trabalhando no interes se próprio cada um contribui para o funcionamento necessário e para a destrui ção final do regime O mito é sempre o do aprendiz de feiticeiro como no Ma nifesto comunista OS FUNDADORES 147 Até aqui demonstramos que a taxa de lucro tende a baixar em função da modificação da composição orgânica do capital Contudo a partir de que taxa de lucro o capitalismo deixa de funcionar Marx não dá estritamente nenhuma resposta porque de fato nenhuma teoria racional permite fixar a taxa de lucro indispensável ao funcionamento do regime12 Em outras palavras a lei da ten dência para a baixa da taxa de lucro sugere que o funcionamento do capitalis mo deve tornarse cada vez mais difícil em função da mecanização ou da ele vação da produtividade mas não demonstra a necessidade da catástrofe final e menos ainda o momento em que ela ocorrerá Quais são as proposições que demonstram a autodestruição do regime Curiosamente as únicas proposiçõespesse sentido são as mesmas que já podía mos encontrar no Manifesto comunista e nas obras escritas por Maix antes de desenvolver seus estudos aprofundados de economia política São as afirma ções relacionadas com a proletarização e a pauperização O processo de prole tarização significa que à medida que se desenvolve o regime capitalista as ca madas intermediárias entre capitalistas e proletários serão desgastadas corroí das e um número crescente dos membros dessas camadas serão absorvidos pelo proletariado A pauperização é o processo pelo qual os proletários tendem a se tomar cada vez mais miseráveis à medida que se desenvolvem as forças da produção Se admitirmos que com o aumento da produção ocorrerá uma dimi nuição do poder aquisitivo das massas operárias será de fato provável que essas massas tendam a se revoltar Nessa hipótese o mecanismo de autodestruição do capitalismo seria sociológico passando pelo comportamento dos grupos sociais Uma outra hipótese é a de que a renda distribuída às massas populares fosse insuficiente para absorver a produção crescente havendo neste caso uma para lisia do regime pela impossibilidade de estabelecer uma igualdade entre as mer cadorias produzidas e a respectiva demanda no mercado consumidor Existem duas representações possíveis da dialética capitalista da autodes truição uma dialética econômica que é uma nova versão da contradição entre as forças de produção que crescem indefinidamente e as relações de produção que estabilizam as rendas distribuídas às massas ou então um mecanismo so ciológico que passa pelo intermediário da insatisfação crescente dos trabalha dores proletarizados e da revolta desses trabalhadores Porém como demonstrar a pauperização Por que razão no esquematismo de Marx a renda distribuída aos trabalhadores deve diminuir em termos abso lutos ou relativos em função do aumento da força produtiva Para falar a verdade não é fácil no esquema de Marx demonstrar a pau perização Com efeito de acordo com a teoria o salário é igual à quantidade de mercadorias necessárias para a vida do trabalhador e sua família Por outro lado Marx acrescenta imediatamente que o que é necessário para a vida do trabalha dor e sua fa m ília Jião é objeto de avaliação matematicamente exata mas o re 148 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO sultado de uma avaliação social que pode mudar de uma sociedade para outra Se admitirmos essa avaliação social do nível de vida considerado como míni mo devemos concluir ao contrário que o nível de vida do operário tende a me lhorar De fato é provável que cada sociedade considere como nível de vida mí nimo o que corresponda a suas possibilidades de produção É aliás o que acon tece na prática o nível de vida considerado hoje como mínimo nos Estados Unidos ou na França é muito superior ao que seria adotado há um século É claro que se trata de uma avaliação social aproximada desse mínimo mas os cálculos feitos pelos sindicatos sobre esse nível de vida mínimo têm sempre uma relação com as possibilidades da economia Se portanto o montante dos salários é função de uma avaliação coletiva do mínimo deveria ao contrário haver aumento Por outro lado segundo o próprio Marx não é impossível elevar o nível de vida dos operários sem modificar a taxa de exploração Basta para isso que a elevação da produtividade permita criar um valor igual ao salário com uma du ração menor do trabalho necessário A produtividade permite melhorar o nível de vida real dos trabalhadores no esquema marxista sem diminuir a taxa de exploração Se admitirmos a elevação da produtividade e em conseqüência a redução da duração do trabalho necessário só podemos afastar a hipótese da elevação do nível de vida real admitindo um aumento da taxa de exploração Ora segundo Marx a taxa de exploração é mais ou menos constante em diferentes períodos Em outras palavras se seguirmos o mecanismo econômico tal como Marx o analisou não veremos uma demonstração da pauperização e nossa conclusão pelo contrário coincidirá com aquilo que de fato ocorreu uma elevação do ní vel de vida real dos operários De onde é tirada então nas obras de Marx uma demonstração da paupe rização A meu ver a única demonstração passa pelo intermediário de um mecanis mo sociodemográfico o do exército industrial de reserva O que impede a ele vação dos salários é o excedente permanente de mãodeobra não empregada que pesa sobre o mercado de trabalho e modifica as relações de troca entre ca pitalistas e assalariados em detrimento dos operários Na teoria de O capital a pauperização não é um mecanismo estritamente econômico mas uma teoria econômicosociológica O elemento sociológico é a idéia que ele compartilhava com Ricardo mas que na verdade não o satis fazia de que uma vez que os salários tendem a se elevar a taxa de natalida de aumenta criando assim um excesso de mãodeobra O mecanismo propria mente econômico este sim próprio de Marx é o do desemprego tecnológico A permanente mecanização da produção tende a liberar uma parte dos operá rios empregados O exército de reserva é a própria expressão do mecanismo de OS FUNDADORES 149 realização do progresso técnicoeconômico no capitalismo É ele que pesa sobre o nível dos salários impedindoo de subir Na sua ausência seria possível inte grar no esquema marxista o fato histórico da elevação do nível de vida dos ope rários sem renunciar aos elementos essenciais da teoria Nesse caso a pergunta continuaria de pé por que a autodestruição do capi talismo é necessária Minha impressão é que ao terminar a leitura de O capital descobrimos as razões pelas quais o funcionamento do sistema capitalista é di fícil e se torna cada vez mais difícil embora esta última proposição me pare ça historicamente falsa mas não creio que O capital nos demonstre conclusi vamente a autodestruição necessária do capitalismo a não ser pela revolta das massas indignadas com a sorte que lhes é imposta Se essa sorte não suscitar uma indignação extrema como por exemplo nos Estados Unidos O capital não nos dárazões para acreditar que a condenação do regime capitalista seja inexorável Contudo os regimes conhecidos no passado eram teoricamente suscetíveis de sobreviver mas desapareceram Não tiremos conclusões precipitadas pelo fato de que a morte do capitalismo não tenha sido demonstrada por Marx Os regimes podem morrer sem que tenham sido condenados à morte pelos teóricos Os equívocos da filosofia marxista O centro do pensamento marxista é uma interpretação sociológica e histó rica do regime capitalista condenado em função das suas contradições a evo luir para a revolução e para um regime nãoantagônico É bem verdade que Marx pensava que a teoria geral da sociedade que desenvolveu a partir do estudo do capitalismo pode e deve servir para a com preensão de outros tipos de sociedade Não há dúvida contudo de que se preo cupava antes de mais nada com a interpretação da estrutura e do futuro do capi talismo Por que razão essa sociologia histórica do capitalismo comporta tantas in terpretações diferentes Por que é a tal ponto equívoca Mesmo deixando de lado as razões acidentais históricas póstumas o destino dos movimentos e das so ciedades que se dizem marxistas e as razões deste equívoco parecem ser a meu ver essencialmente três A concepção marxista da sociedade capitalista e das sociedades em geral é sociológica mas sua sociologia está vinculada a uma filosofia Muitas difi culdades de interpretação nascem das relações entre a filosofia e a sociologia relações que podem ser compreendidas de diferentes maneiras Por outro lado a sociologia marxista propriamente dita comporta interpre tações diversas de acordo com a definição mais ou menos dogmática que se dá a noções como forças de produção ou relações de produção e conforme se con 150 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO sidere que o conjunto da sociedade seja determinado ou condicionado pela in fraestrutura Os conceitos de infraestrutura e superestrutura não são claros e se prestam a especulações infindáveis Enfim as relações entre economia e sociologia levam a interpretações di versas Segundo Marx é a partir da ciência econômica que se pode compreen der a sociedade global mas as relações entre os fenômenos econômicos e o con junto social são equívocas Uma proposição me parece incontestável isto é uma proposição que todos os textos de Marx deixam clara Marx passou da filosofia para a economia polí tica através da sociologia e permaneceu filósofo até o fim da vida Sempre considerou que a história da humanidade tal como se desenrola através de su cessão de regimes e tal como ela desemboca numa sociedade não antagônica tem uma significação filosófica É através da história que o homem cria a si mesmo e a realização da história é simultaneamente um fim da filosofia Pela história a filosofia definindo o homem se realiza a si mesma O regime não antagônico póscapitalista não é apenas um tipo social entre outros é o termo da procura da humanidade por si mesma Contudo se esta significação filosófica da história é incontestável restam ainda muitas questões difíceis Classicamente explicavase o pensamento de Marx pela conjunção de três influências que o próprio Engels havia enumerado a filosofia alemã a econo mia inglesa e a ciência histórica francesa Essa enumeração de influências pare ce banal e por isso é hoje desprezada pelos intérpretes mais sutis Todavia é preciso começar pelas interpretações não sutis isto é pelo que o próprio Marx e o próprio Engels revelaram a respeito das origens do seu pensamento Segundo eles situavamse na seqüência da filosofia clássica alemã por que guardavam uma das idéias fundamentais de Hegel isto é de que a suces são das sociedades e dos regimes representa simultaneamente as etapas da filo sofia e as etapas da humanidade Por outro lado Marx estudou a economia inglesa utilizou conceitos dos economistas ingleses assumiu algumas das teorias admitidas no seu tempo por exemplo a teoria do valortrabalho ou a lei da tendência para a baixa da taxa de lucro aliás aplicada de modo diferente por outros Acreditava que servin dose dos conceitos e das teorias dos economistas ingleses poderia encontrar uma fórmula cientificamente rigorosa para a economia capitalista Finalmente tomou emprestada aos historiadores e aos socialistas franceses a noção de luta de classes que se encontrava comumente nas obras históricas do fim do século XVIII e do princípio do século XIX Marx porém de acordo com o seu próprio testemunho acrescentou um novo conceito A divisão da sociedade em classes não é um fenômeno ligado ao conjunto da história e à OS FUNDADORES 151 essência da sociedade mas corresponde a uma fase determinada Numa fase ulterior a divisão em classes poderá desaparecer13 Essas três influências foram exercidas sobre o pensamento de Marx e tra zem uma interpretação válida embora grosseira da síntese feita por Marx e Engels Mas essa análise das influências deixa em aberto a maioria das ques tões mais importantes e em particular a questão do relacionamento entre Hegel e Marx A maior dificuldade está ligada em primeiro lugar e antes de qualquer outra coisa ao fato de que a interpretação de Hegel é pelo menos tão contes tada quanto a de Marx De acordo com o sentido que se atribua ao pensamento de Hegel as duas doutrinas podem ser aproximadas ou afastadas à vontade Há um método fácil para mostrar um Marx hegeliano que consiste em apresentar um Hegel marxista Esse método é empregado com um talento que confina com a genialidade ou com a mistificação por A Kojève Na sua inter pretação Hegel é a tal ponto marxizado que a fidelidade de Marx à obra de He gel não deixa nenhuma dúvida14 Por outro lado para quem não aprecia Marx como G Gurvitch basta apre sentar Hegel de acordo com os manuais de história da filosofia como um filó sofo idealista que concebe o devenir histórico como o processo de desenvolvi mento do espírito para que Marx se tome essencialmente antihegeliano15 De qualquer forma encontramos no pensamento marxista um certo núme ro de temas incontestavelmente hegelianos tanto nas obras de juventude como nas de maturidade Na última das onze teses sobre Feuerbach Marx escreve Os filósofos ape nas interpretaram o mundo de diferentes maneiras tratase agora de transfor málo Êtudes philosophiques Paris Éd Sociales 1951 p 64 Para o autor de O capital a filosofia clássica que levou ao sistema de Hegel chegou ao seu fim Não seria possível avançar mais porque Hegel refletiu so bre o todo histórico e o todo da humanidade A filosofia completou sua tarefa que consiste em levar à consciência explícita as experiências da humanidade Essa tomada de consciência das experiências da humanidade está formulada na Fenomenologia do espírito e na Enciclopédia16 O homem porém depois de tomar consciência da sua vocação não realizou essa vocação A filosofia é total enquanto tomada de consciência mas o mundo real não se ajusta ao sentido que a filosofia atribui à existência do homem O problema filosóficohistórico origi nal do pensamento marxista será portanto o de saber em que condições o curso da história pode realizar a vocação do homem tal como a concebeu a filosofia hegeliana A incontestável herança filosófica de Marx é a convicção de que o deve nir histórico tem uma significação filosófica Um novo regime econômico e so cial não é apenas MBia peripécia que será oferecida posteriormente àcurioEÚijute 152 ÀS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO desprendida dos historiadores profissionais mas uma etapa do devenir da hu manidade O que é então essa natureza humana essa vocação do homem que a his tória deve realizar para que a própria filosofia se realize Encontraremos nas obras de juventude de Marx várias respostas a esta questão todas giram em tomo de alguns conceitos como a universalidade a totalidade conceitos positivos ou ao contrário a alienação um conceito negativo O indivíduo tal como aparece na Filosofia do direito de Hegel17 e nas so ciedades do seu tempo tem com efeito uma situação dupla e contraditória De um lado como cidadão o indivíduo participa do Estado isto é da universalida de Mas no empíreo da democracia formal ele só é cidadão uma vez a cada qua tro ou cinco anos e esgota sua cidadania ao votar Fora dessa atividade única com a qual realiza sua universalidade o indivíduo pertence ao que conhecemos segundo a terminologia de Hegel como a bürgerliche Gesellschaft a sociedade civil isto é ao conjunto das atividades profissionais Ora enquanto membro da sociedade civil ele está encerrado nas suas particularidades e não se comunica com o conjunto da comunidade É um trabalhador às ordens de um empresário ou então um empresário separado da organização coletiva A sociedade civil impede os indivíduos de realizar sua vocação de universalidade Para que essa contradição seja superada é preciso que os indivíduos no seu trabalho possam participar da universalidade da mesma maneira como dela par ticipam com sua atividade de cidadãos O que significam essas fórmulas abstratas A democracia formal que se define pela eleição dos representantes do povo pelo sufrágio universal e pelas liberdades abstratas do voto e do debate não toca as condições de trabalho e de vida dos membros da coletividade O trabalhador que vende sua força de tra balho no mercado em troca de um salário não é como o cidadão que a cada qua tro ou cinco anos elege seus representantes e direta ou indiretamente seus go vernantes Para que se realizasse a democracia real seria necessário que as liber dades limitadas à ordem política nas sociedades atuais fossem transpostas para o campo da existência concreta econômica dos homens Contudo para que os indivíduos no trabalho pudessem participar da univer salidade como os cidadãos com seu voto para que se pudesse realizar a demo cracia real seria necessário suprimir a propriedade privada dos meios de produ ção que põe alguns indivíduos a serviço de outros provoca a exploração dos tra balhadores pelos empresários e interdita a estes últimos o trabalho direto para a coletividade já que no sistema capitalista eles trabalham visando ao lucro Uma primeira análise que vamos encontrar na Crítica da filosofia do di reito de Hegel gira em torno da oposição entre o particular e o universal a so ciedade civil e o Estado a escravidão do trabalhador e a liberdade fictícia do OS FUNDADORES 153 eleitor e do cidadão18 Esse texto constitui a origem de uma das oposições clás sicas do pensamento marxista entre democracia formal e democracia real mos tra também uma certa forma de aproximação entre a inspiração filosófica e a crítica sociológica A inspiração filosófica se manifesta na rejeição de uma universalidade do indivíduo limitada à ordem política e se transpõe facilmente para uma análise sociológica Em linguagem comum a idéia de Marx é a seguinte o que signi fica o direito de votar a cada quatro ou cinco anos para os indivíduos que não têm outro meio de subsistência a não ser os salários que recebem dos patrões em condições que estes estabelecem O segundo conceito em torno do qual gira o pensamento de juventude de Marx é o do homem total provavelmente ainda mais equívoco do que o do ho mem universalizado O homem total é o que não é mutilado pela divisão do trabalho Para Marx e a maioria dos observadores o homem da sociedade industrial moderna é com efeito um homem especializado Adquiriu uma formação específica para exer cer uma profissão particular Permanece encerrado a maior parte de sua vida nessa atividade setorial deixando de utilizar muitas aptidões e faculdades que poderiam se desenvolver Nessa linha o homem total seria aquele que não fosse especializado Al guns textos de Marx sugerem uma formação politécnica em que todos os indiví duos fossem preparados para o maior número possível de profissões Com tal formação não estariam condenados a fazer a mesma coisa de manhã à noite19 Se o significado do homem total é o homem não amputado de algumas das suas aptidões pelas exigências da divisão do trabalho esta noção é um protes to contra as condições impostas aos indivíduos pela sociedade industrial protesto ao mesmo tempo inteligível e simpático Efetivamente a divisão do trabalho tem como resultado fazer com que a maioria dos indivíduos não realizem tudo aquilo de que são capazes Mas esse protesto um tanto romântico não me parece ade quado ao espírito de um socialismo científico É difícil conceber a não ser nu ma sociedade extraordinariamente rica em que o problema da pobreza tivesse sido resolvido definitivamente como uma sociedade capitalista ou nãocapita lista poderia formar todos os seus membros em todas as profissões é difícil imaginar como funcionaria uma sociedade industrial em que os indivíduos não fos sem especializados no seu trabalho Procurouse assim em outra direção um outro tipo de interpretação menos romântica O homem total não seria o homem capaz de fazer tudo mas aquele que realiza autenticamente sua humanidade que exerce as atividades que defi nem o homem Nesse caso a noção de trabalho se torna essencial O homem é concebido essencialmente como um ser que trabalha Se trabalha em condições desuma 154 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO nas é desumanizado porque deixa de cumprir a atividade que constitui sua hu manidade em condições adequadas Encontramos efetivamente nas obras de juventude de Marx em particular no Manuscrito econômicofilosófico de 1844 uma crítica das condições capitalistas do trabalho20 Voltamos a encontrar aqui o conceito de alienação que está hoje no centro da maior parte das interpretações de Marx No capitalismo o homem é alienado Para que o homem possa se realizar é preciso que supere essa alienação Marx usa três termos diferentes que são traduzidos muitas vezes pela mes ma palavra alienação embora as palavras alemãs não tenham exatamente o mesmo sentido São elas Entàusserung Veràusserung e Entfremdung O termo que corresponde aproximadamente à palavra alienação é o último que etimo logicamente significa tornarse estranho a si mesmo A idéia é que em certas circunstâncias ou em certas sociedades as condições impostas ao homem são tais que este se toma um estranho para si mesmo isto é não se reconhece mais na sua atividade e nas suas obras O conceito de alienação deriva evidentemente da filosofia hegeliana em que tem um papel primordial Mas a alienação hegeliana é concebida no plano filosó fico ou metafísico Na concepção de Hegel o espírito der Geist se aliena nas suas obras constrói edifícios intelectuais e sociais e se projeta fora de si mesmo A his tória do espírito a história da humanidade é a história das alienações sucessivas ao fim das quais o espírito voltará a ser o possuidor do conjunto das suas obras e do seu passado histórico com a consciência de possuir esse conjunto No marxis mo inclusive nas obras marxistas de juventude o processo de alienação em vez de ser um processo filosófica ou metafisicamente inevitável tomase a expressão de um processo sociológico pelo qual os homens ou as sociedades edificam organiza ções coletivas nas quais se perdem21 Interpretada sociologicamente a alienação é uma crítica ao mesmo tempo histórica moral e sociológica da ordem social da época No regime capitalista os homens são alienados eles mesmos se perderam na coletividade e a raiz de todas as alienações é a alienação econômica Há duas modalidades de alienação econômica que correspondem aproxi madamente a duas críticas de Marx ao sistema capitalista A primeira alienação é imputável à propriedade privada dos meios de produção a segunda à anar quia do mercado A alienação imputável à propriedade privada dos meios de produção se manifesta no fato de que o trabalho atividade essencialmente humana que de fine a humanidade do homem perde suas características humanas já que passa a ser para os assalariados nada mais do que um meio de existência Em vez de o trabalho ser a expressão do próprio homem o trabalho se vê degradado em instrumento em meio de viver OS FUNDADORES 155 Os empresários também são alienados pois a finalidade das mercadorias de que dispõem não é atender a necessidades realmente sentidas pelos outros mas são levadas ao mercado para obter lucro O empresário se toma escravo de um mercado imprevisível sujeito aos azares da concorrência Explora os assa lariados mas nem por isso ele é humanizado no seu trabalho pelo contrário alienase em benefício de um mecanismo anônimo Qualquer que seja a interpretação exata que se dê a essa alienação econô mica pareceme que a idéia central é bastante clara A critica da realidade eco nômica do capitalismo no pensamento de Marx era na sua origem uma crítica filosófica e moral antes de se tornar uma análise rigorosamente sociológica e econômica Assim é possível expor o pensamento de Marx como o de um puro eco nomista e sociólogo porque no fim da sua vida ele queria ser um cientista econo mista e sociólogo contudo Marx chegou à crítica econômicosocial tomando como ponto de partida temas filosóficos Esses temas filosóficos a universali zação do indivíduo o homem total a alienação animam e orientam a análise sociológica das suas obras da maturidade Em que medida a análise sociológica da maturidade de Marx não passa do desenvolvimento das intuições filosóficas da sua juventude Ou então em que medida ela é ao contrário a substituição total dessas intuições filosóficas Colocase aí um problema de interpretação que ainda não foi totalmente resolvido Certamente durante toda a sua vida Marx conservou esses temas filosó ficos num segundo plano Para ele a análise da economia capitalista era a aná lise da alienação dos indivíduos e das coletividades que perdiam o controle da sua própria existência num sistema sujeito a leis autônomas A crítica da eco nomia capitalista era também a crítica filosófica e moral da situação imposta ao homem pelo capitalismo Sobre este ponto estou de acordo com a interpre tação corrente a despeito da opinião de Althusser Por outro lado certamente a análise do devenir do capitalismo era para Marx a análise do devenir do homem e da natureza humana através da história Esperava da sociedade póscapitalista a realização da filosofia Qual seria no entanto esse homem total que a revolução póscapitalista deveria realizar Sobre isso podese discutir porque no fundo havia em Marx uma oscilação entre dois temas até certo ponto contraditórios De acordo com o primeiro deles o homem realiza sua humanidade no trabalho e é a liberação do trabalho que marcará a humanização da sociedade Mas em vários lugares aparece uma outra concepção segundo a qual o homem só é verdadeiramente livre fora do trabalho Nesta segunda concepção o homem só realiza sua huma nidade na medida em que reduz suficientemente a duração da jornada de traba lho a fim de jt possa fazer outras coisas além do trabalhoíL 156 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Podemse naturalmente combinar os dois temas dizendo que a humanização completa da sociedade pressuporia antes de mais nada que as condições im postas ao homem no seu trabalho fossem humanizadas e que simultaneamen te a duração do trabalho diminuísse o bastante para que o lazer lhe permitisse a leitura de Platão por exemplo Filosoficamente resta contudo uma dificuldade qual é a atividade essencial que define o próprio homem e que deve se desenvolver para que a sociedade per mita a realização da filosofia Se não se determina qual é a atividade essencial mente humana correse o risco de adotar a concepção do homem total na sua acepção mais vaga E preciso que a sociedade permita a todos os homens realizar todas as suas aptidões Essa proposição representa uma boa definição do ideal da sociedade mas não é fácil traduzila num programa concreto e preciso Por outro lado é difícil imputar exclusivamente à propriedade privada dos meios de produ ção o fato de todos os homens não realizarem todas as suas aptidões Em outras palavras parece haver uma desproporção extrema entre a alie nação humana atribuível à propriedade privada dos meios de produção e a rea lização do homem total que deve resultar da revolução Como se pode conciliar a crítica da sociedade atual com a esperança de realização do homem total pela simples substituição de um modo de propriedade por outro Aqui aparecem a grandeza e o equívoco da sociologia marxista Pretende ser uma filosofia Ela é essencialmente uma sociologia Mas além ou aquém dessas idéias restam ainda muitos pontos obscuros ou equívocos que explicam a variedade das interpretações dadas ao pensamen to de Marx Um desses equívocos de ordem filosófica está relacionado com a nature za da lei histórica A interpretação histórica de Marx pressupõe um devenir in teligível de ordem supraindividual Formas e relações de produção estão em relação dialética Por meio da luta de classes e da contradição entre formas e re lações de produção o capitalismo destrói a si mesmo Ora essa visão geral da história pode ser interpretada de duas maneiras diferentes De acordo com uma interpretação que chamarei de objetivista esta repre sentação das contradições históricas que levam à destruição do capitalismo e ao surgimento de uma sociedade nãoantagonista corresponderia ao que chama mos vulgarmente de grandes linhas da história Da confusão dos fatos históri cos Marx extrai os dados essenciais o que é mais importante no próprio deve nir histórico sem que o detalhe dos acontecimentos seja incluído nessa visão Admitindo essa interpretação a destruição do capitalismo e o advento de uma sociedade nãoantagônica seriam fatos certos e conhecidos previamente mas indeterminados quanto à sua data e à modalidade OS FUNDADORES 157 As previsões do tipo o capitalismo será destruído pelas suas contradi ções mas não se sabe quando ou como não são satisfatórias A previsão de um acontecimento sem data e nãoespecificado não significa grande coisa pelo menos uma lei histórica dessa ordem não se parece absolutamente com as leis das ciências naturais Essa é uma das interpretações possíveis do pensamento de Marx e é a in terpretação hoje admitida como ortodoxa no mundo soviético Afirmase a des truição necessária do capitalismo e sua substituição por uma sociedade mais progressiva isto é pela sociedade soviética reconhecendose simultaneamen te que a data desse acontecimento inevitável ainda não é conhecida e que a forma dessa catástrofe previsível é indeterminada Indeterminação que no plano dos acontecimentos políticos representa uma grande vantagem já que permite proclamar com toda segurança que a coexistência é possível Para o regime soviético não é necessário destruir o regime capitalista uma vez que ele próprio de qualquer modo se destruirá23 Há outra interpretação que chamaremos de dialética não no sentido vulgar do termo mas num sentido sutil Nesse caso a visão marxista da história nas ceria de uma forma de reciprocidade de ação entre por um lado o mundo his tórico e a consciência que pensa esse mundo e por outro entre os diferentes setores da realidade histórica Essa dupla reciprocidade de ação permitiria evi tar o que há de pouco satisfatório na representação das grandes linhas da histó ria De fato se tomarmos dialética a interpretação do movimento histórico não estaremos mais obrigados a abandonar os detalhes dos acontecimentos e pode remos compreender os acontecimentos tais como se realizaram em seu caráter concreto Assim JeanPaul Sartre ou Maurice MerleauPonty conservam certas idéias essenciais do pensamento marxista a alienação do homem na e pela economia privada a ação predominante das forças e das relações de produção Contudo para ambos esses conceitos não visam à identificação das leis históricas na acepção científica do termo ou das grandes linhas do devenir São instrumen tos necessários para tornar inteligível a situação do homem no regime capita lista ou para relacionar os acontecimentos com a situação do homem no seio do capitalismo sem que se possa falar propriamente de determinismo Uma visão dialética desse tipo de que há diversas versões entre os existen cialistas franceses e em toda a escola marxista ligada a Lukács é filosofica mente mais satisfatória embora comporte também algumas dificuldades24 A dificuldade essencial consiste em localizar as duas idéias fundamentais do marxismo simples a saber a alienação do homem no capitalismo e o adven to de uma sociedade nãoantagônica depois da autodestruição do capitalismo Uma interpretação dialética postulando a ação recíproca entre sujeito e objeto entre vários setores da realidade não leva necessariamente a essas duas propo 158 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO sições essenciais Deixa sem resposta a questão sobre como determinar a inter pretação global total e verdadeira Se todo sujeito histórico pensa a história em função da sua situação por que a interpretação dos marxistas ou do proletaria do é verdadeira Por que é total A visão objetivista que invoca as leis da história comporta a dificuldade essencial de declarar inevitável um acontecimento nãodatado e nãoprecisado a interpretação dialética não explica a necessidade da revolução nem o caráter nãoantagônico da sociedade póscapitalista nem o caráter total da interpreta ção histórica Um segundo equívoco se relaciona com a natureza do que poderíamos cha mar de imperativo revolucionário O pensamento de Marx pretende ser cientí fico Contudo parece implicar imperativos já que ordena a ação revolucioná ria como a única conseqüência legítima da análise histórica Como no caso anterior há duas interpretações possíveis que podemos resumir com a fórmu la Kant ou Hegel O pensamento marxista deve ser interpretado no quadro do dualismo kantiano do fato e do valor da lei científica e do imperativo moral ou no quadro da tradição hegeliana Na história póstuma do marxismo encontramos aliás duas escolas uma kantiana a outra hegeliana esta última mais numerosa do que a primeira A es cola kantiana do marxismo é representada pelo socialdemocrata alemão Mehring e pelo austromarxista Max Adler mais kantiano do que hegeliano porém kan tiano de estilo muito particular25 Os kantianos dizem não se passa do fato para o valor do julgamento sobre o real para o imperativo moral portanto não se pode justificar o socialismo pela interpretação da história tal como ela se de senrola Marx analisou o capitalismo tal como ele é desejar o socialismo diz respeito a uma decisão de ordem espiritual Contudo a maioria dos intérpretes de Marx preferiu permanecer na tradição do monismo O sujeito que com preende a história está engajado na própria história O socialismo ou a socie dade nãoantagônica deve surgir necessariamente da sociedade antagônica atual porque o intérprete da história é levado por uma dialética necessária da cons tatação daquilo que é a querer uma sociedade de outro tipo Certos intérpretes como L Goldman vão mais longe e afirmam que na história não há observação desinteressada A visão da história global traz con sigo um engajamento É em virtude de querer o socialismo que se percebe o caráter contraditório do capitalismo É impossível dissociar tomada de posição em relação à realidade e observação da realidade Não que essa tomada de posi ção seja arbitrária e resulte de uma decisão nãojustificada mas segundo a dia lética do objeto e do sujeito é da realidade histórica que cada um de nós tira os quadros do nosso pensamento os conceitos com que a interpretamos A inter pretação nasce do contato do objeto um objeto que não é reconhecido passiva OS FUNDADORES 159 mente mas é ao mesmo tempo reconhecido e negado a negação do objeto é a expressão do querer um regime diferente26 Existem portanto duas tendências uma que tende a dissociar a interpreta ção da história cientificamente válida da decisão pela qual se adere ao socialis mo outra que pelo contrário une a interpretação da história à vontade política Mas qual era o pensamento de Marx sobre este ponto Enquanto homem Marx era ao mesmo tempo cientista e profeta sociólogo e revolucionário Se al guém lhe tivesse perguntado se é possível separar essas duas coisas creio que teria respondido que em abstrato elas eram de fato separáveis De fato seu propósito científico era forte demais para que admitisse que sua interpretação do capitalismo fosse solidária com uma decisão moral Não obstante estava a tal ponto convencido da indignidade do regime capitalista que a análise do real lhe sugeria irresistivelmente a vontade revolucionária Além destas duas alternativas a da visão objetiva das grandes linhas da his tória e a da interpretação dialética Kant ou Hegel há uma conciliação possí vel que é hoje considerada a filosofia oficial do sovietismo a filosofia objeti vista dialética tal como Engels a formulou no AntiDühring e Stalin resumiu no Materialismo dialético e materialismo histórico11 As teses essenciais desse materialismo dialético são as seguintes 1 O pensamento dialético afirma que a lei do real é a lei da transforma ção Existe uma transformação incessante tanto na natureza inorgânica como no universo do homem Não há um princípio eterno as concepções humanas e morais se transformam de época para época 2 O mundo real comporta uma progressão qualitativa que vai da natureza inorgânica até o mundo humano e no mundo humano dos regimes sociais pri mitivos até o regime que marcará o fim da préhistória isto é o socialismo 3 Essas mudanças se operam de acordo com determinadas leis abstratas As mudanças quantitativas a partir de um certo ponto se tornam mudanças qua litativas As transformações não se realizam insensivelmente gradualmente mas por meio de uma mudança brutal revolucionária Engels dá um exemplo a água é líquida se abaixarmos a temperatura até um certo ponto o líquido se torna sólido Num dado momento a mudança quantitativa passa a ser uma mudança qualitativa Finalmente essas transformações parecem obedecer a uma lei inte ligível a lei da contradição e da negação da negação Um exemplo dado por Engels permite compreender em que consiste a ne gação da negação se negamos A temos menos A multiplicando menos A por menos A temos A2 que é a negação da negação O mesmo acontece no univer so humano o regime capitalista é a negação do regime de propriedade feudal a propriedade pública do socialismo será a negação da negação isto é a nega ção da propriedade privada 160 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Em outras palavras uma das características dos movimentos tanto cósmi cos como humanos seria o fato de as transformações estarem em relação contra ditória umas com as outras Essa contradição teria a seguinte forma no mo mento B haveria contradição com o que era no momento A e o momento C seria contradição do que era no momento B representando de certo modo o retorno ao estado inicial do momento A mas num plano superior Assim o con junto da história é a negação da propriedade coletiva inicial das sociedades indiferenciadas e arcaicas o socialismo nega as classes sociais e os antagonis mos para retornar à propriedade coletiva das sociedades primitivas porém num plano superior Essas leis dialéticas não satisfizeram plenamente todos os intérpretes de Marx Já se discutiu muito para saber se Marx aprovava a filosofia materialis ta de Engels Além do problema histórico a questão principal consiste em saber em que medida a noção de dialética se aplica à natureza orgânica ou inorgâni ca como ao mundo humano Na noção de dialética há a idéia de mudança e o conceito da relatividade das idéias ou dos princípios circunstanciais Mas há também as duas idéias da totalidade e da significação Para que haja interpretação dialética da história é necessário que o conjunto dos elementos de uma sociedade ou de uma época constitua um todo e que a passagem de uma dessas totalidades para outra seja inteligível Essas duas exigências de totalidade e de inteligibilidade da suces são parecem estar associadas ao mundo humano Compreendese que no mundo histórico as sociedades constituam unidades totais porque efetivamente as di ferentes atividades das coletividades estão ligadas entre si Os diferentes setores de uma realidade social podem ser explicados a partir de um elemento consi derado essencial por exemplo as forças e as relações de produção Porém será possível encontrar na natureza orgânica e sobretudo na inorgânica o equiva lente das totalidades e da significação das sucessões Na verdade essa filosofia dialética do mundo material não é indispensá vel para admitir a análise marxista do capitalismo ou para ser revolucionário E possível duvidar de que A X A A2 seja um bom exemplo de dialética e no entanto ser um excelente socialista O vínculo entre a filosofia dialética da natureza conforme foi exposta por Engels e a essência do pensamento marxis ta não é evidente nem necessário Historicamente uma determinada ortodoxia pode por certo combinar es sas diferentes proposições porém lógica e filosoficamente a interpretação eco nômica da história e a crítica do capitalismo a partir da luta de classes nada têm a ver com a dialética da natureza De modo mais geral a vinculação entre a fi losofia marxista do capitalismo e o materialismo metafísico não me parece nem logicamente e nem filosoficamente necessária OS FUNDADORES 161 Na verdade porém muitos marxistas que tiveram atividade política acre ditavam que para ser um bom revolucionário era preciso ser materialista no sentido filosófico do termo Como esses homens eram muito competentes em matéria de revolução quando não em matéria filosófica é de crer que tivessem boas razões Lenin em particular escreveu um livro Materialismo e empirio criticismo para demonstrar que os marxistas que abandonavam uma filosofia materialista se afastavam também da via real que leva à revolução28 Logica mente é possível ser discípulo de Marx em economia política e não ser mate rialista no sentido metafísico do termo29 Historicamente porém estabeleceu se uma espécie de síntese entre uma filosofia de tipo materialista e uma visão histórica Os equívocos da sociologia marxista Mesmo se abstrairmos sua base filosófica veremos que a sociologia mar xista comporta alguns equívocos A concepção do capitalismo e da história de Marx está associada à combi nação dos conceitos de forças de produção relações de produção luta de clas ses consciência de classe infraestrutura e superestrutura É possível utilizar esses conceitos em qualquer análise sociológica Pes soalmente quando procuro analisar uma sociedade como a soviética ou a norte americana gosto de tomar como ponto de partida o estado da sua economia ou mesmo o estado das suas forças de produção para chegar às relações de produ ção e em seguida às relações sociais O emprego crítico e metodológico des sas noções para compreender e explicar uma sociedade moderna e talvez até mesmo qualquer sociedade histórica é perfeitamente legítimo Contudo se nos limitarmos a utilizar dessa forma esses conceitos não en contraremos uma filosofia da história Podemos descobrir por exemplo que a um mesmo grau de desenvolvimento das forças produtivas correspondem dife rentes relações de produção A propriedade privada não exclui um grande de senvolvimento das forças produtivas por outro lado já pode haver proprieda de coletiva com um desenvolvimento mínimo das forças de produção Em outras palavras o emprego crítico das categorias marxistas não implica uma interpre tação dogmática do curso da história Ora o marxismo pressupõe uma espécie de paralelismo entre o desenvol vimento das forças produtivas a transformação das relações de produção a in tensificação da luta de classes e a marcha para a revolução Na sua versão dog mática implica que o fator decisivo sejam as forças de produção que o desenvol vimento destas marque o sentido da história humana e que às diferentes fases do desenvolvim ento das forças de produção correspondam etapas determinadas 162 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO das relações de produção e da luta de classes Se no regime capitalista a luta de classes se atenuar com o desenvolvimento das forças de produção ou ainda se houver propriedade coletiva numa economia pouco desenvolvida o parale lismo entre esses movimentos que é indispensável para a filosofia dogmática da história é rompido Marx quer compreender o conjunto das sociedades a partir da sua infra estrutura isto é ao que parece do estado das forças produtivas dos conheci mentos científicos e técnicos da indústria e da organização do trabalho Essa compreensão das sociedades sobretudo das sociedades modernas a partir da sua organização econômica é perfeitamente legítima e do ponto de vista meto dológico talvez seja a melhor No entanto para passar dessa análise a uma interpretação do movimento histórico é preciso admitir relações determinadas entre os diferentes setores da realidade Os intérpretes consideraram que efetivamente era difícil usar termos mui to precisos como o de determinação para explicar as relações entre as forças ou relações de produção e o estado da consciência social Como o termo cau salidade ou determinação pareceu por demais rígido ou no vocabulário da escola como mecanicista e nãodialético passouse a usar o termo condiciona mento em lugar de determinação A fórmula é por certo preferível mas é vaga demais Numa sociedade qualquer setor condiciona os outros Se tivéssemos outro regime político provavelmente teríamos outra organização econômica Se tivéssemos outra economia provavelmente teríamos um regime político que não seria o da V República O termo determinação é excessivamente rígido condicionamento corre o risco de ser flexível demais e de tal modo incontestável que o alcance da fór mula tornase duvidoso Seria necessário encontrar uma fórmula intermediária entre a determina ção do conjunto da sociedade pela infraestrutura proposição refutável e o condicionamento que não tem muita significação Como sempre acontece nes ses casos a solução miraculosa é a solução dialética passase a falar em con dicionamento dialético e temse a impressão de que o problema foi resolvido Mesmo admitindo que a sociologia marxista consista numa análise dialé tica das relações entre as forças produtivas materiais os modos de produção 08 quadros sociais e a consciência dos homens é preciso num momento determi nado chegar à idéia essencial isto é a determinação do todo social A meu ver o pensamento de Marx não comporta dúvida Acreditava que um regime histó rico era definido por certas características principais o estado das forças pro dutivas a forma da propriedade e as relações dos trabalhadores entre si Os diferentes tipos sociais são caracterizados por um certo modo de relações entre os trabalhadores associados A escravidão foi um tipo social o trabalho assala riado é um outro tipo A partir daí pode haver relações efetivamente flexíveis OS FUNDADORES 163 e dialéticas entre os diferentes setores da realidade mas o essencial é a defini ção de um regime social a partir de um pequeno número de fatos considerados como decisivos A dificuldade está em que esses diferentes fatos que para Marx são deci sivos e estão ligados entre si aparecem hoje separáveis porque a história os separou A visão coerente de Marx é a de um desenvolvimento das forças produtivas que torna cada vez mais difícil manter as relações de produção capitalista e o funcionamento dos mecanismos desse regime tornando a luta de classes cada vez mais impiedosa Na verdade porém o desenvolvimento das forças produtivas se fez em al guns casos com a propriedade privada em outros com a propriedade pública A revolução não ocorreu onde as forças produtivas tinham atingido o maior desenvolvimento Os fatos a partir dos quais Marx encontra a totalidade social e histórica foram dissociados pela história O problema teórico provocado por tal dissociação pode ter duas soluções a interpretação flexível crítica mantida por uma metodologia de interpretação sociológica e histórica aceitável para todos e a interpretação dogmática que mantém o esquema do devenir histórico con cebido por Marx numa situação que sob certos aspectos é totalmente diferen te Esta segunda interpretação é hoje considerada ortodoxa Ela anuncia o fim da sociedade ocidental com base no esquema da contradição intrínseca e da autodestruição do regime capitalista Cabe perguntar contudo se esta visão dog mática corresponde à sociologia de Marx Outro equívoco da sociologia marxista tem a ver com a análise e a discus são dos conceitos essenciais notadamente os de infraestrutura e superestrutu ra Quais são os elementos da realidade social que pertencem à infraestrutura Quais os que pertencem à superestrutura De modo geral parece que devemos chamar de infraestrutura a economia em particular as forças de produção isto é o conjunto do equipamento técnico de uma sociedade e também a organização do trabalho Mas o equipamento téc nico de uma civilização é inseparável dos conhecimentos científicos Ora estes parecem pertencer ao domínio das idéias ou do saber e estes últimos deveriam estar ligados ao que parece à superestrutura pelo menos na medida em que o saber científico está em muitas sociedades intimamente ligado aos modos de pensar e à filosofia Em outras palavras na infraestrutura definida como força de produção já entram elementos que deveriam pertencer à superestrutura Este fato por si mes mo não implica que não se possa analisar uma sociedade considerando suces sivamente a infraestrutura e a superestrutura Contudo esses exemplos muito simples mostram a dificuldade de separar realmente o que pertence segundo a definição a um o s outra 164 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Por outro lado as forças de produção dependem como o instrumental téc nico da organização do trabalho comum que por sua vez depende das leis de propriedade Estas últimas pertencem ao domínio jurídico Ora pelo menos de acordo com certos textos o direito é parte da realidade do Estado30 e o Estado pertence à superestrutura Vêse aí outra vez a dificuldade de separar realmen te o que é infraestrutura e o que é superestrutura O debate sobre o que pertence a uma e à outra pode ser prolongado inde finidamente Na qualidade de simples instrumentos de análise esses dois conceitos podem ter uma utilização legítima A objeção que se levanta só atinge a inter pretação dogmática segundo a qual um dos dois termos determinaria o outro De modo comparável não é fácil precisar a contradição existente entre as forças e as relações de produção Segundo uma das versões mais simples desta dialética que tem um papel importante no pensamento de Marx e dos marxis tas num certo grau de desenvolvimento das forças de produção o direito indi vidual de propriedade representaria um entrave no progresso das forças de pro dução Nesse caso a contradição estaria na relação entre o desenvolvimento da técnica de produção e a manutenção do direito individual de propriedade A meu ver essa contradição implica uma parte de verdade mas não se coa duna com as interpretações dogmáticas Se considerarmos as grandes empresas modernas na França Citroen Renault Péchiney e nos Estados Unidos Dupont de Nemours ou General Motors podese dizer que de fato a amplitude das for j ças de produção tomou inviável a manutenção do direito individual de proprie dade As usinas da Renault não pertencem a ninguém uma vez que pertencem ao Estado não que o Estado não seja ninguém mas a propriedade do Estado é i abstrata e por assim dizer fictícia Péchiney não pertence a ninguém antes j mesmo que se distribuam as ações aos operários porque pertence a milhares de I acionistas que embora sejam proprietários no sentido jurídico do termo não exercem mais o direito tradicional e individual da propriedade Da mesma forma j a Dupont de Nemours ou a General Motors pertencem a centenas de milhares j de acionistas que mantêm a ficção jurídica da propriedade mas não têm seiusj privilégios autênticos O próprio Marx aliás fez alusão em O capital às grandes sociedades por ações para constatar que a propriedade individual estava em vias de desaparei cimento e concluir que o capitalismo típico estava se transformando31 Podese dizer portanto que Marx tinha razão quando mostrava a contradi ção existente entre o desenvolvimento das forças de produção e o direito indi vidual de propriedade já que no capitalismo moderno das grandes sociedades por ações o direito de propriedade de certo modo desapareceu OS FUNDADORES 165 Por outro lado se considerarmos que essas grandes sociedades são a pró pria essência do capitalismo poderemos mostrar com igual facilidade que o desenvolvimento das forças produtivas não elimina absolutamente o direito de propriedade e que a contradição teórica entre forças e relações de produção não existe O desenvolvimento das forças de produção exige o aparecimento de novas formas de relações de produção que podem porém não ser contraditó rias com respeito ao direito tradicional de propriedade De acordo com uma segunda interpretação da contradição entre as forças e as relações de produção a distribuição da renda determinada pelo direito in dividual de propriedade é tal que uma sociedade capitalista é incapaz de absor ver sua própria produção Neste caso a contradição entre forças e relações de produção tem a ver com o próprio funcionamento da economia capitalista O po der de compra distribuído às massas populares seria sempre inferior às neces sidades da economia Essa versão continua a ter curso depois de um século e meio Nesse perío do em todos os países capitalistas as forças de produção se desenvolveram pro digiosamente A incapacidade de uma economia baseada na propriedade privada de absorver sua própria produção já era denunciada quando a capacidade produ tiva era apenas uma quinta ou décima parte da de hoje Provavelmente a denún cia continuará a ser feita quando a capacidade de produção for cinco ou seis vezes maior do que ela é hoje A contradição não parece portanto evidente Em outras palavras as duas versões da contradição entre forças e relações de produção não estão demonstradas nem uma nem outra A única versão que comporta manifestamente uma parte da verdade é a que não leva às proposi ções política e messiânica às quais os marxistas se apegam mais A sociologia de Marx é uma sociologia da luta de classes Algumas das suas proposições são fundamentais A sociedade atual é uma sociedade antagô nica As classes são os principais atores do drama histórico do capitalismo em particular e da história em geral A luta de classes é o motor da história e leva a uma revolução que marcará o fim da préhistória e o surgimento de uma so ciedade nãoantagônica Mas o que é uma classe social Já é tempo de responder a esta pergunta com a qual deveria ter começado se estivesse expondo o pensamento de um professor Sobre esse ponto encontramos na obra de Marx um grande número de tex tos que pelo menos os mais importantes creio poder classificar em três tipos Há uma passagem clássica nas últimas páginas do manuscrito de O capi tal o último capítulo publicado por Engels no livro III intitulado As classes Como O capital é a principal obra científica de Marx é preciso fazer referên cia a esse texto que infelizmente não está completo Marx escreve Os pro 166 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO prietários da simples força de trabalho os proprietários do capital e os proprie tários de terras cujas fontes de renda são respectivamente o salário o lucro e a renda isto é os assalariados os capitalistas e os proprietários fundiários cons tituem as três grandes classes da sociedade moderna baseada no sistema de produção capitalista32 A distinção entre as classes se baseia aqui na distinção que aliás é clássica da origem econômica das rendas capitallucro terrarenda fundiária trabalhosalário isto é no que se convencionou chamar de fórmu la trinitária que engloba todos os mistérios do processo social de produção Le capital liv III cap 48 p 193 O lucro é a forma aparente da realidade essencial que é a maisvalia a renda fundiária que Marx analisou longamente no mesmo livro III de O ca pital é uma parte da maisvalia valor não distribuído ao trabalhadores Essa interpretação das classes em função da estrutura econômica é a que melhor responde à intenção científica de Marx Permite identificar algumas das proposições essenciais da teoria marxista das classes Primeiramente podese dizer que uma classe social é um grupo que ocupa um lugar determinado no processo de produção ficando entendido que esse lugar tem um duplo significado é um lugar no processo tecnológico de produ ção e um lugar no processo jurídico imposto ao processo técnico O capitalista é simultaneamente senhor da organização do trabalho por tanto senhor no processo técnico e também juridicamente graças à sua situa ção de proprietário dos meios de produção quem tira dos produtores associados a maisvalia Podese concluir por outro lado que as relações de classe tendem a se sim plificar à medida que o capitalismo se desenvolve Se só existem duas fontes de renda deixando de lado a renda fundiária cuja importância diminui com a industrialização existem apenas duas grandes classes o proletariado consti tuído por aqueles que só possuem sua força de trabalho e a burguesia capita lista isto é todos aqueles que se apropriam de uma parte da maisvalia Um segundo tipo de textos de Marx relacionados com as classes sociais reúne os estudos históricos tais como As lutas de classes na França 18481850 ou O 18 brumário de Luís Bonaparte Marx emprega nesses textos a noção de classe mas sem fazer uma teoria sistemática A enumeração das classes é mais longa e mais estrita do que na apresentação da distinção estrutural das classes que acabamos de analisar33 Assim em As lutas de classes na França Marx distingue as seguintes classes burguesia financeira burguesia industrial burguesia comercial pequena burgue sia classe camponesa classe proletária e por fim o que chama de Lumpen proletariat que corresponde mais ou menos ao que chamamos de subproleta riado OS FUNDADORES 167 Essa enumeração não contradiz a teoria das classes esboçada no último capítulo de O capital O problema colocado por Marx nesses dois tipos de tex tos não é o mesmo Num caso ele procura determinar quais são os grandes agrupamentos característicos de uma economia capitalista em outros os gru pos sociais que exerceram influência sobre os acontecimentos políticos em cir cunstâncias históricas particulares É verdade porém que é difícil passar da teoria estrutural das classes ba seada na distinção das fontes de renda à observação histórica dos grupos so ciais Com efeito uma classe não constitui uma unidade pelo simples fato de que do ponto de vista da análise econômica as rendas têm uma só e mesma fonte é preciso evidentemente acrescentar também uma certa homogeneida de psicológica e possivelmente uma certa consciência de unidade ou até mes mo uma vontade de ação comum Esta observação nos leva à terceira categoria de textos Em O 18 brumário de Luís Bonaparte Marx explica por que um grande número de pessoas não representa necessariamente uma classe social mesmo que essas pessoas tenham a mesma atividade econômica e o mesmo gênero de vida Os camponeses pequenos proprietários constituem uma enorme massa cujos membros vivem todos na mesma situação mas sem que estejam ligados uns aos outros por relações variadas Seu modo de produção os isola em vez de leválos a um relacionamento recíproco Esse isolamento é agravado pela deficiência dos meios de comunicação na França e pela pobreza dos camponeses A exploração das suas pequenas propriedades não permite nenhuma divisão do trabalho nenhu ma utilização de métodos científicos e conseqüentemente nenhuma diversidade de desenvolvimento nenhuma variedade de talentos nenhuma riqueza de relações sociais Cada família camponesa se basta a si mesma quase completamente pro duz diretamente a maior parte do que consome e obtém assim os meios de subsis tência mais por uma troca com a natureza do que por uma troca com a sociedade Uma pequena propriedade um camponês e sua família ao lado outra pequena propriedade outro camponês e outra família Um certo número dessas famílias for mam uma aldeia e um certo número de aldeias um município Assim a grande mas sa da nação francesa está constituída pela simples soma de unidades iguais como um saco cheio de batatas forma um saco de batatas Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições econômicas que as separam umas das outras e opõem seus interesses tipo de vida e sua cultura aos de outras clas ses da sociedade essas famílias constituem uma classe Mas na medida em que só existe entre esses camponeses um vínculo local e a semelhança dos seus inte resses não cria entre eles nenhuma comunidade nenhuma ligação nacional ou ne nhuma organização política eles não constituem uma classe Le 18 brumaire de Louis Bonaparte pp 9798 Éd Sociales Fm outras palavras a comunidade de atividade de maneira de pensar e de modo de vida é a condição necessária da realidade de uma classe social mas 168 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO não a condição suficiente Para que uma classe exista é preciso que haja toma da de consciência da unidade e sentimento de separação das outras classes so ciais quem sabe até mesmo sentimento de hostilidade em relação às outras classes sociais No casolimite os indivíduos separados só formam uma classe na medida em que precisam desenvolver uma luta comum contra outra classe Levando em conta o conjunto desses textos pareceme que se chega não a uma teoria completa e professoral das classes mas a uma teoria políticosocio lógica que aliás é bastante clara Marx parte da noção de uma contradição fundamental de interesses entre os assalariados e os capitalistas Estava convencido além disso de que tal opo sição dominava o conjunto da sociedade capitalista e que com a evolução his tórica iria assumindo uma forma cada vez mais simples Por outro lado contudo como observador da realidade histórica Marx constatava como qualquer outro e ele era um excelente observador a plurali dade dos grupos sociais No sentido estrito a classe não se confunde com ne nhum grupo social Implica além da comunidade de existência a consciência dessa comunidade no plano nacional e a vontade de uma ação comum com vis tas a uma certa organização coletiva Nesse nível compreendese que aos olhos de Marx só existam na verda de duas grandes classes já que só existem dois grandes grupos na sociedade capitalista que têm verdadeiramente representações contraditórias do que deva ser a sociedade e que têm realmente um propósito político e histórico definido No caso dos operários como no dos proprietários dos meios de produção confundemse os diferentes critérios que se podem imaginar ou observar Os ope rários da indústria têm um modo de vida determinado que depende da sua fun ção na sociedade capitalista Têm consciência da sua solidariedade e tomam consciência do antagonismo com relação a outros grupos sociais São portanto no sentido pleno da expressão uma classe social que se define política e histo ricamente por uma vontade própria que os coloca em oposição essencial aos capitalistas Isso não exclui a existência de subgrupos dentro de cada classe ou a presença de grupos ainda não absorvidos pelos dois grandes atores do drama histórico Mas no curso da evolução histórica esses grupos exteriores ou marginais como os comerciantes os pequenos burgueses os sobreviventes da antiga estrutura da sociedade serão obrigados a se unir aos proletários ou aos capitalistas Nessa teoria há dois pontos equívocos e discutíveis No ponto de partida da sua análise Marx assemelha a expansão da burgue sia à expansão do proletariado Desde seus primeiros escritos descreve o surgi mento de um quarto estado como análogo à ascensão do terceiro A burguesia desenvolveu as forças de produção no seio da sociedade feudal Da mesma ma neira o proletariado está em vias de desenvolver as forças de produção da so OS FUNDADORES 169 ciedade capitalista Ora esta aproximação a meu ver é um erro É preciso ter além do gênio a paixão política para perceber que os dois casos são radical mente diferentes Quando a burguesia comercial ou industrial criava forças de produção no seio da sociedade feudal era realmente uma classe social nova formada dentro da antiga sociedade Mas a burguesia seja comerciante seja industrial era uma minoria privilegiada que exercia funções socialmente indispensáveis Opunha se à classe dirigente feudal como uma aristocracia econômica se opõe a uma aristocracia militar Podese explicar como essa classe privilegiada historica mente nova podia criar no seio da sociedade feudal novas forças e relações de produção e como fez explodir a superestrutura política do sistema feudal Para Marx a Revolução Francesa constitui o momento em que a classe burguesa to mou o poder político que estava nas mãos dos restos da classe feudal politica mente dirigente Entretanto na sociedade capitalista o proletariado não é uma minoria pri vilegiada mas ao contrário a grande massa dos trabalhadores nãoprivilegiados Não cria novas forças ou relações de produção dentro da sociedade capitalista os operários são os agentes de execução de um sistema de produção dirigido pe los capitalistas ou pelos técnicos Por isso a comparação entre a expansão do proletariado e a expansão da bur guesia é sociologicamente falsa Para restabelecer a equivalência entre a ascen são da burguesia e a ascensão do proletariado os marxistas são forçados a usar aquilo que eles condenam quando empregado pelos outros o mito Para compa rar a expansão do proletariado com a expansão da burguesia é preciso confun dir a minoria que dirige o partido político e alega representar o proletariado com o próprio proletariado Em outras palavras para manter a semelhança en tre a ascensão da burguesia e a ascensão do proletariado é preciso admitir que sucessivamente Lenin Stalin Khruchtchev Brejnev e Kossiguin sejam o pro letariado No caso da burguesia são os burgueses os privilegiados os que dirigem o comércio e a indústria os que governam Quando o proletariado faz sua revo lução são os homens que dizem representálo que dirigem as empresas comer ciais e industriais e que exercem o poder A burguesia é uma minoria privilegiada que passou da situação social mente dominante ao exercício político do poder o proletariado é a grande mas sa não privilegiada que não pode tornarse enquanto tal uma minoria privile giada e dominante Não estou fazendo aqui nenhum julgamento sobre os méritos respectivos de um regime que se diz burguês e de um que se diz proletário Afirmo apenas porque acredito tratarse de fatos que a ascensão do proletariado não pode ser as semelhada a não ser pela mitologia à ascensão da burguesia e que aí está o 170 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO erro central de toda a visão marxista da história que salta aos olhos e cujas con seqüências têm sido imensas Marx quis definir de modo univoco pela classe que exerce o poder um re gime econômico social e político Ora essa definição do regime é insuficien te porque implica aparentemente uma redução da política à economia ou do Estado à relação entre os grupos sociais Sociologia e economia Marx se esforçou para combinar uma teoria do funcionamento da econo mia com uma teoria do devenir da economia capitalista Esta síntese da teoria e da história tem uma dificuldade intrínseca dupla na origem e na conclusão Tal como o descreve Marx o regime capitalista só pode funcionar com a condição de que exista um grupo de pessoas dispondo de capital e em condi ções de comprar a força de trabalho daqueles cuja única coisa que possuem é es sa força de trabalho Como se constituiu historicamente esse grupo de homens Qual é o processo de formação da acumulação primitiva do capital indispen sável para que o próprio capital possa funcionar A violência a força a astú cia o furto e outros procedimentos clássicos da história política explicam sem dificuldade a formação de um grupo de capitalistas Seria mais difícil explicar por meio da economia a formação desse grupo A análise do funcionamento do capitalismo supõe a existência no ponto de partida de fenômenos extraeconô micos que criem condições nas quais o regime possa funcionar Há uma dificuldade da mesma natureza que surge no ponto de chegada Não há em O capital nenhuma demonstração conclusiva sobre o momento em que o capitalismo deixará de funcionar nem mesmo sobre o fato de que num dado momento ele deva deixar de funcionar Para que a autodestruição do capitalismo fosse economicamente demonstrada seria necessário que o econo mista pudesse dizer o capitalismo não pode funcionar com uma taxa de lucro inferior a determinada porcentagem Ou então a partir de determinado ponto a distribuição da renda é tal que o regime se torna incapaz de absorver sua pró pria produção Mas de fato nenhuma dessas demonstrações pode ser encon trada em O capital Marx apresentou uma série de razões para demonstrar que o funcionamento do regime capitalista seria cada vez pior mas não demonstrou economicamente a destruição do capitalismo por suas contradições internas Assim somos obrigados a introduzir no princípio e no fim do processo de evo lução do regime capitalista um fator externo à economia do capitalismo e que é de natureza política A teoria puramente econômica do capitalismo enquanto economia de ex ploração comporta também uma dificuldade essencial Está baseada na noção OS FUNDADORES 171 da maisvalia que é inseparável da teoria do salário Ora toda economia mo derna é progressiva isto é precisa acumular uma parte da produção anual para ampliar as forças de produção Assim se definirmos a economia capitalista co mo uma economia de exploração será preciso demonstrar em que sentido e em que medida o mecanismo capitalista de poupança e investimento difere do me canismo de acumulação que existe ou existiria numa economia moderna de outro tipo Para Marx a característica da economia capitalista era uma taxa elevada de acumulação do capital Acumulai acumulai esta é a lei e os profetas Le capital liv I Oeuvres 11 p 109934 Mas numa economia do tipo soviético a acumulação de 25 da renda nacional anual foi considerada durante muito tempo como parte integrante da doutrina Hoje um dos méritos reivindicados pelos apologistas da economia so viética é a alta porcentagem de formação de capital Um século depois de Marx a competição ideológica entre os dois regimes tem por objeto a taxa de acumulação praticada por ambos na medida em que ela determina a taxa de crescimento Resta saber assim se o mecanismo capi talista de acumulação é melhor ou pior do que o de outro regime melhor para quem pior para quem Em sua análise do capitalismo Marx considerou simultaneamente as carac terísticas de toda economia e as características de uma economia moderna de tipo capitalista porque não conhecia outros tipos Um século mais tarde o ver dadeiro problema para um economista de tradição autenticamente marxista seria analisar as particularidades de uma economia moderna de outro tipo A teoria do salário a teoria da maisvalia a teoria da acumulação deixam de ser plenamente satisfatórias em si mesmas Passam a representar antes inda gações ou pontos de partida para a análise permitindo diferenciar o que se po deria chamar de exploração capitalista da exploração soviética ou seja para dizê lo de forma mais neutra para diferenciar a maisvalia capitalista da maisvalia em regime soviético Em nenhum regime é possível dar aos trabalhadores todo o valor do que produzem pois é preciso reservar uma parte desse valor para a acumulação coletiva Isto não exclui aliás que haja diferenças substanciais entre os dois meca nismos A acumulação passa no regime capitalista pela intermediação dos lu cros individuais e do mercado e a distribuição da renda não é a mesma nos dois regimes Estas observações fáceis de fazer um século depois de Marx não implicam nenhuma pretensão de superioridade que seria ridícula Quero apenas demons trar que Marx observando a fase inicial do regime capitalista não podia distin guir com facilidade de um lado o que implica um regime de propriedade priva da e de outro o que implica uma fase de desenvolvimento tal como a que a 172 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO nglaterra atravessava no momento em que ele a estudava e por fim o que constituía a essência de qualquer economia industrial Hoje a tarefa da análise sociológica da economia consiste justamente em tra çar a distinção entre esses três tipos de elementos as características de toda econo mia moderna características ligadas a um regime particular de economia moderna e enfim as características ligadas a uma fase de crescimento da economia Essa discriminação é difícil porque todas essas características estão sem pre presentes na realidade misturadas umas às outras Mas se quisermos fazer um julgamento crítico político ou moral sobre um certo regime será preciso evi dentemente não lhe atribuir o que é imputável a outros fatores A teoria da acumulação e da maisvalia exemplifica bem a confusão exis tente entre estes diferentes elementos Toda economia moderna implica acumu lação A taxa de acumulação é mais ou menos elevada de acordo com a etapa do crescimento e também de acordo com as intenções do governo O que varia é o mecanismo econômicosocial da maisvalia ou o modo de circulação da pou pança Uma economia planificada tem um circuito de poupança relativamente simples enquanto uma economia em que subsiste a propriedade privada dos meios de produção comporta um mecanismo mais complicado misturando o mercado livre com os descontos impostos por meio da autoridade Não aceita facilmen te a determinação autoritária da poupança e da taxa de formação de capital com relação ao produto nacional As relações entre a análise econômica e a análise sociológica levantam o problema das relações entre regimes políticos e regimes econômicos A meu ver é nesse ponto que a sociologia de Marx é mais vulnerável à crítica Em O capital como nas outras obras de Marx encontramos sobre este pon to de grande importância apenas um pequeno número de idéias que são aliás sempre as mesmas O Estado é considerado essencialmente como instrumento da dominação de uma classe Em conseqüência um regime político é definido pela classe que exer ce o poder Os regimes da democracia burguesa são assemelhados àqueles em que a classe capitalista exerce o poder embora mantenham a fachada das institui ções livres Em oposição ao regime econômicosocial feito de classes antagô nicas e baseado na dominação de uma classe sobre as outras Marx concebe um regime econômicosocial em que não haja mais dominação de classe Por isso por definição o Estado desaparecerá pois ele só existe na medida em que uma clas se necessita dele para explorar as outras Entre a sociedade antagônica e a sociedade nãoantagônica do futuro inter põese o que é chamado de ditadura do proletariado expressão que encontra mos em particular num texto célebre de 1875 a Crítica do programa do Partido Operário Alemão ou Crítica do programa de Gotha35 A ditadura do proletaria OS FUNDADORES 173 do é o fortalecimento supremo do Estado antes do momento crucial do seu de saparecimento Antes de desaparecer o Estado atingirá sua expansão máxima A ditadura do proletariado aparece definida com pouca clareza nos escritos de Marx em que coexistem duas interpretações A primeira é de tradição jacobina e assemelha a ditadura do proletariado ao poder absoluto de um partido baseado nas massas populares a outra quase oposta foi sugerida a Marx pela experiên cia da Comuna de Paris que tendia à supressão do Estado centralizado Essa concepção da política e do desaparecimento do Estado numa socieda de nãoantagônica me parece sem a menor dúvida a concepção sociológica mais facilmente refutável de toda a obra de Karl Marx Ninguém nega que em toda sociedade e em particular numa sociedade mo derna haja funções comuns de administração e de autoridade que precisam ser exercidas Ninguém pode pensar de modo razoável que uma sociedade indus trial complexa como a nossa possa dispensar uma administração sob certos as pectos centralizada Além disso se admitirmos a planificação da economia é inconcebível que não haja organismos centralizados que tomem as decisões fundamentais impli cadas pela própria idéia da planificação Ora essas decisões pressupõem fun ções que chamamos normalmente de estatais Por isso a menos que imaginemos uma situação de abundância absoluta em que o problema da coordenação da produção deixe de ser relevante um regime de economia planejada exige o refor ço das funções administrativas exercidas pelo poder central Neste sentido as duas idéias de planificação da economia e de enfraqueci mento do Estado são contraditórias para o futuro previsível enquanto for impor tante produzir o mais possível produzir em função das diretrizes do plano e de distribuir a produção entre as classes sociais segundo as idéias dos governantes Se chamarmos de Estado o conjunto das funções administrativas e dirigen tes da coletividade não é admissível que o Estado pereça em nenhuma socieda de industrial e menos ainda numa sociedade industrial planificada já que por definição o planejamento central implica que o governo ttíme um maior núme ro de decisões do que no caso da economia capitalista que se define em parte pela descentralização do poder de decisão O desaparecimento do Estado não pode ocorrer portanto a não ser num sentido simbólico O que desaparece é o caráter de classe do Estado considerado Podese de fato pensar que a partir do momento em que desaparece a rivali dade das classes as funções administrativas e de direção em vez de expressarem a intenção egoísta de um grupo particular tornamse a expressão de toda a so ciedade Nesse sentido podese conceber o desaparecimento do caráter de clas se de dominação e de exploração do próprio Estado No regime capitalista porém pode o Estado ser definido essencialmente pelo poder de uma determinada classe 174 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A idéia central de Marx é a de que a sociedade capitalista é antagônica conseqüentemente todas as características essenciais do regime capitalista têm origem nesse fenômeno Como poderia haver uma sociedade sem antagonis mo A argumentação toda repousa na diferença de natureza entre a classe bur guesa que exerce o poder quando possui os instrumentos de produção e o pro letariado considerado como a classe que sucederá a burguesia Afirmar que o proletariado é uma classe universal que assume o poder só pode ter portanto uma significação simbólica uma vez que a massa dos trabalha dores nas fábricas não pode ser confundida com uma minoria dominante que exerce o poder A fórmula o proletariado no poder é apenas uma fórmula sim bólica para dizer no poder o partido ou o grupo que representa a massa popular Na sociedade em que deixou de haver propriedade privada dos meios de produção por definição não há mais antagonismo ligado à propriedade há po rém homens que exercem o poder em nome da massa popular Existe portanto um Estado que exerce as funções administrativas indispensáveis a toda socie dade desenvolvida Uma sociedade desse tipo não comporta os mesmos anta gonismos que uma sociedade na qual existe propriedade privada dos instrumen tos de produção Mas numa sociedade em que o Estado por meio de decisões econômicas determina amplamente a condição de todas as pessoas pode haver evidentemente antagonismos entre grupos seja entre grupos horizontais cam poneses e operários seja entre grupos verticais isto é entre os que estão situa dos embaixo e os que estão no alto da hierarquia social Não afirmo que numa sociedade em que a condição de todas as pessoas depende do plano e o plano é determinado pelo Estado haja necessariamente conflitos Mas não se pode deduzir a certeza da ausência de antagonismos do simples fato da inexistência da propriedade privada dos meios de produção e do fato de que a condição de todas as pessoas depende do Estado Se as deci sões do Estado são tomadas por indivíduos ou por uma minoria essas decisões podem corresponder aos interesses desses indivíduos ou dessas minorias Numa sociedade planificada não há uma harmonia preestabelecida entre os interesses dos diferentes grupos O poder do Estado não desaparece em tal sociedade e não pode desapare cer Uma sociedade planificada pode ser governada indubitavelmente de mo do equitativo contudo não há uma garantia a priori de que os dirigentes da planificação tomarão decisões que correspondam aos interesses de todos ou aos interesses supremos da coletividade na medida aliás em que estes interesses possam ser definidos A garantia do desaparecimento dos antagonismos implicaria que as rivali dades entre os grupos se originassem exclusivamente na propriedade privada dos meios de produção ou que o Estado desaparecesse N enhum a dessas hipó teses é verossímil Não há razão para que todos os interesses dos membros de OS FUNDADORES 175 uma coletividade passem a ser harmônicos no momento em que os meios de produção deixam de ser passíveis de apropriação individual Desaparecerá um tipo de antagonismo mas outros tipos de antagonismo poderão subsistir Por outro lado no momento em que subsistem as funções administrativas ou de direção exis te por definição o risco de que as pessoas que as exerçam sejam injustas in sensatas ou que estejam mal informadas em conseqüência que os governados não se satisfaçam com as decisões tomadas pelos governantes Finalmente além dessas observações há um problema fundamental o da redução da política enquanto tal à economia A sociologia de Marx pelo menos na sua forma profética supõe a redução da ordem política à ordem econômica isto é a extinção do Estado a partir do momento em que forem impostas a propriedade coletiva dos meios 3e produção e planificação Contudo a ordem política é essencialmente irredutível à ordem econômica Qualquer que seja o regime econômico e social o problema políti co persistirá porque ele consiste em determinar quem governa como são re crutados os governantes como o poder é exercido ou qual a relação de consen timento ou de revolta entre governantes e governados A ordem política é tão essencial e autônoma quanto a ordem econômica As duas ordens estão em rela ções recíprocas O modo como são organizadas a produção e a distribuição dos recursos co letivos influencia a maneira como se resolve o problema da autoridade inver samente a maneira como este problema é resolvido influi no modo como se re solve o problema da produção e da distribuição dos recursos É falso pensar que uma determinada organização da produção e da repartição dos recursos resol ve automaticamente o problema do comando suprimindoo O mito do enfra quecimento do Estado é o mito de que o Estado só existe para produzir e dis tribuir os recursos e que resolvido o problema da produção e da distribuição dos recursos não será mais necessário36 Tratase de mito duplamente enganador Em primeiro lugar a gestão pla nificada da economia acarreta um reforço do Estado E mesmo que não fosse assim continuaria a haver sempre numa sociedade moderna o problema do comando isto é da forma do exercício da autoridade Em outras palavras não é possível definir um regime político simplesmen te pela classe que se presume estar exercendo o poder Não se pode portanto definir o regime político do capitalismo pelo poder dos monopolistas como não se pode definir o regime político de uma sociedade socialista pelo poder do proletariado No regime capitalista não são os monopolistas que pessoalmen te exercem o poder no regime socialista não é o proletariado como um grupo que exerce o poder Nos dois casos tratase de determinar quais são as pessoas que vão exercer as funções políticas como recrutálas de que forma devem exercer a autoridade qual é a relação entre os governantes e os governados 176 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A sociologia dos regimes políticos não pode ser reduzida a um simples apêndice da sociologia da economia ou das classes sociais Marx se referiu com freqüência às ideologias e procurou explicar as ma neiras de pensar ou os sistemas intelectuais pelo contexto social A interpretação das idéias pela realidade social comporta diversos méto dos É possível explicar as maneiras de pensar pelo modo de produção ou pelo estilo tecnológico da sociedade Contudo a explicação que até hoje teve maior êxito é a que atribui determinadas idéias a uma certa classe social De modo geral Marx entende por ideologia a falsa consciência ou falsa representação que uma classe social tem a respeito da sua própria situação e da sociedade em conjunto Em larga medida considera as teorias dos economis tas burgueses como uma ideologia de classe Não que atribua aos economistas burgueses a intenção de enganar seus leitores ou de se iludirem com uma inter pretação mentirosa da realidade Tende a acreditar porém que uma classe só pode ver o mundo em função da sua própria situação Como diria Sartre o bur guês vê o mundo definido pelos direitos que possui A imagem jurídica de um mundo de direitos e obrigações é a representação social em que o burguês ma nifesta ao mesmo tempo sua maneira de ser e sua situação Essa teoria da falsa consciência associada à consciência de classe pode ser aplicada a muitas idéias ou sistemas intelectuais Quando se trata de doutri nas econômicas e sociais podese a rigor considerar que a ideologia é uma fal sa consciência e o sujeito desta falsa consciência é a classe Mas essa concep ção da ideologia traz duas dificuldades Se uma classe tem devido a sua situação uma falsa idéia do mundo se por exemplo a classe burguesa não compreende o mecanismo da maisvalia ou permanece prisioneira da ilusão das mercadoriasfetiches por que um indiví duo consegue se livrar dessas ilusões e dessa falsa consciência Por outro lado se todas as classes têm uma maneira de pensar parcial onde está a verdade Como pode uma ideologia ser melhor do que outra se toda ideologia é inseparável da classe que a adota O pensamento marxista se sente aqui tentado a responder que entre as ideologias há uma que é melhor do que as outras porque há uma classe que pode pensar o mundo em sua verdade No mundo capitalista é o proletariado e só o proletariado que pensa a ver dade do mundo porque só ele pode pensar o futuro além da revolução Lukács um dos últimos grandes filósofos marxistas se esforçou por de monstrar em Geschichte und Klassenbewusstsein que as ideologias de classe não se eqüivalem e que a ideologia da classe proletária é verdadeira porque o proletariado na situação que lhe é imposta pelo capitalismo é capaz e o único capaz de pensar a sociedade em seu desenvolvimento em sua evolução para a revolução e portanto na sua verdade37 OS FUNDADORES 177 A primeira teoria da ideologia procura portanto evitar o desvio para o rela tivismo integral mantendo ao mesmo tempo o vínculo das ideologias com as classes e a verdade de uma das ideologias A dificuldade dessa fórmula consiste em que é fácil questionar a veracida de de uma ideologia de classe fácil aos defensores das outras ideologias e fácil às outras classes achar que todas estão no mesmo plano Admitindo que minhq visão do capitalismo seja orientada pelos meus interesses burgueses a visão proletária é comandada pelos interesses proletários Por que os interesses dos que estão out como se diria em inglês seriam mais importantes do que os inte resses dos in Por que os interesses daqueles que estão do lado mau da barrica da valeriam como tal mais do que os dos que estão do lado bom Tanto mais que a situação pode se inverter e de fato de tempos em tempos ela se inverte Esse modo de argumentação só pode levar a um ceticismo integral para o qual todas as ideologias são equivalentes igualmente parciais e facciosas inte ressadas e em decorrência mentirosas Por isso procurouse em outra direção que me parece preferível a mesma em que se empenhou a sociologia do conhecimento que estabelece distinções entre tipos diferentes de edifícios intelectuais Todo pensamento está associa do de certo modo ao meio social mas o vínculo da pintura da física da mate mática da economia política e das doutrinas políticas com a realidade social não é o mesmo Convém distinguir as maneiras de pensar ou as teorias científicas que estão ligadas à realidade social mas que não dependem dela das ideologias ou falsas consciências que resultam na consciência dos homens de situações de classe que os impedem de ver a verdade Esta tarefa é a mesma que os diferentes sociólogos do conhecimento mar xistas ou não procuram executar buscando identificar a verdade universal de algumas ciências e o valor universal das obras de arte Para um marxista como para um nãomarxista é importante não reduzir a significação de uma obra científica ou estética a seu conteúdo de classe Marx que era um grande admirador da arte grega sabia tão bem quanto os sociólo gos do conhecimento que o significado das criações humanas não se esgota no seu conteúdo de classe As obras de arte valem e têm sentido mesmo para ou tras classes e para outras épocas Sem negar em absoluto que o pensamento esteja ligado à realidade social e que certas formas de pensamento estejam vinculadas à classe é necessário restabelecer a discriminação das espécies e sustentar duas proposições que me parecem indispensáveis para evitar o niilismo Existem domínios em que o pensador pode atingir uma verdade válida para todos e não só uma verdade de classe Existem domínios em que as criações das sociedades têm valor e significado para os homens de outras sociedades 178 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Conclusão Nos últimos cem anos houve fundamentalmente três grandes crises no pensamento marxista38 A primeira foi o revisionismo da socialdemocracia alemã nos primeiros anos deste século Seus dois protagonistas foram Karl Kautsky e Edouard Bernstein O tema essencial era a economia capitalista está em vias de se trans formar de modo tal que a revolução anunciada não se produza de acordo com nossa expectativa Bernstein o revisionista achava que os antagonismos de classe não se acentuavam que a concentração não se produzia nem tão rápida nem tão completamente quanto previsto e que em conseqüência não era pro vável que a dialética histórica realizasse a catástrofe da revolução e a socieda de naoantagônica A querela KautskyBemstein terminou dentro do partido socialdemocrático alemão e da II Internacional com a vitória de Kautsky e a derrota dos revisionistas A tese ortodoxa foi mantida A segunda crise do pensamento marxista foi a do bolchevismo Um parti do que se dizia marxista tomou o poder na Rússia e este partido como era nor mal definiu sua vitória como a vitória da revolução proletária Mas uma fração dos marxistas os ortodoxos da II Internacional a maioria dos socialistas ale mães e dos socialistas ocidentais julgaram de outro modo A partir de 19171920 começou a haver dentro dos partidos marxistas uma disputa cujo tema central poderíamos definir assim o poder soviético é uma ditadura do proletariado ou uma ditadura sobre o proletariado Essas expressões eram empregadas desde os anos 1917 e 1918 pelos dois grandes protagonistas da segunda crise Lenin e Kautsky Na primeira crise do revisionismo Kautsky estava do lado dos orto doxos Na crise do bolchevismo pensava ainda estar do lado dos ortodoxos mas havia uma nova ortodoxia A tese de Lenin era simples o partido bolchevique que se proclamava mar xista e proletário representa o proletariado no poder o poder do partido bol chevique é a ditadura do proletariado Como afinal de contas nunca se soubera com certeza em que consistiria exatamente a ditadura do proletariado a hipó tese segundo a qual o poder do partido bolchevique era a ditadura do proleta riado era sedutora e não era proibido apoiála Tudo ficava fácil se o poder do partido bolchevique era o poder do proletariado o regime soviético era um re gime proletário e a construção do socialismo viria a seguir Por outro lado admitida a tese de Kautsky segundo a qual uma revolução feita num país nãoindustrializado onde a classe operária era uma minoria não podia ser uma revolução verdadeiramente socialista a ditadura de um partido mesmo marxista não podia ser uma ditadura do proletariado mas sim uma ditadura sobre o proletariado OS FUNDADORES 179 Depois disso houve duas correntes no pensamento marxista uma reco nhecia no regime da União Soviética a realização das previsões de Marx com algumas modalidades imprevistas a outra considerava que a essência do pen samento marxista estava desfigurada porque o socialismo não implicava ape nas a propriedade coletiva dos meios de produção e o planejamento mas a de mocracia política Ora dizia a segunda escola a planificação socialista sem a democracia não é o socialismo Seria necessário aliás procurar saber qual o papel desempenhado pela ideo logia marxista na construção do socialismo soviético Está claro que essa socie dade não nasceu do cérebro de Marx e que em larga medida ela é o resultado das circunstâncias Mas a ideologia marxista tal como foi interpretada pelos bolchevistas teve também um papel e um papel importante A terceira crise do pensamento marxista é à que assistimos hoje Tratase de saber se há um termo intermediário entre a versão bolchevista do socialis mo e a versão digamos escandinavobritânica Atualmente vemos uma das modalidades possíveis de uma sociedade socialista a planificação central sob a direção de um Estado mais ou menos to tal que se confunde com o partido que se afirma socialista Essa é a versão so viética da doutrina marxista Mas há uma segunda versão a ocidental cuja forma mais aperfeiçoada é provavelmente a da sociedade sueca com sua mistura de instituições públicas e privadas com uma redução da desigualdade de rendas e a eliminação da maior parte dos fenômenos sociais que causavam escândalo A planificação parcial e a propriedade mista dos meios de produção se combinam com as instituições democráticas do Ocidente isto é com a pluralidade parti dária eleições livres livre discussão das idéias Os marxistas ortodoxos não têm dúvida de que a verdadeira descendência de Marx é a sociedade soviética Os socialistas ocidentais não duvidam de que a versão ocidental é menos infiel ao espírito de Marx do que a versão soviéti ca Contudo muitos intelectuais marxistas não se satisfazem com nenhuma das duas versões Prefeririam uma sociedade que fosse de certo modo tão socialis ta e planificada quanto a soviética e ao mesmo tempo tão liberal quanto uma sociedade de tipo ocidental Deixo de lado aqui a questão de saber se é possível a existência desse ter ceiro tipo de sociedade fora da mente dos filósofos afinal como dizia Hamlet a Horácio há mais coisas na terra e no céu do que em todos os sonhos da nos sa filosofia Pode ser portanto que haja um terceiro tipo de socialismo no mo mento porém a fase atual da discussão doutrinária focaliza a existência de dois tipos ideais claramente definíveis duas sociedades que podem dizerse mais ou menos socialistas uma das quais não é liberal e a outra é burguesa O cisma entre a China e a União Soviética abre uma nova fase Aos olhos de Mao Tsétung o regime e a sociedade soviéticos estão em vias de embur 180 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO guesamento Os dirigentes de Moscou são tratados de revisionistas como E Bernstein e os socialistas de direita haviam sido no princípio do século E Marx de que lado ficaria Em vão fazemos esta pergunta pois Marx não imaginou a diferenciação que o curso da história realizou A partir do momen to em que somos obrigados a dizer que certos fenômenos que Marx criticou não são imputáveis ao capitalismo mas sim à sociedade industrial ou à fase de cres cimento que ele pôde observar entramos num mecanismo de pensamento de que Marx era perfeitamente capaz porque era um grande homem mas que de fato foi estranho a Marx Muito provavelmente ele que tinha temperamento rebelde não se entusias maria com nenhuma dessas versões com nenhuma das modalidades de sociedade que se apresentaram com seu nome Qual dos dois modelos preferiria Pareceme impossível decidir o que é aliás inteiramente inútil Se tivesse de dar uma res posta ela não passaria da manifestação das minhas preferências pessoais Creio que é mais honesto revelar quais são as minhas preferências do que atribuílas a Karl Marx que não tem mais condições de manifestar o que pensa Indicações biográficas 1818 No dia 5 de maio nasce Karl Marx em Trier então Prússia renana segundo dos oito filhos do advogado Heinrich Marx que descendente de rabinos se conver teu ao protestantismo em 1816 18301835 Estudos secundários no liceu de Trier 18351836 Estudos de direito na Universidade de Bonn Noivado com Jenny von West phalen 18361841 Estudos de direito filosofia e história em Berlim Marx freqüenta os jovens hegelianos do Doktor Club 1841 Doutoramento pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Iena 1842 Marx se instala em Bonn como colaborador e depois redator da Rheinische Zeitung de Colônia 1843 Decepcionado com a atitude dos acionistas que considera medrosa deixa o cargo Casamento com Jenny von Westphalen Partida para a França Colaborações para os Annales FràncoAllemandes de A Ruge em que publica o Ensaio sobre a questão judaica e Crítica da filosofia do direito de Hegel Introdução 18441845 Estada em Paris Freqüenta Heine Proudhon Bakunin Início dos estudos de economia política Preenche vários cadernos com reflexões filosóficas sobre a Economia e a Fenomenologia de Hegel Faz amizade com Engels A sagrada família é o primeiro livro que escrevem juntos 1845 Expulsão de Paris a pedido do governo prussiano Marx se instala em Bruxelas Em julho e agosto faz uma viagem de estudo à Inglaterra na companhia de Engels 18451848 Estada em Bruxelas Em colaboração com Engels e Mores Marx escreve A ideologia alemã que não será publicada Briga com Proudhon Miséria da filosofia 1847 Em novembro de 1847 Marx vai a Londres com Engels para o segundo congres so da Liga dos Comunistas que os incumbe de redigir um manifesto Publicação do Manifesto comunista em fevereiro de 1848 1848 Marx é expulso de Bruxelas Depois de curta estada em Paris instalase em Co lônia onde se toma redatorchefe da Neue Rheinische Zeitung Desenvolve uma 182 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO campanha ativa no jornal para radicalizar o movimento revolucionário na Ale manha 1849 Trabalho salário e capital publicado na Neue Rheirtische Zeitung Marx é ex pulso da Renânia Após uma curta estada em Paris parte para Londres onde se instala definitivamente 1850 As lutas de classes na França 1851 Marx começa a colaborar com o New York Tribune 1852 Dissolução da Liga dos Comunistas Processo dos comunistas de Colônia O 18 brumàrio de Luís Bonaparte 18521857 Marx precisa abandonar seus estudos econômicos para se dedicar ao traba lho de sobrevivência no jornalismo Dificuldades financeiras contínuas 18571858 Marx retoma os trabalhos de economia Redige numerosas notas que só serão descobertas em 1923 1859 Critica da economia política 1860 Herr Vogt 1861 Viagem à Holanda e à Alemanha Visita a Lassalle em Berlim Colaboração com o jornal Die Presse de Viena 1862 Marx rompe com Lassalle Obrigado a cessar a colaboração para o New York Tribune Grave a situação financeira 1864 Marx participa da formação da Associação Internacional dos Trabalhadores para a qual ele redigiu os estatutos e o discurso inaugural 1865 Salário preço e maisvalia Reunião da Internacional em Londres 1867 Publicação do livro I de O capital em Hamburgo 1868 Marx começa a se interessar pela comuna rural russa e estuda russo 1869 Início da luta contra Bakunin no seio da Internacional Engels garante a Marx uma renda anual 1871 A guerra civil na França 1875 Crítica do programa de Gotha Publicação da tradução francesa do livro I de O capital Marx colaborou com o trabalho do tradutor J Roy 1880 Marx dita a Guesde os Consideranda do programa do Partido Operário Francês 1881 Morte de Jenny Marx Correspondência com Vera Zassoulitch 1882 Viagem à França e à Suíça estada em Argel 1883 Em 14 de março morte de Karl Marx 1885 Publicação por Engels do livro II de O capital 1894 Publicação por Engels do livro III de O capital 19051910 Publicação por Kautsky de Teoria sobre a maisvalia 1932 Publicação por Riazanov e Landshut e Meyer das obras de juventude 19391941 Publicação de Princípios da crítica da economia política Notas 1 Kostas Axelos Marx penseur de la technique Paris Éd de Minuit Coll Ar guments 1961 327 pp O fato de considerar a noção de alienação como uma das chaves do pensamento de Marx é comum tanto aos intérpretes cristãos como R P Yves Calvez in La pensée de Karl Marx Paris Éd du Seuil 1956 quanto a comentadores marxistas como L Goldmann ou H Lefebvre Este último diz A crítica do fetichismo da mercadoria do dinheiro e do capital é a chave da parte econômica da obra de Marx isto é de O ca pital Entrevista para o jornal Arts 13 de fevereiro de 1963 no entanto mais adian te ele esclarece Os textos de Marx sobre a alienação e suas diferentes formas estão dispersos por toda a obra a tal ponto que a sua unidade passou despercebida até uma data bastante recente Le marxisme Paris PUF Que saisje 1958 p 48 2 Estou errado quando digo nas margens do Sena Há vinte anos era nas margens do Spree em Berlim hoje essas formas do marxismo sutil emigraram para a margem esquerda do Sena onde suscitaram discussões apaixonadas publicações interessantes controvérsias eruditas 3 A ideologia alemã é obra conjunta de Marx e Engels escrita entre setembro de 1845 e maio de 1846 em Bruxelas No prefácio à Crítica da economia política em 1859 Marx irá escrever Decidimos desenvolver nossas idéias em comum opondoas à ideo logia da filosofia alemã No fundo pretendíamos fazer nosso exame de consciência filo sófica Executamos nosso projeto sob a forma de uma crítica da filosofia póshegeliana O manuscrito dois grossos volumes inoitavo estava desde muito tempo nas mãos de um editor da Westfália quando nos informaram que uma alteração de circunstâncias não permitia mais a impressão Havíamos atingido o objetivo principal a boa compreensão de nós mesmos Foi com prazer que abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos Oeuvres 11 p 274 4 J Schumpeter Capitalisme socialisme et démocracie Paris Payot 1954 pri meira parte A doutrina marxista pp 65136 A primeira edição inglesa é de 1942 Os capítulos sobre Marx foram reproduzidos na obra póstuma de Schumpejer Ten Great Economists 1951 184 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 5 P Bigo Marxisme et humanisme introduction à 1oeuvre économique de Marx Paris PUF 1953 269 pp 6 Georges Gurvitch encontrou aí em certa medida uma antecipação das suas pró prias idéias 7 O elogio que Marx faz do papel revolucionário e construtivo da burguesia chega a ser lírico ela realizou maravilhas diferentes das pirâmides egípcias dos aquedutos romanos das catedrais góticas as expedições que realizou são muito diferentes das invasões e das cruzadas Manifesto comunista Oeuvres t 1 p 164 8 Vide notadamente Karl A Wittfogel Oriental Despotism a Comparative Study of Total Power New Haven Yale University Press 556 pp A tradução francesa tem o título Le despotisme oriental Paris Éd de Minuit Coll Arguments 1964 Cf também os seguintes artigos publicados em Le contrat social Karl A Wittfogel Marx et le despotisme oriental maio 1957 Paul Barton Du despotisme oriental maio 1959 Despotisme et totalitarisme julho 1959 Despotisme totalitarisme et classes socia les março 1960 Kostas Papaioannou Marx et le despotisme janeiro 1960 Para uma reflexão marxista ortodoxa sobre o problema vide o número especial da revista La pensée sobre Le mode de production asiatique n 114 abril de 1964 e os seguintes artigos J Chesneaux Oú en est la discussion sur le mode de production asia tique La pensée n 122 1965 M Godelier La notion de mode de production asiati que Les temps modernes maio de 1965 9 J Stalin Les problèmes économiques du socialisme en URSS Ed Sociales 1952 112 pp Os traços principais e os dispositivos da lei econômica fundamental do capitalismo atual poderiam ser formulados aproximadamente assim garantir o máxi mo de lucro capitalista explorando arruinando empobrecendo a maior parte da popu lação de um determinado país sujeitando e despojando de modo sistemático povos de outros países principalmente dos países atrasados e finalmente desencadeando greves e militarizando a economia nacional para garantir o máximo de lucro Os traços essen ciais e os dispositivos da lei econômica fundamental do socialismo poderiam ser for mulados aproximadamente assim garantir ao máximo a satisfação das necessidades materiais e culturais continuamente crescentes de toda a sociedade aumentando e aper feiçoando sempre a produção socialista assentada sobre a base de uma técnica supe rior Pp 41 e 43 10 Além da doença e das dificuldades financeiras foi a consciência de que o estu do não estava completo que levou Marx a retardar a publicação das duas últimas partes de O capital De 1867 data da publicação do primeiro livro até morrer Marx não dei xou de prosseguir os estudos que o deixavam insatisfeito e de recomeçar a trabalhar naquilo que considerava como a obra de sua vida Assim em setembro de 1878 ele es creve a Danielson que o livro II de O capital estará pronto para impressão no fim de 1879 mas em 10 de abril de 1879 declara que não o publicará antes de ter observado o desenvolvimento e o final da crise industrial na Inglaterra 110 tema da baixa secular da taxa de lucro tem sua origem em David Ricardo e foi desenvolvido especialmente por John Stuart Mill Procurando demonstrar que os particulares têm sempre motivos para investir Ricardo escreve Não é possível haver num país um montante de capital acumulado seja ele qual for que não possa ser emprega OS FUNDADORES 185 do produtivamente até o momento em que os salários tenham aumentado tanto em con seqüência do encarecimento das coisas necessárias que não sobre mais do que uma par te muito pequena para os lucros do capital e que em conseqüência não haja mais moti vo para acumular Príncipes de leconomie politique et de Vimpôt Paris Costes 1934 t II p 90 Para Ricardo em outras palavras a queda da taxa do lucro a zero é apenas uma eventualidade Resultaria do crescimento na repartição do produto da parte dos salá rios nominais se estes fossem forçados à alta pelo aumento relativo dos preços dos bens indispensáveis à sobrevivência Esse aumento dos preços seria por sua vez o resulta do do jogo combinado da expansão da demanda induzida pela demografia e do rendi mento decrescente das terras Mas pensava Ricardo o obstáculo ao crescimento cons tituído pelo rendimento decrescente das terras agrícolas pode ser superado pela abertura ao mundo a especialização internacional e a livre importação do trigo do estrangeiro Mill depois da abolição das Com Laws retoma a teoria de Ricardo no seu Prin cipies ofPolitical Economy with some o f their Applications to Social Philosophy 1848 mas dá uma versão mais evolutiva e a mais longo prazo que se aproxima das teses es tagnacionistas modernas A baixa da taxa de lucro é a tradução contábil no nível da em presa da marcha da sociedade para o estado estacionário no qual não haverá mais acumu lação pura de capital A lei dos rendimentos decrescentes está nas origens desta baixa do lucro até zero 12 Numa análise de inspiração keynesiana podese dizer no máximo que a taxa de lucro da última unidade de capital cujo investimento é necessário para manter o ple no emprego eficácia marginal do capital não deve ser inferior à taxa de juros do di nheiro tal como a determina a preferência pela liqüidez dos que possuem dinheiro vivo Mas um esquema deste tipo é na verdade dificilmente integrável à teoria econômica marxista cujos instrumentos intelectuais são prémarginalistas Há aliás uma certa con tradição na análise econômica de Marx entre a lei da baixa tendencial da taxa de lucro que implicitamente supõe a lei dos escoamentos dos autores clássicos e a tese da crise pelo subconsumo dos trabalhadores que implica o bloqueio do crescimento por falta de demanda efetiva A distinção entre curto prazo e longo prazo não permite solucio nar o problema porque essas duas teorias não têm por objetivo explicar a tendência longa e as flutuações mas sim uma crise geral de todo o sistema econômico Cf Joan Robinson An Essay on Marxian Economics Londres Macmillan 1942 13 Em carta escrita a Joseph Weydemeyer em 5 de março de 1852 Marx afirma No que me concerne não me cabe o mérito de ter descoberto nem a existência das clas ses na sociedade moderna nem a luta das classes entre si Muito tempo antes de mim historiadores burgueses já tinham descrito o desenvolvimento histórico dessa luta de classes e economistas burgueses haviam mostrado a anatomia econômica dessas lutas O que fiz de novo foi 1 demonstrar que a existência das classes só está ligada a fases de determinado desenvolvimento histórico da produção 2 que a luta das classes con duz necessariamente à ditadura do proletariado 3 que essa ditadura constitui apenas a transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes In Karl MarxF Engels Études philosophiques Paris Éd Sociales 1951 p 125 14 A Kojève Introduction à la lecture de Hegel Paris Gallimard 1947 186 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Para a interpretação marxista de Hegel vide também G Lukács Der Junge Hegel ZuriqueViena 1948 e a análise desse livro feita por J Hyppolite em Etudes sur Marx et Hegel Paris M Rivière 1955 pp 82104 G Lukács chega a chamar de lenda reacionária o tema de um período teológico em Hegel e estuda a crítica da obra de Adam Smith feita por Hegel nas suas obras de juventude Hegel teria visto as contradições essenciais do capitalismo sem naturalmen te ter chegado a encontrar a solução o que estava reservado para Marx expor 15 G Gurvitch La sociologie de Karl Marx Paris Centre de Documentation Uni versitaire 1958 mimeografado 93 pp Les fondateurs de la sociologie contemporai ne I SaintSimon sociologue Paris Centre de Documentation Universitaire 1955 mi meografado G Gurvitch pretendendo reduzir ao máximo a herança hegeliana de Marx deu uma interpretação das origens do pensamento marxista que enfatiza o saintsimonismo de Marx Mostra a meu ver de modo convincente as influências saintsimonianas sobre o pensamento do jovem Marx Marx descende em linha direta de SaintSimon e do saintsimonismo de Hegel ele apenas toma a terminologia e o hegelianismo de esquer da nada mais é do que a influência saintsimoniana às vezes abertamente reconhecida sobre certos hegelianos Proudhon por seu lado utiliza enormemente SaintSimon mas é um saintsimoniano revoltado que submete o saintsimonismo a uma crítica arrasado ra Mas ao mesmo tempo foi ele que ao democratizar o saintsimonismo e associálo ao movimento operário levou Marx a uma ligação mais profunda com o saintsimonismo um saintsimonismo proudhonizado que foi a fonte principal de Marx não apenas no início mas ao longo de todo seu itinerário intelectual In SaintSimon sociologue op cit pp 78 Mais adiante depois de citar algumas frases de SaintSimon do tipo A ciência da liberdade tem seus fatos e suas generalidades como todas as outras Se qui sermos ser livres criemos nós mesmos nossa liberdade e não a esperemos de fora Gurvitch escreve Os textos de juventude de Marx principalmente a quarta tese sobre Feuerbach levaram alguns marxistas a falar da filosofia de Marx como de uma filoso fia da liberdade ou de uma ciência da liberdade É a posição de Henri Lefebvre que atri bui a Hegel o filósofo mais fatalista que se conhece a origem desse aspecto do pen samento de Marx Na realidade a ciência da liberdade em Marx na medida em que é possível encontrar uma vem com toda a evidência de SaintSimon Ibid p 25 Não duvido de que Marx possa ter no seu meio encontrado as idéias saintsimo nianas pelo simples motivo de que essas idéias circulavam na Europa quando Marx era jovem e se encontravam sob uma forma ou outra por toda a parte particularmente na imprensa da mesma forma como encontramos hoje por exemplo sob todas as formas as teorias sobre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento No entanto se Marx co nheceu as idéias saintsimonianas ele não pôde extrair delas aquilo em que a meu ver consiste o centro de sua própria sociologia Marx encontrou no saintsimonismo a oposição entre os dois tipos de sociedades as sociedades militares e as sociedades industriais as idéias sobre a aplicação da ciên cia à indústria a renovação dos métodos de produção a transformação do mundo graças à indústria Mas o centro do pensamento marxista não é uma concepção saintsimonia na ou comtista da sociedade industrial O centro do pensamento marxista é o caráter OS FUNDADORES 187 contraditório da sociedade industrial capitalista Ora a idéia das contradições intrínse cas do capitalismo não está incluída na herança de SaintSimon ou de Comte SaintSimon e Comte têm em comum a primazia da idéia de organização sobre a idéia de conflitos sociais Nem um nem outro acredita que os conflitos sociais sejam a mola principal dos movimentos históricos Nem um nem outro pensa que a sociedade de seu tempo esteja dividida por contradições insolúveis A meu ver o centro do pensamento marxista está no caráter contraditório da socie dade capitalista e no caráter essencial da luta de classes por isso recusome a ver a influência de SaintSimon como uma das principais influências que formaram o pen samento marxista Sobre o problema das relações entre Marx e SaintSimon ver também o artigo de Aimé Patri SaintSimon et Marx Le contrat social janeiro 1961 vol V n 1 16 La phénoménologie de 1esprit trad francesa de Jean Hyppolite 2 vols Paris Aubier 1939 e 1941 Précis de Vencyclopédie des sciences philosophiques trad de J Gibelin Paris Vrin La phénoménologie de Vesprit é de 1807 a Encyclopédie des sciences philosophiques teve durante a vida de Hegel três edições 17 Grundlinien der Philosophie des Rechts publicado por Hegel em 1821 em Ber lim Tratase de uma seção mais desenvolvida da Enciclopédia Tradução francesa Hegel Principes de la philosophie du droit trad de A Kaan Paris prefácio de J Hyppolite Gallimard 1940 reeditado na coleção Idées Paris Gallimard 1963 18 Existem dois textos que contêm uma crítica da Filosofia do direito de Hegel O primeiro é Kritik des Hegelschen Rechtsphilosophie Einleitung texto curto já era conhecido pois foi publicado por Marx em 1844 em Paris na revista que dirigia com A Ruge Deutschfranzõsische Jahrbücher ou Annales francoallemandes O outro é Kritik des Hegelschen Staatsrechts d i Hegels Rechtsphilosophie texto muito mais longo comportando uma crítica linha a linha de uma fração da Philosophie du droit de Hegel e que foi publicado somente nos anos trinta por D Riazanov em Moscou em nome do Instituto MarxEngels e por Landshut e Meyer em Leipzig Sobre esse ponto ver o estudo de J Hyppolite La conception hégélienne de 1État et sa critique par K Marx in Études sur Marx et Hegel Paris M Rivière 1955 pp 120141 19 Alguns textos idílicos de Marx chegam a pintar uma sociedade futura em que os homens iriam pescar pela manhã trabalhariam à tarde e à noite cultivariam o espí rito O que não é uma representação absurda Conheci de fato trabalhadores de kibutz em Israel que liam à noite as obras de Platão Mas esse é um caso excepcional pelo rnenos até agora Na Ideologia alemã Marx escreve A partir do momento em que o trabalho co meça a ser dividido cada um passa a ter uma esfera de atividade exclusiva e determi nada que lhe é imposta e da qual não pode sair ele é caçador pescador ou crítico e tem que permanecer para não perder os meios de vida na sociedade comunista no entan to em que o indivíduo não está preso a uma esfera exclusiva de atividade mas pode aperfeiçoarse no ramo que mais lhe agrade a sociedade regulamenta a produção geral e me dá assim a possibilidade de fazer uma coisa hoje outra amanhã de caçar pela ma nhã pescar depois do almoço e praticar a pecuária de tarde de fazer crítica depois do 188 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO jantar de acordo com meu belprazer sem nunca me tornar caçador pescador criti co Desse modo serão abolidos este fracionamento da atividade social esta conso lidação do nosso próprio produto num poder objetivo que nos domina escapando ao nosso controle contrapondose às nossas expectativas reduzindo a nada nossos cálcu los Uidéologie allemande trad de Renée Cartelle baseada na edição Mega Paris Éd Sociales 1962 pp 3132 20 Oeknomischphilosophische Manuskripte Textos escritos por Marx em Paris em 1844 e que ficaram inéditos até 1932 data em que foram editados por D Riazanov nas Éditions Mega I e também por S Landshut e J P Meyer em dois volumes de textos de Marx com o título Der Historische Materialismus A Krõner Leipzig A edição francesa de J Molitor t VI de Oeuvres philosophiques edição Costes foi feita com base na publicação de Leipzig que continha inúmeros erros Uma nova tradução fran cesa com base na edição Mega corrigida foi feita por E Bottigelli e publicada com o títu lo Manuscrits de 1844 Économie politique et philosophie para a edição das obras com pletas de Karl Marx das Éd Sociales Oeuvres complètes Paris 1962 Há também uma tradução de Rubel no 2 volume da edição Pléiade 1968 21 Em Hegel os três termos traduzidos em francês por aliénation alienação são Verãusserung Entãusserung e às vezes Entfremdung Para Hegel a alienação é o mo mento dialético da diferença da cisão entre o sujeito e a substância É um processo enriquecedor é preciso que a consciência percorra as múltiplas alienações para se enri quecer com determinações que no fim a constituirão como uma totalidade No prin cípio do capítulo sobre o Saber Absoluto Hegel escreve A alienação da consciência de si coloca a reificação e esta alienação não tem só um significado negativo mas tam bém positivo não é só para nós ou em si porém para ela mesma Para ela a negativa do objeto ou a autosupressão deste tem significação positiva em outras palavras a cons ciência de si conhece esta nulidade do objeto porque ela própria se aliena porque nessa alienação ela se coloca a si mesma como objeto ou em virtude da unidade indivisível do serparasi coloca o objeto como simesmo Assim é o movimento da consciência e no movimento ela é a totalidade de seus momentos A consciência deve se referir ao objeto segundo a totalidade de suas determinações e têlo apreendido segundo cada uma dentre elas Phénoménologie deVesprit trad Hyppolite t II pp 293294 Marx dá uma interpretação diferente da alienação porque num certo sentido a totalidade já é dada desde o ponto de partida JY Calvez La pensée de Karl Marx Paris Éd du Seuil 1956 p 53 Segundo Marx Hegel teria confundido objetivação isto é a exteriorização do homem na natureza e no mundo social e alienação Como escreve J Hyppolite comentando Marx A alienação não é a objetivação A objetiva ção é natural Não é uma maneira de a consciência se tomar estranha a si mesma mas de se exprimir naturalmente Logique et existence Paris PUF 1953 p 236 Marx se expressa assim O ser objetivo age de maneira objetiva e não agiria objetivamente se a objetividade não estivesse incluída na determinação de sua essência Ele não cria ele só estabelece objetos porque ele próprio é ordenado pelos objetos porque na ori gem ele é natureza Manuscrits de 1844 Éd Sociales p 136 Essa distinção baseada num naturalismo conseqüente segundo o qual o homem é de modo imediato ser da natureza ibid permite que Marx retenha apenas o aspec OS FUNDADORES 189 to crítico da noção de alienação e das determinações sucessivas da consciência tais como estão expostas na Fenomenologia do espírito A Fenomenologia é uma crítica oculta ainda obscura por si mesma e mistificante mas na medida em que ela aborda a alienação do homem embora o homem apareça apenas sob a forma de espírito encontramos ocultos nela todos os elementos da crítica e estes já estão freqüentemen te preparados e elaborados de uma maneira que ultrapassa de muito o ponto de vista hegeliano Ibid p 131 Para um comentador de Hegel como Jean Hyppolite essa diferença radical entre Hegel e Marx na concepção da alienação tem sua origem no fato de que enquanto Marx parte do homem como ser da natureza ou seja de uma positividade que não é em si uma negação Hegel descobriu essa dimensão da pura subjetividade que é nada op cit p 239 Para Hegel no início dialético da história existe o desejo sem limite do reconhecimento o desejo do desejo do outro um poder sem limite porque sem positi vidade primeira p 241 22 Essa ambigüidade no pensamento de Marx foi salientada particularmente por Kostas Papaioannou La fondation du marxisme in Le contrat social n 6 novem brodezembro de 1961 vol V Uhomme total de Karl Marx in Preuves n 149 julho de 1963 Marx et la critique de 1aliénation in Preuves novembro de 1964 Para Kostas Papaioannou haveria uma oposição radical entre a filosofia do jovem Marx tal como ela se expressa por exemplo nos Manuscritos de 1844 e a filosofia da maturidade tal como é expressa principalmente no terceiro livro de O capital Marx teria substituído o pietismo produtivista que consideraria o trabalho como a essência exclusiva do homem e a participação não alienada na atividade produtiva como o ver dadeiro fim da existência por um saber bem clássico para o qual o desenvolvimento humano que é o único a possuir o valor de um fim em si e que é o verdadeiro reino da liberdade começaria além do domínio da necessidade 23 Essa visão objetiva pode ser considerada aliás segundo os observadores co mo favorável ou desfavorável à paz Uns dizem enquanto os dirigentes soviéticos esti verem convencidos da morte necessária do capitalismo o mundo viverá numa atmos fera de crise Podese contudo dizer no sentido contrário como o faz um sociólogo in glês enquanto os soviéticos acreditarem na sua filosofia não compreenderão nem sua própria sociedade nem a nossa convencidos do seu triunfo necessário eles nos deixa rão viver em paz Praza aos céus que eles continuem a acreditar na sua filosofia 24 Vide JeanPaul Sartre Les communistes et la paix Temps modernes 81 8485 e 101 reeditado in Situations VI Paris Gallimard 1965 384 pp ver também Situations VII Paris Gallimard 1965 342 pp e Critique de la raison dialectique Paris Gallimard 1960 Maurice MerleauPonty Sens etnonsens Paris Nagel 1948 Humanisme et terreur Paris Gallimard 1947 Les aventures de la dialectique Paris Gallimard 1953 25 Sobre a interpretação kantiana do marxismo vide Max Adler Marxistische ProblemeMarxismus und Ethik 1913 Karl Vorlánder Kant und Marx 2 ed 1926 26 L Goldmann Recherches dialectiques Paris Gallimard 1959 27 F Engels AntiDühring O título alemão original é Herrn Eugen Dühring s Umwãlzung der Wissenschaft Publicado primeiramente em Vorwàrts e Volksstaat em 190 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 18771878 Existem duas edições francesas trad de Bracke Éd Costes 3 vols 19311933 trad de Bottigelli Éd Sociales Paris 1950 Vale notar que o AntiDühring foi publicado em vida de Marx que ajudou seu amigo enviandolhe notas sobre diversos pontos de história do pensamento econômico as quais são utilizadas parcialmente por Engels no texto definitivo Cf Karl Marx Oeuvres 11 pp 14941526 J Stalin Matérialisme dialectique et matèrialisme historique 1937 trecho da Histoire du Parti communiste bolchevik Pa ris Éd Sociales 1950 28 Lenin Matérialisme et empiriocriticisme Paris Éd Sociales 1948 O livro é de 1908 e Lenin expõe nessa obra um materialismo e um realismo radicais O mundo material percebido pelos sentidos e ao qual nós mesmos pertencemos é a única realida de nossa consciência e nosso pensamento por mais suprasensíveis que pareçam não são mais do que produtos de um órgão material e corporal o cérebro A matéria não é um produto do espírito mas o próprio espírito é o produto superior da matéria ou ainda As leis gerais do movimento tanto do mundo quanto do pensamento humano são idênticas no fundo mas diferentes na sua expressão pois o cérebro humano pode aplicálas cons cientemente enquanto na natureza elas avançam de maneira inconsciente sob a forma de uma necessidade exterior através de uma sucessão infinita de coisas aparentemente for tuitas Esse livro iria tomarse a base do marxismo soviético ortodoxo Numa carta a Gorki de 24 de março de 1908 Lenin reclamará o direito como homem de partido de tomar posição contra as doutrinas perigosas embora ao mesmo tempo propusesse a seu correspondente um pacto de neutralidade em relação ao empiriocriticismo que não justificava dizia uma luta divisionista 29 O ateísmo porém está associado à essência do marxismo de Karl Marx Podese ser crente e socialista mas não crente e discípulo fiel do marxismoleninismo 30 No prefácio à Crítica da economia política Marx escreve As relações jurí dicas não se podem explicar por si mesmas melhor do que as formas do Estado nem por si mesmas nem pela pretensa evolução geral do espírito humano elas se enraízam nas condições materiais da vida Oeuvres 11 p 272 Mais adiante O conjunto das relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade o fundamento real sobre o qual se assenta um edifício jurídico e político Ou ainda As formas jurídicas políticas religiosas artísticas filosóficas em suma as formas ideológicas com as quais os homens tomam consciência do conflito e o levam até o fim Ibid p 273 Um dos capítulos de A ideologia alemã se intitula Relações do Estado e do di reito com a propriedade De modo geral para Marx o Estado e o direito não estão in cluídos nas condições materiais da vida dos povos e são a expressão da vontade domi nante da classe que detém o poder no Estado 31 Eis o texto mais significativo de Marx Le capital liv III t II Éd Sociales pp 102104 Constituição de sociedades por ações Conseqüências 1 Enorme am pliação da escala de produção e empresas que teriam sido inviáveis com capitais isola dos Ao mesmo tempo empresas que antes eram governamentais se constituem em sociedades anônimas 2 O capital que por definição está baseado no modo de pro dução social e pressupõe uma concentração social de meios de produção e de força de trabalho revestese aqui diretamente da forma de capital social capital de indivíduos OS FUNDADORES 191 diretamente associados por oposição ao capital privado essas empresas se apresen tam portanto como empresas sociais por oposição às empresas privadas Isso é a su pressão do capital como propriedade privada dentro dos próprios limites do modo de produção capitalista 3 Transformação do capitalista realmente ativo num simples di rigente e administrador do capital alheio e dos proprietários de capital em simples pro prietários em simples capitalistas financeiros É a supressão do modo de produção capitalista no interior do próprio modo de produção capitalista portanto uma contradi ção que se destrói a si mesma e que com toda a evidência se apresenta como uma sim ples fase transitória para uma nova fase de produção É também como uma contradi ção semelhante que essa fase de transição se apresenta Em certas esferas ela estabe lece o monopólio provocando assim a intromissão do Estado Faz renascer uma nova aristocracia financeira uma nova espécie de parasitas sob a forma de fazedores de pro jetos de fundadores e de diretores simplesmente nominais um sistema completo de vigarice e de fraude em relação à criação à emissão e ao tráfico de ações Essa é a pro dução privada sem o controle da propriedade privada Em Marx o crítico e mesmo o panfletário nunca está distante do analista economista e sociólogo 32 Le capital liv III cap 52 Éd Sociales Paris 1960 pp 259260 Marx pros segue da seguinte forma É sem oposição na Inglaterra que a divisão econômica da so ciedade moderna conhece o seu desenvolvimento mais avançado e mais clássico No entanto mesmo nesse país a divisão em classes não aparece com uma forma pura Tam bém ali os estágios intermediários e transitórios atenuam as demarcações precisas mui to menores no campo do que nas cidades No entanto para o nosso estudo isso não tem importância Vimos que o modo capitalista de produção tende constantemente é a lei da sua evolução a separar sempre cada vez mais meios de produção e trabalho e a concentrar cada vez mais em grupos importantes esses meios de produção dissemina dos transformando assim o trabalho em trabalho assalariado e os meios de produção em capital Por outro lado esta tendência tem como corolário a separação da proprie dade da terra que se torna autônoma em relação ao capital e ao trabalho ou ainda a transformação de toda a propriedade da terra em uma forma de propriedade que cor responde ao modo capitalista de produção A questão inicial é a seguinte O que constitui uma classe A resposta decorre naturalmente da resposta que se dê a esta outra questão o que faz com que os operá rios assalariados os capitalistas e os proprietários de terras constituam as três grandes classes da sociedade À primeira vista é a identidade das rendas e das fontes de rendas Temos aí três grupos sociais importantes cujos membros os indivíduos que os constituem vivem respectivamente do salário do lucro e do rendimento da terra da utilização da sua for ça de trabalho de seu capital e de sua propriedade No entanto desse ponto de vista os médicos e os funcionários por exemplo cons tituiriam também eles duas classes distintas porque pertencem a dois grupos sociais dis tintos cujos membros tiram seus rendimentos da mesma fonte Esta distinção se apli caria da mesma forma à infinita variedade de interesses e de situações que a divisão do trabalho social provoca dentro da classe operária da classe capitalista e dos proprie tários de terras sendo que estes últimos por exemplo estão divididos em viticultores 192 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO proprietários de campos de florestas de minas de pesquisas etc Neste ponto o ma nuscrito é interrompido Friedrich Engels 33 As lutas de classes na França 18481850 Escrito entre janeiro e outubro de 1850 O texto que só seria publicado em brochura e com esse título em 1895 se com põe em sua maior parte de uma série de artigos publicados nos quatro primeiros núme ros da Neue Rheinische Zeitung revista econômica e política cuja publicação teve iní cio em Londres no princípio de março de 1850 ver Karl Marx Les luttes de classes en France Paris Éd Sociales 1952 0 18 brumário de Luís Bonaparte Escrito entre dezembro de 1851 e março de 1862 e publicado pela primeira vez em Nova York em 20 de maio de 1852 por Weydemeyer Reeditado por Engels em 1885 foi traduzido em francês pela primeira vez em 1891 e publi cado em Lille Ver Le 18 brumaire de Louis Bonaparte Paris Éd Sociales 1956 34 No primeiro tomo de O capital Marx escreve Agente fanático da acumula ção o capitalismo força os homens sem piedade ou trégua a produzir por produzir obrigandoos assim instintivamente a desenvolver as potências produtivas e as condi ções materiais que só elas podem formar a base de uma sociedade nova e superior O capitalista só é respeitável na medida em que é o capital feito homem Nesse papel ele é como o entesourador dominado por sua paixão cega pela riqueza abstrata o valor Mas o que neste parece ser uma mania individual é no outro o efeito do mecanismo social do qual ele é apenas uma engrenagem O desenvolvimento da produção capita lista necessita um aumento contínuo do capital colocado numa empresa e a concorrên cia impõe as leis imanentes da produção capitalista como leis coercitivas externas a cada capitalista individual Ela não lhe permite conservar seu capital sem aumentálo e ele não pode continuar a aumentálo a não ser com uma acumulação progressiva Oeu vres 11 p 1046 ou ainda Poupai poupai sempre isto é retransformai sem cessar a maior parte possível da maisvalia ou do produto líquido em capital Acumular por acumular produzir por produzir essa é a palavra de ordem da economia política que proclama a missão histórica do período burguês E em momento algum ela se iludiu sobre as dores de parto da riqueza mas para que servem as lamentações que não alte ram em nada as fatalidades históricas Desse ponto de vista se o proletário é apenas uma máquina para produzir maisvalia o capitalismo não é senão uma máquina para capitalizar essa maisvalia Ibid pp 10991100 35 A frase de Marx é a seguinte Entre a sociedade capitalista e a sociedade co munista se situa o período de transformação revolucionária de uma para outra A este período corresponde igualmente uma fase de transição política em que o Estado só po deria ser a ditadura revolucionária do proletariado Oeuvres 11 p 1429 Marx em prega também essa expressão na carta já citada na nota 13 a Joseph Weydemeyer de 5 de março de 1852 e se não a idéia a palavra já se encontrava no Manifesto do Par tido Comunista O proletariado servirseá de sua supremacia política para arrancar pouco a pouco à burguesia toda espécie de capital para centralizar todos os instru mentos de produção nas mãos do Estado isto é do proletário organizado como clas se dominante e para aumentar o mais rapidamente possível a massa das forças pro dutivas Oeuvres t I p 181 OS FUNDADORES 193 Sobre a freqüência com que a expressão ditadura do proletariado é empregada por Marx e Engels ver Karl Draper Marx and the Dictatorship of the Proletariat Cader nos do ISEA série 5 n 6 novembro de 1962 36 Esta desvalorização da ordem política reduzida à econômica encontramos também em SaintSimon e nos liberais de Manchester SaintSimon escrevera no Lor ganisateur vol IV pp 197198 Numa sociedade organizada para o objetivo positivo de trabalhar para a sua pros peridade por meio das ciências das belasartes e das artes aplicadas em oposição por tanto às sociedades militares e teológicas o ato mais importante aquele que consiste em determinar a direção em que a sociedade deve caminhar não pertence mais aos ho mens investidos de funções governamentais Ele é exercido pelo próprio corpo social Além disso o objetivo e o objeto de uma tal organização social estão tão claros tão de terminados que não há mais lugar para o arbítrio dos homens nem mesmo para o das leis Numa tal ordem de coisas os cidadãos encarregados das diferentes funções sociais mesmo as mais elevadas sob certo ponto de vista preenchem apenas papéis subalter nos uma vez que sua função qualquer que seja a sua importância consiste apenas em marchar numa certa direção que não foi escolhida por eles A ação de governar no senti do de ação de comandar é então nula ou quase nula Texto citado por G Gurvitch no Curso sobre os Fundadores da Sociologia Contemporânea Op cit SaintSimon p 29 Sobre o pensamento político de Marx ver Maximilien Rubel Le concept de dé mocratie chez Marx In Le contraí social julho agosto de 1962 Kostas Papaioannou Marx et 1état modeme in Le contrat social julho de 1960 37 Georg Lukács Geschichte und Klassenbewusstsein Berlim 1923 Tradução francesa Histoire et conscience de classe Paris Éd de Minuit col Arguments 1960 38 Para uma análise mais detalhada vide meu estudo Uimpact du marxisme au XXe siècle Boletim de SEDEIS Études n 906 janeiro de 1965 Bibliografia OBRAS DE KARL MARX A bibliografia de Karl Marx é em si mesma quase que uma ciência autônoma não poderíamos dar aqui portanto um repertório completo das obras de Marx Para tanto aliás basta remeter o leitor às duas obras de Rubel Rubel Maximilien Bibliographie des oeuvres de Karl Marx Contém um apêndice com um repertório das obras de F Engels Paris Rivière 1956 Rubel Maximilien Supplément à la bibliographie des oeuvres de Karl Marx Paris Rivière 1960 Em francês há três grandes edições das obras de Marx I Oeuvres completes de Karl Marx Paris Costes Esta tradução compreende Oeuvres philosophiques 9 vols Misère de la philosophie 1 vol Révolution et contrerévolution en Allemagne 1 vol esta obra é hoje atri buída a F Engels Karl Marx devant les jurés de Cologne Révélations sur le procès des com munistes 1 vol Oeuvres politiques 8 vols Herr Vogt et le 18 brumaire de Louis Bonaparte 3 vols Le capital 14 vols Histoire des doctrines économiques 8 vols Correspondance K MarxF Engels 9 vols Apesar do título esta edição não é completa Além disso a tradução principal mente das obras filosóficas de juventude foi feita a partir de textos alemães incomple OS FUNDADORES 195 tos e inexatos Hoje em dia esta edição está esgotada No entanto continua sendo um instrumento de trabalho indispensável pois certas obras como Histoire des doctrines économiques ou Théorie sur la plusvalue só se encontram traduzidas aí II Karl Marx Oeuvres Bibliothèque de la Pléiade Paris Gallimard Esta edição organizada por M Rubel atualmente se compõe de dois volumes O primeiro surgido em 1963 compreende com uma única exceção textos publicados pelo próprio Marx ou seja Misère de la philosophie 1847 Discours sur le libreéchange 1848 Manifeste communiste 1848 Travail salarié et capital 1849 Introduction générale à la critique de Véconomie politique redigido em 1857 Critique de Véco nomie politique 1859 Uadresse inaugurale et les status de VAIT 1869 Salaire prix et plusvalue 1865 Le capital liv I 1867 Critique du programme de Gotha 1875 Para o livro I de Le capital foi adotada a tradução feita em 1875 por Joseph Roy Marx colaborou longamente nessa tradução e em sua nota para os leitores franceses escreveu que ela possuía um valor científico independente do original e deveria ser consultada mesmo pelos leitores familiarizados com a língua alemã O segundo volume que surgiu em 1968 compreende textos econômicos que não foram publicados pelo próprio Marx ou seja Economie et philosophie os manuscritos parisienses de 1844 Salaire notas de 1847 Príncipes d une critique de Véconomie politique redigidos em 18571858 Matériaux pour Véconomie redigidos em 18611865 os livros II e III de Le capital Em apêndice encontramse notas e cartas de Marx Esta edição é um monumento de erudição O primeiro volume contém uma longa cronologia bibliográfica organizada por M Rubel o segundo contém uma introdução de M Rubel sobre a formação do pensamento econômico de Marx e a história dos textos econômicos Mas nos livros II e III de Le capital a escolha dos textos e apresentação dife rem das de Engels o que toma o livro pouco utilizável Lamentase também que M Rubel tenha julgado possível modificar a apresentação do livro I de Le capital que no entanto havia sido editada quando Marx era vivo As citações das obras cuja tradução foi publicada no primeiro volume foram feitas segundo esta edição III Oeuvres complètes de Karl Marx Paris Éd Sociales Ainda não inteiramente publicada como a anterior esta edição cujas traduções são feitas a partir das edições do Instituto MarxEngels de Moscou contém atualmente as grandes obras históricas Les luttes de classe en France 18481850 Le 18 brumaire de Louis Bonaparte La guerre civile en France os três livros de Le capital liv I 3 vols liv II 2 vols liv III 3 vols A tradução do livro I é a que foi realizada em 1875 por Joseph Roy e revista por Marx A tradução dos livros II e III é nova e foi feita a partir da edição de Engels Esta edição de Le capital é preciosa pois contém ao contrário da de M Rubel os prefácios e introdução integrais de Marx e Engels 196 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Contribution à la critique de l économie politique Travail salariè et capital e Salaire prix et projit Misère de la philosophie Lidéologie allemande edição integral Les manuscrits de 1844 edição integral Manifeste du parti communiste Critique des programmes de Gotha et dErfurt La nouvelle gazette rhénane 11 As citações das obras de Marx que não foram publicadas no tomo I da edição da Pléiade foram feitas de acordo com esta edição IV Além dessas duas últimas edições gerais devem ser assinaladas três edições de tex tos particulares Marx Karl La question juive col 1018 Paris Union Générale dÉditions 1968 Marx Karl Fondements de la critique de l économie politique Paris Anthropos 11 1967 t II 1968 Marx Karl Lettres à Kugelman Paris Anthropos 1967 V Há numerosas antologias das obras de Marx Citemos entre outras Marx Karl Pages choisies pour une éthique socialiste seleção de M Rubel Paris Rivière 1948 Marx Karl Oeuvres choisies seleção de N Guterman e H Lefebvre col Idées Paris Gallimard 11 1963 t II 1966 Marx K e Engels F Étudesphilosophiques nova ed Paris Éd Sociales 1961 Marx K e Engels F Sur la littérature e t l art Paris Éd Sociales 1954 Marx K e Engels F Sur la religion Paris Éd Sociales 1960 Marx K e Engels F Lettres sur Le capital Paris Éd Sociales 1964 BIOGRAFIAS DE MARX Berlin I Karl Marx sa vie son oeuvre col Idées Paris Gallimard 1962 Blumenberg W Marx Paris Mercure de France 1967 Comu A Karl Marx sa vie et son oeuvre Alcan 1934 Comu A Karl Marx et Friedrich Engels Paris PUF 3 vols I Les annèes d enfance et de jeunesse la gaúche hégélienne 181818201844 1955 II Du libéralisme dé mocratique au communisme La gazette rhénane Les annales francoallemandes 18421844 1958 III Marx à Paris 1962 Mehring F Karl Marx Geschichte seines Lebens Leipzig Soziologische Verlagsanstalt 1933 tradução inglesa Karl Marx the Story ofhis Life Londres Allen and Unwin 1966 Nicolaievski B e MaenchenHelfen O Karl Marx Paris Gallimard 1937 Riazanov D Marx et Engels Paris Anthropos 1967 Riazanov D Marx homme penseur et révolutionnaire Paris Anthropos 1968 OS FUNDADORES 197 OBRAS CONSAGRADAS AO PENSAMENTO DE MARX Althusser L Pour Marx Paris Maspéro 1965 Althusser L Rancière J e Macheray P Lire Le capital 11 Paris Maspéro 1965 Althusser L Balibar E e Establet R Lire Le capital t II Paris Maspéro 1965 Andler Ch Le manifeste communiste de Karl Marx et Engels Introduction historique et commentaire Paris Rieder 1925 Bendix R e Lipset S M Karl Marxs Theory of Social Classes in R Bendix e S M Lipset eds Class Status and Power 2 ed Londres Routledge and Kegan 1967 pp 611 Calvez J Y La pensée de Karl Marx Paris Le Seuil 1956 Dahrendorf R Class and Class Conflict in Industrial Society Londres Routledge and Kegan 1959 primeira parte The Marxian Doctrine in the Light of Historical Changes and Sociological Insights pp 3154 Fallst J Marx et le machinisme Paris Cujas 1966 Gurvitch G La vocation actuelle de la sociologie Paris PUE 1950 Gurvitch G La sociologie de Karl Marx Paris CDU 1958 Hook S From Hegel to Marx Studies in the Intellectual Development of Karl Marx Nova York Reynal Hitchcock 1936 Lefebvre H Sociologie de Marx Paris PUF 1966 Lefebvre H Pour connaitre la pensée de Karl Marx Paris Bordas 1947 Lichtheim G Marxism an Historical and Criticai Study Nova York Praeger 1961 Lindsay A D Karl Marx s Capital Londres Oxford University Press 1931 Pareto V Les systèmes socialistes Paris Girard et Brière 11 1902 t II 1903 os capí tulos sobre Marx estão no t II pp 322456 Parsons T Sociological Theory and Modem Society Nova York The Free Press 1967 cap 4 pp 102135 Some Comments on the Sociology of Karl Marx Rubel M Karl Marx Essai de biographie intellectuelle Paris Rivière 1957 Rubel M Karl Marx devant le bonapartisme Paris La Haye Mouton 1960 Schumpeter J Capitalisme socialisme et démocratie Paris Payot 1950 só a primeira parte deste livro intitulada La doctrine marxiste referese diretamente ao pen samento de Marx pp 65136 OBRAS SOBRE A ECONOMIA POLÍTICA DE KARL MARX Bartoli H La doctrine économique et sociale de Karl Marx Paris Le Seuil 1950 Bénard J La conception marxiste du capital Paris Sedes 1952 Von BõhmBawerk E Histoire critique des théories de Vintérêt et du capital Paris Girard et Brière 11 1902 t II 1903 o capítulo relativo à teoria marxista do valor e da exploração está no tomo II pp 70136 Dickinson H D The Falling Rate of Profit in Marxian Economics The Review of Economic Studies fevereiro de 1957 198 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Fellner W Marxian Hypotheses and Observable Trends under Capitalism a Modemized Interpretation Economic Journal março de 1957 Gottheil F M Marx s Economic Predictions Evanston Northwestern University Press 1966 Lange O Économie politique 11 Problèmes généraux Paris PUF 1960 Lange O Marxian Economics and Modern Economic Theory The Review of Eco nomic Studies junho de 1935 Luxemburg R Uaccumulation du capital Paris Maspéro 1967 2 vols Mandei E La formation de la pensée économique de Karl Marx Paris Maspéro 1967 Robinson J An Essay on Marxian Economics Londres Mac Millan 1942 Samuelson P A Wages and Interest Marxian Economic Models American Econo mic Review dezembro de 1957 Sweezy P M The Theory o f Capitalist Development Principies o f Marxian Political Economy Londres D Dobson 1946 Sweezy P M de ed Karl Marx and the close o f his system de E von BõhmBawerk BõhmBawerks Criticism ofMarx de Hilferding juntamente com um apêndice de L von Bortkiewicz On the Correction o f Marx s Fundamental Theoretical Cons truction in the Third Volume o f Capital Nova York A M Kelley 1949 Esta obra contém três dos textos econômicos mais importantes suscitados pela teoria marxis ta do valor o ensaio de BõhmBawerk foi publicado pela primeira vez sob o títu lo Zum Abschluss des Marxschen Systems em Festgaben für Karl Knies em Berlim em 1896 A resposta de Hilferding é de 1904 Wiles P J D The Political Economy o f Communism Oxford Basil and Blackwell 1962 Wolfson M A Reappraisal o f Marxian Economics Nova York Columbia University Press 1966 O número da American Economic Review de maio de 1967 contém sob o título geral Das Kapital a Centenary Appreciation três artigos que reproduzem comu nicações feitas no congresso da American Economic Association de dezembro de 1966 A Ehrlich Notes on Marxian Model of Capital Accumulation P A Sa muelson Marxian Economics as Economics M Bronfenbrenner Marxian In fluences in Bourgeois economics A revista Économie et sociétés cadernos do ISEA série S junho de 1967 tam bém dedicou um número especial ao centenário de O capital Esse número contém artigos de M Rubel P Mattick e B Ollman assim como artigos inéditos de Marx e a reedição de um artigo de O Bauer OBRAS SOBRE O MARXISMO Aron R Ulam A B Wolfe B D et al De Marx à Mao Tsétoung Un siècle d in ternationale marxiste Paris CalmannLévy 1967 Chambre H Le marxisme en Union Soviétique Paris Le Seuil 1955 Drachkovitch M M ed Marxist Ideology in the Contemporary World Nova York Praeger 1966 OS FUNDADORES 199 Labedz Léopold ed Revisionism Essays on the History of Marxist Ideas Nova York Praeger 1962 Papaioannou K Les marxistes antologia comentada Paris Éd Jai lu 1965 Wetter GA Le matérialisme historique et le matérialisme dialectique t I Uidéolo gie soviétique contemporaine Paris Payot 1965 Wolfe BD Le marxisme Paris Fayard 1967 OBRAS EM PORTUGUÊS Engels Friedrich Dialéctica da natureza Tradução de Joaquim José Moura Ramos e Eduardo Lúcio Nogueira 2 ed Lisboa Presença São Paulo Martins Fontes sd Engels Friedrich A origem da família da propriedade privada e do Estado Tradução de H Chaves sd Lisboa Presença Laski Harold J O manifesto comunista de Marx e Engels Em apêndice A significação do Manifesto Comunista na sociologia e na economia por J A Schumpeter Trad de Regina Lúcia F de Moraes e Cassio Fonseca Apêndice 2 ed Rio de Janeiro Zahar 1978 Marx Karl O capital crítica da economia política Livro primeiro O processo de pro dução do capital Tradução de Reginaldo SantAnna 6 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1980 2 vols Marx Karl O capital critica da economia política Livro segundo O processo de cir culação do capital Trad de Reginaldo SantAnna Rio de Janeiro Civilização Bra sileira Lisboa Centro do Livro Brasileiro sd Marx Karl O capital crítica da economia política Livro terceiro O processo global da produção capitalista Tradução de Reginaldo SantAnna Rio de Janeiro Civi lização Brasileira Lisboa Centro do Livro Brasileiro sd 3 vols Marx Karl Contribuição à crítica da economia política Trad de Maria Helena B Alves São Paulo Martins Fontes 1977 Marx Karl Formações econômicas précapitalistas Introdução de Eric Hobsbawm Tradução de João Maia revista por Alexandre Addor 3 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1981 Marx Karl e Engels Friedrich A ideologia alemã crítica da filosofia alemã mais recente na pessoa dos seus representantes Feuerbach B Bauer e Stimer e do socialismo alemão na dos seus diferentes profetas Tradução de Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira 4 ed Lisboa Presença São Paulo Martins Fontes sd 2 vols Marx e Engels Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã e outros textos filosóficos antologia Tradução de Isabel Vale Fernando Guerreiro Antônio Reis e Antônio Melo 3 ed Lisboa Estampa sd Marx Karl Manuscritos econômicofilosóficos e outros textos escolhidos seleção de textos de José Arthur Gianotti Tradução de José Carlos Bruni Edgar Malagodi José Arthur Gianotti Walter Rehfeld e Leandro Konder 2 ed São Paulo Abril Cultural 1978 Os pensadores 200 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Marx Karl Miséria da filosofia Tradução de Luís M Santos Lisboa Estampa c 1 9 7 8 Marx Karl e Engels Friedrich Obras escolhidas São Paulo AlfaÔmega s d 3 vols Marx Karl A origem do capital a acumulação primitiva Tradução de Walter S Maia São Paulo Global sd Marx Karl e Engels Friedrich A sagrada família Trad de Fiama Hasse Pais Brandão João Paulo Casquilho e José Bettencourt 2 ed Lisboa Presença São Paulo Martins Fontes sd Marx Karl Teoria da maisvalia Trad de Reginaldo SantAnna Rio de Janeiro Ci vilização Brasileira 1981 Publicado o primeiro volume Marx Karl Textos filosóficos Tradução de Maria Flor Marques Simões Lisboa Es tampa sd Alexis de Tocqueville Quem procura na liberdade outra coisa que não seja a própria liber dade é feito para servir UAncien Régime et la Rèvolution III 3 p 217 Em geral Tocqueville não figura entre os inspiradores do pensamento so ciológico Essa falta de reconhecimento de uma obra importante me parece in justa Contudo tenho outra razão para analisar seu pensamento Ao analisar o pen samento de Montesquieu como o de Auguste Comte e Marx coloquei no cen tro de minhas análises a relação entre os fenômenos econômicos e o regime político ou o Estado partindo regularmente da interpretação que esses autores davam à sociedade em que viviam O diagnóstico do presente constituía o fato bá sico a partir do qual tentava interpretar o pensamento desses sociólogos Neste particular porém Tocqueville difere tanto de Comte como de Marx Em vez de pintar a preponderância do fato industrial como Comte ou do fato capitalista como Marx ele atribui primazia ao fato democrático Uma última razão da minha escolha é o modo como o próprio Tocqueville concebe sua obra ou seja em termos modernos o modo como concebe a so ciologia Tocqueville parte da determinação de certos traços estruturais das socie dades modernas para a comparação das diversas modalidades dessas socieda des Comte observava a sociedade industrial e sem negar que ela comporta di ferenças secundárias de acordo com as nações e os continentes acentuava as características comuns a todas as sociedades industriais Tendo definido a socie dade industrial pensava ser possível a partir dessa definição indicar as carac terísticas da organização política e intelectual de qualquer sociedade industrial Marx definiu o regime capitalista e descreveu certos fenômenos que segundo ele seriam encontráveis em todas as sociedades capitalistas Comte e Marx con cordam portanto quando insistem nos traços genéricos de toda sociedade seja industrial seja capitalista subestimando contudo a margem de variação da socie dade industrial ou do regime capitalista 202 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Tocqueville ao contrário constata certas características associadas à es sência de toda sociedade moderna ou democrática mas acrescenta que a par tir desses fundamentos comuns há uma pluralidade de regimes políticos possí veis As sociedades democráticas são liberais ou despóticas podem e devem assumir características distintas nos Estados Unidos e na Europa na Alemanha e na França Tocqueville é o sociólogo comparativista por excelência procura identificar o que é importante confrontando espécies de sociedade pertencen tes a um mesmo gênero ou a um mesmo tipo Nos países anglosaxões Tocqueville é considerado um dos mais importan tes pensadores políticos comparável a Montesquieu no século XVIII Na França porém nunca foi objeto de interesse por parte dos sociólogos porque a moderna escola de Durkheim se originou da obra de Auguste Comte Por isso os sociólo gos franceses acentuaram os fenômenos da estrutura social em detrimento dos fe nômenos das instituições políticas Provavelmente pelo mesmo motivo Tocque ville não costuma figurar na França na lista dos grandes mestres Democracia e liberdade Tocqueville escreveu dois livros principais A democracia na América e UAncien Régime et la Révolution O Antigo Regime e a Revolução Postuma mente foi publicado um volume de memórias da Revolução de 1848 e da sua passagem pelo Ministério dos Assuntos Estrangeiros como também sua corres pondência e discursos O essencial contudo são os dois grandes livros citados um sobre os Estados Unidos da América o outro sobre a França que constituem por assim dizer as duas partes de um díptico O livro sobre os Estados Unidos da América procura responder à seguinté indagação por que nos Estados Unidos a sociedade democrática é liberal UAncien Régime et la Révolution pergunta por que a França encontra tanta di ficuldade no curso da sua evolução rumo à democracia para manter um regi me político de liberdade Precisamos portanto definir inicialmente a noção de democracia ou de sociedade democrática que se encontra em toda a obra de Tocqueville do mes mo modo como definimos preliminarmente a noção de sociedade industrial em Auguste Comte e a de capitalismo em Marx Essa tarefa apresenta alguma dificuldade já se disse que Tocqueville em pregava constantemente a noção de sociedade democrática sem nunca definila com rigor Quase sempre ele emprega essa expressão para designar um certo tipo de sociedade mais do que um certo tipo de poder Há um texto de D e la dém ocra cie en Amérique bastante revelador da maneira de Tocqueville OS FUNDADORES 203 Se vos parece útil desviar a atividade intelectual e moral do homem para aten der às necessidades da vida material empregandoa na produção do bemestar se a razão vos parece mais útil aos homens do que o gênio se vossa finalidade não é criar virtudes heróicas mas hábitos tranqüilos se tendes preferência por ver vícios em vez de crimes e se preferis encontrar menos ações grandiosas a fim de encontrar menos ações hediondas se em lugar de agir no seio de uma sociedade brilhante vos parece suficiente viver no meio de uma sociedade próspera se por fim o objetivo principal do governo não é segundo vossa opinião dar a maior força ou a maior glória possível a todo o corpo da nação mas sim garantir a cada um dos indivíduos que a compõem o maior bemestar resguardandoo da miséria neste caso devereis igualizar as condições para constituir o governo democráti co Se não há mais tempo de fazer uma escolha e uma força superior à do homem vos arrasta sem consultar vossos desejos a um dos dois tipos de governo procu rai pelo menos extrair dele todo o bem de que é capaz conhecendo seus bons ins tintos e também suas más inclinações esforçaivos por promover os primeiros e restringir estas últimas O C 11 vol 1 p 256 Este texto muito eloqüente repleto de antíteses retóricas é característico do estilo da linguagem e diria mesmo do fundo do pensamento de Tocqueville A seus olhos a democracia consiste na igualização das condições Demo crática é a sociedade em que não subsistem distinções de ordens e de classes em que todos os indivíduos que compõem a coletividade são socialmente iguais o que não significa que sejam intelectualmente iguais o que é absurdo ou eco nomicamente iguais o que para Tocqueville é impossível A igualdade social significa a inexistência de diferenças hereditárias de condições quer dizer que todas as ocupações todas as profissões dignidades e honrarias são acessíveis a todos Estão portanto implicadas na idéia da democracia a igualdade social e também a tendência para a uniformidade dos modos e dos níveis de vida Mas se essa é a essência da democracia compreendese que o governo adap tado a uma sociedade igualitária seja aquele que em outros textos Tocqueville chama de governo democrático Se não há uma diferença essencial de condição entre os membros da coletividade é normal que a soberania pertença ao con junto dos indivíduos Voltase a encontrar assim a definição de democracia de Montesquieu e dos autores clássicos O conjunto do corpo social é soberano porque a participação de todos na escolha dos governantes e no exercício da autoridade é a expressão lógica de uma sociedade democrática isto é de uma sociedade igualitária Além disso uma sociedade dessa ordem em que a igualdade constitui a lei social e a democracia o caráter do Estado é também uma sociedade que tem por objetivo prioritário o bemestar do maior número possível É uma socieda de que não tem por objeto o poder ou a glória mas sim a prosperidade e a tran qüilidade uma sociedade que chamaríamos de pequenoburguesa Descendente 204 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de uma grande família Tocqueville oscila nos seus julgamentos a respeito da sociedade democrática entre a severidade e a indulgência entre uma reticência do seu coração e uma adesão hesitante da sua razão Se essa é a característica da sociedade democrática moderna creio que se pode compreender o problema central de Tocqueville a partir de Montesquieu autor que o próprio Tocqueville confessou ter tomado como modelo ao escre verá democracia na América O problema central de Tocqueville é o desenvol vimento de um dos problemas formulados por Montesquieu Segundo este último a república e a monarquia podem ser regimes mode rados com a preservação da liberdade enquanto o despotismo isto é o poder arbitrário de uma só pessoa não é um regime moderado e não pode sêlo Contudo entre os dois regimes moderados a república e a monarquia há uma diferença fundamental a igualdade é o princípio das repúblicas antigas e a de sigualdade das classes ordres e das condições constitui a essência das monar quias modernas ou pelo menos da monarquia francesa Montesquieu conside ra portanto que a liberdade pode ser preservada de acordo com dois métodos ou em dois tipos de sociedade as pequenas repúblicas da antiguidade cujo prin cípio era a virtude e nas quais os indivíduos eram e deviam ser o mais iguais possível as monarquias modernas que são grandes Estados cujo princípio é a honra e em que a desigualdade de condições é por assim dizer a própria con dição de liberdade Com efeito na medida em que cada um se julga obrigado a permanecer fiel aos deveres da sua condição o poder do soberano não se cor rompe em poder absoluto e arbitrário Em outras palavras na monarquia france sa tal como a concebe Montesquieu a desigualdade é o motor e a garantia da liberdade Contudo estudando a Inglaterra Montesquieu tinha examinado o regime representativo fenômeno novo para ele Constatara que naquele país a aristo cracia se dedicava ao comércio mas nem por isso se corrompia Tinha visto uma monarquia liberal baseada na representação e no primado da atividade mercantil O pensamento de Tocqueville pode ser considerado como o desenvolvi mento da teoria de Montesquieu sobre a monarquia inglesa Escrevendo depois da Revolução Tocqueville não pode conceber que a liberdade dos modernos tenha como fundamento e garantia a desigualdade das condições desigualdade cujos fundamentos intelectuais e sociais desapareceram Seria insensato querer restaurar a autoridade e os privilégios de uma aristocracia que fora destruída pela Revolução A liberdade dos modernos para falar à maneira de Benjamin Constant não se pode mais fundamentar como Montesquieu sugeriu na distinção das classes e dos estados A igualdade das condições se tomou o fato mais importante da so ciedade2 OS FUNDADORES 205 A tese de Tocqueville é então esta a liberdade não pode se fundamentar na desigualdade deve assentarse sobre a realidade democrática da igualdade de condições salvaguardada por instituições cujo modelo lhe parecia existir na América Mas que entendia Tocqueville por liberdade Tocqueville não escrevia à maneira dos sociólogos modernos e não nos deixou uma definição por crité rios Creio porém que não é difícil precisar de acordo com as exigências cien tíficas do século XX o que entendia por liberdade Penso aliás que sua con cepção se aproxima muito da de Montesquieu O primeiro termo que constitui a noção de liberdade é a ausência de arbi trariedade Quando o poder só é exercido de acordo com as leis os indivíduos gozam de segurança Mas é preciso desconfiar dos homens e como ninguém tem a virtude necessária para exercer o poder absoluto sem se corromper é pre ciso não dar o poder absoluto a ninguém Tornase necessário como diria Mon tesquieu que o próprio poder imponha limites ao poder que haja uma plurali dade de centros de decisão de órgãos políticos e administrativos equilibran dose uns aos outros E como todos participam da soberania é necessário que os que exercem o poder sejam de certo modo os representantes ou os delegados dos governados Em outras palavras é necessário que o povo tanto quanto lhe seja materialmente possível se governe a si mesmo O problema de Tocqueville pode pois ser resumido assim em que condi ções uma sociedade em que o destino dos indivíduos tende a ser uniforme pode evitar o despotismo Ou ainda como compatibilizar a igualdade e a liberdade Tocqueville porém pertence ao pensamento sociológico tanto quanto à filoso fia clássica da qual deriva por intermédio de Montesquieu Remonta pois ao estudo da sociedade para compreender as instituições da política Antes de ir mais longe convém analisar a interpretação que Tocqueville deu daquilo que aos olhos de seus contemporâneos Auguste Comte ou Marx era essencial porque tal interpretação determina a compreensão exata do seu pensamento Pelo que sei Tocqueville não conheceu a obra de Auguste Comte segura mente ouviu referências a ela mas as idéias de Comte não parecem ter tido ne nhuma influência no seu pensamento Quanto às obras de Marx também não creio que as tenha conhecido O Manifesto comunista era mais célebre em 1948 do que em 1848 Em 1848 não passava de um panfleto de um emigrado político refugia do em Bruxelas não há nenhuma prova de que Tocqueville tenha tido contato com esse panfleto obscuro que teve depois tão grande carreira É evidente porém que Tocqueville se referiu aos fenômenos que Comte e Marx consideravam essenciais a saber a sociedade industrial e o capitalismo Tocqueville concorda com Comte e com Marx a respeito do fato por assim dizer evidente de que as atividades privilegiadas das sociedades modernas são 206 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO a comercial e a industrial É o que afirma a respeito dos Estados Unidos da Amé rica e não duvida de que a tendência seja a mesma na Europa Embora não se exprima da mesma maneira de SaintSimon ou Auguste Comte ele também opõe as sociedades do passado em que predominava a atividade militar às socie dades do seu tempo cujo objetivo e missão eram o bemestar do maior núme ro possível de pessoas Escreveu muitas páginas sobre a superioridade da América em matéria de indústrias e nunca deixou de perceber a característica mais importante da socie dade americana3 Contudo quando mostra essa predominância da atividade co mercial e industrial Tocqueville a interpreta essencialmente com relação ao pas sado e com relação ao seu tema central que é o da democracia Esforçase então por demonstrar que a atividade industrial e comercial não pode reconstituir uma aristocracia do tipo tradicional A desigualdade da sorte implicada pela atividade comercial e industrial não lhe parece contradizer a tendência igualitária das sociedades modernas Em primeiro lugar a riqueza comercial industrial e imobiliária é se pode mos dizer assim móvel Nãó se cristaliza em famílias que mantêm situação pri vilegiada através das gerações Por outro lado entre o industrial e seus operários não se criam laços de solidariedade hierárquica como os que existiam no passado entre os senhores e seus camponeses ou parceiros Os únicos fundamentos históricos de uma ver dadeira aristocracia são a propriedade da terra e a atividade militar Por isso na visão sociológica de Tocqueville as desigualdades de riqueza por maiores que sejam nunca contradizem a igualdade fundamental das condi ções característica das sociedades modernas É verdade que numa determina da passagem Tocqueville indica que na sociedade democrática voltará a se cons tituir uma aristocracia por meio dos líderes industriais4 No conjunto porém não acredita que a indústria moderna leve a uma aristocracia Prefere pensar que as desigualdades de riqueza tenderão a se atenuar à medida que as socie dades modernas se tornem mais democráticas Crê sobretudo que as fortunas industriais e mercantis são muito precárias para originar uma estrutura hierár quica durável Em outras palavras ao contrário da visão catastrófica e apocalíptica do de senvolvimento do capitalismo própria do pensamento de Marx Tocqueville sus tentava desde 1835 a teoria semientusiástica semiresignada mais resignada do que entusiástica do welfare State ou do emburguesamento generalizado E interessante confrontar essas três visões a de Comte a de Marx e a de Tocqueville Uma era a visão organizadora daqueles que hoje chamamos de tec nocratas a outra a visão apocalíptica dos que ontem eram revolucionários a terceira a visão mitigada de uma sociedade em que cada um possui alguma coisa e em que todos ou quase todos estão interessados na conservação da ordem social OS FUNDADORES 207 Pessoalmente creio que dessas três visões a que mais se aproxima das so ciedades européias ocidentais dos anos sessenta é a de Tocqueville Para ser jus to é preciso acrescentar que a sociedade européia dos anos trinta tinha uma ten dência a se aproximar da visão de Marx Resta em aberto portanto a questão de saber qual das três visões se parecerá mais com a sociedade européia dos anos noventa A experiência americana No primeiro tomo de A democracia na América Tocqueville enumera as causas que tomam a democracia americana liberal Essa enumeração nos per mite precisar qual é a teoria dos determinantes sociais que ele assume Tocqueville enumera três tipos de causas segundo um método que lembra bastante o de Montesquieu a situação acidental e particular em que se encontra a sociedade americana as leis os hábitos e costumes A situação acidental e particular inclui tanto o espaço geográfico em que se estabeleceram os imigrantes vindos da Europa como a ausência de Estados vizinhos isto é de Estados inimigos que inspirassem temor Até o momento em que Tocqueville a observa a sociedade norteamericana conheceu situação excepcionalmente favorável com o mínimo de obrigações diplomáticas e o mí nimo de riscos militares Ao mesmo tempo essa sociedade foi instituída por homens que equipados com todo o instrumental tecnológico de uma civiliza ção desenvolvida ocuparam um espaço muito amplo É uma situação sem equi valente na Europa e constitui uma das explicações para a inexistência de uma aristocracia e o primado da atividade industrial De acordo com uma teoria da sociologia moderna à formação das aristo cracias ligadas à terra tem como condição a escassez da terra Ora na América o espaço era tão amplo que a propriedade aristocrática não pôde se constituir Encontramos esta idéia em Tocqueville no meio de muitas outras e não creio que para ele representasse a explicação fundamental Com efeito Tocqueville acentua sobretudo o sistema de valores dos imi grantes puritanos sobre o seu duplo sentido da igualdade e da liberdade e esbo ça uma teoria segundo a qual as características de uma sociedade decorrem das suas origens A sociedade norteamericana teria conservado o sistema moral dos seus fundadores os primeiros imigrantes Tocqueville como bom discípulo de Montesquieu estabelece uma hierar quia entre esses três tipos de causas a situação geográfica e histórica pesou 208 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO menos do que as leis e as leis foram menos importantes do que os hábitos os costumes e a religião Nas mesmas condições mas com outros costumes e ou tras leis teria surgido uma outra sociedade As condições geográficas e histó ricas que analisa são apenas circunstâncias favoráveis As verdadeiras causas da liberdade de que goza a democracia americana são as boas leis e mais ainda os hábitos os costumes e as crenças sem as quais não pode haver liberdade A sociedade americana não pôde representar um modelo para as socieda des européias mas pôde darlhes uma lição mostrando como a liberdade é sal vaguardada numa sociedade democrática Os capítulos dedicados por Tocqueville às leis americanas podem ser estu dados sob dois pontos de vista De um lado podese perguntar em que medida Tocqueville compreendeu exatamente o funcionamento da constituição america na da sua época e em que medida previu as transformações por que passaria Em outras palavras há um tema de estudo possível interessante e legítimo que seria a confrontação da interpretação de Tocqueville com as interpretações cor rentes na sua época ou as de hoje5 Deixarei de lado aqui esse tipo de estudo O segundo método possível consiste em identificar simplesmente as grandes linhas da interpretação de Tocqueville sobre a constituição americana para daí ti rar uma significação com respeito ao problema sociológico geral quais são nu ma sociedade democrática as leis mais propícias à salvaguarda da liberdade Antes de mais nada Tocqueville insiste nos benefícios que proporciona aos Estados Unidos o caráter federativo de sua constituição Uma Constituição fede rativa pode de certo modo combinar as vantagens dos grandes e dos pequenos Estados Em O espírito das leis Montesquieu já tinha desenvolvido esse princí pio que permite dispor da força necessária para a segurança do Estado sem os males das grandes concentrações humanas Em La démocratie en Amérique Tocqueville escreve Se não existissem grandes nações só pequenas a humanidade seguramente seria mais livre e feliz contudo não se pode fazer com que não haja grandes na ções Isto introduz no mundo um novo elemento de prosperidade nacional que é a força Que importa se um povo apresenta imagem de bemestar e liberdade se está exposto todos os dias à pilhagem ou conquista Que importa se é industrial ou comerciante se um outro domina os mares impondo sua lei sobre todos os mer cados As nações pequenas são muitas vezes miseráveis não por serem pequenas mas porque são fracas as grandes são prósperas não por serem grandes mas por serem fortes Portanto a força é muitas vezes uma das primeiras condições de feli cidade e até mesmo de existência das nações Disto decorre que a menos que haja circunstâncias particulares as pequenas nações terminam sempre por serem ane xadas pela violência às grandes ou então se voltam voluntariamente para essa união Não conheço condição mais deplorável do que a de um povo que não pode bas tarse nem defenderse os FUNDADORES i 209 O sistema federativo foi criado para juntar as vantagens diferentes que resul tam da grande e da pequena extensão das nações Basta lançar os olhos sobre os Estados Unidos da América para perceber todos os benefícios que lhes traz a ado ção de tal sistema Entre as grandes nações centralizadas o legislador está obriga do a atribuir às leis um caráter uniforme que não comporta a diversidade dos luga res e dos costumes como nunca está instruído a respeito dos casos particulares só pode proceder por meio de regras gerais Os homens são obrigados assim a se curvar às necessidades da legislação pois esta não sabe como se acomodar às ne cessidades e aos costumes dos homens o que corresponde a uma causa importan te de dificuldades e de miséria Este inconveniente não existe nas confederações O C 11 vol lpp 164165 Tocqueville manifesta portanto um certo pessimismo a respeito da possi bilidade da existência das pequenas nações que não têm a força necessária para se defender É curioso reler hoje esta passagem perguntamonos em razão dessa visão das coisas humanas o que ele diria do grande número de nações incapazes de se defender que surgiram no mundo É possível que revisse sua fórmula geral acrescentando que as nações pequenas podem sobreviver desde que o sistema internacional crie as condições necessárias para a segurança delas De qualquer forma de acordo com a convicção permanente dos filósofos clássicos Tocqueville exige que o Estado seja suficientemente extenso para dispor da força necessária à sua segurança e pequeno o bastante para que sua legislação se adapte à diversidade das circunstâncias e dos meios Uma combi nação que só é possível mediante uma confederação ou uma Constituição fede rativa Este é para Tocqueville o maior mérito das leis americanas Com perfeita clarividência ele percebeu que a Constituição federativa ame ricana garantia a livre circulação de bens pessoas e capitais Em outras pala vras o princípio federativo bastava para impedir formação de barreiras alfan degárias internas e impedir a desarticulação da unidade econômica constituída pelo território americano Em último lugar de acordo com Tocqueville Existem dois perigos prin cipais que ameaçam a existência das democracias a subordinação completa do poder legislativo à vontade do corpo eleitoral e a concentração no poder legis lativo de todos os outros poderes do governo O C 11 vol 1 p 158 Esses dois perigos estão enunciados em termos tradicionais Para Montes quieu ou Tocqueville um governo democrático não deve ser tal que o povo possa se abandonar a todos os impulsos passionais e determinar as decisões do governo Por outro lado segundo Tocqueville todo regime democrático tende à centralização do poder no corpo legislativo Ora a Constituição norteamericana previu a divisão do legislativo em duas assembléias instituiu uma presidência que na época Tocqueville considerava 210 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO fraca mas que era relativamente independente das pressões diretas do corpo eleitoral ou do corpo legislativo Além disso nos Estados Unidos o espírito le galista substitui a aristocracia pois o respeito das formas jurídicas é favorável à salvaguarda das liberdades Tocqueville constata ainda a pluralidade dos par tidos os quais aliás como observa com justiça não são animados por convic ções ideológicas como os partidos franceses e não aderem a princípios contra ditórios de governo mas representam a organização dos interesses inclinandose para a discussão pragmática dos problemas enfrentados pela sociedade Tocqueville acrescenta duas outras circunstâncias políticas semiconstitu cionais semisociais que contribuem para a salvaguarda da liberdade A pri meira é a liberdade de associação e a outra a utilização que se faz dessa liber dade com a multiplicação de organizações de voluntários Desde que se colo que uma questão num vilarejo num município ou mesmo no âmbito do Estadó federal surge um certo número de cidadãos para se agrupar em organizações de voluntários com o objetivo de estudar e tentar resolver o problema colocado Quer se trate de construir um hospital em uma pequena cidade quer de pôr fim às guerras qualquer que seja a ordem de grandeza do problema uma organizai ção de voluntários consagrará lazer e dinheiro na busca de uma solução Finalmente Tocqueville fala sobre a liberdade de imprensa que lhe pare ce ter muitos inconvenientes pois os jornais tendem a cometer abusos sendo difícil evitar que degenere em licenciosidade Acrescenta porém o que faâ lembrar a fórmula de Churchill a propósito da democracia que só há um regi me pior do que a liberdade de imprensa é a supressão desta liberdade Nas soi ciedades modernas a liberdade total é preferível à sua supressão completa I entre as duas formas extremas não há uma intermediária6 íj Tocqueville reúne em uma terceira categoria de causas os costumes e al crenças Desenvolve a idéia central da sua obra central com respeito à sua in terpretação da sociedade americana e à comparação explícita ou implícita que faz a todo o instante entre a América e a Europa Esse tema fundamental é o de que em última análise a liberdade tem como condição os costumes e as crenças dos homens sendo que o fator decisivo do costumes é a religião Para Tocqueville a sociedade americana soube unir o espí rito de religião ao espírito de liberdade Se se quisesse procurar a causa única que toma provável a manutenção da liberdade na América e precário o futuro da liber dade na França ela seria o fato de que a sociedade americana une o espírito de re ligião ao de liberdade enquanto a sociedade francesa está dilacerada pela oposi ção entre a igreja e a democracia entre a religião e a liberdade Na França o conflito entre o espírito moderno e a Igreja constitui a causa última das dificuldades encontradas pela democracia que pretende ser liberal pelo contrário a proximidade de inspiração que existe entre o espírito religio OS FUNDADORES 211 s o e o espírito de liberdade é que constitui o fundamento último da sociedade norteamericana Escreve Tocqueville Já falei bastante sobre o assunto para pôr em evidência o caráter da civiliza ção anglonorteamericana Ela é o resultado e esse ponto de partida devemos ter sempre presente no nosso espírito de dois elementos perfeitamente distintos os quais muitas vezes se têm hostilizado mas que na América se conseguiu de algu ma forma incorporar um ao outro combinandoos maravilhosamente Quero me referir ao espírito da religião e ao espírito da liberdade Os fundadores da Nova Inglaterra eram ao mesmo tempo sectários ardorosos e inovadores exaltados Presos na rede mais estreita de certas crenças religiosas estavam livres de todos os preconceitos políticos Daí as duas tendências diversas mau não con traditórias cujos traços se podem encontrar em toda a parte nos costumes e nas leis E um pouco mais adiante Assim no mundo moral tudo está classificado coordenado previsto decidi do antecipadamente No mundo político tudo é agitado contestado incerto No primeiro temos a obediência passiva embora voluntária no outro a independên cia o desprezo pela experiência e inveja de toda autoridade Em lugar de se pre judicarem estas duas tendências aparentemente tão opostas concordam uma com a outra e parecem prestarse um mútuo apoio A religião vê na liberdade civil um nobre exercício das faculdades do homem no mundo político um campo conce dido pelo Criador aos esforços da inteligência Livre e poderosa na sua esfera sa tisfeita com o lugar que lhe é reservado ela sabe que seu império é ainda mais firme porque reina com suas próprias forças e domina sem apoio nos corações A liberdade vê na religião uma companheira de lutas e triunfos o berço da sua in fância a fonte divina dos seus direitos Considera a religião como a salvaguarda dos costumes os costumes como a garantia das leis e o penhor da sua própria du ração O C 11 vol 1 pp 4243 Pondo à parte o estilo que não é o que empregaríamos hoje esse texto me parece uma admirável interpretação sociológica da maneira como numa civi lização de tipo angloamericano a liberdade política e o rigor religioso se com binam Um sociólogo de hoje traduziria esses fenômenos nos conceitos mais refinados multiplicaria reservas e manias Mas a audácia de Tocqueville não deixa de ter encanto Enquanto sociólogo ele pertence ainda à tradição de Mon tesquieu usa a linguagem de todos fazse compreender sem dificuldade está mais interessado em dar forma literária à idéia do que em multiplicar conceitos e discriminar critérios Tocqueville explica em La dém ocratie en Amérique com o as relações entre a religião e a liberdade representam na França o extremo oposto do que são nos E s t a d o s Unidos 212 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Todos os dias me demonstram doutamente que tudo vai muito bem nos Esta dos Unidos exceto precisamente este espírito religioso que admiro fico sabendo que para a liberdade e a felicidade da espécie humana do outro lado do Atlântico só falta crer como Spinoza na eternidade do mundo e sustentar com Cabanis que o cérebro secreta o pensamento A isso nada tenho a responder a não ser que os que falam desse modo não estiveram no continente americano e não viram um povo mais religioso nem mais livre Esperoos portanto na sua volta Há pessoas na França que consideram as instituições republicanas como o instrumento passageiro da sua grandeza Medem com os olhos o imenso espaço que separa seus vícios e sua miséria do poder e das riquezas e gostariam de acu mular ruínas nesse abismo para tentar preenchêlo Estes estão para a liberdade como as companhias francas da Idade Média estavam para os reis faziam a guer ra por sua própria conta mesmo quando vestiam as cores reais A república vive rá sempre o tempo suficiente para tirálos da sua atual baixeza Não é a eles que me dirijo Mas há outros que vêem na república um estado permanente e tranqüilo um fim necessário para o qual as idéias e os costumes arrastam cada dia as socieda des modernas e que desejariam sinceramente preparar os homens para a liberda de Quando atacam as crenças religiosas seguem suas paixões e não seus interes ses É o despotismo que pode prescindir da fé não a liberdade O C 11 vol 1 pp 307308 Esse texto que sob certos aspectos é admirável é também típico do tercei ro partido francês que nunca terá força suficiente para exercer o poder porque é ao mesmo tempo democrático favorável às instituições representativas ou pelo menos resignado a elas e hostil às paixões antireligiosas Tocqueville é um liberal e teria preferido que os democratas reconhecessem a solidariedade necessária das instituições livres e das crenças religiosas De resto devido aos seus conhecimentos históricos e análises sociológicas ele deveria saber e provavelmente sabia que tal reconciliação não era possí vel O conflito entre a Igreja católica e o espírito moderno decorre na França de uma longa tradição como acontece com a afinidade entre a religião e a democra cia na civilização angloamericana E preciso portanto ao mesmo tempo deplo rar o conflito e identificar suas causas que são difíceis de eliminar ele continua vivo mais de cem anos depois do momento em que foi descrito por Tocqueville O tema fundamental de Tocqueville é portanto a necessidade de uma dis ciplina moral inscrita na consciência individual nas sociedades igualitárias que se querem autogovernar É preciso que os cidadãos se sujeitem interiormente a uma disciplina que não seja apenas imposta pelo medo da punição Para Tocque ville neste aspecto discípulo de Montesquieu a fé capaz de melhor criar esta disciplina moral é a fé religiosa Além da influência dos seus sentimentos religiosos os cidadãos norteame ricanos são bem informados conhecem os assuntos públicos passam todos por OS FUNDADORES 213 uma instrução cívica Tocqueville salienta finalmente o contraste com a centra lização administrativa francesa Os cidadãos norteamericanos têm o hábito de resolver os assuntos coletivos a partir do nível do município São levados assim ao aprendizado do autogovemo no meio limitado que estão em condições de conhecer pessoalmente e estendem o mesmo espírito aos assuntos do Estado Esta análise da democracia americana difere evidentemente da teoria de Montesquieu que se referia às repúblicas antigas Mas o próprio Tocqueville con sidera que sua teoria das sociedades democráticas modernas é uma ampliação e uma renovação da concepção de Montesquieu Num texto que encontramos entre os rascunhos do segundo volume de La démocratie en Amérique nosso autor confronta sua própria interpretação da democracia americana com a teoria da república de Montesquieu Não se deve tomar a idéia de Montesquieu num sentido estrito O que este grande homem quis dizer é que a república só podia subsistir pela ação da socie dade sobre si mesma O que ele entende por virtude é o poder moral exercido sobre si mesmo por cada indivíduo e que o impede de violar os direitos alheios Quando este triunfo do homem sobre as tentações resulta da debilidade da tentação ou do cálculo dos interesses pessoais não constitui uma virtude para o moralista mas cabe na idéia de Montesquieu que se referia ao efeito mais do que à sua causa Na América não é a virtude que é grande a tentação é que é pequena o que vem a dar no mesmo Não é o desprendimento que é grande mas o interesse que é bem com preendido o que também vem a dar quase no mesmo Montesquieu tinha razão portanto embora falasse sobre a virtude antiga o que ele diz a respeito dos gre gos e dos romanos se aplica ainda aos americanos Este texto permite fazer a síntese das relações entre a teoria da democra cia moderna de acordo com Tocqueville e a teoria da república antiga segun do Montesquieu Não há dúvida de que existem diferenças essenciais entre a república vista por Montesquieu e a democracia vista por Tocqueville A democracia antiga era igualitária e virtuosa mas frugal e combativa Os cidadãos tendiam à igual dade porque rejeitavam o primado das considerações comerciais A democracia moderna ao contrário é basicamente uma sociedade comercial e industrial Assim o interesse não pode deixar de ser seu sentimento dominante E sobre o interesse bem compreendido que se fundamenta a democracia moderna O prin cípio no sentido de Montesquieu da democracia moderna é pois o interesse e não a virtude Mas como o texto indica entre o interesse princípio das de mocracias modernas e a virtude princípio da república antiga há elementos comuns Nos dois casos os cidadãos devem submeterse a uma disciplina moral e a estabilidade do Estado se baseia na influência predominante que os costu mes e as crenças exercem sobre o comportamento dos indivíduos 214 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO De modo geral em A democracia na América Tocqueville é sociólogo nc estilo de Montesquieu e diríamos mesmo nos dois estilos que Montesquieu nos legou A síntese dos diferentes aspectos de uma sociedade é feita em O espírito das leis graças ao conceito do espírito de uma nação Segundo Montesquieu o primeiro objetivo da sociologia é apreender o conjunto de uma sociedade Não há dúvida de que Tocqueville quer apreender na América o espírito de uma na ção para isso emprega as diferentes categorias que Montesquieu distinguiu era O espírito das leis Discrimina entre as causas históricas e as causas atuais q meio geográfico e a tradição histórica a ação das leis e dos costumes O con junto destes elementos se reagrupa para definir na sua singularidade uma so ciedade única a sociedade americana A descrição desta sociedade singular feita mediante a combinação de diferentes tipos de explicação de acordo corç um grau mais ou menos grande de abstração ou de generalidade Tocqueville porém como se verá mais adiante na análise do segundo vo lume de A democracia na América visa a um segundo objetivo da sociologia é pratica um outro método Coloca um problema mais abstrato num nível mais ele vado de generalidade o problema da democracia das sociedades modernas Istà é fixa o estudo de um tipo ideal comparável ao tipo de regime político de Montesquieu na primeira parte de O espírito das leis Partindo da noção abstra ta de uma sociedade democrática Tocqueville pergunta qual a forma política dl que esta sociedade democrática pode se revestir por que ela se reveste aqui di uma forma e em outro lugar de outra Em outras palavras começa por definàj um tipo ideal o da sociedade democrática e tenta pelo método comparativojj identificar o efeito das várias causas das mais gerais às mais particulares I Há em Tocqueville como em Montesquieu dois métodos sociológicos sendo que um leva ao retrato de uma coletividade singular e o outro coloca 0 problema histórico abstrato de um certo tipo de sociedade Tocqueville não é nenhum admirador ingênuo da sociedade americana Na fundo conserva a hierarquia de valores da classe a que pertence a aristocraci francesa É sensível à mediocridade que caracteriza uma civilização desse gênei ro Não tem para com a democracia moderna nem o entusiasmo dos que espef ravam dela uma transfiguração do destino do homem nem a hostilidade dos qufl a consideravam a decomposição da sociedade Para ele a democracia se justi fica pelo fato de que favorece o bemestar do maior número mas este bemestai não tem brilho ou grandeza e não deixa de apresentar perigos políticos e morais Com efeito toda democracia tende à centralização e em conseqüência tens de a uma espécie de despotismo que traz o perigo de degenerar no despotismo de um homem A democracia comporta permanentemente o perigo de uma tira nia da maioria Todo regime democrático postula que a maioria tem razão pode ser difícil impedir uma maioria de abusar da sua vitória e oprimir a minoria o s FUNDADORES 215 Para Tocqueville a democracia tende a generalizar o espírito de corte em bora o soberano bajulado pelos candidatos seja o povo não o monarca Contu do bajular o povo soberano não é melhor do que adular o monarca soberano Talvez seja pior porque na democracia o espírito de corte é o que chamamos em linguagem ordinária de demagogia Por outro lado Tocqueville tinha muita consciência dos dois grandes pro blemas enfrentados pela sociedade americana as relações entre brancos e índios e entre brancos e negros Se um problema ameaçava a União era sem dúvida o da escravidão no Sul A esse respeito Tocqueville era sombriamente pessi mista acreditava que à medida que desaparecesse a escravidão e a igualdade jurídica tendesse a se estabelecer entre negros e brancos se elevariam as bar reiras que os costumes criaram entre as duas raças Considerava que em última análise havia apenas duas soluções a mistu ra de raças ou a separação A mistura de raças seria rejeitada pela maioria branca a separação seria quase inevitável uma vez extinta a escravidão Tocqueville pre via assim conflitos terríveis Uma passagem sobre o assunto no melhor estilo do autor permitenos ou vir a voz desse homem solitário Os espanhóis soltam seus cães sobre os índios como se estes fossem animais ferozes Pilham o Novo Mundo como uma cidade assaltada sem discernimento nem piedade Mas não se pode destruir tudo a furia tem um limite O resto das popula ções indígenas salvas do massacre terminam por se misturar aos conquistadores adotando sua religião e costumes A conduta dos Estados Unidos com relação aos indígenas pelo contrário é inspirada no mais puro amor das formas e da legalida de Desde que os índios se mantenham no estado selvagem os americanos não interferem na vida deles tratandoos como um povo independente Não se permi tem ocupar suas terras sem antes adquirilas devidamente por meio de um contrato Se uma nação indígena não pode mais viver no seu território a levam fraternalmen te pela mão para morrer fora da terra dos seus ancestrais Por meio de monstruo sidades sem exemplo cobrindose de vergonha indelével os espanhóis não conse guiram exterminar a raça indígena nem a impediram de partilhar dos seus direitos Os americanos atingiram este duplo resultado com uma facilidade maravilhosa tranqüilamente legalmente filantropicamente sem derramar sangue nem violar um só dos grandes princípios morais aos olhos do mundo Não se poderiam destruir os homens respeitando melhor as leis da humanidade O C t I vol 1 pp 354355 Esse texto em que Tocqueville não cumpre a regra dos sociólogos moder nos que é a de se abster de julgamentos de valor proibindose as ironias7 é ca racterística do espírito humanitário aristocrático Estamos quase sempre habi tuados na França a pensar que só os homens de esquerda são humanistas 216 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Tocqueville teria dito que na França os radicais os republicanos extremistas não são humanitários mas revolucionários embriagados de ideologia prontos a sa crificar milhões de seres humanos às suas idéias Condenava os ideólogos de es querda representativos do partido intelectual francês mas também o espírito reacionário dos aristocratas nostálgicos de uma ordem definitivamente extinta Tocqueville é um sociólogo que não cessa de julgar ao mesmo tempo que descreve Nesse sentido pertence à tradição dos filósofos políticos clássicos que não podiam analisar os regimes sem também julgálos Na história da sociologia ele está muito próximo da filosofia clássica tal como a interpreta Léo Strauss8 Para Aristóteles não se pode interpretar adequadamente a tirania sem en tender que é o regime que mais se afasta do melhor dos regimes porque a rea lidade do fato é inseparável de sua qualidade Querer descrever as instituições sem julgálas é não ver o que faz com que elas sejam o que são Tocqueville não rompe com essa prática Sua descrição dos Estados Uni dos é também a explicação das causas cuja ação salvaguarda a liberdade numa sociedade democrática Ela mostra a cada momento o que ameaça o equilíbrio da sociedade americana A própria linguagem significa julgamento e Tocque ville não acreditava estar violando as regras da ciência social ao julgar na des crição e pela descrição Se fosse obrigado a explicarse provavelmente diria como Montesquieu ou em todo caso como Aristóteles que uma descrição nãaj pode ser fiel se não contém os julgamentos ligados intrinsecamente à descri ção um regime é o que é pela sua qualidade intrínseca e uma tirania só pode ser descrita como tirania I O drama político da França UAncien Régime et la Rèvolution é um esforço comparável ao de Montes quieu em Considérations sur les causes de la grandeur et de la décadence desl romains É uma tentativa de explicar sociologicamente os acontecimentos his tóricos Tocqueville percebe tão claramente quanto Montesquieu os limites da ex plicação sociológica Os dois acreditam de fato que os grandes acontecimen tos são explicados por grandes causas mas que os detalhes dos acontecimentos não podem ser deduzidos dos dados estruturais Tocqueville estuda a França pensando até certo ponto na América Quer compreender por que razão a França encontra tantas dificuldades em ser uma sociedade politicamente livre embora seja ou pareça democrática No caso dos Estados Unidos procurava compreender as causas do fenômeno inverso isto é o s FUNDADORES 217 a persistência da liberdade política por causa ou a despeito do caráter democrá tico da sociedade UAncien Régime et la Révolution é uma interpretação sociológica de uma crise histórica destinada a tomar os acontecimentos inteligíveis Tocqueville ini cia observando e raciocinando como um sociólogo Recusase a admitir que a cri se revolucionária seja um acidente puro e simples Afirma que as instituições do Antigo Regime ficaram em ruínas quando a tempestade revolucionária as arras tou Acrescenta que a crise revolucionária teve características específicas porque se desenvolveu à maneira de uma revolução religiosa A Revolução Francesa funcionara com relação a este mundo precisamente do mesmo modo como a revolução religiosa agindo com vistas ao outro Ela con siderou o cidadão de um modo abstrato fora de todas as sociedades particulares assim como a religião considera o homem em geral independentemente do país e do tempo Não procurou somente saber qual era o direito particular do cidadão francês mas quais eram os deveres e direitos gerais dos homens em matéria políti ca Foi assim remontando sempre ao que tinha de menos particular e por assim dizer mais natural em matéria de estado social e de governo que pôde tomarse compreensível para todos e pôde ser imitada em cem lugares ao mesmo tempo O C t II vol lp 89 Esta coincidência de uma crise política com uma espécie de revolução reli giosa é ao que parece uma das características das grandes revoluções das so ciedades modernas Aos olhos de um sociólogo da escola de Tocqueville a Re volução Russa de 1917 tem igualmente a mesma característica de ser uma revo lução de essência religiosa Creio que é possível generalizar a proposição toda revolução política assume certas características de revolução religiosa quando pretende ser universalmen te válida e se considera o caminho da salvação para toda a humanidade Para esclarecer seu método Tocqueville acrescenta Falo de classes só elas devem ocupar a história Esta frase é textual e estou certo contudo de que se uma revista a publicasse com a pergunta quem a escreveu quatro entre cin co pessoas responderiam Karl Marx As classes cujo papel decisivo é evocado por Tocqueville são a nobreza a burguesia os camponeses e secundariamente os operários São portanto inter mediárias entre as ordens do Antigo Regime e as classes das sociedades moder nas Aliás Tocqueville não apresenta uma teoria abstrata das classes Não as define nem enumera suas características mas toma os principais grupos so ciais da França e do Antigo Regime no momento da Revolução para explicar os acontecimentos 218 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Em seguida Tocqueville pergunta se o conjunto das instituições do Antigo Regime está em ruínas em toda a Europa por que a Revolução ocorreu na Fran ça Quais os fenômenos principais que explicam este acontecimento O primeiro deles já foi estudado indiretamente em A democracia na Amé rica é a centralização e a uniformidade administrativas Sem dúvida a França do Antigo Regime apresentava extraordinária diversidade provincial e local em matéria de legislação e regulamentação contudo a administração real dos in tendentes tomavase cada vez mais a única força eficaz A diversidade não pas sava de sobrevivências inócuas a França era administrada do centro e era ad ministrativamente uniforme bem antes da tempestade revolucionária Surpreendemonos com a facilidade extraordinária com que a Assembléia Cons tituinte pôde destruir de uma só vez todas as antigas províncias da França sendo que muitas delas eram mais antigas do que a monarquia e dividir metodicamente o reino em 83 partes distintas como se se tratasse das terras virgens do Novo Mundo Nada sur preendeu mais e até mesmo apavorou o resto da Europa que não estava preparado para tal espetáculo Burke dizia que pela primeira vez viamse homens a fazer em pedaços sua pátria de modo tão bárbaro Parecia de fato que se estavam a retalhar corpos vivos mas não se fazia mais do que cortar os membros de cadáveres Assim ao mesmo tempo que Paris acabava de adquirir a suprema onipotência viase processar no seu próprio seio uma outra transformação que merece também a atenção da história Em vez de ser uma cidade apenas de comércio de negócios de consumo e prazeres Paris acabava de se tomar uma cidade de fábricas e indústrias um segundo fato que dava ao primeiro um caráter novo e mais formidável Embora os documentos estatísticos do Antigo Regime de modo geral inspi rem pouca confiança creio podermos afirmar sem medo que durante os sessenta anos que precederam a Revolução Francesa o número dos operários mais do que dobrou em Paris enquanto no mesmo período a população geral da cidade só au mentou de um terço O C t II vol 1 pp 141142 Nesta altura somos levados a pensar no livro de JF Gravier Paris e o de serto francês9 De acordo com Tocqueville antes mesmo do fim do século XVIII Paris se tornara o centro industrial da França As considerações sobre o distri to parisiense e as formas de impedir a centralização industrial na capital não datam de hoje Em segundo lugar nessa França administrada do centro e na qual os mes mos regulamentos se aplicavam cada vez mais a todo seu território a sociedade estava por assim dizer esfacelada Os franceses não tinham condições de dis cutir seus assuntos porque lhes faltava a condição essencial para a formação do corpo político a liberdade í Tocqueville faz uma descrição puramente sociológica do que Durkheiiflf teria chamado de desintegração da sociedade francesa Não havia unidade entrei OS FUNDADORES 219 as classes privilegiadas e de modo mais geral entre as diversas classes da na ção devido à carência de liberdade política Subsistia uma separação entre os grupos privilegiados do passado que tinham perdido sua função histórica mas conservavam seus privilégios e os grupos da nova sociedade que desempenha vam um papel decisivo mas permaneciam separados da antiga nobreza No fim do século XVIII podiase perceber ainda uma diferença entre as ma neiras da nobreza e as da burguesia pois nada se igualiza mais lentamente do que esta superfície de costumes que conhecemos como maneiras no fondo porém todas as pessoas situadas acima do povo se pareciam tinham as mesmas idéias os mesmos hábitos seguiam os mesmos gostos dedicavamse aos mesmos prazeres liam os mesmos livros e falavam a mesma linguagem Só se diferenciavam entre si pelos direitos Duvido de que se tenha visto situação igual no mesmo grau em qualquer outra parte até na Inglaterra onde as diferentes classes embora associa das solidamente entre si por interesses comuns se distinguiam muitas vezes pelo es pírito e pelos costumes pois a liberdade política que tem o admirável poder de criar relações necessárias e laços mútuos de dependência entre todos os cidadãos nem por isso os iguala É o governo de uma só pessoa que a longo prazo tem sempre o efeito inevitável de assemelhar os homens entre si e tomálos mutuamente indife rentes a seu destino Ibid p 146 Esse é o centro da análise sociológica da França por Tocqueville Os dife rentes grupos privilegiados da nação francesa tendiam ao mesmo tempo à uni formidade e à separação Eram de fato semelhantes uns aos outros mas esta vam separados por privilégios maneiras tradições e com a falta de liberdade política eles não chegavam a adquirir este sentido de solidariedade indispensá vel à saúde do organismo político A divisão das classes foi o crime da antiga realeza e se tomou depois sua justi ficativa pois quando todos os que compõem a parte rica e esclarecida da nação não podem mais entenderse e cooperar no governo a administração do país por si mesmo se toma impossível sendo preciso que um maítre intervenha Ibid p 166 Esse texto é fundamental Vêse nele antes de tudo a concepção mais ou menos aristocrática do governo das sociedades característica ao mesmo tempo de Montesquieu e de Tocqueville O governo só pode ser exercido pela parte ri ca e esclarecida da nação Os dois autores não hesitam em reunir os dois adje tivos Não são demagogos e a associação entre os dois termos lhes parece evi dente Contudo também não são cínicos pois o fenômeno para eles era óbvio Escreviam numa época em que os que não tinham meios materiais não dispunham de lazer para se instruir No século XVIII só a parte rica da nação podia ser es clarecida 220 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO De outro lado Tocqueville pensa observar e creio que observa bem que na França o fenômeno característico na origem da Revolução e eu acrescen taria na origem de todas as revoluções francesas era a incapacidade dos gru pos privilegiados de chegarem a um acordo sobre o modo de governar o país Esse fenômeno explica a freqüência das mudanças de regime Essa análise das características da política francesa é a meu ver notavel mente lúcida Podese aplicála a toda a história política da França nos séculos XIX e XX Com ela se explica o fato curioso de que a França tenha sido no Oci dente no século XIX e até bem recentemente o país que menos transforma ções sofreu econômica e socialmente e também possivelmente o que passou por maiores turbulências políticas A combinação do conservadorismo econô mico e social com esta agitação política pode ser explicada sem dificuldade pela sociologia de Tocqueville mas é mais difícil de entender se buscarmos uma cor respondência termoatermo entre dados sociais e políticos Quando as diferentes classes que compartilhavam a sociedade da antiga Fran ça entraram em contato há sessenta anos depois de terem ficado isoladas duran te tanto tempo por tantas barreiras elas se tocaram inicialmente apenas nos pontos doloridos e só se encontraram para se dilacerarem Mesmo nos nossos dias seus ódios e ciúmes sobrevivem a elas Ibid p 167 O tema central da interpretação da sociedade francesa por Tocqueville é o de que no fim do Antigo Regime de todas as sociedades européias a França era a mais democrática no sentido do autor isto é aquela em que a tendência para a uniformidade das condições e a igualdade social das pessoas e dos grupos eram mais pronunciadas e também aquela em que havia menos liberdade política a sociedade mais cristalizada nas instituições tradicionais que correspondiam cada vez menos à realidade Se Tocqueville tivesse elaborado uma teoria das revoluções dos tempos modernos seguramente teria apresentado uma concepção diferente da concep ção marxista diferente pelo menos da que afirma que a revolução socialista deve ocorrer ao fim do desenvolvimento das forças produtivas dentro dos regimes de propriedade privada Tocqueville sugeriu e várias vezes chegou a declarar explicitamente que para ele as grandes revoluções dos tempos modernos seriam aquelas que mar cam a passagem do Antigo Regime para a democracia Em outras palavras a con cepção que tem Tocqueville das revoluções é essencialmente política É a resis tência das instituições políticas do passado ao movimento democrático moder no que pode provocar aqui e ali uma explosão Tocqueville acrescentava que esses tipos de revolução ocorrem não quando as coisas vão muito mal mas aO contrário quando estão melhores10 f OS FUNDADORES 221 Tocqueville não teria duvidado um só momento de que a Revolução Russa entrava no seu esquema político das revoluções muito mais do que no esquema marxista A economia russa conheceu um impulso inicial de crescimento na déca da de 1880 Entre 1880 e 1914 teve uma das taxas de crescimento mais elevadas da Europa De outro lado a Revolução Russa começou com uma revolta contra as instituições políticas do Antigo Regime no sentido em que se fala de Antigo Regime a respeito da Revolução Francesa Se se levantasse a objeção de que o par tido que assumiu o poder na Rússia se baseia em ideologia diferente ele teria res pondido que a seus olhos a característica das revoluções democráticas consiste em preconizar a liberdade e tender efetivamente à centralização política e adminis trativa Tocqueville não teria encontrado nenhuma dificuldade em integrar esses fenômenos no seu sistema Aliás em diversas ocasiões ele evocou a possibilidade de um Estado que procurasse gerir o conjunto da economia Na perspectiva da sua teoria a Revolução Russa representa a extinção das instituições políticas do Antigo Regime numa fase de modernização da socie dade Essa explosão foi facilitada pelo prolongamento de uma guerra Desem bocou num governo que embora se dizendo defensor do ideal democrático leva até o fim a idéia da centralização administrativa e da gestão do conjunto da sociedade pelo Estado Duas alternativas obcecaram os historiadores da Revolução Francesa foi uma catástrofe ou um acontecimento benéfico uma necessidade ou um acidente Toc queville se recusa a aceitar as duas teses extremas A Revolução Francesa para ele não é evidentemente um acidente puro e simples é necessária se isto sig nifica que o movimento democrático devia algum dia sobrepujar as instituições do Antigo Regime e nãonecessária na forma precisa de que se revestiu no detalhe dos seus episódios Benéfica ou catastrófica Tocqueville responderia provavelmente que ela foi as duas coisas ao mesmo tempo Mais precisamente encontramos no seu livro todos os elementos da crítica que os homens de direita fizeram à Revolução Francesa simultaneamente encontramos também a jus tificação do que aconteceu por meio da história ou às vezes por meio do ine vitável com tristeza por não ter sido diferente A crítica da Revolução Francesa atinge primeiramente os homens de letras que eram conhecidos no século XVIII como filósofos e que no século XX cha mamos de intelectuais Os filósofos homens de letras ou intelectuais têm a facilidade de se criticar mutuamente Tocqueville comenta o papel dos escrito res na França do século XVIII e na Revolução da mesma forma como continua mos a comentar com admiração ou pesar o papel que eles têm hoje Os escritores não deram apenas suas idéias ao povo que a fez a Revolução deramlhe seu temperamento e seu humor Sob sua longa disciplina à falta de quaisquer outros líderes no meio da ignorância profunda em que se vivia no coti 222 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO diano toda a nação ao lêlos terminava por contrair seus instintos sua inclinação espiritual o gosto e até os cacoetes próprios aos que escrevem De sorte que quan do ela começou a atuar transportou para a política todos os hábitos da literatura Quando se estuda a história da nossa Revolução vêse que ela foi conduzida precisamente no mesmo espírito que a fez produzir tantos livros abstratos sobre o governo Vemos a mesma atração pelas teorias gerais os sistemas completos de legislação e a simetria exata nas leis o mesmo desprezo pelos fatos reais a mesma confiança na teoria o mesmo gosto pelo original o engenhoso e o novo nas insti tuições a mesma vontade de refazer de uma só vez toda a Constituição seguindo as regras da lógica e segundo um plano único em vez de procurar emendála nas suas várias partes Um espetáculo assustador De fato o que é qualidade num escri tor é às vezes vício num estadista as mesmas coisas que fizeram muitas vezes belos livros podem conduzir a grandes revoluções O C t II vol 1 p 200 Esse texto originou toda uma literatura O primeiro tomo das Origines de la France contemporaine de Taine por exemplo não passa do desenvolvimento deste tema do papel maléfico dos escritores e homens de letras12 Tocqueville desenvolve sua crítica analisando o que chama de irreligião fun damental que se difundira numa parte da nação francesa Pensava que a união do espírito religioso com o espírito de liberdade constituía o fundamento da democracia liberal americana Numa contrapartida exata encontramos em LAn cien Régime et la Révolution o exemplo de situação contrária3 A parte do país que se tomara ideologicamente democrática não só tinha perdido a fé como ha via passado a ser anticlerical e antireligiosa Aliás Tocqueville se declara cheio de admiração pelos sacerdotes do Antigo Regime14 e exprime explicitamente o pesar de que não tenha sido possível salvaguardar pelo menos em parte o papel da aristocracia na sociedade modema Essa tese que não faz parte das idéias em moda é muito característica de Tocqueville Sentese ao ler seus escritos apresentados pela nobreza aos Estados Gerais no meio dos seus preconceitos e dos seus cacoetes o espírito e algumas das gran des qualidades da aristocracia Lamentaremos sempre que em vez de se dobrar essa nobreza com o peso das leis se a tenha abatido e desenraizado Agindo assim tirouse da nação uma parte necessária da sua substância e fezse na liberdade uma ferida que jamais cicatrizará Uma classe que durante séculos caminhou na frente contraiu nesse longo e incontestado uso da grandeza um sentimento elevado do orgulho e da honra uma confiança natural em suas forças um hábito de ser res peitada que a toma o ponto mais resistente do organismo social Não tem apenas costumes viris mas com seu exemplo reforça a virilidade das outras classes Extir pandoa tiramos o vigor até dos seus próprios inimigos Nada poderia substituíla completamente por si mesma não poderia nunca renascer pode voltar a ter títu los e bens mas não o espírito dos seus antepassados O C t II vol 1 p 170 OS FUNDADORES 223 O significado sociológico desta passagem é o seguinte para salvaguardar a liberdade numa sociedade democrática é preciso que os homens tenham o sentido e o gosto da liberdade Bernanos escreveu em páginas que certamente não têm a precisão analíti ca de Tocqueville mas que levam à mesma conclusão que não basta ter as ins tituições da liberdade eleições partidos parlamento é preciso também que os homens tenham um certo gosto pela independência um certo sentido da resis tência ao poder para que a liberdade possa ser autêntica O julgamento que Tocqueville faz da Revolução os sentimentos que o ani mam são exatamente os que Auguste Comte teria considerado aberrantes Aos olhos de Comte a tentativa da Constituinte estava condenada porque visava a uma síntese das instituições teológicas e feudais do Antigo Regime com as institui ções dos tempos modernos Ora Comte afirmava com sua intransigência habitual que é impossível a síntese de instituições tiradas de modos de pensar radical mente diferentes Tocqueville teria preferido precisamente não que o movimen to democrático fosse derrotado pelas instituições da antiga França o movimento era irresistível mas que estas instituições fossem conservadas na medida do possível sob a forma da monarquia sob a forma também do espírito aristocráti co a fim de que dessem uma contribuição para a salvaguarda das liberdades numa sociedade dedicada à procura do bemestar e condenada à revolução social Para um sociólogo como Comte a síntese da Constituinte era desde o início impossível Para um sociólogo como Tocqueville possível ou não ele não se decide a esse respeito teria sido desejável Politicamente Tocqueville era fa vorável à primeira Revolução Francesa a da Constituinte e é para esse período que se dirige seu pensamento nostálgico A seus olhos o grande momento da Re volução Francesa e da França é 17881789 a época em que os franceses esta vam animados por uma confiança e uma esperança sem limites Não creio que em nenhum momento da história se tenha visto em nenhuma parte um tal número de pessoas tão sinceramente apaixonadas pelo bem público tão verdadeiramente esquecidas dos seus próprios interesses tão absorvidas na con templação de um grande objetivo tão resolvidas a arriscar o que os homens têm de mais caro na vida a se esforçarem para se elevar acima do nível das paixões do coração É como um fundo comum de paixão coragem e devotamento do qual vão sair todas as grandes ações da Revolução Francesa Esse espetáculo foi breve mas apresentou belezas incomparáveis e não sairá nunca da memória dos homens To das as nações estrangeiras o viram todas o aplaudiram todas se emocionaram com ele Inútil procurar um lugar tão afastado da Europa onde não tenha sido percebi do onde não tenha provocado admiração e estima não se poderia encontrálo na multidão de memórias particulares que os contemporâneos da Revolução nos dei xaram nunca encontrei uma em que os primeiros dias de 1789 não tenham deixa do uma marQ indelével transmitindo a clareza a vivacidade e a frescura das emo 224 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ções da juventude Ouso dizer que um só povo neste mundo poderia proporcionar tal espetáculo Conheço a nação a que pertenço Vejo muito bem seus erros suas fa lhas suas fraquezas e suas misérias mas sei também do que é capaz Há empreen dimentos que só a nação francesa é capaz de conceber resoluções magnânimas que só ela pode ousar Só ela pode querer abraçar um certo dia a causa comum da humanidade para lutar por ela E se está sujeita a quedas profundas tem por outro lado impulsos sublimes que a levam de súbito a um ponto que nenhum outro povo jamais atingirá O C t II vol 2 pp 132133 Vêse nesta passagem como Tocqueville que passa por crítico da França e o era efetivamente que confronta a evolução da França com a dos países anglo saxões lamentando que não tivesse tido uma história semelhante à da Inglaterra ou dos Estados Unidos está pronto a transformar a autocrítica em autoglorifi cação A expressão só a França poderia muito bem evocar discursos sobre a vocação única do país Tocqueville procura tomar sociologicamente inteligí veis os acontecimentos há nele porém como em Montesquieu uma idéia sub jacente do caráter nacional O tema do caráter nacional aparece na sua obra de maneira precisa No ca pítulo sobre os homens de letras liv III cap 4 Tocqueville se recusa a dar explicações com base no caráter nacional Afirma ao contrário que o papel dos intelectuais nada tem a ver com o espírito da nação francesa e busca explica ção nas condições sociais os homens de letras se perderam em teorias abstratas porque não participavam na prática do governo e portanto ignoravam seus pro blemas reais Esse capítulo de Tocqueville está na origem de uma análise que hoje está muito em moda isto é a do papel dos intelectuais nas sociedades em vias de mo dernização em que de fato os intelectuais são inexperientes em problemas reais de governo e ébrios de ideologia Em compensação quando se trata da Revolução Francesa e do seu período de grandeza Tocqueville é levado a desenhar uma espécie de retrato sintético no estilo de Montesquieu Esse retrato sintético é a descrição da conduta de uma coletividade sem que tal conduta seja dada como explicação definitiva pois é tanto um resultado como uma causa Contudo é suficientemente original e su ficientemente específico para que o sociólogo possa ao fim da análise reunir suas observações num conjunto15 O segundo tomo de LAncien Régime et la Révolution deveria apresentar a seqüência dos acontecimentos isto é a Revolução examinando o papel dos ho mens dos acidentes e do acaso Nas notas que foram publicadas há numerosas indicações sobre o papel dos atores e dos indivíduos O que me impressiona mais não é o gênio dos que serviram a Revolução conscientemente mas a singular imbecilidade dos que a fizeram chegar sem o OS FUNDADORES 225 querer Quando considero a Revolução Francesa espantame sua grandeza prodi giosa seu brilho que atingiu até as extremidades da terra seu vigor que influen ciou mais ou menos todos os povos Considero em seguida essa corte que dela tanto participou vendo aí os qua dros mais vulgares que podemos encontrar na história ministros levianos ou iná beis padres libertinos mulheres fúteis cortesãos temerários ou cúpidos um mo narca que só tem virtudes inúteis ou perigosas Vejo contudo que esses persona gens pouco importantes facilitam provocam precipitam esses acontecimentos da maior importância O C t II vol 2 p 116 Este texto brilhante não tem só valor literário Contém na minha opinião a visão de conjunto que Tocqueville nos teria dado se pudesse ter concluído seu livro Depois de ter sido sociólogo no estudo das origens demonstrando como a sociedade pósrevolucionária foi em larga medida preparada pela sociedade prérevolucionária sob a forma de uniformidade e de centralização administra tiva Tocqueville iria procurar seguir o curso dos acontecimentos sem suprimir o que era para ele como para Montesquieu a própria história isto é o que acontece numa determinada conjuntura o encontro de séries contingentes ou de decisões tomadas por indivíduos e que se poderia facilmente conceber de ou tra forma Há um plano em que aparece a necessidade do movimento histórico e outro em que encontramos o papel dos homens Para Tocqueville o fato essencial era o fracasso da Constituinte isto é o fracasso da síntese das virtudes da aristocracia ou da monarquia com o movi mento democrático A seu ver o fracasso dessa síntese tomava difícil alcançar um equilíbrio político Tocqueville considerava que a França do seu tempo tinha ne cessidade de uma monarquia mas não deixava de perceber a debilidade do sen timento monárquico Pensava que a liberdade política só se poderia estabilizar se se pusesse fim ao processo de centralização e de uniformização administra tiva Ora esse processo centralizado e esse despotismo administrativo lhe pare ciam associados ao movimento democrático A mesma análise que explicava a vocação liberal da democracia america na explicava também os riscos da falta de liberdade na França democrática Em resumo escreve Tocqueville numa frase muito característica da atitude política dos homens do centro e de suas críticas dos extremos até hoje imagino que um homem esclarecido de bom senso e com boas intenções se tome um radi cal na Inglaterra Mas nunca pude conceber a união dessas três coisas no radical francês Há trinta anos era comum esta brincadeira a propósito dos nazistas todos os alemães são inteligentes honestos e hitleristas mas nunca têm mais de duas destas qualidades simultaneamente Tocqueville dizia que na França um ho 226 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mem esclarecido de bom senso e com boas intenções não podia ser um radical Se era esclarecido e tinha bom senso não tinha boas intenções É evidente que o bom senso em política é objeto de julgamentos contra ditórios com base em preferências individuais Auguste Comte não teria hesi tado em afirmar que a nostalgia de Tocqueville pela síntese da Constituinte era desprovida de bom senso O tipo ideal da sociedade democrática O primeiro volume de A democracia na América e LAncien Régime et la Révolution desenvolvem dois aspectos do método sociológico de Tocqueville de um lado o retrato de uma sociedade particular a americana de outro a interpretação sociológica de uma crise histórica a da Revolução Francesa O segundo volume de A democracia na América é a expressão de um terceiro método característico do autor a constituição de uma espécie de tipo ideal a so ciedade democrática a partir do qual ele deduz algumas das tendências da sociedade futura O segundo tomo de A democracia na América difere com efeito do pri meiro pelo método e pelas questões que propõe Tratase quase do que se pode ria chamar de uma experiência mental Tocqueville imagina os traços estrutu rais de uma sociedade democrática definida pelo desaparecimento progressivo das diferenças de classe e pela uniformidade crescente das condições de vida Em seguida enuncia sucessivamente as quatro indagações seguintes qual o re sultado disso no que concerne ao movimento intelectual no que concerne aos sentimentos dos americanos no que concerne aos costumes propriamente ditos e por fim no que concerne à sociedade política O empreendimento é em si mesmo difícil podese mesmo dizer uma aventura Para começar não está provado que a partir das características estru turais de uma sociedade se possa determinar o que será o movimento intelectual ou o que serão os costumes Se imaginarmos uma sociedade democrática em que as distinções de clas se e de condições tenham quase desaparecido é possível saber antecipadamen te como serão a religião a poesia a prosa ou a eloqüência parlamentar Estas são as questões colocadas por Tocqueville No jargão da sociologia moderna são questões que pertencem à sociologia do conhecimento Em que medida o contexto social determina a forma das diferentes ativi dades intelectuais Uma tal sociologia do conhecimento tem caráter abstrato e aleatório a prosa a poesia o teatro e a eloqüência parlamentar das diferentes so ciedades democráticas serão sem dúvida tão heterogêneas no futuro quanto fo ram no passado OS FUNDADORES 227 Além disso pode ser que alguns traços estruturais da sociedade democrá tica que Tocqueville toma como ponto de partida estejam ligados às particu laridades da sociedade americana e outros sejam inseparáveis da essência da sociedade democrática Esta ambigüidade acarreta uma certa incerteza sobre o grau de generalidade das respostas que Tocqueville pode dar às questões que formulou16 As respostas às indagações do segundo volume serão às vezes da ordem da tendência outras vezes da ordem da alternativa A política de uma sociedade democrática será despótica ou será liberal Às vezes também não é possível dar nenhuma resposta a uma questão enunciada em termos tão genéricos Os julgamentos sobre o segundo volume de A democracia na América va riam muito Desde o aparecimento o livro recebeu críticas que lhe negaram os méritos que foram atribuídos ao primeiro Podese dizer que nele Tocqueville ultrapassa seus próprios limites no sentido integral da expressão Seu estilo é mais característico do que nunca com uma grande capacidade de reconstrução ou de dedução a partir de pequeno número de fatos o que às vezes os sociólo gos apreciam e que freqüentemente os historiadores lamentam Na primeira parte do seu livro que é consagrada a estabelecer as conse qüências da sociedade democrática sobre o movimento intelectual Tocqueville passa em revista a atitude com relação às idéias à religião e aos diferentes gê neros literários a poesia o teatro a eloqüência O título do capítulo quatro do livro I lembra uma das comparações prefe ridas de Tocqueville entre os franceses e os americanos Por que os americanos nunca se apaixonaram tanto quanto os franceses pelas idéias gerais em matéria política O C 11 vol 2 p 27 A essa questão Tocqueville responde Os americanos formam um povo democrático que sempre dirigiu seus próprios assuntos públicos e nós somos um povo democrático que durante muito tempo só pôde sonhar com a melhor forma de administrálos Nosso estado social já nos levava a conceber idéias muito genéricas no campo do governo enquanto nossa constituição política nos impedia de retificar essas idéias pela experiência desco brindo aos poucos sua insuficiência ao passo que entre os americanos as duas coi sas se equilibram sem cessar e se corrigem naturalmente Ibid p 27 Essa explicação que pertence à sociologia do conhecimento é contudo de um tipo empírico simples Os franceses têm o gosto da ideologia porque duran te séculos não se puderam ocupar efetivamente com os assuntos públicos Essa i n t e r p r e t a ç ã o tem una alcance amplo De modo geral os estudantes jovens cul 228 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tivam tanto mais as teorias em matéria política quanto menos experiência têm da atividade política Pessoalmente sei que na época em que não possuía ne nhuma experiência do modo como se praticava a política tinha as maiores cer tezas teóricas neste terreno Esta é quase que uma regra do comportamento políticoideológico dos indivíduos e dos povos No capítulo cinco do mesmo livro I Tocqueville desenvolve uma interpre tação de certas crenças religiosas com base na sociedade Essa análise das rela ções entre os instintos democráticos e a forma da crença religiosa vai longe e não deixa de ter interesse mas é também muito aleatória O que disse antes que a igualdade leva os homens a ter idéias muito genéri cas e muito amplas é válido principalmente em matéria de religião Homens se melhantes e iguais concebem facilmente a noção de um Deus único que impõe as mesmas regras a todos concedendolhes a felicidade futura ao mesmo preço A idéia da unidade do gênero humano impeleos sem cessar para a noção de unidade do Criador Pelo contrário os homens muito distanciados uns dos outros e muito diferentes acabam por criar tantas divindades quantos forem os povos as castas as classes e as famílias traçando mil caminhos particulares para chegar ao céu Ibid p 30 Esse texto apresenta outra modalidade de interpretação que pertence ao cam po da sociologia do conhecimento A uniformidade crescente dos indivíduos cada vez mais numerosos não integrados em grupos separados leva a conceber ao mesmo tempo a unidade do gênero humano e a unidade do Criador Podemos encontrar estas explicações também em Auguste Comte Segura mente são explicações simples demais É um tipo de análise genérica que já in dispôs legitimamente muitos historiadores e sociólogos Tocqueville diz ainda que uma sociedade democrática tem tendência a crer na perfectibilidade indefinida da natureza humana Nas sociedades democráti cas predomina a mobilidade social cada indivíduo tem a esperança ou a pers pectiva de ascender na hierarquia social Uma sociedade em que a ascensão é possível tende a conceber no plano filosófico uma ascensão comparável para toda a humanidade Uma sociedade aristocrática em que cada indivíduo tem sua condição determinada pelo nascimento aceita com dificuldade a perfectibili dade indefinida da humanidade porque essa crença seria contraditória com a fórmula ideológica sobre a qual ela repousa Ao contrário a idéia do progres so é quase consubstanciai com uma sociedade democrática17 Nesse caso há não só uma passagem da organização social para uma certa ideologia mas também uma relação íntima entre a organização social e a ideo logia servindo esta última como fundamento da primeira Também em outro capítulo Tocqueville afirma que os norteamericanos se inclinam mais a brilhar nas ciências aplicadas do que nas ciências básicas Esta OS FUNDADORES 229 proposição hoje não é mais válida mas foi válida durante um longo período No estilo que lhe é próprio Tocqueville mostra que uma sociedade democrática preocupada essencialmente com o bemestar mostrará menos interesse pelas ciências básicas do que uma sociedade de tipo mais aristocrático em que os que se dedicam à investigação são ricos e têm bastante lazer18 Podese citar ainda a descrição das relações entre democracia aristocracia e poesia19 Algumas linhas mostram bem quais podem ser os impulsos da ima ginação abstrata A aristocracia conduz naturalmente o espírito humano à contemplação do pas sado fixandoo A democracia pelo contrário dá ao homem uma espécie de desa grado instintivo por tudo o que é antigo Nisso a aristocracia é bem mais favorá vel à poesia pois as coisas ordinariamente se ampliam e se escondem à medida que se tornam distantes e sob esta dupla condição se prestam melhor à pintura do ideal O C 11 vol 2 p 77 Vêse aqui como é possível a partir de um pequeno número de fatos cons truir uma teoria que seria verdadeira se só existisse uma espécie de poesia e se a poesia só pudesse florescer em virtude da idealização das coisas e dos seres afastados no tempo Tocqueville observa que os historiadores democráticos tendem a explicar os acontecimentos por forças anônimas e por mecanismos irresistíveis da ne cessidade histórica enquanto os historiadores aristocráticos tendem a acentuar o papel dos grandes homens20 Nisso certamente tinha razão A teoria da necessidade histórica que nega a eficácia dos acasos e dos grandes homens pertence indubitavelmente à era democrática em que vivemos Na segunda parte sempre a partir dos traços estruturais da sociedade de mocrática Tocqueville procura acentuar os sentimentos fundamentais em toda sociedade desse tipo Numa sociedade democrática reinará a paixão pela igualdade que terá mais força que o gosto pela liberdade A sociedade se preocupará mais em apa gar as desigualdades entre os indivíduos e os grupos do que em manter o res peito pela legalidade e a independência pessoal Será animada pela preocupa ção com o bemestar material e trabalhada por uma espécie de permanente in quietação devido a esta obsessão pelo bemestar material O bemestar mate rial e a igualdade não podem com efeito criar uma sociedade tranqüila e satis feita pois cada indivíduo se compara com os outros e a prosperidade nunca está garantida Mas as sociedades democráticas segundo Tocqueville não serão agi tadas ou instáveis em profundidari 230 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Superficialmente turbulentas elas se inclinarão para a liberdade mas é de temer que os homens amem a liberdade mais como condição do bemestar ma terial do que por si mesma É concebível que em certas circunstâncias quan do as instituições livres parecem funcionar mal e comprometer a prosperidade os homens se inclinem a sacrificar a liberdade na esperança de consolidar o bemestar ao qual tanto aspiram Sobre esse ponto há um trecho particularmente típico do pensamento de Tocqueville A igualdade proporciona a cada dia uma infinidade de pequenos prazeres a cada homem Os encantos da igualdade são sentidos a todo o instante estão ao alcance de todos Os corações mais nobres não são insensíveis a eles e as almas mais vul gares fazem deles as suas maiores delícias A paixão que a igualdade faz nascer de ve portanto ser ao mesmo tempo enérgica e geral Penso que os povos democráticos têm uma preferência natural pela liberdade Entregues a si mesmos eles a amam a procuram e encaram com pesar a sua per da Mas têm pela igualdade uma paixão ardente insaciável eterna invencível Querem a igualdade na liberdade e quando não podem obtêla queremna ainda mais na escravidão Suportarão a pobreza a servidão a barbárie mas não supor tarão a aristocracia O C 11 vol 2 pp 103104 Encontramos aqui dois traços da formação intelectual de Tocqueville a ati tude do aristocrata de antiga família sensível à rejeição da tradição nobiliária característica das sociedades atuais e também a influência de Montesquieu o jogo dialético dos dois conceitos de liberdade e igualdade Na teoria dos regi mes políticos de Montesquieu a dialética essencial é com efeito a da liberda de e da igualdade A liberdade das monarquias se baseia na distinção das clas ses e no sentimento da honra A igualdade do despotismo é a igualdade na ser vidão Tocqueville retoma a problemática de Montesquieu e mostra como o sentimento predominante das sociedades democráticas é a vontade de igualda de a qualquer preço o que pode levar a aceitar a servidão mas não implica a servidão Numa sociedade desse tipo todas as profissões serão honrosas porque te rão no fundo a mesma natureza e serão todas assalariadas Tocqueville diz que a sociedade democrática é uma sociedade de trabalho assalariado universal Ora uma sociedade desse tipo tende a suprimir as diferenças de natureza e de essên cia entre as atividades nobres e as nãonobres Assim a distinção entre o servi ço doméstico e as profissões livres tenderá progressivamente a diminuir e to das as profissões serão um job do mesmo tipo proporcionando uma certa renda Subsistirão sem dúvida desigualdades de prestígio entre as ocupações de acor do com a importância do salário atribuído a cada uma Mas não haverá mais uma diferença de natureza OS FUNDADORES 231 Não existe profissão em que não se trabalhe por dinheiro O salário que é co mum a todas dá a todas um ar de família O C 11 vol 2 p 159 Tocqueville está aqui no seu elemento De um fato aparentemente banal e muito genérico tira uma série de conseqüências que vão longe pois na época em que escrevia essa tendência apenas se iniciava embora hoje pareça ampla e profunda Uma das características menos duvidosas da sociedade americana é a convicção de que todas as profissões são honrosas isto é têm essencialmen te a mesma natureza Tocqueville continua Isto serve para explicar as opiniões dos americanos com relação às diversas profissões Os empregados nos Estados Unidos não se consideram degradados por que trabalham já que à sua volta todos trabalham Não se sentem diminuídos pela idéia de que recebem um salário pois o Presidente dos Estados Unidos também recebe um salário Ele é pago para comandar como os empregados recebem para servir Nos Estados Unidos as profissões são penosas e lucrativas em diferentes graus mas nunca são elevadas ou baixas Toda profissão honesta é honrosa Ibid Poderíamos certamente estabelecer certas precisões neste quadro mas o esquema me parece fundamentalmente verdadeiro Para Tocqueville uma sociedade democrática é uma sociedade individua lista em que cada um tende a se isolar dos outros com sua família Curiosamente esta sociedade individualista apresenta certos traços comuns com o isolamento característico das sociedades despóticas pois o despotismo tende a isolar os in divíduos uns dos outros O resultado porém não é a inclinação ao despotismo da sociedade democrática e individualista pois certas instituições podem impe dir o desvio no sentido deste regime corrompido Essas instituições são asso ciações livremente criadas pela iniciativa dos indivíduos que podem e devem interporse entre o indivíduo solitário e o Estado todopoderoso Uma sociedade democrática tende à centralização e comporta o risco de uma gestão pela administração pública do conjunto das atividades sociais Tocque ville concebeu a sociedade totalmente planificada pelo Estado mas essa admi nistração que abrangeria o conjunto da sociedade e que sob certos aspectos se realiza na sociedade que chamamos hoje de socialista longe de criar o ideal de uma sociedade nãoalienada que sucede à sociedade capitalista representa no seu esquematismo o próprio tipo de uma sociedade despótica que devemos te mer Vêse aqui até que ponto é possível chegar a visões antitéticas e a julga mentos de valor contraditórios de acordo com o conceito utilizado como ponto de partida para nossa reflexão As sociedades democráticas são em conjunto materialistas o que signifi ca que os indivíduos têm a preocupacão de adquirir o máximo de bens destfi 232 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mundo e que o objetivo da coletividade é fazer com que o maior número pos sível de pessoas vivam do melhor modo Tocqueville lembra todavia que como contrapartida desse materialismo am biente surgem de vez em quando explosões de espiritualismo exaltado erup ções de exaltação religiosa Esse espiritualismo que irrompe é contemporâneo do materialismo normalizado e corrente Os dois fenômenos opostos fazem par te da essência de uma sociedade democrática A terceira parte do segundo volume de A democracia na América trata dos costumes Focalizarei sobretudo as idéias de Tocqueville a respeito das revoluções e da guerra Os fenômenos da violência me parecem em si mesmos sociologica mente interessantes Algumas das grandes doutrinas sociológicas como o marxis mo estão centralizadas aliás em fenômenos de violência revoluções e guerras Tocqueville explica primeiramente que os costumes das sociedades demo cráticas tendem a se abrandar que o relacionamento entre os americanos tende a ser simples e fácil pouco artificial e pouco estilizado Desaparecem os refi namentos sutis e delicados da polidez aristocrática cedendo lugar a uma espé cie de bommeninismo para empregar uma linguagem moderna O estilo das relações entre os indivíduos nos Estados Unidos é direto Mais ainda as relações entre senhores e servidores tendem a ser do mesmo tipo das relações entre as pessoas da mesma origem social A gradação da hierarquia aristocráti ca que sobrevive nas relações interindividuais nas sociedades européias desa parece cada vez mais numa sociedade fundamentalmente igualitária como é á americana Tocqueville tem consciência de que esse fenômeno está associado às par ticularidades da sociedade americana mas é tentado a acreditar que as socieda des européias evoluirão no mesmo sentido à medida que se democratizem j Depois examina as guerras e as revoluções em função desse tipo ideal sociedade democrática í Afirma em primeiro lugar que as grandes revoluções políticas ou intelec tuais pertencem à fase de transição entre as sociedades tradicionais e as socie dades democráticas e não à essência destas últimas Em outras palavras as gran des revoluções nas sociedades democráticas se tomarão raras Contudo essas sociedades serão naturalmente sociedades insatisfeitas21 Tocqueville escreve que as sociedades democráticas nunca podem estar sa tisfeitas porque como são igualitárias fomentam a inveja contudo a despei to dessa turbulência superficial são fundamentalmente conservadoras As sociedades democráticas são antirevolucionárias pela razão profunda de que à medida que melhoram as condições de vida aumenta o número dos què têm alguma coisa a perder com uma revolução Nas sociedades democráti OS FUNDADORES 233 cas muitos indivíduos e classes têm um certo patrimônio e não se arriscam a perder seus bens nas incertezas da revolução22 Acreditase que as sociedades novas vão mudar a cada dia eu porém temo que terminem por se fixar de modo invariável nas mesmas instituições nos mes mos preconceitos nos mesmos costumes de tal modo que o gênero humano se detenha e se limite que o espírito se dobre e se feche eternamente sobre si mes mo sem produzir novas idéias que o homem se esgote em pequenos movimentos estéreis e solitários e que a humanidade deixe de avançar perdendose numa agi tação incessante O C 11 vol 2 p 269 Neste ponto o aristocrata tem e não tem razão Tem razão na medida em que as sociedades democráticas desenvolvidas são de fato mais querelosas do que revolucionárias Não tem razão contudo quando subestima o princípio do movimento que anima as sociedades democráticas modernas a saber o desen volvimento da ciência e da indústria Sua tendência era combinar as duas ima gens a das sociedades fundamentalmente estabilizadas e a daquelas basicamen te preocupadas com o bemestar mas o que não viu com suficiente atenção foi que a preocupação com o bemestar associada ao espírito científico provoca um processo ininterrupto de descobertas e inovações técnicas Um princípio revo lucionário a ciência trabalha no seio das sociedades democráticas que sob ou tros pontos de vista são essencialmente conservadoras Tocqueville foi marcado profundamente pelas lembranças da Revolução seus pais tinham sido aprisionados durante o Terror sendo salvos da guilhotina pelo 9termidor Muitos dos seus parentes entre eles Malesherbes tinham sido guilhotinados Por isso era espontaneamente contrário às revoluções e como qualquer pessoa encontrava razões convincentes para justificar seus senti mentos23 Uma das melhores proteções das sociedades democráticas contra o despotis mo dizia é o respeito à legalidade Ora por definição as revoluções violam a lega lidade Habituam os homens a não respeitar a lei Este desprezo pela lei sobrevive às revoluções e se toma uma das causas possíveis do despotismo Tocqueville se inclinava a acreditar que quanto mais as sociedades democráticas fizessem revo luções mais correriam perigo de se tomarem despóticas Isso talvez seja uma justificação de sentimentos anteriores o que não sig nifica que o raciocínio seja falso Tocqueville pensava que as sociedades democráticas seriam pouco propensas à guerra Incapazes de preparar a guerra em tempos de paz seriam incapazes de terminála uma vez que a tivessem iniciado Desse ponto de vista traçou um retra to bastante fiel da política externa dos Estados Unidos até uma data recente A guerra é considerada pela sociedade democrática como um intervalo de sagradável na sua existência normal que é pacífica Em tempos de paz pen 234 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICC sase o menos possível na guerra e não se toma nenhuma precaução assim as primeiras batalhas são geralmente derrotas Contudo se o Estado democrático não é inteiramente derrotado no curso dos primeiros combates termina por se mobilizar completamente e leva a guerra até a vitória total Tocqueville nos dá uma bela descrição da guerra total das sociedades de mocráticas do século XX Quando a guerra prolongandose afastou finalmente todos os cidadãos dos seus trabalhos pacíficos provocando o fracasso dos seus pequenos empreendi mentos o que acontece é que a mesma paixão que os fazia atribuir tanta impor tância à paz levaos às armas Depois de destruir todas as indústrias a guerra se toma em si mesma uma grande e exclusiva indústria para a qual se dirigem de todas as partes os desejos ardentes e ambiciosos que a igualdade fez nascer É por isso que estas mesmas nações democráticas que têm tanta dificuldade em se mover para o campo de batalha realizam às vezes feitos prodigiosos O C 11 vol 2 p 283 O fato de que as sociedades democráticas sejam pouco inclinadas à guer ra não significa que não entrem em guerra Tocqueville considerou que possi velmente fariam a guerra e que esta contribuiria para acelerar a centralização administrativa que abominava e que via triunfar em todos os lugares Por outro lado temia e neste ponto creio que se equivocou que nas societ dades democráticas os exércitos fossem como diríamos hoje belicistas Mostra va por meio de uma análise clássica que os soldados profissionais em parti cular os suboficiais gozando de pouco prestígio em tempo de paz e encontran do as dificuldades de promoção conseqüentes da baixa mortalidade dos oficiais em períodos normais se inclinavam mais a desejar a guerra do que os homens comuns Confesso minha inquietação com essas precisões no aleatório Não de correrão de uma propensão excessiva à generalização24 Por fim Tocqueville acreditava que se surgissem déspotas nas sociedades democráticas eles seriam tentados a fazer a guerra para reforçar seu poder e aOf mesmo tempo para satisfazer seus exércitos A quarta e última parte é conclusiva As sociedades modernas são atraves sadas por duas revoluções uma tende a realizar a igualdade crescente de con dições a uniformidade das maneiras de viver mas também a concentrar cada vez mais a administração na cúpula a reforçar indefinidamente os poderes da gestão administrativa a outra debilita sem cessar os poderes tradicionais Supondose essas duas revoluções revolta contra o poder e centralização administrativa as sociedades democráticas enfrentam a alternativa das institui ções livres ou do despotismo OS FUNDADORES 235 Assim duas revoluções parecem operar atualmente em sentidos contrários uma debilitando continuamente o poder a outra revigorandoo sem cessar Em ne nhuma outra época da nossa história o poder pareceu tão fraco ou tão forte O C 11 vol 2 p 320 É uma bela antítese mas não está formulada com exatidão O que Toc queville quer dizer é que o poder se enfraquece e ao mesmo tempo sua esfera de ação se amplia Na realidade ele visa à ampliação das funções administra tivas e estatais e ao enfraquecimento do poder político de decisão A antítese teria sido talvez menos retórica e mais marcante se Tocqueville tivesse posto em oposição a ampliação de um lado e o enfraquecimento do outro em lugar de opor como ele fez revigoramento e enfraquecimento Como homem político Tocqueville é um solitário ele próprio o disse Pro cedendo do partido legitimista uniuse não sem hesitação e escrúpulos de cons ciência à dinastia de Orléans pois de certo modo rompia com a tradição fami liar Mas tinha posto na Revolução de 1830 a esperança de que se realizaria finalmente seu ideal político isto é a combinação de uma democratização da sociedade e de um reforço das instituições liberais sob a forma da síntese que pa recia desprezível a Auguste Comte e desejável a seus olhos a monarquia cons titucional A Revolução de 1848 o deixou consternado pois lhe pareceu ser a prova de que a sociedade francesa era incapaz de liberdade política Estava portanto só separado dos legitimistas pela razão e dos orleanistas pelo coração No parlamento tinha feito parte da oposição dinástica mas havia condenado a campanha dos banquetes explicando à oposição que ao tentar con seguir uma reforma da lei eleitoral mediante tais procedimentos de propaganda ela iria derrubar a dinastia Em 27 de janeiro de 1848 fez um discurso profético em resposta à Fala do Trono anunciando a revolução que se aproximava No entanto ao redigir suas memórias depois da Revolução de 1848 confessa muito francamente que tinha sido melhor profeta do que esperava no momento em que pronunciou seu discurso Anunciei a revolução dirá ele em substância e meus ouvintes pensaram que exagerava e eu também pensava A revolução estourou cerca de um mês depois de ele a ter anunciado no meio do ceticismo geral que ele compartilhava25 Depois da Revolução de 1848 Tocqueville teve a experiência da República que ele queria que fosse liberal ocupando durante alguns meses o posto de Mi nistro dos Negócios Estrangeiros26 Politicamente Tocqueville pertence portanto ao Partido Liberal isto é a um partido que provavelmente tem poucas oportunidades de encontrar satisfa ção ainda que em querelas na vida oolítica francesa 236 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Como sociólogo Tocqueville pertence à descendência de Montesquieu Combina o método do retrato sociológico com a classificação dos tipos de regi me e dos tipos de sociedade e a propensão a construir teorias abstratas a partir de um pequeno número de fatos Opõese aos sociólogos considerados como clássicos Auguste Comte ou Marx pela rejeição das sínteses amplas que pre tendem prever o curso da história Não acredita que a história passada tenha sido determinada por leis inexoráveis e que os acontecimentos futuros estejam predeterminados Como Montesquieu Tocqueville deseja tomar a história inte ligível não quer suprimila Ora os sociólogos do tipo de Comte e de Marx estão sempre inclinados a suprimir a história pois conhecêla antes de que se realize é tirarlhe a dimensão propriamente humana a da ação e da imprevisi bilidade Indicações biográficas 1805 29 de julho Nasce Alexis de Tocqueville em Vemeuil É o terceiro filho de Hervé de Tocqueville e sua esposa da família Rosambos neta de Malesherbes antigo Diretor da Biblioteca nos tempos da Encyclopédie e depois advogado de Luís XVI Os pais de Alexis de Tocqueville estiveram presos em Paris na época do Terror tendo esca pado da morte com o 9termidor Na Restauração Hervé de Tocqueville foi prefei to em vários departamentos entre eles Moselle e SeineetOise 18101825 Estudos sob a direção do abade Lesueur antigo preceptor de seu pai Es tudos secundários no Colégio de Metz Estudos de direito em Paris 18261827 Viagem à Itália em companhia do irmão Édouard Estada na Sicília 1827 Nomeado por ordem do rei JuizAuditor em Versalhes onde seu pai reside des de 1826 como prefeito 1828 Encontro de Mary Motley Noivado 1830 A contragosto Tocqueville presta juramento a LouisPhilippe Escreve à noiva Finalmente acabo de prestar juramento Minha consciência não me reprova mas nem por isso me sinto menos profundamente ferido considerarei este dia como um dos mais infelizes da minha vida 1831 Tocqueville e Gustave de Beaumont seu amigo solicitam e obtêm do Ministro do Interior uma missão para estudar nos Estados Unidos o sistema penitenciá rio americano 18311832 De maio de 1831 a fevereiro de 1832 permanência nos Estados Unidos viagem através da Nova Inglaterra Québec o Sul Nova Orleans e o Oeste até o lago Michigan 1832 Tocqueville pede demissão como magistrado em solidariedade a seu amigo Gus tave de Beaumont demitido por ter recusado se pronunciar num caso em que a par ticipação do ministério público não lhe parecia honrosa 1833 Du systèmepénitentiaire aux ÊtatsUnis et de son application en France segui do de um apêndice sobre as colônias de G de Beaumont e A de Tocqueville advogados da Corte Real de Paris membros da Sociedade Histórica da Pensilvânia 1835 Publicação dos tomos I e II de A democracia na América com grande êxito No va viagem à Inglaterra e à Irlanda 238 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 1836 Casamento com Mary Motley Artigo na London and Westminster Review L état social et politique de la Fran ce avant et depuis 1789 Viagem à Suíça 1837 Tocqueville se apresenta pela primeira vez às eleições legislativas tendo recusa do o apoio oficial apesar de este lhe ter sido oferecido pelo conde Molé seu parente foi derrotado 1838 Eleito membro da Académie des sciences morales et politiques 1839 Tocqueville é eleito por grande maioria de votos deputado de Vologne circuns crição em que está situado o castelo de Tocqueville Até se retirar da política em 1851 será muitas vezes reeleito 1840 Relator do projeto de lei sobre a reforma das prisões Publicação dos tomos III e IV de La démocratie enAmérique o êxito é menor do que em 1835 1841 Tocqueville é eleito para a Académie française Viagem à Argélia 18421844 Membro da comissão extraparlamentar sobre as questões africanas Eleito conselheiro geral da Mancha como representante dos cantões de Sainte MèreEglise e de Montebourg j 1846 Outubrodezembro Nova viagem à Argélia J 1847 Relator dos créditos extraordinários para a Argélia Em relatório Tocqueville es tabelece sua doutrina sobre a questão da Argélia Com relação aos indígenas mu çulmanos preconiza uma atitude firme mas interessada pelo seu bemestar reco mendando ao governo que incentive ao máximo a colonização européia 1848 27 de janeiro Discurso na Câmara Creio que neste momento estamos dormili do sobre um vulcão 23 de abril Nas eleições por sufrágio universal para a Assembléia Constituint Tocqueville mantém seu mandato Junho Membro da comissão incumbida de elaborar a nova Constituição Dezembro Nas eleições presidenciais Tocqueville vota em Cavaignanc 1849 2 de junho Tocqueville tomase Ministro dos Negócios Estrangeiros EscolHi Arthur de Gobineau como chefe de gabinete e nomeia Beaumont embaixador eu Viena 30 de outubro Tocqueville é obrigado a pedir demissão Sobre este período leias Souvenirs 18501851 Tocqueville escreve Souvenirs í A partir de 2 de dezembro retirase da vida política 1853 Instalado perto de Tours pesquisa sistematicamente nos arquivos da cidade tf documentação proveniente da Ancienne Généralité para obter informações sobré a Société dAncien Régime 1854 Junho a setembro Viagem à Alemanha para estudar o antigo sistema feudal e o que resta dele no século XIX 1856 Publicação da primeira parte de LAncien Régime et la Révolution 1857 Viagem à Inglaterra para consultar documentos sobre a história da Revolução Para retomar à França o Almirantado britânico coloca à sua disposição um navio de guerra como forma de homenagem 1859 Morre em Carmes no dia 16 de abril Notas 1 Embora racionalmente Tocqueville seja favorável a uma sociedade desse tipo cujo objetivo e justificativa consistem em assegurar o máximo de bemestar ao maior número possível de pessoas com o coração ele não aceita sem reservas uma sociedade em que o sentido da grandeza e da glória tende a se perder No prefácio de La démo cratie en Amérique ele escreve A nação considerada como um corpo coletivo será menos brilhante menos gloriosa menos forte talvez mas a maioria dos cidadãos des frutará de condições mais prósperas e o povo mostrarseá pacífico não por ter deses perado de estar melhor mas porque sabe que está bem O C 11 vol 1 p 8 2 No prefácio de La démocratie en Amérique Tocqueville escreve Uma gran de revolução democrática está se operando entre nós todos a enxergam mas nem todos a julgam da mesma maneira Uns a consideram como uma coisa nova e tomandoa co mo um acidente esperam ainda poder detêla outros a julgam irresistível porque ela lhes parece o fato mais contínuo mais antigo e mais permanente que se conhece na his tória O C t 1 vol 1 p 1 O desenvolvimento gradual da igualdade de condições é portanto um fato providencial e tem dele as principais características é universal é duradouro escapa a cada dia do poder humano todos os acontecimentos assim como todos os homens estão a serviço do seu desenvolvimento O livro todo foi escrito sob a impressão de uma espécie de terror religioso produzido na alma do autor pela obser vação dessa revolução irresistível que caminha há tantos séculos transpondo todos os obstáculos e que vemos avançar ainda hoje por entre as ruínas que ela provocou Se longas observações e reflexões sinceras levassem os homens de hoje a reconhecer que o desenvolvimento gradual e progressivo da igualdade é ao mesmo tempo o passado e o futuro da sua história esta descoberta por si só daria a esse desenvolvimento o cará ter sagrado da vontade do senhor soberano Querer deter a democracia pareceria então lutar contra Deus mesmo e às nações só restaria acomodarse ao Estado social que a Providência lhes impõe Ib id pp 4 e 5 3 Notadamente nos capítulos 18 19 e 20 da segunda parte do segundo volume de La démocratie en Amérique O capítulo 18 se intitula Por que entre os norteamerica nos todas as profissões são consideradas honrosas o cap 19 O que faz com que 240 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO quase todos os americanos se inclinem para as profissões liberais o cap 20 De que modo a indústria poderia dar origem à aristocracia No cap 19 Tocqueville escreve Os americanos chegaram ainda ontem à terra onde moram e já alteraram toda a ordem da natureza em seu proveito Uniram o Hudson ao Mississippi e puseram o oceano Atlân tico em comunicação com o golfo do México através de mais de quinhentas léguas de continente que separam esses dois mares As estradas de ferro mais longas já construí das estão nos Estados Unidos O C t 1 vol 2 p 162 4 Cap XX segunda parte 2 volume de La démocratie en Amérique Esse capí tulo se intitula De que modo a aristocracia poderia dar origem à indústria Tocqueville escreve À medida que a massa da nação se volta para a democracia a classe especí fica que se ocupa das indústrias se toma mais aristocrática Numa os homens cada vez mais se assemelham uns aos outros na outra cada vez mais os homens diferem entre si a desigualdade aumenta na pequena sociedade na mesma proporção em que diminui na grande sociedade É assim que quando remontamos à origem pareceme que vemos a aristocracia sair por meio de um esforço natural do próprio seio da democracia Tocqueville baseia essa observação numa análise dos efeitos psicológicos e sociais da divisão do trabalho O operário que passa a vida fazendo cabeças de alfinete esse exem pio Tocqueville tomou emprestado de Adam Smith se degrada Só se tomará um bom5 operário na medida em que for menos homem menos cidadão pensamos aqui em cer tas páginas de Marx O patrão pelo contrário adquire o hábito do comando e no vasto1 mundo dos negócios seu espírito alcança a percepção das totalidades E isso no mesmò momento em que a indústria atrai para si os homens ricos e instruídos das antigas clasÍ ses dirigentes Tocqueville no entanto logo acrescenta Mas essa aristocracia não se assemelha às que a precederam A conclusão é bastante característica do método e dos sentimentos de Tocqueville Penso que em última análise a aristocracia manufa tureira a cuja ascensão nós assistimos é uma das mais duras que apareceram no mundo mas ela é ao mesmo tempo uma das mais restritas e das menos perigosas De qualquer forma é para esse lado que os amigos da democracia devem voltar seus olhares apreen sivamente pois se algum dia a desigualdade permanente de condições e a aristocracia penetrarem novamente no mundo podese prever que elas entrarão por essa porta 0 C 11 vol 2 pp 166167 j 5 Existem duas obras americanas importantes sobre esse assunto Um historiador americano em particular G W Pierson reconstituiu a viagem de Tocqueville detalhou os encontros do viajante com as personalidades americanas identificou a origem d algumas de suas idéias em outros termos confrontou Tocqueville enquanto intérprete da sociedade americana com seus informantes e comentaristas G W Pierson Tocque ville and Beaumont in America Nova York Oxford University Press 1938 Doubleday AnchorBooks 1959 O segundo volume do primeiro tomo de Oeuvres complètes contém uma longa bibliografia sobre os problemas tratados em A democracia na América Essa bibliogra fia foi compilada por JP Mayer 6 Seria oportuno estudar também as muitas páginas que Tocqueville escreveu so bre o sistema jurídico norteamericano a função legal e até mesmo política do júri OS FUNDADORES 241 7 Devese acrescentar que Tocqueville provavelmente é injusto as diferenças en tre as relações dos americanos com os indígenas e as relações hispanoindígenas não estão ligadas apenas à atitude adotada por uns e outros mas também às diferenças quan to à densidade dos povoamentos indígenas do Norte e do Sul 8 Duas obras de Léo Strauss foram traduzidas para o francês De la tyrannie pre cedida do Hiéron de Xenofonte e seguida de Tyrannie et sagesse de Alexandre Kojève Paris Gallimard 1954 Droit naturel et histoire Paris Plon 1954 Ver também Persecution and theArt ofWriting Glencoe The Free Press 1952 The Political Philosophy of Hobbes its Basis and its Genesis Chicago University of Chicago Press 1952 Segundo Léo Strauss A ciência política clássica deve sua existência à perfeição humana ou à maneira pela qual os homens deveriam viver e ela atinge seu ponto cul minante na descrição do melhor sistema político Esse sistema devia ser realizável sem nenhuma mudança milagrosa ou não na natureza humana mas sua realização não era considerada como provável porque acreditavase que ela dependia do acaso Maquiavel ataca essa idéia ao mesmo tempo pedindo que cada um avalie suas posições não sobre a questão de saber como os homens deveriam viver mas como eles vivem realmente e sugerindo que o acaso pode ser ou é controlado É esta crítica que estava na base de todo o pensamento político especificamente moderno De la tyrannie op cit p 45 9 JF Gravier Paris et le désert français 1 ed Paris Le Portulan 1947 2f ed totalmente modificada 1958 O primeiro capítulo desse livro contém aliás como epí grafe uma citação de UAncien Régime et la Révolution Ver também do mesmo autor Uaménagement du territoire et Vavenir dês régions françaises Paris Flammarion 1964 10 O capítulo 4 do livro III de UAncien Régime et la Révolution intitulase Que le règne de Louis XIV a été 1époque la plus prospère de 1ancienne monarchie et com ment cette prospérité même hâta la Révolution Como o reinado de Luís XIV foi a época mais próspera da antiga monarquia e como esta mesma prosperidade precipitou a Revolução O C t II vol 1 pp 218225 Esta idéia que à sua época era relati vamente nova foi retomada pelos historiadores modernos da Revolução A Mathiez escreve A Revolução não eclodirá num país esgotado mas ao contrário num país flo rescente em pleno progresso A miséria que às vezes determina insurreições não pode provocar as grandes alterações sociais Estas surgem sempre do desequilíbrio entre as classes La Révolution Française 11 La chute de la royauté Paris Armand Collin 19511 f ed de 1921 p 13 Ela foi mais bem definida por Emest Labrousse em sua gran de obra La crise de 1économie française à la fin de 1Ancien Régime et au début de la Révolution Paris PUF 1944 11 Na Rússia entre 1890 e 1913 o número dos trabalhadores industriais dobrou passando de 15 para 3 milhões A produção das empresas industriais se multiplicou por 4 A produção de carvão passou de 53 para 29 milhões de toneladas a de aço de 07 para 4 milhões de toneladas a de petróleo de 32 para 9 milhões de toneladas De acordo com Prokopowicz em valor constante a renda nacional russa aumentou globalmente de 40 e a rendaper capita de 17 entre 1900 e 1913 Os progressos no campo da edu cação foram também consideráveis Em 1874 só 214 dos homens sabiam ler e escre 242 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ver em 1914 essa porcentagem era de 678 Entre 1880 e 1914 o número de alunos da escola elementar passou de 1141000 para 8147000 Já em 1899 em O capitalismo na Rússia Lenin observava que os progressos da indústria eram mais rápidos na Rússia do que na Europa ocidental e mesmo nos Estados Unidos Acrescentava O desenvol vimento do capitalismo nos países jovens é muito acelerado pela ajuda e o exemplo dos países velhos Em 1914 um economista francês EdmondThéry de volta de longa via gem de estudo na Rússia afirmava num livro intitulado La transformation économique de la Russie Se entre 1912 e 1950 as coisas se passarem nas grandes nações da Eu ropa como entre 1900 e 1912 em meados deste século a Rússia dominará a Europa tanto do ponto de vista político como do econômico e financeiro As características do crescimento russo antes de 1914 eram participação muito grande do capital estrangeiro o que se traduzia no plano do comércio exterior por um grande déficit da balança comercial estrutura moderna e concentrada do capitalismo grande influência do Estado czarista tanto no estabelecimento da infraestrutura como na organização dos circuitos financeiros 12 H Taine Les origines de la France contemporaine Paris Hachette 18761893 A obra de Taine compreende três partes I UAncien Régime 2 vols II La Rèvolution 6 vols III Le régime modeme 3 vols Os três textos sobre o papel dos intelectuaiít na crise do Antigo Regime e a evolução da Revolução constam dos livros III e IV da primeira parte Esses livros intitulamse Uesprit et la doctrine La propagation de la doctrine Ver principalmente os capítulos 2 Uesprit classique 3 e 4 do livro IIJJ Para corrigir o que há de excessivo nesta interpretação leiase o excelente livro de Dl Momet Les origines intellectuelles de la Rèvolution Paris 1933 D Momet demonçl tra que em grande medida os escritores e homens de letras não tinham semelhança conüj a imagem que nos dão a respeito deles Tocqueville e Taine J 13 Oeuvres complètes t II UAncien Régime et la Rèvolution vol 1 p 302 capítulo 2 do livro III intitulase Comment 1irréligion avait pu devenir une passicp générale et dominante chez les Français du XVIIIe siècle et quelle sorte dinfluence cefjj eut sur le caractère de la Rèvolution 1 14 Não sei se em última análise e a despeito dos vícios chocantes de alguns dcw seus membros houve jamais em todo o mundo um clero mais notável do que o clenj católico da França no momento em que foi surpreendido pela Revolução mais esclasj recido mais nacionalista menos entrincheirado em suas virtudes privadas dotado virtudes públicas e ao mesmo tempo de mais fé a perseguição bem o demonstroo Iniciei o estudo da antiga sociedade cheio de preconceitos contra ele concluío cheio de respeito O C t II vol 1 p 173 15 Este retrato sintético se encontra no final de UAncien Régime et la Rèvolution Começa com estas palavras Quando considero esta nação em si mesma achoa mai extraordinária do que qualquer dos eventos de sua história Terá jamais aparecido no mundo O C t II vol 1 pp 249250 Tocqueville anunciao assim Sem uma visão clara da antiga sociedade de suas leis de seus vícios de seus preconceitos de suas misérias de suas grandezas jamais se compreenderá o que os franceses fizeram durante os sessenta anos que se seguiram à sua queda mas essa visão ainda não seri suficiente se não penetrássemos na própria natureza de nossa naçao OS FUNDADORES 243 16 Tocqueville tem muita consciência dessa dificuldade No prefácio do segundo volume de La démocratie en Amérique afirma Devo prevenir o leitor imediatamen te contra um erro que me seria muito prejudicial Vendome atribuir tantos efeitos di versos à igualdade ele poderia concluir que a considero causa única de tudo o que acontece em nossos dias Isto seria me atribuir um ponto de vista muito estreito Há em nossa época muitas opiniões sentimentos e instintos que devem sua origem a fatos estranhos e até mesmo contrários à igualdade Assim se eu tomasse os Estados Unidos como exemplo provaria facilmente que a natureza do país a origem dos seus habitan tes a religião dos fundadores as luzes que adquiriram e seus hábitos anteriores exerce ram e exercem ainda uma imensa influência sobre sua maneira de pensar e de sentir independentemente da democracia Na Europa encontraríamos causas diferentes mas também distintas do fato da igualdade que explicariam em boa parte o que acontece ali Reconheço a existência de todas essas diferentes causas e seu poder mas meu tema não é esse Não estou empenhado em demonstrar a razão de todas as nossas inclinações e de todas as nossas idéias quis somente fazer ver em que a igualdade tinha modificado umas e outras O C 11 vol 2 p 7 17 Primeira parte cap VIII Como a igualdade sugere aos norteamericanos a idéia da perfectibilidade indefinida do Homem O C 11 vol 2 pp 3940 18 Primeira parte cap X Por que os norteamericanos se interessam mais pela prática das ciências do que pela sua teoria O C 11 vol 2 pp 4652 19 Primeira parte cap XIII a XIX especialmente o cap XIII Fisionomia lite rária dos séculos democráticos e o cap XVII Sobre algumas fontes de poesia nas na ções democráticas 20 Primeira parte cap XX Sobre algumas tendências particulares dos historia dores nos séculos democráticos O C 11 vol 2 pp 8992 21 Relendo Tocqueville percebi que uma idéia que eu considerava mais ou menos como minha e que já havia exposto nas minhas aulas sobre a sociedade industrial e a luta de classes já se encontrava com palavras diferentes em Tocqueville o gosto das sociedades industriais modernas pela querela Vide R Aron Dixhuit leçons sur la so ciété industrielle Paris Gallimard 1962 Ed brasileira 18 lições sobre a sociedade industrial São Paulo Martins Fontes Editora 1981 trad Sérgio Bath N do E La lutte de classes Paris Gallimard 1964 22 Nas sociedades democráticas a maioria dos cidadãos não vêem claramente o que poderiam ganhar com uma revolução sentindo contudo a cada instante e de mil maneiras o que poderiam perder O C t I vol 2 p 260 Se houver algum dia grandes revoluções nos Estados Unidos da América elas serão provocadas pela presen ça dos negros em solo americano isto é sua origem não será a igualdade de condições mas ao contrário a desigualdade Ibid p 263 23 Lembrome como se fosse hoje de uma noite num castelo onde morava meu pai em que uma festa de família reunira muitos dos nossos parentes próximos Os empregados foram mantidos afastados Toda a família estava reunida em tomo da larei ra Minha mãe que tinha a voz suave e penetrante pôsse a cantar uma ária famosa durante o período dos distúrbios cuja letra fazia referência às desgraças do rei Luís XVI e à sua morte Quando ela terminou todos choravam não pelas muitas misérias 244 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO individuais sofridas nem pelos muitos parentes perdidos na guerra civil e no cadafalso mas pelo destino daquele homem morto havia mais de quinze anos e que a maior parte daqueles que vertiam lágrimas por ele nunca tinha visto Mas aquele homem tinha sido o rei Citado por JP Mayer in Alexis de Tocqueville Paris Gallimard 1948 p 15 24 Sobre esse assunto ver o cap XXIII da terceira parte Qual é nos exércitos democráticos a classe mais guerreira e mais revolucionária Tocqueville termina esse capí tulo assim Em todo exército democrático é sempre o suboficial que representará menos o espírito pacífico e regular do país e o soldado que o representará melhor O soldado trará para a carreira militar a força ou a fraqueza dos costumes nacionais ele fará com que apareça só a imagem fiel da nação Se ela é ignorante e fraca ele deixará que seus chefes o levem à desordem sem que o perceba ou à sua revelia Se ele for esclarecido e enérgico ele mesmo os manterá dentro da ordem O C 11 vol 2 p 280 25 Esse discurso se encontra na edição de Oeuvres complètes de JP Mayer como um dos apêndices do segundo volume de La démocratie en Amérique O C 11 vol 2 pp 368369 Foi pronunciado a 27 de janeiro de 1848 durante a discussão do projeto de mensagem em resposta ao discurso do trono Nesse discurso Tocqueville denunciava a indignidade da classe dirigente que ficara clara nos inúmeros escândalos do fim do rei nado de LouisPhilippe Tocqueville concluía Será que os senhores não sentem por uma espécie de intuição instintiva que não se pode analisar mas que é certa que mais uma vez o solo da Europa está tremendo Será que os senhores não sentem como diria um vento de revoluções que está no ar Não se sabe onde esse vento nasce nem de onde vem e nem acreditem quem ele arrebata e é numa época como esta que os se nhores se mantêm tranqüilos diante da degradação dos costumes públicos pois essa pala vra não é forte demais 26 Teve como chefe de gabinete Arthur de Gobineau ao qual continuou ligado por uma grande amizade apesar da incompatibilidade radical das respectivas idéias Mas nessa época Gobineau ainda era jovem e Tocqueville já era um homem famoso EmI 1848 os dois volumes de La démocratie en Amérique já tinham sido publicados e Go bineau ainda não havia escrito nem Es sai sur l inégalité des races humaines nem suaái grandes obras literárias Les pléiades Les nouvelles asiatiques La Renaissance AdéA laide e Mademoiselle Irnois Bibliografia OBRAS DE TOCQUEVILLE Oeuvres complètes d Alexis de Tocqueville edição definitiva publicada sob a direção de Jakob Peter Mayer Paris Gallimard Segundo as previsões esta edição deverá compreender treze tomos e vinte e dois volumes Até 1967 tinham sido publicados T I De la démocratie en Amérique 2 vols T II UAncien Régime et la Révolution 2 vols 1 vol texto da primeira parte publi cado em 1856 2 vol Fragments et notes inédites sur la Révolution T III Ecrits et discours politiques 1 vol Études sur 1abolition de 1esclavage l Algérie l Inde T Y Voyages 1 vol Voyages en Sicile et auxEtatsUnis 2 vol Voyages enAngleterre Irlande Suisse et Algérie T VI Correspondance anglaise IP vol Correspondance avec HenryReeve et JohnStuart Mill T IX Correspondance d Alexis de Tocqueville et d Arthur de Gobineau T XII Souvenirs OBRAS GERAIS Chevallier JJ Les grandes oeuvres politiques Paris Armand Colin 1949 Hearnshaw F J C ed The Social Political Ideas of some Representative Thinkers of the Victorian Age artigo de H J Laski Alexis de Tocqueville and Democracy Londres G G Harrap 1933 Leroy Maxime Histoire des idées sociales en France t II de Babeuf à Tocqueville Paris Gallimard 1950 246 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO OBRAS SOBRE ALEXIS DE TOCQUEVILLE Brunius T Alexis de Tocqueville the Sociological Aesthetician Uppsala Almquist and Wiksell 1960 Diez dei Corral L La mentalidad politica de Tocqueville con especial referencia a Pascal Madri Ediciones Castilla 1965 DEichtal E Alexis de Tocqueville et la démocratie libérale Paris CalmannLévy 1857 Gargon E T Alexis de Tocqueville the Criticai Years 18481851 Washington The Catholic University of America Press 1955 Gõring H Tocqueville und die Demokratie MünchenBerlim R Oldenburg 1928 Herr R Tocqueville and the Old Regime Princeton Princeton University Press 1962 Lawlor M Alexis de Tocqueville in the Chamber of Deputies his Views on Foreign and Colonial Policy Washington The Catholic University of America Press 1959 Lively J The Social and Political Thought of Alexis de Tocqueville Oxford Clarendon Press 1962 Mayer J P Alexis de Tocqueville Paris Gallimard 1948 Pierson G W Tocqueville and Beaumont in America Nova York Oxford University Press 1938 Roland Mareei PR Essai politique sur Alexis de Tocqueville Paris Alcan 1910 Alexis de Tocqueville le livre du centenaire 18591959 Paris Éd du CNRS 1960 OBRAS EM PORTUGUÊS Tocqueville Alexis de A democracia na América tradução prefácio e notas de Neil Ribeiro da Silva 2f ed Belo Horizonte Ed Itatiaia São Paulo EDUSP 1977 O Antigo Regime e a Revolução tradução de Yvonne Jean Brasília Editora Univer sidade de Brasília 1979 Os sociólogos e a Revolução de 1848 Quando me ponho a procurar em diferentes épocas nos diferentes po vos a causa eficiente que provocou a ruína das classes que governavam distingo com clareza um certo acontecimento um certo homem uma certa causa acidental ou superficial mas acreditem o motivo real a causa eficiente que leva os homens a perderem o poder é o fato de se tornarem indignos de exercêlo Alexis de Tocqueville Discurso na Câmara dos Deputados em 24 de janeiro de 1848 É interessante sob vários aspectos estudar a atitude dos três últimos so ciólogos apresentados em relação à Revolução de 1848 Para começar a Revolução de 1848 a curta duração da II República e o golpe de Estado de Luís Napoleão Bonaparte marcaram sucessivamente a des truição de uma monarquia constitucional em benefício da república e em segui da a destruição da república em benefício de um regime autoritário O pano de fundo de todos esses acontecimentos foi a ameaça ou o medo de uma revolução socialista No curso do período 18481851 sucederamse a dominação tempo rária de um governo provisório no qual a influência socialista era forte a luta entre a Assembléia Constituinte e o povo de Paris e por fim a rivalidade entre uma Assembléia Legislativa de maioria monarquista que defendia a república e um Presidente eleito pelo sufrágio universal que pretendia estabelecer um império autoritário Em outros termos no curso do período de 18481851 a França conheceu uma luta política que se assemelha mais às lutas políticas do século XX do que a qualquer outro episódio do século XIX Podese observar com efeito no perío do de 18481851 a luta triangular entre os que chamaríamos hoje de fascistas de democratas mais ou menos liberais e de socialistas luta que se observou tam bém por exemplo entre 1920 e 1933 na Alemanha de Weimar Não há dúvida de que os socialistas franceses de 1848 não têm grande se melhança com os comunistas do século XX os bonapartistas de 1850 não são os fascistas de Mussolini nem os nacionalsocialistas de Hitler Contudo não deixa de ser verdade que esse período da história política da França no século XIX já mostra os principais atores e as rivalidades típicas do século XX Além disso este período intrinsecamente interessante foi comentado ana lisado e criticado por Auguste Comte Marx e Tocqueville Seus julgamentos sobre os acontecimentos da época são característicos da doutrina de cada ume 248 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO nos ajudam a compreender ao mesmo tempo a diversidade dos julgamentos de valor a variedade dos sistemas de análises e a abrangência das teorias abstra tas desenvolvidas por estes autores Auguste Comte e a Revolução de 1848 O caso de Auguste Comte é o mais simples Ele se regozija primeiramen te pela destruição das instituições representativas e liberais que para ele esta vam associadas ao espírito metafísico crítico e anarquizante ligadas também às particularidades da evolução da Inglaterra Nos escritos de juventude Auguste Comte compara o processo de desen volvimento político da França com o da Inglaterra Na Inglaterra pensava a aris tocracia se havia aliado à burguesia e até mesmo ao povo para reduzir gradual mente a influência e a autoridade da monarquia A evolução política da França tinha sido em sentido oposto a monarquia se aliara às comunas e à burguesia para reduzir a influência e a autoridade da aristocracia Segundo Auguste Comte o regime parlamentar inglês não era mais do que a forma assumida pela dominação da aristocracia O parlamento inglês era a ins tituição através da qual a aristocracia governava a Inglaterra como antes gover nara Veneza Para Comte portanto o parlamentarismo não é uma instituição política de vocação universal mas um simples acidente da história inglesa Querer intro duzir na França instituições representativas importadas de alémMancha é um erro histórico fundamental pois não há neste país as condições essenciais que permitam o florescimento do parlamentarismo Mais ainda é cometer um erro político de conseqüências funestas procurar justapor monarquia e parlamenta rismo uma vez que a Revolução Francesa teve por inimigo justamente a mo narquia expressão suprema do Antigo Regime Em suma a combinação da monarquia e do parlamentarismo ideal da Cons tituinte parece a Auguste Comte impossível pois repousa num duplo erro de princípio relativo à natureza das instituições representativas em geral e à his tória da França em particular Além disso Auguste Comte é favorável à centralização que lhe parece refletir a lei da história da França Vai tão longe que considera a distinção entre as leis e os decretos como sutilezas inúteis de legistas metafísicos Em função desta interpretação da história ele se satisfaz portanto com a supressão do parlamento francês em benefício do que chama de ditadura tem porária e é tentado a se alegrar com o fato de que Napoleão III tenha definiti vamente liquidado o que Marx teria denominado cretinismo parlamentar1 Um texto do Curso de filosofia positiva caracteriza o pensamento político e histórico de Auguste Comte a esse respeito OS FUNDADORES 249 De acordo com nossa teoria histórica em virtude de toda a condensação ante rior dos diversos elementos do regime antigo em torno da realeza está claro que o esforço primordial da Revolução Francesa para abandonar irrevogavelmente a antiga organização devia consistir de modo necessário na luta direta do poder popular contra o poder real cuja preponderância caracterizava um tal sistema des de o fim da segunda fase moderna Ora embora esta época preliminar só possa ter tido com efeito como única destinação política a de preparar gradualmente a eli minação próxima da realeza que até então os mais intrépidos inovadores não te riam ousado conceber é notável que a metafísica constitucional sonhasse então ao contrário com a união indissolúvel do princípio monárquico com o poder popu lar como a da Constituição católica com a emancipação mental Especulações tão incoerentes não mereceriam hoje a menor atenção filosófica se não devêssemos ver nelas a primeira prova direta de uma aberração geral que exerce ainda a in fluência mais deplorável para dissimular radicalmente a verdadeira natureza da reorganização moderna que reduz esta regeneração fundamental a uma vã imita ção universal da Constituição transitória particular à Inglaterra Tal foi com efeito a utopia política dos principais líderes da Assembléia Cons tituinte e eles buscaram certamente a sua realização direta na medida em que a contradição radical dessa utopia com o conjunto das tendências características da sociabilidade francesa comportava essa busca Eis portanto o lugar apropriado para aplicar imediatamente nossa teoria his tórica à breve apreciação desta perigosa ilusão Embora em si mesma ela tenha sido por demais grosseira para exigir uma análise especial a gravidade das suas con seqüências me obriga a indicar ao leitor as bases principais deste exame que aliás não terá dificuldade em desenvolver espontaneamente de conformidade com as explicações específicas dos dois capítulos precedentes A ausência de toda sã filosofia política antes de mais nada leva a imaginar sem dificuldade o impulso empírico que determinou naturalmente tal aberração que sem dúvida devia ser profundamente inevitável já que pôde seduzir de forma completa até mesmo a razão do grande Montesquieu2 Cours de philosophie posi tive t VI p 190 Essa passagem levanta várias questões fundamentais é verdade que a mo dernidade excluía na França a manutenção da monarquia Auguste Comte tem razão de considerar que uma instituição ligada a um certo sistema de pensamen to não pode sobreviver em outro sistema Um positivista tem motivos para crer que a monarquia francesa tradicional estava vinculada a um sistema intelectual e social católico feudal e teológico mas um liberal teria respondido que uma instituição contemporânea de deter minado sistema de pensamento pode transformandose sobreviver em outro sis tema histórico e continuar a prestar serviços Comte estará certo ao reduzir as instituições de tipo britânico à singulari dade do governo de uma etapa de transição Terá razão em considerar as insti 250 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tuições representativas como ligadas intrinsecamente ao domínio de uma aris tocracia mercantil Inspirandose nessa teoria geral o exaluno da École Polytechnique via em conseqüência sem desprazer um ditador temporal pôr fim à inútil imitação das instituições inglesas e ao domínio aparente dos falastrões metafísicos do Par lamento Em Système de politique positive manifestou esta satisfação chegan do mesmo a escrever na introdução do tomo II uma carta ao Czar em que ex primia a esperança de que esse ditador que qualificava de empírico pudesse aceitar os ensinamentos do mestre da filosofia positiva contribuindo assim de forma decisiva para a reorganização fundamental da sociedade européia Essa dedicatória ao Czar provocou algumas reações na escola positivista No tomo II o autor modificou um pouco o tom devido à aberração temporária à qual o ditador se deixou arrastar a saber a guerra da Criméia cuja responsa bilidade Auguste Comte parece ter atribuído à Rússia O período das grandes guerras estava de fato historicamente encerrado e Auguste Comte felicitou o ditador temporal da França por haver posto fim nobremente à aberração tem porária do ditador temporal da Rússia Esse modo de ver as instituições parlamentares não está se ouso empregar a linguagem de Auguste Comte associado exclusivamente ao caráter especial do grande mestre do positivismo Essa hostilidade em relação às instituições parlamentares consideradas metafísicas ou britânicas existe ainda hoje3 Vale notar aliás que Auguste Comte não queria excluir inteiramente a representa ção mas achava suficiente que uma assembléia se reunisse a cada três anos para aprovar o orçamento j A meu ver os julgamentos históricos e políticos se explicam pela inspira ção principal da sociologia Esta tal como Auguste Comte a concebeu e Durkheim ainda a praticou tomava como centro o social e não o político subordinando mesmo o segundo ao primeiro o que pode levar à depreciação do regime polí tico em benefício da realidade social fundamental Durkheim compartilhava a indiferença tingida de agressividade ou desprezo do criador da palavra sociolo gia com relação às instituições parlamentares Apaixonado pelas questões sociais pelos problemas de moral e de reordenação das organizações profissionais considerava o que acontecia no Parlamento como secundário talvez irrisório Alexis de Tocqueville e a Revolução de 1848 O contraste entre Tocqueville e Comte é marcante Tocqueville considera como o grande projeto da Revolução Francesa o que Auguste Comte qualifica de uma aberração à qual até o grande Montesquieu sucumbiu Lamenta o insuces so da Constituinte isto é o fracasso dos reformadores burgueses que preten OS FUNDADORES 251 diam combinar a monarquia com as instituições representativas Considera im portante se não mesmo essencial a descentralização administrativa que Comte vê com desprezo Finalmente interessase pelas combinações constitucionais que Auguste Comte afastava como metafísicas e indignas de consideração séria A posição social destes dois autores é também muito diferente Auguste Comte era examinador na École Polytechnique e viveu muito tempo com os modestos vencimentos que recebia por esse trabalho Tendo perdido o empre go passou a viver graças às contribuições dos positivistas Pensador solitário que mal saía do seu domicílio na rua MonsieurlePrince criou uma religião da hu manidade de que era ao mesmo tempo Profeta e Grande Sacerdote Esta con dição singular devia dar à manifestação das suas idéias uma forma extrema não adaptada diretamente à complexidade dos acontecimentos Na mesma época Alexis de Tocqueville descendente de uma antiga família da aristocracia francesa representava a circunscrição da Mancha na Câmara dos Deputados da Monarquia de julho Quando ocorreu a Revolução de 1848 encon travase em Paris Ao contrário de Auguste Comte sai do seu apartamento e pas seia pelas ruas emocionase profundamente com o que vê Depois no momento das eleições para a Assembléia Constituinte volta à sua circunscrição eleitoral onde é eleito por imensa maioria Na Assembléia desempenha papel importante como membro da comissão que redige a Constituição da II República Em maio de 1849 com Luís Napoleão Bonaparte na Presidência da Repú blica Tocqueville é nomeado Ministro dos Negócios Estrangeiros na pasta de Odilon Barrot quando do remanejamento ministerial Será Ministro durante cin co meses até que o Presidente da República decide demitir esse Ministério que tinha ainda um caráter excessivamente parlamentar e que era dominado pela antiga posição dinástica isto é pelo partido liberal monarquista que se tomara republicano por resignação já que não era possível naquele momento restaurar a monarquia Portanto no período de 18481851 Tocqueville é um monarquista transfor mado em republicano conservador porque não há restauração possível nem da monarquia legitimista nem da monarquia de Orléans Mas ele é também hostil ao que chama de monarquia bastarda que vê como uma ameaça A monar quia bastarda é o Império de Luís Napoleão que todos os observadores com um mínimo de clarividência passam a temer a partir do dia em que o povo francês votou em sua grande maioria não em Cavaignac o general republicano defen sor da ordem burguesa mas em Luís Napoleão que só tinha em seu favor o nome o prestígio do tio e algumas aventuras ridículas As reações de Tocqueville aos acontecimentos estão registradas num livro apaixonante Souvenirs E o único livro que escreveu ao correr da pena Toc queville trabalhava muito seus escritos meditando no que escrevia e corrigin do incessantemente Contudo a propósito dos acontecimentos de 1848 lançou 252 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO sobre o papel para sua satisfação pessoal memórias em que se exprime com franqueza admirável já que não se destinavam à publicação Fez julgamentos se veros sobre vários de seus contemporâneos dando assim um testemunho de inestimável valor sobre os sentimentos reais que os atores da grande história e os da pequena história têm uns pelos outros No dia da Revolução 24 de fevereiro a reação inicial de Tocqueville é qua se de desespero e de desalento O parlamentar Tocqueville é um conservador li beral resignado com a modernidade democrática apaixonado pelas liberdades intelectuais pessoais e políticas Para ele essas liberdades estão encarnadas nas instituições representativas que as revoluções sempre põem em perigo Está con vencido de que ao se multiplicarem as revoluções tomam cada vez mais impro vável a sobrevivência das liberdades A 30 de julho de 1830 ao raiar do dia encontrei na alameda exterior de Ver salhes as carruagens do Rei Carlos X os brasões reais já raspados rodando vaga rosamente em fila com um ar de funeral Não pude conter as lágrimas diante desse espetáculo Desta vez isto é em 1848 minha impressão era de outra nature za mas ainda mais viva Era a segunda revolução a que assistia em dezessete anos Ambas me haviam afligido mas as impressões causadas pela última eram mais amargas Havia sentido até o fim por Carlos X um resto de afeição hereditária Mas esse Rei caía por ter violado direitos que me eram caros esperava ainda que a liberdade do meu país fosse reanimada com sua queda e não extinta Agora essa liberdade me parecia morta Os príncipes que fugiam nada representavam para mim no entanto sentia que minha causa estava perdida Havia passado os mais belos anos da juventude numa sociedade que parecia retomar à prosperidade e à gran deza ao reconquistar a liberdade Tinha concebido a idéia de uma liberdade mode rada regular contida pelas crenças os costumes e as leis Os encantos de tal liber dade me haviam tocado Ela se tomara a paixão de toda a minha vida Sentia que nunca me consolaria da sua perda e que era preciso renunciar a ela O C t XII p 86 Mais adiante Tocqueville conta uma conversa com Ampère um dos seus amigos e colegas do Instituto que segundo ele era um típico homem de letras Regozijavase por uma revolução que lhe parecia estar de acordo com seu ideal já que os partidários da reforma levavam a melhor sobre os reacionários ao modo de Guizot Via no horizonte depois da ruína da monarquia as perspectivas de uma república próspera Segundo o seu testemunho Tocqueville e Ampère discu tiram com paixão se a revolução seria um acontecimento bom ou mau Depois de muito gritar terminamos por apelar para o julgamento do futuro juiz esclare cido e íntegro mas que sempre chega tarde demais O C t XII p 85 Escrevendo alguns anos depois da Revolução de 1848 Tocqueville está mais convencido do que nunca de que fora um acontecimento infausto Do seu ponto OS FUNDADORES 253 de vista não poderia ser de outro modo uma vez que o último resultado da Re volução tinha sido a substituição de uma monarquia semilegítima liberal e mo derada pelo que Comte chamou de ditador temporário e Tocqueville descreveu como monarquia bastarda e que nós mais vulgarmente chamamos de Império autoritário É difícil acreditar aliás que do ponto de vista político o regime de Luís Napoleão fosse superior ao de LouisPhilippe Mas estes são julgamentos matizados por preferências pessoais hoje ainda nos compêndios escolares de história o entusiasmo de Ampère aparece mais do que o ceticismo moroso de Tocqueville As duas atitudes características da intelligentzia francesa a do en tusiasmo revolucionário que não vê conseqüências e a do ceticismo sobre os resultados últimos das revoluções sobrevivem ainda hoje e provavelmente continuarão vivas quando meus estudantes começarem a ensinar o que se deve pensar da história da França Naturalmente Tocqueville procura explicar as causas da Revolução no seu estilo normal que é o mesmo de Montesquieu A Revolução de fevereiro como to dos os grandes acontecimentos do gênero tem causas gerais completadas pela ação de acidentes Seria tão superficial excluir as primeiras como os segundos Existem causas gerais mas estas não bastam para explicar um acontecimento par ticular que poderia ser diferente O texto mais característico sobre este ponto é o seguinte A Revolução Industrial que em trinta anos tinha feito de Paris a maior cidade industrial da França atraiu para seus muros toda uma nova população de operá rios à qual o trabalho das fortificações acrescentara outra multidão de agricultores agora desempregada o ardor dos prazeres materiais que sob o aguilhão do gover no excitava essa multidão cada vez mais a doença democrática da inveja que a trabalhava surdamente as teorias econômicas e políticas que começavam a se evi denciar tendendo a fazer crer que as misérias humanas eram o resultado das leis e não da Providência que era possível suprimir a pobreza mudando a base da socie dade o desprezo em que haviam caído a classe governante e sobretudo os homens que se encontravam à sua frente desprezo tão generalizado e profundo que para lisava a resistência até mesmo dos que tinham mais interesse na manutenção do poder que se subvertia a centralização que reduzia as operações revolucionárias à conquista de Paris e à tomada da máquina governamental a mobilidade enfim de todas as coisas instituições idéias homens e costumes numa sociedade móvel que foi revolvida por sete grandes revoluções em menos de sessenta anos sem contar um grande número de pequenos distúrbios secundários estas foram as causas gerais sem as quais a Revolução de fevereiro teria sido impossível Os principais aciden tes que a provocaram foram a paixão da oposição dinástica que preparou uma re volta querendo fazer uma reforma a repressão dessa revolta a princípio excessi va depois abandonada o desaparecimento súbito dos antigos ministros destruin do subitamente os fios do poder que os novos ministros muito perturbados não souberam reparar a tempo ou refazer os erros e o espírito desordenado desses mi 254 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO nistros tão insuficientes para reconstruir aquilo que tinham tido tanta força para destruir as hesitações dos generais a ausência dos únicos príncipes que tinham su ficiente vigor e popularidade sobretudo a imbecilidade senil do rei LouisPhilippe fraqueza que ninguém poderia ter previsto e que ainda hoje depois que os fatos a revelaram continua sendo quase incrível O C t XII p 84 Esse tipo de descrição analítica e histórica de uma revolução é característico de um sociólogo que não aceita nem o determinismo inexorável da história nem sua explicação como mera sucessão de acidentes Como Montesquieu Tocqueville quer tomar a história inteligível Contudo tomála inteligível não é mostrar que os acontecimentos não poderiam ter sido diferentes é encontrar a combinação de cau sas gerais e secundárias que tecem a trama dos acontecimentos De passagem Tocqueville acentua um fenômeno endêmico na França o desprezo com que são tratados os governantes Esse fenômeno se repete ao fim de cada regime e explica o caráter pouco sangrento de muitas revoluções fran cesas De modo geral os regimes caem quando ninguém quer continuar a lutar por eles Assim cem anos depois de 1848 a classe política que governava a França havia caído num desprezo tão geral que paralisou mesmo os que teriam tido o maior interesse em se defender Tocqueville compreendeu bem que a Revolução de 1848 apresentava inicial mente um caráter socialista Contudo embora politicamente liberal ele era social mente conservador Pensava que as desigualdades sociais estavam inscritas na ordem natural das coisas ou pelo menos que eram inevitáveis na sua época Julgou por tanto com extrema severidade os membros socialistas do govemo provisório consi derando como o fez Marx aliás que tinham ultrapassado os limites toleráveis da estupidez Aliás um pouco como Marx Tocqueville constata puramente como observador que numa primeira fase entre o mês de fevereiro de 1848 e a reunião da Assembléia Constituinte em maio os socialistas tiveram em Paris portanto em toda a França uma influência considerável Serviramse bastante dessa influência para aterrorizar os burgueses e a maioria dos camponeses e bem pouco para ganhar uma posição de poder No momento do choque definitivo com a Assembléia Constituin te não tinham nenhum meio de saírem vitoriosos senão por uma revolta Os líderes socialistas da Revolução de 1848 não souberam explorar as circunstâncias favorá veis entre fevereiro e maio A partir da reunião da Assembléia Constituinte não sabiam se deviam fazer o jogo da Revolução ou o do regime constitucional De pois no momento decisivo abandonaram suas tropas os operários de Paris que nas terríveis jornadas de junho combateram sozinhos sem chefes Tocqueville é violentamente hostil aos líderes socialistas e aos revoltosos de junho Mas sua hostilidade não o cega De um lado reconhece a coragem extraordinária demonstrada pelos operários parisienses ao enfrentar o exérci to regular mas admite que o descrédito dos líderes socialistas talvez não seja definitivo OS FUNDADORES 255 Segundo Marx a Revolução de 1848 mostra que o problema essencial das sociedades européias passara a ser o problema social As revoluções do século XIX serão sociais e não políticas Preocupado com a liberdade individual Toc queville vê essas revoltas insurreições ou revoluções como catastróficas mas tem consciência do fato de que apresentam um certo caráter socialista Por um lado se uma revolução socialista lhe parece no momento impossível e se não vê com bons olhos um regime estabelecido sobre outras bases que não seja o princípio da propriedade por outro lado conclui prudentemente que O socialismo continuará sepultado no desprezo que cobre tão justamente os socialistas de 1848 Faço esta pergunta sem respondêla Não duvido de que a longo prazo as leis constitutivas da nossa sociedade moderna sejam modificadas na ver dade já o foram em muitas das suas partes principais Chegarseá porém algum dia a destruílas substituindoas por outras Isto me parece impraticável Não avança rei nada mais pois à medida que estudo a situação do mundo antigo e que vejo mais detalhadamente o mundo de nossos dias quando considero sua prodigiosa diversidade não só de leis mas dos princípios em que se assentam e as diferen tes modalidades assumidas pelo direito de propriedade da terra sou tentado a acre ditar que aquilo que chamamos de instituições necessárias muitas vezes são ape nas as instituições com as quais estamos habituados e que em matéria de consti tuição social o campo do possível é bem mais amplo do que imaginam os homens que vivem em cada sociedade O C t XII p 97 Em outras palavras Tocqueville não exclui que os socialistas derrotados em 1848 possam ser num futuro mais ou menos longínquo aqueles que trans formarão a própria organização social Depois da descrição das jornadas de junho o restante das lembranças de Tocqueville está consagrado ao relato sobre a redação da Constituição da II Re pública a sua participação no segundo Ministério Odilon Barrot a luta dos mo narquistas liberais que se tornaram republicanos por oposição tanto à maioria realista da Assembléia quanto a seu Presidente suspeito de pretender restabe lecer o império4 Assim Tocqueville viu o caráter socialista da Revolução de 1848 e conde nou a ação dos socialistas como insensata Pertencia ao partido da ordem bur guesa e durante as revoltas de junho estava pronto a se bater contra os operá rios revoltados Na segunda fase da crise foi um republicano moderado um partidário daquilo que se chamaria mais tarde de república conservadora e se fez antibonapartista Foi derrotado mas não se surpreendeu com a derrota pois desde junho de 1949 pensava que as instituições livres estavam provisoriamen te condenadas que a Revolução tomaria inevitável um regime autoritário e de pois da eleição de Luís Napoleão previu naturalmente a restauração do Império No entanto como não é necessário ter esperança para empreender lutou con 256 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tra a solução que lhe parecia ao mesmo tempo a mais provável e a menos dese jável Sociólogo da escola de Montesquieu não pensava que o que acontece é necessariamente o que devia acontecer ou o que a Providência decidiria se fos se bondosa ou a Razão se fosse todopoderosa Karl Marx e a Revolução de 1848 Marx viveu o período histórico entre 1848 e 1851 de modo bem diferente de Comte e de Tocqueville Não se retirou na torre de marfim da rua Mon sieurlePrince como o primeiro nem foi Deputado à Assembléia Constituinte ou à Assembléia Legislativa e Ministro de Odilon Barrot e de Luís Napoleão como o segundo Jornalista e agitador revolucionário participou ativamente dos acontecimentos na Alemanha Tinha morado na França e conhecia muito bem a política e os revolucionários franceses Era portanto uma testemunha ativa com relação àquele país Além disso acreditava no caráter internacional da Re volução e se sentia diretamente interessado pela crise francesa Muitos julgamentos que encontramos em seus dois livros As lutas de clas ses na França 18481850 e O 18 brumário de Luís Bonaparte estão de acordo com os Souvenirs de Tocqueville Como Tocqueville Marx ficou impressionado com o contraste entre as revol tas de 1848 em que as massas operárias de Paris combateram sós e sem líderes durante vários dias e os distúrbios de 1849 nos quais os líderes parlamentares da Montagne tentaram em vão desencadear revoltas sem serem seguidos por seus partidários Os dois estão igualmente conscientes de que os acontecimentos de 1848 1851 não representam mais simplesmente dificuldades políticas são o pró dromo de uma revolução social Tocqueville constata com espanto que agora se questiona todo o fundamento da sociedade e leis respeitadas há séculos Marx exclama com um tom de triunfo que a subversão social a seus olhos necessá ria está em vias de se realizar As escalas de valores do aristocrata liberal e do revolucionário são diferentes e até contrárias O respeito pelas liberdades polí ticas que para Tocqueville é algo sagrado aos olhos de Marx é superstição de um homem do Antigo Regime Marx não tem nenhum respeito pelo parlamento e pelas liberdades formais O que um quer salvar acima de tudo é para o outro secundário e até mesmo um obstáculo no caminho daquilo que lhe parece es sencial a revolução social Os dois vêem uma espécie de lógica histórica na passagem da Revolução de 1789 para a Revolução de 1848 Para Tocqueville a revolução continua pro vocando o questionamento da ordem social e da propriedade depois da destrui ção da monarquia e das ordens privilegiadas Marx vê nesta revolução social o OS FUNDADORES 257 surgimento do quarto estado após a vitória do terceiro As expressões não são as mesmas os juízos de valor são opostos embora se encontrem num ponto es sencial uma vez destruída a monarquia tradicional derrubada a aristocracia do passado é normal que o movimento democrático que tende à igualdade social se dirija contra os privilégios subsistentes que são os da burguesia No pensa mento de Tocqueville a luta contra a desigualdade econômica está condenada à derrota pelo menos na sua época Ele parece quase sempre considerar as desi gualdades da sorte como naturais ligadas à ordem eterna das sociedades Marx porém acha que não é impossível por uma reorganização da sociedade redu zir ou eliminar as desigualdades econômicas Mas os dois notam a passagem da revolução contra a aristocracia para a revolução contra a burguesia da subver são contra o Estado monárquico para a subversão contra toda a ordem social Finalmente Marx e Tocqueville se encontram na análise das fases da revo lução Os acontecimentos de 18481851 na França fascinavam os espectadores daquela época e continuam a nos parecer fascinantes pela articulação dos con flitos Em poucos anos a França viveu a maioria das situações típicas dos confli tos políticos nas sociedades modernas Durante uma primeira fase de 24 de fevereiro de 1848 a 4 de maio do mesmo ano uma rebelião derruba a monarquia e o governo provisório inclui vários so cialistas que exercem uma influência predominante durante alguns meses Com a reunião da Assembléia Constituinte iniciase uma segunda fase A maioria da Assembléia eleita pelo conjunto da nação é conservadora e até mes mo reacionária e monarquista Surge um conflito entre o governo provisório predominantemente socialista e a Assembléia conservadora Esse conflito le va às revoltas de junho de 1848 revolta do proletariado parisiense contra uma assembléia eleita por sufrágio universal mas que em razão da sua composição é vista como um inimigo pelos operários de Paris A terceira fase tem início com a eleição de Luís Napoleão em dezembro de 1848 ou segundo Marx com o fim da Constituinte em maio de 18490 Pre sidente da República aceita a legitimidade bonapartista e se considera ungido pelo destino Presidente da II República tem de se haver primeiramente com uma Assembléia Constituinte de maioria monarquista depois com uma Assembléia Legislativa que tem igualmente maioria monarquista mas que inclui cento e cin qüenta representantes da Montagne A partir da eleição de Luís Napoleão começa um conflito sutil com fren tes múltiplas Incapazes de chegar a um acordo sobre o nome do monarca e a res tauração da monarquia os monarquistas se tornam defensores da república por hostilidade a um Luís Napoleão desejoso de restaurar o Império Este utiliza procedimentos que os parlamentares consideram demagógicos De fato há na tática de Luís Napoleão elementos do pseudosocialismo ou do socialismo verdadeiro dos fascistas do século XX Como a Assembléia Legislativa come 258 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO te o erro de suprimir o sufrágio universal no dia 2 de dezembro Luís Napoleão revoga a Constituição dissolve a Assembléia Legislativa e restabelece simulta neamente o sufrágio universal Mas Marx também procura e está aí a sua originalidade explicar os acon tecimentos políticos pela infraestrutura social Esforçase por mostrar nos conflitos propriamente políticos a manifestação ou por assim dizer o aflora mento no nível político dos distúrbios profundos dos grupos sociais Tocque ville evidentemente também o faz Mostra os grupos sociais em conflito na França de meados do século XIX Os atores principais do drama são os campo neses a pequena burguesia parisiense os operários de Paris a burguesia e os resíduos da aristocracia atores que não são muito diferentes dos que Marx mostra em cena Contudo embora explique os conflitos políticos pelas disputas sociais Tocqueville mantém o caráter específico ou a autonomia pelo menos relativa da ordem política Marx pelo contrário procura em todas as ocasiões encontrar uma correspondência termoatermo entre os acontecimentos no pla no político e na infraestrutura social Em que medida conseguiu isso As duas brochuras de Marx As lutas de classes na França e O 18 brumário de Luís Bonaparte são obras brilhantes Sob muitos aspectos são a meu ver mais profundas e satisfatórias do que seus grossos livros científicos Inspirado pela sua clarividência de historiador Marx esquece suas teorias e analisa os acon tecimentos como observador genial Exemplificando a interpretação da política pela infraestrutura social es creve 10 de dezembro de 1848 isto é o dia da eleição de Luís Napoleão foi o dia da insurreição dos camponeses Somente a partir desse dia os camponeses da Fran ça tiveram seu fevereiro símbolo que exprime sua entrada no movimento revolu cionário desajeitado e astuto ingênuo e maroto sublime e rude superstição cal culada burlesco patético anacronismo genial e estúpido travessura da história mundial hieróglifo indecifrável para a razão dos homens civilizados um símbolo que marcou sem que possamos nos enganar a fisionomia da classe que representa a barbárie no seio da civilização A ela a República se tinha anunciado pelo arauto da corte mas ela própria se anunciara à República pelo imperador Napoleão era o único homem que representava até o fundo os interesses e a imaginação da nova classe camponesa que 1789 tinha criado Ao escrever seu nome sobre o frontispí cio da República ela declarava guerra ao estrangeiro e reivindicava seus interesses de classe no interior do país Para os camponeses Napoleão não era uma pessoa mas um programa Com bandeiras e com música foram às umas gritando Não mais impostos Abaixo os ricos Abaixo a República Viva o imperador Por trás do im perador se ocultava a rebelião camponesa A República abatida com seus votos era a República dos ricos Les lutíes de classes en France Éd Sociales p 57 OS FUNDADORES 259 Mesmo os nãomarxistas admitem que os camponeses votaram em Luís Napoleão Representando na época a maioria do eleitorado preferiram o sobri nho real ou suposto do Imperador Napoleão a Cavaignac um general repu blicano Num sistema de interpretação psicopolítico dirseia que por causa do seu nome Luís Napoleão era um chefe carismático Diz Marx revelando seu desprezo pelo camponês que este pouco civilizado preferiu um símbolo napo leônico a uma personalidade republicana autêntica nesse sentido Luís Napo leão foi bem o representante dos camponeses contra a república dos ricos O que parece problemático é saber em que Luís Napoleão por ter sido eleito pelos cam poneses se teria tornado o representante dos interesses da classe Não era ne cessário que os camponeses escolhessem Luís Napoleão para interpretar seus interesses de classe Como também não era necessário que as medidas tomadas por Luís Napoleão estivessem de acordo com o interesse de classe dos campo neses O Imperador fez o que seu gênio ou sua estupidez lhe sugeriu O voto camponês em favor de Luís Napoleão é um fato incontestável A transforma ção desse fato em teoria leva à proposição O interesse de classe dos campo neses foi expresso em Luís Napoleão Um texto relativo aos camponeses em O 18 brumário de Luís Bonaparte permite compreendêlo Marx descreve a situação de classe dos camponeses Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições eco nômicas que as separam umas das outràs e opõem seus interesses tipos de vida e cultura aos de outras classes da sociedade essas famílias constituem uma classe Contudo deixam de ser uma classe na medida em que só existe entre esses cam poneses um vínculo local e em que a semelhança dos seus interesses não cria en tre eles nenhuma comunidade ligação nacional ou organização política Por isso são incapazes de defender diretamente seus interesses de classe por meio de um Parlamento ou Assembléia Não podem representar a si mesmos precisam ser re presentados Seus representantes devem parecerlhes ao mesmo tempo como uma autoridade superior e como um poder governamental absoluto que os protege con tra as outras classes e lhes manda do alto a chuva e o bom tempo A influência política dos camponeses encontra assim sua expressão última na subordinação da sociedade ao poder executivo Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte Ed Sociales p 98 Vemos aí uma descrição muito penetrante da condição equívoca classe e nãoclasse da massa camponesa Os camponeses têm um modo de vida mais ou menos semelhante que lhes dá a primeira característica de uma classe social faltalhes porém a capacidade de tomar consciência de si mesmos como uma unidade Incapazes de representar seus próprios interesses eles são uma classe passiva que só pode ser representada por pessoas que não pertençam a ela o que constitui um princípio de explicação para o fato de que os campo neses tenham eleito um homem Luís Napoleão aue não era camponês 260 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Resta porém uma dificuldade importante o que acontece no cenário políti co pode ser explicado adequadamente pelo que ocorre na infraestrutura social Por exemplo segundo Marx a monarquia legitimista representava a pro priedade rural e a monarquia orleanista a burguesia financeira e mercantil Ora estas duas dinastias nunca puderam entenderse Durante a crise de 18481851 a disputa das duas dinastias foi o obstáculo intransponível à restauração da mo narquia Será que as duas famílias reais não podiam chegar a um acordo sobre o nome do pretendente ao trono porque uma representava a propriedade rural e a outra a propriedade industrial e mercantil Ou essa dificuldade de entendi mento se explica pelo fato de que por definição só um dos pretendentes podia ocupar o trono A dúvida não se inspira numa rigidez da crítica ou em falta de sutileza mas coloca o problema fundamental da interpretação da política pela infraestru tura social Admitamos que Marx tenha razão que a monarquia legitimista seja de fato o regime da grande propriedade fundiária e da nobreza tradicional e que a monarquia de Orléans represente os interesses da burguesia financeira Era o conflito de interesses econômicos que impedia a unidade ou o simples fenôme no aritmético por assim dizer de que só podia haver um monarca Naturalmente Marx é tentado a explicar a impossibilidade do acordo pela incompatibilidade dos interesses econômicos5 A fragilidade desta interpreta ção está no fato de que em outros países e em outras circunstâncias os proprie tários de terras puderam conciliar seus interesses com os da burguesia industrial e mercantil Um trecho de O 18 brumário de Luís Bonaparte é particularmente signi ficativo Os diplomatas do partido favorável à ordem acreditavam poder liquidar a luta pelo que chamavam de fusão das duas dinastias dos partidos realistas e suas res pectivas casas reais A verdadeira fusão da Restauração e da monarquia de julho era a República parlamentar na qual se baseavam as cores orleanistas e legitimistas e na qual os diferentes tipos de burgueses desapareciam na burguesia pura e simples no gênero burguês Agora porém o orleanista devia tomarse legitimista e o legi timista um orleanista Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte Éd Sociales pp 7677 Marx tem razão Não se pode exigir nada de semelhante a menos que por sorte o pretendente de uma das duas famílias consinta em morrer A interpre tação é aqui puramente política exata e satisfatória Os dois partidos monar quistas só podiam entrar num acordo em uma república parlamentar única forma de reconciliar os dois pretendentes a um trono que só tolera um ocupan te Quando há dois pretendentes para evitar que um esteja nas Tulherias e o outro no exílio é preciso que nenhum esteja no poder Neste sentido a repúbli ca parlamentar representava a conciliação das duas dinastias Marx continua OS FUNDADORES 261 A realeza que personificava seu antagonismo devia encarnar sua unidade e transformar em interesse comum da sua classe a expressão dos seus interesses ex clusivos de facções A monarquia devia realizar o que a negação das duas monar quias isto é a república podia realizar e tinha efetivamente realizado Era a pedra filosofal para fabricála os doutores do partido da ordem quebravam a cabeça Como se a monarquia legítima pudesse tornarse a monarquia da burguesia indus trial ou a realeza burguesa pudesse ser a realeza da aristocracia fundiária e here ditária Como se a propriedade da terra e a indústria pudessem confraternizar sob a mesma coroa coroa que adornaria uma só cabeça a do irmão mais velho ou a do caçula Como se a indústria pudesse de modo geral conciliarse com a proprie dade fundiária sem que esta se decidisse a se transformar em industrial Se Hen rique V morresse amanhã o conde de Paris não se tomaria o rei dos legitimistas a menos que deixasse de ser o rei dos orleanistas Ibid p 77 Marx faz uma mistura sutil e insinuante de duas explicações a explicação política segundo a qual dois pretendentes ao trono se opondo a única forma de conciliar seus seguidores era a república parlamentar e a interpretação socio econômica fundamentalmente diferente segundo a qual a propriedade da terra não podia conciliarse com a burguesia industrial a menos que se industriali zasse Encontramos hoje uma teoria deste último tipo entre os analistas marxis tas ou de inspiração marxista para explicar a V República francesa Esta não pode ser a república de De Gaulle É preciso que seja a república do capitalis mo modernizado ou de qualquer outro elemento da infraestrutura social6 Esta explicação é naturalmente mais profunda sem contudo ser necessariamente verdadeira A impossibilidade de conciliar os interesses da propriedade fundiá ria e da burguesia industrial é um fantasma sociológico O dia em que um dos dois príncipes não tiver mais descendentes a conciliação dos dois pretendentes se fará automaticamente e os interesses até então opostos encontrarão milagro samente uma forma de compromisso A impossibilidade da reconciliação entre os dois pretendentes era de natureza essencialmente política Não há dúvida de que a explicação dos acontecimentos políticos pela sua base social é legítima e válida mas a explicação termoatermo é em larga medida parte da mitologia sociológica Ela se realiza de fato pela projeção na infraestrutura social do que observamos na cena política Depois de constatar que os dois pretendentes não podiam se entender decretamos que a proprieda de fundiária não pode ser conciliada com a propriedade industrial o que nega mos um pouco adiante ao explicarmos que tal conciliação se faz no seio da re pública parlamentar Ora se o acordo fosse socialmente impossível sêloia tan to numa república parlamentar como numa monarquia Este caso é a meu ver típico Mostra ao mesmo tempo o que é aceitável e até necessário nas explicações sociais dos conflitos políticos e o que é errado Os sociólogos profissionais ou amadores sentem a consciência pesada quando 262 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO se limitam a explicar as mudanças de regime e as crises políticas pela política Pessoalmente inclinome a acreditar que o detalhe dos acontecimentos políti cos raramente pode ser explicado a não ser pelos homens pelos partidos por suas disputas e por suas idéias Luís Napoleão é o representante dos camponeses no sentido de que foi eleito pelo eleitorado do campo O general De Gaulle é do mesmo modo o re presentante dos camponeses porque sua política foi aprovada em 1958 por 85 dos franceses Há cem anos o mecanismo psicopolítico não era essencialmente diferente do que é hoje mas ele nada tem a ver com as distinções das classes sociais e menos ainda com os interesses de classe de um grupo determinado Quando os franceses se cansam com os conflitos sem solução e pressentem a presença de um homem marcado pelo destino os franceses de todas as classes se unem àquele que promete salválos Na última parte de O 18 brumário de Luís Bonaparte Marx procede a uma análise pormenorizada do governo de Luís Napoleão e do modo como ele ser viu aos interesses de diferentes classes Luís Napoleão foi aceito pela burguesia diz Marx porque defendia seus interesses econômicos fundamentais Em con trapartida esta teve de renunciar ao exercício direto do poder político A burguesia não tinha então claramente uma alternativa senão eleger Bona parte Era o despotismo ou a anarquia e favoreceu como era natural o despotis mo Enquanto poder executivo independente da sociedade Bonaparte se sente chamado a garantir a ordem burguesa Mas a força dessa ordem burguesa é a classe média Por isso se coloca como representante dessa classe e promulga de creto dentro desse espírito Mas ele só é alguma coisa porque quebrou e ainda que bra diariamente a influência política dessa classe média Por isso se posiciona como adversário do poder político e literário da classe média Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte Ed Sociales p 104 Há em toda esta análise um elemento particularmente interessante o re conhecimento do poder decisivo do Estado O poder executivo com sua imensa organização burocrática e militar seu me canismo estatal complexo e artificial seu exército de funcionários de meio milhão de homens e seu outro exército de quinhentos mil soldados espantoso corpo para sita que cobre como por uma membrana a sociedade francesa obturando todos os seus poros se constitui na época da monarquia absoluta quando do declínio do feudalismo que ele ajudou a subverter Os privilégios senhoriais dos grandes pro prietários fundiários e das cidades se transformaram em outros tantos atributos do poder do Estado os dignitários feudais em funcionários com vencimentos e o mapa complexo dos direitos soberanos medievais contraditórios tomouse o plano bem formulado de um poder de Estado cujo trabalho é dividido e centralizado como numa fábrica A primeira revolução francesa que assumiu como objetivo destruir OS FUNDADORES 263 todos os poderes independentes locais territoriais municipais e provinciais para criar a unidade burguesa da nação devia necessariamente desenvolver a obra co meçada pela monarquia absoluta a centralização mas ao mesmo tempo também a ampliação os atributos e o aparelho do poder governamental Napoleão acabou de aperfeiçoar o mecanismo do Estado A monarquia legítima e a monarquia de julho só fizeram acrescentar uma maior divisão do trabalho crescendo à medida que a divisão do trabalho dentro da sociedade burguesa criava novos grupos de in teresses e em conseqüência um novo material para a administração de Estado Cada interesse comum foi imediatamente destacado da sociedade oposto a ela a título de interesse superior geral retirado à iniciativa dos membros da sociedade trans formado em objeto da atividade governamental desde a ponte a escola e a pro priedade municipal da menor povoação até as estradas de ferro as universidades e o patrimônio nacional A República parlamentar por fim se viu obrigada na sua luta contra a revolução a fortalecer com suas medidas repressivas os meios de ação e a centralização do poder governamental Todas as revoluções políticas só tinham levado ao aperfeiçoamento desta máquina em vez de levar à sua destruição Os par tidos que se revezaram na luta pelo poder consideravam a conquista desse imenso edifício do Estado como a mais importante presa do vencedor O 18 brumário de Luís Bonaparte Éd Sociales p 96 Em outras palavras Marx descreveu o prodigioso desenvolvimento do Es tado administrativo centralizado este mesmo Estado que Tocqueville analisou e do qual ele mostrou as origens prérevolucionárias que ele viu ganhar pro gressivamente amplitude e poderio à medida que se processava o desenvolvi mento democrático Quem dirige esse Estado exerce inevitavelmente uma influência conside rável sobre a sociedade Também Tocqueville considera que todos os partidos contribuem para o crescimento dessa enorme máquina administrativa Está con vencido além disso de que um Estado socialista contribuiria ainda mais para am pliar as funções do Estado e para centralizar a administração Marx afirma que o Estado adquiriu uma espécie de autonomia com relação à sociedade Basta que um aventureiro vindo do estrangeiro seja guindado ao poder por uma sol dadesca embriagada comprada com aguardente e lingüiça e à qual é necessá rio sempre atirar mais Ibid p 97 Para Marx a verdadeira revolução con sistiria não em se apropriar dessa máquina porém em destruíla A isso Tocque ville teria respondido se a propriedade dos meios de produção deve tomarse coletiva e a gestão da economia precisa ser centralizada que milagre poderia levar à destruição da máquina estatal Na verdade encontramos em Marx duas teorias sobre o papel do Estado na revolução Em A guerra civil na França o livro que escreveu sobre a Co muna de Paris sugere que a Comuna isto é a desativação do Estado central e a descentralização forçada constitui o conteúdo genuíno da ditadura do prole 264 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tariado Em outras passagens porém encontramos a idéia oposta de que é pre ciso reforçar ao máximo o poder político e a centralização estatal para poder fazer a revolução Tocqueville e Marx observaram igualmente a máquina estatal centralizada Tocqueville concluiu que se deveriam multiplicar os corpos intermediários e as instituições representativas para limitar o poder e a extensão indefinida do Es tado Marx admitiu a autonomia parcial do Estado com relação à sociedade fór mula contraditória com sua teoria geral de que o Estado era a simples expressão da classe dominante esperando ao mesmo tempo que a revolução socialista pu desse induzir a destruição da máquina administrativa Como teórico Marx pretende fundamentar a política e seus conflitos nas relações e nas lutas das classes sociais Em vários pontos essenciais contudo sua clarividência de observador vence seu dogmatismo e ele reconhece de cer ta forma involuntariamente os fatores políticos dos conflitos de regime e auto nomia do Estado com respeito aos vários grupos Na medida em que existe esta autonomia pelo menos um elemento do processo de desenvolvimento das so ciedades não pode ser reduzido à luta de classes A demonstração mais gritante do caráter específico e da autonomia da ordem política com relação às lutas sociais é a Revolução Russa de 1917 Um grupo toma o poder à maneira de Luís Napoleão embora com processos mais violentos e transforma toda a estrutura da sociedade russa edificando o socia lismo a partir não da predominância do proletariado mas sim do poder da má quina estatal O que não se encontra no esquema teórico marxista vamos encontrar nas análises históricas de Marx ou nos acontecimentos cujos autores são recomen dados pelo próprio Marx Os quatro autores que estudamos nesta primeira parte do livro deram ori gem a três escolas A primeira é a que se poderia chamar de escola francesa da sociologia polí tica cujos fundadores foram Montesquieu e Tocqueville Em nossos dias Elie Halévy pertence a esta tradição7 É uma escola de sociólogos pouco dogmáticos interessados antes de tudo na política que sem desprezar a infraestrutura social aceitam a autonomia da ordem política e têm idéias liberais Eu mesmo prova velmente sou um descendente atrasado desta escola A segunda escola é a de Auguste Comte Ela leva a Durkheim no princí pio deste século e talvez aos sociólogos franceses de hoje Deprecia a impor tância do político e do econômico em relação ao social colocando a ênfase so bre a unidade do todo social e retendo o conceito de consenso como conceito fundamental Multiplicando análises e conceitos esforçase por reconstruir a totalidade da sociedade OS FUNDADORES 265 A terceira escola a marxista é a que teve o maior êxito se não nos meios acadêmicos pelo menos no cenário da história universal Tal como interpretada por centenas de milhões de pessoas combina a explicação do conjunto social a partir da infraestrutura socioeconômica com um esquema do futuro que garan te a seus fiéis a vitória É a mais difícil de discutir em razão de seu êxito histó rico nunca se sabe que versão discutir a versão do catecismo necessário a toda doutrina de Estado ou a versão sutil a única aceitável pelos espíritos esclareci dos Sobretudo porque entre estas duas versões há uma comunicação incessan te cujas modalidades variam com as peripécias imprevisíveis da história A despeito das divergências na escolha de valores e na visão histórica es sas três escolas sociológicas são interpretações da sociedade moderna Auguste Comte é um admirador quase irrestrito desta sociedade moderna que chama de industrial e que segundo crê será pacífica e positivista Para a escola política a sociedade moderna é uma sociedade democrática que devemos observar sem transportes de entusiasmo ou indignação mas não representa a realização final do destino do homem A terceira escola combina o entusiasmo comtista pela so ciedade industrial com a indignação contra o capitalismo Supremamente oti mista com respeito ao futuro distante é sombriamente pessimista com relação ao futuro imediato anunciando longo período de catástrofes guerras e lutas de classe Em outras palavras a escola comtista é otimista com tendência à serenida de a escola política é reservada com uma sombra de ceticismo a escola mar xista é utopista com a tendência de admitir as catástrofes como desejáveis ou pelo menos inevitáveis Cada uma dessas escolas reconstrói à sua maneira o conjunto social Cada uma delas tem uma versão própria da diversidade das sociedades históricas e atribui um sentido ao nosso presente Cada uma delas se inspira ao mesmo tempo em convicções morais e em afirmações científicas Procurei distinguir o que era convicção e o que era afirmação científica Mas não esqueço que mes mo aquele que procura distinguir esses dois elementos distingueos em função de suas próprias convicções Cronologia da Revolução de 1848 e da II República 18471848 Agitação em Paris e no interior em favor da reforma eleitoral campanha dos banquetes 1848 Fevereiro 22 A despeito da proibição pelo governo banquete e manifestação re formista em Paris Fevereiro 23 A guarda nacional de Paris se manifesta aos gritos de Viva a re forma Guizot demissionário À noite choque entre as tropas e o povo os cor pos dos manifestantes mortos são exibidos pelas ruas Fevereiro 24 De manhã Paris está em plena revolução Os rebeldes republica nos se apossam do Hôtel de Ville e ameaçam as Tulherias LouisPhilippe abdica em favor do conde de Paris seu neto e foge para a Inglaterra Os rebeldes invadem a Câmara dos Deputados para impedir que a regência seja confiada à duquesa de Orléans À noite estabelecese um governo provisório com Dupont de 1Eure Lamartine Crémieux Arago LedruRollin GamierPagès Os secretários do Go verno são A Marrast Louis Blanc Flocon e Albert Fevereiro 25 Proclamação da República Fevereiro 26 Abolição da pena de morte por crimes políticos Fevereiro 29 Abolição dos títulos de nobreza Março 2 Fixação da jornada legal de trabalho em dez horas Paris e onze horas no interior Março 5 Convocação às eleições para a Assembléia Constituinte Março 6 GarnierPagès tornase Ministro das Finanças acrescenta um imposto de 45 centavos por franco a todas as contribuições diretas Março 16 Manifestações dos elementos burgueses da guarda nacional em pro testo contra a dissolução das companhias de elite Março 17 Contramanifestação popular de apoio ao governo provisório Os so cialistas e republicanos de esquerda pedem o adiamento das eleições Abril 16 Nova manifestação popular pelo adiamento das eleições O governo provisório apela à guarda nacional para controlála Abril 23 Eleição dos 900 representantes que compõem a Assembléia Constituin te Os republicanos progressistas só dispõem de 80 cadeiras os legitimistas têm OS FUNDADORES 267 uma centena os orleanistas de diversos matizes têm duas centenas A maioria da Assembléia está com os republicanos moderados cerca de 500 cadeiras Maio 10 A Assembléia nomeia uma comissão executiva de cinco membros pa ra garantir o governo Arago GarnierPagès Lamartine LedruRollin Marie Maio 15 Manifestação em favor da Polônia liderada por Barbès Blanqui e Raspail Os manifestantes invadem a Câmara e o Hôtel de Ville Um novo gover no revolucionário chega a ser anunciado à multidão Barbès e Raspail são presos Junho 45 Luís Napoleão Bonaparte é eleito deputado em três departamentos do Sena Junho 21 Dissolução dos ateliers nationaux Junho 2326 Distúrbios Toda a parte leste e a parte central de Paris caem nas mãos dos operários parisienses rebeldes que graças à inação de Cavaignac Ministro da Guerra se entrincheiram por trás de barricadas Junho 24 A Assembléia dá plenos poderes a Cavaignac que esmaga a insurreição Julhonovembro Constituição de um grande partido defensor da ordem Thiers prestigia Luís Napoleão Bonaparte que é muito popular também nos meios ope rários Redação da Constituição pela Assembléia nacional Novembro 12 Proclamação da Constituição que prevê um Chefe do Executivo eleito por sufrágio universal Dezembro 10 Eleição do presidente da República Luís Napoleão consegue 5500000 votos Cavaignac 1400000 LedruRollin 375000 Lamartine 8000 Dezembro 20 Luís Napoleão jura fidelidade à Constituição 1849 Marçoabril Julgamento e condenação de Barbès Blanqui Raspail chefes das tentativas revolucionárias de 1848 Abriljulho Expedição de Roma Um corpo expedicionário francês toma a cida de e restabelece os direitos do papa Pio IX Maio Eleições para a Assembléia legislativa que conta agora com 75 republica nos moderados 180 Montagnards e 450 monarquistas do partido da ordem le gitimistas e orleanistas Junho Manifestações em Paris e Lyon contra a expedição de Roma 1850 Março 15 Lei Falloux reorganizando o ensino público Maio 31 Lei eleitoral que obriga a três meses de domicílio no cantão de regis tro eleitoral Cerca de três milhões de operários itinerantes são assim impedidos de votar Maiooutubro Agitação socialista em Paris e nos departamentos Agostosetembro Negociações entre legitimistas e orleanistas para a restauração da monarquia Setembrooutubro Desfiles militares no acampamento de Satory diante do Prín cipepresidente A cavalaria desfila aos gritos de Viva o Imperador Luta entre a maioria da Assembléia e o Príncipepresidente 1851 Julho 17 O general Magnan devotado aos interesses do Príncipepresidente é nomeado governador militar de Paris substituindo Changamier fiel à maioria monarquista da Assembléia 268 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Dezembro 2 Golpe de Estado com a proclamação do estado de sítio dissolu ção da Assembléia restabelecimento do sufrágio universal Dezembro 20 O príncipe Napoleão por 7350000 votos contra 646000 é elei to por dois anos e recebe todos os poderes para promulgar uma nova Constituição 1852 Janeiro 14 Promulgação da nova Constituição Novembro 20 Novo plebiscito aprova por 7840000 votos contra 250000 a res tauração da dignidade imperial na pessoa de Luís Napoleão que assume o títu lo de Napoleão III Notas 1 No entanto Auguste Comte não tinha tradição bonapartista Desde o liceu de Montpellier fora mesmo muito hostil à política e à lenda de Napoleão Com exceção do período dos CemDias em que Comte então aluno da École Polytechnique fora to mado pelo entusiasmo jacobino reinante em Paris Napoleão Bonaparte sempre foi para ele o tipo do grande homem que não compreendendo o curso da história teve uma atuação retrógrada não deixando nada atrás de si A 7 de setembro de 1848 véspera da eleição presidencial escreve à sua irmã Eu que nunca mudei meus sentimentos que você bem conheceu em 1814 com respeito ao herói retrógrado consideraria vergonho sa para o meu país a restauração política da sua raça Mais tarde falará do voto fan tástico dos camponeses franceses que poderiam do mesmo modo conferir a seu fetiche uma longevidade de dois séculos com imunidade à gota Mas a 2 de dezembro de 1851 aplaudiu o golpe de Estado preferindo uma ditadura à república parlamentar e à anar quia Essa atitude provoca o afastamento de Littré e dos discípulos liberais da socieda de positivista No entanto isso não impedirá Comte de chamar de mascarade mama mouchique a combinação de soberania popular e de princípio hereditário que a restau ração do Império em 1852 supõe profetizará então que em 1853 ocorrerá um desmo ronamento do regime Auguste Comte em várias ocasiões teve a esperança em 1851 depois quando publicou em 1855 o Appel aos conservadores de que Napoleão pudesse se converter ao positivismo Mas também em várias ocasiões voltou suas esperanças para os proletários dos quais admira a pureza filosófica que opõe à meta física dos eruditos Em fevereiro de 1848 apóia convictamente a revolução Em junho fechado em seu apartamento da rua MonsieurlePrince próximo às barricadas que cer cam o Panthéon e onde se desenrolam lutas muito violentas Comte está a favor dos proletários contra o governo dos metafísicos e literatos Quando fala sobre os rebeldes diz nós mas lamenta que eles ainda sejam seduzidos pelas utopias dos vermelhos esses macacos da grande revolução A atitude política de Comte durante a II República pode parecer portanto muito flutuante e cheia de contradições No entanto é a conseqüência lógica de um pensamento político que coloca o sucesso do positivis mo acima de tudo não pode reconhecêlo em nenhum dos partidos e de qualquer 270 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO forma considera a revolução como apenas uma crise anárquica transitória No entanto há um sentimento que domina todos os outros o desprezo pelo parlamentarismo Uma passagem do prefácio do segundo tomo de Système de politique positive publicado em 1852 nas vésperas do restabelecimento do Império representa a síntese de Auguste Comte sobre os acontecimentos dos quatro últimos anos Nossa última crise fez ao que me parece que a República francesa passasse irrevogavelmente da fase parlamentar que só poderia convir a uma revolução negati va à fase ditatorial única adaptada à revolução positiva de que resultará o fim gra dual da doença ocidental em conseqüência de uma conciliação decisiva entre a ordem e o progresso Mesmo que um exercício muito vicioso da ditadura que acabava de surgir forças se a mudar antes do tempo previsto seu órgão principal essa necessidade deplorável na verdade não restabeleceria a dominação de uma assembléia qualquer salvo talvez durante o curto intervalo exigido pelo advento excepcional de um novo ditador Segundo a teoria histórica que fundei em todo o passado francês a tendência foi sempre fazer prevalecer o poder central Essa disposição normal jamais teria cessado se esse poder não tivesse enfim assumido um caráter retrógrado desde a segunda meta de do reinado de Luís XIV De lá provém um século depois a abolição total da monar quia francesa daí a dominação passageira da única assembléia que deve ter sido real mente popular que já tivemos isto é a Convenção Sua ascendência só resultou mesmo da sua digna subordinação ao enérgico Co mitê surgido de seu seio para dirigir a heróica defesa republicana A necessidade de substituir a monarquia por uma verdadeira ditadura logo se fez sentir dada a anarquia estéril desenvolvida pela nossa primeira tentativa de regime constitucional Infelizmente essa ditadura indispensável não tardou a tomar também uma dire ção profundamente retrógrada combinando a sujeição da França com a opressão da Europa Foi unicamente em oposição a essa política deplorável que a opinião pública fran cesa permitiu em seguida a única experiência séria que poderia ser tentada entre nóS a de um regime próprio à situação inglesa Ele nos convinha tão pouco que apesar dos benefícios da paz ocidental sua pre ponderância oficial durante uma geração tomouse para nós ainda mais funesta do que a tirania imperial pervertendo os espíritos pelo hábito dos sofismas constitucionais corrompendo os corações de acordo com costumes venais ou anárquicos e degradan do os caracteres com o crescente florescimento das táticas parlamentares Em razão da ausência fatal de qualquer doutrina social verdadeira esse regime desastroso subsistiu sob outras formas após a exploração republicana de 1848 Essa nova situação que garantiu espontaneamente o progresso e fez com que se voltassem para a ordem todas as preocupações graves exigia duplamente a influência normal do poder central Ao contrário acreditouse então que a eliminação de uma monarquia vã deveria suscitar o pleno triunfo do poder antagônico Todos aqueles que haviam participado ati vamente do regime constitucional no governo na oposição ou nas conspirações deve riam ter sido há quatro anos irrevogavelmente afastados da cena política como inca pazes ou indignos de dirigir nossa República OS FUNDADORES 271 Mas por todos os lados um envolvimento cego lhes confiou a supremacia de uma constituição que consagrava diretamente a onipotência parlamentar O sufrágio univer sal estendeu até mesmo aos proletários as devastações intelectuais e morais desse regi me que se limitava até então às classes superiores e médias Em lugar da preponderância que deveria retomar o poder central que perdia as sim o prestígio da inviolabilidade e da perpetuidade conservava no entanto a nulida de constitucional que antes eles ocultavam Reduzido a um tal extremo esse poder necessário felizmente acaba de reagir ener gicamente contra uma situação intolerável tão desastrosa para nós quanto vergonhosa para ele O instinto popular abandonou sem defesa um regime anárquico Sentese cada vez mais na França que a constitucionalidade convém apenas a uma pretensa situação monárquica enquanto nossa situação republicana permite e exige a ditadura Système de politique positive t II Prefácio carta a M Vieillard de 28 de fevereiro de 1852 pp XXVIXXVII Sobre o assunto ler H Gouhier La vie dAuguste Comte 2 ed Paris Vrin 1965 La jeunesse dAuguste Comte et laformation du positivisme 11 Paris Vrin 1933 2 Vale notar incidentalmente que aquilo que Comte chama neste texto de aber ração geral continua a existir em meados do século XX já que a Constituição tran sitória peculiar à Inglaterra isto é as instituições representativas tende a se difundir embora temos de reconhecer com êxitos diferentes através de todo o mundo A aber ração é cada vez mais geral cada vez mais aberrante 3 Recebo com regularidade uma publicação intitulada Nouveau Régime tipicamen te inspirada na maneira de pensar positivista Ela opõe a ficção representativa dos par tidos e do Parlamento ao país real Seus redatores são aliás muito inteligentes Bus cam outra forma de representação e não aquela que conhecemos nos partidos e no Par lamento 4 É preciso citar entre as mais brilhantes tiradas o retrato de Lamartine Nunca encontrei um homem cujo espírito fosse mais vazio de preocupação com o bem públi co E naturalmente o retrato de Luís Napoleão Bonaparte 5 Um texto do 18 brumário é sob esse aspecto muito significativo Legitimistas e orleanistas constituíam como já dissemos as duas grandes fac ções do partido da ordem O que ligava essas facções aos seus adeptos e opunhaas uma à outra seriam apenas as floresdelis e a bandeira tricolor a casa dos Bourbons e a casa de Orléans diferentes nuanças do monarquismo Com os Bourbons fora a grande pro priedade que reinara com seus padres e lacaios Com os Orléans fora a alta finança a gran de indústria o grande comércio isto é o capital com seu séquito de advogados de professores e de bons faladores A realeza legítima é apenas a expressão política da do minação hereditária dos senhores da terra assim como a monarquia de julho era apenas a expressão política da dominação usurpada dos novosricos burgueses Em conseqüên cia o que separava as duas facções não eram os pretendidos princípios mas as condições materiais de existência dois tipos diferentes de propriedade o velho antagonismo entre a cidade e o campo a rivalidade entre o capital e a propriedade da terra Ninguém pode negar que ao mesmo tempo velhas lembranças inimizades pessoais medos e esueran 272 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ças preconceitos e ilusões simpatias e antipatias convicções artigos de fé e princípios ligavam uma casa real a outra Sobre as diferentes formas de propriedade sobre as condições de existência social erguese toda uma superestrutura de impressões de ilusões de modos de pensar e de concepções filosóficas particulares A classe inteira criaas e formaas em cima das con dições materiais e das relações sociais correspondentes que constituem a sua base O in divíduo que as recebe por meio da tradição ou da educação pode imaginar que elas constituem as verdadeiras razões determinantes e o ponto de partida de sua atividade Os orleanistas os legitimistas cada facção procurou se persuadir e persuadir os outros de que estavam separadas em razão de suas ligações com suas duas casas reais No entanto a seqüência dos fatos mostrou que era muito mais a divergência de in teresses que impedia a união das duas dinastias E assim como na vida privada distin guimos aquilo que um homem diz ou pensa sobre si mesmo e o que ele é e faz real mente nas lutas históricas é preciso distinguir ainda melhor a fraseologia as pretensões e a constituição dos partidos daquilo que constitui os seus interesses verdadeiros dis tinguir o que eles imaginam ser e aquilo que eles são realmente Durante a República orleanistas e legitimistas estavam lado a lado com preten sões iguais Se cada facção passa a opor à outra a restauração de sua própria dinastia isso quer dizer apenas que os dois grandes interesses que dividem a burguesia pro priedade da terra e capital esforçavamse cada um por seu lado para restabelecer sua própria supremacia e a subordinação do outro Falamos de dois interesses da burguesia porque a grande propriedade da terra apesar do seu coquetismo feudal e seu orgulho de raça se emburguesara completamente com o desenvolvimento da sociedade moder na Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte Paris Éd Sociales 1956 pp 3839 6 Ver principalmente os artigos de Serge Mallet reunidos em livro sob o título Le gaullisme et la gaúche Paris Ed du Seuil 1965 Para esse sociólogo o novo regi me não é um acidente da história mas o estabelecimento de uma estrutura política que corresponda aos anseios do capitalismo O gaullismo é a expressão política do capita lismo moderno Encontramos uma análise comparável a esta em Roger Priouret nãomar xista e que no entanto diz De Gaulle não veio em 1958 unicamente por força do con flito de Argel ele acreditava que trazia um regime concebido em função de sua finali dade histórica e de fato ele adaptou a vida às condições da sociedade Les institu tions politiques de la France en 1970 Bulletin SEDEIS n 786 suplemento Futuribles 1 de maio de 1961 7 Entre as obras de Élie Halévy devemos citar La formation du radicalisme phi losophique Paris Alcan 19011904 3 vols 11 La jeunesse de Bentham t II Lévo lution de la doctrine utilitaire de 1789 et 1815 t III Le radicalisme philosophique Histoire du peuple anglais au XIX siècle Paris Hachette 6 vols os quatro primeiros volumes abrangem de 1815 a 1848 os dois últimos de 1895 a 1914 Lère des tyrannies études sur le socialisme et la guerre Paris Gallimard 1938 Histoire du socialisme eu ropéen redigido a partir de notas de curso Paris Gallimard 1948 Indicações bibliográficas sobre a Revolução de 1848 Bastid P 1848 Lavènement du sujfrage universel Paris PUF 1948 Bastid P Doctrine et institutions politiques de la Seconde République 2 vols Paris Hachette 1945 Comu A Karl Marx et la Rèvolution de 1848 Paris PUF 1948 Duveau G 1848 col Idées Paris Gallimard 1965 Girard M Étude comparèe des mouvements révolutionnaires en France en 1830 1848 18701871 Paris Centre de Documentation Universitaire 1960 Ponteil F 1848 2 ed Paris A Colin 1955 Pouthas CH La Rèvolution de 1848 en France et la Seconde République Centre de Documentation Universitaire 1953 Rubel M Karl Marx devant le bonapartisme Paris La Haye Mouton 1960 LD AL ME GT MEEE MT MECIEA AP TECV AE WIH ALHER SEGUNDA PARTE A geração da passagem do século FTCH Esta segunda parte é dedicada ao estudo das idéias principais de três soció logos Emile Durkheim Vilfredo Pareto e Max Weber Para precisar o método que utilizarei nesta análise será conveniente lembrar em poucas palavras como procedi na interpretação do pensamento de Auguste Comte de Marx e de Toc queville Comte Marx e Tocqueville formaram suas idéias na primeira metade do século XIX Adotaram como tema de meditação as sociedades européias após o drama da Revolução e do Império esforçandose por extrair a significação da crise que acabava de ocorrer bem como a natureza da sociedade em vias de nas cimento Mas a sociedade moderna era definida por eles de maneira diversa aos olhos de Auguste Comte a sociedade moderna era industrial para Marx era capitalista para Tocqueville democrática A escolha de adjetivo revelava o ân gulo do qual cada um desses pensadores via a realidade de seu tempo Para Auguste Comte a sociedade moderna ou industrial se caracterizava pelo desaparecimento das estruturas feudais e teológicas O problema principal da reforma social era o do consenso tratavase de restabelecer a homogeneidade de convicções religiosas e morais sem a qual nenhuma sociedade pode ser es tável Para Marx o dado fundamental da sociedade do seu tempo eram as con tradições internas da sociedade capitalista e da ordem social associada ao capi talismo Havia pelo menos duas contradições a contradição entre as forças e as relações de produção a contradição entre as classes sociais condenadas à hos tilidade enquanto não tivesse desaparecido a propriedade privada dos instru mentos de produção Para Tocqueville enfim a sociedade moderna era definida pelo seu cará ter democrático que para ele queria dizer a atenuação das distinções de clas ses ou de estado a tendência à igualdade progressiva da condição social e até 278 AS ETAPAS D O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mesmo num prazo mais longo da condição econômica Mas esta sociedade democrática cuja vocação era igualitária podia ser segundo múltiplas circuns tâncias ou liberal isto é governada por instituições representativas conserva doras das liberdades intelectuais ou ao contrário despótica se as causas secun dárias fossem desfavoráveis O despotismo novo abrangia indivíduos vivendo de modo análogo mas confundidos na igualdade da impotência e da servidão Segundo o ponto de partida adotado a representação da sociedade moder na é diferente ao mesmo tempo a visão da evolução social também varia Par tindo da noção de sociedade industrial e dando ênfase à necessidade do consen so do restabelecimento da unidade das crenças religiosas e morais Comte vê no futuro a realização progressiva de um tipo social cujas premissas ele observa e para cuja realização quer colaborar Levando em conta as contradições do capi talismo que considera essenciais Marx ao contrário prevê uma revolução ca tastrófica e benéfica conseqüência necessária destas contradições que terá a função de ultrapassálas A revolução socialista promovida pela maioria em be nefício da maioria marcará o fim da préhistória A filosofia histórica de Toc queville não é nem progressiva à maneira da de Comte nem otimista e catas trófica como a de Marx É uma filosofia aberta que marca certas característi cas inevitáveis das sociedades futuras mas afirma também que outros traços de igual importância humana são imprevisíveis Na visão de Tocqueville o futuro não está inteiramente determinado e permite uma certa margem de liberdade Para usar a terminologia que está hoje na moda Tocqueville teria ad mitido que há um sentido se dermos a sentido a acepção de direção no qual a história evolui necessariamente a história evolui para as sociedades democrá ticas mas que não existe sentido da história que possa ser determinado pre viamente se a noção de sentido implica realização da vocação humana As sociedades democráticas direção do devenir em virtude de causas múltiplas po dem ser liberais ou despóticas Em outras palavras o método que utilizei na primeira parte deste livro con sistiu em identificar os temas fundamentais de cada autor em mostrar como cada um desses temas resultava de uma interpretação pessoal da mesma reali dade social que os três procuravam compreender Interpretações que não eram arbitrárias mas pessoais o temperamento do autor seu sistema de valores e modo de percepção exprimindose na interpretação que oferece de uma reali dade que sob certos aspectos é vista por todos Nesta segunda parte usarei o mesmo método com mais facilidade ainda pois É Durkheim V Pareto e M Weber pertencem mais rigorosamente à mes ma geração o que não era o caso de Auguste Comte Karl Marx e Alexis de Toc queville Pareto nasceu em 1848 Durkheim em 1858 Max Weber em 1864 Durkheim morreu em 1917 Max Weber em 1920 Pareto em 1923 Os três pertencem ao A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 279 mesmo momento histórico seu pensamento formado no último terço do sé culo XIX foi aplicado à realidade histórica da Europa no princípio deste século Todos os três já tinham publicado a maior parte da sua obra quando estourou a guerra de 19141 Viveram em um período da história européia que retrospectivamente con sideramos como abençoado É verdade que esta fase da história pode ser amal diçoada pelos asiáticos e os africanos Contudo quando os três autores estavam vivos a Europa gozava de paz relativa As guerras do século XIX entre 1815 e 1914 foram curtas e limitadas e não alteraram imediatamente o rumo da his tória européia Poderseia acreditar que por isso estes três autores tivessem uma visão oti mista da história de que participavam No entanto não foi assim Todos os três embora de maneira diversa tinham o sentimento de que a sociedade européia estava em crise Um sentimento que não é original poucas gerações não passa ram pela impressão de viver uma crise ou até mesmo de testemunhar uma vi rada no curso da história A partir do século XVI teríamos dificuldade em en contrar uma geração que tenha vivido num período estável A impressão de estabilidade é quase sempre retrospectiva De qualquer forma a despeito da paz aparente estes três autores acreditavam que as sociedades estavam atravessan do uma fase de profunda mutação Creio que o tema fundamental da reflexão destes autores era o das relações entre a religião e a ciência Esta interpretação de conjunto por mim sugerida não é corrente pode ser mesmo num certo sentido paradoxal Só o estudo pre ciso de cada um deles poderá justificála contudo já nesta introdução geral quero indicar o que entendo por isso Durkheim Pareto e Weber têm em comum a vontade de fazer ciência Na época em que viveram tanto quanto na nossa ou mais ainda as ciências pareciam aos professores o modelo do pensamento rigoroso e eficaz talvez mesmo o único modelo de pensamento válido Sociólogos os três pretendiam pensar como cientistas Contudo enquanto sociólogos os três por caminhos diferentes che garam à idéia de Comte de que as sociedades só podem manter sua coerência por meio de crenças comuns Constataram também que as crenças comuns de ordem transcendente legadas pela tradição foram abaladas pelo desenvolvi mento do pensamento científico Nada mais banal no fim do século XIX do que a idéia de uma contradição insuperável entre a fé religiosa e a ciência de um certo modo todos os três estavam persuadidos dessa contradição mas justa mente porque eram cientistas e sociólogos reconheciam a necessidade para a Com a ressalva de que Wirtschaft und Gesellschaft Economia e sociedade de Max Weber só foi publicada após a sua morte 280 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO estabilidade social dessas crenças religiosas sujeitas à erosão pelos progressos científicos Enquanto sociólogos estavam tentados a crer que a religião tradicio nal se encontrava em vias de esgotamento Também como sociólogos eram ten tados a acreditar que a sociedade só podia manter sua estrutura e coerência sob a condição de que uma fé comum pudesse reunir os membros da coletividade Este problema que na minha opinião é fundamental encontra expressão diferente em cada um deles No caso de Durkheim essa expressão é simples Foi um professor francês de filosofia de tradição laica cujo pensamento se interrogava sem dificuldade no diálogo que não ousaria chamar de eterno mas que é seguramente duradouro pois ele preenche alguns séculos da história da França entre a Igreja católica e o pen samento laicista Como sociólogo Durkheim pensava constatar que a religião tra dicional não atendia mais às exigências daquilo a que chamava de espírito cientí fico Por outro lado como bom discípulo de Comte considerava que uma socie dade precisa de consenso e que este só pode ser estabelecido por crenças absolu tas Concluía assim com o que me parece ingenuidade professoral que era neces sário instaurar uma moral inspirada no espírito científico A crise da sociedade moderna lhe parecia provocada pela nãosubstituição das morais tradicionais baseadas nas religiões A sociologia deveria servir para fundamentar e reconstituir uma ética que atendesse às exigências do espírito científico Uma contradição análoga aparece na obra de Pareto Este era obcecado pelo desejo de ser um cientista e chega a cansar o leitor com a repetição da afir mativa de que só as proposições obtidas pelo método lógicoexperimental são científicas e que todas as outras em particular as de ordem moral metafísica ou religiosa não têm valor de verdade Contudo ironizando incessantemente a pretendida religião ou moral científica Pareto tem muita consciência de que não é a ciência que determina a ação dos homens Afirma mesmo que se acre ditasse que suas obras devessem ser lidas por muitas pessoas não as publica ria pois não se pode explicar o que é realmente a ordem social pelo método ló gicoexperimental sem destruir os fundamentos dessa ordem Para ele a socie dade se sustenta por sentimentos que não são verdadeiros mas são eficazes Se o sociólogo revela aos homens esse fato arriscase a dissipar ilusões que são indispensáveis Há uma contradição entre os sentimentos necessários para o con senso e a ciência que revela a nãoverdade desses sentimentos Pareto teria con siderado que a moral chamada científica de Durkheim não era mais científi ca do que a moral do catecismo teria até mesmo dito levando essa idéia a seu extremo que tal moral nada tinha de científico pelo fato de cometer o erro insigne de crer que era científica sem o ser sem contar o erro suplementar de imaginar que um dia os homens pudessem estar determinados a agir em função de conside rações racionais A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 281 Há portanto para o sociólogo uma contradição entre a exigência de rigor científico na análise da sociedade e a convicção de que as proposições cientí ficas não bastam para unir os homens e toda sociedade é sempre mantida na sua coerência e ordem por crenças ultra infra e supraracionais Um tema análogo aparece em Max Weber expresso em termos e com sen timentos distintos No caso de Durkheim o sentimento que inspira a análise da oposição entre religião e ciência é o desejo de criar uma moral científica No caso de Pareto é a percepção de uma contradição insolúvel pois em si mesma a ciência não só cria a ordem social mas na medida em que é válida corre o risco de ser destrutiva O sentimento de Max Weber é diferente A sociedade moderna como ele a descreve está em vias de assumir uma organização cada vez mais burocrática e racional A descrição de Weber embora com conceitos diferentes lembra um pouco a de Tocqueville Quanto mais se impõe a modernidade mais se expan de a organização anônima burocrática racional Esta organização racional é a fatalidade das sociedades modernas e Max Weber a aceita Contudo pertencen do a família profundamente religiosa embora ele próprio sem sensibilidade religiosa guarda a nostalgia da fé que era possível no passado e contempla a transformação racionalizante das sociedades modernas com uma mistura de sentimentos Tem horror da rejeição do que é necessário para a sociedade em que vivemos horror das queixas contra o mundo ou a história tais quais existem Ao mesmo tempo porém não se entusiasma com o tipo de sociedade que vemos desenvolverse Compara a situação do homem moderno com a dos puritanos que tiveram um papel importante na formação do capitalismo moderno e cita a fór mula que é tantas vezes repetida para caracterizar sua atitude Os puritanos queriam ser homens de profissão Nós estamos condenados a sêlo O homem de profissão em alemão Berufsmensch está condenado a exercer uma função social estreita dentro de conjuntos vastos e anônimos sem a possibilidade de desenvolvimento total da personalidade que era concebível em outras épocas Max Weber temia que a sociedade moderna que é e será burocrática e racio nal contribuísse para sufocar o que a seus olhos tornava a vida digna de ser vivi da isto é a escolha pessoal a consciência da responsabilidade a ação a fé O sociólogo alemão não sonha com uma moral científica a exemplo do seu colega francês não ironiza os sentimentos tradicionais ou as religiões pseu docientíficas como o pensador italiano Vive numa sociedade racional e quer refletir cientificamente sobre sua natureza embora creia que o que há de mais vital e válido na existência se situe além da atividade profissional definindo se pelo que chamamos hoje de engajamento Com efeito Max Weber se assumirmos o direito de aplicarlhe conceitos que não eram correntes na sua época pertencia como filósofo à corrente exis 282 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tencialista Aliás um dos mais célebres existencialistas Karl Jaspers foi seu amigo e discípulo e o cita como mestre Nos três autores citados encontramos uma reflexão sobre as relações entre ciência e religião ou entre o pensamento racional e o sentimento com base na exigência do pensamento científico e na exigência social de estabilidade ou de consenso Esse tema que reputo fundamental e é comum aos três explica algumas das idéias que os aproximam Concebese assim que na sua concepção da ex plicação sociológica e na sua interpretação do comportamento humano eles tenham simultaneamente ultrapassado o behaviorismo a psicologia do compor tamento e as motivações estritamente econômicas A convicção comum de que as sociedades se sustentam pelas crenças coletivas impedeos de fato de se sa tisfazerem com uma explicação das condutas que fosse do exterior que abs traísse o que se passa na consciência Da mesma forma o reconhecimento do fato religioso como o mais impor tante que comanda a ordem de todas as coletividades contradiz para os três a explicação através da racionalidade egoísta dada pelos economistas quando procuram interpretar os atos humanos por meio de cálculos de interesses Durkheim Pareto e Weber têm em comum o fato de não aceitarem nem as explicações naturalistas ou materialistas externas nem as explicações raciona lizantes e econômicas da conduta humana Talcott Parsons escreveu sobre os três um livro importante The Structure o f Social Action cujo objetivo é salientar O parentesco dos seus sistemas de interpretação conceituai do comportamento humano Parsons procura demonstrar que com linguagens diferentes esses três sociólogos chegaram finalmente a uma concepção muito próxima da estrutura formal da explicação da conduta A origem dessa semelhança formal é na minha opinião o problema comum que enunciei inicialmente Ele constitui quando menos uma razão pois talvez haja uma segunda quem sabe os três descobriram no todo ou em parte o sis tema verdadeiro de explicação do comportamento Quando os pensadores encon tram simultaneamente a verdade este encontro dispensa outra explicação Como1 dizia Spinoza é o erro que tem necessidade de ser explicado não a verdade Nossos três pensadores são europeus e seu pensamento é orientado natu ralmente pela sua situação no mundo europeu Mas todos os três procuram pôr em perspectiva o mundo europeu moderno com relação a outras civilizações Durkheim toma por termo de referência e de oposição as sociedades arcaicas um pouco como Auguste Comte Pareto tem uma cultura histórica que abrange a antiguidade e o mundo moderno suas comparações constantes vão de Atenas e Esparta Roma e Cartago à França e Alemanha ou Inglaterra e Alemanha Quanto a Weber salienta com muita ênfase a originalidade da civilização oci j A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 283 dental para marcála empenhase no estudo comparativo das religiões e das civilizações Se o tema comum desses pensadores é a relação entre a ciência e a religião entre a razão e o sentimento as diferenças entre eles são sob muitos aspectos marcantes Durkheim é por formação um filósofo de universidade francesa Pertence à posteridade de Auguste Comte e coloca no centro da sua reflexão a necessi dade do consenso social Por outro lado como francês o modo como formulou o problema das relações entre ciência e religião recebeu a influência do clima intelectual da França no fim do século XIX época em que a escola laicista bus cava uma moral diferente da religiosa Essa moral tinha sido encontrada pri meiramente num certo kantismo interpretado de acordo com o espírito protes tante e depois parcialmente elaborada a partir do pensamento sociológico Durkheim escreveu três livros importantes que marcam seu itinerário inte lectual e representam três variações sobre o tema fundamental do consenso No primeiro Da divisão do trabalho social o problema estudado é o se guinte a sociedade moderna implica uma diferenciação extrema de funções e ocupações como fazer para que uma sociedade dividida entre inumeráveis es pecialistas mantenha a coerência intelectual e moral que lhe é necessária O segundo grande livro de Durkheim Le suicide O suicídio é uma aná lise de um fenômeno considerado patológico para pôr em evidência o mal que ameaça as sociedades modernas ou industriais a anomia O terceiro As formas elementares da vida religiosa procura investigar na aurora da história humana as características essenciais da ordem religiosa não por curiosidade pelo que aconteceu há milhares de anos mas para encontrar nas sociedades mais simples o segredo essencial das sociedades humanas para compreender melhor o que exige a reforma das sociedades modernas à luz do que eram as sociedades primitivas Italiano Pareto teve formação intelectual diferente Engenheiro de profis são elaborou uma teoria matemática da economia e gradualmente querendo apreender a realidade social concreta descobriu a insuficiência do formalismo matemático e econômico e ao mesmo tempo o papel dos sentimentos na con duta do homem Pelo seu estilo intelectual e estrutura mental não é um filósofo como Durkheim também não recebeu a influência de Comte que tende a desprezar A tradição em que se apóia é a de Maquiavel O maquiavelismo é o esforço diri gido para projetar luz sobre as hipocrisias da comédia social para identificar os sentimentos que motivam verdadeiramente os homens para perceber os con flitos autênticos que constituem a textura do processo de desenvolvimento his tórico para dar um visão despojada de ilusões do que é de fato a sociedade 284 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO O pensamento de Pareto se baseia no reconhecimento da contradição entre a racionalidade das teorias econômicas e a irracionalidade do comportamento humano na constatação às vezes tímida às vezes triunfante de que este com portamento irracional do ponto de vista científico pode ser socialmente efi caz e útil Pareto é filho de um patriota italiano da geração do Risorgimento que já tinha questionado as idéias liberais e humanitárias Convenceuse de que tais idéias podem ser perigosas para as minorias privilegiadas que nelas se apóiem com excessiva sinceridade por outro lado aprendeu com a ciência que a fé na democracia ou no socialismo e as crenças humanitárias não valem muito mais comparativamente ao pensamento lógicoexperimental do que a crença em Deus no demônio ou na feitiçaria Aos olhos de Pareto um homem humanitário é também como um cristão mero brinquedo dos seus sentimentos Poderia dizer que a religião democrática de Durkheim não tem mais valor científico do que a moral tradicional Com um pouco de boa vontade e de psicanálise podese perceber em Pa reto a revolta contra as idéias humanitárias da sua época ou uma imensa justi ficação das decepções amargas a que foi levado pela observação da realidade Por formação Max Weber não foi filósofo nem engenheiro mas jurista e historiador Sua formação universitária foi essencialmente jurídica e chegou a começar uma carreira administrativa Sua erudição histórica era excepcional Era também um nostálgico da política nunca foi um político ativo Chegou a pensar em candidatarse nas eleições que se seguiram à derrota alemã de 1918 mas terminou por afastar esta hipótese Conservou no entanto o desejo insa tisfeito de ser um homem de ação Sua família espiritual é a dos sociólogos que são políticos fracassados depois de uma carreira política como Tucídides ou durante como Maquiavel A metodologia de Max Weber pode ser explicada amplamente pela relação entre a ciência e a atividade entre a sociologia e a política Deseja uma ciência neutra porque não quer que o professor em sua cátedra utilize seu prestígio para impor as idéias que tem Mas quer que a ciência neutra seja útil para o ho mem de ação e para a política Daí a antítese entre juízo de valor em relação aos valores e a distinção entre causalidade e compreensão Além disso a visão histórica de Max Weber não é nem progressista como a de Durkheim nem cíclica como a de Pareto Tem alguma semelhança com a de Tocqueville há nas sociedades modernas certas características intrínsecas que são fatais inevitáveis e devem ser aceitas mas a burocracia e a racionali zação não determinam a totalidade da ordem social e deixam em aberto a du pla possibilidade o respeito às pessoas e às liberdades e o despotismo A aproximação entre os três pensadores que vamos estudar nas página seguintes não é portanto arbitrária É natural proceder a uma comparação his1 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 285 tórica que tenha a função de projetar luz sobre os pontos de semelhança e de di vergência O que há de semelhante entre eles são os elementos comuns da si tuação européia que os três observam e reconhecem O que há de diferente re flete o contexto intelectual e nacional de cada um que lhe influencia o modo de expressão conceituai E também a manifestação das suas personalidades Um é de religião judia outro católico o terceiro é protestante pelo menos de origem Um é um otimis ta severo outro um pessimista irônico o terceiro um observador amargo Esses estilos precisam ser apreciados na interpretação histórica para que suas doutrinas sociológicas apareçam verdadeiramente como realmente foram isto é não somente um esforço de compreensão científica mas também a expres são de três homens ou ainda os diálogos entre homens e uma situação histórica Procurarei identificar portanto nessas doutrinas o que elas contêm de com preensão científica da conduta humana e das sociedades modernas sem esque cer contudo o elemento pessoal que dá colorido particular a cada uma delas Finalmente se isso for possível tentarei imaginar o diálogo que esses três pensadores não chegaram a ter uma vez que mal se conheceram pessoalmente mas que poderiam ter tido É perfeitamente possível reconstituir esse diálogo ou para sermos mais modestos imaginálo Un nurba ollioc de Malto nocillo 20 cm de altura 160 g do peso e madeira fresca Émile Durkheim As paixões humanas só se detêm diante de um poder moral que res peitam Se falta uma autoridade moral desse gênero impera a lei do mais forte latente ou agudo há necessariamente um estado de guerra crônico Enquanto em outros tempos as funções econômicas só tinham um papel secundário hoje ocupam o primeiro plano Diante delas vemos as fun ções militares administrativas e religiosas recuarem cada vez mais Só as funções científicas têm condições de lhes disputar a posição e mesmo assim a ciência hoje só tem prestigio na medida em que pode servir à prática isto é em boa parte às profissões econômicas Por isso se pôde afirmar a respeito das nossas sociedades com uma certa razão que elas são ou tendem a ser essencialmente industriais Uma forma de atividade que assumiu tamanha importância no conjunto da vida social não pode evidentemente permanecer a tal ponto desregulada sem que resultem di ficuldades das mais sérias Isto constitui notadamente uma fonte de des moralização geral De la division du travail social Prefácio da 2 edição pp 34 Esta análise do pensamento de Durkheim focalizará seus três livros princi pais Da divisão do trabalho social Le suicide e As formas elementares da vida religiosa Procurarei depois avançar um pouco mais na minha interpretação re constituindo a evolução do seu pensamento e examinando a relação entre suas verdadeiras idéias e as fórmulas metodológicas que empregou para traduzilas Finalmente estudarei as relações entre a sociologia como a concebia Durkheim e a filosofia Da divisão do trabalho social Da divisão do trabalho social 1893 tese de doutoramento de Durkheim é seu primeiro grande livro E também aquele em que se reconhece mais claramente a influência de Au guste Comte O tema deste primeiro livro é central no pensamento do autor as relações entre os indivíduos e a coletividade Como pode uma coleção de indi víduos constituir uma sociedade Como se chega a esta condição da existência social que é o consenso A esta pergunta fundamental Durkheim responde distinguindo duas formas de soiid aried ad eí SoManedade dita mecânica e a orgânica 288 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A primeira é para usar a expressão de Durkheim uma solidariedade por semelhança Quando esta forma de solidariedade domina uma sociedade os in divíduos diferem pouco uns dos outros Membros de uma mesma coletividade eles se assemelham porque têm os mesmos sentimentos os mesmos valores re conhecem os mesmos objetos como sagrados A sociedade tem coerência por que os indivíduos ainda não se diferenciaram A forma oposta de solidariedade a orgânica é aquela em que o consenso isto é a unidade coerente da coletividade resulta de uma diferenciação ou se exprime por seu intermédio Os indivíduos não se assemelham são diferentes E de certo modo são diferentes porque o consenso se realiza Durkheim chama de orgânica a solidariedade baseada na diferenciação dos indivíduos por analogia com os órgãos de um ser vivo cada um dos quais exer ce uma função própria embora os órgãos não se pareçam uns com os outros todos são igualmente indispensáveis à vida As duas formas de solidariedade correspondem no pensamento de Durkheim a duas formas extremas de organização social As sociedades que há meio século chamávamos de primitivas e que hoje preferimos chamar de arcaicas ou socie dades sem escrita mudança de terminologia que exprime uma mudança de ati tude com relação a essas sociedades se caracterizam pela prevalência da soli dariedade mecânica Os indivíduos de um clã são por assim dizer intercambiá veis O resultado e esta é uma das idéias essenciais do pensamento de Durkheim é que o indivíduo não vem historicamente em primeiro lugar A tomada dfi consciência da individualidade decorre do próprio desenvolvimento histórico Nas sociedades primitivas cada indivíduo é o que são os outros na consciên cia de cada um predominam em número e intensidade os sentimentos comuns a todos os sentimentos coletivos A oposição destas duas formas de solidariedade se combina com a oposi ção entre sociedades segmentárias e aquelas em que aparece a moderna divisãíii de trabalho Num certo sentido uma sociedade de solidariedade mecânica é tam bém uma sociedade segmentária Mas a definição destas duas noções não é exa tamente a mesma No vocabulário de Durkheim um segmento designa um grupo social effl que os membros estão estreitamente integrados Mas o segmento é também uffl grupo situado localmente relativamente isolado dos demais que tem vida própria Comporta uma solidariedade mecânica por semelhança mas pressupõe tam bém a separação com relação ao mundo exterior O segmento se basta a si mes mo tem pouca comunicação com o mundo exterior Por definição portanto 3 organização segmentária contradiz os fenômenos gerais de diferenciação de signados pela expressão de solidariedade orgânica Mas pode acontecer expli ca Durkheim que em certas sociedades em que o correm formas já muito desenl A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 289 volvidas da divisão econômica do trabalho subsista parcialmente uma estrutu ra segmentária Vamos encontrar essa idéia numa passagem curiosa em que Durkheim co menta que a Inglaterra embora tenha uma indústria moderna muito desenvol vida e portanto uma divisão econômica do trabalho conservou o tipo segmen tário e o sistema alveolar mais do que outras sociedades em que a divisão eco nômica do trabalho é menos avançada Durkheim vê a prova desta sobrevivên cia da estrutura segmentária na manutenção da autonomia local e na força da tradição Pode acontecer muito bem que numa sociedade em particular uma certa di visão do trabalho e notadamente a divisão do trabalho econômico seja muito de senvolvida embora o tipo segmentário ainda exista de forma fortemente pronun ciada Parece ser o caso da Inglaterra A grande indústria e o grande comércio pa recem terse desenvolvido ali tanto quanto no continente embora o sistema alveo lar pareça muito acentuado como o demonstram a autonomia da vida local e a autoridade da tradição O que acontece com efeito é que a divisão de trabalho sendo fenômeno de rivado e secundário como acabamos de ver ocorre na superfície da vida social o que é sobretudo verdadeiro no caso da divisão do trabalho econômico Ela está à flor da pele Ora em todo organismo os fenômenos superficiais pela sua própria situação são bem mais acessíveis à ação das causas externas mesmo quando os fatores internos de que dependem de modo geral não se modificam Basta assim que uma circunstância qualquer provoque num povo um desejo mais vivo de bem estar material para que a divisão do trabalho econômico se desenvolva sem que a estrutura social mude sensivelmente O espírito de imitação e o contato com uma civilização mais refinada podem levar a este resultado É assim que o entendimen to parte culminante e em conseqüência mais superficial da consciência pode ser facilmente alterado por influências externas como a educação sem que os funda mentos da vida psíquica sejam atingidos Criamse assim inteligências suficientes para que o êxito seja garantido sem ter contudo raízes profundas Este gênero de talento não se transmite pela hereditariedade Esta comparação mostra que não se deve julgar a posição de uma sociedade na escala social de acordo com sua civilização em especial a civilização econô mica esta pode não ser mais do que uma imitação uma cópia recobrindo estrutu ra social de espécie inferior Não há dúvida de que é um caso excepcional mas ele pode ocorrer De la division du íravail social 7 ed pp 266267 n Portanto a noção de estrutura segmentária não se confunde com a solida riedade por semelhança Sugere apenas o relativo isolamento a autosuficiência dos vários elementos Podese conceber uma sociedade global ocupando amplo espaço que não passasse da justaposição de segmentos todos semelhantes e au tárquicos 290 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO É possível a existência de um grande número de clãs tribos ou grupos re gionalmente autônomos justapostos e talvez até mesmo sujeitos a uma autori dade central sem que a coerência por semelhança do segmento seja quebrada sem que se opere no nível da sociedade global a diferenciação das funções ca racterísticas da solidariedade orgânica A divisão do trabalho que Durkheim procura apreender e definir não se confunde com a que os economistas imaginam A diferenciação das profissões e a multiplicação das atividades industriais exprimem a diferenciação social que Durkheim considera de modo prioritário Esta diferenciação se origina na de sintegração da solidariedade mecânica e da estrutura segmentária Falando destes temas fundamentais podemse tentar identificar algumas das idéias que decorrem desta análise e fazem parte da teoria geral do nosso autor A primeira trata do conceito de consciência coletiva que desde esta época figura no primeiro plano do pensamento de Durkheim Tal como é definida em Da divisão do trabalho social a consciência cole tiva é simplesmente o conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma sociedade Durkheim esclarece que este conjunto for ma um sistema determinado que tem vida própria Ibid p 46 A consciên cia coletiva só existe em virtude dos sentimentos e crenças presentes nas cons ciências individuais mas se distingue pelo menos analiticamente destas últi mas pois evolui segundo suas próprias leis e não é apenas a expressão ou a efeito das consciências individuais Sem dúvida ela não tem como substrato um órgão único é por definiçãôi difusa ocupando toda a extensão da sociedade mas nem por isso deixa de te características específicas que a tornam uma realidade distinta Com efeito ela i independente das condições particulares em que se situam os indivíduos Estei passam ela fica E a mesma no Norte e no Sul nas grandes e nas pequenas cidai des nas diferentes profissões Por outro lado não muda em cada geração mas contrário liga as gerações que se sucedem Portanto não se confunde com as cons ciências particulares embora se realize apenas nos indivíduos É o tipo psíquico di sociedade tipo que tem suas propriedades condições de existência seu modo dí desenvolvimento exatamente como os tipos individuais embora de outra maneira De la division du travail social p 46 Esta consciência coletiva comporta de acordo com as sociedades maiol ou menor extensão ou força Nas sociedades dominadas pela solidariedade me cânica a consciência coletiva abrange a maior parte das consciências indivi duais Nas sociedades arcaicas a fração das existências individuais submetidl a sentimentos comuns é quase coextensíva com a existência inteira Nas sociedades em que aparece a diferenciação dos indivíduos cada um teiHj em muitas circunstâncias a liberdade de crer de querer e agir conforme suai A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 291 preferências Nas sociedades de solidariedade mecânica ao contrário a maior parte da existência é orientada pelos imperativos e proibições sociais O adjeti vo social significa neste momento do pensamento de Durkheim apenas que tais imperativos e proibições se impõem à média à maioria dos membros do grupo que eles têm por origem o grupo e não o indivíduo denotando o fato de que este se submete a esses imperativos e proibições como a um poder superior A força desta consciência coletiva acompanha a sua extensão Nas socie dades primitivas ela não só abrange a maior parte da existência individual co mo também os sentimentos coletivos têm força extrema que se manifesta pelo rigor dos castigos impostos aos que violam as proibições sociais Quanto mais forte a consciência coletiva maior a indignação com o crime isto é contra a violação do imperativo social Finalmente a consciência coletiva também é par ticularizada Cada um dos atos da existência social em particular cada um dos ritos religiosos é definido com precisão Os detalhes relativos ao que é preci so fazer e ao que é preciso crer são impostos pela consciência coletiva Por outro lado quando reina a solidariedade orgânica Durkheim pensa ob servar também uma redução da esfera da existência que cobre a consciência coletiva um enfraquecimento das reações coletivas contra a violação das proi bições e sobretudo uma margem maior na interpretação individual dos impera tivos sociais Para dar um exemplo simples o que a justiça exige numa sociedade pri mitiva é fixado com exatidão minuciosa pelos sentimentos coletivos Por outro lado nas sociedades em que a divisão do trabalho é mais avançada essa exigên cia só será feita de modo abstrato por assim dizer universal Num caso a jus tiça é que tal indivíduo receba tal sanção precisa em outro que haja uma espé cie de igualdade nos contratos e que cada um receba o que lhe é devido que é definido de muitas formas nenhuma das quais é isenta de dúvidas e fixada de modo unívoco Dessa análise Durkheim deduz uma idéia que manteve por toda a sua vida e que ocupa o centro de toda sua sociologia a que pretende que o indivíduo nas ce da sociedade e não que a sociedade nasce dos indivíduos Enunciada assim a fórmula parece paradoxal mas o próprio Durkheim a exprime muitas vezes nesses termos Procurando reconstituir seu pensamento di ria que o primado da sociedade sobre o indivíduo tem pelo menos dois senti dos que no fundo nada têm de paradoxal O primeiro é o da prioridade histórica das sociedades em que os indivíduos se assemelham uns aos outros e estão por assim dizer perdidos no todo com relação àquelas outras sociedades cujos membros adquiriram ao mesmo tempo consciência da sua responsabilidade e da capacidade que têm de exprimila As sociedades coletivistas em que cada um se assemelha a todos vêm historicamen te em primeiro lugar 292 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Dessa prioridade histórica resulta uma prioridade lógica na explicação dos fenômenos sociais Se a solidariedade mecânica precedeu a solidariedade orgâ nica não se podem com efeito explicar os fenômenos da diferenciação social e da solidariedade orgânica a partir dos indivíduos Enganamse os economistas que explicam a divisão do trabalho pelo interesse dos indivíduos em comparti lhar as ocupações de modo a fazer crescer o rendimento da coletividade Essa explicação pela racionalidade da conduta individual parece a Durkheim uma inversão da ordem Dizer que os homens dividiram o trabalho e atribuíram uma ocupação específica a cada um para aumentar a eficácia do rendimento coleti vo é admitir que os indivíduos são diferentes uns dos outros e conscientes des sa diferença antes da diferenciação social Com efeito a consciência da indi vidualidade não podia existir antes da solidariedade orgânica e da divisão do trabalho A busca racional do aumento da produção não pode explicar a dife renciação social pois esta busca pressupõe justamente tal diferenciação social1 Durkheim esboça neste ponto o que será uma das idéias fundamentais em toda a sua carreira a definição da sociologia como a prioridade do todo sobre as partes ou a irredutibilidade do conjunto social à soma dos elementos e a ex plicação dos elementos pelo todo No estudo da divisão do trabalho Durkheim descobriu duas idéias essen ciais a prioridade histórica das sociedades em que a consciência individual está inteiramente fora de si e a necessidade de explicar os fenômenos individuais pelo estado da coletividade e não o estado da coletividade pelos fenômenos in dividuais O fenômeno da divisão do trabalho que o sociólogo quer explicar é dife rente portanto do que os economistas entendem pelo mesmo conceito A divi são do trabalho é uma certa estrutura de toda a sociedade de que a divisão téç nica ou econômica do trabalho não passa de uma manifestação s Depois de definir cientificamente a divisão do trabalho é necessário estu dála melhor A resposta dada por Durkheim à questão metodológica é a seguinte paií estudarcientificamente um fenômeno sociall é preciso estudálo objetivameni te isto é do exterior encontrando o meio pelo qual os estados de consciêncig não perceptíveis diretamente podem ser reconhecidos e compreendidos Esteç sintomas ou expressões dos fenômenos de consciência são em Da divisão dO trabalho social os fenômenos jurídicos De modo sugestivo e talvez um pçucflj simplista Durkheim caracteriza um dos tipos de solidariedade o direito repres sivo que pune as faltas ou crimes e o direito restitutivo ou cooperativo cüj essência não é a punição das violações das regras sociais mas repor as coisa em ordem quando uma falta foi cometida ou organizar a cooperação entre oS indivíduos A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 293 O direito repressivo revela a consciência coletiva nas sociedades de solida riedade mecânica já que pelo próprio fato de que multiplica as sanções mani festa a força dos sentimentos comuns sua extensão e sua particularização Quanto mais ampla a consciência coletiva quanto mais forte e particularizada maior será o número de atos considerados como crimes isto é atos que violam um imperativo ou um interdito que ferem diretamente a consciência da cole tividade Esta definição de crime é tipicamente sociológica no sentido em que Durkheim interpreta o termo sociológico Nesta acepção crime é simplesmen te um ato proibido pela consciência coletiva Não importa que pareça inocente ao observador situado em outra sociedade ou em outro período histórico Num estudo sociológico o crime só pode ser definido do exterior tomando como referência o estado de consciência coletiva da sociedade considerada Esta defi nição é portanto objetiva e relativista Dizer que alguém é sociologicamente um criminoso não significa que o consideremos culpado com relação a Deus ou com relação à nossa própria con cepção de justiça Criminoso é aquele que numa sociedade determinada deixou de obedecer às leis do Estado Nesse sentido Sócrates provavelmente merecia ser considerado criminoso Evidentemente basta levar essa idéia até as últimas conseqüências para que ela se tome trivial ou então chocante para o espírito A definição sociológica do crime leva de fato logicamente a um relativismo integral fácil de pensar em termos abstratos mas ao qual na realidade ninguém adere nem mesmo aqueles que o professam De qualquer forma depois de ter esboçado uma teoria do crime Durkheim deduz dela sem dificuldade uma teoria das sanções Afasta com um certo des prezo as interpretações clássicas segundo as quais as sanções teriam por fina lidade prevenir a repetição do ato culpado Para ele a sanção não tem a função de amedrontar ou de dissuadir seu sentido não é este A função do castigo é sa tisfazer a consciência comum ferida pelo ato cometido por um dos membros da coletividade Ela exige reparação e o castigo do culpado é esta reparação feita aos sentimentos de todos Durkheim considera esta teoria da sanção mais satisfatória do que a inter pretação racionalista pelo efeito de dissuasão É provável que sociologicamen te ele estivesse certo Mas não devemos deixar de reconhecer que se o castigo é sobretudo uma reparação feita à consciência coletiva o prestígio da justiça e a autoridade das sanções ficam enfraquecidos Um cínico como Pareto diria que Durkheim tem razão e que efetivamen te muitos castigos não passam de uma espécie de vingança da consciência cole tiva aplicada a indivíduos indisciplinados embora não convenha admitilo pois não se poderia manter o respeito pela justiça se esta fosse vista como um mero tributo aos preconceitos de uma sociedade arbitrária e irracional 294 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO No direito restitutivo não se trata de punir mas sim de restabelecer o esta do das coisas como deve ser segundo a justiça Aquele que não resgatou sua dí vida deve pagála Mas esse direito restitutivo ao qual pertence por exemplo o direito comercial não é a única forma de direito característica das sociedades de solidariedade orgânica Quando menos devese interpretar o direito restitu tivo num sentido muito amplo de modo a englobar todas as regras jurídicas que têm por objeto a organização da cooperação entre os indivíduos O direito ad ministrativo ou o direito constitucional pertencem como o comercial ao gênero do direito cooperativo constituem menos a expressão dos sentimentos comuns de uma coletividade do que a organização da coexistência regular e ordenada de indivíduos já diferenciados Poderseia acreditar que Durkheim encontra assim uma idéia que tinha uma função importante na sociologia de Spencer e nas teorias dos economistas clássicos a idéia de que a sociedade moderna se baseia essencialmente no con trato isto é em acordos concluídos livremente pelos indivíduos Neste caso a visão de Durkheim se ajustaria de certo modo à fórmula clássica do estatuto ao contrato ou ainda de uma sociedade dominada por imperativos coletivos a uma sociedade na qual a ordem comum é criada pelas livres decisões dos indi víduos Mas não é esta a idéia de Durkheim Para ele a sociedade moderna não se baseia no contrato como a divisão do trabalho não se explica a partir de deci sões racionais dos indivíduos de repartir as ocupações para aumentar a produ ção coletiva Se a sociedade moderna fosse contratualista poderia ser expli cada pelo comportamento dos indivíduos Ora o que o sociólogo quer demons trar é precisamente o contrário Opondose assim aos contratualistas como Spencer e aos economistas Durkheim não nega que nas sociedades modernas os contratos concluídos li vremente pelos indivíduos tenham um papel importante Mas esse elemento contratual é um derivado da estrutura da sociedade e até mesmo um derivado do estado da consciência coletiva na sociedade moderna Para que haja uma esferal cada vez mais ampla em que os indivíduos possam concluir livremente acordos entre si é preciso que a sociedade tenha uma estrutura jurídica que autorizei essas decisões autônomas dos indivíduos Em outras palavras os contratos inte rindividuais se situam dentro de um contexto social que não é determinado pe los próprios indivíduos A divisão do trabalho pela diferenciação é a condição primordial da existência de uma esfera de contrato Encontrase aqui o princí pio da prioridade da estrutura social sobre o indivíduo ou ainda da prioridade do tipo social sobre os fenômenos individuais Os contratos são concluídos entre indivíduos mas suas condições são fixa das por uma legislação que traduz a concepção que a sociedade global tem do justo e do injusto do tolerável e do proibido i A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 295 A sociedade em que predomina o tipo orgânico de solidariedade não é defi nida portanto pela substituição da comunidade pelo contrato A sociedade mo derna também não é definida pela substituição do tipo militar pelo industrial para usar a antítese de Spencer Ela se define prioritariamente pela diferencia ção social de que o contratualismo é uma conseqüência e manifestação Quando os economistas ou os sociólogos explicam a sociedade moderna pe lo contrato eles invertem a ordem histórica e lógica É a partir da sociedade glo bal que compreendemos o que são os indivíduos e como e por que eles podem livremente contratar entre si Mas qual é a causa da solidariedade orgânica ou da diferenciação social que é considerada como a característica essencial das sociedades modernas Observemos antes de mais nada que não é evidente que Durkheim tenha razões para formular este problema nos termos em que o enuncia qual é a cau sa do desenvolvimento da solidariedade orgânica e da diferenciação social Ele não pode ter certeza a priori de que é possível ou mesmo impossível encontrar a causa de um fenômeno que não é simples ou isolável mas sim um aspecto do conjunto da sociedade Durkheim quer determinar a causa do desenvolvi mento da divisão do trabalho nas sociedades modernas Tratase aqui de um fenômeno essencialmente social Quando o fenômeno a explicar tem esta natureza segundo o princípio da homogeneidade da causa e do efeito a causa deve ser também social o que elimina a explicação indivi dualista Curiosamente Durkheim afasta assim uma explicação que Auguste Comte tinha também considerado e eliminado segundo a qual o fator essencial do desenvolvimento social teria sido o enfado ou a procura da felicidade De fato nada prova que nas sociedades modernas os homens sejam mais felizes do que nas sociedades arcaicas Não há dúvida de que neste ponto ele tem razão A única coisa surpreendente é que julgue necessário mas na sua época prova velmente era necessário escrever tantas páginas para demonstrar que a dife renciação social não pode ser explicada pela busca do prazer ou da felicidade É verdade afirma ele que os prazeres são mais numerosos e sutis nas so ciedades modernas mas esta diferenciação dos prazeres é o resultado da dife renciação social não a causa Quanto à felicidade ninguém poderia dizer que somos mais felizes do que os homens que nos precederam Durkheim naquela época já estava impressionado pelo fenômeno do suicídio apresenta a freqüên cia dos suicídios como a melhor prova de que a felicidade não aumenta com o progresso nas sociedades modernas Sugere que os suicídios são mais comuns hoje do que no passado Contudo na falta de estatísticas sobre as sociedades anti gas não podemos ter certeza disto A divisão do trabalho não pode portanto ser explicada pelo enfado pela bus ca da felicidade pelo aumento dos prazeres ou pelo desejo de aumentar a pro 296 ÀS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO dução coletivajA divisão do trabalho é um fenômeno social que só pode ser explicado por outro fenômeno social o de uma combinação do volume densi dade material e moral da sociedade O volume da sociedade é simplesmente o número dos indivíduos que per tencem a uma determinada sociedade Este volume não pode explicar isolada mente a diferenciação social Numa sociedade numerosa estabelecida num vasto território mas constituída pela justaposição de segmentos e pela aproxi mação de um grande número de tribos cada tribo conservando sua estrutura tradicional o volume em si mesmo não provocaria a diferenciação Para que o volume isto é o aumento do número dos indivíduos se tome uma causa da diferenciação é preciso acrescentar a densidade nos dois senti dos o material e o moral A densidade material é o número dos indivíduos em relação a uma superfície dada do solo A densidade moral é a intensidade das comunicações e trocas entre esses indivíduos Quanto mais intenso o relaciona mento entre os indivíduos maior a densidade A diferenciação social resulta da combinação dos fenômenos do volume e da densidade material e moral Para explicar esse mecanismo Durkheim invoca o conceito da luta pela vida que Darwin popularizou na segunda metade do século XIX Quanto mais numerosos os indivíduos que procuram viver em conjunto mais intensa a luta pela vida A diferenciação social é a solução pacífica da luta pela vida Em vez de alguns serem eliminados para que outros sobrevivam como ocorre no reino animal a diferenciação social permite a um número maior de indivíduos sobre viver diferenciandose Cada um deixa de estar em competição com todos poden do assim ter um papel e preencher uma função Deixa de ser necessário elimi nar a maioria dos indivíduos a partir do momento em que não sendo eles se melhantes entre si porém diferentes cada um colabora com uma contribuição que lhe é própria para a vida de todos2 Esta explicação está de acordo com o que Durkheim considera uma regra do método sociológico a explicação de um fenômeno social por outro fenômeno so cial e a explicação de um fenômeno global por outro fenômeno global Desde este primeiro trabalho importante o pensamento de Durkheim se organiza em torno de algumas idéias essenciais A diferenciação social fenômeno característico das sociedades modernas é a condição criadora da liberdade individual Só numa sociedade em que a consciência coletiva perdeu uma parte da sua rigidez o indivíduo pode ter uma certa autonomia de julgamento e de ação Nessa sociedade individualista o problema mais importante é manter o mínimo de consciência coletiva à falta da qual a solidariedade orgânica provo caria a desintegração social O indivíduo é a expressão da coletividade No sistema de solidariedade me cânica ele é intercambiável Numa sociedade arcaica não seria apropriado cha A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 297 málo de o mais insubstituível dos seres segundo a fórmula de Gide Mas mes mo quando se integra numa sociedade em que cada um pode e quer ser o mais in substituível dos seres o indivíduo ainda é a expressão da coletividade A estru tura desta impõe a cada um uma responsabilidade própria Mesmo na socieda de que permite a cada um ser o que é individualmente há uma parte maior do que acreditamos de consciência coletiva presente nas consciências individuais A sociedade de diferenciação orgânica não se poderia manter se fora ou acima do reino contratual não houvesse imperativos e interditos valores e objetos sagra dos coletivos que vinculassem as pessoas ao todo social O suicídio 1897 O livro que Durkheim escreveu sobre o problema do suicídio está estreita mente ligado ao estudo da divisão do trabalho De modo geral Durkheim apro va o fenômeno da divisão orgânica do trabalho que considera um desenvolvi mento normal e sem dúvida alguma feliz das sociedades humanas Considera uma coisa boa a diferenciação dos indivíduos e das profissões a regressão da autoridade da tradição o domínio crescente da razão o desenvolvimento da par te que foi deixada à iniciativa pessoal Contudo observa também que o homem não se sente necessariamente mais feliz com sua sorte nas sociedades moder nas e registra de passagem o aumento do número dos suicídios expressão e pro va de certos traços talvez patológicos da organização atual da vida coletiva A última parte do livro dedicada à divisão do trabalho inclui uma análise dessas características patológicas Durkheim fala já da anomia ausência ou de sintegração das normas sociais conceito que vai ter um papel predominante no estudo do suicídio Passa em revista então certos fenômenos as crises econô micas a inadaptação dos trabalhadores a suas ocupações a violência das rei vindicações dos indivíduos com relação à coletividade Todos esses fenômenos são patológicos Com efeito na medida em que as sociedades modernas se fundamentam na diferenciação tornase indispensável que o trabalho que cada um exerce corresponda a seus desejos e aptidões Além disso uma sociedade que propicia crescentemente o individualismo está obri gada pela sua própria natureza a respeitar a justiça As sociedades dominadas pela tradição atribuem a cada um um lugar fixado pelo nascimento ou pelos im perativos coletivos Nessas sociedades seria anormal que o indivíduo reivindi casse uma situação adaptada a seus gostos ou proporcional aos seus méritos Nas sociedades modernas porém o individualismo é o princípio fundamental Nelas os homens são e se sentem diferentes uns dos outros e cada um quer obter tudo aquilo a que julga ter direito O princípio individualista de justiça se toma o princípio coletivo indispensável da ordem atual As sociedades modernas só podem ser estáveis se respeitarem a justiça 298 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Mesmo nas sociedades baseadas na diferenciação individual subsiste o equi valente da consciência coletiva das sociedades em que impera a solidariedade mecânica isto é as crenças os valores comuns Se esses valores comuns se de bilitam se a esfera dessas crenças se reduz demasiadamente a sociedade fica ameaçada de desintegração O problema central das sociedades modernas como de todas as sociedades é portanto a relação entre os indivíduos e o grupo Este relacionamento é transfor mado pelo fato de que o homem se tomou por demais consciente de si mesmo para aceitar cegamente quaisquer imperativos sociais De outro lado porém tal individualismo em si mesmo desejável comporta perigos pois o indivíduo po de exigir da coletividade mais do que esta lhe pode dar É preciso portanto uma disciplina que só a sociedade pode impor Em De la division du travail social sobretudo no prefácio da segunda edi ção Durkheim alude ao que para ele constitui a solução do problema a orga nização de grupos profissionais que favoreçam a integração dos indivíduos na coletividade O estudo do suicídio trata de um aspecto patológico das sociedades moder nas e revela do modo mais marcante a relação entre o indivíduo e a coletivida de Durkheim quer mostrar até que ponto os indivíduos são determinados pela realidade coletiva Desse ponto de vista o fenômeno do suicídio tem excepcio nal interesse já que aparentemente nada pode ser mais individual do que o fato de um indivíduo destruir sua própria vida Se pudermos provar que esse fenômeno é determinado pela sociedade estará provada a partir do caso mais desfavorável a verdade da tese de Durkheim Quando o indivíduo se sente só e desesperado a ponto de se matar é ainda a sociedade que está presente na consciência do infeliz e o leva mais do que sua história individual a esse ato solitário O estudo durkheimiano do suicídio tem o rigor de uma dissertação acadê mica Começa por definir o fenômeno continua com uma refutação das inter pretações anteriores estabelece uma tipologia e com base nessa tipologia de senvolve uma teoria geral do fenômeno considerado Suicídio é todo caso de morte provocado direta ou indiretamente por um ato positivo ou negativo realizado pela própria vítima e que ela sabia que devia provocar esse resultado Le suicide ed de 1960 p 5 Ato positivo disparar um tiro de revólver na própria têmpora Ato negati vo não abandonar uma casa em chamas ou recusar a alimentação até a morte Uma greve de fome que leva até a morte é um exemplo de suicídio A expressão direta ou indiretamente nos leva a uma distinção compará vel à que foi feita entre o ato positivo e o negativo Um tiro de revólver acarre ta a morte diretamente não abandonar uma casa em chamas ou recusar ali A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 299 mentação pode provocar indiretamente ou a longo prazo o resultado almejado isto é a morte De acordo com esta definição o conceito de suicídio engloba não só os ca sos reconhecidos por todos mas também por exemplo o ato do capitão que prefere afundar seu navio a renderse o do samurai que se mata porque se con sidera desonrado o das mulheres indianas que acompanham seus maridos na morte Em outras palavras é preciso considerar também como suicídio os casos de morte voluntária envoltos em auréola de heroísmo e de glória e que à pri meira vista não somos tentados a englobar nos suicídios ditos comuns como os de amantes desesperados os de banqueiros arruinados de criminosos acossa dos descritos nos noticiários dos jornais As estatísticas nos mostram imediatamente que a taxa de suicídio isto é a freqüência dos suicídios em relação a uma população determinada é relativa mente constante Este fato é considerado essencial por Durkheim A taxa de suicídio é característica de uma sociedade global ou de uma região ou provín cia Ela não varia arbitrariamente mas em função de múltiplas circunstâncias A tarefa do sociólogo é estabelecer correlações entre as circunstâncias e as va riações da taxa de suicídio variações que são fenômenos sociais Convém de fato distinguir o suicídio fenômeno individual tal pessoa em tal conjuntura se matou da taxa de suicídio que é um fenômeno social e que Durkheim procura explicar Para a teoria o mais importante é a relação entre o fenômeno indivi dual suicídio e o fenômeno social taxa de suicídio De acordo com a definição do fenômeno Durkheim afasta as explicações de tipo psicológico Muitos médicos e psicólogos que estudaram suicídios indi viduais se sentem tentados a explicálos em termos psicológicos ou psicopato lógicos Dizem por exemplo que a maioria dos que se matam encontramse num estado patológico ao cometerem esse ato a que os predispunham a sua sen sibilidade ou o seu psiquismo A este tipo de explicação Durkheim opõe ime diatamente a argumentação que segue Admite que haja uma predisposição psicológica ao suicídio predisposição que se pode explicar em termos psicológicos ou psicopatológicos De fato os neuropatas têm maior probabilidade em determinadas circunstâncias de come ter o suicídio Contudo Durkheim afirma que a força que determina o suicídio não é psicológica mas social A discussão científica está centrada nesses dois termos predisposição psi cológica e determinação social Para demonstrar essa distinção Durkheim emprega o método clássico das variações concomitantes Estuda as variações da taxa de suicídio em diferentes populações e procura provar que não há correlação entre a freqüência dos esta dos psicopatológicos e a freqüência dos suicídios 300 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Considera por exemplo as diversas religiões e constata que a proporção de alienados entre os indivíduos de religião judaica é particularmente elevada por outro lado a freqüência dos suicídios entre esses indivíduos é muito baixa Esforçase também por demonstrar que não há uma correlação entre as dispo sições hereditárias e a taxa de suicídio A porcentagem dos suicídios aumenta com a idade o que é pouco compatível com a hipótese segundo a qual a causa eficiente do suicídio seria transmitida pela hereditariedade Procura refutar as sim uma interpretação que poderia ser sugerida pela repetição de casos de sui cídio numa mesma família Um escritor político francês do século passado PrévostParadol embaixa dor da França nos Estados Unidos cometeu suicídio em Washington poucos dias depois da sua chegada e da declaração da guerra de 1870 Cerca de trinta anos mais tarde seu filho também se suicidou em circunstâncias diferentes Esses exemplos de suicídios repetidos na mesma família levariam a acreditar que a predisposição para o suicídio se transmitisse hereditariamente Durkheim porém afasta de modo geral esta hipótese Afasta também nas suas análises preliminares a interpretação do suicídio como fenômeno de imitação Aproveita a oportunidade para acertar as contas com um sociólogo célebre do seu tempo com quem estava em desacordo a res peito de tudo Tratase de Gabriel Tarde que considerava a imitação o fenôme nochave da ordem social3 Para Durkheim sob o nome de imitação três fenô menos distintos são confundidos O primeiro é o que chamaríamos hoje de fusão das consciências que é o fato de que os mesmos sentimentos afetam um grande número de pessoas O exemplo típico é o da massa revolucionária a que JeanPaul Sartre se refere longamente em Crítica da razão dialética Na massa revolucionária os indiví duos tendem a perder a identidade da sua consciência cada um sente o que os outros sentem Os sentimentos que agitam os indivíduos são sentimentos co muns Os atos as crenças as paixões pertencem a cada um porque pertencem a todos Mas o suporte desse fenômeno psicossociológico é a própria coletivi dade e não um ou mais indivíduos O segundo fenômeno é a adaptação do indivíduo à coletividade de forma a se comportar como os outros sem haver contudo uma fusão de consciências Cada um se inclina diante dos imperativos sociais mais ou menos difusos o indivíduo prefere não se singularizar A moda é uma forma atenuada de impe rativo social Uma mulher de certo meio se sentiria humilhada por usar um ves tido diferente do que é considerado apropriado para uma determinada estação Neste caso não há propriamente imitação mas sujeição do indivíduo a uma regra coletiva A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 301 Finalmente só merece ser considerado imitação no sentido exato do ter mo um ato que tem como antecedente imediato a representação de ato seme lhante realizado anteriormente por outrem sem que entre a representação e a execução se intercale qualquer operação intelectual explícita ou implícita so bre as características intrínsecas do ato reproduzido Le suicide p 115 Para compreender este fenômeno basta pensar na tosse de contágio durante confe rência tediosa ou em todas as reações mais ou menos mecânicas que se obser vam às vezes nas reuniões muito numerosas Convém distinguir igualmente o contágio e a epidemia distinção que é tí pica do método de Durkheim O contágio é um fenômeno que podemos chamar de interindividual ou mesmo individual Alguém tosse como reação à tosse do vizinho No fim o número dos que tossem pode ser grande mas cada acesso de tosse é estritamente individual O fenômeno se propaga de um indivíduo para outro como uma pedra que ricocheteia sobre a água Já a epidemia que pode ser transmitida por contágio é um fenômeno coletivo cujo suporte é o conjun to da sociedade Esta distinção entre a sucessão de atos individuais e o fenôme no coletivo permite uma vez mais perceber a intenção essencial de Durkheim a determinação do social enquanto tal Em suma não se pode designar com o mesmo nome de imitação o pro cesso em virtude do qual numa reunião se elabora um sentimento coletivo do qual resulta nossa adesão às regras comuns ou tradicionais de comportamento e por fim o que determina que os carneiros de Panúrgio se lancem à água por que um deles fez isso Sentir em comum inclinarse diante da autoridade da opinião e repetir automaticamente o que os outros fazem são coisas distintas Ibid p 115 Depois dessas análises formais Durkheim refuta com a ajuda de estatísti cas a idéia de que a taxa de suicídio seria determinada essencialmente pela imitação Se os suicídios se devessem ao contágio seria possível seguilos num mapa a partir de um centro onde a taxa seria particularmente elevada para outras regiões Ora a análise geográfica dos suicídios não revela tal tendência Ao lado de regiões onde a taxa é elevada há outras onde é especialmente baixa A distribuição dessas taxas é irregular incompatível com a hipótese da imitação Pode haver contágio em alguns casos por exemplo às vesperas de uma derro ta alguns indivíduos desesperados se suicidam Mas esses fenômenos de contá gio não explicam nem a taxa de suicídio nem suas variações Depois de definir o suicídio e de afastar as explicações do fenômeno pela imitação e a psicopatologia resta a etapa principal da investigação o estabele cimento de uma tipologia Para isso Durkheim trabalha com os dados de suicídio que encontra isto é estatísticas incompletas e parciais que lidam com números reduzidos a taxa 302 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de suicídio oscila entre 100 e 300 por milhão de pessoas por ano Certos médi cos mais céticos sustentaram a tese de que o estudo das variações da taxa de suicídio praticamente não tem nenhum alcance devido ao pequeno número dos casos estudados e às possíveis inexatidões dessas estatísticas Durkheim constata que a taxa de suicídio varia em função de algumas cir cunstâncias que examina acredita que é possível determinar os tipos sociais do suicídio com base em determinadas correlações estatísticas Contudo de acor do com outra teoria seria possível estabelecer as variações dessa taxa em vir tude das circunstâncias sem se chegar porém à determinação de uma tipologia Os três tipos de suicídio que Durkheim se propõe a definir são o suicídio egoísta o suicídio altruísta e o suicídio anòmico O suicídio egoísta é analisado graças à correlação entre a taxa de suicídio e os contextos sociais integradores a religião e a família esta última conside rada sob o duplo aspecto de casamento e prole A taxa de suicídio varia com a idade isto é de modo geral aumenta com ela Varia também de acordo com o sexo é mais elevada entre os homens que en tre as mulheres Flutua com a religião e Durkheim baseandose em estatísti cas alemãs estabelece que os suicídios são mais freqüentes nas populações pro testantes do que nas católicas Compara a situação dos homens e mulheres ca sados com a dos celibatários e a dos viúvos e viúvas Os métodos estatísticos que utiliza são simples compara a freqüência dos suicídios entre os homens casados e solteiros da mesma idade de modo a identificar o que chama de coe ficiente de preservação que indica a diminuição da freqüência do suicídio nu ma idade determinada devido à situação familiar Estabelece também os coe ficientes de preservação ou ao contrário os coeficientes de agravamento para as mulheres celibatárias ou casadas para os viúvos e viúvas Em conclusão verifica que se há uma preservação dos indivíduos homens e mulheres devido ao casamento ela se deve a partir de uma certa idade menos ao estado civil do que à existência de filhos Com efeito depois de uma certa idade as mulheres casadas sem filhos não se beneficiam de um coeficiente de preserva ção elevado ao contrário seu coeficiente de agravamento aumenta Não é pois tanto o casamento que protege mas a família e os filhos A família sem filhos não é um meio integrador suficientemente forte Pode ser que as mulheres sem filhos sofram daquilo que os psicólogos de hoje chamam de frustração Assim os indivíduos deixados a si mesmos têm desejos infinitos Incapa zes de se satisfazerem só atingem um certo equilíbrio graças a uma força exte rior de ordem moral que lhes ensina a moderação e os ajuda a encontrar a paz Toda situação que tende a fazer aumentar a disparidade entre desejos e satisfa ção se traduz por um coeficiente de agravamento Este primeiro tipo social de suicídio identificado por meio do estudo esta tístico das correlações é definido pelo termo egoísmo Homens e mulheres são A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 303 mais inclinados ao suicídio quando pensam essencialmente em si mesmos quan do não estão integrados num grupo social quando os desejos que os animam não podem ser reduzidos a uma medida compatível com o destino humano pela autoridade do grupo e pela força de obrigações impostas por um meio estrito e vigoroso O segundo tipo de suicídio é o altruísta que no livro de Durkheim com porta dois exemplos principais O primeiro que se observa em muitas socieda des arcaicas é o da viúva indiana que aceita ser colocada na fogueira que deve queimar o corpo do marido morto Neste caso não se trata evidentemente de suicídio por excesso de individualismo mas ao contrário pelo completo desa parecimento do indivíduo no grupo O indivíduo se mata devido a imperativos sociais sem pensar sequer em fazer valer seu direito à vida Do mesmo modo o comandante de um navio que não quer sobreviver à perda da sua nave se suici da por altruísmo sacrificase a um imperativo social interiorizado obedecendo ao que o grupo lhe ordena a ponto de sufocar o próprio instinto de conservação Além destes casos de suicídio heróico ou religioso Durkheim descobre nas estatísticas um exemplo moderno de suicídio altruísta o aumento da freqüên cia de suicídios no exército As estatísticas utilizadas por Durkheim e acredito que as estatísticas atuais vão no mesmo sentido revelam de fato para os mili tares de uma certa idade suboficiais e oficiais um coeficiente de agravamento os militares se suicidam um pouco mais do que os civis da mesma idade e de iguais condições Esses suicídios não podem ser explicados como do tipo egoís ta pois por definição os militares tratase de profissionais e graduados per tencem a um grupo fortemente integrado Os soldados recrutados consideram sua situação transitória e combinam a obediência aos superiores com uma gran de liberdade na apreciação do sistema Os militares de carreira com toda a evi dência aderem ao sistema em que estão integrados porque salvo casos excep cionais não o teriam escolhido se não lhe dedicassem um mínimo de lealdade Pertencem a uma organização cujo princípio constitutivo é a disciplina Estão portanto no extremo oposto dos celibatários que rejeitam a disciplina da vida familiar e são incapazes de limitar seus desejos infinitos Há portanto dois tipos básicos na corrente suicidógena os que se afas tam demais do grupo social e os que estão demasiadamente presos ao grupo Os egoístas se suicidam mais facilmente que os outros mas também aqueles que têm excesso de altruísmo que se confundem a tal ponto com o grupo a que per tencem são incapazes de resistir aos golpes do destino Finalmente há um terceiro tipo de suicídio o anômico É o tipo que mais interessa a Durkheim porque é o mais característico da sociedade moderna Este é o suicídio que é revelado pela correlação estatística entre a freqüência do suicídio e afâsss do ciclo econômico 304 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO As estatísticas parecem demonstrar uma tendência ao aumento da freqüên cia dos suicídios nos períodos de crise econômica mas também o que é sur preendente e mais inesperado nos períodos de grande prosperidade Outro fenômeno curioso é que há uma tendência à redução da freqüência dos suicídios durante os grandes acontecimentos políticos Durante as guerras por exemplo o número de suicídios tende a diminuir Esses fenômenos o aumento de freqüência nas fases de agitação social e sua diminuição durante os grandes acontecimentos sugerem ao sociólogo a idéia do suicídio anômico Esta expressão foi usada por Durkheim em Da divisão do trabalho social e corresponde a um conceitochave da sua filosofia social O que lhe interessa acima de tudo chegando ao ponto de obcecálo é a crise da sociedade moderna definida pela desintegração social e pela debilidade dos laços que prendem o indivíduo ao grupo O suicídio anômico não é só aquele que aumenta durante as crises econô micas é também aquele cuja freqüência cresce paralelamente ao número de divórcios Durkheim faz um estudo longo e sutil da influência do divórcio so bre a freqüência dos suicídios entre homens e mulheres As estatísticas fornecem a este respeito resultados relativamente difíceis de interpretar O homem divorciado está mais ameaçado pelo suicídio a ex pressão é de Durkheim do que a mulher Para compreender o fenômeno é pre ciso analisar o que o homem e a mulher recebem de equilíbrio de satisfação e disciplina no casamento O homem encontra equilíbrio e disciplina no casa mento porém graças à tolerância dos costumes conserva uma certa liberdade A mulher Durkheim escrevia num período que já está encerrado vai achar no casamento mais disciplina do que liberdade Por outro lado o homem divorcia do volta à indisciplina à disparidade entre desejos e satisfação enquanto a mu lher divorciada se beneficia de uma liberdade adicional que compensa em parte a perda da proteção familiar Assim além dos dois tipos de suicídio já estudados o egoísta e o altruís ta há o suicídio anômico que atinge os indivíduos devido às condições de vida nas sociedades modernas em que a existência social não é regulamentada pelos costumes Os indivíduos estão em competição permanente uns com os outros esperam muito da vida fazem grandes exigências e se sentem sempre acuados pelo sofrimento resultante da desproporção entre suas aspirações e satisfações Esta atmosfera de inquietação é propícia ao desenvolvimento da corrente sui cidógena Durkheim procura demonstrar em seguida que os tipos sociais que pro põe correspondem aproximadamente a tipos psicológicos O suicídio egoísta se manifestará por um estado de apatia e pela ausência de vinculação com a vida o suicídio altruísta pela energia e a paixão o anô mico enfim pela irritação associada às numerosas situações de decepção ofe A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 305 recidas pela vida moderna por um desgosto resultante da tomada de consciên cia da desproporção entre as aspirações e as satisfações Uma vez traduzidos os tipos sociais em termos psicológicos resta explicar os resultados do estudo o que é essencial do ponto de vista da teoria sociológica A teoria de Durkheim pode ser resumida assim os suicídios são fenôme nos individuais cujas causas são contudo essencialmente sociais Há corren tes suicidógenas para usar a terminologia de Durkheim que atravessam a so ciedade originandose não no indivíduo mas na coletividade e que são a causa real e determinante dos suicídios Indubitavelmente estas correntes suicidóge nas não atingem indiscriminadamente qualquer indivíduo Quem se suicida provavelmente estava predisposto ao suicídio pela sua constituição psicológica por fraqueza nervosa ou distúrbios neuróticos Da mesma forma as circuns tâncias sociais que criam correntes suicidógenas criam também estas predispo sições psicológicas porque os indivíduos vivendo nas condições peculiares da sociedade moderna são mais sensíveis e por conseguinte mais vulneráveis As causas reais dos suicídios são em suma forças sociais que variam de so ciedade para sociedade de grupo para grupo e de religião para religião Ema nam do grupo e não dos indivíduos isoladamente Uma vez mais encontrase aqui o tema fundamental da sociologia de Durkheim a saber o fato de que em si as sociedades são de natureza diferente dos indivíduos Existem fenômenos e forças cujo suporte é a coletividade e não a soma dos indivíduos Estes em conjunto fazem surgir fenômenos ou forças que só podem ser explicados pela sua conjunção Há fenômenos sociais específicos que comandam os fenômenos individuais o exemplo mais notável ou mais eloqüente é justamente o das cor rentes sociais que levam os indivíduos à morte embora cada um deles pense que está obedecendo apenas a si mesmo quando na realidade é um joguete dessas forças coletivas Para extrair as conseqüências práticas do estudo do suicídio convém inda gar sobre o caráter normal ou patológico deste fenômeno Durkheim conside ra o crime um fenômeno socialmente normal o que não significa que os crimi nosos não sejam muitas vezes psiquicamente anormais nem que o crime não mereça ser condenado e punido Contudo sabemos que em todas as sociedades um certo número de crimes são cometidos assim se queremos referirnos ao que se passa regularmente o crime não é um fenômeno patológico Pelo mes mo motivo uma certa taxa de suicídio pode ser considerada normal Mas Durkheim acredita embora não o demonstre conclusivamente que o aumento da taxa de suicídio na sociedade moderna é patológico e que a atual taxa de suicídio revela certos aspectos patológicos da sociedade moderna De fato esta se caracteriza pela diferenciação social a solidariedade orgâ nica a densidade d a população a intensidade das comunicações a luta pela vida 306 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Todos esses fatos ligados à essência da sociedade moderna não devem ser con siderados em si mesmos anormais Contudo na parte final de Da divisão do trabalho social como no fim de Le suicide Durkheim indica que as sociedades modernas apresentam certos sintomas patológicos principalmente a insuficiente integração do indivíduo na coletivida de O tipo de suicídio que sob este ponto de vista interessa mais a Durkheim é o que ele chama de anômico É a causa do aumento da taxa de suicídio nos perío dos de crise econômica e também em períodos de prosperidade isto é em todos os casos em que se produz um exagero da atividade e uma ampliação das trocas e das rivalidades Estes fenômenos são inseparáveis das sociedades em que vive mos mas a partir de um certo limiar tomamse patológicos Há razão para crer que esse agravamento da taxa de suicídio devese não à natureza intrínseca do progresso mas às condições particulares em que ele se rea liza em nossos dias e nada nos assegura que essas condições sejam normais Com efeito não nos devemos deixar cegar pelo brilho do desenvolvimento das ciências das artes e da indústria ao qual assistimos Indubitavelmente ele se realiza no meio de uma efervescência doentia cujos efeitos dolorosos todos sentimos É muito possível portanto e até mesmo verossímil que o aumento do número de suicídios se origine num estado patológico que acompanha atualmente a marcha da civili zação embora não constitua uma condição necessária A rapidez com que o número de suicídios tem aumentado não autoriza nem mesmo outra hipótese Em menos de cinqüenta anos esse número triplicou quadru plicou ou quintuplicou de acordo com o país Por outro lado sabemos que esses suicídios estão associados ao que há de mais entranhado na constituição das socie dades cujo temperamento exprimem E o temperamento dos povos como o dos indivíduos reflete o estado do organismo no que ele tem de mais fundamental É preciso portanto que nossa organização social se tenha modificado profundamen te no curso deste século para ter determinado tal elevação da taxa de suicídio Ora é impossível que uma alteração ao mesmo tempo tão grave e tão rápida não seja mórbida pois uma sociedade não pode mudar de estrutura com tanta rapidez Ela só adquire outras características mediante uma série de modificações lentas e qua se imperceptíveis e ainda assim as transformações possíveis são limitadas Uma vez que o tipo social se fixa ele deixa de ser indefinidamente flexível atinge rapi damente um limite que não pode ser ultrapassado Portanto as modificações implicadas pela estatística dos suicídios atuais não podem ser normais Mesmo sem saber precisamente em que consistem podese afirmar antecipadamente que resul tam não de uma evolução regular mas de um abalo mórbido que pode ter desen raizado as instituições do passado sem contudo substituílas porque não é em pou cos anos que se pode refazer a obra dos séculos Ora se a causa é anormal o efei to não pode ser normal Conseqüentemente o que atesta a maré montante dos sui cídios não é o brilho da nossa civilização mas um estado de crise e de perturba ção que não se pode prolongar sem trazer perigo Ibidp 422 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 307 De qualquer maneira podemos então restaurar a integração do indivíduo na coletividade Durkheim passa em revista sucessivamente o grupo familiar o grupo religioso e o político em particular o Estado procurando demonstrar que nenhum desses três grupos proporciona o contexto social próximo do indivíduo que daria a este segurança embora sujeitandoo às exigências da solidariedade Nosso autor afasta a reintegração no grupo familiar por duas razões De um lado a taxa de suicídio anômico não aumenta menos entre os casados do que entre os solteiros o que indica que o grupo familiar não oferece proteção mais eficaz contra a corrente suicidógena Seria vão portanto contar com a família para que o indivíduo passasse a ter um ambiente mais próximo e capaz de lhe impor disciplina De outro lado as funções da família estão em declínio na so ciedade moderna Cada vez mais limitada seu papel econômico se reduz cada vez mais A família não pode portanto servir de intermediário entre o indivíduo e a coletividade O Estado ou o grupo político está muito afastado do indivíduo é exces sivamente abstrato e autoritário para proporcionar o contexto necessário à inte gração A religião enfim não pode fazer desaparecer a anomia eliminando as cau sas profundas do mal Durkheim espera uma disciplina do grupo que deve agir como órgão de reintegração É preciso que os indivíduos consintam em limitar seus desejos obedecendo aos imperativos que ao mesmo tempo determinam os objetivos que podem adotar e os meios que têm o direito de empregar Ora nas sociedades modernas as religiões apresentam cada vez mais um caráter abstra to e intelectual De certo modo tomamse mais puras contudo perdem em parte sua função de coerção social Incitam os indivíduos a transcender suas paixões e a viver de conformidade com a lei espiritual mas não conseguem mais pre cisar as obrigações ou as regras às quais os homens devem submeterse na vida profana Em suma não constituem escolas de disciplina no mesmo grau em que o foram no passado Ora o que Durkheim procura para remediar os males da sociedade moderna não são teorias ou idéias abstratas mas morais em ação O único grupo social que pode favorecer a integração dos indivíduos na coletividade é por conseguinte a profissão ou para empregar o termo usado por Durkheim a corporação No prefácio da segunda edição de Da divisão do trabalho social Durkheim se refere longamente às corporações como instituições que consideramos hoje anacrônicas mas que na realidade respondem às exigências da ordem atual Cha ma de corporações de modo geral as organizações profissionais que reunin do empregadores e empregados estariam suficientemente próximas do indiví duo para constituir escolas de disciplina seriam suficientemente superiores a cada um para se beneficiar de prestígio e autoridade Além disso as corpora ções responderiam ao caráter das sociedades modernas em que predomina a atividade econÔto 308 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Voltarei a falar sobre essa concepção das corporações versão do socialis mo de Durkheim que tendo sido rejeitada tanto pelos socialistas como pelos liberais foi condenada à sorte ingrata de mera doutrina acadêmica Mas nesta discussão sobre o caráter patológico das taxas atuais de suicídio e a busca de uma terapêutica surge uma idéia central da filosofia de Durkheim abandonado a si mesmo o homem é movido por desejos ilimitados quer sem pre mais do que tem e se decepciona sempre com as satisfações que obtém nu ma existência difícil Como determinar a quantidade de bemestar de conforto de luxo a que um ser humano pode aspirar legitimamente Não encontramos na constituição orgâ nica nem na constituição psicológica do homem nada que marque um limite a tais inclinações O funcionamento da vida individual não exige que os homens se dete nham aqui e não acolá prova disso é o fato de que desde o começo da história os homens não pararam de se desenvolver sempre obtiveram satisfações cada vez mais completas e nem por isso a saúde média foi se enfraquecendo Sobretudo como estabelecer a maneira como devem variar em virtude das condições das pro fissões da importância relativa dos serviços etc Não há uma sociedade em que os homens estejam igualmente satisfeitos nos diferentes graus da hierarquia social Contudo em seus traços essenciais a natureza humana é basicamente a mesma Portanto não é ela que poderá conferir às necessidades esse limite variável que lhes seria necessário Em conseqüência na medida em que dependem só do indi víduo elas são ilimitadas Em si mesma abstraindose as forças exteriores que a regulam nossa sensibilidade é um abismo sem fundo que nada pode preencher Le suicide p 273 O homem individual é um homem de desejos e por isso a primeira neces sidade da moral e da sociedade é a disciplina O homem precisa ser disciplina do por uma força superior autoritária e amável isto é digna de ser amada Esta força que ao mesmo tempo se impõe e atrai só pode ser a própria sociedade As discussões das teses de Durkheim sobre o suicídio tocaram diversos pon tos O primeiro que foi estudado em particular pelo doutor A Delmas tem a ver com o valor das estatísticas4 As estatísticas sobre o suicídio lidam inevita velmente com números reduzidos porque felizmente poucas pessoas se suici dam Por isso as correlações estatísticas são estabelecidas com base em diferen ças de taxa de suicídio relativamente pequenas Assim um médico que aceite a interpretação psicológica do suicídio poderá demonstrar que as variações da taxa de suicídio não são significativas na maioria dos casos devido aos erros que as estatísticas comportam Duas fontes de erro são incontestáveis a primeira é o fato de que os suicí dios quase sempre só são conhecidos pelas declarações dâs famílias Alguns são A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 309 conhecidos porque as próprias circunstâncias do ato desesperado os tomam públicos no entanto um bom número de suicídios são cometidos em condições tais que as autoridades só os registram mediante a declaração das famílias E a proporção dos suicídios nãoconfessados pode variar de acordo com o meio social a época e outros fatores A segunda fonte de erro tem a ver com a freqüência dos suicídios frustra dos ou das tentativas de suicídio Durkheim não chegou a estudar este proble ma que aliás só recentemente foi levado em consideração É na verdade muito complexo pois seria necessário um estudo psicossocial de cada caso a fim de saber se a intenção suicida era verdadeira ou não O segundo ponto de controvérsia está relacionado com a validade das cor relações estabelecidas por Durkheim Maurice Halbwachs dedicouse a uma análise aprofundada dessas correlações5 Para dar uma idéia simples deste gênero de discussão basta aludir à tese clássica de Durkheim os protestantes se suicidam mais freqüentemente do que os católicos porque a religião católica tem uma força integrativa superior à pro testante Essa tese se baseou em certas estatísticas alemãs em regiões de reli gião mista e parece convincente até o momento em que se pergunte se por aca so os católicos moram em zonas agrícolas e os protestantes em cidades Ora se esses dois grupos religiosos forem também populações que têm gênero de vida diferente a teoria do valor integrativo das religiões se toma duvidosa De modo geral o estabelecimento de correlações entre a taxa de suicídio e um fator como o religioso exige a demonstração de que não existem outros fa tores diferenciais nos casos comparados Ora raramente se chega a um resultado incontestável O fator religioso é difícil de isolar Populações próximas umas das outras e de diferentes religiões têm geralmente gêneros de vida e atividades pro fissionais semelhantes O terceiro ponto em discussão o mais interessante do ponto de vista teó rico é a relação entre a interpretação sociológica e a psicológica Os psicólo gos e os sociólogos estão de acordo sobre um fato a maioria dos que se suici dam têm constituição nervosa ou psíquica vulnerável embora não necessaria mente anormal situamse nos limites extremos da normalidade Em palavras mais simples muitos dos que se matam são de um modo ou de outro doentes nervosos do tipo ansioso ou ciclotímico O próprio Durkheim não tinha dificul dade em aceitar esta observação mas comentava que nem todos os neuropatas se suicidam afirmando que o caráter neuropático constitui apenas uma circuns tância favorável à ação da corrente suicidógena que escolhe suas vítimas Não é por haver tantos neuropatas num grupo social que nele ocorrem anual mente tantos suicídios A neuropatia faz apenas com que estes sucumbam mais do que aqueles Esta é a origem da grande diferença que separa o ponto de vista do 310 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO clínico e o do sociólogo O primeiro está sempre diante de casos particulares iso lados constata que muitas vezes a vítima tinha um caráter nervoso ou era um al coólatra e explica por um ou outro desses estados psicopáticos a ação realizada Tem razão num sentido se quem se matou foi aquela pessoa e não os seus vizinhos é porque freqüentemente foi por esse motivo Mas esse motivo não explica que de modo geral há pessoas que se matam e muito menos que numa sociedade um número definido de pessoas se matam em períodos de tempo determinados Le sui cide p 370 O equívoco em textos desse gênero provém da expressão corrente suici dógena conceito que parece sugerir que existe propriamente uma força social ou coletiva emanação de todo o grupo levando os indivíduos a se matar Ora nem os fatos individuais observados diretamente nem os fatos estatísticos nos obrigam a aceitar essa hipótese As taxas de suicídio podem ser explicadas pela porcentagem de nervosos ou de ansiosos numa sociedade e pela incitação ao suicídio que se exerce sobre eles Nem todos os ansiosos se matam e é possí vel conceber que a proporção dos que se suicidam varie de acordo com a situa ção profissional as circunstâncias políticas e o estado civil Em outras palavras nada nos obriga a considerar as correntes suicidógenas como realidade objetiva ou como causa determinante Os fatos estatísticos po dem resultar da ação conjugada de dados psicológicos ou psicopatológicos e das circunstâncias sociais Estas contribuem para o aumento do número dos dese quilibrados psíquicos e dentre estes do número dos que se matam O risco da interpretação ou da terminologia de Durkheim reside na substi tuição da interpretação positiva que combina sem dificuldade fatores indivi duais e coletivos por uma concretização mítica dos fatores sociais transfigu rados em força supraindividual novo Moloch a escolher suas vítimas entre os indivíduos As formas elementares da vida religiosa 1912 O terceiro grande livro de Durkheim As formas elementares da vida reli giosa é certamente o mais importante e profundo o mais original e também a meu ver aquele que revela mais claramente a inspiração do autor Seu objetivo é elaborar uma teoria geral da religião com base na análise das instituições religiosas mais simples e mais primitivas Esta fórmula já reve la uma das idéias fundamentais de Durkheim é legítimo e possível fundamentar uma teoria das religiões superiores no estudo das formas religiosas primitivas O totemismo revela a essência da religião Todas as conclusões extraídas por Durkheim do estudo do totemismo pressupõem que se possa apreender a essên cia de um fenômeno social observando suas formas mais elementares A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 311 Há uma outra razão pela qual o estudo do totemismo tem significação de cisiva no sistema de Durkheim Segundo este a ciência detém hoje nas nossas sociedades individualistas e racionalistas a autoridade intelectual e moral su prema É possível ir adiante da ciência e não permanecer atrás e recusar os seus ensinamentos Mas a sociedade que determina e favorece o desenvolvimento do individualismo e do racionalismo tem necessidade como toda sociedade de crenças comuns Ora ao que parece estas crenças não podem ser proporcionadas pela religião tradicional que não responde às exigências do espírito científico Há uma saída que parece simples a Durkheim e que não sei se ouso em pregar aqui esta palavra é milagrosa a própria ciência não revela que a reli gião não passa no fundo da transfiguração da sociedade Se através da história sob as formas de totem ou de Deus os homens nunca adoraram senão a reali dade coletiva transfigurada pela fé é possível sair deste impasse A ciência da religião revela a possibilidade de reconstituir as crenças necessárias ao consen so não porque seja suficiente para fazer surgir a fé coletiva mas porque deixa a esperança de que a sociedade do futuro ainda seja capaz de fabricar deuses uma vez que todos os deuses do passado não foram senão a transfiguração da pró pria sociedade Neste sentido As formas elementares da vida religiosa representa a solu ção dada por Durkheim à antítese entre ciência e religião Descobrindo a realida de profunda de todas as religiões a ciência não recria uma religião mas dá con fiança na capacidade que têm as sociedades de produzir em cada época os deu ses de que necessitam Os interesses religiosos não passam da forma simbóli ca de interesses sociais e morais Diria que As formas elementares da vida religiosa representa na obra de Durkheim o equivalente de Système de politique positive na obra de Auguste Comte Durkheim não descreve uma religião da sociedade como Comte des creveu pormenorizadamente uma religião da humanidade Chega mesmo a dizer de modo explícito que Comte se enganava ao afirmarque um indivíduo tinha condições de foijar uma religião sob encomenda Com efeito se a religião é uma criação coletiva seria contrário à teoria um sociólogo criar sozinho uma reli gião Contudo na medida em que Durkheim queria demonstrar que o objeto da religião era a transfiguração da sociedade sua indagação é comparável à de Au guste Comte quando este para fundar a religião do futuro afirmava que depois de matar os deuses transcendentes a humanidade amaria a si mesma ou seja àquilo que tinha de melhor As formas elementares da vida religiosa é um livro que pode ser estudado sob três pontos de vista porque reúne três modalidades de estudos comporta uma descrição e uma análise detalhada do sistema de clãs e do totemismo de certas tribos australianas com alusões a tribos da América contém uma teo ria da e s s ê n e dft fsligião baseada no estudo do totemismo australiano Dor 312 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO fim esboça uma interpretação sociológica das formas do pensamento humano isto é uma introdução à sociologia do conhecimento Destes três temas é o primeiro o estudo descritivo do sistema dos clãs e do totemismo que ocupa mais lugar Mas não vou me deter nele pois seria impos sível fazer um resumo da descrição Na verdade é o segundo tema a teoria geral das religiões baseada no estu do do totemismo que me interessa aqui O método de Durkheim é neste livro o mesmo das obras anteriores Começa definindo o fenômeno depois refuta as teorias diferentes das suas finalmente numa terceira etapa demonstra a natu reza essencialmente social das religiões Para Durkheim a essência da religião é a divisão do mundo em fenôme nos sagrados e profanos Não é a crença numa divindade transcendente há reli giões mesmo superiores sem Deus A maioria das escolas budistas por exem plo não professam a fé num deus pessoal e transcendente A religião também não pode ser definida pelas noções de mistério ou de sobrenatural que só podem ser tardias Só se concebe o sobrenatural por oposição ao natural e para ter uma idéia clara do natural é preciso pensar de maneira positiva e científica A noção de sobrenatural não pode preceder a idéia também tardia de uma ordem natural A categoria do religioso é constituída pela distinção bipartida do mundo entre o profano e o sagrado O sagrado se compõe de um conjunto de coisas de crenças e de ritos quando as coisas sagradas mantêm umas com as outras rela ções de coordenação e subordinação de modo a formar um sistema com certa unidade que não cabe em nenhum outro sistema do mesmo gênero o conjunto das crenças e dos ritos correspondentes constitui uma religião A religião pressupõe portanto o sagrado em seguida a organização das crenças relativas ao sagrado e por fim ritos ou práticas derivados das crenças de modo mais ou menos lógico Uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coi sas sagradas isto é separadas proibidas crenças e práticas que unem numa mes ma comunidade moral chamada igreja todos os que a elas aderem Les formes élémentaires de la vie religieuse p 65 A noção de igreja é acrescentada ao conceito de sagrado e ao sistema de crenças para diferenciar a religião da magia que não implica necessariamente o consenso dos fiéis reunidos em igreja Depois de definir a religião Durkheim numa segunda etapa da sua inves tigação afasta as interpretações anteriores à sua Estas interpretações são na primeira parte do livro o animismo e o naturismo que representam as principais concepções existentes da religião elementar Segundo o animismo a crença rej A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 313 ligiosa é a fé em espírito transfiguração da experiência que os homens têm da sua dupla natureza de corpo e alma Para o naturismo os homens adorariam as forças naturais transfiguradas A exposição e a refutação destas duas doutrinas são bastante longas mas há uma idéia subjacente a esta dupla crítica Quer se adote a interpretação animista ou a naturista terminase segundo Durkheim por dissolver o objeto considerado Se a religião consistisse em amar espíritos irreais ou forças naturais transfiguradas pelos homens ela corresponderia a uma alucinação coletiva Ora que se pode dizer de uma ciência cujo resultado mais imediato seria a dissolução da realidade do seu objeto Por outro lado Durkheim acredita poder explicar a realidade do fenômeno religioso Se o homem adora a sociedade transfigurada adora de fato uma rea lidade autêntica Que há de mais real do que a força da coletividade A religião é uma experiência por demais permanente e profunda para não corresponder a uma realidade autêntica Se esta realidade autêntica não é Deus é preciso que seja o que está situado por assim dizer imediatamente abaixo de Deus a saber a sociedade O objetivo da teoria da religião de Durkheim é fundamentar a realidade do objeto da fé sem admitir o conteúdo intelectual das religiões tradicionais con denadas pelo desenvolvimento do racionalismo científico este permite salvar o que parece destruir demonstrando que os homens nunca adoraram senão sua própria sociedade Para estudar as teorias animista e naturista Durkheim se refere às concep ções de Taylor e de Spencer que estavam em moda na época Essas concepções tinham como ponto de partida o fenômeno do sonho No sonho os homens se vêem onde sabem que não estão imaginam assim um duplo de si mesmos e do seu corpo sendolhes fácil conceber que no momento da morte este duplo se separa transformandose num espírito flutuante gênio bom ou mau Por outro lado os primitivos não distinguem bem as coisas animadas das inanimadas Por isso situam as almas dos mortos ou os espíritos flutuantes em determinadas rea lidades Nasce assim o culto dos gênios familiares e dos antepassados A partir desta dualidade corpoalma inspirada no sonho as religiões primitivas desen volvem a concepção de um grupo numeroso de espíritos benfazejos ou temí veis que se agitam em torno dos homens A refutação minuciosa de Durkheim analisa passo a passo os elementos des sa interpretação Por que dar tanta importância ao sonho Supondo que se con ceba um duplo de cada um de nós por que sacralizálo Por que atribuirlhe um valor fora do comum Segundo Durkheim o culto dos antepassados não é um culto primitivo e não é verdade que os cultos dos primitivos se dirigem espe cialmente aos mortos O culto dos mortos não é um fenômeno original De modo geral depois de afirmar que a essência da religião é o sagrado Durkheim não encontra muita dificuldade para marcar as deficiências da inter 314 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO pretação animista Com efeito esta pode a rigor explicar a criação de um mundo dos espíritos mas o mundo dos espíritos não é o mundo do sagrado O essen cial isto é o sagrado continua sem explicação Nem as forças naturais nem os espíritos ou as almas que flutuam à volta dos homens são sagrados por si mes mos Só a sociedade é uma realidade sagrada por si mesma Ela pertence à or dem da natureza mas a ultrapassa É ao mesmo tempo causa do fenômeno reli gioso e justificativa da distinção espontânea entre profano e sagrado Durkheim opõe assim a verdadeira ciência da religião que explica seu obje to às pseudociências que pretendem destruílo É inadmissível que sistemas de idéias como a religião que têm tido um pa pel tão importante na história em que em todos os tempos os povos vieram colher a energia de que precisavam para viver não passem de tecidos de ilusões Hoje concordase que o direito a moral e o próprio pensamento científico nasceram da religião estiveram longamente confundidos com ela continuam penetrados do seu espírito De que modo uma fantasmagoria vã poderia ter modelado tão fortemen te de modo tão durável as consciências humanas Certamente deve ser considera do como um princípio pelas ciências das religiões que a religião não exprime nada que não exista na natureza pois todas as ciências se preocupam com os fenôme nos naturais A questão é saber a que reino natural pertencem essas realidades e o que fez com que os homens as representassem sob esta forma singular própria ao pensa mento religioso Contudo para que se possa enunciar tal pergunta é preciso co meçar pela admissão de que o que assim se representa é uma realidade Quando os filósofos do século XVIII consideravam a religião como um enor me erro imaginado pelos padres podiam pelo menos explicar sua persistência pelo interesse da casta sacerdotal em enganar o povo Mas se os próprios povos fo ram os artesãos desses sistemas de idéias erradas ao mesmo tempo que eles mes mos é que eram enganados como explicar que esse engodo extraordinário se te nha perpetuado em toda a seqüência da história Que dizer de uma ciência cuja descoberta principal levaria ao desaparecimen to do seu objeto Les formes élémentaires de la vie religieuse p 98 Uma bela frase Acredito porém que um nãosociólogo ou um sociólogo que não pertencesse à escola de Durkheim seria tentado a responder Será que uma ciência da religião segundo a qual os homens adoram a sociedade salva guarda seu objeto Como bom cientista Durkheim considera que a ciência das religiões postula em princípio a irrealidade do transcendente e do sobrenatu ral Contudo podese voltar a encontrar a realidade da religião depois de eli minar o que tem de transcendental Para Durkheim e esta idéia tem uma grande importância no seu pensa mento o totemismo é a religião mais simples Uma tal afirmativa implica uma A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 315 representação evolucionista da história da religião Para um pensador não evo lucionista o totemismo seria uma simples religião dentre muitas Se Durkheim afirma que o totemismo é a religião mais simples e elementar admite implici tamente que há um processo de desenvolvimento da religião a partir de uma origem única Além disso para apreender a essência da religião no caso particular do totemismo é preciso subscrever a idéia de que uma experiência bem escolhida revela a essência de um fenômeno comum a todas as sociedades A teoria da re ligião de Durkheim não foi elaborada a partir do estudo de um grande número de fenômenos religiosos A essência do fato religioso é apreendida em um caso particular supostamente revelador do que é essencial em todos os fenômenos do mesmo gênero Durkheim analisa essa religião simples que é o totemismo utilizando as noções de clã e de totem O clã é um grupo de parentesco não constituído por laços de sangue É um grupo talvez o mais simples de todos que exprime sua identidade tomando como referência uma planta ou animal A transmissão do totem do clã se faz nas tribos australianas quase sempre pelo lado materno em bora este processo não tenha a regularidade de uma lei absoluta Ao lado dos to tens de clã existem totens individuais e totens de grupos mais desenvolvidos como as fratrias e as classes matrimoniais6 Nas tribos australianas estudadas por Durkheim cada totem tem seu emble ma e seu brasão Em quase todos os clãs encontramos objetos pedaços de ma deira ou de pedra polida que representam figuradamente o totem e participam do seu caráter sagrado Não é difícil compreender o fenômeno Nas sociedades modernas a bandeira pode ser considerada como o equivalente do churinga australiano Para uma coletividade ela participa do caráter sagrado atribuído à pá tria sua profanação tem relação com certos fenômenos analisados por Durkheim Os objetos totêmicos que trazem o emblema do totem provocam compor tamentos típicos da ordem religiosa isto é práticas de abstenção ou ao contrá rio práticas positivas Os membros do clã precisam absterse de comer ou de tocar o totem bem como os objetos que participam do seu caráter sagrado ou então ao contrário precisam manifestar uma forma explícita de respeito Constituise assim nas sociedades australianas um universo de coisas sa gradas que abrange em primeiro lugar as plantas ou animais que são os próprios totens em seguida os objetos que os representam Eventualmente o sagrado se comunica aos próprios indivíduos Em última análise o conjunto da realidade está dividido em duas categorias fundamentais as coisas profanas a respeito das quais as pessoas se comportam de modo econômico a atividade econômica é o protótipo da atividade profana de outra parte o universo das coisas sagra das plantas animais e suas representações indivíduos que através do clã par ticipam das coisas sagradas universo que se organiza de modo mais ou menos sistemático íí 316 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Para explicar o totemismo Durkheim como de hábito começa por elimi nar as interpretações que o derivam de uma religião mais primitiva Afasta a interpretação segundo a qual o totemismo se teria desenvolvido a partir do culto dos antepassados ou aquela que vê no culto dos animais o fenômeno primiti vo Rejeita a idéia de que o totemismo individual seria anterior ao totemismo clânico e a que vê no totemismo local atribuição a um local determinado do totem o fenômeno primeiro Para ele o fenômeno original histórica e logica mente é o totemismo do clã Esta tese é essencial pois demonstra a prioridade ou anterioridade do culto que os indivíduos dirigem à própria sociedade A ori gem primordial do totemismo é o reconhecimento do sagrado E o sagrado é uma força derivada da coletividade e superior a todos os indivíduos Alguns textos nos farão compreender a teoria melhor do que quaisquer co mentários O totemismo não é a religião de determinados animais de determinados homens ou de certas imagens mas uma espécie de força anônima e impessoal que encontramos em cada um destes seres sem que se confunda com nenhum deles Ninguém a possui inteiramente e todos dela participam É de tal forma indepen dente dos sujeitos particulares em que se manifesta que os precede e sobrevive a eles Os indivíduos morrem as gerações passam e são substituídas por outras Mas esta força permanece atual viva e semelhante a si mesma Anima a geração pre sente como animou a de ontem e como dará vida à de amanhã Se tomamos o ter mo num sentido mais amplo podemos dizer que é o deus adorado por cada culto totêmico mas é um deus impessoal sem nome sem história imanente ao mundo difuso numa pluralidade inumerável de coisas Les formes élémentaires de la vie religieuse p 269 Este belo texto que poderia ser aplicado a qualquer forma de religião explicita de maneira marcante o tema durkheimiano todas as crenças ou práti cas totêmicas são semelhantes em sua essência a qualquer crença ou prática religiosa Os australianos reconhecem como exterior ao mundo das coisas profana uma força anônima impessoal que se encarna indiferentemente em uma planta em um animal ou na representação de uma planta ou de um animal É esta força impessoal e anônima imanente e transcendente ao mesmo tempo que atrai a crença e o culto Seria muito fácil retomar essas expressões e aplicálas a uma religião superior Mas aqui se trata do totemismo cuja interpretação é obtida ao se partir da prioridade do totemismo do clã para que haja o sagrado é preciso que os homens façam a diferença entre o que é profano e cotidiano de uma parte o que é diferente por natureza e portanto sagrado de outra Esta distinção aflo ra à consciência dos primitivos porque eles têm enquanto participantes de uma coletividade o sentimento difuso de que alguma coisa é superior à sua própriii Á GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 317 individualidade e de que esta coisa é a força da sociedade anterior a cada um dos indivíduos que sobrevive a eles e à qual sem saber eles rendem um culto Encontramos entre os povos melanesianos sob o nome de mana uma noção que é o equivalente exato do wakan dos Sioux e do orenda iroquês Eis a defini ção dada por Codrington Os melanesianos crêem na existência de uma força ab solutamente distinta de toda força material que age de múltiplas maneiras seja para o bem seja para o mal e que o homem tem o maior interesse em ter ao alcan ce da mão e dominar É o mana Creio compreender o sentido que esta palavra tem para os indígenas É uma força uma influência de ordem imaterial e num certo sentido sobrenatural mas é pela força física que ela se manifesta ou também por toda espécie de poder e superioridade que possuímos O mana não se fixa sobre um objeto determinado ele pode ser levado sobre qualquer tipo de coisa Toda a reli gião do melanesiano consiste em adquirir o mana seja em proveito próprio seja em proveito de outrem Não se trata pois da própria noção de força anônima e difusa que identificávamos havia pouco como o germe do totemismo australiano Les for mes èlèmentaires de la vie religieuse p 277 Nesse texto o conceito central de interpretação da religião é o de uma for ça anônima e difusa O exemplo é tirado desta vez das sociedades melanesianas Mas o próprio encontro dessas análises aplicadas a diferentes sociedades con firma para Durkheim a teoria segundo a qual a origem da religião reside na dis tinção entre profano e sagrado e segundo a qual a força anônima difusa supe rior aos indivíduos e próxima deles é na verdade o objeto do culto Mas por que a sociedade se torna o objeto da crença e do culto Durkheim responde que a sociedade tem em si mesma algo de sagrado De modo geral não há dúvida de que a sociedade tem tudo o que é preciso para despertar nos espíritos a sensação do divino exclusivamente pela ação que exerce sobre eles ela é para seus membros o que é uma divindade para os fiéis De fato uma divindade é antes de mais nada um ser representado pelo homem sob certos aspectos como superior a si mesmo e do qual ele crê depender Tratese de uma personalidade consciente como Zeus ou Jeová ou de forças abstratas como as que estão em jogo no totemismo o fiel se crê sempre obrigado a certas manei ras de agir que lhe são impostas pela natureza do princípio sagrado com o qual se sente em comunhão Ora a sociedade provoca também em nós a sensação de uma perpétua dependência Como tem uma natureza que lhe é própria diferente da nos sa natureza de indivíduos persegue fins que também lhe são particulares porém como só os pode atingir por meio de nós exige imperiosamente nossa participa ção Exige que esquecendo nossos próprios interesses sejamos seus servidores impondonos todos os tipos de privações trabalhos e sacrifícios sem os quais a vi da social se tomaria impossível É assim que somos obrigados a cada momento a nos submeter a regras de conduta e de pensamento que nem fizemos nem quise 318 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mos e a normas de pensamento que nem formulamos nem pretendemos e que às vezes são mesmo contrárias a nossos instintos e inclinações mais fundamentais Todavia se a sociedade não obtivesse de nós esses sacrifícios e concessões por uma imposição material ela só poderia despertar em nós a idéia de uma força física a que nos faz ceder por necessidade não a de uma potência moral como as que as religiões adoram Na realidade porém o império que ela exerce sobre as consciências está muito menos associado à supremacia física que é seu privilégio do que à autoridade moral de que está investida Aceitamos suas ordens não ape nas porque ela está armada de modo a poder triunfar sobre nossas resistências mas antes de mais nada porque ela é objeto de um respeito verdadeiro Les formes élémentaires de la vie religieuse p 295 fA sociedade desperta em nós o sentimento do divinoÉ ao mesmo tempo um preceito que se impõe e uma realidade qualitativamente superior aos indi víduos que provoca neles o respeito o devotamento e a adoração A sociedade favorece também o surgimento de crenças porque os indiví duos vivem em comunhão uns com os outros e na efervescência da festa ad quirem a capacidade de criar o divino Há dois textos curiosos que a este propósito são característicos No primeiro Durkheim descreve as cenas de exaltação que vivem os australianos de sociedades primitivas no outro alude à Revolução Francesa possível criadora de religião Eis o texto sobre os australianos Já ao cair da noite aconteciam sob a luz das tochas todos os tipos de pro cissões de danças de cânticos crescia também a efervescência geral Num dado momento doze assistentes pegaram cada um uma espécie de grande tocha flame jante e um deles segurando a sua como se fosse uma baioneta investiu contra um grupo de indígenas Os golpes eram aparados com bastões e lanças Formouse uma confusão generalizada Os homens saltavam davam gritos selvagens as tochas brilhavam crepitavam ao atingir as cabeças e os corpos lançando centelhas em to das as direções A fumaça as tochas em chamas a chuva de faíscas essa massa de homens que dançavam e gritavam tudo isso dizem Spencer e Gillen os obser vadores das sociedades australianas estudadas por Durkheim formava uma cena cuja selvageria é impossível descrever com palavras Podese conceber facilmente que chegando a esse estado de exaltação o ho mem não se reconheça mais Sentindose dominado arrastado por uma espécie de poder exterior que o faz pensar e agir de maneira diferente do tempo normal ele na turalmente tem a impressão de não ser mais o mesmo Sentese transformado num novo ser seus adornos os tipos de máscaras com que cobre o rosto representa materialmente essa transformação interior ainda mais porque não contribuem para determinála E como no mesmo instante todos os seus companheiros se sentetO transfigurados do mesmo modo traduzindo seus sentimentos por gritos gestos 4 atitudes tudo se passa como se ele tivesse se transportado realmente para um mun A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 319 do especial muito diferente do cotidiano para um ambiente povoado de forças de excepcional intensidade que o invadem e transformam Experiências como estas sobretudo quando repetidas diariamente durante semanas não poderiam deixar de darlhes a convicção de que há realmente dois mundos heterogêneos e incompará veis Um é aquele onde ele arrasta languidamente sua vida cotidiana no outro ao contrário ele não pode penetrar sem se pôr imediatamente em relação com os poderes extraordinários que o galvanizam até o frenesi O primeiro é o mundo pro fano o segundo o das coisas sagradas Les formes élémentaires de la vie religieu se pp 311313 Esse texto me parece a expressão mais categórica da divisão de Durkheim Imaginemos uma multidão participando de uma cerimônia que é ao mesmo tempo festa e culto indivíduos que se aproximam uns dos outros por práticas comuns por comportamentos semelhantes que dançam e gritam A cerimônia atividade coletiva arrasta os indivíduos para fora de si mesmos faz com que participem da força do grupo dálhes o sentimento de algo que não tem medi da comum com a vida cotidiana que se arrasta languidamente Essa coisa ex traordinária ao mesmo tempo imanente e transcendente é precisamente a força coletiva algo de sagrado Esses fenômenos de efervescência são um bom exem plo do processo psicossocial graças ao qual nascem as religiões Durkheim alude também ao culto revolucionário Na época da Revolução Francesa as pessoas eram dominadas por uma forma de entusiasmo religioso As palavras nação liberdade revolução estavam carregadas de valor sagrado com parável ao do churinga dos australianos Esta aptidão da sociedade para se transformar em divindade ou para criar deuses nunca foi mais visível do que nos primeiros anos da Revolução Com efei to naquela época sob a influência do entusiasmo geral coisas puramente laicas por natureza foram transformadas pela opinião pública em coisas sagradas a Pátria a Liberdade a Razão Uma religião tendia a se estabelecer por si mesma com seu dogma seus símbolos seus altares e suas festas O culto da Razão e do Ser Su premo procurou dar satisfação oficial a estas aspirações espontâneas É bem ver dade que esta renovação religiosa teve duração efêmera O entusiasmo patriótico que a princípio transportava as massas se enfraquecia por si mesmo Desaparecendo a causa o efeito não se podia manter Contudo embora a experiência tenha sido breve guarda todo seu interesse sociológico A verdade é que num caso determi nado viuse a sociedade e suas idéias essenciais se transformarem diretamente e sem transfiguração alguma no objeto de um verdadeiro culto Pp 305306 Outras reviravoltas ocorrerão chegará o momento em que as sociedades modernas serão outra vez possuídas pelo delírio sagrado e deste nascerão no vas religiões A lembrança das cerimônias hitleristas em Nuremberg incitanos a acrescentar iirffeluuiifiute 320 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Bergson termina Les deux sources de la morale et de la religion com a frase O universo é uma máquina de fabricar deuses Durkheim teria dito as sociedades são máquinas de fabricar deuses Mas para que este esforço de cria ção tenha êxito é preciso que os indivíduos escapem da vida cotidiana saiam de si mesmos sejam possuídos pelo fervor de que a exaltação da vida coletiva é causa e expressão7 A interpretação sociológica da religião assume assim em Durkheim duas formas A primeira acentua a idéia de que no totemismo os homens adoram sem que o saibam a sociedade ou ainda de que o sagrado está vinculado em primeiro lugar à força coletiva e impessoal que é uma representação da própria sociedade De acordo com a outra interpretação as sociedades são levadas a criar deuses ou religiões quando entram num estado de exaltação que resulta da in tensificação extrema da própria vida coletiva Nas tribos australianas esta exal tação ocorre durante cerimônias que podemos ainda hoje observar Durkheim sugere nas sociedades modernas sem enunciar uma teoria rigorosa que isto acontece por ocasião das crises políticas e sociais A partir destas idéias fundamentais Durkheim desenvolve uma interpreta ção das noções de alma de espírito de deus esforçandose por seguir a elabo ração intelectual das representações religiosas A religião implica um conjunto de crenças as quais se manifestam por palavras isto é assumem a forma de um pensamento cuja sistematização é levada a atingir maior ou menor grau Durkheim procura investigar até onde vai a sistematização totêmica Quer demonstrar ao mesmo tempo os limites da sistematização intelectual do totemismo e a possi bilidade da passagem do universo totêmico para o das religiões mais comple xas e tardias Além disso Durkheim põe em evidência a importância de dois tipos de fenômenos sociais os símbolos e os ritos Muitas das condutas sociais se dirigem não para as coisas em si mesmas mas para seus símbolos No totemismo as proi bições não se aplicam só aos animais e plantas totêmicas mas também aos obje tos que os representam Do mesmo modo na atualidade nosso comportamento social se orienta cotidianamente não só para as coisas mas para os símbolos des sas coisas Quero aludir à bandeira símbolo da pátria A chama sob o Arco do Triunfo é outro símbolo As manifestações públicas pró ou contra determinada política são também atos dirigidos a símbolos tanto quanto a coisas Durkheim fez uma teoria elaborada dos ritos dos quais examina os dife rentes tipos e funções gerais Distingue três tipos de ritos os negativos os posi tivos e os ritos de expiação Os negativos são essencialmente as proibições interdição de comer de tocar com as mãos que se desenvolvem no sentido de todas as práticas religiosas de ascetismo os positivos são atos de co m unhão que visam por exemplo a promover a fecundidade As práticas de refeiçõeí rituais figuram entre os ritos positivos Durkheim estada também os ritos A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO imitação miméticos ou representativos que tendem a imitar as coisas que se desejam provocar Todos esses ritos têm uma função social importante seu ob jetivo é manter a comunidade acentuar o sentido de participação num grupo revigorar a crença e a fé Uma religião só vive através das práticas símbolos de suas crenças e formas de renoválas Finalmente Durkheim extrai do estudo do totemismo uma teoria sociológica do conhecimento De fato não se limita a procurar compreender as crenças e prá ticas das tribos australianas tenta compreender também as maneiras de pensar que estão associadas às crenças religiosas A religião não é apenas o núcleo primitivo do qual saíram por diferenciação regras morais e regras religiosas no sentido escrito é também a origem primitiva do pensamento científico Essa teoria sociológica do conhecimento contém a meu ver três proposições 1 As formas primitivas de classificação estão ligadas às imagens religio sas do universo retiradas das representações que as sociedades fazem de si mesmas e da dualidade do mundo profano e religioso ou sagrado Durkheim dá alguns exemplos É muito provável que jamais tivéssemos pensado em reunir os seres do uni verso em grupos homogêneos os gêneros se não tivéssemos sob os olhos o exem plo das sociedades humanas se não tivéssemos começado por fazer das próprias coisas membros da sociedade dos homens de tal modo que grupos humanos e grupos lógicos foram inicialmente confundidos De outro lado uma classificação é um sistema em que as partes estão dispostas de acordo com a ordem hierárqui ca Há elementos dominantes e outros que estão subordinados aos primeiros As espécies e suas propriedades distintivas dependem dos gêneros e dos atributos que os definem Ou então as diferentes espécies de um mesmo gênero são concebidas como estando situadas todas no mesmo nível Les formes élémentaires de la vie religieuse p 210 De um modo geral o tema de Durkheim é o seguinte classificamos os se res do universo em grupos chamados gêneros porque temos o exemplo das sociedades humanas Estas são tipos de agrupamentos lógicos percebidos ime diatamente pelos indivíduos Ampliamos às coisas da natureza a prática do agru pamento porque concebemos o mundo como uma imagem da sociedade As classificações os elementos dominantes os elementos subordinados são elaborados como imitação da hierarquia que existe na sociedade Necessária para a classificação lógica dos gêneros e das espécies a idéia da hierarquia só pode de fato ser extraída da própria sociedade Nem o espetáculo da natureza física nem o mecanismo das associações mentais poderiam nos dar essa idéia A hierarquia e exclusivamente uma coisa social Só na sociedade existem supe riores inferiores eigugts Em conseqüência ainda que os fatos não o demons 322 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO trassem cabalmente bastaria a análise dessas noções para revelar sua origem Foi à sociedade que as tomamos emprestadas para projetálas depois na nossa concepção do mundo A sociedade forneceu a tela sobre a qual trabalhou o pen samento lógico Ibid p 211 2 Durkheim afirma que uma idéia como a da causalidade provém da so ciedade e só dela pode provir A experiência da vida coletiva faz nascer a idéia de força É a sociedade que dá aos homens a concepção de uma força superior à dos indivíduos 3 Por fim Durkheim se esforça por demonstrar que a teoria sociológica do conhecimento tal como ele a esboça fornece o meio para superar a oposi ção entre o empirismo e o apriorismo esta célebre antítese da filosofia ensi nada pelos professores lição que ele aprendeu no curso de filosofia do colégio muito parecido talvez com o que ainda é ministrado hoje em dia O empirismo é a doutrina segundo a qual as categorias e de modo geral os conceitos resultam diretamente da experiência sensível para o apriorismo entretanto os conceitos ou categorias são dados do espírito humano Ora Durkheim afirma que o empirismo é falso porque não pode explicar como os conceitos ou categorias saem dos dados sensíveis e o apriorismo é falso por que não explica nada uma vez que ele coloca no espírito humano como um dado irredutível e primeiro aquilo que seria preciso explicar A síntese vai re sultar da intervenção da sociedade O apriorismo viu bem que as sensações não podem levar a conceitos ou ca tegorias e que há no espírito do homem mais do que dados sensíveis Mas neiB o apriorismo nem o empirismo perceberam que esta coisa que é mais que os dados sensíveis deve ter uma origem e comportar uma explicação Ora é a vida coletiva que permite justificar a existência dos conceitos e das categorias Oà conceitos são representações impessoais porque são representações coletivas O pensamento coletivo é diferente por natureza do pensamento individual os conceitos são representações que se impõem aos indivíduos porque são re presentações coletivas Além disso enquanto representações coletivas os coni ceitos apresentam um caráter imediato de generalidade De fato as sociedade não se interessam por detalhes e singularidades A sociedade é um mecanismo pelo qual as idéias têm acesso à generalidade e encontram ao mesmo tempo a autoridade característica dos conceitos ou categorias Os conceitos exprimem a maneira pela qual as sociedades se representam as coisas Les formes éle mentaires de la vie religieuse p 626 A ciência tem autoridade sobre nós porque a sociedade em que vivemos assim o quer É preciso que os conceitos mesmo quando construídos de acor do com todas as regras científicas baseiem sua autoridade unicamente no seu valor objetivo Não basta que sejam verdadeiros para que sejam aceitos Se nã4 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 323 se harmonizam com as outras crenças as outras opiniões em uma palavra com o conjunto das representações coletivas serão negados é como se não existis sem Se hoje basta de modo geral que tenham o selo de aprovação da ciência para merecer um crédito privilegiado é porque temos fé na ciência Mas essa fé não difere essencialmente da fé religiosa O valor que atribuímos à ciência depende em suma da idéia que temos coletivamente da sua natureza e do pa pel que deve exercer na vida isto é ela exprime um estado de opinião Com efeito tudo na vida social inclusive a ciência repousa sobre a opinião Indubi tavelmente podese tomar a opinião como objeto de estudo fazendo dela uma ciência nisto consiste principalmente a sociologia Mas a ciência da opinião não faz a opinião Ela só pode esclarecêla tornála mais consciente de si Des te modo é verdade ela pode levála a uma mudança mas a ciência continua a depender da opinião no momento em que parece transformála em lei pois é da opinião que extrai a força necessária para agir sobre a opinião Pp 625626 Assim todas as demonstrações seriam ineficazes se numa certa sociedade desaparecesse a fé na ciência Esta tese é ao mesmo tempo evidente e absurda De um lado é evidente que as demonstrações já não seriam convincentes no dia em que as pessoas deixassem de acreditar no seu valor contudo as proposições continuariam a ser verdadeiras mesmo que os homens decidissem afirmar que o branco é preto ou que o preto é branco Tratandose do fato psicológico da cren ça Durkheim evidentemente tem razão mas se se trata do fato lógico ou cien tífico da verdade creio que ele está de modo igualmente evidente equivocado No curso deste estudo fiz muitas citações porque desconfiava de mim mes mo Tenho de fato uma certa dificuldade em penetrar a maneira de pensar de Durkheim provavelmente devido à falta de simpatia necessária à compreensão Durkheim nos diz que a sociedade é ao mesmo tempo real e ideal e que é essencialmente criadora do ideal Ora se considero a sociedade como uma coleção de indivíduos por exemplo o clã australiano porque a sociedade enquanto realidade que pode ser percebida pelos sentidos se compõe de indi víduos e dos objetos que estes utilizam constato indubitavelmente que esta sociedade uma realidade natural pode de fato favorecer o surgimento de cren ças É difícil imaginar as práticas religiosas de indivíduos solitários Mais ainda todos os fenômenos humanos têm uma dimensão social e a religião qualquer que seja não pode ser concebida fora desses grupos nos quais nas ceu ou das comunidades que chamamos igrejas Mas se dissermos que a sociedade em si mesma não é só real mas ideal e que na medida em que os indivíduos a adoram eles adoram uma realidade transcendente então passo a ter dificuldade em acompanhar o raciocínio pois se a religião consiste em amar uma sociedade concreta sensível enquanto tal este amor me parece idólatra nesta hipótese a religião é uma representação alucinatória exatamente do mes mo grau que interpretação animista ou a naturista 324 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Se a sociedade à qual se dirige o culto religioso é a sociedade concreta perceptível sensorialmente composta de indivíduos e tão imperfeita quanto estes os que a adoram são vítimas de alucinação exatamente como se adoras sem plantas animais espíritos ou almas Se a sociedade é considerada como realidade natural Durkheim não consegue explicar o objeto da religião Mas se a sociedade considerada por Durkheim não é a sociedade real mas uma socie dade diferente da que podemos observar neste caso saímos do totemismo para ingressar numa espécie de religião da humanidade no sentido de Auguste Comte A sociedade a que se dirige a adoração religiosa não é uma realidade concreta mas uma realidade ideal que representa o que há de ideal imperfeitamente rea lizado na sociedade real Neste caso não é a sociedade que explica a noção do sagrado é a noção de sagrado dada ao espírito humano que transfigura a so ciedade como pode transfigurar qualquer outra realidade Durkheim afirma que a sociedade cria a religião quando está em eferves cência Tratase simplesmente de uma circunstância concreta Os indivíduos se encontram num estado psíquico tal que sentem o efeito de forças impessoais ima nentes e transcendentais esta interpretação da religião se baseia numa explica ção causai segundo a qual a efervescência social é favorável ao surgimento da religião Nada sobra da idéia de que a interpretação sociológica da religião per mite salvar seu objeto demonstrando que o homem adora o que efetivamente merece ser adorado E cometemos um erro ao falar da sociedade no singular pois segundo o próprio Durkheim o que existe são sociedades Ora se o cultó se dirige às sociedades só pode haver religiões tribais ou nacionais Neste caso a essência da religião consistiria em inspirar aos homens uma vinculação faná tica a grupos parciais consagrando a ligação de cada um deles com a coletivi dade e ao mesmo tempo sua hostilidade com relação aos outros Pareceme inconcebível definir a essência da religião como a adoração do grupo pelo indivíduo pois pelo menos para mim a adoração da ordem social é precisamente a essência da impiedade Afirmar que os sentimentos religioso têm por objeto a sociedade transfigurada não é explicar uma experiência huma na que a sociologia deseja compreender é degradála As regras do método sociológico No curso da análise dos temas e das idéias fundamentais dos três grandes livros de Durkheim não podemos deixar de notar a semelhança dos métodos utilizados e dos resultados obtidos Em Da divisão do trabalho social como em Le suicide ouj4s formas elementares da vida religiosa o desenvolvimento do pen samento de Durkheim é o mesmo no ponto de partida uma definição do fenôí meno depois numa segunda fase a refutação das interpretações anteriores Po A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 325 fim no ponto de chegada uma explicação propriamente sociológica do fenô meno considerado A semelhança vai ainda mais longe Nos três livros as interpretações ante riores refutadas por Durkheim têm a mesma característica são interpretações individualistas e racionalizantes tais como as que encontramos na ciência eco nômica Em Da divisão do trabalho social Durkheim afasta a interpretação do progresso no sentido da diferenciação pelos mecanismos da psicologia indivi dual demonstra que não se pode explicar a diferenciação social pelo esforço em aumentar a produtividade pela busca do prazer ou da felicidade pelo dese jo de superar o enfado Em Le suicide a explicação que afasta é a visão do sui cídio causado por fatores individuais psicológicos pela loucura ou o alcoolis mo Em As formas elementares da vida religiosa as interpretações rejeitadas são as do animismo e do naturismo que são também essencialmente individua listas e psicológicas Nos três casos a explicação a que chega é essencialmente sociológica em bora o adjetivo tenha em cada livro um sentido algo diferente Em Da divisão do trabalho social a explicação é sociológica porque propõe a prioridade da so ciedade sobre os fenômenos individuais Em particular o acento é posto sobre o volume e a densidade da população como causas da diferenciação social e da solidariedade orgânica Em Le suicide o fenômeno social pelo qual explica o sui cídio é o que chama de corrente suicidógena ou uma tendência social ao suicí dio que se manifesta em determinados indivíduos devido a circunstâncias de ordem individual Finalmente no campo da religião a explicação sociológica tem dupla característica de um lado é a exaltação coletiva provocada pela reu nião de indivíduos num mesmo lugar que faz surgir o fenômeno religioso e ins pira o sentido do sagrado de outro lado é a própria sociedade que os indiví duos adoram sem o saber Tal como concebida por Durkheim a sociologia é o estudo dos fatos essen cialmente sociais e a explicação desses fatos de maneira sociológica As regras do método sociológico representa a formulação abstrata da prá tica dos dois primeiros livros A obra que data de 1895 foi concebida quando Durkheim refletia sobre Da divisão do trabalho social terminado em 1894 e Le suicide de alguns anos depois A concepção da sociologia de Durkheim se baseia em uma teoria do fato so cial Seu objetivo é demonstrar que pode e deve existir uma sociologia objetiva e científica conforme o modelo das outras ciências tendo por objeto o fato social Para que haja tal sociologia duas coisas são necessárias que seu objeto seja espe cífico distinguindose do objeto das outras ciências e que possa ser observado e explicado de modo semelhante ao que acontece com os fatos observados e expli cados pelas outras ciências Esta dupla exigência leva às duas célebres fórmulas com que se costuma resumir o pensamento de Durkheim é preciso considerar os 326 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO fatos sociais como coisas a característica do fato social é que ele exerce uma coer ção sobre os indivíduos A primeira fórmula já foi muito discutida como testemunha o livro de Jules Monnerot Les faits sociaux ne sont pas des choses e exige um esforço de compreensão8 O ponto de partida é a idéia de que não conhecemos no sen tido científico do termo conhecer o que são os fenômenos sociais que nos cercam no meio dos quais vivemos e podese mesmo dizer que vivemos Não sabe mos de fato o que é o Estado a soberania a liberdade política a democracia o socialismo o comunismo Isto não quer dizer que não tenhamos nenhuma idéia sobre esses fenômenos Contudo precisamente porque temos deles uma idéia vaga e confusa é importante considerar os fatos sociais como coisas isto é devemos livrarnos das prénoções e dos preconceitos que nos paralisam quando pretendemos conhecêlos cientificamente É preciso observar os fatos sociais do exterior descobrilos como descobrimos os fatos físicos Como temos a ilusão de conhecer as realidades sociais tornase importante conven cernos de que elas não são conhecidas imediatamente Por isso Durkheim afir ma que é preciso considerar os fatos sociais como coisas As coisas são tudo o que nos é dado tudo o que se oferece ou antes se impõe à nossa observação A fórmula é preciso considerar os fatos sociais como coisas nos leva a uma crítica da economia política isto é a uma crítica das discussões abstratas dos conceitos como o de valor9 Segundo Durkheim todos esses métodos têm o mesmo defeito fundamental Partem da idéia falsa de que podemos compreen der os fenômenos sociais a partir da significação que lhes atribuímos esponta neamente quando na verdade o sentido verdadeiro desses fenômenos só pode ser descoberto mediante uma exploração de tipo objetivo e científico Passamos deste ponto para uma segunda interpretação da fórmula segun do a qual o fato social é toda maneira de fazer suscetível de exercer uma coer ção externa sobre o indivíduo Reconhecemos um fenômeno social na medida em que se impõe ao indi víduo Durkheim dá uma série de exemplos aliás muito variados que demons tram a pluralidade dos sentidos que tem no seu pensamento o termo coerção Há coerção quando numa assembléia ou numa multidão um sentimento se impõe a todos como por exemplo quando por reação coletiva todos riem Este é um fenômeno tipicamente social porque tem como apoio e como sujeito o grupo em seu conjunto e não um indivíduo em particular Assim também a mo da é um fenômeno social cada um se veste de uma certa maneira num deter minado momento porque todos se vestem daquele modo Não é um indivíduo que origina a moda é a sociedade que se manifesta por meio de obrigações implícitas e difusas Durkheim exemplifica também com as correntes de opinião que levam ao casamento ao suicídio a uma maior ou menor natalidade e que A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 327 qualifica de estados de alma coletivos Cita por fim as instituições da educa ção o direito as crenças que têm igualmente como características o fato de se rem dados exteriores aos indivíduos e que se impõem a todos Os fenômenos da multidão as correntes de opinião a moralidade a edu cação o direito e as crenças que os autores alemães chamam de espírito obje tivo tudo isso Durkheim reúne na mesma categoria porque lhes reconhece a mesma característica fundamental São gerais porque são coletivos são dife rentes nas repercussões que exercem sobre cada indivíduo têm como substra to o conjunto da coletividade Em conseqüência é legítimo dizer Fato social é toda maneira de fazer fixa ou não suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior ou então que é geral em toda a extensão de uma dada sociedade embora tenha existência própria independente das suas manifesta ções individuais Les règles de la méthode sociologique p 14 Estas são as duas proposições que servem de fundamento para a metodo logia de Durkheim observar os fatos sociais como coisas e reconhecêlos pela coerção que exercem sobre os indivíduos Estas duas proposições já foram ob jeto de discussões intermináveis as quais em grande parte têm a ver com a am bigüidade dos termos empregados É conveniente dizer que devemos chamar de coisa toda realidade observá vel do exterior e cuja natureza não conhecemos imediatamente Neste sentido Durkheim tem toda a razão em afirmar que é preciso observar os fatos sociais co mo coisas Por outro lado se o termo implica que os fatos sociais não compor tam interpretação diferente da que comportam os fatos naturais ou sugere que toda interpretação do significado que os homens atribuem aos fatos sociais deve ser afastada pela sociologia Durkheim não tem razão Além de tudo esta regra seria contrária à prática do próprio Durkheim que em todos os seus livros procurou apreender o sentido que os indivíduos ou os grupos atribuem à sua maneira de viver suas crenças seus ritos O que chamamos de compreensão é precisamente a apreensão do significado interno dos fenômenos sociais A in terpretação moderada da tese de Durkheim implica simplesmente que esta sig nificação autêntica não é imediata que precisa ser descoberta ou elaborada pro gressivamente Há um duplo equívoco na noção de coerção De um lado o termo tem ordi nariamente um sentido mais limitado do que aquele que lhe empresta Durkheim Na linguagem comum não se fala de coerção a propósito da moda ou das cren ças como estas crenças são interiorizadas os indivíduos têm a impressão ao abra çar a fé dos seus semelhantes de se exprimirem de modo pessoal e nãocoletivo Em outras palavras Durkheim usa o termo coerção de modo infeliz com sen tido muito amplo e vago o que é inconveniente pois o leitor se sente quase ine 328 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO vitavelmente tentado a lembrar apenas o sentido corrente do termo embora a acepção de Durkheim seja muito mais ampla Por outro lado a coerção constitui a essência do fenômeno social ou é ape nas uma característica externa que permite reconhecêlo De acordo com o pró prio Durkheim a segunda interpretação é correta Ele não pretende que a coerção seja a característica essencial dos fatos sociais mas apresentaa apenas como a aparência externa que permite reconhecêlos No entanto é difícil evitar um deslize que faz com que se passe do caráter exterior à definição essencial Já se discutiu muito para saber se seria justo definir o fato social pela coerção Pes soalmente acho que se tomamos a palavra coerção no sentido mais amplo vendo nesta característica nada mais do que um traço facilmente visível a teo ria se torna menos interessante e também menos vulnerável O debate sobre os termos coisa e coerção foi ainda mais vivo porque Durkheim como filósofo é um conceitualista Tem tendência a considerar os conceitos como realidades ou pelo menos achar que a distinção dos gêneros e das espécies está inscrita na própria realidade Em sua teoria sociológica os problemas de definição e de classificação ocupam um lugar importante Em seus três livros principais Durkheim começa por definir o fenômeno considerado Para ele esta operação é essencial pois se trata de isolar uma cate goria de fatos Toda investigação científica se relaciona com um grupo determinado de fenô menos abrangidos numa mesma definição A primeira tarefa do sociólogo é portan to definir as coisas que está estudando para que se possa saber de que se trata e para que ele o saiba também Estai a condição primordial e mais indispensável de qualquer prova ou verificação Com efeito uma teoria só pode ser controlada se reconhecidos os fatos que ela deve explicar Além disso como é por esta definição inicial que se constitui o objeto da ciência este variará de acordo com o modo pelo qual a definição é feita Les règles de la méthode sociologique p 34 Durkheim está sempre inclinado a pensar que uma vez definida certa cate goria de fatos será possível encontrar para eles uma única explicação Um efei to determinado provém sempre da mesma causa Assim se há várias causas de suicídios ou de crimes há vários tipos de suicídios e de crimes A regra segundo a qual é preciso chegar a definições é a seguinte Jamais se deve tomar outro objeto de investigação que não seja um grupo de fenôme nos definidos previamente por certas características externas que lhes são comuns abrangendo na mesma investigação todos os que respondem a esta de finição Ibid p 35 Durkheim comenta assim este preceito Por exemplo constatamos a existência de um certo número de atos que apresentam uma ca racterística externa uma vez realizados determinam por parte da sociedade A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 329 uma reação particular que chamamos de pena Reconhecemos assim um grupo sui generis ao qual impomos uma rubrica comum chamamos de crime todo ato punido e fazemos do crime assim definido o objeto de uma ciência especial a criminologia Portanto o que caracteriza um crime é o fato de que suscita por par te da sociedade uma reação chamada sanção a qual revela que a consciência cole tiva foi ferida pelo ato considerado culpado Serão crimes todos os atos que apre sentarem esta característica externa de uma vez realizados determinarem da parte da sociedade a reação particular a que chamamos castigo Este método não deixa de apresentar alguns problemas Durkheim parte da idéia de que convém definir os fatos sociais pelas características externas facil mente reconhecíveis a fim de evitar os preconceitos ou prénoções Por exem plo o crime enquanto fato social é um ato que provoca uma sanção Se esta definição não for considerada essencial não haverá nenhuma dificuldade te mos aí um procedimento cômodo para reconhecer determinada categoria de fatos Contudo uma vez colocada a definição se aplicamos um pretenso prin cípio de causalidade e declaramos que todos os fatos de tal categoria têm uma causa determinada e uma só sem mesmo examinálos estamos admitindo im plicitamente que a definição extrínseca é equivalente a uma definição intrínse ca postulandose que todos os fatos classificados naquela categoria têm a mesma causa É mediante procedimentos como este que Durkheim em sua teoria da religião passa da definição da religião pelo sagrado para a concepção segundo a qual não há uma diferença fundamental entre o totemismo e as religiões de salvação chegando a sugerir que todas as religiões consistem na adoração da so ciedade O perigo deste método é duplo substituir imperceptivelmente uma defini ção intrínseca por outra extrínseca relacionada com sinais exteriores reco nhecíveis e pressupor arbitrariamente que todos os fatos classificados nessa categoria derivam necessariamente de uma mesma causa Em matéria de religião o alcance destas duas reservas ou críticas é eviden te Pode ser que na religião totêmica os crentes adorem a sociedade sem disso terem consciência Mas isto não quer dizer que a significação essencial da cren ça religiosa no caso de uma religião de salvação seja a mesma A identidade de natureza entre os diferentes fatos classificados na mesma categoria definida por traços extrínsecos está implicada na filosofia conceitualista de Durkheim mas não é evidente Essa tendência a ver os fatos sociais como suscetíveis de serem classifica dos em gêneros e em espécies aparece no Cap V dedicado às regras relativas à constituição dos tipos sociais A classificação das sociedades de Durkheim se baseia no princípio de que o diferente grau de complexidade é que as diferen cia O ponto de partida é o grupo mais simples a que Durkheim chama horda A horda que pode ser uma realidade histórica ou talvez simplesmente uma fic 330 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ção teórica é formada por indivíduos justapostos de maneira por assim dizer atômica A horda é no reino social comparável ao que é o protozoário no reino animal Depois da horda vem o clã que compreende várias famílias Segundo Durkheim as famílias são historicamente posteriores ao clã e não constituem segmentos sociais O clã é a mais simples sociedade historicamente conhecida formada pela reunião de hordas Para classificar as outras sociedades basta aplicar o mesmo princípio As sociedades polissegmentadas simples como a das tribos kabiles seriam formadas por uma pluralidade de clãs justapostos As sociedades polissegmentadas compostas seriam sociedades como as das con federações iroquesas em que os segmentos em lugar de se justaporem aparecem organizados em um conjunto social de tipo superior As sociedades polissegmen tadas duplamente compostas resultam da justaposição ou fusão de sociedades polissegmentadas compostas simples Pertencem a este último tipo a sociedade grega e a romana Esta classificação pressupõe a existência de unidades simples cuja adição constitui os diferentes tipos sociais Segundo esta concepção cada sociedade se rá definida pelo seu grau de complexidade este critério permite determinar a natureza de uma sociedade sem referência às fases históricas tais como as eta pas do desenvolvimento econômico Durkheim indica aliás que uma sociedade ele pensa na sociedade japo nesa pode absorver um certo desenvolvimento econômico de origem externa sem que sua natureza fundamental se transforme A classificação dos gêneros e espécies sociais difere radicalmente da determinação das fases do desenvol vimento econômico ou histórico Os sociólogos do século XIX Auguste Comte e Karl Marx se esforçaram por determinar os momentos principais do devenir histórico e as fases do pro gresso intelectual econômico e social da humanidade Segundo Durkheim estas tentativas não levam a nada Contudo é possível fazer uma classificação cienti ficamente válida dos gêneros e espécies de sociedades com base num critério que reflete a estrutura da sociedade considerada o número dos segmentos justa postos numa sociedade complexa e o modo de combinação desses segmentos As teorias da definição e classificação dos gêneros e espécies levam à dis tinção do normal e do patológico bem como à teoria da explicação A distinção do normal e do patológico desenvolvida no Capítulo III de As re gras do método sociológico tem um papel importante no pensamento de Durkheim A meu ver esta distinção continuará a ser até o fim da sua carreira uma das bases do seu pensamento embora não a tenha empregado com muita freqüência no últi mo período o de As formas elementares da vida religiosa A importância desta distinção se relaciona com as intenções de reforma de Durkheim Sua vontade de ser um cientista puro não o impedia de afirmar que A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 33 a sociologia não valeria uma só hora de trabalho se não permitisse o aperfei çoamento da sociedade Tinha a esperança de poder fundamentar conselhos d ação no estudo objetivo e científico dos fenômenos A distinção entre o norma e o patológico é precisamente uma das intermediações entre a observação doi fatos e os preceitos Se um fenômeno é normal não há por que querer eliminá lo mesmo que nos afete moralmente Mas se é patológico temos um argumen to científico para justificar projetos de reforma Para Durkheim um fenômeno é normal quando pode ser encontrado de modo geral numa sociedade de determinado tipo em certa fase do seu processo de desenvolvimento O crime é um fenômeno normal ou mais exatamente uma certa taxa de crime é normal Assim definese a normalidade pela generalida de mas como as sociedades são diferentes é impossível conhecer a generali dade de modo abstrato e universal Será considerado normal o fenômeno que encontrarmos mais freqüentemente numa sociedade dada num certo momento do seu desenvolvimento Esta definição da normalidade não exclui que subsi diariamente se procure explicar a generalidade isto é se faça um esforço para descobrir a causa que determina a freqüência do fenômeno considerado Mas o sinal primeiro e decisivo da normalidade de um fenômeno é simplesmente sua freqüência Assim como a normalidade é definida pela generalidade a explicação segun do Durkheim é definida pela causa Explicar um fenômeno social é procurar sua causa eficiente identificar o fenômeno antecedente que o produz necessariamen te De forma subsidiária uma vez estabelecida a causa de um fenômeno podese procurar igualmente a função que exerce a sua utilidade Mas a explicação fun cionalista apresentando um caráter teleológico deve estar subordinada à procura da causa eficiente pois fazer ver a utilidade de um fato não é o mesmo que expli car como aconteceu nem como ele é o que é Suas utilizações pressupõem pro priedades específicas que o caracterizam mas não o criam A necessidade que temos das coisas não pode fazer com que elas sejam de uma maneira ou de outra por conseguinte não é esta necessidade que pode retirálas do nada e conferirlhes existência Les règles de la méthode sociologique p 90 As causas dos fenômenos sociais devem ser procuradas no meio social Ê a estrutura da sociedade considerada que constitui a causa dos fenômenos que a sociologia quer explicar É na natureza da própria sociedade que devemos procurar a explicação da vida social P 101 Ou ainda A origem primordial de todo processo social de alguma importância deve ser procurada na constitui ção do meio social interno P 111 A explicação dos fenômenos pelo meio social se opõe à explicação histó rica segundo a qual a causa de um fenômeno deveria ser procurada no passado isto é no cSWfey aatenor da sociedade Durkheim considftcamif ti nrnliiraato 332 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO histórica não é uma verdadeira explicação científica Pensa que se podem expli car os fenômenos sociais pelas condições concomitantes Chega mesmo a dizer que se o meio social não explica os fenômenos observados num determinado momento da história é impossível estabelecer uma relação de causalidade De certa maneira a causalidade eficiente do meio social representa para Durkheim a condição da existência da sociologia científica Esta consiste em estudar os fatos do exterior em definir rigorosamente conceitos graças aos quais é possí vel isolar categorias de fenômenos classificar as sociedades em gêneros e es pécies e por fim dentro de uma dada sociedade explicar um fato particular pelo meio social A prova da explicação é obtida pelo emprego do método das variações con comitantes Só temos um meio de demonstrar que um fenômeno é a causa de um outro comparar os casos em que estão simultaneamente presentes ou ausentes e verifi car se as variações apresentadas nestas diferentes combinações de circunstâncias revelam que um depende do outro Quando podem ser provocados artificialmente de acordo com a vontade do observador o método é a experimentação propria mente dita Quando ao contrário a produção dos fatos não está à nossa disposição e só podemos abordálos tal como ocorrem espontaneamente o método utilizado é o da experimentação indireta ou método comparativo P 124 No caso do suicídio a aplicação deste método era particularmente simples Durkheim se limitava a comparar as taxas de suicídio dentro de uma mesma sociedade ou dentro de sociedades muito próximas entre si Mas o método das variações concomitantes pode e deve comportar a comparação de um mesmo fenômeno por exemplo a família ou o crime em sociedades pertencentes ou não à mesma espécie O objetivo é acompanhar o desenvolvimento integral de um fenômeno dado por exemplo a família ou a religião através de todas as espé cies sociais Só se pode explicar um fato social de alguma complexidade acompanhando seu desenvolvimento integral através de todas as espécies sociais A sociologia com parada não é um ramo especial da sociologia é a própria sociologia quando esta deixa de ser puramente descritiva e aspira a explicar os fatos P 137 No caso da religião Durkheim remonta às formas elementares da vida reli giosa Não tem a ambição de acompanhar o desenvolvimento do fenômeno re ligioso através das espécies sociais mas podemos ver como uma sociologia ideal inspirandose nessa análise partiria de uma categoria de fatos definidos com a ajuda de características externas reconhecíveis seguiria o desenvolvi mento de uma instituição através das espécies sociais para chegar assim a uma A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 33 teoria geral sobre uma ordem de fatos ou mesmo das espécies sociais Ideal mente seria possível conceber uma teoria geral da sociedade cujo princípio fosse uma filosofia conceitualista comportando uma teoria das categorias de fatos sociais uma concepção dos gêneros e das espécies das sociedades e fi nalmente uma doutrina da explicação que visse no meio social a causa deter minante dos fatos sociais Esta teoria da sociologia científica se fundamenta numa afirmativa central do pensamento de Durkheim a sociedade é uma realidade de natureza diferen te das realidades individuais Todo fato social tem como causa um outro fato social e nunca um fato da psicologia individual Dirseá porém que como a sociedade é formada exclusivamente de indiví duos a origem primordial dos fenômenos sociológicos não pode deixar de ser psi cológica Com esse raciocínio podese com igual facilidade afirmar que os fenô menos biológicos são explicáveis analiticamente pelos fenômenos inorgânicos Com efeito é certo que na célula viva só há moléculas de matéria bruta Contudo elas estão associadas e é esta associação que causa os novos fenômenos que ca racterizam a vida e que não podemos localizar nem mesmo em germe em ne nhum dos elementos associados É que o todo não é idêntico à soma de suas partes o todo é alguma coisa diferente e suas propriedades não são iguais às das partes que o compõem A associação não é portanto como já se pensou algumas vezes um fenômeno em si mesmo infecundo que consista apenas em relações externas de fatos conhecidos e propriedades identificadas Não será ela ao contrário a fonte de todas as atividades que se produziram sucessivamente durante a evolução geral das coisas Que diferença há entre os organismos inferiores e os outros entre o ser vivo organizado e o simples plastídio entre este e as moléculas inorgânicas que o compõem a não ser diferenças de associação Em última análise todos estes seres se compõem de elementos da mesma natureza elementos que se encontram às vezes justapostos às vezes associados de uma maneira outras vezes de modo diferente Temos mesmo o direito de perguntar se esta lei não penetra no mundo mineral e se as diferenças que separam os corpos inorgânicos não têm a mesma origem Em virtude deste princípio a sociedade não é mera soma de indivíduos mas o sistema formado pela sua associação representa uma realidade específica com características próprias Sem dúvida nada pode haver de coletivo sem cons ciências particulares Esta condição necessária porém não é suficiente E preciso além disso que as consciências se associem e se combinem e se combinem de de terminada maneira Dessa combinação resulta a vida social assim é essa combi nação que a explica Juntandose penetrandose fúndindose as almas individuais dão vida a um ser ser psíquico se preferirmos que constitui porém uma indivi dualidade psíquica de gênero novo É portanto na natureza desta individualidade e não na das unidades que a compõem que é preciso ir buscar as causas próximas e determinantes dos fatos que se produzem O grupo pensa sente age de modo com 334 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO pletamente diferente daquilo que fariam os membros se estes estivessem isolados Assim se partirmos destes últimos não poderemos compreender o que acontece no grupo Numa palavra há entre a psicologia e a sociologia a mesma solução de continuidade que encontramos entre a biologia e as ciências psicoquímicas Les règles de la méthode sociologique pp 102103 Este é o centro do pensamento metodológico de Durkheim Para ele o fato so cial é específico provocado pela associação dos indivíduos e diferente pela sua natureza do que se passa no nível das consciências individuais Os fatos sociais podem ser objeto de uma ciência geral porque se distribuem em categorias e os próprios conjuntos sociais podem ser classificados em gêneros e espécies Sociologia e socialismo Para estudar as idéias políticas de Durkheim dispomos de três séries de cur sos publicadas depois da sua morte Durkheim tinha o bom hábito de redigir in tegralmente suas aulas Esses textos exprimem portanto exatamente o pensa mento do autor Esses cursos são o curso sobre o socialismo publicado em 1928 com o tí tulo Le socialisme e que trata sobretudo de SaintSimon o curso publicado em 1950 com o título Leçons de sociologie Physique des moeurs et du droit e por fim cursos sobre a educação e os problemas pedagógicos Durkheim é um filósofo por formação Estudante da École Normale Supé rieure por volta dos anos 1880 interessouse apaixonadamente como seus co legas LévyBruhl e Jaurès pelo que se conhecia na época como as questões so ciais tema que parecia mais amplo do que o das simples questões políticas Ao começar suas investigações colocou o problema cujo estudo o leva ria ao livro Da divisão do trabalho social sob a seguinte forma quais são as relações entre o individualismo e o socialismo Seu sobrinho Mareei Mauss no prefácio de Le socialisme lembra este ponto de partida teórico das pesquisas de Durkheim A relação entre estes dois movimentos de idéias o socialismo e o individualismo é de fato em termos filosóficos o problema sociológico de Da divisão do trabalho social A indagação sobre o relacionamento entre o individualismo e o socialismo ou entre o indivíduo e o grupo que leva Durkheim ao tema do consenso per tence aliás à tradição iniciada por Auguste Comte De muitos modos ele é fiel à inspiração do fundador do positivismo O ponto de partida de Durkheim é o absoluto do pensamento científico a única forma de pensamento válida na nossa época Nenhuma doutrina moral ou A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 335 religiosa pelo menos em seu conteúdo intelectual pode ser admitida se não resiste à crítica da ciência De conformidade com uma exigência que estava também na origem da doutrina positivista Durkheim só pode admitir que a ordem social se fundamente num pensamento de tipo científico Além disso Durkheim critica os economistas e mais particularmente os economistas liberais ou teóricos de maneira fundamentalmente idêntica à de Auguste Comte Os dois consideram a atividade econômica como característica das sociedades modernas que são as sociedades industriais A organização da economia deve portanto exercer uma influência decisiva sobre o conjunto da sociedade Contudo não é a partir da rivalidade dos interesses individuais ou da harmonia preestabelecida entre tais interesses que se pode criar o concurso de vontades que constitui condição da estabilidade social da mesma forma co mo não se pode explicar uma sociedade a partir da conduta alegadamente racio nal dos agentes econômicos O problema social não é para começar um problema econômico é sobretu do um problema de consenso isto é de sentimentos comuns aos indivíduos gra ças aos quais os conflitos são atenuados os egoísmos recalcados e a paz manti da O problema social é um problema de socialização Tratase de fazer do indi víduo um membro da coletividade de inculcarlhe o respeito pelos imperativos pelas obrigações e proibições sem as quais a vida coletiva se tomaria impossível O livro sobre a divisão do trabalho constitui a primeira resposta de Durkheim ao problema das relações entre o individualismo e o socialismo e esta respos ta se confunde com a descoberta da sociologia como ciência O problema so cial das relações entre o indivíduo e o grupo não deve ser resolvido em abs trato por via especulativa mas pela via científica E a ciência nos mostra que não há só um tipo de relacionamento entre indivíduo e grupo mas diferentes tipos de integração variáveis de acordo com a época e a sociedade Há particularmente dois tipos fundamentais de integração a solidariedade mecânica baseada na semelhança e a solidariedade orgânica baseada na dife renciação Esta última cada um exerce uma função própria numa sociedade que resulta do concurso necessário entre indivíduos diferentes corresponde à solução de fato demonstrada cientificamente do problema das relações entre individualismo e socialismo Segundo Durkheim a própria ciência nos explica por que um certo tipo social toma necessário o individualismo A autonomia da vontade e a margem de decisão individual são características da solidariedade orgânica A análise da solidariedade orgânica é portanto para Durkheim a resposta a um problema propriamente filosófico o das relações entre o individualismo e o socialismo A sociedade em que domina a solidariedade orgânica permite ao individualismo desenvolverse com base em uma necessidade coletiva e de um imperativo moral A própria moral ordena a cada um que se realize A solida riedade moral não deixa de colocar contudo dois problemas 336 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICi Na sociedade moderna os indivíduos não são mais intercambiáveis e cada um pode realizar a própria vocação Nem por isso deixa de ser necessário haver crenças comuns quando menos a do respeito absoluto pela pessoa humana para manter a coexistência pacífica desses indivíduos diferenciados É impor tante pois atribuir um conteúdo muito extenso e uma autoridade suficiente à consciência coletiva numa sociedade em que o individualismo se tornou a lei suprema Toda sociedade moderna dominada pela solidariedade orgânica comporta riscos de desagregação e anomia Com efeito quanto mais a sociedade moderna encoraja os indivíduos a reivindicar o direito de realizar sua própria personalida de e de satisfazer seus próprios desejos mais se deve temer que o indivíduo es queça as exigências da disciplina e termine numa situação perpétua de insatisfa ção Por maior que seja a presença do individualismo na sociedade moderna não há sociedade sem disciplina sem limitação dos desejos sem uma desproporção entre as aspirações de cada um e as satisfações possíveis Neste ponto da análise o sociólogo aborda o problema do socialismo e pode mos compreender em que sentido Durkheim é socialista e em que sentido não o é ou ainda em que sentido a sociologia como Durkheim a interpreta substitui o socialismo O pensamento de Durkheim está associado historicamente de mo do estreito ao pensamento dos socialistas franceses dos últimos anos do século XIX De acordo com Mareei Mauss foi Durkheim que fez com que o pensamen to de Jaurès se inclinasse na direção do socialismo mostrandolhe a pobreza das idéias radicais que subscrevia na época Provavelmente a conversão de Jaurès ao socialismo não se deve apenas à influência de Durkheim Lucien Herr bibliote cário da Escola Normal teve nela uma participação direta e preponderante Não deixa de ser verdade porém que por volta dos anos 18851895 a concepção que Durkheim tinha do socialismo foi um elemento importante da consciência políti ca francesa nos meios intelectuais de esquerda O curso que Durkheim dedicou ao socialismo é parte de um empreendi mento mais amplo que não chegou a concluir um estudo histórico do conjun to das doutrinas socialistas de que só pôde estudar as origens isto é essencial mente SaintSimon Durkheim aborda este estudo com algumas idéias que esclarecem sua in terpretação do socialismo Embora num certo sentido seja socialista um ver dadeiro socialista de acordo com a definição que emprega não é marxista Opõese mesmo à doutrina marxista como ela é interpretada ordinariamente em dois pontos essenciais Em primeiro lugar não crê na fecundidade dos meios violentos e se recu sa a considerar a luta de classes em particular os conflitos entre operários e empresários como um elemento essencial da sociedade atual e como mola do A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 337 movimento histórico Para Durkheim bom discípulo de Auguste Comte os con flitos entre trabalhadores e empresários demonstram a falta de organização ou a anomia parcial da sociedade moderna que deve ser corrigida Não anunciam a passagem para um regime social ou econômico fundamentalmente diverso Portanto se a luta de classes e a violência ocupam o primeiro lugar no pensa mento marxista como se pensa hoje e se se identifica o socialismo com o mar xismo o que seria um erro é preciso admitir que Durkheim é antípoda do socialismo O sociólogo também não é socialista na medida em que muitos socialistas se inclinam a crer que a solução dos problemas da sociedade moderna virá de uma reorganização econômica Ora para ele o problema social não é tanto eco nômico como moral e além disso está muito longe das idéias marxistas Para Durkheim a essência do pensamento socialista não está no estatuto da proprie dade nem no planejamento O socialismo de Durkheim é em essência o socialismo de Auguste Comte que se resume em duas palavraschave organização e moralização O socialis mo é uma melhor isto é mais consciente organização da vida coletiva que teria por objeto e conseqüência a integração dos indivíduos em instâncias so ciais ou em comunidades dotadas de autoridade moral capazes portanto de preencher uma função educativa O curso sobre o socialismo contém subtítulos Sa définition Ses débuts La doctrine saintsimonienne Sua definição Suas origens A doutrina de Saint Simon Durkheim não distingue com clareza o que pertence ao próprio SaintSi mon e a Augustin Thierry ou Auguste Comte Pessoalmente creio que atribui a SaintSimon grande parte dos méritos virtudes e originalidade que na verda de são dos seus colaboradores Mas não é isso que importa O essencial é a definição do socialismo e a aproximação entre o saintsimonismo e a situação do socialismo no início do século XIX Durkheim quer sempre definir uma realidade social de maneira objetiva Não se atribui o direito reivindicado por Max Weber de escolher sua definição de um fenômeno social Esforçase por determinar do exterior o que é esse fenômeno social acentuando suas características visíveis Formula assim uma definição do socialismo a partir dos traços comuns às doutrinas qualifica das ordinariamente como socialistas Escreve Chamamos de socialista toda dou trina que proponha a incorporação de todas as funções econômicas ou de algu mas delas que na verdade estão dispersas aos centros diretores e conscientes da sociedade Le socialisme p 25 Ou ainda O socialismo não se reduz a uma questão de salário ou como se disse de estômago É antes de tudo uma aspi ração à reorganização do corpo social tendo o efeito de mudar a situação do aparelho industrial no conjunto do organismo tirálo da sombra onde funciona automaticamente chamandoo à luz e ao controle da consciência Podese 338 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO porém perceber desde já que esta aspiração não é sentida apenas pelas classes inferiores mas também pelo próprio Estado que à medida que a atividade eco nômica se toma um fator mais importante da vida em geral é levado pela força das coisas pelas necessidades vitais da mais alta importância a inspecionar e a regulamentar mais suas manifestações Ibid p 34 Estas duas passagens resumem bastante bem a concepção do socialismo de Durkheim que faz uma distinção rigorosa entre as doutrinas que chama de co munistas e as que chama de socialistas Em todas as épocas da história desde a antiguidade houve doutrinas comunistas as quais nasciam do protesto con tra a desigualdade social e a injustiça Sonhavam com um mundo em que a condi ção de todos fosse a mesma Não caracterizam portanto um determinado pe ríodo histórico como as doutrinas socialistas do início do século XIX logo depois da Revolução Francesa Longe de considerar a atividade econômica como fundamental procuraram reduzir ao mínimo o papel da riqueza Muitas se ins piraram numa concepção ascética da existência As doutrinas socialistas ao contrário acentuam o caráter primordial da atividade econômica em vez de al mejar o retomo a uma vida simples e frugal procuram na abundância e no de senvolvimento da capacidade produtiva a solução das dificuldades sociais De acordo com Durkheim as doutrinas socialistas não se definem pela ne gação da propriedade privada ou pelas reivindicações dos trabalhadores ou ainda pelo desejo das classes superiores ou dos dirigentes do Estado de melhorar a condição dos mais desfavorecidos A rejeição da propriedade privada não é ca racterística do socialismo A doutrina de SaintSimon comporta uma crítica da herança mas Durkheim vê nessa crítica uma espécie de confirmação do prin cípio da propriedade privada De fato se chamamos de propriedade privada a propriedade individual esta é justificada quando pertence a quem a adquiriu A transmissão hereditária contraria assim o princípio da propriedade privada já que por herança alguém recebe uma propriedade que não teve o mérito de adquirir Neste sentido diz Durkheim a crítica da herança pode ser considerada como a aplicação lógica do princípio segundo o qual a única propriedade legí tima é privada isto é é privada a propriedade adquirida diretamente pelo pró prio indivíduo Durkheim concorda que as reivindicações operárias e os esforços destina dos a aprimorar a condição dos trabalhadores fazem parte dos sentimentos ins pirados pelas doutrinas socialistas mas afirma que não são essenciais à idéia socialista Em todas as épocas houve pessoas inspiradas pelo espírito de carida de ou de piedade que se debruçaram sobre o destino dos miseráveis procuran do amenizarlhes a situação Mas esta preocupação com a infelicidade alheia não é característica nem das doutrinas socialistas nem de um momento dado da história social européia Além disso não se poderia jamais resolver a questão social por meio de reformas econômicas A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 339 A Revolução Francesa foi um antecedente necessário do desenvolvimento das doutrinas socialistas cuja origem pode ser identificada em certos fenôme nos do século XVIII Multiplicamse os protestos contra as desigualdades e sur ge a idéia de que se podem atribuir ao Estado funções mais amplas Até a Revo lução porém estas teses são embrionárias faltandolhes o essencial a idéia cen tral do socialismo que é a concepção de uma reorganização consciente da vida econômica Esta idéia nasceu depois da Revolução porque esta subverteu a ordem so cial e difundiu o sentimento de crise levando os homens de pensamento à bus ca das causas dessa crise Ao transformar a antiga ordem a Revolução Francesa fez com que se tomasse consciência do papel possível do Estado Enfim foi depois da Revolução Francesa que a contradição entre a maior capacidade de produção e a miséria de grande parte da população apareceu claramente Os ho mens descobriram a anarquia econômica Transferiram à ordem econômica o protesto contra as desigualdades que até então focalizava sobretudo a desigual dade política Houve um encontro da aspiração igualitária favorecida pela Re volução e da consciência da anarquia econômica provocada pelo espetáculo da indústria nascente Esta conjunção do protesto contra a desigualdade e da cons ciência da anarquia econômica provocou o aparecimento das doutrinas socia listas que querem reorganizar a sociedade a partir da vida econômica Para Durkheim a questão social de acordo com sua definição do socialis mo é antes de tudo uma questão de organização Mas também um problema de moralização Numa passagem marcante explica por que o problema social não poderia ser resolvido por reformas inspiradas exclusivamente no espírito de ca ridade Se não nos enganamos esta corrente de piedade e simpatia sucedânea da an tiga corrente comunista que vamos encontrar geralmente no socialismo atual não passa nele de um elemento secundário Completao mas não o constitui Em con seqüência as medidas que são tomadas para conter o problema social deixam in tactas as causas que deram nascimento ao socialismo Se as necessidades que este último traduz são fundadas não será possível satisfazêlas dando alguma satisfa ção a estes vagos sentimentos de fraternidade Ora observem o que acontece em todos os países da Europa Em toda a parte há uma preocupação com o que se deno mina questão social e um esforço para darlhe soluções parciais Entretanto qua se todas as medidas que são tomadas com este fim são destinadas exclusivamente a melhorar a sorte das classes trabalhadoras isto é respondem apenas às tendên cias generosas que constituem a base do comunismo Parece que se considera mais urgente e mais útil aliviar a miséria dos operários e compensar com liberalidades e favores legais o que há de triste na sua condição Há uma disposição para mul tiplicar bolsas subvenções de todo tipo para estender na medida do possível o âmbito da caridade pública para fazer leis destinadas a proteger a saúde dos ópè 340 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO rários etc com o objetivo de diminuir o hiato que separa as duas classes com o propósito de diminuir a desigualdade Não se vê porém e aliás isso acontece con tinuamente com o socialismo que ao proceder assim tomase o secundário pelo essencial Não é testemunhando uma complacência generosa com relação ao que ainda resta do velho comunismo que se poderá algum dia conter o socialismo ou realizálo Não é dando todos os nossos cuidados a uma situação que é de todos os séculos que se melhorará minimamente uma situação que data de ontem Não só passamos assim ao lado do objetivo que deveríamos ter em vista mas até mesmo o objetivo a que nos propomos não poderá ser atingido pelo caminho que se segue Porque será inútil criar para os trabalhadores privilégios que neutralizem em parte aqueles dos patrões inútil diminuir a duração da jornada de trabalho e até mesmo aumentar legalmente os salários pois isto não satisfará os apetites despertados que se reforçarão com os esforços que fizermos para acalmálos Não há limites possíveis para suas exigências Procurar apaziguálos satisfazendoos é pretender completar o tonel das Danaides Se a questão social pudesse ser posta verdadeira mente nestes termos seria melhor declarála insolúvel Le socialisme p 78 Este texto é surpreendente e hoje soa de modo estranho É óbvio que Durkheim não é um inimigo das reformas sociais que não é hostil à diminui ção da jornada de trabalho ou ao aumento dos salários O que é revelador porém é a transformação do sociólogo em moralista O tema fundamental é sempre o mesmo os apetites dos homens são insaciáveis se não houver uma autoridade moral que limite os desejos os homens ficarão eternamente insatisfeitos por que desejarão sempre algo mais que não podem obter De certo modo Durkheim tem razão Mas ele não se propõe a indagação feita por Eric Weil em Philosophiepolitique10 o objetivo da organização social será satisfazer os homens A insatisfação não é parte da condição humana e muito especificamente da condição própria à sociedade em que vivemos Talvez os homens continuem tão insatisfeitos quanto antes à medida que se multipliquem as reformas sociais É possível também que eles o sejam menos ou de modo diferente Por outro lado não se pode admitir que as insatisfações e rei vindicações constituem o motor do movimento histórico Não é necessário ser hegeliano para acreditar que as sociedades se transformam pela recusa dos ho mens em aceitar sua situação qualquer que ela seja Neste sentido a insatisfação não é necessariamente patológica não o é certamente nas sociedades como as nos sas em que a autoridade da tradição perde força e a maneira de viver habitual não parece mais imporse aos homens como uma norma ou ideal Se cada geração pretende viver melhor do que a anterior a insatisfação permanente descrita por Durkheim será inevitável O tonel das Danaides e a rocha de Sísifo são os mitos representativos da sociedade moderna Mas se o problema social só pode ser resolvido por meio de reformas ou pela melhoria da vida dos homens qual é sua característica específica no mundo de hoje A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 341 Outrora em todas as sociedades as funções econômicas estavam subordi nadas a poderes temporais e espirituais Os poderes temporais eram essencial mente militares ou feudais os poderes espirituais essencialmente religiosos Hoje na sociedade industrial moderna as funções econômicas estão abandonadas a si mesmas não são mais moralizadas ou regularizadas Durkheim pensa que SaintSimon compreendeu bem que os antigos poderes de essência militar ou feudal baseados na coerção exercida pelo homem sobre o homem só podiam ser na sociedade moderna um estorvo pois não podiam mais organizar e regulari zar a vida industrial Mas os primeiros socialistas cometeram o erro de crer que esta nãosubordinação das funções econômicas a um poder social era caracte rística da sociedade moderna Em outras palavras constatando que os poderes antigos eram inadaptados à regularização necessária das funções econômicas concluíram que estas funções deviam ser abandonadas a si mesmas e que não precisavam permanecer sujeitas a um poder Esta é a tendência anárquica de certas doutrinas Para Durkheim temos aí um erro fundamental As funções econômicas precisam estar submetidas a um poder e este poder deve ser ao mesmo tempo político e moral Nosso sociólogo descobre esse poder político e moral neces sário para regularizar a vida econômica não no Estado ou na família mas nos grupos profissionais O curso sobre o socialismo data de 1896 No ano anterior Durkheim publi cara As regras do método sociológico Esse curso é portanto contemporâneo da primeira fase da carreira do sociólogo a que pertencem Da divisão do tra balho social e Le suicide Retoma as idéias expostas no fim do primeiro desses livros e que serão mais bem desenvolvidas no prefácio da segunda edição da sua tese A solução do problema social está na reconstituição dos grupos profissio nais as antigas corporações para que exerçam uma autoridade sobre os indiví duos e regularizem a vida econômica moralizandoa O Estado não é capaz de exercer essa função porque está muito distante dos indivíduos A família tornouse muito restrita e perdeu seu papel econômi co A atividade econômica se desenvolve daqui por diante fora da família o lo cal de trabalho não mais se confunde com o local de residência Nem o Estado e nem a família podem exercer um controle sobre a vida econômica Os grupos profissionais as corporações reconstituídas constituirão um intermediário en tre os indivíduos e o Estado pois serão dotados da autoridade social e moral necessária para restabelecer a disciplina sem a qual os homens se deixam levar pela infinidade de seus desejos Assim para Durkheim a sociologia pode trazer uma solução científica ao problema social e compreendese que ele possa ter tomado como ponto de par tida de suas pesquisas uma questão filosófica que comandava o problema polí tico e que tenha encontrado na sociologia tal como a entendia o substituto de uma doutrina socialista 342 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A conclusão do curso sobre o socialismo é interessante Durkheim escre ve que no início do século XIX três movimentos foram quase contemporâneos o surgimento da sociologia um esforço de renovação religiosa e o desenvolvi mento das doutrinas socialistas As doutrinas socialistas tendiam a uma reorganização da sociedade ou ain da a submeter a uma autoridade consciente as funções econômicas hoje difusas O movimento religioso visava a recriar crenças para tomar o lugar das religiões tradicionais que se estavam enfraquecendo A sociologia tinha como objetivo submeter os fatos sociais a um estudo científico inspirado pelo espírito das ciên cias naturais De acordo com Durkheim estes três movimentos estão interligados de muitas formas O socialismo a sociologia e a renovação religiosa coincidiram no princípio do século XIX porque são características da mesma crise O de senvolvimento da ciência que arruina ou pelo menos enfraquece as crenças religiosas tradicionais leva irresistivelmente o espírito científico a se debruçar sobre os fenômenos sociais O socialismo é a tomada de consciência da crise moral e religiosa e da desorganização social resultante do fato de que os anti gos poderes políticos e espirituais não se adaptam mais à natureza da socieda de industrial O socialismo propõe um problema de organização social O esforço de re novação religiosa é uma reação ao enfraquecimento das crenças tradicionais A sociologia é o desenvolvimento do espírito científico e também uma tentativa de encontrar resposta aos problemas enunciados pelo socialismo pelo enfraque cimento das crenças religiosas pelos esforços de renovação espiritual Infelizmente as últimas linhas do curso são ilegíveis mas o sentido da conclusão dessas lições é claro sociólogo Durkheim quer explicar cientifica mente as causas do movimento socialista mostrar o que há de verdade nas dou trinas socialistas indicar com base na ciência em que condições será possível solucionar o que chamamos de problema social Quanto à renovação religiosa não se poderia dizer que Durkheim como sociólogo pretendesse darlhe uma contribuição decisiva Ele não é como Auguste Comte o profeta de uma reli gião sociológica mas acredita que a ciência da sociedade ajuda a compreender de que modo as religiões nasceram das exigências sociais e da efervescência coletiva acha também que ela nos autoriza a crer que outras religiões serão criadas pelo mesmo processo em resposta às mesmas necessidades O que é necessário para que reine a ordem social é que o conjunto dos ho mens se contente com seu destino Mas o que é necessário para que eles se conten tem não é que tenham mais ou menos mas que estejam convencidos de que não lhes assiste o direito de ter mais Para isso é preciso necessariamente que haja uma auto ridade superior reconhecida que estabeleça o direito Porque abandonado exclu A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 343 sivamente à pressão das suas necessidades o indivíduo nunca admitirá que che gou ao limite extremo dos seus direitos Le socialisme p 291 Esse trecho é muito característico do pensamento de Durkheim que se apre senta como uma espécie de síntese apoiada na noção de consciência coletiva entre a antropologia de Hobbes e a moral kantiana do dever O imperativo cate górico da consciência coletiva limita os desejos infinitos do homem Segundo Durkheim portanto o socialismo enquanto movimento de idéias histórico é essencialmente uma reação à anarquia econômica Quer transferir para a área da consciência clara funções que estão hoje dispersas na sociedade Não se confunde com os protestos comunistas imemoriais dirigidos contra a injustiça e a desigualdade Nasce depois da Revolução Francesa no momento em que a inspiração política desta se transfere para a ordem econômica Contem porâneo da industrialização ele tem como objetivo verdadeiro a criação de ór gãos intermediários entre o indivíduo e o Estado dotados ao mesmo tempo de autoridade moral e de autoridade social Visto por Durkheim o tema central do socialismo é portanto a organiza ção e não a luta de classes Seu objetivo é a criação de grupos profissionais e não a transformação do estatuto da propriedade Assim definido o socialismo está ligado à sociologia Não que o sociólogo enquanto tal exprima opiniões políticas mas a sociedade ao estudar objetiva e cientificamente a realidade social deve interessarse pelo movimento socialista Ela explica então seu significado histórico e ao mesmo tempo sugere as refor mas graças às quais a inspiração socialista se manifestará em novas instituições Compreendese portanto o motivo por que Durkheim não se interessa pe los mecanismos propriamente políticos As instituições parlamentares as elei ções e os partidos constituem para ele um aspecto superficial da sociedade A este propósito continua a ser um discípulo de Auguste Comte Este último em bora na primeira parte da sua carreira tivesse aderido às idéias liberais afastou se das instituições representativas enquanto tais à medida que se desenvolveu seu pensamento Para ele os parlamentos eram instituições de espírito contemporâneo à fa se transitória situadas entre a idade metafísica a teologia e o positivismo Na sua representação da sociedade futura Auguste Comte dava muito pouca im portância às eleições aos partidos e parlamentos Ia tão longe neste sentido que por ocasião do golpe de Estado de Napoleão III não se indignou com a eliminação destes resíduos metafísicos na mesma época não tivera dúvida em apelar para o Czar de todas as Rússias dirigindolhe uma carta Estava pronto a aceitar que as reformas necessárias para introduzir a era positivista fossem executadas por um poder absoluto mesmo que este poder não estivesse nas mãos de um homem da tradição 344 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Seguramente Durkheim não ia tão longe no desprezo do parlamentarismo Contudo como afirma Mareei Mauss na introdução do curso sobre o socialis mo para ele as eleições e os parlamentos são fenômenos superficiais Durkheim acreditava na necessidade de reformas profundas de ordem so cial e moral Para ele estas reformas seriam antes paralisadas do que favorecidas pelos conflitos dos partidos e a desordem parlamentar Durkheim fez comentários sobre a democracia em particular em suas Le çons de sociologie Physique des moeurs et du droit publicadas em 1950 De finea porém de modo diferente da definição que hoje é clássica De fato não menciona na sua definição nem o sufrágio universal nem a pluralidade parti dária nem o parlamento A verdadeira característica do Estado democrático se ria a extensão maior da consciência governamental e comunicações mais estreitas entre esta consciência e a massa das consciências individuais Em ou tras palavras entre o Estado e o povo Deste ponto de vista a democracia nos parece uma forma política pela qual a sociedade chega a uma consciência mais pura de si mesma Um povo é tanto mais democrático quanto maior o papel da deliberação da reflexão e do espírito crítico na condução dos assuntos públicos E menos democrático na medida em que preponderam a inconsciência os hábitos inconfessados os sentimentos obs curos os preconceitos sem críticas Isto significa que a democracia não é uma des coberta do nosso século ou um renascimento é o caráter assumido cada vez mais pelas sociedades Se soubermos livrarnos das etiquetas vulgares que só fazem prejudicar a clareza das idéias veremos que a sociedade do século XVII era mais democrática do que a do século XVI mais democrática do que todas as socieda des de base feudal O feudalismo corresponde à dispersão da vida social é o máxi mo de obscuridade e de inconsciência que já se impôs às grandes sociedades atuais Ao centralizar cada vez mais as forças coletivas a monarquia estendendo suas ramificações em todos os sentidos e penetrando mais estreitamente as massas so ciais preparou o futuro da democracia e foi em si mesma um governo democráti co por comparação com o que existia até então O fato de que o chefe de Estado tivesse o título de rei é absolutamente secundário o que é preciso considerar são suas relações com o conjunto do país efetivamente foi o país que se incumbiu desde então da clareza das idéias sociais Portanto não é só há quarenta ou cin qüenta anos que a democracia se desenvolve plenamente seu fluxo é contínuo e vem desde o começo da história Pp 107108 Este texto ao mesmo tempo admirável e ingênuo revela em Durkheim a per sistência do que se poderia chamar de visão evolucionista As sociedades se têm tomado cada vez mais democráticas através dos séculos Contudo resta ainda en tender perfeitamente em que consiste a democracia A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 345 Para chegar a esta concepção de uma sociedade que evolui por si mesma no rumo de uma democracia cada vez mais real e completa é preciso não valo rizar as instituições propriamente políticas ser indiferente ao fato de o chefe de Estado ser ou não um rei designado pela condição do seu nascimento ou por uma eleição A definição da democracia que Durkheim nos propõe implica que a ordem política isto é do comando e da autoridade não passe de um fenômeno secun dário no conjunto da sociedade que a própria democracia que etimologica mente significa o poder do povo se caracterize não pela organização apropria da do comando mas por certos traços das funções governamentais do grau de comunicação entre a massa da população e os governantes Durkheim viveu numa época feliz anterior à guerra de 1914 durante a qual era possível acreditar que não houvesse outra forma de comunicação entre governantes e governados além daquela que merece as simpatias do observa dor Certamente não percebia que de acordo com sua definição de democracia um regime nacionalsocialista poderia em boa medida ser considerado uma democracia Num regime totalitário as funções difusas na sociedade se con centram efetivamente na pessoa dos que governam A função governamental tomase supremamente consciente As comunicações com a massa dos gover nados não se interrompem muito pelo contrário mesmo se essas comunica ções são estabelecidas por procedimentos que um sociólogo racionalista teria seguramente desaprovado E verdade que Durkheim introduzia na sua noção de consciência governa mental os conceitos de deliberação reflexão e espírito crítico Mas não é evi dente que a deliberação esteja ausente de um regime autoritário do tipo fascis ta quanto à reflexão ela pode estar a serviço de objetivos que condenamos Se o protótipo de uma sociedade nãodemocrática é o feudalismo o Estado total se não o Estado totalitário representa o extremo oposto Durkheim adotava uma definição mais sociológica do que política da de mocracia porque supunha que a consciência governamental e a comunicação entre o Estado e as massas só se pudessem efetivar por meio dos procedimen tos que observava na sociedade liberal e no regime representativo Não imagi nou que esta mesma concentração de poder e uma certa forma de comunica ção entre governantes e governados pudessem existir em conjunção com uma negação absoluta das formas representativas do poder e simultaneamente com um modo de governo fundamentalmente diverso Durkheim se preocupa a tal ponto em dar à função governamental uma ca pacidade de deliberação e reflexão que é pouco favorável ao sufrágio universal num só grau Nas suas Leçons de sociologie explica que a anarquia parlamen tar como a observada num país como a França adaptase mal às exigências das sociedades em que vivemos Sugere uma reforma segundo a qual introduziria 346 AS ETAPAS D O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mos o sufrágio em dois graus Este segundo ele teria o mérito de liberar os eleitos da pressão exercida sobre eles pelas paixões obscuras ou cegas das mas sas e por conseguinte de permitir aos governantes deliberar com mais liberdade sobre as necessidades coletivas Além disso a introdução do sufrágio em dois graus permite a Durkheim reencontrar na ordem política sua idéia favorita isto é a criação de corpos intermediários cujo protótipo é a corporação A maneira dos contrarevolucionários franceses da primeira metade do sé culo XIX Durkheim evoca a crise das sociedades modernas provocada pelo choque direto entre indivíduos isolados e um Estado todopoderoso Quer reintroduzir um elemento intermediário entre os indivíduos e o Estado quer que a sociedade seja mais orgânica evitando ao mesmo tempo o Estado total e os indivíduos dispersos e impotentes Contudo em vez de sonhar como os contrarevolucionários com a restauração dos corpos intermediários regionais nas províncias prefere as organi zações funcionais as corporações Há uma força das coisas contra a qual os melhores argumentos nada podem Enquanto os arranjos políticos põem os deputados e os governos de modo geral em contato imediato com os cidadãos é materialmente impossível que estes últi mos façam as leis Por isso os bons espíritos sempre preconizam a constituição das assembléias coletivas mediante sufrágio em dois ou mais graus Os intermediários intercalados liberam o governo E estes intermediários puderam ser instituídos sem que por isso se interrompesse a comunicação entre os conselhos governamentais Nào é necessário que sejâfti imediatos E preciso que a vida circule sem solução de continuidade entre o Estádo e os particulares e entre estes e o Estado Mas não há motivo para que tal circularão não se realize através dos órgãos interpostos Gra ças a esta interposição o Estado revelará mais de si próprio haverá uma distinção mais clara entre ele e o resto da sociedade e por isto será mais capaz de autonomia Nosso malestar político tem portanto a mesma causa do nosso malestar moral a inexistência de elementos secundários intercalados entre o Estado e o indivíduo Já vimos que esses grupos secundários são indispensáveis para que o Estado não oprima o indivíduo Percebemos agora que são necessários para que o Estado se li bere suficientemente do indivíduo Podese imaginar que sejam úteis para os dois lados pois de ambas as partes há interesse em que essas duas forças não estejam em contato direto embora sejam necessariamente ligadas Leçons de sociologie pp 115116 Os cursos de Durkheim sobre o problema da educação representam quanti tativa e qualitativamente uma parte importante da sua obra Quando lecionava na Sorbonne Durkheim teve no princípio uma cátedra de pedagogia e não de socio logia Estava obrigado portanto a dar todos os anos um curso de pedagogia Mas havia uma razão evidente para que se interessasse de qualquer forma pelo problema da educação a educação é em essência um fenômeno social e consiste em socializar os indivíduos Educar uma criança é preparála ou for A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 347 çála a participar de uma ou de várias comunidades Por isso como professor Durkheim encontrava seus temas favoritos quando estudava historicamente as diversas modalidades de educação praticadas na França A educação é um pro cesso social e cada sociedade tem as instituições pedagógicas que lhe convêm Assim como cada sociedade tem uma moral que de modo geral está ajustada às suas necessidades cada sociedade tem igualmente métodos de educação que respondem às necessidades coletivas As teorias da educação de Durkheim se inspiram nas mesmas concepções do homem e da sociedade que encontramos em todos os seus livros No ponto de partida Durkheim como Hobbes vê o homem dominado pelo egoísmo natu ral animado de desejos infinitos tendo necessidade portanto de ser discipli nado A educação consiste assim antes de mais nada em habituar os indivíduos a uma disciplina a qual deve ter e não pode deixar de ter um caráter autoritá rio Não se trata porém de uma autoridade brutal e material Por uma ambiva lência que sabemos hoje característica da própria sociedade a disciplina a que cada indivíduo está submetido é uma disciplina desejada e de certo modo ama da porque provém do grupo Pela ligação que o prende ao grupo o indivíduo descobre tanto a necessidade do devotamento quanto a da disciplina Formar os indivíduos tendo em vista sua integração na sociedade é tomálos conscien tes das normas que devem orientar a conduta de cada um e do valor imanente e transcendente das coletividades às quais cada um de nós pertence ou deverá pertencer Este primeiro tema da disciplina combina com o do individualismo As so ciedades modernas continuam a precisar da autoridade própria da consciência coletiva mas são elas ao mesmo tempo que fazem com que o indivíduo reali ze sua personalidade Nas sociedades modernas o objetivo da educação não é só disciplinar os indivíduos mas também promover o desenvolvimento da per sonalidade criar em cada um o senso da autonomia da reflexão e da escolha A fórmula poderia ser traduzida em termos kantianos é preciso submeter todas as pessoas à autoridade da lei que é essencialmente sòcial mesmo quando é moral mas esta sujeição à lei deve ser desejada por cada indivíduo porque só ela nos permite realizar nossa personalidade racional Encontramos assim o duplo caráter de todas as explicações sociológicas de Durkheim Considerada como meio ambiente a sociedade condiciona o siste ma de educação Todo sistema de educação exprime uma sociedade e respon de a certas exigências sociais mas tem igualmente a função de perpetuar os valores da coletividade Considerada como causa a estrutura social determina a estrutura do sistema de educação e este tem por objetivo associar os indivíduos à coletividade convencendoos a tomar como objeto do seu respeito ou do seu devotamento a própria sociedade 348 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Sociologia e filosofia Temse comentado muito que Durkheim expôs com o nome de sociologia uma filosofia social que foi mais filósofo do que sociólogo Incontestavelmente Durkheim tinha temperamento filosófico talvez mesmo religioso Falava sobre a sociologia com o entusiasmo moral de um profeta Por outro lado sua socio logia traduz uma visão a respeito do homem da sociedade moderna e da histó ria Poderseia alegar porém é o que farei pessoalmente que todos os gran des sistemas sociológicos implicam uma concepção sobre o homem e a histó ria Dizer que uma doutrina sociológica contém elementos filosóficos não é depreciála Deixarei de lado a visão histórica e a concepção sobre o homem já anali sadas em várias oportunidades Mas é preciso observar que a insistência de Durkheim em salientar a necessidade de um consenso assim como sua relati va negligência com respeito aos fatores do conflito estão vinculadas a certas tendências da sua filosofia A interpretação da sociedade moderna em termos de diferenciação social não é a única possível Para Max Weber a característica mais importante da sociedade moderna é a racionalização e não a diferencia ção cada um destes conceitos determina muitas conseqüências tanto do ponto de vista da interpretação científica dos fatos como do ângulo da apreciação mo ral e filosófica Dirigirei minhas observações críticas de preferência ao conceito de socie dade ou ainda à diversidade de acepções com que Durkheim emprega o termo sociedade Esta pluralidade de significados salienta a contradição interna ou pelo menos as tendências divergentes do seu pensamento Durante toda sua vida Durkheim quis ser um pensador positivista e um cientista um sociólogo capaz de estudar os fatos sociais como coisas de con siderálos do exterior e explicálos da mesma forma como os especialistas nas ciências da natureza explicam os fenômenos Há contudo no pensamento de Durkheim além de um positivismo constante e persistente a idéia de que a so ciedade é o lar do ideal e também o objeto real da fé moral e religiosa Evidentemente há equívocos e dificuldades que resultam desta dupla interpretação da sociedade A sociedade concreta observável não pode ser con fundida com a sociedade abrigo do ideal e menos ainda com a sociedade obje to das aspirações e crenças mais elevadas Se a crença mesmo religiosa tinha por objeto a adoração da sociedade concreta a filosofia de Durkheim estaria próxima de uma filosofia de espírito nacionalsocialista o que não é verdade Qualquer crítica de Durkheim precisa insistir nesta dualidade de sentido da própria noção de sociedade termo que pode ser interpretado de acordo com os textos ora como o meio ou conjunto social observado do exterior ora como a fonte do ideal objeto de respeito e amor A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 349 Na primeira acepção a sociedade é definida como o meio social e consi derada como aquilo que determina os outros fenômenos Mas o que é que determina o meio social Durkheim insiste com razão no fato de que as várias instituições família crime educação política moral religião são condiciona das pela organização da sociedade Cada tipo social tem seu tipo de família de educação de Estado de moral Mas tende a tomar o meio social como uma rea lidade total quando este é uma categoria analítica e não uma causa última Se em relação a uma instituição particular o meio social é uma causa sob um ou tro ponto de vista ele não é mais do que o conjunto das instituições que o meio social deveria explicar Durkheim se inclina a ver o meio social como uma realidade sui generis objetiva e materialmente definida quando na verdade ele é apenas uma repre sentação intelectual Esta tendência a realizar abstrações aparece na noção de corrente suicidógena Na verdade não há corrente suicidógena a não ser na imaginação e na terminologia de Durkheim A freqüência do suicídio é maior ou menor conforme as condições sociais e os grupos As taxas de suicídio reve lam certas características dos grupos mas não demonstram que os desespera dos que se matam são transportados por uma corrente coletiva Durkheim se exprime muitas vezes como se o meio social fosse suficien temente determinado para que se pudesse conhecendoo precisar as institui ções que lhe são necessárias Assim Durkheim parte da proposição cada sç ciedade tem sua moral o que todo o mundo pode admitir De fato a moral da sociedade romana difere concretamente da moral do Estado soviético ou do Estado liberal norteamericano É verdade que cada sociedade tem instituições crenças ou práticas morais que lhe são próprias e que caracterizam o tipo á que essas sociedades pertencem Contudo afirmar que as atitudes morais variam de um tipo social para outro não significa que conhecendo um tipo social seja possível determinar a moral que lhe convém Durkheim se exprime muitasve zes como se a sociedade fosse uma unidade fechada sobre si mesma exatamente definida Ora na verdade dentro de cada sociedade há conflitos sobre o que é um bem ou um mal As concepções morais estão em conflito e algumas delas terminam por se impor No entanto é bastante ingênuo imaginar que a ciência poderá um dia estabelecer qual a moral que se ajusta ao tipo da sociedade mo derna como se este tipo exigisse uma só concepção moral como se conhecen do a estrutura de uma sociedade pudéssemos dizer Eis aqui a moral de que esta sociedade precisa Em outras palavras é preciso substituir a noção de sociedade unidade com pleta e integral pela noção de grupos sociais que coexistem dentro de toda sociedade complexa Desde que se admite a pluralidade dos grupos sociais e o conflito das idéias morais percebese também que a ciência social será por mui to tempo e provavelmente para sempre incapaz de dizer aos moralistas e aos educadores qual é a moral que devem pregar em nome da ciência 350 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Há sem dúvida imperativos morais que são aceitos por todos os membros de uma sociedade pelo menos em abstrato Os temas mais interessantes po rém são justamente aqueles sobre os quais não há unanimidade E quando se abordam esses temas a sociologia é normalmente incapaz de indicar qual a moral que responde às necessidades da sociedade Pode ser que as mesmas organiza ções sociais se acomodem a diferentes concepções morais Além disso mesmo que o sociólogo demonstrasse que uma certa concepção moral favorece a esta bilidade da sociedade em que vivemos por que deveríamos em nome da moral colocar como objetivo último a estabilidade de nossa própria sociedade Uma das características dessa sociedade é que seus fundamentos sejam continua mente questionados A sociologia poderá explicar as razões desse questiona mento mas não pode responder às questões que os indivíduos se colocam e muito menos propor uma solução que seja científica Há duas razões para isso De um lado um mesmo tipo social pode ser com patível com várias soluções morais e vários regimes políticos Por outro lado o indivíduo que deseja julgar por si mesmo não está obrigado a se prender ao tipo social existente como à última palavra da aventura humana pode preferir outra moral mesmo que seja incompatível com a sociedade em que vivemos Penso que essa ilusão sobre a possibilidade de deduzir imperativos das aná lises de fato se explica em grande parte pela teoria da classificação dos tipos de sociedade Durkheim acreditava que era possível distribuir as diversas socie dades historicamente conhecidas seguindo uma única linha conforme seu grau de complexidade das sociedades unissegmentadas até as sociedades polisseg mentadas duplamente compostas Esta teoria na qual geralmente os intérpretes quase não insistem me pare ce ter largo alcance não na sociologia efetiva de Durkheim mas no seu sonho de uma forma acabada de ciência social A classificação das sociedades segundo seu grau de complexidade dava a Durkheim a possibilidade de uma distinção que prezava muito entre os fenô menos superficiais que deixava à história não sem um certo desprezo e os fenômenos profundos que pertenceriam essencialmente à sociologia Com efei to se admitirmos que um tipo social é definido pelo seu grau de complexida de ou pelo número de segmentos disporemos imediatamente de um critério para discernir o tipo a que pertence uma dada sociedade Se constatarmos que uma sociedade de tipo relativamente pouco complexo desenvolve de súbito uma indústria moderna como o Japão dirseá que essa sociedade a despeito do seu nível de desenvolvimento econômico continua a ser uma sociedade de tipo diferente mais primitivo do que o das sociedades ocidentais devido ao núme ro e à composição dos seus segmentos Em outras palavras Durkheim pensava ter encontrado o meio de separar os fenômenos fundamentais da estrutura ou da integração social que pertencem A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 35 ao campo da sociologia dos outros fenômenos mais superficiais como os regi mes políticos e até mesmo as instituições econômicas que pertencem ao cam po da ciência histórica e não obedecem a leis estritas Esta classificação das sociedades que leva à oposição do profundo e dc superficial do tipo social e dos fenômenos históricos é provocada a meu ver por uma ilusão positivista ou realista segundo a qual uma classificação das so ciedades e uma só é válida em termos absolutos Para examinar e criticar o segundo sentido durkheimiano de sociedade se gundo o qual ela é concebida como moradia do ideal objeto de respeito e ado ração vou servirme de um livrinho Sociologie et philosophie no qual estão reunidos três ensaios de Durkheim um artigo de 1898 Représentations indi viduelles et représentations collectives uma comunicação à Sociedade France sa de Filosofia de 1906 sobre a Détermination du fait moral e finalmente uma comunicação ao Congresso Internacional de Filosofia realizado em Bolo nha em 1911 sobre Jugements de réalité et jugements de valeur Nesta peque na obra estão enunciados com bastante vigor alguns dos temas essenciais de Durkheim O primeiro tema afirma que o homem só é homem na medida em que é civilizado na sociedade e pela sociedade Só a integração na sociedade faz do homem um animal diferente dos outros Escreve Durkheim Há muito que Rousseau demonstrou que se afastarmos do homem tudo o que lhe vem da sociedade ele ficará sendo apenas um ser reduzido à sensação e mais ou menos indiferenciado do animal Sem a lingua gem coisa eminentemente social as idéias gerais ou abstratas e conseqüente mente todas as funções mentais superiores são praticamente impossíveis Aban donado a si mesmo o indivíduo ficaria na dependência das forças físicas se lhe foi possível escapar libertarse e criar para si uma personalidade é porque pôde abrigarse sob uma força sui generis força intensa porque resulta da as sociação de todas as forças individuais mas força inteligente e moral capaz portanto de neutralizar as energias nãointeligentes e amorais da natureza a força coletiva O pensador teórico pode demonstrar que o homem tem direito à liberdade mas qualquer que seja o valor de tais demonstrações o certo é que esta liberdade só se torna uma realidade por meio da sociedade Sociologie et philosophie p 79 Assim sem a sociedade o homem seria um animal É por meio da socie dade que o homem animal chega à humanidade A isto é fácil de objetar dizen do que não basta que os animais vivam em grupo para que desenvolvam uma linguagem e as formas superiores de inteligência A sociedade é certamente uma condição necessária ao desenvolvimento da humanidade da espécie humana mas esta condição só é suficiente na medida em que o homem animal é dotado de capacidades que as outras espécies não possuem Linguagem compreensão e comunicação implicam evidentemente a existência de vários homens e 352 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO neste sentido uma sociedade Mas não basta que haja vários animais juntos pa ra haver linguagem compreensão e comunicação do mesmo tipo da sociedade humana Durkheim tem razão quando diz que a linguagem a moral e a religião são fenômenos sociais desde que esta proposição evidente banal e desprovida de interesse do modo como acabo de formular não seja interpretada como se acrescentássemos o advérbio essencialmente A moral a linguagem e a reli gião comportam uma dimensão social Todos os fatos humanos apresentam um aspecto social Isto não quer dizer contudo que estes fatos humanos sejam es sencialmente sociais ou que a significação verdadeira do fenômeno considera do resulte da sua dimensão social Esta observação se aplica particularmente à moral Segundo Durkheim só pode haver uma moral se a sociedade for em si mesma carregada de um valor superior aos indivíduos Chegamos portanto a esta conclusão se existe uma moral um sistema de de veres e de obrigações é preciso que a sociedade seja uma pessoa moral qualitati vamente distinta das pessoas individuais que compreende e de cuja síntese resul ta Podemos notar a analogia que há entre este raciocínio e aquele com o qual Kant demonstra a existência de Deus Kant postula Deus porque sem esta hipótese a moral não é inteligível Nós postulamos uma sociedade especificamente diferen te dos indivíduos porque de outro modo a moral perde seu objeto o dever fica sem um ponto de apoio Vale acrescentar que este postulado pode ser verificado facil mente pela experiência Embora já tenha tratado muitas vezes a questão nos meus livros não me seria difícil acrescentar novas razões àquelas que dei anteriormen te para justificar esta concepção De fato toda esta argumentação deriva de alguns temas muito simples corresponde a admitir que de acordo com a opinião corren te a moral só começa quando começam o desprendimento e o devotamento Mas este desprendimento porém só tem sentido se aquilo a que nos subordinamos tem mais valor do que nós indivíduos Ora no mundo da experiência só conheço uma coisa que tem realidade moral mais rica mais complexa do que a nossa é a cole tividade Enganome aliás há outra que poderia desempenhar o mesmo papel a divindade Entre Deus e a sociedade é preciso escolher Não examinarei aqui as razões que podem militar em favor de uma ou de outra solução ambas são coe rentes Acrescento que do meu ponto de vista esta escolha me deixa indiferente pois não vejo na divindade mais do que a sociedade transfigurada e pensada sim bolicamente Sociologie etphilosophie pp 7175 Assim entre Deus e a sociedade é preciso escolher Esta é uma frase bem característica da filosofia de Durkheim que mostra aquilo que realmente pen sava É necessário dizer que na minha opinião a escolha não parece necessária e que o raciocínio de Durkheim me parece pura e simplesmente um sofisma Sua idéia é a seguinte um ato só é moral se tem por objeto uma pessoa que não A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 353 a do seu autor Ora esta outra pessoa não vale mais do que eu Portanto para que possa haver uma moralidade é preciso que haja uma realidade que em si mesma valha mais do que eu ou do que qualquer outra pessoa Esta realidade superior em valor ao ator individual só pode ser Deus ou a sociedade e não há nenhuma diferença entre as duas hipóteses já que a religião de acordo com o estudo das formas elementares da vida religiosa não passa de adoração da so ciedade transfigurada O primeiro sofisma reside na análise do ato moral ou daquilo que consti tui um ato e que faz dele um ato moral Durkheim afirma que se um ato que tem por objeto minha própria pessoa não pode ser moral um ato que tenha outra pessoa por objeto também não poderia sêlo Ora a opinião corrente a que se refere Durkheim está pronta a admitir que o ato de devotamento que tem por objeto salvar a vida de outrem é moral mesmo que a pessoa salva não valha mais do que a que a salvou É o desprendimento e o devotamento a outrem que tor nam o ato moral não o valor realizado no objeto do ato Num romance célebre La carrière de Beauchamp George Meredith apre senta um homem Nevil Beauchamp que no fim do livro perde a vida salvan do a de uma criança11 O episódio ilustra o problema moral devemos admirar o homem superior que sacrifica sua vida para salvar alguém que lhe é inferior ou raciocinando pragmaticamente devemos considerar como absurdo que um homem superior se sacrifique em favor de um ser de valor inferior Deixo aos moralistas a preocupação de resolver este dilema o que não pro voca dúvidas porém é o fato de que a consciência comum não considera que o objeto de um ato deva ser em si mesmo superior à pessoa do seu autor para que o ato seja moral Um filósofo Hamelin perdeu sua vida lançandose à água para salvar alguém que se afogava embora ele próprio não soubesse nadar Um ato sublime e pragmaticamente absurdo De qualquer forma nosso julgamento não é determinado pelo valor da vida a salvar É também um sofisma acreditar que o valor que criamos com nossa conduta deva estar por assim dizer encarnado antecipadamente no real Durkheim toma não tanto a religião mas uma concepção vulgar da religião Quer que os valores superiores existam antecipadamente em Deus e que os valores realizados pelos homens dependam dos valores possuídos antecipadamente pelo ser transcenden te Duvido que seja assim numa interpretação apurada da religião De qualquer forma numa filosofia puramente humana os valores morais são uma criação gra tuita da humanidade O homem é uma espécie animal que alcança progressiva mente a humanidade Postular que haja um objeto valorizado em si mesmo é fal sear o sentido da religião ou o sentido da moralidade humana Um terceiro sofisma consiste em admitir que o termo sociedade é como tal definido e que se podem comparar e opor sociedade e divindade como duas coisas circunscritas e observáveis Não existe a sociedade ou uma sociedade 354 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO há grupos humanos Enquanto não definirmos precisamente a que grupos se aplica o conceito de sociedade permaneceremos na área de um equívoco peri goso Qual é a sociedade equivalente a Deus É a família É a classe social É a sociedade nacional É a humanidade Pelo menos na filosofia de Auguste Comte não havia dúvida sobre este ponto a sociedade objeto de adoração reli giosa era toda a humanidade não a humanidade concreta mas o que há de me lhor nos homens através dos séculos Se não estabelecermos com precisão o que entendemos por sociedade a concepção de Durkheim pode contra sua inten ção levar ou parecer levar às pseudoreligiões da nossa época à adoração de uma coletividade nacional pelos seus próprios membros Por razões múltiplas e evidentes Durkheim um racionalista e liberal teria detestado essas religiões seculares A própria possibilidade deste malentendido mostra o perigo de usar o conceito de sociedade sem uma especificação Essa metafísica da sociedade vicia infelizmente certas intuições profun das de Durkheim sobre as relações entre a ciência a moral e a religião por um lado e o contexto social por outro Segundo Durkheim as diferentes atividades do homem se diferenciaram progressivamente no curso da história Nas sociedades arcaicas a moral é inse parável da religião gradualmente no correr dos séculos as categorias do direi to da ciência da moral e da religião adquiriram sua autonomia Esta afirma ção é correta mas não implica que todas estas categorias tirem sua autoridade de sua origem social Quando Durkheim esboça uma teoria sociológica do co nhecimento e da moral essa teoria deveria resultar da análise objetiva das cir cunstâncias sociais que influenciam o desenvolvimento das categorias científi cas e das noções morais Mas a análise a meu ver é falseada pela convicção de Durkheim de que não há uma diferença fundamental entre ciência e moral en tre julgamento de valor e de fato Nos dois casos estaríamos diante de realida des essencialmente sociais nos dois casos a autoridade de tais julgamentos es taria fundamentada na própria sociedade Dois textos do artigo Jugements de fa it et jugements de valeur mostram a comparação e a quase equivalência dos dois tipos de julgamentos Um julgamento de valor exprime a relação entre uma coisa e um ideal Ora o ideal é dado como a coisa embora de maneira diferente E também uma reali dade a seu modo A relação expressa une assim dois termos dados como num jul gamento de existência Dirseá que os julgamentos de valor põem em jogo os ideais Mas com os julgamentos de realidade acontece o mesmo Isso porque tam bém os conceitos são construções do espírito partindo de ideais e não seria difí cil demonstrar que se trata mesmo de ideais coletivos já que só podem se consti tuir pela linguagem e através da linguagem que é no mais alto grau uma coisa coletiva Portanto os elementos do julgamento são nos dois casos os mesmos So ciologie et philosophie p 139 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 3i Uma frase deste texto é característica os conceitos são construções d espírito partindo dos ideais Se Durkheim quer dizer que as construções do es pírito não são realidades empíricas ou ideais ele tem evidentemente razão Ma se afirma que o conceito é semelhante a ideal no sentido moral do termo su proposição é a meu ver um puro sofisma Mais adiante Durkheim escreve Se todo julgamento opera com ideais estes são de diferentes espécies H aqueles cujo papel é exclusivamente exprimir as realidades a que se aplicam ex primilas tais como são Tratase dos conceitos propriamente ditos Há ainda outros cuja função pelo contrário é transfigurar as realidades a que estão associados São os ideais de valor Nos primeiros casos é o ideal que serve de símbolo à coisa para tornála assimilável pelo pensamento No segundo é a coisa que serve d símbolo ao ideal e o que o torna representável aos diferentes espíritos Natural mente os julgamentos diferem segundo os ideais que empregam Os primeiros se limitam a analisar a realidade e a traduzila tão fielmente quanto possível Os se gundos ao contrário denotam o novo aspecto de que ela se enriquece sob a ação do ideal Ibid pp 139140 Nesta aproximação dos julgamentos de fato e de valor encontramos sem pre a convicção de Durkheim de que a autoridade dos conceitos que tendem a exprimir a realidade ou dos ideais que tendem a informar a ação provém da própria sociedade Creio que neste ponto há um equívoco O estudo sociológico das origens dos conceitos não se confunde absolutamente com a teoria do conhecimento isto é com a análise das condições transcendentais da verdade As condições da verda de científica nada têm a ver com as circunstâncias do advento social da verdade é uma confusão sistemática imaginar que existe uma teoria sociológica do conhe cimento Existe sim uma teoria sociológica das condições nas quais se desen volve a ciência o que conhecemos hoje como uma sociologia do conhecimento a qual presta serviços à teoria do conhecimento mas não se confunde com ela Com relação aos julgamentos de valor o erro é outro Durkheim pretende que o ideal moral seja um ideal social que a sociedade confira seu valor à mo ral Isto a meu ver é outro equívoco Sem dúvida as concepções que podemos ter dos valores dependem de circunstâncias sociais No entanto o fato de que nos sos julgamentos de valor nos sejam sugeridos pelo meio social não prova que a finalidade da moral seja um determinado estado da sociedade Naturalmente quando pretendemos uma certa moralidade por implicação queremos uma certa sociedade ou uma certa modalidade de relações humanas Neste sentido há uma vontade social implicada em toda vontade moral A sociedade porém realidade empírica não determina o conteúdo da moral De duas uma ou che gamos indiretamente à idéia de que a sociedade considerada globalmente im 356 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO plica uma certa moralidade e neste caso surge a objeção que formulei ante riormente uma moral determinada e única não resulta necessariamente de uma determinada estrutura social pois em cada época e em cada sociedade há con flitos a respeito do conteúdo da moral Ou então entendemos que nossa vonta de moral é comandada por uma vontade social mas a afirmativa pode ser inver tida escolhemos um objetivo social ou político em função de um ideal moral O caráter filosófico da sociologia de Durkheim explica a violência das pai xões que levantou há pouco mais de meio século Na época em que lavrava na França o conflito entre o ensino religioso e o leigo a fórmula sociedade ou divindade incendiava os ânimos Nas escolas normais e nas escolas primárias a sociologia aparecia como a fundamentação da moral leiga substituindo a moral católica Quando Durkheim afirmava não encontrar diferença entre a di vindade e a sociedade esta afirmativa que para ele era respeitosa com relação à religião parecia a alguns atentatória aos valores religiosos Assim se explica por que hoje ainda o pensamento de Durkheim é interpretado de tantas manei ras diferentes Estas interpretações contraditórias são explicáveis se nos lembrarmos de uma dualidade que não é contradição e que encontramos no centro do pensa mento de Durkheim Este procura reconstituir o consenso social e reforçar a autoridade dos imperativos e dos interditos coletivos Para alguns críticos esta res tauração das normas sociais caracteriza um empreendimento conservador tal vez mesmo reacionário De fato as idéias de Durkheim evocam às vezes a segunda parte da carrei ra de Auguste Comte em que este se esforçou no Système de politique positi ve em fundar uma religião da humanidade Esta interpretação é verdadeira só em parte De acordo com Durkheim a norma social cuja autoridade convém re forçar não só autoriza o indivíduo a se realizar livremente mas considera dever de cada um a utilização do próprio julgamento e a afirmação da sua autonomia Durkheim quer estabilizar uma sociedade cujo princípio supremo é o respeito à pessoa humana e o desenvolvimento da autonomia individual Conforme se dê maior ênfase ao reforço das normas pessoais ou ao desenvolvimento da auto nomia individual a interpretação será conservadora ou ao contrário raciona lista e liberal A interpretação mais verdadeira é a que combina estas duas visões apa rentemente divergentes No centro do pensamento de Durkheim vejo o esforço dirigido para a demonstração de que o pensamento racionalista individualista e liberal é o termo provisoriamente último da evolução histórica Esta escola de pensamento que responde à estrutura das sociedades modernas deve ser apro vada contudo ela implica simultaneamente o risco de provocar a desagregação social e o fenômeno da anomia se as normas coletivas indispensáveis a qual quer consenso não forem reforçadas A GERAÇÃO DA PASSAGEM D O SÉCULO 35 Segundo as idéias de Durkheim a sociologia justifica o individualismo ra cionalista e prega ao mesmo tempo o respeito pelas normas coletivas Esta i a conclusão de uma investigação em cuja origem conforme Mareei Mauss noí recorda se coloca a velha questão das relações entre o indivíduo e a socieda de ou entre o individualismo e o socialismo Indicações biográficas 1858 15 de abril Nasce em Épinal Émile Durkheim de uma família judia em que houve vários rabinos Seu pai morre quando Durkheim ainda era muito pequeno Estuda no colégio de Épinal e depois se prepara em Paris no liceu LouisleGrand para o concurso de admissão à École Normale Supérieure Encontro com Jean Jaurès na pensão Jauflret Jaurès ingressa na Escola Normal um ano antes de Durkheim 1879 Durkheim começa a estudar na École Normale Supérieure entre seus professo res estão Fustel de Coulanges e de Boutroux 1882 Formado em filosofia Durkheim é nomeado professor em Sens e em Saint Quentin 18851886 Um ano de licença para estudar ciências sociais em Paris e na Alemanha com Wundt 18861887 De volta da Alemanha Durkheim publica na Revuephilosophique três arti gos Les études récentes de Science sociale La Science positive de la morale en Allemagne La philosophie dans les universités allemandes 1887 Durkheim é nomeado professor de pedagogia e de ciência social na Faculdade de Letras da Universidade de Bordeaux Tratase do primeiro curso de sociologia cria do em uma universidade francesa Espinas Hamelin e Rodier são seus colegas Charles Lalo e Léon Duguit seus alunos12 1888 Artigo sobre Suicídio e natalidade na Revue philosophique 1891 Durkheim dá um curso para os candidatos à diplomação em filosofia para estu dar com eles os grandes precursores da sociologia Aristóteles Montesquieu Comte 1893 Nota sobre a definição do socialismo na Revue philosophique Durkheim defende sua tese de doutoramento Da divisão do trabalho social jun tamente com La contribution de Montesquieu à la constitution de la Science sociale 1895 As regras do método sociológico 1896 O curso de sociologia de Durkheim é transformado numa cátedra Fundação de Lannée sociologique onde Durkheim publica La prohibition de 1inceste et ses origines La définition des phénomènes religieux etc A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 359 1897 Le suicide 1900 Artigo Sur le totémisme em Lannée sociologique Durkheim militante do lai cismo profundamente abalado pelo caso Dreyfus preocupase cada vez mais com o problema religioso 1902 Durkheim é nomeado suplente da cadeira de pedagogia da Sorbonne 1906 Nomeado titular da cadeira de pedagogia da Faculdade de Letras de Paris onde ensina paralelamente sociologia e pedagogia Comunicação à Sociedade Francesa de Filosofia sobre La détermination dufait moral 1909 Curso no Collège de France sobre As grandes doutrinas pedagógicas na França desde o século XVIII 1911 Comunicação ao Congresso de Filosofia de Bolonha sobre Jugements de réalité et jugements de valeur 1912 As formas elementares da vida religiosa 1913 Sua cadeira recebe o nome de Cátedra de Sociologia da Sorbonne Comuni cação à Sociedade Francesa de Filosofia sobre Le problème religieux et la dua lité de la nature humaine 1915 Durkheim perde seu único filho morto em combate na Salônica Publica dois livros inspirado pelas circunstâncias LAllemagne audessus de tout La menta lité allemande et la guerre e Qui a voulu la guerre Les origines de la guerre d après les documents diplomatiques 1917 Em 15 de novembro morre Durkheim em Paris Notas 1 Vêse como a divisão do trabalho nos aparece sob um aspecto diferente daque le que os economistas percebem Para estes a divisão do trabalho consiste essencial mente em produzir mais Para nós esta produtividade maior é apenas uma conseqüên cia necessária uma contrapartida do fenômeno Se nos especializamos não é para pro duzir mais mas para poder viver nas novas condições de existência que surgem De la division du travail social p 259 Foi Adam Smith que em sua célebre obra Pesquisa sobre a natureza e as causas da riqueza das nações 1776 colocou no primeiro plano da análise do sistema econô mico para explicar a produtividade o comércio e o emprego de bens de capital o fe nômeno da divisão do trabalho O estudo de Adam Smith que se encontra essencial mente nos três primeiros capítulos do livro I de A riqueza das nações começa por uma famosa descrição das operações sucessivas de uma fábrica de alfinetes cujos elemen tos foram provavelmente tirados da Grande encyclopédie de Diderot e DAlembert Co meça com esta frase Os maiores aperfeiçoamentos no poder produtivo do trabalho e a maior parte da habilidade da capacidade e da inteligência com a qual ele é dirigido e aplicado devemse ao que parece à divisão do trabalho No capítulo II A Smith procura o princípio que deu origem à divisão do trabalho Esta divisão do trabalho da qual decorrem tantas vantagens não deve ser vista na sua origem como a conseqüên cia de uma sabedoria humana que tenha previsto e que tenha tido como objetivo esta opulência geral que é o seu resultado ela é a conseqüência necessária embora lenta e gradual de uma certa tendência natural em todos os homens que não pretendem ter uma visão assim tão utilitarista é a tendência que os leva a traficar a trocar e negociar uma coisa com outra Adam Smith aliás não vê só vantagens na divisão do trabalho No capítulo V de sua obra ele denuncia os perigos do embrutecimento e do entorpecimen to das faculdades intelectuais que podem resultar de um trabalho parcializado e pede que o governo tome precauções para prevenir esse mal A este propósito vejase o arti go de Nathan Rosenberg Adam Smith and the division of labour two views or one Economica maio de 1965 2 A divisão do trabalho é portanto um resultado da luta pela vida mas é um resultado suavizado Graças à divisão do trabalho com efeito os rivais não são obriga A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 361 dos a se eliminarem mutuamente mas podem coexistir uns ao lado dos outros E tam bém à medida que ela se desenvolve proporciona a um grande número de indivíduos que nas sociedades mais homogêneas estariam condenados ao desaparecimento os meios de se manter e de sobreviver Entre muitos povos inferiores todo organismo mal formado devia perecer pois não tinha utilidade em nenhuma função Às vezes antecipan do e consagrando de certa forma os resultados da seleção natural condenavamse à mor te os recémnascidos débeis ou defeituosos e o próprio Aristóteles considerava natural esse costume Nas sociedades mais avançadas o que acontece é muito diferente Um indivíduo deficiente pode encontrar nos quadros complexos da nossa organização social um lugar onde lhe seja possível prestar serviços à coletividade Se seu defeito é apenas corporal e tem o cérebro sadio poderá dedicarse aos trabalhos de gabinete às funções especulativas Se o seu cérebro é deficiente deverá sem dúvida renunciar a enfrentar a grande concorrência intelectual mas a sociedade tem nos alvéolos secun dários da grande colmeia nichos bem pequenos que não deixarão que seja eliminado Da mesma forma entre as populações primitivas o inimigo vencido é morto mas onde as funções industriais estão separadas das funções militares ele sobreviverá ao lado do vencedor na qualidade de escravo De la division du travail social p 253 3 Gabriel Tarde 18431904 é autor de La criminalité comparée 1888 Les trans formations du droit 1893 Les lois de Vimitation 1890 La logique sociale 1895 Uopposition universelle 1897 e Uopinion de la foule 1901 Sua influência muito pequena na França é maior nos Estados Unidos O professor Paul Lazarsfeld se inte ressa muito por este autor e fala da sua vitória póstuma 4 O mesmo debate foi retomado recentemente por J D Douglas The Social Mea nings of Suicide Princeton Univ Press 1967 5 Maurice Halbwachs Les causes du suicide Paris Alcan 1930 6 A antropologia moderna modificou profundamente a teoria do totemismo até dissolver quase toda a sua realidade Sobre esta revolução ver o livro de Claude LéviStrauss Le totémisme d aujourdhui Paris PUF 1962 7 Bergson escreve A humanidade geme quase esmagada sob o peso dos pro gressos que fez Não sabe o quanto seu futuro depende dela Cabe a ela ver primeiro se quer continuar existindo Cabelhe perguntar depois se quer só existir ou fazer o es forço adicional necessário para que se realize até mesmo em nosso refratário planeta a função essencial do Universo que é uma máquina de fabricar deuses H Bergson Les deux sources de la morale et de la religion Paris PUF 1965 140f edição p 338 8 Jules Monnerot Les faits sociaux ne son pas des choses Paris Gallimard 1946 9 Eis como E Durkheim critica o método dedutivo e abstrato da economia clás sica A economia política tem como objeto diz Stuart Mill os fatos sociais que se pro duzem principal ou exclusivamente com base na aquisição de riquezas A matéria da economia política assim entendida não é feita de realidades que podem ser indicadas com o dedo mas sim de simples possíveis de puras concepções do espírito isto é fatos que o economista concebe como se referindo ao fim considerado e tais como os con cebe Ele empreende por exemplo o estudo daquilo que chama de produção De saída acredita poder enumerar os principais agentes que a tomam possível e passálos em revista Isso ooroue não descobriu sua existência observando as condições das auais 362 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO dependia a coisa estudada senão ele teria começado por expor as experiências que lhe permitiam tirar essa conclusão Se desde o início da pesquisa e em poucas palavras ele faz essa classificação é porque a obteve por simples análise lógica Parte da idéia de produção decompondoa verifica que ela implica logicamente as idéias de forças natu rais de trabalho de instrumento ou de capital a seguir dá a essas idéias derivadas o mesmo tipo de tratamento A mais fundamental das teorias econômicas a de valor é ni tidamente constituída segundo esse método Se o economista estudasse o valor como uma realidade deve ser estudada nós o veríamos primeiramente mostrar como a coisa indi cada com aquele nome pode ser identificada a seguir classificar as espécies procurar por induções metódicas as causas em virtude das quais elas variam comparar final mente esses diversos resultados para deduzir uma fórmula geral A teoria só poderá surgir portanto depois de se ter levado muito longe a ciência Em vez disso nós a en contramos desde o início O economista para fazer ciência contentase em se concen trar tomar consciência da idéia que tem de valor isto é de um objeto que pode ser tro cado pensa que ela implica a idéia de utilidade que esta implica a de raridade etc Cons trói sua definição com os produtos de sua análise Confirmaa sem dúvida com alguns exemplos Mas quando pensamos nos inúmeros fatos que uma tal teoria deve explicar como podemos atribuir algum valor demonstrativo aos fatos necessariamente raros que são citados desse modo ao acaso da sugestão Assim em economia política como em moral a parte da investigação científica é muito restrita e a da arte preponderante Les règles de la méthode sociologique pp 2426 Essa critica foi retomada pelos economistas discípulos de Durkheim como Simiand para contestar as construções da economia pura neoclássica das escolas austríacas ou walrassianas Tem a ver também com as críticas que o historicismo alemão já fazia à eco nomia clássica inglesa 10 Éric Weil Philosophie politique Paris Vrin 1956 11 Beauchamp s Career romance do escritor inglês George Meredith 1828 1909 publicado em 1875 A tradução francesa La carrière de Beauchamp foi publi cada por Gallimard em Paris 1928 12 Espinas 18441922 crítico de Spencer e seu introdutor na França teve uma influência sem dúvida determinante sobre a formação do pensamento sociológico de Durkheim Suas principais obras são Les sociétés animales 1877 Histoire des doc trines économiques 1892 La philosophie sociale au XVIII siècle 1898 Sobre o pen samento de Espinas consultese G Davy Sociologues d hier et d aujourdhui Paris PUF 1950 Bibliografia OBRAS DE DURKHEIM Há uma lista dos principais artigos publicados em revistas em Leçons de sociolo gie Physique des moeurs et du droit pp IXXI Aqui damos apenas uma relação das obras principais De la division du travail social Paris Alcan 1893 lf ed de acordo com a 7 edição Paris PUF 1960 que contém um prefácio acrescentado por Durkheim na 2 edi ção intitulado Quelques remarques sur les groupements professionnels UAllemagne audessus de tout La mentalité allemande et la guerre Paris Armand Colin 1915 La sociologie com M Mauss Paris Larousse 1915 in La Science française Édtica tion et sociologie Paris Alcan 1922 nova ed Paris PUF 1966 Uêduçation morale Paris Alcan 1923 La sociologie dans l enseignement secondaire Opinion de etc Paris Girard et Briè re 1900 La sociologie formaliste in A Cuvillier Ou va la sociologie française Paris Rivière 1953 Leçons de sociologie Physique des moeurs et du droit ed por H Nail Kubali e Geor ges Davy Paris PUF e Istambul 1950 Les formes élémentaires de la vie religieuse Le système totémique en Australie Paris Alcan 1912 as citações feitas referemse à 4 edição Paris PUF 1960 Les règles de la méthode sociologique Paris Alcan 1895 as citações que fiz desta obra referemse à 13 edição Paris PUF 1956 Le socialisme Sa définition ses débuts la doctrine saintsimonienne Paris Alcan 1928 Le suicide Étude de sociologie Paris Alcan 1897 as citações desta obra referemse à nova edição Paris PUF 1960 Lèvolution pédagogique en France I Des origines à la Renaissance II De la Renais sanc Paris Alcan 1938 2 vols 364 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Montesquieu et Rousseau précurseurs de la sociologie Paris Rivière 1953 tradução da tese secundária escrita em latim de 1892 Pragmatisme et sociologie Paris Vrin 1955 cursos de 19131914 reconstituídos por A Cuvillier segundo anotações de alunos Qui a voulu la guerre Les origines de la guerre d après les documents diplomatiques Paris Armand Colin 1915 Quid Secundatus politicae scientiae instituendae contulerit Burdigalae Goumouilhou 1892 trad in Revue d histoirepolitique et constitutionnelle 1937 com o título Mon tesquieu sa part dans la fondation des sciences politiques et de la Science des sociétés Sociologie etphilosophie Paris Alcan 1925 as citações feitas referemse à nova edi ção Paris PUF 1963 Sociologie et sciences sociales Paris Alcan 1909 in De la méthode dans les sciences OBRAS SOBRE DURKHEIM Aimard G Durkheim et la science économique Lapport de la sociologie à la théorie économique moderne Paris PUF 1962 Alpert H Émile Durkheim and his Sociology Nova York Columbia University Press 1939 Annales de VUniversité de Paris n 11960 Centenário do nascimento de É Durkheim textos de G Davy A Lalande R Aron G Gurvitch H LévyBruhl G Lebras Cl LéviStrauss Bouglé C Bilan de la sociologie française contemporaine Paris Alcan 1938 nova ed Davy G Sociologues d hier et d aujourdhui Paris PUF 1950 2 ed Duvignaud J Durkheim sa vie son oeuvre Paris PUF 1965 Fauconnet P The Durkheim school in France in Sociological Review 1927 Gurvitch G La vocation actuelle de la sociologie Paris PUF 11 1957 t II 2 ed 1963 Lacombe R La méthode sociologique de Durkheim Paris 1926 Parsons T The Structure of Social Action Nova York The Free Press 1949 Vialatoux J De Durkheim à Bergson Paris Bloud et Gay 1939 Wolff Kurt H et aí Émile Durkheim 18581917 A Collection of Essays Columbus Ohio University Press 1960 OBRAS EM PORTUGUÊS As regras do método sociológico e outros textos tradução da dra Margarida Garrido Esteves e outros São Paulo Abril Cultural 1973 Os Pensadores 33 As regras do método sociológico e outros textos tradução de Maria Isaura Pereira de Queirós 5f ed São Paulo Editora Nacional 1968 Educação e sociologia com um estudo da obra de Durkheim pelo prof Paul Fauconnet tradução do prof Lourenço Filho 7f ed São Paulo M elhoramentos 1967 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 365 O suicídio estudo de sociologia tradução de Luiz Cary Margarida Garrido J Vascon celos Esteves 2 ed Lisboa Presença Os grupos profissionais tradução e notas de A A Freitas e Silva Lisboa Inquérito 1940 Sociologia organizador José Albertino Rodrigues tradução de Tânia Natal Rodrigues São Paulo Ática 1978 textos selecionados Sociologia e filosofia prefácio de C Bouglé tradução de J M de Toledo Camargo Rio de Janeiro Forense 1970 Admux du malto Un nobre olliño de malta non máis 20 cm de altura 160 g de peso e madeira fresca Vilfredo Pareto O problema da organização social não pode ser resolvido com decla mações baseadas num ideal mais ou menos vago de justiça mas só atra vés de pesquisas científicas destinadas a encontrar o modo de ajustar os meios ao fim e para cada homem o de ajustar o esforço e o sofrimento à satisfação de forma que o mínimo de esforço e sofrimento leve o máxi mo de bemestar ao maior número possível de pessoas Les systèmes socialistes 1903 II p 169 Passando de Durkheim a Vilfredo Pareto mudamos de clima intelectual lin guagem e estilo Consideremos um momento a frase de Durkheim Entre Deus e a sociedade é preciso escolher Pareto ao ouvir esta fórmula teria começa do por sorrir lembrando o que explicou no seu Traité de sociologie générale embora as derivações se transformem rapidamente os resíduos são relativa mente constantes Na terminologia de Pareto os resíduos são os sentimentos ou a expressão dos sentimentos inscritos na natureza humana as derivações são os sistemas intelectuais de justificação pelos quais os indivíduos disfarçam suas paixões ou dão uma aparência de racionalidade a proposições ou condutas que não são racionais Na verdade o homem é um ser não racional que raciocina Embora raramente se comporte de modo lógico sempre quer fazer crer a seus semelhantes que seu comportamento é lógico A fórmula Deus ou a sociedade pareceria sem sentido a Pareto A noção de Deus não é uma noção lógicoexperimental ninguém pôde jamais observar Deus Por isso o cientista deve afastar idéias como essa que por definição esca pam aos únicos procedimentos científicos a observação a experimentação o raciocínio Quanto ao conceito de sociedade é um tipo de conceito igualmente confuso e equívoco A que realidade Durkheim quer se referir quando fala da sociedade A família o público de um curso uma universidade um país toda a humanidade Qual dessas diferentes realidades ele batiza de sociedade e por que pretende impor uma escolha entre um conceito equívoco uma vez que não é defi nido e uma noção transcendente que não tem lugar na ciência 368 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A ação nãológica e a ciência A compreensão do sistema de Pareto exige uma interpretação rigorosa dos conceitos de ação lógica e ação nãológica Precisamos portanto começar pelo estudo destas noções Para compreender o que é uma ação lógica o mais simples é observar o comportamento de um engenheiro ou de um especulador já que a sociologia de Pareto tem origem nas reflexões e decepções de um engenheiro e economista O engenheiro quando não se equivoca conduzse de modo lógico O economista quando não tem ilusões sobre seu saber pode compreender algu mas das condutas humanas A sociologia porém lida com homens que geralmen te não se conduzem nem como engenheiros nem como especuladores atentos O engenheiro que constrói uma ponte conhece o objetivo que pretende al cançar Estudou a resistência dos materiais e tem condições de calcular a rela ção entre estes meios e os fins propostos Há uma correspondência entre a relação meiosfim tal como ele a concebe e a relação meiosfim tal como ocorre ob jetivamente na realidade O comportamento do especulador protótipo do agente econômico tem as mesmas características Seu objetivo é bem preciso ganhar dinheiro Estabele ce uma relação lógica entre os meios que emprega adquirir valores no mo mento em que eles são baratos e o objetivo que quer atingir aumentar seu capital Se sua previsão for correta os acontecimentos reproduzirão objetiva mente a sucessão de meios e fins tal como a imaginara O caso do especulador não é naturalmente tão puro quanto o do engenhei ro Há uma defasagem temporal entre a relação meiosfim concebida e a rela ção efetiva na realidade Supondo contudo que as previsões do especulador sejam confirmadas pelos fatos encontraremos uma correspondência entre a relação meiosfim concebida e a mesma relação tal como se efetivou A ligação lógica entre os meios e o fim existe na consciência do ator e na realidade obje tiva e as duas relações objetiva e subjetiva se correspondem mutuamente Esta análise das experiências do engenheiro e do especulador mostra o que é uma conduta lógica Para que um comportamento seja lógico é preciso que a relação meiosfim na realidade objetiva corresponda à relação meiosfim na consciência do ator Uma vez por todas chamaremos de ações lógicas as operações que estão logicamente associadas a seus objetivos não só com relação ao sujeito que as efe tua mas também com relação àqueles que possuem um conhecimento mais amplo isto é ações que têm subjetiva e objetivamente o sentido acima explicado As outras ações serão ditas nãológicas o que não significa que elas sejam ilógicas Traité de sociologie générale 150 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 369 Em outras palavras pertencem à categoria das ações nãológicas as que subjetiva ou objetivamente não apresentem um vínculo lógico Podese elaborar deste modo um quadro das ações humanas Gêneros e espécies As ações têm fim lógico Objetivamente Subjetivamente 1 classe ações lógicas 0 fim objetivo é idêntico ao fim subjetivo sim sim T classe ações nãológicas 0 fim objetivo é diferente do fina subjetivo 1 gênero não não 2 nao sim 3 sim não 4 sim sim Espécies do 3 e do 4 gênero 34 0 sujeito aceitaria o fim objetivo se o conhecesse 34 0 sujeito não aceitaria o fim objetivo se o conhe cesse Traité de sociologie générale pp 6768 Qual a significação de cada um destes gêneros de ações nãológicas O gênero nãonão significa que a ação não é lógica isto é que os meios não estão associados aos fins nem na realidade nem na consciência Os meios não produzem nenhum resultado que se possa considerar ligado logicamente a eles e por outro lado o ator não chega a conceber um objetivo ou uma relação entre os meios e o objetivo visado O gênero nãonão é raro porque o homem é um ser que raciocina Por mais absurdos que sejam seus atos sempre se esfor ça por darlhes um objetivo Os homens têm uma tendência muito pronunciada para dar um verniz lógico a suas ações estas recaem quase todas no segundo e no quarto gênero Muitas das ações impostas pela cortesia ou pelo costume poderiam pertencer ao primeiro gênero Freqüentemente porém os homens in vocam um motivo qualquer para justificar suas ações o que as transfere para o segundo gênero Traité de sociologie générale 154 Numa enumeração completa porém é preciso reconhecer a classe nãonão como um gênero possível 370 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO O segundo gênero é ao contrário extremamente difundido e comporta inumeráveis exemplos O ato neste caso não está vinculado logicamente ao seu resultado mas o ator imagina erroneamente que os meios de que se utiliza são de molde a provocar o fim desejado Pertence a este gênero a conduta dos povos que quando desejam a chuva oferecem sacrifícios aos deuses convencidos de que suas preces são eficazes para esse fim Neste caso há subjetivamente uma relação meiosfim embora objetivamente tal relação seja inexistente O terceiro gênero é o das ações que têm um resultado vinculado logica mente aos meios empregados mas sem que o ator conceba a relação meiosfim Os exemplos são igualmente numerosos Os atos reflexos pertencem a esta ca tegoria Se fecho as pálpebras no momento em que meus olhos são ameaçados pela poeira este ato é objetivamente lógico mas não o é subjetivamente Não pensei antes e não penso no momento em que ajo na relação entre os meios empregados e o fim que atinjo Os comportamentos instintivos ou animais são quase sempre adaptados mas não são lógicos se admitirmos pelo menos que os animais que se conduzem de acordo com a necessidade de sua sobrevivência não pensam na relação entre os meios que empregam e os fins que alcançam O quarto gênero é o dos atos que têm resultado associado logicamente aos meios empregados e cujo autor subjetivamente concebe uma certa relação entre os meios e os fins sem que os resultados objetivos correspondam aos re sultados subjetivos Aqui Pareto pensa essencialmente no comportamento dos benfeitores da humanidade pacifistas ou revolucionários que pretendem mo dificar a sociedade existente e corrigir seus vícios Assim os revolucionários bolchevistas dirão que querem tomar o poder para garantir a liberdade do povo Depois de realizar uma revolução pela violência são levados por um processo irresistível a estabelecer um regime autoritário Neste caso há uma relação objetiva entre a conduta e os seus resultados e uma relação subjetiva entre a utopia de uma sociedade sem classes e os atos revolucionários Mas o que os homens fazem não corresponde ao que desejavam fazer Os objetivos que alme javam alcançar não podem ser alcançados pelos meios que utilizam Os meios que utilizam levam logicamente a determinados resultados mas há uma discordân cia objetiva entre os resultados objetivos e os resultados subjetivos Pareto dá também exemplos tirados da vida econômica Numa situação de livre concor rência os empresários executam em parte ações nãológicas Esforçandose por reduzir os preços de custo eles obtêm sem querer por exemplo a redução dos preços de venda pois a concorrência traz sempre a igualdade desses dois preços Este quarto gênero comporta subcategorias segundo a aceitação ou não aceitação por parte dos atores dos objetivos que eles de fato atingem caso es tes lhes fossem mostrados antecipadamente Supondo que Lenin tivesse conhe cido antecipadamente as conseqüências inevitáveis de uma revolução socialis A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 371 ta num país ainda não industrializado preferiria ter renunciado a esta revolu ção ou teria aceito a instalação de um Estado totalitário por um longo período de transição As ações nãológicas não são necessariamente ilógicas Na terceira catego ria a dos simnão a ação está eventualmente adaptada às circunstâncias fal tando apenas a consciência da relação meiosfim O estudo destes quatro gêneros de ação nãológica constitui o objeto da primeira parte do Traité de sociologie générale as ações lógicas são reservadas à segunda parte só intervindo quando Pareto substitui o método analítico pelo sintético Esta classificação dos tipos de ação não deixa de criar algumas dificuldades Sem pretender abordálas desde já convém no entanto salientar duas questões em que medida todas as ações humanas podem ser analisadas tomando como referência só a relação meiosfim Se o caráter lógico e nãológico se aplica unicamente à relação entre meios e fins estes últimos podem deixar de ser nãológicos O fato de que a escolha dos fins não possa ser lógica não é uma conseqüência da definição do caráter lógico das ações Assim Pareto define a sociologia em referência e oposição à economia A economia considera essencialmente as ações lógicas enquanto a sociologia trata sobretudo das ações nãológicas Podese portanto estudar o pensamento sociológico de Pareto exclusivamente na base do Traité de sociologie générale Porém uma análise completa do pensamento desse autor exigiria o estudo de seus livros de economia isto é do Cours d économie politique e do Manuel d économie politique Dois gêneros de ações nãológicas são particularmente importantes para o sociólogo O primeiro é o n 2 definido pelos termos nãosim Este gênero agrupa as ações nãológicas que não têm um fim objetivo mas possuem finalidade sub jetiva abrangendo a maioria das condutas rituais ou simbólicas O navegador que dirige suas orações a Poseidon antes de se fazer áo mar não está realizan do um ato que tenha influência na sua navegação mas imagina com base em suas crenças que esse ato terá conseqüências conformes ao que deseja De modo geral podese dizer que todas as ações do tipo religioso isto é todas as ações que se orientam em função de um emblema ou de um símbolo de realidade sagrada pertencem ao gênero n 2 Assim como Durkheim em As formas ele mentares da vida religiosa Pareto estuda os atos rituais começando porém por incluílos na classe das ações nãológicas O segundo gênero importante é o nP 4 que se define pelos termos simsim mas sem coincidência entre o subjetivo e o objetivo Este gênero abrange todas as condutas comandadas por erros científicos O meio empregado produz um resultado efetivo no plano da realidade e foi relacionado com os fihs na cons 372 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ciência do ator mas o que acontece não reflete o que deveria ocorrer de con formidade com as esperanças ou previsões do sujeito que age O erro leva à nãocoincidência da relação objetiva e da relação subjetiva A este gênero per tencem igualmente todas as condutas ditadas por ilusões notadamente as dos políticos e intelectuais Quando os idealistas imaginam criar uma sociedade sem classes e sem exploração ou uma comunidade nacional homogênea os resul tados das suas ações diferem das suas ideologias e há uma nãocoincidência en tre as esperanças alimentadas dos atores e as conseqüências dos seus atos em bora tanto no plano da realidade como no da consciência os meios tenham sido relacionados com os fins Na primeira parte do Traité de sociologie générale Pareto se propõe por tanto a estudar logicamente as ações nãológicas fazendo provisoriamente abs tração das condutas lógicas que voltará a encontrar na segunda parte cujo objetivo é recompor o conjunto social para chegar a uma explicação sintética do conjunto da sociedade e dos movimentos que nela se produzem Fora dessas definições abstratas a distinção fundamental entre as ações ló gicas e as ações nãológicas repousa num critério simples e essencial embora Pareto não a acentue a coincidência entre a relação objetiva e a relação subje tiva dos meios e dos fins implica que a conduta seja determinada pelo raciocí nio Em conseqüência podese aceitar a título provisório que as ações lógicas sejam aquelas que são motivadas pelo raciocínio O ator pensou no que queria fazer no objetivo que pretendia alcançar e esses raciocínios aos quais ele obe deceu constituem o móvel do seu comportamento Por outro lado todas as con dutas nãológicas comportam num certo grau uma motivação pelo sentimento que pode ser definido da forma mais geral como todo estado de espírito dife rente do raciocínio lógico Portanto o objetivo da primeira parte do Traité de sociologie générale é es tudar logicamente as ações nãológicas uma tarefa que não é fácil Como estu dar logicamente as ações nãológicas Pareto estaria pronto a dizer que a maio ria dos livros de sociologia são análises nãológicas de condutas nãológicas ou estudos de condutas nãológicas com a intenção consciente de fazêlas passar por lógicas O objetivo de Pareto é estudar as condutas nãológicas como real mente são A expressão estudo lógico da conduta nãológica não é de Pareto Em bora tenha tido consciência do risco de estudar de modo nãológico as condutas nãológicas Pareto não se explicou de forma tão voluntariamente irônica como o fiz limitandose a dizer que pretendia estudar cientificamente as condutas não lógicas Em que consiste esse estudo A resposta a esta questão pressupõe uma concepção da ciência que Pareto denomina de lógicoexperimental A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 373 O objetivo do sociólogo ao estudar as condutas nãológicas é a verdade não a utilidade nada indica que haja coincidência entre estas duas noções Antes de se empenhar numa batalha os generais romanos consultavam as entranhas de animais sacrificados aos deuses Esta conduta era nãológica pelo menos na medida em que acreditavam que as entranhas lhes revelariam anteci padamente o resultado da batalha Contudo se as entranhas autorizavam uma previsão favorável e se esta previsão era comunicada aos soldados estes adqui riam confiança suplementar na vitória É excelente para o moral dos comba tentes saber que no fim serão vencedores Exemplifico como o fez Pareto com a história romana para dar uma ilustração despojada de atualidade e pai xão mas sob esse aspecto vivemos numa época não muito diferente Em vez de interrogar as entranhas das vítimas interrogamse os mistérios do futuro histó rico Nos dois casos o resultado é o mesmo e os chefes podem proclamar No fim tudo irá bem vós sereis vencedores É útil que os soldados creiam na ver dade dos augúrios ou que os militantes creiam na vitória final da causa A ciência lógicoexperimental que mostra a semelhança dos diversos mo dos de ver um futuro que se ignora é professora de ceticismo Indubitavelmen te é contrário à utilidade social confessar que não se conhece o futuro Por outro lado o estudo lógicoexperimental das condutas nãológicas pode ser contrário também à utilidade de determinado grupo ou mesmo à utilidade do conjunto da sociedade Pareto escreve se acreditasse que meu Traité pudesse ter mui tos leitores não o escreveria De fato na medida em que revela a realidade fun damental o Traité prejudica o equilíbrio social que exige um conjunto de sen timentos que este estudo demonstra que são nãológicos se não mesmo ilógi cos Assim o estudo lógicoexperimental das condutas nãológicas tem por objetivo exclusivo a verdade e não se deve criticálo por não ser útil Associar a utilidade social de uma teoria à sua verdade experimental é um destes princí pios a priori que rejeitamos Estas duas coisas estão ou não sempre unidas É uma questão a que só se pode responder pela observação dos fatos E em segui da encontraremos a prova de que em certos casos podem ser inteiramente in dependentes Peço portanto ao leitor que tenha sempre presente no espírito que quando afirmo o absurdo de uma doutrina não pretendo sustentar implicita mente que ela seja nociva à sociedade Pelo contrário pode ser muito vantajo sa E viceversa quando afirmo a utilidade de uma teoria para a sociedade não quero insinuar em absoluto que ela seja experimentalmente verdadeira Em suma a mesma doutrina pode ser rejeitada do ponto de vista experimental e aceita do ponto de vista da utilidade social ou ao contrário Traité de sociologie géné rale 72 e 73 Há uma oposição marcante com a concepção de Durkheim que por sua vez escreveu que se a sociologia não permitisse aprimorar a sociedade não teria nenhum vàkr Abs olhos de Pareto uma proposição deste tipo é umacon 374 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO fusão entre o objeto científico que é exclusivamente a verdade e o objeto da ação social que é a utilidade sem que haja coincidência necessária entre esses dois objetos Em segundo lugar a ciência lógicoexperimental tem o dever de afastar todas as noções extra ou metaempíricas Todos os termos empregados devem referirse a fatos observados ou observáveis todos os conceitos devem ser defi nidos com relação a realidades constatadas diretamente ou suscetíveis de serem criadas pela experimentação As noções de ordem religiosa e os conceitos que não pertencem à ordem dos fenômenos não têm lugar portanto na ciência lógi coexperimental Todos os conceitos filosóficos ou de essência devem ser excluídos rigorosamente Muitos cientistas ou pseudocientistas se perguntam incessantemente o que é o progresso ou o verdadeiro socialismo ou a igualda de autêntica Essas discussões sobre palavras não constituem uma ciência A natureza da definição científica fica evidente quando distinguimos as ações ló gicas das ações nãológicas Para Pareto discutimos em vão a questão de saber se seria melhor chamar as ações lógicas de ações racionais e as nãológicas de ações nãoracionais Os termos que usamos não têm importância em si mesmos Se não fosse por uma questão de comodidade poderíamos dizer X em lugar de ação lógica e Y em vez de ação nãológica Por outro lado dissertar sobre o conceito de classe é um exercício sem significação científica Podemos inda gar diante de uma definição de classe em que medida um fenômeno assim definido pode ser encontrado nesta ou naquela sociedade mas importa pouco o sentido dadò ao termo classe ou à palavra estrutura As definições são deci sórias desde que as defina rigorosamente cada um dá às palavras que empre ga o sentido que deseja A ciência não tem lugar para nada que ultrapasse a experiência As defini ções essenciais devem ser eliminadas da ciência lógicoexperimental que se utiliza de conceitos claramente definidos com relação a fenômenos observá veis As discussões científicas devem referirse sempre à realidade e não ao sentido que damos às palavras Isto não quer dizer naturalmente que a ciência seja uma pura e simples reprodução dos fenômenos que observamos de fora Muito pelo contrário a ciência implica uma atividade do espírito que é uma recriação cujo caráter pri mordial é a simplificação O mundo humano assim como o mundo natural em que vivemos é por demais rico e complexo para que a ciência possa apreen dêlo inteiramente de uma só vez Ela começa sempre com simplificações observa e retém certos aspectos de determinados fenômenos que designa por meio de conceitos rigorosos em seguida estabelece relações entre os fenôme nos cobertos por tais conceitos esforçandose progressivamente por combinar suas abordagens simplificadas de modo a recompor a realidade complexa Por exemplo no Traité de sociologie générale partese da definição simplificada A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 375 das ações nãológicas para chegar a uma classificação e analisar os fenômenos que a explicam O resultado é uma tipologia das causas das ações nãológicas que será necessariamente simples e grosseira com relação à realidade complexa Assim como a mecânica racional é uma explicação de um universo abstrato a teoria econômica pura é uma interpretação esquemática dos sistemas econômi cos partindo porém destes modelos simples e fazendoos cada vez mais com plexos podemos chegar à realidade Nunca encontraremos a realidade inteira em toda a sua complexidade A ciência é essencialmente inacabada e os que acreditam que um dia ela chegará a ensinar o equivalente ao que ensinava a reli gião são vítimas de uma ilusão Os sociólogos que como Durkheim pensam que a sociologia científica poderá postular os fundamentos de uma moral subs tituindo os dogmas religiosos são prisioneiros de uma modalidade de pensa mento nãológica sem que disso tenham consciência Atribuem à ciência ca racterísticas que ela não terá nunca porque será sempre parcial nunca norma tiva A ciência será sempre um conjunto de proposições de fato ou de causali dade do qual nunca poderemos deduzir a afirmativa de que devemos condu zirnos de uma certa maneira Podemos demonstrar o quanto quisermos que esta ou aquela seqüência regular é observada na realidade dessas correlações regulares não se pode deduzir uma moral qualquer que seja A ciência não po de satisfazer a necessidade infinita de desenvolvimentos pseudológicos sentida pelo homem Ela só pode relacionar os fatos uns com os outros por conseguin te ela sempre se detém em um fato Traité de sociologie générale 973 A concepção da ciência experimental de Pareto reduz muito as ambições da sociologia e nos situa num universo onde a fórmula é preciso escolher sociedade ou divindade não seria o resultado da ciência mas seu objeto na medida em que esta se interessa pelo conjunto das condutas nãológicas Este aspecto do pensamento de Pareto que aliás se compraz em ironizar os traba lhos dos seus colegas explica a extrema impopularidade de que tem sido víti ma este autor entre a maioria dos sociólogos não só enquanto vivia mas depois da sua morte Conheci entre os meus mestres e conheço entre meus colegas inú meros sociólogos que não podem ouvir mencionar o nome de Pareto sem mani festar uma indignação cujo ímpeto resiste ao tempo Para Pareto a ciência é lógicoexperimental Estes dois termos devem ser interpretados rigorosamente Lógico significa que é legítimo deduzir de defini ções enunciadas ou de relações observadas as conseqüências resultantes de pre missas O adjetivo experimental abrange ao mesmo tempo a observação no sen tido restrito do termo e a experimentação A ciência é experimental porque se aplica ao real e se refere a ele como origem e critério de todas as proposições Uma proposição que não comporta demonstração ou refutação pela experiên cia não é científica Como meu mestre Léon Brunschvicg gostava de dizer uma proposicãos não pode ser demonstrada não pode ser verdadeira 376 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Esta idéia é evidente embora não seja percebida por muitos espíritos que vêem na impossibilidade de refutar suas afirmações uma prova da verdade destas Muito pelo contrário uma proposição vaga e indefinida a ponto de não poder ser refutada por nenhuma experiência pode despertar sentimentos satisfazer ou indignar mas não é científica Para que seja científica é preciso que seja atingível pela única crítica válida a dos raciocínios e dos fatos A teoria mar xista da maisvalia deve sua popularidade ao fato de ser irrefutável Em suma a ciência lógicoexperimental tem por objetivo descobrir as rela ções regulares existentes entre os fenômenos isto é na linguagem de Pareto as uniformidades experimentais Estas uniformidades experimentais não são em si mesmas necessárias Os filósofos já discutiram longamente o caráter de vínculo causai que liga dois fenômenos Neste particular Pareto pertence à posteridade de Hume Para ele as relações singulares entre os fenômenos não comportam a necessidade intrínseca da causalidade A regularidade observada é mais ou menos provável de acordo com a natureza dos fenômenos interligados e o nú mero das circunstâncias em que foram observados O problema da necessidade não se coloca porque o objetivo da ciência é muito modestamente constatar uniformidades Pareto resume o caminho que pretende seguir em algumas proposições que constituem as regras da ciência lógicoexperimental 1 Não pretendemos de forma alguma ocuparnos da verdade intrínseca de nenhuma religião fé crença metafísica moral ou de outra natureza Não é que estejamos imbuídos do menor desprezo por essas coisas mas apenas elas saem dos limites em que pretendemos permanecer As religiões crenças etc serão obser vadas somente do exterior enquanto fatos sociais que são sem levar em conta seu valor intrínseco A proposição A deve ser igual a B em virtude de um princípio superior à experiência escapa portanto inteiramente a nosso exame mas estudamos como tal crença nasceu como se desenvolveu e em que relação com os outros fatos sociais ela se encontra 2 O domínio em que trabalhamos não é portanto só o da experiência e da observação Usamos estes termos no sentido que têm nas ciências naturais como a astronomia e a química a fisiologia etc e não para indicar o que se entende por experiência íntima cristã e que com uma simples mudança de nome ressuscita a autoobservação dos antigos metafísicos Consideramos esta autoobservação como um fato exterior nós o estudamos pois como tal não como um sentimen to que nos é próprio 4 Partimos de fatos para compor teorias e procuramos sempre nos afastar o menos possível dos fatos Ignoramos o que é a essência das coisas e não nos preocupamos porque tal estudo escapa a nosso domínio Procuramos as uniformi dades apresentadas pelos fatos dandolhes o nome de leis mas esses fatos não estão sujeitos às leis ao contrário As leis não são n e ce ssá ria s são hipóteses que A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 377 servem para resumir um número maior ou menor de fatos e que têm validade en quanto não são substituídas por hipóteses melhores 5 Todas as nossas investigações são portanto contingentes relativas e dão resultados que são apenas mais ou menos prováveis na melhor das hipóteses muito prováveis Todas as nossas proposições inclusive as de pura lógica devem ser entendidas com a restrição dentro dos limites do tempo e da experiência que nos são conhecidos 6 Raciocinamos exclusivamente sobre coisas não sobre os sentimentos que seus nomes despertam em nós Estes sentimentos são estudados como simples fa tos exteriores Por isto nos recusamos por exemplo a discutir se um ato A é justo nãojusto moral ou imoral se não se deixou bem claro inicialmente a que se quer fazer corresponder tais termos Mas estudaremos como um fato exterior o que os habitantes de um determinado país pertencentes a uma determinada classe social numa determinada época queriam dizer quando afirmavam que A era um ato justo ou moral 1 Buscamos provas para nossas proposições não só na experiência e na ob servação como também nas suas conseqüências lógicas excluindo toda prova fei ta por evidência interna por acordo de sentimentos ou ditada pela consciência 8 Por outro lado empregaremos unicamente termos correspondentes a coi sas empenhando todos os nossos cuidados e nosso zelo em darlhes uma signi ficação tão precisa quanto possível 9 Procedemos por aproximações sucessivas isto é considerando em pri meiro lugar o fenômeno no seu conjunto e negligenciando voluntariamente os de talhes que levaremos em conta nas aproximações seguintes Traité de sociologie générale 69 A ciência lógicoexperimental sendo assim definida em suas grandes linhas colocase logicamente o problema para usar a terminologia de Pareto de ligar a concepção das ações lógicas e nãológicas a esta definição Curiosamente o próprio Pareto não estabelece uma relação explícita entre sua teoria das ações nãológicas e sua teoria da ciência Mas não é difícil esclarecer tal relação As ações lógicas são em sua maioria determinadas pelo saber científico isto é de acordo com uniformidades estabelecidas graças à ciência lógicoexpe rimental A ação lógica é aquela cuja relação subjetiva meiofim corresponde à relação objetiva meiofim Ora como este paralelismo poderia ser assegurado senão porque conhecemos as conseqüências que um certo ato acarreta os efei tos de uma determinada causa ou ainda em outros termos as uniformidades estabelecidas pela ciência lógicoexperimental A uniformidade significa que o fenômeno B sucede regularmente ao fenômeno A Se queremos agir logica mente precisamos saber quais serão as conseqüências do ato A que executa mos e é a ciência que nos dirá que o ato A leva à conseqüência B A ciência não cobre portanto o conjunto das condutas lógicas O compor tamento de um banqueiro de um especulador de um general que prefere ganhar 378 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO a batalha em vez de perdêla é normalmente lógico sem que contudo decorra de uniformidades experimentais de ordem científica De passagem Pareto afir ma que efetivamente a maioria das ações lógicas são determinadas pelas uni formidades científicas mas que inúmeros domínios da ação político militar econômico comportam condutas lógicas determinadas por raciocínios de inspiração científica esforçandose por combinar eficazmente os meios em vista dos fins sem que se possa dizer que tal combinação seja uma dedução direta de uniformidades experimentais As ações lógicas são muito numerosas nos povos civilizados Os trabalhos artísticos e científicos pertencem a esta classe pelo menos no que diz respeito às pessoas que conhecem estas duas dis ciplinas As ações estudadas pela economia política pertencem também em grande parte à mesma classe Devese incluir aí adicionalmente um certo nú mero de operações militares políticas jurídicas etc Traité de sociologie gé nérale 154 Apesar de tudo subsiste uma solidariedade entre a concepção das ações lógicas e a concepção da ciência lógicoexperimental Esta relação é indispensável considerando a própria definição das ações lógicas Para carac terizálas Pareto se refere a operações que são logicamente vinculadas a seus fins não só com relação ao sujeito que as realiza mas ainda com relação aos que têm um conhecimento mais amplo Traité de sociologie générale 150 Estes observadores que dispõem de conhecimentos mais amplos só podem ser os cientistas O progresso da ciência permite ampliar progressivamente a esfe ra das condutas humanas que podemos considerar lógicas Tal como foi definida a ciência só cobre um domínio estreito ou limitado da realidade Estamos longe de conhecer tudo o que se passa no mundo por conseguinte longe de ter condições de dominar o conjunto dos fenômenos na turais As condutas lógicas não cobrem e não podem cobrir mais do que uma par te limitada do conjunto da conduta humana Se a condição para que uma con duta seja lógica é a de podermos prever as conseqüências dos nossos atos e de podermos determinar pelo raciocínio os objetivos que pretendemos alcançar e se a ciência não permite determinar os objetivos ou conhecer as conseqüências dos nossos atos a não ser em domínios limitados a maior parte da conduta hu mana será necessariamente nãológica Chamar uma conduta de nãológica é aliás para Pareto uma forma de criticála Se há uma ironia explícita ou vela da na expressão nãológica ela atinge somente aqueles que agindo de forma nãológica pensam agir logicamente A ironia do observador não quer sugerir aos homens que ajam logicamente ela visa ao fato de que os homens são tão irracionais quanto raciocinadores A principal característica da natureza huma na é se deixar levar pelo sentimento e apresentar justificativas pseudológicas para atitudes sentimentais Compreendese pois por que Pareto é insuportável e por que deseja sêlo Sua primeira tese é a de que todos os homens pretendem dar uma aparência lógica a condutas que não têm substância e sua segunda tese propõe como A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 379 objetivo da sociologia a demonstração de que o comportamento humano é em grande parte nãológico Está claro que quando um sociólogo mostra aos ho mens o que estes não querem ver tomase impopular o que o próprio Pareto reconheceria Não me parece impossível aliás dar uma interpretação lógica a este desejo de impopularidade Para usar o método de Pareto podemos dividir os homens que escrevem em duas categorias os que escrevem com o desejo cons ciente de serem populares e os que escrevem com o desejo consciente de serem impopulares O desejo de ser impopular não é nem mais nem menos lógico do que o de ser popular Um autor pode ter um sentimento de frustração a despei to de tiragens de centenas de milhares de exemplares dos seus livros e um sen timento de êxito com tiragens de quinhentos exemplares Pareto escolheu uma vez por todãs e provavelmente de modo lógico o êxito de autor maldito O que aliás não alcançou inteiramente O paralelo entre a concepção da ciência e a concepção das ações lógicas e nãológicas em Pareto nos lembra que a ciência não determina logicamente objetivos Não há uma solução cientifica para o problema da ação A ciência não pode ir além da indicação dos meios eficazes para atingir objetivos a de terminação dos objetivos não pertence ao seu domínio Em última análise não há solução científica para o problema da conduta individual e não há solução científica para o problema da organização social Pareto responde antecipada mente a todos os contemporâneos que proclamam que a ciência exige esta oü aquela organização da sociedade afirmando que a ciência autêntica e não a pseu dociência não nos pode ensinar qual é a solução para o problema social Das expressões aos sentimentos Os dados do problema do estudo lógico ou científico das ações nãológi cas podem ser representados pela figura seguinte que encontramos no capítu lo II do Traité de sociologie générale 380 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Para estudar logicamente as condutas nãológicas só conhecemos direta mente pela observação os atos B e as expressões C de sentimentos que se desenvolvem com freqüência em teorias morais religiosas e outras O estado psíquico dos atores A escapa à experiência direta O problema se coloca por tanto nos seguintes termos como explicar C e B e sobretudo B isto é os atos se não podemos apreender diretamente A isto é o estado de espírito A tendência muito marcante que têm os homens para considerar as ações nãológicas como ações lógicas os leva a acreditar que B seja um efeito da causa C Estabelecese assim uma relação direta CB em vez da relação indireta que resulta das duas relações AB AC As vezes a relação CB existe de fato mas isto não ocorre tão freqüentemente como se pensa O mesmo sentimento que leva os homens a se abster de uma ação B relação AB os leva a criar uma teoria C relação AC Por exemplo alguém tem horror do homicídio B abstendose de ações ho micidas mas dirá que os deuses punem o homicídio o que constitui uma teoria C Traité de sociologie générale 162 A tendência dos intérpretes é portanto explicar os atos pelas teorias que invocam explicar B por meio de C Mas ao fazer isto são vitimados pela incli nação humana para a racionalização ou usando a terminologia de Pareto para a logicização Iludidos pelo instinto raciocinante dos homens acreditam que seus atos são autenticamente determinados pelas doutrinas invocadas quando na realidade o que determina ao mesmo tempo os atos e suas expressões é A isto é o estado psíquico ou os sentimentos De um certo modo toda a primeira parte do Traité de sociologie générale é uma reflexão e uma análise circular sobre as relações entre A C B ou B C A Com efeito para Pareto o que determina C e B é essencialmente A A con duta dos homens é motivada pelo seu estado psíquico ou por seus sentimentos muito mais do que pelas razões que invocam Contudo não se pode excluir que C isto é as teorias tenha uma certa influência sobre B À força de se conven cer de suas próprias idéias os homens terminam agindo também com base em racionalizações E à força de agir de conformidade com essas racionalizações de praticar um ritual terminam por reforçar aquelas mesmas idéias com que co meçaram a explicar seus atos de modo que há também uma ação de B na me dida em que B é um ato ritual sobre C isto é sobre a doutrina A ação de B sobre C é no fundo aquela a que se refere a fórmula Use a água benta e você acabará acreditando que é uma versão simplificada ou nãológicoexperimen tal da influência do rito sobre a crença O triângulo que apresentamos mostra três séries de relações que convém analisar em pormenor a ação do estado psíquico simultaneamente sobre os atos e as expressões a ação secundária das expressões sobre os atos e a ação secun dária dos atos sobre as expressões isto é sobre as racionalizações as ideolo gias e doutrinas A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 381 Com uma outra figura um pouco mais complexa Pareto explica não só o estado de espírito A e as expressões C mas também dois outros fatores o culto B e os atos que desta vez chamaremos de D Até certo ponto podese identificar o culto de uma religião a B sua teologia a C Os dois provêm de um estado psíquico A Consideremos certas ações D dependentes deste estado psíquico A O culto B não age diretamente sobre D mas sobre A e assim sobre D age igualmente sobre C e por outro lado C age sobre B Pode haver também uma ação direta CD A ação da teologia C sobre A é normalmente fraca em conseqüência esta ação é fraca também sobre D pois a ação CD é também geralmente fraca Portanto em geral cometese um grave erro ao supor que a teologia C é a causa das ações D A proposição que se enuncia muitas vezes O povo age assim porque acredita nisso raramente é verdadeira é quase sempre falsa A proposição inversa O povo acre dita nisso porque age assim apresenta geralmente maior dose de verdade mas ela é absoluta demais e tem sua parte de erro É verdade que as crenças e as ações não são independentes mas sua dependência consiste em serem dois ramos de uma mes ma árvore Antes da invasão dos deuses da Grécia a antiga religião romana não tinha uma teologia C reduziase a um culto B Mas este culto B reagindo sobre A influía for temente nas ações D do povo romano Mais ainda quando existe a relação direta BD ela se apresenta a nós modernos como claramente absurda Mas a relação BAD podia ao contrário em alguns casos ser muito razoável e útil ao povo roma no Em geral a teologia C tem sobre D uma influência direta ainda mais fraca do que sobre A É um grave erro portanto querer estimar o valor social de uma reli gião considerando unicamente o valor lógico e razoável da sua teologia Mas se esta se toma absurda a ponto de agir fortemente sobre A é certo que agirá tam bém fortemente sobre D Este caso contudo é raro só depois de uma modificação do estado psíquico A os homens percebem certos absurdos que até então lhes ha viam escapado inteiramente 382 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Estas observações se aplicam a todas as espécies de teorias Por exemplo C é a teoria do livre comércio D é a adoção prática do sistema de livre comércio num país A é um estado psíquico resultante em grande parte dos interesses eco nômicos políticos e sociais dos indivíduos e das circunstâncias em que vivem A relação direta entre C e D é geralmente muito fraca Agir sobre C para modificar D só produz resultados insignificantes Ao contrário uma modificação de A pode repercutir sobre C e sobre D nós os veremos alterarse ao mesmo tempo e um observador superficial poderá acreditar que D foi modificado pela transformação de C Um estudo mais profundo demonstrará contudo que D e C não dependem diretamente um do outro mas que ambos dependem de uma causa comum A As discussões teóricas C não são portanto muito úteis diretamente para mo dificar D Indiretamente podem ser úteis para modificar A Para chegar a isso porém é preciso recorrer aos sentimentos muito mais do que à lógica e aos resultados da experiência Exprimiremos este fato de maneira incorreta porque excessivamente absoluta embora marcante dizendo que para agir sobre os homens os raciocínios precisam transformarse em sentimentos Na Inglaterra de hoje a prática do livre comércio B seguida durante mui tos anos reagiu sobre o estado A interesses etc e reforçou em conseqüência este estado psíquico opôsse assim à introdução do protecionismo Traité de so ciologie générale 165 166 167 e 168 A partir desta análise elementar e fundamental a sociologia de Pareto pode seguir dois caminhos O primeiro é o que poderíamos chamar de via indutiva que foi percorrida pelo próprio Pareto no Traité A outra é a via dedutiva que pre tendo seguir A via indutiva consiste em procurar como na história das doutrinas as ações nãológicas foram conhecidas ou mal conhecidas dissimuladas e desfiguradas como os homens suspeitaram da noção de ação nãológica esforçandose por não criar uma teoria a esse respeito pois nascido como ser raciocinante o homem prefere acreditar que sua conduta é lógica determinada pelas teorias e não quer confessar a si mesmo que agiu movido por sentimentos Depois do estudo histórico da interpretação dos atos nãológicos Pareto ana lisa cientificamente as teorias que ultrapassam a experiência Estuda as metafí sicas e as teorias que postulam objetos inacessíveis aplicando procedimentos lógicoexperimentais Por exemplo as doutrinas do direito natural que preten dem determinar o que é o direito sem distinção de tempo e de lugar estão além da experiência que só comporta a observação do que é e a dedução a partir de fatos observados Pareto consagra um capítulo também às teorias pseudocientí ficas que existem em grande número Depois destes três capítulos intermediá rios que abrangem perto de trezentas páginas aborda o que constituirá o essencial da teoria das ações nãológicas a saber o estudo dos resíduos e das derivações A segunda via é a que o próprio Pareto considera dedutiva e sobre a qual afirma no princípio do capítulo VI sobre os resíduos que deveria ser seguida A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 383 com vantagem pela exposição O método consiste em atacar imediatamente se não o estado psíquico pelo menos uma realidade próxima desse estado em estabe lecer uma classificação dos resíduos que são manifestações dos sentimentos e as causas principais das ações nãológicas Tratase portanto de procurar o que podemos saber de A sabendo que o estado psíquico ou os sentimentos não são conhecidos de modo direto Como só conhecemos diretamente as expressões os atos ou comportamentos de culto como podemos chegar das expressões às suas causas das teorias ou dos atos aos sentimentos e aos estados de espírito que os determinam O método de Pareto consiste em estudar um grande número de expressões teorias condutas curiosas modalidades de cultos religiosos práticas de magja ou feitiçaria e constatar que se estes atos e condutas diferem e comportam na aparência uma espécie de crescimento anárquico eles revelam através de estu do mais atento uma certa consistência Por exemplo constatamos nas civiliza ções mais diversas que os homens atribuem um valor benéfico ou maléfico a certas cifras a certos dias ou lugares Nas nossas sociedades é o número 13 que segundo se alega traz desgraça Se um jantar de 13 pessoas se realiza numa sextafeira dia 13 há um temor de catástrofes São fenômenos que todos conhecemos e que nos fazem sorrir mas isto não impede que uma donadecasa hesite em organizar um jantar para 13 pessoas embora ela não seja supersticio sa é claro mas é bem possível que um dos convidados possa temer o caráter maléfico do número 13 ou da sextafeira 13 Comentase também que não se de vem acender três cigarros com o mesmo fósforo Ao que parece a origem desta su perstição remonta à guerra do Transvaal Os bôeres que na época contavam com a simpatia da opinião mundial as coisas mudaram tinham a reputação de se rem atiradores excepcionais Quando viam pela terceira vez nas linhas inimigas o brilho de um cigarro alvejavam com tal precisão que o fumante era abatido Não estou seguro de que esta seja a origem autêntica da superstição contudo para usar a linguagem de Pareto tratase claramente de um destes fenômenos nãológicos de que há exemplos em todas as sociedades O traço comum a to dos esses exemplos é a inclinação a atribuir um sentido benéfico ou maléfico a determinados dias lugares números e circunstâncias por razões obscuras Prefiro dizer por razões obscuras Pareto diria com maior precisão por razões que se renovam incessantemente e que mudam em cada sociedade en contrase sempre uma razão pseudológica para explicar por que tal lugar não deve ser freqüentado por que tal número anuncia desgraças e por que tais cir cunstâncias indicam a aproximação de uma catástrofe Desde logo podemse distinguir dois elementos no fenômeno observado uma parte constante que chamaremos a não confundir com o A maiúsculo que re presenta o estado psíquico e uma parte variável b 384 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A parte constante consiste na inclinação dos homens a estabelecer relações entre coisas números lugares e significados benéficos ou maléficos e na atri buição de valor simbólico ou indicativo a determinados fatos O elemento variável é a razão que os homens dão para justificar tais rela ções em cada circunstância Hoje graças aos progressos da racionalidade oci dental não se atribui muitas vezes nenhuma razão de modo geral porém na maioria das sociedades há razões para justificar uma atividade de associação Esta é o elemento constante do fenômeno a teoria explicativa é seu elemento variável Para usar outro exemplo em quase todas as sociedades os homens parecem sentir repugnância pelo que conhecemos como homicídio contudo de acordo com a épocae a sociedade acharão motivos diferentes para explicar ou justifi car esta rejeição Em certos casos dirseá que é Zeus que proíbe o crime em outros que a razão universal não tolera violações à dignidade da pessoa huma na Há várias teorias que fundamentam a interdição do assassínio mas há nelas um elemento constante a rejeição de determinada conduta cuja origem é um estado psíquico ou um sentimento O fenômeno concreto que se oferece à obser vação é o binômio rejeição do homicídiojustificação através de teorias concor rentes O observador de forma analítica estabelece uma distinção entre estas teorias justificativas que têm uma diversidade anárquica e os elementos cons tantes dos fenômenos que se repetem suficientemente para que possamos fazer com eles uma classificação geral Como é pouco cômodo falar sempre em ele mento constante do fenômeno concreto considerado e como é inutilmente pe dante dizer a para designar este elemento constante daqui em diante falare mos de resíduo para designar o que acabo de analisar sem empregar expressões complicadas Quanto às teorias diversas que se multiplicam para justificar os elementos constantes vamos chamálas de derivações As duas noções de resí duo e de derivação a que se chega por via analítica são os dois conceitos fun damentais da armadura da primeira parte do Traité de sociologie générale Para precisar o que são os resíduos Pareto escreve O elemento a corresponde talvez a certos instintos do homem ou dizendo melhor dos homens pois a não tem existência objetiva e varia de acordo com os homens E provavelmente por corresponder a tais instintos que é quase constante nos fenômenos O elemento b corresponde ao trabalho realizado pelo espírito pa ra explicar o elemento a Por isto ele é muito mais variável pois reflete o traba lho da fantasia Mas se a parte a corresponde a certos instintos ela está longe de abranger a todos E o que se vê pela própria maneira como a encontramos Nós analisamos os raciocínios e buscamos a parte constante Assim pois só podemos ter encontrado os instintos que provocam os raciocínios e não poderíamos ter encontrado os que não estão trabalhados pelos raciocínios Restam portanto todos A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 385 os simples apetites os gostos disposições e nos fatos sociais esta classe muito im portante que chamamos de interesses Traité de sociologie générale 850851 Este texto muito curto é um dos mais importantes do Traité de sociologie générale Pareto é um desses autores que são mais concisos quando a questão de que tratam é importante e são prolixos quando o tema é simples e o leitor já o compreendeu Inesgotável em seus exemplos e ilustrações Pareto é extraor dinariamente sucinto quando toca os elementos fundamentais do seu pensa mento Estes dois parágrafos contêm a chave do seu sistema intelectual reve lando duas coisas essenciais 1 Os resíduos não são os sentimentos ou o estado psíquico A são elemen tos intermediários entre o sentimento que não conhecemos diretamente talvez não o conheçamos sequer indiretamente e as expressões ou atos C e B 2 Estes resíduos se relacionam com os instintos do homem mas não abran gem a todos pois o método seguido não permite descobrir que instintos dão lugar a raciocínios Na classificação dos quatro tipos de ação nãológica a classe 3 se define por simnão existência de uma relação objetiva dos meios aos fins mas não de uma relação subjetiva Esta classe 3 abrange as ações diretamente adaptadas do tipo instintivo que não dão lugar a raciocínios teorias e justificações Se par timos das expressões teorias e justificações para chegar aos resíduos que cons tituem manifestações dos instintos só se poderão descobrir aqueles instintos que levam a raciocínios Fora os resíduos há portanto apetites gostos e disposições ou inclinações A meu ver embora Pareto não tenha estabelecido explicitamente uma rela ção entre a terceira classe das ações nãológicas e os termos apetites gostos e disposições tratase no fundo do mesmo fenômeno Se gostamos de um prato enquanto não elaboramos uma filosofia sobre isso e no limitamos a satisfazer nosso gosto pode existir uma relação objetiva meiosfins contudo na ausên cia de qualquer teoria justificativa e de qualquer raciocínio a observação não poderá descobrir nosso gosto a partir das expressões e manifestações Por outro lado se elaboramos teorias sutis relativas à superioridade da cozinha chinesa so bre a cozinha francesa ou viceversa ou se admitimos teorias complicadas sobre as relações entre a satisfação do paladar e a higiene corporal então pas samos da terceira para a quarta classe de ações nãológicas as do simsim sem correspondência entre objetivo e subjetivo O sociólogo paretiano poderá remon tar a certos resíduos mas se nos limitarmos a comer bem permaneceremos fora do seu campo de estudo Os três termos apetites gostos e disposições a meu ver são muito próxi mos e devem 8CT entendidos no seu sentido ordinário Apetite é o deseio ejg 386 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO uma coisa precisa Na medida em que o indivíduo tem apetite por algo satis faz este apetite sem discussões sem controvérsias e sem explicações não há lu gar para perguntas sobre os resíduos Os gostos são também preferências as disposições são tendências Desejo definido preferência tendência tal seria a distinção entre apetites gostos e disposições De modo geral os três termos são aplicados ao comportamento humano na medida em que este constitui a busca de certos bens e de certas satisfações mais ou menos definidas Apetites gos tos e disposições são comparáveis aos instintos animais com a reserva de que no homem se transformam são elaborados e diversificados pelo desenvolvi mento da civilização a ponto de não serem mais necessariamente adaptados co mo são ao que parece a maioria das condutas animais instintivas Pareto não inclui também os interesses entre os resíduos A noção de inte resse resulta da análise econômica primeiro campo de investigação do autor do Traité de sociologie générale Pareceme que no pensamento de Pareto o inte resse provém da tomada de consciência de um objetivo que o indivíduo se pro põe alcançar Maximizar a quantidade de dinheiro é um interesse que suscita quase sempre condutas lógicas Contudo ao lado do interesse econômico po de haver um interesse político Um homem que tem por objetivo arrebatar o poder se comportará de modo interessado e sua conduta será diferente das con dutas nãológicas determinadas pelos resíduos Ao chegarmos à síntese socio lógica precisaremos levar em conta não só os resíduos mas também as condutas determinadas em profundidades pelos instintos apetites gostos e disposições bem como pelos interesses Para completar esta análise resta elucidar a relação entre o resíduo e o es tado psíquico ou sentimento A Pareto se exprime algumas vezes como se os resíduos se confundissem com os sentimentos Contudo não há dúvida de que estabelece uma dupla distinção De um lado os resíduos se situam mais perto dos atos ou das expressões do que os sentimentos porque são identificados a partir de uma análise destes atos ou expressões De outro lado os resíduos não são rea lidades concretas mas conceitos analíticos criados pelo observador para expli car os fenômenos Não se podem ver ou apalpar os resíduos como se faz com uma mesa ou mesmo como se experimenta um sentimento Aliás Pareto é for mal a este respeito É preciso ter o cuidado de não confundir os resíduos a com os sentimentos nem com os instintos aos quais correspondem Os resíduos a são a manifestação de tais sentimentos e instintos como a elevação do nível de mercúrio é num termômetro a manifestação de um aumento da temperatu ra Só por elipse para tomar mais concisa nossa explicação dizemos por exem plo que os resíduos têm um papel importante na determinação do equilíbrio so cial além dos apetites dos interesses etc Da mesma forma dizemos que a águá ferve a 100C Mas as proposições completas seriam os sentimentos ou instin tos que correspondem aos resíduos além daqueles que correspondem aos ape A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 387 tites interesses etc têm um papel importante na determinação do equilíbrio social E a água ferve quando o estado calorífico atinge uma temperatura indi cada por 100 no termômetro centígrado Traité de sociologie générale 875 Precisemos pois o que é capital para a compreensão exata deste pensa mento os resíduos são conceitos analíticos utilizados pelo sociólogo e não pelo psicólogo Pareto diz que o estudo dos sentimentos em si mesmos pertence à esfera da psicologia e não da sociologia Os resíduos correspondem sem dúvi da a algo que existe na natureza ou na conduta humana mas esta coisa é defi nida por um conceito analítico forjado para compreender o funcionamento da sociedade Pareto estabelece nos parágrafos 879 a 884 uma aproximação inte ressante entre as raízes verbais estudadas pelo filólogo e os resíduos estuda dos pelo sociólogo1 De acordo com esta comparação os resíduos são as raízes comuns de grande número de condutas ou expressões Têm portanto enquanto tais o mesmo caráter abstrato das raízes verbais descobertas pelo lingüista que não são dados concretos e no entanto não são apenas ficções porque ajudam a compreender a realidade Resíduos e derivações A teoria dos resíduos leva a uma classificação que se apresenta como uma espécie de análise teórica da natureza humana para uso dos sociólogos Pareto distingue inicialmente seisclasses de resíduos encontra gêneros em cada clas se por fim divide certos gêneros em espécies A distinção certamente mais im portante é a das seis classes que têm significados e alcances múltiplos Estas seis classes são as seguintes a primeira é a do instinto das combinações a segunda a persistência dos agregados a terceira a necessidade de manifestar os sentimentos por meio de atos exteriores a quarta a dos resíduos relacionados com a sociabilidade a quinta a integridade do indivíduo e dos seus dependentes a sexta os resíduos sexuais Observase logo que em certas classes o termo resíduo aparece na defini ção e em outras encontramos o termo instinto ou necessidades Aparentemen te estas seis classes são portanto heterogêneas e nem todas têm a mesma im portância As mais importantes são indubitavelmente as duas primeiras que aparecerão sozinhas ou quase na segunda parte do Traité quando se tratar de compor a síntese 1 A primeira classe de resíduos está constituída pelos resíduos correspon dentes ao instiflto das combinações Para definila Pareto usou o termo ins 388 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tinto que nos leva ao que há de mais profundo no homem isto é aos sentimen tos situados além dos resíduos O instinto das combinações no sentido mais genérico é a tendência para relacionar as idéias e as coisas para tirar as con seqüências de um princípio enunciado para raciocinar bem ou mal O homem é homem porque tem um instinto das combinações que provoca atos expres sões teorias justificações e subsidiariamente o próprio Traité de sociologie générale que é sem dúvida uma conseqüência não inevitável mas efetiva do instinto das combinações O instinto das combinações comporta como um dos seus gêneros a ne cessidade de desenvolvimentos lógicos Ele está portanto na raiz dos progres sos intelectuais da humanidade do desenvolvimento da inteligência e da civi lização Nas sociedades mais brilhantes que não são necessariamente as mais morais abundam os resíduos da primeira classe Segundo Pareto a Atenas do século V antes de Cristo e a França no princípio do século XX são exemplos de sociedades repletas de resíduos da primeira classe que encontramos em menor grau na antiga Esparta e na Prússia do século XVIII Vêemse imediatamente as conseqüências políticas resultantes da freqüência variável de tais resíduos A classe do instinto das combinações se compõe de vários gêneros O pri meiro mais simples e mais abstrato é o instinto das combinações em geral isto é sem especificação O segundo é o instinto das combinações de coisas semelhantes ou contrárias A maioria das operações mágicas comportam com binações deste tipo O terceiro gênero pode ser definido como o poder miste rioso de certas coisas ou de certos atos O quarto é intitulado necessidade de unir os resíduos o quinto necessidade de desenvolvimentos lógicos o sex to a fé na eficácia das combinações O quinto gênero necessidade de desenvolvimentos lógicos abrange a maioria dos resíduos que determinam as derivações É a necessidade do desen volvimento lógico que explica a renovação incessante das teorias e o progresso nas ciências Compreendese desde logo que uma conduta lógica possa ser também de terminada pelos resíduos que são eles próprios a expressão de instintos ou sen timentos A conduta lógica pode originarse em sentimentos no caso de que pela tomada de consciência das relações meiosfins o ator tenha condições de prever as conseqüências efetivas dos meios que emprega e de estabelecer uma correlação entre a relação subjetiva e a relação objetiva Vale notar também que o mesmo instinto das combinações pode deste modo estar na origem das condutas nãológicas como a magia e também daquilo que é a própria característica da conduta lógica isto é a ciência 2 A segunda classe de resíduos é a contrapartida da primeira Se o instin to das combinações é o que impede o homem de se instalar de uma vez por todas A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 389 num certo modo de ação ou de sociedade provocando o desenvolvimento in cessante dos conhecimentos e a renovação indefinida das crenças a persistência dos agregados que Pareto não chama de instinto é comparável à inércia Cor responde à tendência humana para manter as combinações que se estabelece ram a rejeitar as transformações e a aceitar de uma vez por todas os imperativos Certas combinações constituem um agregado de partes unidas estreitamente num certo corpo que termina por adquirir uma personalidade semelhante à dos seres reais Podemse muitas vezes reconhecer tais combinações pela característi ca de ter um nome próprio distinto da simples enumeração das partes Depois que o agregado se constituiu muitas vezes age um certo instinto opõese com força variável a que as coisas assim reunidas se separem se a separação não pode ser evi tada procura dissimulála conservando o simulacro do agregado Podese gros so modo comparar este instinto à inércia mecânica Ele se opõe ao movimento dado por outros instintos Nasce daí a grande importância social dos resíduos da segunda classe Traité de sociologie générale 991 e 992 A segunda classe constitui portanto com a primeira um par de termos opos tos Estas duas tendências fundamentais têm um significado social imediatamen te compreensível Uma induz à mudança e à renovação a outra à estabilidade e à conservação Uma incita a elaborar construções intelectuais a outra a estabili zar as combinações Pareto observa que as revoluções modificam as pessoas dos governantes as idéias em nome das quais estes governam e eventualmente a or ganização dos poderes públicos mais facilmente do que os costumes as crenças e as religiões O que pertence à ordem dos costumes da organização familiar e das crenças religiosas constitui o fundamento da sociedade e é mantido pela per sistência dos agregados As transformações violentas desejadas pelos políticos se chocam contra a resistência dos resíduos da segunda classe Da mesma forma como acontece com os resíduos da primeira classe Pare to estabelece uma classificação dos diferentes gêneros da segunda classe Dis tingue notadamente a persistência das relações entre os vivos e os mortos ou en tre um morto e as coisas que possuía durante a vida De um modo geral as rela ções de um homem com outros homens e dos homens com os lugares são exemplos típicos de resíduos que tendem à persistência dos agregados O fato de que tantas sociedades enterram seus mortos com os respectivos bens ilustra esta solidez dos laços entre cada pessoa e as coisas que lhe pertenceram Da mes ma forma pode haver a persistência de uma abstração Os que falam da Hu manidade do Progresso ou da História são movidos pelos resíduos da segunda classe que pertencem ao gênero persistência de uma abstração ou personi ficação Se se afirma que o Progresso exige ou que o Direito obriga e se se toma seriam ente a palavra abstrata atribuindo à maiúscula um significado agi mos sob a influência de um resíduo da persistência dos agregados o qual nos 390 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO incita a tratar uma abstração como se fosse realidade a personificar uma idéia e a emprestar uma vontade a tais abstrações personificadas As classes 3 e 6 são as que Pareto trata mais brevemente e são também as mais simples 3 A classe 3 é chamada necessidade de manifestar os sentimentos por meio de atos exteriores Uma necessidade que se traduz por um ato ritual por exem plo o aplauso destinado a exprimir um sentimento favorável Não se aplaude em todas as sociedades para manifestar aprovação os gestos ou ruídos com que se exprime aprovação ou desaprovação variam de acordo com a sociedade A diversidade destas manifestações constitui o elemento variável b enquanto o elemento comum a ou resíduo é a necessidade mais ou menos forte de mani festar os seus sentimentos Pareto só reconhece dois gêneros desta terceira clas se o primeiro é simplesmente a necessidade de agir manifestandose por com binações o segundo é a exaltação religiosa Não é difícil imaginar através de todàs as sociedades antigas ou modernas as inumeráveis circunstâncias em que a necessidade de manifestar os seus sentimentos se exterioriza livremente Em nossa época os espetáculos desportivos e as manifestações políticas proporcio nam ocasiões favoráveis 4 A última classe que Pareto faz figurar na sua classificação dos resíduos é a dos resíduos sexuais Estamos aqui no limite do instinto isto é de uma realidade que em si mesma não entra no campo de estudo da sociologia A classificação dos resíduos não considera os instintos no seu estado puro Pareto escreve a este respeito O simples apetite sexual embora aja vigorosamente so bre a raça humana não nos deve ocupar aqui Traité de sociologie générale 1324 Uma boa parte das condutas comandadas pelo instinto sexual não entra na esfera de análise do sociólogo mas certas condutas ligadas aos resí duos sexuais podem interessálo Devemos estudar o resíduo sexual de racio cínios e de teorias De modo geral este resíduo e os sentimentos em que se ori gina podem ser encontrados num grande número de fenômenos estão porém mui tas vezes dissimulados especialmente nos povos modernos Ibid Entre seus alvos prediletos Pareto incluía os propagandistas da virtude Detestava as associações e as pessoas que faziam campanha contra as publica ções licenciosas e de modo geral em favor de costumes puritanos Em dezenas de páginas examina o que chama de religião da virtude associada aos resí duos sexuais por complementaridade oposição ou negação Este exemplo nos ajuda a compreender a noção de resíduo e os laços entre instintos e resíduos Na medida em que os homens satisfazem seus apetites deixam de interessar ao sociólogo a menos que elaborem uma filosofia ou uma ética relativa à sexua lidade Os parágrafos consagrados aos resíduos da sexta classe também tratam da religião da virtude e das religiões propriamente ditas pois todas as crenças adotaram e ensinaram uma certa atitude com relação à sexualidade2 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 391 5 A classe 4 é a dos resíduos relacionados com a sociabilidade Está de finida por Pareto nos seguintes termos Esta classe está constituída por resíduos que têm relação com a vida social Podemse nela incluir também os resíduos relacionados com a disciplina se admi tirmos que os sentimentos correspondentes são reforçados pela vida em socieda de Neste sentido observouse que todos os animais domésticos exceção feita do gato viviam em sociedade quando ainda estavam em liberdade Por outro lado a sociedade é impossível sem uma certa disciplina em conseqüência o estabeleci mento de uma sociabilidade e o estabelecimento de uma disciplina têm necessa riamente certos pontos de contato 1113 A classe 4 dos resíduos relacionados com a sociedade tem portanto uma certa relação com a classe 2 da persistência dos agregados Mas as definições são outras e estas classes diferem em alguns pontos Os diferentes gêneros distinguidos por Pareto permitem precisar mais esta classe de resíduos O primeiro é o das sociedades particulares Pareto alude aqui ao fato de que todos os homens se inclinam a criar associações notadamente associações voluntárias exteriores aos grupos primários nos quais estão ime diatamente integrados Estas associações tendem a provocar sentimentos de fi delidade e de lealdade que os fazem persistir em seu ser O exemplo mais sim ples é o de uma associação esportiva Quando eu era jovem os parisienses se di vidiam em torcedores do Racing Club e do Stade Français Mesmo os que hão praticavam nenhum esporte se ligavam por sentimento espontâneo ao Racing ou ao Stade O patriotisme stadiste e o patriotisme du Racing provocavam a pre sença de numeroso público nos jogos disputados pelas duas equipes O exemplo é ao mesmo tempo irônico e sério As associações voluntárias só perduram pelo devotamento dos seus membros Pessoalmente por razões que me escapam conservei um patriotisme stadiste Quando o time de futebol do Stade ganha um jogo contra o Racing sua vitória me dá uma certa satisfação Não há nenhuma razão lógica para esta fidelidade Vejo nela um exemplo da vinculação às socie dades particulares e concluo que sou dotado de numerosos resíduos da quarta classe O segundo gênero mencionado por Pareto é a necessidade de uniformida de Esta necessidade é incontestavelmente uma das mais difundidas e mais fortes que existem nos seres humanos Cada um de nós se inclina a julgar que a maneira como vive é a maneira como deve viver Nenhuma sociedade pode existir se não impõe a seus membros certos modos de pensar de crer e de agir Mas porque toda sociedade toma obrigatórias estas maneiras de viver toda sociedade tende também a perseguir os heréticos A necessidade de uniformi dade é o resíduo a partir do qual se desenvolvem as perseguições dos dissiden tes tão c o m a n s na história Esta inclinação a perseguir os heréticos é aliás tão 392 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO característica dos livrepensadores como dos crentes Os ateus que perseguem os padres com seu desprezo e os racionalistas que denunciam as superstições ma nifestam esta necessidade de uniformidade que persiste mesmo em grupos cujo dogma oficial é a liberdade de crença Assim como os psicanalistas se referem às armadilhas dos complexos Pareto poderia falar das armadilhas dos resíduos O terceiro gênero é caracterizado pelos fenômenos da piedade e da cruel dade A relação entre este gênero e os outros resíduos ligados à sociabilidade não é tão clara como nos casos precedentes Com efeito Pareto analisa os sen timentos de autopiedade projetada sobre a repugnância instintiva pelo sofri mento em geral e a repugnância dos sofrimentos inúteis baseada no raciocínio Sugere que uma certa rejeição do sofrimento alheio é normal e que a benevo lência deveria inclinarnos a reduzir na medida do possível as penas dos nossos semelhantes Mas estes sentimentos de piedade podem na sua opinião tomarse excessivos estigmatiza assim a indulgência manifestada pelos tribunais do seu tempo com relação aos anarquistas e assassinos Pareto multiplica as observa ções irônicas a respeito das pessoas humanitárias que terminam pensando ex clusivamente no sofrimento dos assassinos e esquecendo suas vítimas É in contestável que há um século a repressão dos crimes se tomou cada vez mais fraca Não passa um ano sem que sejam promulgadas novas leis em favor dos delinqüentes e a legislação existente é aplicada pelos tribunais e pelos júris com indulgência cada vez maior Pareceria pois que a piedade com relação aos delinqüentes aumenta e diminui a piedade com respeito às suas vítimas 1133 O humanitarismo exagerado é um dos alvos preferidos de Pareto que justifica sua crítica com o fato de que muitas vezes estes excessos de sensibilidade e de piedade precedem os massacres Quando uma sociedade perde o sentido da dis ciplina coletiva está perto de uma revolução que provocará uma subversão dos valores A indiferença pelo sofrimento alheio substituirá a fraqueza inspirada pela piedade cega uma autoridade forte sucederá a desagregação por falta de dis ciplina Evidentemente Pareto não elogia a brutalidade mas procura demons trar que as duas atitudes extremas humanitarismo excessivo ou a crueldade são prejudiciais ao equilíbrio social Só uma atitude moderada pode evitar desgra ças O sentimento próprio dos seres fortes enérgicos que sabem o que que rem e são capazes de se deter no ponto exato que consideram necessário atin gir é a repugnância dos sofrimentos inúteis baseada no raciocínio escreve ele no princípio de um parágrafo que resume bastante bem seu ideal moral Instin tivamente os súditos de um governo compreendem muito bem á diferença entre este gênero de piedade e o precedente Respeitam estimam amam a piedade dos governos fortes Criticam e desprezam a piedade dos governos fracos Esta últi ma é para eles covardia a primeira é generosidade O termo inútil é aqui sub jetivo designa um sentimento de quem o emprega Em certos casos podese A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 393 saber também que certas coisas são objetivamente inúteis à sociedade em mui tos outros casos porém ficamos na dúvida e a sociologia está bem longe de po der resolver esta questão Concluir contudo com base em possibilidade eventual e longínqua que os sofrimentos infligidos são úteis seria um raciocínio equivo cado É preciso tomar posição de acordo com a maior ou menor probabilidade Seria absurdo evidentemente dizer que é útil matar ao acaso uma centena de pessoas porque entre elas pode haver um futuro assassino Mas ao contrário surge uma dúvida com respeito ao raciocínio que muitas vezes foi feito para justificar as perseguições contra as feiticeiras ao afirmar que entre elas havia um bom número de criminosas comuns É possível que a dúvida subsistisse à falta de um meio para separar as envenenadoras das mulheres histéricas con vencidas de ter tido relações com o diabo Mas como este meio existe desapa rece a dúvida e os sofrimentos infligidos são objetivamente inúteis Não é este o lugar apropriado para continuar expondo tais considerações que nos fazem sair do campo dos resíduos transportandonos para a esfera das ações lógicas 1144 O gênero n4 é a tendência a impor a si mesmo um mal pelo bem de ou trem em termos ordinários o devotamento que leva alguns indivíduos a se sacri ficarem pelos outros No sistema de pensamento de Pareto este devotamento aos outros que se traduz por um sacrifício imposto a si próprio é uma ação nãológi ca As ações interessadas nas quais o ator combina os meios para atingir a satis fação máxima para si mesmo são ações lógicas Inversamente o sacrifício de si em favor dos outros é quase sempre uma ação nãológica Esta observação mos tra perfeitamente que batizar uma ação de nãológica não implica desvalorizála e sim simplesmente dizer que o determinante de tal ação exprime sentimentos quase sempre não conhecidos claramente pelos próprios atores No entanto Pareto que é pessimista acrescenta que não se deve acreditar que os indivíduos da clas se dominante que tomam o partido da classe inferior agem necessariamente com base nesta tendência em se impor um mal para o bem de outrem Os burgueses que ingressam em partidos revolucionários têm muitas vezes o objetivo de alcançar vantagens políticas ou financeiras Estão atuando interessadamente ao representar a comédia do altruísmo Hoje os industriais e financistas descobriram que é pos sível obter vantagens aliandose aos socialistas Vemos industriais e banqueiros muito ricos que preconizam ieis sociais e podemos ser levados a crer que agem motivados pelo puro amor do próximo e que inflamados por este amor ardem com o desejo de distribuir seus bens Mas é preciso atentar bem para o que acontecerá depois da adoção dessas leis sociais sua riqueza não diminui mas ao contráno cresce Assim eles nada deram aos outros mas ao contrário retira ram deles alguma coisa 1152 Indubitavelmente é raro que os líderes dos par tidos revolucionários sejam inteiramente cínicos pois é impossível ao homem 394 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO viver na duplicidade do cinismo integral O homem que prega doutrinas revolucio nárias de direita ou de esquerda termina por acreditar nelas quando menos para assegurar seu equilíbrio e a paz de sua consciência Não está provado porém que este indivíduo esteja animado exclusivamente pelo amor dos seus semelhantes pode estar iludido pelos seus resíduos e suas derivações resíduos que o impulsio nam para uma carreira política derivações que lhe dão a ilusão de que suas atitu des favoráveis às reformas e à revolução têm base no puro idealismo O gênero seguinte n 5 é o dos sentimentos ligados à hierarquia isto é à deferência do inferior com relação ao superior a benevolência e a proteção uni das à dominação e ao orgulho do superior com relação ao inferior São em suma os sentimentos que os membros de uma coletividade situados em diferentes níveis hierárquicos experimentam uns pelos outros É fácil compreender que uma sociedade hierarquizada não poderia perdurar se os inferiores não fossem obrigados à obediência e se os que comandam não exigissem tal obediência dos inferiores ou não lhes manifestassem benevolência Os sentimentos de hierar quia tanto da parte dos inferiores como da dos superiores se observam já nos animais e são muito comuns nas sociedades humanas Parece mesmo que quan do estas sociedades apresentam um certo grau de complexidade precisam des ses sentimentos para subsistir A hierarquia se transforma mas subsiste sempre mesmo nas sociedades que aparentemente proclamam a igualdade dos indiví duos Constituise uma espécie de feudalidade temporária na qual se desce dos grandes líderes políticos até os mais modestos 1153 O último gênero em que Pareto insiste muito está constituído pelo con junto dos fenômenos do ascetismo Observase entre os homens um gênero especial de sentimentos que não tem nenhum equivalente nos animais e que leva o indivíduo a se infligir sofrimentos a absterse de prazeres sem nenhuma finalidade de utilidade pessoal indo em sentido contrário ao do instinto que impulsiona os seres vivos a buscar as coisas agradáveis e a fugir das coisas desagradáveis Este é o núcleo dos fenômenos que conhecemos sob a denomi nação de ascetismo 1163 Pareto não gosta dos ascetas Ele os despreza vendoos com mistura de espanto de indignação e de admiração Este sociólo go objetivo abandona sua posição de neutralidade diante dos ascetas De acordo com seu método Pareto passa em revista os fenômenos do asce tismo desde as instituições dos espartanos até os místicos cristãos e os adver sários da literatura não engajada ou de pura distração e conclui que esse turbi lhão de fenômenos comporta um elemento comum uma parte constante que se encontra nos sofrimentos que os ascetas se infligem A definição do ascetismo de Pareto não deixa de lembrar a filosofia de Durkheim É inevitável que os indivíduos sejam obrigados a refrear muitos dos seus desejos por não terem con dições de satisfazer a todos Por sua natureza os homens têm tantos desejos que nunca possuem recursos suficientes para satisfazer a todos Os sentimentos que le vam a uma disciplina dos desejos como a disposição ao devotamento ou ao A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 395 sacrifício são socialmente úteis Mas quando estes sentimentos se desenvolvem de forma exagerada levam ao ascetismo que não é útil a ninguém e que o so ciólogo vê como uma ampliação patológica da disciplina dos desejos Os atos do ascetismo são em grande parte atos que têm um resíduo inerente à vida social e que persistem mesmo depois de ter cessado sua utilidade Ou então adquirem intensidade tal que os leva além dos limites da sua utilidade O resíduo do as cetismo deve portanto ser posto entre os resíduos relacionados com a sociabili dade e representa freqüentemente uma hipertrofia dos sentimentos de sociabi lidade 1171 A maioria destes gêneros de resíduos da quarta classe postas à parte as formas extremas da piedade e do ascetismo têm portanto uma função social de modo geral conservadora Por este meio os resíduos da quarta classe estão liga dos aos da segunda isto é à persistência dos agregados Quando Pareto na se gunda parte do seu livro considera os sentimentos ou resíduos que variam si multaneamente através da história reúne muitas vezes os resíduos da segunda e da quarta classes os sentimentos de conservadorismo religioso e os sentimentos de conservadorismo social A persistência dos agregados religiosos dá durabi lidade às religiões os sentimentos associados à hierarquia fazem perdurar as estruturas sociais Contudo a correspondência não é total A piedade e o asce tismo podem ser socialmente prejudiciais 6 A quinta classe é definida como integridade do indivíduo e dos seus dependentes e Pareto acrescenta O conjunto dos sentimentos que denomi namos de interesses tem a mesma natureza dos sentimentos a que correspon dem os resíduos deste gênero Assim a rigor deveria fazer parte deles mas tem tão grande importância intrínseca para o equilíbrio social que é útil concebêlo à margem dos resíduos 1207 Como o indivíduo é levado espontaneamente por instinto a desejar coisas agradáveis aquele que se esforça por alcançar o máximo de satisfações e com bina racionalmente os meios com vista a este fim age de modo lógico Do mesmo modo se é normal que o homem deseje o poder o homem político que combi na astuciosamente os meios para arrebatar o poder age também de forma lógi ca Os interesses definidos pela riqueza e o poder são portanto a origem e os determinantes de um amplo setor de ações lógicas Os resíduos da integridade do indivíduo e dos seus dependentes correspondem na ordem nãológica ao que é o interesse na esfera da lógica Em outras palavras quando o indivíduo se afir ma de modo egoísta a partir de resíduos e de sentimentos ele se comporta de maneira nãológica como age logicamente quando se esforça por adquirir ri queza e poder Nem todos os gêneros desta quinta classe se ajustam facilmente a esta con cepção geral O segundo gênero o sentimento de igualdade entre os inferio res podejfijpipreendido sem dificuldade é um sentimento que leva os infer 396 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO riores a reivindicar a igualdade com os superiores É a contrapartida dos senti mentos ligados à hierarquia que comanda a aceitação da desigualdade Tratase de um resíduo cuja expressão é uma reivindicação geral de igualdade Mas es te sentimento é muitas vezes uma defesa da integridade do indivíduo que per tence a uma classe inferior e uma maneira de fazêlo ascender a uma classe superior Isto se efetua sem que o indivíduo que experimente tal sentimento seja consciente da diversidade que há entre o objetivo real e o aparente No lugar do seu próprio interesse ele coloca o da sua classe social simplesmente porque es ta é a forma usual de se expressar 12203 A rigor o terceiro gênero pode também entrar na definição geral ele é definido como o restabelecimento da integridade por operações que se rela cionam com os sujeitos que sofreram a alteração Os fenômenos a que Pareto se refere são aqueles que poderíamos chamar usando um termo genérico de ritos de purificação que são correntes nas religiões mas podem existir em ou tros contextos No princípio do século na França quando Gustave Hervé na épo ca um extremista revolucionário antes de se tomar durante a guerra de 19141918 um ultrapatriota declarou em artigo que era preciso mergulhar a bandeira na sujeira muitos pensaram que o símbolo de uma realidade sagrada tinha sido enxovalhado e houve várias manifestações de purificação em todo o país Este exemplo é típico dos resíduos que tendem ao restabelecimento da integridade por operações relacionadas seja com o objeto culpado seja com o objeto víti ma da alteração A noção de impureza aparece em todas as religiões que do totemismo até as religiões atuais de salvação têm práticas destinadas a purifi car os crentes de seus pecados ou a lavar as coisas da impureza Estas práticas são para Pareto a expressão dos resíduos que levam o indivíduo a afirmar ou a restabelecer a integridade de si mesmo e dos que dele dependem O primeiro gênero é o dos sentimentos que contrastam com as alterações do equilíbrio social Levam os indivíduos a punir aquele que cometeu um ato contrário aos imperativos da sociedade e à sua concepção do justo e do injus to Os membros de cada sociedade são impulsionados pelos resíduos da quinta classe a interpretar dogmaticamente as exigências da justiça Quando um ato deste tipo é cometido os resíduos da integridade do indivíduo se manifestam sob a forma de desejo de sanções pela indignação e a perseguição Os resíduos da quinta classe têm significações sociais variadas Quando se trata do segundo gênero o sentimento de igualdade entre os inferiores a quinta classe é a contrapartida da quarta Os sentimentos de inovação e de rei vindicação se opõem ou se colocam paralelamente aos sentimentos conserva dores Por este segundo gênero a quinta classe se aproximaria da primeira a do instinto de combinação De outro lado porém o primeiro e o terceiro gêne ro estão muito mais associados à quarta classe São sentimentos conservadores mais do que inovadores A dificuldade de fixar exatamente o significado social A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 397 da quarta e da quinta classes tem como resultado o quase desaparecimento destas classes na segunda parte do Traité isto é na síntese As duas classes que têm o papel mais importante são portanto o instinto de combinação e a persistência dos agregados a quarta classe a dos resíduos ligados à sociabilidade está liga da quase sempre à segunda A justificação desta longa tipologia dos resíduos aparece mais claramente na segunda parte do Traité Desde agora porém podese ver como ela é essen cial ao pensamento de Pareto A classificação dos resíduos e das derivações é uma doutrina da natureza humana tal como esta se manifesta na vida social As diferentes classes de resíduos correspondem aos conjuntos de sentimentos que agem em todas as sociedades e através da história Para Pareto as classes de resíduos variam pouco Em outras palavras o homem assim definido não mu da fundamentalmente A afirmação de que o homem não muda em profundida de se confunde com a tese da constância aproximada das classes de resíduos Aí está a origem do pessimismo de Pareto Se a esquerda se define pela idéia dó progresso e pela convicção de que é possível transformar a natureza humana então Pareto pertence indubitavelmente à direita As derivações são os elementos variáveis do conjunto constituído pela con duta humana e seu acompanhamento verbal Representam na linguagem de Pa reto o equivalente do que chamamos normalmente de ideologia ou teoria justi ficativa São os diferentes meios de ordem verbal pelos quais os indivíduos e os grupos dão uma lógica aparente ao que na verdade não tem lógica ou nem tanto quanto os atores gostariam de fazer crer O estudo das derivações no Traité de sociologie générale comporta vários aspectos Podemse com efeito examinar as manifestações verbais dos atores com relação à lógica e mostrar como e quando dela se afastam Podemse tam bém confrontar as derivações com a realidade experimental para marcar a dis tância entre a representação do mundo pelos atores e o mundo tal como ele é efetivamente Pareto procedeu longamente a tais confrontações de derivações com a lógi ca e a realidade experimental nos capítulos que se situam antes da exposição da teoria dos resíduos Quando depois de expor a classificação dos resíduos ele aborda as derivações examinaas só sob um determinado aspecto Estuda es sencialmente as derivações sob o aspecto subjetivo da força persuasiva que po dem ter Se ouvimos um orador numa reunião pública afirmar que a moral univer sal proíbe a execução de um condenado à morte podemos estudar seu discur so com relação à lógica para ver em que medida as proposições encadeadas se seguem de maneira necessária Podese confrontar este discurso isto é a ideo logia da moral universal com o mundo tal como ele é podese enfim ouvir o 398 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO orador e perguntar por que suas observações são persuasivas com relação a seus ouvintes O estudo sociológico procura saber como os homens utilizam os pro cedimentos psicológicos lógicos ou pseudológicos a fim de convencer outros homens Pareto chega por este caminho a uma classificação das derivações em quatro classes A primeira classe é a das simples afirmações cujo tipo é o das palavras da mãe que se dirige ao filho Obedeça porque é preciso obedecer Como pai filho ou soldado todos já ouvimos esta fórmula é assim porque é assim A derivação da primeira classe é eficaz se o é preciso porque é preciso é pro nunciado em tom conveniente pela pessoa apropriada São relações interpes soais de um tipo determinado que fazem com que a derivação da simples afir mação atinja seu objetivo A segunda classe das derivações pode ser ilustrada pela ordem materna você deve obedecer porque papai quer Em termos abstratos é o argumento de autoridade o Philosophus dixit É fácil pôr no lugar de Aristóteles tal pensa dor que esteja hoje na moda tratarseá sempre de derivações que tiram sua for ça persuasiva da autoridade de certos homens da tradição ou do costume Se a autoridade paterna entretanto não for suficiente a mãe poderá usar a terceira classe de derivações invocando o bichopapão ou o Papai Noel Em outras palavras as derivações podem fundamentarse em sentimentos ou prin cípios entidades jurídicas ou metafísicas e apelar para a vontade de seres so brenaturais Neste caso sua força persuasiva deriva do acordo com os senti mentos ou os princípios Quando Pareto decompõe esta terceira classe de deri vações em gêneros enumera sucessivamente os sentimentos os interesses indi viduais e coletivos as entidades jurídicas por exemplo o Direito a Justiça as entidades metafísicas a Solidariedade o Progresso a Humanidade a Demo cracia todas entidades que manifestam vontades nas derivações e as entidades sobrenaturais A derivação torna convincentes as afirmações os imperativos e os interditos despertando sentimentos demonstrando o acordo entre as propo sições e os interesses existentes ou proclamando a alegada vontade de uma enti dade abstrata ou de um ser sobrenatural A quarta classe de derivações está composta por aquelas que fundamentam sua força de persuasão em provas verbais As derivações verbais são obtidas graças ao uso de termos de sentido indeterminado duvidoso equívoco e que não se ajustam à realidade 1543 Por exemplo um regime é considerado democrático porque trabalha no interesse das massas populares Ora esta é uma proposição duplamente equívoca Que chamamos de democracia Que significa trabalhar no interesse de alguém A maioria dos discursos políticos pertencem à categoria das provas verbais É preciso acrescentar e Pareto tem consciência disto que um discurso composto exclusivamente de demonstrações lógicoexpe rimentais não seria ouvido numa reunião pública e talyez nem mesmo numa A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 399 sala de aula Pareto ironiza o caráter nãológico das derivações mas repete que não deseja que os homens se comportem de modo lógicoexperimental quan do fazem política Isto não seria possível nem eficaz No capítulo X do Traité consagrado às derivações ele estuda de modo penetrante os procedimentos com os quais os políticos ou os escritores persuadem convencem seduzem em suma os procedimentos psicológicos pelos quais os homens agem uns sobre os outros Bem antes de Hitler Pareto afirmou que um dos meios mais eficientes para convencer seus ouvintes ou leitores é a repetição incessante da mesma coisa A repetição ainda que sem o menor valor lógicoexperimental vale mais do que a melhor demonstração lógicoexperimental Age mormente sobre os sentimentos modificando os resíduos enquanto a demonstração lógicoexpe rimental age sobre a razão e na hipótese mais favorável pode modificar as derivações mas tem pouco efeito sobre os sentimentos Quando um governo ou alguma potência financeira deseja defender uma medida pelos jornais quase sempre os argumentos que emprega estão longe de ser os melhores para demons trar a utilidade dessa medida usa em geral as piores derivações verbais dé auto ridade e outras semelhantes Mas isto pouco importa pelo contrário às vezes é útil É preciso ter sobretudo uma derivação simples que todo o mundo possa compreender até mesmo os mais ignorantes e repetila incessantemente 1749 Também muito antes de Hitler Pareto afirmou que não importa ser ra cional ou lógico mas sim dar a impressão de que se está raciocinando Há pala vras que exercem uma espécie de influência mágica sobre a multidão convém portanto empregar essas palavras embora não tenham um sentido preciso so bretudo por isto Depois fezse melhor ainda e os psicólogos inspirados na psicanálise e na psicologia de Pareto analisaram da maneira mais precisa os processos de violação das multidões4 A teoria das derivações de Pareto é uma contribuição à psicologia das relações interpessoais e intergrupais no domínio da política Estas quatro classes de derivações são inteligíveis com referência ao pen samento lógicoexperimental Este demonstra não por afirmações puras mas pelo acordo entre as proposições e os fatos observados não invoca a autorida de da tradição ou de uma pessoa mas os resultados das experiências as regu laridades constatadas Tem por obrigação empregar termos definidos exata mente e não utilizar conceitos equívocos As proposições que Pareto considera como lógicoexperimentais não se ajustam no seu conjunto aos nossos sentimentos Este desacordo ilustra a dis tinção radical entre as verdades científicas e os sentimentos das pessoas e nada tem de surpreendente As verdades experimentais ou científicas não são tão importantes na vida humana e num certo sentido seria legítimo afastálas uma vez oor todas como secundárias As proposições lógicoexperimentais só têm 400 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO interesse real para uma categoria de homens pouco numerosa os homens que preferem a verdade à utilidade o que em matéria social ou econômica é raro Precisando assim a natureza do pensamento lógicoexperimental e do pen samento nãocientífico Pareto define as relações que podem existir entre sua própria concepção do conhecimento e a de Auguste Comte Para ele o pensamento nãológicoexperimental toma como ponto de par tida fatos experimentais e a partir desses fatos chega a princípios pseudoexpe rimentais Quando é utilizado por pessoas cultas pode passar a uma terceira fa se a das abstrações sentimentais ou metafísicas fórmulas abstratas das quais os autores deduzem todas as conseqüências que lhes agradam por fim em alguns casos passa também a uma quarta fase que é a mais distanciada dos fatos expe rimentais a da personificação destas abstrações sentimentais ou metafísicas Por outro lado entre as pessoas sem cultura a ordem das fases três e quatro se inver te A invocação de forças pessoais ou da divindade lhes parece menos afastada dos fatos experimentais do que as abstrações sentimentais ou metafísicas Não é necessário um grande esforço de imaginação para transportar a outros seres a vontade e as idéias que observamos habitualmente no homem Concebese Mi nerva muito mais facilmente do que a inteligência abstrata O Deus do Decálogo é mais fácil de compreender do que o imperativo categórico 1533 Uma úl tima categoria de pessoas mesmo nas nossas sociedades pode deterse na se gunda fase a dos princípios pseudoexperimentais deixando de lado as abstra ções sentimentais ou metafísicas e as personificações Chamemos de a b e c estas três categorias Pareto escreve Já sabe mos que a evolução não segue uma linha única e que em conseqüência a hipó tese de uma população que passasse do estado c ao b e depois ao a esta ria fora da realidade Contudo para chegar ao fenômeno real podemos partir desta hipótese acrescentandolhe em seguida as considerações que nos aproxi marão da realidade Se por hipótese uma população passa sucessivamente pelos três estados c b a concluise das considerações que fizemos que a massa das ações nãológicas de c e das explicações rudimentares que são dadas produzirá aos poucos explicações por via de personificações e depois por meio de abstrações as explicações metafísicas Até o presente nunca se viu já não diríamos toda uma população mas uma parte importante de uma população chegar a dar explicações exclusivamente lógicoexperimentais e atingir assim o estado A aquele em que os homens empregam rigorosamen te e exclusivamente o método lógicoexperimental Não nos é dado de fato prever se isto acontecerá um dia Contudo se considerarmos um número limi tado possivelmente muito restrito de pessoas cultas podemos dizer que hoje há indivíduos que se aproximam deste estado A poderia acontecer embora nos falte o meio de demonstrálo que no futuro haja um número maior de pes soas que atinjam completamente esse estado 1534 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 401 Um pouco adiante Pareto comenta O fenômeno hipotético descrito pre viamente para o conjunto de uma população já foi visto bem ou mal por Comte e constitui o fundamento da sua célebre teoria dos estados fetichista teológico metafísico e positivista Ele concebe uma evolução que se poderia considerar semelhante à evolução c b a A 1536 Hoje os homens cultos quando não são lógicoexperimentais no sentido de Pareto ou positivistas no sentido de Auguste Comte recorrem às abstrações sentimentais e metafísicas Durkheim utiliza assim a idéia da sociedade como um princípio a partir do qual seria possível fazer deduções dos imperativos morais ou religiosos As abstrações sentimentais de Pareto eqüivalem aos con ceitos que Auguste Comte chamava de metafísicos Inversamente os que põem as personificações antes das abstrações se encontram ainda na fase do pensa mento teológico e os que só conhecem os fatos e os princípios pseudoexperi mentais misturando fatos observados com explicações fictícias são no fundo fetichistas na classificação de Comte Há contudo uma diferença importante entre a concepção de Pareto e a de Comte Para este último a despeito de eventuais atrasos a evolução humana avança do fetichismo para o positivismo passando pela teologia e a metafísica para Pareto estes quatro modos de pensar podem ser encontrados normalmen te em diferentes graus em todas as épocas Ainda hoje há pessoas que não ul trapassaram o pensamento fetichista ou teológico Não há portanto para a hu manidade considerada em conjunto a passagem necessária de um tipo de pen samento para outro A lei dos três estados seria verdadeira se nossos contempo râneos pensassem exclusivamente de modo lógicoexperimental mas não é isto que acontece Este método representa apenas um setor muito limitado do pen samento humano da atualidade Não é mesmo concebível que possa abranger em sua totalidade o pensamento dos indivíduos ou das sociedades Não há por tanto passagem de um tipo de pensamento a outro mediante processo único e ir reversível mas sim oscilações de acordo com o momento as sociedades e as classes na influência relativa de cada um destes modos de pensamento Tudo o que temos direito de dizer é que há uma ampliação muito lenta do setor coberto pelo pensamento lógicoexperimental testemunhada pelo desen volvimento das ciências naturais Hoje a humanidade atribui a esse pensamen to uma importância maior do que no passado De certo modo porém este pro gresso não é definitivo por outro lado não se pode imaginar que continue in definidamente Uma sociedade que estivesse toda ela sujeita ao pensamento lógi coexperimental é inconcebível Com efeito o pensamento lógicoexperimental se define pelo ajustamento entre as relações pensadas e as relações objetivas e não comporta a determinação dos fins Os homens não podem viver e agir sem assumir objetivos postulados por métodos nãocientíficos Além disso para que ajam de forma lógicoexperimental é preciso que sejam motivados pelo racio 402 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO cínio de modo a assegurar o paralelismo entre as conseqüências imaginadas e as conseqüências reais Ora a natureza do animal humano é tal que sua condu ta não pode ser sempre motivada pelo raciocínio Resíduos e derivações são palavras escolhidas arbitrariamente para designar fenômenos identificados por uma análise indutiva Esta tomando como ponto de partida derivados concretos que são as condutas humanas chega às expres sões dos sentimentos que são os resíduos e às expressões pseudoracionais que são as derivações5 Os resíduos não devem ser considerados assim como realidades concre tas e autônomas Uma conduta humana particular raramente pode ser explica da por um só resíduo A própria classificação não pretende ser definitiva suge re apenas as principais tendências das condutas humanas e ao mesmo tempo dos sentimentos Essa classificação enquanto tal não deixa de ter contudo uma significação importante porque demonstra que os comportamentos humanos são estruturados e que as motivações das condutas não são anárquicas Prova que há uma ordem interna na natureza humana e que se pode descobrir uma espé cie de lógica nas condutas nãológicoexperimentais dos homens que vivem em sociedade Esta estrutura inteligível dos resíduos é percebida através das seis classes de que as quatro mais importantes se caracterizam pelos termos combinação conservação sociabilidade e integridade pessoal Poderseia simplificar ainda mais observando que na maioria dos resíduos ligados à sociabilidade ou à inte gridade pessoal se manifestam modalidades dos resíduos da segunda classe Chegaríamos assim por uma simplificação excessiva mas fiel à inspiração de Pareto à antítese do espírito de inovação que está na origem do desenvolvimen to intelectual e do espírito de conservação que constitui o cimento necessário da ordem social A persistência dos agregados a sociabilidade e a integridade pessoal são três expressões que designam resíduos correspondentes na lingua gem ordinária aos sentimentos religiosos sociais e patrióticos O espírito de com binação tende a dissolver os conjuntos sociais mas também a favorecer os pro gressos do saber e as formas superiores da civilização Há uma espécie de anti nomia permanente na história o próprio instinto de combinação cria os valores intelectuais e dissolve a sociedade Ao lado desta estruturação dos resíduos im plicada diretamente nos textos de Pareto podese elaborar uma classificação diferente dos resíduos que embora não se encontre no texto do Traité de socio logie générale pode ser deduzida das suas proposições Indica uma interpreta ção muito diferente Distinguiríamos uma primeira categoria de resíduos os que determinam os objetivos das nossas ações O lógicoexperimental só se aplica à relação meiosfins por isso os objetivos precisam ser estabelecidos por outro proces A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 403 so que não o raciocínio em outras palavras pelos sentimentos Num primeiro sentido os resíduos exprimem portanto os estados psíquicos que fixam os obje tivos que cada um de nós assume em sua vida Em segundo lugar certas condutas não são lógicoexperimentais porque são simbólicas Os ritos de um culto religioso são condutas nãológicoexperimen tais pela simples razão de que não objetivam alcançar um efeito comparável ao obtido pela conduta do engenheiro do comandante militar ou do especulador mas sim exprimir ou simbolizar sentimentos a respeito de realidades sagradas Perten cem a esta segunda categoria as condutas rituais nãológicas porque seu sentido resulta apenas do seu caráter simbólico Uma terceira categoria de condutas que não comportam também coinci dência entre a série subjetiva e a objetiva é a das condutas políticas orientadas no sentido de objetivos ideais e comandadas na verdade por ilusões Pareto lem bra incansavelmente a aventura dos revolucionários de todas as épocas que pro metem sempre renovar o cotidiano tradicional das sociedades hoje por exemplo prometem uma sociedade sem classes e chegam a resultados às vezes úteis mas fundamentalmente diversos dos que queriam alcançar É neste ponto que intervém a teoria dos mitos de Georges Sorel6 Os homens agem com base em representações ideais que não podem ser transformadas em realidade mas têm forte poder de persuasão Os líderes socialistas provocam o entusiasmo operá rio com o mito da greve geral para citar um exemplo de Sorel ou animam ã re volta dos proletários apontando a imagem de uma sociedade sem classes no hori zonte do futuro Mas quando os chefes da revolta operária tomam o poder con clui Pareto reconstituem uma sociedade melhor ou pior do que a anterior pou co importa mas muito afastada do modelo ideal que prometiam às massas antes da revolução Este comportamento pode ser chamado de conduta pela ilu são Um objetivo é proposto aos homens e das condutas resulta uma mudan ça social no entanto o resultado efetivo não coincide com o fim pretendido pelos atores Não há uma coincidência entre a série subjetiva e a série objetiva mas esta difere por sua natureza da nãocoincidência das condutas rituais Finalmente uma quarta categoria é a das condutas determinadas por pseu doraciocínios lógicoexperimentais ou por erros Se um governo visando res tabelecer o equilíbrio da balança de pagamentos decide aumentar maciçamen te os direitos aduaneiros ou impor um controle administrativo das importações e estas medidas em lugar de favorecer o equilíbrio da balança de pagamentos agem em sentido contrário porque por exemplo com a proteção aduaneira os preços internos se elevam dificultando as exportações esta conduta governa mental é nãológicoexperimental não por se inspirar na ilusão de um objetivo ideal ou por ser um mero rito simbólico mas simplesmente porque se baseia numa teotlú T0Mi Pareto considera as condutas mágicas como pertencendo a 404 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO este tipo isto é seriam condutas determinadas por raciocínios falsos O método da análise não se ajustava às exigências lógicoexperimentais Destas quatro categorias de resíduos a quarta merece ser chamada de iló gica propriamente O nãológico decorre do fato do erro Contudo a determi nação dos fins pelos resíduos é nãológica mas não é ilógica já que de qual quer forma não há determinação lógica dos fins Da mesma forma as condu tas rituais são nãológicas mas não são ilógicas Um gesto de respeito diante da bandeira para exprimir o amor à pátria não é uma conduta ilógica porque é normal manifestar simbolicamente nosso devotamento a uma realidade sagra da Quanto aos comportamentos inspirados por ilusões eles se prestam antes a observações irônicas Se os líderes políticos que prometem a seus seguidores um objetivo ideal não acreditam no que pregam estão sendo lógicos Se acre ditam não o são O hipócrita age logicamente não o crente Estas afirmativas podem parecer chocantes mas decorrem do sentido que damos às palavras Se o líder político é um cínico quer inflamar a multidão e tomar o poder se dis tingue entre a série que apresenta a seus seguidores e a série objetiva que vai acontecer é evidentemente lógico porque tem em vista um objetivo que vai atin gir efetivamente isto é assumir o poder e modificar a sociedade em seu bene fício Mas se é uma vítima da ilusão que procura impor aos outros é nãológi co porque busca resultados que de fato não poderá obter Neste ponto da análise Pareto que estou seguindo com uma certa liberda de acrescenta que a maioria dos líderes políticos são de fato nãológicos vítimas das ilusões que pretendem difundir E preciso que seja assim porque é difícil fingir sentimentos ou difundir convicções de que não participamos Os chefes de Estado mais persuasivos acreditam na sua vocação e na sua capacidade de transformar o mundo Pelo menos até um certo ponto os condutores de povos precisam ser prisioneiros das ilusões de que os governados necessitam Não há dúvida de que esta proposição que é verdadeira é também pouco agradável Mas comentaria Pareto não há motivo para que a verdade coincida com a utilidade Afirmar que é necessário que os condutores de povos tenham as mesmas ilusões que difundem é talvez pronunciar uma afirmativa verdadei ra Contudo será necessário revelar esta verdade Será que o bom sociólogo es tá condenado a ser um mau cidadão A síntese sociológica Depois de estudar a natureza do homem social com seus resíduos e deri vações Pareto passa à análise do funcionamento da sociedade considerada em seu conjunto Este esforço de síntese sociológica corresponde aos três últimos capítulos do Traité de sociologie générale Propriétés des résidus et des déri A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 405 vations Propriedades dos resíduos e das derivações Forme générale de la so ciété Forma geral da sociedade e Léquilibre social dans 1histoire O equilí brio social na história Sabese que as classes dos resíduos variam pouco Ao longo dos séculos que podemos observar diretamente ou por meio de testemunhos históricos as seis classes de resíduos têm uma importância que não varia de modo decisivo Constatamse porém uma lenta progressão do pensamento lógicoexperimental e oscilações na importância relativa das diferentes classes de resíduos Estas os cilações da força relativa dos resíduos da primeira e da segunda classe constituem mesmo a principal causa das transformações históricas e os fatores decisivos do destino dos povos e dos Estados Pareto pergunta assim se tais resíduos expressão dos sentimentos são de terminados por sua vez por causas externas de ordem material Pareto foi influenciado numa certa época da sua vida pelo darwinismo so cial isto é pelas idéias de luta pela vida e de seleção natural aplicadas às socie dades humanas Foi tentado a explicar as lutas entre classes e sociedade pela luta pela vida os vencedores e os sobreviventes seriam os mais bemdotados Mas não se engajou muito nesta interpretação que considerava por demais mecânica e unívoca Só guardou dela sua idéia geral afinal de contas evidente a idéia de que os sentimentos ou os resíduos não devem estar em contradição muito clara com as condições da sobrevivência Se os modos de pensar e de sentir são incom patíveis com as exigências da vida coletiva a sociedade não pode durar Um mí nimo de adaptação entre os sentimentos dos povos e as necessidades vitais é sem pre necessário Sem este mínimo os povos desaparecem Pareto esclarece aliás que é possível conceber em abstrato dois tipos ex tremos de sociedade 1 Uma sociedade em que agem exclusivamente os sen timentos sem raciocínios de qualquer espécie Muito provavelmente as socie dades animais se aproximam deste tipo 2 Uma sociedade em que agem exclu sivamente os raciocínios lógicoexperimentais 2141 A sociedade humana encontrase num estado intermediário entre os dois tipos indicados Sua forma é determinada não só pelas circunstâncias externas mas também pelos sentimen tos interesses e raciocínios lógicoexperimentais que têm por objetivo assegurar a satisfação dos sentimentos e dos interesses mas também de maneira subor dinada pelas derivações que exprimem e que às vezes justificam sentimentos e interesses servindo em certos casos como meios de propaganda 2146 Uma sociedade composta exclusivamente por condutas lógicoexperimen tais não pode ser concebida afirma Pareto porque o pensamento lógicoexpe rimental não tem condições de determinar os objetivos últimos da sociedade Embora isto desagrade aos positivistas e aos humanistas não existe e não pode existir uma sociedade determinada exclusivamente pela razão Não porque os preconceitos dos homens os impeçam de seguir os ensinamentos da razão mas 406 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO porque faltam os dados do problema que se quer resolver pelo raciocínio lógi coexperimental Aparece aqui a indeterminaçao da noção de utilidade As no ções dos diferentes indivíduos a respeito do que é bom para si mesmos ou para os outros são essencialmente heterogêneas e não há uma forma de reduzilas à unidade 2143 Esta determinação nãológicoexperimental dos objetivos introduz uma li berdade na sociedade com relação ao efeito do meio natural Não que não haja uma influência do meio natural sobre as sociedades humanas mas esta influên cia está inscrita nos sentimentos e nos resíduos dos homens O mínimo de adap tação necessária é dado portanto no ponto de partida e é possível pôr entre parênteses a influência do meio natural e compreender o funcionamento da so ciedade retendo essencialmente os resíduos as derivações os interesses e a he terogeneidade social Se a determinação dos objetivos nunca é lógicoexperimental será normal falar de uma categoria de condutas ditas lógicoexperimentais Num certo sen tido até mesmo uma conduta lógicoexperimental não o é na medida em que pressupõe uma determinação do seu objetivo Esta questão permite abordar as teorias paretianas do interesse e da utilidade Por interesses entendemos as tendências que fazem com que os indivíduos e as coletividades sejam levados pelo instinto e pela razão a se apropriar dos meios materiais úteis e agradáveis à vida assim como a procurar consideração e honrarias Estas tendências se manifestam nas condutas que têm maiores pro babilidades de serem lógicas as dos sujeitos econômicos e as dos sujeitos polí ticos isto é as condutas dos que buscam o máximo de satisfação material para si mesmos e o máximo de poder e de prestígio na competição social A conduta dos trabalhadores ou dos engenheiros dirá Pareto é lógicoexpe rimental por definição O problema do objetivo fica resolvido porque a finali dade atribuída a essas condutas é evidente Consideremos o caso do engenhei ro que vai construir uma ponte É verdade que a decisão de construir uma ponte não é lógicoexperimental e que num certo sentido até mesmo um objetivo de natureza técnica decorre de decisão nãológicoexperimental mas como este objetivo tem utilidade evidente para os indivíduos interessados é fácil acentuar o acordo entre o processo intelectual dos construtores e o processo real que se desenvolve de conformidade com suas previsões A conduta dos sujeitos econômicos é interessada e lógicoexperimental por que a ciência econômica considera os indivíduos admitindo que querem alcançar determinados objetivos e empregam os meios mais apropriados para ter êxito A ciência econômica se encontra numa situação privilegiada para definir estes objetivos pois a escolha dos objetivos é feita pelo próprio sujeito O eco nomista toma os sujeitos econômicos com sua hierarquia de preferências sem fazer um julgamento a respeito dos méritos respectivos das diversas escalas de A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 407 escolha Se uma pessoa prefere gastar seu último centavo comprando pão e a outra vinho o economista toma conhecimento destas decisões mas não profere nenhum julgamento sobre sua qualidade relativa A partir das escalas de prefe rência estabelecidas livremente por cada um o economista procura reconstruir um comportamento lógico por meio do qual cada um tenta alcançar o máximo de satisfações com base nos recursos disponíveis Supõese simplesmente que os atores têm por objetivo alcançar com os recursos de que dispõem este máxi mo de satisfação Tais satisfações são fatos observáveis já que se confundem para o observador com as escolhas efetivas dos sujeitos Esta análise é objetiva uma vez que se limita a constatar as preferências dos indivíduos e não estabelece nenhuma comparação entre as satisfações do sujeito A e as do sujeito B A economia pura escolheu uma norma única que é a satisfação do indivíduo e determinou que ele é o único juiz dessa satisfa ção Assim se definiu a utilidade econômica ou ofelimidade Mas se colocarmos o problema também muito simples de procurar o que é mais vantajoso para o indivíduo abstraindo sua preferência aparece logo a necessidade de uma regra que é arbitrária Por exemplo diremos que é melhor para ele sofrer fisicamen te para desfrutar moralmente ou viceversa Diremos que é melhor para ele procurar exclusivamente a riqueza ou preocuparse com outra coisa Em eco nomia pura nós lhe deixamos a responsabilidade de decidir 2110 Para evi tar confusão falaremos portanto de ofelimidade em vez de utilidade para indi car as satisfações obtidas pelo indivíduo em virtude da sua hierarquia de prefe rências e dos meios de que dispõe Um indivíduo age logicamente na medida em que tende a maximizar seu valor É normal de fato que cada indivíduo queira garantir para si a satisfação máxima ficando entendido que este máximo não è necessariamente o máximo de prazer mas pode ser também o máximo de pri vações Se uma pessoa encontra a satisfação máxima na moralidade e não nos prazeres pode comportarse tão logicamente quanto o avaro ou o ambicioso Para falar de ofelimidade é preciso que cada indivíduo seja o único árbitro da sua escala de preferências e que a conduta que assegura o máximo de valor seja de terminada com base na conjuntura Duas dificuldades se apresentam imediatamente na transferência deste con ceito de ofelimidade para a sociedade Esta não é uma pessoa e não tem portanto uma escala de preferências porque os indivíduos que a compõem têm normal mente hierarquias de preferências distintas Se as utilidades dos indivíduos fos sem quantidades homogêneas e fosse possível em conseqüência comparálas e somálas nosso estudo não seria difícil pelo menos teoricamente Adicionaríamos as utilidades dos diversos indivíduos e teríamos a utilidade da coletividade cons tituída por eles Voltaríamos assim aos problemas já estudados Mas as coisas não acontecem tão ôplmente assim As utilidades dos diferentes indivíduos são quan 408 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tidades heterogêneas não tendo sentido falar na soma destas quantidades esta soma não existe e não é possível concebêla 21262127 Por outro lado para uma sociedade no seu conjunto hesitamos entre dife rentes categorias de utilidade Por exemplo podese considerar que a utilidade da sociedade é o máximo de poder no cenário internacional ou o máximo de pros peridade econômica ou de justiça social esta última compreendida como a igual dade na repartição das rendas Em outras palavras a utilidade não é um conceito definido e antes de falar de modo lógicoexperimental sobre a utilidade social é preciso chegar a um acordo sobre o critério de utilidade A utilidade social é um estado da sociedade suscetível de variações para mais e para menos que só pode ser definido a partir de um critério escolhido arbitrariamente pelo sociólogo A utilidade social não é um conceito unívoco e só passa a sêlo na medida em que o sociólogo indique exatamente o sentido que atribui a essa noção Se decide cha mar de utilidade o poderio militar este pode ser de mais ou de menos Mas esta definição é apenas uma dentre outras que são também possíveis O problema da utilidade social se coloca portanto nos seguintes termos Não há solução lógicoexperimental para o problema social ou o pro blema de conduta que o indivíduo deve adotar porque os objetivos da conduta nunca são determinados de modo lógicoexperimental A noção de utilidade é equívoca e só se toma clara pela escolha de um critério que incumbe ao observador Não devemos concluir que é impossível re solver os problemas que consideram ao mesmo tempo diferentes utilidades he terogêneas contudo para tratar destas utilidades heterogêneas é preciso admitir uma hipótese que as tome comparáveis Quando falta esta hipótese o que acon tece com muita freqüência tratar desses problemas é absolutamente inútil Neste caso ela é simplesmente uma derivação com que escondemos certos sentimen tos sobre os quais devemos fixar exclusivamente nossa atenção 2137 Podemos medir em teoria com rigor e objetividade a ofelimidade de um indivíduo mas esta mensuração só é possível se admitimos a priori como váli da a escala de preferências do indivíduo que age Mesmo admitindo um critério definido de utilidade convém distinguir a utilidade direta e a indireta a utilidade total é a soma destas duas utilidades A utilidade indireta resulta em primeiro lugar dos efeitos do ato sobre o am biente do indivíduo que age Se uma potência deseja adquirir no mundo atual uma força atômica a utilidade direta será a vantagem ou a desvantagem se se trata de utilidade negativa resultante da aquisição daquela força A utilidade indireta positiva ou negativa será a que resulte para o Estado da transformação provocada no conjunto do sistema internacional Se o aumento do número de po tências atômicas faz com que cresça a probabilidade de uma guerra nuclear a utilidade indireta será por essa razão negativa A utilidade indireta negativa pode aliás ser maior ou menor do que a utilidade direta Para medir a utilidade glo A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 409 bal de um indivíduo ou de uma coletividade será preciso levar em conta além da utilidade direta a indireta ligada à transformação do sistema considerado A utilidade indireta pode resultar também das repercussões do comportamento dos outros sobre o ator e não da transformação de todo o sistema Por exemplo no contexto atual se os Estados Unidos ou a União Soviética se conduzem com re lação à França pelo fato de que este país possui uma força atômica de maneira diferente da que adotariam se a França não fosse uma potência nuclear o resul tado é uma utilidade positiva ou negativa que será preciso acrescentar à utili dade direta para calcular a utilidade total O raciocínio parece levar a um impasse para prosseguir convém distinguir entre o máximo de utilidade para uma coletividade e o máximo de utilidade de uma coletividade O máximo de utilidade para uma coletividade é o ponto a partir do qual é impossível aumentar a utilidade de um indivíduo dessa coletividade sem dimi nuir a de um outro Enquanto este ponto não for alcançado isto é enquanto for possível aumentar a utilidade de certas pessoas sem diminuir a de outras o óti mo não terá sido atingido e será racional prosseguir Este máximo de utilidade para uma coletividade supõe um critério de uti lidade Se como na economia pura definimos a utilidade em termos de ofeli midade ou de satisfação para os indivíduos de acordo com seus próprios siste mas de preferência será normal e lógico por parte dos governantes ir até o ponto de utilidade máxima para a coletividade Quando a coletividade se encon tra num ponto Q do qual pode afastarse com vantagem para todos os indiví duos obtendo para todos maiores satisfações está claro que do ponto de vista econômico e caso se procure apenas o interesse de todos os indivíduos que com põem a coletividade convém não se deter em um tal ponto mas continuar a se distanciar enquanto for vantajoso para todos 2129 Podese falar portanto sobre um máximo de ofelimidade para a coletivi dade determinada independentemente de qualquer comparação entre as ofeli midades de indivíduos distintos Contrariamente como não se podem por defi nição comparar e em seguida adicionar as ofelimidades de A e B porque são quantidades heterogêneas a coletividade não pode ser considerada como uma pessoa e o máximo de ofelimidade de uma coletividade não existe ou mais exatamente não pode existir Em sociologia podese contudo ao lado do máximo de utilidade para uma coletividade considerar o máximo de utilidade de uma coletividade vista como o equivalente a uma pessoa sem confundir as duas coisas O máximo de utili dade de uma coletividade não pode ser objeto de uma determinação lógicoex perimental De um lado ele exige para ser definido a escolha de um critério como a glória o poder a prosperidade Por outro lado uma coletividade não é uma pessoa os sistemas de valores e as preferências dos indivíduos não são os 410 AS ETAPAS D O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mesmos e em conseqüência o máximo de utilidade de uma coletividade só po derá ser objeto de uma determinação arbitrária isto é em que não podem ser aplicados os métodos lógicoexperimentais Se considerarmos as satisfações dos indivíduos é normal que elas sejam aumentadas ao máximo e este máximo não será atingido enquanto for possí vel aumentar as satisfações de alguns sem diminuir as de outros Quando este ponto for atingido entraremos na faixa dos equívocos inextricáveis da compa ração das utilidades Além desse ponto será possível dar mais satisfação a alguns admitamos ao maior número à custa das satisfações de alguns outros que poderiam constituir o menor número contudo para poder afirmar que devemos proceder logicamente a esta redistribuição das utilidades é preciso admitir que as utilidades dos diferentes indivíduos são comparáveis Ora sabe mos que as utilidades de duas pessoas são radicalmente incomparáveis pelo me nos usando métodos científicos Todavia feitas estas reservas até mesmo o ponto do máximo de utilidade para a coletividade não se impõe com a força da evidência aos que refletem sobre o destino da sociedade Com efeito não se pode excluir que este ponto do máximo de utilidade para uma coletividade a saber o ponto em que o maior número possível de indivíduos têm toda a satisfação possível com base em re cursos disponíveis seja um ponto de fraqueza ou de rebaixamento nacional Ora entre a noção do máximo de satisfação para o maior número possível de indivíduos e a noção de poder ou de glória da coletividade a heterogeneidade é radical A sociedade mais próspera não é necessariamente a mais poderosa ou a mais gloriosa O Japão de 1937 era uma grande potência militar Tinha criado um império o Manchuco e estava em vias de dominar a China Simultanea mente o nível de vida da população japonesa era relativamente baixo o regi me político do país era autoritário e a disciplina social severa A situação do Japão de 1937 não representava o máximo de utilidade para a coletividade Muitas medidas poderiam ter sido tomadas para melhorar a satisfação de muitos sem diminuir a de ninguém A partir de 19461947 o Japão passou a ter o mais elevado índice de crescimento do produto nacional bruto em todo o mundo inclusive o mundo soviético e o nível de vida se elevou rapidamente Ao mesmo tempo o Japão deixou de ter força militar marinha de guerra e império colo nial O que é preferível a situação do Japão economicamente próspero de 1962 ou a situação do Japão militarmente poderoso de 1937 Não há uma resposta lógicoexperimental a esta pergunta O estado demográfico econômico ou so cial de um país onde os indivíduos vivem agradavelmente pode ser acompanha do pelo declínio da glória ou do prestígio A noção de heterogeneidade tem um papel muito importante na sociologia de Pareto Assim a sociedade não pode ser considerada como uma pessoa por A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 411 que os sistemas de valores dos indivíduos são radicalmente heterogêneos Pa reto usa também a expressão heterogeneidade social para designar o fato de que todas as sociedades conhecidas comportam a separação e num certo sentido a oposição entre a massa dos indivíduos governados e um pequeno número de pessoas que dominam e que ele chama de elite Na sociologia de Marx a dis tinção das classes é fundamental na sociologia de Pareto a distinção entre mas sas e elite é decisiva Esta distinção pertence à tradição maquiaveliana Encontramos em Pareto duas definições de elite uma ampla que cobre o conjunto da elite social e outra mais restrita que se aplica apenas à elite gover namental A definição ampla considera que fazem parte da elite o pequeno número de indivíduos que cada um na sua esfera de ação chegaram a um escalão ele vado da hierarquia profissional Vamos admitir que em todos os ramos da ati vidade humana se atribui a cada indivíduo um índice representativo das suas capacidades mais ou menos como são atribuídas notas aos alunos num exame nas diferentes matérias estudadas nas escolas Por exemplo aos que são exce lentes na sua profissão daremos nota 10 Àquele que consegue um só cliente daremos nota 1 de modo a atribuir 0 ao que é realmente cretino A quem con seguiu ganhar milhões pelo bem ou pelo mal daremos 10 A quem ganha mi lhares de francos daremos 6 Àquele que consegue deixar de morrer de fome 1 Ao que termina hospitalizado num asilo de indigentes daremos 0 À mulher política tal como Aspásia de Péricles Maintenon de Luís X iy Pompadour de Luís XV que souberam atrair as boas graças de um homem poderoso e que tive ram um papel no governo da coisa pública daremos nota 8 ou 9 À mulher de vida fácil que só sabe satisfazer os sentidos desses homens e não tem nenhuma influência sobre a coisa pública daremos nota 0 Ao escroque habilidoso que engana as pessoas mas escapa do código penal atribuiremos 89 ou 10 segun do o número de bobos que ele soube prender nas malhas de sua rede e o dinhei ro que lhes soube arrancar Ao pobre ladrão de pouca importância que rouba talheres num restaurante e se deixa apanhar pela polícia daremos 0 Com rela ção aos jogadores de xadrez podemos adotar índices mais precisos refletindo o número de partidas que ganharam E assim por diante em todos os campos da atividade humana Formaremos então uma classe incluindo todos os que têm índices mais elevados no seu ramo respectivo de atividade e chamaremos esta classe de elite Qualquer outro nome e até mesmo uma simples letra do al fabeto bastariam para o objetivo a que nos propomos 2027 e 2031 De acordo com a regra do método de Pareto esta definição é objetiva e neutra Não é preciso procurar um sentido profundo metafísico ou moral para a noção de elite tratase de uma categoria social objetivamente perceptível Não precisa mos indagar se a elite é verdadeira ou falsa e quem tem direito de figurar nela Todas estas questões são vãs A elite está composta dos que mereceram boas notas no concurso da vida ou tiveram sorte na loteria da existência social 412 AS ETAPAS D O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Mas Pareto praticamente não se utiliza desta definição ampla que na rea lidade tem o propósito de introduzir a definição restrita de elite governante que agrupa um pequeno número de indivíduos entre os que tiveram êxito que exer cem funções políticas ou socialmente dirigentes Para nosso estudo que tem como objeto o equilíbrio social será bom dividir essa classe em duas Poremos à parte aqueles que de forma direta ou indireta desempenham uma função notá vel no governo e que constituem a elite governante O resto formará a elite não governante Por exemplo um célebre jogador de xadrez participa indubitavel mente da elite contudo seus méritos de jogador de xadrez não lhe abrem cami nho para exercer uma influência no governo Em conseqüência se não tiver ou tras qualidades não fará parte da elite governante As amantes dos soberanos absolutos ou dos políticos muito poderosos com freqüência pertencem à elite seja por causa de sua beleza seja por seus dotes intelectuais Mas só algumas delas que tinham as aptidões especiais requeridas pela política desempenharam um papel no governo Identificamos portanto duas camadas na população 1 a ca mada inferior classe estranha à elite No momento não vamos estudar a influên cia que ela pode exercer sobre o governo 2 a camada superior a elite que se divi de em duas d a elite governante b a elite nãogovemante 2032 a 20347 Pareto esclarece mais adiante que é tal a tendência a personificar as abs trações ou a darlhes apenas uma realidade objetiva que muitas pessoas conce bem a classe governante quase que como uma pessoa ou pelo menos como uma unidade concreta que supõem ter uma vontade única acreditam que ado tando medidas lógicas ela realiza seus programas É assim que muitos antise mitas imaginam os semitas e muitos socialistas imaginam os burgueses 2254 É evidente que pelo menos a priori as coisas não são assim Por sua vez a clas se governante não é homogênea Ibid As sociedades são caracterizadas pela natureza das suas elites sobretudo das suas elites governantes De fato todas as sociedades têm uma característica que os moralistas podem considerar deplorável mas que os sociólogos são obriga dos a constatar há uma distribuição muito desigual dos bens neste mundo e uma distribuição mais desigual ainda do prestígio do poder e das honrarias associa das à competição política Esta distribuição desigual dos bens materiais e mo rais é possível porque afinal um pequeno número de pessoas governa um gran de número recorrendo a dois tipos de meios a força e a astúcia A população se deixa dirigir pela elite porque esta detém os meios de força ou então porque consegue convencer isto é sempre enganar mais ou menos o grande número Governo legítimo é aquele que teve êxito no processo de persuasão dos gover nados convencendoos de que é apropriado aos seus interesses a seus deveres ou à sua honra obedecer ao pequeno número Esta distinção dos dois meios de governo a força e a astúcia é a transposição da famosa oposição entre os leões e as raposas apontada por Maquiavel As elites políticas dividemse natural A GERAÇÃO DA PASSAGEM D O SÉCULO 413 mente em duas famílias uma das quais merece ser chamada de família dos leões porque tem preferência marcante pela brutalidade e a outra de família das ra posas porque se inclina para a sutileza Esta teoria da heterogeneidade social e das elites desenvolvida no Traitè de sociologie générale deve ser aproximada da teoria da repartição da renda exposta em vários livros entre eles o Cours d économ iepolitique e Les systè mes socialistes No Cours d économie politique Pareto explica que a curva de distribuição da renda pode ser representada por uma reta cuja equação é log N log A a log x em que x é a dimensão da renda e N o número de indivíduos que têm renda igual ou superior a x A e a são constantes a serem determinadas de acordo com as estatísticas disponíveis a dá a inclinação sobre o eixo dos x da linha dos logaritmos Na parte do gráfico em escala logarítmica dupla onde estão representadas as rendas superiores à média uma diminuição da inclina ção de a indica uma menor desigualdade das rendas8 Todas as séries estatísti cas essencialmente de origem fiscal mostram segundo Pareto que a tem um valor semelhante em todos os países valor que se situa em tomo de 15 A mesma fórmula de distribuição das rendas se aplica portanto a todas as sociedades Pareto comenta Estes resultados são notáveis É absolutamente impossível admitir que são devidos somente ao acaso Não há dúvida de que existe uma cau sa que produz a tendência das rendas para se dispor segundo uma curva deter minada A forma desta curva parece depender muito pouco da diferença de condições econômicas pois os efeitos são mais ou menos os mesmos em paí ses cujas condições econômicas são tão diferentes entre si quanto a Inglaterra a Irlanda a Alemanha cidades italianas e mesmo o Peru Cours d économie politique 960 E mais adiante A desigualdade da distribuição das rendas parece depender portanto muito mais da própria natureza dos homens do que da organização econômica da sociedade Modificações profundas nesta organi zação poderiam ter pouca influência no sentido de alterar a lei da distribuição da renda Ibid 1012 A distribuição das rendas que se observa esclarece contudo Pareto não reflete exatamente a heterogeneidade social isto é a dis tribuição desigual das qualidades eugênicas Seria assim se houvesse uma per feita mobilidade entre as diferentes camadas sociais mas esta depende ao mes mo tempo da repartição das qualidades que permitem aos homens se enrique cer e da disposição dos obstáculos que impedem o exercício dessas faculda des Cf a Addition au cours d économiepolitique t II p 418 Em Les sys tèmes socialistes Pareto resume suas idéias de maneira muito clara Demons tramos que a curva da distribuição das rendas tinha uma estabilidade notável ela se altera muito pouco quando as circunstâncias de tempo e de lugar em que é observada mudam muito Esta proposição que decorre dos fatos recolhidos pela estatística surpreende à primeira vista Sua origem reside provavelmente na distribuição dos caracteres psicológicos dos homens e também no fato de que 414 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO as proporções em que os capitais se combinam não podem ser indefinidas T I p 162 Pareto conclui que as rendas inferiores não podem aumentar e que a desigualdade das rendas não pode diminuir a não ser que haja um crescimen to das riquezas proporcional à população O problema do crescimento do bem estar das classes pobres é mais um problema de produção e de conservação da riqueza do que um problema de distribuição O meio mais seguro para melho rar a condição das classes pobres é agir de modo que a riqueza cresça mais de pressa do que a população Cours d économie politique 1036 Assim a idéia da constância da ordem social teria um fundamento econô mico Sem entrar aqui numa discussão detalhada da lei de Pareto levantarei pelo menos duas reservas Nos países socialistas não é certo que a fórmula antiga continue válida mesmo que o fosse a ordem social não é caracterizada adequa damente só pela curva da distribuição da riqueza e das rendas A teoria das elites governantes se aproxima das teses que outro italiano Gaetano Mosca tinha exposto um pouco antes de Pareto o que provocou vio lenta controvérsia na Itália Teria Pareto utilizado as idéias de Mosca mais do que era conveniente citandoo um pouco menos do que seria justo9 A teoria das elites governantes de Mosca era menos psicológica e mais política Segundo este autor cada elite política se caracteriza por uma fórmula de governo que eqüivale mais ou menos ao que chamamos de ideologia da legitimidade A fór mula de governo ou fórmula política é a idéia em nome da qual uma minoria governante justifica seu domínio procurando convencer o povo da legitimida de do seu poder Na sociologia de Pareto as diversas elites políticas são carac terizadas sobretudo pela abundância relativa dos resíduos da primeira e da segunda classes As raposas são as elites que dotadas de abundantes resíduos da primeira classe preferem a astúcia e a sutileza e se esforçam por manterse no poder pela propaganda multiplicando as combinações políticofinanceiras Essas elites são características dos regimes chamados democráticos que Pareto chamava de plutodemocráticos Esta interpretação das peripécias da política em termos de resíduos da pri meira ou da segunda classe pode ser encontrada ainda hoje em certos autores Um pouco antes da passagem da IV para a V República Jules Monnerot expli cou que a classe política da IV República sofria de um excesso de resíduos da primeira classe e que era necessário para restabelecer a estabilidade no país favorecer o acesso ao poder de uma elite que tivesse resíduos da segunda clas se mais numerosos usando menos a astúcia e mais a força10 O paretiano J Monnerot suspeitava de que as raposas da IV República dessem a independên cia à Argélia e quando isso aconteceu passou para a oposição Quatro variáveis permitem portanto compreender o movimento geral da sociedade os interesses os resíduos as derivações e a heterogeneidade social Es tas quatro variáveis principais das quais depende o movimento da sociedade estão em estado de mútua dependência A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 415 A fórmula da mútua dependência se opõe à fórmula atribuída ao marxismo da determinação do conjunto dos fenômenos sociais pela economia Significa que cada uma das variáveis age sobre as outras três ou é afetada por elas O inte resse age sobre os resíduos e as derivações de acordo com a correlação eviden ciada pelo materialismo histórico que é real Mas os resíduos e as derivações os sentimentos e as ideologias agem também sobre as condutas e os sistemas econômicos Finalmente a heterogeneidade social isto é a rivalidade das elites e a luta entre as massas e a elite é afetada pelos interesses mas age também sobre eles Não há uma determinação do conjunto por uma variável mas sim pela ação recíproca das variáveis umas sobre as outras11 A oposição entre a teoria de Pareto e a de Marx pelo menos como ele com preendia esta última aparece mais claramente no modo como interpreta a luta de classes Pareto afirma explicitamente em particular em Les systèmes socia listes que Marx tem razão e que através de toda a história a luta de classes é um dado fundamental talvez mesmo o dado fundamental Marx porém segundo Pareto errou em dois pontos Em primeiro lugar é falso que a luta de classes seja determinada exclusivamente pela economia isto é pelos conflitos resultantes da propriedade dos meios de produção pois a posse do Estado e da força militar pode constituir igualmente a fonte da oposi ção entre a elite e a massa Há uma página de Les systèmes socialistes muito clara a este respeito Muitas pessoas acreditam que se fosse possível encontrar uma receita para fazer desaparecer o conflito entre o trabalho e o capital a luta de classes desapareceria também Tratase de uma ilusão da classe muito nume rosa dos que confundem a forma com o fundo A luta de classes não passa de uma modalidade da luta pela vida e o que conhecemos como conflito entre o traba lho e o capital não é mais do que uma forma da luta de classes Na Idade Média poderseia ter acreditado que se desaparecessem os conflitos religiosos a socie dade se teria pacificado Esses conflitos religiosos não eram senão uma forma de luta de classes desapareceram pelo menos em parte e foram substituídos pelos conflitos socialistas Suponhamos que o coletivismo esteja estabelecido que o capital não exista mais está claro que nesta hipótese ele não poderia mais entrar em conflito com o trabalho Contudo apenas uma forma da luta de clas ses terá desaparecido e será substituída por outras Surgirão conflitos entre os diferentes tipos de trabalhadores no Estado socialista entre os intelectuais e os nãointelectuais entre diferentes grupos de políticos entre estes e seus ad ministrados entre os inovadores e os conservadores Haverá realmente quem imagine com seriedade que a instituição do socialismo secará completamente a fonte das inovações sociais Que a fantasia dos homens não dará à luz novos projetos e que os interesses não induzirão certas pessoas a adotar esses oroie 416 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tos na esperança de alcançar um lugar preponderante na sociedade Les sys tèmes socialistes t II p 467 Além disso Marx se enganava ao acreditar que a luta de classes atual dife re essencialmente da que podemos observar através dos séculos e que a vitó ria do proletariado lhe porá um fim A luta de classes da época contemporânea na medida em que é a do proletariado e da burguesia não levará à ditadura do proletariado mas sim ao domínio dos que falarão em nome do proletariado isto é de uma minoria privilegiada como todas as elites que a precederam e que a sucederão Para Pareto não se pode crer ou esperar que a luta das minorias pelo poder possa modificar a evolução imemorial das sociedades levando a um esta do fundamentalmente diferente Em nossos dias os socialistas viram muito bem que a revolução do fim do século XVIII simplesmente colocou a burguesia no lugar da antiga elite e chegaram mesmo a exagerar consideravelmente o peso da opressão dos novos senhores embora acreditem com toda a sinceridade que uma nova elite de políticos manterá suas promessas melhor do que as que se su cederam até hoje Todos os revolucionários proclamam sucessivamente que as revoluções passadas não fizeram mais do que iludir o povo só a revolução que eles têm em vista será a verdadeira O Manifesto do partido comunista afirma va em 1848 que todos os movimentos históricos foram até aqui movimentos minoritários em favor de minorias O movimento proletário seria o movimen to espontâneo da imensa maioria em benefício da imensa maioria Infelizmen te esta verdadeira revolução que deve trazer aos homens a felicidade sem qual quer mistura não passa de uma miragem decepcionante que nunca se transfor ma em realidade Lembra a idade do ouro dos milenários sempre esperada ela se perde nas brumas do futuro escapando a seus fiéis no momento em que estes pensam alcançála Les systèmes socialistes 11 pp 6062 De acordo com Pareto o fenômeno historicamente mais importante é o da vida e da morte das minorias governamentais ou para usar um termo que ele às vezes emprega das aristocracias Há uma fórmula célebre A história é um ce mitério de aristocracias Traité de sociologie générale 2053 Ou ainda A história das sociedades humanas é em grande parte a história da sucessão das aristocracias Manuel d économiepolitique Cap VII 115 A história das sociedades é a história da sucessão de minorias privilegiadas que se formam lutam chegam ao poder aproveitam o poder e decaem para ser substituídas por outras minorias Este fenômeno das novas elites que por um incessante movi mento de circulação surgem das camadas inferiores da sociedade sobem até as camadas superiores se desenvolvem e em seguida decaem são aniquiladas e desaparecem é um dos principais da história é indispensável leválo em conta para compreender os grandes movimentos sociais Les systèmes socialistes 11 p 24 O sociólogo precisa indagar por que as aristocracias ou as minorias dirigentes têm quase sempre tão pouca estabilidade e duração A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 417 As causas desta mortalidade das aristocracias tais como Pareto as analisa são as seguintes 1 Muitas aristocracias foram aristocracias militares que pereceram dizi madas em combates As aristocracias militares desaparecem mais rapidamente porque seus membros são obrigados a arriscar a vida nos campos de batalha 2 De modo quase geral ao fim de algumas gerações as aristocracias per dem sua vitalidade ou sua capacidade de usar a força Pareto diria que não é possível governar os homens sem uma certa propensão à violência embora não se devam confundir força e violência que afirma acompanha muitas vezes a fra queza Geralmente os netos e bisnetos dos que conquistaram o poder aproveita ram sua situação familiar privilegiada desde cedo sendo marcados pelo desen volvimento dos resíduos da primeira classe Dedicamse às combinações inte lectuais às vezes até mesmo aos prazeres superiores da civilização e da arte mas se tomam incapazes da ação exigida pela ordem social De acordo com a filo sofia de Pareto as aristocracias mais moderadas e em conseqüência as mais suportáveis pelos povos são aquelas que vítimas da sua debilidade são arras tadas por uma revolução e substituídas por uma elite violenta A nobreza fran cesa do fim do século XVIII estava esgotada aderiu a uma filosofia humanitá ria sabia gozar a vida encorajava as idéias liberais E morreu no cadafalso Seu desaparecimento foi ao mesmo tempo deplorável e justo pelo menos na ordem da justiça que exige que as aristocracias cumpram sua função e não se aban donem a sentimentos talvez apreciáveis mas que não permitem que uma classe continue a ser dirigente Toda elite que não está disposta a lutar para defender suas posições está em plena decadência Nada lhe resta senão entregar seu lugar a uma outra elite que tenha as qualidades viris que lhe faltam Se imagina que os princípios humanitá rios que proclamou lhe serão aplicados sonha os vencedores farão ressoar nos seus ouvidos o implacável vae victis A lâmina da guilhotina era afiada na sombra quando no fim do século as classes dirigentes francesas aplicavamse ao desenvol vimento da sua sensibilidade Essa sociedade ociosa e frívola que vivia como parasita falava em ceias elegantes sobre o modo de livrar o mundo da supersti ção e de esmagar o infame sem pensar que ela própria seria esmagada Les sys tèmes socialistes 11 p 40 3 Por fim e principalmente não pode haver uma harmonia duradoura en tre os dons dos indivíduos e as posições sociais que estes ocupam As posições ocupadas pelos indivíduos dependem amplamente das vantagens que tiveram no ponto de partida isto é das posições ocupadas pelos pais Contudo as leis da hereditariedade são tais que não se pode contar com que os filhos dos que têm capacidade de comando terão a mesma capacidade Em cada elite em cada mo mento há indivíduos que não merecem participar dela e na massa há pessoas 418 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO que têm qualidades para fazer parte da elite Se as aristocracias humanas fossem sempre semelhantes às grandes raças de animais que se reproduzem por longos períodos quase que com as mesmas características a história da raça humana seria totalmente diferente da que conhecemos Traité de sociologie générale 2055 Nestas condições como a estabilidade social pode ser mantida Fundamentalmente toda elite que encontra na massa uma minoria digna de pertencer ao pequeno grupo dos dirigentes pode escolher entre dois procedimen tos que pode também empregar simultaneamente em proporções variáveis eli minar os candidatos a participar da elite que são normalmente revolucionários ou absorvêlos Este último processo é naturalmente mais humano e pode tam bém ser mais eficaz isto é o mais apropriado para evitar as revoluções A elite que demonstrou maior virtuosismo no método de absorção dos revolucionários potenciais foi a inglesa que há vários séculos abriu suas portas a alguns dos mais bemdotados dentre os que não nasceram na classe privilegiada A eliminação é feita por diferentes sistemas O mais humano é o exílio De acordo com uma teoria difundida na Europa no século XIX a principal virtude das colônias era justamente proporcionar um caminho de escape para os revolu cionários Em 1871 Renan em La réforme intelectuelle et morale de la France ainda considerava que as sociedades privadas da válvula de segurança que era a emigração estavam condenadas aos distúrbios internos as colônias eram precio sas deste ponto de vista Pensava que toda sociedade tem líderes virtuais insa tisfeitos que convém absorver ou então eliminar O procedimento desumano da eliminação que Pareto observa com objetividade é naturalmente a morte méto do que tem sido utilizado com muita freqüência através da história Seguindo ciclos de dependência mútua as sociedades conhecem portanto uma circulação das elites fenômeno que constitui o principal aspecto daquilo que Pareto chama de forma geral da sociedade Devido à impossibilidade de uma harmonia total entre os dons herdados dos indivíduos e a posição que ocupam na hierarquia toda sociedade tem fato res de instabilidade As sociedades são agitadas também pelas oscilações de freqüência dos resíduos da primeira e da segunda classe Quando uma elite está por muito tempo no poder sofre de um excesso de resíduos da primeira classe tornase excessivamente intelectual o que não significa demasiadamente inte ligente rejeitando com exagero o uso da força Por isto mesmo é vulnerável Os violentos nascidos na massa mobilizam então essa força contra a elite O equilíbrio social isto é a situação que reduz os riscos de revolução pres supõe um certo grau de abundância dos resíduos da primeira classe na elite e uma abundância maior dos resíduos da segunda classe na massa Para que uma ordem seja duradoura é preciso religião para o povo e inteligência nos que go vernam muitos o disseram de forma diferente mais cínica e talvez mais cho A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 41 cante Isto quer dizer em linguagem paretiana que é preciso que as massas tt nham mais resíduos da segunda classe e eventualmente da quarta e da quintí e que as elites que têm necessidade de agir com eficácia disponham de resíduo da primeira Entretanto mesmo na elite os resíduos da primeira classe não podem ser exa geradamente numerosos nem se degradarem completamente os resíduos da persis tência dos agregados da sociabilidade e da integridade pessoal Com efeito à me dida que aumentam os resíduos da primeira classe os indivíduos se tom am mai inclinados a seus interesses pessoais e mais egoístas Ora se uma classe dirigen te deve ter a inteligência de responder às circunstâncias e a capacidade de se Hap tar ao mundo tal como ele é para poder durar precisa também conservar o senti mento do dever e a consciência da sua própria solidariedade Surge assim uma espécie de contradição entre a propensão às combinações e o sentido da solidariedade moral e social elementos indispensáveis às elites Por isso inevitavelmente a história se faz com oscilações de duração mais ou menos longa Uma fase marcada pelo espírito de dúvida e o ceticismo é de re pente seguida pelo ressurgimento dos resíduos da segunda da quarta e da quin ta classe O ressurgimento dos resíduos da segunda classe corresponde aos gran des movimentos de fé coletiva a que Durkheim aludia ao dizer que as crises de exaltação coletiva nascem da religião Pareto poderia admitir essa fórmula e poderia acrescentar precisamente que a história é feita de alternâncias repeti das incessantemente entre fases de ceticismo e também muitas vezes de civili zação e inteligência e fases de fé patriótica ou religiosa São as oscilações dos resíduos na massa e na elite que determinam os ciclos de dependência mútua Para completar esta reconstrução do conjunto do movimento social Pareto desenvolve ainda duas antíteses que se situam na ordem econômica entre os que vivem de especulação e os que vivem de renda e entre a atividade livre dos agentes econômicos criadores de riqueza e a burocratização A oposição entre os especuladores e os que vivem de renda corresponde de certo modo na ordem econômica à antítese dos leões e das raposas na ordem política12 Tratase com efeito de duas atitudes econômicas possíveis a dos cria dores de riqueza pela combinação e a especulação e a dos indivíduos que al mejam acima de tudo a segurança dos seus bens e se esforçam por obtêla me diante aplicações que consideram seguras Se não houvesse falências e desva lorização monetária os que vivem de renda terminariam por possuir toda a riqueza existente Um centavo investido com juros compostos na época do nas cimento de Cristo se mantido seu valor real representaria hoje provavelmente uma fortuna superior à de toda a humanidade É preciso portanto que de tempo em tempo aqueles que vivem de renda sejam despojados do seu patrimônio Is to não deve acontecer contudo com muita freqüência para que a raça dos que vivem 8 criadores de poupança não desapareça De fato as so 420 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ciedades continuam a incluir pessoas que criam riquezas e que delas se apode ram graças à arte das combinações e pessoas que buscando a segurança termi nam vitimadas pelos astuciosos ou pelos violentos A última antítese é a que existe entre a iniciativa e a burocracia e não se confunde com a anterior Pareto é engenheiro e economista de formação En genheiro pôde observar o trabalho criador de riqueza economista de inspira ção liberal analisou a conduta dos agentes econômicos que defendendo seus interesses próprios contribuem para o desenvolvimento dos recursos da coleti vidade À livre iniciativa dos agentes econômicos Pareto opõe a cristalização social ou a organização estatal e burocrática Por razões políticas e demagógi cas os Estados são levados a intervir no funcionamento da economia a nacio nalizar as empresas a redistribuir as rendas e a substituir assim progressiva mente a concorrência favorável às iniciativas individuais e à expansão por uma ordem burocrática que tende progressivamente à cristalização Para Pareto as sociedades da Europa ocidental eram governadas por elites plutocráticas pertencentes à família das raposas dominadas exageradamente pelo instinto das combinações e cada vez mais incapazes de empregar a força indispensável ao governo das sociedades Via surgirem novas elites que usariam mais a força e menos a astúcia renovando as fórmulas de legitimidade Pareto te ria certamente reconhecido nas elites fascistas e comunistas estas elites violentas da família dos leões que tomam o poder nas sociedades decadentes Ao mesmo tempo na visão de Pareto o movimento das sociedades européias modernas se orienta no sentido da ampliação gradual do número das atividades burocratiza das no sentido do recalque do papel da livre iniciativa criadora de riqueza As sociedades européias evoluem no sentido da economia coletivista e cristaliza da Bizâncio nos mostra aonde pode levar a curva de evolução que nossas so ciedades estão em vias de percorrer Traité de sociologie générale 2612 Não se pode dizer com certeza que Pareto considerava esta cristalização bu rocrática como próxima Na verdade sobre este ponto os textos são contraditó rios Às vezes esta perspectiva é apresentada como distante outras vezes Pareto parece acreditar que a fase burocrática poderia ter início brevemente13 Não há dúvida porém de que quando escreveu o Traité de sociologie générale isto é às vésperas da guerra de 1914 surgiam elites violentas e economias estatiza das Por mais desagradável que pudesse ser sua teoria seria difícil não lhe atri buir uma parte de verdade O Traité de sociologie générale e de modo mais amplo toda a obra socio lógica de Pareto leva portanto a um diagnóstico das sociedades democráticas que ele chama de plutodemocráticas lembrando que sua característica é a ligação entre a classe política ou elite no sentido estrito do termo e os quadros dirigentes da indústria e das finanças De acordo com Pareto os regimes pluto democráticos são governados por elites que empregam astúcia de preferência à A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 421 força Pareto constata por outro lado o desenvolvimento das ideologias humani tárias e acredita que seu excesso é perigoso para o equilíbrio social Finalmente nota a expansão gradual da gestão administrativa da economia e a diminuição correlata do domínio da iniciativa privada e dos mecanismos do mercado Vê assim as sociedades ocidentais evoluírem como a sociedade romana do Baixo Império no caminho da cristalização burocrática Ciência e política Em que medida Pareto conseguiu estudar cientificamente a sociedade co mo era sua intenção Em outras palavras para empregar uma expressão que eu mesmo já utilizei em que medida logrou estudar logicamente as condutas não lógicas Há uma primeira resposta que se impõe imediatamente a esta questão Se gundo o próprio Pareto um estudo lógicoexperimental das condutas nãológicas deve ser moral e politicamente neutro desprovido de julgamentos de valor e de paixão pois não há solução lógicoexperimental para o problema da conduta humana Ora é evidente a todo leitor do Traité de sociologie générale que os es critos de Pareto são passionais estão repletos de julgamentos de valor O autor tem seus alvos preferidos seus inimigos íntimos suas vítimas preferidas de go zação Esta atitude que não difere da de outros sociólogos não se ajusta em princípio à vontade que proclama sem cessar de fazer ciência com neutralida de e objetividade Este contraste entre uma intenção declarada de ciência pura e a paixão reprimida pode servir de ponto de partida para nosso exame crítico Como combinar essas intenções e essa prática Pareto reserva sua ironia e suas invectivas a certos homens e a certas idéias Antes de mais nada tem horror às associações virtuosas e aos propagandistas da virtude que procuram melhorar os costumes É severo também com deter minadas versões do humanitarismo moderno e impiedoso com os que pretendem em nome da ciência prescrever uma moralidade ou um programa social e con dena os cientistas que agem assim Finalmente não suporta a burguesia deca dente que perdeu a percepção dos seus interesses e cega ou hipócrita não re conhece a lei de ferro da oligarquia imaginando que a sociedade atual corres ponde à fase conclusiva da história mostrandose incapaz de se defender A burguesia decadente tolera as violências dos grevistas e se indigna com as da polícia Está pronta movida pela esperança de apaziguar as reivindicações po pulares a proceder a qualquer forma de nacionalização das empresas corren do o risco de burocratizar a vida econômica Não encontra outro método para se manter no poder além da corrupção dos líderes sindicais que podem represen tar a novactò 422 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Atualmente quando os conflitos são sobretudo econômicos acusase o governo de intervir numa disputa econômica quando ele quer proteger os pa trões ou os furadores de greve contra a violência dos grevistas Se os agentes da força pública não se deixam bater sem usar suas armas dizse que lhes falta sanguefrio que são impulsivos ou neurastênicos Os julgamentos dos tribu nais são vistos como julgamentos de classe de qualquer forma são sempre considerados muito severos Por fim admitese a conveniência de que as anistias apaguem todas as lembranças desses conflitos Dirseia que do lado dos patrões há derivações exatamente opostas já que seus interesses se opõem aos dos trabalhadores mas isto não acontece ou só acontece de forma atenuada em surdina Muitos patrões são especuladores que pretendem recuperarse dos pre juízos causados pelas greves com a ajuda do governo à custa dos consumidores e dos contribuintes Seus conflitos com os grevistas são contestações de cúmpli ces que querem compartilhar o resultado da pilhagem Os grevistas que fazem parte do povo que abunda em resíduos da segunda classe têm não só interes ses mas também um ideal Os patrões especuladores que fazem parte da clas se enriquecida por combinações têm ao contrário resíduos da primeira classe em abundância Em conseqüência têm sobretudo interesses e poucos ideais ou nenhum ideal Empregam melhor seu tempo em operações lucrativas do que na elaboração de teorias Entre eles encontramos muitos demagogos plutocratas há beis em fazer virar a seu favor uma greve que parecia feita verdadeiramente con tra eles Traité de sociologie générale 218714 Aos propagandistas da virtude adversários da vida e dos seus prazeres Pareto opõe um sistema de valores aristocrático Nobre descendente de famí lia de patrícios de Gênova era favorável a uma versão moderada e elegante do epicurismo e hostil às formas extremas do moralismo puritano e do ascetismo Para ele não havia razão que justificasse a recusa do que a existência nos pro porciona e os que se instauram como portavozes da virtude são animados fre qüentemente por sentimentos menos puros Mas este primeiro inimigo tem pouco interesse político e revela mais a personalidade privada de Pareto do que suas convicções políticas e sociais Os outros alvos de Pareto revelam contudo o sistema intelectual moral e político do autor do Traité de sociologie générale A denúncia do cientismo resulta do seu respeito e amor pela ciência Para ele nada mais contrário ao espírito científico do que a supervalorização da ciência do que a tendência a pensar que ela nos pode dar como pensava Durkheim uma doutrina política talvez mesmo uma religião Esta crítica do cientismo é simul taneamente a crítica de uma forma do racionalismo comum no fim do século XIX e no princípio do século XX Para Pareto a única razão autêntica é a cien tífica Ora esta só se sustenta se tem consciência das suas limitações A ciência estabelece simplesmente as uniformidades verificadas pela concordância entre A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 423 nossas idéias e a experiência não esgota a realidade não descobre os princí pios últimos não ensina uma moral ou uma metafísica em nome de um racio nalismo experimental e pragmático O racionalismo paretiano é também a crí tica da ilusão racionalista na psicologia isto é da ilusão segundo a qual os homens seriam em última análise motivados por argumentos racionais O pen samento de Pareto é uma reação contra as esperanças racionalistas do estúpi do século XIX como diria Léon Daudet Ele próprio empregaria com prazer esta expressão dandolhe um sentido preciso e limitado Segundo Pareto é ab surda a idéia de que os progressos da ciência darão como resultado a raciona lização das próprias sociedades e de que os homens transformados pelo pro gresso do conhecimento serão capazes de organizar a sociedade com base na razão Pareto denuncia impiedosamente esta esperança falaciosa Admite um a expansão muito lenta do pensamento lógicoexperimental e não nega que a lon go prazo aumentará o papel da conduta lógica determinada pela razão mas este aumento não levará a uma sociedade cimentada pela razão científica Por defi nição o pensamento lógicoexperimental não pode fixar os objetivos individuais ou coletivos e a sociedade só mantém sua unidade na medida em que os indiví duos consentem em sacrificar seu próprio interesse ao interesse coletivo Pareto consagra longas páginas ao problema da concordância ou da contradição entre o interesse egoísta do indivíduo e o interesse da coletividade e não deixa de fo calizar os sofismas com que os filósofos e moralistas ensinam o ajuste final des ses dois objetivos Os que pretendem demonstrar o acordo essencial entre o interesse indivi dual e o coletivo alegam geralmente a necessidade que tem o indivíduo de que a sociedade exista e de que seus membros tenham confiança uns nos outros Em conseqüência se um indivíduo rouba ou mente ele contribui para destruir a confiança recíproca necessária à ordem comum e por isso age contrariamen te a seu interesse A isso Pareto responde sem dificuldade que é preciso dis tinguir entre o interesse direto e o indireto O interesse direto pode ser para um certo indivíduo mentir e roubar mas disso resultará para ele certamente um prejuízo indireto na medida em que o atentado à ordem social reduz a vanta gem que extrai do seu ato moralmente culpado contudo em grande número de casos este prejuízo indireto é inferior quantitativamente à vantagem direta causada pelo ato culposo Se o indivíduo se limita a calcular seu interesse con siderará lógico violar as regras coletivas Em outras palavras não se podem con vencer os indivíduos por meio de raciocínios lógicoexperimentais de que devem sacrificarse pela coletividade ou obedecer às normas coletivas Se a maior par te do tempo os indivíduos obedecem a estas normas é que por felicidade não agem de modo lógicoexperimental e não se converteram racionalmente ao egoísm o a ponto de só agir no próprio interesse por meio de um cálculo rigo roso O s homens agem por paixão ou por sentimento e são as paixões e os sen 424 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO timentos que os fazem agir de modo que a sociedade possa existir As socieda des existem porque as condutas humanas não são lógicas A expressão condu ta nãológica não é enquanto tal pejorativa Certas condutas lógicas são mo ralmente repreensíveis por exemplo as do especulador e do ladrão A argumentação paretiana é odiosa ao racionalista tradicional Afirmando que a coerência das coletividades é garantida pelos sentimentos e não pela razão chega com efeito à conclusão de que o progresso do pensamento cien tífico traz o risco de aumentar o egoísmo que pode desagregar a comunidade social Esta é mantida pelos resíduos da segunda e em grau menor da quarta e quinta classes Ora estes resíduos se enfraquecem ou são corroídos pelo desen volvimento de uma atitude intelectual que está na origem das civilizações supe riores e também dos desmoronamentos sociais O pensamento de Pareto leva portanto a um sistema de valores históricos profundamente antinômicos Ten demos a crer que o progresso da moralidade acompanha o progresso da razão e da civilização mas Pareto cuja reflexão é marcada por um pessimismo pro fundo afirma que a razão não pode ganhar sem que o egoísmo triunfe que as so ciedades cuja civilização é a mais brilhante são também as que estão mais pró ximas do declínio que as cidades onde se desenvolve o espírito humanitário não estão longe de grandes efusões de sangue que as elites mais toleráveis por que menos violentas atraem as revoluções que vão destruílas Este sistema de interpretação histórica se opõe radicalmente ao do profes sor de filosofia Durkheim otimista e racionalista Durkheim escreveu que em bora os Estados conservem ainda certas funções militares associadas à rivali dade das soberanias estas sobrevivências do passado estavam a ponto de desa parecer Pareto teria julgado com severidade este otimismo que consideraria uma forma típica de doutrina pseudocientífica determinada na realidade por resíduos No entanto Durkheim e Pareto estão de acordo num ponto importan te Os dois vêem as crenças religiosas surgirem da própria sociedade dos sen timentos que agitam as multidões Mas Durkheim queria salvar o caráter racional dessas crenças coletivas dandolhes um objeto de adoração digno dos seus sen timentos Com um cinismo algo desconcertante Pareto alega que esses senti mentos não necessitam de um objeto digno não são os objetos que suscitam os sentimentos mas os sentimentos preexistentes que escolhem objetos quaisquer que sejam Esta listagem dos inimigos de Pareto inimigos políticos os humanitaristas os burgueses decadentes e inimigos científicos os filósofos que interpretam racionalmente as condutas humanas os moralistas que pretendem demonstrar a harmonia preestabelecida entre os interesses particulares e o interesse coleti vo permite a meu ver compreender os diferentes sentidos que podemos atri buir ao pensamento do autor do Traité de sociologie générale A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 425 O que Pareto queria sugerir Qual o partido político ou intelectual que de fendia com seus argumentos No período entre as duas guerras Pareto foi interpretado com base no fascis mo Num artigo escrito há quase trinta anos eu mesmo o acusei de ter oferecido uma ideologia ou uma justificação ao fascismo Mas isso foi em 1937 época em que as paixões que nos agitavam eram bem diferentes das de hoje embora devido à pobreza do vocabulário as palavras não tenham mudado15 A interpretação de Pareto tomando como ponto de referência o fascismo é muito fácil Os fascistas e estou pensando nos fascistas italianos e não nos na cionalsocialistas alemães defendiam e ilustravam uma teoria oligárquica do governo exatamente como Pareto Afirmavam que os povos são sempre gover nados por minorias e que estas minorias só podem manter seu domínio quando são dignas das funções que assumem na sociedade Lembravam que as funções dos dirigentes políticos nem sempre são agradáveis e que em conseqüência as pessoas de muita sensibilidade deviam renunciar a elas ou serem afastadas Pa reto não era de modo algum um selvagem Admitia que o objetivo da política era reduzir o mais possível a violência histórica mas acrescentava que a pre tensão ilusória de suprimir toda violência levava quase sempre ao seu cresci mento desmesurado Os pacifistas contribuem para provocar as guerras os hu manitaristas ajudam a precipitar as revoluções Os fascistas podiam utilizar esta argumentação paretiana deformandoa Simplificando sua teoria afirmavam que as elites governantes para serem eficazes precisam ser violentas Muitos intelectuais do fascismo italiano utilizaram de fato Pareto como uma recomendação apresentandose como burgueses nãodecadentes prontos a subs tituir a burguesia decadente Justificavam sua violência pretendendo que era uma réplica necessária à violência operária Privadamente se não em público afir mavam que sua justificação suprema era a capacidade que tinham de restabe lecer a ordem ainda que fosse pela força E como em última análise não há uma justificação intrínseca moral ou filosófica para o poder da minoria dirigente qualquer elite que a substitui está justificada em larga medida pelo seu pró prio êxito Era igualmente fácil associar o pensamento fascista ao de Pareto interpre tando a distinção entre o máximo de utilidade para a coletividade e o máximo de utilidade da coletividade O primeiro conceito isto é a maior satisfação do maior número possível de indivíduos é no fundo o ideal dos humanitaristas ou dos socialistas democráticos Dar a cada um em toda a medida do possível o que cada um deseja elevar o nível de todos é o ideal burguês das elites pluto democráticas Pareto não afirma explicitamente que adotar esse objetivo seja um erro mas sugere que existe outro objetivo o máximo de utilidade da socie dade isto e o máximo de poder ou de glória da coletividade considerada como 426 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO uma pessoa Afirmar a impossibilidade de uma escolha científica entre estes dois termos desvaloriza o máximo de utilidade da coletividade e pode ser con siderado como uma opção implícita em favor do máximo de utilidade da cole tividade Podese mesmo dizer que quem nega a possibilidade de uma escolha racional entre dois regimes políticos como Pareto serve à causa das elites vio lentas que pretendem demonstrar pela força seu direito ao governo As relações entre o próprio Pareto e o fascismo foram limitadas Pareto mor reu em 1923 muito pouco tempo depois da ascensão de Mussolini ao poder Não foi radicalmente hostil ao movimento do Duce16 inclusive porque era um sociólogo não um político e porque sua sociologia explicava aquela reação his tórica Para ele o fascismo era claramente uma reação do corpo social aos proble mas causados pelo excesso de resíduos da primeira classe pelo desenvolvimento exagerado do espírito humanitarista e o enfraquecimento da vontade burguesa Numa sociedade normal problemas deste tipo provocam reações de sentido con trário A revolução fascista era uma fase de um ciclo de dependência mútua uma resposta violenta às desordens provocadas pelo declínio de uma elite astuciosa17 Que regime políticoeconômico mereceria teoricamente as preferências de Pareto De um lado ele considerava que a iniciativa individual era o meca nismo econômico mais favorável ao crescimento da riqueza Era portanto em doutrina econômica um liberal que admitia aliás certas intervenções do Esta do na medida em que estas ou facilitavam o funcionamento do mercado ou per mitiam aos especuladores se ocupar dos seus negócios e dos negócios de todos No plano político suas idéias levam a favorecer um regime autoritário e mode rado Pareto poderia ter combinado os adjetivos prediletos de Maurras a saber absoluto e limitado Não é assim que se exprime mas o regime mais desejável para todos pelo menos de acordo com sua idéia do bem de todos é aquele em que os governantes têm a capacidade de tomar decisões mas não têm a preten são de tudo regular sobretudo não tentam impor aos cidadãos e em particular aos intelectuais e professores o que devem pensar Em outras palavras Pareto te ria sido favorável a um governo forte e liberal tanto do ponto de vista econô mico como do científico Recomendaria o liberalismo intelectual aos governos não só porque esta posição o atraía pessoalmente mas porque a seus olhos a li berdade de investigação e de pensamento era indispensável ao progresso da ciên cia e a longo prazo toda a sociedade se beneficia com o progresso do pensa mento lógicoexperimental Portanto se não é impossível interpretar Pareto no sentido do fascismo o que tem sido feito com freqüência é igualmente possível interpretálo num con texto liberal e empregar os argumentos paretianos p ara justificar as instituições democráticas ou plutodemocráticas A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 427 G Mosca que Pareto conhecia tinha passado a primeira parte da sua vida a expor as torpezas dos regimes democráticos representativos que chamava tam bém de plutodemocráticos Na segunda parte da sua vida procurou demonstrar que tais regimes a despeito das suas falhas eram os melhores que a história havia conhecido pelo menos para os indivíduos E possível assim aceitando muitas das críticas de Pareto aos regimes demo cráticos considerálos os menos maus para os indivíduos já que como todo re gime é oligárquico a oligarquia plutodemocrática tem pelo menos a vantagem de estar dividida e ao mesmo tempo limitada nas suas possibilidades de ação As elites democráticas são as menos perigosas para a liberdade individual Admirador apaixonado de Pareto Maurice Aliais vê nele um teórico do li beralismo não só econômico mas político e moral A doutrina de Pareto cons tituiria uma resposta à questão sobre como reduzir ao mínimo o inevitável do mínio da sociedade sobre o indivíduo Para limitar a dominação do homem sobre o homem é preciso que os mecanismos do mercado funcionem livremente e que haja um Estado suficientemente forte para impor o respeito às liberdades inte lectuais de alguns e às liberdades econômicas de todos Como vimos Pareto não é necessariamente um doutrinário dos regimes au toritários como se ouve às vezes Na verdade ele oferece argumentos a muitas correntes de opinião talvez a todas suas idéias podem ser utilizadas em senti dos diferentes A elite que detém o poder invoca Pareto para dar fundamento a sua legitimidade pois como todas as legitimidades são arbitrárias o êxito se toma a legitimidade suprema Neste tipo de debate quem tem o poder dá a últi ma palavra Quem perde a posição de comando ou não consegue conquistála pode abrir o Traité de sociologie générale e encontrará ali se não uma justifi cativa da causa perdida pelo menos um consolo para sua desgraça Estes pode rão afirmar então que o fato de terem sido mais honestos do que os que estão no poder e de terem recusado a violência necessária éque fez com que fossem terminar sua vida numa prisão e não nos palácios do governo Há uma certa verdade nestas explicações Em 1917 houve acesos debates entre as diversas escolas marxistas russas sobre a possibilidade de uma revolu ção socialista num país ainda nãoindustrializado Os mencheviques diziam que devido à falta de industrialização e capitalismo a Rússia não estava madu ra para uma revolução socialista acrescentavam que se por infelicidade um par tido operário tentasse realizar uma revolução socialista sem as necessárias con dições objetivas a conseqüência inevitável seria uma tirania de pelo menos meio século De seu lado os socialistas revolucionários queriam uma revolução mais populista do que marxista e não se dispunham a sacrificar todas as liberdades Quanto aos bolchevistas depois de muitas discussões arites da guerra de 1914 sobre a possibilidade da revolução socialista num país nãoindustrializado 428 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO empenharamse na ação esquecendo suas divergências teóricas achando que o mais importante antes de qualquer outra coisa era tomar o poder Em suma os bolchevistas tiveram a última palavra e os menchevistas tam bém Os primeiros conquistaram o poder que detêm até hoje os menchevistas foram postos na prisão embora tivessem previsto corretamente os acontecimen tos porque a revolução feita num país de capitalismo nascente resultou de fato num regime autoritário que se mantém há meio século Pareto não é portavoz de nenhum grupo Tinha suas paixões mas estas eram tais que permitiam a várias escolas concordar com suas idéias Muitos fascistas italianos adotaram seu pensamento juntamente com o de Sorel o pró prio Pareto provavelmente viu no fascismo a princípio uma reação sadia con tra certos excessos Contudo como liberal autêntico não poderia ter ficado muito tempo ao lado do poder Sociólogo liberal anuncia lucidamente as vio lências vindouras às quais não se resignará Ou se ama ou se detesta Pareto mas é preciso ver nele não o representante de um partido mas o intérprete de uma maneira de ser pessimista e cínica à qual ninguém adere de todo nem mesmo ele felizmente Pareto é um destes pensadores que são definidos em grande parte pelos seus inimigos pensam contra Ele pensa ao mesmo tempo contra os bárbaros e os civilizados contra os déspotas e os democratas ingênuos contra os filósofos que pretendem encontrar a verdade definitiva e os cientistas para quem só a ciência tem valor Em conseqüência a significação intrínseca da sua obra só pode ser ambígua Explicitamente Pareto se recusa a determinar o objetivo do indi víduo ou da sociedade Indagando se seria bom para uma coletividade algumas décadas ou alguns séculos de civilização se este período brilhante devesse ter minar com a perda da independência nacional afirma que não há resposta para uma indagação deste gênero Alguns leitores pensarão que é melhor salvaguar dar o brilho de uma civilização mesmo que este leve à queda política no futu ro outros dirão que é preciso antes de mais nada manter a unidade e a força da nação ainda que à custa da sua cultura Pareto sugere uma espécie de contradição intrínseca que haveria entre a verdade científica e a utilidade social A verdade a respeito da sociedade é antes um fator de desagregação social O verdadeiro não é necessariamente útil O útil é feito de ficções e de ilusões Cada indivíduo é livre para escolher a verdade mo vido por sua preferência pessoal ou a utilidade para servir a sociedade a que pertence A lição política de Pareto é portanto ambígua por essência Uma obra contestada O Traité de sociologie générale ocupa um lugar especial na literatura so ciológica É um enorme bloco enorme no sentido físico fora das grandes cor A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 429 rentes da sociologia que continua a ser objeto dos julgamentos mais contradi tórios Alguns o consideram uma das obrasprimas do espírito humano outros com igual paixão o vêem como um monumento de estupidez18 Já ouvi estes julgamentos extremados por parte de homens igualmente qualificados Tratase de um caso raro Quase sempre depois de meio século as paixões se abatem e as obras encontram um lugar que não corresponde necessariamen te ao mérito exato do autor mas que tem uma certa relação com ele No caso do Traité de sociologie générale não é possível fazer referência à opinião comum porque ela não existe Isto significa que o Traité tem caráter ambíguo e sobre tudo que as paixões que despertou quando foi publicado ainda estão vivas A razão essencial é que o livro cria um certo malestar no leitor alguns como um dos meus amigos italianos dizem que o pensamento de Pareto é apropriado a pessoas de uma certa idade desgostosas com a marcha do mundo Mas é pre ciso evitar estas paixões e os julgamentos exagerados Minha própria opinião que gostaria agora de esclarecer se situa entre os dois extremos O mecanismo psicológico com que Pareto elaborou o Traité é o seguinte o sociólogo começou como engenheiro e na sua profissão teve a experiência daquilo que é a ação lógica uma ação comandada pelo conhecimento científi co cuja eficácia demonstra o acordo entre os atos da consciência e o modo co mo os fatos se desenrolam no mundo objetivo De engenheiro passou a econo mista encontrando sob forma diferente as mesmas características da conduta lógica definida agora pelo cálculo dos lucros custos e rendimentos O cálculo econômico permite definir uma ação lógica que diante de certos objetivos e de determinados meios disponíveis se esforça por responder a uma hierarquia de preferências levando em conta as circunstâncias externas de acordo com os co nhecimentos científicos Mas Pareto não continuou como economista Observou o mundo político os regimes da França e da Itália nos fins do século XIX e no princípio do século XX Ficou impressionado com as diferenças fundamentais entre as ações lógicas do engenheiro ou do agente econômico e as condutas dos homens políticos Os políticos invocam a razão raciocinam indefinidamente mas são irracionais Al guns pensam que a religião da humanidade tem a mesma origem que a conduta do engenheiro ou do sujeito econômico outros acreditam poder transformar a or dem das sociedades humanas graças à ciência e anunciam o reino da justiça de pois de uma revolução socialista ou liberal Em outras palavras confrontando sua experiência de engenheiro e de econo mista com a observação do cenário político Pareto concebeu o tema fundamen tal da sua obra a saber a antinomia entre as ações lógicas e as ações nãológicas Simultaneamente descobriu que a pior ilusão é a dos liberais e dos democratas da geração anterior que pensavam que os progressos da razão iam introduzir a hum anidade numa nova era Pareto pensa contra as convicções erradas da gera 430 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ção de 1848 Constatando como terminou a democracia efetiva como funcionam as instituições representativas conclui com amargura que nada mudou e que são sempre as minorias privilegiadas que fazem o jogo As minorias podem mudar indefinidamente de derivação ou de teoria justificativa mas a realidade é a mesma Todo regime político é oligárquico todo homem político é interessado ou então ingênuo e muitas vezes o menos ingênuo quer dizer o menos honesto é mais útil à sociedade Aliás por que razão a honestidade individual deveria ser uma con dição da utilidade coletiva Por que a verdade científica deveria servir de cimento à sociedade Este é a meu ver o centro do pensamento de Pareto compreendese por tanto por que ele permanecerá sempre isolado entre os professores e os soció logos é quase insuportável para o espírito confessar que a verdade enquanto tal pode ser nociva Não sei se o próprio Pareto acreditava nisso integralmente mas usava todo o seu charme para afirmálo Para apreciar o Traité de sociologie générale como sociólogo é preciso exa minar sucessivamente suas duas partes fundamentais isto é a teoria dos resí duos e das derivações e de outro lado a teoria da circulação das elites e dos ci clos de mútua dependência A teoria paretiana dos resíduos e das derivações pertence a um movimen to de idéias que inclui também as obras de Marx Nietzsche e Freud O tema é o de que os motivos e o significado dos atos e dos pensamentos dos homens não são os que os próprios atores confessam A teoria de Pareto se relaciona com o que chamamos de psicologia profunda desde Nietzsche e Freud ou com a sociolo gia das ideologias a partir da obra de Marx Mas a crítica de Pareto difere do método psicanalítico e do método sociológico de interpretação Contrariamente ao método psicanalítico o método de Pareto não é psicológico porque ignora voluntariamente os sentimentos ou os estados de espírito de que os resíduos são apenas a expressão Pareto renuncia à exploração do subconsciente e do incons ciente para focalizar um nível intermediário entre as profundezas da interiori dade e os atos ou as palavras perceptíveis do exterior de forma imediata Compa rado à crítica marxista das ideologias o método de Pareto apresenta uma dupla originalidade não privilegia o relacionamento das derivações ou ideologias com as classes sociais Pareto nem mesmo sugere que as classes sociais sejam os su jeitos dos conjuntos ideológicos Preocupase pouco com as particularidades históricas e singulares das derivações e teorias Sua investigação que tende a uma enumeração integral das classes de resíduos e de derivações tende a reduzir o interesse pelo curso da história humana e a apresentar um homem eterno ou uma estrutura social permanente O método paretiano não é portanto nem propriamente psicológico nem es pecificamente histórico é generalizador Indubitavelmente Pareto na busca de A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 431 uma tipologia universal dos resíduos se aproxima de vez em quando da análise dos mecanismos psicológicos Em particular ao estudar os métodos pelos quais os homens são persuadidos e convencidos dá uma contribuição à psicologia moderna da propaganda e da publicidade Mas ele não pretende nos revelar os impulsos fundamentais da natureza humana à maneira de um psicanalista que distingue o impulso sexual o impulso de possuir o impulso orientado para o que os alemães chamam de Geltungsbedürfnis a necessidade de ser reconhecido pe los outros Pareto se mantém no nível intermediário dos resíduos isto é das ex pressões dos sentimentos perceptíveis através das condutas Não se pode dizer que este método seja em si mesmo ilegítimo mas ele comporta evidentemen te o perigo de levar a constatar e não a explicar ou o perigo de substituir a ex plicação pelo próprio fato da conduta traduzido em termos de resíduos Vou tomar um exemplo predileto de Pareto Os antropólogos constatam que os indivíduos atribuem significado especial a um lugar ou a uma coisa a uma pedra ou a um elemento Alguns procuraram explicar tais combinações buscando o sistema de pensamento que lhes dá um sentido Pareto objeta que este modo de explicação consiste em levar a sério as derivações que são fenômenos secun dários nãodeterminantes da conduta e que podem ser renovados indefinida mente sem que os agregados afetivos se modifiquem É verdade que o sistema intelectual não é necessariamente o determinante das condutas mas se explica mos estes agregados afetivos dizendo que são um exemplo da segunda classe de resíduos uma pessoa imbuída de má vontade poderá dizer que a explicação é mais ou menos tão convincente quanto a da ação do ópio pela virtude dormitiva Em última análise explicar os conjuntos afetivos pelos resíduos da persistência dos agregados pode não ser mais do que uma pseudoexplicação Em outras palavras como Pareto não se preocupa com os mecanismos psi cológicos tais como foram analisados por Nietzsche e por Freud ou com os mecanismos sociais tal como Marx procura analisar nas sociedades concretas o método intermediário das generalidades sociológicas se mantém num nível formal Não ousaria dizer que os resultados são falsos mas pode ser que nem sempre sejam instrutivos Finalmente surpreende constatar que Pareto distingue seis classes de resí duos mas que na segunda parte do Traité quando aborda os ciclos de mútua dependência só duas classes têm uma função importante o instinto das com binações e a persistência dos agregados O primeiro é a origem da investigação intelectual do progresso da ciência e do desenvolvimento do egoísmo isto é ao mesmo tempo o princípio das civilizações superiores e a causa do seu declínio A persistência dos agregados corresponde ao equivalente do conjunto dos sen timentos religiosos nacionais patrióticos que mantêm as sociedades Neste momento temse a impressão súbita e um pouco desagradável de que se está ouvindo um filósofo do Iluminismo com seus valores parcialmen 432 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO te invertidos No fundo vemos de um lado o progresso da razão e do espírito crítico de outro os padres de todas as Igrejas difundindo ilusões e entretendo aber rações com a ressalva de que o espírito de superstição não é obra dos padres como teriam dito os enciclopedistas mas a expressão permanente da necessi dade humana de crer sem provas e de se dedicar a mitos Neste sentido Pareto está na linha do pensamento racionalista do século XVIII embora passe talvez das esperanças excessivas para uma resignação pre matura Qualquer que seja a verdade parcial desta oposição não se pode deixar de perguntar se é indispensável escrever tantos capítulos páginas e exemplos para chegar à velha antítese da conduta lógica e da ação pelo sentimento da ra zão científica e da superstição religiosa a antítese que é apresentada como a es trutura fundamental do homem e das sociedades Se a primeira parte do Traité me parece insuficientemente psicológica a segunda me parece ao contrário demasiadamente psicológica Esta crítica não é um paradoxo O método da primeira parte devido à ambição generalizada e à recusa de ir até o sentimento se detém no limiar da psicologia Na segunda par te porém as elites são caracterizadas sobretudo pelos seus traços psicológi cos Elites violentas e elites astuciosas predominância dos resíduos da primei ra ou dos resíduos de segunda classe todas estas noções são fundamentalmen te de natureza psicológica As peripécias das histórias nacionais são interpre tadas e explicadas pelos sentimentos os humores as atitudes das elites e das massas O despertar das paixões patrióticas e religiosas no princípio do século XX representa para Pareto mais um exemplo da permanência nas consciências humanas dos mesmos resíduos um exemplo a mais da determinação dos acon tecimentos históricos pelas flutuações dos sentimentos humanos Pareto con cordo reconhece de forma explícita que o curso da história depende das orga nizações sociais mais do que dos sentimentos dos indivíduos A parte princi pal do fenômeno é a organização e não a vontade consciente dos indivíduos que em certos casos podem mesmo ser levados pela organização aonde sua vonta de consciente jamais os levaria Traité de sociologie générale 2254 Mas as últimas páginas do Traité são uma espécie de resumo da história da antiguida de escrita em termos de resíduos da primeira e da segunda classes de elites astuciosas e de elites violentas Este modo de interpretação deixa o leitor insa tisfeito embora tenha uma parte de verdade Pareto procura elaborar um sistema geral de interpretação que seja um mo delo simplificado comparável ao da mecânica racional Admite que suas pro posições são muito esquemáticas e que exigem precisões e complexidades su cessivas mas pensa ter determinado com os ciclos de mútua dependência as características gerais do equilíbrio social Ora podese considerar ao mesmo tem po que algumas das suas afirmativas são verdadeiras que se aplicam efetiva A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 433 mente a todas as sociedades e que no entanto não apreendem o essencial Em outros termos em matéria de sociologia o que é geral não é necessariamente essencial nem o mais interessante ou o mais importante Pareto afirma que em todas as sociedades há uma minoria privilegiada uma elite no sentido amplo na qual se pode distinguir uma elite governante no sentido restrito Esta proposição me parece indiscutível Todas as sociedades conhecidas até nossos dias foram fundamentalmente desiguais É legítimo por tanto distinguir o pequeno número de pessoas que ocupam as melhores posi ções do ponto de vista econômico e político da grande massa Pareto afirma em seguida que estas minorias privilegiadas conservam sua situação por uma combinação de força e de astúcia Se convencionarmos chamar de astúcia todos os meios de persuasão não hesitaria em darlhe razão De fato como poderia uma só pessoa comandar um grande número de indivíduos senão pelo uso da força ou então persuadindoos da necessidade da obediência A fórmula segundo a qual as minorias governam pela força ou pela astúcia é incontestável desde que se interpretem estes dois termos de modo suficientemente vago Parece porém que os problemas começam a aparecer depois Quais são as relações reais entre a minoria privilegiada e o grande número Que princípios de legitimidade invocam as diferentes elites Quais são os métodos pelos quais estas elites se mantêm no poder Que possibilidades existem de que os indiví duos que não participam de uma elite possam nela penetrar Admitidas as pro posições mais gerais as diferenças históricas me parecem consideráveis e por isso mais importantes E verdade que Pareto não negaria as observações que acabo de fazer Ele se limitaria a responder que lembrou essas proposições gerais porque os gover nantes e até mesmo os governados tendem a esquecêlas que ele não nega as diferenças substanciais entre os diversos modos de exercer o poder pelas dife rentes classes políticas e que conhece as conseqüências desta diversidade para com os governados Contudo a verdade é que sentimos uma tendência explíci ta ou implícita para desvalorizar as diferenças entre os regimes entre as elites e entre os modos de governo Sugere que quanto mais isso muda mais conti nua igual e portanto que a história se repete indefinidamente e que as dife renças entre tipos de regime são secundárias Ensina quer ele queira quer não uma aceitação mais ou menos resignada do mundo como ele é e chama quase automaticamente de ilusões os esforços dirigidos para a reorganização das sociedades num sentido que chamaríamos de justiça Minhas objeções são portanto as seguintes de um lado Pareto caracteri za os regimes pela psicologia das elites mais do que pela organização dos po deres e da sociedade de outro sugere que o mais geral é também o mais impor Plus cela change plus cest la même chose 434 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tante Confunde assim as características comuns a todas as sociedades com os traços comuns a toda ordem social desvaloriza as diferenciações históricas e tira quase todo o significado do próprio devenir Minha última observação diz respeito à teoria do lógico e do nãológico De acordo com a definição de Pareto as ações nãológicas podem ser divididas em muitas categorias o caráter lógico ou nãológico de uma ação é apreciado pelo observador com base nos seus conhecimentos e nos conhecimentos do ator Nes tas condições a ação ditada por um erro científico é uma ação nãológica e a ação que se inspira em ilusões ou mitos é também nãológica Os atos que deno minamos simbólicos ou rituais são nãológicos porque sua função consiste ape nas em manifestar sentimentos a seres ou a coisas que representam valores Fi nalmente as condutas religiosas ou mágicas são nãológicas Será apropriado incluir na mesma categoria os erros científicos as supers tições associadas a metafísicas que nos parecem hoje anacrônicas os atos ins pirados por convicções idealistas ou otimistas as condutas rituais e as práticas mágicas Tratase verdadeiramente de uma única categoria Podese como Pa reto considerar que todos estes atos por serem nãológicos não são determi nados pela razão mas por sentimentos ou estados de espírito A dualidade lógi conãológico serve para introduzir à dualidade das ações determinadas pela razão e de outro lado das ações determinadas pelos sentimentos ou estados de espírito Esta antinomia simplificadora não seria além de perigosa deforma dora da realidade Será evidente que uma conduta comandada por proposições aparentemente científicas mas que constatamos depois serem errôneas possa ser explicada por um mecanismo comparável ao que explica uma prática ritual ou uma ação revolucionária19 É bem verdade que se pode complicar progressivamente a classificação de Pareto mas a dualidade ações lógicasações nãológicas levando à antítese ação pela razãoação pelo sentimento é perigosamente esquemática Ela leva Pareto a uma representação dualista da natureza humana e a uma tipologia dualista das elites e dos regimes Estes antagonismos estilizados podem suscitar uma fi losofia que o próprio Pareto não subscreveria mas que teria dificuldade em renegar inteiramente Como afinal de contas a única justificação incontestá vel do poder de uma elite é o êxito é tentador procurar alcançar êxito por meios eficazes a curto prazo Diante de uma elite astuciosa isto é de uma elite que quer persuadir o revolucionário poderá recorrer à coerção com a consciência tran qüila De fato os bons sentimentos não acabarão por arruinar a sociedade do mesmo modo como degradam a literatura Indicações biográficas 1848 15 de julho nasce em Paris Vilíredo Pareto Sua família originária da Ligúria recebeu título de nobreza no princípio do século XVIII Seu avô o marquês Giovanni Benedetto Pareto em 1811 foi feito barão do Império porNapoleão Seu pai partidário de Mazzini foi exilado devido a suas idéias republicanas e antipiemontesas Casouse em Paris com Marie Méténier a mãe de Vilíredo C 1850 A família de Pareto volta à Itália Vilfredo faz estudos secundários clássicos e depois estudos científicos na Universidade Politécnica de Turim 1869 Pareto defende tese sobre os Princípios fundamentais do equilíbrio dos corpos sólidos 18741892 Instalase em Florença Depois de ter sido engenheiro ferroviário e nomea do diretorgeral das estradas de ferro italianas Suas funções o levam a viajar ao exterior principalmente à Inglaterra Participa também com a Sociedade Adam Smith de Florença em campanhas contra o socialismo de Estado o protecionis mo e a política militarista do governo italiano Nesta época Pareto é partidário da democracia e de um liberalismo intransigente 1882 Candidatase sem êxito a deputado pela circunscrição de Pistóia 1889 Casamento com Alessandra Bakunin de origem russa Participa de um congres so em favor da paz e da arbitragem internacional em Roma onde apresenta uma proposta que é aprovada defendendo a liberdade de comércio 1891 Toma conhecimento da obra Princípios de economia pura de Maffeo Pantaleo ni Este revela a Pareto as obras de Walras Cournot e Edgeworth Uma das con ferências de Pareto é interrompida pela polícia em Milão Contato com L Walras O governo italiano nega a Pareto autorização para dar um curso gratuito de eco nomia política 1892 Walras propõe a Pareto que o substitua na cadeira de economia política da Uni versidade de Lausanne 18921894 Publica alguns estudos sobre os princípios fundamentais da economia pura sobre a economia matemática e sobre diversos pontos de teoria econômica 436 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 1893 É nomeado professor de economia política na Universidade de Lausanne A par tir desse momento começa uma nova carreira dedicandose inteiramente à ciên cia marcada pela publicação de suas obras 18961897 Cours d économie politique publicado em francês em Lausanne 1898 Pareto herda um patrimônio importante de um tio Acolhe na Suíça socialistas italianos foragidos depois da repressão que se seguiu a distúrbios em Milão e Pavia 1901 Instalase em Céligny Cantão de Genebra na vila Angora Suas idéias se tor nam mais conservadoras mais hostis ao humanitarismo da burguesia decadente Viagem a Paris para ensinar na École de Hautes Études Sua esposa o deixa e par te para a Rússia Pareto solicita imediatamente a separação A partir de 1902 vi verá com Jeanne Régis que esposará pouco antes de morrer e a quem dedicará o Traité de sociologie générale 19011902 Les systèmes socialistes publicado em francês em Paris 1907 Manuale d economiapolitica publicado em Milão 19071908 Doente Pareto deixa aos poucos seu curso de economia para Pascal Bonin segni Em 1912 deixará de ensinar economia mantendo apenas um curso restrito de sociologia 1909 Tradução francesa muito reformulada do Manuale d economia politica 1911 Le mythe vertuiste et la littérature immorale publicado em francês em Paris 1916 Pareto dá pela última vez uma série de aulas de sociologia Trattato di sociologia generale publicado em italiano em Florença 1917 Jubileu de Pareto na Universidade de Lausanne 19171919 Tradução francesa do Trattato di sociologia generale que aparece em Lau sanne e em Paris 1920 Fatti e teorie coleção de artigos políticos especialmente sobre a Primeira Guer ra Mundial publicada em Florença 1921 Transformazioni delia democrazia publicado em Milão 1922 Em protesto contra uma iniciativa dos socialistas suíços que querem instituir um imposto sobre a riqueza Pareto se instala em Divonne durante alguns meses No fim deste ano aceita o princípio de representar o governo italiano de Mussolini na Sociedade das Nações 1923 Pareto é nomeado senador do Reino da Itália Em dois artigos publicados em Gerarchia manifesta uma certa adesão ao fascismo mas recomenda aos fascistas uma atitude liberal Em 19 de agosto morre Pareto em Céligny onde é sepultado Notas 1 Tendo chegado a este ponto o leitor já terá talvez percebido que as investiga ções a que nos dedicamos apresentam uma analogia com outras que são habituais na filologia isto é as que têm por objetivo pesquisar as raízes e as derivações que origi nam as palavras de uma língua Não se trata de uma analogia artificial Ela provém do fato de que nos dois casos tratase de produtos da atividade do espírito humano que têm um processo comum E isto não é tudo Há também analogias de outro gênero A filologia moderna sa be muito bem que a linguagem é um organismo que se desenvolveu de acordo com suas próprias leis que não foi criada artificialmente Só alguns termos técnicos como oxi gênio metro termômetro etc foram fabricados pela atividade lógica dos cientistas e correspondem às ações lógicas na sociedade mas a formação do maior número de pa lavras empregadas ordinariamente corresponde a ações nãológicas É hora de a socio logia progredir procurando atingir o nível em que a filologia já se encontra Traité de sociologie générale 879 e 883 2 Este ponto do pensamento de Pareto não pode ser compreendido se não nos lembrarmos das suas convicções profundamente liberais Do mesmo modo Pareto to mou a defesa dos padres católicos perseguidos na França pelos radicais e o bloco das es querdas no início do século ou dos socialistas perseguidos na Itália em 1898 É essen cialmente contrário a todas as inquisições O livro de Giuseppe La Feria Vilfredo Pareto filósofo volteriano Florença La Nuova Italia 1954 mostra bem este aspecto da perso nalidade do autor do Traité de sociologie générale 3 Estudando este tipo de resíduo Pareto procede a uma análise impiedosa e inte ressante das reivindicações igualitárias cuja hipocrisia ele se empenha em desmascarar Poderia dizer como G Orwell em A revolução dos bichos que os igualitaristas têm como fórmula Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais do que outros Pareto escreve As demandas de igualdade ocultam quase sempre demandas de privilégios 1222 Falase da igualdade para obtêla em geral Fazse depois uma infinidade de distinções para negála em particular Ela deve pertencer a todos mas só é conferida a alguns 1222 Entre nossos contemporâneos a igualdade dos homens é um artigo 438 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de fé mas isso não impede que na França e na Itália existam enormes desigualdades entre os trabalhadores conscientes entre os simples cidadãos e aqueles que são pro tegidos por deputados senadores altas autoridades Existem casas de jogo nas quais a política não ousaria tocar porque encontraria ali os legisladores ou outras altas perso nalidades 1223 Seus comentários se tomam uma crítica eloqüente da hipocrisia so cial com a constatação da diferença que existe entre os ideais proclamados pela socie dade e sua realidade cotidiana 4 É conhecido o livro de S Tchakhotine Le viol des foules par la propagande politique Paris 1952 Existe uma considerável literatura sociológica moderna sobre os meios de propaganda sobretudo em língua inglesa Podese citar por exemplo D Lemer Propaganda in War and Crisis 1951 A Inkeles Public Opinion in Soviet Rús sia 1951 L Fraser Propaganda 1957 Eis uma frase característica de Hitler Em sua grande maioria o povo tem uma disposição tão feminina que suas opiniões e seus atos são levados muito mais pela impressão que recebem sensorialmente do que pelo pen samento puro Não é uma impressão sutil mas sim bastante simples e limitada Não comporta nuanças mas somente as noções positivas ou negativas de amor e de ódio de justiça ou de injustiça de verdade ou de mentira os sentimentos parciais não existem Todo o gênio empregado na organização de uma propaganda seria puro desperdício se não estivesse apoiado de modo absolutamente rigoroso sobre um princípio fundamen tal E preciso limitarse a um pequeno número de idéias e repetilas constantemente Texto extraído de Ma doctrine Paris Fayard 1938 pp 6162 5 Pareto retorna muitas vezes a esta idéia pois teme ser mal compreendido De vemos ter cuidado com o perigo de atribuir uma existência objetiva aos resíduos ou mesmo aos sentimentos De fato só podemos observar homens que se encontram num estado que é revelado por aquilo que chamamos de sentimentos Traité de sociologie générale 1690 6 Georges Sorel 18471922 foi contemporâneo de Pareto e manteve com ele estreito contato epistolar e intelectual Apresenta muitos pontos comuns com o autor de Traité de sociologie générale Como ele teve formação científica Sorel foi aluno da Éco le Polytechnique como ele seguiu a carreira de engenheiro Sorel foi engenheiro de pontes e estradas como ele interessouse pela economia Sorel publicou uma Intro duction à l économie moderne como ele afirmou seu desprezo pela burguesia deca dente Um bom número de teses de Sorel têm correspondentes na obra de Pareto mas o pensamento de Sorel é mais próximo do marxismo mais idealista e sobretudo mais confuso Suas obras principais são Les réflexions sur la violence 1906 La décompo sition du marxisme 1908 Matériaux pour une théorie du prolétariat 1919 De l uti lité du pragmatisme 1921 todas publicadas em Paris por Rivière O pensamento de Sorel teve grande repercussão na Itália tanto por parte dos cientistas quanto dos ideó logos fascistas ou socialistas Sobre a relação entre Pareto e Sorel consultese o livro de Tommaso GiacaloneMonaco Pareto e Sorel riflessione e ricerche Pádua CEDAM tomo I 1960 tomo II 1961 7 Na introdução de Les systèmes socialistes obra anterior ao Traité de sociologie générale Pareto apresenta o fenômeno da elite governante da seguinte forma Os ho mens podem ser dispostos em pirâmides de distribuição desigual com a forma aproxi A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 439 mada de um pião conforme possuam mais ou menos um bem ou uma qualidade deseja da riqueza inteligência valor moral talento político Os mesmos indivíduos não ocupam os mesmos lugares nas mesmas figuras que acabamos de tratar como hipótese Com efei to seria evidentemente absurdo afirmar que os indivíduos que ocupam as camadas supe riores na figura que representa a distribuição do gênio matemático ou político sejam os mesmos que ocupam a camada superior na figura que representa a distribuição da rique za Contudo se distribuirmos os homens de acordo com seu grau de influência e de poder político e social na maioria das sociedades serão pelo menos em parte os mesmos ho mens que ocuparão os mesmos lugares neste gráfico e no gráfico da distribuição da ri queza Assim as classes ditas superiores são geralmente as mais ricas Representam uma elite uma aristocracia Les systèmes socialistes 11 pp 2728 8 Sobre a lei da distribuição da renda de Pareto consultemse além do Cours d économiepolitique e do Manuel d économiepolitique os Êcrits sur la courbe de la répartition de la richesse reunidos e apresentados por G Busino Genebra Dorz 1965 Esta lei de Pareto deu lugar a uma importante literatura econômica Citemos especialmente G Tintner Mathématiques et statistiques pour les écono mistes Paris Dunod 11 J Tinbergen La théorie de la distribution du revenu Cahiers de 1ISEA Cahiers francoitaliens n 2 1963 R Roy Pareto staticien la distribution des revenus Revue d economiepolitique 1949 N O Johnson The Pareto Law Review ofEconomic Statistics 1937 C BrescianiTuroni Annual Survey of Statistical Data Paretos Law and the Index of Inequality of Incomes Econométrica 1939 Mary J Bowman A Graphical Analysis of Personal Income Distribution in the United States American Economic Review 1945 reproduzido in Readings in the Theory o f Income Distribution Homewood R D Irwin 1951 pp 7299 D H Mac Gregor Paretos Law Economic Journal 1936 F Giancardi Sulla curva dei redditi Giornale degli economisti 1949 R Addario Richerche sulla curva dei redditi ibid E C Rhodes The Pareto distribution of incomes Economica 1944 9 G Mosca tinha desenvolvido sua teoria da elite governamental e da fórmula política dezessete anos antes da publicação de Systèmes socialistes num livro intitula do Sulla teoria dei governi et sul governo parlamentare A utilização da obra por Pareto não é nem um pouco certa Mas como escreve G H Bousquet Mosca tendo gentil mente solicitado a Pareto que reconhecesse a sua prioridade este recusou alegando que os pontos de semelhança se reduziam a idéias banais já enunciadas por Buckle Taine e outros mais Tudo o que Mosca conseguiu foi ser mencionado em uma nota do Manuale aliás não traduzida na edição francesa com um tom insolente e injusto Pareto le savant et Vhomme Lausanne Payot 1960 p 117 Sobre esta polêmica ver A De PietriTonelli Mosca e Pareto Revista interna zionale di scienze sociali 1935 Mais tarde Mosca desenvolveu seu pensamento no seu Elementi de scienza políti ca La ed em 18962 ed revista e aumentada em 1923 publicada por Bocca Turim da qual existe uma tradução inglesa com o título The Ruling Class Nova York MacGraw Hill 1939 Podese encontrar um resumo do livro de G Mosca em francês Histoire des doctrinespolitiques Paris Payot 1965 pp 79 e pp 243253 Ver também o capí tulo sobre Mosca no livro de J Bumham Les machiavèliens défenseurs de la libertè Paris Calmann Lévy 1949 pp 97125 440 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 10 Cf art de Jules Monnerot Politique en connaissance de cause in Êcrits pour une Renaissance Paris Plon 1958 publicado pelo grupo Nação Francesa Monnerot escreveu também Sociologie du communisme Paris Gallimard 1949 muito inspirado na Sociologia de Pareto 11 A teoria sociológica da mútua dependência é a transposição das teorias econô micas da interdependência geral e do equilíbrio que Pareto desenvolveu no Curso e no Manual cuja essência tinha sido formulada por Léon Walras em Êlements d économie pure Sobre essas teorias econômicas ver G Pirou Les théories de l équilibre économi que L Walras et VPareto Paris DomatMontchrestien 1938 2 ed F Oules Lécole de Lausanne textes choisis de L Walras et K Pareto Paris Dalloz 1950 J Schumpeter History o f Economic Analysis Londres Allen Unwin 1963 12 Têmse confundido e continuamse a confundir sob o nome de capitalistas pessoas que tiram uma renda de suas terras ou de suas economias e empresários Isto prejudica bastante o conhecimento do fenômeno econômico e ainda mais o conheci mento do fenômeno social Na realidade essas duas categorias de capitalistas têm inte resses bem diferentes e às vezes opostos Chegam mesmo a ser mais opostas do que as categorias das classes ditas capitalistas e proletárias Do ponto de vista econômico é vantajoso para o empresário que a renda da poupança e dos outros capitais que ele toma por empréstimo aluga seja mínima mas para esses produtores ao contrário é vantajo so que ela seja máxima Um encarecimento da mercadoria que ele produz é vantajoso para o empresário Para ele pouco importa um encarecimento das outras mercadorias se isso for compensado no ganho que ele tem com a sua própria mercadoria enquanto todos esses encarecimentos prejudicam o possuidor da simples poupança Quanto ao empresário os direitos fiscais sobre as mercadorias que ele produz prejudicamno um pouco às vezes eles o favorecem afastando os concorrentes Prejudicam sempre o con sumidor cujas rendas se originam do fato de colocarem as suas economias a juros De modo geral o empresário quase sempre pode se recuperar em cima do consumidor dos aumentos das despesas ocasionados por pesados impostos o simples possuidor da pou pança quase nunca Assim também o encarecimento da mãodeobra prejudica freqüen temente muito pouco ao empresário somente para os contratos em vigência uma vez que para os contratos futuros o empreendedor pode se recuperar pelo aumento dos pre ços dos produtos O simples possuidor de poupança ao contrário sofre habitualmente esses aumentos de preço sem poder se recuperar de maneira alguma Em conseqüência nesse caso os empresários e seus trabalhadores têm um interesse comum que se opõe ao do simples possuidor de economias O mesmo acontece com os empresários e operários das indústrias que gozam de proteção alfandegária Do ponto de vista social as oposi çÕes não são menores Entre os empresários encontramse pessoas com um instinto das combinações muito desenvolvido e esse instinto é indispensável para ter sucesso nessa profissão As pessoas em que predominam os resíduos da persistência dos agregados per manecem entre os simples possuidores de poupança Por isso os empresários são geral mente pessoas aventureiras intrépidas sempre em busca de novidades tanto no campo econômico quanto no social Os movimentos não lhes desagradam eles esperam tirar vantagem Os simples possuidores de poupança ao contrário são freqüentemente pes soas tranqüilas tímidas que estão sempre levantando a orelha como a lebre Esperam A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 441 pouco e temem muito os movimentos porque sabem por uma dura experiência que são eles que pagam os prejuízos Traité de sociologie générale 22312232 13 A prosperidade dos nossos países é pelo menos em parte fruto da liberdade de ação dos sujeitos do ponto de vista econômico e social durante uma parte do século XIX Agora começa a cristalização exatamente como no Império Romano Ela é dese jada pelos povos e em muitos casos parece aumentar a prosperidade Indubitavelmente estamos longe ainda de uma situação em que o trabalhador esteja definitivamente liga do à sua profissão mas os sindicatos e as restrições impostas à circulação entre os Es tados nos encaminham nesse sentido Constituídos graças à imigração os Estados Unidos que devem aos imigrantes sua atual prosperidade procuram agora rejeitar por todos os meios a imigração Em outros países como a Austrália fazse o mesmo Os sindicatos operários tentam impedir as pessoas nãosindicalizadas de trabalhar Por outro lado es tão bem longe de aceitar qualquer um como membro Os governos e as comunidades intervém diariamente cada vez mais nos assuntos econômicos São impelidos pela von tade da população e muitas vezes com uma vantagem aparente para o povo É fácil per ceber que nós nos movemos segundo uma curva semelhante à que percorreu a socieda de romana depois da fundação do Império e que após um período de prosperidade pro longouse até a decadência A história nunca se repete e não é provável a menos que se acredite no perigo amarelo que a prosperidade futura decorra de outra invasão bár bara Seria menos improvável que resultasse de uma revolução interior a qual daria o poder aos indivíduos que possuem em abundância resíduos da segunda classe e que sabem podem e querem usar a força Mas essas eventualidades distantes e incertas per tencem mais ao domínio da fantasia do que da ciência experimental Traité de socio logie générale 2553 14 O desprezo pela burguesia decadente leva Pareto a escrever Assim como a sociedade romana foi salva da ruína pelas legiões de César e pelas de Octávio pode acontecer que nossa sociedade um dia seja salva da decadência por aqueles que serão os herdeiros dos nossos sindicatos e de nossos anarquistas Traité de sociologie géné rale 1858 15 Este artigo intitulado A sociologia de Pareto foi publicado em 1937 no Zeitschrift für Sozialforschung VI 1937 pp 489521 Ver também o primeiro capítu lo de Uhomme contre les tyrans Paris Gallimard 1945 Le machiavélisme doctrine des tyrannies modemes pp 1121 16 As relações entre Pareto e o fascismo foram analisadas de forma completa por G H Bousquet em Pareto le savant et Vhomme Lausanne Payot 1960 pp 188197 Segundo G H Bousquet até o advento do fascismo o mestre adotou com rela ção a ele uma atitude das mais reservadas por vezes até hostil Depois deu o seu apoio indiscutível à forma bastante moderada que o movimento revestia então Esta aprova ção foi feita com reserva enfatizando a necessidade de salvaguardar um certo número de liberdades No dia l de junho de 1922 cinco meses antes da marcha sobre Roma dos CamisasNegras Pareto escreve a um amigo Posso estar enganado mas não vejo no fascismo uma força permanente e profunda Mas em 13 de novembro de 1922 alguns dias depois da tomada do poder ele dizia que como homem estava feliz com a vitória do fascismo e feliz também como cientista cujas teorias se vêem assim confirmadas 442 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Pareto aceita as honras do novo regime o cargo de representante da Itália na Comissão de Desarmamento da Sociedade das Nações em dezembro de 1922 uma cadeira de se nador em março de 1923 Pareto havia recusado esta última honraria quando ela lhe fora oferecida no regime anterior Em março de 1923 escreve Se a reconstrução da Itália marca uma mudança no ciclo percorrido pelos povos civilizados Mussolini será uma figura histórica digna da antiguidade ou ainda A França só se poderá salvar se encontrar um Mussolini Mas na mesma época também escreve que se recusa a fazer parte dos aduladores e que se a salvação da Itália reside talvez no fascismo existem abismos perigosos Seu pen samento foi expresso aliás de modo muito claro na revista doutrinai do partido fascis ta Gerarchia em que publicou um artigo intitulado Libertà O fascismo escreve não é bom apenas por ser ditatorial isto é capaz de restabelecer a ordem mas porque até agora os efeitos têm sido bons Vários obstáculos precisam ser evitados as aventu ras bélicas a restrição da liberdade de imprensa os impostos excessivos aos ricos e camponeses a submissão à Igreja e ao clericalismo a limitação da liberdade de ensi no Convém que a liberdade de ensinar nas universidades não tenha nenhum limite qúe seja possível ensinar tanto as teorias de Newton como as de Einstein as de Marx como as da escola histórica Em outras palavras Pareto era favorável a uma versão pacífica liberal no plano eco nômico e intelectual laica e socialmente conservadora de um regime autoritário Não foi a favor do corporativismo nem dos acordos de Latrão nem da conquista da Etiópia nem do juramento de fidelidade imposto aos professores da Universidade a partir de 1921 e é provável que exercesse sua verve e sua crítica contra todos os desvios hegelianos e nacionalistas dos Gentile Volpe Rocco e Bottai Sem querer adivinhar o que teria sido a evolução das idéias de Pareto em relação ao fascismo o que seria absurdo não é inútil lembrar que Benedetto Croce que se tomou um dos líderes da oposição liberal também deu no início de 1923 sua caução e sua adesão ao novo regime Quanto à influência de Pareto sobre o fascismo é fato indiscutível mas que está longe de ser preponderante Mussolini passou algum tempo em Lausanne em 1902 É possível que tenha assistido às aulas de Pareto mas não entrou em contato com ele Não é evidente que o tenha lido e em todo o caso essa leitura não teria sido a única do jovem socialista exilado e autodidata As lições de Marx de Darwin de Maquiavel e sua tradição de Sorel de Maurras de Nietzsche de Croce e do hegelianismo italiano e com toda a evidência escritores nacionalistas tiveram pelo menos tanta influência quanto as de Pareto na formação da ideologia fascista A parte do maquiavelismo e em conseqüência do paretismo só pode ser considerada importante no fascismo se dermos dele uma definição universal Resta saber se um tal esforço de abstração não é inútil na medida em que são muito grandes as particularidades nacionais das experiências polí ticas e dos movimentos ditos políticos 17 O modo como Pareto apresenta os políticos plutodemocratas entre os quais predominam de modo quase exclusivo os resíduos da primeira classe é dificilmente compreensível se não se recordar o espetáculo da vida política italiana no fim do século passado e no princípio deste século Em 1876 a direita italiana ou mais exatamente piemontesa perde o poder Três homens passam a dominar o cenário político sucessi A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 443 vãmente Depretis de 1876 a 1887 Crispi e sobretudo Giolitti de 1897 a 1914 Gio litti liberal moderado em política e em economia é um realista e um empirista Sua ação interna retoma os métodos do transformismo de Depretis dividir para reinar evitando repressões brutais e manobrando com habilidade entre os homens e as tendên cias do parlamento e dos sindicatos Sua ditadura é flexível conciliatória distribuin do favores que neutralizam os adversários ou asseguram sua aliança apóiase na cor rupção eleitoral para garantir uma maioria Eficaz no plano tático o giolittismo contri buiu para desacreditar a instituição parlamentar e para debilitar a idéia do civismo num país onde a tradição democrática tinha ainda raízes muito frágeis Paul Guichonnet Mussolini et le Fascisme Paris PUE 1966 18 De acordo com G H Bousquet o Traité de sociologie générale é um dos mais vigorosos esforços do espírito humano para apreender a estrutura das sociedades e o valor das reflexões que nelas têm curso Pareto le savant et l homme Lausanne Payot 1960 p 150 Segundo G Gurvitch uma tal concepção parece ter apenas uma vanta gem científica a de constituir um exemplo do que é preciso evitar Le concept de clas ses sociales de Marx à nos jours Paris CDU 1957 p 78 19 Por exemplo a maioria dos economistas do começo deste século e mesmo nos anos 20 acreditavam que em caso de crise de desemprego e de retração das exporta ções a melhor maneira de restabelecer o pleno emprego e o equilíbrio externo seria promover a redução dos salários e dos preços Os keynesianos demonstraram que dada a rigidez estrutural e a importância dos custos fixos uma política deflacionária não po dia na verdade restabelecer o pleno emprego e abrir os mercados externos O equilí brio pela deflação constituía talvez uma possibilidade teórica mas não era segura mente uma política eficaz a não ser à custa de sacrifícios desproporcionais As políti cas de Lavai e Bruning da cK cida de 30 ou a de Churchill em 1925 que no entanto eram apoiadas por eminentes homens de ciência e se apresentavam de modo sensato não constituíam apesar de tudo condutas nãológicas da mesma categoria das práticas mágicas do adeptos do Vudu Bibliografia OBRAS DE PARETO Existem duas bibliografias quase completas dos escritos de Pareto a de G H Bous quet publicada pela Faculdade de Economia e de Comércio de Gênova e a do tomo III das Cartas de Pareto a Pantaleoni editadas pela Banca Nazionale dei Lavoro Roma 1960 O editor Droz de Genebra publicou sob a direção de G Busino as Obras com pletas de Pareto Até novembro de 1968 12 volumes tinham sido publicados Cours d économiepolitique 1 vol 1964 Ecrits sur la courbe de répartition de la richesse 1 vol 1965 Le marché financier italien 18911899 1 vol 1965 Les systèmes socialistes 1 vol 1965 Lettres d Italie Chroniques sociales et économiques 1 vol 1967 Libreéchangisme protectionnisme et socialisme 1 vol 1965 Manuel d économiepolitique 1 vol 1966 Marxisme et économie pure 1 vol 1966 Mythes et idéologies de la politique 1 vol 1965 Sommaire du cours de sociologie seguido de Mon Journal 1 vol 1967 Statistique et économie mathématique 1 vol 1966 Traité de sociologie générale 1 vol 1968 As outras obras importantes de Pareto são Fatti e teorie Florença Vallechi 1920 Le mythe vertuiste et la littérature immorale Paris Rivière 1911 Transformazioni delia democrazia Milão Corbaccio 1921 OBRAS SOBRE PARETO Amoroso L e Jannaccone P Vilfredo Pareto economista e sociologo Roma Bardi 1948 Aron R La sociologie de Pareto Zeitschrift ju r Sozialforschune 1937 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 445 Borkenau F Pareto Londres Chapman Hall 1936 Bousquet GH Pareto 18481923 Le savant et 1homme Lausanne Payot 1960 Bousquet GH Précis de sociologie d après Vilfredo Pareto Paris Payot 1925 Bousquet GH Vilfredo Pareto sa vie et son oeuvre Paris Payot 1918 contém uma bibliografia Burnham J Les machiavéliens défenseurs de la liberté Paris CalmannLévy 1949 Cahiers de UISEA suplemento Cahiers francoitaliens n 2 1963 número especial sobre Pareto Cahiers Vilfredo Pareto Revue européenne d histoire des sciences sociales Genebra Librairie Droz sete números publicados desde 1963 todos eles contendo um ou mais artigos sobre Pareto GiacaloneMonaco T Le Cronachepolitiche e economichediPareto Pádua CEDAM 1961 GiacaloneMonaco T Pareto e Sorel Riflessioni e ricerche Pádua CEDAM t II 1961 Henderson L J Pareto s General Sociology A Physiologists Interpretation Cambridge Harvard University Press 1935 La Feria G Vilfredo Pareto filosofo volteriano Pádua CEDAM 1958 Meisel James H Pareto and Mosca Nova Jersey Prentice Hall 1965 Meisel James H The Myth o f the Ruling Class Ann Arbor Michigan Press 1958 Oules Firmin VEcole de Lausanne Textes choisis de L Walras et V Pareto apresenta dos e comentados por F Oulès Paris Dalloz 1950 Parsons T Pareto artigo in Encyclopedia o f the Social Sciences vol XI 1933 Parsons T The Structure o f Social Action Nova York MacGraw Hill 1937 Perrin G Sociologie de Pareto Paris PUF 1966 grande bibliografia PietriTonelli A de Vilfredo Pareto Rivista di politica economica três números pu blicados 19341935 Pirou G Les théories de Véquilibre économique Walras et Pareto Paris Domat Montchrestien 1938 2 ed Revue d économie politique número especial sobre Pareto 1949 Schumpeter J History o f Economic Analysis Londres Allen Unwin 1963 Schumpeter J Ten Great Economists Nova York Oxford University Press 1965 OBRAS EM PORTUGUÊS Crítica a O capital de K Marx tradução e prefácio de Nogueira de Paula Rio de Ja neiro Pongetti 1937 Schumpeter Joseph A Dez grandes economistas tradução de Japy Freire Rio de Ja neiro Civilização Brasileira 1958 Schumpeter Joseph A História da análise econômica tradução de Alfredo Moutinho dos Reis José Luís Silveira Miranda e Renato Rocha Rio de Janeiro USAID 1964 Un nobre olliño de malto non máis 20 cm de altura 160 g de peso e madeira fresca Max Weber A racionalização da atividade comunitária não tem como conseqüên cia uma universalização do conhecimento com relação às condições e às relações desta atividade mas quase sempre produz o efeito contrário O selvagem conhece infinitamente mais sobre as condições econômi cas e sociais da sua própria existência do que o civilizado no sentido ordinário do termo sabe sobre as suas Essais sur la théorie de la Science p 397 La sociologie compréhensive A obra de Max Weber é considerável e variada Portanto não poderei expô la seguindo o método que usei para analisar os trabalhos de Durkheim e de Pareto Resumidamente podemse classificar as obras de Max Weber em quatro ca tegorias 1 Os estudos de metodologia crítica e filosofia que tratam essencial mente do espírito objeto e métodos das ciências humanas história e sociologia São simultaneamente epistemológicos e filosóficos levam a uma filosofia do homem na história a uma concepção das relações entre a ciência e a ação Os prin cipais trabalhos deste gênero estão reunidos numa coletânea intitulada Gesam melte Aufsãtze zur Wissenschaftslehre traduzida para o francês sob o título Essais sur la théorie de la science Ensaios sobre a teoria da ciência 2 As obras propriamente históricas um estudo sobre as relações de pro dução na agricultura do mundo antigo Agrarverhãltnisse im Altertum uma história econômica geral cursos dados por Max Weber e publicados depois da sua morte trabalhos especiais sobre problemas econômicos da Alemanha ou da Europa contemporânea por exemplo uma pesquisa sobre a situação econômi ca da Prússia oriental em particular sobre as relações entre os camponeses poloneses e as classes dirigentes alemãs2 3 Os trabalhos de sociologia da religião a começar pelo célebre estudo sobre as relações entre A ética protestante e o espírito do capitalismo que Max Weber continuou com uma análise comparativa das grandes religiões e da ação recíproca entre 3 condições econômicas as situações sociais e as convicções religiosas3 4 Finalme sua obraprima o tratado de sociologia geral intitulado Economia e sociedade Wirtschaft und Gesellschafi publicado postumamen te Max Weber trabalhava nesse livro quando foi atingido pela gripe espanhola logo depois da Primeira Guerra Mundial4 448 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO É impossível resumir em algumas páginas essa obra de riqueza tão excep cional Pretendo assim examinar as principais idéias dos trabalhos da primei ra categoria numa tentativa de expor as concepções fundamentais de Max Weber no campo da ciência e da política e suas mútuas relações Esta interpretação das relações entre a ciência e a política leva a uma certa filosofia que na época não se chamava ainda existencialista mas que pertence ao tipo que hoje é as sim chamado Resumirei em seguida os temas principais das investigações pro priamente sociológicas por fim analisarei a interpretação dada por Max Weber à época contemporânea de modo a manter o paralelismo entre este capítulo e os dois precedentes Teoria da ciência Para estudar a teoria weberiana da ciência podese seguir o mesmo méto do do capítulo precedente tomando como ponto de partida a classificação dos tipos de ação Pareto parte da antítese entre a ação lógica e a ação nãológica Da mesma forma é válido dizer embora não seja este o procedimento clássi co de exposição que Weber parte da distinção entre quatro tipos de ação a ação racional com relação a um objetivo zweckrational a ação racional com rela j ção a um valor wertrationa l a ação afetiva ou emocional e por último a ação tradicional A ação racional com relação a um objetivo corresponde aproximadamente 1 à ação lógica de Pareto é a ação do engenheiro que constrói uma ponte do es peculador que se esforça por ganhar dinheiro do general que quer ganhar uma batalha Em todos estes casos a ação zweckrational é definida pelo fato de que o ator concebe claramente seu objetivo e combina os meios disponíveis para atingilo Entretanto Weber não diz explicitamente como Pareto que a ação na qual o ator escolhe meios impróprios devido à inexatidão dos seus conhecimentos é nãoracional A racionalidade com relação a um objetivo é definida com base nos conhecimentos do ator e não do observador Esta última definição seria a de Pareto5 A ação racional com relação a um valor é por exemplo a do socialista ale j mãoTLassalIe que se deixou matar num duelo ou do capitão aue afunda com seu navio A ação e racional não porque tende a alcançar um objetivo definido e exte rior mas porque seria desonroso deixar de responder a um desafio ou abandonar í o navio que afunda O ator age racionalmente aceitando todos os riscos não para obter um resultado extrínseco mas para permanecer fiel à sua idéia de honra j A ação cue Weber chama de afetiva é a ação ditada imediatamente pelo es j tado de consciência ou o humor do sujeito É a bofetada dada pela mãe na crian j A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 449 ça que se comporta de modo insuportável é o soco dado numa partida He fute bol pelo jogador que perdeu o controle dos nervos Em todos estes casos a ação é definida por uma reação emocional do ator em determinadas circunstâncias e não em relação a um objetivo ou a um sistema de valores ação tradicional é aquela ditada pelos hábitos costumes e crenças trans formada numa segunda natureza Para agir de conformidade com a tradição o ator não precisa conceber um objetivo ou um valor nem ser impelido por uma emoção obedece simplesmente a reflexos enraizados por longa prática j Esta classificação dos tipos de ação foi discutida e refinada durante quase meio século Limitome aqui a indicála acentuando que de certo modo ela elu cida todas as concepções de Max Weber de fato voltaremos a encontrála em vários níveis sociologia é uma ciência que procura compreender a ação social a com preensão implica a percepção do sentido que o ator atribui à sua conduta En quanto Pareto julga a lógica das ações referindose aos conhecimentos do obser vador ío objetivo e a preocupação de Weber é compreender o sentido que cada rãtõTdá à própria conduta A compreensão dos sentidos subjetivos implica uma classificação dos tipos de conduta e leva à percepção da sua estrutura inteligíveLJ A classificação dos tipos de ação comanda em certa medida a interpretação weberiana da época contemporânea O traço característico do mundo em que vivemos é a racionalização Numa primeira aproximação esta corresponde a uma ampliação da esfera das ações zweckrational O empreendimento econô mico é racional a gestão do Estado pela burocracia também A sociedade moder na tende toda ela à organização zweckrational e o problema filosófico do nos so tempo problema eminentemente existencial consiste em delimitar o setor da sociedade em que subsiste e deve subsistir uma ação de outro tipo Esta classificação dos tipos de ação está associada por fim com o que constitui o centro da reflexão filosófica de Max Weber a saber os vínculos de solidariedade e de independência entre a ciência e a política A indagação sobre o tipo ideal do político e do Gientista apaixonava Max Weber Como é possível ser ao mesmo tempo um homem de ação e um professor O problema era para ele ao mesmo tempo filosófico e pessoal Embora nunca tenha sido um político Max Weber jamais deixou de sonhar com a possibilidade de vir a sêlo Na verdade sua atividade propriamente polí tica foi a de professor ocasionalmente atuou como jornalista e às vezes como um conselheiro do príncipe naturalmente não ouvido Durante a Primeira Guer ra Mundial enviou um memorando confidencial ao governo de Berlim quando os líderes militares e políticos alemães se preparavam para declarar uma guer ra submarina irrestrita o que trazia o risco de precipitar a intervenção dos Es tados Unidos da América Neste memorando secreto expunha as razões pelas quais essa decisão provocaria provavelmente uma catástrofe para a Alemanha 450 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Fez parte também da delegação alemã que foi à França tomar conhecimento das condições do armistício Weber apreciaria ter sido um dirigente partidário ou lí der político mas foi sobretudo um professor e um cientista O gosto pelas idéias claras e a honestidade intelectual fizeram com que não deixasse de especular so bre as condições em que a ciência histórica ou sociológica pode ser objetiva sobre as condições que permitem à ação política ser conforme à sua vocação Estas concepções estão resumidas em duas conferências intituladas Po litik ais Beruf e Wissenschaft ais Beruf o que significa A política como profis sã e A ciência como profissão r m pA ação do cientista é racional com referência a um objetivo O cientista se propõe a enunciar proposições factuais relações de causalidade e interpreta ções compreensivas que sejam universalmente válidas A investigação científica é assim um exemplo importante de ação racio nal com relação a um objetivo que é a verdade Mas este objetivo é determina do por um juízo de valor isto é por um julgamento sobre o valor da verdade demonstrada pelos fatos ou por argumentos universalmente válidos A ação científica é portanto uma combinação da ação racional em relação a um objetivo e da ação racional em relação a um valor que é a verdade A ra cionalidade resulta do respeito pelas regras da lógica e da pesquisa respeito ne cessário para que os resultados alcançados sejam válidos Tal como Weber a entende a ciência é um aspecto do processo de raciona lização característico das sociedades ocidentais modernas Weber chegou mes mo a sugerir e a afirmar que a ciência histórica e sociológica da nossa época representa um fenômeno historicamente singular na medida em que não houve em outras culturas o equivalente a esta compreensão racionalizada do funcio namento e do desenvolvimento das sociedades7 A ciência positiva e racional valorizada por Max Weber faz parte do pro cesso histórico de racionalização e apresenta duas características que coman dam o significado e o alcance da verdade científica Estes dois traços específi cos são o nãoacabamento essencial e a objetividade esta última sendo defini da pela validade da ciência para todos os que procuram este tipo de verdade e pela rejeição dos juízos de valor8 O cientista observa com a mesma serenidade o charlatão e o médico o demagogo e o estadista Para Max Weber o nãoacabamento é fundamental ele que não imagina como Durkheim uma época futura em que a sociologia estivesse plenamente edificada com a existência de um sistema completo de leis sociais Nada mais distante do modo de pensar de Weber do que a concepção cara a Auguste Comte de uma ciência que chegasse a formular um quadro claro e definitivo das leis fundamentais A ciência dos tempos antigos podia considerarse num certo sen tido acabada porque procurava apreender os princípios do ser A ciência mo A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 451 derna é por essência um devenir ignora as proposições relativas ao sentido últi mo das coisas tende a um objetivo situado no infinito e renova sem cessar as indagações dirigidas à natureza Para todas as disciplinas tanto ciências da natureza como ciências da cul tura o conhecimento é uma conquista que nunca chega ao seu termo A ciên cia é o devenir da ciência É sempre possível ir mais longe na análise levar mais adiante a investigação na direção dos dois infinitos Mas para as ciências da realidade humana da história e da cultura não é só isso O conhecimento nesse caso está subordinado às questões que o cientista coloca à realidade A medida que a história avança e renova os sistemas de valor e os monumentos do espírito o historiador e o sociólogo espontaneamente for mulam novas questões sobre os fatos presentes ou passados Como a história realidade renova a curiosidade do historiador ou do sociólogo é impossível conceber uma história ou uma sociologia acabadas A história e a sociologia só poderiam ser completadas se o devenir humano chegasse ao fim Seria necessá rio que a humanidade perdesse a capacidade de criar para que a ciência do ho mem fosse definitiva9 Essa renovação das ciências históricas graças às questões formuladas pelo historiador pode parecer que coloca em dúvida a validade universal da ciência m ascara Weber não é issoA validade universal da ciência exige que o cientis t a não projete seus próprios juízos de valor na investigação em que está empe nhado isto é que não a contamine com suas preferências estéticas ou políticas O fato de que tais preferências se manifestam na orientação da curiosidade do cientista não exclui a validade universal das ciências históricas e sociológicas que devem ser respostas universalmente válidas a questões orientadas legitima mente pelos nossos interesses e valores pelo menos em teoria Descobrimos assim que as ciências da história e da sociedade cujas carac terísticas são analisadas por Weber diferem profundamente das ciências da na tureza embora tenham a mesma inspiração racional As características originais e distintivas destas ciências são três elas são compreensivas históricas e se orientam para a cultura O termo compreensão no sentido de entendimento é a tradução clássica do alemão Verstehen A idéia de Weber é a seguinte no domínio dos fenômenos naturais só podemos apreender as regularidades observadas por meio de propo sições de forma e natureza matemáticas Em outras palavras é preciso explicar os fenômenos por meio de proposições confirmadas pela experiência para ter o sentimento de compreendêlas A compreensão é por conseguinte mediata passa por intermediários conceitos ou relações No caso da conduta humana a compreensão é num certo sentido imediata o professor compreende o com 452 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO portamento dos que acompanham suas aulas o viajante compreende por que o motorista do táxi pára diante do sinal vermelho Não é necessário constatar quan tos motoristas se detêm diante do sinal vermelho para entender por que razão eles agem assim A conduta humana tem uma inteligibilidade intrínseca que vem do fato de que os homens são dotados de consciência Com muita freqüência certas relações inteligíveis se tornam imediatamente perceptíveis entre atos e objetivos entre as ações de uma pessoa e as de outraAs condutas sociais têm uma textura inteligível que as ciências da realidade humana são capazes de apreender Esta inteligibilidade não significa que o sociólogo ou o historiador compreendam intuitivamente tais condutas Pelo contrário o cientista social as reconstrói gradualmente com base em textos e em documentos Para o sociólogo o sentido subjetivo é ao mesmo tempo imediatamente perceptível e equívoco A compreensão não implica no pensamento de Weber uma faculdade mis teriosa capacidade exterior ou superior à razão ou aos processos lógicos das ciências da natureza A inteligibilidade não é imediata no sentido de que pos samos apreender de súbito sem qualquer investigação prévia o significado da conduta dos outros Mesmo quando se trata dos nossos contemporâneos pode mos dar imediatamente uma interpretação de suas ações ou de suas obras mas sem investigação e sem provas não podemos saber qual interpretação é a ver dadeira Em suma é mais apropriado falar em inteligibilidade intrínseca do que em inteligibilidade imediata lembrando sempre que esta inteligibilidade impli ca por essência uma ambigüidade O ator nem sempre conhece os motivos da sua ação o observador é menos capaz ainda de adivinhálos intuitivamente Pre cisa investigálos para poder distinguir entre o verdadeiro e o verossímil A idéia weberiana da compreensão é em grande parte tomada da obra de Karl Jaspers notadamente dos trabalhos que Jaspers escreveu na juventude so bre a psicopatologia em particular o Tratado que JeanPaul Sartre traduziu em parte10 O centro da psicopatologia de Jaspers reside na distinção entre explicação e compreensão O psicanalista compreende um sonho a relação entre determi nada experiência infantil e um certo complexo o desenvolvimento de uma neu rose Há portanto segundo Jaspers no nível das experiências vividas uma com preensão intrínseca dos seus significados Contudo existem limites para esta compreensão Estamos longe de poder compreender o vínculo entre um certo estado de consciência e determinado sintoma patológico Compreendese uma neurose mas nem sempre se compreende uma psicose Num certo momento a inteligibilidade desaparece dos fenômenos patológicos Por outro lado não se compreendem as condutas reflexas Em termos gerais podese dizer que as con dutas são compreensíveis dentro de certos quadros fora desses quadros as re lações entre o estado de consciência e o estado físico ou psicológico deixam de iteligíveis embora sejam explicáveis A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 453 Esta distinção é a meu ver o ponto de partida da idéia weberiana segundo a qual as condutas sociais oferecem um imenso campo suscetível de uma com preensão por parte do sociólogo comparável à compreensão do psicólogo É óbvio que a compreensão sociológica não se confunde com a compreensão psi cológica A esfera autônoma da inteligibilidade social não abrange a da inteli gibilidade psicológica Do fato de sermos capazes de compreender resulta que podemos explicar fenômenos singulares sem a intermediação das proposições gerais Há um vín culo entre a inteligibilidade intrínseca dos fenômenos humanos e a orientação histórica destas ciências Não que elas visem sempre ao que aconteceu uma só vez e se interessem exclusivamente pelas características singulares dos fenô menos Como compreendemos o singular a dimensão propriamente histórica assume nas ciências que têm por objeto a realidade humana uma importância e um alcance que ela não pode ter nas ciências da natureza Nas ciências da realidade humana devemse distinguir duas orientações uma no sentido da história do relato daquilo que não acontecerá uma segunda vez a outra no sentido da sociologia isto é da reconstrução conceituai das institui ções sociais e do seu funcionamento Estas duas orientações são complementa res Max Weber nunca diria como Durkheim que a curiosidade histórica deve subordinarse à investigação de generalidades Quando o objeto do conheci mento é a humanidade é legítimo o interesse pelas características singulares de um indivíduo de uma época ou de um grupo tanto quanto pelas leis que coman dam o funcionamento e o desenvolvimento das sociedades r Ãs ciências que se orientam para a realidade humana são as ciências da cul tura que se esforçam por compreender ou explicar as obras criadas pelos homens no curso do seu devenir não só as obras de arte mas também as leis as institui ções os regimes políticos as experiências religiosas as teorias científicas A ciên cia weberiana se define assim como um esforço destinado a compreender e a ex plicar os valores aos quais os homens aderiram e as obras que construíram As obras humanas são criadoras de valores ou se definem por referência a valores Como pode existir uma ciência objetiva isto é não falseada pelos nos sos julgamentos de valor obras carregadas de valores O objetivo específico da ciência é a validade universal Ela é para empregar os conceitos weberianos uma conduta racional cuja finalidade é atingir julgamentos de fato universal mente válidos Como é possível formular tais julgamentos a propósito dè obras que se definem como criações de valores i Max Weber respondia a esta questão que está no centro de toda sua reflexão I filosófica e epistemológica traçando a distinção entre o julgamento de valor Werturteil e a relação com os valores Wertbeziehung 454 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A noção de julgamento de valor é fácil de compreender O cidadão que con sidera que a liberdade é algo essencial e afirma que a liberdade de expressão e de pensamento é um valor fundamental está fazendo um julgamento em que sua personalidade se manifesta As outras pessoas estão livres para rejeitar tal julgamento e achar que a liberdade de expressão não tem grande importância Os julgamentos de valor são pessoais e subjetivos todos têm o direito de con siderar a liberdade como um valor positivo ou negativo primordial ou secun dário como um valor que convém salvaguardar antes de tudo ou que podemos subordinar ou sacrificar a alguma outra consideração Por outro lado a fórmu la relação aos valores significa para retomar o exemplo precedente que o sociólogo da política considerará a liberdade como um objeto a respeito do qual os sujeitos históricos se debaterão como aquilo que estava em jogo nas contro vérsias ou nos conflitos entre os homens e os partidos e que ele irá explorar a realidade política do passado estabelecendo uma relação entre ela e o valor li berdade A liberdade é um ponto de referência para o sociólogo que nem por isso está obrigado a declarar seu apreço com relação a ela Bastarlheá que seja um dos conceitos com a ajuda dos quais vai delimitar e organizar uma parte da realidade a estudar Isto implica simplesmente que a liberdade política seja um valor para os homens que a viveram Em suma não formulamos um julgamen to de valor mas relacionamos a matéria estudada com um valor que é a liber dade política O julgamento de valor é uma afirmação moral ou vital a relação aos valo res é um procedimento de seleção e de organização da ciência objetiva Como professor Max Weber queria ser um cientista e não um político A distinção entre o julgamento de valor e a relação aos valores lhe permitia ao mesmo tem po marcar a diferença entre a atividade do cientista e a do político e a seme lhança de interesses entre um e outro Esta distinção não é contudo imediatamente óbvia e coloca vários problemas Antes de mais nada por que razão é necessário utilizar este método e re lacionar a matéria histórica ou sociológica com valores A resposta em sua forma mais elementar é que o cientista para determinar seu objeto de estudo está obrigado a fazer uma opção com respeito à realidade uma seleção dos fa tos e a elaboração de conceitos que exigem um procedimento do tipo relação aos valores Por que é necessário selecionar A resposta de Max Weber é dupla e pode situarse ora no nível de uma crítica transcendental de inspiração kantiana ora no de um estudo epistemológico e metodológico sem pressupostos filosóficos ou críticos No nível da crítica transcendental a idéia weberiana tem raízes na filoso fia do neokantiano H Rickert11 Para este o que é dado primordialmente ao es A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 455 pírito humano é uma matéria informe que a ciência elabora e constrói Rickert tinha desenvolvido também a idéia de que há dois tipos de ciência conforme a natureza da elaboração a que essa matéria é submetida A elaboração caracte rística das ciências da natureza consiste em considerar os caracteres gerais dos fenômenos e estabelecer relações regulares ou necessárias entre eles Ela tende à construção de um sistema de leis ou de relações cada vez mais gerais tanto quanto possível de forma matemática O ideal da ciência natural é a física de Newton ou de Einstein na qual os conceitos designam objetos construídos pelo espírito O sistema é dedutivo e se organiza a partir de leis ou princípios sim ples e fundamentais Mas existe também um segundo tipo de elaboração científica característi ca das ciências históricas ou das ciências da cultura Neste caso o espírito não procura inserir progressivamente a matéria informe num sistema de relações matemáticas aplica uma seleção à matéria relacionandoa a valores Se um his toriador pretendesse contar com todos os detalhes com todos os seus caracte res qualitativos cada um dos atos e dos pensamentos de uma só pessoa num só dia não conseguiria fazêlo Alguns romancistas contemporâneos tentaram registrar os pensamentos que podem cruzar uma consciência durante determi nado período de tempo Foi o que fez por exemplo Michel Butor no romance La modification que se passa numa viagem entre Paris e Roma Esta narrativa das aventuras interiores de um singular indivíduo durante um só dia exige um número respeitável de centenas de páginas Basta imaginar o trabalho do histo riador que pretendesse contar do mesmo modo o que aconteceu em todas as consciências de todos os soldados que participaram da batalha de Austerlitz para perceber que esta narrativa impossível exigiria mais páginas do que todos os livros já escritos sobre todas as épocas da humanidade O exemplo que pertence ao método da experiência mental mostra bem que se pode admitir sem dificuldade que todo relato histórico é uma reconstru ção seletiva do que aconteceu no passado Esta seleção é predeterminada em parte pela seleção operada nos documentos Somos incapazes de reconstituir uma grande parte do que aconteceu nos séculos passados pela simples razão de que os documentos disponíveis não nos permitem conhecer tudo o que ocorreu Contudo mesmo quando os documentos são abundantes o historiador selecio na com base no que H Rickert e Max Weber chamam de valores estéticos morais ou políticos Não tentamos reconstruir tudo o que os homens viveram no passado tentamos antes reconstruir a partir de documentos sua existência histórica realizando uma seleção orientada pelos valores vividos pelos mesmos homens objeto da história e pelos valores dos historiadores sujeitos da ciên cia histórica Se admitíssemos a ciência como acabada chegaríamos no caso das ciên cias da natureza a um sistema hipotéticodedutivo que poderia explicar todos 456 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO os fenômenos a partir de princípios axiomas e leis Este sistema hipotéticodedu tivo não nos permitiria contudo determinar como e por que em todos os deta lhes concretos se produziu uma explosão em determinado momento do tempo e do espaço Haverá sempre um hiato entre a explicação legal e o acontecimen to histórico concreto No caso das ciências da cultura e da história chegase não a um sistema hipotéticodedutivo mas a um conjunto de interpretações todas seletivas e in separáveis do sistema de valores escolhido Se cada reconstrução é seletiva e comandada por um sistema de valores haverá tantas perspectivas históricas ou sociológicas quantos sistemas de valores orientando a seleção Passamos assim do nível transcendental para o metodológico em que se situa o historiador ou o sociólogo Max Weber tomou emprestado a H Rickert a oposição entre reconstrução generalizadora e reconstrução singularizante com base nos valores O que o interessava nesta idéia ele que não era um filósofo profissional mas um soció logo era o fato de que ela lhe permitia lembrar que uma obra de história ou de sociologia deve seu interesse em parte ao interesse das questões propostas pelo historiador ou sociólogo As ciências humanas são animadas e orientadas por questões que os cientistas dirigem à realidade O interesse das respostas depen de amplamente do interesse das questões Neste sentido não é mau que os so ciólogos que estudam a política se interessem pela política e que os sociólogos da religião tenham interesse pela religião Max Weber pretendia superar deste modo uma antinomia bem conhecida o cientista que se apaixona pelo objeto da sua investigação não será nem impar cial nem objetivo Mas quem estima que a religião só se compõe de superstição corre o risco de nunca compreender em profundidade a vida religiosa Distin guindo assim as perguntas e as respostas Weber encontra uma saída é preciso ter o senso do interesse daquilo que os homens viveram para compreendêlos autenticamente mas é preciso distanciarse do próprio interesse para encontrar uma resposta universalmente válida a uma questão inspirada pelas paixões do ho mem histórico As questões a partir das quais Max Weber elaborou uma sociologia da reli gião da política e da sociedade atual foram de ordem existencial Têm a ver com a existência de cada um de nós com relação à vida em sociedade à verdade reli giosa ou metafísica Max Weber perguntouse quais as regras a que obedece o homem de ação quais as leis da vida política que sentido o homem pode dar a sua existência neste mundo Qual é a relação entre a concepção religiosa de cada pessoa e a maneira como vive sua atitude em relação à economia ao Estado A sociologia weberiana se inspira numa filosofia existencialista que propõe uma dupla negação Nenhuma ciência poderá dizer aos homens como devem viver ou ensinar às sociedades como se devem organizar Nenhuma ciência poderá indicar à A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 457 humanidade qual é o seu futuro A primeira negação o opõe a Durkheim a se gunda a Marx Uma filosofia do tipo marxista é falsa porque é incompatível com a natu reza da ciência e da existência humana Toda ciência histórica e social repre senta um ponto de vista parcial é incapaz de prever o futuro pois este não é I predeterminado Na medida em que alguns acontecimentos futuros são pre I determinados o homem terá sempre a liberdade seja de recusar este determi 1 nismo parcial seja de se adaptar a ele de diferentes maneiras A distinção entre julgamento de valor e relação aos valores coloca portan í to duas outras questões fundamentais Na medida em que a seleção e a construção do objeto da ciência dependem das questões propostas pelo observador os resultados científicos estão aparen temente relacionados com a curiosidade do cientista e portanto com o contexto histórico em que este se situa Ora o objetivo da ciência é chegar a julgamentos universalmente válidos De que forma uma ciência orientada por questões que se modificam pode a despeito de tudo alcançar uma validade universal Por outro lado e este ponto é ao contrário do precedente filosófico e não metodológico por que os julgamentos de valor são em essência não univer salmente válidos Por que são subjetivos ou existenciais necessariamente con traditórios O ato científico enquanto conduta racional se orienta pelo valor da ver dade universalmente válida Ora a elaboração científica começa por uma esco lha que só tem justificação subjetiva Quais são portanto os procedimentos que permitem para além desta escolha subjetiva garantir a validade universal dos re sultados da ciência A maior parte da obra metodológica de Max Weber tem por objetivo respon der a esta dificuldade Muito esquematicamente sua resposta é que os resultados científicos devem ser obtidos a partir de uma escolha subjetiva por procedimen tos sujeitos a verificação que se imponham a todos os espíritos Esforçase por demonstrar que a ciência histórica é racional demonstrativa que só procura enunciar proposições do tipo científico sujeitas a confirmação Nas ciências his tóricas ou sociológicas a intuição não tem um papel diferente do que desempe nha nas ciências naturais As proposições históricas ou sociológicas são proposi ções de fato que não tendem de modo algum a atingir verdades essenciais Max Weber diria como Pareto que os que pretendem apreender a essência de um de terminado fenômeno vão além da ciência As proposições históricas e sociológi cas tratam dos fatos observáveis e visam atingir uma realidade definida a con duta dos homens na significação que lhe dão os próprios atores Como Pareto Max Weber considera a sociologia uma ciência da conduta humana na medida em que esta conduta é social Tomando como centro de refe rência a conduta lógica Pareto acentua os aspectos nãológicos da conduta que 458 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO explica pelos estados de espírito ou pelos resíduos Weber que também estuda as condutas sociais dá ênfase ao conceito de significação vivida ou de sentido subjetivo Sua ambição é compreender como os homens puderam viver em sociedades diversas com base em crenças diferentes como segundo as épocas se dedicaram a esta ou àquela atividade depositando suas esperanças ora neste mundo ora no outro mundo ora obcecados pela salvação ora pelo crescimen to econômico Cada sociedade tem sua cultura no sentido que os sociólogos norteame ricanos dão ao termo isto é um sistema de crenças e de valores O sociólogo se esforça para compreender como os homens viveram inumeráveis formas de exis tência que só se tomam inteligíveis à luz do sistema próprio de crenças e de conhecimentos de cada sociedade considerada História e sociologia Mas as ciências históricas e sociológicas são não só interpretações com preensivas do sentido subjetivo das condutas mas também ciências causais O sociólogo não se limita a tornar inteligível o sistema de crenças e de conduta das coletividades ele quer determinar como as coisas ocorrem como uma certa crença determina uma maneira de agir como uma certa organização política influencia a organização da economia Em outras palavras as ciências históricas e sociais pretendem explicar causalmente além de interpretar de maneira com preensiva A análise das determinações causais é um dos procedimentos que garantem a validade universal dos resultados científicos Segundo Max Weber a investigação causai pode se orientar em dois senti dos que chamaremos para simplificar de causalidade histórica e causalidade sociológica A primeira determina as circunstâncias únicas que provocaram um certo acontecimento A segunda pressupõe a determinação de relação regular entre dois fenômenos Esta relação não assume necessariamente a forma o fe nômeno A toma inevitável o fenômeno B Mas pode ser formulada assim o fenô meno A favorece mais ou menos fortemente o fenômeno B Um exemplo é a proposição verdadeira ou falsa os regimes despóticos favorecem a interven ção do Estado na gestão da economia O problema da causalidade histórica é o da determinação do papel dos di versos antecedentes na origem de um acontecimento Pressupõe os passos se guintes Em primeiro lugar é preciso construir a individualidade histórica cujas causas queremos determinar Pode tratarse de um acontecimento particular co moaguerrade 19141918 ou a Revolução Russa de 1917 pode ser também uma A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 459 individualidade histórica de proporções mais amplas como o capitalismo A construção da individualidade histórica permite determinar com precisão as ca racterísticas do acontecimento cujas causas buscamos Procurar as causas da guer ra de 1914 é indagar por que houve uma guerra na Europa no mês de agosto de 1914 As causas deste acontecimento singular não se confundem nem com as causas da freqüência das guerras na história da Europa nem com as causas do fenômeno que encontramos em todas as civilizações e que se chama guer ra Em outras palavras a primeira regra da metodologia causai em matéria his tórica e sociológica consiste em definir com precisão as características do indi víduo histórico que se quer explicar Em segundo lugar convém analisar o fenômeno histórico que é por sua natureza complexo em seus elementos Uma relação causai nunca é uma rela ção estabelecida entre a totalidade de um instante te a totalidade de um instan te precedente t1 Ela é sempre uma relação parcial e construída entre certos elementos do indivíduo histórico e determinados dados anteriores Em terceiro lugar se considerarmos uma seqüência singular que só ocor reu uma vez para chegar a uma determinação causai precisaremos depois de proceder à análise do indivíduo histórico e seus antecedentes pressupor por ex periência mental que um desses elementos antecedentes não se produziu ou se produziu de modo diferente Em termos vulgares deveremos formular a ques tão Que teria ocorrido se No caso da guerra de 19141918 que teria acon tecido se Raymond Poincaré não fosse o Presidente da República Francesa ou se o Czar Nicolau II não tivesse assinado a ordem de mobilização algumas horas antes de o Imperador da Áustria tomar a mesma decisão ou se a Sérvia tives se aceito o ultimato austríaco etc Aplicada a uma seqüência histórica singular a análise causai deve passar pela modificação irreal de um dos seus elementos e procurar responder à pergunta que teria ocorrido se este elemento não tives se existido ou tivesse sido diferente Finalmente convém comparar o devenir irreal construído a partir da hipó tese de uma modificação de um dos antecedentes com a evolução real para po der concluir que o elemento modificado pelo pensamento foi de fato uma das causas do indivíduo histórico considerado no ponto de partida da pesquisa Esta análise lógica apresentada de modo abstrato e simplificado coloca um problema evidente como se poderia saber o que teria acontecido se o que aconteceu não tivesse acontecido Este esquema lógico foi muitas vezes criti cado e mesmo impiedosamente ironizado pelos historiadores profissionais pre cisamente porque este procedimento parece exigir um conhecimento daquilo que jamais conheceremos com certeza a saber um conhecimento do irreal Max Weber respondia que os historiadores podiam afirmar o quanto qüi sessem que eles não colocavam tais questões mas de fato eles não poderiam j deixar de fazêlo Não há narrativa histórica que não comporte implicitamente I 460 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO questões e respostas do tipo das que descrevemos Se deixarmos de formular per guntas deste gênero ficaremos limitados a uma narrativa pura em tal data esta pessoa disse ou fez tal coisa Para a análise causai é preciso que se sugira im plicitamente que sem determinada ação o curso dos acontecimentos teria sido outro Ora é só isso que uma tal metodologia propõe Não há absolutamente nada de inútil na questão o que poderia ter aconte cido se Bismarck não tivesse tomado a decisão de fazer a guerra Ela toca de fato o ponto decisivo para a estruturação histórica da realidade a saber que significa ção causai devemos no fundo atribuir a esta decisão individual no centro da tota lidade dos elementos infinitamente numerosos que deviam justamente ser agen ciados daquela maneira e não de outra para levar àquele resultado e que lugar tal decisão ocupa na exposição histórica Se a história pretende se elevar acima do nível de uma simples crônica dos acontecimentos e das personalidades não lhe res ta outro caminho senão o de formular questões deste tipo E enquanto ciência ela sempre procedeu assim Essais sur la théorie de la science p 291 Comentando livremente Max Weber poderíamos acrescentar que os histo riadores têm tendência a considerar simultaneamente que o passado foi fatal e que o futuro é indeterminado Ora essas duas proposições são contraditórias O tempo não é heterogêneo O que corresponde ao nosso passado representou o futuro para outros homens Se o futuro fosse indeterminado não poderia haver nenhuma explicação determinista na história Na teoria a possibilidade de uma explicação causai é a mesma com relação ao passado ou ao futuro Não se pode conhecer com certeza o futuro pelas mesmas razões que fazem com que não se possa chegar a uma explicação necessária quando procedemos a uma análise causai do passado Os acontecimentos complexos resultaram sempre simulta neamente de um grande número de circunstâncias Nos momentos cruciais da história um homem tomou certas decisões Da mesma forma amanhã outras pes soas tomarão determinadas decisões Essas decisões influenciadas pelas cir cunstâncias comportam sempre uma margem de indeterminação no sentido preciso de que um outro homem naquele lugar poderia ter tomado uma decisão diferente Em cada instante há tendências fundamentais que operam deixando contudo uma margem de liberdade para os homens Ou pode haver uma multi plicidade de fatores agindo em sentidos diferentes A análise causai retrospectiva tende a distinguir o que foi num momento dado a influência das circunstâncias gerais e a eficácia de um certo acidente ou de certa pessoa Como os indivíduos e os acidentes exercem um papel na história e a direção do futuro não é prefixada tomase interessante fazer uma análise causai do passado para determinar as responsabilidades assumidas por certos homens para encontrar a hesitação do destino no momento em que se gundo a decisão que tivesse sido tomada a história teria se orientado numa ou A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 461 outra direção Esta interpretação do devenir histórico permitia a Weber respei tar o sentido da grandeza do homem de ação Se os homens não podem deixar de ser cúmplices de um destino fixado antecipadamente a política é uma ativida de miserável Mas como na verdade o futuro é incerto e alguns homens podem foijálo a política é uma das atividades nobres da humanidade Assim a análise causai retrospectiva está associada a uma concepção do devenir histórico Esta metodologia abstrata está ligada a uma filosofia da histó ria Mas esta filosofia é a da história positiva e se limita a dar forma ao que vive mos e pensamos espontaneamente Nenhum homem de ação age refletindo que o que quer que eu faça o resultado será o mesmo não há homem de ação que pense que qualquer outro em seu lugar faria o mesmo ou que se o outro não fizes se o mesmo nem por isso o resultado seria diferente O que Max Weber enuncia de forma lógica é a experiência espontânea e a meu ver autêntica do homem his tórico isto é daquele que vive a história antes de reconstruíla Deste modo o procedimento pelo qual se chega a uma causalidade histó rica comporta a título de método essencial a construção do que teria ocorrido se um dos antecedentes não houvesse existido ou tivesse sido diferente Em ou tras palavras a construção do irreal é um meio necessário para compreender como na realidade os acontecimentos se desenrolaram Mas como podemos construir um desenvolvimento irreal A resposta é que não é necessário reconstruir em detalhe o que poderia ter acontecido Basta par tir da realidade histórica tal como ela se apresentou para demonstrar que se este ou aquele antecedente singular não tivesse ocorrido o acontecimento que que remos explicar também teria sido diferente Quem pretende que o acontecimento histórico singular não teria sido dife rente mesmo se um certo acontecimento particular não tivesse sido o que foi faz uma afirmação que cabe a ele demonstrar O papel das pessoas ou dos acidentes na origem dos acontecimentos históricos é um dado primordial e imediato cabe aos que o negam a tarefa de provar que esse papel é uma ilusão Por outro lado podese às vezes encontrar por comparação não o meio de construir em detalhe a evolução histórica irreal mas a forma de demonstrar a probabilidade de que outra evolução teria sido possível Max Weber dá o exem pltfcTasgüerras cios gregos contra os medas Imaginemos que os atenienses ti vessem perdido a batalha de Maratona ou a de Salamina e que o Império dos persas pudesse ter conquistado a Grécia Nesta hipótese a evolução da Grécia teria sido substancialmente diferente da que conhecemos Se pudermos demons trar a probabilidade de que na hipótese aventada elementos importantes da cul tura grega teriam sido modificados estaremos focalizando a eficácia causai de uma vitória militar Para Max Weber é possível construir esta evolução irreal de duas maneiras podese observar o que aconteceu nas regiões efetivamente con quistadas pelos persas e por outro lado analisar a situação da Grécia na época 462 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO das batalhas de Maratona e de Salamina Na Grécia daquela época havia germes de uma cultura e de uma religião diferentes das que se desenvolveram no con texto das cidades gregas Começavam a se expandir religiões dionisíacas pró ximas das orientais Por isso é provável por referência ao que aconteceu em ou tras partes que uma conquista persa tivesse impedido o progresso do pensamen to racional que foi a maior contribuição da cultura grega à obra comum da humanidade Neste sentido podemos dizer que a batalha de Maratona que ga rantiu a independência das cidades helênicas foi uma das causas necessárias da cultura racional Ninguém expôs de forma mais clara e agradável do que Meyer cuja metodolo gia explícita é questionada por Weber o alcance histórico e universal das guerras contra os medas para o desenvolvimento da cultura ocidental Qual foi o seu proce dimento lógico Basicamente demonstrou que a batalha de Maratona decidiu entre duas possibilidades de um lado uma cultura teocráticoreligiosa cujos germes pode mos encontrar nos mistérios e nos oráculos e que se teria desenvolvido sob o patro cínio do protetorado dos persas pois sabemos que estes utilizavam em toda a parte tanto quanto possível a religião nacional como instrumento de domínio por exem plo no caso dos judeus de outro lado a vitória do espírito helênico livre voltado para os bens deste mundo que nos deu valores culturais que continuam ainda hoje a nos alimentar Essa batalha de proporções reduzidas foi portanto a condição pré via indispensável da construção da frota ática e também do desenvolvimento ulte rior da luta pela liberdade para a salvaguarda da independência da cultura grega para o impulso que deu origem à historiografia própria do Ocidente à evolução completa do drama e a toda a vida espiritual singular que se desenrolou considerando as coi sas quantitativamente nesta pequena cena Duodezbünhe da história do mundo Essais sur la théorie de la Science pp 300301 Fica claro portanto que numa situação histórica dada basta um aconteci mento uma vitória ou derrota militar para decidir a evolução de toda uma cultu ra num sentido ou em outro Essa interpretação tem o mérito de devolver às pes soas e aos acontecimentos sua eficácia de mostrar que o curso da história não está determinado antecipadamente e que os homens de ação podem alterálo O mesmo tipo de análise poderia ser aplicado a uma conjuntura histórica di ferente Por exemplo que teria acontecido na França de LouisPhilippe se o Du que de Orléans não tivesse morrido num acidente de carruagem e se a oposição dinástica pudesse ter se reunido em tomo do herdeiro que era considerado libe ral Que teria acontecido se depois da primeira revolta de fevereiro de 1848 al guns tiros acidentais nas ruas não tivessem reacendido a insurreição e se o tro no de LouisPhilippe tivesse sido salvo naquela data precisa Mostrar como fatos parciais podem determinar um movimento de alcance considerável não significa negar o determinismo global dos fatos econômicos A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 463 ou demográficos digamos em termos abstratos dos fatos maciços Significa apenas conceder aos acontecimentos do passado a dimensão de incerteza e pro babilidade que caracteriza os acontecimentos tais como os vivemos ou como qual quer homem de ação os concebe Enfim a análise da causalidade histórica será tão mais rigorosa quanto mais o historiador dispuser de proposições genéricas que lhe permitam seja construir evo luções irreais seja precisar a probabilidade de um certo acontecimento com base em tal ou tal antecedente Há no pensamento de Max Weber uma solidariedade estreita entre causa lidade histórica e causalidade sociológica uma e outra expressas em termos de probabilidade Uma fórmula de causalidade histórica seria por exemplo a que afirmasse que devido à situação global da França em 1848 era provável uma revolução o que significa que muitos acidentes de todos os tipos seriam sufi cientes para provocála Dizer também que a guerra era provável em 1914 sig nifica que dado o sistema político europeu muitos acidentes seriam suficien tes para provocar a explosão Assim a causalidade entre uma situação e um acontecimento é adequada quando concebemos que essa situação tomava se não inevitável pelo menos muito provável o acontecimento que procuramos explicar O grau de probabilidade desta relação varia aliás de acordo com as circunstâncias De um modo mais geral todo o pensamento causai de Max Weber se expri me em termos de probabilidades ou de oportunidades O exemplo da relação entre um certo regime econômico e a organização política é típico Muitos autores libe rais afirmaram que a planificação econômica tomava impossível um regime de mocrático enquanto os marxistas afirmam que um regime de propriedade privada dos meios de produção toma inevitável o poder político da minoria proprietária de tais meios Todas estas proposições relativas à determinação de um elemento da sociedade por outro devem segundo Max Weber ser expressas em termos de probabilidade Um regime econômico de planejamento total toma apenas mais provável um certo tipo de organização política Se imàginarmos um dado regime econômico a organização do poder político se situa dentro da maigem que é pos sível delimitar de modo mais ou menos preciso ç Não há portanto uma determinação unilateral do conjunto da sociedade por um elemento seja ele o econômico o político ou o religioso Max Weber con cebe as relações causais da sociologia como relações parciais e prováveis São l relações parciais no sentido de que um fragmento dado da realidade toma pro vável ou improvável um outro fragmento Por exemplo um poder político abso í lutista favorece a intervenção governamental no funcionamento da economia Í Mas podemos também conceber e estabelecer relações de sentido contrário j isto é partir de um dado econômico como a planificação a propriedade priva da ou a propriedade pública e indicar em que medida esse elemento da econo 464 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mia favorece ou desfavorece uma maneira de pensar ou um modo de organizar o poder As relações causais são parciais e não globais comportam um caráter de probabilidade e não de determinação necessária Esta teoria da causalidade parcial e analítica é e pretende ser uma refu tação da interpretação vulgar do materialismo histórico Exclui a possibilidade de que um elemento da realidade seja considerado como determinante dos outros aspectos da realidade sem ser também influenciado por eles Esta rejeição da determinação do conjunto da sociedade por um só elemen to exclui também a possibilidade de que o conjunto da sociedade futura seja determinado a partir de certas características da sociedade presente Analítica e parcial a filosofia weberiana proíbe prever em detalhes o que será a sociedade capitalista do futuro ou o que será a sociedade póscapitalista Não é que Max Weber julgue impossível prever certas características da sociedade do futuro Ele estava convencido por exemplo de que o processo de racionalização e bu rocratização continuaria inexoravelmente Para ele esta evolução não parecia suficiente para determinar a natureza exata dos regimes políticos nem a manei ra de viver de pensar e de crer dos homens de amanhã Em outras palavras o que permanece indeterminado é o que mais nos inte ressa Uma sociedade racionalizada e burocratizada pode ser como Tocqueville teria dito despótica ou liberal Como diria Max Weber ela pode ser composta por homens sem alma ou ao contrário permitir a autenticidade dos sentimentos re ligiosos tornando possível aos homens viverem humanamente Esta é a interpretação geral que Max Weber dá à causalidade e às relações en tre a causalidade histórica e a sociológica Esta teoria representa uma síntese entre as duas versões da originalidade das ciências humanas professadas pelos filóso fos alemães do seu tempo Uns consideravam que essa originalidade consistia no interesse que encontramos nessas ciências pelo histórico e pelo devenir singular pelo que jamais se repetirá Disso resultava uma teoria segundo a qual as ciências da realidade humana são antes de tudo ciências históricas Outros acentuavam as características originais do homem como objeto de estudo explicando que essas ciências humanas apreendiam a inteligibilidade imanente da conduta humana Max Weber aceita estes dois elementos mas se recusa a considerar que as ciências que têm por objeto a realidade humana sejam exclusivamente ou mes mo prioritariamente históricas É verdade que as ciências da realidade humana se interessam mais pelo singular pelo devenir único do que as ciências da na tureza Mas não é verdade que não se interessem por proposições de caráter geral As ciências da realidade humana só são ciências na medida em que são ca pazes de formular proposições gerais mesmo quando buscam compreender o sin gular Há portanto uma relação íntima entre a análise dos acontecimentos e a formulação de proposições gerais A história e a sociologia marcam duas dire ções da curiosidade não duas disciplinas condenadas a se ignorar mutuamen A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 465 te A compreensão histórica exige a utilidade de proposições gerais e estas só podem ser demonstradas a partir de análises e comparações históricas Esta solidariedade da história e da sociologia aparece muito claramente na concepção do tipo ideal que é de um certo modo o centro da doutrina episte mológica de Max Weber O conceito de tipo ideal se situa no ponto de convergência de várias tendên cias do pensamento weberiano O tipo ideal está ligado à noção de compreen são pois todo tipo ideal é uma organização de relações inteligíveis próprias a um conjunto histórico ou a uma seqüência de acontecimentos Por outro lado o ti po ideal está associado ao que é característico da sociedade e da ciência moder na a saber o processo de racionalização A construção de tipos ideais é uma expressão do esforço de todas as disciplinas científicas para tomar inteligível a matéria identificando sua racionalidade interna e até mesmo construindo esta racionalidade a partir de uma matéria ainda meio informe Por fim o tipo ideal se vincula também à concepção analítica e parcial da causalidade O tipo ideal per mite de fato perceber indivíduos históricos ou conjuntos históricos Mas o tipo ideal é uma percepção parcial de um conjunto global conserva para toda rela ção causai o seu caráter parcial mesmo quando em aparência abrange toda uma sociedade A dificuldade da teoria weberiana do tipo ideal prendese ao fato de que este conceito é empregado tanto para designar todos os conceitos das ciências culturais como também para algumas espécies determinadas de conceitos Pen so portanto que se deve distinguir de um lado a tendência idealtípica de todos os conceitos das ciências da cultura e de outro as espécies definidas de tipos ideais que Max Weber propõe pelo menos implicitamente Por tendência idealtípica de todos os conceitos utilizados pelas ciências da cultura quero dizer que os conceitos mais característicos das ciências da cultura quer se trate de religião dominação profetismo ou burocracia comportam um elemento de estilização ou de racionalização Diria mesmo correndo o risco de chocar alguns leitores que a tarefa dos sociólogos consiste em tomar a matéria social ou histórica mais inteligível do que ela foi na experiência que tiveram dela aqueles que a viveram Toda sociologia é uma reconstrução que tende à inteligi bilidade das existências humanas que são confusas e obscuras como todas as existências humanas O capitalismo nunca é tão claro como nos conceitos dos sociólogos e estaríamos errados se os criticássemos por isso Os sociólogos têm o objetivo de tomar inteligível até o limite o que não o foi de fazer aparecer o sentido daquilo que foi vivido sem que o sentido tenha sido consciente aos que o viveram Os tipos ideais se exprimem por definições que não se ajustam ao modelo da lógica aristotélica Um conceito histórico não retém as características que 466 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO todos os indivíduos incluídos na extensão do conceito apresentam e menos ain da as características médias dos indivíduos considerados visa ao típico ao essen cial Quando se diz que os franceses são indisciplinados e inteligentes não se quer dizer que todos eles sejam indisciplinados e inteligentes o que é improvável O que se pretende é reconstruir um indivíduo histórico os franceses identifican do certos traços que parecem típicos e definindo sua originalidade Quando um filósofo afirma que os homens são prometéicos que definem seu futuro toman do consciência do passado que a existência humana é um engajamento ele não quer dizer que todos os homens concebem sua existência pela reflexão simul tânea a respeito do passado e do futuro Está sugerindo que o homem é verdadei ramente homem quando se eleva a este nível de reflexão e de decisão Quer se trate da burocracia ou do capitalismo do regime democrático ou de uma nação particular como a Alemanha o conceito não será definido nem pelas caracterís ticas comuns a todos os indivíduos nem pelas características médias Será uma reconstrução estilizada um isolamento dos traços típicos12 A tendência idealtípica está ligada à filosofia geral de Max Weber e impli ca a relação com os valores e a compreensão Compreender o homem históri co enquanto prometéico significa compreendêlo tomando como ponto de refe rência o que nos parece decisivo isto é sua vocação própria Para que se possa chamar o homem histórico de prometéico é preciso admitir que ele se interro ga sobre si mesmo seus valores e sua vocação A tendência idealtípica é inse parável do caráter compreensível da conduta e da existência humana assim como a relação com os valores da atitude inicial das ciências da cultura13 Simplificando podese dizer que Max Weber chama de tipos ideais três es pécies de conceitos A primeira espécie é a dos tipos ideais de indivíduos históricos por exem plo o capitalismo ou a cidade ocidental Neste caso o tipo ideal é uma recons trução inteligível de uma realidade histórica global e singular global porque o conjunto de um regime econômico é chamado de capitalismo singular porque para Weber o capitalismo segundo sentido em que define este termo só se rea lizou plenamente nas sociedades ocidentais modernas O tipo ideal de um indi víduo histórico é uma reconstrução parcial o sociólogo seleciona no conjunto histórico um certo número de características para constituir um todo inteligí vel A reconstrução é uma entre várias outras que são possíveis e a realidade toda não entra na imagem mental do sociólogo A segunda espécie é a dos tipos ideais que designam elementos abstratos da realidade histórica que encontramos em um grande número de circunstâncias Quando combinados estes conceitos permitem caracterizar e compreender os conjuntos históricos reais A oposição entre estas duas espécies de tipos ideais aparecerá claramente se tomarmos o capitalismo como exemplo da primeira espécie e da segunda A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 467 a burocracia No primeiro caso designamos um conjunto histórico real e singu lar no segundo definimos um aspecto das instituições políticas que não cobre todo um regime e que pode ser encontrado em diferentes momentos da história Estes tipos ideais dos elementos característicos da sociedade se situam em diferentes níveis de abstração Num nível inferior aparecem conceitos tais como burocracia ou feudalismo Num nível mais elevado de abstração figuram os três tipos de dominação o racional o tradicional e o carismático Cada um destes três tipos é definido pela motivação da obediência ou pela natureza da legitimi dade pretendida pelo chefe A dominação racional se justifica por leis e regu lamentos a dominação tradicional pelo passado e o costume a dominação caris mática pela virtude excepcional quase mágica que atribuem ao chefe os que o seguem e a ele são devotados Os três tipos de dominação constituem exem plos de conceitos que poderíamos chamar de atômicos São utilizados como elementos graças aos quais se reconstroem e compreendem regimes políticos con cretos A maioria destes últimos combinam elementos pertencentes aos três ti pos de dominação Uma vez mais como a realidade é confusa precisamos abordála com idéias claras Como os tipos se confundem na realidade é pre ciso definilos rigorosamente é porque não existe regime puramente carismá tico ou tradicional que é preciso separálos rigorosamente em nosso espírito A reconstrução dos tipos ideais representa não o fim da investigação científica mas um meio Utilizando conceitos precisamente definidos medimos o seu afas tamento da realidade e combinando conceitos múltiplos apreendemos uma reali dade complexa Finalmente num terceiro nível de abstração temos os tipos de ação a ação racional com relação ao objetivo a ação racional com relação aos valores a ação tradicional e a ação afetiva Por fim chegamos à terceira espécie dos tipos ideais constituída pelas re construções racionalizantes de condutas de um tipo particular O conjunto das proposições da teoria econômica segundo Max Weber não passa da reconstru ção idealtípica do modo como os sujeitos se comportariam se fossem sujeitos econômicos puros A teoria econômica concebe o comportamento econômico ri gorosamente conforme sua essência e definido de maneira precisa14 As antinomias da condição humana Assim as ciências da cultura são compreensivas e causais A relação de cau salidade é segundo o caso histórica ou sociológica O historiador visa pesar a eficácia causai dos diferentes antecedentes numa única conjuntura o sociólo go procura estabelecer relações de sucessão que se repetiram ou que são susce tíveis de repetição O instrumento principal da compreensão é o tipo ideal nas suas diversas variedades cujo traço comum é a tendência para a racionalização 468 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ou então a percepção da lógica implícita ou explícita de um tipo de conduta ou de um fenômeno histórico singular Em todos os casos o tipo ideal é sempre um meio não um fim o objetivo das ciências da cultura é compreender os senti dos subjetivos isto é em última análise a significação que os homens atribuem à sua existência Esta idéia de que a ciência da cultura busca compreender o sentido subje tivo das condutas não é evidente Muitos sociólogos atuais a abandonaram e consideram que o objetivo científico autêntico é a lógica inconsciente das so ciedades ou das existências Para Max Weber o objetivo consiste em compreen der a existência vivida Provavelmente esta orientação da curiosidade científi ca está vinculada à relação que se estabelece no pensamento de Max Weber e na sua teoria epistemológica entre o conhecimento e a ação Um dos temas fundamentais do pensamento de Weber é a oposição já ana lisada entre o julgamento de valor e a relação com os valores A existência his tórica é por essência criação e afirmação de valores A ciência da cultura é a compreensão dessa existência e sua abordagem é a relação com os valores A vida humana é feita de uma sucessão de escolhas pelas quais os homens edificam um sistema de valores A ciência da cultura é a reconstrução e a compreensão das escolhas humanas pelas quais um universo de valores foi edificado A filosofia dos valores tem uma relação estreita com a teoria da ação Max Weber pertence ao grupo dos sociólogos frustrados da política cuja aspira ção não satisfeita pela ação é um dos móbeis do esforço científico A filosofia dos valores de Max Weber se origina na filosofia neokantiana tal como era apresentada no seu tempo nas universidades da Alemanha do Su doeste É uma filosofia que propõe como ponto de partida a distinção radical entre os fatos e os valores Ds valores não são dados nem no plano sensível nem no plano transcen dente são criados pelas decisões humanas que diferem dos atos pelos quais o espírito percebe o real e elabora a verdade Pode ser certos filósofos neokantia nos o afirmam que a própria verdade seja um valor Para Max Weber porém há uma diferença fundamental entre a ordem da ciência e a ordem dos valores A essência da primeira é a sujeição da consciência aos fatos e às provas a essência da segunda é o livre arbítrio e a livre afirmação Ninguém pode ser obri gado por uma demonstração a reconhecer um valor ao qual não adere15 Neste ponto vale a pena fazer uma comparação entre Weber Durkheim e Pareto Durkheim pensava encontrar naquilo que chamava sociedade o objeto sa grado por excelência e o sujeito criador de valores Pareto postulava em princí pio que só a relação entre meios e fins pode ser caracterizada como lógica e que em conseqüência toda determinação dos fins é enquanto tal nãológica Pro curou nos estados de espírito nos sentimentos ou resíduos as forças que afirmam os fins em outras palavras que determinam os valores Mas esta determinação A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 469 só o interessava nas suas características constantes Acreditava que todas as sociedades são trabalhadas por contradições fundamentais contradições entre o lugar ocupado por cada um e seus méritos entre o egoísmo dos indivíduos e as necessidades do devotamento ou do sacrifício pela coletividade Desejava antes de mais nada estabelecer uma classificação dos resíduos que fosse per manentemente válida isto é queria construir o equivalente a uma teoria da na tureza humana à qual remontava a partir da diversidade infinita dos fenôme nos históricos Nenhuma destas fórmulas se coaduna com o pensamento weberiano Weber teria respondido a Durkheim que as sociedades são efetivamente o meio am biente onde os valores são criados mas que as sociedades reais são compostas de homens isto é por nós mesmos e pelos outros e que em conseqüência não é a sociedade concreta como tal que nós adoramos ou devemos adorar Se é ver dade que cada sociedade nos sugere ou nos impõe um sistema de valores isto não prova que a sociedade em que vivemos seja melhor do que a dos nossos ini migos ou da que nós mesmos queremos construir A criação de valores é social mas é também histórica Dentro de cada sociedade surgem conflitos entre gru pos partidos e indivíduos O universo de valores a que cada um de nós acaba ade rindo é uma criação ao mesmo tempo individual e coletiva Resulta da respos ta da nossa consciência a um meio ou a uma situação Portanto não tem cabi mento transfigurar o sistema social existente e atribuir a ele um valor superior ao da nossa própria escolha Este último é talvez criador do futuro enquanto o sis tema que recebemos representa a herança do passado Weber teria respondido a Pareto que as classes dos resíduos correspondem talvez a tendências permanentes da natureza humana mas que insistindo numa classificação dos resíduos o sociólogo ignora ou negligencia o que há de mais interessante no curso da história Claro todas as teodicéias todas as filosofias são nãológicas ou comportam desrespeitos às regras de lógica e aos ensina mentos dos fatos mas o historiador quer compreender os significados que os homens deram a sua existência o modo como aceitaram o mal a combinação que estabeleceram entre o egoísmo e o devotamento Todos estes sistemas de signi ficações ou de valores têm caráter histórico são múltiplos e variados e inte ressantes na sua singularidade e por causa dela Pareto procura o constante en quanto Max Weber quer apreender os sistemas sociais e intelectuais nos seus tra ços singulares O que o apaixona é a determinação precisa do papel da religião numa determinada sociedade e a determinação da hierarquia dos valores ado tados por uma época ou uma comunidade O objetivo predominante da curio sidade weberiana são os sistemas nãológicos como diria Pareto de interpre tação do mundo e da sociedade A meu ver Max Weber tratou de duas maneiras esse mundo de valores mun do da ação e objeto da ciência atual e estes dois tratamentos levam a resultados 470 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO coerentes entre si De um lado enquanto filósofo da política Weber procurou elaborar o que eu chamaria de as antinomias da ação De outro como sociólo go ele quis refletir sobre as diferentes atitudes religiosas e a influência que exercem sobre a conduta dos homens notadamente sobre sua conduta econô mica A antinomia fundamental da ação de acordo com Max Weber é a da moral da responsabilidade e da moral da convicção Maquiavel de um lado Kant de outro A ética da responsabilidade Verantwortungsethik é aquela que o homem de ação não pode deixar de adotar ela ordena a se situar numa situação a pre ver as conseqüências das suas possíveis decisões e a procurar introduzir na trama dos acontecimentos um ato que atingirá certos resultados ou determina rá certas conseqüências que desejamos A ética da responsabilidade interpreta a ação em termos de meiosfins Se é preciso convencer os oficiais de um exér cito a aceitar uma política que não apreciam ela será apresentada em lingua gem tal que eles não a compreenderão ou com fórmulas que tolerem interpre tação estritamente contrária à intenção real do ator ou ao objetivo procurado É possível que num momento dado haja uma tensão entre o homem de ação e os executantes estes talvez tenham a sensação de que foram enganados mas se este era o único meio de atingir o objetivo pretendido quem terá o direito de condenar os que enganaram pelo bem do Estado Max Weber gostava de tomar como símbolo da ética da responsabilidade o cidadão de Florença que segundo Maquiavel preferiu a grandeza do Estado à salvação da sua alma O homem de Estado emprega meios reprovados pela ética vulgar para realizar um objetivo supraindividual que é o bem da coletividade Weber não elogia o maquiavelis mo e uma ética da responsabilidade não é necessariamente maquiavélica no sentido comum do termo A ética da responsabilidade é simplesmente a que se preocupa com a eficácia e se define pela escolha dos meios ajustados ao fim que se pretende Max Weber acrescentava que ninguém vai até o extremo da moral da responsabilidade no sentido de aceitar qualquer meio que seja contanto que em última análise ele seja eficaz Citava Maquiavel e o sacrifício da salvação da alma à grandeza do Estado mas lembrava também Lutero e sua famosa fór mula diante da Dieta de Worms Hier stehe ich ich kann nich anders Gott helfe mir Amen Aqui me detenho não posso fazer de outro modo que Deus me ajude Amém A moral da ação comporta dois termos extremos o pecado para salvar a cidade e nas circunstâncias extremas a afirmação incondicional de uma vontade quaisquer que sejam as conseqüências Acrescentemos que a moral da responsabilidade não basta a si mesma na medida em que se define pela busca de meios adaptados aos objetivos e que estes objetivos permanecem indeterminados Aparece aqui o que alguns auto res como Léo Strauss chamaram de niilismo weberiano Weber não acreditava A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 471 que pudesse haver um acordo entre os homens e as sociedades sobre o objetivo a alcançar Tinha uma concepção voluntarista dos valores criados pelos homens negava a existência de uma hierarquia universal dos fins e mais ainda pensa va que cada um de nós é obrigado a escolher entre valores que em última aná lise são incompatíveis entre si Em matéria de ação há escolhas que implicam sacrifícios Os diversos valores a que podemos aspirar estão encarnados nas coletivida des humanas e por isso entram espontaneamente em conflito uns com os ou tros Max Weber retomava a tradição de Hobbes a do estado de natureza exis tente entre as sociedades políticas Os grandes Estados estão empenhados numa competição de poder permanente Cada um desses Estados é portador de uma cer ta cultura essas culturas se defrontam pretendendo a superioridade sem que se possa de modo nenhum resolver a disputa Dentro de uma coletividade não há medida política que não traga vanta gem para uma classe e sacrifício para outra Por isso as decisões políticas que podem e devem ser iluminadas pela reflexão científica serão sempre em últi ma análise ditadas por julgamentos de valor não suscetíveis de demonstração Ninguém pode determinar com segurança a medida em que tal indivíduo ou tal grupo deve ser sacrificado pelo bem de outro grupo ou da coletividade global O bem da coletividade global só pode ser definido por um grupo em particular Em outros termos de acordo com o pensamento de Max Weber a noção genéri ca de bem comum não comporta uma determinação rigorosa Há mais Para Weber a teoria da justiça implica uma antinomia fundamental Os homens são desigualmente dotados do ponto de vista físico intelectual e mo ral Há uma loteria genética no ponto de partida da existência humana os genes que recebemos dependem no sentido exato do termo de um cálculo de proba bilidades Sendo a desigualdade o fenômeno natural e primeiro nossa tendência pode ser ou apagar pelo esforço social a desigualdade natural ou pelo contrá rio retribuir a cada um com base nas suas qualidades Com ou sem razão Max Weber afirmava que a ciência não pode orientar a escolha entre as duas posi ções a que defende a proporcionalidade entre condição social e desigualdades naturais e o esforço para suprimir essas desigualdades Cada um precisa esco lher sozinho seu Deus ou seu demônio Enfim os deuses do Olimpo para falar como Max Weber estão naturalmen te em conflito Por outro lado sabemos hoje que uma coisa pode ser bela não apesar de não ser moral mas porque não é moral Não só os valores podem ser historicamente incompatíveis no sentido de que uma mesma sociedade não pode realizar ao mesmo tempo os valores do poder militar da justiça social e da cultura mas também a realização de alguns valores estéticos pode contrariar a realização de certos valores morais e a realização destes últimos pode difi cultar a realização de determinados valores políticos 472 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO O problema da escolha dos valores nos introduz à ética da convicção Ge sinnungsethik que incita a agir de acordo com nossos sentimentos sem refe rência explícita ou implícita às conseqüências Weber dá dois exemplos o do pacifista absoluto e o do sindicalista revolucionário O pacifista absoluto se recusa incondicionalmente a portar armas e matar seu semelhante Se ele pensa que irá impedir as guerras com essa recusa é um ingê nuo e no plano da moral da responsabilidade ineficiente Mas se seu objetivo é simplesmente agir de acordo com sua consciência e se a própria recusa é o objeto de sua conduta se torna sublime ou absurdo não importa mas não pode ser refutado Quem proclama antes a prisão e a morte do que matar seu seme lhante está agindo de acordo com a ética da convicção Podese não lhe dar razão mas não se pode demonstrar que está enganado pois o ator não invoca outro juiz a não ser sua própria consciência e a consciência de cada um é irrefutável na medida em que não tem a ilusão de transformar o mundo e a única satisfa ção que ambiciona é a própria fidelidade No plano da responsabilidade pode ser que os pacifistas não contribuam para suprimir a violência mas apenas para a derrota da sua pátria Estas objeções contudo não preocupam os moralistas da convicção O mesmo acontece com o sindicalista revolucionário que diz não à sociedade indiferente às conseqüências imediatas ou a longo prazo da sua re cusa na medida em que tem consciência do que faz ele escapa às críticas cien tíficas ou políticas dos que se colocam no plano dos fatos Vocês perderão o seu tempo expondo da forma mais persuasiva possível a um sindicalista convencido da verdade da ética de convicção que o único resultado da sua ação será aumentar as possibilidades da reação retardar a ação da sua clas se e escravizála ainda mais Ele não acreditará Quando as conseqüências de um ato realizado por sua convicção são negativas 0 partidário dessa ética não atribui rá a responsabilidade ao agente mas ao mundo à tolice dos homens ou à vontade de Deus que criou os homens como são Le savant et le politique p 187 Haveria muito a dizer sobre esta antinomia fundamental É evidente que não há moral da responsabilidade que não se inspire em convicções pois em últi ma análise esta moral é uma procura de eficácia e podemos questionar o objeti vo de tal procura Está claro também que a moral da convicção não pode ser a moral do Es tado Diremos mesmo que a moral da convicção no sentido extremo não pode ser a ética do homem que participa por menos que seja do jogo político mes mo que seja pelo uso da palavra oral ou escrita Ninguém diz ou escreve sem se preocupar com as conseqüências de suas palavras e de seus atos unicamente preocupado em obedecer à consciência A moral unicamente da convicção é um tipo ideal do qual ninguém deve se aproximar demais a fim de poder ficar den tro dos limites da conduta racional A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 473 Apesar de tudo penso que subsiste uma idéia profunda na antinomia webe riana da convicção e da responsabilidade No campo da ação notadamente na ação política ficamos divididos entre duas atitudes talvez devêssemos dizer en tre o desejo de duas atitudes A primeira que chamaria de instrumental busca produzir resultados adequados aos nossos objetivos obriganos assim a ver o mundo como é e a analisar as conseqüências prováveis do que fazemos ou dize mos A segunda moral nos leva muitas vezes a falar e a agir sem considerar os j outros e nem o determinismo dos acontecimentos As vezes cansamonos de fa I zer cálculos e obedecemos ao impulso irresistível de entregar nas mãos de Deus j ou mandar para o inferno as conseqüências de nossos atos A ação baseada na J razão inspirase ao mesmo tempo nestas duas atitudes Mas é útil e na minha opinião esclarecedor enunciar rigorosamente os tipos ideais das duas atitudes entre as quais oscilamos a do homem de Estado certamente mais inclinado à responsabilidade quando menos para se justificar e o cidadão mais propenso à convicção talvez apenas para criticar o estadista Max Weber afirmava As duas máximas éticas se opõem num antagonismo eterno que é absolutamente impossível de superar com os meios de uma moral fundamentada puramente em si mesma Essais sur la théorie de la Science p 425 e também que A ética da convicção e a ética da responsabilidade não são contraditórias mas se com pletam mutuamente constituindo juntas o homem autêntico isto é um homem que pode pretender à vocação política Le savant et le politique p 199 A sociologia da religião No pensamento weberiano a moral da convicção aparece como uma das expressões possíveis da atitude religiosa A moral do Sermão da Montanha é o tipo desta moral O pacifista ideal se recusa a tomar armas a responder à vio lência com a violência Weber costumava citar a fórmula oferecer a outra face afirmando que se esta fórmula não for sublime é covarde Ò cristão que por um esforço de vontade deixa de responder a uma ofensa está agindo com grande za aquele que faz o mesmo por fraqueza ou medo é desprezível A mesma ati tude pode ser sublime quando exprime uma convicção religiosa ou vil se tra duz falta de coragem ou de dignidade A análise da moral da convicção leva assim a uma sociologia da religião O pacifismo por convicção só se explica dentro de uma concepção global do mundo O pacifismo do cristão só é inteligível isto é adquire seu verdadei ro sentido com referência à idéia que ele tem da vida e aos valores supremos aos quais ele adere Para ser compreendida toda atitude exige a percepção da con cepção global da existência que anima o ator e na qual ele vive Este é o ponto de partida do estudo weberiano no campo da sociologia da religião Essas atitu 474 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO des respondem à seguinte indagação em que medida as concepções religiosas têm influenciado o comportamento econômico das diferentes sociedades Temse afirmado muitas vezes que Weber procurou refutar o materialismo histórico e explicar o comportamento econômico pelas religiões em vez de pos tular que estas são apenas a superestrutura de uma sociedade cuja infraestru tura seria constituída pelas relações de produção Na verdade Weber não pen sava assim Ele quis demonstrar que a conduta dos homens nas diversas socie dades só pode ser compreendida dentro do quadro da concepção geral que esses homens têm da existência Os dogmas religiosos e sua interpretação são partes integrantes dessa visão do mundo é preciso entendêlos para compreender a conduta dos indivíduos e dos grupos notadamente seu comportamento econô mico Por outro lado Weber quis provar que as concepções religiosas são efe tivamente um determinante da conduta econômica e em conseqüência uma das causas das transformações econômicas das sociedades Sobre estes dois pontos o estudo mais elucidativo é o que Max Weber dedi cou às relações entre o espírito do capitalismo e a ética protestante Para interpretar corretamente este famoso estudo é preciso partir da análise do capitalismo contida na introdução e no capítulo 2 do livro Segundo Max Weber não há um capitalismo mas capitalismos Em outras palavras toda sociedade capi talista apresenta singularidades que não encontramos em outras sociedades do mesmo tipo O método dos tipos ideais aplicase portanto neste caso Se existe um objeto ao qual esta expressão espírito do capitalismo pode ser apli cada de modo sensato só poderá ser um indivíduo histórico isto é um complexo de relações presentes na realidade histórica que devido a sua significação cultural reu nimos num todo conceituai Ora este tipo de conceito histórico não pode ser defini do de acordo com a fórmula genus proximum differentia specifica porque está asso ciado a um fenômeno significativo considerado no seu caráter individual próprio mas deve ser composto gradualmente a partir dos elementos singulares que precisam ser extraídos um a um da realidade histórica Portanto o conceito definitivo não pode ser encontrado no início mas sim no fim da investigação Em outras palavras só duran te a discussão se revelará seu resultado essencial a saber o melhor modo de formu lar o que entendemos por espírito do capitalismo o melhor modo isto é o modo mais apropriado de acordo com os pontos de vista que nos interessam aqui Além disto estes pontos de vista a partir dos quais os fenômenos históricos que estudamos podem ser analisados não são absolutamente os únicos possíveis Como acontece com cada fenômeno histórico outros pontos de vista nos mostrariam outros traços co mo sendo essenciais Seguese portanto que sob o conceito de espírito do capi talismo não é necessário compreender só o que se apresenta a nós como essencial pa ra o objeto de nossa investigação Isto decorre da própria natureza da conceituação dos fenômenos históricos que não enquadra para servir como metodologia a realidade em categorias abstratas mas procura articulála em relações genéticas concretas que assumem inevitavelmente um caráter individual próprio Uéthiqueprotestante et l es prit du capitalisme pp 4748 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 475 É válido portanto construir um tipo ideal do capitalismo isto é uma defini ção centrada em tomo de certas características escolhidas porque nos interessam particularmente e porque comandam uma série de fenômenos subordinados16 Segundo Max Weber o capitalismo é definido pela existência de empresas Betrieb cujo objetivo é produzir o maior lucro possível e cujo meio é a orga nização racional do trabalho e da produção É a união do desejo de lucro e da disciplina racional que constitui historicamente o traço singular do capitalismo ocidental Em todas as sociedades conhecidas houve sempre indivíduos ávidos de dinheiro mas o que é raro e provavelmente único é o fato de este desejo ten der a satisfazerse não pela conquista especulação ou aventura mas pela disci plina e pela ciência Um empreendimento capitalista visa ao lucro máximo por meio de uma organização burocrática A expressão lucro máximo aliás não é inteiramente justa O que constitui o capitalismo não é tanto o lucro máximo quanto a acumulação indefinida Os comerciantes sempre quiseram auferir o maior lucro possível em qualquer negócio o que caracteriza o capitalismo não é o fato de ele não limitar seu apetite de ganhos mas de estar animado pelo desejo de acumular sempre cada vez mais de sorte que também a vontade de produzir se toma indefinida A sede de adquirir e a busca do lucro do dinheiro da maior quantidade pos sível de dinheiro em si mesmas nada têm a ver com o capitalismo Garçons médi cos cocheiros artistas prostitutas funcionários venais soldados ladrões cruza dos freqüentadores de jogatinas mendigos todos podem ser possuídos por esta sede A avidez por ganhos sem limites não corresponde em nada ao capitalismo e menos ainda a seu espírito O capitalismo poderia ser identificado mais com a do minação Bãndigung pelo menos com a moderação racional deste impulso irra cional Não há dúvida de que o capitalismo se identifica com a procura do lucro de um lucro sempre renovado numa empresa contínua racional e capitalista ele é procura da rentabilidade Ele é obrigado a isso Onde toda a economia está sujei ta à ordem capitalista uma empresa capitalista individual que não se orientasse orientiert pela procura da rentabilidade estaria condenada ao desaparecimento Chamaremos de ação econômica capitalista a que se fundamenta na expectativa de lucro pela exploração das possibilidades de troca isto é as possibilidades for malmente pacíficas de lucro Se a aquisição capitalista é objeto de uma procura racional a ação correspondente será analisada por meio de um cálculo efetuado em termos de capital O que significa que se a ação utiliza metodicamente materiais ou serviços pessoais como meio de aquisição o balanço da empresa expresso em dinheiro ao fim de um período de atividade ou o valor do ativo avaliado periodi camente no caso de um empreendimento contínuo deverá exceder o capital isto é o valor dos meios materiais de produção movimentados para a aquisição por meio da troca O importante para nosso conceito o que determina aqui a ação econômica de modo decisivo é a tendência Orientierung efetiva a comparar um resultado expresso em dinheiro com um investimento avaliado em dinheiro fleld 476 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO schãtzunseinsatz por mais primitiva que seja tal comparação Na medida em que os documentos econômicos nos permitem julgar houve neste sentido em todos os países civilizados um capitalismo e empreendimentos capitalistas baseados numa racionalização aceitável das avaliações de capital Kapitalrechnung Na China na índia na Babilônia no Egito na antiguidade mediterrânea na Idade Média como nos nossos dias Nos tempos modernos porém o Ocidente conheceu propriamen te uma outra forma de capitalismo a organização racional capitalista do trabalho formalmente livre do qual em outros lugares só são encontrados vagos esboços Mas a organização racional da empresa associada às previsões de um mercado regular e não às oportunidades irracionais ou políticas especulativas não é a única particularidade do capitalismo ocidental Não teria sido possível sem dois outros fatores importantes a separação entre a família Haushalt e a empresa Betrieb que domina toda a vida econômica moderna e a contabilidade racional que lhe é intimamente associada Encontramos também aliás a separação espacial da resi dência e da oficina ou loja como por exemplo o bazar oriental e as ergasteria de certas civilizações No Levante no Extremo Oriente na antiguidade encontra mos associações capitalistas com sua contabilidade independente Contudo com parativamente à moderna independência das empresas estas são apenas tentativas modestas Houve sempre uma tendência a que as empresas que procuram lucros se desenvolvessem a partir de uma grande economia familiar quer ela seja de prín cipe quer seja de senhores de domínios o oikos como bem notou Rodbertus elas apresentam ao lado de um parentesco superficial com a economia moderna uma evolução divergente talvez mesmo oposta Contudo em última análise todas essas particularidades do capitalismo ocidental só receberam seu sentido moderno por sua associação com a organização capitalista do trabalho O que conhecemos de modo geral como comercialização o desenvolvimento de títulos negociáveis e a Bolsa que é a racionalização da especulação lhe estão também estreitamente li gados Sem a organização racional do trabalho capitalista todos estes fatos mesmo admitindo que fossem possíveis estariam longe de ter a mesma significação so bretudo no que se refere à estrutura social e todos os problemas próprios do Oci dente moderno que lhe são conexos O cálculo exato fundamento de todo o resto só é possível na base do trabalho livre Em conseqüência o problema central nu ma história universal da civilização mesmo do ponto de vista puramente econô mico não será para nós em última análise o desenvolvimento da atividade capi talista em si mesma diferente de forma segundo as civilizações ora aventureira ora mercantil ou orientada para a guerra para a política ou para a administração será antes o desenvolvimento do capitalismo de empresa burguês com sua orga nização racional do trabalho livre ou para nos expressarmos em termos de histó ria das civilizações nosso problema será o do nascimento da classe burguesa oci dental com seus traços distintivos Léthique protestante et 1esprit du capitalis me passim pp 15 a 23 De acordo com Max Weber a burocracia não é uma singularidade das so ciedades ocidentais O novo Império egípcio o Império chinês a Igreja católi A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 477 ca romana os Estados europeus todos tiveram burocracias como as têm as em presas capitalistas modernas de grandes dimensões No sentido weberiano a burocracia é definida por alguns traços estruturais é a organização permanen te da cooperação entre numerosos indivíduos na qual cada um exerce uma íun ção especializada O burocrata exerce uma profissão separada da sua vida fami liar afastada por assim dizer da sua individualidade Quando lidamos com um funcionário do correio escondido atrás do balcão não nos relacionamos com uma pessoa mas com um executante anônimo Chegamos mesmo a ficar um tanto chocados quando a funcionária do correio troca algumas observações de caráter pessoal com a colega O burocrata deve cumprir uma função que nada tem a ver com seus filhos ou com as suas férias Esta impessoalidade é essencial à natureza da burocracia em que teorica mente todos conhecem as leis e agem em virtude das ordens abstratas de uma regulamentação estrita E por último a burocracia assegura a todos os que tra balham no seu seio uma remuneração determinada segundo certas normas o que exige que disponha de recursos próprios17 Esta definição do capitalismo isto é da empresa trabalhando para a acumu lação indefinida do lucro e funcionando segundo a racionalidade burocrática difere da de SaintSimon e da maioria dos economistas liberais Aproximase da de Marx apresentando porém algumas diferenças Como Marx Max Weber afirma que a essência do regime capitalista é a busca do lucro por intermédio do mercado Também ele insiste na presença de trabalhadores juridicamente livres que alugam sua força de trabalho aos proprietários dos meios de produ ção e por fim mostra que a empresa capitalista moderna utiliza meios cada vez mais poderosos renovando perpetuamente as técnicas para acumular lucros su plementares O progresso técnico é aliás o resultado não procurado da concor rência dos produtores É notório que a forma propriamente moderna do capitalismo ocidental tenha sido determinada em larga medida pelo desenvolvimento das possibilidades téc nicas Hoje sua racionalidade depende essencialmente da possibilidade de avaliar os fatores técnicos mais importantes O que significa que ela depende de caracterís ticas particulares da ciência moderna em especial das ciências da natureza funda mentadas na matemática e na experimentação racional Por outro lado o desenvol vimento dessas ciências e das técnicas delas derivadas recebeu e recebe por sua vez um impulso decisivo por parte dos interesses capitalistas que associam recompen sas Prãmie às suas aplicações práticas embora a origem da ciência ocidental não tenha sido determinada por tais interesses Uéthique protestante et 1esprit du ca pitalisme p 23 A diferença entre Marx e Weber está em que segundo este a principal carac terística da sociedade moderna e do capitalismo é a racionalização burocrática 478 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO que não pode deixar de ser procurada qualquer que seja o estatuto da proprie dade dos meios de produção Max Weber evocava de bom grado a socialização da economia mas não a considerava uma transformação fundamental A necessi dade da organização racional para obter a produção com o melhor custo sub sistiria depois da revolução que tivesse dado ao Estado a propriedade dos meios de produção Os seguidores de SaintSimon acentuavam o aspecto técnico da sociedade moderna isto é a ampliação prodigiosa dos meios de produzir Em conseqüên cia não atribuíam uma importância decisiva à oposição entre trabalhadores e empresários e não acreditavam na necessidade da luta de classes para a reali zação da sociedade moderna Como Marx Max Weber se refere à organização típica da empresa moderna O proletariado enquanto classe não podia existir fora do Ocidente por falta de empresa que organizasse o trabalho livre Léthi que protestante et Vesprit du capitalisme p 22 Mas acaba como os seguido res de SaintSimon por reduzir a importância da oposição socialismocapita lismo porque a racionalização burocrática sendo essencial à sociedade moder na e subsistindo em qualquer regime de propriedade uma modificação deste regime não representaria uma mutação da sociedade moderna Mais do que isso Max Weber aderindo a um sistema de valores individualista temia os pro gressos da sociedade suscetíveis de reduzir a margem de liberdade de ação dei xada ao indivíduo Numa sociedade socialista pensava ele a promoção ao nível superior da hierarquia seria realizada de acordo com procedimentos burocráti cos Chegavase a ser um homem político ou um ministro da mesma maneira co mo se chega a funcionário graduado de um ministério Por outro lado numa sociedade de tipo democrático a promoção se faz por meio do conflito e do diá logo em outras palavras por procedimentos que reservam um lugar mais im portante para a personalidade dos candidatos Hoje não há mais necessidade de motivação metafísica ou moral para que os indivíduos se conformem com a lei do capitalismo Do ponto de vista histó ricosociológico é preciso ainda distinguir entre a explicação da formação do regime e a explicação do funcionamento do regime Hoje pouco nos importa saber se o indivíduo que se encontra à frente de uma grande sociedade industrial é católico protestante ou judeu se é luterano ou calvinista se vê uma relação entre seu êxito econômico e as promessas de salvação O sistema existe funcio na e é o meio social que comanda os comportamentos econômicos Os purita nos queriam ser homens de profissão e nós estamos condenados a sêlo Hoje o espírito do ascetismo religioso fugiu da gaiola definitivamente Quem pode ria dizêlo De qualquer forma o capitalismo vitorioso não tem mais neces sidade desse apoio uma vez que se sustenta sobre uma base mecânica Ibid pp 245246 Muito diferente porém é o problema de saber como este regime foi instituído E não está excluído que motivações psicorreligiosas tenham inter A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 479 vindo na sua constituição A hipótese avançada por Weber é que uma certa inter pretação do protestantismo criou algumas das motivações que favoreceram a for mação do regime capitalista Para poder confirmar esta hipótese Weber orientou sua investigação em três direções No início de seu estudo realizou análises estatísticas análogas às de Durkheim em Le suicide para determinar o seguinte fato nas regiões da Alemanha onde coexistem os grupos religiosos os protestantes e especialmente os protestan tes de certas Igrejas possuem uma porcentagem desproporcional da riqueza e das posições econômicas mais importantes Isto não demonstra que a variável religiosa determine o êxito econômico mas coloca a questão de saber se as concepções religiosas não exerceriam uma certa influência sobre a orientação que os homens e os grupos dão à sua atividade Max Weber passa rapidamente sobre estas análises estatísticas que constituem apenas uma introdução a estudo mais profundo Outras análises procuram estabelecer a adequação intelectual ou espiritual entre o espírito da ética protestante ou de uma certa ética protestante e o espí rito do capitalismo Tratase neste caso de relacionar de modo compreensivo um pensamento religioso com uma atitude a respeito de certos problemas da ação Por fim desenvolvendo em outros trabalhos o estudo sobre o capitalismo e o protestantismo Weber procura saber em que medida as condições sociais e religiosas seriam favoráveis ou desfavoráveis à formação de um capitalismo do tipo ocidental em outras civilizações como na China índia no judaísmo pri mitivo e no Islã Embora existam fenômenos capitalistas em civilizações exte riores ao Ocidente as características específicas do capitalismo ocidental a com binação da busca do lucro com a disciplina racional do trabalho só apareceram uma única vez no curso da história Em nenhum lugar fora da civilização oci dental se desenvolveu esse tipo de capitalismo Max Weber se perguntou assim em que medida uma atitude particular em relação ao trabalho determinada por crenças religiosas teria constituído o fato diferencial presente no Ocidente e ine xistente em outras regiões capaz de explicar o rumo singular da história do Ocidente Essa interrogação é fundamental no pensamento de Max Weber que inicia seu livro sobre a ética protestante deste modo Todos aqueles que cria dos na civilização européia de hoje estudam os problemas da história universal são levados cedo ou tarde a colocar com razão a seguinte pergunta a que en cadeamento de circunstâncias devemos atribuir o surgimento na civilização oci dental e unicamente nesta civilização de fenômenos culturais que pelo menos gostamos de pensar assim se revestiram de significado e de valor universais Ibid p 11 A tese de Max Weber é a da adequação significativa do espírito do capita lismo e do espírito do protestantismo Exposta em seus elementos essenciais J esta tese pode ser apresentada da seguinte forma ajustase ao espírito de um certo protestantismo a adoção de uma certa atitude em relação à atividade eco nômica que é ela própria adequada ao espírito do capitalismo Há uma afini dade espiritual entre uma certa visão do mundo e determinado estilo de ativida de econômica A ética protestante mencionada por Max Weber é basicamente a concepção calvinista que ele resume em cinco proposições inspirandose sobretudo no tex to da Confissão de Westminster de 1647 Existe um Deus absoluto transcendente que criou o mundo e o governa mas que não pode ser percebido pelo espírito finito dos homens Esse Deus todopoderoso e misterioso predestinou cada um de nós à sal vação ou à condenação sem que por nossas obras possamos modificar este decreto divino Deus criou o mundo para sua glória O homem que será salvo ou condenado tem o dever de trabalhar para a glória de Deus e de criar seu reino sobre a terra As coisas terrestres a natureza humana a carne pertencem à ordem do pecado e da morte a salvação só pode ser para o homem um dom totalmente gratuito da graça divina Todos estes elementos precisa Max Weber estão dispersos em outras con cepções religiosas mas sua combinação é original e única E as conseqüências são importantes Uma visão religiosa dessa ordem exclui inicialmente qualquer misticismo A comunicação entre o espírito finito da criatura e o espírito infinito de Deus criador é interditada antecipadamente Tratase também de concepção antiritua lista que inclina a consciência no sentido de uma ordem natural que a ciência pode e deve explorar Ela é portanto indiretamente favorável ao desenvolvimen to da investigação científica e contrária a todas as formas de idolatria Assim na história das religiões chegava à sua conclusão esse longo proces so de desencantamento Entzauberung do mundo iniciado com as profecias do judaísmo antigo e que de acordo com o pensamento grego rejeitava todos os meios mágicos de alcançar a salvação como outros tantos sacrilégios e superstições O puritano autêntico chegava à rejeição de qualquer suspeita de cerimônia religiosa nos funerais enterrava seus próximos sem cânticos ou música para não deixar transparecer nenhuma superstição para não dar nenhuma impressão de acredi tar na eficácia das práticas mágicosacramentais com vistas à salvação Ibid pp 121122 Neste mundo de pecado o crente deve trabalhar na obra de Deus Mas co mo Neste ponto as várias seitas calvinistas têm interpretações diferentes Aque AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 481 la que é favorável ao capitalismo não é nem a mais original nem a mais autên tica O próprio Calvino se esforçou por edificar uma república de conformidade com a lei de Deus Mas há outra interpretação que é pelo menos concebível O calvinista não pode saber se será salvo ou condenado o que é uma conclusão que pode se tomar intolerável Por uma inclinação nãológica mas psicológica pro curará no mundo os sinais da sua escolha Max Weber sugere que é assim que certas seitas calvinistas terminaram por ver no êxito econômico uma prova dessa escolha de Deus O indivíduo se dedica ao trabalho para vencer a angústia pro vocada pela incerteza da salvação No fundo Calvino só admite uma resposta para a pergunta sobre como o indi víduo pode ter certeza da sua eleição devemos contentarnos em saber que Deus decidiu e perseverar na inabalável confiança em Cristo que resulta da fé verda deira Por princípio ele rejeita a hipótese de que se possa reconhecer pelo com portamento de uma pessoa se ela foi eleita ou condenada pois seria temerário pretender penetrar nos segredos de Deus Nesta vida os eleitos não se distinguem em nada exteriormente dos que não o são melhor ainda todas as experiências subjetivas dos primeiros que como ludibria spiritus sancti estão igualmente ao alcance dos segundos à exceção contudo da confiança perseverante e fielfinali ter Os eleitos constituem assim a Igreja invisível de Deus Naturalmente tudo era muito diferente com os epígonos desde Théodore de Bèze e com mais razão ainda para a grande massa dos homens comuns A certitudo salutis no sentido da possibilidade de reconhecer o estado de graça se revestia necessariamente muss té a seus olhos de importância absolutamente primordial Em toda a parte onde se mantinha a doutrina da predestinação era impossível abafar a pergunta há crité rios pelos quais se pode reconhecer com segurança quem pertence ao número dos electil Na medida em que se colocava a questão sobre o estado de graça pessoal era impossível aceitar a confiança de Calvino no testemunho da fé perseverante que resultava da ação da graça sobre o homem confiança que nunca foi formal mente abandonada pela doutrina ortodoxa pelo menos em princípio Sobretudo na prática do serviço das almas os pastores não se satisfaziam com ela porque se man tinham em contato direto com os tormentos engendrados por tal doutrina A prá tica pastoral se acomodou portanto às dificuldades de diferentes maneiras Na me dida em que a predestinação não sofria nova interpretação não era suavizada e no fundo abandonada surgiram dois tipos de conselhos pastorais interligados De um lado considerarse eleito constituía um dever qualquer espécie de dúvida a este respeito precisava ser afastada como tentação do demônio já que uma falta de confiança em si mesmo decorria de uma fé insuficiente isto é da eficácia insufi ciente da graça A exortação do apóstolo a consolidar a sua vocação pessoal é in terpretada aqui como o dever de conquistar na luta cotidiana a certeza subjetiva da sua própria eleição e da sua justificação Em lugar dos humildes pecadores a quem Lutero promete a graça em troca de confiança em Deus com fé e arrepen dimento surgem os santos conscientes de si mesmos que nós encontramos na queles comerciantes puritanos de têmpera de aço dos tempos heróicos do capita 482 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO lismo e de que ainda hoje aparecem exemplos isolados De outro lado para ter confiança em si o meio recomendado como o melhor é o trabalho sem descanso numa profissão Isto e só isto dissipa a dúvida religiosa e dá a certeza da graça Nas particularidades profundas dos sentimentos religiosos professados na Igreja refor mada encontrase a razão pela qual a atividade temporal é capaz de dar essa cer teza e pode ser considerada por assim dizer o meio apropriado para reagir con tra os sentimentos de angústia religiosa Contrastando com o luteranismo estas diferenças aparecem mais nitidamente na doutrina da justificação pela fé Ibid pp 131135 Esta derivação psicológica de uma certa teologia favorece o individualis mo Cada um de nós está só diante de Deus O sentido da comunhão com o pró ximo e do dever com relação aos outros se enfraquece O trabalho racional re gular constante termina sendo interpretado como a obediência a um manda mento divino Operase além disso uma surpreendente convergência entre certas exigências da lógica teológica e calvinista e determinadas exigências da lógica capitalista A ética protestante convida o crente a desconfiar dos bens deste mundo e a ado tar um comportamento ascético Ora trabalhar racionalmente tendo em vista o lucro e não gastálo é por excelência uma conduta necessária ao desenvolvi mento do capitalismo sinônimo do reinvestimento contínuo do lucro nãocon sumido É aí que aparece com o máximo de clareza a afinidade espiritual entre uma atitude protestante e a atitude capitalista O capitalismo pressupõe a orga nização racional do trabalho implica que a maior parte do lucro não seja consu mida mas sim poupada a fim de permitir o desenvolvimento dos meios de pro dução Como afirmava Marx em O capital Acumulai acumulai esta é a lei e os profetas De acordo com Max Weber a ética protestante proporciona uma ex plicação e uma justificativa deste comportamento estranho de que não há exem plo nas sociedades nãoocidentais a busca do lucro máximo não para gozar a vida mas para a satisfação de produzir cada vez mais Este exemplo ilustra claramente o método weberiano da compreensão Pon do à parte o problema da causalidade Weber tornou pelo menos verossímil a afinidade entre uma atitude religiosa e um comportamento econômico Colocou um problema sociológico de grande alcance o da influência das concepções do mundo nas organizações sociais e nas atitudes individuais Weber quer apreender a atitude global de indivíduos ou de grupos Quando o acusamos de ser um analista ou um detalhista sob o pretexto de que ele não utiliza o termo totalidade tão na moda estamos ignorando que foi ele quem tor nou evidente a necessidade de abranger o conjunto dos comportamentos das con cepções do mundo e da sociedade A verdadeira compreensão deve ser global Mas como Weber era um cientista e não um metafísico não acreditou que devia A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 483 chegar à conclusão de que sua própria compreensão era a única possível Tendo interpretado de determinada maneira a ética protestante não quis excluir que ou tras pessoas em outras épocas pudessem perceber o protestantismo sob luz di j ferente estudandoo de um outro ângulo Não rejeitou a pluralidade das inter j pretações mas exigiu a globalidade da interpretação j Por outro lado Weber demonstrou que fora da lógica científica há outras i coisas além da loucura e da arbitrariedade A meu ver a fraqueza do Traité de i sociologie générale reside no fato de que Pareto abrange sob a mesma etique I ta de nãológico tudo o que não se ajusta ao espírito da ciência experimental í Max Weber mostra que há organizações inteligíveis do pensamento e da exis tência que embora não sejam científicas não são destituídas de significação Tende a reconstruir estas lógicas mais psicológicas do que científicas pelas quais se passa por exemplo da incerteza sobre a salvação para a procura de j sinais de eleição Tratase de uma passagem inteligível sem que no entanto se ajuste propriamente às regras do pensamento lógicoexperimental Finalmente Max Weber demonstrou por que a oposição entre a explicação pelo interesse e a explicação pelas idéias não tem sentido pois são as idéias e as idéias metafísicas ou religiosas que comandam a percepção que cada um de nós tem dos seus interesses Pareto põe os resíduos de um lado e do outro os inte resses no sentido econômico ou político O interesse parece reduzirse ao poder político e à fortuna econômica O que Weber demonstra é que a direção do inte resse de cada um é orientada pela sua visão do mundo Que há de mais interes sante para um calvinista do que descobrir os sinais da sua eleição É a teologia que comanda a orientação da existência Como o calvinista tem uma concepção determinada das relações entre o criador e a criatura como tem uma certa idéia da eleição vive e trabalha de um certo modo Desta forma a conduta econômica é função de uma visão geral do mundo e o interesse que tem cada um nesta ou naquela atividade se toma inseparável de um sistema de valores ou de uma visão total da existência Com relação ao materialismo histórico o pensamento weberiano não repre senta uma inversão total Nada mais falso do que imaginar que Max Weber sus tentou tese exatamente oposta à de Marx explicando a economia pela religião em lugar de explicar a religião pela economia Ele não pretendeu derrubar a doutrina do materialismo histórico para substituir a causalidade das forças eco nômicas pela causalidade das forças religiosas embora tenha usado algumas vezes em particular numa conferência pronunciada em Viena no fim da Pri meira Guerra Mundial a expressão refutação positiva do materialismo históri co Para começar uma vez instituído o regime capitalista é o meio que deter mina as condutas quaisquer que sejam as motivações fato de que temos muitas provas na difusão da empresa capitalista por todas as civilizações Além disso mesmo para explicar a origem do sistema capitalista Weber não propõe uma 484 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO outra modalidade de causalidade exclusiva O que quis demonstrar é que a ati tude econômica pode ser orientada pelo sistema de crenças tanto quanto o sis tema de crenças pode ser comandado num dado momento pelo sistema econô mico Será necessário afirmar que nosso objetivo não é substituir uma interpre tação causai exclusivamente materialista por uma interpretação espiritualista da civilização e da história que não seria menos unilateral As duas pertencem ao domínio do possível Na medida em que não se limitam ao papel de trabalho preparatório mas pretendem chegar a conclusões as duas servem mal à verdade histórica Ibid pp 248249 Max Weber incita seus leitores portanto a ad mitir que não há determinação das crenças pela realidade socioeconômica ou pelo menos que não é legítimo postular como ponto de partida uma determina ção desse tipo Ele próprio demonstrou que se pode às vezes compreender a con duta econômica de um grupo social a partir da sua visão do mundo e abriu uma discussão em tomo da proposição segundo a qual numa conjuntura determina da motivações metafísicas ou religiosas podem comandar o desenvolvimento eco nômico O essencial para Weber e também para seus comentaristas é a análise de uma concepção religiosa do mundo isto é de uma atitude com relação à exis tência por parte de homens que interpretavam sua situação a partir de certas crenças Max Weber quis demonstrar principalmente a afinidade intelectual e existencial entre uma interpretação do protestantismo e determinada conduta econômica Esta afinidade entre o espírito do capitalismo e a ética protestante torna inteligível o modo como uma forma de conceber o mundo pode orientar a ação O estudo de Weber permite compreender de forma positiva e científica a influência dos valores e das crenças nas condutas humanas Mostra a maneira como opera através da história a causalidade das idéias religiosas18 Os outros estudos de sociologia religiosa feitos por Weber são dedicados à China à índia e ao judaísmo primitivo Representam o esforço de uma socio logia comparativa das grandes religiões de acordo com o método weberiano da relação aos valores Max Weber coloca duas interrogações à matéria histórica Podese encontrar fora da civilização ocidental o equivalente da ascese no mundo da qual o exemplo típico é a ética protestante Em outras palavras po dese encontrar em outro lugar além da civilização ocidental uma interpreta ção religiosa do mundo que se exprime numa conduta econômica comparável àquela com a qual a ética protestante se manifestou no Ocidente Como se podem pôr em evidência os diferentes tipos fundamentais de con cepção religiosa e desenvolver uma sociologia geral das relações existentes en tre as concepções religiosas e os comportamentos econômicos A primeira questão surge diretamente das reflexões que levaram à concep ção de A ética protestante e o espírito do capitalismo Sabemos que o regime I A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 48 capitalista não se desenvolveu em nenhuma outra região a não ser no Ocidente Esta singularidade poderia ser explicada pelo menos em parte pelas concep ções religiosas ocidentais Esta forma de análise vem a dar no que chamaríamos dentro da lógica de Stuart Mill de método da ausência Se tivesse havido o mesmo conjunto de cir cunstâncias nas civilizações nãoocidentais e na civilização ocidental e o únic antecedente encontrado no Ocidente e ausente nas outras civilizações fosse a reli gião haveria uma demonstração convincente da causalidade do antecedente re ligioso com relação ao regime capitalista É desnecessário dizer que na realidade não é possível encontrar circunstância exatamente iguais às do Ocidente onde o único fator diferencial seria a ausên cia de uma ética religiosa do tipo da protestante A experimentação causai feití por comparação histórica não pode dar resultados tão rigorosos como no esque ma ideal do método da ausência Contudo Max Weber constata que em outra civilizações a chinesa por exemplo havia muitas das condições necessárias ac desenvolvimento de um regime econômico capitalista e que uma das variávei necessárias ao desenvolvimento desse regime ou seja a variável religiosa esta va ausente Por meio destas comparações históricas que são experimentações intelec tuais Max Weber tem a ambição de pelo menos confirmar a tese de que a re presentação religiosa da existência e a conduta econômica por ela determinada foram no Ocidente uma das causas do desenvolvimento do regime econômicc capitalista sendo este antecedente fora do mundo ocidental um daqueles cuja ausência explica o nãodesenvolvimento de um tal regime A segunda questão é retomada e desenvolvida em termos genéricos na parte de Economia e sociedade dedicada à sociologia geral das religiões Seria impos sível resumir aqui as análises weberianas que são extraordinariamente ricas em especial as relativas à China e à índia Limitome a indicar algumas das idéias essenciais nesta exposição de conjunto Para Max Weber o conceito de racionalidade material é característico da concepção chinesa do mundo Num certo sentido tratase de concepção tão racional e talvez mais razoável do que a racionalidade protestante Contudo ela é contrária ao desenvolvimento do capitalismo típico Se uma sociedade vive de acordo com uma concepção de determinada or dem cósmica e adota uma maneira de viver segundo a tradição mais ou menos determinada pela ordem cósmica os objetivos da sua existência estão dados e seu estilo de vida está fixoNo quadro desta representação do mundo há lugar para uma racionalização isto é para um trabalho eficaz O objetivo não será como no caso da ascese temporal protestante produzir o máximo e consumir o menos possível o que de certo ponto de vista é o grau extremo da insensatez embora constitua a essência do capitalismo visto por Marx e a essência do sis 486 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tema soviético visto pelos nãocomunistas O objetivo será trabalhar tanto quan to for necessário para atingir um certo equilíbrio ou felicidade que não tem ne nhuma razão para se modificar O surgimento do capitalismo ou em outras pala vras de uma racionalidade da produção tendo por objetivo uma produção sem pre crescente exigia uma atitude humana à qual só uma moral ascética podia dar sentido Em contrapartida a racionalização do trabalho e da existência no contexto de uma ordem cósmica e tradicional não comporta a abstenção do pra zer nem o investimento nem o crescimento indefinido da produção que cons tituem a essência do capitalismo Se o ponto de partida tivesse sido uma outra definição do capitalismo por exemplo uma definição pela técnica as análises históricas teriam sido inevitavelmente diferentes Na índia também ocorreu um processo de racionalização Mas esta racio nalização se operou dentro de uma religião ritualista no contexto de uma meta física cujo tema central era a transmigração das almas De acordo com Max Weber o ritualismo religioso é um princípio muito forte de conservadorismo social As transformações históricas das sociedades tiveram como condição a ruptura do ritualismo Na linguagem de Pareto este último representava o triunfo dos resí duos da segunda classe isto é da persistência dos agregados e do relaciona mento das coisas e dos seres das idéias e dos atos O ritualismo de Weber e a persistência dos agregados são duas conceituações do mesmo fenômeno funda mental Para Weber o ritualismo pode ser superado pela idéia profética para Pareto os resíduos da primeira classe isto é o instinto das combinações são a força revolucionária de caráter mais geral mais abstrato e também e sobretudo mais intelectual Na visão paretiana é o instinto das combinações que quebra o conservadorismo dos agregados Na visão weberiana é o espírito profético que triunfa sobre o conservadorismo ritualista Na sociedade indiana o ritualismo não era o único fator que tomava im possível o desenvolvimento de uma economia capitalista A formação progres siva e a evolução da mais orgânica e da mais estável das sociedades que se po deriam imaginar em que cada indivíduo nasce em determinada casta e fica limita do a uma certa categoria profissional em que toda uma série de interditos limitam as relações entre indivíduos e castas foram os obstáculos decisivos Mas esta estabilização de uma sociedade de castas teria sido inconcebível sem a idéia da transmigração das almas que desvalorizava o destino terreno de cada um e fazia com que os desfavorecidos esperassem em outra vida uma compensação para a injustiça aparente da sua situação atual O tema central da sociologia weberiana das religiões é uma idéia simples e profunda Para compreender uma sociedade ou uma existência humana é preciso que não nos limitemos como Pareto a relacionar as instituições ou as condutas a classes de resíduos é necessário identificar sua lógica implícita a partir das concepções metafísicas ou religiosas Para Pareto só há lógica na ciência experi A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 487 mental ou nas relações entre meios e fins Weber demonstra que existe uma racio nalidade nas religiões e nas sociedades nas existências vividas e pensadas que não é uma racionalidade científica mas não deixa de ser uma atividade do espírito uma dedução semiracional semipsicológica a partir de princípios O leitor do Traité de sociologie générale de Pareto tem a sensação de que toda a história humana é comandada pela força dos resíduos que determinam o retomo regular dos ciclos de mútua dependência embora o setor do pensamento científico se expanda gradualmente Max Weber nos dá a impressão de uma hu manidade que propôs e continua a propor a questão fundamental sobre o senti do da existência isto é uma questão que não implica resposta logicamente impe rativa mas comporta muitas respostas significativas igualmente válidas a partir de premissas aleatórias A sociologia da religião de Max Weber tal como a vemos em Gesammelte Aufsãtze zur Religionssoziologie e no capítulo de Economia e sociedade intitu lado Typen Religiõser Vergemeinschaftung se baseia numa interpretação da religião primitiva muito próxima da concepção de Durkheim em As formas ele mentares da vida religiosa Talcott Parsons também notou esta semelhança e é bem possível que se trate de um empréstimo Há trinta anos falei sobre isso a Mareei Mauss que me respondeu ter visto no escritório de Max Weber toda a coleção de Uannée sociologique Discussões como esta se têm mantido vivas através da história pois os cientistas são homens Weber considera como o con ceito mais importante da religião primitiva a noção de carisma muito próxima da noção de sagrado ou de mana de Durkheim O carisma é a qualidade de quem está nas palavras de Max Weber fora do cotidiano ausseralltâglich Há seres animais plantas e coisas carismáticas O mundo primitivo comporta uma distin ção entre o banal e o excepcional para me exprimir em termos weberianos e entre o profano e o sagrado para usar conceitos de Durkheim O ponto de partida da história religiosa da humanidade é portanto um mun do povoado de sagrado Seu ponto de chegada em nosso tempo é o que Max Weber caracterizou como o desencantamento do mundo Entzauberung der Welt O sagrado ou excepcional que na aurora da aventura humana se associava a coi sas e a seres que nos rodeiam desapareceu expulso pelos homens O mundo no qual vive o capitalista em que todos vivemos hoje soviéticos e ocidentais é feito de matéria ou de seres que se encontram à disposição da humanidade des tinados a serem utilizados transformados consumidos e que não têm mais os encantos do carisma Neste mundo material desencantado a religião tem de se retirar para a intimidade da consciência ou escapar para além de um deus trans cendente e um destino individual depois da existência terrena A força religiosa e histórica que rompe o conservadorismo ritualista e os la ços estreitos que unem o carisma e as coisas é o profetismo Este é religiosamen te revolucionário porque se dirige a todos os homens e não apenas aos membros 488 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de um só grupo étnico ou nacional e porque estabelece uma oposição fundamen tal entre este mundo e o outro entre as coisas e o carisma Por isso porém o pro fetismo coloca alguns problemas difíceis para a razão humana Se admitimos a existência de um Deus único e nosso criador como podemos justificar a existên cia do mal A teodicéia se transforma no centro da religião exigindo a procura de uma razão para resolver as contradições ou para ao menos lhes dar um sentido Por que Deus criou o mundo se a humanidade está entregue à desgraça e à infeli cidade Deus dará uma recompensa aos que foram injustamente atingidos Estas são as questões a que o profetismo se esforça por responder e que comandam a atividade racionalizante da teologia e da ética O problema da experiência da ir racionalidade do mundo foi a força motriz do desenvolvimento de todas as reli giões Le savant et le politique p 190 A sociologia weberiana procurou estabelecer uma tipologia das atitudes reli giosas fundamentais que constituiriam respostas aos problemas intelectuais de que estão carregadas as mensagens proféticas Weber opõe duas atitudes funda mentais o misticismo e o ascetismo que são duas respostas possíveis ao proble ma do mal dois caminhos possíveis para a redenção O ascetismo de seu lado comporta duas modalidades fundamentais o asce tismo no mundo e fora do mundo A ética protestante é o exemplo perfeito do ascetismo no mundo isto é da atividade levada além das normas ordinárias não em busca de prazeres materiais ou espirituais mas em vista do cumprimento de um dever terreno Além destas análises tipológicas Max Weber concebeu e desenvolveu em particular um capítulo intitulado Zwischenbetrachtung Theorie der Stufen und Richtungen religiõser Weltablehnung que se encontra no fim do primeiro to mo de Sociologia da religião uma análise do mesmo estilo isto é ao mesmo tempo racional e sociológica da relação entre as representações religiosas e as diferentes ordens da atividade humana A oposição entre o mundo mágico dos primitivos e o mundo nãomágico dos modernos domina a evolução religiosa da humanidade Uma outra idéia diretriz é a da diferenciação das ordens de atividade humana Nas sociedades conserva doras e ritualistas não há uma diferenciação de ordens os mesmos valores sociais e religiosos impregnam ao mesmo tempo a economia a política e a vida privada O rompimento do conservadorismo ritualista pelo profetismo abre cami nho para a economia crescente de cada ordem de atividade e ao mesmo tempo coloca os problemas da incompatibilidade ou da contradição entre os valores re ligiosos e os valores políticos econômicos ou científicos Como já vimos não há tabela científica de valores A ciência não pode estabelecer em nome da ver dade as ações que devemos realizar Os deuses do Olimpo estão em conflito per manente A filosofia weberiana dos valores é uma descrição do universo de va lores a que chega a evolução histórica O conflito dos deuses é o termo da dife A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 489 renciação social do mesmo modo como o desencantamento do mundo é o ponto de chegada da evolução religiosa Cada religião precisou em cada época con ciliar as exigências resultantes dos princípios religiosos e as exigências internas de um certo domínio de atividades As interdições que pesam sobre os emprés timos com juros se opuseram muitas vezes à lógica intrínseca da atividade eco nômica Assim também a política comporta o emprego da força A conduta digna não implica que se ofereça a outra face ao agressor mas ao contrário que se responda à força com a força Há portanto um conflito possível entre a moral cristã do Sermão da Montanha e a moral da dignidade ou da honra do comba tente Aparecem essas contradições à medida que as diferentes ordens de ativi dade tendem a se afirmar na sua essência própria e que a moral metafísica ou religiosa antes total tende a ser recalcada fora da existência terrena A ética religiosa se ajustou de diferentes maneiras à situação fundamental que faz com que nos situemos em regimes de vida diferentes subordinados a leis igual mente diversas O politeísmo helênico oferecia sacrifícios a Afrodite e a Hera a Apo lo e a Dionísio sabendo que esses deuses freqüentemente se davam combate O sis tema de vida hindu regulava cada profissão com uma ética particular um dharma separandoas por meio de castas e integrandoas numa hierarquia imutável O indi víduo nascido numa certa casta não tinha mais possibilidade de desertála a não ser mediante uma reencamação numa vida futura Em conseqüência cada profissão estava a uma distância diferente maior ou menor da salvação suprema Cada casta tinha seu dharma desde a dos ascetas e brâmanes até a dos ladrões e prostitutas dentro da hierarquia baseada em leis imanentes próprias a cada profissão A guer ra e a política encontraram naturalmente um lugar nessa estrutura Lendo no Bha gavad Gitâ o diálogo entre Krishna e Aijuna vemos que a guerra é parte integran te da vida Faz o que é necessário o que quer dizer cumpre o dever que te impõe o dharma da casta dos guerreiros e as prescrições que a regulam em suma realiza a obra objetivamente necessária ao objetivo de tua casta a saber fazer a guerra Segundo esta crença cumprir a obrigação de guerreiro estava longe de representar para este um perigo à sua salvação era ao contrário benéfico para a alma Sempre o guerreiro hindu teve tanta certeza de alcançar depois de uma morte heróica o céu de Indra quanto o guerreiro germânico de ser acolhido no Walhala teria tanto des denhado o nirvana quanto o germânico o paraíso cristão com os seus coros angélicos Esta especialização da ética permite à moral hindu considerar a arte real da políti ca como uma atividade perfeitamente conseqüente sujeita a suas próprias leis sem pre mais consciente de si própria A literatura hindu nos oferece mesmo uma expo sição clássica do maquiavelismo radical no sentido popular de maquiavelismo basta ler o Arthaçâstra de Kautilya escrito muito antes da era cristã provavelmen te na época de Chandragupta Comparado a ele O príncipe de Maquiavel é inofen sivo Sabemos que na ética católica os consilia evangelica constituem uma moral especial reservada aos que têm o privilégio do carisma da santidade Ao lado do mon ge proibido de buscar lucros ou de derramar sangue encontramos as figuras do 490 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO cavalheiro e do burguês piedoso que tinham estes direitos o primeiro podia derramar sangue o segundo enriquecer Indubitavelmente a diferenciação ética e sua integra ção num sistema de salvação são menos marcantes do que na índia Contudo dadas as pressuposições da fé cristã podia e devia ser assim A doutrina da corrupção do mundo pelo pecado original permitia integrar com relativa facilidade a violência na ética enquanto meio para combater o pecado e as heresias que constituem precisa mente perigos para a alma Entretanto as exigências acósmicas do Sermão da Mon tanha sob a forma de uma pura ética da convicção assim como o direito natural cristão compreendido como uma exigência absoluta baseada nesta doutrina conser varam sua força revolucionária retomando sempre à superfície com toda sua furia em quase todos os períodos de convulsão social Notadamente deram nascimento a seitas que professam um pacifismo radical uma delas tinha mesmo tentado ins tituir na Pensilvânia um Estado que se recusava a utilizar a força nas relações exte riores experiência que foi aliás trágica pois quando estourou a guerra da Inde pendência os quakers não puderam intervir num conflito cujo objetivo era a defe sa de ideais idênticos aos seus O protestantismo comum pelo contrário em geral legitima o Estado e assim o recurso à violência como uma instituição divina e jus tifica particularmente o Estado autoritário legítimo Lutero retirou do indivíduo a responsabilidade ética pela guerra atribuindoa à autoridade política de modo que a obediência às ordens dos poderes políticos não pode implicar culpa exceto nas questões de fé O calvinismo reconhecia também em princípio a força como meio de defesa da fé legitimando em conseqüência as guerras de religião Sabese que estas guerras foram sempre um elemento vital do Islã Vêse agora portanto que não é a incredulidade moderna nascida do culto renascentista dos heróis que le vantou o problema da ética política Todas as religiões debateram este problema com maior ou menor êxito e nosso estudo demonstrou suficientemente que não podia ser de outro modo Le savant et le politique pp 191194 Há finalmente um duplo conflito implícito entre o universo da religião e o da ciência A ciência positiva experimental e matemática expulsou gradualmen te deste mundo o sagrado deixandonos num universo utilizável mas sem sen tido Em toda a parte onde a aplicação sistemática dos conhecimentos empíricos racionais retirou do mundo seu aspecto mágico fazendo dele um mecanismo sujeito às leis da causalidade o postulado ético segundo o qual o mundo é um universo ordenado por Deus tendo em conseqüência um certo sentido no plano moral foi definitivamente contestado pois uma concepção empírica do mundo e principalmente matemática exclui por princípio todo modo de pensar que procura um sentido qualquer que ele seja nos fenômenos do mundo interior Gesammelte Aufsàtze zur Religionssoziologie p 564 Por outro lado a ciên cia leva a uma crise espiritual pois na medida em que os homens se lembram da religião a ciência os deixa insatisfeitos Uma concepção religiosa do mundo dava um significado aos seres aos acontecimentos e ao destino individual O cien tista sabe que jamais encontrará uma resposta definitiva não ignora que seu A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 491 trabalho será ultrapassado pois a ciência positiva é por essência um processo que nunca chega ao fim Há portanto uma contradição fundamental entre o saber positivo demonstra do mas inacabado e o saber nascido das religiões que não pode ser provado mas que dá resposta às questões essenciais Segundo Max Weber os homens hoje só encontram resposta a tais questões através de uma decisão individual arbitrária e incondicional Cada um de nós deve escolher seu Deus ou seu demônio Economia e sociedade Economia e sociedade Wirtschaft und Gesellschaft é um tratado de socio logia geral que desenvolve ao mesmo tempo uma sociologia econômica jurídi ca política e religiosa Seu objeto é a história universal Todas as civilizações todas as épocas e todas as sociedades são utilizadas como exemplos ou ilustrações Mas este trata do é uma obra de sociologia não de história Tem o objetivo de tomar inteligíveis as diferentes formas de economia de direito de dominação e de religião inserin doas num único sistema conceituai Esse tratado de sociologia geral orientase para o presente propõese a pôr em evidência a originalidade da civilização oci dental comparativamente às outras civilizações São quase oitocentas páginas cerradas representando portanto mais ou me nos a metade do Traité de Pareto mas ao contrário deste não permite ao leitor saltar páginas e é quase impossível de resumir Procurarei assim retraçar as eta pas da conceituação geral para explicar em que consiste aquilo que alguns têm chamado de nominalismo e individualismo de Max Weber Tomarei como exem plo a sociologia política para mostrar como se opera a conceituação weberia na num nível menos abstrato Segundo Max Weber a sociologia é a ciência da ação social que ela quer compreender interpretando e cujo desenvolvimento quer explicar socialmente Os três termos fundamentais são aqui compreender verstehen interpretar deu teri e explicar erklãren respectivamente apreender a significação organizar o sentido subjetivo em conceitos e evidenciar as regularidades das condutas A ação social é um comportamento humano Verhalten em outras pala vras uma atitude interior ou exterior voltada para a ação ou para a abstenção Este comportamento é a ação quando o ator atribui à sua conduta um certo sen tido A ação é social quando de acordo com o sentido que lhe atribui o ator ela se relaciona com o comportamento de outras pessoas O professor age social mente na medida em que o ritmo lento da sua elocução se relaciona com a con duta dos seus estudantes que devem fazer um esforço para tomar nota das de 492 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO monstrações escritas no quadronegro Se falasse sozinho muito depressa sem se dirigir a ninguém sua ação não seria social pois não estaria orientada para a conduta de um grupo de ouvintes A ação social se organiza em relação social soziale Beziehung Há uma rela ção social quando o sentido de cada ator de um grupo de atores que age se relacio na com a atitude do outro de modo que suas ações são mutuamente orientadas O professor e seus alunos vivem uma relação social Se as condutas de vários atores se orientam regularmente umas com rela ção a outras é preciso que algo determine a regularidade de tais relações sociais Dizse que há costume Brauch quando tal relação social é regular e que há hábito Sitten quando a origem dessa relação é uma longa tradição que a trans forma numa segunda natureza Max Weber emprega o termo eingeleitet um costume por assim dizer penetra na vida A tradição se toma uma forma es pontânea de agir Neste ponto da análise surge a noção de probabilidade Quer se trate de costume ou de hábito a regularidade não é absoluta Podese dizer que é cos tume nas universidades os estudantes não tumultuarem as aulas portanto é provável que a palavra do professor encontre alunos silenciosos mas esta pro babilidade não é uma certeza Mesmo no caso das universidades francesas onde em geral os estudantes ouvem passivamente não poderíamos dizer como uma afirmação de fato que durante uma hora só o professor fale O conceito de ordem legítima intervém logo depois da noção de relação regular A regularidade da relação social pode ser apenas o resultado de um lon go hábito mas é mais freqüente que haja fatores suplementares a convenção ou o direitó A ordem legítima é convencional quando a sanção que responde à sua violação é uma desaprovação coletiva É jurídica quando esta sanção assu me a forma de coerção física Os termos convenção e direito são definidos pela natureza da sanção correspondente como em Durkheim Ás ordens legítimas legitime Ordnung podem ser classificadas de acordo com as motivações dos que obedecem Weber distingue quatro tipos que lembram os quatro tipos de ação mas não são exatamente os mesmos as ordens são afetivas ou emocionais racionais com relação a valores religiosas e finalmente determi nadas pelo interesse As ordens legítimas determinadas pelo interesse são racio nais com relação a um objetivo as ordens determinadas pela religião são chama das tradicionais o que põe em evidência a afinidade entre religião e tradição pelo menos numa certa fase da evolução histórica pois o profetismo e a racionaliza ção religiosa nele originada são freqüentemente revolucionários Da ordem legítima Max Weber passa ao conceito de combate Kampf que desde o início da análise tem um sentido evidente Ao contrário do que alguns sociólogos se inclinam a crer as sociedades não são conjuntos harmoniosos Comte insistia na idéia do consenso e dizia que a sociedade é composta tanto de mor A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 493 tos como de vivos Para Max Weber as sociedades são feitas tanto de lutas como de acordos O combate é uma relação social fundamental Num duelo a ação de cada duelista está orientada para a ação do outro A orientação recíproca das con i dutas é neste caso ainda mais necessária do que num acordo pois o que está i I em jogo é a própria existência dos combatentes A relação social do combate se i define pela vontade de cada um dos atores de imporse ao outro malgrado sua 1 resistência Quando o combate não comporta o uso da força física chamase con j corrência Quando seu objetivo é a própria sobrevivência dos atores nós o cha jnamos de seleção Auslese v Os conceitos de relação social e de combate permitem numa etapa subse qüente da conceituação passar à própria constituição dos grupos sociais O processo de integração dos atores pode levar à criação de uma sociedade ou de uma comunidade A distinção entre estes dois processos Vergesellschaftung e Vergemeinschaftung é a seguinte Quando o resultado do processo de integração é uma comunidade Ge meinschaft o fundamento do grupo é um sentimento de pertinência experimen tado pelos participantes cuja motivação pode ser afetiva óu tradicional Se este processo de integração leva a uma sociedade Gesellschaft isto se deve ao fato de que a motivação das ações sociais se constitui de considerações ou ligações de interesses ou leva a um acerto de interesses Uma sociedade comercial por ações ou um contrato são integrações racionais com relação a um objetivo O proces so de integração social ou comunitário resulta no agrupamento Verband O grupo pode ser aberto ou fechado se a entrada nele for estritamente reservada ou ao contrário acessível a todos ou quase todos O agrupamento acrescenta às socie dades ou às comunidades um órgão de administração Verwaltungsstab e uma ordem regulamentar Depois do agrupamento vem a empresa Betrieb Esta se caracteriza pela ação contínua de vários atores e pela racionalidade com vistas a um fim Um agrupamento de empresa Betriebverband é uma sociedade com um óigão de ad ministração com vistas a uma ação racional A combinação dos conceitos de agru pamento e de empresa mostra bem como progride a conceituação weberiana O agrupamento comporta um órgão especializado de administração a empresa in troduz as duas noções de ação contínua e de ação racional com vistas a um fim Combinando as duas noções obtémse um grupo de empresa sociedade sujeita a um órgão de administração e que exerce uma ação contínua e racional Max Weber define ainda alguns conceitoschave na sua reconstrução da ação social Os dois primeiros são os de associação Verem e instituição Anstalt Na associação a regulamentação é aceita consciente e voluntariamente pelos participantes na instituição ela é imposta por decretos aos quais os participan tes devem submeterse 494 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Dois outros conceitos importantes são os de poder Macht e de domina ção Herrschaft O poder é definido simplesmente como a probabilidade de um ator impor sua vontade a outro mesmo contra a resistência deste Situase portanto dentro de uma relação social e indica a situação de desigualdade que faz com que um dos atores possa impor sua vontade ao outro Estes atores podem ser grupos por exemplo Estados ou indivíduos A dominação Herrschaft é a situação em que há um senhor Herr pode ser definida pela probabilidade que tem o senhor de contar com a obediência dos que em teoria devem obede cêlo A diferença entre poder e dominação está em que no primeiro caso o co mando não é necessariamente legítimo nem a obediência forçosamente um dever no segundo a obediência se fundamenta no reconhecimento por aqueles que obedecem das ordens que lhes são dadas As motivações da obediência permi tirão portanto construir uma tipologia da dominação Para passar do poder e da dominação para a realidade política é preciso acrescentar a idéia de agrupa mento político politischer Verband O agrupamento político contém as noções de território de continuidade do agrupamento e de ameaça de aplicação da força física para impor respeito às ordens ou às regras Entre os agrupamentos polí ticos o Estado é a instância que dispõe do monopólio da coerção física Weber introduz por fim um último conceito o de grupo hierocrático ou sagrado hierokratischer Verband É o agrupamento no qual a dominação per tence aos que detêm os bens sagrados e podem dispensálos Os agrupamen tos hierocráticos evocam os regimes teocráticos de Auguste Comte sem contudo ser seus equivalentes Quando o poder recorre ao sagrado e o poder temporal e o espiritual se confundem a obediência é imposta menos pela coerção física do que pela posse das receitas de salvação Se o poder distribui os bens dos quais os indivíduos esperam a redenção é ele que possui para cada um e para todos o segredo da vida feliz neste mundo ou no outro Em Economia e sociedade Max Weber trata duas vezes da sociologia políti ca Uma primeira vez na primeira parte expõe a tipologia das formas de domina ção Die Typen der Herrschaft depois na segunda parte notadamente nos dois últimos capítulos Politische Gemeischaften e Sociologie der Herrschaft des creve com mais pormenores a diferenciação dos regimes políticos observados através da história servindose da tipologia exposta na primeira parte Vou determe no capítulo sobre sociologia política de Economia e socieda de Primeiramente é menos difícil identificar suas grandes linhas do que resu mir a sociologia econômica Minha exposição será esquelética e pobre compa rada com a riqueza do texto de Weber mas não trairá talvez o pensamento do autor Um resumo da sociologia econômica exigiria porém muitas páginas A sociologia política de Weber se inspira diretamente em uma interpretação da situação contemporânea da Alemanha imperial e da Europa ocidental Permite A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 495 perceber o projeto mais importante de Max Weber que era compreender seu tempo à luz da história universal ou ainda tomar inteligível a história universal na medida em que esta tende à situação presente como à sua conclusão Finalmente ela se associa estreitamente à personalidade do autor mais do que qualquer outro capítulo de Economia e sociedade Max Weber pertence à escola dos sociólogos que se interessam pela sociedade a partir do interesse que sentem pela coisa pública Como Maquiavel é um desses sociólogos nostálgi cos da ação política e desejaria participar da luta política e exercer o poder So nhava em ser estadista Na verdade ele não foi um homem político mas somen te um conselheiro do príncipe conselheiro que não foi ouvido como ele mesmo confessa A sociologia política de Weber se baseia numa distinção entre a essência da economia e a essência da política estabelecida a partir do sentido subjetivo das condutas humanas Este método deriva diretamente da definição da sociologia Se toda sociologia é compreensão interpretativa da ação humana isto é do sentido subjetivo que os atores atribuem ao que fazem ou deixam de fazer é no plano do sentido subjetivo das condutas que definimos a ação econômica e a ação política A ação economicamente orientada é aquela que de acordo com o sentido que lhe é atribuído se relaciona com a satisfação dos desejos de utilidade Nutz leistungen de Leistung que vem do verbo leisten realizar produzir e de Nutz raiz do termo utilidade Esta definição se aplica à ação economicamente orien tada e não ao comportamento econômicoEste wirtschaften verbo foijado a par tir do substantivo Wirtschaft designa o exercício pacífico de uma capacidade de disposições economicamente orientadas A orientação para a categoria eco nômica implica apenas que se procuram satisfazer as necessidades que os indi víduos sentem de prestações de utilidade O conceito de prestação de utilidade engloba simultaneamente os bens materiais e os imateriais como os serviços O agir econômico implica por outro lado uma ação pacífica o que exclui a guerra e o banditismo que foram através da história meios freqüentemente emprega dos e quase sempre eficazes de assegurar prestações de utilidade Em todos os tempos os mais fortes sempre foram aconselhados não pèla moral mas pela ra cionalidade instrumental a se apropriar dos bens produzidos com o trabalho alheio Este método para satisfazer os desejos de prestação de utilidade é con tudo afastado pela definição weberiana do agir econômico que pressupõe além de tudo o que citartios o emprego de coisas e de pessoas para alcançar a satis fação de necessidades O trabalho é um agir econômico na medida em que é o exercício pacífico da capacidade de um ou vários indivíduos de dispor de mate riais ou de instrumentos no sentido da satisfação de necessidades Se qualifica mos o agir econômico com o adjetivo racional teremos o agir econômico ca racterístico das sociedades atuais isto é uma atividade que comporta a arregi mentação dos recursos disponíveis de acordo com um plano e a continuidade do esforço dirigido para a satisfação das necessidades 496 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Uma primeira distinção surge logo entre a ordem da política e a da economia A economia tem a ver com a satisfação das necessidades e também com o objeti vo determinado pela organização racional da conduta a política se caracteriza pela dominação exercida por um homem ou por alguns homens sobre outros homens Estas definições permitem simultaneamente compreender a interrelação do agir econômico e do agir político cuja distinção é apenas conceituai não real Concretamente é impossível separar o agir econômico do agir político como se se separassem dois corpos em uma composição química O agir econômico pode comportar o recurso aqui ou ali a meios de força e por conseguinte compor tar uma dimensão política Por outro lado qualquer ação política isto é qual quer exercício contínuo de dominação de um ou de alguns homens sobre outros homens exige um agir econômico isto é a posse ou a disponibilidade de meios para satisfazer às necessidades Há uma economia da política e uma política da economia A oposição entre os dois termos só se torna rigorosa conceitualmen te na medida em que se excluem do agir econômico propriamente dito os meios de força na medida também em que se relaciona a racionalidade própria do agir econômico com a escassez e a escolha racional dos meios A política é portanto o conjunto das condutas humanas que comportam a dominação do homem pelo homem O termo dominação traduz o alemão Herrschaft Julien Freund que traduziu Max Weber para o francês escolheu esse termo porque Herr significa senhor e porque dominação provém do latim dominus senhor Se voltarmos ao sentido original da palavra dominação ela se aplica perfeitamente à situação do senhor com relação àqueles que o obede cem É preciso porém afastar a conotação desagradável desta palavra entenden doa apenas como a probabilidade de que as ordens dadas sejam efetivamente cumpridas pelos que as recebem O termo autoridade não seria apropriado co mo tradução de Herrschaft pois Max Weber o utiliza também Autoritãt para designar as qualidades naturais ou sociais que possui o senhor Os tipos de dominação são em número de três racional tradicional e caris mática A tipologia se fundamenta portanto no caráter próprio da motivação que comanda a obediência Racional é a dominação baseada na crença na legalidade da ordem e dos títulos dos que exercem a dominação Tradicional é a domina ção fundamentada na crença do caráter sagrado das tradições antigas e na legi timidade dos que são chamados pela tradição a exercer a autoridade Carismá tica é a dominação que se baseia no devotamento fora do cotidiano justificado pelo caráter sagrado ou pela força heróica de uma pessoa e da ordem revelada ou criada por ela Os exemplos destes três tipos de dominação são abundantes O agente tri butário nos faz obedecer porque acreditamos na legalidade dos títulos que lhe permite enviarnos documentos de cobrança fiscal Sua dominação é portanto A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 497 racional De modo geral o conjunto da gestão administrativa das sociedades mo dernas quer se trate da regulamentação da circulação dos automóveis dos exa mes universitários ou do fisco comporta uma dominação tal de homens sobre outros homens que estes se submetem às ordens legais ou aos intérpretes e exe cutantes da própria legalidade e não a indivíduos isolados A ilustração da do minação tradicional é menos fácil de encontrar nas sociedades modernas mas se a rainha da Inglaterra exercesse ainda um poder efetivo o fundamento desta dominação seria o longo passado e a crença na legitimidade da sua autoridade cuja origem remonta a muitos séculos Hoje resta apenas a aparência desta domina ção Os homens continuam a respeitar o detentor desse poder tradicional mas de fato não têm oportunidade de o obedecer As leis são promulgadas em nome da rainha mas não é ela que determina o conteúdo Hoje nos países que conserva ram a monarquia a dominação tradicional é meramente simbólica Podemos encontrar nos nossos dias contudo muitos exemplos do poder ca rismático Lenin exerceu durante alguns anos uma dominação carismática que não se baseava na legalidade ou em antigas tradições mas no devotamento dos ho mens convencidos da virtude incomum daquele que se propunha convulsionar a ordem social Hitler e o general De Gaulle são outros exemplos embora tão opos tos de chefes carismáticos segundo a definição weberiana O próprio De Gaulle acentuou o caráter carismático da sua dominação nas circunstâncias em que tendo de escolher entre apelar para a legitimidade eleitoral e apelar para o 18 de junho de 1940 ele escolheu a segunda alternativa Em abril de 1961 para exigir obediên cia contra os generais rebeldes da Argélia voltou a envergar o uniforme de ge neraldebrigada de junho de 1940 dirigindose aos oficiais e aos soldados não como Presidente da República eleito por um congresso mas como o general De Gaulle que havia vinte anos representava a legitimidade nacional Quando um homem declara encarnar a legitimidade nacional durante dois decênios sua domi nação não pertence mais à ordem racional como não pertence à ordem tradicional o general De Gaulle não nasceu numa família real reinante é carismático19 O chefe está fora do cotidiano do mesmo modo que está fora do cotidiano o devotamento que os homens consagram a esta personalidade heróica e exemplar Como é natural estes três tipos de dominação pertencem a uma classifica ção simplificada Max Weber esclarece que a realidade é sempre uma mistura ou confusão desses três tipos puros Não obstante sua análise coloca uma série de questões Weber distingue quatro tipos de ação e três tipos de dominação Por que não há uma conformidade entre a tipologia das condutas e a tipologia das dominações Os três tipos de dominação correspondem aproximadamente a três dos quatro tipos de conduta O quarto tipo de conduta não está representado por um tipo específico de dominação Entre a conduta racional em relação a um fim e 498 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO a dominação legal o paralelismo é perfeito Entre a conduta afetiva e a domina ção carismática há uma aproximação pelo menos justificável A conduta tradi cional e a dominação tradicional são designadas pelo mesmo termo Devemos dizer que a classificação das condutas está errada Que só há na realidade três motivações fundamentais e por conseguinte três tipos de conduta e três tipos de dominação A razão a emoção e o sentimento explicariam a conduta racional afetiva ou tradicional e do mesmo modo a dominação racional carismática ou tradicional Esta interpretação é possível mas o problema me parece mais sutil A clas sificação dos tipos de dominação se refere às motivações dos que obedecem mas estas motivações são de natureza essencial e não psicológica O cidadão que re cebe a intimação de impostos a pagar pagará o que lhe é cobrado quase sempre não por ter refletido sobre a legalidade do sistema fiscal ou porque tenha medo das sanções implicadas no nãopagamento mas apenas pelo hábito de obedecer A motivação psicológica efetiva não coincide necessariamente com o tipo abstrato de motivação ligado ao tipo de dominação O hábito pode comandar a obediên cia no caso de uma dominação racional em lugar da razão Se é verdade que a distinção entre os tipos de dominação deriva de uma classificação das motivações estas não são as que podemos observar no sentido comum do termo A melhor prova está em que Max Weber apresenta várias tipologias dife rentes da motivação da obediência No primeiro capítulo de Economia e so ciedade depois de ter formulado o conceito de ordem legítima ele se pergun ta sobre uma classificação em duas ou quatro categorias Uma ordem legítima pode ser sustentada interiormente pelos sentimentos innerlich dos que a obe decem Se ela é interiorizada há três modalidades possíveis deste fenômeno que se referem aos três tipos de conduta a afetiva a racional com relação aos va lores e a religiosa substituindo neste caso a tradicional Se não é interioriza da a ordem legítima pode ser apoiada pela reflexão a respeito das conseqüên cias do ato esta reflexão determinando a conduta dos que obedecem Neste caso a tipologia das motivações da obediência tem portanto quatro categorias e não reproduz a tipologia tríplice dos modos de dominação Em outra passa gem do primeiro capítulo ao tratar dos motivos pelos quais se atribui legitimi dade a uma certa ordem Weber retoma quatro termos que desta vez são exa tamente paralelos aos quatro tipos de conduta Ele considera com efeito que há quatro fórmulas de legitimidade tradicional afetiva racional em relação a valores e resultado da afirmação positiva de uma ordem legal Vemos assim que Max Weber hesita entre diferentes classificações E che ga sempre à fórmula da ação racional em relação a um fim que é o tipo ideal da ação econômica ou política Esta ação é de fato também a ação comandada por uma ordem legal e a ação determinada pela consideração das conseqüências possíveis da conduta do tipo da conduta interessada ou do contrato Contudo A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 499 a ação emocional está sempre presente nas classificações Sua correspondência no mundo da política é o tipo profético ou carismático Por outro lado dois tipos de conduta recebem nomes diferentes que ora aparecem ora desaparecem A ação tradicional se transforma às vezes em ação religiosa e na verdade a religião é uma forma de tradição mas num certo sentido é a forma inicial e profunda da tradição Por outro lado a ação wertrational figura em alguns casos como um dos fundamentos da legitimidade a honra mas desaparece na tipologia dos modos de dominação porque não constitui um tipo abstrato Estas dificuldades de tipologia se relacionam com o fato de que Max Weber não escolheu entre conceitos puramente analíticos e conceitos semihistóricos Os três modos de dominação deveriam ser considerados como simples e puros conceitos analíticos mas Weber lhes atribui também um sentido histórico De qualquer forma esta tipologia da dominação permite a Max Weber entrar na casuística conceituai dos tipos de dominação Partindo da noção de domina ção racional ele analisa as características da organização burocrática Tomando como ponto de partida a noção de dominação tradicional acompanha o seu de senvolvimento e diferenciação progressiva dominação gerontocrática patriarcal patrimonial Esforçase por demonstrar como é possível passar da definição simplificada de uma forma de dominação para a infinita diversidade das insti tuições historicamente observadas mediante a discriminação de diferentes mo dos A diversidade histórica se toma então inteligível porque deixa de parecer arbitrária Desde que existem homens que refletem sobre as instituições sociais a pri meira surpresa é causada pela existência do outro De fato vivemos numa so ciedade mas há outras sociedades uma certa ordenação política ou religiosa nos parece evidente ou sagrada e há outras ordens Podemos reagir a esta desco berta pela afirmação agressiva ou ansiosa da validade absoluta da nossa ordem e a desvalorização simultânea de todas as outras A sociologia começa com o re conhecimento desta diversidade e com a vontade de compreendêla o que não implica que todas as modalidades de ordem social se situem no mesmo nível de valor mas apenas que todas são inteligíveis porque exprimem a mesma nature za humana e social A política de Aristóteles tomou inteligível a diversidade de regimes das cidades gregas a sociologia política de Max Weber tenta fazer o mes mo no contexto da história universal Aristóteles se interrogava a respeito das dificuldades que cada regime precisava resolver e as perspectivas de sobrevi vência e prosperidade de cada um Max Weber pergunta qual é a evolução pro vável possível ou necessária de um tipo de dominação A análise das transformações da dominação carismática é exemplar Esta forma de dominação tem na sua origem algo que está fora do cotidiano aus seralltàglich Possui portanto em si mesma alguma coisa de precário porque os homens não podem viver de forma duradoura fora do cotidiano e porque tudo 500 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO o que é incomum inevitavelmente se desgasta Ocorre em conseqüência um processo estreitamente ligado à dominação carismática o retorno do poder carismático à vida cotidiana Veralltãglichung deo Charismas A dominação fundamentada nas qualidades excepcionais de um homem pode sobreviver a esse homem Todo regime marcado pela origem carismática do seu líder supre mo não pode deixar de ser confrontado com a questão da sobrevivência e da he rança Max Weber se volta assim para uma tipologia dos métodos pelos quais se resolve o problema mais importante da dominação carismática que é o da sucessão Pode haver uma procura organizada de outro portador do carisma como na teocracia tibetana tradicional Os oráculos e o apelo ao julgamento divino podem ser utilizados também para institucionalização do excepcional O chefe caris mático pode escolher pessoalmente seu sucessor mas é preciso que este seja aceito pela comunidade dos fiéis O sucessor pode ser selecionado igualmente pelo estadomaior do chefe carismático e depois reconhecido pela comunida de Podese admitir que o carisma é inseparável do sangue tornandose heredi tário Erbcharisma A dominação carismática leva neste caso à dominação tra dicional A graça de uma pessoa se torna propriedade de uma família Final mente o carisma pode ser transmitido de acordo com certos processos mágicos ou religiosos A coroação dos reis da França representava a transmissão da graça desse modo ela passava a pertencer a uma família e não a um homem Este exemplo simples ilustra bem o método e o sistema de Max Weber Seu objetivo é sempre o mesmo Tratase de identificar a lógica das instituições hu manas e de compreender as singularidades das instituições sem com isto re nunciar ao uso dos conceitos Tratase de elaborar uma sistematização flexível que permita ao mesmo tempo integrar fenômenos diversos num quadro contex tual único e não eliminar o que constitui a singularidade de cada regime ou de cada sociedade Esta forma de conceituação leva Max Weber a perguntar qual é a influên cia exercida pelo modo de dominação sobre a organização e a racionalidade da economia qual a relação entre um tipo de economia e um tipo de direito Em outras palavras a conceitualização não tem só por fim uma compreensão mais ou menos sistemática mas também a colocação dos problemas de causalidade ou das influências recíprocas dos diferentes setores do universo social A categoria que domina esta análise causai é a de oportunidade ou de influência e de probabi lidade Um tipo de economia influencia o direito num certo sentido é provável que um tipo de dominação se manifeste na administração ou no direito de uma certa maneira Mas não há nem pode haver causalidade unilateral de uma série de instituições particulares sobre o resto da sociedade Neste sentido o méto do weberiano pode ser admirado ou criticado pois multiplica as relações parciais e não acrescenta aquilo que os filósofos chamam hoje de totalização No estu A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 501 do sociológico das religiões Max Weber se esforçou por reconstruir o conjunto de uma maneira de viver e pensar o mundo Ele não ignorava a necessidade de inse rir cada elemento de uma existência ou de uma sociedade num conjunto Contudo em Economia e sociedade analisa as relações entre os setores e por isso multipli ca as relações parciais sem reconstruir a totalidade Pareceme que Max Weber poderia justificarse afirmando que não excluía outros métodos e que no nível da generalidade conceituai em que se situa sua análise era impossível identificar re lações causais comportando uma rigorosa necessidade e que era impossível tam bém reconstruir a totalidade de uma sociedade particular ou de um regime políti co singular porque o objetivo procurado é a apreensão dos diferentes aspectos de tais totalidades com a ajuda dos conceitos A sociologia política de Max Weber é inseparável da realidade histórica em que viveu20 Politicamente Weber era na Alemanha de Guilherme II um nacio nalliberal Weber foi um nacionalliberal mas não um liberal no sentido norte americano Ele não era propriamente um democrata no sentido francês inglês ou norteamericano Punha acima de tudo a grandeza da nação e o poder do Es tado Indubitavelmente estimava as liberdades a que aspiram os liberais do velho continente Sem um mínimo de direitos individuais escreveu não poderíamos mais viver Não acreditava porém na vontade geral ou no direito dos povos de dispor de si mesmos nem na ideologia democrática Se desejava uma parla mentarização do regime alemão era para aprimorar a qualidade dos líderes e não por princípio Pertencia à geração pósbismarckiana que se propunha como tarefa primordial a manutenção da herança do fundador do Império alemão e como segunda tarefa o acesso da Alemanha à política mundial Weltpolitik Não era um desses sociólogos como Durkheim que acreditavam que as funções militares dos Estados eram anacrônicas Acreditava na permanência dos confli tos entre as grandes potências e esperava que a Alemanha unificada ocupasse um lugar importante no cenário mundial Só levava em conta as questões sociais da atualidade tomando como referência o objetivo supremo da grandeza do Reich Weber foi um adversário apaixonado de Guilherme II a quem atribuiu duran te a guerra de 1914 a principal responsabilidade pelas desgraças que se abate ram sobre sua pátria Na mesma época esboçou um projeto de reforma das ins tituições cujo objetivo era a parlamentarização do regime alemão Atribuía a mediocridade da diplomacia do II Reich ao sistema de recrutamento dos minis tros e à ausência de vida parlamentar Pensava Weber que a dominação burocrática caracteriza todas as socieda des modernas e constitui um setor importante de qualquer regime mas o fun cionário não foi feito para impulsionar o Estado ou para exercer funções pro priamente políticas e sim para aplicar os regulamentos de acordo com os pre cedentes Formouse na disciplina não na iniciativa e na luta e por isto será normalmente um mau ministro O recrutamento dos políticos implica regras 502 ÀS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO diferentes das que se aplicam ao recrutamento dos burocratas Por isso Max Weber desejava a transformação do regime alemão no sentido parlamentar As assembléias dariam oportunidade de aparecerem melhores líderes isto é de líde res mais bem formados para a batalha política do que aqueles que só escolhiam um imperador ou que ocupavam funções no alto da hierarquia administrativa O regime alemão comportava um elemento tradicional o imperador e um elemento burocrático a administração Faltavalhe o elemento carismático Obser vando as democracias anglosaxãs Max Weber imaginava um líder político ca rismático que como chefe partidário adquirisse na luta as qualidades sem as quais não há estadista a saber a coragem de decidir a audácia de inovar a capacidade de despertar a fé e de conseguir a obediência21 Este sonho de um líder carismá tico foi vivido pela geração que sucedeu à de Max Weber Mas evidentemen te este não teria reconhecido seu sonho na realidade alemã de 19331945 A sociologia política de Weber leva a uma interpretação da sociedade pre sente como sua sociologia da religião conduz a uma interpretação das civiliza ções contemporâneas O que singulariza o universo em que vivemos é o desen cantamento do mundo A ciência nos habitua a ver a realidade exterior apenas como conjunto de forças cegas que podemos pôr à nossa disposição nada resta dos mitos e das divindades com que o pensamento selvagem povoava o universo Nesse mundo despojado desses encantamentos e cego as sociedades se desen volvem no sentido de uma organização cada vez mais racional e burocrática Sabemos que uma obra só é realmente científica quando pode e deve ser ultrapassada Daí o caráter patético de uma vida dedicada à pesquisa que mesmo no caso de êxito está condenada a não encontrar toda a verdade Jamais chega remos ao ponto final do nosso esforço renovado nunca teremos resposta defi nitiva às perguntas que consideramos mais importantes Por outro lado quanto mais racional a sociedade mais cada um de nós está condenado ao que os marxistas chamam de alienação Sentimonos sujeitos a um conjunto que vai além de nós condenados a só realizar uma parte daquilo que po deríamos ser condenados a exercer toda a nossa vida uma ocupação limitada sem outra esperança de grandeza senão a de aceitar tal limitação Desde logo o que é preciso salvaguardar antes de tudo dizia Max Weber são os direitos humanos que dão a cada indivíduo a possibilidade de viver uma existência autêntica independentemente do lugar que ocupa na organização ra cional Do ponto de vista político é a maigem de livre competição graças à qual se afirma a personalidade e podem ser escolhidos os líderes verdadeiros e não meros burocratas Além da racionalização científica do mundo precisamos reservar os direi tos de uma religião puramente interior Além da racionalização burocrática é preciso salvaguardar a liberdade de consciência e o confronto das pessoas Sem suprimir as desigualdades entre os indivíduos e entre as classes o socialismo A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 503 marcaria se se transformasse de utopia em realidade uma etapa do proces so de burocratização integral A conclusão weberiana procede da análise existencial da incompatibilidade dos valores e da luta entre os deuses O mundo é racionalizado pela ciência pela administração e pela gestão rigorosa dos empreendimentos econômicos mas continua a luta entre as classes as nações e os deuses Como não há um árbitro ou um juiz só existe uma atitude adequada à dignidade a escolha solitá ria de cada um de nós diante da sua consciência Pode ser que a última palavra des ta atitude filosófica seja a de engajamento Max Weber dizia escolha e decisão Entscheidung A decisão era menos a escolha entre dois partidos do que o engajamento em favor de um deus que podia ser um demônio Weber nosso contemporâneo Mais do que Durkheim Max Weber é ainda nosso contemporâneo Admi ramos a análise estatística das causas do suicídio como uma etapa da ciência Continuamos a utilizar o conceito de anomia mas deixamos de nos interessar pelas idéias políticas de Durkheim e as teorias morais que ele pretendia difundir nas escolas de formação de professores O Traité de sociologie générale é um mo numento estranho obraprima de uma pessoa extraordinária objeto de admira ção para uns de irritação ou exasperação para outros Pareto não tem muitos dis cípulos ou continuadores Mas o caso de Max Weber é bem diferente Em 1964 em Heidelberg durante um congresso organizado por Deutsche Gesellschaft für Soziologie por ocasião do centésimo aniversário do nascimen to de Weber houve um debate ardoroso que continuou depois de encerrada a reunião Um historiador suíço Herbert Lüthy chegou mesmo a escrever que ha via weberianos da mesma forma como marxistas igualmente suscetíveis quando alguma das idéias de seu mestre era questionada Na verdade weberia nos e marxistas têm pouco em comum os primeiros estão nas universidades os segundos governam Estados O marxismo pode ser resumido e vulgarizado num catecismo destinado às multidões mas o pensamento de Weber não se presta à elaboração de uma ortodoxia a menos que se considere como ortodoxia a rejei ção de todas as ortodoxias Por que razão quase meio século depois de morto Max Weber desperta ain da tantas paixões Devido a sua obra ou à sua personalidade A controvérsia científica sobre A ética protestante e o espírito do capita lismo não terminou ainda não só porque este famoso livro passou por uma refutação empírica do materialismo histórico mas também porque propõe dois problemas de grande alcance O primeiro é histórico em que medida certas sei tas protestantes ou de modo mais geral o espírito protestante influenciaram 504 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO a formação do capitalismo O segundo problema é teórico ou sociológico em que sentido a compreensão das condutas econômicas exige a referência às cren ças religiosas e aos sistemas do mundo dos atores Entre o homem econômico e o homem religioso não há uma separação radical E devido a uma ética deter minada que o homem concreto de carne e ossos o homem de desejos e gozos se transforma em algumas raras situações em homo oeconomicus A tentativa weberiana de analisar a estrutura da ação social de elaborar uma tipologia das condutas de comparar os sistemas religiosos econômicos políticos e sociais por mais criticável que nos pareça em alguns dos seus méto dos e resultados é ainda do nosso tempo Deveríamos mesmo dizer que ela ul trapassa de longe o que os sociólogos atuais se julgam capazes de realizar Pelo menos a teoria abstrata e as interpretações históricas tendem a se dissociar A grande teoria no estilo de T Parsons caminha para a abstração extrema de um vocabulário conceituai utilizável para a compreensão de qualquer sociedade Ela pretende afastarse da sociedade moderna e da filosofia que inspirava Weber A referência ao presente terá desaparecido da conceituação do tipo parsoniano ou mais genericamente da conceituação peculiar à sociologia de hoje Esta é uma questão que pode ser debatida O que queríamos era demonstrar que com binando uma teoria abstrata dos conceitos fundamentais da sociologia com uma interpretação semiconcreta da história universal Max Weber é mais ambicioso do que os professores de nossos dias Neste sentido pertence possivelmente tanto ao passado quanto ao futuro da sociologia Por mais válidos em si mesmos que sejam estes argumentos eles não ex plicam a violência dos debates em tomo de Weber que têm ocorrido aliás na Europa não nos Estados Unidos Nos Estados Unidos Max Weber foi interpre tado e traduzido por Talcott Parsons Sua obra é acolhida sobretudo como a de um cientista puro Foi por isso que ela penetrou nas universidades onde é agora ex posta comentada muitas vezes também discutida Quanto ao homem que se exprime na obra ou se esconde atrás dela não é ele um democrata hostil a Gui lherme II Por outro lado não é legítimo ignorar o político e só reconhecer o cientista Na Europa o centenário do nascimento de Max Weber despertou paixões Os professores de formação européia alguns dos quais se naturalizaram norte americanos adotaram posições veementes pró e contra Weber como político filósofo e sociólogo A este propósito nada foi mais revelador do que as três sessões plenárias do congresso de Heidelberg a que já me referi A primeira aberta com conferência de Talcott Parsons sobre as concepções metodológicas de Weber provocou um debate propriamente acadêmico As duas seguintes po rém tiveram outro caráter bem diferente A conferência que pronunciei sobre Max Weber und die Machtpolitik se inseria na polêmica desencadeada pelo li vro de Wolfgang J Mommsen22 a qual prossegue até o momento em que escre A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 505 vo este estudo 1966 A conferência de Herbert Marcuse Industrialisierung und Kapitalismus parecia animada por uma espécie de furor contra Weber como se ele estivesse ainda vivo e se mantivesse em posição irredutível Estes dois debates um relativo ao lugar ocupado por Max Weber na polí tica alemã às suas opiniões o outro a propósito de sua filosofia e de suas atitu des fundamentais diferem em alcance e em estilo Alguns autores nos Estados Unidos e na República Federal Alemã tinham tendido a apresentar Weber como um bom democrata de estilo ocidental conforme à imagem que se tinha disso depois da Segunda Guerra Mundial Esta concepção estava evidentemente muito distante da realidade O valor que Max Weber punha acima de tudo por sua livre decisão era como vimos a grandeza nacional não a democracia ou as liberdades pessoais Tinha sido favorável à democratização mais por motivos circunstanciais do que por princípio Os funcionários entre os quais o imperador escolhia seus ministros eram segundo ele desprovidos por formação e temperamento de am bição do poder primeira qualidade dos governantes e talvez mesmo dos povos em um mundo duro entregue à luta entre indivíduos classes e Estados A filosofia da política inspirada pelo seu trabalho como cientista e por sua ação é pessimista Alguns vêem em Weber um novo Maquiavel Em artigo pene trante a despeito de um tom que os admiradores de Weber têm dificuldade em suportar Eugene Fleischmann23 focalizou as duas influências mais importantes possivelmente sucessivas a de Marx e a de Nietzsche a partir das quais se for mou o pensamento de Weber Marx da burguesia e mais nietzscheano do que democrata Esta reinterpretação da política weberiana causou escândalo porque tirava do seu pedestal um dos patronos e fundadores da nova democracia alemã um antepassado cheio de glória um gênio Contudo ela é no essencial indiscutível fundamentandose em textos e aliás está marcada pelo respeito devido a uma personalidade excepcional Max Weber foi nacionalista como o foram os euro peus a partir do fim do século passado e como deixaram de sêlo hoje Um na cionalismo que não se limitava ao patriotismo à preocupação com a indepen dência ou a soberania estatal mas que conduzia de modo quase irresistível ao que hoje seriamos tentados a chamar de imperialismo As nações estão engaja das numa competição permanente ora aparentemente pacífica ora claramente cruel Esta competição não tem fim e é impiedosa Os homens morrem em trin cheiras ou vegetam trabalhando em minas ou fábricas ameaçados pela concor rência econômica ou pelo fogo dos canhões O poder da nação é ao mesmo tem po um meio e um fim garante a segurança contribui para a difusão da cultura porque as culturas são essencialmente nacionais mas o poder é desejado por si mesmo como expressão da grandeza humana Indubitavelmente o pensamento político de Max Weber é mais complexo do que o sugerem estas breves indicações Se ele viu na unidade alemã uma etapa 506 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO do processo que levava à política mundial não ignorou o fato de que o poder do Estado não implicava o desenvolvimento da cultura Em particular no caso da história alemã a fase de desenvolvimento espiritual e a fase de poder estatal não parecem coincidir Embora tenha empregado a expressão Herrenvolk povo de senhores não o fez no sentido em que Hitler a usou Como Nietzsche Weber criticava muitas vezes o povo alemão pela obediência passiva a aceitação de um regime tradicional suas atitudes de novorico condutas indignas de um povo que assume e deve assumir um papel de importância mundial Quanto à de mocracia de sua preferência com um líder escolhido por todo o povo ela tem alguns traços que vamos encontrar em todas as democracias da nossa época lembrando sobretudo a V República da França sob o general De Gaulle Líder carismático eleito por sufrágio universal tomando sozinho as grandes deci sões responsável perante sua consciência e a história tal é o chefe democrá tico imaginado por Max Weber figura que os déspotas do período de entre as duas guerras caricaturaram e que o Presidente da República francesa encarnou a partir de 1959 Nem o Presidente norteamericano nem o Primeiroministro bri tânico correspondem em grau e estilo a esse Führer condutor do povo que lide ra as massas a serviço da ambição que nutre por elas e para si Esta ascendên cia carismática do líder político representava para Weber uma reação salvado ra ao reinado anônimo dos burocratas Ele não ignorava contudo a importância da deliberação dos parlamentares e o respeito pelas regras Conhecia a neces sidade de uma Constituição de manter o Estado de direito Rechtstaat o valor das liberdades pessoais É possível que tivesse sobretudo a tendência a crer como homem do século XIX que as frágeis conquistas da civilização política estavam já definitivamente consolidadas O segundo debate iniciado por Herbert Marcuse focaliza em última aná lise a filosofia histórica de Max Weber Este toma como tema central da sua interpretação da moderna sociedade ocidental a racionalização tal como se manifesta na ciência na indústria e na burocracia O regime capitalista basea do na propriedade individual dos meios de produção e na concorrência do mer cado esteve historicamente associado ao processo de racionalização Este pro cesso é o destino do homem contra o qual seria vão nos revoltarmos e ao qual nenhum regime pode escapar Max Weber foi hostil ao socialismo a despeito da admiração que sentia por Marx e não só porque era nacionalista ou porque na luta de classes tão fatal quanto a luta das nações se situava ao lado da burgue sia O que ameaçava a dignidade do homem a seus olhos era a servidão dos indivíduos com relação a organizações anônimas O sistema de produção efi caz é também um sistema de dominação do homem sobre o homem Max Weber reconhecia que os operários seriam sempre socialistas de um modo ou de ou tro chegou mesmo a afirmar que não há nenhum meio de eliminar as con vicções socialistas e as esperanças socialistas24 no que talvez se enganasse A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 507 mas o socialismo realizado comportaria para os valores humanos os mesmos perigos que o próprio capitalismo Mais ainda o socialismo não poderia deixar de agravar esses perigos na medida em que para restaurar e manter a discipli na do trabalho num regime burocratizado precisava impor uma dominação mais rigorosa ainda do homem sobre o homem ou da organização sobre o indivíduo limitando ainda mais as liberdades pessoais Terão os acontecimentos desmentido Max Weber sobre este ponto Eviden temente eles lhe deram razão e é o próprio Herbert Marcuse que o confessa En quanto espírito cristalizado a máquina não é neutra a razão técnica é a razão social que domina em cada época e pode ser transformada na sua própria estru tura Enquanto razão técnica ela pode ser utilizada tendo em vista uma técnica de liberação Para Max Weber esta posição era uma utopia Hoje parece que ele tinha razão Em outras palavras Marcuse recrimina Max Weber pelo fato de ter denunciado antecipadamente como utopia o que se revelou efetivamente até o presente uma utopia isto é a idéia de uma liberação humana que passa pela mo dificação do regime da propriedade e pela planificação Entre a propriedade coletiva dos meios de produção e a planificação de um lado e a liberação do homem de outro não há nenhum vínculo causai ou lógico A história dos últimos cinqüenta anos o demonstrou indiscutivelmente Um marxista de Frankfurt que não é marxistaleninista detesta em Max Weber aquele que nunca compartilhou suas ilusões e que lhe rouba os sonhos de que talvez precise para viver Mas a utopia socialista é hoje radicalmente vazia de substância Um sistema de pro dução ainda mais automatizado trará talvez outras possibilidades concretas de libe ração Não suprimirá a ordem burocrática a saber a dominação racional e anônima denunciada com um certo exagero por Weber e pelos marxistas Certamente a sociedade industrial de hoje não é a sociedade capitalista que Max Weber conheceu não é mais essencialmente burguesa nem mesmo essen cialmente capitalista se este regime pode ser definido antes de mais nada pela propriedade e a iniciativa do empresário individual Contudo precisamente por este motivo estaria tentado pessoalmente a criticar Weber de outro ponto de vista muito diferente ele foi demasiado marxista na sua interpretação da sociedade moderna isto é muito pessimista Não percebeu exatamente nem as perspectivas de bemestar para as massas graças ao crescimento da produtividade nem a ate nuação dos conflitos de classes e talvez mesmo dos conflitos entre as nações numa época em que a riqueza depende mais da eficiência do trabalho que das dimensões territoriais Por outro lado é um mérito e não um erro ter distinguido rigorosamente a racionalidade científica ou burocrática da razão histórica A ex periência nos mostrou que o espírito e os meios da tecnologia podem ser empre gados no genocídio mas a responsabilidade não cabe ao capitalismo à burgue sia e menos ainda a Max Weber Este tinha reconhecido antecipadamente que a racionalização não garante o triunfo do que os hegelianos chamam de razão his tórica e os democratas de boa vontade chamam de valores liberais 508 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Em Weber uma filosofia da luta e do poder de inspiração marxista e nietzs cheana se combina com a visão de uma história universal que leva a um mundo desencantado a uma humanidade em servidão despojada das suas virtudes mais elevadas Max Weber colocava acima de tudo não o êxito e o poder mas uma certa nobreza a coragem de afrontar a condição humana tal como ela aparece a quem rejeita as ilusões da religião como das ideologias políticas Todos os que pensam possuir uma verdade absoluta ou total todos os que pretendem recon ciliar valores contraditórios marxistashegelianos doutrinários da democracia ou do direito natural continuam com razão sua polêmica contra um autor que dá caráter dogmático à recusa do dogmatismo que empresta uma verdade defini tiva à contradição de valores que só conhece a ciência parcial e as escolhas es tritamente arbitrárias Alguns destes dogmatismos estão na origem dos totalitarismos da nossa época Contudo é preciso reconhecêlo Max Weber com sua filosofia do en gajamento não oferece necessariamente uma melhor proteção contra o retomo dos bárbaros O líder carismático devia servir de recurso contra a dominação anô nima da burocracia Aprendemos a temer as promessas dos demagogos mais do que a banalidade da organização racional Estes debates sobre a personalidade a filosofia e as opiniões de Max Weber ilustram a meu ver a multiplicidade dos sentidos em que me parece apropriado afirmar que ele é nosso contemporâneo Primeiramente porque pertence à fa mília dos grandes pensadores cuja obra é tão rica e ambígua que cada nova ge ração a lê interroga e interpreta à sua maneira Depois porque é um cientista cuja contribuição está ultrapassada mas que ainda permanece atual Tratese da compreensão dos tipos ideais da distinção entre julgamento de valor e relação aos valores do sentido subjetivo enquanto objeto próprio do estudo sociológico da oposição entre a maneira como os autores se compreenderam a si mesmos e a maneira como o sociólogo os compreende sentimonos sempre tentados a mul tiplicar questões ou pelo menos objeções Não é certo que a prática de Weber res ponda sempre à sua teoria É mesmo duvidoso que ele próprio se tenha abstido de qualquer julgamento de valor e mais duvidoso ainda que a referência aos valores e o julgamento de valor possam ser separados radicalmente A sociologia de Weber poderia ser talvez mais científica mas seria na minha opinião me nos apaixonante se não tivesse sido animada por um homem que colocava cons tantemente as questões fundamentais o relacionamento entre o conhecimento e a fé a ciência e a ação entre a Igreja e o profetismo a burocracia e a lideran ça carismática entre a racionalização e a liberdade individual E que graças a uma erudição histórica quase monstruosa procurava em todas as civilizações as res postas dadas a suas próprias questões para no fim dessa exploração por natu reza indefinida encontrarse só e dilacerado diante da escolha do seu próprio destino Indicações biográficas 1864 21 de abril Nasce Max Weber em Erfurt na Turíngia Seu pai era um jurista de família de industriais e comerciantes de têxteis da Vestfália Em 1869 foi com a fa mília para Berlim onde foi membro da Dieta municipal foi deputado na Dieta prussiana e no Reichstag pertencia ao grupo dos liberais de direita cujo líder era Hanovrien Bennigsen Sua mãe Helena FallensteinWeber era uma mulher de grande cultura preocupada com os problemas religiosos e sociais Até sua morte em 1919 ela manteve estreito contato intelectual com o filho em quem avivava a nostalgia da fé religiosa Na casa dos seus pais o jovem Max Weber conheceu a maioria dos intelectuais e políticos mais importantes da época 1882 Depois da sua Abitur Max Weber inicia os estudos superiores em Heidelberg Ins crevese na Faculdade de Direito mas estuda também história economia filoso fia e teologia Participa das cerimônias e duelos da sua corporação estudantil 1883 Depois de três semestres em Heidelberg Max Weber faz um ano de serviço mili tar em Estrasburgo como simples soldado e depois como oficial Toda sua vida Weber terá muito orgulho de seu título de oficial do Exército Imperial 1884 Max Weber retoma seus estudos nas Universidades de Berlim e de Gõttingen 18871888 Participa de várias manobras militares na Alsácia e na Prússia Oriental Tor nase membro da Verein für Sozialpolitik que agrupa os universitários de todas as tendências preocupados com os problemas sociais Essa associação havia sido fundada em 1872 por G Schmoller e era dominada pelos Socialistas da Cátedra 1889 Doutorado em Direito com tese sobre as empresas comerciais na Idade Média Aprende italiano e espanhol Inscrevese no Tribunal de Berlim 1890 Novos exames de direito Inicia uma pesquisa sobre o campesinato na Prússia Oriental a pedido da Verein für Sozialpolitik 1891 História agrária de Roma e sua significação para o direito público e privado Esta defesa de tese na qual Weber teve um diálogo com Mommsen lhe valeu um cargo na Faculdade de Direito de Berlim Inicia então uma carreira de professor universitário 1 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 2 Entrega o seu relatório sobre a situação dos trabalhadores rurais na Alemanha Oriental 893 Casamento com Marianne Schnitger 894 Nomeado professor de Economia Política na Universidade de Friburgo As tendências da evolução da situação dos trabalhadores rurais da Alemanha Oriental 5 Viagem à Escócia e à Irlanda Inicia seu curso em Friburgo com uma conferência sobre O Estado Nacional e a política econômica 6 Aceita uma cadeira na Universidade de Heidelberg onde Knies acaba de se apo sentar 7 Doença nervosa séria que o obriga a interromper seus trabalhos durante quatro anos Viagem à Itália à Córsega e à Suíça para tentar apaziguar sua ansiedade 9 M Weber deixa voluntariamente de pertencer à Liga Pangermanista 2 Retoma seu curso na Universidade de Heidelberg mas não poderá mais ter uma vida universitária tão ativa como antes 3 Funda com Wemer Sombart os Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik 904 Viagem aos Estados Unidos da América para participar do Congresso de Ciên cias Sociais em SaintLouis O Novo Mundo lhe causa profunda impressão Em SaintLouis faz uma conferência sobre o capitalismo e a sociedade rural na Ale manha Publicação da primeira parte de A ética protestante e o espírito do capitalismo e um ensaio sobre A objetividade do conhecimento nas ciências e políticas sociais 5 A revolução russa levao a se interessar pelos problemas do Império dos czares e aprender o russo para ler os documentos originais Publicação da segunda parte de A ética protestante e o espírito do capitalismo 906 A situação da democracia burguesa na Rússia A evolução da Rússia para um constitucionalismo de fachada Estudos críticos para servir à lógica das ciências da cultura As seitas protestantes e o espírito do capitalismo 907 Recebe uma herança o que lhe permite aposentarse e se dedicar à ciência 8 Interessase pela psicossociologia industrial e publica dois estudos sobre o tema Em sua casa em Heidelberg recebe a maioria dos cientistas alemães da época Windelband Jellinek Troeltsch Naumann Sombart Simmel Michels Tõnnies Orienta jovens estudantes universitários como Georg Lukács e Karl Lõwenstein Organiza a Associação Alemã de Sociologia e lança uma coleção de obras de ciên cias sociais 09 As relações de produção na agricultura do mundo antigo Começa a redigir Economia e sociedade 10 No congresso da Associação Alemã de Sociologia toma posição contra o racismo 12 Deixa o Comitê Diretor da Associação Alemã de Sociologia devido a divergên cia sobre a questão da neutralidade axiológica J13 Ensaio sobre algumas categorias da sociologia compreensiva A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 511 1914 Quando estoura a guerra Max Weber pede para ser reintegrado ao serviço mili tar Até o fim de 1915 dirige um grupo de hospitais implantados na região de Hei delberg 1915 Publicação de A ética econômica das religiões universais Introdução e Con fucionismo e Taoísmo 19161917 Várias missões oficiosas em Bruxelas Viena e Budapeste multiplica os es forços para convencer as autoridades alemãs a evitar uma ampliação da guerra mas ao mesmo tempo afirma a vocação da Alemanha para a política mundial e vê na Rússia a principal ameaça Publicação em 1916 dos capítulos da Sociolo gia da religião relativos ao Induísmo e Budismo e em 1917 O Judaísmo An tigo 1918 Em abril curso de verão na Universidade de Viena quando apresenta sua socio logia da política e da religião como uma Crítica positiva da concepção mate rialista da história No inverno pronuncia duas conferências na Universidade de Munique A pro fissão e a vocação do cientista A profissão e a vocação do homem político Após a capitulação tomase consultor da delegação alemã em Versalhes Publica o ensaio sobre o Sentido da neutralidade axiológica nas ciências so ciológicas e econômicas 1919 Aceita uma cátedra na Universidade de Munique onde sucede a Brentano O curso que dá no período 19191920 será publicado em 1924 com o mesmo títu lo História econômica geral Max Weber que apoiou sem entusiasmo a República e que vê em Munique a ditadura revolucionária de Kurt Eisner participa da comissão incumbida de redi gir a Constituição de Weimar Continua a redigir Economia e sociedade que começa a ser impresso no outono desse ano Mas o livro ficará inacabado 1920 Em 14 de junho morre Max Weber em Munique 1922 Publicação de Economia e sociedade por Marianne Weber Outras edições au mentadas aparecerão em 1925 e 1956 Notas 1 Paris Plon 1965 Esta coletânea compreende a tradução para o francês dos qua tro ensaios epistemológicos mais importantes de Max Weber A objetividade do co nhecimento nas ciências e políticas sociais que é de 1904 Estudos críticos para servir à lógica das ciências da cultura de 1906 o Ensaio sobre alguns conceitos da so ciologia compreensiva de 1913 e o Ensaio sobre o sentido da neutralidade axiológi ca nas ciências sociológicas e econômicas de 19171918 A tradução francesa da célebre conferência pronunciada em Munique em 1919 com o título Wissenschaft ais Beruf e cujo texto original foi publicado na Alemanha na coletânea Gesammelte Aufsãtze zur Wissenschaftslehre está incluída no livro Le savant et le politique Paris Plon 1959 A coletânea alemã inclui ainda outros quatro ensaios de maior importância que nunca foram traduzidos para outra língua Roscher und Knies und die logischen Probleme der historischen Nationalõkonomie R Stammlers Uberwindung der materialistischen Geschichtsauffassung Die Grenznutzlehre und das psychophysis che Grundgesetz Energetische Kulturtheorien 2 São numerosos os estudos de Max Weber sobre a antiguidade Não podemos esquecer que um dos seus primeiros professores foi o grande historiador Mommsen e que deve sua formação às faculdades de Direito onde na época na Alemanha como na França o Direito Romano tinha um lugar preponderante Além do livro intitulado Agrarverhãltnisse im Altertum cuja edição definitiva é de 1909 Weber escreveu um estudo sobre As causas sociais da decadência da civilização antiga 1896 e sua tese era sobre A história agrária de Roma 1891 Nenhum desses estudos foi traduzido em francês A história econômica geral foi o curso dado em Munique em 1919 um pouco antes de morrer Esse curso foi publicado em 1923 Existe também uma tradução ingle sa Os trabalhos de Weber sobre os problemas políticos econômicos e sociais da Alema nha e da Europa contemporânea são muito variados e estão dispersos Encontramse em três coletâneas Gesammelte politische Schriften Gesammelte Aufsãtze zur Sozialund Wirtschaftsgeschichte Gesammelte Aufsãtze zur Soziologie und Sozialpolitik O estu do sobre as tendências na evolução da situação dos trabalhos rurais na Alemanha Orien tal foi publicado na segunda coletânea Foi realizado por Weber em 18901892 a partir A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 513 de uma pesquisa nessa região que lhe havia sido solicitada pela Verein für Sozialpolitik Weber mostrava nesse estudo que os grandes proprietários de terra do Leste do Elba para reduzir seus custos salariais não hesitavam em importar mãodeobra de origem eslava russa e polonesa para suas propriedades forçando assim os trabalhadores de raça e cultura germânica a emigrar para as cidades industriais do Oeste Denunciava esta ati tude capitalista dos junkers que desgermanizavam assim o Leste alemão 3 Os estudos de sociologia das religiões foram reunidos nos Gesammelte Aufsãtze zur Religionssoziologie que compreendem três tomos O tomo I contém os dois estudos sobre o protestantismo e o espírito do capitalismo e a primeira parte de A ética econô mica das religiões universais Introdução Confucionismo e Taoísmo e Zwischenbe trachtung O tomo II compreende a segunda parte de A ética econômica das religiões Hinduísmo e Budismo O tomo III contém a terceira parte O Judaísmo Antigo Na época da sua morte Max Weber projetava acrescentar um IV tomo dedicado ao Islã Para ter uma visão completa da sociologia religiosa é necessário acrescentar aos textos dessa coletânea os capítulos de Wirtschaft und Gesellschaft relativos à religião principalmen te o capítulo V da segunda parte Typen religiõser Vergemeinschaftung 4 Ver a Bibliografia 5 Chamamos comportamento racional por finalidade aquele que se orienta ex clusivamente pelos meios dos quais fazemos uma representação subjetivamente como sendo adequados aos fins percebidos subjetivamente de maneira unívoca Essais sur la théorie de la Science Paris Plon 1965 p 328 6 Estas duas conferências pronunciadas em Munique em 1919 foram traduzidas para o francês e publicadas sob o título Le savant et le politique Paris Plon 1959 O texto alemão de Politik ais Beruf faz parte dos Gesammelte Politische Schriften 7 O método de Tucídides não se encontra na alta erudição dos historiadores chi neses Não há dúvida de que Maquiavel teve precursores na índia mas falta a todos os escritores políticos asiáticos um método sistemático comparável ao de Aristóteles e sobretudo faltamlhes conceitos racionais As formas de pensamento estritamente siste máticas indispensáveis a toda doutrina jurídica racional próprias ao direito romano e ao seu herdeiro o direito ocidental não existem em nenhum outro lugar E isso a despeito de ter havido verdadeiros inícios na índia com a escola Mimâmsâ a despeito de vastas codificações como as da Ásia anterior e a despeito de todos os livros de leis indianos ou outros Além disso só o Ocidente possui um edifício como o direito canônico Uéthique protestante et Vesprit du capitalisme Paris Plon 1964 Introdução p 12 8 É e continua sendo verdade que na esfera das ciências sociais uma demonstra ção científica metodologicamente correta que pretende ter atingido seu fim também deve poder ser reconhecida como exata por um chinês ou mais precisamente deve ter este objetivo embora talvez não seja possível realizálo plenamente devido a uma insu ficiência de ordem material De qualquer forma é verdade que a análise lógica de um ideal destinada a desvendar seu conteúdo e seus axiomas últimos bem como a explica ção das conseqüências que dele decorrem lógica e praticamente quando se considera que nosso esforço logrou êxito devem ser válidas também para um chinês embora este possa nada compreender dos nossos imperativos éticos e até mesmo rejeitar o que seguramente acontecerá muitas vezes o próprio ideal e as avaliações concretas que 514 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO dele decorrem sem contestar em absolutamente nada o valor científico da análise teó rica Essais sur la théorie de la Science p 131 9 Existem ciências que estão destinadas a permanecer sempre jovens E o caso de todas as disciplinas históricas e todas aquelas para as quais o fluxo eternamente em movimento da civilização traz sem cessar novos problemas Por essência sua tarefa se defronta com a fragilidade de todas as construções idealtípicas mas são inevitavelmen te obrigadas a elaborar continuamente outras Nenhum desses sistemas de pensamen to que não podemos desprezar se quisermos apreender os elementos cada vez mais sig nificativos da realidade pode esgotar sua riqueza infinita Não são nada mais do que tentativas para pôr ordem no caos dos fatos que fizemos entrar no círculo de nosso inte resse sobre a base a cada vez do estado de nosso conhecimento e das estruturas con ceituais que estão cada vez à nossa disposição O aparelho intelectual que o passado desenvolveu por uma elaboração reflexiva o que quer dizer na verdade por uma trans formação reflexiva da realidade imediata e por sua integração nos conceitos que cor respondiam ao estado do conhecimento e à orientação da curiosidade está perpetua mente em processo com aquilo que nós podemos e queremos adquirir em novos conhe cimentos da realidade O progresso de trabalho nas ciências da cultura se realiza por esse debate O resultado é um processo continuo de transformação de conceitos por meio dos quais procuramos perceber a realidade A história das ciências da vida social em conseqüência é e permanece uma contínua alternância entre a tentativa de ordenar teoricamente os fatos por uma construção de conceitos decompondo os quadros de pensamento assim obtidos graças a uma ampliação e um deslocamento do horizonte da ciência e a construção de novos conceitos sobre a base assim modificada Não se quer significar com isso de modo algum que seria errado construir em geral sistemas de conceitos porque toda ciência mesmo a simples história descritiva trabalha com a pro visão de conceitos de sua época Ao contrário o que se mostra é o fato de que nas ciên cias da cultura humana a construção de conceitos depende do modo de colocar os pro blemas que por sua vez varia com o próprio conteúdo da civilização A relação concei toconcebido traz para as ciências da cultura a fragilidade de todas as sínteses O valor das grandes tentativas de construções conceituais em nossa ciência consistia geralmen te em mostrarem os limites da significação do ponto de vista que lhes servia de fun damento Os maiores progressos no campo das ciências sociais estão ligados positivamen te ao fato de que os problemas práticos da civilização se deslocam e que eles tomam a forma de uma crítica da construção dos conceitos Essais sur la théorie de la Science pp 202204 10 Allgemeine Psychopathologie traduzido para o francês por Kastler e Mun dousse sob o título Psychopatologie générale Paris 1923 3 edição Esta tradução foi revista em parte por JeanPaul Sartre e PaulYves Nizam 11 Rickert 18651936 foi professor de filosofia em Heidelberg Suas obras prin cipais são Die Grenzen der naturwissenschaftlichen Begriffsbildung 18961902 Die Probleme der Geschichtsphilosophie 1904 Kulturwissenschaft und Naturwissenschaft 1899 Para uma análise crítica da sua obra vide Raymond Aron La philosophie criti que de Vhistoire Essai sur une théorie allemande de l histoire Paris Vrin 3 edição 1964 pp 113157 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 515 12 Um tipo é obtido acentuandose unilateralmente um ou vários pontos de vista e encadeando uma infinidade de fenômenos dados isoladamente difusos e discretos que são encontrados ora em grande ora em pequeno número e que não são encontra dos em certos lugares que são ordenados segundo os pontos de vista anteriores esco lhidos unilateralmente para formar um quadro de pensamento homogêneo einheitlich Um quadro como esse nunca será encontrado empiricamente em lugar algum na sua pure za conceituai é uma utopia O que compete ao trabalho histórico é determinar em cada caso particular o quanto a realidade se aproxima ou se afasta desse quadro ideal em que medida é preciso por exemplo atribuir no sentido conceituai a qualidade de eco nomia urbana às condições econômicas de determinada cidade Aplicado com critério este conceito dá a ajuda específica que se espera dele em benefício da pesquisa e da cla reza Essais sur la théorie de la Science p 181 O tipo ideal é um quadro de pensamento não é a realidade histórica e sobretu do não é a realidade autêntica e serve ainda menos como esquema no qual se pudes se ordenar a realidade a título de exemplar Não significa outra coisa que um conceito limite grenzbegriff puramente ideal com o qual se mede messeri a realidade para tomar claro o conteúdo empírico de alguns de seus elementos importantes e com o qual ela é comparada Esses conceitos são imagens Gebilde nas quais nós construímos rela ções utilizando a categoria de possibilidade objetiva que nossa imaginação formada e orientada de acordo com a realidade julga adequadas Nessa função o tipo ideal é em particular uma tentativa para apreender as indivi dualidades históricas ou seus diferentes elementos em conceitos genéticos Tomemos por exemplo as noções de Igreja e de seita Elas se deixam analisar por meio da pura clas sificação em um complexo de características nas quais não apenas a fronteira entre os dois conceitos mas também seu conteúdo permanecerão sempre indistintos Pelo contrá rio se me proponho a apreender geneticamente o conceito de seita isto é se eu o con cebo em relação a certas significações importantes para a cultura que o espírito de seita manifestou na civilização moderna então certas características precisas de um e de outro desses dois conceitos se tomam essenciais porque comportam uma relação causai ade quada em relação à sua ação significativa Ibid pp 185186 13 A construção dos tipos ideais em relação aos valores é em abstrato distinta dos juízos de valor No trabalho concreto do cientista pçrém é freqüente o deslize Todas as exposições que têm como tema a essência do cristianismo são tipos ideais que quando reivindicam a qualidade de uma exposição histórica do dado empí rico têm apenas necessária e constantemente uma validade relativa e problemática por outro lado têm um grande valor heurístico para a pesquisa e um grande valor sistemático para a exposição se forem utilizados simplesmente como meios conceituais para com parar e medir a realidade Nessa função eles são mesmo indispensáveis Mas existe ainda um outro elemento que regra geral está ligado a esse tipo de apresentações idealtípicas que complicam ainda mais a sua significação Em geral elas se propõem a ser e também podem sêlo inconscientemente tipos ideais não apenas no sentido lógico mas também no sentido prático isto é tipos exemplares vorbildli che Typeri que no nosso exemplo contêm aquilo que o cristianismo deve ter sein soll segundo o ponto de vista do cientista isto é aquilo que segundo ele é essencial 516 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO nessa religião pelo fato de ela representar um valor permanente Sendo assim essas des crições contêm então conscientemente ou o que é mais freqüente inconscientemen te os ideais que o cientista associa com o cristianismo quando o avalia Wertend isto é as tarefas e os fins segundo os quais o sábio orienta sua própria idéia do cristianis mo Naturalmente esses ideais podem ser diferentes e sem dúvida sempre o serão dos valores aos quais os contemporâneos da época estudada por exemplo os primeiros cris tãos associavam por seu lado o cristianismo Nesse caso as idéias evidentemente não são mais auxiliares puramente lógicos nem conceitos com os quais a realidade é medi da por comparação mas sim ideais a partir dos quais se julga a realidade avaliandoa Não se trata mais então do procedimento puramente teórico da relação do empírico a seus valores Biziehung auf Werté mas propriamente juízos de valor Werturteile que são acolhidos no conceito de cristianismo Como o tipo ideal reivindica nesse caso uma validade empírica ele adentra a área da interpretação avaliativa do cristianismo aban donamos o domínio da ciência e encontramonos em presença de uma profissão de fé pessoal e não mais de uma construção conceituai propriamente idealtípica Por mais marcante que seja esta distinção quanto aos princípios constatamos que a confusão entre essas duas significações fundamentalmente diferentes da noção de idéia invade com muita freqüência a condução do trabalho histórico Ela espreita principalmente o historiador logo que ele se põe a expor sua própria interpretação de uma personalidade ou de uma época Contrariamente aos padrões éticos estabelecidos que Schlõsser utilizou dentro do espírito do racionalismo o historiador moderno de es pírito relativista que se propõe por um lado a compreender em si mesma a época sobre a qual trabalha e que por outro lado insiste em fazer um julgamento sente a neces sidade de tomar na própria matéria do seu estudo os padrões de seus julgamentos isto quer dizer que ele deixa surgir a idéia no sentido de ideal da idéia no sentido de tipo ideal Além disso a atração estética desse procedimento levao sem cessar a apa gar a linha que separa as duas ordens daí esta meia medida que por um lado não pode privarse de fazer juízos de valor e que por outro lado faz de tudo para não assu mir a responsabilidade desses julgamentos A isso é necessário opor o dever elementar do controle científico de si mesmo que é também o único meio de nos preservar das con fusões convidandonos a fazer uma distinção estrita entre a relação que compara a reali dade com tipos ideais no sentido lógico e a apreciação valorizante dessa realidade com base em ideais O tipo ideal como nós o entendemos é repito algo totalmente indepen dente da apreciação avaliativa não tem nada em comum com uma outra perfeição sua relação é puramente lógica Existem tipos ideais de bordéis assim como de religiões no que se refere aos primeiros existem aqueles que do ponto de vista da ética policial con temporânea poderiam aparecer como tecnicamente oportunos ao contrário de outros que não o seriam Essais sur la théorie de la science pp 191194 14 A teoria abstrata da economia nos oferece um exemplo desses tipos de sínte ses que designamos habitualmente por idéias ideen dos fenômenos históricos Com efeito ela nos apresenta um quadro ideal Idealbild dos acontecimentos que ocorrem no mercado de bens no caso de uma sociedade organizada segundo o princípio da tro ca da livre concorrência e de uma atividade estritamente racional Esse quadro de pen samento Gedankenbild reúne relações e acontecimentos determinados da vida histó rica num cosmos não contraditório de relações pensadas Por seu conteúdo essa cons A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 517 tração tem o caráter de uma utopia que se obtém acentuando pelo pensamento gedank liche Steingerung determinados elementos da realidade Sua relação com os fatos que são dados empiricamente consiste simplesmente no seguinte ali onde se constata ou se suspeita que relações do tipo das que são apresentadas abstratamente na construção ci tada anteriormente no caso os acontecimentos que dependem do mercado tive ram a um certo grau uma ação sobre a realidade podemos representar pragmaticamen te de modo intuitivo e compreensível a natureza particular dessas relações segundo um tipo ideal Idealtypus Esta possibilidade pode ser preciosa até mesmo indispensável para a pesquisa assim como para a exposição dos fatos Quanto à pesquisa o conceito idealtípico se propõe a formar o julgamento de imputação não é em si mesmo uma hi pótese mas procura guiar a elaboração das hipóteses Por outro lado não é uma expo sição do real mas se propõe a dotar a exposição de meios de expressão unívocos É portanto a idéia da organização moderna historicamente dada da sociedade numa eco nomia de troca idéia esta que se deixa desenvolver por nós exatamente segundo os mesmos princípios lógicos que serviram por exemplo para construir a da economia urbana na Idade Média sob a forma de um conceito genético genetischer Begriff Neste último caso o conceito de economia urbana não é formado estabelecendo uma média dos princípios econômicos que existiram efetivamente na totalidade das cidades examinadas mas sim justamente construindo um tipo ideal Essais sur la théorie de la Science pp 178181 15 O destino de uma época de cultura que provou do fruto da árvore da sabedo ria é saber que não podemos ler o sentido do devenir mundial no resultado por mais per feito que seja da exploração que possamos fazer desse devenir mas que nós mesmos é que temos de ser capazes de criálo que as concepções do mundo não podem ser nun ca o produto de um progresso do saber empírico e que em conseqüência os ideais pro fundos que atuam mais fortemente sobre nós só se atualizam na luta contra ideais que são tão sagrados para os outros quanto os nossos o são para nós Essais sur la théorie de la Science p 130 16 Max Weber retomou o problema da definição do capitalismo no fim da sua vi da no curso de Munique sobre a história econômica geral Encontramonos no capitalismo naquele ponto em que numa economia de produ ção as necessidades de um grupo humano são cobertas por meio da empresa pouco im portando a natureza dessas necessidades a serem satisfeitas e a empresa capitalista ra cional é de modo particular uma empresa que comporta um cálculo de capitais isto é uma empresa de produção que calcula e controla a rentabilidade pelo cálculo graças à contabilidade moderna e à realização de um balanço exigido pela primeira vez em 1608 pelo teórico holandês Simon Stevin É claro que as medidas em que uma unidade eco nômica pode se orientar de modo capitalista podem ser radicalmente diferentes Alguns aspectos do suprimento das necessidades podem ser organizados segundo o principio capitalista outros de um modo não capitalista na base do artesanato ou da economia de subsistência Wirtschaftsgeschichte citado por Julien Freund in Sociologie de Max Weber p 150 17 Max Weber definiu a burocracia no Capítulo 6 da terceira parte de Wirtschaft und Gesellschaft Julien Freund resumindo essa passagem e algumas outras expõe as sim o pensamento weberiano 518 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A burocracia é o exemplo mais típico da dominação legal Baseiase nos seguin tes princípios 1 A existência de serviços definidos portanto de competências rigoro samente determinadas pelas leis ou regulamentos de modo que as funções são nitida mente divididas e distribuídas assim como os poderes de decisão necessários ao cum primento das tarefas correspondentes 2 A proteção dos funcionários no exercício de suas funções em virtude de um estatuto inamovibilidade dos juizes por exemplo Geralmente o indivíduo se toma funcionário para toda a vida de modo que ao lado de um outro trabalho o serviço do Estado se toma uma profissão principal e não uma ocupa ção secundária 3 A hierarquia das funções o que significa que o sistema administra tivo é fortemente estruturado em serviços subalternos e cargos de direção com possi bilidade de se apelar de uma instância para a instância superior esta estrutura é em geral monocrática e nãocolegiada e mostra uma tendência para a maior centralização 4 O recmtamento se faz por concurso exames ou títulos o que exige uma formação especializada por parte dos candidatos Em geral o funcionário é nomeado raramente eleito com base na seleção livre e no compromisso contratual 5 A remuneração regu lar do funcionário sob a forma de um salário fixo e de uma aposentadoria quando deixa o serviço do Estado As remunerações são hierarquizadas com base na hierarquia inter na da administração e da importância das responsabilidades 6 O direito da autorida de de controlar o trabalho de seus subordinados eventualmente por meio da instituição de uma comissão de disciplina 7 A possibilidade de os funcionários progredirem com base em critérios objetivos e não segundo a descrição da autoridade 8 A separação completa entre a função e o homem que a ocupa porque nenhum funcionário poderia ser proprietário da sua tarefa ou dos meios da administração Essa descrição só tem valor evidentemente para configurar o estado moderno porque o fenômeno burocrático é mais antigo uma vez que já o podemos encontrar no Egito antigo na época do principado romano em particular depois do reino de Dio cleciano na Igreja romana a partir do séc XIII na China desde a época de Shihoang ti A burocracia modema se desenvolveu sob a proteção do absolutismo real no início da era modema As antigas burocracias tinham um caráter essencialmente patrimonial isto é os funcionários não gozavam das garantias estatutárias atuais nem da remunera ção em espécie A burocracia que conhecemos desenvolveuse com a economia finan ceira modema mas não é possível no entanto estabelecer uma relação unilateral de causalidade porque outros fatores entram em consideração o racionalismo do direito a importância do fenômeno de massas a centralização crescente devida às facilidades de comunicação e às concentrações de empresas a ampliação da intervenção estatal nos mais diversos campos da atividade humana e sobretudo o desenvolvimento da racio nalização técnica Sociologie de Max Weber pp 205206 18 A ética protestante e o espírito do capitalismo foi e continua a ser o livro mais conhecido de Max Weber Foi amplamente comentado e suscitou o aparecimento de toda uma literatura em razão da importância dos problemas históricos evocados e do seu caráter de refutação da versão corrente do materialismo histórico Citemos entre as resenhas recentes a controvérsia entre Herbert Lüthy e Julien Freund Preuves julhose tembro de 1964 o artigo bibliográfico de Jacques Ellul Boletim do SEDEIS 20 de dezembro de 1964 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 519 Citemos entre a literatura sobre o protestantismo e o capitalismo A Bieler La pen sée économique et sociale de Calvin Genebra Georg 1963 R H Tawney La religion et Vessor du capitalisme Paris Rivière 1951 W Sombart Le bourgeois Paris Payot 1966 H Sée Les origines du capitalisme moderne Paris Armand Colin 1926 H Sée Dans quelle mesure puritains et juifs ontils contribué au progrès du capitalisme moderne Revue historique 1927 M Halbwachs Les origines puritaines du capitalisme moder ne Revue d histoire et de philosophie religieuses marçoabril de 1925 H Hauser Les débuts du capitalisme Paris 1927 B Groethuysen Les origines de Vesprit bourgeois en France Paris Gallimard 1927 H Lüthy La banque protestante en France de la révo cation de VÊdit de Nantes à la Révolution Paris SEVPEN 19601962 2 vols 19 Algumas vezes a teoria da dominação carismática gerou malentendidos por que se procurou ver nela a posteriori uma prefiguração do regime nazista Alguns ten taram até mesmo fazer de Weber um precursor de Hitler embôra ele apenas se limi tasse à análise sociológica e idealtípica de uma forma de dominação que sempre exis tiu Houve regimes carismáticos antes de Hitler e houve outros depois como por exem plo o de Fidel Castro Mesmo supondo que a análise weberianapossa ter ajudado os nazistas a adquirir uma consciência mais nítida de sua posição ainda assim a acusação precedente não é menos ridícula porque eqüivale a responsabilizar o médico pela doen ça que ele diagnostica Se fosse assim a sociologia política deveria transformarse em questão de bons sentimentos renunciar ao exame objetivo de certos fenômenos e por fim renegarse como ciência para fazer condenações que agradariam aos que reduzem o pensamento às puras avaliações ideológicas Uma atitude assim seria contrária à dis tinção que Max Weber sempre fez entre constatação empírica e juízo de valor ao seu princípio da neutralidade axiológica em sociologia e ao dever que ele exige do cientista de nunca fugir diante do exame de realidades que lhe pareçam pessoalmente desagradá veis Além disso os censores de Max Weber negligenciaram o essencial de sua concep ção do tipo carismático Em vez de procurar aí a teoria de um movimento histórico par ticular que ele não conheceu ganhariam mais lendo as páginas consagradas a esse tipo de dominação elas contêm de modo explícito seu pensamento sobre o fenômeno revo lucionário porque ao redigilas ele pensava sobretudo em Lenin ou em Kurt Eisner este último citado explicitamente Julien Freund Sociologie de Max Weber pp 211212 20 Sobre Max Weber e a política alemã vide J P Mayer Max Weber in German Politics Londres Faber 1956 W Mommsen Max Weber und die Deutsche Politik Tü bingen Mohr 1959 21 Marianne Weber relata a conversa que seu marido teve em 1919 com Ludendorff que ele considerava um dos responsáveis pelo desastre alemão Depois de um diálogo de surdos em que Max Weber procurou convencêlo a se sacrificar apresentandose aos Alia dos como prisioneiro de guerra a conversa se orienta para a situação política da Alemanha Ludendorff acusa Max Weber e a Frankfurter Zeitung da qual Max Weber era um dos principais editorialistas de se constituírem advogados da democracia Weber E você pensa que eu considero essa porcaria que temos atualmente como democracia Ludendorff Se você fala assim talvez nós possamos chegar a um acordo W Mas a porcaria de antes também não era monarquia 520 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO L O que você entende por democracia W Na democracia o povo escolhe um chefe Führer em quem deposita a sua confiança Depois aquele que foi escolhido diz Agora calai a boca e obedecei O po vo e os partidos não têm mais direito de colocar seu grão de sal L Uma tal democracia me agradaria W Mais tarde o povo pode julgar Se o chefe cometeu erros que se enforque Marianne Weber Max Weber ein Lebensbild Tübingen J C B Mohr 1926 pp 664665 22 Max Weber und die Deutsche Politik Tübingen 1959 23 Archives européennes de sociologie t V 1964 2 pp 190238 24 As citações são de uma conferência pronunciada em Viena em 13 de junho de 1918 diante de oficiais da monarquia austrohúngara e reproduzidas em Gesammelte Aufsãtze zur Soziologie und Sozialpolitik e em Max Weber Werk und Person por E Baumgarten Tübingen 1964 pp 243270 Bibliografia OBRAS DE MAX WEBER Para as obras de Max Weber o leitor poderá consultar os apêndices sobre os traba lhos do autor publicados anexos às traduções francesas já editadas pela Livraria Plon Essas bibliografias compreendem não apenas as obras em alemão a maior parte pu blicada por Mohr em Tübingen mas também as referências às traduções inglesas es panholas e italianas Já estão publicadas em francês Paris Plon Essais sur la théorie de la Science 1965 trad J Freund trad dos ensaios mais impor tantes da coletânea Gesammelte Aufsãtze Wissenschaftslehre Le savant et le politique 1959 trad J Freund trad de Politik ais Beruf e Wissenschaft ais Beruf Léthique protestante et Vesprit du capitalisme 1964 trad J Chavy trad de Die pro testantische Ethik und der Geist des Kapitalismus e de Die protestantischen Sekten und der Geist des Kapitalismus Em 1967 tinha sido anunciada uma tradução integral de Wirtschaft und Gesellschaft A 4 edição alemã foi ampliada e estabelecida por J Winckelmann Tübingen Mohr 1956 há uma edição italiana integral Economia e società Milão Edizioni di Com munità 1962 e ainda traduções inglesas infelizmente incompletas e dispersas From Max Weber Essays in Sociology Nova York Oxford University Press A Galaxy Book 1958 trad Gerth e Mills Max Weber on Law in Economy and Society Cambridge Mass Harvard University Press 1954 trad E A Shils e M Rheinstein The City Glencoe The Free Press 1958 trad D Martindale e G Neuwirth The Sociology of Religion Boston Beacon Press 1963 trad E Fischoff The Theory of Social and Economic Organisation Nova York Oxford University Press 1947 trad A M Henderson e T Parsons 522 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO OBRAS SOBRE MAX WEBER Aron Raymond Introdução à tradução de Politik ais Beruf e de Wissenschaft ais Beruf Max Weber Le savant et lepolitique Paris Plon 1959 pp 957 Aron Raymond La philosophie critique de l histoire Essai sur une théorie allemande de Vhistoire Paris Vrin 3 ed 1964 Somente o cap IV pp 219273 Les limites de 1objectivité historique et la philosophie du choix é sobre a obra de Max Weber Aron Raymond La sociologie allemande contemporaine Paris PUF 2 ed 1950 O capítulo III pp 97153 é uma exposição da obra de Max Weber Essas duas obras contêm uma grande bibliografia dos trabalhos alemães consagrados a Max Weber anteriores a 1938 Baumgarten Eduard Max Weber Werk und Person Tübingen J C B Mohr 1964 Bendix R Max Weber an Intellectual Portrait Nova York Anchor Books Doubleday Co 1962 Fleischmann E De Weber à Nietzsche archives européennes de sociologie t V 1964 n 2 pp 190238 Freund J Introdução à tradução de Wissenschaftslehere Max Weber Essais sur la théo rie de la science Paris Plon 1965 pp 9116 Freund J Sociologie de Max Weber Paris PUF 1966 bibliografia Gerth H H e Gerth H I Bibliography on Max Weber Social Research vol XVI 1949 Gerth H H e Mills C Wright Introdução aos textos extraídos da obra de Max Weber publicados com o título de From Max Weber Essays in Sociology Nova York Oxford University Press A Galaxy Book 1958 pp 374 Halbwachs M Économistes et historiens Max Weber un homme une oeuvre Annales dhistoire économique et sociale n 1 jan 1929 Hughes H Stuart Consciousness and Society Nova York Alfred A Knopf 2aed 1961 Max Weber und die Soziologie heute Rapports et débats du XVe Congrès de la Société allemande de sociologie Tübingen J C B Mohr 1965 A Universidade de Munique publicou uma obra coletiva Max Weber por ocasião do centenário do seu nascimento Berlim Duncker und Humblot 1966 O livro foi publicado por Karl Engisch Bernhard Pfister Johannes Winckelmann Mayr J P Max Weber in German Politics Londres Faber T ed 1956 MerleauPonty M Les aventures de la dialectique Paris Gallimard 1955 pp 1542 Mommsen W J Max Weber und die deutsche Politik 18901920 Tübingen Mohr 1959 Parsons T The Structure of Social Action Glencoe The Free Press 2 ed 1949 Revue internationale des sciences sociales publicada pela UNESCO vol XVII 1965 n 1 quatro artigos sobre a atualidade de Max Weber Bendix R Max Weber et la sociologie contemporaine Mommsen W La sociologie politique de Max Weber et sa philosophie de lhistoire universelle Parsons T Évaluation et objectivité dans le domaine des sciences sociales une interprétation des travaux de Max Weber Rossi P Objectivité scientifique et présuppositions axiologiques Strauss L Droit naturel et histoire trad Paris Plon 1954 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO Weber Marianne Max Weber ein Lebensbild Tübingen J C B Mohr 1926 bib grafia da obra de Max Weber Weinreich M Max Weber Vhomme et le savant Paris Les Presses Modemes 193 Winckelmann Johannes Max Weber Soziologie weltgeschitliche Analysen Poi Krõner Taschenausgabe n 229 OBRAS EM PORTUGUÊS Ciência e política duas vocações prefácio de Manoel T Berlinck tradução de L nidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota 2 ed São Paulo Cultrix 1972 Ensaios de sociologia org e introd de H H Gerth e C Wright Mills tradução Waltensir Dutra revisão técnica do prof F H Cardoso Rio de Janeiro Zahar 19 Ensaios de sociologia e outros escritos seleção de Maurício Tragtenberg tradução M Tragtenberg e outros São Paulo Abril Cultural 1974 Os Pensadores 37 Ética protestante e o espírito do capitalismo tradução de M Irene de Q F Szmrecsá e Tamás J M K Szmrecsányi São Paulo Pioneira 1967 História geral da economia tradução de Calógera A Pajuaba São Paulo Mestre J 1968 Freund Julien Sociologia de Max Weber tradução de Luís Cláudio de Castro e Coí Rio de Janeiro Forense 1970 Gerth Hans Heinrich Ensaios de sociologia org e introd de H H Gerth e C Wrij Mills tradução de Waltensir Dutra revisão técnica de F H Cardoso Rio de Janei Zahar 1964 Raymond Aron As Etapas do Pensamento Sociológico 316 A769s Conclusão Émile Durkheim Vilfredo Pareto e Max Weber pertencem a três nações di ferentes e ao mesmo período histórico Sua formação intelectual não foi a mes ma e contudo os três se esforçaram por promover a mesma disciplina Estas constatações nos levam a propor questões que permitem traçar um paralelismo do seu pensamento e da sua obra Quais foram os elementos pessoais e nacionais que marcaram cada uma destas três doutrinas sociológicas Qual foi o contexto histórico em que se situaram estes três autores e que interpretações análogas ou distintas eles deram da conjuntura em que viveram Qual foi a con tribuição da sua geração ao progresso da sociologia O tom destes três sociólogos é diferente Durkheim é dogmático Pareto irô nico Max Weber patético Durkheim demonstra uma verdade que pretende ser científica e moral Pareto elabora um sistema científico que concebe como par cial e provisório e que a despeito da sua intenção de objetividade ironiza as ilu sões dos humanitaristas as esperanças dos revolucionários e desmascara os ines crupulosos e os ingênuos os violentos e os plutocratas Max Weber se esforça por compreender o sentido de todas as existências individuais e coletivas im postas ou escolhidas sem dissimular o peso das necessidades sociais ou a obri gação inelutável de tomar decisões que nunca poderão ser demonstradas cien tificamente O tom de cada um destes autores é explicado pelo seu temperamen to pessoal e pelas condições nacionais em que viveram Durkheim foi um livredocente de filosofia francês e o estilo dos seus livros foi influenciado pelo menos superficialmente pelo das dissertações a que foi obrigado a fim de vencer as barreiras sucessivas que a Universidade francesa an tepõe às ambições dos intelectuais Este professor universitário da III Repúbli ca acreditava na ciência e no seu valor ético com uma paixão de profeta É ou pretende ser cientista e reformador social observador dos fatos e criador de um sistema moral Esta combinação hoje pode nos parecer estranha mas não pare 526 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO cia assim no princípio do século numa época em que a fé na ciência era quase uma religião A expressão mais forte desta combinação de fé e de ciência é o conceito de sociedade Na sociologia de Durkheim é o princípio explicativo a fonte dos valores superiores e o objeto de uma forma de adoração Para Durkheim francês de origem judia professor universitário à procura de resposta para os problemas tradicionais da França isto é para os conflitos da Igreja e do Estado ou da moral religiosa e da moral laica a sociologia era o fundamento da ética Explicitada pela ciência sociológica a sociedade propõe como valores supremos da idade moderna o respeito pela pessoa humana e a autonomia do julgamento individual Esta tentativa de encontrar na ciência nova o fundamento de uma mo ral laica sociológica e racionalista é característica de um momento histórico Passando de Durkheim a Pareto abandonamos o normalien livredocen te em filosofia para encontrar um patrício italiano sem ilusões engenheiro hostil à metafísica e um observador sem preconceitos O estilo não é mais o do professor de ética mas o do aristocrata refinado e culto que não deixa de ter al guma simpatia pelos bárbaros Este erudito está longe de ser um cientista puro Observa com ironia o trabalho de professores como Durkheim que procuram fundamentar uma ética na ciência Se soubéssemos o que é a ciência dizia ele saberíamos que não se pode deduzir dela uma moral Se soubéssemos o que são os homens saberíamos também que eles não têm nenhuma necessidade de descobrir razões científicas para aderir a uma moral o homem tem bastante engenhosidade e sofisma para imaginar motivos que a seus olhos sejam con vincentes para aderir a valores que na verdade nada têm a ver com a ciência e a lógica Pareto pertence à cultura italiana do mesmo modo como Durkheim perten ce à cultura francesa Ele se situa claramente na linha de pensadores políticos que se origina em Maquiavel o primeiro e o maior de todos eles A insistência na dua lidade dos governantes e dos governados a observação à distância talvez até cí nica do papel das elites e da cegueira das massas criam uma sociologia focali zada no tema político característico de uma tradição italiana ilustrada por Guic ciardini e Mosca além de Maquiavel E preciso não exagerar porém a ação do meio nacional Um dos autores que influenciaram Pareto foi o francês Georges Sorel Não faltaram na França autores da escola que chamamos de maquiaveliana por outro lado houve na Itália na época de Pareto autores racionalistas e cientistas prisioneiros da ilu são de uma sociologia que fosse ao mesmo tempo uma ciência e o fundamen to da moral Como Pareto é descendente intelectual de Maquiavel ele nos pare ce essencialmente italiano Mas não será isto um preconceito do observador francês Na verdade as duas correntes de idéias representadas por Durkheim e Aluno da École Normalle Supérieure uma das Grandes Escolas N do E CONCLUSÃO 527 por Pareto se manifestaram tanto na França como na Itália Houve pensadores franceses que aplicaram também às ilusões humanitárias e às esperanças dos revolucionários a mesma crítica sociológica que Pareto manejou com o maior virtuosismo Max Weber é sem dúvida profundamente alemão Seu pensamento para ser bem compreendido deve ser visto no contexto da história intelectual alemã Formado pela escola histórica foi a partir do idealismo histórico que ele pro curou formular sua concepção de uma ciência social objetiva capaz de demons trações e de provas compreensiva da realidade social inteiramente separada de uma metafísica do espírito e da história Contrariamente a Durkheim Weber não tinha formação filosófica mas sim jurídica e econômica Vários aspectos do seu pensamento têm raízes nesta dupla formação Por exemplo quando acentua a noção de sentido subjetivo e afirma que o sociólogo pretende apreender essencialmente o sentido que o ator atribui a seus atos decisões e abstenções está sendo influenciado pela sua reflexão de jurista Com efeito é fácil distinguir o sentido objetivo que o professor pode dar às regras de direito e o sentido subjetivo dessas regras isto é a interpretação que lhes dão os que estão sujeitos a elas e esta distinção permite compreender a ação que a regra de direito exerce sobre a conduta dos indivíduos Em vários dos seus estudos epistemológicos Max Weber se esforçou por discriminar rigorosamente os diferentes modos de interpretação do direito para lembrar sempre que o so ciólogo procura o sentido subjetivo isto é a realidade vivida do direito tal como é concebida pelos indivíduos e tal como condiciona em parte as condutas De igual modo sua experiência de economista levouo a refletir sobre as relações entre a teoria econômica enquanto reconstrução racionalizante da conduta e a realidade econômica concreta muitas vezes incoerente tal como é vivida pelos homens Mas o pensamento de Weber nascido da experiência do jurista e do econo mista foi marcado sobretudo por uma tensão interior que parece ligada à con tradição entre uma nostalgia religiosa e as exigências da ciência Já observei na introdução desta segunda parte que o tema central dos três autores foi o das rela ções entre a ciência e a religião Para Durkheim a ciência permite compreender a religião e conceber o surgimento de novas crenças Para Pareto a propensão à religião é eterna Os resíduos não mudam e qualquer que seja a diversidade das derivações novas crenças surgirão Weber por sua vez viu de maneira patética a contradição entre uma sociedade que se racionaliza e as necessidades da fé O mundo está desencantado não há mais lugar para os encantos das religiões do passado na natureza explicada pela ciência e manipulada pela tecnologia A fé deve portanto retirarse para a intimidade da consciência e o homem se divide entre uma atividade profissional cada vez mais parcial e racionalizada e a aspi ração a uma visão global do mundo e a certezas definitivas 528 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Weber foi dilacerado também pela contradição entre a ciência e a ação en tre sua profissão de professor e a de homem político Pertence à escola de so ciólogos que a frustração política conduziu e limitou à ciência e à universidade Combinava além disso em política opções que não se casam bem Apaixona do pelas liberdades pessoais acreditava que sem um mínimo de direitos indivi duais não era possível viver Por outro lado tinha a obsessão da grandeza nacio nal e sonhava durante a Primeira Guerra Mundial com o acesso da sua pátria à Weltpolitik Embora manifestasse oposição às vezes frenética ao imperador Guilherme II mantinhase partidário do regime imperial Paixão pela liberdade e obsessão pela grandeza alemã hostilidade a Gui lherme II e fidelidade ao regime imperial estas atitudes levaram à concepção de uma reforma da Constituição do Reich num sentido parlamentar que com o recuo de quase meio século nos parece hoje uma solução insignificante para os problemas que ele mesmo havia levantado Durkheim criou uma moral a ser ensinada nas escolas de formação de pro fessores Pareto destruiu ironicamente todas as ideologias Max Weber preco nizou uma reforma parlamentar da Constituição alemã Não há dúvida de que estes três pensadores pertenciam a diferentes países da Europa Quando começou a guerra Durkheim se comportou como um patriota apai xonado que precisou suportar com dor e coragem a morte de seu filho único e os insultos vergonhosos proferidos na tribuna do Senado Max Weber foi um patriota alemão igualmente apaixonado Cada um deles escreveu um estudo so bre as origens da guerra mundial Estes estudos a meu ver nada acrescentam à sua glória científica Por serem cientistas nenhum deles deixava de ser cida dão Pareto foi também fiel a si mesmo isto é observador irônico e bom profe ta Pensava que a única esperança de que a guerra terminasse com uma paz es tável residia em que ela terminasse por um compromisso1 Poderseia dizer portanto que cada um destes três sociólogos reagiu aos acontecimentos de 19141918 à sua maneira Mas a verdade é que Durkheim não tinha nada na sua sociologia que o predispusesse a reagir aos acontecimentos a não ser como um homem comum Considerava que os Estados tinham ainda fun ções militares mas estas eram apenas lembranças de um passado em vias de rá pido desaparecimento Quando essas lembranças revelaram em 1914 um vigor imprevisto talvez imprevisível Durkheim não se comportou como um profes sor otimista inspirado por Comte mas como cidadão compartilhou as emoções e as esperanças de todos os franceses intelectuais e nãointelectuais Weber por seu lado acreditava na permanência e na irredutibilidade dos conflitos entre as classes os valores e as nações A guerra não o perturbava em sua concepção do mundo Não acreditava que as sociedades modernas fossem essen cialmente pacíficas Aceitava a violência como parte da ordem normal da histó CONCLUSÃO 529 ria e da sociedade Foi hostil à guerra submarina sem limites e às pretensões dos pangermanistas que sonhavam com vastas anexações territoriais e nisso não foi menos extremado Durkheim teria pensado do mesmo modo se não tivesse falecido antes da vitória Podemse comparar também estes três pensadores examinando a interpre tação que deram da sociedade em que viviam Para Durkheim o problema social é essencialmente um problema moral e a crise das sociedades contemporâneas é uma crise moral cujo fundamento pode ser encontrado na estrutura da sociedade Ao colocar deste modo o pro blema Durkheim se opõe a Pareto e a Weber Podese classificar a maior parte dos sociólogos com base no sentido que deram às lutas sociais Durkheim co mo Auguste Comte pensa que a sociedade é por natureza uma nnidaHp basea da num consenso Os conflitos não constituem nem a mola do movimento his tórico nem o acompanhamento inevitável de toda vida em comum mas a marca de uma doença de um desregramento As sociedades modernas são definidas pelo interesse predominante associado à atividade econômica pela diferencia ção extrema das funções e das pessoas e portanto pelo risco de uma desagre gação do consenso sem o qual não é possível haver ordem social Durkheim porém que teme a anomia ou decomposição do consenso prin cipal ameaça às sociedades modernas não duvida de que os valores sagrados da nossa época sejam a dignidade humana a liberdade do indivíduo o julgamento autônomo e a crítica Seu pensamento tem portanto um duplo aspecto que jiis tifica a existência de duas interpretações contraditórias Se seguindo o método de Bergson eu precisasse resumir em uma frase a intuição fundamental de Durkheim diria que para ele as sociedades modernas são definidas pela obrigação assumida pela coletividade com relação a todos os seus membros no sentido de que cada um seja o que é e realize sua função social desenvolvendo ao mesmo tempo sua personalidade autônoma É a pró pria sociedade que postula o valor da autonomia pessoal Essa instituição é profundamente paradoxal Como o fundamento do valor da personalidade autônoma é o imperativo social o que dizer quando a religião surgida da sociedade se volta contra os valores individualistas e obriga cada um em nome da reconstituição do consenso não a ser ele mesmo mas a obedecer Se de acordo com a essência do pensamento de Durkheim o princípio e o obje to das obrigações e das crenças morais e religiosas é a sociedade Durkheim pode ser incluído na linha dos pensadores que como Bonald postularam de fato e de direito o primado da coletividade sobre o indivíduo Mas se aceitarmos ao con trário que os valores supremos da nossa época são o individualismo e o racio nalismo Durkheim aparece como herdeiro da Filosofia do Iluminismo Jusquauboutiste N do B 530 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Evidentemente o verdadeiro Durkheim não se esgota em nenhuma destas interpretações Ajustase mais a uma combinação delas O problema central do pensamento de Durkheim é no fundo o mesmo problema de Auguste Comte pensador de inspiração racionalista quer fundamentar os valores do racionalis mo sobre imperativos sociais Pareto e Weber podem ser situados mais facilmente do que Durkheim Bas ta analisálos com relação a Marx isto é com relação a um autor em que não se inspiraram diretamente mas que leram muito e criticaram Pareto se referiu com muita freqüência à obra de Marx e o pensamento paretiano pode ser considerado uma crítica do marxismo Em Les systèmes so cialisíes Pareto fez uma crítica econômica profunda de O capital notadamen te das teorias do valortrabalho e da exploração Em suma Pareto que pertence à Escola de Lausanne onde deu continuidade à obra de Walras desenvolveu uma teoria do equilíbrio a partir das escolhas individuais considerando a noção de valortrabalho como metafísica definitivamente ultrapassada Todas as de monstrações marxistas da maisvalia e da exploração são para ele desprovidas de valor científico Além disso Pareto acredita que a desigualdade das rendas é mais ou menos constante em todas as sociedades Os dados empíricos mais di versos demonstram segundo ele que a curva da distribuição da renda tem sem pre a mesma expressão matemática As possibilidades de modificar a distribuição da renda com uma revolução socialista são portanto pequenas Além disso Pa reto afirma como bom economista que em qualquer regime o cálculo econô mico é sempre indispensável Em conseqüência persistirão muitas das caracte rísticas das economias capitalistas mesmo depois de uma revolução do tipo so cialista Em nossa época não há economia eficiente sem uma organização racional da produção isto é sem submissão às exigências do cálculo econômico2 A partir daí Pareto justifica pela eficácia o regime de propriedade privada e a concorrência A concorrência é em certa medida uma forma de seleção Pa reto vai buscar no darwinismo social a analogia entre a luta pela vida no reino animal e de outro lado a concorrência econômica e as lutas sociais A concor rência econômica que os marxistas chamam de anarquia capitalista é na ver dade um processo de seleção relativamente favorável ao progresso econômico Pareto não é um liberal dogmático Muitas medidas condenáveis no plano estri tamente econômico podem ter efeitos favoráveis indiretamente por meio dos mecanismos sociológicos Assim por exemplo uma medida que traz benefícios consideráveis aos especuladores que é humanamente injusta e economicamente condenável pode ser benéfica se os lucros forem investidos em empreendimen tos úteis à coletividade Pareto responde de modo definitivo à crítica marxista do capitalismo afir mando que alguns dos elementos denunciados pelo marxismo são encontrados em todos os outros sistemas que o cálculo econômico está associado intrinse CONCLUSÃO 531 camente a uma economia racional moderna que não há exploração global dos trabalhadores pois os salários tendem a se manter no nível da produtividade marginal e que a noção de maisvalia não tem sentido Em Max Weber a crítica da teoria marxista tem mais ou menos o mesmo estilo mas a ênfase é posta menos na importância do cálculo econômico em qualquer regime do que na constância da burocracia e dos fenômenos de orga nização e de poder Para Pareto a concorrência e a propriedade privada são de modo geral as instituições econômicas mais favoráveis ao desenvolvimento da riqueza assim o crescimento da burocracia a extensão do socialismo estatal e a absorção de rendas pela administração em benefício próprio ou de setores improdutivos causariam provavelmente um declínio de toda a economia Max Weber demonstrou que a organização racional e a burocracia constituíam as es truturas reais das sociedades modernas Longe de serem atenuadas pela instau ração do socialismo estas características seriam antes reforçadas Uma econo mia socialista em que a propriedade dos meios de produção fosse coletiva acen tuaria os traços que o próprio Max Weber considerava como os mais perigosos para a salvaguarda dos valores humanos3 Pareto e Weber rejeitam a crítica marxista da economia capitalista consi derandoa cientificamente infundada Nenhum dos dois nega que num regime capitalista haja uma classe privilegiada que retém para si uma parte importan te da renda e da riqueza Não afirmam que o regime capitalista seja perfeita mente justo ou o único possível Mais ainda ambos tendem a acreditar que este regime evoluirá no sentido do socialismo mas os dois se recusam a aceitar a teo ria da maisvalia e da exploração e negam que uma economia socialista seja fun damentalmente diferente de uma economia capitalista no que se refere à orga nização da produção e à distribuição da renda Não se detém aí a crítica de Pareto e de Weber ao pensamento de Marx Tomam também como alvo o racionalismo implícito ou pelo menos aparente da psicologia e da interpretação histórica do marxismo Quando Pareto ridiculariza as esperanças dos revolucionários em particular dos marxistas a primeira forma dessa refutação irônica é econômica Mostra que uma economia socialista se assemelharia em todos os seus defeitos a uma economia capitalista contando ainda com um certo número de defeitos suple mentares Uma economia baseada na propriedade coletiva dos meios de produ ção e privada dos mecanismos do mercado e da concorrência seria uma econo mia burocratizada com os trabalhadores submetidos a uma disciplina autoritá ria pelo menos tão opressiva quanto a das empresas capitalistas Seria também menos eficaz do ponto de vista do desenvolvimento das riquezas A segunda forma de refutação consiste em apresentar as esperanças revolu cionárias não como uma reação racional a uma crise social efetivamente obser vada e experimentada mas como a expressão de resíduos permanentes ou de 532 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO sonhos metafísicos etemos Na versão corrente do marxismo as contradições do capitalismo provocam a organização do proletariado em classe e este realiza a obra exigida pela Razão histórica A perspectiva marxista é racional com rela ção à história global Sugere assim uma espécie de psicologia racional segundo a qual os indivíduos ou os grupos agem com base nos seus interesses Otimista na verdade é uma psicologia que pressupõe que os homens são egoístas e clari videntes Ordinariamente esta interpretação da conduta humana é considerada materialista ou cínica Que ilusão A vida das sociedades seria mais fácil se todos os grupos conhecessem seus interesses e agissem com base neles Como disse um profundo psicólogo chamado Adolf Hitler é sempre possível conciliar inte resses mas nunca é possível conciliar diferentes concepções do mundo Pareto e de certo modo também Max Weber respondem a esta visão racio nalista de Marx afirmando que os movimentos sociais entre eles o socialismo não se inspiram na consciência dos interesses coletivos e não representam um produto da Razão histórica mas constituem a manifestação de necessidades afe tivas ou religiosas tão duradouras quanto a própria humanidade Max Weber chamou sua sociologia das religiões de refutação empírica do materialismo histórico Ela mostra de fato que a atitude de certos grupos com relação à vida econômica pode ser determinada por concepções religiosas Não há necessariamente uma determinação das concepções religiosas pelas atitudes econômicas e o contrário pode ser também verdadeiro Para Pareto se os homens agissem logicamente sua conduta seria determi nada efetivamente pela busca de lucros ou do poder a luta entre os grupos poderia ser interpretada em termos estritamente racionais Na realidade porém são os resíduos de classes relativamente constantes que movem os homens A história não evolui no sentido de uma conclusão que seria a reconciliação da humanidade mas obedece a ciclos de mútua dependência As flutuações da for ça de uma classe de resíduos produzem as fases da história sem que nunca se possam imaginar um ponto de chegada e uma estabilização definitiva Nem Pareto nem Weber deixam de levar em conta a contribuição de Marx Para Pareto a parte sociológica da obra de Marx é do ponto de vista científi co muito superior à parte econômica Les systèmes socialistes t II p 386 A luta de classes preenche uma grande parte da crônica dos séculos e consti tui um dos fenômenos mais importantes de todas as sociedades conhecidas A luta pela vida e pelo bemestar é um fenômeno geral de todos os seres vivos e tudo o que sabemos sobre ela nos leva a considerála um dos fatores mais poderosos para a conservação e o aprimoramento da raça Ibid p 455 Pareto admite portanto a luta de classes dandolhe porém um significado diferente do de Marx De um lado a sociedade não tende a se dividir em duas classes e só duas a dos proprietários dos meios de produção e a grande massa explorada A luta de classes se complica e se ramifica Estamos longe de uma simples luta entre duas CONCLUSÃO 533 classes as divisões se acentuam tanto entre os burgueses como entre os prole tários Ibid p 420 Existem muitos grupos sociais e econômicos Por outro lado na medida em que Pareto adota uma representação dualista da sociedade esta representação dualista se fundamenta na oposição entre governantes e go vernados elite e massa A integração na elite não é definida necessariamente pela propriedade dos meios de produção Como a dualidade fundamental é a que existe entre governantes e governados a luta de classes é eterna e não pode ser superada num regime em que não haja exploração Se como pensava Marx a luta de classes tem sua origem última na propriedade dos meios de produção é pos sível conceber uma sociedade sem propriedade privada e portanto sem explora ção Contudo se a origem última dos conflitos sociais é o poder exercido por uma minoria sobre a maioria a heterogeneidade social é irredutível e a esperança de uma sociedade sem classes se alimenta de uma mitologia pseudoreligiosa Por último Pareto tende a caracterizar as classes essencialmente pela sua psicologia As elites são violentas ou astuciosas compõemse de combatentes ou de pluto cratas são ricas em especuladores e agiotas assemelhamse ao leão ou à raposa Todas estas fórmulas tendem a sugerir uma característica psicológica mais do que propriamente sociológica das classes e principalmente da classe dirigente Max Weber cujo pensamento social é dramático e nada tem de irônico admitia também a realidade e a importância da luta de classes e num certo sen tido aceitava portanto a herança marxista e o valor das observações sociológi cas que servem como ponto de partida para o Manifesto comunista Quem quer que assuma a responsabilidade de enfiar os dedos entre os raios da roda do de senvolvimento político de sua pátria deve ter os nervos sólidos e não ser muito sentimental para poder fazer a política temporal E quem se empenha no cami nho da política temporal precisa antes de mais nada permanecer livre de ilu sões e reconhecer o fato fundamental da existência da luta inevitável e eter na dos homens contra os homens nesta terra Protokoll über die Vertreter Versammlung aller NationalSozialen Erfúrt 1896 citado por Julien Freund in Essais sur la théorie de la Science Introdução p 15 Embora riãíomasse com a mesma crueza os argumentos de Pareto Weber observava que num regi me de propriedade coletiva e de planificação uma minoria disporia de imensoV poder econômico e político e só uma confiança desmedida na natureza huma na justificaria a expectativa de que esta minoria não cometesse abusos As desi gualdades na distribuição da renda e dos privilégios sobreviverão ao desapare cimento da propriedade privada e da concorrência capitalista Mais ainda numa sociedade socialista os que alcançassem o cume seriam os mais hábeis numa com petição burocrática obscura mal conhecida seguramente menos agradável do que a concorrência econômica A seleção burocrática seria menos má do ponto de vista humano do que a de caráter semiindividualista que subsiste nos inters tícios das organizações coletivas das sociedades capitalistas 534 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Para estabilizar e moralizar as sociedades modernas Durkheim concebia e preconizava uma reconstituição das corporações profissionais Pareto não assu mia o direito de propor reformas mas anunciava a cristalização burocrática e a ascensão ao poder de elites violentas que sucederiam as raposas da plutocracia hesitava apenas com relação aos prazos Já Max Weber profetizava com pessi mismo a expansão gradual da organização burocrática Destes três autores a meu ver Durkheim é aquele cujas sugestões foram me nos apoiadas pelos acontecimentos Tais como as concebia isto é como corpos intermediários dotados de autoridade moral as corporações não se desenvolve ram em nenhum dos países de economia moderna Estes se dividem hoje em dois tipos de regimes mas não há lugar para essas corporações em nenhum deles nem na Rússia soviética nem nas sociedades ocidentais Na Rússia soviética porque o princípio de toda autoridade e de toda moralidade deve ser o Partido e o Estado confundidos no Ocidente porque seria necessário ter excepcional acuidade de vi são a fim de perceber o menor traço de autoridade moral aceita ou reconhecida nas organizações profissionais de assalariados e de empresários Em compensa ção Pareto não errou ao anunciar a ascensão de elites violentas como Weber também não se enganou ao prever a expansão da burocracia Se estes dois fenô menos não esgotam toda a realidade social modema sua combinação é segura mente uma das características do nosso tempo As contribuições desses três autores para o progresso da sociologia cientí fica foram diferentes e convergentes Todos os três pensaram no mesmo con texto histórico sobre o tema das relações entre ciência e religião esforçandose para dar uma explicação social das religiões e uma explicação religiosa dos mo vimentos sociais O ser social é um ser religioso e o crente de todas as Igrejas é membro de uma sociedade Esta preocupação primordial elucida a contribui ção deles ao desenvolvimento da sociologia como ciência Pareto e Max Weber de modo explícito como também Durkheim implicitamente enunciaram a concepção da sociologia como a ciência da ação social Ser social e religioso o homem cria valores e sistemas sociais e a sociologia procura apreender a estru tura desses valores e sistemas isto é da ação social Para Max Weber a sociolo gia é uma ciência compreensiva da ação humana Se esta definição não pode ser encontrada palavra por palavra no Traité de sociologie générale uma idéia aná loga aparece na obra de Pareto e a definição de Durkheim não é muito diferente Concebida desta maneira a sociologia elimina a explicação naturalista ex cluindo que se possa explicar a ação social a partir da hereditariedade ou do meio O homem age define objetivos combina meios adaptase às circunstâncias inspirase em sistemas de valores Cada uma destas fórmulas visa a um aspecto da compreensão das condutas e leva a um elemento da estrutura da ação social CONCLUSÃO 535 A fórmula mais simples é a da relação meiosfins É este o aspecto da ação que Pareto colocava no centro da sua definição da conduta lógica e que Max Weber integrava na noção de conduta racional com relação a um fim A análi se das relações entre os meios e os fins nos leva diretamente a propor as ques tões sociológicas essenciais como são determinados os fins Quais são as mo tivações das condutas Ela permite desenvolver uma casuística da compreen são das condutas humanas cujos elementos mais importantes são a relação meiosfins as motivações das condutas o sistema de valores com base no qual os homens agem e eventualmente a situação à qual o ator se adapta e de acordo com a qual determina seus objetivos T Parsons dedicou seu primeiro livro importante The Structure o f Social Action ao estudo das obras de Pareto Durkheim e Weber consideradas como contribuições à teoria da ação social que deve servir de fundamento à sociolo gia Ciência da ação humana a sociologia é ao mesmo tempo compreensiva e explicativa Compreensiva identifica a lógica ou a racionalidade implícita das condutas individuais ou coletivas explicativa estabelece as regularidades e in sere as condutas parciais em conjuntos que lhes dão um sentido Pareto Durkheim e Weber segundo Parsons proporcionam com conceitos distintos os materiais para uma teoria comum da estrutura da ação social Esta teoria compreensiva resumindo o que há de válido na contribuição dos três autores seria natural mente a teoria do próprio Parsons Durkheim Pareto e Weber são os últimos grandes sociólogos a elaborar dou trinas de sociologia histórica isto é sínteses globais que comportam simultanea mente uma análise microscópica da ação humana uma interpretação da época moderna e uma visão do desenvolvimento histórico a longo prazo Estes dife rentes elementos reunidos nas doutrinas da primeira geração 18301870 a de Comte Marx e Tocqueville e que se encontravam ainda mais ou menos unidos nas doutrinas da segunda geração 18901920 estão hoje dissociados Para estudar a sociologia contemporânea seria necessário analisar a teoria abstrata da conduta social encontrar os conceitos fundamentais utilizados pe los sociólogos e examinar o desenvolvimento da investigação empírica em dife rentes setores Os sociólogos empíricos do Ocidente se recusam a fazer inter pretações históricas da época moderna argumentando que elas ultrapassam as possibilidades da ciência No Leste estas interpretações históricas são anterio res a qualquer investigação e baseadas nos resíduos de uma doutrina da primei ra época que uma astúcia da Razão histórica transformou em ortodoxia estatal Mas os marxistas da Europa oriental se converteram à pesquisa empírica E é possível por outro lado que estas pesquisas contenham uma interpretaçao da sociedade moderna Eisnos aqui no limiar do presente retomando à Introdução deste livro Se não fosse imprudente na minha idade desafiar os deuses anunciaria de boa vontade o livro que deveria seguirse a este Notas 1 Durkheim escreveu dois trabalhos sobre a guerra de 19141918 LAllemagne audessus de tout la neutralité Allemande et la guerre e Qui a voulu la guerre les ori gines de la guerre d après les documents diplomatiques os dois publicados por Armand Colin em 1915 Nesse mesmo ano perdeu o filho único morto no front da Salônica Pouco tempo depois da morte de seu filho um senador exigiu no Senado que a comissão incumbi da de controlar as permissões de permanência dos estrangeiros revisse a situação desse francês de ascendência estrangeira professor na nossa Sorbonne e sem dúvida representante é pelo menos o que se alega do Kriegsministerium Ministério da Guerra alemão Os escritos de Weber relativos à guerra foram reunidos em Gesammelte Politische Schriften Tübingen Mohr 2f ed 1958 cf principalmente os dois artigos de 1919 Zum thema der Kriegschuld e Die Untersuchung der Schuldfrage Pareto se absteve de mencionar a guerra em curso no seu Traité de sociologie générale cuja edição italiana foi publicada em 1916 mas ele a analisou depois que as hostilidades terminaram em Fatti e teorie Florença Vallechi 1920 Antes da guerra pensava que no caso de um conflito a Alemanha venceria Por instinto preferia aliás o império alemão à França e à Itália plutocráticas e foi sempre rebelde ao entusiasmo da maioria de seus amigos e compatriotas como Pantaleoni Mas alegrase com a vitó ria dos aliados Em seus sentimentos em relação á Itália havia muito de amor desiludi do Em Fatti e teorie explica os erros da diplomacia alemã Desde 1915 declarava que essa guerra não seria a última e que ela trazia o risco de gerar uma outra 2 Para Pareto se uma organização socialista qualquer que seja pretende obter o máximo de ofelimidade para a sociedade só pode agir sobre a distribuição que ela irá alterar diretamente retirando de uns o que dará aos outros Quanto à produção precisa rá ser organizada exatamente como no regime de livre concorrência e de apropriação de capitais Cours d économiepolitique 1022 Para demonstrar essa afirmativa Pareto supõe uma economia em que a propriedade seria coletiva e em que o governo regularia tanto a distribuição quanto a produção i b i d 1013 a 1023 e mostra que se um regi CONCLUSÃO 537 me socialista pode exercer uma ação sobre a escolha dos titulares das rendas essa esco lha podendo ser feita para aumentar a utilidade da espécie a organização da produ ção se o governo pretende obter o máximo de ofelimidade a seus administrados supõe um cálculo econômico realizado a partir de relações de troca isto é de preços e não apenas para os bens consumíveis mas também para os serviços produtores A determi nação dos preços dos bens consumíveis supõe um mercado de bens de consumo Qualquer que seja a regra que o governo queira estabelecer para a repartição das mer cadorias de que dispõe é evidente que se quiser obter o máximo de ofelimidade para seus administrados deverá cuidar para que cada um tenha a mercadoria de que mais necessita Não dará óculos de míope a um presbita e viceversa Seja permitindo que seus administrados troquem entre eles os objetos que lhes são distribuídos seja fazendo ele mesmo essa nova distribuição o resultado é o mesmo Se as trocas de bens consu míveis são permitidas os preços reaparecem se é o Estado que realiza essa nova dis tribuição os preços apenas mudarão de nome serão relações segundo as quais se fará a nova distribuição 1014 A determinação dos preços dos serviços produtores e especialmente dos capitais supõe trocas entre as unidades de produção e as adminis trações Essas trocas poderão ser feitas sobre uma simples base contábil e a realidade econômica fundamental será a mesma que num regime capitalista É preciso repartir os capitais entre as diferentes produções de modo que a quantidade de mercadorias corres ponda à necessidade existente Quando se pretende fazer esse cálculo surgem certas quantidades auxiliares que são simplesmente os preços que teriam os serviços desses capitais num regime de apropriação de capitais e de livre concorrência Para dar a esse cálculo uma forma tangível podese supor que o ministério da produção se divida em dois departamentos um que administrará os capitais e que venderá os serviços ao outro departamento a preços tais que esse segundo departamento seja obrigado a economizar os serviços de capitais mais raros mais preciosos e procurar substituílos pelos servi ços de capitais mais abundantes e menos preciosos Recorrendo à matemática demons trase que os preços que preenchem essa condição são exatamente os mesmos que se estabeleceriam num regime de apropriação de capitais e de livre concorrência Esses preços aliás só têm utilidade para a contabilidade interna do ministério O segundo dos departamentos em questão exercerá as funções de empresário e transformará os serviços de capitais em produtos 1017 Assim para Pareto uma economia socialista gerida de modo eficaz e organizada para obter o máximo de ofelimidade dos indivíduos não di fere fundamentalmente de uma economia capitalista Como esta ela só pode ter como base a troca e o cálculo econômico Mas para provar esta identidade dos problemas eco nômicos fundamentais quaisquer que sejam os regimes e o parentesco essencial das ins tituições econômicas Pareto foi levado a mostrar e foi o primeiro economista a fazêlo que um regime socialista podia funcionar isto é que a priori a propriedade privada não era indispensável ao cálculo econômico quando o mercado ou seu substituto per maneciam Estas observações de Pareto desenvolvidas um pouco mais tarde por E Barone servirão de base para os economistas que como O Lange F Taylor H D Dickinson A P Lemer procuraram responder à crítica de F A von Hayek L Robbms L von Mises e N G Pierson sobre a impossibilidade do cálculo econômico em regune socialista Para a escola Lange Taylor se uma economia socialista mantiver a liberdade 38 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO e escolha dos consumidores e a liberdade de escolher as ocupações isto é se mantiver m mercado de bens de consumo e a livre negociação dos salários será mesmo mais acionaí que uma economia capitalista e se aproximará cada vez mais do estado ideal ue resulta da concorrência pura e perfeita Pareto num sentido é o primeiro dos eco omistas que são favoráveis à economia socialista de mercado Até hoje no entanto a economia socialista de mercado permanece uma hipótese e escola Sem fazer ym julgamento antecipado sobre as experiências que se realizam tualmentena Iugoslávia na Tchecoslováquia e mesmo na União Soviética é preciso onstatar como o faz Peter Kende De O Lange a J Marczewski um grande núme o de eminentes economistas se empenharam em refutar o argumento de Mises sobre a mpossibilidade do cálculo racional em uma economia coletivista Parecenos no ntanto que a maior parte deles facilitaram um pouco as coisas demonstrando a possi lilidade de organizar uma economia socialista que seja com a ajuda do mercado New ocialist School de TaylorLange seja por um cálculo organizado segundo os princí i í o s marginalistas Dobb Marczewski seja enfim graças aos modelos da era eletrô dca Koopmans conhecesse os verdadeiros preços dos fatores Mises visava a uma iconomia que não conhece os preços em questão Enquanto a viabilidade dos diferen es modelos propostos contra Mises ainda está por ser demonstrada o modelo real da iconomia planificada se assemelha de modo impressionante àquele que Mises tinha em ista Logique de 1économie centralisée un exemple la Hongrie Paris SEDES 964 p 491 Sobre esse problema ver F A von Hayek et alLeconomie dirigée en régime collec iviste Paris Médicis 1939 esta obra contém além dos estudos de Hayek a tradução do rtigo de 1920 de L von Mises Le calcul économique en régime collectiviste e a tra lução do ensaio de 1908 de E Baroni Le ministère de la production dans un État collec iviste O Lange e F M Taylor On the Economic Theory of Socialism Nova York Mac íraw Hill 1964 reedição de dois ensaios um de F Taylor datadó de 1929 e o outro de O ange de 1937 L von Mises Le socialisme étude économique et sociologique Paris 4édicis 1938 P Wiles The Political Economy of Communism Oxford Blackwell 1962 3 No pensamento de Max Weber não estão ausentes as considerações de cálculo conômico F A von Hayek em seu estudo sobre a natureza e o histórico do problema ias possibilidades do socialismo até cita Max Weber entre os primeiros autores que rataram detalhadamente do problema do cálculo econômico em economia socialista lax Weber em sua grande obra póstuma Wirtschaft und Gesellschaft publicada em 921 trata explicitamente das condições que fazem com que decisões racionais sejam assivas num sistema econômico complexo Como L von Mises cujo artigo de 1929 obre o cálculo econômico numa comunidade socialista ele cita dizendo só ter chega lo ao seu conhecimento quando seu próprio estudo já estava sendo impresso Max Veber insiste no fato de que os cálculos in natura propostos pelos principais defenso es de uma economia planificada não poderiam oferecer uma solução racional aos pro lemas que as autoridades de um tal sistema teriam de resolver Insiste principalmente m que o uso racional e a preservação do capital só poderiam ser obtidos num sistema iaseado na troca e no uso da moeda e que o desperdício provocado pela impossibi idade do cálculo racional num sistema completamente socializado poderia ser tão sério CONCLUSÃO 539 que tomasse impossível a vida dos habitantes dos países atualmente mais populosos Não é um argumento de peso supor que um sistema qualquer de cálculo seria encon trado a tempo se se procurasse enfrentar seriamente o problema de uma economia sem moeda o problema é o problema fundamental de toda socialização completa e é cer tamente impossível falar de uma economia racionalmente planificada quando na medi da em que o ponto essencial é envolvido não se conhece nenhum meio de construção de um plano Wirtschaft und Gesellschaft Léconomie dirigée en régime collectiviste Paris Médicis 1939 pp 4243 ISBN 8533609361 9788533609365
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As Etapas do Pensamento Sociológico Raymond Aron Martins Fontes R lucidez elegante T ècrttilwagijids e a 5 Vgfrm eftção clara nesta ry Vv t u í i i j J u c í c o v v O Jr W i estiltfMn R ftrflViia L de p araçap tar os0sOecfos esseTvfeiais f Z h W fr y s y i tfe um peOrsa JoÇàjs c acfe rísticas tte irm i serçi p r i c t í a rttf r 2 V fttçrk i ra b rá n íftô J S j t VjjftityjV conVibuiçãoranifrcatiiígKri A 1 p araafiiríó n a da ieciofòqi3 camb para uma W na í na ÍS M A I â q l s t a o l ó g t f U iw m N t o f p m íS li fTrtuitü alértlías ppsjCes o n s í s t c ç i t i ç 1 casWçüc BBèVlérrcas í x L C í í i a t í t 0 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Raymond Aron Tradução SÉRGIO BATH Martins Fontes São Paulo 2000 Título original LES ÉTAPES D E LA PENSÉE SOCiOLOGIQU E C opyright bv Éditions Gallimard 1967 Copyright Livraria M artins Fontes Editora Lida São Paulo 1982 para a presente edição 5â edição março de 1999 2 tiragem junho de 2000 Tradução SÉRGIO BATH Revisão da tradução Aureo Pereira de Araújo Revisão gráfica Ivete Batista dos Santos Lígia Silva Produção gráfica Geraldo Alves Dados Internacionais de Catalogação na Publicação C1P Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Aron Raym ond 19051983 As etapas do pensam ento sociológico Raymond A ro n tradução de Scrgio Bath 5 ed São Paulo M artins Fontes 1999 Ensino superior Título original Les étapes de la pensée sociologique Bibliografia ISBN 8533609361 1 Sociologia H istória 1 Título II Série 983332CDD30109 índices para catálogo sistemático 1 Sociologia História 30109 Todos os direitos desta edição reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda Rua Conselheiro Ramalho 330340 01325000 São Paulo SP Brasil Tel II 2393677 Fax 1131056867 email infomartinsfontescom httpwwwmartinsfontescom índice Introdução 1 Nota da edição brasileira 13 PRIMEIRA PARTE OS FUNDADORES CharlesLouis de Secondat barão de Montesquieu 17 A teoria política 19 Da teoria política à sociologia 31 Os fatos e os valores 40 As interpretações possíveis 48 Indicações biográficas 53 Notas 55 Bibliografia 62 Auguste Com te 65 As três etapas do pensamento de Comte 65 A sociedade industrial 72 A sociologia ciência da humanidade 80 Natureza humana e ordem social 88 Da filosofia à religião 96 Indicações biográficas 105 Notas 108 Bibliografia 122 Karl M arx125 A análise socioeconômica do capitalismo129 O capital137 Os equívocos da filosofia marxista 149 Os equívocos da sociologia marxista161 Sociologia e economia170 Conclusão178 Indicações biográficas 181 Notas183 Bibliografia194 Alexis de Tocqueville201 Democracia e liberdade 202 A experiência americana207 O drama político da França 216 O tipo ideal da sociedade democrática226 Indicações biográficas 237 Notas239 Bibliografia245 Os sociólogos e a Revolução de 1848247 Auguste Comte e a Revolução de 1848 248 Alexis de Tocqueville e a Revolução de 1848250 Karl Marx e a Revolução de 1848256 Cronologia da Revolução de 1848 e da II República266 Notas269 Indicações bibliográficas sobre a Revolução de 1848273 SEGUNDA PARTE A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO Introdução da segunda parte 277 Émile Durkheim 287 Da divisão do trabalho social287 O suicídio 1897297 As formas elementares da vida religiosa 1912310 As regras do método sociológico 324 Sociologia e socialismo 334 Sociologia e filosofia348 Indicações biográficas 358 Notas360 Bibliografia 363 Vilfredo Pareto 367 A ação nãológica e a ciência368 Das expressões aos sentimentos379 Resíduos e derivações387 A síntese sociológica404 Ciência e política421 Uma obra contestada428 Indicações biográficas 435 Notas437 Bibliografia 444 Max Weber447 Teoria da ciência448 História e sociologia458 As antinomias da condição humana467 A sociologia da religião 473 Economia e sociedade 491 Weber nosso contemporâneo503 Indicações biográficas 509 Notas512 Bibliografia 521 Conclusão525 Notas536 Introdução Consideradas no passado as ciências libertaram o espírito humano da tutela exercida sobre ele pela teologia e pela metafísica e que indispensá vel à sua infância tendia a prolongála indefinidamente Consideradas no presente elas devem servir seja pelos seus métodos seja por seus resulta dos gerais para determinar a reorganização das teorias sociais Conside radas no futuro serão uma vez sistematizadas a base espiritual permanen te da ordem social enquanto dure a atividade da nossa espécie no planeta Auguste Comte Considérations phílosophiques sur les sciences et les savants 1825 in Système de politique positive t IV Apêndice p 161 Este livro talvez devesse dizer os cursos que lhe deram origem me foi sugerido pela experiência dos congressos mundiais da Associação Interna cional de Sociologia Desde que nossos colegas soviéticos passaram a partici par esses congressos ofereceram uma oportunidade única de ouvir o diálogo entre sociólogos que se baseiam numa doutrina do século passado e que apre sentam suas idéias fundamentais como conquistas definitivas da ciência e de outro lado sociólogos formados nas técnicas modernas de observação e expe rimentação na prática da investigação por meio de sondagens questionários ou entrevistas Devemos considerar os sociólogos soviéticos aqueles que conhe cem as leis da história como pertencendo á mesma profissão científica dos so ciólogos ocidentais Ou devemos vêlos como vítimas de um regime que não pode separar a ciência da ideologia porque transformou uma ideologia resí duo de ciência passada em verdade de Estado que os guardiões da fé batiza ram de ciência Esse diálogo de cientistas ou de professores me fascinava ainda mais por que se confundia com um diálogo históricopolitico e porque os interlocutores principais por caminhos diferentes chegavam sob certos aspectos a resulta dos comparáveis A sociologia de inspiração marxista tende a uma interpreta ção de conjunto das sociedades modernas a fim de situálas no contexto da his tória universal O capitalismo sucede o regime feudal da mesma forma como este sucedeu a economia antiga e será sucedido pelo socialismo A maisvalia foi retirada por uma minoria em prejuízo das massas trabalhadoras no inicio por meio da escravidão depois graças à servidão nos nossos dias graças ao tra balho assalariado No futuro após o regime de trabalho assalariado desapare cerá a maisvalia e com ela os antagonismos de classes Só o modo de produ ção asiático um dos cinco modos de produção enumerados por Marx no pre 2 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO fácio da Contribuição à crítica da economia política é esquecido quem sabe as querelas entre russos e chineses incitarão os primeiros a atribuir ao conceito de modo de produção asiático e de economia hidráulica a importância que lhe dão há alguns anos os sociólogos ocidentais A China Popular é vulnerável a esse conceito como nunca a União Soviética o foi O marxismo contém uma estática social ao lado de uma dinâmica social para usar os termos de Auguste Comte As leis da evolução histórica se funda mentam numa teoria das estruturas sociais e na análise das forças e das rela ções de produção teoria e análises que se baseiam por sua vez numa filosofia conhecida corretamente como materialismo dialético Uma doutrina como essa é ao mesmo tempo sintética ou global histórica e determinista Comparada às ciências sociais particulares caracterizase por uma intenção totalizante e abrange o conjunto ou o todo de cada sociedade apreendida em seu movimento Por conseguinte ela conhece no essencial o que é assim como o que será Ela anuncia o surgimento inevitável de um determi nado modo de produção o socialismo Progressista e ao mesmo tempo determinis ta não duvida de que o regime futuro seja superior aos regimes do passado o desenvolvimento das forças de produção não é simultaneamente a mola da evo lução e a garantia do progresso A maior parte dos sociólogos ocidentais e entre eles principalmente os norteamericanos ouvem com indiferença nos congressos a repetição monóto na das idéias marxistas simplificadas e vulgarizadas Também em seus escritos eles não as discutem mais Ignoram as leis da sociedade e da história as leis da macrossociologia no duplo sentido que pode ter o verbo ignorar não as conhe cem e são indiferentes a elas Não acreditam na veracidade dessas leis Não acre ditam que a sociologia científica seja capaz de formulálas e de demonstrálas que tenha interesse em pesquisálas A sociologia norteamericana que a partir de 1945 exerceu uma influência predominante no desenvolvimento dos estudos sociológicos na Europa e em to dos os países nãocomunistas é essencialmente analítica e empírica Multiplica investigações por meio de questionários e de entrevistas para determinar de que modo vivem pensam julgam os homens em sociedade ou se preferirmos os indivíduos socializados Essa sociedade quer saber como votam os cidadãos nas diversas eleições quais são as variáveis idade sexo lugar de residência cate goria socioprofissional nível de renda religião etc que influenciam o com portamento eleitoral Até que ponto por exemplo esse comportamento é deter minado ou modificado pela propaganda dos candidatos Em que proporção os eleitores mudam de opinião durante a campanha eleitoral Quais são os agen tes dessa mudança Eis aí algumas das questões que poderá propor o sociólo go que estude as eleições presidenciais nos Estados Unidos ou na França ques tões que só podem ser respondidas por pesquisas desse tipo Seria fácil dar INTRODUÇÃO 3 outros exemplos os relativos a operários camponeses relações conjugais rá dio e televisão e elaborando uma lista interminável de questões que o soció logo formula ou pode formular a respeito desses diversos tipos de indivíduos socializados de categorias sociais ou grupos institucionalizados ou não institu cionalizados A finalidade da pesquisa é precisar a correlação entre variáveis a ação de cada uma delas sobre o comportamento de uma ou outra categoria social de constituir não a priori mas mediante o próprio método cientifico os grupos reais os conjuntos definidos seja pela existência de maneiras comuns de agir seja pela adesão a um mesmo sistema de valores ou por uma tendência ã homeóstase em que qualquer alteração súbita tende a provocar reações com pensatórias Não seria correto dizer que esse tipo de sociologia por ser analítica e em pírica só leva em consideração os indivíduos com suas intenções e motivos sen timentos e aspirações Ela pode ao contrário atingir conjuntos ou grupos reais classes latentes que são ignoradas por aqueles que pertencem a elas e que cons tituem totalidades concretas A verdade é que a realidade coletiva parece aos indivíduos menos transcendente do que imanente Só os indivíduos socializados podem ser objeto da observação sociológica existem sociedades não uma socie dade e a sociedade global é composta por uma multiplicidade de sociedades A antítese de uma sociologia sintética e histórica que de fato não passa de uma ideologia e de uma sociologia empírica e analítica que seria em últi ma análise uma mera sociografia é caricatural Já o era há dez anos quando pensei em escrever este livro e hoje ela o é ainda mais mas nos congressos de sociólogos as próprias escolas científicas se caricaturizam levadas que são pela lógica do diálogo e da polêmica A oposição entre ideologia e sociografia não exclui de modo algum que a sociologia tenha funções análogas na União Soviética e nos Estados Unidos Nos dois países a sociologia deixou de ser crítica na acepção marxista do ter mo não questiona a ordem social nos seus traços fundamentais a sociologia marxista porque justifica o poder do Estado e do partido ou do proletariado a sociologia analítica dos Estados Unidos porque admite implicitamente os prin cípios da sociedade norteamericana A sociologia marxista do século XIX era revolucionária saudava antecipa damente a revolução que deveria destruir o regime capitalista Hoje na União Soviética a revolução salvadora não pertence mais ao futuro mas ao passado O rompimento decisivo profetizado por Marx já se realizou Desde então por um processo ao mesmo tempo inevitável e dialético houve uma inversão pas sando do a favor ao contra Uma sociologia que nasceu de uma intenção revolucionária serve de agora em diante para justificar a ordem estabelecida Não há dúvida de que ela mantém ou julga manter uma função revolucionária com relação às sociedades que não são governadas por um partido marxista 4 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO leninista Conservadora na União Soviética a sociologia marxista é revolucio nária ou se esforça por sêlo na França e nos Estados Unidos Mas nossos colegas dos países do Leste conhecem pouco e há dez anos conheciam menos ainda os países que ainda não fizeram sua revolução As circunstâncias os obri gavam a reservar seu rigor para países que eles eram incapazes de estudar dire tamente tratando com uma indulgência sem limites seu próprio meio social A sociologia empírica e analítica dos Estados Unidos não constitui uma ideologia do Estado menos ainda uma exaltação consciente e voluntária da sociedade norteamericana Pareceme que os sociólogos americanos são em sua maioria liberais no sentido em que ali se usa o termo São mais democra tas do que republicanos favoráveis à mobilidade social e á integração dos ne gros hostis às discriminações raciais ou religiosas Criticam a realidade norte americana em nome das idéias ou dos ideais do seu país não hesitam em reco nhecer os muitos defeitos que como a hidra da lenda parecem ressurgir sem pre tão numerosos como na véspera da eliminação ou atenuação das falhas denunciadas anteriormente Os negros poderão exercer agora o direito de voto mas que significa esse direito se os jovens continuam desempregados Alguns estudantes negros entram na universidade mas que importância têm esses acon tecimentos simbólicos se em sua grande maioria as escolas freqüentadas pelos negros são de qualidade inferior Em suma os sociólogos soviéticos são conservadores com relação a sua própria sociedade e revolucionários com relação às demais Os norteameri canos são reformistas quando se trata de sua própria sociedade e implicita mente pelo menos com relação a todas as sociedades Em 1966 essa oposição não parece tão marcante como em 1959 data do congresso mundial a que me refiro Desde então os estudos de caráter empírico segundo o estilo americano se multiplicaram na Europa oriental mais numerosos talvez na Hungria e so bretudo na Polônia do que na União Soviética Mas também na União Soviética se desenvolveu a pesquisa experimental e quantitativa de problemas claramen te delimitados Não é impossível imaginar num futuro relativamente próximo uma sociologia soviética reformista pelo menos com relação à União Soviética combinando a aprovação global com contestações particulares No universo soviético essa combinação não é tão fácil quanto no norteame ricano ou ocidental por dupla razão A ideologia marxista é mais precisa do que a ideologia implícita da escola dominante da sociologia norteamericana ela exige dos sociólogos uma aprovação que não se compatibiliza tão facilmente com os ideais democráticos como a aprovação pelos sociólogos norteamericanos do regime político dos Estados Unidos Além disso a crítica de pormenores não pode ser levada muito longe sem comprometer a validade da própria ideologia Com efeito esta afirma que o rompimento decisivo no curso da história ocorreu em 1917 com a tomada do poder pelo proletariado quando o partido permitiu INTRODUÇÃO 5 a nacionalização de todos os meios de produção Se depois desse rompimento a marcha normal das atividades humanas prossegue sem modificação notável como salvaguardar o dogma da Revolução salvadora Atualmente pareceme legítimo repetir uma observação irônica feita em Stresa depois da leitura de dois relatórios um do professor R N Fedesoev o outro do professor B Barber os sociólogos soviéticos estão mais satisfeitos com sua sociedade do que com sua ciência os sociólogos norteamericanos pelo contrário ainda mais satis feitos com sua ciência do que com sua sociedade Nos países europeus como nos do Terceiro Mundo2 as duas influências ideo lógica revolucionária de um lado empírica reformista de outro se fazem sentir ao mesmo tempo e as circunstâncias determinam se uma ou outra é a mais forte Nos países desenvolvidos especialmente nos da Europa ocidental a socio logia norteamericana leva os sociólogos da revolução às reformas em vez de leválos das reformas à revolução Na França onde o mito revolucionário era particularmente forte muitos jovens universitários se converteram progres sivamente a uma atitude reformista na medida em que o trabalho empírico os fazia substituir as visões globais pela pesquisa analítica e parcial E sempre difícil definir nessa conversão o que se explica pelas mudanças sociais e o que se explica pela prática sociológica Na Europa ocidental a si tuação è cada vez menos revolucionária O rápido crescimento econômico e as maiores possibilidades de promoção social de uma geração para outra deixam de incitar o homem comum à rebeldia Se acrescentarmos a isso o fato de que o partido revolucionário está ligado a uma potência estrangeira e que esta tem um regime que é um exemplo cada vez menos edificante o que surpreende não é o declínio do ardor revolucionário mas sim a fidelidade a despeito de tudo de milhões de eleitores que continuam a votar pelo partido que pretende ser o úni co herdeiro das esperanças revolucionárias Na Europa como nos Estados Unidos a tradição da crítica no sentido marxista e da sociologia sintética e histórica não morreu C Wright Mills e Herbert Marcuse nos Estados Unidos T W Adorno na Alemanha L Goldmann na França baseados no populismo ou no marxismo voltamse ao mesmo tempo contra a teoria formal e ahistórica tal como ela se manifesta na obra de T Parsons e contra as investigações parciais e empíricas características de quase todos os sociólogos que em todo o mundo pretendem fazer trabalho científico A teoria formal e as investigações parciais não são inseparáveis nem lógica nem historicamente Muitos dos que praticam efetivamente as pesquisas parciais são indiferentes ou hostis à teoria geral de T Parsons Por outro lado nem todos os parsonianos se dedicam a pesquisas parcelares cuja multiplicação e diversida de impediriam a unificação e a síntese Na verdade os sociólogos de inspiração marxista interessados em não abandonar a crítica global ou total da ordem exis tente têm como inimigos ao mesmo tempo a teoria formal e as pesquisas par 6 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO celares sem que esses dois inimigos se confundam embora tenham surgido mais ou menos associados na sociedade e na sociologia norteamericanas em determinada época sua conjunção não é necessária nem durável A teoria econômica dita formal ou abstrata foi rejeitada no passado tanto pela escola historicista como pela escola que deseja aplicar o método empírico A despeito da hostilidade comum à teoria abstrata e ahistórica essas duas es colas eram essencialmente diferentes Ambas voltaram a encontrar a teoria e a história Assim também as escolas sociológicas hostis à teoria formal de Parsons ou à sociografia sem teoria voltam a encontrar por diversos caminhos a histó ria e a teoria pelo menos a elaboração conceituai e a busca de proposições de caráter geral qualquer que seja o nível em que se situem essas proposições gené ricas Em certos casos podem chegar mesmo a conclusões revolucionárias mais do que reformistas Quando se interessa pelos países conhecidos atualmente como subdesenvolvidos a sociologia empírica põe em evidência os numerosos obstáculos que as relações sociais ou as tradições religiosas ou morais levan tam no caminho do desenvolvimento e da modernização Em certas circunstân cias uma sociologia empírica moldada por métodos norteamericanos pode chegar à conclusão de que só um poder revolucionário conseguiria quebrar tais resistências Por meio da teoria do desenvolvimento a sociologia analítica reen contra a história o que se explica facilmente pois essa teoria é uma espécie defilosofia formalizada da história contemporânea Ela encontra assim uma teo ria formal pois a comparação entre sociedades exige um sistema conceituai isto é uma das modalidades daquilo que os sociólogos chamam hoje de teoria Há sete anos quando comecei a trabalhar neste livro perguntavame se a sociologia marxista tal como a expunham os sociólogos da Europa oriental e a sociologia empírica na forma como a praticavam os sociólogos ocidentais de modo geral e os norteamericanos em particular tinham algo em comum O retorno às fontes o estudo das grandes doutrinas da sociologia histórica foi esse o título que dei aos dois cursos publicados pelo Centro de Documentação Universitária tinha por finalidade dar uma resposta a essa questão O leitor não encontrará neste livro a resposta que naquele momento eu procurava mas outra coisa Supondo que seja possível uma resposta ela aparecerá no fim do volume que deve se seguir ao presente mas que não foi escrito ainda Não há dúvida de que desde o ponto de partida eu me inclinava a dar uma resposta a essa questão e essa resposta vaga e implícita está presente também neste livro Entre a sociologia marxista do Leste e a sociologia parsoniana do Oeste entre as grandes doutrinas do século passado e as pesquisas parcelares e empíricas de hoje subsiste uma certa solidariedade ou se preferirmos uma certa continuidade Não se pode ignorar a continuidade que existe entre Marx e Max Weber entre Max Weber e Parsons e mesmo entre Auguste Comte e INTRODUÇÃO 7 Durkheim e entre este último Mareei Mauss e Claude LéviStrauss Os soció logos de hoje são claramente sob alguns aspectos os herdeiros e continuado res daqueles que alguns chamam de présociólogos A própria expressão pré sociólogo evidencia a dijiculdade da investigação histórica a que me proponho Qualquer que seja o objeto da história instituição nação ou disciplina cientí fica é preciso definilo delimitálo para acompanhar seu devenir A rigor o historiador da França ou da Europa poderia se limitar a um procedimento mui to simples um pedaço do planeta o hexágono o espaço situado entre o Atlân tico e os Urais seria denominado França ou Europa e o historiador descreve ria o que acontece nesse espaço Na verdade porém ele nunca usa um método tão grosseiro A Europa como a França não são entidades geográficas mas sim históricas elas são definidas tanto uma quanto outra pelo conjunto de ins tituições e de idéias reconhecíveis embora mutáveis e por uma certa extensão territorial Essa definição resulta de um intercâmbio entre o presente e o passado de uma confrontação entre a França e a Europa de hoje e a França e a Europa do século das Luzes ou da Cristandade O bom historiador guarda o sentido do ca ráter específico de cada época da sucessão das épocas e por fim das constan tes que o autorizam a falar de uma só e mesma história Quando o objeto histórico ê uma disciplina científica ou pseudocientífica ou semicientífica a dificuldade é ainda maior Em que data começa a sociolo gia Que autores merecem ser considerados como ancestrais ou fundadores da sociologia Que definição de sociologia devemos adotar Quanto a mim adotei uma definição que reconheço ser vaga embora não a considere arbitrária A sociologia é o estudo que pretende ser científico do social enquanto social seja no nível elementar das relações interpessoais seja no nível macroscópico de vastos conjuntos como as classes as nações as civi lizações ou para empregar a expressão corrente as sociedades globais Esta definição permite mesmo compreender como é difícil escrever uma história da sociologia saber onde ela começa e termina Há muitas maneiras de apreender a intenção científica e o objeto social A sociologia exige a presença concomi tante dessa intenção e desse objeto ou pode começar a existir quando haja ape nas um outro desses caracteres Todas as sociedades tiveram uma certa consciência de si mesmas Muitas conceberam estudos que pretendiam ser objetivos sobre tal ou tal aspecto da vida coletiva A Política de Aristóteles nos parece um tratado de sociologia polí tica ou uma análise comparativa dos regimes políticos Embora comporte tam bém uma análise das instituições familiares e econômicas seu centro é o regi me político a organização das relações de poder em todos os níveis da vida coletiva e em particular no nível em que se realiza por excelência a sociabi lidade do homem a cidade Na medida em que a intenção de apreender o social enquanto tal è constitutiva do pensamento sociológico Montesquieu merece 8 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO figurar neste livro como fundador da sociologia mais do que Aristóteles Por ou tro lado se considerarmos a intenção científica mais essencial do que a orien tação social Aristóteles terá títulos provavelmente iguais aos de Montesquieu e até mesmo aos de Auguste Comte Podese dizer mais ainda A sociologia moderna não tem como origem ex clusiva as doutrinas históricosociais do século passado possui outra fonte as estatísticas administrativas os surveys as pesquisas empíricas Há vários anos que o professor Paul Lazarsfeld realiza com a colaboração dos seus discípulos uma pesquisa histórica sobre esta outra fonte da sociologia moderna Podese alegar com argumentos sólidos que a sociologia empírica e quantitativa dos nossos dias deve mais a Le Play e a Quételet do que a Montesquieu ou a Auguste Comte Afinal os professores da Europa oriental se convertem à sociologia no momento em que não se limitam a lembrar as leis da evolução histórica formu ladas por Marx mas começam a interrogarse por sua vez sobre a realidade so viética com a ajuda de estatísticas questionários e entrevistas A sociologia do século XIX marca incontestavelmente um momento da re flexão dos homens sobre si mesmos momento em que o social enquanto tal é tematizado com seu caráter equívoco ora relação elementar entre indivíduos ora entidade global Exprime também uma intenção não radicalmente nova mas original na sua radicalidade isto é a de um conhecimento propriamente cien tífico segundo o modelo das ciências da natureza e com igual objetivo o co nhecimento científico deveria dar aos homens o controle sobre a sua sociedade e a sua história assim como a física e a química lhes demm o controle das forças naturais Para ser científico esse conhecimento não deveria abandonar as ambi ções sintéticas e globais das grandes doutrinas de sociologia histórica Tendo partido em busca da sociologia moderna cheguei de fato a uma galeria de retratos intelectuais O desligamento ocorreu sem que tivesse chegado a percebêlo claramente Dirigiame a estudantes e falava com a liberdade que a improvisação autoriza Em vez de me perguntar a cada momento quais as ca racterísticas do que temos o direito de chamar de sociologia esforceime por apreender o essencial do pensamento desses sociólogos sem esquecer o que consideramos a intenção específica da sociologia e sem esquecer tampouco que essa intenção no século passado era inseparável das concepções filosóficas e de um ideal político Aliás talvez o mesmo aconteça com os sociólogos da nossa época quando se aventuram no terreno da macrossociologia e esboçam uma interpretação global da sociedade Esses retratos serão de sociólogos ou de filósofos Não discutirei esta dúvi da Digamos que se trata de uma filosofia social de tipo relativamente novo de um modo de pensar sociológico caracterizado pela intenção de ciência e pela orientação social modo de pensar que floresce nesta parte final do século XX O homo sociologicus está em vias de substituir o homo economicus As univer INTRODUÇÃO 9 sidades de todo o mundo sem distinção de regime e de continente multiplicam suas cadeiras de sociologia e de congresso a congresso a taxa de crescimento das publicações sociológicas parece aumentar Os sociólogos preconizam méto dos empíricos praticam pesquisas por sondagem empregam um sistema con ceituai próprio questionam a realidade social sob um certo ângulo possuem uma ótica específica Esse modo de pensar se nutre de tradição cujas origens são mostradas pela galeria de retratos que preparei Por que escolhi estes sete sociólogos Por que razão SaintSimon Proudhon e Herbert Spencer não figuram na minha galeria Poderia sem dificuldades invocar motivos razoáveis Auguste Comte pelo intermédio de Durkheim Marx graças às revoluções do século XX Montesquieu por intermédio de Tocqueville e Tocqueville por intermédio da ideologia norteamericana pertencem ao pre sente Quanto aos três autores da segunda parte foram já reunidos por Talcott Parsons no seu primeiro grande livro The Structure of Social Acíion e são estu dados ainda nas nossas universidades mais como mestres contemporâneos do que como autores clássicos Faltaria contudo à honestidade científica se não con fessasse as razões pessoais dessa escolha Comecei por Montesquieu a quem já tinha consagrado anteriormente um curso com a duração de todo um ano porque o autor de O espírito das leis pode ser considerado ao mesmo tempo um filósofo político e um sociólogo Ele ana lisa e compara os regimes políticos à maneira dos filósofos clássicos simulta neamente esforçase por apreender todos os setores do conjunto social e por definir as relações múltiplas entre as variáveis Epossível que a escolha de Mon tesquieu me tenha sido sugerida pela lembrança do capítulo que Léon Brunschvicg lhe consagrou em Les progrès de la conscience dans la philosophie occidentale apresentandoo não como precursor da sociologia mas como sociólogo por excelência exemplar no emprego do método analítico em contraposição ao mé todo sintético de Auguste Comte e seus discípulos Escolhi Alexis de Tocqueville porque muitos sociólogos o ignoram espe cialmente os franceses Durkheim reconheceu em Montesquieu um precursor Não creio que tenha jamais atribuído o mesmo crédito ao autor de A democracia na América Desde o meu tempo de secundarista ou estudante de faculdade já era possível colecionar diplomas de letras filosofia ou sociologia sem ter ouvi do jamais falar em Tocqueville nome que nenhum estudante do outro lado do Atlântico pode ignorar No fim da vida sob o Segundo Império Alexis de Toc queville se queixava de um sentimento de solidão mais intenso do que o que conhe cera nos desertos do Novo Mundo Seu destino póstumo na França prolongou a experiência de seus últimos anos de vida Depois de ter tido um êxito triunfal com seu primeiro livro esse descendente de uma grande família normanda con vertido à democracia pela razão e com tristeza não pôde desempenhar o papel a que aspirava numa França exposta sucessivamente ao egoísmo sórdido dos 10 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO proprietários à fúria dos revolucionários e ao despotismo de um só Demasiado liberal para o seu partido insuficientemente entusiasta das novas idéias aos olhos dos republicanos ele não foi adotado nem pela direita nem pela esquerda permanecendo suspeito a todos Esta é a sorte reservada na França à escola inglesa ou angloamericana isto é aos franceses que comparam ou compara vam nostalgicamente as peripécias tumultuosas da história da França a partir de 1789 com a liberdade que usufruíram os povos de língua inglesa Politicamente isolado pelo estilo da sua adesão reticente à democracia mo vimento mais irresistível do que ideal Tocqueville se opõe a algumas das idéias diretrizes da escola sociológica da qual Auguste Comte passa por fundador e Durkheim por principal representante pelo menos na França A sociologia im plica a tematização do social enquanto tal mas não necessariamente que as ins tituições políticas o modo de governo possam ser reduzidos à infraestrutura social ou possam ser deduzidos a partir dos traços estruturais da ordem social Ora a passagem da tematização do social para a desvalorização do político ou para a negação do caráter específico da política é muito fácil sob formas dife rentes encontramos esse mesmo desvio em Auguste Comte e em Karl Marx ou Émile Durkheim O conflito histórico do pósguerra entre regimes de democra cia liberal e regimes de partido único todos vinculados a sociedades que Toc queville teria chamado de democráticas e Auguste Comte de industriais dá uma atualidade atraente á alternativa com que termina A democracia na América As nações dos nossos dias não poderiam impedir que suas condições internas fossem iguais depende delas porém que essa igualdade as leve à servidão ou à liberdade às luzes ou à barbárie àprosperidade ou à miséria O leitor poderá especular sobre a razão que me levou a escolher Auguste Comte em lugar de SaintSimon A razão é simples qualquer que seja a impor tância que se atribua ao próprio SaintSimon na linha de pensamento que ele inaugurou sua obra não constitui um conjunto sintético comparável ao pensa mento comtista Supondo que a maior parte dos temas do positivismo já estejam presentes na obra do conde de SaintSimon eco sonoro do espírito do seu tem po esses temas só se organizam com rigor filosófico graças ao gênio estranho do politécnico que teve antes de tudo a ambição de abranger a totalidade do conhecimento da sua época e que logo se encerrou voluntariamente na constru ção intelectual que ele próprio edificou Proudhon não figura nessa galeria de retratos embora sua obra me seja familiar porque o considero mais moralista e socialista do que sociólogo Não que lhe tenha faltado uma visão sociológica do devenir histórico poderseia dizer o mesmo de todos os socialistas no entanto dificilmente se conseguiria extrair dos seus livros o equivalente do que o Curso de filosofia positiva ou O capital oferecem ao historiador do pensamento sociológico Quanto a Herbert INTRODUÇÃO 11 Spencer confesso que seu lugar já estava reservado Mas o retrato exige um co nhecimento intimo do modelo Li várias vezes as principais obras dos sete auto res que chamei de fundadores da sociologia mas não poderia dizer o mesmo das obras de Spencer Os retratos e mais ainda os esboços esses capítulos merecem ser chama dos mais de esboços do que de retratos refletem sempre em algum grau a per sonalidade do pintor Ao reler a primeira parte depois de sete anos e a segun da ao fim de cinco anos penso ter percebido a intenção que orientava cada uma das exposições e da qual provavelmente não tive consciência no momento em que as preparei Com relação a Montesquieu e a Tocqueville quis claramente defender sua causa junto aos sociólogos de estrita observância e assegurar que esse parlamentar da Gironde e esse deputado da Mancha fossem reconhecidos dignos de um lugar entre os fundadores da sociologia embora um e outro tenham evitado o sociologismo e mantido a autonomia no sentido causai e até mesmo uma certa primazia no sentido humano da ordem política com relação à estru tura ou infraestrutura social Como Auguste Comte há muito teve sua legitimidade reconhecida minha exposição de sua doutrina visa a um objetivo diferente interpretar o conjunto da sua obra a partir de uma intuição original E possível que eu tenha sido levado assim a emprestar á filosofia sociológica de Comte ainda mais unidade siste mática do que ela tem o que já era muito A exposição do pensamento marxista é polêmica menos contra Marx do que contra as interpretações que estavam muito em moda há dez anos e que su bordinavam O capital ao Manuscrito econômicofilosófico deixando de levar em conta a ruptura entre as obras da juventude de Marx anteriores a 1845 e as obras da maturidade Ao mesmo tempo quis identificar as idéias de Marx historicamente essenciais que os marxistas da II e da III Internacionais apro veitaram e utilizaram Precisei para isso sacrificar a análise em profundidade que já havia feito em outro curso e que espero retomar algum dia da diferença entre a crítica tal como a entendia Marx entre 1841 e 1844 e a crítica da eco nomia política contida em seus grandes livros Althusser acentuou este ponto decisivo a continuidade ou descontinuidade entre o jovem Marx e o Marx de O capital depende do sentido que tem o termo critica nos dois momentos da sua carreira As três exposições da segunda parte me parecem mais acadêmicas talvez menos orientadas no sentido de um objetivo definido Épossível entretanto que tenha sido injusto com relação a Emile Durkheim pois sempre senti uma antipa tia imediata com relação às suas idéias Provavelmente não suporto bem o so ciologismo para o qual se encaminham com tanta freqüência as análises socio lógicas e as intuições profundas de Durkheim Insisti possivelmente mais do que seria razoável na parte mais contestável da sua obra isto é sua filosofia 12 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Apresentei o autor do Traité de sociologie générale sem nenhum envolvimen to pessoal embora lhe tenha dedicado há trinta anos um artigo apaixonadamen te hostil Pareto é um solitário e ao envelhecer começo a aproximarme dos au tores malditos mesmo se em parte mereceram a maldição que os atingiu Além disso o cinismo paretiano entrou nos costumes Um filósofo meu amigo chama Pareto de imbecil deveria precisar filosoficamente imbecil não conheço mais professores como Célestin Bouglé que há trinta anos não podiam ouvir uma re ferência a Vilfredo Pareto sem uma explosão de cólera provocada pelo simples nome do grande economista autor de um monumento sociológico a que a poste ridade não soube ainda que lugar atribuir na história do pensamento Obrigado a me conformar em reconhecer o mérito de Durkheim e sendo desapaixonado com relação a Pareto conservo por Max Weber a admiração que lhe devoto desde a juventude embora me sinta muito distante dele em uma série de pontos alguns importantes A verdade porém é que Max Weber nunca me irrita mesmo quando não posso concordar com o que diz enquanto até os ar gumentos convincentes de Durkheim me produzem uma sensação de malestar Deixo aos psicanalistas e aos sociólogos o cuidado de interpretar essas reações provavelmente indignas de um homem de ciência Apesar de tudo tomei certas precauções contra mim mesmo multiplicando as citações embora não ignore que a escolha das citações como a escolha das estatísticas tem um importante elemento de arbitrariedade Uma última palavra na conclusão da primeira parte afirmo pertencer à escola dos sociólogos liberais de Montesquieu Tocqueville aos quais junto Elie Halévy Façoo com uma certa ironia descendente retardado que escapou aos críticos deste livro já publicado nos Estados Unidos e na Inglaterra Contudo parece útil acrescentar que nada devo á influência de Montesquieu ou de Toc queville cujas obras só estudei com seriedade nos últimos dez anos Por outro lado há trinta e cinco anos que leio e releio as obras de Marx Várias vezes empreguei o procedimento retórico do paralelismo ou da oposição Tocqueville Marx em particular no primeiro capítulo de Essai sur les libertés Cheguei a Tocqueville a partir do marxismo da filosofia alemã e da observação do mundo atual Nunca hesitei entre A democracia na América e O capital Como a maio ria dos estudantes e professores franceses não tinha lido A democracia na América quando pela primeira vez em 1930 tentei sem o conseguir demons trar a mim mesmo que Marx estava certo e que o capitalismo tinha sido conde nado definitivamente em O capital Quase que a despeito de mim mesmo conti nuo a me interessar mais pelos mistérios de O capital do que pela prosa límpi da e triste de A democracia na América Minhas conclusões pertencem à esco la inglesa minha formação vem sobretudo da escola alemã Este livro foi revisto por Guy Berger auditor do Tribunal de Contas Sua contribuição ultrapassa de muito a correção do material de aula que não havia INTRODUÇÃO 13 sido redigido previamente e que trazia os defeitos da palavra oral O livro lhe deve muito e por isso registro minha viva e amigável gratidão NOTA DA EDIÇÃO BRASILEIRA Na presente edição foi acrescentada às bibliografias de fim de capítulo uma relação das principais edições em língua portuguesa das obras do autor estu dado no capítulo Na medida do possível procuramos também fornecer indica ções das edições em português das outras obras citadas por R Aron As edições utilizadas por R Aron para a citação de textos estão indicadas na bibliografia no final de cada capítulo As traduções que apresentamos dos textos citados foram realizadas a partir dessas citações sendo que as traduções dos textos citados nas notas foram feitas por esta editoria Desta edição não constam os anexos Auguste Comte et Alexis de Tocque ville juges de 1Angleterre Idées politiques et vision historique de Tocqueville et Max Weber et la politique de la puissance NOTAS 1 Esta Introdução foi escrita em 1966 para a edição de 1967 de Les étapes de la pensée sociologique Trad bras As etapas do pensamento sociológico Martins Fontes São Paulo N do T 2 Hoje a expressão mais comum é países em via de desenvolvimento N do T 3 O Hexágono isto é a França metropolitana assim denominada em razão da sua forma geográfica N do E PRIMEIRA PARTE Os fundadores tary turonndn CharlesLouis de Secondat barão de Montesquieu Eu me consideraria o mais ditoso dos mortais se pudesse fazer com que os homens se curassem dos seus preconceitos Chamo de preconcei tos não o que nos faz ignorar certas coisas mas o que nos leva à igno rância de nós mesmos Uesprit des lois prefácio Pode parecer surpreendente começar uma história do pensamento socioló gico pelo estudo de Montesquieu Na França esse autor geralmente é conside rado um precursor da sociologia e se atribui a Auguste Comte o mérito de ter fundado essa ciência o que é verdade se fundador for aquele que criou o termo Contudo se o sociólogo se define por uma intenção específica conhecer cientificamente o social enquanto tal Montesquieu é a meu ver um sociólogo tanto quanto Auguste Comte A interpretação da sociologia implícita em O es pírito das leis é com efeito mais moderna sob certos aspectos do que a de Auguste Comte O que não prova que Montesquieu tenha razão e Auguste Comte não tenha mas simplesmente que Montesquieu a meu modo de ver não é apenas um precursor mas um dos fundadores da sociologia Considerar Montesquieu como sociólogo é responder a uma pergunta for mulada por todos os historiadores em que disciplina se insere Montesquieu A que escola pertence A incerteza é visível na organização universitária francesa Montesquieu pode figurar simultaneamente no programa de graduação em literatura em filosofia e até mesmo em alguns casos em história Num nível mais elevado os historiadores das idéias situam Montesquieu ora entre os homens de letras ora entre os teóricos da política às vezes como historiador do direito outras vezes entre os ideólogos que no séc XVIII dis cutiram os fundamentos das instituições francesas e prepararam a crise revolu cionária e até mesmo entre os economistas1 A verdade é que Montesquieu foi ao mesmo tempo um escritor um jurista um filósofo da política e quase um ro mancista Não há dúvida contudo de que na sua obra O espírito das leis ocupa uma posição central Ora a intenção de O espírito das leis pelo que me parece é evidentemente sociológica 18 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Aliás Montesquieu não faz mistério disso Seu objetivo é tomar a história inteligível deseja compreender o dado histórico Ora este se apresenta a seus olhos sob a forma de uma diversidade quase infinita de costumes idéias leis e instituições O ponto de partida da sua investigação é precisamente essa diver sidade que parece incoerente a finalidade da pesquisa deveria ser a substitui ção desta diversidade incoerente por uma ordem conceituai Exatamente como Max Weber Montesquieu deseja passar do dado incoerente a uma ordem inte ligível Ora esse processo é próprio do sociólogo Mas as duas expressões que utilizei acima diversidade incoerente ordem inteligível colocam evidentemente um problema Como se chegará a desco brir uma ordem inteligível Qual será a natureza dessa ordem inteligível que deve substituir a diversidade radical dos hábitos e costumes Pareceme que há na obra de Montesquieu duas respostas que não são contraditórias ou melhor duas etapas de um mesmo processo de investigação A primeira consiste na afirmação de que além do caos dos acidentes po demse descobrir causas profundas que explicam a aparente irracionalidade dos acontecimentos Em Considérations sur les causes de la grandeur et de la décadence des romains Considerações sobre as causas da grandeza e da decadência dos ro manos Montesquieu escreve Não é o acaso que domina o mundo Podese perguntar aos romanos que tive ram uma fase contínua de prosperidade quando se governavam de uma determina da forma e uma sucessão ininterrupta de reveses quando agiram de outra forma Há causas gerais morais ou físicas que agem em cada monarquia levantandoa mantendoa ou destruindoa Todos os acidentes estão sujeitos a essas causas e se o acaso de uma batalha isto é uma causa particular arruinou um Estado havia uma causa geral que fazia com que esse Estado devesse perecer em uma única bata lha Numa palavra a tendência principal traz consigo todos os acidentes particula res Cap 18 O C t II p 173 E em Lesprit des lois Não foi Poltava que arruinou Carlos XII Se ele não tivesse sido destruído num local teria sido em outro Os acidentes do acaso são facilmente reparados Mas não é possível evitar fatos que nascem continuamente da natureza das coisas Liv X cap 13 O C t II p 387 A idéia subjacente a essas duas citações é a meu ver a primeira idéia pro priamente sociológica de Montesquieu Eu a formularia assim é preciso cap tar por trás da seqüência aparentemente acidental dos acontecimentos as causas profundas que os explicam OS FUNDADORES 19 Uma proposição desse tipo não implica entretanto que as causas profun das tenham feito com que fosse necessário acontecer tudo o que aconteceu A sociologia não se define no seu ponto de partida pelo postulado segundo o qual os acidentes não têm eficácia no curso da história É uma questão de fato de saber se uma vitória ou uma derrota militar foi provocada pela corrupção do Estado ou por erros de técnica ou tática Não é evi dente que uma vitória militar seja ela qual for signifique a grandeza de um Estado ou uma derrota a sua corrupção A segunda resposta de Montesquieu é mais interessante e vai mais longe Consiste em dizer que é possível organizar a diversidade dos hábitos dos cos tumes e das idéias num reduzido número de tipos e não que os acidentes podem ser explicados por causas profundas Entre a diversidade infinita dos costumes e a unidade absoluta de uma sociedade ideal há um termo intermediário O prefácio de Uesprit des lois exprime claramente essa idéia essencial Examinei em primeiro lugar os homens e vi que nessa infinita diversidade de leis e de costumes eles não eram conduzidos exclusivamente por suas fantasias A fórmula implica que a variedade das leis possa ser explicada já que as leis próprias a cada sociedade são determinadas por certas causas que atuam às vezes sem que os homens delas tenham consciência Continua Montesquieu Coloquei os princípios e vi os casos particulares se enquadrarem como que por si mesmos vi as histórias de todas as nações sendo apenas conseqüências de les e vi cada lei particular associada com uma outra lei ou dependendo de uma outra mais geral O C t II p 229 Assim é possível explicar de duas maneiras a diversidade dos costumes que se observa de um lado remontando às causas responsáveis pelas leis par ticulares que se observam neste ou naquele caso de outro isolando os princí pios ou tipos que constituem um nível intermediário entre a diversidade incoe rente e um esquema universalmente válido Tornamos inteligível o devenir por que apreendemos as causas profundas que determinaram o andamento geral dos acontecimentos Tornamos a diversidade inteligível quando a organizamos dentro de um pequeno número de tipos ou de conceitos A teoria política O problema do aparelho conceituai de Montesquieu esse aparelho que lhe permite substituir uma diversidade incoerente por uma ordem pensada se 20 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO reduz mais ou menos à questão clássica entre os intérpretes do plano de O espírito das leis Essa obra nos oferece uma ordem inteligível ou uma cole ção de observações mais ou menos sutis sobre este ou aquele aspecto da reali dade histórica O espírito das leis se divide em várias partes cuja aparente heterogeneida de foi muitas vezes constatada Do meu ponto de vista a obra contém essen cialmente três grandes partes Em primeiro lugar os treze primeiros livros que desenvolvem a teoria bem conhecida dos três tipos de governo isto é o que chamaríamos uma sociolo gia política um esforço para reduzir a diversidade das formas de governo a alguns tipos cada um dos quais definido ao mesmo tempo pela sua natureza e pelo seu princípio A segunda parte vai do livro XIV ao XIX É consagrada às causas materiais ou físicas quer dizer essencialmente à influência do clima e do solo sobre os homens seus costumes e instituições A terceira parte que vai do livro XX ao XXVI estuda sucessivamente a influência das causas so ciais comércio moeda número de habitantes e religião sobre os hábitos os cos tumes e as leis Portanto essas três partes são aparentemente por um lado uma sociologia da política e por outro um estudo sociológico das causas umas físicas e outras morais que agem sobre a organização das sociedades Restaria mencionar além dessas três partes principais os últimos livros de O espírito das leis que consagrados ao estudo da legislação romana e feudal apresentam ilustrações históricas bem como o livro XXIX que é difícil de classificar em qualquer dessas grandes divisões e que procura responder à ques tão como compor uma elaboração pragmática das conseqüências que se dedu zem do estudo científico Finalmente há um livro também difícil de classificar nesse plano de con junto o livro XIX que trata do espírito geral de uma nação Não está asso ciado a nenhuma causa particular nem ao aspecto político das instituições mas ao que constitui talvez o princípio unificador do todo social E de qualquer forma um dos mais importantes da obra e representa a transição ou ligação entre a primeira parte de O espírito das leis a sociologia política e as duas ou tras que estudam as causas físicas ou morais Esta recapitulação do plano de O espírito das leis nos permite situar os pro blemas essenciais da interpretação de Montesquieu As diferenças entre a pri meira parte da obra e as duas outras têm causado espécie a todos os historiado res Sempre que observam essa aparente heterogeneidade entre as partes de um mesmo livro sentemse tentados a recorrer a uma interpretação histórica pro curando determinar a data em que cada uma delas foi escrita No caso de Montesquieu essa interpretação histórica pode ser desenvolvi da sem grandes dificuldades Os primeiros livros de O espírito das leis se não o OS FUNDADORES 21 primeiro pelo menos do II ao VIII isto é os que analisam os três tipos de go verno têm inspiração aristotélica Foram escritos antes da viagem do seu autor à Inglaterra numa época em que se encontrava sob a influência predominante da filosofia política clássica Ora na tradição clássica a Política de Aristóteles era considerada a obra essencial Assim não se pode duvidar de que Montes quieu tenha escrito os primeiros livros tendo ao lado a Política Em quase todas as páginas podemse encontrar referências a Aristóteles sob a forma de alusões ou críticas Os livros seguintes em especial o famoso livro XI sobre a Constituição da Inglaterra e a separação dos poderes foram escritos provavelmente mais tarde depois da estada na Inglaterra sob a influência das observações feitas por ocasião dessa viagem Quanto aos livros de sociologia consagrados ao estudo das causas físicas ou morais foram escritos provavelmente ainda mais tarde A partir desse ponto seria fácil mas pouco satisfatório apresentar O espí rito das leis como a justaposição de dois modos de pensar de duas maneiras de estudar a realidade Montesquieu seria por um lado um discípulo dos filósofos clássicos Nes se sentido desenvolveu uma teoria dos tipos de governo que mesmo se afastan do em alguns pontos da teoria clássica de Aristóteles pertence ainda ao clima e à tradição desses filósofos Montesquieu seria também por outro lado um soció logo que investiga a influência que o clima a natureza do solo a quantidade de pessoas e a religião podem exercer sobre os diferentes aspectos da vida coletiva Assim como o autor é pensador político e ao mesmo tempo sociólogo O espirito das leis seria uma obra incoerente não um livro ordenado por uma intenção predominante e um sistema conceituai embora reúna trechos de data e talvez de inspiração diferentes Antes de nos resignarmos a uma interpretação que supõe que o historiador seja mais inteligente do que o autor e capaz de perceber de imediato a contra dição que teria escapado ao gênio é preciso procurar a ordem interna que Mon tesquieu com ou sem razão encontrava no seu próprio pensamento O proble ma que aqui se coloca é o da compatibilidade entre a teoria dos tipos de gover no e a teoria das causas Montesquieu distingue três modalidades de governo a república a monar quia e o despotismo Cada um desses tipos é definido em relação a dois con ceitos que o autor chama de natureza e de princípio do governo A natureza do governo é o que faz com que ele seja o que é O princípio do governo é o sentimento que deve animar os homens dentro de um tipo de governo para que este funcione harmoniosamente Assim a virtude é o princí pio da república o que não significa que numa república os homens sejam vir tuosos mas apenas que deveriam sêlo e que as repúblicas só prosperam na medida em que seus cidadãos são virtuosos2 22 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A natureza de cada governo é determinada pelo número dos que detêm a soberania Neste sentido escreve Montesquieu Suponho três definições ou antes três fatos um é o de que o governo republicano é aquele em que o povo coletivamente ou só uma parte do povo tem o poder soberano no monárqui co um só governa mas por meio de leis fixas e estabelecidas no despotismo porém uma só pessoa sem lei e sem regras tudo arrasta com sua vontade e seus caprichos O espírito das leis livro II cap 1 O C t II p 239 A dis tinção aplicada à república o povo coletivamente ou só uma parte dele tem por objetivo lembrar as duas espécies de governo republicano a democracia e a aristocracia Essas definições nos revelam imediatamente que a natureza de um gover no não depende somente do número dos que detêm o poder soberano mas tam bém do modo como este é exercido Tanto a monarquia quanto o despotismo são regimes que implicam um só detentor do poder mas no caso do regime monárquico esse detentor único governa de acordo com leis fixas e estabeleci das e no despotismo governa sem leis e sem regras Temos assim dois critérios ou em jargão moderno duas variáveis para precisar a natureza de cada gover no de um lado quem detém o poder soberano de outro a forma como esse poder é exercido Convém acrescentar um terceiro critério o do princípio do governo Um tipo de governo não é suficientemente definido pela característica quase jurídi ca da posse do poder soberano Cada tipo de governo se caracteriza além disso pelo sentimento sem o qual não pode durar ou prosperar Ora segundo Montesquieu existem três sentimentos políticos fundamen tais e cada um deles assegura a estabilidade de um tipo de governo a repúbli ca depende da virtude a monarquia da honra o despotismo do medo A virtude da república não é uma virtude moral mas política consiste no respeito às leis e no devotamento do indivíduo à coletividade A honra como diz Montesquieu é filosoficamente falando uma falsa honra É o respeito de cada um pelo que ele deve à sua posição na sociedade3 Quanto ao medo não é necessário definilo Tratase de sentimento ele mentar por assim dizer infrapolítico Mas é um sentimento que foi tratado por todos os pensadores políticos porque muitos deles a partir de Hobbes o con sideraram como o sentimento mais humano o mais radical aquele a partir do qual se explica o próprio Estado Montesquieu porém não é um pessimista co mo Hobbes A seus olhos um regime baseado no medo é essencialmente cor rupto quase a negação mesma da política Os súditos que só obedecem movi dos pelo medo quase não são mais homens Essa classificação dos regimes é original com relação à tradição clássica Montesquieu considera inicialmente a democracia e a aristocracia que na classificação aristotélica constituem dois tipos distintos como duas modalida os FUNDADORES 23 des de um mesmo regime chamado republicano e o distingue da monarquia Na opinião de Montesquieu Aristóteles não reconheceu a verdadeira natureza da monarquia o que se explica facilmente já que a monarquia como ele a conce be só se realizou autenticamente nas monarquias européias4 Existe uma razão profunda que explica essa concepção original A distinção dos tipos de governo em Montesquieu é ao mesmo tempo uma distinção das organizações e das estruturas sociais Aristóteles tinha elaborado uma teoria dos regimes à qual atribuíra aparentemente um valor geral mas que pressu punha como base social a cidade grega A monarquia a aristocracia e a demo cracia eram os três tipos de organização política das cidades gregas Era legíti mo assim distinguir os tipos de governo segundo o número dos que detinham o poder soberano Mas esse tipo de análise implicava que os três regimes cor respondessem para empregar uma expressão moderna à superestrutura políti ca de uma certa forma de sociedade A filosofia política clássica não se preocupara muito com as relações entre os tipos de superestrutura política e as bases sociais Não havia formulado niti damente a questão até que ponto é possível classificar os regimes políticos sem levar em conta a organização social A contribuição decisiva de Montesquieu consiste precisamente em retomar o problema na sua generalidade e combinar a análise dos regimes com a análise das organizações sociais de tal modo que cada governo apareça ao mesmo tempo como uma sociedade determinada A relação entre regime político e sociedade é estabelecida em primeiro lugar e de modo explícito na tomada de consciência da dimensão da socieda de Segundo Montesquieu cada um dos três tipos de governo corresponde a uma certa dimensão da sociedade As fórmulas não faltam É próprio da natureza de uma república ter apenas um pequeno território de outra forma é quase impossível que ela possa subsistir Liv VIII cap 16 O C t II p 362 Um Estado monárquico deve ter tamanho médio Se fosse pequeno ele se constituiria em república Se muito extenso os chefes de Estado importantes por si mesmos não estando sob os olhos do príncipe com sua corte fora da corte do soberano protegidos aliás pela lei e pelos costumes contra a necessidade de obe diência imediata poderiam deixar de obedecêlo Um grande império supõe uma autoridade despótica naquele que o governa Liv VIII cap 19 O C t II p 365 Se quiséssemos traduzir essas fórmulas em proposições de lógica rigoro sa provavelmente não empregaríamos a linguagem da causalidade isto é afir mar que quando o território de um Estado ultrapassa determinada dimensão o despotismo é inevitável mas diríamos que há uma relação natural entre o volu me da sociedade e seu tipo de governo Isso aliás não deixa de colocar para o 24 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO observador um problema difícil se a partir de um certo tamanho um Estado não pode deixar de ser despótico o sociólogo não estará forçado a admitir a neces sidade de um regime que considera humana e moralmente mau A não ser que para evitar essa conseqüência indesejável afirme que os Estados não devam ultrapassar uma certa dimensão De qualquer forma por meio desta teoria da dimensão do Estado Montes quieu vincula a classificação dos regimes ao que chamamos hoje de morfolo gia social ou o volume das sociedades para usar a expressão de Durkheim Montesquieu associa também a classificação dos regimes à análise das so ciedades baseandose na noção do princípio de governo isto é daquilo que deve ser o sentimento indispensável ao funcionamento de cada regime A teo ria do princípio leva claramente a uma teoria da organização social Se a virtude numa república é o amor às leis o devotamento à coletivida de o patriotismo para usar uma expressão moderna ela implica em última análise um certo sentido de igualdade Uma república é um regime no qual os homens vivem pela e para a coletividade e no qual se sentem cidadãos o que implica que sejam e se sintam iguais entre si Por oposição o princípio da monarquia é a honra Montesquieu elabora uma teoria sobre esse ponto num tom que parece às vezes polêmico e irônico Nas monarquias a política faz realizar as grandes coisas com o mínimo possí vel de virtude Como nas melhores máquinas a técnica emprega o mínimo possível de forças e de engrenagens o Estado subsiste independentemente do amor à pátria do desejo da glória autêntica da renúncia a si mesmo do sacrifício dos interesses pes soais mais caros e de todas essas virtudes heróicas que encontramos nos antigos e das quais apenas ouvimos falar Liv III cap 6 O C p 255 O governo monárquico supõe como dissemos a existência de distinções ní veis hierárquicos e até mesmo a nobreza de origem A natureza da honra consiste em exigir privilégios e distinções por isso mesmo ela fundamenta esse tipo de go verno Na república a ambição é perniciosa Ela tem bons efeitos na monarquia ela dá vida a esse governo com a vantagem de que não é perigosa porque sempre pode ser reprimida Liv III cap 7 O C t II p 257 Esta análise não é inteiramente nova Desde que se puseram a refletir sobre a política os homens sempre oscilaram entre duas teses extremas ou um Estado só é próspero quando os homens querem diretamente o bem da coleti vidade ou então uma vez que isso é impossível um bom regime é aquele em que os vícios dos homens conspiram para o bem de todos A teoria da honra de Montesquieu é uma modalidade dessa segunda tese O bem da coletivida de está assegurado se não pelos vícios dos cidadãos pelo menos por qualida des inferiores até mesmo por atitudes que do ponto de vista moral seriam repreensíveis OS FUNDADORES 25 Pessoalmente acho que nas idéias de Montesquieu a respeito da honra há duas atitudes ou intenções dominantes de um lado uma relativa desvaloriza ção da honra em relação à verdadeira virtude política a dos antigos e a das repúblicas do outro uma valorização da honra enquanto princípio das relações sociais e proteção do Estado contra o mal supremo o despotismo Com efeito se os dois tipos de governo o republicano e o monárquico dife rem em essência porque um se fundamenta na igualdade e o outro na desigualda de um na virtude política dos cidadãos e o outro num substitutivo de virtude que é a honra estes dois regimes possuem no entanto uma característica comum são moderados e neles ninguém comanda de modo arbitrário à revelia das leis Há porém um terceiro tipo de governo o despótico que não pertence à mesma categoria dos regimes moderados Montesquieu combina uma classifi cação dualista dos governos moderados e nãomoderados com a classificação tríplice tradicional A república e a monarquia são moderadas mas o despotis mo não É preciso acrescentar uma terceira espécie de classificação que chamaria de dialética para render homenagem à moda A república se baseia numa orga nização igualitária das relações entre os membros da coletividade A monarquia tem base essencialmente na diferenciação e na desigualdade Quanto ao des potismo ele marca o retorno à igualdade Porém se a igualdade republicana é uma igualdade na virtude e na participação de todos no poder soberano a igual dade despótica é a igualdade no medo na impotência e na nãoparticipação no poder soberano Montesquieu mostra no despotismo por assim dizer o mal político abso luto É verdade que o despotismo talvez seja inevitável quando os Estados se tomam grandes demais ao mesmo tempo é o regime em que uma só pessoa governa sem regras nem leis em que em conseqüência reina o medo Temse a tentação de dizer que a partir do momento em que o despotismo se estabelece cada um tem medo de todos No pensamento político de Montesquieu em última análise a oposição decisiva está entre o despotismo em que todos têm medo de todos e os regi mes de liberdade em que nenhum cidadão teme a nenhum outro Montesquieu exprimiu de forma direta e clara essa segurança que a liberdade dá a cada um nos capítulos do Livro XI consagrados à Constituição inglesa No despotismo há um único limite ao poder absoluto do governante a religião E mesmo assim esta proteção é precária Esta síntese não deixa de provocar discussões e críticas Podese pergun tar antes de mais nada se o despotismo é um tipo político concreto no mesmo sentido em que a república ou a monarquia o são Montesquieu esclarece que o modelo da república nos é oferecido pelas repúblicas antigas em particular 26 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO pela romana antes do período das grandes conquistas Os modelos da monar quia são os reinos europeus do seu tempo o inglês e o francês Quanto aos mo delos do despotismo são os impérios que chama de asiáticos amalgamando assim o Império Persa e o Chinês o Indiano e o Japonês Não há dúvida de que os conhecimentos que Montesquieu tinha da Ásia eram fragmentários contudo ele dispunha de documentação que lhe teria permitido matizar mais sua con cepção do despotismo asiático As idéias de Montesquieu constituem a origem de uma interpretação da his tória asiática que ainda não desapareceu de todo e que é característica do pensa mento europeu os regimes asiáticos seriam essencialmente despóticos sem es trutura política sem instituições nem moderação Visto por Montesquieu o des potismo asiático é o deserto da servidão O soberano absoluto é único todopode roso pode delegar poderes a um grãovizir mas quaisquer que sejam as relações entre o déspota e os que o cercam não há classes sociais em equilíbrio ordens ou níveis hierárquicos estáveis Não encontramos nele nem o equivalente da vir tude antiga nem o da honra européia O medo pesa sobre milhões de pessoas através de imensos espaços onde o Estado só se pode manter sob a condição de que um só governe com poder absoluto Esta teoria do despotismo asiático não será também e sobretudo a imagem ideal do mal político cuja invocação é feita com certa intenção polêmica a respei to das monarquias européias Não esqueçamos a frase famosa Todas as monar quias se vão perder no despotismo como todos os rios no mar A idéia do des potismo asiático reflete a obsessão com o destino que podem ter as monarquias quando perdem o respeito das hierarquias sociais da nobreza dos corpos inter mediários sem os quais o poder absoluto e arbitrário de uma só pessoa perde toda moderação Na medida em que estabelece uma correspondência entre as dimensões territoriais do Estado e a forma de governo a teoria de Montesquieu se arrisca também a incorrer numa forma de fatalismo Em O espírito das leis notase uma oscilação entre dois extremos Seria fácil levantar o número de textos segundo os quais existe uma espécie de hierarquia a república seria o melhor regime seguido da monarquia e do despotismo De outro lado porém se cada regime está ligado irresistivelmente a uma certa di mensão do corpo social estamos diante de um determinismo inexorável e não de uma hierarquia de valores Há enfim uma última crítica ou incerteza que abrange o essencial e que diz respeito à relação entre os regimes políticos e os tipos sociais Essa relação pode ser formulada de diferentes maneiras O sociólogo ou o filósofo podem considerar que um regime político é suficientemente definido por um único critério por exemplo o número dos que detêm o poder sobera no estabelecendo assim uma classificação de significado suprahistórico Essa o s FUNDADORES 27 era a concepção implícita na filosofia política clássica na medida em que esta fazia uma teoria dos regimes não levando em conta a organização da socieda de pressupondo por assim dizer a validade intemporal dos tipos políticos Mas é também possível conforme Montesquieu deixa mais ou menos cla ro fazer uma combinação estrita entre o regime político e o tipo social Nesse caso chegase ao que Max Weber chamaria de três tipos ideais o da cidade an tiga Estado de pequenas dimensões governado como república democracia ou aristocracia o tipo ideal da monarquia européia cuja essência é a diferen ciação das ordens sociais uma monarquia legal e moderada e por fim o tipo ideal do despotismo asiático Estado de grande extensão com o poder absolu to nas mãos de uma só pessoa constituindo a religião o único limite da arbitra riedade do soberano Nesse tipo social a igualdade é restaurada mas com a impotência de todos Montesquieu prefere esta segunda concepção da relação entre regime polí tico e tipo social Ao mesmo tempo porém podese perguntar em que medida os regimes políticos são separáveis das entidades históricas em que se realizam De qualquer forma o fato é que a idéia essencial é esse laço estabelecido entre de um lado o modo de governo o tipo de regime e de outro o estilo das relações interpessoais De fato para Montesquieu não é tão decisivo que o po der soberano pertença a uma só pessoa ou a várias o que é mais decisivo é que a autoridade seja exercida de acordo com as leis e uma ordem ou então ao con trário arbitrariamente de forma violenta A vida social difere em função do modo como o governo é exercido Essa idéia conserva todo o seu alcance den tro de uma sociologia dos regimes políticos Além disso qualquer que seja nossa interpretação das relações entre a classificação dos regimes políticos e dos tipos sociais não se pode negar a Mon tesquieu o mérito de ter colocado claramente o problema Duvido que o tenha resolvido de forma definitiva Contudo alguém mais conseguiu isso A distinção entre governo moderado e governo nãomoderado é provavel mente central no pensamento de Montesquieu e permite integrar as considera ções sobre a Inglaterra do livro XI na teoria dos tipos de governo dos primei ros livros O texto essencial neste particular é o capítulo 6 do livro XI no qual Mon tesquieu estuda a Constituição da Inglaterra5 Esse capítulo teve tal influência que muitos constitucionalistas ingleses interpretaram as instituições do seu país de acordo com a visão de Montesquieu O prestígio do seu gênio foi tal que os ingleses acharam que era possível compreender melhor suas próprias institui ções lendo O espírito das leis6 Montesquieu descobriu na Inglaterra um Estado que tem como objeto pró prio a liberdade política e também o fato e a idéia da representação política 28 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Embora todos os Estados tenham de modo geral um mesmo objetivo que é o de se manter cada Estado tem no entanto uma finalidade que lhe é particular escreve Montesquieu A expansão era o objetivo de Roma a guer ra o da Lacedemônia a religião o das leis judaicas o comércio o de Marse lha Há também uma nação no mundo que tem como objetivo próprio da sua Constituição a liberdade política Uesprit des lois liv XV cap 5 O C t II p 396 Quanto à representação a idéia não figurava em primeiro plano na teo ria da república As repúblicas em que pensa Montesquieu são antigas nelas havia uma assembléia do povo e não uma assembléia eleita pelo povo e com posta de representantes do povo Só na Inglaterra ele pôde observar plenamen te realizada a instituição representativa Esse tipo de governo que tem por objeto a liberdade e no qual o povo é representado por assembléias tem como característica principal o que se deno minou separação dos poderes doutrina que permanece atual e a propósito da qual já se especulou indefinidamente Montesquieu constata que na Inglaterra quem detém o poder executivo é um monarca Como esse poder exige rapidez de decisão e de ação é oportuno que uma só pessoa o detenha O poder legislativo é encarnado por duas assem bléias a Câmara dos Lordes que representa a nobreza e a Câmara dos Comuns que representa o povo Os poderes legislativo e executivo são exercidos por pessoas ou institui ções distintas Montesquieu descreve a cooperação desses órgãos e analisa sua separação Mostra com efeito o que cada um dos poderes pode e deve fazer com relação ao outro Há também um terceiro poder o de julgar Mas Montesquieu esclarece que o poder de julgar tão terrível entre os homens se torna por assim dizer invi sível e nulo porque não está ligado a nenhuma profissão nem a nenhum grupo da sociedade E L liv XI cap 6 O C t II p 398 O que parece indicar que como o poder judiciário é essencialmente o intérprete das leis deve ter o míni mo possível de iniciativa e personalidade Não é um poder de pessoas mas o poder das leis o que se teme é a magistratura não os magistrados Ibid O poder legislativo coopera com o executivo deve examinar em que medi da as leis estão sendo aplicadas corretamente por este último Quanto ao poder executivo não deve debater os casos mas manter relação cooperativa com o le gislativo através daquilo que ele chama de sua faculdade de impedir Montes quieu acrescenta ainda que o orçamento deve ser votado anualmente Se o po der legislativo estabelece o levantamento dos dinheiros públicos de modo per manente e não a cada ano corre o risco de perder sua liberdade pois o poder executivo deixará de depender dele ibid p 405 A votação anual do orça mento é assim uma condição da liberdade o s FUNDADORES 29 Diante destes dados gerais alguns intérpretes têm acentuado a diferença entre o poder executivo e o poder legislativo outros o fato de que deve haver uma cooperação permanente entre eles Temse aproximado o texto de Montesquieu dos de Locke sobre o mesmo assunto De fato certas excentricidades da exposição de Montesquieu são expli cáveis se nos referimos ao texto de Locke7 Em particular no princípio do capí tulo 6 há duas definições do poder executivo A primeira o define como o que decide as coisas que dependem do direito das gentes ibid p 396 o que pa rece limitálo à política exterior Um pouco mais adiante é apresentado como o poder que executa as decisões públicas ibid p 397 o que lhe dá uma exten são bem maior Nessas passagens Montesquieu segue o texto de Locke Entre Locke e Montesquieu porém há uma diferença fundamental de intenção O ob jetivo de Locke é limitar o poder real mostrar que se o monarca ultrapassa cer tos limites ou desrespeita determinadas obrigações o povo fonte verdadeira da soberania tem o direito de reagir A idéia essencial de Montesquieu porém não é a separação de poderes no sentido jurídico mas o que se poderia chamar de equilíbrio dos poderes sociais condição da liberdade política Em toda sua análise da Constituição inglesa Montesquieu supõe a existên cia de uma nobreza e duas Câmaras uma representando o povo a outra a aris tocracia Insiste em que os nobres só devem ser julgados por seus pares De fato os grandes estão sempre expostos à inveja e se fossem julgados pelo povo po deriam correr perigo sem o privilégio que tem o mais modesto dos cidadãos num Estado livre o de ser julgado pelos seus pares É preciso portanto que os nobres respondam àquela parte do corpo legislativo que é composta de nobres e não perante os tribunais ordinários da nação ibid p 404 Em outros ter mos na sua análise da Constituição inglesa Montesquieu procura reencontrar a diferenciação social a distinção das classes e das hierarquias sociais de acor do com a essência da monarquia tal como ele a define e que é indispensável à moderação do poder Comentando Montesquieu eu diria que um Estado é livre quando nele o poder limita o poder O que há de mais marcante para justificar essa interpre tação é que no livro XI depois de terminar o exame da Constituição inglesa ele volta a falar de Roma e analisa o conjunto da história romana em termos das relações entre a plebe e o patriciado O que o interessa é a rivalidade entre as classes Essa competição social é a condição do regime moderado porque as diversas classes são capazes de se equilibrar Quanto à própria Constituição é bem verdade que Montesquieu indica com detalhes como cada um dos poderes tem este ou aquele direito e como devem cooperar entre si Mas essa formalização constitucional não é mais do 30 ÀS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO que a expressão de um Estado livre ou melhor dizendo de uma sociedade livre na qual nenhum poder se estende além dos seus limites porque ele é contido por outros poderes Uma passagem de Considérations sur les causes de la grandeur et de la dé cadence des romains resume perfeitamente esse tema central de Montesquieu Como regra geral sempre que virmos todo o mundo tranqüilo num Estado que se diz uma república podemos ter certeza de que não existe ali a liberdade O que se chama de união num corpo político é coisa muito equívoca A verdadeira união é feita de harmonia que induz todas as partes por mais opostas que nos pa reçam a concorrerem para o bem geral da sociedade como as dissonâncias na mú sica concorrem para o acorde total Pode haver união num Estado em que se pensa ver apenas perturbação isto é uma harmonia da qual resulta a felicidade que é a única paz verdadeira como as partes deste universo que são eternamente ligadas pela ação de umas e a reação de outras Cap 9 O C t II p 119 A idéia de consenso social é a de um equilíbrio de forças ou da paz esta belecida pela ação e reação dos grupos sociais8 Se esta análise é correta a teoria da Constituição inglesa é uma parte cen tral da sociologia política de Montesquieu não porque seja um modelo para todos os países mas porque permite encontrar no mecanismo constitucional de uma monarquia os fundamentos do Estado moderado e livre graças ao equilí brio entre as classes sociais graças ao equilíbrio entre os poderes políticos Mas essa Constituição modelo de liberdade é aristocrática e por isso tem merecido diversas interpretações A primeira interpretação que foi durante muito tempo a dos juristas e que foi ainda provavelmente a dos constituintes franceses de 1958 é uma teoria da separação concebida em termos jurídicos dos poderes dentro do regime re publicano O Presidente da República e o Primeiroministro de um lado o Par lamento de outro têm seus direitos bem definidos chegandose a um equilíbrio no estilo e dentro das tradições de Montesquieu justamente pelo agenciamen to preciso das relações entre os diversos órgãos9 Uma segunda interpretação insiste no equilíbrio dos poderes sociais como eu o fiz acentuando também o caráter aristocrático da concepção de Montes quieu Essa idéia do equilíbrio dos poderes sociais supõe a existência de uma nobreza ela serviu de justificativa aos corpos intermediários do século XVIII no momento em que estes estavam a ponto de desaparecer Desse ponto de vis ta Montesquieu é um representante da aristocracia o qual luta contra o poder monárquico em nome de sua classe que é uma classe condenada Vítima do ardil da história ele se levanta contra o rei pretendendo agir em favor da nobre za mas sua polêmica só favorecerá de fato a causa do povo10 o s FUNDADORES 31 Pessoalmente acredito que existe uma terceira interpretação que retoma a linha da segunda porém ultrapassandoa no sentido do aufheben de Hegel isto é vai mais adiante conservando a parte de verdade É certo que Montesquieu só concebia o equilíbrio dos poderes sociais con dição da liberdade baseado no modelo de uma sociedade aristocrática Pensava que os bons governos eram moderados e que os governos só podiam ser mode rados quando o poder freava o poder ou ainda quando nenhum cidadão tivesse medo dos demais Os nobres só se podiam sentir seguros se seus direitos fos sem garantidos pela própria organização política A concepção social do equi líbrio exposta em O espírito das leis está associada a uma sociedade aristocrá tica e no debate da sua época sobre a Constituição da monarquia francesa Montesquieu pertence ao partido aristocrático e não ao do rei ou ao do povo Resta saber porém se a idéia de Montesquieu sobre as condições da liber dade e da moderação não continua válida independentemente do modelo aris tocrático que tinha em mente Montesquieu provavelmente teria dito que é pos sível conceber uma evolução social pela qual a diferenciação das ordens e hie rarquias sociais tende a se apagar Poderseia no entanto imaginar uma socie dade sem ordens e hierarquias sociais um Estado sem pluralidade de poderes que fosse ao mesmo tempo moderado e no qual os cidadãos fossem livres Podese argumentar que Montesquieu lutando pela nobreza e contra o monarca trabalhou na realidade em favor do movimento popular democrático Os acontecimentos porém justificaram em larga medida sua doutrina demons trando que um regime democrático em que o poder soberano pertence a todos nem por isso é um governo moderado e livre Pareceme que Montesquieu tem toda razão ao manter a distinção radical entre o poder do povo e a liberdade dos cidadãos Pode acontecer que o povo seja soberano e a segurança dos cidadãos e a moderação no exercício do poder desapareçam Além da formulação aristocrática da sua doutrina do equilíbrio dos pode res sociais e da cooperação dos poderes políticos11 Montesquieu elaborou o princípio segundo o qual a condição para o respeito às leis e para a segurança dos cidadãos é a de que nenhum poder seja ilimitado Este é o tema essencial de sua sociologia política Da teoria política à sociologia Essas análises da sociologia política de Montesquieu permitem formular os principais problemas da sociologia geral O primeiro deles tem a ver com a inserção da sociologia política na socio logia do conjunto social Como passar do aspecto fundamental o tipo de go verno para a compreensão de toda a sociedade A questão é comparável à que 32 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO se coloca a propósito do marxismo quando se quer passar do seu aspecto pri vilegiado a organização econômica para a compreensão do todo O segundo problema é o da relação entre o fato e o valor entre a com preensão das instituições e a determinação do regime desejável ou bom Com efeito de que modo se podem ao mesmo tempo apresentar certas instituições como determinadas isto é impostas à vontade dos homens e fazer julgamen tos políticos sobre elas Será possível para um sociólogo afirmar que um regi me que ele considera em certos casos como inevitável contraria a natureza humana O terceiro problema é o das relações entre o universalismo racional e as particularidades históricas Para Montesquieu o despotismo é contrário à natureza humana Mas o que é a natureza humana A natureza de todos os homens em todas as latitudes e em todas as épocas Até onde vão as características do homem enquanto homem e como se pode combinar o recurso a uma natureza do homem com o reconhe cimento da infinita variedade dos costumes dos hábitos e das instituições A resposta ao primeiro problema comporta três etapas ou três momentos de análise Quais são as causas exteriores ao regime político que retêm a aten ção de Montesquieu Qual o caráter das relações que ele estabelece entre as causas e os fenômenos a explicar Há ou não em O espírito das leis uma inter pretação sintética da sociedade considerada como um todo ou há simplesmen te uma enumeração de causas e uma justaposição de relações distintas entre tal determinante e tal determinado sem que se possa dizer que nenhum desses de terminantes seja decisivo A enumeração das causas não apresenta aparentemente nenhum caráter sistemático Montesquieu estuda inicialmente o que chamamos de influência do meio geográfico subdividindose este em clima e solo Quando considera o solo ele se pergunta como os homens cultivam a terra e repartem a propriedade em fun ção da natureza do solo Depois de estudar a influência do meio geográfico Montesquieu passa no livro XIX à análise do espírito geral de uma nação expressão bastante equívo ca pois não se percebe à primeira vista se se trata de um determinante resul tado do conjunto dos outros determinantes ou se se trata de um determinante isolável Em seguida Montesquieu considera não mais as causas físicas porém as causas sociais entre as quais o comércio e a moeda Poderseia dizer que ele trata essencialmente então do aspecto econômico da vida coletiva se não negli genciasse quase inteiramente um elemento que para nós é essencial na análise da economia a saber os meios de produção para empregar a expressão mar OS FUNDADORES 33 xista ou os utensílios e os instrumentos técnicos de que os homens dispõem Para Montesquieu a economia é essencialmente ou bem o regime de proprie dade em particular o da terra ou bem o comércio o intercâmbio as comuni cações entre as coletividades ou enfim a moeda que a seus olhos constitui um aspecto essencial das relações entre os homens dentro das coletividades ou entre coletividades Tal como a vê a economia é essencialmente agricultura e comércio Ele não ignora o que chama as artes o começo daquilo que hoje chamamos de indústria A seus olhos contudo as cidades que dominam a vida econômica são centros de atividades mercantis ou de comércio como Atenas Veneza e Gênova Em outros termos há uma antítese essencial entre as coletivi dades cuja preocupação dominante é a atividade militar e aquelas em que a preo cupação dominante é o comércio Essa noção era tradicional na filosofia polí tica prémoderna A originalidade das sociedades modernas que está associa da ao desenvolvimento da indústria não era percebida pela filosofia política clássica Neste particular Montesquieu pertence àquela tradição Neste senti do podese mesmo dizer que é anterior aos enciclopedistas está longe de ter compreendido plenamente as implicações das descobertas tecnológicas para a transformação dos modos de trabalho e de toda a sociedade Depois do comércio e da moeda vem o estudo da população do número de habitantes Historicamente o problema demográfico pode ser colocado de duas formas Às vezes tratase de lutar contra a redução da população o que para Mon tesquieu é o caso mais freqüente porque segundo ele o que ameaça a maior parte das sociedades é o despovoamento Mas ele conhece também o desafio oposto a luta contra um desenvolvimento da população além dos recursos dis poníveis Finalmente examina o papel da religião que considera como uma das in fluências mais eficazes sobre a organização da vida coletiva Não há dúvida portanto de que Montesquieu passa em revista um certo número de causas Parece que a distinção mais importante para ele é a das cau sas físicas e morais O clima e a natureza do solo pertencem às causas físicas enquanto o espírito geral de uma nação e a religião constituem causas morais Ele poderia facilmente ter feito do comércio e do número de habitantes uma categoria distinta a categoria das características da vida coletiva que atuam so bre os outros aspectos dessa mesma vida coletiva Mas Montesquieu não fez nenhuma teoria sistemática das diversas causas Bastaria contudo alterar a ordem para chegar a uma enumeração satisfató ria Partindo do meio geográfico com as duas noções elaboradas com mais precisão de clima e de natureza do solo passaríamos ao número de habitan tes pois é mais lógico passar do meio físico que limita o volume da socieda de para o número de habitantes A partir daí chegaríamos então às causas pro priamente sociais entre as quais Montesquieu distinguiu assim mesmo as 34 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO duas mais importantes de um lado o conjunto das crenças que ele chama de religião seria fácil ampliar esta noção e de outro a organização do trabalho e do comércio Terminaríamos com aquilo que é o verdadeiro ponto culminan te da sociologia de Montesquieu o conceito do espírito geral de uma nação Quanto aos determinados isto é o que Montesquieu procura explicar pelas causas que examina penso que emprega essencialmente três noções de leis de costumes e de hábitos que define com precisão Costumes moeurs e hábitos manières são usos que as leis não estabelece ram não puderam ou não quiseram estabelecer A diferença entre as leis e os cos tumes é que as primeiras regulam mais as ações do cidadão e os costumes regulam mais as ações do homem Costumes e hábitos diferem no sentido de que os costu mes regulam mais a conduta interior e os hábitos a exterior E L liv XIX cap 16 O C t II p 566 A primeira distinção entre leis e costumes corresponde à que fazem os sociólogos entre o que é decretado pelo Estado e o que é imposto pela socieda de Num caso há regras explicitamente formuladas sancionadas pelo próprio Estado no outro regras positivas ou negativas ordens ou proibições que se impõem aos membros de uma coletividade sem uma lei que as tome obrigató rias e sem que haja sanções legalmente previstas em caso de violação A distinção entre costumes moeurs e hábitos manières inclui a diferença entre os imperativos interiorizados e as maneiras de agir puramente exteriores ordenados pela coletividade Montesquieu distingue ainda essencialmente três tipos principais de leis as leis civis relativas à organização da vida familiar as leis penais pelas quais se interessa apaixonadamente como todos os seus contemporâneos12 e as leis constitutivas do regime político Para compreender as relações estabelecidas por Montesquieu entre as causas e as instituições tomarei como exemplo os célebres livros que tratam do meio geográfico Neles aparece mais claramente o caráter da análise de Montesquieu No meio geográfico considera essencialmente o clima e o solo mas sua elaboração conceituai é bastante pobre Com respeito ao clima limitase quase que à oposição frioquente moderadoextremado Desnecessário dizer que os geógrafos modernos utilizam noções muito mais precisas distinguindo muitos diferentes tipos de clima Quanto ao solo Montesquieu considera sobretudo sua fertilidade ou esterilidade e subsidiariamente o relevo e sua distribuição por sobre um continente determinado Em todos esses pontos aliás é pouco origi nal muitas de suas idéias provêm de um médico inglês Arbuthnot13 O que nos interessa aqui porém é a natureza lógica das relações causais formuladas os FUNDADORES 35 Em muitos casos Montesquieu explica diretamente pelo clima o tempera mento dos homens sua sensibilidade a maneira de ser Diz por exemplo Nos países frios encontraremos menor sensibilidade para os prazeres que será maior nos países temperados e extrema nos países quentes Da mesma forma como se distinguem os climas pelos graus de latitude podese distinguilos por assim dizer pelos graus de sensibilidade Vi as óperas inglesas e italianas As peças e os atores são os mesmos mas a mesma música produz efeitos tão dife rentes nas duas nações numa é tão calma e na outra tão exaltada que isso nos parece inconcebível E L liv XIV cap 2 O C t II p 476 A sociologia seria fácil se as proposições deste tipo fossem verdadeiras Montesquieu parece acreditar que um certo meio físico determina diretamente uma certa maneira de ser fisiológica nervosa e psicológica dos homens Outras explicações porém são mais complexas como aquelas célebres relativas à escravidão No livro XV cujo título é Como as leis da escravidão civil estão relacionadas com a natureza do clima lêse Há países onde o calor enfraquece o corpo e debilita de tal forma a disposi ção que os homens só cumprem um dever penoso movidos pelo medo de serem castigados Nesses países portanto a escravidão choca menos a razão E como o senhor é tão covarde com relação ao príncipe quanto o escravo com relação ao se nhor a escravidão civil é acompanhada da escravidão política Cap 7 O C t II p 495 Um texto como esse é revelador das diferentes facetas do espírito de Mon tesquieu Há em primeiro lugar uma explicação simples quase simplória da relação entre clima e escravidão Na mesma passagem se encontra a fórmula Nesses países portanto a escravidão choca menos a razão o que implica que a escravidão enquanto tal choca a razão e contém implicitamente uma refe rência à concepção universal da natureza humana Nessa passagem encontramos justapostos os dois aspectos da interpretação de um lado interpretação deter minista das instituições enquanto fatos de outro o julgamento sobre essas ins tituições feito em nome de valores universalmente válidos A compatibilidade desses dois modos de pensar é assegurada aqui pela fórmula choca menos a razão Afirmando que a escravidão é como tal contrária à essência da nature za humana Montesquieu encontra na influência do clima razão para justificála Contudo uma tal proposição só é admissível logicamente na medida em que o clima influencia uma instituição ou a favorece sem tornála inevitável De fato se houvesse aí uma relação necessária de causa e efeito estaríamos eviden temente diante da contradição entre uma condenação moral e um determinismo demonstrado cientificamente 36 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Esta interpretação é confirmada no capítulo seguinte Montesquieu conclui com estas linhas típicas do seu pensamento Não sei se é a mente ou o coração que me dita este artigo Talvez não haja na terra esse clima que não permita levar homens livres a trabalhar Por haver leis mal feitas surgiram homens preguiçosos Como esses homens eram preguiçosos foram transformados em escravos Livro XV cap 8 p 497 Aparentemente este último texto nega o precedente que parece atribuir a escravidão ao clima ao passo que aqui ela resulta das más leis e a frase pre cedente implica que em nenhuma parte o clima é tal que a escravidão se torne necessária Na verdade Montesquieu está embaraçado como todos os sociólo gos diante de fenômenos dessa natureza Se vão até o fim da sua explicação causai e descobrem que a instituição que abominam foi inevitável precisam tudo aceitar Isso ainda passa quando se trata de instituições de séculos anterio res o passado estando definitivamente estabelecido não é necessário perguntar o que teria sido possível mas se aplicarmos essas considerações às sociedades atuais e se as aplicarmos às sociedades passadas por que não as aplicar às sociedades atuais chegaremos a um impasse como poderia o sociólogo acon selhar reformas se as instituições mais desumanas são inevitáveis Esses textos só podem ser compreendidos a meu ver se admitirmos que as explicações das instituições pelo meio geográfico são do tipo que um sociólo go moderno chamaria de relação de influência e não de relação de necessida de causai Uma certa causa torna determinada instituição mais provável do que outra Além do mais o trabalho do legislador consiste muitas vezes em con trabalançar as influências diretas dos fenômenos naturais em inserir no tecido do determinismo leis humanas cujos efeitos se opõem aos efeitos diretos e es pontâneos dos fenômenos naturais14 Montesquieu acredita menos do que se tem afirmado no determinismo rigoroso do clima É verdade que admitiu como muitos outros em sua época e com grande simplicidade que o temperamento e a sensibilidade dos homens eram função direta do clima e que de outro lado procurou estabelecer relações de probabilidade entre os dados externos e cer tas instituições mas também é verdade que reconheceu a pluralidade das cau sas e a possibilidade da atuação do legislador também suas análises significam que o meio não determina as instituições mas as influencia contribuindo para orientálas num sentido determinado15 Examinando os outros determinantes Montesquieu se pergunta sobre a re lação entre o número de habitantes e as artes16 colocando o problema para nós fundamental do volume da população que depende evidentemente dos meios de produção e da organização do trabalho o s FUNDADORES 37 De um modo geral o número de habitantes é função das possibilidades da produção agrícola Numa determinada coletividade pode haver tantas pessoas quantas possam ser alimentadas pelos agricultores Se o solo for bem cultiva do os agricultores serão capazes não só de produzir alimentos para se alimen tar mas para alimentar outras pessoas É preciso porém que os agricultores queiram produzir além daquilo que é necessário para sua subsistência Convém portanto incentivar os agricultores a produzir o máximo possível e encorajar a troca entre os bens produzidos nas cidades pelas artes ou indústria e os bens produzidos no campo Montesquieu conclui que para incitar os camponeses a pro duzir é bom despertarlhes o gosto pelo supérfluo Essa é outra idéia que corresponde à verdade Só se pode iniciar o proces so de expansão nas sociedades subdesenvolvidas criando novas necessidades para os agricultores que vivem nas condições tradicionais É preciso que dese jem possuir mais do que aquilo a que estão acostumados Ora diz Montesquieu só os artesãos produzem esse supérfluo Mas continua Essas máquinas cujo objeto é poupar o esforço nem sempre são úteis Se um produto tem preço moderado que convém igualmente a quem o compra e ao ope rário que o produziu as máquinas que simplificassem sua produção isto é redu zissem o número de operários seriam perniciosas se os moinhos dágua não esti vessem implantados em toda a parte não os consideraria tão úteis quanto se afirma porque fizeram parar uma infinidade de braços privando muita gente do uso da água o que fez com que muitas terras perdessem sua fecundidade E L liv XXIII cap 15 O C t II p 692 Este texto é interessante Essas máquinas cuja finalidade é abreviar a arte em estilo moderno inferior ao de Montesquieu são máquinas que reduzem o tempo de trabalho necessário à produção de objetos manufaturados O que preo cupa Montesquieu portanto é o que chamaríamos de desemprego tecnológico Se com a ajuda de uma máquina é possível produzir o mesmo objeto com menos tempo de trabalho um certo número de operários deverá ser afastado do processo de produção Isso preocupa Montesquieu como preocupou muitos ou tros homens a cada geração nos últimos dois séculos Esse raciocínio omite evidentemente aquilo que se tornou o princípio de toda a economia moderna a idéia de produtividade Se se pode produzir o mesmo objeto com menos tempo de trabalho a mãodeobra liberada poderá ser empregada em outra atividade aumentando assim a produção disponível para toda a coletividade Esse texto demonstra que falta a nosso autor um elemento de doutrina que era conhecido em seu século os Enciclopedistas já o tinham compreendido Montesquieu não entendeu o alcance econômico do progresso científico e tecnológico lacuna bastante curiosa porque se interessava muito 38 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO pela ciência e a tecnologia tendo escrito vários ensaios sobre as ciências e as descobertas tecnológicas Não chegou contudo a compreender o mecanismo pelo qual a diminuição do tempo de trabalho necessário para produzir um bem de terminado permite empregar mais trabalhadores e aumentar o volume global da produção17 Chego agora à terceira etapa do meu questionário sobre o método de Mon tesquieu Em que medida sua investigação ultrapassa a sociologia analítica e a pluralidade de causas De que forma consegue reconstituir o conjunto Penso que se existe uma concepção sintética da sociedade em Lesprit des lois ela está no livro XIX consagrado ao espírito geral de uma nação Montesquieu escreve Várias coisas governam os homens o clima a religião as leis as máximas do governo os exemplos das coisas passadas os costumes os hábitos disso resulta um espírito geral À medida que em cada nação uma dessas causas age com mais força as outras lhe cedem lugar A natureza e o clima dominam de modo quase exclusivo a vida dos selvagens os hábitos governam os chineses as leis tiranizam o Japão os costu mes davam outrora o tom na Lacedemônia e as máximas de governo e os costumes antigos davamno em Roma E L liv XIX cap 4 O C t II p 558 Esse texto merece um comentário No primeiro parágrafo aparece a plura lidade de causas de novo com uma enumeração aparentemente mais empírica do que sistemática As coisas que governam os homens são os fenômenos naturais como o clima e as instituições sociais como a religião as leis as máxi mas de governo são também por outro lado a tradição a continuidade histó rica característica de toda a sociedade e que Montesquieu chama de exemplos das coisas passadas Todas essas coisas juntas formam o espírito geral Este portanto não é uma causa parcial comparável às outras mas a resultante do con junto das causas físicas sociais e morais O espírito geral é uma resultante mas uma resultante que permite apreen der o que constitui a originalidade e a unidade de uma determinada coletivida de Há um espírito geral da França um espírito geral da Inglaterra Passase da pluralidade das causas à unidade do espírito geral sem que este exclua as cau salidades parciais O espírito geral não é uma causa dominante todopoderosa que possa apagar as outras São as características que uma determinada coleti vidade adquire através do tempo como resultado da pluralidade das influências que atuam sobre ela Montesquieu acrescenta uma proposição que logicamente não está impli cada nas duas precedentes pode ocorrer no curso da história que uma causa se tome progressivamente predominante Esboça assim uma teoria ainda hoje o s FUNDADORES 39 clássica a de que nas sociedades arcaicas o domínio das causas materiais é mais forte do que nas sociedades complexas ou como ele diria civilizadas Provavelmente nosso autor afirmaria que no caso de nações antigas como a França e a Inglaterra a ação das causas físicas do clima ou do solo é mode rada comparativamente à ação das causas morais Num certo momento da his tória determinada causa deixa sua marca e impõe seu modelo ao comporta mento de uma coletividade Inclinome a crer que Montesquieu chama de espírito geral de uma nação o que os antropólogos norteamericanos denominam de cultura de uma nação is to é um certo estilo de vida e de relações em comum que é menos uma causa do que um efeito resultado do conjunto das influências físicas e morais que através do tempo modelaram a coletividade Existem contudo em Montesquieu implícita ou explicitamente duas idéias de síntese possíveis Uma seria a influência predominante do regime político e a outra o espírito geral de uma nação Em relação à primeira a da influência predominante das instituições polí ticas podese hesitar entre duas interpretações Tratase de uma influência pre dominante no sentido causai do termo ou de uma influência predominante com relação ao que interessa antes de tudo ao observador como diríamos em lingua gem moderna com relação aos nossos valores isto é com relação à hierarquia da importância que estabelecemos entre diferentes aspectos da vida coletiva Entre essas duas interpretações os textos não permitem uma escolha cate górica Muitas vezes temos a impressão de que Montesquieu admite as duas si multaneamente Entre as causas que agem historicamente ele entende que cabe às instituições políticas a ação mais importante Mas se lhe tivéssemos pergun tado ou objetado a ação mais importante em relação a quê Ele teria provavel mente respondido em relação à grandeza das nações seus êxitos e infortúnios isto é em última análise em relação ao que constitui o objeto privilegiado da curiosidade científica Quanto ao espírito geral de uma nação ele retorna à teoria das instituições políticas dos primeiros livros pois um regime só se mantém na medida em que o sentimento que lhe é necessário existe no povo O espírito geral de uma nação é o que mais contribui para manter esse sentimento ou princípio indispensável à continuidade do regime O espírito geral de uma nação não pode ser comparado à vontade criadora de uma pessoa ou coletividade Não se parece com a escolha existencial de Kant ou de Sartre decisão única que está na originalidade da pluralidade dos atos ou episódios de uma existência individual ou coletiva O espírito geral de uma nação é a maneira de ser de agir de pensar e de sentir de uma coletividade tal como o fizeram a geografia e a história 40 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Preenche sem dúvida duas funções permite o reagrupamento das expli cações parciais sem representar uma explicação última que englobaria todas as demais permite além disso passar da sociologia política para a sociologia do todo social Montesquieu escreve assim Os povos das ilhas são mais inclinados à li berdade do que os povos do continente As ilhas são ordinariamente de peque na extensão uma parte da população não pode ser empregada para oprimir a outra o mar as separa dos grandes impérios e a tirania não pode chegar até lá Os conquistadores esbarram no mar os insulares não são envolvidos pelas con quistas e conservam mais facilmente suas leis E L liv XVIII cap 5 O C t II p 534 Várias dessas afirmações são discutíveis porém tratase apenas de definir o método de Montesquieu Ora nesse capítulo vemos como uma certa situação geográfica favorece uma espécie de instituição política sem contudo determinála Igualmente o capítulo 27 do livro XIX intitulado Como as leis podem contribuir para a formação dos costumes dos hábitos e do caráter de uma na ção e que trata da Inglaterra mostra também quando o lemos depois do cap 6 do livro XI dedicado à constituição britânica como a teoria do princípio reencontra a teoria do espírito geral de uma nação e como as explicações múl tiplas de caráter parcial podem ser reagrupadas na interpretação global de uma determinada coletividade sem que essa interpretação totalizante esteja em con tradição com a pluralidade das explicações parciais Os fatos e os valores A questão fundamental de toda sociologia histórica poderia ser formulada do seguinte modo o sociólogo estaria condenado a observar a diversidade das instituições sem formular um juízo de valor sobre elas Em outras palavras ele deve explicar a escravidão assim como as instituições liberais sem ter possi bilidade de estabelecer uma discriminação e uma hierarquia entre os méritos morais ou humanos de uma ou de outra instituição Em segundo lugar na me dida em que constata uma diversidade de instituições estaria ele obrigado a passar em revista essa diversidade sem integrála num sistema ou ao contrário ele poderia para além dessa variedade encontrar elementos comuns Essas duas antíteses não se sobrepõem exatamente Contudo sem serem equivalentes podem aproximarse desde que os critérios que determinam nossos juízos de valor sejam também critérios universalmente válidos Para analisar esses problemas será melhor tomar como ponto de partida uma noção central de O espírito das leis a saber a própria noção de lei Afinal o s FUNDADORES 41 a grande obra de Montesquieu se chama O espírito das leis e é na análise da noção ou das noções de lei que encontramos a resposta para os problemas que acabo de formular Para nós modernos formados pela filosofia de Kant e pela lógica ensinada nas escolas o termo lei tem duas significações Pode significar primeiramente uma prescrição do legislador uma ordem dada pela autoridade competente que nos obriga a fazer isso ou a não fazer aquilo Chamemos esse primeiro sentido de leipreceito e precisemos que a leipreceito a lei positiva a lei do legislador difere dos costumes e dos hábitos por ser formulada explicitamente enquanto as obrigações e interdições propostas pelos costumes não são elaboradas nem codificadas e de modo geral não têm o mesmo tipo de sanção Podese entender também por lei uma relação de causalidade entre um de terminante e um efeito Por exemplo se afirmamos que a escravidão é uma con seqüência necessária de determinado clima temos uma lei causai que estabele ce uma relação constante entre um meio geográfico de um tipo determinado e uma instituição particular a escravidão Ora Montesquieu escreve que não trata das leis mas do espírito das leis As leis positivas afirma devem estar relacionadas ao aspecto do país seu cli ma frio quente ou temperado à qualidade do solo à sua situação à sua exten são ao tipo de vida dos povos agricultores caçadores ou pastores Elas devem se referir ao grau de liberdade que a Constituição pode suportar à religião dos habitantes às suas inclinações às suas riquezas ao seu número ao seu comér cio a seus costumes e hábitos Enfim as leis têm relação entre si com sua ori gem com o objeto do legislador com a ordem das coisas sobre as quais estão estabelecidas Fazse necessário considerálas É o que pretendo fazer neste livro Examinarei todas essas relações elas formam um conjunto ao qual cha mo de Espírito das leis E L liv I cap 3 O C t II p 238 Montesquieu procura portanto as leis causais que explicam as leisprecei tos De acordo com o texto acima o espírito das leis é precisamente o conjunto das relações entre as leispreceitos das diversas sociedades humanas e os fato res suscetíveis de influenciálas ou de determinálas O espírito das leis é o con junto das relações de causalidade que explicam as leispreceitos Contudo o fato de utilizarmos o termo lei nesses dois sentidos como o faz Montesquieu traz o perigo de malentendidos e dificuldades Se o pensamento de Montesquieu se resumisse às fórmulas precedentes sua interpretação seria fácil As leispreceitos constituiriam o objeto de estudo e as relações de causalidade seriam a explicação dessas leis Se essa interpretação fosse exata seria fiel o reirato de Montesquieu feito por Auguste Comte e alguns outros intérpretes modernos L Althusser por exemplo sustenta que Montes quieu deveria ter pensado assim mesmo supondose que não o tenha feito18 Nes sa hipótese tudo seria bem simples Montesquieu admitiria uma filosofia deter 42 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO minista das leis Essa filosofia constataria a diversidade das legislações e a ex plicaria pela multiplicidade das influências que se exercem sobre as coletividades humanas A filosofia do determinismo se associaria à filosofia da diversidade indefinida das formas de existência coletiva Montesquieu se limitaria a extrair do estudo causai suas conseqüências pragmáticas pressupondo os objetivos do legislador Existem aliás textos bastante conhecidos que têm esse sentido Por exemplo Não escrevo para censurar o que foi estabelecido em nenhum país Cada na ção encontrará aqui as razões das suas máximas e concluiremos naturalmente que em conseqüência só àqueles que tiveram a felicidade de nascer com condições para penetrar com um ato de genialidade toda a constituição de um Estado compete propor alterações Se pudesse fazer com que todo o mundo tivesse novas razões para gostar de suas obrigações amar seu soberano sua pátria suas leis que as pessoas pudessem sentir melhor sua felicidade em cada país em cada governo em cada função em que se encontre eu me consideraria o mais feliz de todos os mortais Prefácio E L O C t II p 230 É verdade que este texto está no prefácio de O espírito das leis e poderia ser explicado pelas circunstâncias Mas também é verdade que na medida em que Montesquieu tivesse sustentado uma filosofia rigorosamente determinista poderia ser também rigorosamente conservador Se admitirmos que as institui ções de uma coletividade são determinadas necessariamente por um conjunto de circunstâncias será fácil escorregar para a conclusão de que as instituições existentes são as melhores Restaria saber se seria o caso de acrescentar no melhor ou no pior dos mundos possíveis É preciso acrescentar que há também em Montesquieu numerosos textos em que ele formula conselhos aos legisladores Esses conselhos é verdade não são contraditórios com uma filosofia de terminista e particularista Se uma instituição é explicada por uma certa influên cia temos o direito de procurar o que seria necessário fazer para atingir deter minados objetivos Por exemplo se demonstrarmos que a legislação decorre do espírito de uma nação será lógico retirar daí o seguinte conselho devemse adap tar as leispreceitos a serem promulgadas segundo o espírito dessa nação O célebre capítulo sobre o espírito da nação francesa termina com o conselho Deixaio fazer seriamente as coisas frívolas e alegremente as coisas sérias E L liv XIX cap 5 O C t II p 559 Também quando um regime foi re duzido a sua natureza e a seu princípio é fácil demonstrar as leis que são apro priadas Assim se a república se fundamenta na igualdade dos homens tirase daí a conseqüência lógica de que as leis da educação ou da economia devem favorecer o sentido de igualdade ou impedir a formação de grandes fortunas o s FUNDADORES 43 A filosofia determinista não exclui os conselhos se esses conselhos per manecem relativos a uma determinada situação geográfica ao espírito de uma nação ou à natureza do regime Em outras palavras tratase de imperativos con dicionais ou hipotéticos O legislador se coloca numa determinada conjuntura e estabelece os preceitos que se impõem na medida em que ele deseja manter um regime ou permitir que a nação prospere Esses tipos de conselhos perten cem à ordem do que LévyBruhl teria chamado de arte racional extraída da ciência essas são as conseqüências pragmáticas de uma sociologia científica Há contudo em O espírito das leis muitos outros textos em que Montesquieu não formula conselhos pragmáticos ao legislador mas condena moralmente determinadas instituições Os textos mais célebres neste particular são os capí tulos do livro XV relativos à escravidão ou o capítulo 13 do livro XXV intitu lado Minha humilde admoestação aos inquisidores de Espanha e de Portu gal um eloqüente protesto contra a Inquisição Muitas vezes Montesquieu dá livre curso a sua indignação a propósito de certas modalidades de organização coletiva Em todos esses textos Montesquieu julga e julga não como sociólogo mas como moralista Podemse explicar esses protestos dizendo que Montesquieu é um homem e não apenas um sociólogo Como sociólogo ele explica a escravidão Quando se indigna é o homem que fala Ao condenar ou defender esquece que está escrevendo um livro de sociologia Mas essa interpretação que atribuiria os julgamentos morais ao Montes quieu homem e não ao Montesquieu cientista contradiz alguns dos textos mais essenciais os do primeiro livro de O espírito das leis em que Montesquieu ela bora uma teoria dos diversos tipos de leis Desde o primeiro capítulo do livro I Montesquieu afirma que existem re lações de justiça ou de injustiça anteriores às leis positivas Ora se formos até o fundo da filosofia da particularidade e do determinismo diremos que o que é justo ou injusto é constituído como tal pelas leis positivas pelos preceitos do legislador e a tarefa do sociólogo consistiria pura e simplesmente em estudar o que os legisladores em diferentes épocas e diferentes sociedades consideraram justo ou injusto Mas Montesquieu afirma de modo bem explícito que não é assim E preciso confessar a existência de relações de eqüidade anteriores à lei positiva que as estabelece Ou ainda Dizer que não há nada justo ou injusto além do que ordenam ou proíbem as leis positivas corresponde a afirmar que antes de termos traçado o círculo nem todos os seus raios eram iguais E L liv I cap 1 O C t II p 233 Em outras palavras se levamos a sério essa formulação devemos admitir que Montesquieu acredita nas relações de eqüidade e nos princípios de justiça anteriores à lei positiva e universalmente válidos Essas relações de eqüidade 44 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO anteriores à lei positiva são por exemplo que admitindo a existência de socie dades de homens seria justo respeitar suas leis que se seres inteligentes tives sem recebido benefício de algum outro deveriam ficarlhe gratos que se um ser inteligente tivesse criado um outro ser inteligente o ser criado deveria per manecer na dependência que existiu desde a sua origem que um ser inteligen te que fez mal a um outro ser inteligente merece receber o mesmo mal e assim por diante Ibid Esta enumeração não tem caráter sistemático Vêse porém que no fundo tudo se reduz a duas noções a de igualdade humana e a de reciprocidade Essas leis da razão essas leis supremas baseiamse na igualdade natural dos homens e nas obrigações de reciprocidade que dela decorrem Essas leis anteriores às leis positivas não são evidentemente leis causais mas leispreceitos que não se originam da vontade de legisladores particulares mas são consubstanciais à natureza ou à razão do homem Haveria portanto uma terceira espécie de lei Além das leis positivas de cretadas em diferentes sociedades além das leis causais que estabelecem rela ções entre as leis positivas e as influências que agem sobre elas há também leis preceitos universalmente válidas cujo legislador é desconhecido a não ser que seja o próprio Deus o que é sugerido por Montesquieu sem que se possa afir mar que seja o seu pensamento profundo Chegamos assim ao problema central da interpretação de O espírito das leis É possível com efeito considerar que essas leis naturais essas leis da razão universalmente válidas não podem ter um lugar no pensamento original de Montesquieu Este as teria conservado por prudência ou por hábito os revo lucionários são sob certos aspectos mais conservadores do que imaginam O que seria revolucionário em Montesquieu seria a explicação sociológica das leis positivas o determinismo aplicado à natureza social A lógica do seu pen samento comportaria apenas três elementos a observação da diversidade das leis positivas a explicação dessa diversidade em função de causas múltiplas e por fim os conselhos práticos dados ao legislador com base na explicação científica das leis Neste caso Montesquieu seria um verdadeiro sociólogo posi tivista que explica aos homens por que eles vivem de determinada maneira O sociólogo compreende os outros homens melhor do que eles próprios se com preendem descobre as causas que explicam a forma assumida pela existência coletiva em diferentes climas e em épocas diferentes ajuda cada sociedade a viver de acordo com sua própria essência isto é de acordo com seu regime seu clima seu espírito geral Os juízos de valor estão sempre subordinados ao obje tivo que adotamos e que é sugerido pela realidade Nesse esquema não há lugar para as leis universais da razão ou da natureza humana O capítulo 1 do livro I o s FUNDADORES 45 de O espírito das leis não teria conseqüências ou seria na doutrina de Montes quieu um resíduo de um modo de pensar tradicional Pessoalmente não acredito que esta interpretação faça justiça a Montes quieu Não creio que se possa explicar o capítulo 1 do livro I unicamente pela prudência Por outro lado não estou convencido de que alguém tenha aceito al gum dia até suas últimas conseqüências essa filosofia integralmente determi nista Se fôssemos até as últimas conseqüências desse tipo de filosofia não seria possível dizer nada de universalmente válido para apreciar os méritos compa rados da república ou do despotismo Ora certamente Montesquieu deseja ao mesmo tempo explicar a diversidade das instituições e conservar o direito de julgar essa diversidade Qual é então a filosofia para a qual ele tende de modo mais ou menos confuso Montesquieu desejaria de um lado explicar de modo causai a diversidade das leis positivas e em segundo lugar desejaria dispor de critérios válidos e universais para fundamentar os juízos de valor ou morais relativos às institui ções consideradas Esses critérios do modo como ele os formula são extrema mente abstratos e estão todos associados a uma noção de igualdade ou de reci procidade Finalmente as instituições que condena de modo radical a escra vidão ou o despotismo são a seus olhos contrárias às características do homem enquanto homem São instituições que contradizem as aspirações naturais do homem Como solução Montesquieu sugere no primeiro capítulo do livro I uma espécie de hierarquia dos seres da natureza inorgânica até o homem Todos os seres têm suas leis a Divindade tem suas leis o mundo material tem suas leis as inteligências superiores ao homem têm suas leis os animais têm suas leis o homem tem suas leis O C t II p 232 Quando se trata da matéria essas leis são pura e simplesmente leis causais essas são leis necessárias que não podem ser violadas Quando chegamos à vida as leis são também leis causais embora de natureza mais complexa Finalmente quando chegamos ao homem essas leis nos diz Montesquieu impondose a um ser inteligente podem ser violadas porque a liberdade acompanha a inteligência As leis relativas à con duta humana não são mais do tipo de causalidade necessária Em outros termos a filosofia que permite a combinação da explicação científica das leis positivas com a manutenção de imperativos universalmente válidos é uma filosofia da hierarquia dos seres que levaria a uma diversidade de leis hierarquia que começa com a natureza inorgânica comandada por leis invariáveis e vai até o homem submetido a leis racionais que ele é capaz de violar Daí a fórmula que sempre pareceu paradoxal É preciso que o mundo in teligente seja tão bem governado quanto o mundo físico porque embora o pri 46 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO meiro tenha também leis que por sua natureza são invariáveis não as segue constantemente como o mundo físico segue as suas próprias A razão está em que os seres inteligentes particulares são limitados por sua natureza e em con seqüência estão sujeitos ao erro Por outro lado é próprio de sua natureza agi rem por si mesmos E L liv I cap 1 O C t II p 233 Esse texto parece enunciar uma inferioridade do mundo inteligente com relação ao mundo físico porque as leis do mundo inteligente leis racionais que comandam seres inte ligentes podem ser violadas Com efeito o filósofo não é obrigado a consi derar a violação possível das leis racionais como uma prova da inferioridade do mundo inteligente com relação ao mundo físico mas pode pelo contrário interpretála como expressão e prova da liberdade humana Podese acusar Montesquieu a propósito dessa concepção da hierarquia dos seres e da heterogeneidade das leis segundo a natureza dos seres de con fundir as duas noções de leis causais e de leispreceitos A teoria da hierarquia dos seres parece classificar na mesma categoria as leis necessárias da matéria as leis do movimento e as leispreceitos da razão Não creio que Montesquieu faça essa confusão Ele estabelece uma dife rença entre as leis positivas promulgadas por um legislador as relações causais que se encontram na história como na natureza e finalmente as leis universal mente válidas associadas de modo intrínseco à razão O que ele pretende é sim plesmente encontrar uma filosofia que lhe permita combinar a explicação de terminista das particularidades sociais com julgamentos morais e filosóficos que sejam universalmente válidos Quando L Althusser critica Montesquieu por essa referência às leis uni versais da razão e propõe contentarse com a explicação determinista das leis na sua particularidade e com os conselhos práticos tirados dessa explicação ele pensa como marxista Ora se o marxismo condena a referência às leis uni versais da razão é porque encontra o equivalente no movimento da história em direção a um regime que realizaria todas as aspirações dos homens e dos sécu los passados De fato uns ultrapassam a filosofia determinista fazendo apelo ao futuro outros a critérios universais le caráter formal Montesquieu escolheu este últi mo caminho para ir além da particularidade Não creio que já se tenha demons trado que sua escolha tenha sido errada O segundo aspecto da filosofia de Montesquieu depois da hierarquia dos seres é constituído pelo capítulo 2 do livro I no qual ele especifica o que seja o homem natural isto é sua concepção do homem enquanto homem anterior por assim dizer à sociedade A expressão anterior à sociedade não significa que na sua opinião tenha havido homens que vivessem afastados da sociedade mas apenas que podemos tentar conceber pela razão o que é o homem sem levar o s FUNDADORES 47 em conta a influência da coletividade em que vive Nesse capítulo Montesquieu pretende refutar a concepção da natureza em Hobbes Essa refutação constitui a meu ver uma maneira de penetrar na compreensão dos temas fundamentais do seu pensamento Montesquieu quer demonstrar que em si mesmo o homem não é belico so O estado da natureza não implica um estado de guerra de todos contra todos mas se não uma paz verdadeira pelo menos um estado estranho à distinção pazguerra Montesquieu quer refutar Hobbes porque este considerando que o homem se acha no estado natural em hostilidade para com seus semelhantes justifica o poder absoluto que é o único capaz de impor a paz e dar segurança a uma espécie belicosa Montesquieu porém não vê a origem da guerra no es tado da natureza Para ele o homem não é intrinsecamente inimigo do homem e a guerra é um fenômeno mais social do que humano Se a guerra e a desigual dade estão ligadas à essência da sociedade e não à essência do homem o obje tivo da política não será eliminar a guerra e a desigualdade inseparáveis da vida coletiva mas simplesmente atenuálas ou moderálas Esses dois raciocínios aparentemente paradoxais são no fundo bastante lógicos Se a guerra é humana podese sonhar com a paz absoluta Se é social apoiamos simplesmente o ideal da moderação Comparando as idéias de Montesquieu com as de JeanJacques Rousseau observase oposição comparável à que acabamos de notar entre Montesquieu e Hobbes Rousseau se refere a um estado da natureza concebido pela razão hu mana que serve por assim dizer de critério à sociedade Esse critério o leva a uma concepção da soberania absoluta do povo Nosso autor se limita a consta tar que as desigualdades provêm da sociedade o que não o leva a concluir que é preciso retornar a uma igualdade natural mas que na medida do possível é preciso atenuar as desigualdades que têm raiz na própria sociedade A concepção de estado de natureza de Montesquieu não só é reveladora do conjunto da sua filosofia política mas está também na origem dos livros IX e X consagrados ao direito das gentes O direito das gentes se fundamenta naturalmente no princípio de que as diver sas nações devem fazer durante a paz o maior bem umas às outras e na guerra o menor mal possível sem prejudicar seus interesses verdadeiros O objetivo da guer ra é a vitória o da vitória a conquista o da conquista a conservação Deste princí pio e do precedente devem derivar todas as leis que compõem o direito das gentes E L liv I cap 3 O C t II p 237 Esse texto mostra que há em O espírito das leis não somente explicação cien tífica causai das leis positivas mas também a análise das leis que presidem as relações entre as coletividades em função do objetivo atribuído por Montesquieu 48 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ao direito das gentes O que significa em outros termos que o fim para o qual se encaminham as coletividades pode ser determinado pela análise racional As interpretações possíveis A filosofia de Montesquieu não é nem a filosofia determinista simplifica da que Auguste Comte por exemplo lhe atribuía nem uma filosofia tradicio nal do direito natural mas uma tentativa de combinação das duas Assim se explicam as muitas interpretações dadas ao seu pensamento O historiador alemão Meinecke que dedicou a Montesquieu um capítulo do seu livro clássico Die Entstehung des Historismus A formação do historicismo considera que a doutrina de Montesquieu oscila entre o universalismo racional característico do pensamento do século XVIII e o sentido histórico das particula ridades que deveria expandirse nas escolas históricas do século XIX É verdade que encontramos em Montesquieu fórmulas inspiradas pela filosofia de uma ordem racional e universal e ao mesmo tempo fórmulas que acentuam a diversidade dos costumes e das coletividades históricas Resta sa ber se é preciso considerar o pensamento de Montesquieu como uma concilia ção precária dessas duas inspirações como uma etapa no caminho da descoberta do historicismo integral ou como uma tentativa legítima e imperfeita de com binar dois tipos de considerações sem eliminar completamente nenhum deles A interpretação de L Althusser é uma nova versão de um Montesquieu contraditório contradição que haveria entre seu gênio inovador e suas opiniões reacionárias Essa interpretação tem uma parte de verdade Nos conflitos de ideo logias do século XVIII Montesquieu pertence a um partido que se pode quali ficar efetivamente de reacionário porque ele recomendava o retorno a institui ções que tinham existido em passado mais ou menos lendário Durante o século XVIII sobretudo durante a primeira metade desse século a grande querela dos escritores políticos franceses era marcada pela teoria da monarquia19 e a situação da aristocracia na monarquia Em linhas gerais duas escolas se opunham A escola romanista alegava que a monarquia francesa des cendia do império soberano de Roma de que o rei da França seria o herdeiro Neste caso a história justificava a pretensão do rei francês ao absolutismo A segunda escola chamada germânica alegava que a situação privilegiada da no breza francesa derivava da conquista do país pelos francos Esse debate deu ori gem a doutrinas que se prolongaram no século seguinte chegando a ideologias propriamente racistas por exemplo a doutrina segundo a qual os nobres seriam germânicos e o povo galoromano A distinção entre aristocracia e povo cor responderia à diferença entre conquistadores e conquistados Esse direito de o s FUNDADORES 49 conquista que hoje justifica mal a manutenção de uma desigualdade era visto no século XVIII como fundamento legítimo e sólido da hierarquia social20 Nessa disputa de duas escolas Montesquieu basta ler os três primeiros livros de O espírito das leis para percebêlo se coloca do lado da escola germâ nica embora com nuanças com reservas e com maior sutileza do que os teóri cos que defendiam com intransigência os direitos da nobreza No fim do capí tulo sobre a constituição da Inglaterra encontramos a fórmula célebre a liber dade inglesa fundada no equilíbrio dos poderes nasceu nas florestas isto é nas florestas da Germânia De um modo geral Montesquieu se mostra preocupado com os privilégios da nobreza e o reforço dos corpos intermediários21 Não é em absoluto um dou trinário da igualdade e menos ainda da soberania popular Associando a de sigualdade social à essência da ordem social ele se acomoda bem com a desi gualdade E se admitirmos como L Althusser que a soberania popular e a igualdade são as fórmulas políticas que triunfaram ao longo das revoluções dos séculos XIX e XX através da Revolução Francesa e da Revolução Russa se acreditarmos que a história caminha no sentido da soberania popular e da igual dade é justo dizer que Montesquieu é um ideólogo do antigo regime e que nesse sentido é propriamente um reacionário Pareceme contudo que a questão é mais complexa Montesquieu acredita de fato que sempre houve desigualdades sociais que o governo sempre é exer cido por privilegiados mas quaisquer que sejam as instituições historicamen te definidas às quais se refere sua última idéia é a de que a ordem social é em essência heterogênea e que a liberdade tem como condição o equilíbrio dos po deres sociais e o governo dos notáveis atribuindose ao termo notáveis o sen tido mais genérico e mais vago que engloba tanto os melhores cidadãos de uma democracia igualitária quanto a nobreza na monarquia ou mesmo num regime de tipo soviético os militantes do partido comunista Em outras palavras a essência da filosofia política de Montesquieu é o li beralismo o objetivo da ordem política é assegurar a moderação do poder pelo equilíbrio dos poderes o equilíbrio entre povo nobreza e rei na monarquia francesa ou na monarquia inglesa o equilíbrio entre o povo e privilegiados en tre plebe e patriciado na república romana Esses são exemplos diversos da mes ma concepção fundamental de uma sociedade heterogênea e hierárquica em que a moderação do poder exige o equilíbrio dos poderes Se esse é o pensamento final de Montesquieu não fica demonstrado que ele tenha sido um reacionário Incontestavelmente foi um reacionário nas que relas do século XVIII Nem previu nem desejou a Revolução Francesa É pos sível talvez que a tenha preparado porque nunca se conhece nem antes nem depois a responsabilidade histórica de cada um conscientemente porém Montesquieu não desejou a Revolução Francesa Na medida em que se pode 50 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO saber o que um homem teria feito em circunstâncias diferentes daquelas em que viveu imaginase que Montesquieu teria sido a rigor um constituinte Logo depois teria passado para a oposição e teria que escolher como os libe rais desse período entre a emigração a guilhotina ou a emigração interna lon ge das peripécias violentas da Revolução Contudo embora politicamente reacionário Montesquieu talvez represen te uma maneira de pensar que não se pode considerar ultrapassada ou anacrô nica Qualquer que seja a estrutura da sociedade numa certa época é sempre possível pensar como Montesquieu isto é analisar a forma própria de hetero geneidade de uma determinada sociedade procurando pelo equilíbrio dos po deres em confronto a garantia da moderação e da liberdade Encontramos uma última interpretação do pensamento de Montesquieu no curto capítulo que Léon Brunschvicg lhe consagra no seu livro Le progrès de la conscience dans la philosophie occidentale Brunschvicg considera o pensa mento de Montesquieu essencialmente contraditório22 De acordo com essa crítica Montesquieu nos deu de um certo modo a obraprima da sociologia pura isto é da sociologia analítica estabelecendo relações múltiplas entre tal fator e tal outro sem uma tentativa de síntese filo sófica sem pretensão a determinar o fator predominante ou a origem profunda de cada sociedade Fora dessa sociologia pura não haveria para Brunschvicg nenhum sistema em Montesquieu Citando a fórmula É preciso que o mundo inteligível seja tão bem governado quanto o físico Brunschvicg pensa que esse paradoxo ver uma inferioridade pelo menos aparente do mundo inteligente na possibili dade de violar as leis a que está submetido corresponde a uma confusão entre lei causai e leipreceito Brunschvicg mostra também a oscilação de Montesquieu entre as fórmu las cartesianas do tipo antes de se traçar o círculo todos os seus raios já são iguais assim também existe o justo e o injusto antes da promulgação de leis positivas e uma classificação dos tipos de regime que deriva da tradição aris totélica Finalmente Brunschvicg não encontra nem unidade nem coerência em O espírito das leis limitandose a concluir que os leitores de qualquer forma viram aí uma filosofia implícita do progresso inspirada por valores liberais Pessoalmente acho esse julgamento severo É verdade que não há sistema em Montesquieu o que talvez esteja conforme com o espírito de uma certa sociologia histórica Mas espero ter demonstrado que o pensamento de Montes quieu está longe de ser tão contraditório como muitas vezes se afirma Como sociólogo Montesquieu procurou combinar duas idéias que não podem ser abandonadas mas que são difíceis de combinar De um lado afirma implicitamente a pluralidade indefinida das explicações parciais Demonstrou assim como são numerosos os aspectos de uma coletividade que é preciso o s FUNDADORES 51 explicar como são numerosas as determinantes a que se podem atribuir as dife rentes facetas da vida coletiva De outro lado buscou o meio de ir além da jus taposição de relações parciais de apreender algo que constitui a unidade dos conjuntos históricos Pensou encontrar de maneira mais ou menos clara esse princípio de unificação que não contradiz a pluralidade indefinida das expli cações parciais na noção de espírito de um povo associado à teoria política por meio do princípio de governo Em O espírito das leis percebemse nitidamente muitas espécies de explica ções ou de relações abrangentes como as que os sociólogos de hoje procuram elaborar Essas relações abrangentes devem servir de orientação para os reda tores das leis e são de diversas ordens Por exemplo tendo enunciado o tipo ideal de um determinado governo Montesquieu pode logicamente mostrar co mo devem ser as diferentes categorias de leis leis da educação leis fiscais leis comerciais leis suntuárias a fim de que o tipo ideal de regime seja plenamen te realizado Dá conselhos sem sair do plano científico supondo simplesmen te que os legisladores desejam ajudar o regime a se manter Há também referências à finalidade de uma atividade social particular Um exemplo é o do direito das gentes Outra questão é a de saber em que medida Montesquieu demonstrou realmente que as diversas nações devem fazerse o maior bem na paz e o menor mal possível na guerra Essas afirmações louvá veis são antes colocadas dogmaticamente e não demonstradas cientificamen te De qualquer forma a sociologia de Montesquieu tal como se apresenta a nós implica a possibilidade de associar as leis de um setor determinado à fina lidade imanente de uma atividade humana Há por fim em Montesquieu a referência a leis universais da natureza humana que dão o direito se não de determinar o que deve ser concretamente uma certa instituição pelo menos de condenar certas instituições por exemplo a escravidão Estaria bastante inclinado a dizer que a noção de um direito natu ral formal de significação negativa tal como aparece na filosofia política de Eric Weil já está presente em O espírito das leis1 Em Montesquieu todas as leis racionais da natureza humana são concebidas de modo suficientemente abstra to para excluir a dedução a partir delas do que devem ser as instituições par ticulares e para autorizar a condenação de certas práticas O pensamento sociológico de Montesquieu se caracteriza em último lugar pela cooperação incessante entre o que se poderia chamar de pensamento sin crônico e o pensamento diacrônico isto é pela combinação perpetuamente re novada da explicação das partes contemporâneas de uma sociedade umas pelas outras com a explicação dessa mesma sociedade pelo passado e pela história A distinção entre o que Comte chama de estática e dinâmica já é visível no mé todo sociológico de O espírito das leis 52 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Por que então Montesquieu é considerado apenas um precursor da socio logia e não um sociólogo Como se justificariam os que não o colocam entre os fundadores dessa disciplina A primeira razão é que a palavra sociologia não existia no tempo de Mon tesquieu e que o termo que entrou pouco a pouco nos costumes foi forjado por Auguste Comte A segunda razão muito mais profunda é que Montesquieu não meditou sobre a sociedade moderna Os autores considerados normalmente como funda dores da sociologia Auguste Comte ou Marx tiveram como objeto do seu estu do as características típicas da sociedade moderna isto é da sociedade consi derada como essencialmente industrial ou capitalista Montesquieu não tem por objeto de reflexão a sociedade moderna e além disso as categorias que empre ga são em grande parte as da filosofia política clássica Enfim não há em O espírito das leis nem o primado da economia nem o primado da sociedade com relação ao Estado Num certo sentido Montesquieu é o último dos filósofos clássicos em outro é o primeiro dos sociólogos Ainda é um filósofo clássico na medida em que considera que uma sociedade se define essencialmente pelo seu regime político e na medida em que chega a uma concepção da liberdade Em outro sentido porém reinterpretou o pensamento político clássico no interior de uma concepção global da sociedade e procurou explicar sociologicamente todos os aspectos das coletividades Acrescentemos por fim que Montesquieu ignora a crença no progresso Mas não é surpreendente que não tenha acreditado no progresso no sentido em que acreditou Comte Na medida em que concentrava sua atenção nos regimes políticos era levado a não ver no curso da história um movimento unilateral na direção do melhor De fato como Montesquieu o percebeu depois de muitos outros o devenir político até nossos dias é feito efetivamente de alternâncias de movimentos de progresso e depois de decadência Montesquieu devia por tanto ignorar a idéia de progresso que surge naturalmente quando se considera a economia ou a inteligência A filosofia econômica do progresso nós a encon tramos em Marx a filosofia do progresso humano pela ciência nós a encontra mos em Auguste Comte Indicações biográficas 1689 18 de janeiro Nascimento de CharlesLouis de Secondat no castelo de La Brède perto de Bordéus 17001705 Estudos secundários em Juilly com os Oratorianos 17081709 Estudos de direito em Bordéus e depois em Paris 1714 Conselheiro do Parlamento de Bordéus 1715 Casamento com Jeanne de Lartigue 1716 Eleição para a Academia de Ciências de Bordéus Charles de Secondat herda de um tio todos os seus bens e o nome de Montes quieu Herda também o cargo de Presidente do Parlamento de Bordéus 17171721 Estuda as ciências e prepara diversas memórias sobre o eco as funções das glândulas renais a transparência o peso dos corpos etc 1721 Publicação anônima de Lettrespersanes que alcança imediatamente um êxito con siderável 17221725 Estada em Paris onde leva uma vida mundana Freqüenta o círculo do du que de Bourbon o presidente Henault a marquesa de Prie o salão de Mme Lambert o clube de Entresol onde ele lê o seu Dialogue de Sylla et d Eucrate 1725 Publicação anônima de Temple de Gnide Viaja a Bordéus cede seu cargo de Pre sidente do Parlamento e volta a Paris Mais tarde escreverá em Pensées O que sempre me fez ter sobre mim uma opi nião desfavorável é que há poucos cargos na República para os quais eu seria verdadeiramente apto Exerci com retidão de coração o meu cargo de presidente tinha boa compreensão das questões mas não entendia nada dos problemas de regimento interno Assim mesmo fui um presidente aplicado Mas o que mais me desgostava era ver por assim dizer em verdadeiros animais o mesmo talento que de mim fugia O C t I p 977 1728 Eleição para a Academia Francesa Viagem pela Alemanha Áustria Suíça Itália e Holanda de onde lorde Chesterfield o levou à Inglaterra 17291730 Estada na Inglaterra 1731 Retomo ao castelo de La Brède onde se dedicará a escrever O espírito das leis 54 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 1734 Publicação de Considèrations sur les causes de la grandeur et de la dècadence des romains 1748 Publicação anônima em Genebra de O espírito das leis Grande êxito mas o livro é mais comentado do que lido 1750 Défense de Uesprit des lois em resposta aos ataques dos jesuítas e jansenistas 1754 Elabora Essai sur le goüt para a Encyclopédie por solicitação de dAlembert pu blicado em 1756 1755 Morte em Paris no dia 10 de fevereiro Notas 1 Cabe lembrar a referência irônica aliás muito discutível de J M Keynes no prefácio que escreveu para a edição francesa da sua Teoria geral Montesquieu o maior economista francês que se pode comparar com justiça a Adam Smith e que ultrapassa amplamente os fisiocratas pela sua perspicácia pela clareza de idéias e bom senso qualidades que todo economista deveria ter Trad de J de Largentaye Paris Payot 1953 p 13 2 A diferença entre a natureza do governo e seu princípio consiste em que a natu reza é o que o faz ser como é o princípio o que o faz agir A primeira é sua estrutura particular e o segundo as paixões humanas que o movem As leis são tão relativas ao princípio de cada governo quanto à sua natureza E L liv III cap 1 O C t II pp 250 e 251 3 Está claro que numa monarquia na qual quem manda executar as leis se julga acima delas temse menos necessidade da virtude do que num governo popular no qual aquele que manda executar as leis sente que ele próprio também está sujeito a elas e que será obrigado a carregar seu peso Quando desaparece esta virtude o arbitrário entra no coração dos que podem recebêlo e a avareza entra no coração de todos E L liv III cap 7 O C t II p 257 4 Na verdade a distinção fundamental entre república e monarquia já se encon tra em Maquiavel Todos os governos todas as seigneuries que tiveram ou têm coman do sobre os homens foram e são Repúblicas ou Principados Leprince cap 1 O C Pléiade p 290 5 Vide o livro de E T H Fletcher Montesquieu and English Politics Londres 1939 bem como Montesquieu in America 17601801 de P M Spurlin Louisiana State University 1940 6 Desnecessário dizer que não entrarei aqui num estudo pormenorizado do que era a Constituição inglesa no século XVIII nem daquilo que Montesquieu pensou que fosse tampouco daquilo que ela se tomou no século XX Meu objetivo é apenas mos trar como as idéias essenciais de Montesquieu sobre a Inglaterra se integram na sua con cepção geral da politica 56 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 7 Os textos de Locke sobre os quais Montesquieu trabalhou são os do Dois trata dos de governo in the former the false principies and foundation of Sir Robert Filmer and his followers and detected and overthrown the later is an Essay conceming the true Origin Extend and End of Civil Government editados pela primeira vez em Londres em 1690 O segundo desses dois tratados Ensaios sobre a verdadeira ori gem extensão e finalidade do poder civil foi traduzido para o francês por David Ma zel e publicado em Amsterdam por A Wolfgang em 1691 com o título Du gouverne ment civil ou l on traité de Vorigine des fondements de la nature dupouvoir et des fins des sociétés politiques Essa tradução de Mazel teve várias edições durante o sé culo XVIII Existe uma tradução moderna de J L Fyot com o título Essai sur le pou voir civil Paris PUF 1953 A teoria dos poderes e das relações entre estes de Locke está exposta nos capítu los XI a XIV do Essai sur le pouvoir civil No capítulo XII Locke distingue três tipos de poder o legislativo o executivo e o federativo O Poder legislativo é o que tem direito de determinar o modo como será empregada a força do Estado para proteger a co munidade e seus membros O Poder executivo é um poder sempre em exercício para zelar pela execução das leis que permanecem em vigor Abrange portanto ao mesmo tempo a administração e a justiça Além disso existe em cada Estado um outro poder que podemos chamar natural porque corresponde a uma faculdade que todo homem possuía naturalmente antes de entrar em sociedade Considerada globalmente a co munidade forma um corpo que está no estado de natureza com relação a todos os outros Estados ou com relação a todas as pessoas que não fazem parte dela Esse poder com preende o direito de paz e de guerra o direito de formar ligas e alianças e de entabular qualquer tipo de negociação com as pessoas e as comunidades estranhas ao Estado Podemos chamálo federativo Os dois poderes executivo e federativo são sem dúvi da em si mesmos realmente distintos um trata da aplicação das leis dentro da socie dade a todos aqueles que fazem parte dessa sociedade o outro está encarregado da segu rança e dos interesses exteriores da comunidade diante daqueles que lhe podem servir ou prejudicar por isso eles estão quase sempre unidos Aliás não se poderia confiar o poder executivo e o poder federativo a pessoas que pudessem agir separadamente porque a força pública estaria nesse caso colocada sob comandos diferentes o que só poderia acarretar cedo ou tarde desordens e catástrofes Éditions Fyot pp 158 e 159 8 Esta concepção não é inteiramente nova A interpretação da constituição roma na do ponto de vista da divisão e do equilíbrio dos poderes e das forças sociais já pode ser encontrada na teoria do regime misto de Políbio e Cícero autores que de forma mais ou menos explícita viam em tal divisão e nesse equilíbrio uma condição de liberdade Contudo é em Maquiavel que encontramos certas fórmulas que prenunciam as de Montesquieu Afirmo para aqueles que condenam as querelas do Senado e do povo que eles estão condenando o que foi o princípio da liberdade e que eles se impressionam mais com os gritos è barulho que elas ocasionavam em praça pública do que com os bons efeitos que elas produziam Em toda República existem dois partidos o dos gran des e o do povo e todas as leis favoráveis à liberdade só podem nascer da sua oposição Discours sur la première décade de TiteLive liv I cap 4 O C Pléiade p 390 os FUNDADORES 57 9 A separação dos poderes é um dos temas principais da doutrina constitucional de De Gaulle Todos os princípios e todas as experiências exigem que os poderes públicos legislativo executivo judiciário sejam nitidamente separados e fortemen te equilibrados Discurso de Bayeux 16 de junho de 1946 A respeito da interpretação jurídica da teoria da separação dos poderes de Mon tesquieu vejase L Duguit Traité de droit constitutionnel vol 1 R Carré de Malberg Contribution à la théorie générale de l État Paris Sirey t I 1920 t II 1922 Ch Eisenmann Uesprit des lois et la séparation des pouvoirs in Mélanges Carré de Mal berg Paris 1933 p 190 La pensée constitutionnelle de Montesquieu in Recueil sirey du bicentenaire de Uesprit des lois Paris 1952 10 Esta é a interpretação de Louis Althusser em Montesquieu la politique et Vhistoire Paris PUF 1959 11 Na análise da república segundo Montesquieu a despeito da idéia essencial de que a natureza da república reside na igualdade dos cidadãos voltase a encontrar a diferença entre a massa e as elites 12 Diderot os Enciclopedistas sobretudo Voltaire que defendeu Calas Sirven La Barre e outras vítimas da justiça da época e autor de Es sai sur la probabilité en fa it de justice 1772 mostram o grande interesse que as questões penais suscitam no sécu lo XVIII O ponto culminante deste debate penal foi a publicação em 1764 do Traité des délits et despeines do milanês Cesare Beccaria 17381794 Esta obra escrita por Beccaria aos vinte e seis anos foi comentada imediatamente por toda a Europa em especial pelo abade Morellet por Voltaire e Diderot O tratado de Beccaria desenvolve a idéia de que a pena deve ser fundamentada não no princípio do restitutio juris mas no princípio relativista e pragmático do punitur ne peccetur Critica ademais de modo radical o processo ou falta de processo penal da época propondo que os castigos fossem proporcionais aos crimes Essa obra inaugura a criminologia moderna e é a ori gem direta das reformas posteriores em matéria penal Vide M T Maestro Voltaire and Beccaria as Reformers o f Criminal Law Nova York 1942 13 A respeito do problema das influências exercidas sobre Montesquieu é preci so recorrer aos trabalhos de J Dedieu um dos mais competentes comentaristas de Mon tesquieu Montesquieu et la tradition politique anglaise en France Les sources anglai ses de Uesprit des lois Paris LecofFre 1909 Montesquieu Paris 1913 14 O cap 5 do livro XIV é intitulado De como os maus legisladores são os que favoreceram os vícios do clima e os bons são os que se opuseram a eles Escreve Mon tesquieu Quanto mais os fatores físicos levam os homens ao repouso mais as causas morais devem dele afastálos O C t II p 480 15 A teoria da influência do clima dá lugar a muitas observações curiosas e engra çadas por parte de Montesquieu Sempre preocupado com a Inglaterra ele procura assim acentuar as particularidades da vida inglesa e do clima das ilhas britânicas Mas não é sem dificuldade que ele consegue Numa nação em que uma doença do clima afeta de tal modo a alma que ela poderia trazer a aversão por todas as coisas até chegar à aver são pela vida vêse bem que o governo que melhor conviria às pessoas para as quais tudo seria insuportável seria aquele em que elas não pudessem responsabilizar a um só como causador de seus males e em que mais do que os homens fossem as leis que gover 58 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO nassem de tal modo que para mudar o Estado fosse necessário derrubar as próprias leis E L liv XIV cap 13 Esta frase complicada parece querer dizer que o clima da Inglaterra força os ho mens ao desespero a tal ponto que é necessário renunciar ao governo de uma única pes soa a fim de que a amargura natural dos habitantes das ilhas britânicas só possa se diri gir contra o conjunto das leis e não a um único homem A análise do clima da Inglaterra prossegue nesse tom durante alguns parágrafos Que se a mesma nação tivesse ainda recebido do clima um certo caráter de impaciência que não lhe permitisse suportar por muito tempo as mesmas coisas verseia claramente que o governo de que acabamos de falar seria ainda mais conveniente Ibid A impaciência do povo britânico está portanto em harmonia sutil com um regime em que os cidadãos não podendo respon sabilizar um único detentor do poder estão de certa forma paralisados na expressão da sua impaciência Nos livros sobre o clima Montesquieu multiplica as fórmulas desse tipo que são como se costuma dizer nesses casos mais brilhantes do que convincentes 16 A palavra art arte é empregada no sentido da atividade dos artesãos Trata se portanto das atividades que hoje chamamos secundárias destinadas a produzir obje tos e a transformálos não a cultivar diretamente a terra 17 Seria injusto reduzir as análises econômicas de Montesquieu a esse único erro Na verdade Montesquieu apresenta um quadro de modo geral pormenorizado e quase sempre exato dos fatores que intervém no desenvolvimento das economias Montes quieu como economista é pouco sistemático Não pertence nem à escola mercantilista nem à fisiocrática Podese no entanto como se fez recentemente considerálo como o sociólogo que se antecipou ao estudo moderno do desenvolvimento econômico to mando em consideração os muitos fatores que o afetam Analisa o trabalho dos campo neses o próprio fundamento da existência das coletividades Faz uma discriminação entre os sistemas de propriedade procura as conseqüências dos diferentes sistemas de propriedade sobre o número de trabalhadores e sobre o rendimento das culturas rela ciona sistemas de propriedade e trabalho agrícola com o volume da população Em se guida relaciona o volume da população com a diversidade das classes sociais Esboça o que se poderia denominar de uma teoria do luxo é preciso haver classes ricas para sustentar o comércio dos objetos inúteis objetos que não atendem a necessidades im periosas da vida Relaciona também o comércio interno entre diferentes classes sociais com o comércio exterior da coletividade Introduz a noção de moeda e acompanha o papel que ela desempenha dentro das coletividades e entre elas Finalmente procura saber em que medida um determinado regime político favorece ou não a prosperidade econômica No sentido estrito do termo é uma análise menos parcial e menos esquemática do que a dos economistas A ambição de Montesquieu é realizar uma sociologia geral que englobe a teoria econômica propriamente dita Numa análise desse tipo há sempre perpetuamente ação recíproca dos diferentes elementos O modo de propriedade reage sobre a qualidade do trabalho agrícola e esta por sua vez reage sobre as relações das classes sociais A estrutura das classes sociais age sobre o comércio interior e exterior A idéia central é a da ação recíproca indefini da dos diferentes setores do todo social uns sobre os outros os FUNDADORES 59 18 Segundo Althusser no seu livro Montesquieu la politique et l histoire o autor de O espírito das leis originou uma verdadeira revolução teórica Esta revolução impli ca que seja possível aplicar às matérias da política e da história uma categoria newto niana da lei Implica que se possa a partir das próprias instituições humanas pensar a sua diversidade como uma unidade e a sua mudança como uma constância a lei da sua diversificação a lei do seu devenir Não se trata mais de uma ordem ideal mas de uma relação imanente aos fenômenos Não será da intuição das essências que sairá essa lei mas dos próprios fatos sem idéia preconcebida da pesquisa e da comparação das ten tativas sucessivas p 26 Mas o sociólogo não lida como faz o físico com um obje to o corpo que obedece a um determinismo simples e segue uma linha da qual ele não se afasta ele lida com um tipo de objeto muito particular os homens que se afastam até mesmo das leis que estabelecem para si O que dizer então dos homens em rela ção às suas leis Que eles as modificam as reformam ou as violam Mas isso em nada impede que se possa tirar da sua conduta submissa ou rebelde indiferentemente a idéia de uma lei que eles seguem sem saber e que se possa de seus próprios erros extrair a verdade Para desistir de descobrir as leis da conduta dos homens é preciso ter a simpli cidade de tomar as leis que eles estabelecem para si mesmos com a necessidade que as governa Na verdade seu erro a aberração de seu humor a violação e as alterações de suas leis fazem parte simplesmente da sua conduta É preciso apenas descobrir as leis da violação das leis ou da sua alteração Esta atitude supõe um princípio metodológico muito fecundo que consiste em não tomar os motivos da ação humana como aquilo que os mobiliza os fins e as razões que os homens se propõem conscientemente como as cau sas reais quase sempre inconscientes que os fazem agir pp 28 e 29 19 Sobre toda essa questão da querela ideológica do séc XVIII ver a tese de Elie Carcassonne Montesquieu et le problème de la constitution française au XV11T siècle Paris 1927 20 Louis Althusser resume assim o debate Uma idéia dominou toda a literatura política do século XVIII a idéia de que a monarquia absoluta foi estabelecida contra a nobreza e que o rei se apoiou nos nãonobres para contrabalançar o poder dos adver sários feudais e reduzilos à sua vontade A grande querela dos germanistas e dos roma nistas sobre a origem do sistema feudal e da monarquia absoluta se desenvolve tendo como pano de fundo esta convicção geral De um lado os germanistas SaintSimon Boulainvilliers e Montesquieu este último mais informado com mais nuança mas mui to seguro evocam com nostalgia os tempos da monarquia primitiva um rei eleito pelos nobres e par entre seus pares como era na origem nas florestas da Germânia para Pola à monarquia que se tomou absoluta um rei combatendo e sacrificando os gran des para tomar seus altos funcionários e seus aliados na plebe De outro lado o parti do absolutista de inspiração burguesa os romanistas Fabbé Dubos esse autor de uma conjuração contra a nobreza E L XXX 10 e alvo dos últimos livros de Uesprit des lois e os enciclopedistas celebram seja em Luís XIV seja no déspota esclarecido o ideal do príncipe que sabe preferir os méritos e os títulos da burguesia laboriosa às pre tensões peremptas dos senhores feudais Op cit pp 104 e 105 Na origem do tradicionalismo germanista está uma obra inédita do abade Le La boureur incumbido ena 13 de março de 1664 pelos pares de França de descobrir na his 60 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tória as provas dos direitos e prerrogativas ligados à sua classe Le Laboureur cujo tra balho quase com certeza SaintSimon conheceu acreditou ter encontrado a origem da nobreza na conquista dos francos e desenvolveu a teoria da nobreza participando do governo com o rei fora das assembléias do Campo de Marte ou do Campo de Maio O duque de SaintSimon 16751775 nos seus projetos de governo redigidos por volta de 1715 o conde de Boulainvilliers 16581722 em sua Histoire de Tancien gouvernement de la France 1727 sua Mémoire présenté à Monseigneur le Duc d Orléans Régent 1727 seu Essai sur la noblesse de France 1732 desenvolveram essa apologia da antiga monarquia le règne de Pincomparable Charlemagne dividindo segundo as tradições dos francos seus poderes com os grandes vassalos O feudalismo germanis ta devia continuar até a primeira metade do século XIX Montlosier em seu Traité de la monarchie française retoma ainda em 1814 os temas de Boulainvilliers para defen der os direitos históricos da nobreza E essa forma de argumentação provoca por rea ção a vocação de muitos dos grandes historiadores da geração de 1815 principalmen te Augustin Thierry cujas primeiras obras Histoire véritable de Jacques Bonhomme de 1820 poderiam trazer como exergo a fórmula de Sieyès Por que o Terceiro Estado não manda para as florestas da Francônia todas essas famílias que conservam a louca pretensão de terem saído da raça dos conquistadores O germanismo de Le Laboureur e de Boulainvilliers era ao mesmo tempo racis ta no sentido de partidários dos direitos da conquista e liberal na medida em que era hostil ao poder absoluto e favorável à fórmula parlamentar Mas os dois elementos eram dissociáveis Sob forma de referência às tradições francas de liberdade e às Assembléias das florestas da Germânia essa doutrina políticohistórica não estava portanto totalmente ligada aos interesses da nobreza O abade Mably em suas Observations sur Vhistoire de France 1765 um dos livros que sem dúvida mais influenciaram as gerações revolu cionárias dá uma versão que justifica a convocação dos Etats généraux e as ambições políticas do Terceiro Estado Quando em 1815 Napoleão quis se conciliar com o povo e a liberdade retirou do livro de Mably a idéia da Assembléia extraordinária do Campo de Maio Também no século XIX Guizot que foi qualificado de historiador da ascen são legítima da burguesia é como Mably germanista convicto cf Essais sur l histoire de France de 1823 ou as Lições de 1928 em Histoire générale de la civilization en Europe Tocqueville e Gobineau são sem dúvida os últimos herdeiros da ideologia germa nista Com Tocqueville o feudalismo se transforma em queixas pela ascensão do abso lutismo monárquico e reforça as convicções liberais do coração e as convicções demo cráticas da razão Com Gobineau que através de seu tio e Montlosier tirou sua inspira ção diretamente dos doutrinadores aristocráticos do século XVIII desaparece a veia liberal em favor do racismo ver a correspondência TocquevilleGobineau no tomo IX da edição de Oeuvres complètes de Tocqueville Paris Gallimard 1959 e principal mente o prefácio de J J Chevalier 21 O que não impede sua visão lúcida do próprio meio Não faltam em suas obras críticas aos vícios dos nobres e cortesãos E bem verdade que a sátira aos corte sãos é mais uma sátira contra aquilo que a monarquia fez da nobreza do que contra a os FUNDADORES 61 própria nobreza ou contra a nobreza tal como ela deveria ser isto é livre e indepen dente na sua riqueza Assim O corpo de lacaios é mais respeitável na França do que em outros lugares é um seminário de grandes senhores Ele preenche o vazio dos ou tros Estados Lettres persanes carta 98 O C 11 p 277 ou ainda Nada está mais próximo da ignorância das pessoas da corte de França do que a dos eclesiásticos da Itá lia Mespensées O C 11 p 1315 22 Léon Brunschvicg Le progrès de la conscience dans la philosophie occiden tale pp 489501 23 Cf Éric Weil Philosophie politique Paris Librairie Philosophique J Vrin 1956 pp 36 a 38 Éric Weil escreve notadamente O direito natural do filósofo cons titui o fundamento de toda crítica do direito positivo histórico assim como o princípio da moral fundamenta toda a crítica das máximas individuais junto com o direito posi tivo ele determina para todos os homens o que em determinada situação histórica deve fazer deve admitir e pode exigir só critica um sistema coerente na medida em que este não leva em conta a igualdade dos homens enquanto seres racionais ou nega o caráter racional do homem O direito natural não fornece suas premissas materiais mas tomaas tais como as encontra para desenvolvêlas segundo o seu próprio critério O direito natural enquanto instância crítica deve portanto decidir se os papéis previstos pela lei positiva não estão em conflito e se o sistema que forma o seu conjunto não contradiz o princípio da igualdade dos homens enquanto seres racionais Toda resposta a esta ques tão será ao mesmo tempo formal e histórica o direito natural desde que procure se apli car se aplica necessariamente a um sistema positivo histórico O que se aplica assim ao direito positivo e o transforma considerandoo em sua totalidade não faz parte do direito positivo Bibliografia OBRAS DE MONTESQUIEU Uesprit des lois organizado e apresentado por Jean Brethe de la Gressaye Paris Les BellesLettres 4 tomos 19501961 Oeuvres completes organizada por É Laboulaye Paris Gamier 7 vols 18751879 não inclui Correspondance voyages scipilège pensées e mélanges Oeuvres complètes texto apresentado e anotado por Roger Caillois la Pléiade Paris Gallimard 11 1949 t II 1951 não inclui Correspondance Esta é a edição uti lizada e citada pelo autor deste livro Oeuvres complètes publicadas sob a direção de André Masson Paris Nagel 3 vols 19501955 Contém Correspondance e alguns outros textos inéditos OBRAS GERAIS Brunschvicg Léon Le progrès de la conscience dans la philosophie occidentale Paris Alcan 1927 Cassirer Emst La philosophie des lumières Paris Fayard 1966 Chevallier JeanJacques Les grandes oeuvres politiques Paris A Colin 1949 Laski J H The Rise o f European Liberalism An Essay in Interpretation Londres Allen Unwin 1936 Leroy Maxime Histoire des idées sociales en France I De Montesquieu à Robes pierre Paris Gallimard 1946 Martin Kingsley French Liberal Thought in the Eighteenth Century a study of politi cal ideas from Bayle to Condorcet Londres Turnstile Press 1954 Meinecke Friedrich Die Entstehung des Historismus Munique Berlim R Oldern burg 2 vols 1936 Vaughan C E Studies in the History ofPolitical Philosophy before and after Rousseau editado por A G Little Manchester University Press 2 vols 1939 os FUNDADORES 63 OBRAS SOBRE MONTESQUIEU Althusser L Montesquieu la politique et Vhistoire Paris PUF 1959 Barkhausen H Montesquieu ses idées et ses oeuvres d après les papiers de La Brède Paris Hachette 1907 Barrière P Un grand provincial CharlesLouis de Secondat baron de la Brède et de Montesquieu Bordeaux Delmas 1946 Carcassonne E Montesquieu et le problème de la constitution française au XVIII siè cle Paris Presses Universitaires s d 1927 Cotta A Le développement économique dans la pensée de Montesquieu Revue dhistoire économique et sociale 1957 Cotta S Montesquieu e la scienza delia politica Turim Ramella 1953 Courtney C P Montesquieu and Burke Oxford Basil Blackwell 1963 Dedieu J Montesquieu et la tradition politique anglaise en France les sources anglai ses de Lesprit des lois Paris J Gabalda 1909 Dedieu J Montesquieu 1homme et Voeuvre Paris Boivin 1943 Durkheim E Montesquieu et Rousseau précurseurs de la sociologie nota introdutória de G Davy Paris M Rivière 1953 Ehrard J Politique de Montesquieu Paris A Colin 1965 Eisenmann Ch Lesprit des lois et la séparation des pouvoirs in Mélanges Carré de Malberg Paris 1933 Étiemble Montesquieu in Histoire des littèratures III Encyclopédie de la Pléiade Paris Gallimard 1958 p 696710 Faguet E La politique comparée de Montesquieu Rousseau et Voltaire Paris Société française dimprimerie et de librairie 1902 Flechter F T H Montesquieu and English Politics 17501800 Londres E Amold 1939 Groethuysen B Philosophie de la Révolution Française precedido de Montesquieu Paris Gallimard 1956 Shackleton A Montesquieu a Criticai Biography Londres Oxford University Press 1961 Sorel A Montesquieu Paris Hachette 1887 Starobinski J Montesquieu par luimême Paris Le Seuil 1957 OBRAS COLETIVAS DEDICADAS A MONTESQUIEU Congrès Montesquieu de Bordeaux 1955 Atas do Congresso Montesquieu reunido em Bordeaux de 23 a 26 de maio de 1955 em comemoração ao segundo centená rio da morte de Montesquieu Bordeaux Delmas 1956 La pensée politique et constitutionnelle de Montesquieu Bicentenário de Uesprit des lois 17481948 Direção de Boris MirkineGuetzevitch e H Puget com a colabo ração de P Barrière P Bastid J Brethe de La Gressaye R Cassin Ch Eisenmann Paris Sirey 1952 64 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Revue de métaphysique et de morale número especial de outubro de 1939 vol 46 con sagrado a Montesquieu por ocasião do 250 aniversário do seu nascimento Textos de R Hubert G Davy G Gurvitch OBRAS EM PORTUGUÊS Althusser L Montesquieu e política e a história tradução de Luiz Cary e Luísa Costa Lisboa Presença 1972 Chevalier JeanJacques As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias tra dução de Lydia Cristina 3 ed Rio de Janeiro Agir 1973 Laski J H O liberalismo europeu tradução de Álvaro Cabral São Paulo Mestre Jou 1973 Do espírito das leis texto organizado com introdução e notas de Gonzague Truc tra dução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues São Paulo Difusão Européia 1962 2 vols Do espírito das leis com as anotações de Voltaire de Grevier de Mably de la Harpe tradução direta do original de Gabriela de Andrade Bias Barbosa São Paulo Brasil Editora 1960 2 vols São Paulo Abril Cultural 1973 ilust Os Pensadores 21 Cartas persas com um estudo de Abel Grenier tradução e notas de Mário Barreto Belo Horizonte Itatiaia 1960 Grandeza e decadência dos romanos comentários e reflexões tradução de Manoel Carlos São Paulo Cultura Moderna sd Auguste Comte A sã política não deveria ter por objeto fazer avançar a espécie hu mana que se move por impulso próprio seguindo uma lei tão necessária quanto a da gravidade embora mais modificável ela tem por finalidade facilitar sua marcha iluminandoa Système de politique positive Apêndice III Plan des travaux scientifiques nécessaires pour réorganiser la société 1828 p 95 Montesquieu é antes de tudo o sociólogo consciente da diversidade hu mana e social Para ele o objetivo da ciência é pôr ordem num caos aparente é o que consegue concebendo tipos de governo ou de sociedade enumerando determinantes que influenciam todas as coletividades e talvez mesmo em últi ma análise identificando alguns princípios racionais de validade universal embora sujeitos a eventuais violações aqui e ali Montesquieu parte da diver sidade para chegar não sem esforço à unidade humana Auguste Comte ao contrário é antes de mais nada o sociólogo da unidade humana e social da unidade da história humana Leva sua concepção da unidade até o ponto em que a dificuldade é inversa tem dificuldade em encontrar e fun damentar a diversidade Como só há um tipo de sociedade absolutamente válido toda a humanidade deverá segundo sua filosofia chegar a esse tipo de socie dade As três etapas do pensamento de Comte Pareceme que podemos apresentar as etapas da evolução filosófica de Auguste Comte como representando as três formas pelas quais a tese da unida de humana é afirmada explicada e justificada Essas três etapas estão marca das pelas três obras principais de Comte A primeira entre 1820 e 1826 é a dos Opuscules de philosophie sociale Somm aire appréciation sur Tensem ble du passé m oderne Opúsculos de filo sofia social apreciação sumária do conjunto do passado moderno abril de 1820 Prospectus des travaux scientifiques nécessaires p o u r réorganiser la société Prospecto dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade abril de 1822 Considérations philosophiques sur les idées et les savants Con 66 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO siderações filosóficas sobre as idéias e os cientistas novembrodezembro de 1825 Considérations sur le pouvoir spirituel Considerações sobre o poder espiritual 18251826 A segunda etapa está constituída pelas lições do Cours de philosophie positive Curso de filosofia positiva 18301842 a terceira pe lo Système de politique positive ou traité de sociologie instituant la religion de 1humanité Sistema de política positiva ou tratado de sociologia instituindo a religião da humanidade publicado de 1851 a 1854 Na primeira etapa nos Opúsculos republicados por Comte no fim do tomo IV do Système de politique positive para marcar a unidade do seu pensa mento o jovem polytechnicien reflete sobre a sociedade do seu tempo A maior parte dos sociólogos toma como ponto de partida uma interpretação da sua épo ca Auguste Comte é nesse aspecto exemplar Os Opúsculos constituem a des crição e a interpretação do momento histórico vivido pela sociedade européia no princípio do século XIX Segundo Auguste Comte um certo tipo de sociedade caracterizado pelos dois adjetivos teológico e militar está em vias de desaparecer O cimento da sociedade medieval era a fé transcendental interpretada pela Igreja Católica O modo de pensar teológico era contemporâneo da predominância da atividade militar cuja expressão era a atribuição das primeiras posições aos homens de guerra Um outro tipo de sociedade científica e industrial está em vias de nas cer A sociedade que nasce é científica no sentido em que a sociedade que morre era teológica o modo de pensar dos tempos passados era o dos teólogos e sacerdotes Os cientistas substituem os sacerdotes e teólogos como a catego ria social que dá a base intelectual e moral da ordem social Estão em vias de receber dos sacerdotes como herança o poder espiritual que segundo os pri meiros Opúsculos de Comte se encarnou necessariamente em cada época nos que oferecem o modelo do modo de pensar predominante e fornecem as idéias correspondentes aos princípios da ordem social Assim como os cientistas subs tituem os sacerdotes os industriais no sentido mais amplo isto é os empreen dedores diretores de fábricas banqueiros estão assumindo o lugar dos mili tares A partir do momento em que os homens pensam cientificamente a ativi dade principal das coletividades deixa de ser a guerra de homens contra homens para se transformar na luta dos homens contra a natureza ou na exploração racional dos recursos naturais Desde essa época Auguste Comte conclui a partir da análise da sociedade em que vive que a reforma social tem como condição fundamental a reforma intelectual Os imponderáveis de uma revolução ou a violência não permitem reor ganizar a sociedade em crise Para isso é preciso uma síntese das ciências e a criação de uma política positiva Como muitos de seus contemporâneos Auguste Comte considera que a sociedade moderna está em crise e encontra explicação dos probslemas sociais OS FUNDADORES 67 na contradição entre uma ordem histórica teológicomilitar em vias de desapare cer e uma ordem social científicaindustrial que nasce A conseqüência dessa interpretação da crise da sua época é que Comte reformador não é um doutrinário da revolução ao modo de Marx nem um dou trinário das instituições livres à maneira de Montesquieu ou de Tocqueville é um doutrinário da ciência positiva e da ciência social A orientação geral do pensamento e sobretudo os planos de transforma ção de Comte decorrem dessa interpretação da sociedade da época Assim como Montesquieu observava a crise da monarquia francesa e essa observação constituía uma das origens da sua concepção de conjunto Auguste Comte observa a contradição de dois tipos sociais que segundo ele só pode ser resol vida pelo triunfo do tipo social que chama de científico e industrial Essa vitó ria é inevitável mas pode ser mais ou menos acelerada ou retardada Com efeito a função da sociologia é compreender o devenir necessário isto é indispensável e inevitável da história de modo a ajudar a realização da ordem fundamental Na segunda etapa a do Curso de filosofia positiva as idéias diretrizes são as mesmas mas a perspectiva é ampliada Nos Opúsculos Auguste Comte considera essencialmente as sociedades da época e seu passado isto é a histó ria da Europa Seria fácil para um nãoeuropeu mostrar que nos primeiros opúsculos Auguste Comte tem a ingenuidade de conceber a história da Europa como se ela absorvesse a história de todo o gênero humano ou ainda pressu põe o caráter exemplar da história européia admitindo que a ordem social para a qual tende será a ordem social de toda a espécie humana Durante essa segun da etapa isto é no Curso de filosofia positiva Auguste Comte não renova esses temas mas aprofunda e executa o programa cujas grandes linhas tinha fixado em suas obras de juventude Passa em revista as diversas ciências desenvolve e confirma as duas leis essenciais que já tinha enunciado nos opúsculos a lei dos três estados e a clas sificação das ciências1 Segundo a lei dos três estados o espírito humano teria passado por três fa ses sucessivas Na primeira o espírito humano explica os fenômenos atribuin doos a seres ou forças comparáveis ao próprio homem Na segunda invoca entidades abstratas como a natureza Na terceira o homem se limita a obser var os fenômenos e a fixar relações regulares que podem existir entre eles seja num momento dado seja no curso do tempo renuncia a descobrir as causas dos fatos e se contenta em estabelecer as leis que os governam A passagem da idade teológica para a idade metafísica e depois para a ida le positiva não se opera simultaneamente em todas as disciplinas intelectuais No pensamento de Comte a lei dos três estados só tem um sentido rigoroso quan do combinada com a classificação das ciências A ordem segundo a qual são or 68 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO denadas as diversas ciências nos revela a ordem em que a inteligência se toma positiva nos vários domínios2 Em outras palavras a maneira de pensar positiva se impôs mais cedo nas matemáticas na física na química e depois na biologia É normal aliás que o positivismo apareça mais tarde nas disciplinas que têm por objeto matérias mais complexas Quanto mais simples uma matéria mais fácil pensar sobre ela positivamente Há mesmo alguns fenômenos cuja observação se impõe por si mesma de sorte que nesses casos a inteligência é imediatamente positiva A combinação da lei dos três estados com a classificação das ciências tem por objetivo provar que a maneira de pensar que triunfou na matemática na astronomia na física na química e na biologia deve por fim se impor à polí tica levando à constituição de uma ciência positiva da sociedade a sociologia Mas essa combinação não tem unicamente por objeto demonstrar a neces sidade de criar a sociologia A partir de uma certa ciência a biologia intervém uma reviravolta decisiva em termos de metodologia as ciências deixam de ser analíticas para serem necessária e essencialmente sintéticas Essa inversão irá dar um fundamento à concepção sociológica da unidade histórica Esses dois termos analítico e sintético têm na linguagem de Auguste Comte múltiplas significações Neste exemplo preciso as ciências da nature za inorgânica a física e a química são analíticas no sentido de que estabelecem leis entre fenômenos isolados e isolados necessária e legitimamente Na biolo gia porém é impossível explicar um órgão ou uma função sem considerar o ser vivo como um todo É com relação ao organismo como um todo que um fato biológico particular tem significado e pode ser explicado Se quiséssemos se parar arbitrária e artificialmente um elemento de um ser vivo teríamos diante de nós apenas matéria morta A matéria viva enquanto tal é intrinsecamente glo bal ou total Essa idéia da primazia do todo sobre os elementos deve ser transposta para a sociologia É impossível compreender o estado de um fenômeno social parti cular se não o recolocarmos no todo social Não se pode entender a situação da religião ou a forma precisa do Estado numa sociedade particular sem consi derar o conjunto dessa sociedade Mas tal prioridade do todo sobre os elemen tos não se aplica apenas a um momento artificialmente recortado do devenir histórico Só se compreenderá o estado da sociedade francesa no princípio do século XIX se recolocarmos esse momento histórico na continuidade do deve nir francês A Restauração só pode ser compreendida pela Revolução e a Re volução pelos séculos de regime monárquico O declínio do espírito teológico e militar só se explica pelas suas origens nos séculos passados Da mesma for ma como só é possível compreender um elemento do todo social considerando esse mesmo todo não se pode entender um momento da evolução histórica sem levar em conta o conjunto dessa evolução OS FUNDADORES 69 Continuando porém a pensar nessa linha defrontamonos com uma difi culdade evidente Isso porque para compreender um momento da evolução da nação francesa será necessário se referir à totalidade da história da espécie humana A lógica do princípio da prioridade do todo sobre o elemento leva à idéia de que o verdadeiro objeto da sociologia é a história da espécie humana Auguste Comte era um homem lógico formado nas disciplinas da Escola Politécnica Como tinha enunciado a prioridade da síntese sobre a análise de veria concluir que a ciência social que pretendia fundar teria por objeto de estu do a história da espécie humana considerada como uma unidade o que seria indispensável para a compreensão das funções particulares do todo social e de um momento particular do devenir No Curso de filosofia positiva é criada a nova ciência a sociologia que admitindo a prioridade do todo sobre o elemento e da síntese sobre a análise tem por objeto a história da espécie humana Vêse aqui a inferioridade ou superioridade a meu ver a inferioridade de Auguste Comte em relação a Montesquieu Enquanto Montesquieu parte do fato que é a diversidade Auguste Comte com a intemperança lógica caracte rística dos grandes homens e de alguns homens menos grandes parte da uni dade da espécie humana e atribui à sociologia como objeto de estudo a histó ria da espécie humana Convém acrescentar que Auguste Comte considerando que a sociologia é uma ciência à maneira das ciências precedentes não hesita em retomar a fór mula que já empregara nos Opúsculos assim como não há liberdade de cons ciência na matemática ou na astronomia não pode haver também em matéria de sociologia Como os cientistas impõem seu veredicto aos ignorantes e aos amadores em matemática e astronomia devem logicamente fazer o mesmo em sociologia e política O que pressupõe evidentemente que a sociologia possa determinar o que é o que será e o que deve ser A sociologia sintética de Augus te Comte sugere aliás tal competência ciência do todo histórico ela determi na não só o que foi e o que é mas também o que será no sentido da necessida de do determinismo O que será é justificado como sendo conforme com aqui lo que os filósofos do passado teriam chamado a natureza humana com aquilo que Auguste Comte chama simplesmente de realização da ordem humana e social Na terceira etapa do seu pensamento ele justifica por uma teoria da na tureza humana e da natureza social essa unidade da história humana O Système de politique positive é posterior à aventura do seu autor com Clotilde de Vaux O estilo e a linguagem são um pouco diferentes do que en contramos no Curso de filosofia positiva Contudo o Système corresponde a uma tendência do pensamento comtista que já é visível na primeira e sobretu do na segunda etapa 70 ÀS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO De fato se como creio é possível explicar o itinerário de Auguste Comte pela vontade de justificar a idéia da unidade da história humana é normal que no seu último livro ele tenha dado uma fundamentação filosófica a esta noção Para que a história humana seja uma só é preciso que o homem tenha uma certa natureza reconhecível e definível através de todos os tempos e de todas as sociedades É preciso em segundo lugar que toda sociedade comporte uma ordem essencial que se possa reconhecer através da diversidade das organiza ções sociais Finalmente é preciso que essa natureza humana e essa natureza so cial sejam tais que possamos inferir delas as principais características do devenir histórico Ora creio que se pode explicar o essencial do Système de politique positive por essas três idéias A teoria da natureza humana está incluída no que Auguste Comte chama de quadro cerebral conjunto de concepções relativas às localizações cerebrais Deixando de lado algumas extravagâncias esse quadro cerebral corresponde a uma precisão das diferentes atividades características do homem enquanto ho mem A ordem social básica que se pode reconhecer através da diversidade das instituições está descrita e analisada no tomo II que tem como objeto La sta tique sociale A estática social Finalmente o quadro cerebral e a estática social servem de fundamento para o tomo III do Système de politique positive consa grado à dinâmica Toda a história tende à realização da ordem fundamental da sociedade analisada no tomo II e à realização do que existe de melhor na natu reza humana descrito no quadro cerebral do tomo I O ponto de partida do pensamento de Comte é portanto uma reflexão so bre a contradição interna da sociedade do seu tempo entre o tipo teológico militar e o tipo científicoindustrial Como esse momento histórico é caracteri zado pela generalização do pensamento científico e da atividade industrial o único meio de pôr fim à crise é acelerar o devenir criando o sistema de idéias cien tíficas que presidirá à ordem social como o sistema de idéias teológicas presi diu à ordem social do passado Daí Comte passa ao Curso de filosofia positiva isto é à síntese do con junto da obra científica da humanidade para identificar os métodos que foram aplicados nas várias disciplinas e os resultados essenciais obtidos em cada uma delas Esta síntese dos métodos e dos resultados deve servir de base para a cria ção da ciência que ainda está faltando a sociologia Mas a sociologia que Comte quer criar não é a sociologia prudente modes ta analítica de Montesquieu que se esforça por multiplicar as explicações a fim de mostrar a extrema diversidade das instituições humanas Sua função é Vrejolver a crise do mundo moderno isto é fornecer o sistema de idéias cientí f i c a que presidirá à reorganização social os FUNDADORES 71 Ora para que uma ciência possa preencher esse papel é preciso que apre sente resultados indubitáveis e exprima verdades tão incontestáveis quanto as da matemática e da astronomia É preciso também que a natureza dessas verdades seja de um certo tipo A sociologia analítica de Montesquieu sugere aqui e ali algumas reformas dá alguns conselhos ao legislador Admitindo porém que as instituições de qualquer sociedade são condicionadas por uma multiplicidade de fatores não se pode conceber uma realidade institucional fundamentalmente diferente da que existe Auguste Comte deseja ser ao mesmo tempo um cientis ta e um reformador Qual é pois a ciência que pode ser certa nas suas afirma ções e ao mesmo tempo imperativa para um reformador Incontestavelmente seria uma ciência sintética conforme a concebe Auguste Comte ciência que par tindo de leis mais gerais das leis fundamentais da evolução humana descobris se um determinismo global que os homens pudessem de um certo modo utilizar segundo a expressão positivista uma fatalidade modificável A sociologia de Auguste Comte começa por aquilo que é mais interessan te saber Deixa os pormenores aos historiadores isto é aos que nosso autor con sidera empreiteiros obscuros perdidos em erudição medíocre e que são des prezados pelos que apreenderam de imediato a lei mais geral do devenir Montesquieu e Tocqueville atribuem uma certa primazia à política à forma do Estado Marx à organização econômica A doutrina de Auguste Comte se baseia na idéia de que toda sociedade se mantém pelo acordo dos espíritos3 Só há sociedade na medida em que seus membros têm as mesmas crenças E a ma neira de pensar que caracteriza as diferentes etapas da humanidade e a etapa final será marcada pela generalização triunfante do pensamento positivo Tendo levado assim até as últimas conseqüências a concepção de uma his tória humana unificada Auguste Comte se vê portanto obrigado a fundamentar essa unidade e só poderá fundamentála em termos filosóficos referindose a uma concepção da natureza humana constante e também de uma ordem social fundamental também constante A filosofia de Comte pressupõe portanto três grandes temas O primeiro é o de que a sociedade industrial a sociedade da Europa ociden tal é exemplar e se tomará a sociedade de todos os homens Ainda não está pro vado que Auguste Comte estivesse errado quando acreditava que certos aspectos da sociedade industrial da Europa tinham uma vocação universal A organização científica do trabalho característica da sociedade européia é tão mais eficaz do que todas as outras organizações que a partir do momento em que seu segredo foi descoberto por um povo todas as partes da humanidade têm necessidade de aprendêlo pois ele é a condição da prosperidade e do poder O segundo é a dupla universalidade do pensamento científico No campo da Matemática da física ou da biologia o pensamento positivo tem vocação uni versal no sentido de que todas as partes da espécie humana adotam esse modo 72 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de pensar quando os êxitos atribuíveis a ele se tornam visíveis Neste particu lar Comte tinha razão a ciência ocidental é hoje a ciência de toda a humani dade tratese de matemática astronomia física química e até mesmo em lar ga medida de biologia Mas a universalidade da ciência tem outro sentido No momento em que se começa a pensar positivamente em astronomia ou física não se pode pensar de outro modo em termos de política ou de religião O mé todo positivo que alcançou êxito nas ciências da natureza inorgânica deve ser estendido a todos os aspectos do pensamento Ora essa generalização do méto do positivo é evidente Estaremos condenados então a reproduzir em sociolo gia moral ou em política o método da matemática e da física O que se pode dizer é que esse debate continua O terceiro tema fundamental de Auguste Comte é o do Système de politique positive Como é possível em última análise explicar a diversidade se a natureza humana é basicamente a mesma se a ordem social é basicamente a mesma Em outras palavras a concepção comtista da unidade humana assume três formas nos três momentos principais da sua carreira A sociedade que se desenvolve no Ocidente é exemplar e será seguida como modelo por toda a humanidade A história da humanidade é a história do espírito enquanto devenir do pen samento positivo ou enquanto aprendizado do positivismo pelo conjunto da humanidade A história da humanidade é o desenvolvimento da natureza humana Esses três temas que não se contradizem estão de certa forma presentes em todos os momentos da carreira de Auguste Comte embora com ênfase desi gual Representam três interpretações possíveis do tema da unidade da espécie humana A sociedade industrial As idéias fundamentais de Auguste Comte durante seus anos de juventu de não são idéias pessoais Ele recolheu no clima da época a convicção de que o pensamento teológico pertencia ao passado que Deus estava morto para em pregar a fórmula de Nietzsche que o pensamento científico comandaria daquele momento em diante a inteligência dos homens modernos que com a teologia desapareceria a estrutura feudal e a organização monárquica que os cientistas e os industriais dominariam a sociedade do nosso tempo Todos esses temas são desprovidos de originalidade mas é importante compreender a escolha feita por Auguste Comte entre as idéias correntes para definir sua própria interpretação da sociedade da época OS FUNDADORES 73 O fato novo que chama a atenção de todos os observadores da sociedade no princípio do século XIX é a indústria Todos consideram que algo de original está acontecendo com relação ao passado Mas em que consiste a originalidade da indústria moderna Pareceme que os traços característicos da indústria tais como os observam os homens do começo do século XIX são em número de seis IP A indústria se baseia na organização científica do trabalho Em vez de se organizar segundo o costume a produção é ordenada com vistas ao rendi mento máximo 2 Graças à aplicação da ciência à organização do trabalho a humanidade desenvolve prodigiosamente seus recursos 3 A produção industrial leva à concentração dos trabalhadores nas fábri cas e nas periferias das cidades surge um novo fenômeno social as massas operárias 4 Essas concentrações de trabalhadores nos locais de trabalho determi nam uma oposição latente ou aberta entre empregados e empregadores entre proletários de um lado e empresários ou capitalistas do outro 5 Enquanto a riqueza graças ao caráter científico do trabalho não pára de aumentar multiplicamse crises de superprodução que têm por conseqüência criar a pobreza no meio da abundância Enquanto milhões de indivíduos sofrem as carências da pobreza mercadorias deixam de ser vendidas para escândalo do espírito 6 O sistema econômico associado à organização industrial e científica do trabalho se caracteriza pela liberdade de trocas e pela busca do lucro por parte dos empresários e comerciantes Alguns teóricos concluem daí que a condição essencial do desenvolvimento da riqueza é precisamente a busca do lucro e a concorrência e que quanto menos o Estado intervier na economia mais rapi damente aumentará a produção e a riqueza As interpretações diferem conforme a importância atribuída a cada uma dessas características Auguste Comte considera as três primeiras como decisi vas A indústria se define pela organização científica do trabalho que produz o crescimento constante das riquezas e a concentração dos operários nas fábricas essa última característica é a contrapartida da concentração de capitais ou dos meios de produção nas mãos de um pequeno número de pessoas Para ele a quarta característica oposição entre operários e empresários é secundária4 Resulta da má organização da sociedade industrial e pode ser cor rigida por meio de reformas A seus olhos as crises são fenômenos episódicos e superficiais O liberalismo para Comte não é a essência da nova sociedade mas um elemento patológico um momento de crise no desenvolvimento de uma organização que será muito mais estável do que aquela fundada no livre jogo da concorrência 74 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Naturalmente segundo os socialistas as duas características decisivas são a quarta e a quinta O pensamento socialista como o dos economistas pessimis tas da primeira metade do século XIX se desenvolve a partir da constatação do conflito proletáriosempresários e da freqüência das crises consideradas como seqüela inevitável da anarquia capitalista É a partir dessas duas características que Marx edifica sua teoria do capitalismo e a interpretação histórica do siste ma capitalista Quanto à sexta característica o livre comércio é a acentuada pelos teóri cos liberais que a consideram a causa decisiva do progresso econômico No princípio do século XIX todo o mundo constatava a ocorrência simul tânea de três fenômenos o crescimento da riqueza a aplicação da ciência à in dústria e um regime liberal de intercâmbios As interpretações variavam segundo a responsabilidade atribuída a cada um destes dois últimos fenômenos no de senvolvimento do primeiro Auguste Comte define sua própria teoria da sociedade industrial pelas crí ticas que dirige aos economistas liberais e aos socialistas Sua versão da socie dade industrial não é nem liberal nem socialista mas poderia ser definida como a teoria da organização se essa palavra não tivesse sido utilizada para a tradu ção francesa do livro de Bumham The Managerial Révolution5 pois os organi zadores de Auguste Comte são muito diferentes dos organizadores ou mana gers de Bumham Auguste Comte acusa de metafísicos os economistas liberais que se inter rogam sobre o valor e se esforçam por determinar em abstrato o funcionamento do sistema O pensamento metafísico segundo ele é um pensamento abstrato é um pensamento por conceitos como a seus olhos o pensamento dos economis tas de seu tempo6 Esses metafísicos cometem além disso o erro de considerar os fenômenos econômicos separandoos do todo social A economia política começa pelo iso lamento ilegítimo de um setor do todo social que só pode ser compreendido rigorosamente no interior desse conjunto Essas duas críticas foram retomadas pela maior parte dos sociólogos fran ceses da escola de Durkheim e determinaram a atitude de semihostilidade da queles que hoje chamamos de sociólogos com relação aos que chamamos de economistas pelo menos nas universidades francesas Finalmente Auguste Comte critica os liberais por superestimar a eficácia dos mecanismos de troca e de competição no desenvolvimento da riqueza Os economistas têm o mérito contudo de afirmar que a longo prazo os in teresses privados se ajustam A oposição essencial entre liberais e socialistas está no fato de que os primeiros acreditam na conciliação final dos interesses e os segundos admitem o caráter fundamental da luta de classes Auguste Comte sobre este ponto essencial está do lado dos liberais Não acredita numa OS FUNDADORES 75 oposição fundamental de interesses entre proletários e empresários Podem existir de modo temporário e secundário rivalidades pela repartição da rique za Contudo como os economistas liberais Comte acha que o desenvolvimen to da produção se ajusta por definição aos interesses de todos A lei da socie dade industrial é o desenvolvimento da riqueza que postula ou implica a con ciliação final dos interesses Comparativamente aos economistas que consideram a liberdade e a con corrência como causas essenciais do crescimento o fundador do positivismo pertence à escola daqueles que chamarei de polytechniciens organisateurs po litécnicos organizadores Há hoje dois economistas franceses que representam duas tendências do espí rito politécnico O primeiro é Maurice Aliais que acredita na importância decisi va dos mecanismos da concorrência para o processo de regulagem da economia7 O segundo Alfred Sauvy muito menos simpático aos mecanismos do mercado do que Maurice Aliais ou Jacques RuefF representa a tendência que valoriza a efi ciência da organização8 Auguste Comte pode ser considerado como o patrono da escola da organização Comte este politécnico organizador é hostil ao socialismo ou para ser mais exato àqueles que chama de comunistas isto é os doutrinários ou teóri cos do seu tempo inimigos da propriedade privada É um organizador que acre dita nas virtudes não tanto da concorrência mas da propriedade privada e até mesmo o que é mais curioso nas virtudes da propriedade privada das riquezas concentradas Com efeito Comte justifica a concentração de capitais e dos meios de pro dução que não lhe parece contraditória com a propriedade privada Para ele tal concentração é antes de mais nada inevitável o que significa segundo o otimis mo providencial tão característico da sua filosofia da história que é igualmente benéfica Está em conformidade com a tendência fundamental que se observa no curso da história humana A civilização material só se pode desenvolver se cada geração produzir mais do que é necessário para sua sobrevivência transmitindo assim à geração seguinte um estoque de riqueza maior do que o recebido da gera ção precedente A capitalização dos meios de produção é característica do desen volvimento da civilização material e leva à concentração Auguste Comte não é sensível ao argumento de que a importância dos ca pitais concentrados deveria determinar o caráter público da propriedade A con centração dos meios de produção não o faz concluir que a nacionalização seja necessária Pelo contrário é indiferente à oposição entre propriedade privada e propriedade pública porque considera que a autoridade econômica ou políti ca é sempre pessoal Em toda sociedade são homens em pequeno número que comandam Um dos motivos consciente ou inconsciente da reivindicação da 76 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO propriedade pública é a crença bem ou mal fundamentada de que a substituição do regime de propriedade modificaria a estrutura da ordem social Ora Comte é cético a este respeito São sempre os ricos que detêm a parte do poder que não pode deixar de acompanhar a riqueza e que é inevitável em qualquer ordem social Em toda a parte há homens que comandam é bom que os homens que detêm o capital concentrado sejam os que exerçam a autoridade econômica e social indispensável Mas a propriedade pessoal deve ser esvaziada do seu caráter arbitrariamen te pessoal pois o que ele chama de patrícios os chefes temporais industriais banqueiros devem conceber sua função como uma função social A proprieda de privada é necessária inevitável indispensável mas só é tolerável quando assumida não como o direito de usar e abusar mas como o exercício de uma função coletiva por aqueles que a sorte ou mérito pessoal designou para isso9 Comte assume portanto uma posição intermediária entre o liberalismo e o socialismo Não é um doutrinário da propriedade privada concebida à manei ra do direito romano Não é um reformador que se inclina à socialização dos meios de produção É um organizador que deseja manter a propriedade priva da e transformar seu sentido para que embora exercida por alguns indivíduos tenha também uma função social Essa concepção não se afasta muito de cer tas doutrinas do catolicismo social Além dessa teoria da propriedade privada Comte enuncia outra idéia que adquire importância sobretudo em seus últimos livros o Système de politique positive a idéia do caráter secundário da hierarquia temporal O doutrinário do positivismo inclinase a aceitar a concentração da rique za e a autoridade dos industriais porque a existência dos indivíduos não se de fine exclusivamente pelo lugar que ocupam na hierarquia econômica e social Além da ordem temporal que comanda o poder há uma ordem espiritual que é a dos méritos morais O operário que se encontra embaixo na hierarquia tem poral pode ocupar uma posição superior na hierarquia espiritual se seu mere cimento pessoal e devotamento à coletividade forem maiores do que os de seus superiores hierárquicos Essa ordem espiritual não é transcendente como a religião cristã a conce beria Não é a ordem da vida eterna É uma ordem daqui deste mundo mas que substitui a hierarquia temporal do poder e da riqueza por uma ordem espiritual dos méritos morais O objetivo supremo de todos deve ser alcançar o primeiro lugar não na ordem do poder mas na ordem dos méritos Auguste Comte limita suas ambições de reforma econômica porque a sociedade industrial só pode existir de maneira estável se for regulada mode rada e transfigurada por um poder espiritual E na medida em que sua inten ção de reforma se concentra na criação do poder espiritual ele parece em ter mos de reforma econômica um moderado os FUNDADORES 77 Essa interpretação da sociedade industrial desempenhou um papel quase nulo no desenvolvimento das doutrinas econômicas e sociais pelo menos na Europa A concepção comtista da sociedade industrial ficou como uma espécie de curiosidade à margem da rivalidade entre as doutrinas Nenhum partido po lítico da esquerda ou da direita a tomou como fundamento exceto alguns indi víduos isolados Destes alguns da extrema direita outros da esquerda Entre os pensadores franceses deste século há dois que recolheram as idéias de Comte Um foi Charles Maurras teórico da monarquia e o outro foi Alain teórico do radicalismo Ambos se declaravam positivistas por razões distintas Maurras era positivista porque via em Comte o doutrinário da organização da autoridade e do poder espiritual renovado10 Alain era positivista porque inter pretava Comte à luz de Kant para ele a idéia essencial do pensamento positi vista consistia na desvalorização da hierarquia temporal Que o melhor cozi nheiro seja feito rei mas que não nos obrigue a beijar as panelas11 Podemos identificar em Auguste Comte estes dois aspectos a aceitação de uma ordem temporal autoritária e hierárquica e a superposição de uma ordem espiritual à hierarquia temporal Comte só aceitava a filosofia de Hobbes na or dem temporal isto é a filosofia do poder acrescentandolhe a filosofia de Kant Só o espírito é respeitável só o valor moral é digno de respeito Como escre veu Alain A ordem nunca é venerável Por que a concepção de Auguste Comte permaneceu fora da grande cor rente de idéias filosóficas da sociedade moderna A questão precisa ser colo cada Num certo sentido a doutrina de Comte está hoje mais perto das doutri nas em moda do que muitas outras doutrinas do século XIX Todas as teorias que atualmente salientam a semelhança de um grande número de instituições dos dois lados da cortina de ferro desvalorizam a importância da concorrência e procuram identificar os traços fundamentais da civilização industrial pode riam ser aproximadas do pensamento de Auguste Comte Ele é o teórico da so ciedade industrial aquém ou à margem das querelas entre liberais e socialistas entre doutrinários do mercado e apologistas da planificação Os temas comtistas fundamentais o trabalho livre a aplicação da ciência à indústria a predominância da organização são bem característicos da concep ção atual da sociedade industrial Por que então Auguste Comte foi esquecido ou é desconhecido A primeira razão é que embora as idéias principais do positivismo sejam profundas sua descrição minuciosa da sociedade industrial notadamente no Système de politique positive se presta muitas vezes à ironia fácil Comte quis explicar em pormenor a organização da hierarquia temporal a posição exata dos chefes temporais industriais e banqueiros Quis mostrar por que os que exercem as funções mais gerais teriam maior autoridade e se situariam mais alto na hierarquia da sociedade Quis precisar o número de habitantes de cada cida 78 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de o número dos patrícios Quis explicar como as riquezas seriam transmitidas Em suma traçou um plano preciso dos seus sonhos ou dos sonhos aos quais cada um de nós pode se abandonar nos momentos em que se considera Deus De outro lado a concepção da sociedade industrial de Auguste Comte está associada à afirmação de que as guerras seriam anacrônicas12 Ora não foi o que se viu no período entre 1840 e 1945 Na primeira metade deste século houve várias guerras de excepcional violência que causaram decepção aos discípulos fiéis da escola positivista13 Esta tinha decretado o fim das guerras na vanguar da da humanidade isto é na Europa ocidental E foi justamente na Europa oci dental que ocorreram as guerras do século XX Segundo Auguste Comte a minoria ocidental que felizmente estava à testa do desenvolvimento da humanidade não devia conquistar os povos de outras raças para imporlhes sua civilização Explicara com excelentes argumentos isto é com argumentos que lhe pareciam excelentes e que nos parecem exce lentes graças à lição dos acontecimentos que os ocidentais não deveriam con quistar a África e a Ásia que se cometessem o erro de expandir sua civiliza ção pelas armas o resultado seria desastroso para todos Se Comte acertou foi à custa de terse enganado Durante todo um século os acontecimentos não esti veram de acordo com o que havia anunciado14 Auguste Comte falou como profeta da paz porque acreditava que a guerra não tinha mais função na sociedade industrial A guerra tinha sido necessária para obrigar ao trabalho regular homens naturalmente anárquicos e preguiço sos para criar Estados de grande extensão para que surgisse a unidade do Império Romano na qual se difundiu o cristianismo e do qual surgiria final mente o positivismo A guerra tinha desempenhado uma dupla função históri ca o aprendizado do trabalho e a formação de grandes Estados No século XIX porém ela não tinha mais nenhum papel a desempenhar as sociedades eram definidas pelo primado e pelos valores do trabalho não havia mais uma classe militar nem motivo para combater15 As conquistas tinham representado no passado um meio legítimo ou pelo menos racional para os que se beneficiavam delas de aumentar os recursos Mas numa época em que a riqueza depende da organização científica do tra balho os ganhos de guerra perdem significado se tomam anacrônicos A trans missão dos bens se faria doravante pela doação e pela troca e segundo Comte a doação exerceria um papel de crescente importância reduzindo em certa me dida o da troca16 Finalmente a filosofia de Auguste Comte não se centrava realmente na in terpretação da sociedade industrial Tendia sobretudo à reforma da organização temporal pelo poder espiritual que deveria ser exercido pelos cientistas e filó sofos que substituiriam os sacerdotes O poder espiritual deve regular os sen os FUNDADORES 79 timentos dos homens unilos com vistas a um trabalho comum consagrar os di reitos daqueles que governam moderar o arbítrio ou o egoísmo dos poderosos A sociedade sonhada pelos positivistas não se caracteriza tanto pela dupla rejei ção do liberalismo e do socialismo mas sobretudo pela criação de um poder es piritual que seria na idade positiva o equivalente ao das Igrejas e dos sacerdo tes nas idades teológicas do passado É neste ponto provavelmente que a história mais decepcionou os discípulos de Comte Embora a organização temporal da sociedade industrial lembre a que foi imaginada por Auguste Comte o poder espiritual dos filósofos e cientistas ainda não foi instituído O que há de poder espiritual é exercido ou pelas Igrejas do passado ou por ideólogos que Comte não reconheceria como verdadeiros cientistas ou como verdadeiros filósofos Na medida em que os homens que pretendem interpretar cientificamente a ordem social exercem um poder espiritual na União Soviética por exemplo acentuam não os traços comuns a todas as sociedades industriais mas uma dou trina particular da organização das sociedades industriais Nem de um lado nem do outro se toma como patrono o pensador que desvalorizou os conflitos ideo lógicos dos quais viveram as sociedades européias e que causaram a morte de milhões de pessoas Auguste Comte teria desejado um poder espiritual exercido pelos intérpre tes da organização social que tivesse ao mesmo tempo reduzido a importância moral da hierarquia temporal Esse gênero de poder espiritual nunca existiu e não existe hoje Provavelmente os homens preferem sempre o que os divide ao que os une Provavelmente cada sociedade se sente obrigada a insistir naquilo que tem de particular em vez de acentuar as características que tem em comum com todas as outras sociedades Provavelmente também as sociedades ainda não estão bastante convencidas das virtudes que Auguste Comte atribuía à so ciedade industrial Comte pensava com efeito que a organização científica da sociedade in dustrial levaria a atribuir a cada indivíduo um lugar proporcional à sua capaci dade realizando assim a justiça social Havia muito otimismo nesse ponto de vista No passado a idade ou o berço determinavam a posição privilegiada ocupa da na sociedade por um indivíduo doravante na sociedade do trabalho seria a aptidão individual que determinaria cada vez mais a posição de cada um Um sociólogo inglês Michael Young dedicou um livro satírico a um regime que chamou de meritocracia isto é a idéia comtiana de como seria a ordena ção da sociedade industrial17 O autor não cita Comte e este não teria reencon trado suas esperanças na descrição de uma tal ordem Michael Young mostra com humor que se cada um ocupar uma posição proporcional à sua capacida de os que estiveiiMKs escalões inferiores estarão condenados ao desespero 80 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO pois não poderão mais acusar a sorte ou a injustiça Se todos os homens estive rem convencidos de que a ordem social é justa esta será de certo modo para alguns insuportável a menos que simultaneamente os homens sejam conven cidos pelos ensinamentos de Auguste Comte de que a hierarquia das qualida des intelectuais não é nada ao lado da verdadeira hierarquia a única que conta a dos méritos e do coração Não é fácil porém convencer a humanidade de que a ordem temporal é secundária A sociologia ciência da humanidade Nos três últimos volumes do Curso de filosofia positiva e especialmente no tomo IV Auguste Comte expôs sua concepção da nova ciência chamada sociologia Ele diz apoiarse em três autores que apresenta como seus inspiradores ou predecessores Montesquieu Condorcet e Bossuet sem contar Aristóteles a res peito do qual falarei mais adiante Esses três nomes introduzem a alguns dos temas fundamentais do seu pensamento sociológico Auguste Comte atribui a Montesquieu o mérito eminente de ter afirmado o determinismo dos fenômenos históricos e sociais Oferece uma interpretação simplificada de O espírito das leis cuja idéia central seria enunciada na fórmu la famosa do livro I As leis são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas Auguste Comte vê nessa fórmula o princípio do determinismo aplicado à diversidade dos fenômenos sociais e ao devenir das sociedades Por outro lado para que pudesse fundar a sociologia faltava a Montesquieu a idéia do progresso Auguste Comte vai descobrila em Condorcet no famoso Esquisse d un tableau historique des progrès de Vesprit humainx que preten de descobrir no passado um certo número de fases pelas quais passou o espíri to humano Essas fases têm um número definido e sua seqüência tem uma or dem necessária Comte colhe em Condorcet a idéia de que o progresso do espí rito humano é o fundamento do devenir das sociedades humanas Combinando o tema de Montesquieu do determinismo com o de Con dorcet das etapas necessárias segundo uma ordem inelutável dos progressos do espírito humano chegase à concepção central de Comte os fenômenos sociais estão sujeitos a um determinismo rigoroso que se apresenta sob a forma de um devenir inevitável das sociedades humanas comandado pelos progres sos do espírito humano Esse modo de conceber o devenir histórico leva a uma visão da história totalmente unificada em marcha para um estado definitivo do espírito humano e das sociedades humanas muito comparável ao providencialismo de Bossuet que Comte saúda como a mais eminente tentativa que precedeu a sua própria os FUNDADORES 81 É sem dúvida a nosso grande Bossuet que devemos sempre atribuir a primei ra tentativa importante feita pelo espírito humano para contemplar de um ponto de vista suficientemente elevado o conjunto do passado social Sem dúvida os recur sos fáceis mas ilusórios de toda filosofia teológica para estabelecer uma certa ligação aparente entre os acontecimentos humanos não permitem utilizar hoje na construção direta da verdadeira ciência do desenvolvimento social explicações que se caracterizam inevitavelmente pela preponderância então irresistível nesse gênero de uma tal filosofia Mas essa admirável composição na qual o espírito de universalidade indispensável a qualquer concepção desse tipo é apreciado com tanta força e até mesmo mantido sempre que a natureza do método empregado o permite nunca deixará de ser um modelo imponente sempre o mais apropriado para marcar com clareza o objetivo geral que nossa inteligência deve propor sem cessar como resultado final de todas as nossas análises históricas isto é a coorde nação racional da série fundamental dos diferentes acontecimentos humanos segun do um desígnio único mais real e ao mesmo tempo mais amplo do que o imagina do por Bossuet Cours de phüosophie positive t iy p 147 A fórmula a coordenação racional da série fundamental dos diferentes acontecimentos humanos segundo um desígnio único é a chave da concepção sociológica de Comte Ele é bem o sociólogo da unidade humana Seu objeti vo é reduzir a infinita diversidade das sociedades humanas no espaço e no tem po a uma série fundamental o devenir da espécie humana e a um projeto único o de chegar a um estado final do espírito humano Vêse assim como aquele que se considera o fundador da ciência positi va também pode ser apresentado como o último discípulo do providencialismo cristão vemos como pode se dar a passagem entre a interpretação da história pela providência e a interpretação pelas leis gerais Quer se trate das intenções da providência quer das leis necessárias do devenir humano a história é concebi da como una e necessária Seu desígnio é único porque foi fixado por Deus ou pela natureza humana a evolução é necessária porque ou a providência deter minou suas etapas e seu fim ou a própria natureza do homem e da sociedade determinou as leis Dessa forma o pensamento de Auguste Comte mesmo no Curso de filo sofia positiva em que aparece em sua forma mais científica passa facilmente de uma certa concepção da ciência a uma nova versão da providência O desígnio único da história segundo Auguste Comte é o progresso do es pírito humano Se este dá unidade ao conjunto do passado social é porque a mesma maneira de pensar deve se impor em todos os domínios Auguste Comte sabemos constata que o método positivo é hoje neces sário nas ciências e conclui que este método baseado na observação na expe rimentação e na formulação de leis deve ser estendido aos domínios que ainda hoje são deixados à teologia e à metafísica isto é são deixados às explicações 82 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO por meio de seres transcendentais ou entidades ou ainda das causas últimas dos fenômenos Para ele há um modo de pensar o positivo que tem validade uni versal tanto em política como em astronomia19 Simultaneamente Comte insiste numa proposição complementar à prece dente embora pareça contradizêla Afirma que só pode haver verdadeira uni dade numa sociedade quando o conjunto das idéias diretrizes adotadas pelos diferentes membros da coletividade forma um todo coerente A sociedade é caótica quando nela se justapõem modos de pensar contraditórios e idéias extraídas de filosofias incompatíveis Ao que parece seria possível extrair desse tema a conclusão de que no pas sado as sociedades que não viviam em crise deviam ter um conjunto de idéias coerentes unindo ao mesmo tempo as inteligências e a coletividade Mas essa conclusão só poderia ser parcialmente válida pois Auguste Comte demonstrou quê as diversas ciências alcançam o estado positivo em momentos diferentes da História As primeiras ciências a atingirem o estado positivo são as que estão em primeiro lugar numa classificação das ciências que marca as etapas da difu são do pensamento positivo Em todas as épocas houve ciências que já eram parcialmente positivas enquanto outras disciplinas intelectuais ainda eram feti chistas ou teológicas A coerência do pensamento objetivo final de Comte jamais foi realizada plenamente no curso da história Desde a aurora dos tem pos históricos certos elementos das ciências tinham chegado ao estado positi vo enquanto em outros domínios continuava a reinar o espírito teológico Em outras palavras uma das molas do movimento histórico tem sido pre cisamente a incoerência dos modos de pensar em cada etapa da história Antes do positivismo houve um só período marcado por verdadeira coerência intelec tual o fetichismo que é o modo de pensar imediato e espontâneo do espírito humano e que consiste em atribuir animação a todas as coisas vivas ou inani madas e em supor que as coisas e os seres são semelhantes aos homens ou à consciência humana O espírito só tomará a encontrar uma verdadeira coerên cia na fase final quando o positivismo se estender ao conjunto das disciplinas intelectuais inclusive a política e a moral Entre o fetichismo e o positivismo porém a regra é a diversidade dos métodos de pensamento diversidade que é provavelmente o que impede a história de se deter É verdade que Comte tomou como ponto de partida no princípio da sua carreira a idéia de que não podia haver duas filosofias diferentes numa socie dade mas o desenvolvimento do seu pensamento o forçou irresistivelmente a re conhecer que a pluralidade das filosofias predominou quase sempre no decor rer da história Por fim o objetivo do devenir social é levar o pensamento hu mano à coerência à qual ele está destinado e que só pode ser realizada de duas formas pelo fetichismo espontâneo ou pelo positivismo finai Ou o espírito os FUNDADORES 83 explica todas as coisas supondoas animadas ou renuncia a qualquer explica ção causai teológica ou metafísica e se limita a estabelecer leis Nestas condições porém podese perguntar por que existe uma história Se o estado final e normal da inteligência humana é a filosofia positiva por que precisou a humanidade passar por tantas etapas sucessivas Por que foi neces sário esperar tantos séculos ou milênios para que surgisse o homem que en fim tomasse consciência daquilo que devia ser o espírito humano isto é o pró prio Auguste Comte A razão profunda é que o positivismo só pode ser uma filosofia tardia ou seja não pode ser uma filosofia espontânea Com efeito ele consiste para o homem em reconhecer uma ordem que lhe é exterior em confessar sua inca pacidade de dar uma explicação última e em se contentar em decifrála O espí rito positivo observa os fenômenos analisaos descobre as leis que comandam suas relações Ora é impossível pela observação e análise descobrir imediata e rapidamente essa ordem exterior Antes de filosofar o homem precisa viver Des de a primeira fase da aventura da espécie humana foi possível a rigor explicar certos fenômenos simples de maneira científica A queda de um corpo por exemplo pôde ser explicada espontaneamente de forma positiva20 Mas a filo sofia positivista filosofia da observação da experimentação da análise e do de terminismo não podia se fundamentar na explicação autenticamente científica desses poucos fenômenos Na fase inicial da história era preciso outra filosofia diferente daquela que no final é sugerida pela descoberta das leis Essa outra filosofia que Comte chama a princípio de teológica e depois de fetichista permitia à humanidade viver Confortava o homem apresentandolhe o mundo como inteligente benevolente povoado de seres semelhantes a ele A filosofia fetichista dá à espécie humana uma síntese provisória válida intelectualmente para lhe dar certeza da inteligibilidade da natureza exterior e moralmente para lhe dar confiança em si mesmo e na sua capacidade de superar obstáculos Contudo se a história é necessária por que precisa ir até o fim Comte res ponde uma vez que fenômenos são explicados científica e positivamente desde 0 ponto de partida uma pausa no progresso do espírito humano é no fundo in concebível A contradição entre o positivismo parcial e a síntese fetichista ator menta a humanidade e impede o espírito humano de parar antes de atingir a fase final do positivismo universal Acrescentemos todavia que segundo Comte diversas partes da humanida de se detiveram em sínteses provisórias em uma ou outra das fases intermediá rias No fim da sua vida Comte chegou a pensar que certas populações poderiam Passar da síntese inicial do fetichismo à síntese final do positivismo sem passar Por todas as e ta p a sd m a m ic a social 84 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A concepção da história de Comte coloca outro problema se a história é essencialmente a história do progresso do espírito humano quais são as rela ções entre este progresso dos conhecimentos e as outras atividades humanas No Curso de filosofia positiva Comte afirma que tomada no seu conjun to a história é essencialmente o devenir da inteligência humana A parte principal dessa evolução a que mais influenciou o progresso geral consiste sem dúvida no desenvolvimento contínuo do espírito científico desde os trabalhos primitivos dos Tales e dos Pitágoras até os dos Lagrande e dos Bichat Nenhum homem esclarecido duvidaria hoje que nessa longa sucessão de esforços e de descobertas o gênio humano tenha seguido sempre um caminho exatamente determinado cujo conhecimento prévio exato teria permitido de alguma forma a uma inteligência suficientemente informada prever antes da sua realização mais ou menos próxima os progressos essenciais reservados a cada época segundo o fe liz esboço já indicado no começo do século passado pelo ilustre Fontenelle T IV p 195 Assim o progresso necessário do espírito é o aspecto essencial da história da humanidade21 Auguste Comte deixa pouca coisa ao acaso e aos acidentes Afirma que os momentos principais do espírito humano poderiam ser previstos por uma inteligência superior porque lhe correspondiam a uma necessidade O fato de o progresso do espírito humano ser o aspecto mais característico do devenir histórico não significa que o movimento da inteligência determine a transformação dos outros fenômenos sociais Aliás Comte não coloca o pro blema nesses termos Em nenhum momento ele se pergunta qual é a relação entre o progresso da inteligência humana e as transformações da economia da guerra ou da política E fácil no entanto tirar de suas análises a solução desse problema Não se trata mais para Auguste Comte da determinação do conjunto social pela inteligência como não se trata na obra de Montesquieu da determinação do conjunto social pelo regime político A diferença entre os dois está em que para um o aspecto mais característico é o estado da inteligência para o outro o regime político Em um como em outro porém o movimento histórico se reali za por ação e reação entre os diferentes setores da realidade social global22 Na dinâmica social tanto no tomo V do Curso de filosofia positiva como no tomo III do Système de politique positive a passagem de uma etapa para outra tem como força motriz a contradição entre os diferentes setores da sociedade De acordo com o caso o fator que provoca a desagregação de iam certo conjunto e o advento da etapa seguinte se encontra na política na economia ou na inteligência O primado do devenir da inteligência porém não deixa de subsistir Com efeito as grandes etapas da história da humanidade são fixadas pelo modo de pensar a etapa final é a do positivismo universal e a impulsão última do deve os FUNDADORES 85 nir é a crítica incessante que o positivismo ao nascer e ao amadurecer exerce sobre as sínteses provisórias do fetichismo da teologia e da metafísica É a inteligência que indica a direção da história e marca o que será o pleno desenvolvimento da sociedade e da natureza humana na sua fase final Compreendese que a história humana possa ser considerada como a de um único povo Se a história fosse a história da religião para postular a uni dade da história humana seria necessário admitir uma religião universalizável Mas se a história é a da inteligência é suficiente para que toda a história seja a história de um único povo que exista uma maneira de pensar válida para to dos os homens o que é relativamente fácil de conceber Assim as matemáticas de hoje nos parecem verdadeiras para todos os homens de todas as raças Está claro que esta proposição não é inteiramente evidente Spengler afirmava ter havido uma matemática dos gregos como existe hoje uma matemática moder na Mas o próprio Spengler entendia essa fórmula num sentido particular Acha va que o modo de pensar matemático era influenciado pelo estilo próprio de uma cultura Não creio que tivesse negado que os teoremas matemáticos fossem uni versalmente verdadeiros23 Se a ciência ou a filosofia positiva é válida para todos os homens e se a história é a história da inteligência concebese que ela deva ser pensada como a história de um único povo Contudo se a história é a história de um só povo se suas etapas são necessá rias e se há uma marcha inevitável em busca de um objetivo determinado por que diferentes partes da humanidade têm histórias particulares diferentes entre si Assim como o problema de Montesquieu é explicar a unidade o de Auguste Comte é explicar a diversidade Se por uma espécie de experiência intelectual formos até o fundo desta maneira de pensar o próprio Comte não iria talvez tão longe o que é misterioso é o fato de que existam ainda histórias isto é que as diferentes partes da humanidade não tenham o mesmo passado Auguste Comte justifica essa diversidade enumerando três fatores de va riação a raça o clima e a ação política24 Sobretudo no Système de politique positive ele interpretou a diversidade das raças atribuindo a cada uma a predo minância de certas disposições Assim segundo ele a raça negra deveria carac terizarse sobretudo pela propensão à afetividade o que na última parte de sua carreira lhe parecia aliás uma superioridade moral As diferentes partes da humanidade não evoluíram do mesmo modo porque no ponto de partida não tinham os mesmos dons Mas é evidente que éssa diversidade se desenvol ve tendo como pano de fundo uma natureza comum Quanto ao clima ele designa o conjunto das condições naturais em que se encontra cada parte da humanidade Cada sociedade teve de vencer obstáculos 86 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mais ou menos difíceis conheceu circunstâncias geográficas mais ou menos fa voráveis o que permite explicar até certo ponto a diversidade da sua evolução25 Examinando o papel da ação política voltamos a encontrar o providencia lismo De fato Comte se propõe antes de mais nada a fazer com que os políti cos e os reformadores sociais percam a ilusão de que um indivíduo por mais importante que seja possa modificar substancialmente o curso necessário da história Não se recusa a admitir que depende das circunstâncias dos encontros ou dos grandes homens que a evolução necessária se produza de modo mais ou menos acelerado e que o resultado de qualquer modo inevitável seja mais ou menos custoso Se tomarmos porém o caso de Napoleão por exemplo não teremos dificuldade em descobrir os limites da eficácia possível dos grandes homens De acordo com Comte Napoleão como o imperador Juliano ou Filipe II da Espanha não compreendeu o espírito do seu tempo ou como se diria hoje o sentido da história Fez uma vã tentativa de restauração do regime militar Lan çou a França à conquista da Europa multiplicando conflitos levantou os povos da Europa contra a Revolução Francesa e no fim nada resultou dessa aberração temporária Por maior que seja um soberano quando comete o erro de se enga nar a respeito da natureza da sua época não deixa finalmente nenhum rastro26 Essa teoria que afirma a incapacidade dos indivíduos de alterar o rumo dos acontecimentos desemboca numa crítica dos reformadores sociais dos uto pistas e revolucionários de todos os que acreditam que é possível transformar a marcha da história traçando o plano de uma nova sociedade ou empregando a violência É verdade que à medida que passamos do mundo das leis físicas para o das leis históricas a fatalidade é cada vez mais modificável Graças à sociolo gia que descobre a ordem essencial da história a humanidade poderá talvez apressar o surgimento do positivismo e reduzir o seu custo Mas Auguste Comte com base em sua teoria do curso inevitável da história se opõe às ilusões dos grandes homens e às utopias dos reformistas Há sobre esse ponto uma passagem significativa Numa palavra como indiquei no meu trabalho de 1822 a marcha da civili zação não se realiza propriamente segundo uma linha reta mas segundo uma sé rie de oscilações desiguais e variáveis como na locomoção animal em tomo de um movimento médio que tende sempre a predominar e cujo conhecimento exato permite regularizar previamente a preponderância natural diminuindo as oscila ções e as hesitações mais ou menos funestas que lhes correspondem Seria con tudo exagerar o alcance real de tal arte embora cultivada tão racionalmente quan to possível e aplicada em toda a extensão conveniente atribuirlhe a propriedade de impedir em todos os casos as revoluções violentas que nascem dos obstáculos que se opõem ao curso espontâneo da evolução humana No organismo social em os FUNDADORES 87 virtude da sua maior complexidade as doenças e crises são necessariamente ain da mais inevitáveis sob muitos aspectos do que no organismo individual No en tanto enquanto a ciência real é forçada a reconhecer sua impotência momentânea e fundamental diante de desordens profundas ou de pressões irresistíveis pode ainda contribuir utilmente para atenuar e sobretudo para abreviar as crises graças à apreciação exata de seu caráter principal e à previsão racional da sua solução final sem renunciar jamais a uma intervenção prudente a menos que sua impos sibilidade seja suficientemente constatada Aqui como em outros pontos e mais ainda do que em outros não se trata de controlar os fenômenos mas apenas de modificar seu desenvolvimento espontâneo isso exige é evidente o conhecimen to prévio de suas leis reais Cours de philosophie positive t IY pp 213214 A nova ciência social proposta por Auguste Comte é o estudo das leis do desenvolvimento histórico Ela se fundamenta na observação e na comparação portanto em métodos análogos aos empregados por outras ciências notadamen te a biologia Mas esses métodos se enquadrarão de certo modo nas idéias dire trizes da doutrina positivista pela sua concepção da estática e da dinâmica ambas sintéticas Para compreender a ordem de uma sociedade determinada ou as grandes linhas da história nos dois casos o espírito subordina as observações parciais à compreensão anterior do conjunto Estática e dinâmica são as duas categorias centrais da sociologia de Au guste Comte A estática consiste essencialmente no estudo do que ele chama de consenso social Uma sociedade se assemelha a um organismo vivo Assim co mo é impossível estudar o funcionamento de um órgão sem situálo no conjun to do ser vivo é impossível estudar a política e o Estado sem situálos no con junto da sociedade num dado momento A estática social comporta portanto de um lado a análise anatômica da estrutura da sociedade num certo momento de outro a análise dos elementos que determinam o consenso isto é que fazem do conjunto dos indivíduos ou famílias uma coletividade e da pluralidade das instituições uma unidade Mas se a estática é o estudo do consenso ela nos le va a procurar saber quais são os órgãos essenciais de toda sociedade a ultra passar por conseguinte a diversidade das sociedades históricas para descobrir os princípios que regem toda ordem social Assim a estática social que começa como uma simples análise positiva da anatomia das diversas sociedades e dos laços de solidariedade recíproca entre as instituições de uma coletividade particular leva no tomo II do Système de Politique positive ao estudo da ordem essencial de toda coletividade humana A dinâmica em seu ponto de partida é apenas a descrição das etapas su cessivas percorridas pelas sociedades humanas Partindo do conjunto sabemos que o devenir das sociedades humanas e o espírito humano são comandados por leis Como o conjunto do passado constitui uma unidade a dinâmica social não 88 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO se parece com a história dos historiadores que colecionam fatos ou observam a sucessão das instituições A dinâmica social percorre as etapas sucessivas ou necessárias do devenir do espírito humano e das sociedades humanas A estática social trouxe à luz a ordem essencial de toda sociedade huma na a dinâmica social retraça as vicissitudes pelas quais passou essa ordem fun damental antes de alcançar o termo final do positivismo A dinâmica está subordinada à estática É a partir da ordem de toda socie dade humana que se pode compreender a história A estática e a dinâmica levam aos termos de ordem e progresso que figuram nas bandeiras do positivismo e do Brasil27 O progresso é o desenvolvimento da ordem No ponto de partida estática e dinâmica são simplesmente o estudo da coexistência e da sucessão No ponto de chegada são o estudo da ordem huma na e social essencial de suas transformações e de seu desenvolvimento Mas a passagem da fórmula aparentemente científica estática e dinâmica para a fór mula aparentemente filosófica ordem e progresso é necessária em virtude das duas idéias de Comte o primado do todo e das leis que se aplicam ao conjun to e a confusão entre o movimento inevitável da história e uma espécie de pro vidência Natureza humana e ordem social Numa primeira análise a estática social é comparável à anatomia estuda como se organizam os diferentes elementos do corpo social Contudo como a sociologia tem por objeto a história da humanidade considerada como forman do um só povo esta estética anatômica se torna facilmente a análise da estru tura de toda sociedade humana Fundamentalmente só há uma história assim pelo estudo estático é possível identificar as características de toda sociedade Comte expõe com clareza os objetivos da estática É preciso mediante uma abstração provisória estudar primeiramente a ordem humana como se fosse imóvel Apreciaremos assim as diversas leis funda mentais necessariamente comuns a todos os tempos e lugares Esta base sistemá tica nos permitirá depois a explicação geral de uma evolução gradual que nunca pôde consistir senão na realização crescente do regime próprio à verdadeira natu reza humana e do qual todos os germes essenciais devem ter existido sempre Este segundo volume deve caracterizar sucessivamente a ordem humana sob todos os diversos aspectos fundamentais que lhe são próprios No que diz respeito a cada um deles é preciso antes de mais nada determinar o regime normal que cor responde a nossa verdadeira natureza e explicar em seguida a necessidade que subordina seu aparecimento decisivo a uma longa preparação gradual Système de politique positive t II pp 34 os FUNDADORES 89 É no Système de politique positive que esta concepção comtista da estáti ca encontra seu desenvolvimento completo O tomo II do Système de politique positive é inteiramente consagrado à estática social e tem um subtítulo bem característico Traité abstrait de lordre humain Tratado abstrato da ordem hu mana No Curso de filosofia positiva há sem dúvida o esboço de uma estáti ca mas esta só tem um capítulo e as idéias estão apenas delineadas28 Esta estática pode ser decomposta logicamente em duas partes o estudo preliminar da estrutura da natureza humana contido no tomo I do Système de politique positive e o estudo propriamente dito da estrutura da natureza social Auguste Comte expôs suas idéias sobre a natureza humana no que chamou de quadro cerebral tableau cérébral apresentado como um estudo científi co das localizações cerebrais O quadro indica onde se situam no cérebro os cor respondentes anatômicos das diferentes disposições humanas Esta teoria das localizações cerebrais é o que menos nos interessa é o aspecto menos defensá vel do pensamento de Comte Podemos abandonála sem prejudicar e sem trair o pensamento do seu autor que é o primeiro a admitir que essas localizações são em certa medida hipotéticas A interpretação fisiológica leva a uma hipótese anatômica que não passa da transposição de uma interpretação do funcionamento do espírito Há certamente uma grande diferença entre a maneira como Auguste Comte expôs o que é a natureza humana e o modo como Platão poderia fazêlo En contramos em Platão um esboço de localizações se não cerebrais pelo menos físicas Depois de distinguir o nous do thymos Platão situa diferentes aspectos da natureza humana em diferentes partes do corpo Também neste caso pode mos deixar de lado a teoria da localização das disposições do corpo retendo apenas a imagem que Platão tinha do homem29 Auguste Comte indica que se pode considerar a natureza humana como dupla ou tripla Podese dizer que o homem se compõe de um coração e de uma inteligência ou dividir o coração em sentimento ou afeição e atividade con siderando que o homem é ao mesmo tempo sentimento atividade e inteligên cia Comte afirma que o duplo sentido da palavra coração é uma ambigüidade reveladora Ter coração avoir du coeur é ter sentimento ou coragem As duas noções são expressas pela mesma palavra como se a linguagem tivesse cons ciência do vínculo existente entre afeição e coragem O homem é sentimental ativo e inteligente É antes de tudo um ser essen cialmente ativo No fim da sua vida Comte retoma as fórmulas que já se encon travam nos Opúsculos e escreve no Système de politique positive que o homem não foi feito para perder seu tempo em especulações e dúvidas sem fim Foi fei to para agir Mas o impulso da atividade virá sempre do coração no sentido de senti mento O homem nunca age movido pela inteligência isto é o pensamento 90 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO abstrato nunca é o fator determinante da sua ação Contudo a atividade anima da pela afeição precisa ser controlada pela inteligência Segundo uma fórmula célebre é preciso agir por afeição e pensar para agir Desta concepção decorre a crítica de uma interpretação intelectualista do racionalismo segundo a qual o desenvolvimento histórico faria da inteligência progressivamente o órgão determinante da conduta humana Segundo Comte não pode ser assim O impulso virá sempre do sentimento alma da humanidade e mo tor da ação A inteligência nunca será mais do que um órgão de direção ou de controle Com isso não se desvaloriza a inteligência pois na filosofia positivista existe a idéia de uma relação inversa entre a força e a nobreza O mais nobre é o mais fraco Pensar que a inteligência não determina a ação não é depreciála Ela não é nem pode ser a força precisamente porque de certo modo ela é o que há de mais elevado As localizações cerebrais desses três elementos da natureza humana não passam da transposição das idéias relativas ao seu funcionamento Comte colo ca a inteligência na parte anterior do cérebro de modo a relacionála com os ór gãos da percepção ou os órgãos dos sentidos A afeição está atrás de modo a ficar diretamente ligada aos órgãos motores Podese distinguir em seguida nos sentimentos o que está relacionado com o egoísmo e o que está relacionado com o altruísmo e a abnegação A classifi cação dos sentimentos feita por Comte é bastante curiosa Enumera os instintos puramente egoístas nutritivo sexual maternal e a seguir acrescenta as incli nações que embora egoístas já estão voltadas para as relações com os outros as militares e as industriais que são a transposição na natureza humana dos dois tipos de sociedade que pensou observar na sua época O instinto militar é o que nos impulsiona a destruir os obstáculos o instinto industrial ao contrá rio é o que nos induz a construir meios Acrescenta ainda dois sentimentos que podem ser reconhecidos sem dificuldade o orgulho e a vaidade O orgulho é o instinto da dominação a vaidade a procura da aprovação dos outros Pela vai dade de certo modo já passamos do egoísmo para o altruísmo As inclinações nãoegoístas são três a amizade de uma pessoa por outra no mesmo pé de igualdade a veneração que já amplia o círculo ou então é a disposição do filho em relação ao pai do discípulo ao mestre do inferior ao superior finalmente a bondade que em princípio tem extensão universal e que deve se realizar plenamente na religião da humanidade A inteligência pode ser decomposta em concepção e expressão A concepção por sua vez é passiva ou ativa Quando passiva é abstrata ou concreta Quando ativa é indutiva ou dedutiva A expressão pode ser mímica oral ou escrita A atividade por fim se divide em três tendências a virtude para empre gar uma expressão da filosofia clássica pressupõe a coragem de empreender a prudência na execução e a firmeza na realização ou perseverança os FUNDADORES 91 Essa é a teoria da natureza humana Em virtude do quadro cerebral fica claro que o homem é antes de mais nada egoísta mas não exclusivamente egoísta As inclinações voltadas para os outros que desabrocham em abnegação e amor exis tem desde o inicio A história não altera a natureza humana O primado atribuído à estática eqüivale à afirmação do caráter eterno das disposições características do ho mem enquanto homem Auguste Comte não teria escrito como Sartre que O homem é o futuro do homem e que o homem se cria a si mesmo através do tempo Para Comte as inclinações essenciais estão presentes desde a origem Disso não resulta porém que a sucessão das sociedades não traga nada ao homem Pelo contrário a história lhe dá a possibilidade de realizar o que há de mais nobre na sua natureza e favorece o desenvolvimento progressivo das dis posições altruístas Dálhe a possibilidade de utilizar plenamente a inteligência como guia de sua ação A inteligência nunca será para o homem mais do que um órgão de controle mas não pode ser no princípio da sua evolução um con trole válido da atividade pois como foi dito acima o pensamento positivo não é espontâneo Ser positivo significa descobrir as leis que governam os fenôme nos Ora é preciso tempo para tirar da observação e da experiência o conheci mento dessas leis A história é indispensável para que a inteligência humana atinja seu fim imanente e realize sua vocação própria As relações estruturais entre as partes da natureza humana permanecerão sempre o que já são no ponto de partida Auguste Comte se opõe assim a uma versão otimista e racionalista da evolução da humanidade Contra aqueles que imaginam que a razão poderia ser o determinante essencial do comportamento do homem afirma que os homens serão sempre movidos pelos sentimentos O verdadeiro objetivo consiste em fazer com que sejam movidos cada vez mais por sentimentos desinteressados e não por instintos egoístas e que o órgão de controle que dirige a atividade humana possa realizar plenamente sua função descobrindo as leis que comandam a realidade Essa interpretação da natureza humana nos permite passar à análise da natureza social Nos sete capítulos do primeiro tomo do Système de politique positive Au guste Comte esboça sucessivamente uma teoria da religião uma teoria da pro priedade uma teoria da família uma teoria da linguagem uma teoria do orga nismo social ou da divisão do trabalho antes de terminar consagrando um capí tulo à existência social sistematizada pelo sacerdócio esboço da sociedade humana que se tomou positivista e outro relativo aos limites gerais de varia ção próprios à ordem humana explicação estática da possibilidade da dinâmi ca ou ainda explicação a partir das leis da estática da possibilidade e neces 92 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO sidade das variações históricas Esses diferentes capítulos constituem uma teo ria da estrutura fundamental das sociedades A análise da religião tem por objetivo mostrar a função da religião em toda sociedade humana A religião resulta de uma dupla exigência Toda sociedade comporta necessariamente consenso isto é acordo entre as partes união dos membros que a constituem A unidade social exige o reconhecimento de um prin cípio de unidade por todos os indivíduos isto é uma religião A religião implica a divisão temária característica da natureza humana Comporta um aspecto intelectual o dogma um aspecto afetivo o amor que se exprime no culto e um aspecto prático que Comte chama de regime O culto regula os sentimentos e o regime o comportamento privado ou público dos crentes A religião reproduz as diferenças da natureza humana criando a uni dade precisa dirigirse simultaneamente à inteligência ao sentimento e à ação isto é a todas as disposições do ser humano Esta concepção não é fundamentalmente diferente da que Comte havia ex posto no princípio da sua carreira ao afirmar que as idéias da inteligência fixa vam as etapas da história da humanidade Contudo na época do Système de p o litique positive não considera mais as simples idéias diretrizes ou a filosofia como o fundamento de cada organização social É a religião que constitui a base da ordem social e a religião é afeição e atividade ao mesmo tempo que dogma ou crença Neste tratado a religião será sempre caracterizada pelo estado de plena har monia própria à existência humana tanto coletiva como individual quando todas as suas partes são dignamente coordenadas Esta definição a única que é comum aos diversos casos principais diz respeito igualmente ao coração e ao espírito cujo concurso é indispensável a tal unidade A religião constitui portanto para a alma um consenso normal comparável exatamente à saúde com relação ao cor po Système de politique positive t II p 8 Devese fazer uma aproximação dos dois capítulos relativos à propriedade e à linguagem Essa aproximação pode parecer surpreendente mas correspon de ao pensamento profundo de Auguste Comte30 Propriedade e linguagem têm de fato uma mútua correspondência A propriedade é a projeção da atividade na sociedade enquanto a linguagem é a projeção da inteligência A lei comum à propriedade e à linguagem é a lei da acumulação Há progresso na civilização porque as conquistas materiais e intelectuais não desaparecem com aqueles que as realizaram A humanidade existe porque há tradição isto é transmissão A propriedade é a acumulação dos bens transmitidos de uma geração a outra A lin guagem é por assim dizer o receptáculo no qual são conservadas as aquisições os FUNDADORES 93 da inteligência Ao receber uma linguagem recebemos uma cultura criada pe los nossos antepassados É preciso não nos deixarmos impressionar pelo termo propriedade com sua ressonância política ou sectária Para Auguste Comte o importante não é que a propriedade seja pública ou privada Para ele a propriedade enquanto função essencial da civilização é o fato que permite que as obras materiais dos homens durem além da existência dos seus criadores e que possamos transmitir a nos sos descendentes o que produzimos Os dois capítulos propriedade e lingua gem são dedicados aos dois instrumentos essenciais da civilização basean dose esta na continuidade das gerações e na retomada pelos vivos do pensa mento dos que morreram Daí as célebres frases A humanidade se compõe mais de mortos do que de vivos Os mortos governam cada vez mais os vivos Essas fórmulas merecem reflexão Uma das originalidades de Auguste Comte é o fato de que partindo da idéia da sociedade industrial convencido de que as sociedades científicas são fundamentalmente diferentes das sociedades do pas sado ele não tenha chegado como a maioria dos sociólogos modernos à de preciação do passado e à exaltação do futuro mas a uma espécie de reabilita ção do passado Utopista sonhando com um futuro mais perfeito do que todas as sociedades conhecidas permanece contudo como um homem da tradição com uma percepção aguda da unidade humana através do tempo31 Entre o capítulo dedicado à propriedade e o capítulo consagrado à lingua gem há intercalado um capítulo sobre a família ao qual está relacionado o ca pítulo dedicado ao organismo social ou à divisão do trabalho Esses dois capí tulos correspondem a dois dos elementos da natureza humana A família é es sencialmente a unidade afetiva e o organismo social ou a divisão do trabalho corresponde ao elemento ativo da natureza humana A teoria da família de Comte toma como modelo e considera implicita mente como exemplar a família do tipo ocidental o que naturalmente tem sido objeto de crítica Comte afasta definitivamente como patológicos certos tipos de organização familiar que existiram em diferentes países e em épocas distin tas tais como a poligamia Sem dúvida ele é demasiadamente sistemático e categórico Na sua des crição da família confunde muitas vezes características de uma sociedade par ticular com características universais Não creio porém que esta crítica fácil esgote o assunto O doutrinário do positivismo esforçase sobretudo por demons trar que as relações existentes dentro da família eram características ou exem plares das diversas relações que podem existir entre as pessoas humanas e tam bém que a afetividade humana recebia educação e formação na família As relações familiares podem ser relações de igualdade entre irmãos rela ções de veneração entre filhos e pais relações de bondade entre pais e filhos 94 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO relações complexas de comando e obediência entre o homem e a mulher Se gundo Auguste Comte com efeito é evidente que o homem deve comandar Ativo e inteligente deve ser obedecido pela mulher que é essencialmente sen sibilidade Contudo essa supremacia baseada de certo modo na força é de outro ponto de vista uma inferioridade Na família o poder espiritual isto é o mais nobre pertence à mulher Auguste Comte tinha o sentido de igualdade dos seres mas para ele essa igualdade se baseava numa diferenciação radical das funções e disposições Ao dizer que a mulher é intelectualmente inferior ao homem estava perto de ver nisso uma situação de superioridade ao mesmo tempo a mulher tem para ele o poder espiritual o poder do amor que é mais importante do que a vã supe rioridade da inteligência Vale lembrar a bela fórmula de Comte Cansamonos de agir e até mesmo de pensar mas nunca nos cansamos de amar Ao mesmo tempo na família os homens têm a experiência da continuidade histórica e aprendem o que corresponde à condição básica da civilização a trans missão de geração para geração do capital físico e das aquisições intelectuais As idéias essenciais de Comte sobre a divisão do trabalho são as da dife renciação das atividades e da cooperação entre os homens ou para empregar os termos exatos a da separação dos ofícios e a da combinação dos esforços Mas o princípio fundamental do positivismo que pode parecer chocante é de reconhecer e até mesmo de proclamar o primado da força na organização prá tica da sociedade Enquanto organização das atividades humanas a sociedade é dominada pela força e não pode ser de outro modo Auguste Comte só reconhece dois filósofos políticos Aristóteles e Hobbes Segundo ele Hobbes é o único ou quase filósofo político que merece ser cita do entre ele próprio A Comte e Aristóteles Hobbes viu que toda sociedade é governada e deve ser governada nos dois sentidos de inevitável e de confor me ao que deve ser pela força E a força na sociedade é constituída pelo nú mero ou pela riqueza32 Comte rejeita uma certa forma de idealismo Para ele a sociedade é e será dominada pela força do número ou da riqueza ou por combinação dessas for ças ficando entendido que entre uma e outra não há uma diferença essencial de qualidade É normal que a força leve a melhor E como poderia ser diferen te quando consideramos a vida real como ela é e as sociedades tais como são Todos os que se chocam com a proposição de Hobbes achariam estranho sem dúvida que em vez de fundamentar a ordem política na força quiséssemos funda mentála na fraqueza Ora este seria o resultado da sua inútil crítica segundo mi nha análise fundamental dos três elementos necessários de todo poder social De fato na ausência de uma verdadeira força material seriamos obrigados a encon trar no espírito e no coração as bases primitivas que esses frágeis elementos são sem pre incapazes de proporcionar Exclusivamente aptos a modific acdgnamente uma os FUNDADORES 95 ordem preexistente não poderiam exercer nenhuma função social se a força ma terial não tivesse estabelecido prévia e adequadamente um regime qualquer Sys tème de politique positive t II pp 229300 Entretanto uma sociedade ajustada à natureza humana deve comportar uma contrapartida ou correção ao domínio da força que seria o poder espiritual do qual Comte desenvolve a teoria opondoa à sua concepção realista da ordem social O poder espiritual é uma exigência permanente das sociedades huma nas enquanto entidades de ordem temporal porque estas serão sempre domi nadas pela força Há um duplo poder espiritual o da inteligência e o do sentimento ou da afeição No princípio da sua carreira Auguste Comte apresentava o poder espi ritual como o da inteligência No fim de sua carreira o poder espiritual se toma essencialmente o da afeição ou do amor Contudo qualquer que seja sua forma exata a distinção entre poder temporal e espiritual é permanente através dos tempos embora só se realize plenamente na fase positiva isto é na fase final da história humana O poder espiritual tem diversas funções Rege a vida interior dos homens uneos para que possam viver e agir em comum consagra o poder temporal para convencer os indivíduos da necessidade da obediência a vida social não é pos sível sem que alguns indivíduos comandem e os outros obedeçam Para o filóso fo pouco importa saber quem comanda e quem obedece Os que comandam são e serão sempre os poderosos O poder espiritual não deve apenas reger unir consagrar mas também mo derar e limitar o poder temporal Para esse fim contudo é preciso que a dife renciação social já tenha sido levada muito longe Quando o poder espiritual consagra o poder temporal isto é quando os sacerdotes afirmam que os reis são ungidos por Deus ou que governam em nome de Deus o poder espiritual aumen ta a autoridade do poder temporal Essa consagração dos fortes pelo espírito pode ter sido necessária no curso da história Era necessário que houvesse uma ordem social e uma ordem social aceita mesmo se o espírito não tivesse en contrado as verdadeiras leis da ordem exterior e menos ainda as leis verdadei ras da ordem social Na fase final o poder espiritual concederá apenas uma con sagração parcial ao poder temporal Os cientistas explicarão a necessidade da ordem industrial e da ordem social dando em conseqüência autoridade moral ao poder dos empresários e dos banqueiros Mas sua função essencial será menos consagrar do que moderar e limitar isto é lembrar os poderosos de que se de vem limitar a executar uma função social e que sua situação de comando não implica superioridade moral ou espiritual Para que o poder espiritual preencha todas as suas funções e para que a verdadeira distinção éntre o temporal e o espiritual seja enfim reconhecida e 96 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO aplicada é necessária a história uma necessidade descoberta pela análise está tica da distinção entre os dois poderes Esse estudo da estática elucida o sentido da dinâmica do tríplice ponto de vista da inteligência da atividade e do sentimento A história da inteligência vai do fetichismo ao positivismo isto é da sín tese baseada na subjetividade e na projeção sobre o mundo exterior de uma rea lidade semelhante à da consciência até a descoberta e a constituição das leis que comandam os fenômenos sem pretensão a identificar suas causas A atividade passa da fase militar à fase industrial isto é em termos marxistas da luta dos homens entre si até a luta vitoriosa do homem com a natureza com a reserva de que Auguste Comte não nutre esperanças exageradas sobre os resultados que dará o domínio do homem sobre as forças da natureza Finalmente a história da afetividade é a do desenvolvimento progressivo das disposições altruístas sem que o homem deixe jamais de ser espontânea e primariamente egoísta Essa tríplice significação da história resulta da estática que permite com preender a história com relação à estrutura fundamental da sociedade A história leva simultaneamente a uma diferenciação crescente das fun ções sociais e a uma unificação crescente das sociedades Poder temporal e po der espiritual serão mais distintos do que nunca na fase final e essa distinção será condição para um consenso mais estreito e para uma unidade profunda mais sólida Os homens aceitarão a hierarquia temporal porque terão consciên cia da precariedade dessa hierarquia e reservarão seu apreço supremo para a ordem espiritual que talvez seja a inversão da hierarquia temporal33 Da filosofia à religião Depois de identificar seus traços característicos Auguste Comte conside ra a sociedade industrial como a forma universalizável da organização social j No Curso de filosofia positiva considerou a história como a de um povo único Por fim fundamentou essa unidade da espécie humana na constância da natu reza do homem que se exprime no plano social por meio de uma ordem fun damental que podemos encontrar através da diversidade das instituições his tóricas O sociólogo da unidade humana tem portanto um ponto de vista filosófi co que comanda a fundação da sociologia Auguste Comte é filósofo enquan to sociólogo e sociólogo enquanto filósofo A vinculação indissolúvel entre filosofia e sociologia resulta do princípio do seu pensamento isto é a afirma ção da unidade humana que implica uma determinada concepção do homem da sua natureza da sua vocação da relação entre indivíduo e coletividade os FUNDADORES 97 Convém também identificar as idéias filosóficas de Comte referenciando o seu pensamento às três intenções que encontramos em sua obra a intenção do re formador social a intenção do filósofo que sintetiza os métodos e os resultados das ciências e por fim a intenção do homem que assume a posição de pontífi ce de uma nova religião a religião da humanidade A maioria dos sociólogos de uma forma ou de outra se preocuparam em agir ou em exercer influência sobre a evolução social Todas as grandes doutrinas sociológicas do século XIX talvez mesmo as de hoje comportam uma passa gem do pensamento à ação ou da ciência à política e à moral Uma tal intenção coloca um certo número de questões De que forma o so ciólogo passa da teoria à prática Qual o gênero de conselhos para a ação que se pode tirar da sua sociologia Devese propor uma solução global para o con junto do problema social ou soluções parciais para uma multiplicidade de pro blemas particulares Enfim uma vez concebida essa solução como pensa o so ciólogo transformála em realidade Sob esse aspecto a comparação de Montesquieu com Auguste Comte é ilustrativa Montesquieu deseja compreender a diversidade das instituições so ciais e históricas mas é muito prudente quando se trata de passar da ciência cuja função é compreender para a política cuja função é ordenar ou aconse lhar Não há dúvida de que sua obra contém sugestões dirigidas aos legisladores embora se discutam ainda hoje as preferências de Montesquieu a respeito de de terminados aspectos bastante importantes da organização social Mesmo quan do Montesquieu dá conselhos prefere antes condenar determinadas maneiras de agir a recomendar o que é preciso fazer Suas lições implícitas são mais nega tivas do que positivas Explica que a escravidão enquanto tal lhe parece contrá ria à natureza humana que uma certa igualdade entre os homens está ligada à própria essência da humanidade Mas quando se trata de uma sociedade deter minada numa época dada o conselho supremo que se extrai da sua obra é observai o povo o meio em que vive levai em consideração sua evolução seu caráter e procurai não vos afastar do bom senso Um excelente programa mas que não é muito preciso Essa imprecisão aliás reflete a essência de um pen samento que não concebe uma solução global para o que se chamou no século XIX de crise da civilização isto é o problema social As conseqüências que podem ser deduzidas legitimamente da obra de Mon tesquieu são portanto conselhos metodológicos válidos para um engenheiro social consciente do fato de que há certas características comuns a todas as socie dades mas que uma política apropriada a alguns casos pode ser má em outros Em outras palavras Montesquieu só admite uma passagem prudente e li mitada da ciência para a ação soluções parciais não uma solução global Não recomenda o emprego da violência para transformar as sociedades existentes 98 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de acordo com a idéia que possa ter da ordem social justa Não tem receitas mila grosas para que o príncipe se comporte com sabedoria e não recomenda que con selheiros do príncipe leiam O espírito das leis Em suma Montesquieu é modes to Ora a modéstia não é decerto a qualidade dominante em Auguste Comte o reformador social Como a história da humanidade é uma só e a ordem funda mental é o tema em tomo do qual se fazem variações não hesita em imaginar o que devem ser a realização da vocação humana e a realização perfeita da ordem fundamental Acredita possuir a solução para o problema social Na sua representação da reforma necessária Comte desvaloriza o econô mico e o político em favor da ciência e da moral A organização científica do trabalho é necessária mas essa organização lhe parece afinal relativamente fácil de realizar Não é esta a essência da reforma que porá fim à crise das so ciedades modernas Comte vê a política com o duplo desprezo do homem de ciências e do fun dador de religião Convencido de que as sociedades têm os poderes públicos que merecem e que correspondem ao estado da sua organização social não acredi ta que com a mudança do regime e da constituição o homem possa pôr fim às perturbações sociais profundas Reformador social quer transformar a maneira de pensar dos homens di vulgar o pensamento positivista e estendêlo ao domínio da sociedade elimi nando os resíduos da mentalidade feudal e teológica Quer convencer seus con temporâneos de que as guerras são anacrônicas e as conquistas coloniais ab surdas Para ele porém esses fatos são tão evidentes que não dedica o essen cial da sua obra a esse tipo de demonstração Preocupase antes de mais nada em difundir uma maneira de pensar que levará por si mesma à justa organiza ção da sociedade e do Estado Sua tarefa é fazer com que todos se tomem posis tivistas mostrar a todos que a organização positivista é racional para a ordem temporal ensinarlhes o altruísmo e o amor na ordem espiritual ou moral O paf radoxo é que a ordem fundamental que Auguste Comte quer fazer entrar na rea lidade deve segundo sua filosofia realizarse por si mesma De fato se as lei da estática são as de uma ordem constante as da dinâmica dão a garantia de que a ordem fundamental se realizará Daí o determinismo histórico que desvalori za a intenção e os esforços do reformador Há aí uma dificuldade que encontramos também sob outra forma no pen sarnento de Marx mas que Comte conhece igualmente e resolve de modo mui to diferente Como Montesquieu e mais ainda do que Montesquieu Comte é avesso à violência Não acredita que a revolução poderá resolver a crise moderna e levar as sociedades à plena realização da sua vocação Admite que é necessá rio tempo para que as sociedades dilaceradas de hoje se transformem nas socie dades harmoniosas do futuro Simultaneamente aceita o papel da ação e justi fica os esforços dos homens de boa vontade pelo caráter transformável da fata os FUNDADORES 99 lidade A história está sujeita a leis e não ignoramos mais em que sentido evo luem espontaneamente as sociedades humanas Mas essa evolução pode tomar mais ou menos tempo custar mais ou menos esforço e sangue A liberdade reservada aos homens se manifesta na duração e nas modalidades da evolução em si mesma inevitável Segundo Comte quanto mais nos elevamos na escala dos seres indo dos mais simples até os mais complexos mais se amplia a mar gem de liberdade a margem de transformabilidade da fatalidade O que exis te de mais complexo é a sociedade ou talvez o ser humano individual objeto da moral sétima ciência última na classificação comtiana É na história que as leis deixam aos homens mais liberdade34 Portanto para Comte o sociólogo reformador social não é um engenheiro de reformas parciais no estilo de Montesquieu ou à maneira dos sociólogos de hoje que não são positivistas mas sim positivos Comte não é também um pro feta da violência como Marx É o anunciador sereno dos novos tempos É o ho mem que sabe qual é essencialmente a ordem humana e por conseguinte qual será a sociedade do futuro quando os homens se tiverem aproximado do obje tivo do seu empreendimento comum O sociólogo é uma espécie de profeta pacífico que instrui os espíritos congrega as almas e secundariamente atua como grande sacerdote da religião sociológica Desde sua juventude Comte teve dois objetivos principais reformar a so ciedade e estabelecer a síntese dos conhecimentos científicos A vinculação entre estas duas idéias é clara Com efeito a única reforma social válida seria a que transformasse o modo de pensar teológico e difundisse a atitude própria ao po sitivismo Ora essa reforma das crenças coletivas só pode ser uma conseqüên cia do desenvolvimento científico A melhor maneira de criar de acordo com a ciência nova é seguir através da história e por meio da ciência atualmente exis tente os progressos do espírito positivo Não se pode duvidar de que no pensamento de Comte houvesse uma solida riedade entre os três primeiros volumes do Curso de filosofia positiva em que se encontra realizada sua ambição de síntese das ciências e os três volumes seguin tes que fundam a sociologia e esboçam os temas da estática e da dinâmica A síntese das ciências permite fundamentar e enquadrar as idéias sociais Mas as idéias sociológicas não são rigorosamente dependentes da síntese das ciências embora essa síntese só seja possível em função de uma concepção da ciência que em si mesma está estreitamente associada às intenções do re formador social e do sociólogo As interpretações comtistas da ciência expli cam a passagem do positivismo da primeira época para o positivismo da última u também do pensamento do Curso para o pensamento do Système passagem jue muitos positivistas tais como É Littré e J S Mill que seguiram Comte desde a primeira parte da sua carreira consideraram uma negação das suas no Ções iniciais 100 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A síntese filosófica das ciências pode ser ordenada em tomo de quatro idéias 1 Tal como é concebida por Auguste Comte a ciência não é uma aventu ra uma busca incessante e indefinida é uma fonte de dogmas Auguste Comte quer eliminar os últimos traços de espírito teológico mas de certo modo ele nasceu com algumas das pretensões dos teólogos no sentido caricatural do ter mo Procura verdades definitivas que não possam ser questionadas Está con vencido de que o homem não foi feito para duvidar mas para crer Terseá equi vocado É possível que o homem seja feito para crer e não para duvidar Mas se dissermos que a ciência é uma mistura de dúvida e de fé será preciso acres centar que Comte tinha muito mais consciência da necessidade da fé do que da legitimidade da dúvida As leis estabelecidas pelos cientistas são para Comte comparáveis a dogmas devem ser aceitas de uma vez por todas e não perpe tuamente questionadas Se as ciências levam à sociologia isso se deve em gran de parte ao fato de que proporcionam um conjunto de proposições verificadas que constituem o equivalente dos dogmas do passado 2 Auguste Comte acredita que o conteúdo essencial da verdade científica é representado pelo que se chama de leis isto é relações necessárias entre fenômenos ou fatos dominantes ou constantes característicos de um certo tipo de ser A ciência de Auguste Comte não é uma busca de explicações últimas não pretende atingir as causas Ela se limita a constatar a ordem que reina no mun do menos por curiosidade desinteressada para com a verdade do que para ter condições de explorar os recursos que nos oferece a natureza e para pôr ordemj em nosso próprio espírito Portanto a ciência é duplamente pragmática É o princípio de que são tira i das as receitas técnicas como conseqüências inelutáveis tem valor educativo para nossa inteligência ou antes para nossa consciência Se não houvesse no mundo exterior uma ordem que descobrimos e que é a origem e o princípio da nossa inteligência nossa própria consciência seria caótica as impressões sub jetivas para usar a linguagem de Comte se misturariam confusamente e nadaproí duziriam de inteligível35 Essa concepção da ciência leva logicamente à sociologia e à moral como ao seu resultado e à realização da sua intenção imanente Se a ciência fosse an seio pela verdade uma busca indefinida de explicações intenção de perceber uma inteligibilidade que nos escapa talvez ela se assemelhasse mais ao que ela é na realidade levaria mais dificilmente à sociologia do que à ciência dogmá tica e pragmática concebida por Auguste Comte Não tenho dúvida de que o fundador do positivismo ficaria indignado com os sputniks e a pretensão de explorar o espaço para além do sistema solar Con sideraria um tal empreendimento insensato por que ir tão longe se não sabe OS FUNDADORES 101 mos o que fazer no lugar onde estamos Por que explorar regiões do espaço que como não agem diretamente sobre a espécie humana não lhe dizem respeito Toda ciência que não tivesse o mérito de nos revelar uma ordem ou de nos per mitir agir era a seus olhos inútil e portanto injustificável Dogmático Auguste Comte condenava o cálculo de probabilidades Já que as leis em geral são ver dadeiras por que essa preocupação excessiva com os detalhes por que essas precisões que não servem para nada Por que pôr em questão as leis sólidas que tomam o mundo inteligível 3 Quando Comte procura reunir os resultados e os métodos das ciências descobre ou pensa descobrir uma estrutura do real essencial para a compreen são do homem por ele mesmo e das sociedades pelos sociólogos uma estrutu ra hierárquica dos seres segundo a qual cada categoria está sujeita a determi nadas leis Há na natureza uma hierarquia que vai dos fenômenos mais simples até os mais complexos da natureza inorgânica à orgânica e por fim aos seres vivos e ao homem Estrutura que no fundo é quase imutável E a hierarquia que é um dado da natureza A idéiachave dessa interpretação do mundo é a de que o inferior condicio na o superior mas não o determina Essa visão hierárquica permite situar os fe nômenos sociais no seu lugar e ao mesmo tempo determinar a própria hierar quia social o superior é condicionado pelo inferior como os fenômenos da vida são condicionados mas não determinados pelos fenômenos físicos e químicos 4 As ciências que constituem a expressão e a realização do espírito posi tivo e proporcionam os dogmas da sociedade moderna são espreitadas por um perigo permanente ligado à sua natureza o da dispersão na análise Auguste Comte não cessa de criticar seus colegas cientistas por uma dupla especializa ção que lhe parece excessiva Os cientistas estudam um pequeno setor da rea lidade uma pequena parte de uma ciência e se desinteressam por tudo o mais Por outro lado os cientistas não estão tão convencidos quanto Comte de que re presentam os sacerdotes da sociedade modema e devem exercer uma espécie de magistratura espiritual Deploravelmente tendem a se contentar com o tra balho de cientista sem ambição de reformar a sociedade Modéstia culpável di zia Auguste Comte aberração fatal Ciências puramente analíticas terminariam por ser mais prejudiciais que úteis De que nos serve uma acumulação indefi nida de conhecimentos E necessário que ocorra uma síntese das ciências que tenha como centro ou princípio a própria sociologia Todas as ciências convergem para a sociologia que representa o nível mais alto de complexidade de nobreza e de fragilidade Ao estabelecer essa síntese das ciências para chegar à sociologia Auguste Comte apenas segue a tendência natural das ciências que se dirigem para a ciên cia da sociedade como para o seu fim no duplo sentido de termo e de objetivo Não somente a síntese das ciências se realiza objetivamente com relação à so 102 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ciologia ciência da espécie humana mas a sociologia é o único princípio sub jetivo de síntese possível a reunião dos conhecimentos e métodos só é possível se se toma como ponto de referência a humanidade Se estivéssemos animados por curiosidade pura e simples poderíamos limitarnos a observar indefinida mente a diversidade dos fenômenos e as suas relações Para que haja uma sín tese é necessário pensar objetivamente a hierarquia dos seres que se elevam até a espécie humana e subjetivamente os conhecimentos adquiridos pela humani dade cuja situação eles explicam e que são úteis ao homem para explorar os recursos naturais e para viver de acordo com a ordem Encontramos também no tomo IV do Système de politique positive uma es pécie de filosofia primeira é assim que se exprime Auguste Comte utilizando uma fórmula de Bacon Compreende quinze leis chamadas leis da filosofia primeira Umas são objetivas outras subjetivas permitem compreender como a sociologia sintetiza os resultados das ciências que objetiva e subjetivamente só se podem unificar tomando como referência a humanidade36 Para Comte a sociologia é portanto a ciência do entendimento O homem só pode entender o espírito humano se observar sua atividade e sua obra na so ciedade e através da história O espírito humano não pode ser conhecido por in trospecção à maneira dos psicólogos ou pelo método da análise reflexiva à maneira de Kant Essa verdadeira ciência do entendimento é o que chamaríamos hoje de socio logia do conhecimento É observação análise e compreensão das capacidades do espírito humano tais como se manifestam a nós pelas suas obras na duração his tórica A sociologia é também a ciência do entendimento porque o modo de pen sar e a atividade do espírito são em todos os momentos solidários com o con texto social Não há um eu transcendental que se pudesse apreender pela aná lise reflexiva O espírito é social e histórico O espírito de cada época e de cada pensador está vinculado a um contexto social É preciso compreender esse con texto para poder compreender como funciona o espírito humano Conforme es creve Comte no início da dinâmica social do Système de politique positive O século atual será caracterizado principalmente pela preponderância irre vogável da história na filosofia na política e até mesmo na poesia Essa suprema cia universal do ponto de vista histórico constitui o princípio essencial do positi vismo e o seu resultado geral Como a verdadeira positividade consiste sobretu do na substituição do relativo pelo absoluto sua primazia se toma completa quando a mobilidade regulada já reconhecida com relação ao objeto está conveniente mente ampliada ao próprio sujeito cujas variações dominam assim nossos pen samentos quaisquer que sejam Système de politique positive t III p 1 os FUNDADORES 103 A religião comtista tem hoje pouca ressonância Fazer rir de Auguste Comte é fácil mais importante porém é compreender o que há de profundo nas suas ingenuidades Comte é o fundador de uma religião e assim se considerava Acreditava que a religião da nossa época pode e deve ter inspiração positivista Não pode ser mais a religião do passado que implica um modo de pensar ultrapassado O ho mem de espírito científico não pode crer na revelação no catecismo da Igreja ou na divindade de acordo com a concepção tradicional Por outro lado a religião cor responde a uma necessidade permanente do homem O homem tem necessidade de religião porque precisa amar algo que seja maior do que ele As sociedades têm necessidade da religião porque precisam de um poder espiritual que consagre e modere o poder temporal e lembre aos homens que a hierarquia das capacidades não é nada ao lado da hierarquia dos méritos Só uma religião pode pôr no seu ver dadeiro lugar a hierarquia técnica das capacidades e lhe sobrepor uma hierarquia eventualmente contrária a hierarquia dos méritos A religião que puder atender a essas necessidades constantes da humani dade que busque o amor e a unidade será a religião da humanidade Como a hierarquia dos méritos morais que é preciso criar pode contrariar a hierarquia temporal a humanidade que Auguste Comte nos convida a amar não é a huma nidade que conhecemos grosseira e injusta O Grande Ser não é a totalidade dos homens mas entre os homens aqueles que sobrevivem nos seus descendentes porque viveram de modo a deixar uma obra ou um exemplo Se é verdade que a humanidade se compõe mais de mortos do que de vi vos isso não ocorre porque estatisticamente haja menos vivos do que o nú mero total dos mortos A razão é que só os mortos constituem a humanidade só eles sobrevivem na humanidade que devemos amar e são dignos do que Comte chama de imortalidade subjetiva37 Em outros termos o Grande Ser que Auguste Comte nos convida a amar é o que os homens tiveram ou fizeram de melhor É finalmente aquilo que no ho mem ultrapassa os homens ou pelo menos o que emalguns homens a huma nidade essencial realizou Essa humanidade essencial que amamos no Grande Ser será muito diferen te da humanidade das religiões tradicionais Sem dúvida há uma diferença fun damental entre amar a humanidade como Auguste Comte recomenda e amar o deus transcendente das religiões tradicionais Contudo o deus do Cristianismo se fez homem Entre a humanidade essencial e a divindade na religião da tra dição ocidental há uma relação que se presta a várias interpretações Pessoalmente acredito que a religião de Comte que como se sabe não teve grande êxito temporal é menos absurda do que ordinariamente se acredita Ela rne parece superior a muitas outras concepções religiosas ou semireligiosas que outros sociólogos difundiram deliberadamente ou não A amar alguma coi 104 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO sa na humanidade além de pessoas determinadas mais vale amar a humanida de essencial representada e simbolizada pelos grandes homens do que amar apai xonadamente uma ordem econômica e social a ponto de querer a morte de to dos os que não acreditam nessa doutrina da salvação Se é preciso retirar uma religião da sociologia o que pessoalmente não dese jo fazer a única que me parece no final das contas razoável é a de Auguste Comte Ela não ensina a amar uma sociedade entre outras o que seria fanatismo tribal ou a amar a ordem social do futuro que ninguém conhece e em nome da qual se exterminam os céticos O que Auguste Comte nos recomenda é o amor à excelência de que alguns homens foram capazes e na direção da qual todos os homens devem se elevar e não o amor à sociedade francesa de hoje nem à socie dade russa de amanhã ou à norteamericana de depois de amanhã Pode ser que a humanidade essencial não seja um objeto de amor que to que a maioria dos homens contudo de todas as religiões sociológicas a socio cracia de Comte me parece também filosoficamente melhor Aliás talvez por isso tenha sido a mais fraca politicamente Desde que não amem realidades trans cendentes os homens têm muita dificuldade em amar o que os une e em não amar o que os divide Resta dizer porém que Auguste Comte provavelmente não teria concebido a religião da humanidade se não tivesse vivido sua aventura com Clotilde de Vaux Podese portanto considerar a religião que criou como um acidente biográ fico Se minha interpretação de Auguste Comte é correta este acidente biográfi co pareceme ter um sentido profundo Afirmei que Comte foi o sociólogo da unidade humana ora uma das realizações possíveis se não necessárias da socio logia da unidade humana é a religião da unidade humana A religião do Grande Ser é o que há de melhor no homem transfigurado em princípio de unidade de todos os homens Comte quer que os homens embora destinados a viver indefinidamente em sociedades temporais fechadas estejam unidos por convicções comuns e um obje to único de amor Como esse objeto não pode mais existir na transcendência have ria outra saída além da de conceber os homens reunidos no culto da sua própria unidade pela vontade de realizar e de amar o que através dos séculos e dos gru pos ultrapassa as particularidades é válido para todos e em conseqüência justi fica a unidade não como um fato mas como um objetivo ou um ideal Indicações biográficas 1791 Em 19 de janeiro nasce Auguste Comte em Montpellier de família católica e mo narquista Seu pai é funcionário de nível médio 18071814 Estudos secundários no liceu de Montpellier Comte abandona muito cedo a fé católica atraído por idéias liberais e revolucionárias 18141816 Estudo na École Polytechnique onde foi admitido em primeiro lugar na lista do Sul 1816 Em abril o governo da Restauração decide fechar provisoriamente a École Poly technique suspeita de jacobinismo Comte volta a Montpellier por alguns meses e ali segue alguns cursos de medicina e fisiologia De volta a Paris ganha a vida dando lições de matemática 1817 Em agosto Comte se torna secretário de SaintSimon de quem será colaborador e amigo até 1824 Durante todo este período estará associado às diversas publi cações do filósofo do industrialismo Uindustrie Le politique Uorganisateur Du système industriei e Catéchisme des industrieis 1819 Séparation générale entre les opinions et les désirs Colabora com o Censeur de Charles Comte e Charles Dunoyer 1820 Sommaire appréciation sur l ensemble du passé moderne publicado em abril em Uorganisateur 1822 Prospectus des travaux scientifiques nécessaires pour réorganiser la société publicado no Système industriei 1824 Système de politique positive 11 1 parte Em abril Comte vende este trabalho a SaintSimon que o apresenta no Catéchisme des industrieis sem indicação de autor Comte protesta seguese o rompimento Seu patrão considerao como a terceira parte de um todo que se intitula Catéchisme des industrieis e que expõe o industrialismo de SaintSimon O jovem considerao como a primeira parte de um todo que se denomina Système de politique positive e que expõe o positivis mo de Auguste Comte H Gouhier A partir daqui Comte passará a falar da desastrosa influência que uma funesta relação com um malabarista depra vado exerceu sobre ele 106 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 1825 Considêrations philosophiques sur les sciences et les savants Considérations sur le pouvoir spirituel Estas duas obras ainda foram publicadas em Le Pro ducteur de SaintSimon Casamento de Comte com Caroline Massin uma antiga prostituta Este casa mento realizado por um cálculo generoso foi dirá Comte o único erro real mente grave de toda a minha vida Caroline Massin deixará várias vezes o do micílio comum 1826 Em abril princípio das aulas públicas do Curso de filosofia positiva Entre os seus alunos estão Humbolt H Camot o fisiólogo Blainville e o matemático Poinsot 18261827 Crise mental perturbado por uma primeira fuga da mulher e estafa intelec tual teve de ser internado Sai depois de oito meses não curado e tenta pouco depois o suicídio Logo a crise nervosa se aplaca Consciente das causas dessa crise impõese um regime físico e mental muito severo para prevenir qualquer nova crise 1829 Reinicia o Curso de filosofia positiva em 4 de janeiro 1830 Publicação do tomo I do Curso de filosofia positiva Os outros tomos serão pu blicados sucessivamente em 1835 1838 1839 1841 e 1842 1831 Início do curso gratuito de astronomia popular que continua a ser dado até 1848 Comte se candidata sem êxito à cadeira de análise da École Polytechnique 1832 Nomeado assistente de análise e de mecânica na École Polytechnique 1833 Comte solicita a Guizot a criação de uma cadeira de história das ciências no Collège de France que ele próprio ocuparia Recusa A cadeira de geometria da École Poly technique lhe é igualmente recusada em razão de suas opiniões republicanas 1836 Nomeado examinador da admissão à École Polytechnique 1842 Separação definitiva da esposa 1843 Traité élémentaire de géométrie analytique 1844 Discours sur Tesprit positif preâmbulo ao Traité philosophique d astronomie populaire Comte perde seu cargo de examinador na École Polytechnique passa a viver do livre subsídio positivista enviado inicialmente em 1845 por J S Mill e alguns ingleses ricos e depois a partir de 1848 por É Littré e uma centena de discí pulos e admiradores franceses Em outubro Comte encontra Clotilde de Vaux irmã de um exaluno que com cerca de trinta anos vive separada do marido e sabe que está com a doença 1845 O ano sem igual Comte declara seu amor a Clotilde de Vaux que só lhe ofe rece amizade declarandose impotente para tudo o que ultrapasse os limites da afeição 1846 5 de abril Clotilde de Vaux morre sob os olhos de Auguste Comte que a partir desse momento passa a dedicarlhe um verdadeiro culto 1847 Comte proclama a religião da Humanidade 1848 Fundação da Sociedade Positivista Discours sur l ensemble du positivisme 1851 Comte perde seu cargo de assistente na École Polytechnique Publicação do pri meiro tomo do Système de politique positive ou Traité de sociologie instituant la os FUNDADORES 107 religion de l humanité Os outros tomos serão publicados em 18521853 e 1854 Em 22 de abril Comte escreve a M de Thoulouze Estou convencido de que antes de 1860 pregarei o positivismo em NotreDame como a única religião real e completa Em dezembro Littré e vários discípulos chocados com a aprovação de Comte ao golpe de Estado de Luís Napoleão e apreensivos com a orientação da nova filo sofia se afastam da Sociedade Positivista 1852 Catéchisme positiviste ou Sommaire exposition de la religion universelle 1853 Appel aux conservateurs 1856 Synthèse subjective ou Système universel des conceptions propres à Uétat nor mal de 1humanité Comte propõe ao SuperiorGeral dos Jesuítas uma aliança contra a irrupção anárquica do delírio ocidental 1857 Morte em Paris no dia 5 de setembro na presença de seus discípulos Notas 1 Auguste Comte concebeu a lei dos três estados em fevereiro ou março de 1822 expondoa pela primeira vez no Prospectus des travaux scientifiques nécessaires pour réorganiser la société publicado em abril de 1822 num volume de SaintSimon intitu lado Suite des travaux ayant pour objet de fonder le système industriei Essa obra que Comte chamará no prefácio do Système de politique positive o Opuscule fondamental e que é citada às vezes com o título de Premier système de politique positive nome da edição de 1824 será reeditada no tomo IV do Système de politique positive sob o títu lo Plan des travaux scientifiques nécessaires pour réorganiser la société A lei dos três estados é objeto da primeira lição do Cours de philosophie positive 5 ed 11 pp 28 a classificação das ciências é objeto da segunda Ibid pp 3263 Sobre a descoberta da lei dos três estados e da classificação das ciências ver Henri Gouhier La jeunesse dAuguste Comte et laformation du positivisme tomo III Auguste Comte et SaintSimon Paris Vrin 1941 pp 289291 2 Ao estudar o desenvolvimento total da inteligência humana nas suas diversas esferas de atividade desde sua primeira e mais simples manifestação até os nossos dias creio ter descoberto uma grande lei fundamental à qual esse desenvolvimento está sujeito por necessidade invariável e que me parece poder ser solidamente demonstra da seja por meio das provas racionais fornecidas pelo conhecimento da nossa organi zação seja pelas verificações históricas resultantes de um exame atento do passado Essa lei consiste no seguinte cada uma das nossas principais concepções cada ramo dos nossos conhecimentos passa sucessivamente por três estados teóricos distintos o estado teológico ou fictício o estado metafísico ou abstrato e o estado científico ou positivo Em outras palavras o espírito humano por sua própria natureza emprega su cessivamente em cada uma de suas buscas três métodos de filosofar cujo caráter é essencialmente diferente e até mesmo radicalmente oposto a princípio o método teoló gico em seguida o metafísico e por fim o positivo Daí a existência de três modalida des de filosofia ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto dos fenômenos que se excluem mutuamente a primeira é o ponto de partida necessário da inteligência os FUNDADORES 109 humana a terceira seu estado fixo e definitivo a segunda está destinada unicamente a servir de transição No estado positivo o espírito humano reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas desiste de procurar a origem e o destino do universo e de conhecer as causas internas dos fenômenos para se dedicar a descobrir pelo uso bem combinado do raciocínio e da observação suas leis efetivas isto é suas relações invariáveis de su cessão e de semelhança A explicação de fatos reduzida então a seus termos reais passa a ser apenas a ligação que se estabelece entre os diversos fenômenos particulares e al guns fatos gerais cujo número tende a ser cada vez mais reduzido pelo progresso das ciências Cours de philosophie positive 11 pp 23 3 Comte escreve As idéias governam e revolucionam o mundo em outras pala vras todo o mecanismo social repousa afinal sobre opiniões A grande crise política e moral das sociedades atuais está ligada em última análise à anarquia intelectual Com efeito nosso mal mais grave consiste nessa profunda divergência que existe hoje entre todos os espíritos com relação a todas as máximas fundamentais cuja fixidez é a condição primeira de uma ordem social autêntica Enquanto as inteligências indivi duais não tiverem aderido por assentimento unânime a um certo número de idéias ge rais capazes de formar uma doutrina social comum é impossível dissimular o fato de que obrigatoriamente as nações permanecerão em estado essencialmente revolucioná rio a despeito de todos os paliativos políticos que se possam adotar e comportando ape nas instituições provisórias Cours de philosophie positive 11 p 25 4 Auguste Comte não esconde a sua importância Na falta de um impulso geral para tudo coordenar sem nada perturbar a vida industrial suscita apenas classes que se ligam de modo imperfeito e isso constitui o principal problema da civilização moder na Uma verdadeira solução só será possível se for baseada na coesão cívica Systè me de politique positive t III p 364 Desde a abolição da servidão pessoal as mas sas proletárias não se incorporam verdadeiramente ao sistema social deixandose de lado a oratória anárquica O poder do capital a princípio meio natural de emancipação e depois de independência tornouse agora exorbitante nas transações do diaadia apesar da justa preponderância que ele deva necessariamente exercer em razão de uma generalidade e responsabilidade superiores segundo a sã teoria hierárquica Cours de philosophie positive t VI p 512 A principal desordem é a que afeta hoje a existên cia material em que os dois elementos necessários da força dirigente isto é o número e a riqueza vivem em estado de hostilidade mútua crescente pelo qual são igualmente culpados Système de politique positive t II p 391 5 James Bumham The Managerial Révolution Nova York 1941 livro traduzido ern francês com o título Lère des organisateurs em 1947 com prefácio de Léon Blum 6 O exame da natureza e do objeto da economia política consta da 47 lição do Cours de philosophie positive Comte estudou a economia política da sua época isto é a economia clássica e liberal quando era secretário de SaintSimon e em suas críticas res salva o caso eminentemente excepcional do ilustre e judicioso filósofo Adam Smith Suas críticas são endereçadas sobretudo aos sucessores de Smith Se os nossos economistas são de fato os sucessores científicos de Adam Smith que nos mostrem então em que eles efetivamente aperfeiçoaram ou completaram a doutrina desse mes 110 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tre imortal que descobertas verdadeiramente novas acrescentaram às brilhantes obser vações iniciais que foram ao contrário desfiguradas em sua essência por uma exibição inútil e pueril de formas científicas Observando com imparcialidade as estéreis contestações que os dividem sobre as noções mais elementares de valor de utilidade de produção etc parece que estamos assistindo aos mais estranhos debates dos escolásticos da Idade Média sobre as atri buições fundamentais de suas puras entidades metafísicas com as quais as concepções econômicas se assemelham cada vez mais à medida que vão se tomando mais dogmá ticas e mais sutis ibid p 141 No entanto o que Comte critica fundamentalmente nos economistas é querer criar uma ciência autônoma isolada do conjunto da filosofia social Porque pela natureza do sujeito nos estudos sociais assim como em todos os estudos relativos aos corpos vivos os diversos aspectos gerais são de modo neces sário mutuamente solidários e racionalmente inseparáveis a ponto de não poderem ser convincentemente esclarecidos uns pelos outros quando se passa do mundo das enti dades para as especulações reais tomase claro que a análise econômica ou industrial da sociedade não poderia ser positivamente realizada não considerando sua análise intelectual moral e política no passado ou mesmo no presente de tal modo que reci procamente essa operação irracional fomece um sintoma irrecusável de natureza es sencialmente metafísica das doutrinas que a tomam por base Ibid p 142 7 Maurice Aliais professor de economia na École des Mines autor entre outros livros de Economie et intérêt Paris Imprimerie Nationale 1947 2 vols Traité dêco nomie pure Paris Imprimerie Nationale 1952 Economie pure et rendement social Paris Sirey 1945 LEurope unie route de laprospérité Paris CalmannLévy 1960 Le Tiers Monde au carrefour Bruxelas Les cahiers africains 2 vols 1963 8 Alfred Sauvy professor do Collège de France autor entre outros livros de Théorie générale de la population Paris PUF 11 1963 t II 1959 La nature sociale Paris Armand Colin 1957 De Malthus à Mao TséToung Paris Denoêl 1958 La mon tée des jeunes Paris CalmannLévy 1960 Le Plan Sauvy Paris CalmannLévy 1960 Mythologies de notre temps Paris Payot 1965 Histoire économique de la France entre les deux guerres 11 De Tarmistice à la dévaluation de la livre Paris Fayard 1965 9 Assim escreve Comte Depois de ter explicado as leis naturais que devem de terminar no sistema da sociabilidade moderna a indispensável concentração das rique zas entre os líderes industriais a filosofia positiva mostrará que para os interesses populares pouco importa em que mãos habitualmente se encontram os capitais contan to que sua utilização normal seja necessariamente útil à massa social Ora esta condi ção essencial pela sua natureza depende muito mais dos meios morais do que de medi das políticas Por mais laboriosos entraves que as opiniões estreitas e as paixões ranco rosas possam instituir legalmente contra a acumulação espontânea dos capitais mesmo correndo o risco de paralisar diretamente toda a verdadeira atividade social é claro que esses procedimentos tirânicos teriam uma eficácia real muito menor do que a reprova ção universal aplicada pela moral positiva a qualquer uso demasiado egoísta das rique zas reprovação tanto mais irresistível quanto aqueles mesmos que deveriam sofrêla não poderiam recusar o princípio inculcado em todos pela educação fundamental comum co mo foi demonstrado pelo catolicismo na época da sua predominância Contudo mos os FUNDADORES 111 trando ao povo a natureza essencialmente moral de suas reclamações mais graves a mesma filosofia fará que também as classes superiores sintam de modo necessário o peso dessa apreciação impondolhes com energia em nome de princípios que não são mais contestáveis abertamente as grandes obrigações morais inerentes à sua posição de modo que a propósito da propriedade por exemplo os ricos se considerarão moral mente como depositários necessários dos capitais públicos cujo emprego efetivo embora não possa acarretar nenhuma responsabilidade política salvo em alguns casos excepcionalmente aberrantes será contudo sujeito a escrupulosa discussão moral aces sível necessariamente a todos sob condições apropriadas e cuja autoridade espiritual constituirá ulteriormente o órgão normal Segundo um estudo aprofundado da evolução moderna a filosofia positiva mostrará que desde a abolição da servidão pessoal as mas sas proletárias ainda não estão não levando em conta a oratória anárquica verdadei ramente incorporadas ao sistema social que o poder do capital inicialmente meio natu ral de emancipação e a seguir de independência tomouse agora exorbitante nas tran sações do diaadia por mais justa que seja a preponderância do papel que esse poder deva necessariamente exercer em função de uma generalidade e de uma responsabili dade superiores segundo a sã teoria hierárquica Em síntese essa filosofia mostrará que as relações industriais em vez de continuarem à mercê de um empirismo perigoso e de um antagonismo opressivo devem ser sistematizadas segundo as leis morais da har monia universal Cours dephüosophie positive t VI pp 357358 10 Maurras escreveu um estudo sobre Auguste Comte que foi publicado com oütros ensaios Le romantisme féminin Mademoiselle Mank in Uavenir de l intelligence Paris Nouvelle Librairie Nationale 1918 Maurras escreve sobre Comte Se é certo que exis tem mestres se é falso que o céu e a terra e os meios de interpretálos só tenham vindo ao mundo no dia em que nascemos não sei de nenhum outro nome de homem que deva ser pronunciado com um sentimento de reconhecimento mais vivo Sua imagem não pòde ser evocada sem emoção Alguns dentre nós eram uma anarquia viva Ele lhes deu a ordem ou o seu equivalente a esperança da ordem Ele lhes mostrou a bela face da Unidade sor rindo em um céu que não parece tão distante 11 Há constantes referências a Comte na obra de Alain Vide notadamente Pro Ps sur le christianisme Paris Rieder 1924 Idées Paris Hartmann 1932 reeditado na Coleção 1018 Paris Union Générale dÉditions 1964 este último volume contém um estudo dedicado a Comte A política de Alain está exposta em Éléments dune doctrine radicale Paris Gallimard 1925 e Le citoyen contre les pouvoirs Paris S Kra 1926 12 Abordei o tema da guerra no pensamento de Auguste Comte em La société in dustrielle et la guerre Paris Plon 1959 principalmente o primeiro ensaio texto de uma Auguste Comte Memorial Lecture pronunciada na London School of Economics and Political Science 13 Há muitos anos participei da banca examinadora de uma tese sobre Alain feita Por um homem que se tinha convertido ao positivismo através dos ensinamentos de Alain e que quase rejeitou as idéias de Alain e de Comte quando eclodiu a guerra de 1939 Falso profeta aquele Me anunciava a paz num século de guerra 112 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 14 Auguste Comte escreveu numa época de transição da história colonial no momento em que os impérios constituídos do século XVI ao XVIII acabavam de se dissolver e no limiar da criação dos impérios do século XIX A emancipação das colô nias americanas da Espanha havia terminado a GrãBretanha perdera suas principais colônias da América do Norte a França tinha perdido a índia o Canadá e São Domin gos A GrãBretanha no entanto conservara seu império da Ásia e Canadá Entre 1829 e 1842 período em que Comte redige o Curso de filosofia positiva a França começou a construir seu segundo império colonial conquistando a Argélia e pontos de apoio nas costas da África e da Oceânia A GrãBretanha fez o mesmo apoderandose da Nova Ze lândia em 1840 Comte descreve assim o sistema colonial dos séculos XVII e XVIII Sem retomar evidentemente às dissertações declamatórias do século passado sobre as vantagens ou o perigo final dessa ampla operação para o conjunto da humani dade o que é um problema tão inútil quanto insolúvel seria interessante verificar se daí resultou definitivamente uma aceleração ou um atraso para a evolução total nega tiva e positiva ao mesmo tempo das sociedades modernas Ora sob esse aspecto pare ce primeiramente que a nova direção principal que se abria assim ao espírito guerrei ro na terra e no mar bem como o grande recrudescimento impresso igualmente ao es pírito religioso como mais bem adaptado para civilizar populações atrasadas tenderam diretamente a prolongar a duração geral do regime militar e teológico e na seqüência a afastar a reorganização final Mas em primeiro lugar a ampliação gradual a que ten dia desde então o sistema das relações humanas deve ter tomado mais compreensível a verdadeira natureza filosófica de uma tal regeneração mostrandoa como sendo des tinada no final ao conjunto da humanidade isso devia mostrar com toda a evidência a insuficiência radical de uma política que diante da impossibilidade de assimilar as raças humanas era levada como em tantos casos a destruílas sistematicamente Em segundo lugar por uma influência mais direta e mais próxima a nova estimulação ativa que o grande evento europeu teve que imprimir por toda a parte na indústria certamen te aumentou muito sua importância social e mesmo política desse modo tudo compen sado a evolução moderna ao que me parece teve necessariamente uma aceleração real da qual no entanto formamos uma idéia muito exagerada Cours de philosophie po sitive t VI p 68 Comte analisa as conquistas coloniais do século XIX nos seguintes termos Te mos notado é certo a introdução espontânea de um perigoso sofisma que hoje se procura consolidar e que tenderá a conservar indefinidamente a atividade militar atri buindo às sucessivas invasões o enganoso objetivo de estabelecer diretamente no inte resse final da civilização universal a preponderância material dos povos mais evoluí dos sobre os menos evoluídos No lamentável estado atual da filosofia política que per mite a ascendência efêmera de toda e qualquer aberração uma tendência como essa é por certo muito grave como fonte de perturbação universal na sua seqüência lógica che garia sem dúvida depois de ter motivado a opressão mútua das nações a jogar as di versas cidades umas sobre as outras seguindo os seus diferentes graus de desenvolvi mento sociaL Sem chegar até essa rigorosa extrapolação que certamente permanecerá sempre ideal é de fato com o apoio de um pretexto assim que se pretendeu funda mentar a odiosa justificativa da escravidão colonial de acordo com a incontestável su os FUNDADORES 113 perioridade da raça branca Mas apesar de algumas desordens graves que um sofisma como esse possa provocar momentaneamente o instinto característico da sociabilidade moderna deve por certo dissipar toda preocupação irracional que tenderia a ver ali mesmo que unicamente para um futuro próximo uma nova fonte de guerras gerais inteiramente incompatíveis com as mais perseverantes disposições de todas as popula ções civilizadas Antes da formação e da propagação da sã filosofia política a retidão popular terá sem dúvida apreciado suficientemente mesmo que seja por meio de um empirismo confuso esta grosseira imitação retrógrada da grande política romana que vi mos em sentido inverso destinada essencialmente sob condições sociais radicalmen te opostas ao ambiente moderno reprimir por toda a parte exceto em um único povo a expansão iminente da vida militar que esta inútil paródia estimularia ao contrário nas nações de há muito entregues a uma atividade eminentemente pacífica Cours de philosophie positive t VI pp 237238 15 Encontramos em Comte inúmeras fórmulas para afirmar o anacronismo das guer ras enfatizar a contradição entre a sociedade moderna e o fenômeno militar e bélico Todos os espíritos verdadeiramente filosóficos devem reconhecer com facilidade com uma perfeita satisfação moral e intelectual ao mesmo tempo que chegou enfim a época na qual a guerra séria e durável deve desaparecer totalmente da elite da huma nidade Cours de philosophie positive t VI p 239 Ou ainda Todos os diferentes meios gerais de exploração racional aplicáveis às pesquisas políticas já ajudaram a constatar espontaneamente e de modo decisivo a inevitável tendência primitiva da humanidade a uma vida predominantemente militar e a sua des tinação última não menos irresistível a uma existência industrial Assim nenhuma in teligência um pouco avançada se recusa mais a reconhecer de modo mais ou menos ex plícito o decrescimento contínuo do espírito militar e a ascendência gradual do espíri to industrial como uma dupla conseqüência necessária de nossa evolução progressiva que foi em nossos dias avaliada com muito critério sob esse aspecto pela maioria da queles que se ocupam adequadamente de filosofia política Numa época em que a re pugnância característica das sociedades modernas pela vida militar se manifesta conti nuamente das mais variadas formas e com uma energia sempre crescente até no seio das forças armadas quando por exemplo a insuficiência de vocações militares se tor na por toda a parte inegável em razão da própria obrigação dojecrutamento compulsó rio cada dia mais indispensável e ao qual quase nunca se segue a perseverança volun tária na vida militar a experiência cotidiana dispensaria sem dúvida qualquer demons tração direta para um assunto que também de modo gradual caiu no domínio público Apesar do enorme desenvolvimento excepcional determinado momentaneamente no micio deste século pelo envolvimento inevitável que deve ter sucedido a circunstâncias anormais irresistíveis nosso espírito industrial e pacífico não demorou a retomar de uma maneira mais rápida o curso regular do seu desenvolvimento principal de modo a garantir realmente sob esse aspecto o descanso fundamental do mundo civilizado embora freqüentemente a harmonia européia deva parecer comprometida em conse qüência da falta provisória de toda organização sistemática das relações internacionais 0 que sem poder realmente produzir a guerra basta no entanto para inspirar com fre qüência perigosas inquietações Enquanto a atividade industrial apresenta esta ca 114 ÀS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO racterística admirável de poder ser simultaneamente estimulada em todos os indivíduos e em todos os povos sem que o desenvolvimento de uns seja inconciliável com o dos outros a plenitude da vida militar em uma parte notável da humanidade pelo contrá rio supõe e determina no final em todo o resto uma inevitável repressão que consti tui o principal ofício de um tal regime considerando o conjunto do mundo civilizado Igualmente enquanto a época industrial comporta apenas esse único termo geral ainda indeterminado conferido à existência progressiva de nossa espécie pelo sistema das leis naturais a época militar teve de ser essencialmente limitada à época de uma rea lização gradual suficiente das condições prévias que ela estava destinada a realizar Cours de philosophie positive t IV pp 375379 16 Nossas riquezas materiais podem mudar de mãos livremente ou pela força No primeiro caso a transmissão é gratuita ou interessada Da mesma forma a transfe rência involuntária pode ser violenta ou legal Estes são em última análise os quatro mo dos gerais com que se transmitem naturalmente os produtos materiais De acordo com a ordem decrescente da sua dignidade e eficácia devem ser classificados nesta ordem normal o dom a troca a herança e a conquista Somente os dois modos intermediários se tomaram muito comuns entre os povos modernos como sendo os que melhor se adaptam à existência industrial que devia prevalecer Contudo os dois extremos con correram de forma mais importante para a formação inicial dos grandes capitais Embora o último deva cair por fim em desuso completo o mesmo não acontecerá ja mais com o primeiro cuja importância e pureza nosso egoísmo industrial faz hoje des prezar Sistematizada pelo positivismo a tendência à doação deve proporcionar ao re gime final um dos melhores auxiliares temporais da ação contínua do verdadeiro poder espiritual para tomar a riqueza útil e mais respeitada O mais antigo e mais nobre dá todos os modos próprios à transmissão material secundará a organização industrial mai do que a vã metafísica dos nossos toscos economistas pode indicar Système de poli tique positive t II p 155 Esta passagem se aproxima de algumas análises modernas Vide notadamente de François Perroux Le don sa signification économique dans 6 capitalisme contemporain Diogène abril de 1954 reproduzido em Léconomie duXM siècle 1 ed Paris RUF 1961 pp 322344 li 11 Michael Young The Rise of Meritocracy Londres Thames and Hudson 1958 Penguin Books 1961 18 Condorcet Esquisse d un tableau historique des progrès de l esprit humain Està obra escrita em 1793 foi editada pela primeira vez no ano III Para uma edição moderna vide a da Bibliothèque de Philosophie Paris Boivin 1933 Antes de Condorcet Turgcrf havia escrito um Tableau philosophique des progrès successifs de l esprit humain 19 De onde Auguste Comte concluiu que como não há liberdade de consciência em astronomia não deveria havêla em política 20 A filosofia teológica propriamente dita nunca pôde ser rigorosamente univer sal nem mesmo na nossa infância individual ou social isto é para todas e quaisquer ordens de fenômenos os fatos mais simples e mais comuns sempre foram vistos comoS sendo essencialmente sujeitos a leis naturais em lugar de serem atribuídos à vontadej arbitrária dos agentes sobrenaturais Por exemplo o ilustre Adam Smith observou com muita felicidade nos seus ensaios filosóficos que não se podia encontrar em nenhum OS FUNDADORES 115 país em tempo algum um deus para o peso É o que acontece de modo geral mesmo com respeito aos temas mais complicados para todos os fenômenos bastante elemen tares e familiares para que a invariabilidade das suas relações efetivas tenha sempre cha mado a atenção espontaneamente do observador menos preparado Cours de philo sophie positive t IV p 365 21 Apesar da inevitável solidariedade que sem cessar reina entre os diferentes elementos da nossa evolução social segundo os princípios já estabelecidos é preciso também que no meio de suas mútuas reações contínuas uma dessas ordens gerais de pro gresso seja espontaneamente preponderante para que possa imprimir habitualmente a todos os outros um indispensável impulso primitivo ainda que ele mesmo deva rece ber depois por sua vez de sua própria evolução um novo impulso Aqui basta identi ficar imediatamente esse elemento preponderante cujo exame dirigirá o conjunto da nossa exposição dinâmica sem que nos ocupemos expressamente com a subordinação especial dos meios em relação a ele ou entre eles o que a seguir a realização espon tânea de um tal trabalho deixará suficientemente manifesto Ora assim reduzida a de terminação não poderia apresentar nenhuma dificuldade grave porque bastaria distin guir o elemento social do qual se pudesse conceber melhor o desenvolvimento deixan dose de lado o desenvolvimento de todos os demais a despeito da sua conexão necessária e universal enquanto inversamente do exame direto do desenvolvimento destes últi mos a noção se reproduzirá de modo inevitável Neste caráter duplamente decisivo não se poderia hesitar em pôr no primeiro plano a evolução intelectual como princípio necessariamente preponderante do conjunto da evolução da humanidade Se como expliquei no capítulo anterior o ponto de vista intelectual deve predominar no que diz respeito ao simples estudo estático do organismo social propriamente dito com mais razão se dirá o mesmo com respeito ao estudo direto do movimento geral das socieda des humanas Embora nossa fraca inteligência tenha sem dúvida necessidade do des pertar primitivo e da estimulação contínua dos apetites paixões e sentimentos foi sem pre sob sua direção necessária que teve de se realizar o conjunto do desenvolvimento humano em todos os tempos desde a primeira manifestação do gênio filosófico sem pre se reconheceu de modo mais ou menos claro mas constantemente irrecusável que a história da sociedade era dominada principalmente pela história do espírito humano Cours de philosophie positive t IY p 340 22 No Discours sur Vespritpositive Comte escreveu O politeísmo se adaptava sobretudo ao sistema de conquista da antiguidade o monoteísmo à organização defen siva da Idade Média Fazendo prevalecer cada vez mais a vida industrial a sociabilidade moderna deve portanto secundar vigorosamente a grande revolução mental que hoje eleva nossa inteligência de forma definitiva do regime teológico para o positivismo Esta ativa tendência cotidiana ao aperfeiçoamento prático da condição humana é neces sariamente pouco compatível com as preocupações religiosas sempre relativas sobre tudo sob o monoteísmo e com destinação muito diversa Além disso uma tal ativida de é própria para provocar ao final uma oposição universal tão radical quanto espon tânea a toda filosofia teológica Ed 1018 Paris Union Générale dÉditions 1963 PP6263 116 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 23 Oswald Spengler Der Untergang des Abendlandes Munique 1918 1922 Traduzido em francês com o título de Le déclin de l Occident esquisse dune morpho logie de 1histoire universelle Paris Gallimard 2 vols 1938 Esta obra concebida na época da crise de Agadir foi publicada pela primeira vez em 1916 No entanto o suces so que na Alemanha foi fulminante só veio depois da derrota de 1918 24 A meu ver as três fontes gerais da variação social resultam 1 da raça 2 do clima 3 da ação política propriamente dita considerada em toda a sua extensão cientí fica não se pode procurar saber aqui se sua importância relativa está realmente de acordo com esta ordem ou com alguma outra Mesmo que tal determinação não esti vesse evidentemente deslocada no estado nascente da ciência as leis do método obri gariam pelo menos a postergar sua exposição direta para depois do exame do assunto principal para evitar uma confusão irracional entre os fenômenos fundamentais e suas diversas modificações Cours de philosophie positive t IV p 210 25 Colocando no início da lição 52 do Curso de filosofia positiva a questão por que a raça branca possui de modo tão pronunciado o privilégio efetivo do princi pal desenvolvimento social e por que a Europa tem sido o lugar essencial dessa civili zação preponderante Comte depois de precisar que esta grande discussão de socio logia concreta deve ser reservada até depois da primeira elaboração abstrata das leis fundamentais do desenvolvimento social oferece no entanto algumas razões no ções parciais e isoladas necessariamente insuficientes Sem dúvida já se percebe quanto ao primeiro aspecto na organização característica da raça branca e sobretu do quanto ao aparelho cerebral alguns germes positivos de sua superioridade real em bora os naturalistas estejam hoje muito longe de chegar a um acordo a esse respeito Igualmente sob o segundo ponto de vista podemse entrever de um modo um pouco mais satisfatório diversas condições físicas químicas e mesmo biológicas que certa mente tiveram alguma influência sobre a eminente propriedade das regiões européias de servir até hoje de teatro essencial desta evolução preponderante da humanidade E Comte em uma nota dá maiores precisões Tais são por exemplo em relação ao aspecto físico além da situação termológi ca tão vantajosa na zona temperada a existência da admirável bacia do Mediterrâneo ao redor da qual se realizou inicialmente o mais rápido desenvolvimento social a par tir do momento em que a arte náutica se tornou Suficientemente avançada para permi tir a utilização desse precioso intermediário oferecendo ao conjunto nas nações ribei rinhas tanto a contigüidade própria para facilitar a continuidade das relações quanto a diversidade que os toma importantes para uma recíproca estimulação social De modo semelhante sob o ponto de vista químico a abundância mais pronunciada do ferro e do carvão nesses países privilegiados deve ter certamente contribuído muito para ace lerar a evolução humana Enfim sob o aspecto biológico seja fitológico ou zoológico é claro que esse mesmo meio tendo sido mais favorável às principais culturas alimen tares e por outro lado ao desenvolvimento dos animais domésticos mais úteis a civi lização deve ter sido só por esse único aspecto especialmente encorajada Mas qual quer que seja a importância real que já se possa atribuir a essas diversas constatações elas estão ainda muito longe de ser o suficiente para uma explicação verdadeiramente positiva do fenômeno em pauta e quando a formação adequada da dinâmica social ti o s FUNDADORES 117 ver no futuro permitido uma tentativa direta de tal explicação é até mesmo evidente que cada uma das indicações precedentes terá necessidade de ser submetida a uma escru pulosa revisão científica baseada no conjunto da filosofia natural Cours de philoso phie positive t V pp 1213 26 Auguste Comte é extremamente severo com Napoleão Por uma fatalidade pa ra sempre deplorável essa inevitável supremacia militar à qual o grande Hoche pare cia no início tão afortunadamente destinado acabou caindo nas mãos de um homem quase estranho à França saído de uma civilização atrasada e particularmente anima do sob o secreto impulso de uma natureza supersticiosa por uma admiração involuntá ria pela antiga hierarquia social enquanto apesar do seu vasto charlatanismo caracte rístico a imensa ambição que o devorava não estava realmente em harmonia com nenhu ma superioridade mental eminente exceto a relacionada com um incontestável talento para a guerra que sobretudo em nossos dias está muito mais ligado à energia moral do que à força intelectual Hoje não é possível lembrar esse nome sem recordar que bajuladores vis e igno rantes entusiastas ousaram por muito tempo comparar com Carlos Magno um sobera no que sob todos os aspectos esteve tão atrasado em relação ao seu século quanto o admirável tipo da Idade Média esteve adiantado em relação ao dele Embora toda apre ciação pessoal deva permanecer essencialmente estranha à natureza e à finalidade de nossa análise histórica cada filósofo verdadeiro precisa agora segundo penso consi derar um dever social irrecusável apontar à razão pública a perigosa aberração que sob a mentirosa exposição de uma imprensa tão culpada quanto desnorteada leva hoje o conjunto da escola revolucionária a se esforçar por uma cegueira funesta para reabili tar a memória tão justamente execrada no início daquele que organizou da forma mais desastrosa o mais intenso movimento retrógrado de política que a humanidade já pade ceu Cours de philosophie positive t VI p 210 27 A influência do positivismo no Brasil foi muito profunda chegou a tomarse a doutrina quase oficial do Estado Benjamin Constant presidente da República pro moveu a adoção da Enciclopédia das ciências positivas como base para o programa de estudo das escolas oficiais Em 1880 foi fundado um Instituto do Apostolado e no ano seguinte era inaugurado no Rio de Janeiro um templo positivista para celebrar o culto da Humanidade A divisa Ordem e Progresso figura no pavilhão brasileiro cujo ver de é também a cor das bandeiras positivistas 28 Existem diferenças de detalhes entre as idéias do Curso e as do Système que deixarei de lado para examinar as linhas gerais do pensamento de Comte A estática so cial que estou examinando é concebida por Auguste Comte na época em que escreveu o Système de politique positive 29 A distinção entre razão e coerção encontrase em Platão na República e no Fedro É retomada numa descrição fisiológica dos seres vivos mortais no Timeu em que Platão constrói um quadro das localizações corporais situando a alma imortal na cabe Ça e a alma mortal no peito Existem aliás outros pontos de semelhança entre as idéias O autor comete um engano ao afirmar que Benjamin Constant foi presidente da Repú blica N do T 118 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de Platão e as de Comte Assim o mito platônico da atrelagem cf Fedro lembra a dia lética que Comte descobre no homem entre a afeição a ação e a inteligência 30 Sob este aspecto a instituição da linguagem deve ser por fim comparada à da propriedade De fato a primeira tem na vida espiritual da humanidade uma fun ção fundamental que corresponde àquela que a segunda exerce na vida material De pois de ter facilitado essencialmente a aquisição de todos os conhecimentos humanos teóricos ou práticos e dirigido nosso impulso estético a linguagem consagra esta dupla riqueza e a transmite a novos cooperadores Mas a diversidade das contribuições dé pôts estabelece uma diferença fundamental entre as duas instituições conservadoras para a produção destinada a satisfazer a necessidades pessoais que fatalmente as des troem a propriedade deve instituir conservadores individuais cuja eficácia social é até mesmo aumentada por uma sábia concentração com relação porém às riquezas que comportam a posse simultânea sem sofrer nenhuma alteração a linguagem institui na turalmente uma comunidade plena na qual todos servindose livremente do tesouro universal concorrem de forma espontânea à sua conservação Apesar dessa diferença fundamental os dois sistemas de acumulação suscitam abusos que se eqüivalem e que são devidos igualmente ao desejo de desfrutar sem produzir Os conservadores dos bens materiais podem degenerar em árbitros exclusivos do seu emprego dirigido com ex cessiva freqüência para satisfações egoístas Assim também aqueles que nada deposi taram se adornam com ele de modo a usurpar uma parte que os dispensa de todo ser viço real Système de politique positive t II p 254 31 Para Auguste Comte só há uma história da humanidade e sua ambição é inte grar numa síntese todos os momentos do passado Chega a ver nesse sentido da tradi ção uma das principais superioridades do positivismo A anarquia ocidental consiste principalmente na alteração da continuidade humana sucessivamente violada pelo ca tolicismo amaldiçoando a antiguidade o protestantismo reprovando a Idade Média e o deísmo negando toda filiação Nada invoca melhor o positivismo para fornecer enfim à situação revolucionária a única saída que ela comporta superando todas essas doutri nas mais ou menos subversivas que empurraram gradualmente os vivos a se insurgirem contra o conjunto dos mortos Depois desse serviço a história se tornará logo a ciên cia sagrada em conformidade com o seu papel normal o estudo direto dos destinos do Grande Ser cuja noção resume todas as nossas sãs teorias A política sistematizada apoia rá nela todos os seus empreendimentos subordinados naturalmente ao estado corres pondente da grande revolução Mesmo a poesia regenerada buscará aí os quadros des tinados a preparar o futuro idealizando o passado Système de politique positive t III1 P 2 32 Assim só o princípio da cooperação sobre o qual se baseia a sociedade polí tica propriamente dita suscita naturalmente o governo que deve mantêla e desenvol vêla Tal poder se apresenta na verdade como essencialmente material porque resul ta sempre da grandeza ou da riqueza Mas é importante reconhecer que a ordem social nunca pode ter outra base imediata O célebre princípio de Hobbes sobre a dominação espontânea da força constitui no fundo o único passo importante que tenha sido dado de Aristóteles até mim pela teoria positiva do governo A admirável antecipação da Idade Média sobre a divisão dos dois poderes foi devida na verdade numa situação os FUNDADORES 119 favorável mais ao sentimento do que à razão Depois ela só pôde resistir à discussão quando a retomei Todas as críticas carregadas de ódio que recebeu a concepção de Hobbes resultaram exclusivamente de sua origem metafísica e da confusão radical que houve em seguida entre a avaliação estática e a avaliação dinâmica que não era pos sível então distinguir Mas essa dupla imperfeição só teria conseguido com juizes menos malévolos e mais esclarecidos fazer apreciar melhor a dificuldade e a impor tância dessa percepção luminosa que a filosofia positiva seria a única a utilizar adequa damente Système de politique positive t II p 299 33 Mas a harmonia habitual entre as funções e os funcionários terá sempre enor mes imperfeições Ainda que se quisesse pôr cada um no seu lugar a curta duração da nossa vida objetiva impediria necessariamente o êxito pela impossibilidade de exami nar suficientemente os títulos a fim de realizar em tempo as mutações Aliás é preci so reconhecer que a maioria das funções sociais não exige nenhuma aptidão natural que não possa ser plenamente compensada por um exercício adequado do qual nada po deria justificar a dispensa Como o melhor órgão tem sempre necessidade de um apren dizado especial toda posse efetiva tanto de função como de capital deve ser muito res peitada reconhecendose o quanto essa segurança pessoal é importante para a eficácia social Além disso as qualidades naturais constituem causa de orgulho ainda menor do que as vantagens adquiridas porque nelas nossa intervenção é menor Nosso verdadei ro mérito depende portanto assim como nossa felicidade do digno emprego voluntá rio de quaisquer forças que a ordem real artificial ou natural nos proporcione Esta é a sã apreciação de acordo com a qual o poder espiritual deve inspirar continuamente aos indivíduos e às classes uma prudente resignação para com as imperfeições neces sárias da harmonia social que sua complicação superior expõe a mais abusos Essa convicção habitual seria portanto insuficiente para conter as reclamações anacrônicas caso o sentimento que pode justificálas não recebesse ao mesmo tempo uma certa satisfação normal dignamente regrada pelo sacerdócio Ela resulta da capa cidade de avaliação que constitui diretamente a principal característica do poder espi ritual do qual derivam claramente todas as funções sociais de aconselhamento de con sagração e de disciplina Ora esta avaliação que começa necessariamente pelas profis sões deve estenderse aos órgãos individuais O sacerdócio deve sem dúvida esforçar se sempre para conter as mutações pessoais cujo livre curso se tornaria em breve mais funesto que os abusos que as teriam inspirado Mas também deve construir e desenvol ver por contraste com esta ordem objetiva que resultou do poder efetivo uma ordem subjetiva baseada na estima pessoal de acordo com uma avaliação adequada de todos os títulos individuais Embora esta segunda classificação nunca possa nem deva preva lecer exceto no culto sagrado sua justa oposição à primeira suscita aperfeiçoamentos realmente praticáveis consolando também das imperfeições insuperáveis Système de Politique positive t II pp 329330 34 A verdadeira filosofia se propõe a sistematizar na medida do possível toda a existência humana individual e sobretudo coletiva contemplada ao mesmo tempo nas três ordens de fenômenos que a caracterizam pensamentos sentimentos e ações Sob todos esses aspectos a evolução fundamental da humanidade é necessariamente es pontânea e só a apreciação exata da sua marcha natural pode nos oferecer a base geral 120 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO para uma sábia intervenção Mas as modificações sistemáticas que podemos introduzir têm contudo extraordinária importância para diminuir de muito os desvios parciais os atrasos funestos e as incoerências graves próprias a um impulso igualmente complexo se fosse inteiramente abandonado a si mesmo A realização continua desta intervenção indispensável constitui o domínio essencial da política Todavia sua verdadeira con cepção só pode emanar da filosofia que aperfeiçoa sem cessar sua determinação geral Para esta destinação fundamental comum a função própria da filosofia consiste em coordenar entre si todas as partes da existência humana para levar a noção teórica a uma completa unidade Tal síntese só pode ser real na medida em que representa exatamen te o conjunto das relações naturais cujo estudo judicioso se toma assim a condição pré via dessa construção Se a filosofia tentasse influenciar diretamente a vida ativa de outro modo que não fosse por meio de tal sistematização ela usurparia viciosamente a missão necessária da política único árbitro legítimo para toda evolução prática Entre essas duas funções principais do grande organismo a ligação contínua e a separação normal residem ao mesmo tempo na moral sistemática que constitui naturalmente a aplicação característica da filosofia e o guia geral da política Système de politique positive 11 Discurso preliminar p 8 35 Auguste Comte define sua filosofia do conhecimento sobretudo no capítulo so bre a religião da estática social do Système de politique positive A sã filosofia representa todas as leis reais como sendo construídas por nós com materiais do exterior Apreciadas objetivamente sua exatidão nunca será mais do que aproximativa Mas des tinandose unicamente a nossas necessidades sobretudo ativas essas aproximações tort namse plenamente suficientes quando são bem instituídas de acordo com as exigências práticas que estabelecem habitualmente a precisão adequada Além dessa medida prin cipal ainda resta freqüentemente um grau normal de liberdade teórica j Nossa construção fundamental da ordem universal resulta pois de um concuri necessário entre o exterior e o interior As leis reais isto é os fatos gerais nunca são ma do que hipóteses bastante confirmadas pela observação Se a harmonia não existisse modo algum fora de nós nosso espírito seria totalmente incapaz de concebêla mas e impossível proceder à decomposição que nos permite abstrair se não afastássemos o exj vida contemplativa Mas o grau de subjetividade que é comum a toda a nossa espécie per siste normalmente aliás sem nenhum inconveniente grave to tempo isso teria sido percebido por nossas observações ou teria emanado de nossas concepções Mas a sua noção exige o concurso de duas influências heterogêneas apesar de inseparáveis cuja combinação só se pôde desenvolver muito lentamente As diversas leis redutíveis que a compõem formam uma hierarquia natural etn que cada categoria re nenhum caso ela se verifica tanto quanto supomos Nessa cooperação contínua o mun fornece a matéria e o homem a forma de cada noção positiva Ora a fusão desses do elementos só se toma possível por meio de sacrifícios mútuos Um excesso de objel vidade impediria qualquer visão geral sempre baseada na abstração No entanto ser íi cesso natural de subjetividade Cada homem ao se comparar com os outros oculta es pontaneamente às suas próprias observações tudo aquilo que elas têm principalmente de muito pessoal a fim de permitir o acordo social que constitui a principal finalidade daí Se a ordem universal fosse plenamente objetiva ou puramente subjetiva há mui OS FUNDADORES 121 pousa sobre a precedente segundo sua generalidade decrescente e sua complicação cres cente Assim sua sã apreciação deve ter sido sucessiva Système de politique positive t II pp 3234 36 As quinze leis da filosofia primeira estão enunciadas no tomo IV do Système de politique positive cap III pp 173181 37 O Grande Ser é o conjunto dos seres passados futuros e presentes que con correm livremente para aperfeiçoar a ordem universal Système de politique positive t IV p 30 O culto dos homens verdadeiramente superiores forma uma parte essencial do culto da Humanidade Mesmo durante a sua vida objetiva cada um deles constitui uma certa personificação do Grande Ser Essa representação no entanto exige que se afas tem idealmente as graves imperfeições que com freqüência alteram as melhores nature zas Ibid t II p 63 A humanidade não só se compõe de existências suscetíveis de assimilação como também só admite a parte incorporável de cada uma delas esquecendo todo desvio in dividual Ibid t II p 62 Bibliografia OBRAS DE AUGUSTE COMTE Os textos de Auguste Comte não foram reunidos em uma coleção de Obras Com pletas Para uma bibliografia completa podemse consultar as obras de H Gouhier e Ej ArbousseBastide j Aqui mencionamos apenas as principais obras nas edições que utilizamos sI Auguste Comte oeuvres choisies com uma introdução de H Gouhier Paris Aubier 1943Í Essa coletânea contém as duas primeiras lições do Cours de philosophie positive o prefácio que abre o tomo IV do Cours e o Discours sur l esprit positif Auguste Comte sociologie textos selecionados por J Laubier Paris PUF 1957 exí tratos do Système de politique positive Cours de philosophie positive 5 ed idêntica à primeira 6 vols Paris Schleicher Frò res Éditeurs 19071908 1 Discours sur l espritpositif editado por H Gouhier in Oeuvres choisies Paris Aubieí 1943 ou na Coleção 1018 Paris Union Générale dÉditions 1963 i Politique dAuguste Comte extratos apresentados por Pierre Amaud Paris Armand Colifl 1965 com uma grande introdução Système de politique positive 5 ed conforme a primeira 4 vols Paris na sede da Sof ciété Positiviste 10 rue MonsieurlePrince 1929 1 O tomo I inclui também o Discours sur l ensemble du positivisme o tomo IV ol Opuscules de juventude Séparation générale entre les opinions et les désirs Sommairé appréciation sur l ensemble dupassé moderne Plan des travaux scientifiques néces saires pour réorganiser la société Considérations philosophiques sur les sciences ei les savants Considérations sur le pouvoir spirituel Examen du traité de Broussatí sur l irritation Catéchisme positiviste ou sommairé exposition de la religion uni verselle com cronologia introdução e nota de Pierre Amaud Paris GamierFlam marion 1966 Entre os textos escolhidos disponíveis atualmente no comércio citemos o s FUNDADORES 123 OBRAS GERAIS Alain Idées Paris Hartmann 1932 um capítulo sobre A Comte Bayer R Épistémologie et logique depuis Kant jusquà nos jours Paris PUF 1954 um capítulo sobre A Comte Bréhier E Histoire de la philosophie t II 3f parte Alcan 1932 Brunschvicg L Les étapes de la philosophie mathématique Paris Alcan 1912 Le progrès de la conscience dans la philosophie occidentale 2 vols Paris Alcan 1927 Gilson E Lécole des muses Paris Vrin 1951 um capítulo sobre A Comte e Clotilde de Vaux Gurvitch G Auguste Comte Karl Marx et Herbert Spencer Paris CDU 1957 Leroy M Histoire des idées sociales en France Paris Gallimard t II De Babeuf à Tocqueville 1950 t III DAuguste Comte à PJ Proudhon 1954 de Lubac H Le drame de 1humanisme athée Paris Union Générale dEditions Col 1018 1963 reed Spes 1944 a segunda parte sobre Comte e o cristianismo Maurras Ch Lavenir de 1intelligence Paris Nouvelle Librairie Nationale 1916 Vaughan C E Studies in the History of Political Philosophy before and after Rousseau A G Little 2 vols Manchester University Press 1939 Nova York Russel Russel 1960 OBRAS SOBRE AUGUSTE COMTE ArbousseBastilde P La doctrine de Téducation universelle dans la philosophie d Au guste Comte 2 vols Paris PUF 1957 importante bibliografia Audifirent Dr G Centenaire de l École Polytechnique Auguste Comte sa plus puissan te émanation Notice sur sa vie et sa doctrine Paris P Ritti 1894 Delvolve J Réflexions sur la pensée comtienne Paris Alcan 1932 Deroisin Notes sur Auguste Comte par un de ses disciples Paris G Grès 1909 Ducassé P Essai sur les origines intuitives du positivisme Paris Alcan 1939 Dumas Dr Georges Psychologie de deux messies positivistes SaintSimon et Auguste Comte Paris Alcan 1905 Gouhier H La vie d Auguste Comte 2 ed Paris Vrin 1965 La jeunesse d Auguste Comte et la formation du positivisme 3 tomos Paris Vrin I Sous le signe de la liberté 1933 II SaintSimon jusquà la Restauration 2 ed 1964 III Auguste Comte et SaintSimon 1941 Gruber R P Auguste Comte fondateur du positivisme Paris Lethielleux 1892 Halbwachs M Statique et dynamique sociale chez Auguste Comte Paris CDU 1943 Lacroix J La sociologie dAuguste Comte Paris PUF 1956 LévyBruhl L La philosophie d Auguste Comte Paris Alcan 1900 Marvin F S Comte the Founder of Sociology Londres Chapman Hall 1936 Mill J S Auguste Comte and Positivism Ann Arbor University of Michigan Press 1961 124 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Robinet Dr Notice sur Voeuvre et la vie d Auguste Comte 3a ed Paris Société Posi tiviste 1891 Seillière E Auguste Comte Paris Vrin 1924 OBRAS EM PORTUGUÊS Catecismo pozitivista ou sumária expozição da religião da humanidade tradução e notas de Miguel Lemos 2 ed Rio de Janeiro Igreja Pozitivista do Brazil 1895 Catecismo pozitivista ou sumária expozição da religião da humanidade tradução e notas de Miguel Lemos São Paulo Abril Cultural 1973 Os Pensadores 33 Comte Auguste Catecismo positivista ou exposição sumária da religião universal on ze colóquios sistemáticos entre uma mulher e um sacerdote da Humanidade tra dução e notas de Fernando Melro Lisboa Publicações EuropaAmérica Curso de filosofia positivista tradução de José Arthur Giamiotti São Paulo Abril Cul tural 1973 Os Pensadores 33 Discurso sobre o espírito positivo tradução de J A G São Paulo Abril Cultural 1973 Os Pensadores 33 Karl Marx O país mais desenvolvido industrialmente mostra aos que o seguem na escala industrial a imagem do seu próprio futuro Mesmo quando uma sociedade chega a descobrir a pista da lei natural que preside ao seu mo vimento ela não pode ultrapassar de um salto nem abolir por meio de decretos as fases do seu desenvolvimento natural pode contudo reduzir o período de gestação e minorar os males da sua gravidez O capital Prefácio à 1 edição alemã Para analisar o pensamento de Marx procurarei responder às mesmas ques tões formuladas a propósito de Montesquieu e de Comte que interpretação Marx dá de seu tempo Qual a sua teoria do conjunto social Qual a sua visão da his tória Que relação estabelece entre sociologia filosofia da história e política Num certo sentido esta exposição não é mais difícil do que as duas preceden tes Se não existissem milhões de marxistas ninguém teria dúvidas sobre quais teriam sido as idéias diretrizes de Marx Marx não é como disse Axelos o filósofo da tecnologia Também não é como pensam muitos o filósofo da alienação1 Antes de mais nada é o soció logo e o economista do regime capitalista Marx tinha uma teoria sobre esse re gime sobre a influência que exerce sobre os homens e sobre o devenir pelo qual passará Sociólogo e economista do que chamava de capitalismo não tinha uma idéia precisa do que seria o regime socialista e não se cansava de repetir que o homem não podia conhecer o futuro antecipadamente Não tem muito interesse portanto indagar se Marx foi stalinista trotskista partidário de Khruchtchev ou de Mao Karl Marx teve a sorte ou a infelicidade de ter vivi do há um século Não deu respostas às questões que formulamos hoje Pode mos procurar respondêlas por ele mas as respostas serão nossas não dele Um homem sobretudo um sociólogo marxista porque apesar de tudo Marx tinha algumas relações com o marxismo é inseparável da sua época Perguntar o que teria pensado Marx significa querer saber o que um outro Marx teria pensado no lugar do verdadeiro Karl Marx A resposta contudo é possível mas é alea tória e de pouco interesse Mesmo se nos limitarmos a expor o que o Marx que viveu no século XIX Pensava sobre seu tempo e sobre o futuro e não o que ele pensaria de nosso tempo e de nosso futuro essa análise apresentará dificuldades particulares por Muitas razões algumas extrínsecas outras intrínsecas 126 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO As dificuldades extrínsecas têm a ver com o destino póstumo de Marx Hoje quase um bilhão de seres humanos são instruídos numa doutrina que com ou sem razão se denomina de marxismo Uma determinada interpretação da dou trina de Marx se transformou na ideologia oficial do Estado russo e em segui da dos Estados da Europa oriental e do Estado chinês Essa doutrina oficial pretende oferecer uma interpretação autêntica do pen samento de Marx Basta portanto que o sociólogo apresente uma certa interpre tação desse pensamento para que aos olhos dos que seguem a doutrina oficial passe a ser visto como portavoz da burguesia a serviço do capitalismo e do imperialismo Em outras palavras a boafé que sem muita dificuldade me é atribuída quando se trata de Montesquieu ou de Auguste Comte alguns me negam antecipadamente quando se trata de Karl Marx Outra dificuldade extrínseca provém das reações à doutrina oficial dos Es tados soviéticos Essa doutrina apresenta as características de simplificação e exagero inseparáveis das doutrinas oficiais que são ensinadas sob forma de ca tecismo a espíritos de qualidade heterogênea Por outro lado alguns filósofos sutis que vivem às margens do Sena por exemplo e que desejariam ser marxistas sem precisar retornar à infância ima ginaram uma série de interpretações do pensamento último e profundo de Marx cada uma mais inteligente do que a outra2 De minha parte não buscarei uma interpretação supremamente inteligen te de Marx Não que não tenha um certo gosto por estas especulações sutis creio porém que as idéias centrais de Marx são mais simples do que as que se podem encontrar na revista Arguments por exemplo ou nas obras dedicadas aos escritos de juventude de Marx escritos de juventude a que Marx dava tanta importância que os abandonou à crítica dos ratos3 Por isso farei referência es sencialmente aos textos que Marx publicou e que sempre considerou como a principal manifestação do seu pensamento Contudo mesmo se deixarmos de lado o marxismo da União Soviética e dos marxistas mais sutis encontraremos algumas dificuldades intrínsecas Estas di ficuldades se relacionam primeiramente com o fato de que Marx foi um autor fecundo que escreveu muito e que como acontece às vezes com os sociólo gos escreveu tanto artigos de jornal como obras de fôlego Tendo escrito muito nem sempre disse a mesma coisa sobre os mesmos temas Com um pouco de engenho e de erudição é sempre possível encontrar sobre a maioria dos proble mas fórmulas marxistas que não parecem conciliáveis ou que pelo menos se prestam a diferentes interpretações Além disso a obra de Marx comporta textos de teoria sociológica de teo ria econômica de história e às vezes a teoria explícita que se encontra nesses escritos científicos parece estar em contradição com a teoria implícita dos seus livros históricos Por exemplo Marx esboça uma certa teorift das classes so OS FUNDADORES 127 ciais contudo quando estuda historicamente a luta de classes na França entre 1848 e 1850 ou o golpe de Estado de Luís Napoleão ou a história da Comuna as classes que reconhece e que coloca como personagens do drama não são necessariamente as que havia indicado na sua teoria Além da diversidade das obras de Marx é preciso levar em conta a diver sidade dos períodos em que foram escritas Distinguemse em geral dois perío dos principais O primeiro que é chamado de período de juventude compreen de os trabalhos escritos entre 1841 e 18471848 Entre os escritos desse perío do alguns foram publicados enquanto Marx ainda era vivo ensaios e artigos breves como a Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel ou o En saio sobre a questão judaica Os outros só foram publicados depois de sua mor te A publicação de conjunto é de 1931 Foi a partir dessa data que se desen volveu toda uma literatura que reinterpretou o pensamento de Marx à luz dos escritos de juventude Entre esses escritos encontramos um fragmento de uma crítica da filoso fia do direito de Hegel um texto intitulado Manuscrito econômicofilosófico A ideologia alemã As obras mais importantes desse período que já eram conhecidas desde muito tempo incluem A sagrada família e uma polêmica contra Proudhon inti tulada Miséria da filosofia réplica do livro de Proudhon Filosofia da miséria Esse período de juventude se encerra com Miséria da filosofia e sobretu do com a pequena obra clássica intitulada Manifesto comunista obraprima da literatura sociológica de propaganda na qual encontramos expostas pela pri meira vez de maneira tão lúcida quanto brilhànte as idéias diretrizes de Marx Contudo A ideologia alemã de 1845 marca também uma ruptura com a fase anterior A partir de 1848 e até o fim dos seus dias Marx aparentemente deixou de ser filósofo tornandose um sociólogo e sobretudo um economista A maio ria dos que se dizem hoje mais ou menos marxistas tem a peculiaridade de ig norar a economia política do nosso tempo É uma fraqueza da qual Marx não com partilhava Com efeito possuía admirável formação econômica conhecia o pen samento econômico do seu tempo como poucos Era e queria ser um economista no sentido rigoroso e científico do termo No segundo período da sua vida as duas obras mais importantes são um texto de 1859 intitulado Contribuição à crítica da economia política e natural mente sua obraprima o centro do seu pensamento O capital Insisto no fato de que Marx é antes de mais nada o autor de O capital porque essa banalidade é hoje questionada por homens muitíssimo inteligen tes Não há sombra de dúvida de que Marx que tinha por objeto analisar o funcionamento do capitalismo e prever a sua evolução era a seus próprios olhos e acima de qualquer outra coisa o autor de O capital 128 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Marx tem uma certa visão filosófica do devenir histórico É possível e até mesmo provável que tenha dado um sentido filosófico às contradições do capi talismo Contudo o essencial no esforço científico de Marx foi demonstrar cientificamente a evolução a seus olhos inevitável do regime capitalista Qualquer interpretação de Marx que não encontre um lugar para O capi tal ou que seja capaz de resumir esta obra em algumas páginas é aberrante com relação ao que o próprio Marx pensou e pretendeu Naturalmente podese sempre dizer que um grande pensador se equivocou a respeito de si mesmo e que os textos essenciais são justamente os que ele não teve interesse em publicar Mas é preciso estar muito seguro da própria genia lidade para ter certeza de compreender um grande autor de modo tão superior ao do próprio autor Quando não se está tão certo da própria genialidade é me lhor começar compreendendo o autor do modo como ele próprio se compreen deu isto é no caso de Marx colocando no centro do marxismo O capital em lugar do Manuscrito econômicofilosófico rascunho informe medíocre ou genial de um jovem que especula sobre Hegel e sobre o capitalismo numa época em que seguramente conhecia melhor Hegel do que o capitalismo Por isso levando em conta os dois momentos da carreira científica de Marx tomarei como ponto de partida o pensamento da maturidade que irei procurar no Manifesto comunista na Contribuição à crítica da economia política e em O capital reservando para etapa ulterior a procura do substrato filosófico do pensamento histórico e sociológico de Marx Finalmente fora da ortodoxia soviética chamada marxismo há muitas in terpretações filosóficas e sociológicas de Marx Há mais de um século escolas diferentes têm a característica comum de afirmar sua filiação a Marx e dar ver sões diferentes ao seu pensamento Não tentarei expor aqui o pensamento últi mo e secreto de Marx porque confesso não sei qual é Procurarei mostrar por que os temas do pensamento de Marx são simples e falsamente claros e se pres tam assim a várias interpretações entre as quais é quase impossível escolher com segurança Podese apresentar um Marx hegeliano podese também apresentar um Marx kantiano Podese afirmar como Schumpeter que a interpretação econômica da história nada tem a ver com o materialismo filosófico4 Podese demonstrar tam bém que a interpretação econômica da história é solidária com uma filosofia materialista Podese considerar O capital como o fez Schumpeter como uma obra rigorosamente científica de ordem econômica sem nenhuma referência à filosofia E podemos também como o padre Bigo e outros comentaristas mos trar que O capital elabora uma filosofia existencial do homem no campo da economia5 Minha ambição será mostrar por que intrinsecamente os textos de Marx são equívocos o que significa que têm as qualidades necessárias para que sejam comentados indefinidamente e transfigurados em ortodoxia OS FUNDADORES 129 Toda teoria que pretende tomarse ideologia de movimento político ou dou trina oficial de um Estado deve prestarse à simplificação para os simples e à su tileza para os sutis Não há dúvida de que o pensamento de Marx apresenta em grau supremo essas virtudes Cada um pode encontrar somente o que pretende6 Marx era incontestavelmente um sociólogo mas um sociólogo de tipo de terminado sociólogoeconomista convicto de que não podemos compreender a sociedade moderna sem uma referência ao funcionamento do sistema econô mico nem compreender a evolução do sistema econômico se desprezamos a teo ria do funcionamento Enfim como sociólogo ele não distinguia a compreen são do presente da previsão do futuro e da determinação de agir Comparativa mente às sociologias ditas objetivas de hoje era portanto um profeta e um homem de ação além de um cientista Talvez apesar de tudo haja o mérito da franqueza em não negar os laços que encontramos sempre ligando a interpreta ção daquilo que é e o julgamento do que deveria ser  análise sociòeconômica do capitalismo O pensamento de Marx é uma análise e uma compreensão da sociedade capitalista no seu funcionamento atual na sua estrutura presente e no seu deve nir necessário Auguste Comte tinha desenvolvido uma teoria daquilo que ele chamava de sociedade industrial isto é das principais características de todas as sociedades modernas No pensamento de Comte havia uma oposição essen cial entre as sociedades do passado feudais militares e teológicas e as socie dades modernas industriais e científicas Incontestavelmente Marx também considera que as sociedades modernas são industriais e científicas em oposi ção às sociedades militares e teológicas Porém em vez de pôr no centro da sua interpretação a antinomia entre as sociedades do passado e a sociedade presen te Marx focaliza a contradição que lhe parece inerente à sociedade moderna que ele chama capitalismo Enquanto no positivismo os conflitos entre trabalhadores e empresários são fenômenos marginais imperfeições da sociedade industrial cuja correção é relativamente fácil para Marx esses conflitos entre os operários e os empresá rios ou para empregar o vocabulário marxista entre o proletariado e os capita listas são o fato mais importante das sociedades modernas o que revela a natu reza essencial dessas sociedades ao mesmo tempo que permite prever o desen volvimento histórico O pensamento de Marx é uma interpretação do caráter contraditório ou antagônico da sociedade capitalista De um certo modo toda a obra de Marx é um esforço destinado a demonstrar que esse caráter contraditório é inseparável 130 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO da estrutura fundamental do regime capitalista e é também o motor do movi mento histórico Os três textos célebres que me proponho a analisar o Manifesto comunis ta o prefácio da Contribuição à crítica da economia política e O capital são três maneiras de explicar de fundamentar e precisar esse caráter antagônico do regime capitalista Se compreendermos bem que o centro do pensamento de Marx é a afirma ção do caráter contraditório do regime capitalista entenderemos imediatamen te por que é impossível separar o sociólogo do homem de ação já que demons trar o caráter antagônico do regime capitalista leva irresistivelmente a anunciar a autodestruição do capitalismo e ao mesmo tempo a incitar os homens a con tribuir com alguma coisa para a realização desse destino já traçado O Manifesto comunista é um texto que se quisermos podemos qualificar de nãocientífico Tratase de uma brochura de propaganda mas nele Marx e Engels apresentaram de forma sucinta algumas das suas idéias científicas O tema central do Manifesto comunista é a luta de classes A história de toda sociedade até nossos dias é a história da luta de classes Homem livre e escravo patrício e plebeu barão e servo mestre de oficio e com panheiro numa palavra opressores e oprimidos se encontraram sempre em cons tante oposição travaram uma luta sem trégua ora disfarçada ora aberta que ter minava sempre por uma transformação revolucionária de toda a sociedade ou en tão pela ruína das diversas classes em luta Manifesto comunista in Oeuvres 11 p 161 Eis aí portanto a primeira idéia decisiva de Marx a história humana se caracteriza pela luta de grupos humanos que chamaremos classes sociais cuja definição que por enquanto permanece equívoca implica uma dupla caracte rística por um lado a de comportar o antagonismo dos opressores e dos opri midos e por outro lado de tender a uma polarização em dois blocos e somen te em dois Todas as sociedades sendo divididas em classes inimigas a sociedade atual capitalista não é diferente das que a precederam No entanto ela apresenta cer tas características novas Para começar a burguesia classe dominante é incapaz de manter seu rei nado sem revolucionar permanentemente os instrumentos da produção A bur guesia não pode existir escreve Marx sem transformar constantemente os ins trumentos de produção portanto as relações de produção portanto o conjunto das condições sociais Ao contrário a primeira condição da existência de todas as classes industriais anteriores era a de conservar inalterado o antigo modo de produção No curso do seu domínio de classe que ainda não tem um século a burguesia criou forças produtivas mais maciças e mais colossais do que as que OS FUNDADORES 131 haviam sido criadas por todas as gerações do passado em conjunto Ibid pp 164 e 1677 Por outro lado as forças de produção que levarão ao regime socia lista estão em processo de amadurecimento dentro da sociedade atual No Manifesto comunista são apresentadas duas formas da contradição ca racterística da sociedade capitalista que aliás encontramos também nas obras científicas de Marx A primeira é a contradição entre as forças e as relações de produção A bur guesia cria incessantemente meios de produção mais poderosos Mas as rela ções de produção isto é ao que parece ao mesmo tempo as relações de pro priedade e a distribuição das rendas não se transformam no mesmo ritmo O regime capitalista é capaz de produzir cada vez mais Ora a despeito desse au mento das riquezas a miséria continua sendo a sorte da maioria Aparece assim uma segunda forma de contradição a que existe entre o aumento das riquezas e a miséria crescente da maioria Dessa contradição sairá um dia ou outro uma crise revolucionária O proletariado que constitui e cons tituirá cada vez mais a imensa maioria da população se constituirá em classe isto é numa unidade social que aspira à tomada do poder e à transformação das relações sociais Ora a revolução do proletariado será diferente por sua natu reza de todas as revoluções do passado Todas as revoluções do passado eram feitas por minorias em benefício de minorias A revolução do proletariado será feita pela imensa maioria em benefício de todos A revolução proletária mar cará assim o fim das classes e do caráter antagônico da sociedade capitalista Essa revolução que provocará a supressão simultânea do capitalismo e das classes será obra dos próprios capitalistas Os capitalistas não podem deixar de transformar a organização social Empenhados numa concorrência inexpiável não podem deixar de aumentar os meios de produção de ampliar ao mesmo tem po o número dos proletários e sua miséria O caráter contraditório do capitalismo se manifesta no fato de que o cresci mento dos meios de produção em vez de se traduzir pela elevação do nível de vida dos trabalhadores leva a um duplo processo de proletarização e pauperização Marx não nega a existência de muitos grupos intermediários entre os capi talistas e os proletários como artesãos pequenos burgueses comerciantes cam poneses proprietários de terras Mas faz duas afirmações que à medida que evolui o regime capitalista haverá uma tendência para a cristalização das rela ções sociais em dois e somente dois grupos os proletários e os capitalistas que duas e somente duas classes representam uma possibilidade de regime político e uma idéia de regime social As classes intermediárias não têm inicia tiva nem dinamismo histórico Só duas classes têm condições de imprimir sua marca na sociedade Uma é a classe capitalista e a outra a classe proletária No dia do conflito decisivo todos serão obrigados a se alinhar seja com os capita listas seja com os proletários 132 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Quando a classe proletária tiver tomado o poder haverá uma ruptura decisi va com o curso da história precedente Com efeito o caráter contraditório de to das as sociedades conhecidas até o presente terá desaparecido Marx escreve Quando no curso do desenvolvimento os antagonismos de classes tiverem de saparecido e toda a produção estiver concentrada nas mãos dos indivíduos asso ciados o poder público perderá seu caráter político No sentido estrito do termo o poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de uma outra Se na luta contra a burguesia o proletariado é forçado a se unir em uma classe se através de uma revolução ele se constitui em classe dominante e como tal abole pela violência as antigas relações de produção então ao suprimir o sistema de produção ele elimina ao mesmo tempo as condições de existência do antagonismo de classe então ao suprimir as classes em geral ele elimina pelo mesmo ato sua própria dominação enquanto classe A antiga sociedade burguesa com suas clas ses e seus conflitos de classe será substituída por uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um será a condição do livre desenvolvimento de todos Manifesto comunista Oeuvres 11 pp 182183 Esse texto é bem característico de um dos temas essenciais da teoria de Marx A tendência dos escritores do começo do século XIX é considerar a polí tica ou o Estado como um fenômeno secundário em relação aos fenômenos essenciais econômicos ou sociais Marx participa desse movimento geral tam bém ele considera que a política e o Estado são fenômenos secundários com relação ao que acontece na sociedade Por isso apresenta o poder político como a expressão dos conflitos sociais O poder político é o meio pelo qual a classe dominante a classe exploradora mantém seu domínio e sua exploração Nesta linha de raciocínio a supressão das contradições de classe deve levar logicamente ao desaparecimento da política e do Estado pois política e Estado são na aparência o subproduto ou a expressão dos conflitos sociais Esses são os temas da visão histórica e também da propaganda política de Marx Tratase de uma expressão simplificada mas a ciência de Marx tem por fím demonstrar rigorosamente essas proposições o caráter antagônico da sociedade capitalista a autodestruição inevitável dessa sociedade contraditória a explosão revolucionária que porá fim ao caráter antagônico da sociedade atual Portanto o centro do pensamento de Marx é a interpretação do regime ca pitalista enquanto contraditório isto é dominado pela luta de classes Auguste Comte considerava que faltava consenso à sociedade do seu tempo por causa da justaposição de instituições que vinham das sociedades teológicas e feudais e instituições da sociedade industrial Observando à sua volta essa falta de con senso procurava no passado os princípios de consenso das sociedades históri cas Marx observa ou pensa observar a luta de classes na sociedade capitalista OS FUNDADORES 133 e encontra em diferentes sociedades históricas o equivalente à luta de classes do presente Segundo Marx a luta de classes tenderá a uma simplificação Os diferentes grupos sociais se polarizarão em tomo da burguesia e do proletariado e é o de senvolvimento das forças produtivas que será o motor do movimento histórico levando pela proletarização e pela pauperização à explosão revolucionária e ao surgimento pela primeira vez na história de uma sociedade nãoantagônica A partir desses temas gerais da interpretação histórica de Marx temos duas tarefas a cumprir dois fundamentos a buscar Em primeiro lugar qual é no pen samento de Marx a teoria geral da sociedade que explica as contradições da sociedade atual e o caráter antagônico de todas as sociedades conhecidas Em se gundo lugar qual a estrutura qual o funcionamento qual a evolução da socieda de capitalista que explica a luta de classes e o final revolucionário do regime ca pitalista Em outras palavras partindo dos temas marxistas que encontramos no Ma nifesto comunista precisamos explicar a teoria geral da sociedade isto é aquilo a que se chama vulgarmente materialismo histórico as idéias econômicas essenciais de Marx que encontramos em O capital O próprio Marx num texto que é talvez o mais célebre de todos os que es creveu resumiu o conjunto da sua concepção sociológica No prefácio da Con tribuição à crítica da economia política publicada em Berlim em 1859 ele assim se exprime Eis em poucas palavras o resultado geral a que cheguei e que uma vez al cançado serviume como fio condutor para meus estudos Na produção social da sua existência os homens estabelecem relações determinadas necessárias inde pendentemente da sua vontade Essas relações de produção correspondem a um cer to grau de evolução das suas forças produtivas materiais O conjunto de tais rela ções forma a estrutura econômica da sociedade o fundamento real sobre o qual se levanta um edifício jurídico e político e ao qual respondem formas determinadas da consciência social O modo de produção da vida material domina em geral o de senvolvimento da vida social política e intelectual Não é a consciência dos homens que determina sua existência mas ao contrário é sua existência social que deter mina a sua consciência Num certo grau de desenvolvimento as forças produtivas materiais da sociedade colidem com as relações de produção existentes ou com as relações de propriedade dentro das quais se vinham movimentando até aquele momento e que não passam da sua expressão jurídica Essas condições que ainda ontem eram formas de desenvolvimento das forças produtivas se transformam ago ra em sérios obstáculos Começa então uma era de revolução social A transforma ção dos fundamentos econômicos é acompanhada de mudança mais ou menos 134 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO rápida em todo esse enorme edifício Ao considerarmos tais mudanças é preciso distinguir duas ordens de coisas Há a transformação material das condições de pro dução econômica que se deve constatar com o espírito rigoroso das ciências natu rais Mas há também as formas jurídicas políticas religiosas artísticas filosófi cas em suma as formas ideológicas com as quais os homens tomam consciência desse conflito e o levam até o fim Não se julga uma pessoa pela idéia que tem de si própria Não se julga uma época de revolução de acordo com a consciência que ela tem de si mesma Esta consciência pode ser mais bem explicada pelas contrarie dades da vida material pelo conflito que opõe as forças produtivas sociais e as re lações de produção Nunca uma sociedade expira antes de que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela pode comportar nunca se estabelecem relações de produção superiores sem que as condições materiais da sua existência tenham nascido no próprio seio da antiga sociedade A humanidade nunca se propõe tare fas que não possa realizar Considerando mais atentamente as coisas veremos sem pre que a tarefa surge lá onde as condições materiais da sua realização já se forma ram ou estão em vias de se criar Reduzidos a suas grandes linhas os modos de pro dução asiático antigo feudal e burguês moderno aparecem como épocas progres sivas da formação econômica da sociedade As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo social da produção Não se trata aqui de um antagonismo individual nós o entendemos antes como o produto das con dições sociais da existência dos indivíduos mas as forças produtivas que se desen volvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições mate riais próprias para resolver esse antagonismo Com esse sistema social encerrase portanto a préhistória da sociedade humana Contribuição à critica da economia politica Introdução Oeuvres 11 pp 272275 Encontramos nessa passagem todas as idéias essenciais da interpretação econômica da história com a única reserva de que nem a noção de classes nem o conceito de luta de classes aparecem aí explicitamente No entanto é fácil reintroduzilos nessa concepção geral 1 Primeira idéia e idéia essencial os homens entram em relações determi nadas necessárias que são independentes da sua vontade Em outras palavras convém seguir o movimento da história analisando a estrutura das sociedades as forças de produção e as relações de produção e não adotando como origem da interpretação o modo de pensar dos homens Há relações sociais que se impõem aos indivíduos não se levando em conta suas preferências A compreensão do processo histórico está condicionada à compreensão de tais relações sociais su praindividuais 2 Em toda sociedade podemos distinguir a base econômica ou infraestru tura e a superestrutura A primeira é constituída essencialmente pelas forças e pelas relações de produção na superestrutura figuram as instituições jurídicas e políticas bem como os modos de pensar as ideologias a filosofias OS FUNDADORES 135 3 O motor do movimento histórico é a contradição em cada momento da história entre as forças e as relações de produção As forças de produção são ao que parece essencialmente a capacidade de uma certa sociedade de produ zir capacidade que é função dos conhecimentos científicos do aparelhamento técnico da própria organização do trabalho coletivo As relações de produção que não aparecem definidas precisamente nesse texto parecem caracterizadas es sencialmente pelas relações de propriedade Existe com efeito a fórmula as relações de produção existentes ou aquilo que é apenas sua expressão jurídica as relações de propriedade dentro das quais elas atuaram até aquele momento Contudo as relações de produção não se confundem necessariamente com as relações de propriedade ou quando menos as relações de produção podem in cluir também a distribuição da renda nacional mais ou menos estreitamente de terminada pelas relações de propriedade Em outras palavras a dialética da história é constituída pelo movimento das forças produtivas que entram em contradição em certas épocas revolucioná rias com as relações de produção isto é tanto as relações de propriedade como a distribuição da renda entre os indivíduos ou grupos da coletividade 4 Nessa contradição entre forças e relações de produção é fácil introdu zir a luta de classes embora o texto não faça alusão Basta considerar que nos períodos revolucionários isto é nos períodos de contradição entre jorgas e rela ções de produção uma classe está associada às antigas relações de produção que constituem um obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas enquan to outra classe é progressiva renresenta novas relações de produção que em vez de serem um obstáculo no caminho do desenvolvimento de forças produti vas favorecerão ao máximo o desenvolvimento dessas forças Passemos dessas fórmulas abstratas à interpretação do capitalismo Na so ciedade capitalista a burguesia está associada à propriedade privada dos meios de produção e por isso mesmo a uma certa distribuição da renda nacional Em contrapartida o proletariado que constitui o outro pólo da sociedade que repre senta uma outra organização da coletividade se toma num certo momento da his tória o representante de uma nova organização da sociedade organização que será mais progressiva do que a organização capitalista Esta nova organização marcará uma fase ulterior do processo histórico um desenvolvimento mais avan çado das forças produtivas 5 Essa dialética das forças e das relações da produção sugere uma teoria das revoluções Com efeito dentro dessa visão histórica as revoluções não são acidentais mas sim a expressão de uma necessidade histórica As revoluções preenchem funções necessárias e se produzem quando ocorrem determinadas condições As relações de produção capitalistas se desenvolveram a princípio no seio da sociedade feudal A Revolução Francesa se realizou no momento em que as 136 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO novas relações de produção capitalistas atingiram certo grau de maturidade Pelo menos nesse texto Marx prevê um processo análogo para a passagem do capitalismo ao socialismo As forças de produção devem desenvolverse no seio da sociedade capitalista as relações de produção socialistas devem amadurecer dentro da sociedade atual antes que se produza a revolução que marcará o fim da préhistória da humanidade Em função dessa teoria da revolução a II Interna cional a socialdemocracia se inclinava para a atitude relativamente passiva Era preciso o amadurecimento natural das forças e das relações de produção do futuro antes que ocorresse a revolução Marx diz que a humanidade nunca colo ca problemas que não pode resolver a socialdemocracia tinha medo de reali zar a revolução cedo demais é por isso aliás que ela nunca a realizou 6 Nesta interpretação histórica Marx não distingue só a infra e a superestru tura mas também a realidade social e a consciência não é a consciência dos homens que determina a realidade mas ao contrário é a realidade social que determina sua consciência Daí a concepção de conjunto segundo a qual é preciso explicar a ma neira de pensar dos homens pelas relações sociais às quais estão integrados Proposições como essa podem servir de fundamento para aquilo que hoje chamamos de sociologia do conhecimento 7 Finalmente o último tema que está incluído no texto Marx esboça em largos traços as etapas da história humana Assim como Auguste Comte dis tinguia os momentos do processo do devenir humano segundo o modo de pen sar Marx distingue as etapas da história humana a partir dos regimes econômi cos Determina quatro regimes ou para empregar sua terminologia quatro mo dos de produção o asiático o antigo o feudal e o burguês Esses quatro modos de produção podem ser divididos em dois grupos Os modos de produção antigo feudal e burguês se sucederam na história do Ocidente Representam as três etapas da história ocidental caracterizadas por determinado tipo de relações entre os homens que trabalham O modo de pro dução antigo é caracterizado pela escravidão o modo de produção feudal pela servidão o modo de produção burguês pelo trabalho assalariado Eles consti tuem três modos distintos de exploração do homem pelo homem O modo de pro dução burguês constitui a última formação social antagônica porque ou na me dida em que o modo de produção socialista isto é a associação dos produtores não implica mais a exploração do homem pelo homem a subordinação dos tra balhadores manuais a uma classe detentora da propriedade dos meios de produ ção e do poder político Por outro lado o modo de produção asiático não parece constituir uma eta pa da história do Ocidente Na verdade os intérpretes de Marx têm discutido incansavelmente a respeito da unidade ou falta de unidade do processo histó rico Com efeito se o modo de produção asiático caracteriza uma civilização dis tinta da do Ocidente é provável que várias linhas de evolução histórica sejam possíveis segundo os grupos humanos OS FUNDADORES 137 Além disso o modo de produção asiático não parece definido pela subor dinação de escravos de servos ou assalariados a uma classe proprietária dos meios de produção mas pela subordinação de todos os trabalhadores ao Estado Se esta interpretação do modo de produção asiático é correta sua estrutura social não seria caracterizada pela luta de classes no sentido ocidental do termo mas pela exploração de toda a sociedade pelo Estado ou pela classe burocrática Percebese logo o uso que se pode dar à noção de modo de produção asiá tico Podese conceber que no caso da socialização dos meios de produção o ca pitalismo não conduza para o fim de toda a exploração mas para a difusão do modo de produção asiático através de toda a humanidade Os sociólogos que não são favoráveis à sociedade soviética comentaram extensamente estas refe rências rápidas ao modo de produção asiático Chegaram mesmo a encontrar nos escritos de Lenin certas passagens em que ele manifestava o temor de que uma revolução socialista levasse não ao fim daexploração do homem pelo homem mas à instalação do modo de produção asiático tirando daí conclusões de or dem política fáceis de adivinhar8 Essas são a meu ver as idéias diretrizes de uma interpretação econômica da história Não encontramos até aqui problemas filosóficos complicados Cabe perguntar até que ponto essa interpretação é solidária ou não com uma meta física materialista Qual o sentido exato que se deve atribuir ao termo dialéti ca No momento é suficiente limitarmonos às idéias fundamentais expostas por Marx e que contêm um certo equívoco uma vez que a determinação dos li mites precisos da infraestrutura e da superestrutura pode levar e tem levado a discussões infindáveis O capital O capital tem sido objeto de dois tipos de interpretação Segundo alguns como Schumpeter é essencialmente uma obra de econorfiia científica sem im plicações filosóficas Segundo outros como o padre Bigo por exemplo é uma espécie de análise fenomenológica ou existencial da economia e algumas pas sagens que se prestam a uma interpretação filosófica como o capítulo sobre o fetichismo das mercadorias forneceriam a chave do pensamento de Marx Sem entrar nessa controvérsia direi qual é minha interpretação pessoal Creio que Marx se considerava um economista científico à maneira dos economistas ingleses em que se baseou Com efeito ele acreditava ser herdeiro e crítico da economia política inglesa Estava convencido de ter captado o que havia de melhor naquela economia corrigindolhe os erros e ultrapassando suas limitações atribuíveis à perspectiva capitalista ou burguesa Ao analisar o valor a troca a exploração a maisvalia o lucro Marx se coloca como econo 138 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mista puro Não lhe ocorreria justificar uma proposição científica inexata ou discutível invocando uma intenção filosófica Marx levava a sério a ciência Contudo Marx não é um economista clássico por razões muito precisas que ele próprio revela e que nos permitem compreender onde se situa sua obra Marx critica os economistas clássicos por terem considerado que as leis da economia capitalista eram universalmente válidas Ora para ele cada regi me econômico tem suas próprias leis As leis econômicas clássicas não pas sam nas circunstâncias em que são verdadeiras de leis do regime capitalista Marx passa assim da idéia de uma teoria econômica universalmente válida para a idéia do caráter específico das leis de cada regime Por outro lado um regime econômico não pode ser compreendido abstrain dose sua estrutura social Existem leis econômicas características de cada regi me porque as leis econômicas constituem a expressão abstrata de relações so ciais que definem um determinado modo de produção No regime capitalista por exemplo é a estrutura social que explica o fenômeno capitalista essencial da ex ploração e que determina a autodestruição inevitável do regime capitalista O resultado é que Marx assume como objetivo explicar o modo de funcio namento do regime capitalista com base na sua estrutura social e o desenvol vimento desse regime com base no seu modo de funcionamento Em outras palavras O capital é um empreendimento grandioso e digamos num sentido estrito um empreendimento genial destinado a explicar simultaneamente o modo de funcionamento a estrutura social e a história do regime capitalista Marx é um economista que pretende ser também um sociólogo A compreen são do funcionamento do capitalismo deve permitir compreender por que os homens são explorados no regime da propriedade privada e por que esse regi me está condenado por suas próprias contradições a evoluir no sentido de uma revolução que o destruirá A análise do desenvolvimento e da história do capitalismo proporciona também uma visão da história da humanidade através dos modos de produção O capital é um livro de economia que é ao mesmo tempo uma sociologia do capitalismo e uma história filosófica da humanidade embaraçada nos seus pró prios conflitos até o fim da préhistória Uma tal tentativa é evidentemente grandiosa mas acrescento imediata mente que não creio que tenha dado certo Aliás até hoje nenhuma tentativa dessa ordem deu certo A ciência econômica ou sociológica de hoje dispõe de análises parciais válidas do modo de funcionamento do capitalismo dispõe de análises sociológicas válidas da condição dos homens ou das classes num regime capitalista dispõe de certas análises históricas que explicam a transfor mação do regime capitalista mas não existe uma teoria de conjunto que vincu le de modo necessário estrutura social modo de funcionam ento destino dos homens no regime evolução do regime E se não existe uma teoria que consi OS FUNDADORES 139 ga abraçar o conjunto talvez seja porque esse conjunto não exista e a história talvez não seja tão racional e necessária De qualquer forma compreender O capital é compreender como Marx quis analisar o funcionamento e o devenir do regime e descrever a condição dos ho mens no interior do regime O capital compreende três livros Só o primeiro foi publicado pelo próprio Marx Os livros II e III são póstumos Foram extraídos por Engels dos volumo sos manuscritos de Marx e não foram terminados As interpretações que en contramos nos livros II e III se prestam à contestação porque algumas passa gens podem parecer contraditórias Não pretendo resumir aqui o conjunto de O capital mas não me parece impossível separar os temas essenciais que são aliás aqueles que Marx considerava os mais importantes e também os que tive ram maior influência na história O primeiro desses temas é que a essência do capitalismo é antes de tudo a busca do lucro Na medida em que se baseia na propriedade privada dos ins trumentos de produção o capitalismo está fundamentado também na busca do lucro pelos empresários ou produtores Quando na sua última obra Stalin escreveu que a lei fundamental do capi talismo era a busca do lucro máximo enquanto a lei fundamental do socialis mo era a satisfação das necessidades e a elevação do nível cultural delas ele levou evidentemente o pensamento de Marx do nível do ensino superior para o nível do ensino primário mas não há dúvida de que reiterou o tema inicial da análise marxista que vamos encontrar nas primeiras páginas de O capital em que Marx opõe dois tipos de troca9 Existe um tipo de troca que vai da mercadoria à mercadoria passando ou não pelo dinheiro Possuímos um bem de que não fazemos uso trocamolo por um bem de que temos necessidade entregando o bem que possuímos àquele que o deseja Quando isso se opera de modo direto tratase de uma simples troca Mas essa troca pode ser feita de modo indireto por intermédio do dinheiro que é o equivalente universal das mercadorias A troca que vai da mercadoria à mercadoria é podese dizer troca imedia tamente inteligível imediatamente humana mas é também troca que não pro porciona lucro ou excedente Enquanto passamos da mercadoria para a merca doria mantemonos numa relação de igualdade Contudo há um segundo tipo de troca que vai do dinheiro ao dinheiro pas sando pela mercadoria com a particularidade de que no fim do processo de tro ca possuímos uma quantia em dinheiro superior àquela da fase inicial Este tipo de troca que vai do dinheiro ao dinheiro passando pela mercadoria é caracterís tico do capitalismo No capitalismo o empresário ou produtor não passa de uma mercadoria q u e é in ú til para ele para outra que lhe é útil por intermédio Hn di 140 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO nheiro a essência da troca capitalista consiste em passar do dinheiro ao dinhei ro passando pela mercadoria para ter no fim do processo mais dinheiro do que no ponto de partida Para Marx este é o tipo de troca capitalista por excelência e o mais mis terioso Como é possível adquirir pela troca o que não se possuía ou quando menos ter mais do que o que se tinha no ponto de partida O problema princi pal do capitalismo segundo Marx poderia ser assim formulado qual a origem do lucro Como é possível um regime em que o motor essencial da atividade é a busca do lucro e em que em suma produtores e comerciantes podem lucrar Marx está convencido de que tem uma resposta plenamente satisfatória pa ra essa questão Com a teoria da maisvalia ele demonstra que tudo é trocado pelo seu valor e que no entanto existe uma fonte de lucro As etapas da sua demonstração são a teoria do valor do salário e por fim a teoria da maisvalia Primeira proposição o valor de qualquer mercadoria é de modo geral pro porcional à quantidade de trabalho social médio nela contida É o que chamamos de teoria do valortrabalho Marx não pretende que a lei do valor seja rigorosamente respeitada em to da e qualquer troca O preço de uma mercadoria oscila abaixo e acima do seu valor em função do estado da oferta e da demanda Marx não só conhece essas variações como afirma claramente a sua existência Por outro lado reconhece que as mercadorias só têm valor na medida em que existe uma demanda por elas Em outros termos se houvesse trabalho cristalizado numa mercadoria mas ne nhum poder de compra fosse dirigido a ela esta mercadoria não teria mais va lor isto é a proporcionalidade entre o valor e a quantidade de trabalho pressu põe por assim dizer uma demanda normal da mercadoria considerada Isso eqüivale em suma a deixar de lado um dos fatores das variações do preço da mercadoria No entanto se supomos uma demanda normal para a mercadoria considerada existe segundo Marx uma certa proporcionalidade entre o valor dessa mercadoria expresso no preço e a quantidade de trabalho social médio cristalizado nessa mercadoria Por que é assim O argumento essencial que Marx apresenta é o de que a quantidade de trabalho é o único elemento quantificável que se descobriu na mer cadoria Se consideramos o valor de uso estamos diante de um elemento rigo rosamente qualitativo Não é possível comparar o uso de uma caneta com o de uma bicicleta Tratase de dois usos estritamente subjetivos e sob esse aspecto não podem ser comparáveis um com o outro Como procuramos saber em que consiste o valor de troca das mercadorias precisamos encontrar um elemento que seja quantificável como o próprio valor de troca E diz Marx o único valor quantificável é a quantidade de trabalho que está inserido integrado cristaliza do em cada uma delas OS FUNDADORES 141 Naturalmente existem dificuldades que Marx admite igualmente a saber as desigualdades do trabalho social O trabalho do operário não qualificado e do operário especializado não têm o mesmo valor ou a mesma capacidade criado ra de valor que o trabalho do contramestre ou do engenheiro Admitindo essas diferenças qualitativas de trabalho Marx acrescenta que para resolver a difi culdade basta reduzir esses diferentes tipos de trabalho à unidade que é o tra balho social médio Segunda proposição o valor do trabalho pode ser medido como o valor de qualquer mercadoria O salário pago pelo capitalista ao trabalhador assalaria do como contrapartida da força de trabalho que este último lhe vende eqüiva le à quantidade de trabalho social necessário para produzir mercadorias indis pensáveis à vida do trabalhador e de sua família O trabalho humano é pago pelo seu valor de acordo com a lei geral do valor aplicável a todas as mercadorias Marx apresenta essa proposição domo evidente por si mesma Ora nor malmente quando se toma uma afirmação como evidente isto significa que ela se presta à discussão Marx afirma como o operário chega ao mercado de trabalho para vender sua força de trabalho é preciso que ela seja paga pelo seu valor E Marx acres centa que o valor só pode ser nesse caso o que ele é em todos os casos isto é o valor medido pela quantidade de trabalho Porém não se trata exatamente da quantidade de trabalho necessária para produzir um trabalhador o que nos faria sair do campo das trocas sociais para ingressar no terreno das trocas biológi cas E preciso admitir que é a quantidade de trabalho que vai medir o valor da sua força de trabalho o das mercadorias de que o operário necessita para sobre viver ele e a família A dificuldade dessa proposição está em que a teoria do valortrabalho se baseia no caráter quantificável do trabalho enquanto princípio do valor e que na segunda proposição quando se trata das mercadorias necessárias para a sub sistência do operário e de sua família aparentemente deixase o terreno do quan tificável Neste último caso tratase com efeito do montante definido pelos cos tumes e pela psicologia coletiva conforme o próprio Marx reconhece Por isto Schumpeter afirmou que a segunda proposição da teoria da exploração não passa de um jogo de palavras Terceira proposição o tempo de trabalho necessário para o operário pro duzir um valor igual ao que recebe sob forma de salário é inferior à duração efetiva do seu trabalho O operário produz por exemplo em cinco horas um va lor igual ao que está contido no seu salário mas na verdade trabalha dez horas Portanto trabalha metade do tempo para si mesmo e a outra metade para o do no da empresa A maisvalia é a quantidade de valor produzido pelo trabalha dor além do tempo de trabalho necessário isto é do tempo de trabalho neces sário para produzir um valor igual ao que recebe sob a forma jde salário 142 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A parte da jornada de trabalho necessária para produzir o valor cristaliza do no salário é o chamado trabalho necessário o resto é o sobretrabalho O valor produzido durante o sobretrabalho é chamado maisvalia E a taxa de explora ção é definida pela relação entre a maisvalia e o capital variável isto é o capi tal que corresponde ao pagamento do salário Se admitirmos as duas primeiras proposições teremos de aceitar logica mente a terceira desde que o tempo de trabalho necessário para produzir o valor encarnado no salário seja inferior à duração total do trabalho Marx afirma pura e simplesmente a existência dessa diferença entre a jor nada de trabalho e o trabalho necessário Está convencido de que a jornada de trabalho do seu tempo que era de 10 horas às vezes de 12 horas era muito superior à duração do trabalho necessário isto é do trabalho necessário para criar o valor encarnado no próprio salário A partir desse ponto Marx desenvolve uma casuística da luta pela duração do trabalho Invoca um grande número de fenômenos do seu tempo em parti cular o fato de que os empresários pretendiam só ter lucro com a última ou as duas últimas horas de trabalho Sabese aliás que há um século que os empre sários protestam cada vez que se reduz a jornada de trabalho Em 1919 alega vam que com uma jornada de 8 horas não conseguiriam equilibrarse Os argu mentos dos empresários ilustravam a teoria de Marx que implica que o lucro só seja obtido na parte final da jornada de trabalho Existem dois procedimentos fundamentais para aumentar a maisvalia às custas dos assalariados isto é para elevar a taxa de exploração Um consiste em prolongar a duração do trabalho o outro em reduzir o mais possível o tra balho necessário Um dos meios de conseguir reduzir a duração do trabalho é aumentar a produtividade isto é produzir o valor igual ao do salário num tempo mais curto Isso explica o mecanismo da tendência pela qual a economia capitalista procura aumentar constantemente a produtividade do trabalho O aumento dessa produtividade do trabalho proporciona automaticamente uma redução do trabalho necessário e em conseqüência uma evolução da taxa de maisvalia se for mantido o nível dos salários nominais Compreendemse assim a origem do lucro e o modo como um sistema eco nômico em que tudo se troca de acordo com o seu valor pode ao mesmo tempo produzir maisvalia isto é lucro para os empresários Há uma mercadoria que tem esta particularidade de ser paga pelo seu valor e ao mesmo tempo produ zir mais que seu valor é o trabalho humano Uma análise desse tipo parecia a Marx puramente científica já que expli cava o lucro por um mecanismo inevitável ligado intrinsecamente ao regime capitalista Contudo esse mesmo mecanismo se prestava a denúncias e a invec tivas uma vez que se tudo se passar conforme a lei do capitalismo o operário estará sendo explorado trabalhando uma parte do seu tempo para si e outra OS FUNDADORES 143 parte do seu tempo para o capitalista Marx era um cientista mas era também um profeta Estes são num lembrete rápido os elementos essenciais da teoria da ex ploração Teoria que tem para Marx uma dupla importância Em primeiro lugar ela parece resolver uma dificuldade intrínseca da economia capitalista que po de ser formulada nos seguintes termos uma vez que nas trocas há igualdade de valores qual a origem do lucro Em segundo lugar ao resolver um enigma cien tífico Marx tem a sensação de dar um fundamento rigoroso e racional ao pro testo contra um determinado tipo de organização econômica Finalmente sua teo ria da exploração dá uma base sociológica para usar linguagem moderna às leis econômicas do funcionamento da economia capitalista Marx acredita que as leis econômicas são históricas e que cada regime tem suas próprias leis A teoria da exploração é um exemplo dessas leis históricas pois o mecanismo da maisvalia e da exploração pressupõe a distinção de clas ses na sociedade Uma classe a dos empresários ou proprietários dos meios de produção adquire a força de trabalho dos operários A relação econômica entre capitalistas e proletários é função de uma relação social de poder entre duas ca tegorias sociais A teoria da maisvalia tem uma dupla função científica e moral A conjun ção desses dois elementos deu ao marxismo uma influência incomparável Os es píritos racionais encontraram nela uma satisfação e os espíritos idealistas ou re voltados também Esses dois tipos de satisfação se multiplicavam um pelo outro Até aqui analisei apenas o primeiro livro de O capital o único publicado durante a vida de Marx Conforme notei dos dois livros seguintes ele deixou os manuscritos que foram publicados por Engels O livro II estuda a circulação do capital Deveria explicar o funcionamen to do sistema econômico capitalista considerado como um todo Em termos modernos poderíamos dizer que a partir de uma análise microeconômica da estrutura do capitalismo e do seu funcionamento contida no livro I Marx teria elaborado no livro II uma teoria macroeconômica comparável ao Tableau éco nomique de Quesnay e também uma teoria das crises cujos elementos encon tramos dispersos em vários pontos Na minha opinião não há em Marx uma teoria geral das crises É verdade que ele tentou elaborar essa teoria mas não a completou e é possível a partir das indicações dispersas do livro II reconstruir várias teorias e atribuílas a Marx A única idéia que não se presta a dúvidas é a de que segundo Marx o caráter concorrencial anárquico do mecanismo capi talista e a necessidade da circulação do capital criam uma possibilidade perma nente de hiato entre a produção e a repartição do poder de compra O que eqüi vale a dizer que é da natureza de uma economia anárquica comportar crises Qual é o esqueOW ou o mecanismo que faz com que essas crises ocorram Iilas 144 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO são regulares ou irregulares Qual a conjuntura econômica da qual brota a crise Sobre todos esses pontos encontramos em Marx indicações mas não uma teo ria acabada10 O livro III é o esboço de uma teoria do desenvolvimento histórico do regi me capitalista baseada na análise da sua estrutura e do seu funcionamento O problema central do livro III é o seguinte se considerarmos o esquema do livro I veremos que quanto mais trabalho houver numa determinada empre sa ou num determinado setor da economia mais haverá maisvalia nessa empresa ou nesse setor ou então que a porcentagem do capital variável em relação ao ca pital total é mais elevada Para Marx o capital constante é a parte do capital das empresas que corres ponde seja às máquinas seja às matériasprimas investidas na produção No es quematismo do livro I o capital constante se transfere para o valor dos produtos sem criar maisvalia A maisvalia provém toda do capital variável corresponden te ao pagamento dos salários A composição orgânica do capital é a relação entre o capital variável e o capital constante A taxa de exploração é a relação entre a maisvalia e o capital variável Se considerarmos pois essa relação abstrata característica da análise es quemática do livro I de O capital chegaremos necessariamente à conclusão de que numa empresa ou num setor determinado da economia haverá maisvalia proporcional ao capital variável a maisvalia diminuirá na medida em que a composição orgânica do capital evoluir para a redução da relação entre capital variável e capital constante Em termos concretos deveria haver uma quantida de menor de maisvalia na medida em que houvesse uma maior mecanização da empresa ou do setor Ora salta aos olhos que não é o que acontece e Marx tem perfeita cons ciência do fato de que as aparências da economia parecem contradizer as rela ções fundamentais que ele postula na sua análise esquemática Enquanto o livro III de O capital não havia sido publicado os marxistas e seus críticos se per guntavam se a teoria da exploração é válida por que razão as empresas e os setores da economia que aumentam o capital constante em relação ao capital variável conseguem maiores lucros Em outras palavras o modo aparente do lucro parece contradizer o modo essencial da maisvalia A resposta de Marx é a seguinte a taxa de lucro é calculada não com rela ção ao capital variável como a taxa de exploração mas com relação ao conjunto do capital isto é a soma do capital constante e do variável Por que motivo a taxa de lucro é proporcional não à maisvalia mas ao conjunto do capital constante e variável O capitalismo não poderia funcionar evidentemente se a taxa de lucro fosse proporcional ao capital variável Com efeito atingiríamos uma desigualdade extrema da taxa de lucro já que em dife rentes setores da economia a composição orgânica do capital isto é a relação OS FUNDADORES 145 entre capital variável e capital constante é muito diferente Portanto a taxa de lucro é efetivamente proporcional ao conjunto do capital e não ao capital variá vel pois de outra forma o regime capitalista não poderia funcionar Mas por que essa aparência do modo do lucro é diferente da realidade es sencial do modo da maisvalia Há duas respostas a esta questão a resposta ofi cial de Marx e a dos nãomarxistas ou dos antimarxistas Schumpeter por exemplo tem uma resposta muito simples a teoria da maisvalia é falsa O fato de que a aparência do lucro esteja em contradição di reta com a essência da maisvalia prova apenas que o esquematismo da mais valia não corresponde à realidade Quando se verifica que a realidade contra diz uma teoria podese evidentemente conciliar a teoria com a realidade fando intervir um certo número de hipóteses suplementares Há porém outra solu ção mais lógica que consiste em reconhecer que o esquematismo teórico foi mal construído A resposta de Marx é a seguinte o capitalismo não poderia funcionar se a taxa de lucro fosse proporcional à maisvalia e não ao conjunto do capital Há assim uma taxa de lucro média em cada economia Essa taxa de lucro média é formada pela concorrência entre as empresas e os vários setores da economia A concorrência força o lucro no sentido de uma taxa média não há proporcio nalidade da taxa de lucro com relação à maisvalia em cada empresa ou setor mas o conjunto da maisvalia constitui no conjunto da economia um montante global que se distribui entre os vários setores em proporção ao capital total constante e variável investido em cada setor É assim porque não pode ser de outro modo Se houvesse um hiato muito grande entre as taxas de lucro dos vários setores o sistema não funcionaria Se houvesse num determinado setor taxa de lucro de 30 a 40 e num outro uma taxa de 3 a 4 não se encontraria capital para investir nos setores em que a taxa de lucro fosse baixa O próprio exemplo fornece a argumentação marxista não pode ser assim portanto devese constituir pela concorrência uma taxa de lucro média que garanta ao final que a massa global da maisvalia seja repar tida entre os setores com base na importância do capital investido em cada um deles Esta teoria conduz à teoria do devenir àquilo que Marx chama de lei da tendência para a baixa da taxa de lucro O ponto de partida de Marx foi uma constatação que todos os economistas do seu tempo faziam ou pensavam fazer a saber que existe uma tendência se cular para a baixa da taxa de lucro Marx sempre desejoso de explicar aos eco nomistas ingleses até que ponto ele graças ao seu método lhes era superior pensou ter descoberto no seu esquematismo a explicação histórica da tendên cia para a baixa da taxa de lucro11 146 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO O lucro médio é proporcional ao conjunto do capital isto é ao total do ca pital constante e do capital variável A maisvalia porém deriva apenas do capi tal variável isto é do trabalho dos homens Ora a composição orgânica do ca pital se transforma com a evolução capitalista e a mecanização da produção e a parte do capital variável com relação ao capital total tende a diminuir Marx conclui daí que a taxa de lucro tende a baixar à medida que a composição orgâ nica do capital se modifica reduzindo a parte do capital variável no capital total Essa lei da tendência para a baixa da taxa de lucro proporcionava a Marx uma grande satisfação intelectual Com efeito acreditava ter demonstrado de modo cientificamente satisfatório um fato constatado pelos observadores mas não explicado ou mal explicado Além disso acreditava ter encontrado mais uma vez aquilo que seu mestre Hegel teria chamado de astúcia da razão isto é a autodestruição do capitalismo por mecanismo inexorável passando ao mes mo tempo pela ação dos homens e por cima de suas cabeças De fato a modificação da composição orgânica do capital tomase inevi tável pela concorrência e também pelo desejo dos empresários de diminuir o tempo de trabalho necessário A concorrência das empresas capitalistas aumenta a produtividade o aumento da produtividade se traduz normalmente pela me canização da produção isto é pela redução do capital variável em relação ao capital constante Em outras palavras o mecanismo da concorrência de uma eco nomia baseada no lucro tende à acumulação do capital à mecanização da pro dução à redução da parte do capital variável no capital total Esse mecanismo inexorável é ao mesmo tempo o que provoca a tendência para a baixa da taxa de lucro isto é o que toma cada vez mais difícil o funcionamento de uma eco nomia cujo eixo fundamental é a busca do lucro Encontramos uma vez mais o esquema fundamental do pensamento mar xista O de uma sociedade histórica que passa pela ação dos homens e ao mesmo tempo é superior à ação de cada um deles o de um mecanismo histórico que tende a destruir o regime pelo jogo das leis intrínsecas do seu funcionamento O centro e a originalidade do pensamento marxista estão a meu ver na conjunção de uma análise do funcionamento e de uma análise de um devenir ine vitável Cada indivíduo agindo racionalmente em função do seu interesse con tribui para destruir o interesse comum de todos ou pelo menos de todos os que estão interessados em salvaguardar o regime Essa teoria é uma espécie de inversão das proposições básicas dos liberais Para eles cada indivíduo trabalha pelo interesse da coletividade ao trabalhar pelo interesse próprio Para Marx acontece o contrário trabalhando no interes se próprio cada um contribui para o funcionamento necessário e para a destrui ção final do regime O mito é sempre o do aprendiz de feiticeiro como no Ma nifesto comunista OS FUNDADORES 147 Até aqui demonstramos que a taxa de lucro tende a baixar em função da modificação da composição orgânica do capital Contudo a partir de que taxa de lucro o capitalismo deixa de funcionar Marx não dá estritamente nenhuma resposta porque de fato nenhuma teoria racional permite fixar a taxa de lucro indispensável ao funcionamento do regime12 Em outras palavras a lei da ten dência para a baixa da taxa de lucro sugere que o funcionamento do capitalis mo deve tornarse cada vez mais difícil em função da mecanização ou da ele vação da produtividade mas não demonstra a necessidade da catástrofe final e menos ainda o momento em que ela ocorrerá Quais são as proposições que demonstram a autodestruição do regime Curiosamente as únicas proposiçõespesse sentido são as mesmas que já podía mos encontrar no Manifesto comunista e nas obras escritas por Maix antes de desenvolver seus estudos aprofundados de economia política São as afirma ções relacionadas com a proletarização e a pauperização O processo de prole tarização significa que à medida que se desenvolve o regime capitalista as ca madas intermediárias entre capitalistas e proletários serão desgastadas corroí das e um número crescente dos membros dessas camadas serão absorvidos pelo proletariado A pauperização é o processo pelo qual os proletários tendem a se tomar cada vez mais miseráveis à medida que se desenvolvem as forças da produção Se admitirmos que com o aumento da produção ocorrerá uma dimi nuição do poder aquisitivo das massas operárias será de fato provável que essas massas tendam a se revoltar Nessa hipótese o mecanismo de autodestruição do capitalismo seria sociológico passando pelo comportamento dos grupos sociais Uma outra hipótese é a de que a renda distribuída às massas populares fosse insuficiente para absorver a produção crescente havendo neste caso uma para lisia do regime pela impossibilidade de estabelecer uma igualdade entre as mer cadorias produzidas e a respectiva demanda no mercado consumidor Existem duas representações possíveis da dialética capitalista da autodes truição uma dialética econômica que é uma nova versão da contradição entre as forças de produção que crescem indefinidamente e as relações de produção que estabilizam as rendas distribuídas às massas ou então um mecanismo so ciológico que passa pelo intermediário da insatisfação crescente dos trabalha dores proletarizados e da revolta desses trabalhadores Porém como demonstrar a pauperização Por que razão no esquematismo de Marx a renda distribuída aos trabalhadores deve diminuir em termos abso lutos ou relativos em função do aumento da força produtiva Para falar a verdade não é fácil no esquema de Marx demonstrar a pau perização Com efeito de acordo com a teoria o salário é igual à quantidade de mercadorias necessárias para a vida do trabalhador e sua família Por outro lado Marx acrescenta imediatamente que o que é necessário para a vida do trabalha dor e sua fa m ília Jião é objeto de avaliação matematicamente exata mas o re 148 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO sultado de uma avaliação social que pode mudar de uma sociedade para outra Se admitirmos essa avaliação social do nível de vida considerado como míni mo devemos concluir ao contrário que o nível de vida do operário tende a me lhorar De fato é provável que cada sociedade considere como nível de vida mí nimo o que corresponda a suas possibilidades de produção É aliás o que acon tece na prática o nível de vida considerado hoje como mínimo nos Estados Unidos ou na França é muito superior ao que seria adotado há um século É claro que se trata de uma avaliação social aproximada desse mínimo mas os cálculos feitos pelos sindicatos sobre esse nível de vida mínimo têm sempre uma relação com as possibilidades da economia Se portanto o montante dos salários é função de uma avaliação coletiva do mínimo deveria ao contrário haver aumento Por outro lado segundo o próprio Marx não é impossível elevar o nível de vida dos operários sem modificar a taxa de exploração Basta para isso que a elevação da produtividade permita criar um valor igual ao salário com uma du ração menor do trabalho necessário A produtividade permite melhorar o nível de vida real dos trabalhadores no esquema marxista sem diminuir a taxa de exploração Se admitirmos a elevação da produtividade e em conseqüência a redução da duração do trabalho necessário só podemos afastar a hipótese da elevação do nível de vida real admitindo um aumento da taxa de exploração Ora segundo Marx a taxa de exploração é mais ou menos constante em diferentes períodos Em outras palavras se seguirmos o mecanismo econômico tal como Marx o analisou não veremos uma demonstração da pauperização e nossa conclusão pelo contrário coincidirá com aquilo que de fato ocorreu uma elevação do ní vel de vida real dos operários De onde é tirada então nas obras de Marx uma demonstração da paupe rização A meu ver a única demonstração passa pelo intermediário de um mecanis mo sociodemográfico o do exército industrial de reserva O que impede a ele vação dos salários é o excedente permanente de mãodeobra não empregada que pesa sobre o mercado de trabalho e modifica as relações de troca entre ca pitalistas e assalariados em detrimento dos operários Na teoria de O capital a pauperização não é um mecanismo estritamente econômico mas uma teoria econômicosociológica O elemento sociológico é a idéia que ele compartilhava com Ricardo mas que na verdade não o satis fazia de que uma vez que os salários tendem a se elevar a taxa de natalida de aumenta criando assim um excesso de mãodeobra O mecanismo propria mente econômico este sim próprio de Marx é o do desemprego tecnológico A permanente mecanização da produção tende a liberar uma parte dos operá rios empregados O exército de reserva é a própria expressão do mecanismo de OS FUNDADORES 149 realização do progresso técnicoeconômico no capitalismo É ele que pesa sobre o nível dos salários impedindoo de subir Na sua ausência seria possível inte grar no esquema marxista o fato histórico da elevação do nível de vida dos ope rários sem renunciar aos elementos essenciais da teoria Nesse caso a pergunta continuaria de pé por que a autodestruição do capi talismo é necessária Minha impressão é que ao terminar a leitura de O capital descobrimos as razões pelas quais o funcionamento do sistema capitalista é di fícil e se torna cada vez mais difícil embora esta última proposição me pare ça historicamente falsa mas não creio que O capital nos demonstre conclusi vamente a autodestruição necessária do capitalismo a não ser pela revolta das massas indignadas com a sorte que lhes é imposta Se essa sorte não suscitar uma indignação extrema como por exemplo nos Estados Unidos O capital não nos dárazões para acreditar que a condenação do regime capitalista seja inexorável Contudo os regimes conhecidos no passado eram teoricamente suscetíveis de sobreviver mas desapareceram Não tiremos conclusões precipitadas pelo fato de que a morte do capitalismo não tenha sido demonstrada por Marx Os regimes podem morrer sem que tenham sido condenados à morte pelos teóricos Os equívocos da filosofia marxista O centro do pensamento marxista é uma interpretação sociológica e histó rica do regime capitalista condenado em função das suas contradições a evo luir para a revolução e para um regime nãoantagônico É bem verdade que Marx pensava que a teoria geral da sociedade que desenvolveu a partir do estudo do capitalismo pode e deve servir para a com preensão de outros tipos de sociedade Não há dúvida contudo de que se preo cupava antes de mais nada com a interpretação da estrutura e do futuro do capi talismo Por que razão essa sociologia histórica do capitalismo comporta tantas in terpretações diferentes Por que é a tal ponto equívoca Mesmo deixando de lado as razões acidentais históricas póstumas o destino dos movimentos e das so ciedades que se dizem marxistas e as razões deste equívoco parecem ser a meu ver essencialmente três A concepção marxista da sociedade capitalista e das sociedades em geral é sociológica mas sua sociologia está vinculada a uma filosofia Muitas difi culdades de interpretação nascem das relações entre a filosofia e a sociologia relações que podem ser compreendidas de diferentes maneiras Por outro lado a sociologia marxista propriamente dita comporta interpre tações diversas de acordo com a definição mais ou menos dogmática que se dá a noções como forças de produção ou relações de produção e conforme se con 150 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO sidere que o conjunto da sociedade seja determinado ou condicionado pela in fraestrutura Os conceitos de infraestrutura e superestrutura não são claros e se prestam a especulações infindáveis Enfim as relações entre economia e sociologia levam a interpretações di versas Segundo Marx é a partir da ciência econômica que se pode compreen der a sociedade global mas as relações entre os fenômenos econômicos e o con junto social são equívocas Uma proposição me parece incontestável isto é uma proposição que todos os textos de Marx deixam clara Marx passou da filosofia para a economia polí tica através da sociologia e permaneceu filósofo até o fim da vida Sempre considerou que a história da humanidade tal como se desenrola através de su cessão de regimes e tal como ela desemboca numa sociedade não antagônica tem uma significação filosófica É através da história que o homem cria a si mesmo e a realização da história é simultaneamente um fim da filosofia Pela história a filosofia definindo o homem se realiza a si mesma O regime não antagônico póscapitalista não é apenas um tipo social entre outros é o termo da procura da humanidade por si mesma Contudo se esta significação filosófica da história é incontestável restam ainda muitas questões difíceis Classicamente explicavase o pensamento de Marx pela conjunção de três influências que o próprio Engels havia enumerado a filosofia alemã a econo mia inglesa e a ciência histórica francesa Essa enumeração de influências pare ce banal e por isso é hoje desprezada pelos intérpretes mais sutis Todavia é preciso começar pelas interpretações não sutis isto é pelo que o próprio Marx e o próprio Engels revelaram a respeito das origens do seu pensamento Segundo eles situavamse na seqüência da filosofia clássica alemã por que guardavam uma das idéias fundamentais de Hegel isto é de que a suces são das sociedades e dos regimes representa simultaneamente as etapas da filo sofia e as etapas da humanidade Por outro lado Marx estudou a economia inglesa utilizou conceitos dos economistas ingleses assumiu algumas das teorias admitidas no seu tempo por exemplo a teoria do valortrabalho ou a lei da tendência para a baixa da taxa de lucro aliás aplicada de modo diferente por outros Acreditava que servin dose dos conceitos e das teorias dos economistas ingleses poderia encontrar uma fórmula cientificamente rigorosa para a economia capitalista Finalmente tomou emprestada aos historiadores e aos socialistas franceses a noção de luta de classes que se encontrava comumente nas obras históricas do fim do século XVIII e do princípio do século XIX Marx porém de acordo com o seu próprio testemunho acrescentou um novo conceito A divisão da sociedade em classes não é um fenômeno ligado ao conjunto da história e à OS FUNDADORES 151 essência da sociedade mas corresponde a uma fase determinada Numa fase ulterior a divisão em classes poderá desaparecer13 Essas três influências foram exercidas sobre o pensamento de Marx e tra zem uma interpretação válida embora grosseira da síntese feita por Marx e Engels Mas essa análise das influências deixa em aberto a maioria das ques tões mais importantes e em particular a questão do relacionamento entre Hegel e Marx A maior dificuldade está ligada em primeiro lugar e antes de qualquer outra coisa ao fato de que a interpretação de Hegel é pelo menos tão contes tada quanto a de Marx De acordo com o sentido que se atribua ao pensamento de Hegel as duas doutrinas podem ser aproximadas ou afastadas à vontade Há um método fácil para mostrar um Marx hegeliano que consiste em apresentar um Hegel marxista Esse método é empregado com um talento que confina com a genialidade ou com a mistificação por A Kojève Na sua inter pretação Hegel é a tal ponto marxizado que a fidelidade de Marx à obra de He gel não deixa nenhuma dúvida14 Por outro lado para quem não aprecia Marx como G Gurvitch basta apre sentar Hegel de acordo com os manuais de história da filosofia como um filó sofo idealista que concebe o devenir histórico como o processo de desenvolvi mento do espírito para que Marx se tome essencialmente antihegeliano15 De qualquer forma encontramos no pensamento marxista um certo núme ro de temas incontestavelmente hegelianos tanto nas obras de juventude como nas de maturidade Na última das onze teses sobre Feuerbach Marx escreve Os filósofos ape nas interpretaram o mundo de diferentes maneiras tratase agora de transfor málo Êtudes philosophiques Paris Éd Sociales 1951 p 64 Para o autor de O capital a filosofia clássica que levou ao sistema de Hegel chegou ao seu fim Não seria possível avançar mais porque Hegel refletiu so bre o todo histórico e o todo da humanidade A filosofia completou sua tarefa que consiste em levar à consciência explícita as experiências da humanidade Essa tomada de consciência das experiências da humanidade está formulada na Fenomenologia do espírito e na Enciclopédia16 O homem porém depois de tomar consciência da sua vocação não realizou essa vocação A filosofia é total enquanto tomada de consciência mas o mundo real não se ajusta ao sentido que a filosofia atribui à existência do homem O problema filosóficohistórico origi nal do pensamento marxista será portanto o de saber em que condições o curso da história pode realizar a vocação do homem tal como a concebeu a filosofia hegeliana A incontestável herança filosófica de Marx é a convicção de que o deve nir histórico tem uma significação filosófica Um novo regime econômico e so cial não é apenas MBia peripécia que será oferecida posteriormente àcurioEÚijute 152 ÀS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO desprendida dos historiadores profissionais mas uma etapa do devenir da hu manidade O que é então essa natureza humana essa vocação do homem que a his tória deve realizar para que a própria filosofia se realize Encontraremos nas obras de juventude de Marx várias respostas a esta questão todas giram em tomo de alguns conceitos como a universalidade a totalidade conceitos positivos ou ao contrário a alienação um conceito negativo O indivíduo tal como aparece na Filosofia do direito de Hegel17 e nas so ciedades do seu tempo tem com efeito uma situação dupla e contraditória De um lado como cidadão o indivíduo participa do Estado isto é da universalida de Mas no empíreo da democracia formal ele só é cidadão uma vez a cada qua tro ou cinco anos e esgota sua cidadania ao votar Fora dessa atividade única com a qual realiza sua universalidade o indivíduo pertence ao que conhecemos segundo a terminologia de Hegel como a bürgerliche Gesellschaft a sociedade civil isto é ao conjunto das atividades profissionais Ora enquanto membro da sociedade civil ele está encerrado nas suas particularidades e não se comunica com o conjunto da comunidade É um trabalhador às ordens de um empresário ou então um empresário separado da organização coletiva A sociedade civil impede os indivíduos de realizar sua vocação de universalidade Para que essa contradição seja superada é preciso que os indivíduos no seu trabalho possam participar da universalidade da mesma maneira como dela par ticipam com sua atividade de cidadãos O que significam essas fórmulas abstratas A democracia formal que se define pela eleição dos representantes do povo pelo sufrágio universal e pelas liberdades abstratas do voto e do debate não toca as condições de trabalho e de vida dos membros da coletividade O trabalhador que vende sua força de tra balho no mercado em troca de um salário não é como o cidadão que a cada qua tro ou cinco anos elege seus representantes e direta ou indiretamente seus go vernantes Para que se realizasse a democracia real seria necessário que as liber dades limitadas à ordem política nas sociedades atuais fossem transpostas para o campo da existência concreta econômica dos homens Contudo para que os indivíduos no trabalho pudessem participar da univer salidade como os cidadãos com seu voto para que se pudesse realizar a demo cracia real seria necessário suprimir a propriedade privada dos meios de produ ção que põe alguns indivíduos a serviço de outros provoca a exploração dos tra balhadores pelos empresários e interdita a estes últimos o trabalho direto para a coletividade já que no sistema capitalista eles trabalham visando ao lucro Uma primeira análise que vamos encontrar na Crítica da filosofia do di reito de Hegel gira em torno da oposição entre o particular e o universal a so ciedade civil e o Estado a escravidão do trabalhador e a liberdade fictícia do OS FUNDADORES 153 eleitor e do cidadão18 Esse texto constitui a origem de uma das oposições clás sicas do pensamento marxista entre democracia formal e democracia real mos tra também uma certa forma de aproximação entre a inspiração filosófica e a crítica sociológica A inspiração filosófica se manifesta na rejeição de uma universalidade do indivíduo limitada à ordem política e se transpõe facilmente para uma análise sociológica Em linguagem comum a idéia de Marx é a seguinte o que signi fica o direito de votar a cada quatro ou cinco anos para os indivíduos que não têm outro meio de subsistência a não ser os salários que recebem dos patrões em condições que estes estabelecem O segundo conceito em torno do qual gira o pensamento de juventude de Marx é o do homem total provavelmente ainda mais equívoco do que o do ho mem universalizado O homem total é o que não é mutilado pela divisão do trabalho Para Marx e a maioria dos observadores o homem da sociedade industrial moderna é com efeito um homem especializado Adquiriu uma formação específica para exer cer uma profissão particular Permanece encerrado a maior parte de sua vida nessa atividade setorial deixando de utilizar muitas aptidões e faculdades que poderiam se desenvolver Nessa linha o homem total seria aquele que não fosse especializado Al guns textos de Marx sugerem uma formação politécnica em que todos os indiví duos fossem preparados para o maior número possível de profissões Com tal formação não estariam condenados a fazer a mesma coisa de manhã à noite19 Se o significado do homem total é o homem não amputado de algumas das suas aptidões pelas exigências da divisão do trabalho esta noção é um protes to contra as condições impostas aos indivíduos pela sociedade industrial protesto ao mesmo tempo inteligível e simpático Efetivamente a divisão do trabalho tem como resultado fazer com que a maioria dos indivíduos não realizem tudo aquilo de que são capazes Mas esse protesto um tanto romântico não me parece ade quado ao espírito de um socialismo científico É difícil conceber a não ser nu ma sociedade extraordinariamente rica em que o problema da pobreza tivesse sido resolvido definitivamente como uma sociedade capitalista ou nãocapita lista poderia formar todos os seus membros em todas as profissões é difícil imaginar como funcionaria uma sociedade industrial em que os indivíduos não fos sem especializados no seu trabalho Procurouse assim em outra direção um outro tipo de interpretação menos romântica O homem total não seria o homem capaz de fazer tudo mas aquele que realiza autenticamente sua humanidade que exerce as atividades que defi nem o homem Nesse caso a noção de trabalho se torna essencial O homem é concebido essencialmente como um ser que trabalha Se trabalha em condições desuma 154 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO nas é desumanizado porque deixa de cumprir a atividade que constitui sua hu manidade em condições adequadas Encontramos efetivamente nas obras de juventude de Marx em particular no Manuscrito econômicofilosófico de 1844 uma crítica das condições capitalistas do trabalho20 Voltamos a encontrar aqui o conceito de alienação que está hoje no centro da maior parte das interpretações de Marx No capitalismo o homem é alienado Para que o homem possa se realizar é preciso que supere essa alienação Marx usa três termos diferentes que são traduzidos muitas vezes pela mes ma palavra alienação embora as palavras alemãs não tenham exatamente o mesmo sentido São elas Entàusserung Veràusserung e Entfremdung O termo que corresponde aproximadamente à palavra alienação é o último que etimo logicamente significa tornarse estranho a si mesmo A idéia é que em certas circunstâncias ou em certas sociedades as condições impostas ao homem são tais que este se toma um estranho para si mesmo isto é não se reconhece mais na sua atividade e nas suas obras O conceito de alienação deriva evidentemente da filosofia hegeliana em que tem um papel primordial Mas a alienação hegeliana é concebida no plano filosó fico ou metafísico Na concepção de Hegel o espírito der Geist se aliena nas suas obras constrói edifícios intelectuais e sociais e se projeta fora de si mesmo A his tória do espírito a história da humanidade é a história das alienações sucessivas ao fim das quais o espírito voltará a ser o possuidor do conjunto das suas obras e do seu passado histórico com a consciência de possuir esse conjunto No marxis mo inclusive nas obras marxistas de juventude o processo de alienação em vez de ser um processo filosófica ou metafisicamente inevitável tomase a expressão de um processo sociológico pelo qual os homens ou as sociedades edificam organiza ções coletivas nas quais se perdem21 Interpretada sociologicamente a alienação é uma crítica ao mesmo tempo histórica moral e sociológica da ordem social da época No regime capitalista os homens são alienados eles mesmos se perderam na coletividade e a raiz de todas as alienações é a alienação econômica Há duas modalidades de alienação econômica que correspondem aproxi madamente a duas críticas de Marx ao sistema capitalista A primeira alienação é imputável à propriedade privada dos meios de produção a segunda à anar quia do mercado A alienação imputável à propriedade privada dos meios de produção se manifesta no fato de que o trabalho atividade essencialmente humana que de fine a humanidade do homem perde suas características humanas já que passa a ser para os assalariados nada mais do que um meio de existência Em vez de o trabalho ser a expressão do próprio homem o trabalho se vê degradado em instrumento em meio de viver OS FUNDADORES 155 Os empresários também são alienados pois a finalidade das mercadorias de que dispõem não é atender a necessidades realmente sentidas pelos outros mas são levadas ao mercado para obter lucro O empresário se toma escravo de um mercado imprevisível sujeito aos azares da concorrência Explora os assa lariados mas nem por isso ele é humanizado no seu trabalho pelo contrário alienase em benefício de um mecanismo anônimo Qualquer que seja a interpretação exata que se dê a essa alienação econô mica pareceme que a idéia central é bastante clara A critica da realidade eco nômica do capitalismo no pensamento de Marx era na sua origem uma crítica filosófica e moral antes de se tornar uma análise rigorosamente sociológica e econômica Assim é possível expor o pensamento de Marx como o de um puro eco nomista e sociólogo porque no fim da sua vida ele queria ser um cientista econo mista e sociólogo contudo Marx chegou à crítica econômicosocial tomando como ponto de partida temas filosóficos Esses temas filosóficos a universali zação do indivíduo o homem total a alienação animam e orientam a análise sociológica das suas obras da maturidade Em que medida a análise sociológica da maturidade de Marx não passa do desenvolvimento das intuições filosóficas da sua juventude Ou então em que medida ela é ao contrário a substituição total dessas intuições filosóficas Colocase aí um problema de interpretação que ainda não foi totalmente resolvido Certamente durante toda a sua vida Marx conservou esses temas filosó ficos num segundo plano Para ele a análise da economia capitalista era a aná lise da alienação dos indivíduos e das coletividades que perdiam o controle da sua própria existência num sistema sujeito a leis autônomas A crítica da eco nomia capitalista era também a crítica filosófica e moral da situação imposta ao homem pelo capitalismo Sobre este ponto estou de acordo com a interpre tação corrente a despeito da opinião de Althusser Por outro lado certamente a análise do devenir do capitalismo era para Marx a análise do devenir do homem e da natureza humana através da história Esperava da sociedade póscapitalista a realização da filosofia Qual seria no entanto esse homem total que a revolução póscapitalista deveria realizar Sobre isso podese discutir porque no fundo havia em Marx uma oscilação entre dois temas até certo ponto contraditórios De acordo com o primeiro deles o homem realiza sua humanidade no trabalho e é a liberação do trabalho que marcará a humanização da sociedade Mas em vários lugares aparece uma outra concepção segundo a qual o homem só é verdadeiramente livre fora do trabalho Nesta segunda concepção o homem só realiza sua huma nidade na medida em que reduz suficientemente a duração da jornada de traba lho a fim de jt possa fazer outras coisas além do trabalhoíL 156 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Podemse naturalmente combinar os dois temas dizendo que a humanização completa da sociedade pressuporia antes de mais nada que as condições im postas ao homem no seu trabalho fossem humanizadas e que simultaneamen te a duração do trabalho diminuísse o bastante para que o lazer lhe permitisse a leitura de Platão por exemplo Filosoficamente resta contudo uma dificuldade qual é a atividade essencial que define o próprio homem e que deve se desenvolver para que a sociedade per mita a realização da filosofia Se não se determina qual é a atividade essencial mente humana correse o risco de adotar a concepção do homem total na sua acepção mais vaga E preciso que a sociedade permita a todos os homens realizar todas as suas aptidões Essa proposição representa uma boa definição do ideal da sociedade mas não é fácil traduzila num programa concreto e preciso Por outro lado é difícil imputar exclusivamente à propriedade privada dos meios de produ ção o fato de todos os homens não realizarem todas as suas aptidões Em outras palavras parece haver uma desproporção extrema entre a alie nação humana atribuível à propriedade privada dos meios de produção e a rea lização do homem total que deve resultar da revolução Como se pode conciliar a crítica da sociedade atual com a esperança de realização do homem total pela simples substituição de um modo de propriedade por outro Aqui aparecem a grandeza e o equívoco da sociologia marxista Pretende ser uma filosofia Ela é essencialmente uma sociologia Mas além ou aquém dessas idéias restam ainda muitos pontos obscuros ou equívocos que explicam a variedade das interpretações dadas ao pensamen to de Marx Um desses equívocos de ordem filosófica está relacionado com a nature za da lei histórica A interpretação histórica de Marx pressupõe um devenir in teligível de ordem supraindividual Formas e relações de produção estão em relação dialética Por meio da luta de classes e da contradição entre formas e re lações de produção o capitalismo destrói a si mesmo Ora essa visão geral da história pode ser interpretada de duas maneiras diferentes De acordo com uma interpretação que chamarei de objetivista esta repre sentação das contradições históricas que levam à destruição do capitalismo e ao surgimento de uma sociedade nãoantagonista corresponderia ao que chama mos vulgarmente de grandes linhas da história Da confusão dos fatos históri cos Marx extrai os dados essenciais o que é mais importante no próprio deve nir histórico sem que o detalhe dos acontecimentos seja incluído nessa visão Admitindo essa interpretação a destruição do capitalismo e o advento de uma sociedade nãoantagônica seriam fatos certos e conhecidos previamente mas indeterminados quanto à sua data e à modalidade OS FUNDADORES 157 As previsões do tipo o capitalismo será destruído pelas suas contradi ções mas não se sabe quando ou como não são satisfatórias A previsão de um acontecimento sem data e nãoespecificado não significa grande coisa pelo menos uma lei histórica dessa ordem não se parece absolutamente com as leis das ciências naturais Essa é uma das interpretações possíveis do pensamento de Marx e é a in terpretação hoje admitida como ortodoxa no mundo soviético Afirmase a des truição necessária do capitalismo e sua substituição por uma sociedade mais progressiva isto é pela sociedade soviética reconhecendose simultaneamen te que a data desse acontecimento inevitável ainda não é conhecida e que a forma dessa catástrofe previsível é indeterminada Indeterminação que no plano dos acontecimentos políticos representa uma grande vantagem já que permite proclamar com toda segurança que a coexistência é possível Para o regime soviético não é necessário destruir o regime capitalista uma vez que ele próprio de qualquer modo se destruirá23 Há outra interpretação que chamaremos de dialética não no sentido vulgar do termo mas num sentido sutil Nesse caso a visão marxista da história nas ceria de uma forma de reciprocidade de ação entre por um lado o mundo his tórico e a consciência que pensa esse mundo e por outro entre os diferentes setores da realidade histórica Essa dupla reciprocidade de ação permitiria evi tar o que há de pouco satisfatório na representação das grandes linhas da histó ria De fato se tomarmos dialética a interpretação do movimento histórico não estaremos mais obrigados a abandonar os detalhes dos acontecimentos e pode remos compreender os acontecimentos tais como se realizaram em seu caráter concreto Assim JeanPaul Sartre ou Maurice MerleauPonty conservam certas idéias essenciais do pensamento marxista a alienação do homem na e pela economia privada a ação predominante das forças e das relações de produção Contudo para ambos esses conceitos não visam à identificação das leis históricas na acepção científica do termo ou das grandes linhas do devenir São instrumen tos necessários para tornar inteligível a situação do homem no regime capita lista ou para relacionar os acontecimentos com a situação do homem no seio do capitalismo sem que se possa falar propriamente de determinismo Uma visão dialética desse tipo de que há diversas versões entre os existen cialistas franceses e em toda a escola marxista ligada a Lukács é filosofica mente mais satisfatória embora comporte também algumas dificuldades24 A dificuldade essencial consiste em localizar as duas idéias fundamentais do marxismo simples a saber a alienação do homem no capitalismo e o adven to de uma sociedade nãoantagônica depois da autodestruição do capitalismo Uma interpretação dialética postulando a ação recíproca entre sujeito e objeto entre vários setores da realidade não leva necessariamente a essas duas propo 158 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO sições essenciais Deixa sem resposta a questão sobre como determinar a inter pretação global total e verdadeira Se todo sujeito histórico pensa a história em função da sua situação por que a interpretação dos marxistas ou do proletaria do é verdadeira Por que é total A visão objetivista que invoca as leis da história comporta a dificuldade essencial de declarar inevitável um acontecimento nãodatado e nãoprecisado a interpretação dialética não explica a necessidade da revolução nem o caráter nãoantagônico da sociedade póscapitalista nem o caráter total da interpreta ção histórica Um segundo equívoco se relaciona com a natureza do que poderíamos cha mar de imperativo revolucionário O pensamento de Marx pretende ser cientí fico Contudo parece implicar imperativos já que ordena a ação revolucioná ria como a única conseqüência legítima da análise histórica Como no caso anterior há duas interpretações possíveis que podemos resumir com a fórmu la Kant ou Hegel O pensamento marxista deve ser interpretado no quadro do dualismo kantiano do fato e do valor da lei científica e do imperativo moral ou no quadro da tradição hegeliana Na história póstuma do marxismo encontramos aliás duas escolas uma kantiana a outra hegeliana esta última mais numerosa do que a primeira A es cola kantiana do marxismo é representada pelo socialdemocrata alemão Mehring e pelo austromarxista Max Adler mais kantiano do que hegeliano porém kan tiano de estilo muito particular25 Os kantianos dizem não se passa do fato para o valor do julgamento sobre o real para o imperativo moral portanto não se pode justificar o socialismo pela interpretação da história tal como ela se de senrola Marx analisou o capitalismo tal como ele é desejar o socialismo diz respeito a uma decisão de ordem espiritual Contudo a maioria dos intérpretes de Marx preferiu permanecer na tradição do monismo O sujeito que com preende a história está engajado na própria história O socialismo ou a socie dade nãoantagônica deve surgir necessariamente da sociedade antagônica atual porque o intérprete da história é levado por uma dialética necessária da cons tatação daquilo que é a querer uma sociedade de outro tipo Certos intérpretes como L Goldman vão mais longe e afirmam que na história não há observação desinteressada A visão da história global traz con sigo um engajamento É em virtude de querer o socialismo que se percebe o caráter contraditório do capitalismo É impossível dissociar tomada de posição em relação à realidade e observação da realidade Não que essa tomada de posi ção seja arbitrária e resulte de uma decisão nãojustificada mas segundo a dia lética do objeto e do sujeito é da realidade histórica que cada um de nós tira os quadros do nosso pensamento os conceitos com que a interpretamos A inter pretação nasce do contato do objeto um objeto que não é reconhecido passiva OS FUNDADORES 159 mente mas é ao mesmo tempo reconhecido e negado a negação do objeto é a expressão do querer um regime diferente26 Existem portanto duas tendências uma que tende a dissociar a interpreta ção da história cientificamente válida da decisão pela qual se adere ao socialis mo outra que pelo contrário une a interpretação da história à vontade política Mas qual era o pensamento de Marx sobre este ponto Enquanto homem Marx era ao mesmo tempo cientista e profeta sociólogo e revolucionário Se al guém lhe tivesse perguntado se é possível separar essas duas coisas creio que teria respondido que em abstrato elas eram de fato separáveis De fato seu propósito científico era forte demais para que admitisse que sua interpretação do capitalismo fosse solidária com uma decisão moral Não obstante estava a tal ponto convencido da indignidade do regime capitalista que a análise do real lhe sugeria irresistivelmente a vontade revolucionária Além destas duas alternativas a da visão objetiva das grandes linhas da his tória e a da interpretação dialética Kant ou Hegel há uma conciliação possí vel que é hoje considerada a filosofia oficial do sovietismo a filosofia objeti vista dialética tal como Engels a formulou no AntiDühring e Stalin resumiu no Materialismo dialético e materialismo histórico11 As teses essenciais desse materialismo dialético são as seguintes 1 O pensamento dialético afirma que a lei do real é a lei da transforma ção Existe uma transformação incessante tanto na natureza inorgânica como no universo do homem Não há um princípio eterno as concepções humanas e morais se transformam de época para época 2 O mundo real comporta uma progressão qualitativa que vai da natureza inorgânica até o mundo humano e no mundo humano dos regimes sociais pri mitivos até o regime que marcará o fim da préhistória isto é o socialismo 3 Essas mudanças se operam de acordo com determinadas leis abstratas As mudanças quantitativas a partir de um certo ponto se tornam mudanças qua litativas As transformações não se realizam insensivelmente gradualmente mas por meio de uma mudança brutal revolucionária Engels dá um exemplo a água é líquida se abaixarmos a temperatura até um certo ponto o líquido se torna sólido Num dado momento a mudança quantitativa passa a ser uma mudança qualitativa Finalmente essas transformações parecem obedecer a uma lei inte ligível a lei da contradição e da negação da negação Um exemplo dado por Engels permite compreender em que consiste a ne gação da negação se negamos A temos menos A multiplicando menos A por menos A temos A2 que é a negação da negação O mesmo acontece no univer so humano o regime capitalista é a negação do regime de propriedade feudal a propriedade pública do socialismo será a negação da negação isto é a nega ção da propriedade privada 160 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Em outras palavras uma das características dos movimentos tanto cósmi cos como humanos seria o fato de as transformações estarem em relação contra ditória umas com as outras Essa contradição teria a seguinte forma no mo mento B haveria contradição com o que era no momento A e o momento C seria contradição do que era no momento B representando de certo modo o retorno ao estado inicial do momento A mas num plano superior Assim o con junto da história é a negação da propriedade coletiva inicial das sociedades indiferenciadas e arcaicas o socialismo nega as classes sociais e os antagonis mos para retornar à propriedade coletiva das sociedades primitivas porém num plano superior Essas leis dialéticas não satisfizeram plenamente todos os intérpretes de Marx Já se discutiu muito para saber se Marx aprovava a filosofia materialis ta de Engels Além do problema histórico a questão principal consiste em saber em que medida a noção de dialética se aplica à natureza orgânica ou inorgâni ca como ao mundo humano Na noção de dialética há a idéia de mudança e o conceito da relatividade das idéias ou dos princípios circunstanciais Mas há também as duas idéias da totalidade e da significação Para que haja interpretação dialética da história é necessário que o conjunto dos elementos de uma sociedade ou de uma época constitua um todo e que a passagem de uma dessas totalidades para outra seja inteligível Essas duas exigências de totalidade e de inteligibilidade da suces são parecem estar associadas ao mundo humano Compreendese que no mundo histórico as sociedades constituam unidades totais porque efetivamente as di ferentes atividades das coletividades estão ligadas entre si Os diferentes setores de uma realidade social podem ser explicados a partir de um elemento consi derado essencial por exemplo as forças e as relações de produção Porém será possível encontrar na natureza orgânica e sobretudo na inorgânica o equiva lente das totalidades e da significação das sucessões Na verdade essa filosofia dialética do mundo material não é indispensá vel para admitir a análise marxista do capitalismo ou para ser revolucionário E possível duvidar de que A X A A2 seja um bom exemplo de dialética e no entanto ser um excelente socialista O vínculo entre a filosofia dialética da natureza conforme foi exposta por Engels e a essência do pensamento marxis ta não é evidente nem necessário Historicamente uma determinada ortodoxia pode por certo combinar es sas diferentes proposições porém lógica e filosoficamente a interpretação eco nômica da história e a crítica do capitalismo a partir da luta de classes nada têm a ver com a dialética da natureza De modo mais geral a vinculação entre a fi losofia marxista do capitalismo e o materialismo metafísico não me parece nem logicamente e nem filosoficamente necessária OS FUNDADORES 161 Na verdade porém muitos marxistas que tiveram atividade política acre ditavam que para ser um bom revolucionário era preciso ser materialista no sentido filosófico do termo Como esses homens eram muito competentes em matéria de revolução quando não em matéria filosófica é de crer que tivessem boas razões Lenin em particular escreveu um livro Materialismo e empirio criticismo para demonstrar que os marxistas que abandonavam uma filosofia materialista se afastavam também da via real que leva à revolução28 Logica mente é possível ser discípulo de Marx em economia política e não ser mate rialista no sentido metafísico do termo29 Historicamente porém estabeleceu se uma espécie de síntese entre uma filosofia de tipo materialista e uma visão histórica Os equívocos da sociologia marxista Mesmo se abstrairmos sua base filosófica veremos que a sociologia mar xista comporta alguns equívocos A concepção do capitalismo e da história de Marx está associada à combi nação dos conceitos de forças de produção relações de produção luta de clas ses consciência de classe infraestrutura e superestrutura É possível utilizar esses conceitos em qualquer análise sociológica Pes soalmente quando procuro analisar uma sociedade como a soviética ou a norte americana gosto de tomar como ponto de partida o estado da sua economia ou mesmo o estado das suas forças de produção para chegar às relações de produ ção e em seguida às relações sociais O emprego crítico e metodológico des sas noções para compreender e explicar uma sociedade moderna e talvez até mesmo qualquer sociedade histórica é perfeitamente legítimo Contudo se nos limitarmos a utilizar dessa forma esses conceitos não en contraremos uma filosofia da história Podemos descobrir por exemplo que a um mesmo grau de desenvolvimento das forças produtivas correspondem dife rentes relações de produção A propriedade privada não exclui um grande de senvolvimento das forças produtivas por outro lado já pode haver proprieda de coletiva com um desenvolvimento mínimo das forças de produção Em outras palavras o emprego crítico das categorias marxistas não implica uma interpre tação dogmática do curso da história Ora o marxismo pressupõe uma espécie de paralelismo entre o desenvol vimento das forças produtivas a transformação das relações de produção a in tensificação da luta de classes e a marcha para a revolução Na sua versão dog mática implica que o fator decisivo sejam as forças de produção que o desenvol vimento destas marque o sentido da história humana e que às diferentes fases do desenvolvim ento das forças de produção correspondam etapas determinadas 162 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO das relações de produção e da luta de classes Se no regime capitalista a luta de classes se atenuar com o desenvolvimento das forças de produção ou ainda se houver propriedade coletiva numa economia pouco desenvolvida o parale lismo entre esses movimentos que é indispensável para a filosofia dogmática da história é rompido Marx quer compreender o conjunto das sociedades a partir da sua infra estrutura isto é ao que parece do estado das forças produtivas dos conheci mentos científicos e técnicos da indústria e da organização do trabalho Essa compreensão das sociedades sobretudo das sociedades modernas a partir da sua organização econômica é perfeitamente legítima e do ponto de vista meto dológico talvez seja a melhor No entanto para passar dessa análise a uma interpretação do movimento histórico é preciso admitir relações determinadas entre os diferentes setores da realidade Os intérpretes consideraram que efetivamente era difícil usar termos mui to precisos como o de determinação para explicar as relações entre as forças ou relações de produção e o estado da consciência social Como o termo cau salidade ou determinação pareceu por demais rígido ou no vocabulário da escola como mecanicista e nãodialético passouse a usar o termo condiciona mento em lugar de determinação A fórmula é por certo preferível mas é vaga demais Numa sociedade qualquer setor condiciona os outros Se tivéssemos outro regime político provavelmente teríamos outra organização econômica Se tivéssemos outra economia provavelmente teríamos um regime político que não seria o da V República O termo determinação é excessivamente rígido condicionamento corre o risco de ser flexível demais e de tal modo incontestável que o alcance da fór mula tornase duvidoso Seria necessário encontrar uma fórmula intermediária entre a determina ção do conjunto da sociedade pela infraestrutura proposição refutável e o condicionamento que não tem muita significação Como sempre acontece nes ses casos a solução miraculosa é a solução dialética passase a falar em con dicionamento dialético e temse a impressão de que o problema foi resolvido Mesmo admitindo que a sociologia marxista consista numa análise dialé tica das relações entre as forças produtivas materiais os modos de produção 08 quadros sociais e a consciência dos homens é preciso num momento determi nado chegar à idéia essencial isto é a determinação do todo social A meu ver o pensamento de Marx não comporta dúvida Acreditava que um regime histó rico era definido por certas características principais o estado das forças pro dutivas a forma da propriedade e as relações dos trabalhadores entre si Os diferentes tipos sociais são caracterizados por um certo modo de relações entre os trabalhadores associados A escravidão foi um tipo social o trabalho assala riado é um outro tipo A partir daí pode haver relações efetivamente flexíveis OS FUNDADORES 163 e dialéticas entre os diferentes setores da realidade mas o essencial é a defini ção de um regime social a partir de um pequeno número de fatos considerados como decisivos A dificuldade está em que esses diferentes fatos que para Marx são deci sivos e estão ligados entre si aparecem hoje separáveis porque a história os separou A visão coerente de Marx é a de um desenvolvimento das forças produtivas que torna cada vez mais difícil manter as relações de produção capitalista e o funcionamento dos mecanismos desse regime tornando a luta de classes cada vez mais impiedosa Na verdade porém o desenvolvimento das forças produtivas se fez em al guns casos com a propriedade privada em outros com a propriedade pública A revolução não ocorreu onde as forças produtivas tinham atingido o maior desenvolvimento Os fatos a partir dos quais Marx encontra a totalidade social e histórica foram dissociados pela história O problema teórico provocado por tal dissociação pode ter duas soluções a interpretação flexível crítica mantida por uma metodologia de interpretação sociológica e histórica aceitável para todos e a interpretação dogmática que mantém o esquema do devenir histórico con cebido por Marx numa situação que sob certos aspectos é totalmente diferen te Esta segunda interpretação é hoje considerada ortodoxa Ela anuncia o fim da sociedade ocidental com base no esquema da contradição intrínseca e da autodestruição do regime capitalista Cabe perguntar contudo se esta visão dog mática corresponde à sociologia de Marx Outro equívoco da sociologia marxista tem a ver com a análise e a discus são dos conceitos essenciais notadamente os de infraestrutura e superestrutu ra Quais são os elementos da realidade social que pertencem à infraestrutura Quais os que pertencem à superestrutura De modo geral parece que devemos chamar de infraestrutura a economia em particular as forças de produção isto é o conjunto do equipamento técnico de uma sociedade e também a organização do trabalho Mas o equipamento téc nico de uma civilização é inseparável dos conhecimentos científicos Ora estes parecem pertencer ao domínio das idéias ou do saber e estes últimos deveriam estar ligados ao que parece à superestrutura pelo menos na medida em que o saber científico está em muitas sociedades intimamente ligado aos modos de pensar e à filosofia Em outras palavras na infraestrutura definida como força de produção já entram elementos que deveriam pertencer à superestrutura Este fato por si mes mo não implica que não se possa analisar uma sociedade considerando suces sivamente a infraestrutura e a superestrutura Contudo esses exemplos muito simples mostram a dificuldade de separar realmente o que pertence segundo a definição a um o s outra 164 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Por outro lado as forças de produção dependem como o instrumental téc nico da organização do trabalho comum que por sua vez depende das leis de propriedade Estas últimas pertencem ao domínio jurídico Ora pelo menos de acordo com certos textos o direito é parte da realidade do Estado30 e o Estado pertence à superestrutura Vêse aí outra vez a dificuldade de separar realmen te o que é infraestrutura e o que é superestrutura O debate sobre o que pertence a uma e à outra pode ser prolongado inde finidamente Na qualidade de simples instrumentos de análise esses dois conceitos podem ter uma utilização legítima A objeção que se levanta só atinge a inter pretação dogmática segundo a qual um dos dois termos determinaria o outro De modo comparável não é fácil precisar a contradição existente entre as forças e as relações de produção Segundo uma das versões mais simples desta dialética que tem um papel importante no pensamento de Marx e dos marxis tas num certo grau de desenvolvimento das forças de produção o direito indi vidual de propriedade representaria um entrave no progresso das forças de pro dução Nesse caso a contradição estaria na relação entre o desenvolvimento da técnica de produção e a manutenção do direito individual de propriedade A meu ver essa contradição implica uma parte de verdade mas não se coa duna com as interpretações dogmáticas Se considerarmos as grandes empresas modernas na França Citroen Renault Péchiney e nos Estados Unidos Dupont de Nemours ou General Motors podese dizer que de fato a amplitude das for j ças de produção tomou inviável a manutenção do direito individual de proprie dade As usinas da Renault não pertencem a ninguém uma vez que pertencem ao Estado não que o Estado não seja ninguém mas a propriedade do Estado é i abstrata e por assim dizer fictícia Péchiney não pertence a ninguém antes j mesmo que se distribuam as ações aos operários porque pertence a milhares de I acionistas que embora sejam proprietários no sentido jurídico do termo não exercem mais o direito tradicional e individual da propriedade Da mesma forma j a Dupont de Nemours ou a General Motors pertencem a centenas de milhares j de acionistas que mantêm a ficção jurídica da propriedade mas não têm seiusj privilégios autênticos O próprio Marx aliás fez alusão em O capital às grandes sociedades por ações para constatar que a propriedade individual estava em vias de desaparei cimento e concluir que o capitalismo típico estava se transformando31 Podese dizer portanto que Marx tinha razão quando mostrava a contradi ção existente entre o desenvolvimento das forças de produção e o direito indi vidual de propriedade já que no capitalismo moderno das grandes sociedades por ações o direito de propriedade de certo modo desapareceu OS FUNDADORES 165 Por outro lado se considerarmos que essas grandes sociedades são a pró pria essência do capitalismo poderemos mostrar com igual facilidade que o desenvolvimento das forças produtivas não elimina absolutamente o direito de propriedade e que a contradição teórica entre forças e relações de produção não existe O desenvolvimento das forças de produção exige o aparecimento de novas formas de relações de produção que podem porém não ser contraditó rias com respeito ao direito tradicional de propriedade De acordo com uma segunda interpretação da contradição entre as forças e as relações de produção a distribuição da renda determinada pelo direito in dividual de propriedade é tal que uma sociedade capitalista é incapaz de absor ver sua própria produção Neste caso a contradição entre forças e relações de produção tem a ver com o próprio funcionamento da economia capitalista O po der de compra distribuído às massas populares seria sempre inferior às neces sidades da economia Essa versão continua a ter curso depois de um século e meio Nesse perío do em todos os países capitalistas as forças de produção se desenvolveram pro digiosamente A incapacidade de uma economia baseada na propriedade privada de absorver sua própria produção já era denunciada quando a capacidade produ tiva era apenas uma quinta ou décima parte da de hoje Provavelmente a denún cia continuará a ser feita quando a capacidade de produção for cinco ou seis vezes maior do que ela é hoje A contradição não parece portanto evidente Em outras palavras as duas versões da contradição entre forças e relações de produção não estão demonstradas nem uma nem outra A única versão que comporta manifestamente uma parte da verdade é a que não leva às proposi ções política e messiânica às quais os marxistas se apegam mais A sociologia de Marx é uma sociologia da luta de classes Algumas das suas proposições são fundamentais A sociedade atual é uma sociedade antagô nica As classes são os principais atores do drama histórico do capitalismo em particular e da história em geral A luta de classes é o motor da história e leva a uma revolução que marcará o fim da préhistória e o surgimento de uma so ciedade nãoantagônica Mas o que é uma classe social Já é tempo de responder a esta pergunta com a qual deveria ter começado se estivesse expondo o pensamento de um professor Sobre esse ponto encontramos na obra de Marx um grande número de tex tos que pelo menos os mais importantes creio poder classificar em três tipos Há uma passagem clássica nas últimas páginas do manuscrito de O capi tal o último capítulo publicado por Engels no livro III intitulado As classes Como O capital é a principal obra científica de Marx é preciso fazer referên cia a esse texto que infelizmente não está completo Marx escreve Os pro 166 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO prietários da simples força de trabalho os proprietários do capital e os proprie tários de terras cujas fontes de renda são respectivamente o salário o lucro e a renda isto é os assalariados os capitalistas e os proprietários fundiários cons tituem as três grandes classes da sociedade moderna baseada no sistema de produção capitalista32 A distinção entre as classes se baseia aqui na distinção que aliás é clássica da origem econômica das rendas capitallucro terrarenda fundiária trabalhosalário isto é no que se convencionou chamar de fórmu la trinitária que engloba todos os mistérios do processo social de produção Le capital liv III cap 48 p 193 O lucro é a forma aparente da realidade essencial que é a maisvalia a renda fundiária que Marx analisou longamente no mesmo livro III de O ca pital é uma parte da maisvalia valor não distribuído ao trabalhadores Essa interpretação das classes em função da estrutura econômica é a que melhor responde à intenção científica de Marx Permite identificar algumas das proposições essenciais da teoria marxista das classes Primeiramente podese dizer que uma classe social é um grupo que ocupa um lugar determinado no processo de produção ficando entendido que esse lugar tem um duplo significado é um lugar no processo tecnológico de produ ção e um lugar no processo jurídico imposto ao processo técnico O capitalista é simultaneamente senhor da organização do trabalho por tanto senhor no processo técnico e também juridicamente graças à sua situa ção de proprietário dos meios de produção quem tira dos produtores associados a maisvalia Podese concluir por outro lado que as relações de classe tendem a se sim plificar à medida que o capitalismo se desenvolve Se só existem duas fontes de renda deixando de lado a renda fundiária cuja importância diminui com a industrialização existem apenas duas grandes classes o proletariado consti tuído por aqueles que só possuem sua força de trabalho e a burguesia capita lista isto é todos aqueles que se apropriam de uma parte da maisvalia Um segundo tipo de textos de Marx relacionados com as classes sociais reúne os estudos históricos tais como As lutas de classes na França 18481850 ou O 18 brumário de Luís Bonaparte Marx emprega nesses textos a noção de classe mas sem fazer uma teoria sistemática A enumeração das classes é mais longa e mais estrita do que na apresentação da distinção estrutural das classes que acabamos de analisar33 Assim em As lutas de classes na França Marx distingue as seguintes classes burguesia financeira burguesia industrial burguesia comercial pequena burgue sia classe camponesa classe proletária e por fim o que chama de Lumpen proletariat que corresponde mais ou menos ao que chamamos de subproleta riado OS FUNDADORES 167 Essa enumeração não contradiz a teoria das classes esboçada no último capítulo de O capital O problema colocado por Marx nesses dois tipos de tex tos não é o mesmo Num caso ele procura determinar quais são os grandes agrupamentos característicos de uma economia capitalista em outros os gru pos sociais que exerceram influência sobre os acontecimentos políticos em cir cunstâncias históricas particulares É verdade porém que é difícil passar da teoria estrutural das classes ba seada na distinção das fontes de renda à observação histórica dos grupos so ciais Com efeito uma classe não constitui uma unidade pelo simples fato de que do ponto de vista da análise econômica as rendas têm uma só e mesma fonte é preciso evidentemente acrescentar também uma certa homogeneida de psicológica e possivelmente uma certa consciência de unidade ou até mes mo uma vontade de ação comum Esta observação nos leva à terceira categoria de textos Em O 18 brumário de Luís Bonaparte Marx explica por que um grande número de pessoas não representa necessariamente uma classe social mesmo que essas pessoas tenham a mesma atividade econômica e o mesmo gênero de vida Os camponeses pequenos proprietários constituem uma enorme massa cujos membros vivem todos na mesma situação mas sem que estejam ligados uns aos outros por relações variadas Seu modo de produção os isola em vez de leválos a um relacionamento recíproco Esse isolamento é agravado pela deficiência dos meios de comunicação na França e pela pobreza dos camponeses A exploração das suas pequenas propriedades não permite nenhuma divisão do trabalho nenhu ma utilização de métodos científicos e conseqüentemente nenhuma diversidade de desenvolvimento nenhuma variedade de talentos nenhuma riqueza de relações sociais Cada família camponesa se basta a si mesma quase completamente pro duz diretamente a maior parte do que consome e obtém assim os meios de subsis tência mais por uma troca com a natureza do que por uma troca com a sociedade Uma pequena propriedade um camponês e sua família ao lado outra pequena propriedade outro camponês e outra família Um certo número dessas famílias for mam uma aldeia e um certo número de aldeias um município Assim a grande mas sa da nação francesa está constituída pela simples soma de unidades iguais como um saco cheio de batatas forma um saco de batatas Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições econômicas que as separam umas das outras e opõem seus interesses tipo de vida e sua cultura aos de outras clas ses da sociedade essas famílias constituem uma classe Mas na medida em que só existe entre esses camponeses um vínculo local e a semelhança dos seus inte resses não cria entre eles nenhuma comunidade nenhuma ligação nacional ou ne nhuma organização política eles não constituem uma classe Le 18 brumaire de Louis Bonaparte pp 9798 Éd Sociales Fm outras palavras a comunidade de atividade de maneira de pensar e de modo de vida é a condição necessária da realidade de uma classe social mas 168 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO não a condição suficiente Para que uma classe exista é preciso que haja toma da de consciência da unidade e sentimento de separação das outras classes so ciais quem sabe até mesmo sentimento de hostilidade em relação às outras classes sociais No casolimite os indivíduos separados só formam uma classe na medida em que precisam desenvolver uma luta comum contra outra classe Levando em conta o conjunto desses textos pareceme que se chega não a uma teoria completa e professoral das classes mas a uma teoria políticosocio lógica que aliás é bastante clara Marx parte da noção de uma contradição fundamental de interesses entre os assalariados e os capitalistas Estava convencido além disso de que tal opo sição dominava o conjunto da sociedade capitalista e que com a evolução his tórica iria assumindo uma forma cada vez mais simples Por outro lado contudo como observador da realidade histórica Marx constatava como qualquer outro e ele era um excelente observador a plurali dade dos grupos sociais No sentido estrito a classe não se confunde com ne nhum grupo social Implica além da comunidade de existência a consciência dessa comunidade no plano nacional e a vontade de uma ação comum com vis tas a uma certa organização coletiva Nesse nível compreendese que aos olhos de Marx só existam na verda de duas grandes classes já que só existem dois grandes grupos na sociedade capitalista que têm verdadeiramente representações contraditórias do que deva ser a sociedade e que têm realmente um propósito político e histórico definido No caso dos operários como no dos proprietários dos meios de produção confundemse os diferentes critérios que se podem imaginar ou observar Os ope rários da indústria têm um modo de vida determinado que depende da sua fun ção na sociedade capitalista Têm consciência da sua solidariedade e tomam consciência do antagonismo com relação a outros grupos sociais São portanto no sentido pleno da expressão uma classe social que se define política e histo ricamente por uma vontade própria que os coloca em oposição essencial aos capitalistas Isso não exclui a existência de subgrupos dentro de cada classe ou a presença de grupos ainda não absorvidos pelos dois grandes atores do drama histórico Mas no curso da evolução histórica esses grupos exteriores ou marginais como os comerciantes os pequenos burgueses os sobreviventes da antiga estrutura da sociedade serão obrigados a se unir aos proletários ou aos capitalistas Nessa teoria há dois pontos equívocos e discutíveis No ponto de partida da sua análise Marx assemelha a expansão da burgue sia à expansão do proletariado Desde seus primeiros escritos descreve o surgi mento de um quarto estado como análogo à ascensão do terceiro A burguesia desenvolveu as forças de produção no seio da sociedade feudal Da mesma ma neira o proletariado está em vias de desenvolver as forças de produção da so OS FUNDADORES 169 ciedade capitalista Ora esta aproximação a meu ver é um erro É preciso ter além do gênio a paixão política para perceber que os dois casos são radical mente diferentes Quando a burguesia comercial ou industrial criava forças de produção no seio da sociedade feudal era realmente uma classe social nova formada dentro da antiga sociedade Mas a burguesia seja comerciante seja industrial era uma minoria privilegiada que exercia funções socialmente indispensáveis Opunha se à classe dirigente feudal como uma aristocracia econômica se opõe a uma aristocracia militar Podese explicar como essa classe privilegiada historica mente nova podia criar no seio da sociedade feudal novas forças e relações de produção e como fez explodir a superestrutura política do sistema feudal Para Marx a Revolução Francesa constitui o momento em que a classe burguesa to mou o poder político que estava nas mãos dos restos da classe feudal politica mente dirigente Entretanto na sociedade capitalista o proletariado não é uma minoria pri vilegiada mas ao contrário a grande massa dos trabalhadores nãoprivilegiados Não cria novas forças ou relações de produção dentro da sociedade capitalista os operários são os agentes de execução de um sistema de produção dirigido pe los capitalistas ou pelos técnicos Por isso a comparação entre a expansão do proletariado e a expansão da bur guesia é sociologicamente falsa Para restabelecer a equivalência entre a ascen são da burguesia e a ascensão do proletariado os marxistas são forçados a usar aquilo que eles condenam quando empregado pelos outros o mito Para compa rar a expansão do proletariado com a expansão da burguesia é preciso confun dir a minoria que dirige o partido político e alega representar o proletariado com o próprio proletariado Em outras palavras para manter a semelhança en tre a ascensão da burguesia e a ascensão do proletariado é preciso admitir que sucessivamente Lenin Stalin Khruchtchev Brejnev e Kossiguin sejam o pro letariado No caso da burguesia são os burgueses os privilegiados os que dirigem o comércio e a indústria os que governam Quando o proletariado faz sua revo lução são os homens que dizem representálo que dirigem as empresas comer ciais e industriais e que exercem o poder A burguesia é uma minoria privilegiada que passou da situação social mente dominante ao exercício político do poder o proletariado é a grande mas sa não privilegiada que não pode tornarse enquanto tal uma minoria privile giada e dominante Não estou fazendo aqui nenhum julgamento sobre os méritos respectivos de um regime que se diz burguês e de um que se diz proletário Afirmo apenas porque acredito tratarse de fatos que a ascensão do proletariado não pode ser as semelhada a não ser pela mitologia à ascensão da burguesia e que aí está o 170 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO erro central de toda a visão marxista da história que salta aos olhos e cujas con seqüências têm sido imensas Marx quis definir de modo univoco pela classe que exerce o poder um re gime econômico social e político Ora essa definição do regime é insuficien te porque implica aparentemente uma redução da política à economia ou do Estado à relação entre os grupos sociais Sociologia e economia Marx se esforçou para combinar uma teoria do funcionamento da econo mia com uma teoria do devenir da economia capitalista Esta síntese da teoria e da história tem uma dificuldade intrínseca dupla na origem e na conclusão Tal como o descreve Marx o regime capitalista só pode funcionar com a condição de que exista um grupo de pessoas dispondo de capital e em condi ções de comprar a força de trabalho daqueles cuja única coisa que possuem é es sa força de trabalho Como se constituiu historicamente esse grupo de homens Qual é o processo de formação da acumulação primitiva do capital indispen sável para que o próprio capital possa funcionar A violência a força a astú cia o furto e outros procedimentos clássicos da história política explicam sem dificuldade a formação de um grupo de capitalistas Seria mais difícil explicar por meio da economia a formação desse grupo A análise do funcionamento do capitalismo supõe a existência no ponto de partida de fenômenos extraeconô micos que criem condições nas quais o regime possa funcionar Há uma dificuldade da mesma natureza que surge no ponto de chegada Não há em O capital nenhuma demonstração conclusiva sobre o momento em que o capitalismo deixará de funcionar nem mesmo sobre o fato de que num dado momento ele deva deixar de funcionar Para que a autodestruição do capitalismo fosse economicamente demonstrada seria necessário que o econo mista pudesse dizer o capitalismo não pode funcionar com uma taxa de lucro inferior a determinada porcentagem Ou então a partir de determinado ponto a distribuição da renda é tal que o regime se torna incapaz de absorver sua pró pria produção Mas de fato nenhuma dessas demonstrações pode ser encon trada em O capital Marx apresentou uma série de razões para demonstrar que o funcionamento do regime capitalista seria cada vez pior mas não demonstrou economicamente a destruição do capitalismo por suas contradições internas Assim somos obrigados a introduzir no princípio e no fim do processo de evo lução do regime capitalista um fator externo à economia do capitalismo e que é de natureza política A teoria puramente econômica do capitalismo enquanto economia de ex ploração comporta também uma dificuldade essencial Está baseada na noção OS FUNDADORES 171 da maisvalia que é inseparável da teoria do salário Ora toda economia mo derna é progressiva isto é precisa acumular uma parte da produção anual para ampliar as forças de produção Assim se definirmos a economia capitalista co mo uma economia de exploração será preciso demonstrar em que sentido e em que medida o mecanismo capitalista de poupança e investimento difere do me canismo de acumulação que existe ou existiria numa economia moderna de outro tipo Para Marx a característica da economia capitalista era uma taxa elevada de acumulação do capital Acumulai acumulai esta é a lei e os profetas Le capital liv I Oeuvres 11 p 109934 Mas numa economia do tipo soviético a acumulação de 25 da renda nacional anual foi considerada durante muito tempo como parte integrante da doutrina Hoje um dos méritos reivindicados pelos apologistas da economia so viética é a alta porcentagem de formação de capital Um século depois de Marx a competição ideológica entre os dois regimes tem por objeto a taxa de acumulação praticada por ambos na medida em que ela determina a taxa de crescimento Resta saber assim se o mecanismo capi talista de acumulação é melhor ou pior do que o de outro regime melhor para quem pior para quem Em sua análise do capitalismo Marx considerou simultaneamente as carac terísticas de toda economia e as características de uma economia moderna de tipo capitalista porque não conhecia outros tipos Um século mais tarde o ver dadeiro problema para um economista de tradição autenticamente marxista seria analisar as particularidades de uma economia moderna de outro tipo A teoria do salário a teoria da maisvalia a teoria da acumulação deixam de ser plenamente satisfatórias em si mesmas Passam a representar antes inda gações ou pontos de partida para a análise permitindo diferenciar o que se po deria chamar de exploração capitalista da exploração soviética ou seja para dizê lo de forma mais neutra para diferenciar a maisvalia capitalista da maisvalia em regime soviético Em nenhum regime é possível dar aos trabalhadores todo o valor do que produzem pois é preciso reservar uma parte desse valor para a acumulação coletiva Isto não exclui aliás que haja diferenças substanciais entre os dois meca nismos A acumulação passa no regime capitalista pela intermediação dos lu cros individuais e do mercado e a distribuição da renda não é a mesma nos dois regimes Estas observações fáceis de fazer um século depois de Marx não implicam nenhuma pretensão de superioridade que seria ridícula Quero apenas demons trar que Marx observando a fase inicial do regime capitalista não podia distin guir com facilidade de um lado o que implica um regime de propriedade priva da e de outro o que implica uma fase de desenvolvimento tal como a que a 172 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO nglaterra atravessava no momento em que ele a estudava e por fim o que constituía a essência de qualquer economia industrial Hoje a tarefa da análise sociológica da economia consiste justamente em tra çar a distinção entre esses três tipos de elementos as características de toda econo mia moderna características ligadas a um regime particular de economia moderna e enfim as características ligadas a uma fase de crescimento da economia Essa discriminação é difícil porque todas essas características estão sem pre presentes na realidade misturadas umas às outras Mas se quisermos fazer um julgamento crítico político ou moral sobre um certo regime será preciso evi dentemente não lhe atribuir o que é imputável a outros fatores A teoria da acumulação e da maisvalia exemplifica bem a confusão exis tente entre estes diferentes elementos Toda economia moderna implica acumu lação A taxa de acumulação é mais ou menos elevada de acordo com a etapa do crescimento e também de acordo com as intenções do governo O que varia é o mecanismo econômicosocial da maisvalia ou o modo de circulação da pou pança Uma economia planificada tem um circuito de poupança relativamente simples enquanto uma economia em que subsiste a propriedade privada dos meios de produção comporta um mecanismo mais complicado misturando o mercado livre com os descontos impostos por meio da autoridade Não aceita facilmen te a determinação autoritária da poupança e da taxa de formação de capital com relação ao produto nacional As relações entre a análise econômica e a análise sociológica levantam o problema das relações entre regimes políticos e regimes econômicos A meu ver é nesse ponto que a sociologia de Marx é mais vulnerável à crítica Em O capital como nas outras obras de Marx encontramos sobre este pon to de grande importância apenas um pequeno número de idéias que são aliás sempre as mesmas O Estado é considerado essencialmente como instrumento da dominação de uma classe Em conseqüência um regime político é definido pela classe que exer ce o poder Os regimes da democracia burguesa são assemelhados àqueles em que a classe capitalista exerce o poder embora mantenham a fachada das institui ções livres Em oposição ao regime econômicosocial feito de classes antagô nicas e baseado na dominação de uma classe sobre as outras Marx concebe um regime econômicosocial em que não haja mais dominação de classe Por isso por definição o Estado desaparecerá pois ele só existe na medida em que uma clas se necessita dele para explorar as outras Entre a sociedade antagônica e a sociedade nãoantagônica do futuro inter põese o que é chamado de ditadura do proletariado expressão que encontra mos em particular num texto célebre de 1875 a Crítica do programa do Partido Operário Alemão ou Crítica do programa de Gotha35 A ditadura do proletaria OS FUNDADORES 173 do é o fortalecimento supremo do Estado antes do momento crucial do seu de saparecimento Antes de desaparecer o Estado atingirá sua expansão máxima A ditadura do proletariado aparece definida com pouca clareza nos escritos de Marx em que coexistem duas interpretações A primeira é de tradição jacobina e assemelha a ditadura do proletariado ao poder absoluto de um partido baseado nas massas populares a outra quase oposta foi sugerida a Marx pela experiên cia da Comuna de Paris que tendia à supressão do Estado centralizado Essa concepção da política e do desaparecimento do Estado numa socieda de nãoantagônica me parece sem a menor dúvida a concepção sociológica mais facilmente refutável de toda a obra de Karl Marx Ninguém nega que em toda sociedade e em particular numa sociedade mo derna haja funções comuns de administração e de autoridade que precisam ser exercidas Ninguém pode pensar de modo razoável que uma sociedade indus trial complexa como a nossa possa dispensar uma administração sob certos as pectos centralizada Além disso se admitirmos a planificação da economia é inconcebível que não haja organismos centralizados que tomem as decisões fundamentais impli cadas pela própria idéia da planificação Ora essas decisões pressupõem fun ções que chamamos normalmente de estatais Por isso a menos que imaginemos uma situação de abundância absoluta em que o problema da coordenação da produção deixe de ser relevante um regime de economia planejada exige o refor ço das funções administrativas exercidas pelo poder central Neste sentido as duas idéias de planificação da economia e de enfraqueci mento do Estado são contraditórias para o futuro previsível enquanto for impor tante produzir o mais possível produzir em função das diretrizes do plano e de distribuir a produção entre as classes sociais segundo as idéias dos governantes Se chamarmos de Estado o conjunto das funções administrativas e dirigen tes da coletividade não é admissível que o Estado pereça em nenhuma socieda de industrial e menos ainda numa sociedade industrial planificada já que por definição o planejamento central implica que o governo ttíme um maior núme ro de decisões do que no caso da economia capitalista que se define em parte pela descentralização do poder de decisão O desaparecimento do Estado não pode ocorrer portanto a não ser num sentido simbólico O que desaparece é o caráter de classe do Estado considerado Podese de fato pensar que a partir do momento em que desaparece a rivali dade das classes as funções administrativas e de direção em vez de expressarem a intenção egoísta de um grupo particular tornamse a expressão de toda a so ciedade Nesse sentido podese conceber o desaparecimento do caráter de clas se de dominação e de exploração do próprio Estado No regime capitalista porém pode o Estado ser definido essencialmente pelo poder de uma determinada classe 174 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A idéia central de Marx é a de que a sociedade capitalista é antagônica conseqüentemente todas as características essenciais do regime capitalista têm origem nesse fenômeno Como poderia haver uma sociedade sem antagonis mo A argumentação toda repousa na diferença de natureza entre a classe bur guesa que exerce o poder quando possui os instrumentos de produção e o pro letariado considerado como a classe que sucederá a burguesia Afirmar que o proletariado é uma classe universal que assume o poder só pode ter portanto uma significação simbólica uma vez que a massa dos trabalha dores nas fábricas não pode ser confundida com uma minoria dominante que exerce o poder A fórmula o proletariado no poder é apenas uma fórmula sim bólica para dizer no poder o partido ou o grupo que representa a massa popular Na sociedade em que deixou de haver propriedade privada dos meios de produção por definição não há mais antagonismo ligado à propriedade há po rém homens que exercem o poder em nome da massa popular Existe portanto um Estado que exerce as funções administrativas indispensáveis a toda socie dade desenvolvida Uma sociedade desse tipo não comporta os mesmos anta gonismos que uma sociedade na qual existe propriedade privada dos instrumen tos de produção Mas numa sociedade em que o Estado por meio de decisões econômicas determina amplamente a condição de todas as pessoas pode haver evidentemente antagonismos entre grupos seja entre grupos horizontais cam poneses e operários seja entre grupos verticais isto é entre os que estão situa dos embaixo e os que estão no alto da hierarquia social Não afirmo que numa sociedade em que a condição de todas as pessoas depende do plano e o plano é determinado pelo Estado haja necessariamente conflitos Mas não se pode deduzir a certeza da ausência de antagonismos do simples fato da inexistência da propriedade privada dos meios de produção e do fato de que a condição de todas as pessoas depende do Estado Se as deci sões do Estado são tomadas por indivíduos ou por uma minoria essas decisões podem corresponder aos interesses desses indivíduos ou dessas minorias Numa sociedade planificada não há uma harmonia preestabelecida entre os interesses dos diferentes grupos O poder do Estado não desaparece em tal sociedade e não pode desapare cer Uma sociedade planificada pode ser governada indubitavelmente de mo do equitativo contudo não há uma garantia a priori de que os dirigentes da planificação tomarão decisões que correspondam aos interesses de todos ou aos interesses supremos da coletividade na medida aliás em que estes interesses possam ser definidos A garantia do desaparecimento dos antagonismos implicaria que as rivali dades entre os grupos se originassem exclusivamente na propriedade privada dos meios de produção ou que o Estado desaparecesse N enhum a dessas hipó teses é verossímil Não há razão para que todos os interesses dos membros de OS FUNDADORES 175 uma coletividade passem a ser harmônicos no momento em que os meios de produção deixam de ser passíveis de apropriação individual Desaparecerá um tipo de antagonismo mas outros tipos de antagonismo poderão subsistir Por outro lado no momento em que subsistem as funções administrativas ou de direção exis te por definição o risco de que as pessoas que as exerçam sejam injustas in sensatas ou que estejam mal informadas em conseqüência que os governados não se satisfaçam com as decisões tomadas pelos governantes Finalmente além dessas observações há um problema fundamental o da redução da política enquanto tal à economia A sociologia de Marx pelo menos na sua forma profética supõe a redução da ordem política à ordem econômica isto é a extinção do Estado a partir do momento em que forem impostas a propriedade coletiva dos meios 3e produção e planificação Contudo a ordem política é essencialmente irredutível à ordem econômica Qualquer que seja o regime econômico e social o problema políti co persistirá porque ele consiste em determinar quem governa como são re crutados os governantes como o poder é exercido ou qual a relação de consen timento ou de revolta entre governantes e governados A ordem política é tão essencial e autônoma quanto a ordem econômica As duas ordens estão em rela ções recíprocas O modo como são organizadas a produção e a distribuição dos recursos co letivos influencia a maneira como se resolve o problema da autoridade inver samente a maneira como este problema é resolvido influi no modo como se re solve o problema da produção e da distribuição dos recursos É falso pensar que uma determinada organização da produção e da repartição dos recursos resol ve automaticamente o problema do comando suprimindoo O mito do enfra quecimento do Estado é o mito de que o Estado só existe para produzir e dis tribuir os recursos e que resolvido o problema da produção e da distribuição dos recursos não será mais necessário36 Tratase de mito duplamente enganador Em primeiro lugar a gestão pla nificada da economia acarreta um reforço do Estado E mesmo que não fosse assim continuaria a haver sempre numa sociedade moderna o problema do comando isto é da forma do exercício da autoridade Em outras palavras não é possível definir um regime político simplesmen te pela classe que se presume estar exercendo o poder Não se pode portanto definir o regime político do capitalismo pelo poder dos monopolistas como não se pode definir o regime político de uma sociedade socialista pelo poder do proletariado No regime capitalista não são os monopolistas que pessoalmen te exercem o poder no regime socialista não é o proletariado como um grupo que exerce o poder Nos dois casos tratase de determinar quais são as pessoas que vão exercer as funções políticas como recrutálas de que forma devem exercer a autoridade qual é a relação entre os governantes e os governados 176 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A sociologia dos regimes políticos não pode ser reduzida a um simples apêndice da sociologia da economia ou das classes sociais Marx se referiu com freqüência às ideologias e procurou explicar as ma neiras de pensar ou os sistemas intelectuais pelo contexto social A interpretação das idéias pela realidade social comporta diversos méto dos É possível explicar as maneiras de pensar pelo modo de produção ou pelo estilo tecnológico da sociedade Contudo a explicação que até hoje teve maior êxito é a que atribui determinadas idéias a uma certa classe social De modo geral Marx entende por ideologia a falsa consciência ou falsa representação que uma classe social tem a respeito da sua própria situação e da sociedade em conjunto Em larga medida considera as teorias dos economis tas burgueses como uma ideologia de classe Não que atribua aos economistas burgueses a intenção de enganar seus leitores ou de se iludirem com uma inter pretação mentirosa da realidade Tende a acreditar porém que uma classe só pode ver o mundo em função da sua própria situação Como diria Sartre o bur guês vê o mundo definido pelos direitos que possui A imagem jurídica de um mundo de direitos e obrigações é a representação social em que o burguês ma nifesta ao mesmo tempo sua maneira de ser e sua situação Essa teoria da falsa consciência associada à consciência de classe pode ser aplicada a muitas idéias ou sistemas intelectuais Quando se trata de doutri nas econômicas e sociais podese a rigor considerar que a ideologia é uma fal sa consciência e o sujeito desta falsa consciência é a classe Mas essa concep ção da ideologia traz duas dificuldades Se uma classe tem devido a sua situação uma falsa idéia do mundo se por exemplo a classe burguesa não compreende o mecanismo da maisvalia ou permanece prisioneira da ilusão das mercadoriasfetiches por que um indiví duo consegue se livrar dessas ilusões e dessa falsa consciência Por outro lado se todas as classes têm uma maneira de pensar parcial onde está a verdade Como pode uma ideologia ser melhor do que outra se toda ideologia é inseparável da classe que a adota O pensamento marxista se sente aqui tentado a responder que entre as ideologias há uma que é melhor do que as outras porque há uma classe que pode pensar o mundo em sua verdade No mundo capitalista é o proletariado e só o proletariado que pensa a ver dade do mundo porque só ele pode pensar o futuro além da revolução Lukács um dos últimos grandes filósofos marxistas se esforçou por de monstrar em Geschichte und Klassenbewusstsein que as ideologias de classe não se eqüivalem e que a ideologia da classe proletária é verdadeira porque o proletariado na situação que lhe é imposta pelo capitalismo é capaz e o único capaz de pensar a sociedade em seu desenvolvimento em sua evolução para a revolução e portanto na sua verdade37 OS FUNDADORES 177 A primeira teoria da ideologia procura portanto evitar o desvio para o rela tivismo integral mantendo ao mesmo tempo o vínculo das ideologias com as classes e a verdade de uma das ideologias A dificuldade dessa fórmula consiste em que é fácil questionar a veracida de de uma ideologia de classe fácil aos defensores das outras ideologias e fácil às outras classes achar que todas estão no mesmo plano Admitindo que minhq visão do capitalismo seja orientada pelos meus interesses burgueses a visão proletária é comandada pelos interesses proletários Por que os interesses dos que estão out como se diria em inglês seriam mais importantes do que os inte resses dos in Por que os interesses daqueles que estão do lado mau da barrica da valeriam como tal mais do que os dos que estão do lado bom Tanto mais que a situação pode se inverter e de fato de tempos em tempos ela se inverte Esse modo de argumentação só pode levar a um ceticismo integral para o qual todas as ideologias são equivalentes igualmente parciais e facciosas inte ressadas e em decorrência mentirosas Por isso procurouse em outra direção que me parece preferível a mesma em que se empenhou a sociologia do conhecimento que estabelece distinções entre tipos diferentes de edifícios intelectuais Todo pensamento está associa do de certo modo ao meio social mas o vínculo da pintura da física da mate mática da economia política e das doutrinas políticas com a realidade social não é o mesmo Convém distinguir as maneiras de pensar ou as teorias científicas que estão ligadas à realidade social mas que não dependem dela das ideologias ou falsas consciências que resultam na consciência dos homens de situações de classe que os impedem de ver a verdade Esta tarefa é a mesma que os diferentes sociólogos do conhecimento mar xistas ou não procuram executar buscando identificar a verdade universal de algumas ciências e o valor universal das obras de arte Para um marxista como para um nãomarxista é importante não reduzir a significação de uma obra científica ou estética a seu conteúdo de classe Marx que era um grande admirador da arte grega sabia tão bem quanto os sociólo gos do conhecimento que o significado das criações humanas não se esgota no seu conteúdo de classe As obras de arte valem e têm sentido mesmo para ou tras classes e para outras épocas Sem negar em absoluto que o pensamento esteja ligado à realidade social e que certas formas de pensamento estejam vinculadas à classe é necessário restabelecer a discriminação das espécies e sustentar duas proposições que me parecem indispensáveis para evitar o niilismo Existem domínios em que o pensador pode atingir uma verdade válida para todos e não só uma verdade de classe Existem domínios em que as criações das sociedades têm valor e significado para os homens de outras sociedades 178 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Conclusão Nos últimos cem anos houve fundamentalmente três grandes crises no pensamento marxista38 A primeira foi o revisionismo da socialdemocracia alemã nos primeiros anos deste século Seus dois protagonistas foram Karl Kautsky e Edouard Bernstein O tema essencial era a economia capitalista está em vias de se trans formar de modo tal que a revolução anunciada não se produza de acordo com nossa expectativa Bernstein o revisionista achava que os antagonismos de classe não se acentuavam que a concentração não se produzia nem tão rápida nem tão completamente quanto previsto e que em conseqüência não era pro vável que a dialética histórica realizasse a catástrofe da revolução e a socieda de naoantagônica A querela KautskyBemstein terminou dentro do partido socialdemocrático alemão e da II Internacional com a vitória de Kautsky e a derrota dos revisionistas A tese ortodoxa foi mantida A segunda crise do pensamento marxista foi a do bolchevismo Um parti do que se dizia marxista tomou o poder na Rússia e este partido como era nor mal definiu sua vitória como a vitória da revolução proletária Mas uma fração dos marxistas os ortodoxos da II Internacional a maioria dos socialistas ale mães e dos socialistas ocidentais julgaram de outro modo A partir de 19171920 começou a haver dentro dos partidos marxistas uma disputa cujo tema central poderíamos definir assim o poder soviético é uma ditadura do proletariado ou uma ditadura sobre o proletariado Essas expressões eram empregadas desde os anos 1917 e 1918 pelos dois grandes protagonistas da segunda crise Lenin e Kautsky Na primeira crise do revisionismo Kautsky estava do lado dos orto doxos Na crise do bolchevismo pensava ainda estar do lado dos ortodoxos mas havia uma nova ortodoxia A tese de Lenin era simples o partido bolchevique que se proclamava mar xista e proletário representa o proletariado no poder o poder do partido bol chevique é a ditadura do proletariado Como afinal de contas nunca se soubera com certeza em que consistiria exatamente a ditadura do proletariado a hipó tese segundo a qual o poder do partido bolchevique era a ditadura do proleta riado era sedutora e não era proibido apoiála Tudo ficava fácil se o poder do partido bolchevique era o poder do proletariado o regime soviético era um re gime proletário e a construção do socialismo viria a seguir Por outro lado admitida a tese de Kautsky segundo a qual uma revolução feita num país nãoindustrializado onde a classe operária era uma minoria não podia ser uma revolução verdadeiramente socialista a ditadura de um partido mesmo marxista não podia ser uma ditadura do proletariado mas sim uma ditadura sobre o proletariado OS FUNDADORES 179 Depois disso houve duas correntes no pensamento marxista uma reco nhecia no regime da União Soviética a realização das previsões de Marx com algumas modalidades imprevistas a outra considerava que a essência do pen samento marxista estava desfigurada porque o socialismo não implicava ape nas a propriedade coletiva dos meios de produção e o planejamento mas a de mocracia política Ora dizia a segunda escola a planificação socialista sem a democracia não é o socialismo Seria necessário aliás procurar saber qual o papel desempenhado pela ideo logia marxista na construção do socialismo soviético Está claro que essa socie dade não nasceu do cérebro de Marx e que em larga medida ela é o resultado das circunstâncias Mas a ideologia marxista tal como foi interpretada pelos bolchevistas teve também um papel e um papel importante A terceira crise do pensamento marxista é à que assistimos hoje Tratase de saber se há um termo intermediário entre a versão bolchevista do socialis mo e a versão digamos escandinavobritânica Atualmente vemos uma das modalidades possíveis de uma sociedade socialista a planificação central sob a direção de um Estado mais ou menos to tal que se confunde com o partido que se afirma socialista Essa é a versão so viética da doutrina marxista Mas há uma segunda versão a ocidental cuja forma mais aperfeiçoada é provavelmente a da sociedade sueca com sua mistura de instituições públicas e privadas com uma redução da desigualdade de rendas e a eliminação da maior parte dos fenômenos sociais que causavam escândalo A planificação parcial e a propriedade mista dos meios de produção se combinam com as instituições democráticas do Ocidente isto é com a pluralidade parti dária eleições livres livre discussão das idéias Os marxistas ortodoxos não têm dúvida de que a verdadeira descendência de Marx é a sociedade soviética Os socialistas ocidentais não duvidam de que a versão ocidental é menos infiel ao espírito de Marx do que a versão soviéti ca Contudo muitos intelectuais marxistas não se satisfazem com nenhuma das duas versões Prefeririam uma sociedade que fosse de certo modo tão socialis ta e planificada quanto a soviética e ao mesmo tempo tão liberal quanto uma sociedade de tipo ocidental Deixo de lado aqui a questão de saber se é possível a existência desse ter ceiro tipo de sociedade fora da mente dos filósofos afinal como dizia Hamlet a Horácio há mais coisas na terra e no céu do que em todos os sonhos da nos sa filosofia Pode ser portanto que haja um terceiro tipo de socialismo no mo mento porém a fase atual da discussão doutrinária focaliza a existência de dois tipos ideais claramente definíveis duas sociedades que podem dizerse mais ou menos socialistas uma das quais não é liberal e a outra é burguesa O cisma entre a China e a União Soviética abre uma nova fase Aos olhos de Mao Tsétung o regime e a sociedade soviéticos estão em vias de embur 180 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO guesamento Os dirigentes de Moscou são tratados de revisionistas como E Bernstein e os socialistas de direita haviam sido no princípio do século E Marx de que lado ficaria Em vão fazemos esta pergunta pois Marx não imaginou a diferenciação que o curso da história realizou A partir do momen to em que somos obrigados a dizer que certos fenômenos que Marx criticou não são imputáveis ao capitalismo mas sim à sociedade industrial ou à fase de cres cimento que ele pôde observar entramos num mecanismo de pensamento de que Marx era perfeitamente capaz porque era um grande homem mas que de fato foi estranho a Marx Muito provavelmente ele que tinha temperamento rebelde não se entusias maria com nenhuma dessas versões com nenhuma das modalidades de sociedade que se apresentaram com seu nome Qual dos dois modelos preferiria Pareceme impossível decidir o que é aliás inteiramente inútil Se tivesse de dar uma res posta ela não passaria da manifestação das minhas preferências pessoais Creio que é mais honesto revelar quais são as minhas preferências do que atribuílas a Karl Marx que não tem mais condições de manifestar o que pensa Indicações biográficas 1818 No dia 5 de maio nasce Karl Marx em Trier então Prússia renana segundo dos oito filhos do advogado Heinrich Marx que descendente de rabinos se conver teu ao protestantismo em 1816 18301835 Estudos secundários no liceu de Trier 18351836 Estudos de direito na Universidade de Bonn Noivado com Jenny von West phalen 18361841 Estudos de direito filosofia e história em Berlim Marx freqüenta os jovens hegelianos do Doktor Club 1841 Doutoramento pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Iena 1842 Marx se instala em Bonn como colaborador e depois redator da Rheinische Zeitung de Colônia 1843 Decepcionado com a atitude dos acionistas que considera medrosa deixa o cargo Casamento com Jenny von Westphalen Partida para a França Colaborações para os Annales FràncoAllemandes de A Ruge em que publica o Ensaio sobre a questão judaica e Crítica da filosofia do direito de Hegel Introdução 18441845 Estada em Paris Freqüenta Heine Proudhon Bakunin Início dos estudos de economia política Preenche vários cadernos com reflexões filosóficas sobre a Economia e a Fenomenologia de Hegel Faz amizade com Engels A sagrada família é o primeiro livro que escrevem juntos 1845 Expulsão de Paris a pedido do governo prussiano Marx se instala em Bruxelas Em julho e agosto faz uma viagem de estudo à Inglaterra na companhia de Engels 18451848 Estada em Bruxelas Em colaboração com Engels e Mores Marx escreve A ideologia alemã que não será publicada Briga com Proudhon Miséria da filosofia 1847 Em novembro de 1847 Marx vai a Londres com Engels para o segundo congres so da Liga dos Comunistas que os incumbe de redigir um manifesto Publicação do Manifesto comunista em fevereiro de 1848 1848 Marx é expulso de Bruxelas Depois de curta estada em Paris instalase em Co lônia onde se toma redatorchefe da Neue Rheinische Zeitung Desenvolve uma 182 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO campanha ativa no jornal para radicalizar o movimento revolucionário na Ale manha 1849 Trabalho salário e capital publicado na Neue Rheirtische Zeitung Marx é ex pulso da Renânia Após uma curta estada em Paris parte para Londres onde se instala definitivamente 1850 As lutas de classes na França 1851 Marx começa a colaborar com o New York Tribune 1852 Dissolução da Liga dos Comunistas Processo dos comunistas de Colônia O 18 brumàrio de Luís Bonaparte 18521857 Marx precisa abandonar seus estudos econômicos para se dedicar ao traba lho de sobrevivência no jornalismo Dificuldades financeiras contínuas 18571858 Marx retoma os trabalhos de economia Redige numerosas notas que só serão descobertas em 1923 1859 Critica da economia política 1860 Herr Vogt 1861 Viagem à Holanda e à Alemanha Visita a Lassalle em Berlim Colaboração com o jornal Die Presse de Viena 1862 Marx rompe com Lassalle Obrigado a cessar a colaboração para o New York Tribune Grave a situação financeira 1864 Marx participa da formação da Associação Internacional dos Trabalhadores para a qual ele redigiu os estatutos e o discurso inaugural 1865 Salário preço e maisvalia Reunião da Internacional em Londres 1867 Publicação do livro I de O capital em Hamburgo 1868 Marx começa a se interessar pela comuna rural russa e estuda russo 1869 Início da luta contra Bakunin no seio da Internacional Engels garante a Marx uma renda anual 1871 A guerra civil na França 1875 Crítica do programa de Gotha Publicação da tradução francesa do livro I de O capital Marx colaborou com o trabalho do tradutor J Roy 1880 Marx dita a Guesde os Consideranda do programa do Partido Operário Francês 1881 Morte de Jenny Marx Correspondência com Vera Zassoulitch 1882 Viagem à França e à Suíça estada em Argel 1883 Em 14 de março morte de Karl Marx 1885 Publicação por Engels do livro II de O capital 1894 Publicação por Engels do livro III de O capital 19051910 Publicação por Kautsky de Teoria sobre a maisvalia 1932 Publicação por Riazanov e Landshut e Meyer das obras de juventude 19391941 Publicação de Princípios da crítica da economia política Notas 1 Kostas Axelos Marx penseur de la technique Paris Éd de Minuit Coll Ar guments 1961 327 pp O fato de considerar a noção de alienação como uma das chaves do pensamento de Marx é comum tanto aos intérpretes cristãos como R P Yves Calvez in La pensée de Karl Marx Paris Éd du Seuil 1956 quanto a comentadores marxistas como L Goldmann ou H Lefebvre Este último diz A crítica do fetichismo da mercadoria do dinheiro e do capital é a chave da parte econômica da obra de Marx isto é de O ca pital Entrevista para o jornal Arts 13 de fevereiro de 1963 no entanto mais adian te ele esclarece Os textos de Marx sobre a alienação e suas diferentes formas estão dispersos por toda a obra a tal ponto que a sua unidade passou despercebida até uma data bastante recente Le marxisme Paris PUF Que saisje 1958 p 48 2 Estou errado quando digo nas margens do Sena Há vinte anos era nas margens do Spree em Berlim hoje essas formas do marxismo sutil emigraram para a margem esquerda do Sena onde suscitaram discussões apaixonadas publicações interessantes controvérsias eruditas 3 A ideologia alemã é obra conjunta de Marx e Engels escrita entre setembro de 1845 e maio de 1846 em Bruxelas No prefácio à Crítica da economia política em 1859 Marx irá escrever Decidimos desenvolver nossas idéias em comum opondoas à ideo logia da filosofia alemã No fundo pretendíamos fazer nosso exame de consciência filo sófica Executamos nosso projeto sob a forma de uma crítica da filosofia póshegeliana O manuscrito dois grossos volumes inoitavo estava desde muito tempo nas mãos de um editor da Westfália quando nos informaram que uma alteração de circunstâncias não permitia mais a impressão Havíamos atingido o objetivo principal a boa compreensão de nós mesmos Foi com prazer que abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos Oeuvres 11 p 274 4 J Schumpeter Capitalisme socialisme et démocracie Paris Payot 1954 pri meira parte A doutrina marxista pp 65136 A primeira edição inglesa é de 1942 Os capítulos sobre Marx foram reproduzidos na obra póstuma de Schumpejer Ten Great Economists 1951 184 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 5 P Bigo Marxisme et humanisme introduction à 1oeuvre économique de Marx Paris PUF 1953 269 pp 6 Georges Gurvitch encontrou aí em certa medida uma antecipação das suas pró prias idéias 7 O elogio que Marx faz do papel revolucionário e construtivo da burguesia chega a ser lírico ela realizou maravilhas diferentes das pirâmides egípcias dos aquedutos romanos das catedrais góticas as expedições que realizou são muito diferentes das invasões e das cruzadas Manifesto comunista Oeuvres t 1 p 164 8 Vide notadamente Karl A Wittfogel Oriental Despotism a Comparative Study of Total Power New Haven Yale University Press 556 pp A tradução francesa tem o título Le despotisme oriental Paris Éd de Minuit Coll Arguments 1964 Cf também os seguintes artigos publicados em Le contrat social Karl A Wittfogel Marx et le despotisme oriental maio 1957 Paul Barton Du despotisme oriental maio 1959 Despotisme et totalitarisme julho 1959 Despotisme totalitarisme et classes socia les março 1960 Kostas Papaioannou Marx et le despotisme janeiro 1960 Para uma reflexão marxista ortodoxa sobre o problema vide o número especial da revista La pensée sobre Le mode de production asiatique n 114 abril de 1964 e os seguintes artigos J Chesneaux Oú en est la discussion sur le mode de production asia tique La pensée n 122 1965 M Godelier La notion de mode de production asiati que Les temps modernes maio de 1965 9 J Stalin Les problèmes économiques du socialisme en URSS Ed Sociales 1952 112 pp Os traços principais e os dispositivos da lei econômica fundamental do capitalismo atual poderiam ser formulados aproximadamente assim garantir o máxi mo de lucro capitalista explorando arruinando empobrecendo a maior parte da popu lação de um determinado país sujeitando e despojando de modo sistemático povos de outros países principalmente dos países atrasados e finalmente desencadeando greves e militarizando a economia nacional para garantir o máximo de lucro Os traços essen ciais e os dispositivos da lei econômica fundamental do socialismo poderiam ser for mulados aproximadamente assim garantir ao máximo a satisfação das necessidades materiais e culturais continuamente crescentes de toda a sociedade aumentando e aper feiçoando sempre a produção socialista assentada sobre a base de uma técnica supe rior Pp 41 e 43 10 Além da doença e das dificuldades financeiras foi a consciência de que o estu do não estava completo que levou Marx a retardar a publicação das duas últimas partes de O capital De 1867 data da publicação do primeiro livro até morrer Marx não dei xou de prosseguir os estudos que o deixavam insatisfeito e de recomeçar a trabalhar naquilo que considerava como a obra de sua vida Assim em setembro de 1878 ele es creve a Danielson que o livro II de O capital estará pronto para impressão no fim de 1879 mas em 10 de abril de 1879 declara que não o publicará antes de ter observado o desenvolvimento e o final da crise industrial na Inglaterra 110 tema da baixa secular da taxa de lucro tem sua origem em David Ricardo e foi desenvolvido especialmente por John Stuart Mill Procurando demonstrar que os particulares têm sempre motivos para investir Ricardo escreve Não é possível haver num país um montante de capital acumulado seja ele qual for que não possa ser emprega OS FUNDADORES 185 do produtivamente até o momento em que os salários tenham aumentado tanto em con seqüência do encarecimento das coisas necessárias que não sobre mais do que uma par te muito pequena para os lucros do capital e que em conseqüência não haja mais moti vo para acumular Príncipes de leconomie politique et de Vimpôt Paris Costes 1934 t II p 90 Para Ricardo em outras palavras a queda da taxa do lucro a zero é apenas uma eventualidade Resultaria do crescimento na repartição do produto da parte dos salá rios nominais se estes fossem forçados à alta pelo aumento relativo dos preços dos bens indispensáveis à sobrevivência Esse aumento dos preços seria por sua vez o resulta do do jogo combinado da expansão da demanda induzida pela demografia e do rendi mento decrescente das terras Mas pensava Ricardo o obstáculo ao crescimento cons tituído pelo rendimento decrescente das terras agrícolas pode ser superado pela abertura ao mundo a especialização internacional e a livre importação do trigo do estrangeiro Mill depois da abolição das Com Laws retoma a teoria de Ricardo no seu Prin cipies ofPolitical Economy with some o f their Applications to Social Philosophy 1848 mas dá uma versão mais evolutiva e a mais longo prazo que se aproxima das teses es tagnacionistas modernas A baixa da taxa de lucro é a tradução contábil no nível da em presa da marcha da sociedade para o estado estacionário no qual não haverá mais acumu lação pura de capital A lei dos rendimentos decrescentes está nas origens desta baixa do lucro até zero 12 Numa análise de inspiração keynesiana podese dizer no máximo que a taxa de lucro da última unidade de capital cujo investimento é necessário para manter o ple no emprego eficácia marginal do capital não deve ser inferior à taxa de juros do di nheiro tal como a determina a preferência pela liqüidez dos que possuem dinheiro vivo Mas um esquema deste tipo é na verdade dificilmente integrável à teoria econômica marxista cujos instrumentos intelectuais são prémarginalistas Há aliás uma certa con tradição na análise econômica de Marx entre a lei da baixa tendencial da taxa de lucro que implicitamente supõe a lei dos escoamentos dos autores clássicos e a tese da crise pelo subconsumo dos trabalhadores que implica o bloqueio do crescimento por falta de demanda efetiva A distinção entre curto prazo e longo prazo não permite solucio nar o problema porque essas duas teorias não têm por objetivo explicar a tendência longa e as flutuações mas sim uma crise geral de todo o sistema econômico Cf Joan Robinson An Essay on Marxian Economics Londres Macmillan 1942 13 Em carta escrita a Joseph Weydemeyer em 5 de março de 1852 Marx afirma No que me concerne não me cabe o mérito de ter descoberto nem a existência das clas ses na sociedade moderna nem a luta das classes entre si Muito tempo antes de mim historiadores burgueses já tinham descrito o desenvolvimento histórico dessa luta de classes e economistas burgueses haviam mostrado a anatomia econômica dessas lutas O que fiz de novo foi 1 demonstrar que a existência das classes só está ligada a fases de determinado desenvolvimento histórico da produção 2 que a luta das classes con duz necessariamente à ditadura do proletariado 3 que essa ditadura constitui apenas a transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes In Karl MarxF Engels Études philosophiques Paris Éd Sociales 1951 p 125 14 A Kojève Introduction à la lecture de Hegel Paris Gallimard 1947 186 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Para a interpretação marxista de Hegel vide também G Lukács Der Junge Hegel ZuriqueViena 1948 e a análise desse livro feita por J Hyppolite em Etudes sur Marx et Hegel Paris M Rivière 1955 pp 82104 G Lukács chega a chamar de lenda reacionária o tema de um período teológico em Hegel e estuda a crítica da obra de Adam Smith feita por Hegel nas suas obras de juventude Hegel teria visto as contradições essenciais do capitalismo sem naturalmen te ter chegado a encontrar a solução o que estava reservado para Marx expor 15 G Gurvitch La sociologie de Karl Marx Paris Centre de Documentation Uni versitaire 1958 mimeografado 93 pp Les fondateurs de la sociologie contemporai ne I SaintSimon sociologue Paris Centre de Documentation Universitaire 1955 mi meografado G Gurvitch pretendendo reduzir ao máximo a herança hegeliana de Marx deu uma interpretação das origens do pensamento marxista que enfatiza o saintsimonismo de Marx Mostra a meu ver de modo convincente as influências saintsimonianas sobre o pensamento do jovem Marx Marx descende em linha direta de SaintSimon e do saintsimonismo de Hegel ele apenas toma a terminologia e o hegelianismo de esquer da nada mais é do que a influência saintsimoniana às vezes abertamente reconhecida sobre certos hegelianos Proudhon por seu lado utiliza enormemente SaintSimon mas é um saintsimoniano revoltado que submete o saintsimonismo a uma crítica arrasado ra Mas ao mesmo tempo foi ele que ao democratizar o saintsimonismo e associálo ao movimento operário levou Marx a uma ligação mais profunda com o saintsimonismo um saintsimonismo proudhonizado que foi a fonte principal de Marx não apenas no início mas ao longo de todo seu itinerário intelectual In SaintSimon sociologue op cit pp 78 Mais adiante depois de citar algumas frases de SaintSimon do tipo A ciência da liberdade tem seus fatos e suas generalidades como todas as outras Se qui sermos ser livres criemos nós mesmos nossa liberdade e não a esperemos de fora Gurvitch escreve Os textos de juventude de Marx principalmente a quarta tese sobre Feuerbach levaram alguns marxistas a falar da filosofia de Marx como de uma filoso fia da liberdade ou de uma ciência da liberdade É a posição de Henri Lefebvre que atri bui a Hegel o filósofo mais fatalista que se conhece a origem desse aspecto do pen samento de Marx Na realidade a ciência da liberdade em Marx na medida em que é possível encontrar uma vem com toda a evidência de SaintSimon Ibid p 25 Não duvido de que Marx possa ter no seu meio encontrado as idéias saintsimo nianas pelo simples motivo de que essas idéias circulavam na Europa quando Marx era jovem e se encontravam sob uma forma ou outra por toda a parte particularmente na imprensa da mesma forma como encontramos hoje por exemplo sob todas as formas as teorias sobre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento No entanto se Marx co nheceu as idéias saintsimonianas ele não pôde extrair delas aquilo em que a meu ver consiste o centro de sua própria sociologia Marx encontrou no saintsimonismo a oposição entre os dois tipos de sociedades as sociedades militares e as sociedades industriais as idéias sobre a aplicação da ciên cia à indústria a renovação dos métodos de produção a transformação do mundo graças à indústria Mas o centro do pensamento marxista não é uma concepção saintsimonia na ou comtista da sociedade industrial O centro do pensamento marxista é o caráter OS FUNDADORES 187 contraditório da sociedade industrial capitalista Ora a idéia das contradições intrínse cas do capitalismo não está incluída na herança de SaintSimon ou de Comte SaintSimon e Comte têm em comum a primazia da idéia de organização sobre a idéia de conflitos sociais Nem um nem outro acredita que os conflitos sociais sejam a mola principal dos movimentos históricos Nem um nem outro pensa que a sociedade de seu tempo esteja dividida por contradições insolúveis A meu ver o centro do pensamento marxista está no caráter contraditório da socie dade capitalista e no caráter essencial da luta de classes por isso recusome a ver a influência de SaintSimon como uma das principais influências que formaram o pen samento marxista Sobre o problema das relações entre Marx e SaintSimon ver também o artigo de Aimé Patri SaintSimon et Marx Le contrat social janeiro 1961 vol V n 1 16 La phénoménologie de 1esprit trad francesa de Jean Hyppolite 2 vols Paris Aubier 1939 e 1941 Précis de Vencyclopédie des sciences philosophiques trad de J Gibelin Paris Vrin La phénoménologie de Vesprit é de 1807 a Encyclopédie des sciences philosophiques teve durante a vida de Hegel três edições 17 Grundlinien der Philosophie des Rechts publicado por Hegel em 1821 em Ber lim Tratase de uma seção mais desenvolvida da Enciclopédia Tradução francesa Hegel Principes de la philosophie du droit trad de A Kaan Paris prefácio de J Hyppolite Gallimard 1940 reeditado na coleção Idées Paris Gallimard 1963 18 Existem dois textos que contêm uma crítica da Filosofia do direito de Hegel O primeiro é Kritik des Hegelschen Rechtsphilosophie Einleitung texto curto já era conhecido pois foi publicado por Marx em 1844 em Paris na revista que dirigia com A Ruge Deutschfranzõsische Jahrbücher ou Annales francoallemandes O outro é Kritik des Hegelschen Staatsrechts d i Hegels Rechtsphilosophie texto muito mais longo comportando uma crítica linha a linha de uma fração da Philosophie du droit de Hegel e que foi publicado somente nos anos trinta por D Riazanov em Moscou em nome do Instituto MarxEngels e por Landshut e Meyer em Leipzig Sobre esse ponto ver o estudo de J Hyppolite La conception hégélienne de 1État et sa critique par K Marx in Études sur Marx et Hegel Paris M Rivière 1955 pp 120141 19 Alguns textos idílicos de Marx chegam a pintar uma sociedade futura em que os homens iriam pescar pela manhã trabalhariam à tarde e à noite cultivariam o espí rito O que não é uma representação absurda Conheci de fato trabalhadores de kibutz em Israel que liam à noite as obras de Platão Mas esse é um caso excepcional pelo rnenos até agora Na Ideologia alemã Marx escreve A partir do momento em que o trabalho co meça a ser dividido cada um passa a ter uma esfera de atividade exclusiva e determi nada que lhe é imposta e da qual não pode sair ele é caçador pescador ou crítico e tem que permanecer para não perder os meios de vida na sociedade comunista no entan to em que o indivíduo não está preso a uma esfera exclusiva de atividade mas pode aperfeiçoarse no ramo que mais lhe agrade a sociedade regulamenta a produção geral e me dá assim a possibilidade de fazer uma coisa hoje outra amanhã de caçar pela ma nhã pescar depois do almoço e praticar a pecuária de tarde de fazer crítica depois do 188 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO jantar de acordo com meu belprazer sem nunca me tornar caçador pescador criti co Desse modo serão abolidos este fracionamento da atividade social esta conso lidação do nosso próprio produto num poder objetivo que nos domina escapando ao nosso controle contrapondose às nossas expectativas reduzindo a nada nossos cálcu los Uidéologie allemande trad de Renée Cartelle baseada na edição Mega Paris Éd Sociales 1962 pp 3132 20 Oeknomischphilosophische Manuskripte Textos escritos por Marx em Paris em 1844 e que ficaram inéditos até 1932 data em que foram editados por D Riazanov nas Éditions Mega I e também por S Landshut e J P Meyer em dois volumes de textos de Marx com o título Der Historische Materialismus A Krõner Leipzig A edição francesa de J Molitor t VI de Oeuvres philosophiques edição Costes foi feita com base na publicação de Leipzig que continha inúmeros erros Uma nova tradução fran cesa com base na edição Mega corrigida foi feita por E Bottigelli e publicada com o títu lo Manuscrits de 1844 Économie politique et philosophie para a edição das obras com pletas de Karl Marx das Éd Sociales Oeuvres complètes Paris 1962 Há também uma tradução de Rubel no 2 volume da edição Pléiade 1968 21 Em Hegel os três termos traduzidos em francês por aliénation alienação são Verãusserung Entãusserung e às vezes Entfremdung Para Hegel a alienação é o mo mento dialético da diferença da cisão entre o sujeito e a substância É um processo enriquecedor é preciso que a consciência percorra as múltiplas alienações para se enri quecer com determinações que no fim a constituirão como uma totalidade No prin cípio do capítulo sobre o Saber Absoluto Hegel escreve A alienação da consciência de si coloca a reificação e esta alienação não tem só um significado negativo mas tam bém positivo não é só para nós ou em si porém para ela mesma Para ela a negativa do objeto ou a autosupressão deste tem significação positiva em outras palavras a cons ciência de si conhece esta nulidade do objeto porque ela própria se aliena porque nessa alienação ela se coloca a si mesma como objeto ou em virtude da unidade indivisível do serparasi coloca o objeto como simesmo Assim é o movimento da consciência e no movimento ela é a totalidade de seus momentos A consciência deve se referir ao objeto segundo a totalidade de suas determinações e têlo apreendido segundo cada uma dentre elas Phénoménologie deVesprit trad Hyppolite t II pp 293294 Marx dá uma interpretação diferente da alienação porque num certo sentido a totalidade já é dada desde o ponto de partida JY Calvez La pensée de Karl Marx Paris Éd du Seuil 1956 p 53 Segundo Marx Hegel teria confundido objetivação isto é a exteriorização do homem na natureza e no mundo social e alienação Como escreve J Hyppolite comentando Marx A alienação não é a objetivação A objetiva ção é natural Não é uma maneira de a consciência se tomar estranha a si mesma mas de se exprimir naturalmente Logique et existence Paris PUF 1953 p 236 Marx se expressa assim O ser objetivo age de maneira objetiva e não agiria objetivamente se a objetividade não estivesse incluída na determinação de sua essência Ele não cria ele só estabelece objetos porque ele próprio é ordenado pelos objetos porque na ori gem ele é natureza Manuscrits de 1844 Éd Sociales p 136 Essa distinção baseada num naturalismo conseqüente segundo o qual o homem é de modo imediato ser da natureza ibid permite que Marx retenha apenas o aspec OS FUNDADORES 189 to crítico da noção de alienação e das determinações sucessivas da consciência tais como estão expostas na Fenomenologia do espírito A Fenomenologia é uma crítica oculta ainda obscura por si mesma e mistificante mas na medida em que ela aborda a alienação do homem embora o homem apareça apenas sob a forma de espírito encontramos ocultos nela todos os elementos da crítica e estes já estão freqüentemen te preparados e elaborados de uma maneira que ultrapassa de muito o ponto de vista hegeliano Ibid p 131 Para um comentador de Hegel como Jean Hyppolite essa diferença radical entre Hegel e Marx na concepção da alienação tem sua origem no fato de que enquanto Marx parte do homem como ser da natureza ou seja de uma positividade que não é em si uma negação Hegel descobriu essa dimensão da pura subjetividade que é nada op cit p 239 Para Hegel no início dialético da história existe o desejo sem limite do reconhecimento o desejo do desejo do outro um poder sem limite porque sem positi vidade primeira p 241 22 Essa ambigüidade no pensamento de Marx foi salientada particularmente por Kostas Papaioannou La fondation du marxisme in Le contrat social n 6 novem brodezembro de 1961 vol V Uhomme total de Karl Marx in Preuves n 149 julho de 1963 Marx et la critique de 1aliénation in Preuves novembro de 1964 Para Kostas Papaioannou haveria uma oposição radical entre a filosofia do jovem Marx tal como ela se expressa por exemplo nos Manuscritos de 1844 e a filosofia da maturidade tal como é expressa principalmente no terceiro livro de O capital Marx teria substituído o pietismo produtivista que consideraria o trabalho como a essência exclusiva do homem e a participação não alienada na atividade produtiva como o ver dadeiro fim da existência por um saber bem clássico para o qual o desenvolvimento humano que é o único a possuir o valor de um fim em si e que é o verdadeiro reino da liberdade começaria além do domínio da necessidade 23 Essa visão objetiva pode ser considerada aliás segundo os observadores co mo favorável ou desfavorável à paz Uns dizem enquanto os dirigentes soviéticos esti verem convencidos da morte necessária do capitalismo o mundo viverá numa atmos fera de crise Podese contudo dizer no sentido contrário como o faz um sociólogo in glês enquanto os soviéticos acreditarem na sua filosofia não compreenderão nem sua própria sociedade nem a nossa convencidos do seu triunfo necessário eles nos deixa rão viver em paz Praza aos céus que eles continuem a acreditar na sua filosofia 24 Vide JeanPaul Sartre Les communistes et la paix Temps modernes 81 8485 e 101 reeditado in Situations VI Paris Gallimard 1965 384 pp ver também Situations VII Paris Gallimard 1965 342 pp e Critique de la raison dialectique Paris Gallimard 1960 Maurice MerleauPonty Sens etnonsens Paris Nagel 1948 Humanisme et terreur Paris Gallimard 1947 Les aventures de la dialectique Paris Gallimard 1953 25 Sobre a interpretação kantiana do marxismo vide Max Adler Marxistische ProblemeMarxismus und Ethik 1913 Karl Vorlánder Kant und Marx 2 ed 1926 26 L Goldmann Recherches dialectiques Paris Gallimard 1959 27 F Engels AntiDühring O título alemão original é Herrn Eugen Dühring s Umwãlzung der Wissenschaft Publicado primeiramente em Vorwàrts e Volksstaat em 190 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 18771878 Existem duas edições francesas trad de Bracke Éd Costes 3 vols 19311933 trad de Bottigelli Éd Sociales Paris 1950 Vale notar que o AntiDühring foi publicado em vida de Marx que ajudou seu amigo enviandolhe notas sobre diversos pontos de história do pensamento econômico as quais são utilizadas parcialmente por Engels no texto definitivo Cf Karl Marx Oeuvres 11 pp 14941526 J Stalin Matérialisme dialectique et matèrialisme historique 1937 trecho da Histoire du Parti communiste bolchevik Pa ris Éd Sociales 1950 28 Lenin Matérialisme et empiriocriticisme Paris Éd Sociales 1948 O livro é de 1908 e Lenin expõe nessa obra um materialismo e um realismo radicais O mundo material percebido pelos sentidos e ao qual nós mesmos pertencemos é a única realida de nossa consciência e nosso pensamento por mais suprasensíveis que pareçam não são mais do que produtos de um órgão material e corporal o cérebro A matéria não é um produto do espírito mas o próprio espírito é o produto superior da matéria ou ainda As leis gerais do movimento tanto do mundo quanto do pensamento humano são idênticas no fundo mas diferentes na sua expressão pois o cérebro humano pode aplicálas cons cientemente enquanto na natureza elas avançam de maneira inconsciente sob a forma de uma necessidade exterior através de uma sucessão infinita de coisas aparentemente for tuitas Esse livro iria tomarse a base do marxismo soviético ortodoxo Numa carta a Gorki de 24 de março de 1908 Lenin reclamará o direito como homem de partido de tomar posição contra as doutrinas perigosas embora ao mesmo tempo propusesse a seu correspondente um pacto de neutralidade em relação ao empiriocriticismo que não justificava dizia uma luta divisionista 29 O ateísmo porém está associado à essência do marxismo de Karl Marx Podese ser crente e socialista mas não crente e discípulo fiel do marxismoleninismo 30 No prefácio à Crítica da economia política Marx escreve As relações jurí dicas não se podem explicar por si mesmas melhor do que as formas do Estado nem por si mesmas nem pela pretensa evolução geral do espírito humano elas se enraízam nas condições materiais da vida Oeuvres 11 p 272 Mais adiante O conjunto das relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade o fundamento real sobre o qual se assenta um edifício jurídico e político Ou ainda As formas jurídicas políticas religiosas artísticas filosóficas em suma as formas ideológicas com as quais os homens tomam consciência do conflito e o levam até o fim Ibid p 273 Um dos capítulos de A ideologia alemã se intitula Relações do Estado e do di reito com a propriedade De modo geral para Marx o Estado e o direito não estão in cluídos nas condições materiais da vida dos povos e são a expressão da vontade domi nante da classe que detém o poder no Estado 31 Eis o texto mais significativo de Marx Le capital liv III t II Éd Sociales pp 102104 Constituição de sociedades por ações Conseqüências 1 Enorme am pliação da escala de produção e empresas que teriam sido inviáveis com capitais isola dos Ao mesmo tempo empresas que antes eram governamentais se constituem em sociedades anônimas 2 O capital que por definição está baseado no modo de pro dução social e pressupõe uma concentração social de meios de produção e de força de trabalho revestese aqui diretamente da forma de capital social capital de indivíduos OS FUNDADORES 191 diretamente associados por oposição ao capital privado essas empresas se apresen tam portanto como empresas sociais por oposição às empresas privadas Isso é a su pressão do capital como propriedade privada dentro dos próprios limites do modo de produção capitalista 3 Transformação do capitalista realmente ativo num simples di rigente e administrador do capital alheio e dos proprietários de capital em simples pro prietários em simples capitalistas financeiros É a supressão do modo de produção capitalista no interior do próprio modo de produção capitalista portanto uma contradi ção que se destrói a si mesma e que com toda a evidência se apresenta como uma sim ples fase transitória para uma nova fase de produção É também como uma contradi ção semelhante que essa fase de transição se apresenta Em certas esferas ela estabe lece o monopólio provocando assim a intromissão do Estado Faz renascer uma nova aristocracia financeira uma nova espécie de parasitas sob a forma de fazedores de pro jetos de fundadores e de diretores simplesmente nominais um sistema completo de vigarice e de fraude em relação à criação à emissão e ao tráfico de ações Essa é a pro dução privada sem o controle da propriedade privada Em Marx o crítico e mesmo o panfletário nunca está distante do analista economista e sociólogo 32 Le capital liv III cap 52 Éd Sociales Paris 1960 pp 259260 Marx pros segue da seguinte forma É sem oposição na Inglaterra que a divisão econômica da so ciedade moderna conhece o seu desenvolvimento mais avançado e mais clássico No entanto mesmo nesse país a divisão em classes não aparece com uma forma pura Tam bém ali os estágios intermediários e transitórios atenuam as demarcações precisas mui to menores no campo do que nas cidades No entanto para o nosso estudo isso não tem importância Vimos que o modo capitalista de produção tende constantemente é a lei da sua evolução a separar sempre cada vez mais meios de produção e trabalho e a concentrar cada vez mais em grupos importantes esses meios de produção dissemina dos transformando assim o trabalho em trabalho assalariado e os meios de produção em capital Por outro lado esta tendência tem como corolário a separação da proprie dade da terra que se torna autônoma em relação ao capital e ao trabalho ou ainda a transformação de toda a propriedade da terra em uma forma de propriedade que cor responde ao modo capitalista de produção A questão inicial é a seguinte O que constitui uma classe A resposta decorre naturalmente da resposta que se dê a esta outra questão o que faz com que os operá rios assalariados os capitalistas e os proprietários de terras constituam as três grandes classes da sociedade À primeira vista é a identidade das rendas e das fontes de rendas Temos aí três grupos sociais importantes cujos membros os indivíduos que os constituem vivem respectivamente do salário do lucro e do rendimento da terra da utilização da sua for ça de trabalho de seu capital e de sua propriedade No entanto desse ponto de vista os médicos e os funcionários por exemplo cons tituiriam também eles duas classes distintas porque pertencem a dois grupos sociais dis tintos cujos membros tiram seus rendimentos da mesma fonte Esta distinção se apli caria da mesma forma à infinita variedade de interesses e de situações que a divisão do trabalho social provoca dentro da classe operária da classe capitalista e dos proprie tários de terras sendo que estes últimos por exemplo estão divididos em viticultores 192 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO proprietários de campos de florestas de minas de pesquisas etc Neste ponto o ma nuscrito é interrompido Friedrich Engels 33 As lutas de classes na França 18481850 Escrito entre janeiro e outubro de 1850 O texto que só seria publicado em brochura e com esse título em 1895 se com põe em sua maior parte de uma série de artigos publicados nos quatro primeiros núme ros da Neue Rheinische Zeitung revista econômica e política cuja publicação teve iní cio em Londres no princípio de março de 1850 ver Karl Marx Les luttes de classes en France Paris Éd Sociales 1952 0 18 brumário de Luís Bonaparte Escrito entre dezembro de 1851 e março de 1862 e publicado pela primeira vez em Nova York em 20 de maio de 1852 por Weydemeyer Reeditado por Engels em 1885 foi traduzido em francês pela primeira vez em 1891 e publi cado em Lille Ver Le 18 brumaire de Louis Bonaparte Paris Éd Sociales 1956 34 No primeiro tomo de O capital Marx escreve Agente fanático da acumula ção o capitalismo força os homens sem piedade ou trégua a produzir por produzir obrigandoos assim instintivamente a desenvolver as potências produtivas e as condi ções materiais que só elas podem formar a base de uma sociedade nova e superior O capitalista só é respeitável na medida em que é o capital feito homem Nesse papel ele é como o entesourador dominado por sua paixão cega pela riqueza abstrata o valor Mas o que neste parece ser uma mania individual é no outro o efeito do mecanismo social do qual ele é apenas uma engrenagem O desenvolvimento da produção capita lista necessita um aumento contínuo do capital colocado numa empresa e a concorrên cia impõe as leis imanentes da produção capitalista como leis coercitivas externas a cada capitalista individual Ela não lhe permite conservar seu capital sem aumentálo e ele não pode continuar a aumentálo a não ser com uma acumulação progressiva Oeu vres 11 p 1046 ou ainda Poupai poupai sempre isto é retransformai sem cessar a maior parte possível da maisvalia ou do produto líquido em capital Acumular por acumular produzir por produzir essa é a palavra de ordem da economia política que proclama a missão histórica do período burguês E em momento algum ela se iludiu sobre as dores de parto da riqueza mas para que servem as lamentações que não alte ram em nada as fatalidades históricas Desse ponto de vista se o proletário é apenas uma máquina para produzir maisvalia o capitalismo não é senão uma máquina para capitalizar essa maisvalia Ibid pp 10991100 35 A frase de Marx é a seguinte Entre a sociedade capitalista e a sociedade co munista se situa o período de transformação revolucionária de uma para outra A este período corresponde igualmente uma fase de transição política em que o Estado só po deria ser a ditadura revolucionária do proletariado Oeuvres 11 p 1429 Marx em prega também essa expressão na carta já citada na nota 13 a Joseph Weydemeyer de 5 de março de 1852 e se não a idéia a palavra já se encontrava no Manifesto do Par tido Comunista O proletariado servirseá de sua supremacia política para arrancar pouco a pouco à burguesia toda espécie de capital para centralizar todos os instru mentos de produção nas mãos do Estado isto é do proletário organizado como clas se dominante e para aumentar o mais rapidamente possível a massa das forças pro dutivas Oeuvres t I p 181 OS FUNDADORES 193 Sobre a freqüência com que a expressão ditadura do proletariado é empregada por Marx e Engels ver Karl Draper Marx and the Dictatorship of the Proletariat Cader nos do ISEA série 5 n 6 novembro de 1962 36 Esta desvalorização da ordem política reduzida à econômica encontramos também em SaintSimon e nos liberais de Manchester SaintSimon escrevera no Lor ganisateur vol IV pp 197198 Numa sociedade organizada para o objetivo positivo de trabalhar para a sua pros peridade por meio das ciências das belasartes e das artes aplicadas em oposição por tanto às sociedades militares e teológicas o ato mais importante aquele que consiste em determinar a direção em que a sociedade deve caminhar não pertence mais aos ho mens investidos de funções governamentais Ele é exercido pelo próprio corpo social Além disso o objetivo e o objeto de uma tal organização social estão tão claros tão de terminados que não há mais lugar para o arbítrio dos homens nem mesmo para o das leis Numa tal ordem de coisas os cidadãos encarregados das diferentes funções sociais mesmo as mais elevadas sob certo ponto de vista preenchem apenas papéis subalter nos uma vez que sua função qualquer que seja a sua importância consiste apenas em marchar numa certa direção que não foi escolhida por eles A ação de governar no senti do de ação de comandar é então nula ou quase nula Texto citado por G Gurvitch no Curso sobre os Fundadores da Sociologia Contemporânea Op cit SaintSimon p 29 Sobre o pensamento político de Marx ver Maximilien Rubel Le concept de dé mocratie chez Marx In Le contraí social julho agosto de 1962 Kostas Papaioannou Marx et 1état modeme in Le contrat social julho de 1960 37 Georg Lukács Geschichte und Klassenbewusstsein Berlim 1923 Tradução francesa Histoire et conscience de classe Paris Éd de Minuit col Arguments 1960 38 Para uma análise mais detalhada vide meu estudo Uimpact du marxisme au XXe siècle Boletim de SEDEIS Études n 906 janeiro de 1965 Bibliografia OBRAS DE KARL MARX A bibliografia de Karl Marx é em si mesma quase que uma ciência autônoma não poderíamos dar aqui portanto um repertório completo das obras de Marx Para tanto aliás basta remeter o leitor às duas obras de Rubel Rubel Maximilien Bibliographie des oeuvres de Karl Marx Contém um apêndice com um repertório das obras de F Engels Paris Rivière 1956 Rubel Maximilien Supplément à la bibliographie des oeuvres de Karl Marx Paris Rivière 1960 Em francês há três grandes edições das obras de Marx I Oeuvres completes de Karl Marx Paris Costes Esta tradução compreende Oeuvres philosophiques 9 vols Misère de la philosophie 1 vol Révolution et contrerévolution en Allemagne 1 vol esta obra é hoje atri buída a F Engels Karl Marx devant les jurés de Cologne Révélations sur le procès des com munistes 1 vol Oeuvres politiques 8 vols Herr Vogt et le 18 brumaire de Louis Bonaparte 3 vols Le capital 14 vols Histoire des doctrines économiques 8 vols Correspondance K MarxF Engels 9 vols Apesar do título esta edição não é completa Além disso a tradução principal mente das obras filosóficas de juventude foi feita a partir de textos alemães incomple OS FUNDADORES 195 tos e inexatos Hoje em dia esta edição está esgotada No entanto continua sendo um instrumento de trabalho indispensável pois certas obras como Histoire des doctrines économiques ou Théorie sur la plusvalue só se encontram traduzidas aí II Karl Marx Oeuvres Bibliothèque de la Pléiade Paris Gallimard Esta edição organizada por M Rubel atualmente se compõe de dois volumes O primeiro surgido em 1963 compreende com uma única exceção textos publicados pelo próprio Marx ou seja Misère de la philosophie 1847 Discours sur le libreéchange 1848 Manifeste communiste 1848 Travail salarié et capital 1849 Introduction générale à la critique de Véconomie politique redigido em 1857 Critique de Véco nomie politique 1859 Uadresse inaugurale et les status de VAIT 1869 Salaire prix et plusvalue 1865 Le capital liv I 1867 Critique du programme de Gotha 1875 Para o livro I de Le capital foi adotada a tradução feita em 1875 por Joseph Roy Marx colaborou longamente nessa tradução e em sua nota para os leitores franceses escreveu que ela possuía um valor científico independente do original e deveria ser consultada mesmo pelos leitores familiarizados com a língua alemã O segundo volume que surgiu em 1968 compreende textos econômicos que não foram publicados pelo próprio Marx ou seja Economie et philosophie os manuscritos parisienses de 1844 Salaire notas de 1847 Príncipes d une critique de Véconomie politique redigidos em 18571858 Matériaux pour Véconomie redigidos em 18611865 os livros II e III de Le capital Em apêndice encontramse notas e cartas de Marx Esta edição é um monumento de erudição O primeiro volume contém uma longa cronologia bibliográfica organizada por M Rubel o segundo contém uma introdução de M Rubel sobre a formação do pensamento econômico de Marx e a história dos textos econômicos Mas nos livros II e III de Le capital a escolha dos textos e apresentação dife rem das de Engels o que toma o livro pouco utilizável Lamentase também que M Rubel tenha julgado possível modificar a apresentação do livro I de Le capital que no entanto havia sido editada quando Marx era vivo As citações das obras cuja tradução foi publicada no primeiro volume foram feitas segundo esta edição III Oeuvres complètes de Karl Marx Paris Éd Sociales Ainda não inteiramente publicada como a anterior esta edição cujas traduções são feitas a partir das edições do Instituto MarxEngels de Moscou contém atualmente as grandes obras históricas Les luttes de classe en France 18481850 Le 18 brumaire de Louis Bonaparte La guerre civile en France os três livros de Le capital liv I 3 vols liv II 2 vols liv III 3 vols A tradução do livro I é a que foi realizada em 1875 por Joseph Roy e revista por Marx A tradução dos livros II e III é nova e foi feita a partir da edição de Engels Esta edição de Le capital é preciosa pois contém ao contrário da de M Rubel os prefácios e introdução integrais de Marx e Engels 196 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Contribution à la critique de l économie politique Travail salariè et capital e Salaire prix et projit Misère de la philosophie Lidéologie allemande edição integral Les manuscrits de 1844 edição integral Manifeste du parti communiste Critique des programmes de Gotha et dErfurt La nouvelle gazette rhénane 11 As citações das obras de Marx que não foram publicadas no tomo I da edição da Pléiade foram feitas de acordo com esta edição IV Além dessas duas últimas edições gerais devem ser assinaladas três edições de tex tos particulares Marx Karl La question juive col 1018 Paris Union Générale dÉditions 1968 Marx Karl Fondements de la critique de l économie politique Paris Anthropos 11 1967 t II 1968 Marx Karl Lettres à Kugelman Paris Anthropos 1967 V Há numerosas antologias das obras de Marx Citemos entre outras Marx Karl Pages choisies pour une éthique socialiste seleção de M Rubel Paris Rivière 1948 Marx Karl Oeuvres choisies seleção de N Guterman e H Lefebvre col Idées Paris Gallimard 11 1963 t II 1966 Marx K e Engels F Étudesphilosophiques nova ed Paris Éd Sociales 1961 Marx K e Engels F Sur la littérature e t l art Paris Éd Sociales 1954 Marx K e Engels F Sur la religion Paris Éd Sociales 1960 Marx K e Engels F Lettres sur Le capital Paris Éd Sociales 1964 BIOGRAFIAS DE MARX Berlin I Karl Marx sa vie son oeuvre col Idées Paris Gallimard 1962 Blumenberg W Marx Paris Mercure de France 1967 Comu A Karl Marx sa vie et son oeuvre Alcan 1934 Comu A Karl Marx et Friedrich Engels Paris PUF 3 vols I Les annèes d enfance et de jeunesse la gaúche hégélienne 181818201844 1955 II Du libéralisme dé mocratique au communisme La gazette rhénane Les annales francoallemandes 18421844 1958 III Marx à Paris 1962 Mehring F Karl Marx Geschichte seines Lebens Leipzig Soziologische Verlagsanstalt 1933 tradução inglesa Karl Marx the Story ofhis Life Londres Allen and Unwin 1966 Nicolaievski B e MaenchenHelfen O Karl Marx Paris Gallimard 1937 Riazanov D Marx et Engels Paris Anthropos 1967 Riazanov D Marx homme penseur et révolutionnaire Paris Anthropos 1968 OS FUNDADORES 197 OBRAS CONSAGRADAS AO PENSAMENTO DE MARX Althusser L Pour Marx Paris Maspéro 1965 Althusser L Rancière J e Macheray P Lire Le capital 11 Paris Maspéro 1965 Althusser L Balibar E e Establet R Lire Le capital t II Paris Maspéro 1965 Andler Ch Le manifeste communiste de Karl Marx et Engels Introduction historique et commentaire Paris Rieder 1925 Bendix R e Lipset S M Karl Marxs Theory of Social Classes in R Bendix e S M Lipset eds Class Status and Power 2 ed Londres Routledge and Kegan 1967 pp 611 Calvez J Y La pensée de Karl Marx Paris Le Seuil 1956 Dahrendorf R Class and Class Conflict in Industrial Society Londres Routledge and Kegan 1959 primeira parte The Marxian Doctrine in the Light of Historical Changes and Sociological Insights pp 3154 Fallst J Marx et le machinisme Paris Cujas 1966 Gurvitch G La vocation actuelle de la sociologie Paris PUE 1950 Gurvitch G La sociologie de Karl Marx Paris CDU 1958 Hook S From Hegel to Marx Studies in the Intellectual Development of Karl Marx Nova York Reynal Hitchcock 1936 Lefebvre H Sociologie de Marx Paris PUF 1966 Lefebvre H Pour connaitre la pensée de Karl Marx Paris Bordas 1947 Lichtheim G Marxism an Historical and Criticai Study Nova York Praeger 1961 Lindsay A D Karl Marx s Capital Londres Oxford University Press 1931 Pareto V Les systèmes socialistes Paris Girard et Brière 11 1902 t II 1903 os capí tulos sobre Marx estão no t II pp 322456 Parsons T Sociological Theory and Modem Society Nova York The Free Press 1967 cap 4 pp 102135 Some Comments on the Sociology of Karl Marx Rubel M Karl Marx Essai de biographie intellectuelle Paris Rivière 1957 Rubel M Karl Marx devant le bonapartisme Paris La Haye Mouton 1960 Schumpeter J Capitalisme socialisme et démocratie Paris Payot 1950 só a primeira parte deste livro intitulada La doctrine marxiste referese diretamente ao pen samento de Marx pp 65136 OBRAS SOBRE A ECONOMIA POLÍTICA DE KARL MARX Bartoli H La doctrine économique et sociale de Karl Marx Paris Le Seuil 1950 Bénard J La conception marxiste du capital Paris Sedes 1952 Von BõhmBawerk E Histoire critique des théories de Vintérêt et du capital Paris Girard et Brière 11 1902 t II 1903 o capítulo relativo à teoria marxista do valor e da exploração está no tomo II pp 70136 Dickinson H D The Falling Rate of Profit in Marxian Economics The Review of Economic Studies fevereiro de 1957 198 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Fellner W Marxian Hypotheses and Observable Trends under Capitalism a Modemized Interpretation Economic Journal março de 1957 Gottheil F M Marx s Economic Predictions Evanston Northwestern University Press 1966 Lange O Économie politique 11 Problèmes généraux Paris PUF 1960 Lange O Marxian Economics and Modern Economic Theory The Review of Eco nomic Studies junho de 1935 Luxemburg R Uaccumulation du capital Paris Maspéro 1967 2 vols Mandei E La formation de la pensée économique de Karl Marx Paris Maspéro 1967 Robinson J An Essay on Marxian Economics Londres Mac Millan 1942 Samuelson P A Wages and Interest Marxian Economic Models American Econo mic Review dezembro de 1957 Sweezy P M The Theory o f Capitalist Development Principies o f Marxian Political Economy Londres D Dobson 1946 Sweezy P M de ed Karl Marx and the close o f his system de E von BõhmBawerk BõhmBawerks Criticism ofMarx de Hilferding juntamente com um apêndice de L von Bortkiewicz On the Correction o f Marx s Fundamental Theoretical Cons truction in the Third Volume o f Capital Nova York A M Kelley 1949 Esta obra contém três dos textos econômicos mais importantes suscitados pela teoria marxis ta do valor o ensaio de BõhmBawerk foi publicado pela primeira vez sob o títu lo Zum Abschluss des Marxschen Systems em Festgaben für Karl Knies em Berlim em 1896 A resposta de Hilferding é de 1904 Wiles P J D The Political Economy o f Communism Oxford Basil and Blackwell 1962 Wolfson M A Reappraisal o f Marxian Economics Nova York Columbia University Press 1966 O número da American Economic Review de maio de 1967 contém sob o título geral Das Kapital a Centenary Appreciation três artigos que reproduzem comu nicações feitas no congresso da American Economic Association de dezembro de 1966 A Ehrlich Notes on Marxian Model of Capital Accumulation P A Sa muelson Marxian Economics as Economics M Bronfenbrenner Marxian In fluences in Bourgeois economics A revista Économie et sociétés cadernos do ISEA série S junho de 1967 tam bém dedicou um número especial ao centenário de O capital Esse número contém artigos de M Rubel P Mattick e B Ollman assim como artigos inéditos de Marx e a reedição de um artigo de O Bauer OBRAS SOBRE O MARXISMO Aron R Ulam A B Wolfe B D et al De Marx à Mao Tsétoung Un siècle d in ternationale marxiste Paris CalmannLévy 1967 Chambre H Le marxisme en Union Soviétique Paris Le Seuil 1955 Drachkovitch M M ed Marxist Ideology in the Contemporary World Nova York Praeger 1966 OS FUNDADORES 199 Labedz Léopold ed Revisionism Essays on the History of Marxist Ideas Nova York Praeger 1962 Papaioannou K Les marxistes antologia comentada Paris Éd Jai lu 1965 Wetter GA Le matérialisme historique et le matérialisme dialectique t I Uidéolo gie soviétique contemporaine Paris Payot 1965 Wolfe BD Le marxisme Paris Fayard 1967 OBRAS EM PORTUGUÊS Engels Friedrich Dialéctica da natureza Tradução de Joaquim José Moura Ramos e Eduardo Lúcio Nogueira 2 ed Lisboa Presença São Paulo Martins Fontes sd Engels Friedrich A origem da família da propriedade privada e do Estado Tradução de H Chaves sd Lisboa Presença Laski Harold J O manifesto comunista de Marx e Engels Em apêndice A significação do Manifesto Comunista na sociologia e na economia por J A Schumpeter Trad de Regina Lúcia F de Moraes e Cassio Fonseca Apêndice 2 ed Rio de Janeiro Zahar 1978 Marx Karl O capital crítica da economia política Livro primeiro O processo de pro dução do capital Tradução de Reginaldo SantAnna 6 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1980 2 vols Marx Karl O capital critica da economia política Livro segundo O processo de cir culação do capital Trad de Reginaldo SantAnna Rio de Janeiro Civilização Bra sileira Lisboa Centro do Livro Brasileiro sd Marx Karl O capital crítica da economia política Livro terceiro O processo global da produção capitalista Tradução de Reginaldo SantAnna Rio de Janeiro Civi lização Brasileira Lisboa Centro do Livro Brasileiro sd 3 vols Marx Karl Contribuição à crítica da economia política Trad de Maria Helena B Alves São Paulo Martins Fontes 1977 Marx Karl Formações econômicas précapitalistas Introdução de Eric Hobsbawm Tradução de João Maia revista por Alexandre Addor 3 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1981 Marx Karl e Engels Friedrich A ideologia alemã crítica da filosofia alemã mais recente na pessoa dos seus representantes Feuerbach B Bauer e Stimer e do socialismo alemão na dos seus diferentes profetas Tradução de Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira 4 ed Lisboa Presença São Paulo Martins Fontes sd 2 vols Marx e Engels Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã e outros textos filosóficos antologia Tradução de Isabel Vale Fernando Guerreiro Antônio Reis e Antônio Melo 3 ed Lisboa Estampa sd Marx Karl Manuscritos econômicofilosóficos e outros textos escolhidos seleção de textos de José Arthur Gianotti Tradução de José Carlos Bruni Edgar Malagodi José Arthur Gianotti Walter Rehfeld e Leandro Konder 2 ed São Paulo Abril Cultural 1978 Os pensadores 200 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Marx Karl Miséria da filosofia Tradução de Luís M Santos Lisboa Estampa c 1 9 7 8 Marx Karl e Engels Friedrich Obras escolhidas São Paulo AlfaÔmega s d 3 vols Marx Karl A origem do capital a acumulação primitiva Tradução de Walter S Maia São Paulo Global sd Marx Karl e Engels Friedrich A sagrada família Trad de Fiama Hasse Pais Brandão João Paulo Casquilho e José Bettencourt 2 ed Lisboa Presença São Paulo Martins Fontes sd Marx Karl Teoria da maisvalia Trad de Reginaldo SantAnna Rio de Janeiro Ci vilização Brasileira 1981 Publicado o primeiro volume Marx Karl Textos filosóficos Tradução de Maria Flor Marques Simões Lisboa Es tampa sd Alexis de Tocqueville Quem procura na liberdade outra coisa que não seja a própria liber dade é feito para servir UAncien Régime et la Rèvolution III 3 p 217 Em geral Tocqueville não figura entre os inspiradores do pensamento so ciológico Essa falta de reconhecimento de uma obra importante me parece in justa Contudo tenho outra razão para analisar seu pensamento Ao analisar o pen samento de Montesquieu como o de Auguste Comte e Marx coloquei no cen tro de minhas análises a relação entre os fenômenos econômicos e o regime político ou o Estado partindo regularmente da interpretação que esses autores davam à sociedade em que viviam O diagnóstico do presente constituía o fato bá sico a partir do qual tentava interpretar o pensamento desses sociólogos Neste particular porém Tocqueville difere tanto de Comte como de Marx Em vez de pintar a preponderância do fato industrial como Comte ou do fato capitalista como Marx ele atribui primazia ao fato democrático Uma última razão da minha escolha é o modo como o próprio Tocqueville concebe sua obra ou seja em termos modernos o modo como concebe a so ciologia Tocqueville parte da determinação de certos traços estruturais das socie dades modernas para a comparação das diversas modalidades dessas socieda des Comte observava a sociedade industrial e sem negar que ela comporta di ferenças secundárias de acordo com as nações e os continentes acentuava as características comuns a todas as sociedades industriais Tendo definido a socie dade industrial pensava ser possível a partir dessa definição indicar as carac terísticas da organização política e intelectual de qualquer sociedade industrial Marx definiu o regime capitalista e descreveu certos fenômenos que segundo ele seriam encontráveis em todas as sociedades capitalistas Comte e Marx con cordam portanto quando insistem nos traços genéricos de toda sociedade seja industrial seja capitalista subestimando contudo a margem de variação da socie dade industrial ou do regime capitalista 202 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Tocqueville ao contrário constata certas características associadas à es sência de toda sociedade moderna ou democrática mas acrescenta que a par tir desses fundamentos comuns há uma pluralidade de regimes políticos possí veis As sociedades democráticas são liberais ou despóticas podem e devem assumir características distintas nos Estados Unidos e na Europa na Alemanha e na França Tocqueville é o sociólogo comparativista por excelência procura identificar o que é importante confrontando espécies de sociedade pertencen tes a um mesmo gênero ou a um mesmo tipo Nos países anglosaxões Tocqueville é considerado um dos mais importan tes pensadores políticos comparável a Montesquieu no século XVIII Na França porém nunca foi objeto de interesse por parte dos sociólogos porque a moderna escola de Durkheim se originou da obra de Auguste Comte Por isso os sociólo gos franceses acentuaram os fenômenos da estrutura social em detrimento dos fe nômenos das instituições políticas Provavelmente pelo mesmo motivo Tocque ville não costuma figurar na França na lista dos grandes mestres Democracia e liberdade Tocqueville escreveu dois livros principais A democracia na América e UAncien Régime et la Révolution O Antigo Regime e a Revolução Postuma mente foi publicado um volume de memórias da Revolução de 1848 e da sua passagem pelo Ministério dos Assuntos Estrangeiros como também sua corres pondência e discursos O essencial contudo são os dois grandes livros citados um sobre os Estados Unidos da América o outro sobre a França que constituem por assim dizer as duas partes de um díptico O livro sobre os Estados Unidos da América procura responder à seguinté indagação por que nos Estados Unidos a sociedade democrática é liberal UAncien Régime et la Révolution pergunta por que a França encontra tanta di ficuldade no curso da sua evolução rumo à democracia para manter um regi me político de liberdade Precisamos portanto definir inicialmente a noção de democracia ou de sociedade democrática que se encontra em toda a obra de Tocqueville do mes mo modo como definimos preliminarmente a noção de sociedade industrial em Auguste Comte e a de capitalismo em Marx Essa tarefa apresenta alguma dificuldade já se disse que Tocqueville em pregava constantemente a noção de sociedade democrática sem nunca definila com rigor Quase sempre ele emprega essa expressão para designar um certo tipo de sociedade mais do que um certo tipo de poder Há um texto de D e la dém ocra cie en Amérique bastante revelador da maneira de Tocqueville OS FUNDADORES 203 Se vos parece útil desviar a atividade intelectual e moral do homem para aten der às necessidades da vida material empregandoa na produção do bemestar se a razão vos parece mais útil aos homens do que o gênio se vossa finalidade não é criar virtudes heróicas mas hábitos tranqüilos se tendes preferência por ver vícios em vez de crimes e se preferis encontrar menos ações grandiosas a fim de encontrar menos ações hediondas se em lugar de agir no seio de uma sociedade brilhante vos parece suficiente viver no meio de uma sociedade próspera se por fim o objetivo principal do governo não é segundo vossa opinião dar a maior força ou a maior glória possível a todo o corpo da nação mas sim garantir a cada um dos indivíduos que a compõem o maior bemestar resguardandoo da miséria neste caso devereis igualizar as condições para constituir o governo democráti co Se não há mais tempo de fazer uma escolha e uma força superior à do homem vos arrasta sem consultar vossos desejos a um dos dois tipos de governo procu rai pelo menos extrair dele todo o bem de que é capaz conhecendo seus bons ins tintos e também suas más inclinações esforçaivos por promover os primeiros e restringir estas últimas O C 11 vol 1 p 256 Este texto muito eloqüente repleto de antíteses retóricas é característico do estilo da linguagem e diria mesmo do fundo do pensamento de Tocqueville A seus olhos a democracia consiste na igualização das condições Demo crática é a sociedade em que não subsistem distinções de ordens e de classes em que todos os indivíduos que compõem a coletividade são socialmente iguais o que não significa que sejam intelectualmente iguais o que é absurdo ou eco nomicamente iguais o que para Tocqueville é impossível A igualdade social significa a inexistência de diferenças hereditárias de condições quer dizer que todas as ocupações todas as profissões dignidades e honrarias são acessíveis a todos Estão portanto implicadas na idéia da democracia a igualdade social e também a tendência para a uniformidade dos modos e dos níveis de vida Mas se essa é a essência da democracia compreendese que o governo adap tado a uma sociedade igualitária seja aquele que em outros textos Tocqueville chama de governo democrático Se não há uma diferença essencial de condição entre os membros da coletividade é normal que a soberania pertença ao con junto dos indivíduos Voltase a encontrar assim a definição de democracia de Montesquieu e dos autores clássicos O conjunto do corpo social é soberano porque a participação de todos na escolha dos governantes e no exercício da autoridade é a expressão lógica de uma sociedade democrática isto é de uma sociedade igualitária Além disso uma sociedade dessa ordem em que a igualdade constitui a lei social e a democracia o caráter do Estado é também uma sociedade que tem por objetivo prioritário o bemestar do maior número possível É uma socieda de que não tem por objeto o poder ou a glória mas sim a prosperidade e a tran qüilidade uma sociedade que chamaríamos de pequenoburguesa Descendente 204 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de uma grande família Tocqueville oscila nos seus julgamentos a respeito da sociedade democrática entre a severidade e a indulgência entre uma reticência do seu coração e uma adesão hesitante da sua razão Se essa é a característica da sociedade democrática moderna creio que se pode compreender o problema central de Tocqueville a partir de Montesquieu autor que o próprio Tocqueville confessou ter tomado como modelo ao escre verá democracia na América O problema central de Tocqueville é o desenvol vimento de um dos problemas formulados por Montesquieu Segundo este último a república e a monarquia podem ser regimes mode rados com a preservação da liberdade enquanto o despotismo isto é o poder arbitrário de uma só pessoa não é um regime moderado e não pode sêlo Contudo entre os dois regimes moderados a república e a monarquia há uma diferença fundamental a igualdade é o princípio das repúblicas antigas e a de sigualdade das classes ordres e das condições constitui a essência das monar quias modernas ou pelo menos da monarquia francesa Montesquieu conside ra portanto que a liberdade pode ser preservada de acordo com dois métodos ou em dois tipos de sociedade as pequenas repúblicas da antiguidade cujo prin cípio era a virtude e nas quais os indivíduos eram e deviam ser o mais iguais possível as monarquias modernas que são grandes Estados cujo princípio é a honra e em que a desigualdade de condições é por assim dizer a própria con dição de liberdade Com efeito na medida em que cada um se julga obrigado a permanecer fiel aos deveres da sua condição o poder do soberano não se cor rompe em poder absoluto e arbitrário Em outras palavras na monarquia france sa tal como a concebe Montesquieu a desigualdade é o motor e a garantia da liberdade Contudo estudando a Inglaterra Montesquieu tinha examinado o regime representativo fenômeno novo para ele Constatara que naquele país a aristo cracia se dedicava ao comércio mas nem por isso se corrompia Tinha visto uma monarquia liberal baseada na representação e no primado da atividade mercantil O pensamento de Tocqueville pode ser considerado como o desenvolvi mento da teoria de Montesquieu sobre a monarquia inglesa Escrevendo depois da Revolução Tocqueville não pode conceber que a liberdade dos modernos tenha como fundamento e garantia a desigualdade das condições desigualdade cujos fundamentos intelectuais e sociais desapareceram Seria insensato querer restaurar a autoridade e os privilégios de uma aristocracia que fora destruída pela Revolução A liberdade dos modernos para falar à maneira de Benjamin Constant não se pode mais fundamentar como Montesquieu sugeriu na distinção das classes e dos estados A igualdade das condições se tomou o fato mais importante da so ciedade2 OS FUNDADORES 205 A tese de Tocqueville é então esta a liberdade não pode se fundamentar na desigualdade deve assentarse sobre a realidade democrática da igualdade de condições salvaguardada por instituições cujo modelo lhe parecia existir na América Mas que entendia Tocqueville por liberdade Tocqueville não escrevia à maneira dos sociólogos modernos e não nos deixou uma definição por crité rios Creio porém que não é difícil precisar de acordo com as exigências cien tíficas do século XX o que entendia por liberdade Penso aliás que sua con cepção se aproxima muito da de Montesquieu O primeiro termo que constitui a noção de liberdade é a ausência de arbi trariedade Quando o poder só é exercido de acordo com as leis os indivíduos gozam de segurança Mas é preciso desconfiar dos homens e como ninguém tem a virtude necessária para exercer o poder absoluto sem se corromper é pre ciso não dar o poder absoluto a ninguém Tornase necessário como diria Mon tesquieu que o próprio poder imponha limites ao poder que haja uma plurali dade de centros de decisão de órgãos políticos e administrativos equilibran dose uns aos outros E como todos participam da soberania é necessário que os que exercem o poder sejam de certo modo os representantes ou os delegados dos governados Em outras palavras é necessário que o povo tanto quanto lhe seja materialmente possível se governe a si mesmo O problema de Tocqueville pode pois ser resumido assim em que condi ções uma sociedade em que o destino dos indivíduos tende a ser uniforme pode evitar o despotismo Ou ainda como compatibilizar a igualdade e a liberdade Tocqueville porém pertence ao pensamento sociológico tanto quanto à filoso fia clássica da qual deriva por intermédio de Montesquieu Remonta pois ao estudo da sociedade para compreender as instituições da política Antes de ir mais longe convém analisar a interpretação que Tocqueville deu daquilo que aos olhos de seus contemporâneos Auguste Comte ou Marx era essencial porque tal interpretação determina a compreensão exata do seu pensamento Pelo que sei Tocqueville não conheceu a obra de Auguste Comte segura mente ouviu referências a ela mas as idéias de Comte não parecem ter tido ne nhuma influência no seu pensamento Quanto às obras de Marx também não creio que as tenha conhecido O Manifesto comunista era mais célebre em 1948 do que em 1848 Em 1848 não passava de um panfleto de um emigrado político refugia do em Bruxelas não há nenhuma prova de que Tocqueville tenha tido contato com esse panfleto obscuro que teve depois tão grande carreira É evidente porém que Tocqueville se referiu aos fenômenos que Comte e Marx consideravam essenciais a saber a sociedade industrial e o capitalismo Tocqueville concorda com Comte e com Marx a respeito do fato por assim dizer evidente de que as atividades privilegiadas das sociedades modernas são 206 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO a comercial e a industrial É o que afirma a respeito dos Estados Unidos da Amé rica e não duvida de que a tendência seja a mesma na Europa Embora não se exprima da mesma maneira de SaintSimon ou Auguste Comte ele também opõe as sociedades do passado em que predominava a atividade militar às socie dades do seu tempo cujo objetivo e missão eram o bemestar do maior núme ro possível de pessoas Escreveu muitas páginas sobre a superioridade da América em matéria de indústrias e nunca deixou de perceber a característica mais importante da socie dade americana3 Contudo quando mostra essa predominância da atividade co mercial e industrial Tocqueville a interpreta essencialmente com relação ao pas sado e com relação ao seu tema central que é o da democracia Esforçase então por demonstrar que a atividade industrial e comercial não pode reconstituir uma aristocracia do tipo tradicional A desigualdade da sorte implicada pela atividade comercial e industrial não lhe parece contradizer a tendência igualitária das sociedades modernas Em primeiro lugar a riqueza comercial industrial e imobiliária é se pode mos dizer assim móvel Nãó se cristaliza em famílias que mantêm situação pri vilegiada através das gerações Por outro lado entre o industrial e seus operários não se criam laços de solidariedade hierárquica como os que existiam no passado entre os senhores e seus camponeses ou parceiros Os únicos fundamentos históricos de uma ver dadeira aristocracia são a propriedade da terra e a atividade militar Por isso na visão sociológica de Tocqueville as desigualdades de riqueza por maiores que sejam nunca contradizem a igualdade fundamental das condi ções característica das sociedades modernas É verdade que numa determina da passagem Tocqueville indica que na sociedade democrática voltará a se cons tituir uma aristocracia por meio dos líderes industriais4 No conjunto porém não acredita que a indústria moderna leve a uma aristocracia Prefere pensar que as desigualdades de riqueza tenderão a se atenuar à medida que as socie dades modernas se tornem mais democráticas Crê sobretudo que as fortunas industriais e mercantis são muito precárias para originar uma estrutura hierár quica durável Em outras palavras ao contrário da visão catastrófica e apocalíptica do de senvolvimento do capitalismo própria do pensamento de Marx Tocqueville sus tentava desde 1835 a teoria semientusiástica semiresignada mais resignada do que entusiástica do welfare State ou do emburguesamento generalizado E interessante confrontar essas três visões a de Comte a de Marx e a de Tocqueville Uma era a visão organizadora daqueles que hoje chamamos de tec nocratas a outra a visão apocalíptica dos que ontem eram revolucionários a terceira a visão mitigada de uma sociedade em que cada um possui alguma coisa e em que todos ou quase todos estão interessados na conservação da ordem social OS FUNDADORES 207 Pessoalmente creio que dessas três visões a que mais se aproxima das so ciedades européias ocidentais dos anos sessenta é a de Tocqueville Para ser jus to é preciso acrescentar que a sociedade européia dos anos trinta tinha uma ten dência a se aproximar da visão de Marx Resta em aberto portanto a questão de saber qual das três visões se parecerá mais com a sociedade européia dos anos noventa A experiência americana No primeiro tomo de A democracia na América Tocqueville enumera as causas que tomam a democracia americana liberal Essa enumeração nos per mite precisar qual é a teoria dos determinantes sociais que ele assume Tocqueville enumera três tipos de causas segundo um método que lembra bastante o de Montesquieu a situação acidental e particular em que se encontra a sociedade americana as leis os hábitos e costumes A situação acidental e particular inclui tanto o espaço geográfico em que se estabeleceram os imigrantes vindos da Europa como a ausência de Estados vizinhos isto é de Estados inimigos que inspirassem temor Até o momento em que Tocqueville a observa a sociedade norteamericana conheceu situação excepcionalmente favorável com o mínimo de obrigações diplomáticas e o mí nimo de riscos militares Ao mesmo tempo essa sociedade foi instituída por homens que equipados com todo o instrumental tecnológico de uma civiliza ção desenvolvida ocuparam um espaço muito amplo É uma situação sem equi valente na Europa e constitui uma das explicações para a inexistência de uma aristocracia e o primado da atividade industrial De acordo com uma teoria da sociologia moderna à formação das aristo cracias ligadas à terra tem como condição a escassez da terra Ora na América o espaço era tão amplo que a propriedade aristocrática não pôde se constituir Encontramos esta idéia em Tocqueville no meio de muitas outras e não creio que para ele representasse a explicação fundamental Com efeito Tocqueville acentua sobretudo o sistema de valores dos imi grantes puritanos sobre o seu duplo sentido da igualdade e da liberdade e esbo ça uma teoria segundo a qual as características de uma sociedade decorrem das suas origens A sociedade norteamericana teria conservado o sistema moral dos seus fundadores os primeiros imigrantes Tocqueville como bom discípulo de Montesquieu estabelece uma hierar quia entre esses três tipos de causas a situação geográfica e histórica pesou 208 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO menos do que as leis e as leis foram menos importantes do que os hábitos os costumes e a religião Nas mesmas condições mas com outros costumes e ou tras leis teria surgido uma outra sociedade As condições geográficas e histó ricas que analisa são apenas circunstâncias favoráveis As verdadeiras causas da liberdade de que goza a democracia americana são as boas leis e mais ainda os hábitos os costumes e as crenças sem as quais não pode haver liberdade A sociedade americana não pôde representar um modelo para as socieda des européias mas pôde darlhes uma lição mostrando como a liberdade é sal vaguardada numa sociedade democrática Os capítulos dedicados por Tocqueville às leis americanas podem ser estu dados sob dois pontos de vista De um lado podese perguntar em que medida Tocqueville compreendeu exatamente o funcionamento da constituição america na da sua época e em que medida previu as transformações por que passaria Em outras palavras há um tema de estudo possível interessante e legítimo que seria a confrontação da interpretação de Tocqueville com as interpretações cor rentes na sua época ou as de hoje5 Deixarei de lado aqui esse tipo de estudo O segundo método possível consiste em identificar simplesmente as grandes linhas da interpretação de Tocqueville sobre a constituição americana para daí ti rar uma significação com respeito ao problema sociológico geral quais são nu ma sociedade democrática as leis mais propícias à salvaguarda da liberdade Antes de mais nada Tocqueville insiste nos benefícios que proporciona aos Estados Unidos o caráter federativo de sua constituição Uma Constituição fede rativa pode de certo modo combinar as vantagens dos grandes e dos pequenos Estados Em O espírito das leis Montesquieu já tinha desenvolvido esse princí pio que permite dispor da força necessária para a segurança do Estado sem os males das grandes concentrações humanas Em La démocratie en Amérique Tocqueville escreve Se não existissem grandes nações só pequenas a humanidade seguramente seria mais livre e feliz contudo não se pode fazer com que não haja grandes na ções Isto introduz no mundo um novo elemento de prosperidade nacional que é a força Que importa se um povo apresenta imagem de bemestar e liberdade se está exposto todos os dias à pilhagem ou conquista Que importa se é industrial ou comerciante se um outro domina os mares impondo sua lei sobre todos os mer cados As nações pequenas são muitas vezes miseráveis não por serem pequenas mas porque são fracas as grandes são prósperas não por serem grandes mas por serem fortes Portanto a força é muitas vezes uma das primeiras condições de feli cidade e até mesmo de existência das nações Disto decorre que a menos que haja circunstâncias particulares as pequenas nações terminam sempre por serem ane xadas pela violência às grandes ou então se voltam voluntariamente para essa união Não conheço condição mais deplorável do que a de um povo que não pode bas tarse nem defenderse os FUNDADORES i 209 O sistema federativo foi criado para juntar as vantagens diferentes que resul tam da grande e da pequena extensão das nações Basta lançar os olhos sobre os Estados Unidos da América para perceber todos os benefícios que lhes traz a ado ção de tal sistema Entre as grandes nações centralizadas o legislador está obriga do a atribuir às leis um caráter uniforme que não comporta a diversidade dos luga res e dos costumes como nunca está instruído a respeito dos casos particulares só pode proceder por meio de regras gerais Os homens são obrigados assim a se curvar às necessidades da legislação pois esta não sabe como se acomodar às ne cessidades e aos costumes dos homens o que corresponde a uma causa importan te de dificuldades e de miséria Este inconveniente não existe nas confederações O C 11 vol lpp 164165 Tocqueville manifesta portanto um certo pessimismo a respeito da possi bilidade da existência das pequenas nações que não têm a força necessária para se defender É curioso reler hoje esta passagem perguntamonos em razão dessa visão das coisas humanas o que ele diria do grande número de nações incapazes de se defender que surgiram no mundo É possível que revisse sua fórmula geral acrescentando que as nações pequenas podem sobreviver desde que o sistema internacional crie as condições necessárias para a segurança delas De qualquer forma de acordo com a convicção permanente dos filósofos clássicos Tocqueville exige que o Estado seja suficientemente extenso para dispor da força necessária à sua segurança e pequeno o bastante para que sua legislação se adapte à diversidade das circunstâncias e dos meios Uma combi nação que só é possível mediante uma confederação ou uma Constituição fede rativa Este é para Tocqueville o maior mérito das leis americanas Com perfeita clarividência ele percebeu que a Constituição federativa ame ricana garantia a livre circulação de bens pessoas e capitais Em outras pala vras o princípio federativo bastava para impedir formação de barreiras alfan degárias internas e impedir a desarticulação da unidade econômica constituída pelo território americano Em último lugar de acordo com Tocqueville Existem dois perigos prin cipais que ameaçam a existência das democracias a subordinação completa do poder legislativo à vontade do corpo eleitoral e a concentração no poder legis lativo de todos os outros poderes do governo O C 11 vol 1 p 158 Esses dois perigos estão enunciados em termos tradicionais Para Montes quieu ou Tocqueville um governo democrático não deve ser tal que o povo possa se abandonar a todos os impulsos passionais e determinar as decisões do governo Por outro lado segundo Tocqueville todo regime democrático tende à centralização do poder no corpo legislativo Ora a Constituição norteamericana previu a divisão do legislativo em duas assembléias instituiu uma presidência que na época Tocqueville considerava 210 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO fraca mas que era relativamente independente das pressões diretas do corpo eleitoral ou do corpo legislativo Além disso nos Estados Unidos o espírito le galista substitui a aristocracia pois o respeito das formas jurídicas é favorável à salvaguarda das liberdades Tocqueville constata ainda a pluralidade dos par tidos os quais aliás como observa com justiça não são animados por convic ções ideológicas como os partidos franceses e não aderem a princípios contra ditórios de governo mas representam a organização dos interesses inclinandose para a discussão pragmática dos problemas enfrentados pela sociedade Tocqueville acrescenta duas outras circunstâncias políticas semiconstitu cionais semisociais que contribuem para a salvaguarda da liberdade A pri meira é a liberdade de associação e a outra a utilização que se faz dessa liber dade com a multiplicação de organizações de voluntários Desde que se colo que uma questão num vilarejo num município ou mesmo no âmbito do Estadó federal surge um certo número de cidadãos para se agrupar em organizações de voluntários com o objetivo de estudar e tentar resolver o problema colocado Quer se trate de construir um hospital em uma pequena cidade quer de pôr fim às guerras qualquer que seja a ordem de grandeza do problema uma organizai ção de voluntários consagrará lazer e dinheiro na busca de uma solução Finalmente Tocqueville fala sobre a liberdade de imprensa que lhe pare ce ter muitos inconvenientes pois os jornais tendem a cometer abusos sendo difícil evitar que degenere em licenciosidade Acrescenta porém o que faâ lembrar a fórmula de Churchill a propósito da democracia que só há um regi me pior do que a liberdade de imprensa é a supressão desta liberdade Nas soi ciedades modernas a liberdade total é preferível à sua supressão completa I entre as duas formas extremas não há uma intermediária6 íj Tocqueville reúne em uma terceira categoria de causas os costumes e al crenças Desenvolve a idéia central da sua obra central com respeito à sua in terpretação da sociedade americana e à comparação explícita ou implícita que faz a todo o instante entre a América e a Europa Esse tema fundamental é o de que em última análise a liberdade tem como condição os costumes e as crenças dos homens sendo que o fator decisivo do costumes é a religião Para Tocqueville a sociedade americana soube unir o espí rito de religião ao espírito de liberdade Se se quisesse procurar a causa única que toma provável a manutenção da liberdade na América e precário o futuro da liber dade na França ela seria o fato de que a sociedade americana une o espírito de re ligião ao de liberdade enquanto a sociedade francesa está dilacerada pela oposi ção entre a igreja e a democracia entre a religião e a liberdade Na França o conflito entre o espírito moderno e a Igreja constitui a causa última das dificuldades encontradas pela democracia que pretende ser liberal pelo contrário a proximidade de inspiração que existe entre o espírito religio OS FUNDADORES 211 s o e o espírito de liberdade é que constitui o fundamento último da sociedade norteamericana Escreve Tocqueville Já falei bastante sobre o assunto para pôr em evidência o caráter da civiliza ção anglonorteamericana Ela é o resultado e esse ponto de partida devemos ter sempre presente no nosso espírito de dois elementos perfeitamente distintos os quais muitas vezes se têm hostilizado mas que na América se conseguiu de algu ma forma incorporar um ao outro combinandoos maravilhosamente Quero me referir ao espírito da religião e ao espírito da liberdade Os fundadores da Nova Inglaterra eram ao mesmo tempo sectários ardorosos e inovadores exaltados Presos na rede mais estreita de certas crenças religiosas estavam livres de todos os preconceitos políticos Daí as duas tendências diversas mau não con traditórias cujos traços se podem encontrar em toda a parte nos costumes e nas leis E um pouco mais adiante Assim no mundo moral tudo está classificado coordenado previsto decidi do antecipadamente No mundo político tudo é agitado contestado incerto No primeiro temos a obediência passiva embora voluntária no outro a independên cia o desprezo pela experiência e inveja de toda autoridade Em lugar de se pre judicarem estas duas tendências aparentemente tão opostas concordam uma com a outra e parecem prestarse um mútuo apoio A religião vê na liberdade civil um nobre exercício das faculdades do homem no mundo político um campo conce dido pelo Criador aos esforços da inteligência Livre e poderosa na sua esfera sa tisfeita com o lugar que lhe é reservado ela sabe que seu império é ainda mais firme porque reina com suas próprias forças e domina sem apoio nos corações A liberdade vê na religião uma companheira de lutas e triunfos o berço da sua in fância a fonte divina dos seus direitos Considera a religião como a salvaguarda dos costumes os costumes como a garantia das leis e o penhor da sua própria du ração O C 11 vol 1 pp 4243 Pondo à parte o estilo que não é o que empregaríamos hoje esse texto me parece uma admirável interpretação sociológica da maneira como numa civi lização de tipo angloamericano a liberdade política e o rigor religioso se com binam Um sociólogo de hoje traduziria esses fenômenos nos conceitos mais refinados multiplicaria reservas e manias Mas a audácia de Tocqueville não deixa de ter encanto Enquanto sociólogo ele pertence ainda à tradição de Mon tesquieu usa a linguagem de todos fazse compreender sem dificuldade está mais interessado em dar forma literária à idéia do que em multiplicar conceitos e discriminar critérios Tocqueville explica em La dém ocratie en Amérique com o as relações entre a religião e a liberdade representam na França o extremo oposto do que são nos E s t a d o s Unidos 212 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Todos os dias me demonstram doutamente que tudo vai muito bem nos Esta dos Unidos exceto precisamente este espírito religioso que admiro fico sabendo que para a liberdade e a felicidade da espécie humana do outro lado do Atlântico só falta crer como Spinoza na eternidade do mundo e sustentar com Cabanis que o cérebro secreta o pensamento A isso nada tenho a responder a não ser que os que falam desse modo não estiveram no continente americano e não viram um povo mais religioso nem mais livre Esperoos portanto na sua volta Há pessoas na França que consideram as instituições republicanas como o instrumento passageiro da sua grandeza Medem com os olhos o imenso espaço que separa seus vícios e sua miséria do poder e das riquezas e gostariam de acu mular ruínas nesse abismo para tentar preenchêlo Estes estão para a liberdade como as companhias francas da Idade Média estavam para os reis faziam a guer ra por sua própria conta mesmo quando vestiam as cores reais A república vive rá sempre o tempo suficiente para tirálos da sua atual baixeza Não é a eles que me dirijo Mas há outros que vêem na república um estado permanente e tranqüilo um fim necessário para o qual as idéias e os costumes arrastam cada dia as socieda des modernas e que desejariam sinceramente preparar os homens para a liberda de Quando atacam as crenças religiosas seguem suas paixões e não seus interes ses É o despotismo que pode prescindir da fé não a liberdade O C 11 vol 1 pp 307308 Esse texto que sob certos aspectos é admirável é também típico do tercei ro partido francês que nunca terá força suficiente para exercer o poder porque é ao mesmo tempo democrático favorável às instituições representativas ou pelo menos resignado a elas e hostil às paixões antireligiosas Tocqueville é um liberal e teria preferido que os democratas reconhecessem a solidariedade necessária das instituições livres e das crenças religiosas De resto devido aos seus conhecimentos históricos e análises sociológicas ele deveria saber e provavelmente sabia que tal reconciliação não era possí vel O conflito entre a Igreja católica e o espírito moderno decorre na França de uma longa tradição como acontece com a afinidade entre a religião e a democra cia na civilização angloamericana E preciso portanto ao mesmo tempo deplo rar o conflito e identificar suas causas que são difíceis de eliminar ele continua vivo mais de cem anos depois do momento em que foi descrito por Tocqueville O tema fundamental de Tocqueville é portanto a necessidade de uma dis ciplina moral inscrita na consciência individual nas sociedades igualitárias que se querem autogovernar É preciso que os cidadãos se sujeitem interiormente a uma disciplina que não seja apenas imposta pelo medo da punição Para Tocque ville neste aspecto discípulo de Montesquieu a fé capaz de melhor criar esta disciplina moral é a fé religiosa Além da influência dos seus sentimentos religiosos os cidadãos norteame ricanos são bem informados conhecem os assuntos públicos passam todos por OS FUNDADORES 213 uma instrução cívica Tocqueville salienta finalmente o contraste com a centra lização administrativa francesa Os cidadãos norteamericanos têm o hábito de resolver os assuntos coletivos a partir do nível do município São levados assim ao aprendizado do autogovemo no meio limitado que estão em condições de conhecer pessoalmente e estendem o mesmo espírito aos assuntos do Estado Esta análise da democracia americana difere evidentemente da teoria de Montesquieu que se referia às repúblicas antigas Mas o próprio Tocqueville con sidera que sua teoria das sociedades democráticas modernas é uma ampliação e uma renovação da concepção de Montesquieu Num texto que encontramos entre os rascunhos do segundo volume de La démocratie en Amérique nosso autor confronta sua própria interpretação da democracia americana com a teoria da república de Montesquieu Não se deve tomar a idéia de Montesquieu num sentido estrito O que este grande homem quis dizer é que a república só podia subsistir pela ação da socie dade sobre si mesma O que ele entende por virtude é o poder moral exercido sobre si mesmo por cada indivíduo e que o impede de violar os direitos alheios Quando este triunfo do homem sobre as tentações resulta da debilidade da tentação ou do cálculo dos interesses pessoais não constitui uma virtude para o moralista mas cabe na idéia de Montesquieu que se referia ao efeito mais do que à sua causa Na América não é a virtude que é grande a tentação é que é pequena o que vem a dar no mesmo Não é o desprendimento que é grande mas o interesse que é bem com preendido o que também vem a dar quase no mesmo Montesquieu tinha razão portanto embora falasse sobre a virtude antiga o que ele diz a respeito dos gre gos e dos romanos se aplica ainda aos americanos Este texto permite fazer a síntese das relações entre a teoria da democra cia moderna de acordo com Tocqueville e a teoria da república antiga segun do Montesquieu Não há dúvida de que existem diferenças essenciais entre a república vista por Montesquieu e a democracia vista por Tocqueville A democracia antiga era igualitária e virtuosa mas frugal e combativa Os cidadãos tendiam à igual dade porque rejeitavam o primado das considerações comerciais A democracia moderna ao contrário é basicamente uma sociedade comercial e industrial Assim o interesse não pode deixar de ser seu sentimento dominante E sobre o interesse bem compreendido que se fundamenta a democracia moderna O prin cípio no sentido de Montesquieu da democracia moderna é pois o interesse e não a virtude Mas como o texto indica entre o interesse princípio das de mocracias modernas e a virtude princípio da república antiga há elementos comuns Nos dois casos os cidadãos devem submeterse a uma disciplina moral e a estabilidade do Estado se baseia na influência predominante que os costu mes e as crenças exercem sobre o comportamento dos indivíduos 214 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO De modo geral em A democracia na América Tocqueville é sociólogo nc estilo de Montesquieu e diríamos mesmo nos dois estilos que Montesquieu nos legou A síntese dos diferentes aspectos de uma sociedade é feita em O espírito das leis graças ao conceito do espírito de uma nação Segundo Montesquieu o primeiro objetivo da sociologia é apreender o conjunto de uma sociedade Não há dúvida de que Tocqueville quer apreender na América o espírito de uma na ção para isso emprega as diferentes categorias que Montesquieu distinguiu era O espírito das leis Discrimina entre as causas históricas e as causas atuais q meio geográfico e a tradição histórica a ação das leis e dos costumes O con junto destes elementos se reagrupa para definir na sua singularidade uma so ciedade única a sociedade americana A descrição desta sociedade singular feita mediante a combinação de diferentes tipos de explicação de acordo corç um grau mais ou menos grande de abstração ou de generalidade Tocqueville porém como se verá mais adiante na análise do segundo vo lume de A democracia na América visa a um segundo objetivo da sociologia é pratica um outro método Coloca um problema mais abstrato num nível mais ele vado de generalidade o problema da democracia das sociedades modernas Istà é fixa o estudo de um tipo ideal comparável ao tipo de regime político de Montesquieu na primeira parte de O espírito das leis Partindo da noção abstra ta de uma sociedade democrática Tocqueville pergunta qual a forma política dl que esta sociedade democrática pode se revestir por que ela se reveste aqui di uma forma e em outro lugar de outra Em outras palavras começa por definàj um tipo ideal o da sociedade democrática e tenta pelo método comparativojj identificar o efeito das várias causas das mais gerais às mais particulares I Há em Tocqueville como em Montesquieu dois métodos sociológicos sendo que um leva ao retrato de uma coletividade singular e o outro coloca 0 problema histórico abstrato de um certo tipo de sociedade Tocqueville não é nenhum admirador ingênuo da sociedade americana Na fundo conserva a hierarquia de valores da classe a que pertence a aristocraci francesa É sensível à mediocridade que caracteriza uma civilização desse gênei ro Não tem para com a democracia moderna nem o entusiasmo dos que espef ravam dela uma transfiguração do destino do homem nem a hostilidade dos qufl a consideravam a decomposição da sociedade Para ele a democracia se justi fica pelo fato de que favorece o bemestar do maior número mas este bemestai não tem brilho ou grandeza e não deixa de apresentar perigos políticos e morais Com efeito toda democracia tende à centralização e em conseqüência tens de a uma espécie de despotismo que traz o perigo de degenerar no despotismo de um homem A democracia comporta permanentemente o perigo de uma tira nia da maioria Todo regime democrático postula que a maioria tem razão pode ser difícil impedir uma maioria de abusar da sua vitória e oprimir a minoria o s FUNDADORES 215 Para Tocqueville a democracia tende a generalizar o espírito de corte em bora o soberano bajulado pelos candidatos seja o povo não o monarca Contu do bajular o povo soberano não é melhor do que adular o monarca soberano Talvez seja pior porque na democracia o espírito de corte é o que chamamos em linguagem ordinária de demagogia Por outro lado Tocqueville tinha muita consciência dos dois grandes pro blemas enfrentados pela sociedade americana as relações entre brancos e índios e entre brancos e negros Se um problema ameaçava a União era sem dúvida o da escravidão no Sul A esse respeito Tocqueville era sombriamente pessi mista acreditava que à medida que desaparecesse a escravidão e a igualdade jurídica tendesse a se estabelecer entre negros e brancos se elevariam as bar reiras que os costumes criaram entre as duas raças Considerava que em última análise havia apenas duas soluções a mistu ra de raças ou a separação A mistura de raças seria rejeitada pela maioria branca a separação seria quase inevitável uma vez extinta a escravidão Tocqueville pre via assim conflitos terríveis Uma passagem sobre o assunto no melhor estilo do autor permitenos ou vir a voz desse homem solitário Os espanhóis soltam seus cães sobre os índios como se estes fossem animais ferozes Pilham o Novo Mundo como uma cidade assaltada sem discernimento nem piedade Mas não se pode destruir tudo a furia tem um limite O resto das popula ções indígenas salvas do massacre terminam por se misturar aos conquistadores adotando sua religião e costumes A conduta dos Estados Unidos com relação aos indígenas pelo contrário é inspirada no mais puro amor das formas e da legalida de Desde que os índios se mantenham no estado selvagem os americanos não interferem na vida deles tratandoos como um povo independente Não se permi tem ocupar suas terras sem antes adquirilas devidamente por meio de um contrato Se uma nação indígena não pode mais viver no seu território a levam fraternalmen te pela mão para morrer fora da terra dos seus ancestrais Por meio de monstruo sidades sem exemplo cobrindose de vergonha indelével os espanhóis não conse guiram exterminar a raça indígena nem a impediram de partilhar dos seus direitos Os americanos atingiram este duplo resultado com uma facilidade maravilhosa tranqüilamente legalmente filantropicamente sem derramar sangue nem violar um só dos grandes princípios morais aos olhos do mundo Não se poderiam destruir os homens respeitando melhor as leis da humanidade O C t I vol 1 pp 354355 Esse texto em que Tocqueville não cumpre a regra dos sociólogos moder nos que é a de se abster de julgamentos de valor proibindose as ironias7 é ca racterística do espírito humanitário aristocrático Estamos quase sempre habi tuados na França a pensar que só os homens de esquerda são humanistas 216 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Tocqueville teria dito que na França os radicais os republicanos extremistas não são humanitários mas revolucionários embriagados de ideologia prontos a sa crificar milhões de seres humanos às suas idéias Condenava os ideólogos de es querda representativos do partido intelectual francês mas também o espírito reacionário dos aristocratas nostálgicos de uma ordem definitivamente extinta Tocqueville é um sociólogo que não cessa de julgar ao mesmo tempo que descreve Nesse sentido pertence à tradição dos filósofos políticos clássicos que não podiam analisar os regimes sem também julgálos Na história da sociologia ele está muito próximo da filosofia clássica tal como a interpreta Léo Strauss8 Para Aristóteles não se pode interpretar adequadamente a tirania sem en tender que é o regime que mais se afasta do melhor dos regimes porque a rea lidade do fato é inseparável de sua qualidade Querer descrever as instituições sem julgálas é não ver o que faz com que elas sejam o que são Tocqueville não rompe com essa prática Sua descrição dos Estados Uni dos é também a explicação das causas cuja ação salvaguarda a liberdade numa sociedade democrática Ela mostra a cada momento o que ameaça o equilíbrio da sociedade americana A própria linguagem significa julgamento e Tocque ville não acreditava estar violando as regras da ciência social ao julgar na des crição e pela descrição Se fosse obrigado a explicarse provavelmente diria como Montesquieu ou em todo caso como Aristóteles que uma descrição nãaj pode ser fiel se não contém os julgamentos ligados intrinsecamente à descri ção um regime é o que é pela sua qualidade intrínseca e uma tirania só pode ser descrita como tirania I O drama político da França UAncien Régime et la Rèvolution é um esforço comparável ao de Montes quieu em Considérations sur les causes de la grandeur et de la décadence desl romains É uma tentativa de explicar sociologicamente os acontecimentos his tóricos Tocqueville percebe tão claramente quanto Montesquieu os limites da ex plicação sociológica Os dois acreditam de fato que os grandes acontecimen tos são explicados por grandes causas mas que os detalhes dos acontecimentos não podem ser deduzidos dos dados estruturais Tocqueville estuda a França pensando até certo ponto na América Quer compreender por que razão a França encontra tantas dificuldades em ser uma sociedade politicamente livre embora seja ou pareça democrática No caso dos Estados Unidos procurava compreender as causas do fenômeno inverso isto é o s FUNDADORES 217 a persistência da liberdade política por causa ou a despeito do caráter democrá tico da sociedade UAncien Régime et la Révolution é uma interpretação sociológica de uma crise histórica destinada a tomar os acontecimentos inteligíveis Tocqueville ini cia observando e raciocinando como um sociólogo Recusase a admitir que a cri se revolucionária seja um acidente puro e simples Afirma que as instituições do Antigo Regime ficaram em ruínas quando a tempestade revolucionária as arras tou Acrescenta que a crise revolucionária teve características específicas porque se desenvolveu à maneira de uma revolução religiosa A Revolução Francesa funcionara com relação a este mundo precisamente do mesmo modo como a revolução religiosa agindo com vistas ao outro Ela con siderou o cidadão de um modo abstrato fora de todas as sociedades particulares assim como a religião considera o homem em geral independentemente do país e do tempo Não procurou somente saber qual era o direito particular do cidadão francês mas quais eram os deveres e direitos gerais dos homens em matéria políti ca Foi assim remontando sempre ao que tinha de menos particular e por assim dizer mais natural em matéria de estado social e de governo que pôde tomarse compreensível para todos e pôde ser imitada em cem lugares ao mesmo tempo O C t II vol lp 89 Esta coincidência de uma crise política com uma espécie de revolução reli giosa é ao que parece uma das características das grandes revoluções das so ciedades modernas Aos olhos de um sociólogo da escola de Tocqueville a Re volução Russa de 1917 tem igualmente a mesma característica de ser uma revo lução de essência religiosa Creio que é possível generalizar a proposição toda revolução política assume certas características de revolução religiosa quando pretende ser universalmen te válida e se considera o caminho da salvação para toda a humanidade Para esclarecer seu método Tocqueville acrescenta Falo de classes só elas devem ocupar a história Esta frase é textual e estou certo contudo de que se uma revista a publicasse com a pergunta quem a escreveu quatro entre cin co pessoas responderiam Karl Marx As classes cujo papel decisivo é evocado por Tocqueville são a nobreza a burguesia os camponeses e secundariamente os operários São portanto inter mediárias entre as ordens do Antigo Regime e as classes das sociedades moder nas Aliás Tocqueville não apresenta uma teoria abstrata das classes Não as define nem enumera suas características mas toma os principais grupos so ciais da França e do Antigo Regime no momento da Revolução para explicar os acontecimentos 218 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Em seguida Tocqueville pergunta se o conjunto das instituições do Antigo Regime está em ruínas em toda a Europa por que a Revolução ocorreu na Fran ça Quais os fenômenos principais que explicam este acontecimento O primeiro deles já foi estudado indiretamente em A democracia na Amé rica é a centralização e a uniformidade administrativas Sem dúvida a França do Antigo Regime apresentava extraordinária diversidade provincial e local em matéria de legislação e regulamentação contudo a administração real dos in tendentes tomavase cada vez mais a única força eficaz A diversidade não pas sava de sobrevivências inócuas a França era administrada do centro e era ad ministrativamente uniforme bem antes da tempestade revolucionária Surpreendemonos com a facilidade extraordinária com que a Assembléia Cons tituinte pôde destruir de uma só vez todas as antigas províncias da França sendo que muitas delas eram mais antigas do que a monarquia e dividir metodicamente o reino em 83 partes distintas como se se tratasse das terras virgens do Novo Mundo Nada sur preendeu mais e até mesmo apavorou o resto da Europa que não estava preparado para tal espetáculo Burke dizia que pela primeira vez viamse homens a fazer em pedaços sua pátria de modo tão bárbaro Parecia de fato que se estavam a retalhar corpos vivos mas não se fazia mais do que cortar os membros de cadáveres Assim ao mesmo tempo que Paris acabava de adquirir a suprema onipotência viase processar no seu próprio seio uma outra transformação que merece também a atenção da história Em vez de ser uma cidade apenas de comércio de negócios de consumo e prazeres Paris acabava de se tomar uma cidade de fábricas e indústrias um segundo fato que dava ao primeiro um caráter novo e mais formidável Embora os documentos estatísticos do Antigo Regime de modo geral inspi rem pouca confiança creio podermos afirmar sem medo que durante os sessenta anos que precederam a Revolução Francesa o número dos operários mais do que dobrou em Paris enquanto no mesmo período a população geral da cidade só au mentou de um terço O C t II vol 1 pp 141142 Nesta altura somos levados a pensar no livro de JF Gravier Paris e o de serto francês9 De acordo com Tocqueville antes mesmo do fim do século XVIII Paris se tornara o centro industrial da França As considerações sobre o distri to parisiense e as formas de impedir a centralização industrial na capital não datam de hoje Em segundo lugar nessa França administrada do centro e na qual os mes mos regulamentos se aplicavam cada vez mais a todo seu território a sociedade estava por assim dizer esfacelada Os franceses não tinham condições de dis cutir seus assuntos porque lhes faltava a condição essencial para a formação do corpo político a liberdade í Tocqueville faz uma descrição puramente sociológica do que Durkheiiflf teria chamado de desintegração da sociedade francesa Não havia unidade entrei OS FUNDADORES 219 as classes privilegiadas e de modo mais geral entre as diversas classes da na ção devido à carência de liberdade política Subsistia uma separação entre os grupos privilegiados do passado que tinham perdido sua função histórica mas conservavam seus privilégios e os grupos da nova sociedade que desempenha vam um papel decisivo mas permaneciam separados da antiga nobreza No fim do século XVIII podiase perceber ainda uma diferença entre as ma neiras da nobreza e as da burguesia pois nada se igualiza mais lentamente do que esta superfície de costumes que conhecemos como maneiras no fondo porém todas as pessoas situadas acima do povo se pareciam tinham as mesmas idéias os mesmos hábitos seguiam os mesmos gostos dedicavamse aos mesmos prazeres liam os mesmos livros e falavam a mesma linguagem Só se diferenciavam entre si pelos direitos Duvido de que se tenha visto situação igual no mesmo grau em qualquer outra parte até na Inglaterra onde as diferentes classes embora associa das solidamente entre si por interesses comuns se distinguiam muitas vezes pelo es pírito e pelos costumes pois a liberdade política que tem o admirável poder de criar relações necessárias e laços mútuos de dependência entre todos os cidadãos nem por isso os iguala É o governo de uma só pessoa que a longo prazo tem sempre o efeito inevitável de assemelhar os homens entre si e tomálos mutuamente indife rentes a seu destino Ibid p 146 Esse é o centro da análise sociológica da França por Tocqueville Os dife rentes grupos privilegiados da nação francesa tendiam ao mesmo tempo à uni formidade e à separação Eram de fato semelhantes uns aos outros mas esta vam separados por privilégios maneiras tradições e com a falta de liberdade política eles não chegavam a adquirir este sentido de solidariedade indispensá vel à saúde do organismo político A divisão das classes foi o crime da antiga realeza e se tomou depois sua justi ficativa pois quando todos os que compõem a parte rica e esclarecida da nação não podem mais entenderse e cooperar no governo a administração do país por si mesmo se toma impossível sendo preciso que um maítre intervenha Ibid p 166 Esse texto é fundamental Vêse nele antes de tudo a concepção mais ou menos aristocrática do governo das sociedades característica ao mesmo tempo de Montesquieu e de Tocqueville O governo só pode ser exercido pela parte ri ca e esclarecida da nação Os dois autores não hesitam em reunir os dois adje tivos Não são demagogos e a associação entre os dois termos lhes parece evi dente Contudo também não são cínicos pois o fenômeno para eles era óbvio Escreviam numa época em que os que não tinham meios materiais não dispunham de lazer para se instruir No século XVIII só a parte rica da nação podia ser es clarecida 220 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO De outro lado Tocqueville pensa observar e creio que observa bem que na França o fenômeno característico na origem da Revolução e eu acrescen taria na origem de todas as revoluções francesas era a incapacidade dos gru pos privilegiados de chegarem a um acordo sobre o modo de governar o país Esse fenômeno explica a freqüência das mudanças de regime Essa análise das características da política francesa é a meu ver notavel mente lúcida Podese aplicála a toda a história política da França nos séculos XIX e XX Com ela se explica o fato curioso de que a França tenha sido no Oci dente no século XIX e até bem recentemente o país que menos transforma ções sofreu econômica e socialmente e também possivelmente o que passou por maiores turbulências políticas A combinação do conservadorismo econô mico e social com esta agitação política pode ser explicada sem dificuldade pela sociologia de Tocqueville mas é mais difícil de entender se buscarmos uma cor respondência termoatermo entre dados sociais e políticos Quando as diferentes classes que compartilhavam a sociedade da antiga Fran ça entraram em contato há sessenta anos depois de terem ficado isoladas duran te tanto tempo por tantas barreiras elas se tocaram inicialmente apenas nos pontos doloridos e só se encontraram para se dilacerarem Mesmo nos nossos dias seus ódios e ciúmes sobrevivem a elas Ibid p 167 O tema central da interpretação da sociedade francesa por Tocqueville é o de que no fim do Antigo Regime de todas as sociedades européias a França era a mais democrática no sentido do autor isto é aquela em que a tendência para a uniformidade das condições e a igualdade social das pessoas e dos grupos eram mais pronunciadas e também aquela em que havia menos liberdade política a sociedade mais cristalizada nas instituições tradicionais que correspondiam cada vez menos à realidade Se Tocqueville tivesse elaborado uma teoria das revoluções dos tempos modernos seguramente teria apresentado uma concepção diferente da concep ção marxista diferente pelo menos da que afirma que a revolução socialista deve ocorrer ao fim do desenvolvimento das forças produtivas dentro dos regimes de propriedade privada Tocqueville sugeriu e várias vezes chegou a declarar explicitamente que para ele as grandes revoluções dos tempos modernos seriam aquelas que mar cam a passagem do Antigo Regime para a democracia Em outras palavras a con cepção que tem Tocqueville das revoluções é essencialmente política É a resis tência das instituições políticas do passado ao movimento democrático moder no que pode provocar aqui e ali uma explosão Tocqueville acrescentava que esses tipos de revolução ocorrem não quando as coisas vão muito mal mas aO contrário quando estão melhores10 f OS FUNDADORES 221 Tocqueville não teria duvidado um só momento de que a Revolução Russa entrava no seu esquema político das revoluções muito mais do que no esquema marxista A economia russa conheceu um impulso inicial de crescimento na déca da de 1880 Entre 1880 e 1914 teve uma das taxas de crescimento mais elevadas da Europa De outro lado a Revolução Russa começou com uma revolta contra as instituições políticas do Antigo Regime no sentido em que se fala de Antigo Regime a respeito da Revolução Francesa Se se levantasse a objeção de que o par tido que assumiu o poder na Rússia se baseia em ideologia diferente ele teria res pondido que a seus olhos a característica das revoluções democráticas consiste em preconizar a liberdade e tender efetivamente à centralização política e adminis trativa Tocqueville não teria encontrado nenhuma dificuldade em integrar esses fenômenos no seu sistema Aliás em diversas ocasiões ele evocou a possibilidade de um Estado que procurasse gerir o conjunto da economia Na perspectiva da sua teoria a Revolução Russa representa a extinção das instituições políticas do Antigo Regime numa fase de modernização da socie dade Essa explosão foi facilitada pelo prolongamento de uma guerra Desem bocou num governo que embora se dizendo defensor do ideal democrático leva até o fim a idéia da centralização administrativa e da gestão do conjunto da sociedade pelo Estado Duas alternativas obcecaram os historiadores da Revolução Francesa foi uma catástrofe ou um acontecimento benéfico uma necessidade ou um acidente Toc queville se recusa a aceitar as duas teses extremas A Revolução Francesa para ele não é evidentemente um acidente puro e simples é necessária se isto sig nifica que o movimento democrático devia algum dia sobrepujar as instituições do Antigo Regime e nãonecessária na forma precisa de que se revestiu no detalhe dos seus episódios Benéfica ou catastrófica Tocqueville responderia provavelmente que ela foi as duas coisas ao mesmo tempo Mais precisamente encontramos no seu livro todos os elementos da crítica que os homens de direita fizeram à Revolução Francesa simultaneamente encontramos também a jus tificação do que aconteceu por meio da história ou às vezes por meio do ine vitável com tristeza por não ter sido diferente A crítica da Revolução Francesa atinge primeiramente os homens de letras que eram conhecidos no século XVIII como filósofos e que no século XX cha mamos de intelectuais Os filósofos homens de letras ou intelectuais têm a facilidade de se criticar mutuamente Tocqueville comenta o papel dos escrito res na França do século XVIII e na Revolução da mesma forma como continua mos a comentar com admiração ou pesar o papel que eles têm hoje Os escritores não deram apenas suas idéias ao povo que a fez a Revolução deramlhe seu temperamento e seu humor Sob sua longa disciplina à falta de quaisquer outros líderes no meio da ignorância profunda em que se vivia no coti 222 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO diano toda a nação ao lêlos terminava por contrair seus instintos sua inclinação espiritual o gosto e até os cacoetes próprios aos que escrevem De sorte que quan do ela começou a atuar transportou para a política todos os hábitos da literatura Quando se estuda a história da nossa Revolução vêse que ela foi conduzida precisamente no mesmo espírito que a fez produzir tantos livros abstratos sobre o governo Vemos a mesma atração pelas teorias gerais os sistemas completos de legislação e a simetria exata nas leis o mesmo desprezo pelos fatos reais a mesma confiança na teoria o mesmo gosto pelo original o engenhoso e o novo nas insti tuições a mesma vontade de refazer de uma só vez toda a Constituição seguindo as regras da lógica e segundo um plano único em vez de procurar emendála nas suas várias partes Um espetáculo assustador De fato o que é qualidade num escri tor é às vezes vício num estadista as mesmas coisas que fizeram muitas vezes belos livros podem conduzir a grandes revoluções O C t II vol 1 p 200 Esse texto originou toda uma literatura O primeiro tomo das Origines de la France contemporaine de Taine por exemplo não passa do desenvolvimento deste tema do papel maléfico dos escritores e homens de letras12 Tocqueville desenvolve sua crítica analisando o que chama de irreligião fun damental que se difundira numa parte da nação francesa Pensava que a união do espírito religioso com o espírito de liberdade constituía o fundamento da democracia liberal americana Numa contrapartida exata encontramos em LAn cien Régime et la Révolution o exemplo de situação contrária3 A parte do país que se tomara ideologicamente democrática não só tinha perdido a fé como ha via passado a ser anticlerical e antireligiosa Aliás Tocqueville se declara cheio de admiração pelos sacerdotes do Antigo Regime14 e exprime explicitamente o pesar de que não tenha sido possível salvaguardar pelo menos em parte o papel da aristocracia na sociedade modema Essa tese que não faz parte das idéias em moda é muito característica de Tocqueville Sentese ao ler seus escritos apresentados pela nobreza aos Estados Gerais no meio dos seus preconceitos e dos seus cacoetes o espírito e algumas das gran des qualidades da aristocracia Lamentaremos sempre que em vez de se dobrar essa nobreza com o peso das leis se a tenha abatido e desenraizado Agindo assim tirouse da nação uma parte necessária da sua substância e fezse na liberdade uma ferida que jamais cicatrizará Uma classe que durante séculos caminhou na frente contraiu nesse longo e incontestado uso da grandeza um sentimento elevado do orgulho e da honra uma confiança natural em suas forças um hábito de ser res peitada que a toma o ponto mais resistente do organismo social Não tem apenas costumes viris mas com seu exemplo reforça a virilidade das outras classes Extir pandoa tiramos o vigor até dos seus próprios inimigos Nada poderia substituíla completamente por si mesma não poderia nunca renascer pode voltar a ter títu los e bens mas não o espírito dos seus antepassados O C t II vol 1 p 170 OS FUNDADORES 223 O significado sociológico desta passagem é o seguinte para salvaguardar a liberdade numa sociedade democrática é preciso que os homens tenham o sentido e o gosto da liberdade Bernanos escreveu em páginas que certamente não têm a precisão analíti ca de Tocqueville mas que levam à mesma conclusão que não basta ter as ins tituições da liberdade eleições partidos parlamento é preciso também que os homens tenham um certo gosto pela independência um certo sentido da resis tência ao poder para que a liberdade possa ser autêntica O julgamento que Tocqueville faz da Revolução os sentimentos que o ani mam são exatamente os que Auguste Comte teria considerado aberrantes Aos olhos de Comte a tentativa da Constituinte estava condenada porque visava a uma síntese das instituições teológicas e feudais do Antigo Regime com as institui ções dos tempos modernos Ora Comte afirmava com sua intransigência habitual que é impossível a síntese de instituições tiradas de modos de pensar radical mente diferentes Tocqueville teria preferido precisamente não que o movimen to democrático fosse derrotado pelas instituições da antiga França o movimento era irresistível mas que estas instituições fossem conservadas na medida do possível sob a forma da monarquia sob a forma também do espírito aristocráti co a fim de que dessem uma contribuição para a salvaguarda das liberdades numa sociedade dedicada à procura do bemestar e condenada à revolução social Para um sociólogo como Comte a síntese da Constituinte era desde o início impossível Para um sociólogo como Tocqueville possível ou não ele não se decide a esse respeito teria sido desejável Politicamente Tocqueville era fa vorável à primeira Revolução Francesa a da Constituinte e é para esse período que se dirige seu pensamento nostálgico A seus olhos o grande momento da Re volução Francesa e da França é 17881789 a época em que os franceses esta vam animados por uma confiança e uma esperança sem limites Não creio que em nenhum momento da história se tenha visto em nenhuma parte um tal número de pessoas tão sinceramente apaixonadas pelo bem público tão verdadeiramente esquecidas dos seus próprios interesses tão absorvidas na con templação de um grande objetivo tão resolvidas a arriscar o que os homens têm de mais caro na vida a se esforçarem para se elevar acima do nível das paixões do coração É como um fundo comum de paixão coragem e devotamento do qual vão sair todas as grandes ações da Revolução Francesa Esse espetáculo foi breve mas apresentou belezas incomparáveis e não sairá nunca da memória dos homens To das as nações estrangeiras o viram todas o aplaudiram todas se emocionaram com ele Inútil procurar um lugar tão afastado da Europa onde não tenha sido percebi do onde não tenha provocado admiração e estima não se poderia encontrálo na multidão de memórias particulares que os contemporâneos da Revolução nos dei xaram nunca encontrei uma em que os primeiros dias de 1789 não tenham deixa do uma marQ indelével transmitindo a clareza a vivacidade e a frescura das emo 224 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ções da juventude Ouso dizer que um só povo neste mundo poderia proporcionar tal espetáculo Conheço a nação a que pertenço Vejo muito bem seus erros suas fa lhas suas fraquezas e suas misérias mas sei também do que é capaz Há empreen dimentos que só a nação francesa é capaz de conceber resoluções magnânimas que só ela pode ousar Só ela pode querer abraçar um certo dia a causa comum da humanidade para lutar por ela E se está sujeita a quedas profundas tem por outro lado impulsos sublimes que a levam de súbito a um ponto que nenhum outro povo jamais atingirá O C t II vol 2 pp 132133 Vêse nesta passagem como Tocqueville que passa por crítico da França e o era efetivamente que confronta a evolução da França com a dos países anglo saxões lamentando que não tivesse tido uma história semelhante à da Inglaterra ou dos Estados Unidos está pronto a transformar a autocrítica em autoglorifi cação A expressão só a França poderia muito bem evocar discursos sobre a vocação única do país Tocqueville procura tomar sociologicamente inteligí veis os acontecimentos há nele porém como em Montesquieu uma idéia sub jacente do caráter nacional O tema do caráter nacional aparece na sua obra de maneira precisa No ca pítulo sobre os homens de letras liv III cap 4 Tocqueville se recusa a dar explicações com base no caráter nacional Afirma ao contrário que o papel dos intelectuais nada tem a ver com o espírito da nação francesa e busca explica ção nas condições sociais os homens de letras se perderam em teorias abstratas porque não participavam na prática do governo e portanto ignoravam seus pro blemas reais Esse capítulo de Tocqueville está na origem de uma análise que hoje está muito em moda isto é a do papel dos intelectuais nas sociedades em vias de mo dernização em que de fato os intelectuais são inexperientes em problemas reais de governo e ébrios de ideologia Em compensação quando se trata da Revolução Francesa e do seu período de grandeza Tocqueville é levado a desenhar uma espécie de retrato sintético no estilo de Montesquieu Esse retrato sintético é a descrição da conduta de uma coletividade sem que tal conduta seja dada como explicação definitiva pois é tanto um resultado como uma causa Contudo é suficientemente original e su ficientemente específico para que o sociólogo possa ao fim da análise reunir suas observações num conjunto15 O segundo tomo de LAncien Régime et la Révolution deveria apresentar a seqüência dos acontecimentos isto é a Revolução examinando o papel dos ho mens dos acidentes e do acaso Nas notas que foram publicadas há numerosas indicações sobre o papel dos atores e dos indivíduos O que me impressiona mais não é o gênio dos que serviram a Revolução conscientemente mas a singular imbecilidade dos que a fizeram chegar sem o OS FUNDADORES 225 querer Quando considero a Revolução Francesa espantame sua grandeza prodi giosa seu brilho que atingiu até as extremidades da terra seu vigor que influen ciou mais ou menos todos os povos Considero em seguida essa corte que dela tanto participou vendo aí os qua dros mais vulgares que podemos encontrar na história ministros levianos ou iná beis padres libertinos mulheres fúteis cortesãos temerários ou cúpidos um mo narca que só tem virtudes inúteis ou perigosas Vejo contudo que esses persona gens pouco importantes facilitam provocam precipitam esses acontecimentos da maior importância O C t II vol 2 p 116 Este texto brilhante não tem só valor literário Contém na minha opinião a visão de conjunto que Tocqueville nos teria dado se pudesse ter concluído seu livro Depois de ter sido sociólogo no estudo das origens demonstrando como a sociedade pósrevolucionária foi em larga medida preparada pela sociedade prérevolucionária sob a forma de uniformidade e de centralização administra tiva Tocqueville iria procurar seguir o curso dos acontecimentos sem suprimir o que era para ele como para Montesquieu a própria história isto é o que acontece numa determinada conjuntura o encontro de séries contingentes ou de decisões tomadas por indivíduos e que se poderia facilmente conceber de ou tra forma Há um plano em que aparece a necessidade do movimento histórico e outro em que encontramos o papel dos homens Para Tocqueville o fato essencial era o fracasso da Constituinte isto é o fracasso da síntese das virtudes da aristocracia ou da monarquia com o movi mento democrático A seu ver o fracasso dessa síntese tomava difícil alcançar um equilíbrio político Tocqueville considerava que a França do seu tempo tinha ne cessidade de uma monarquia mas não deixava de perceber a debilidade do sen timento monárquico Pensava que a liberdade política só se poderia estabilizar se se pusesse fim ao processo de centralização e de uniformização administra tiva Ora esse processo centralizado e esse despotismo administrativo lhe pare ciam associados ao movimento democrático A mesma análise que explicava a vocação liberal da democracia america na explicava também os riscos da falta de liberdade na França democrática Em resumo escreve Tocqueville numa frase muito característica da atitude política dos homens do centro e de suas críticas dos extremos até hoje imagino que um homem esclarecido de bom senso e com boas intenções se tome um radi cal na Inglaterra Mas nunca pude conceber a união dessas três coisas no radical francês Há trinta anos era comum esta brincadeira a propósito dos nazistas todos os alemães são inteligentes honestos e hitleristas mas nunca têm mais de duas destas qualidades simultaneamente Tocqueville dizia que na França um ho 226 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mem esclarecido de bom senso e com boas intenções não podia ser um radical Se era esclarecido e tinha bom senso não tinha boas intenções É evidente que o bom senso em política é objeto de julgamentos contra ditórios com base em preferências individuais Auguste Comte não teria hesi tado em afirmar que a nostalgia de Tocqueville pela síntese da Constituinte era desprovida de bom senso O tipo ideal da sociedade democrática O primeiro volume de A democracia na América e LAncien Régime et la Révolution desenvolvem dois aspectos do método sociológico de Tocqueville de um lado o retrato de uma sociedade particular a americana de outro a interpretação sociológica de uma crise histórica a da Revolução Francesa O segundo volume de A democracia na América é a expressão de um terceiro método característico do autor a constituição de uma espécie de tipo ideal a so ciedade democrática a partir do qual ele deduz algumas das tendências da sociedade futura O segundo tomo de A democracia na América difere com efeito do pri meiro pelo método e pelas questões que propõe Tratase quase do que se pode ria chamar de uma experiência mental Tocqueville imagina os traços estrutu rais de uma sociedade democrática definida pelo desaparecimento progressivo das diferenças de classe e pela uniformidade crescente das condições de vida Em seguida enuncia sucessivamente as quatro indagações seguintes qual o re sultado disso no que concerne ao movimento intelectual no que concerne aos sentimentos dos americanos no que concerne aos costumes propriamente ditos e por fim no que concerne à sociedade política O empreendimento é em si mesmo difícil podese mesmo dizer uma aventura Para começar não está provado que a partir das características estru turais de uma sociedade se possa determinar o que será o movimento intelectual ou o que serão os costumes Se imaginarmos uma sociedade democrática em que as distinções de clas se e de condições tenham quase desaparecido é possível saber antecipadamen te como serão a religião a poesia a prosa ou a eloqüência parlamentar Estas são as questões colocadas por Tocqueville No jargão da sociologia moderna são questões que pertencem à sociologia do conhecimento Em que medida o contexto social determina a forma das diferentes ativi dades intelectuais Uma tal sociologia do conhecimento tem caráter abstrato e aleatório a prosa a poesia o teatro e a eloqüência parlamentar das diferentes so ciedades democráticas serão sem dúvida tão heterogêneas no futuro quanto fo ram no passado OS FUNDADORES 227 Além disso pode ser que alguns traços estruturais da sociedade democrá tica que Tocqueville toma como ponto de partida estejam ligados às particu laridades da sociedade americana e outros sejam inseparáveis da essência da sociedade democrática Esta ambigüidade acarreta uma certa incerteza sobre o grau de generalidade das respostas que Tocqueville pode dar às questões que formulou16 As respostas às indagações do segundo volume serão às vezes da ordem da tendência outras vezes da ordem da alternativa A política de uma sociedade democrática será despótica ou será liberal Às vezes também não é possível dar nenhuma resposta a uma questão enunciada em termos tão genéricos Os julgamentos sobre o segundo volume de A democracia na América va riam muito Desde o aparecimento o livro recebeu críticas que lhe negaram os méritos que foram atribuídos ao primeiro Podese dizer que nele Tocqueville ultrapassa seus próprios limites no sentido integral da expressão Seu estilo é mais característico do que nunca com uma grande capacidade de reconstrução ou de dedução a partir de pequeno número de fatos o que às vezes os sociólo gos apreciam e que freqüentemente os historiadores lamentam Na primeira parte do seu livro que é consagrada a estabelecer as conse qüências da sociedade democrática sobre o movimento intelectual Tocqueville passa em revista a atitude com relação às idéias à religião e aos diferentes gê neros literários a poesia o teatro a eloqüência O título do capítulo quatro do livro I lembra uma das comparações prefe ridas de Tocqueville entre os franceses e os americanos Por que os americanos nunca se apaixonaram tanto quanto os franceses pelas idéias gerais em matéria política O C 11 vol 2 p 27 A essa questão Tocqueville responde Os americanos formam um povo democrático que sempre dirigiu seus próprios assuntos públicos e nós somos um povo democrático que durante muito tempo só pôde sonhar com a melhor forma de administrálos Nosso estado social já nos levava a conceber idéias muito genéricas no campo do governo enquanto nossa constituição política nos impedia de retificar essas idéias pela experiência desco brindo aos poucos sua insuficiência ao passo que entre os americanos as duas coi sas se equilibram sem cessar e se corrigem naturalmente Ibid p 27 Essa explicação que pertence à sociologia do conhecimento é contudo de um tipo empírico simples Os franceses têm o gosto da ideologia porque duran te séculos não se puderam ocupar efetivamente com os assuntos públicos Essa i n t e r p r e t a ç ã o tem una alcance amplo De modo geral os estudantes jovens cul 228 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tivam tanto mais as teorias em matéria política quanto menos experiência têm da atividade política Pessoalmente sei que na época em que não possuía ne nhuma experiência do modo como se praticava a política tinha as maiores cer tezas teóricas neste terreno Esta é quase que uma regra do comportamento políticoideológico dos indivíduos e dos povos No capítulo cinco do mesmo livro I Tocqueville desenvolve uma interpre tação de certas crenças religiosas com base na sociedade Essa análise das rela ções entre os instintos democráticos e a forma da crença religiosa vai longe e não deixa de ter interesse mas é também muito aleatória O que disse antes que a igualdade leva os homens a ter idéias muito genéri cas e muito amplas é válido principalmente em matéria de religião Homens se melhantes e iguais concebem facilmente a noção de um Deus único que impõe as mesmas regras a todos concedendolhes a felicidade futura ao mesmo preço A idéia da unidade do gênero humano impeleos sem cessar para a noção de unidade do Criador Pelo contrário os homens muito distanciados uns dos outros e muito diferentes acabam por criar tantas divindades quantos forem os povos as castas as classes e as famílias traçando mil caminhos particulares para chegar ao céu Ibid p 30 Esse texto apresenta outra modalidade de interpretação que pertence ao cam po da sociologia do conhecimento A uniformidade crescente dos indivíduos cada vez mais numerosos não integrados em grupos separados leva a conceber ao mesmo tempo a unidade do gênero humano e a unidade do Criador Podemos encontrar estas explicações também em Auguste Comte Segura mente são explicações simples demais É um tipo de análise genérica que já in dispôs legitimamente muitos historiadores e sociólogos Tocqueville diz ainda que uma sociedade democrática tem tendência a crer na perfectibilidade indefinida da natureza humana Nas sociedades democráti cas predomina a mobilidade social cada indivíduo tem a esperança ou a pers pectiva de ascender na hierarquia social Uma sociedade em que a ascensão é possível tende a conceber no plano filosófico uma ascensão comparável para toda a humanidade Uma sociedade aristocrática em que cada indivíduo tem sua condição determinada pelo nascimento aceita com dificuldade a perfectibili dade indefinida da humanidade porque essa crença seria contraditória com a fórmula ideológica sobre a qual ela repousa Ao contrário a idéia do progres so é quase consubstanciai com uma sociedade democrática17 Nesse caso há não só uma passagem da organização social para uma certa ideologia mas também uma relação íntima entre a organização social e a ideo logia servindo esta última como fundamento da primeira Também em outro capítulo Tocqueville afirma que os norteamericanos se inclinam mais a brilhar nas ciências aplicadas do que nas ciências básicas Esta OS FUNDADORES 229 proposição hoje não é mais válida mas foi válida durante um longo período No estilo que lhe é próprio Tocqueville mostra que uma sociedade democrática preocupada essencialmente com o bemestar mostrará menos interesse pelas ciências básicas do que uma sociedade de tipo mais aristocrático em que os que se dedicam à investigação são ricos e têm bastante lazer18 Podese citar ainda a descrição das relações entre democracia aristocracia e poesia19 Algumas linhas mostram bem quais podem ser os impulsos da ima ginação abstrata A aristocracia conduz naturalmente o espírito humano à contemplação do pas sado fixandoo A democracia pelo contrário dá ao homem uma espécie de desa grado instintivo por tudo o que é antigo Nisso a aristocracia é bem mais favorá vel à poesia pois as coisas ordinariamente se ampliam e se escondem à medida que se tornam distantes e sob esta dupla condição se prestam melhor à pintura do ideal O C 11 vol 2 p 77 Vêse aqui como é possível a partir de um pequeno número de fatos cons truir uma teoria que seria verdadeira se só existisse uma espécie de poesia e se a poesia só pudesse florescer em virtude da idealização das coisas e dos seres afastados no tempo Tocqueville observa que os historiadores democráticos tendem a explicar os acontecimentos por forças anônimas e por mecanismos irresistíveis da ne cessidade histórica enquanto os historiadores aristocráticos tendem a acentuar o papel dos grandes homens20 Nisso certamente tinha razão A teoria da necessidade histórica que nega a eficácia dos acasos e dos grandes homens pertence indubitavelmente à era democrática em que vivemos Na segunda parte sempre a partir dos traços estruturais da sociedade de mocrática Tocqueville procura acentuar os sentimentos fundamentais em toda sociedade desse tipo Numa sociedade democrática reinará a paixão pela igualdade que terá mais força que o gosto pela liberdade A sociedade se preocupará mais em apa gar as desigualdades entre os indivíduos e os grupos do que em manter o res peito pela legalidade e a independência pessoal Será animada pela preocupa ção com o bemestar material e trabalhada por uma espécie de permanente in quietação devido a esta obsessão pelo bemestar material O bemestar mate rial e a igualdade não podem com efeito criar uma sociedade tranqüila e satis feita pois cada indivíduo se compara com os outros e a prosperidade nunca está garantida Mas as sociedades democráticas segundo Tocqueville não serão agi tadas ou instáveis em profundidari 230 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Superficialmente turbulentas elas se inclinarão para a liberdade mas é de temer que os homens amem a liberdade mais como condição do bemestar ma terial do que por si mesma É concebível que em certas circunstâncias quan do as instituições livres parecem funcionar mal e comprometer a prosperidade os homens se inclinem a sacrificar a liberdade na esperança de consolidar o bemestar ao qual tanto aspiram Sobre esse ponto há um trecho particularmente típico do pensamento de Tocqueville A igualdade proporciona a cada dia uma infinidade de pequenos prazeres a cada homem Os encantos da igualdade são sentidos a todo o instante estão ao alcance de todos Os corações mais nobres não são insensíveis a eles e as almas mais vul gares fazem deles as suas maiores delícias A paixão que a igualdade faz nascer de ve portanto ser ao mesmo tempo enérgica e geral Penso que os povos democráticos têm uma preferência natural pela liberdade Entregues a si mesmos eles a amam a procuram e encaram com pesar a sua per da Mas têm pela igualdade uma paixão ardente insaciável eterna invencível Querem a igualdade na liberdade e quando não podem obtêla queremna ainda mais na escravidão Suportarão a pobreza a servidão a barbárie mas não supor tarão a aristocracia O C 11 vol 2 pp 103104 Encontramos aqui dois traços da formação intelectual de Tocqueville a ati tude do aristocrata de antiga família sensível à rejeição da tradição nobiliária característica das sociedades atuais e também a influência de Montesquieu o jogo dialético dos dois conceitos de liberdade e igualdade Na teoria dos regi mes políticos de Montesquieu a dialética essencial é com efeito a da liberda de e da igualdade A liberdade das monarquias se baseia na distinção das clas ses e no sentimento da honra A igualdade do despotismo é a igualdade na ser vidão Tocqueville retoma a problemática de Montesquieu e mostra como o sentimento predominante das sociedades democráticas é a vontade de igualda de a qualquer preço o que pode levar a aceitar a servidão mas não implica a servidão Numa sociedade desse tipo todas as profissões serão honrosas porque te rão no fundo a mesma natureza e serão todas assalariadas Tocqueville diz que a sociedade democrática é uma sociedade de trabalho assalariado universal Ora uma sociedade desse tipo tende a suprimir as diferenças de natureza e de essên cia entre as atividades nobres e as nãonobres Assim a distinção entre o servi ço doméstico e as profissões livres tenderá progressivamente a diminuir e to das as profissões serão um job do mesmo tipo proporcionando uma certa renda Subsistirão sem dúvida desigualdades de prestígio entre as ocupações de acor do com a importância do salário atribuído a cada uma Mas não haverá mais uma diferença de natureza OS FUNDADORES 231 Não existe profissão em que não se trabalhe por dinheiro O salário que é co mum a todas dá a todas um ar de família O C 11 vol 2 p 159 Tocqueville está aqui no seu elemento De um fato aparentemente banal e muito genérico tira uma série de conseqüências que vão longe pois na época em que escrevia essa tendência apenas se iniciava embora hoje pareça ampla e profunda Uma das características menos duvidosas da sociedade americana é a convicção de que todas as profissões são honrosas isto é têm essencialmen te a mesma natureza Tocqueville continua Isto serve para explicar as opiniões dos americanos com relação às diversas profissões Os empregados nos Estados Unidos não se consideram degradados por que trabalham já que à sua volta todos trabalham Não se sentem diminuídos pela idéia de que recebem um salário pois o Presidente dos Estados Unidos também recebe um salário Ele é pago para comandar como os empregados recebem para servir Nos Estados Unidos as profissões são penosas e lucrativas em diferentes graus mas nunca são elevadas ou baixas Toda profissão honesta é honrosa Ibid Poderíamos certamente estabelecer certas precisões neste quadro mas o esquema me parece fundamentalmente verdadeiro Para Tocqueville uma sociedade democrática é uma sociedade individua lista em que cada um tende a se isolar dos outros com sua família Curiosamente esta sociedade individualista apresenta certos traços comuns com o isolamento característico das sociedades despóticas pois o despotismo tende a isolar os in divíduos uns dos outros O resultado porém não é a inclinação ao despotismo da sociedade democrática e individualista pois certas instituições podem impe dir o desvio no sentido deste regime corrompido Essas instituições são asso ciações livremente criadas pela iniciativa dos indivíduos que podem e devem interporse entre o indivíduo solitário e o Estado todopoderoso Uma sociedade democrática tende à centralização e comporta o risco de uma gestão pela administração pública do conjunto das atividades sociais Tocque ville concebeu a sociedade totalmente planificada pelo Estado mas essa admi nistração que abrangeria o conjunto da sociedade e que sob certos aspectos se realiza na sociedade que chamamos hoje de socialista longe de criar o ideal de uma sociedade nãoalienada que sucede à sociedade capitalista representa no seu esquematismo o próprio tipo de uma sociedade despótica que devemos te mer Vêse aqui até que ponto é possível chegar a visões antitéticas e a julga mentos de valor contraditórios de acordo com o conceito utilizado como ponto de partida para nossa reflexão As sociedades democráticas são em conjunto materialistas o que signifi ca que os indivíduos têm a preocupacão de adquirir o máximo de bens destfi 232 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mundo e que o objetivo da coletividade é fazer com que o maior número pos sível de pessoas vivam do melhor modo Tocqueville lembra todavia que como contrapartida desse materialismo am biente surgem de vez em quando explosões de espiritualismo exaltado erup ções de exaltação religiosa Esse espiritualismo que irrompe é contemporâneo do materialismo normalizado e corrente Os dois fenômenos opostos fazem par te da essência de uma sociedade democrática A terceira parte do segundo volume de A democracia na América trata dos costumes Focalizarei sobretudo as idéias de Tocqueville a respeito das revoluções e da guerra Os fenômenos da violência me parecem em si mesmos sociologica mente interessantes Algumas das grandes doutrinas sociológicas como o marxis mo estão centralizadas aliás em fenômenos de violência revoluções e guerras Tocqueville explica primeiramente que os costumes das sociedades demo cráticas tendem a se abrandar que o relacionamento entre os americanos tende a ser simples e fácil pouco artificial e pouco estilizado Desaparecem os refi namentos sutis e delicados da polidez aristocrática cedendo lugar a uma espé cie de bommeninismo para empregar uma linguagem moderna O estilo das relações entre os indivíduos nos Estados Unidos é direto Mais ainda as relações entre senhores e servidores tendem a ser do mesmo tipo das relações entre as pessoas da mesma origem social A gradação da hierarquia aristocráti ca que sobrevive nas relações interindividuais nas sociedades européias desa parece cada vez mais numa sociedade fundamentalmente igualitária como é á americana Tocqueville tem consciência de que esse fenômeno está associado às par ticularidades da sociedade americana mas é tentado a acreditar que as socieda des européias evoluirão no mesmo sentido à medida que se democratizem j Depois examina as guerras e as revoluções em função desse tipo ideal sociedade democrática í Afirma em primeiro lugar que as grandes revoluções políticas ou intelec tuais pertencem à fase de transição entre as sociedades tradicionais e as socie dades democráticas e não à essência destas últimas Em outras palavras as gran des revoluções nas sociedades democráticas se tomarão raras Contudo essas sociedades serão naturalmente sociedades insatisfeitas21 Tocqueville escreve que as sociedades democráticas nunca podem estar sa tisfeitas porque como são igualitárias fomentam a inveja contudo a despei to dessa turbulência superficial são fundamentalmente conservadoras As sociedades democráticas são antirevolucionárias pela razão profunda de que à medida que melhoram as condições de vida aumenta o número dos què têm alguma coisa a perder com uma revolução Nas sociedades democráti OS FUNDADORES 233 cas muitos indivíduos e classes têm um certo patrimônio e não se arriscam a perder seus bens nas incertezas da revolução22 Acreditase que as sociedades novas vão mudar a cada dia eu porém temo que terminem por se fixar de modo invariável nas mesmas instituições nos mes mos preconceitos nos mesmos costumes de tal modo que o gênero humano se detenha e se limite que o espírito se dobre e se feche eternamente sobre si mes mo sem produzir novas idéias que o homem se esgote em pequenos movimentos estéreis e solitários e que a humanidade deixe de avançar perdendose numa agi tação incessante O C 11 vol 2 p 269 Neste ponto o aristocrata tem e não tem razão Tem razão na medida em que as sociedades democráticas desenvolvidas são de fato mais querelosas do que revolucionárias Não tem razão contudo quando subestima o princípio do movimento que anima as sociedades democráticas modernas a saber o desen volvimento da ciência e da indústria Sua tendência era combinar as duas ima gens a das sociedades fundamentalmente estabilizadas e a daquelas basicamen te preocupadas com o bemestar mas o que não viu com suficiente atenção foi que a preocupação com o bemestar associada ao espírito científico provoca um processo ininterrupto de descobertas e inovações técnicas Um princípio revo lucionário a ciência trabalha no seio das sociedades democráticas que sob ou tros pontos de vista são essencialmente conservadoras Tocqueville foi marcado profundamente pelas lembranças da Revolução seus pais tinham sido aprisionados durante o Terror sendo salvos da guilhotina pelo 9termidor Muitos dos seus parentes entre eles Malesherbes tinham sido guilhotinados Por isso era espontaneamente contrário às revoluções e como qualquer pessoa encontrava razões convincentes para justificar seus senti mentos23 Uma das melhores proteções das sociedades democráticas contra o despotis mo dizia é o respeito à legalidade Ora por definição as revoluções violam a lega lidade Habituam os homens a não respeitar a lei Este desprezo pela lei sobrevive às revoluções e se toma uma das causas possíveis do despotismo Tocqueville se inclinava a acreditar que quanto mais as sociedades democráticas fizessem revo luções mais correriam perigo de se tomarem despóticas Isso talvez seja uma justificação de sentimentos anteriores o que não sig nifica que o raciocínio seja falso Tocqueville pensava que as sociedades democráticas seriam pouco propensas à guerra Incapazes de preparar a guerra em tempos de paz seriam incapazes de terminála uma vez que a tivessem iniciado Desse ponto de vista traçou um retra to bastante fiel da política externa dos Estados Unidos até uma data recente A guerra é considerada pela sociedade democrática como um intervalo de sagradável na sua existência normal que é pacífica Em tempos de paz pen 234 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICC sase o menos possível na guerra e não se toma nenhuma precaução assim as primeiras batalhas são geralmente derrotas Contudo se o Estado democrático não é inteiramente derrotado no curso dos primeiros combates termina por se mobilizar completamente e leva a guerra até a vitória total Tocqueville nos dá uma bela descrição da guerra total das sociedades de mocráticas do século XX Quando a guerra prolongandose afastou finalmente todos os cidadãos dos seus trabalhos pacíficos provocando o fracasso dos seus pequenos empreendi mentos o que acontece é que a mesma paixão que os fazia atribuir tanta impor tância à paz levaos às armas Depois de destruir todas as indústrias a guerra se toma em si mesma uma grande e exclusiva indústria para a qual se dirigem de todas as partes os desejos ardentes e ambiciosos que a igualdade fez nascer É por isso que estas mesmas nações democráticas que têm tanta dificuldade em se mover para o campo de batalha realizam às vezes feitos prodigiosos O C 11 vol 2 p 283 O fato de que as sociedades democráticas sejam pouco inclinadas à guer ra não significa que não entrem em guerra Tocqueville considerou que possi velmente fariam a guerra e que esta contribuiria para acelerar a centralização administrativa que abominava e que via triunfar em todos os lugares Por outro lado temia e neste ponto creio que se equivocou que nas societ dades democráticas os exércitos fossem como diríamos hoje belicistas Mostra va por meio de uma análise clássica que os soldados profissionais em parti cular os suboficiais gozando de pouco prestígio em tempo de paz e encontran do as dificuldades de promoção conseqüentes da baixa mortalidade dos oficiais em períodos normais se inclinavam mais a desejar a guerra do que os homens comuns Confesso minha inquietação com essas precisões no aleatório Não de correrão de uma propensão excessiva à generalização24 Por fim Tocqueville acreditava que se surgissem déspotas nas sociedades democráticas eles seriam tentados a fazer a guerra para reforçar seu poder e aOf mesmo tempo para satisfazer seus exércitos A quarta e última parte é conclusiva As sociedades modernas são atraves sadas por duas revoluções uma tende a realizar a igualdade crescente de con dições a uniformidade das maneiras de viver mas também a concentrar cada vez mais a administração na cúpula a reforçar indefinidamente os poderes da gestão administrativa a outra debilita sem cessar os poderes tradicionais Supondose essas duas revoluções revolta contra o poder e centralização administrativa as sociedades democráticas enfrentam a alternativa das institui ções livres ou do despotismo OS FUNDADORES 235 Assim duas revoluções parecem operar atualmente em sentidos contrários uma debilitando continuamente o poder a outra revigorandoo sem cessar Em ne nhuma outra época da nossa história o poder pareceu tão fraco ou tão forte O C 11 vol 2 p 320 É uma bela antítese mas não está formulada com exatidão O que Toc queville quer dizer é que o poder se enfraquece e ao mesmo tempo sua esfera de ação se amplia Na realidade ele visa à ampliação das funções administra tivas e estatais e ao enfraquecimento do poder político de decisão A antítese teria sido talvez menos retórica e mais marcante se Tocqueville tivesse posto em oposição a ampliação de um lado e o enfraquecimento do outro em lugar de opor como ele fez revigoramento e enfraquecimento Como homem político Tocqueville é um solitário ele próprio o disse Pro cedendo do partido legitimista uniuse não sem hesitação e escrúpulos de cons ciência à dinastia de Orléans pois de certo modo rompia com a tradição fami liar Mas tinha posto na Revolução de 1830 a esperança de que se realizaria finalmente seu ideal político isto é a combinação de uma democratização da sociedade e de um reforço das instituições liberais sob a forma da síntese que pa recia desprezível a Auguste Comte e desejável a seus olhos a monarquia cons titucional A Revolução de 1848 o deixou consternado pois lhe pareceu ser a prova de que a sociedade francesa era incapaz de liberdade política Estava portanto só separado dos legitimistas pela razão e dos orleanistas pelo coração No parlamento tinha feito parte da oposição dinástica mas havia condenado a campanha dos banquetes explicando à oposição que ao tentar con seguir uma reforma da lei eleitoral mediante tais procedimentos de propaganda ela iria derrubar a dinastia Em 27 de janeiro de 1848 fez um discurso profético em resposta à Fala do Trono anunciando a revolução que se aproximava No entanto ao redigir suas memórias depois da Revolução de 1848 confessa muito francamente que tinha sido melhor profeta do que esperava no momento em que pronunciou seu discurso Anunciei a revolução dirá ele em substância e meus ouvintes pensaram que exagerava e eu também pensava A revolução estourou cerca de um mês depois de ele a ter anunciado no meio do ceticismo geral que ele compartilhava25 Depois da Revolução de 1848 Tocqueville teve a experiência da República que ele queria que fosse liberal ocupando durante alguns meses o posto de Mi nistro dos Negócios Estrangeiros26 Politicamente Tocqueville pertence portanto ao Partido Liberal isto é a um partido que provavelmente tem poucas oportunidades de encontrar satisfa ção ainda que em querelas na vida oolítica francesa 236 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Como sociólogo Tocqueville pertence à descendência de Montesquieu Combina o método do retrato sociológico com a classificação dos tipos de regi me e dos tipos de sociedade e a propensão a construir teorias abstratas a partir de um pequeno número de fatos Opõese aos sociólogos considerados como clássicos Auguste Comte ou Marx pela rejeição das sínteses amplas que pre tendem prever o curso da história Não acredita que a história passada tenha sido determinada por leis inexoráveis e que os acontecimentos futuros estejam predeterminados Como Montesquieu Tocqueville deseja tomar a história inte ligível não quer suprimila Ora os sociólogos do tipo de Comte e de Marx estão sempre inclinados a suprimir a história pois conhecêla antes de que se realize é tirarlhe a dimensão propriamente humana a da ação e da imprevisi bilidade Indicações biográficas 1805 29 de julho Nasce Alexis de Tocqueville em Vemeuil É o terceiro filho de Hervé de Tocqueville e sua esposa da família Rosambos neta de Malesherbes antigo Diretor da Biblioteca nos tempos da Encyclopédie e depois advogado de Luís XVI Os pais de Alexis de Tocqueville estiveram presos em Paris na época do Terror tendo esca pado da morte com o 9termidor Na Restauração Hervé de Tocqueville foi prefei to em vários departamentos entre eles Moselle e SeineetOise 18101825 Estudos sob a direção do abade Lesueur antigo preceptor de seu pai Es tudos secundários no Colégio de Metz Estudos de direito em Paris 18261827 Viagem à Itália em companhia do irmão Édouard Estada na Sicília 1827 Nomeado por ordem do rei JuizAuditor em Versalhes onde seu pai reside des de 1826 como prefeito 1828 Encontro de Mary Motley Noivado 1830 A contragosto Tocqueville presta juramento a LouisPhilippe Escreve à noiva Finalmente acabo de prestar juramento Minha consciência não me reprova mas nem por isso me sinto menos profundamente ferido considerarei este dia como um dos mais infelizes da minha vida 1831 Tocqueville e Gustave de Beaumont seu amigo solicitam e obtêm do Ministro do Interior uma missão para estudar nos Estados Unidos o sistema penitenciá rio americano 18311832 De maio de 1831 a fevereiro de 1832 permanência nos Estados Unidos viagem através da Nova Inglaterra Québec o Sul Nova Orleans e o Oeste até o lago Michigan 1832 Tocqueville pede demissão como magistrado em solidariedade a seu amigo Gus tave de Beaumont demitido por ter recusado se pronunciar num caso em que a par ticipação do ministério público não lhe parecia honrosa 1833 Du systèmepénitentiaire aux ÊtatsUnis et de son application en France segui do de um apêndice sobre as colônias de G de Beaumont e A de Tocqueville advogados da Corte Real de Paris membros da Sociedade Histórica da Pensilvânia 1835 Publicação dos tomos I e II de A democracia na América com grande êxito No va viagem à Inglaterra e à Irlanda 238 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 1836 Casamento com Mary Motley Artigo na London and Westminster Review L état social et politique de la Fran ce avant et depuis 1789 Viagem à Suíça 1837 Tocqueville se apresenta pela primeira vez às eleições legislativas tendo recusa do o apoio oficial apesar de este lhe ter sido oferecido pelo conde Molé seu parente foi derrotado 1838 Eleito membro da Académie des sciences morales et politiques 1839 Tocqueville é eleito por grande maioria de votos deputado de Vologne circuns crição em que está situado o castelo de Tocqueville Até se retirar da política em 1851 será muitas vezes reeleito 1840 Relator do projeto de lei sobre a reforma das prisões Publicação dos tomos III e IV de La démocratie enAmérique o êxito é menor do que em 1835 1841 Tocqueville é eleito para a Académie française Viagem à Argélia 18421844 Membro da comissão extraparlamentar sobre as questões africanas Eleito conselheiro geral da Mancha como representante dos cantões de Sainte MèreEglise e de Montebourg j 1846 Outubrodezembro Nova viagem à Argélia J 1847 Relator dos créditos extraordinários para a Argélia Em relatório Tocqueville es tabelece sua doutrina sobre a questão da Argélia Com relação aos indígenas mu çulmanos preconiza uma atitude firme mas interessada pelo seu bemestar reco mendando ao governo que incentive ao máximo a colonização européia 1848 27 de janeiro Discurso na Câmara Creio que neste momento estamos dormili do sobre um vulcão 23 de abril Nas eleições por sufrágio universal para a Assembléia Constituint Tocqueville mantém seu mandato Junho Membro da comissão incumbida de elaborar a nova Constituição Dezembro Nas eleições presidenciais Tocqueville vota em Cavaignanc 1849 2 de junho Tocqueville tomase Ministro dos Negócios Estrangeiros EscolHi Arthur de Gobineau como chefe de gabinete e nomeia Beaumont embaixador eu Viena 30 de outubro Tocqueville é obrigado a pedir demissão Sobre este período leias Souvenirs 18501851 Tocqueville escreve Souvenirs í A partir de 2 de dezembro retirase da vida política 1853 Instalado perto de Tours pesquisa sistematicamente nos arquivos da cidade tf documentação proveniente da Ancienne Généralité para obter informações sobré a Société dAncien Régime 1854 Junho a setembro Viagem à Alemanha para estudar o antigo sistema feudal e o que resta dele no século XIX 1856 Publicação da primeira parte de LAncien Régime et la Révolution 1857 Viagem à Inglaterra para consultar documentos sobre a história da Revolução Para retomar à França o Almirantado britânico coloca à sua disposição um navio de guerra como forma de homenagem 1859 Morre em Carmes no dia 16 de abril Notas 1 Embora racionalmente Tocqueville seja favorável a uma sociedade desse tipo cujo objetivo e justificativa consistem em assegurar o máximo de bemestar ao maior número possível de pessoas com o coração ele não aceita sem reservas uma sociedade em que o sentido da grandeza e da glória tende a se perder No prefácio de La démo cratie en Amérique ele escreve A nação considerada como um corpo coletivo será menos brilhante menos gloriosa menos forte talvez mas a maioria dos cidadãos des frutará de condições mais prósperas e o povo mostrarseá pacífico não por ter deses perado de estar melhor mas porque sabe que está bem O C 11 vol 1 p 8 2 No prefácio de La démocratie en Amérique Tocqueville escreve Uma gran de revolução democrática está se operando entre nós todos a enxergam mas nem todos a julgam da mesma maneira Uns a consideram como uma coisa nova e tomandoa co mo um acidente esperam ainda poder detêla outros a julgam irresistível porque ela lhes parece o fato mais contínuo mais antigo e mais permanente que se conhece na his tória O C t 1 vol 1 p 1 O desenvolvimento gradual da igualdade de condições é portanto um fato providencial e tem dele as principais características é universal é duradouro escapa a cada dia do poder humano todos os acontecimentos assim como todos os homens estão a serviço do seu desenvolvimento O livro todo foi escrito sob a impressão de uma espécie de terror religioso produzido na alma do autor pela obser vação dessa revolução irresistível que caminha há tantos séculos transpondo todos os obstáculos e que vemos avançar ainda hoje por entre as ruínas que ela provocou Se longas observações e reflexões sinceras levassem os homens de hoje a reconhecer que o desenvolvimento gradual e progressivo da igualdade é ao mesmo tempo o passado e o futuro da sua história esta descoberta por si só daria a esse desenvolvimento o cará ter sagrado da vontade do senhor soberano Querer deter a democracia pareceria então lutar contra Deus mesmo e às nações só restaria acomodarse ao Estado social que a Providência lhes impõe Ib id pp 4 e 5 3 Notadamente nos capítulos 18 19 e 20 da segunda parte do segundo volume de La démocratie en Amérique O capítulo 18 se intitula Por que entre os norteamerica nos todas as profissões são consideradas honrosas o cap 19 O que faz com que 240 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO quase todos os americanos se inclinem para as profissões liberais o cap 20 De que modo a indústria poderia dar origem à aristocracia No cap 19 Tocqueville escreve Os americanos chegaram ainda ontem à terra onde moram e já alteraram toda a ordem da natureza em seu proveito Uniram o Hudson ao Mississippi e puseram o oceano Atlân tico em comunicação com o golfo do México através de mais de quinhentas léguas de continente que separam esses dois mares As estradas de ferro mais longas já construí das estão nos Estados Unidos O C t 1 vol 2 p 162 4 Cap XX segunda parte 2 volume de La démocratie en Amérique Esse capí tulo se intitula De que modo a aristocracia poderia dar origem à indústria Tocqueville escreve À medida que a massa da nação se volta para a democracia a classe especí fica que se ocupa das indústrias se toma mais aristocrática Numa os homens cada vez mais se assemelham uns aos outros na outra cada vez mais os homens diferem entre si a desigualdade aumenta na pequena sociedade na mesma proporção em que diminui na grande sociedade É assim que quando remontamos à origem pareceme que vemos a aristocracia sair por meio de um esforço natural do próprio seio da democracia Tocqueville baseia essa observação numa análise dos efeitos psicológicos e sociais da divisão do trabalho O operário que passa a vida fazendo cabeças de alfinete esse exem pio Tocqueville tomou emprestado de Adam Smith se degrada Só se tomará um bom5 operário na medida em que for menos homem menos cidadão pensamos aqui em cer tas páginas de Marx O patrão pelo contrário adquire o hábito do comando e no vasto1 mundo dos negócios seu espírito alcança a percepção das totalidades E isso no mesmò momento em que a indústria atrai para si os homens ricos e instruídos das antigas clasÍ ses dirigentes Tocqueville no entanto logo acrescenta Mas essa aristocracia não se assemelha às que a precederam A conclusão é bastante característica do método e dos sentimentos de Tocqueville Penso que em última análise a aristocracia manufa tureira a cuja ascensão nós assistimos é uma das mais duras que apareceram no mundo mas ela é ao mesmo tempo uma das mais restritas e das menos perigosas De qualquer forma é para esse lado que os amigos da democracia devem voltar seus olhares apreen sivamente pois se algum dia a desigualdade permanente de condições e a aristocracia penetrarem novamente no mundo podese prever que elas entrarão por essa porta 0 C 11 vol 2 pp 166167 j 5 Existem duas obras americanas importantes sobre esse assunto Um historiador americano em particular G W Pierson reconstituiu a viagem de Tocqueville detalhou os encontros do viajante com as personalidades americanas identificou a origem d algumas de suas idéias em outros termos confrontou Tocqueville enquanto intérprete da sociedade americana com seus informantes e comentaristas G W Pierson Tocque ville and Beaumont in America Nova York Oxford University Press 1938 Doubleday AnchorBooks 1959 O segundo volume do primeiro tomo de Oeuvres complètes contém uma longa bibliografia sobre os problemas tratados em A democracia na América Essa bibliogra fia foi compilada por JP Mayer 6 Seria oportuno estudar também as muitas páginas que Tocqueville escreveu so bre o sistema jurídico norteamericano a função legal e até mesmo política do júri OS FUNDADORES 241 7 Devese acrescentar que Tocqueville provavelmente é injusto as diferenças en tre as relações dos americanos com os indígenas e as relações hispanoindígenas não estão ligadas apenas à atitude adotada por uns e outros mas também às diferenças quan to à densidade dos povoamentos indígenas do Norte e do Sul 8 Duas obras de Léo Strauss foram traduzidas para o francês De la tyrannie pre cedida do Hiéron de Xenofonte e seguida de Tyrannie et sagesse de Alexandre Kojève Paris Gallimard 1954 Droit naturel et histoire Paris Plon 1954 Ver também Persecution and theArt ofWriting Glencoe The Free Press 1952 The Political Philosophy of Hobbes its Basis and its Genesis Chicago University of Chicago Press 1952 Segundo Léo Strauss A ciência política clássica deve sua existência à perfeição humana ou à maneira pela qual os homens deveriam viver e ela atinge seu ponto cul minante na descrição do melhor sistema político Esse sistema devia ser realizável sem nenhuma mudança milagrosa ou não na natureza humana mas sua realização não era considerada como provável porque acreditavase que ela dependia do acaso Maquiavel ataca essa idéia ao mesmo tempo pedindo que cada um avalie suas posições não sobre a questão de saber como os homens deveriam viver mas como eles vivem realmente e sugerindo que o acaso pode ser ou é controlado É esta crítica que estava na base de todo o pensamento político especificamente moderno De la tyrannie op cit p 45 9 JF Gravier Paris et le désert français 1 ed Paris Le Portulan 1947 2f ed totalmente modificada 1958 O primeiro capítulo desse livro contém aliás como epí grafe uma citação de UAncien Régime et la Révolution Ver também do mesmo autor Uaménagement du territoire et Vavenir dês régions françaises Paris Flammarion 1964 10 O capítulo 4 do livro III de UAncien Régime et la Révolution intitulase Que le règne de Louis XIV a été 1époque la plus prospère de 1ancienne monarchie et com ment cette prospérité même hâta la Révolution Como o reinado de Luís XIV foi a época mais próspera da antiga monarquia e como esta mesma prosperidade precipitou a Revolução O C t II vol 1 pp 218225 Esta idéia que à sua época era relati vamente nova foi retomada pelos historiadores modernos da Revolução A Mathiez escreve A Revolução não eclodirá num país esgotado mas ao contrário num país flo rescente em pleno progresso A miséria que às vezes determina insurreições não pode provocar as grandes alterações sociais Estas surgem sempre do desequilíbrio entre as classes La Révolution Française 11 La chute de la royauté Paris Armand Collin 19511 f ed de 1921 p 13 Ela foi mais bem definida por Emest Labrousse em sua gran de obra La crise de 1économie française à la fin de 1Ancien Régime et au début de la Révolution Paris PUF 1944 11 Na Rússia entre 1890 e 1913 o número dos trabalhadores industriais dobrou passando de 15 para 3 milhões A produção das empresas industriais se multiplicou por 4 A produção de carvão passou de 53 para 29 milhões de toneladas a de aço de 07 para 4 milhões de toneladas a de petróleo de 32 para 9 milhões de toneladas De acordo com Prokopowicz em valor constante a renda nacional russa aumentou globalmente de 40 e a rendaper capita de 17 entre 1900 e 1913 Os progressos no campo da edu cação foram também consideráveis Em 1874 só 214 dos homens sabiam ler e escre 242 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ver em 1914 essa porcentagem era de 678 Entre 1880 e 1914 o número de alunos da escola elementar passou de 1141000 para 8147000 Já em 1899 em O capitalismo na Rússia Lenin observava que os progressos da indústria eram mais rápidos na Rússia do que na Europa ocidental e mesmo nos Estados Unidos Acrescentava O desenvol vimento do capitalismo nos países jovens é muito acelerado pela ajuda e o exemplo dos países velhos Em 1914 um economista francês EdmondThéry de volta de longa via gem de estudo na Rússia afirmava num livro intitulado La transformation économique de la Russie Se entre 1912 e 1950 as coisas se passarem nas grandes nações da Eu ropa como entre 1900 e 1912 em meados deste século a Rússia dominará a Europa tanto do ponto de vista político como do econômico e financeiro As características do crescimento russo antes de 1914 eram participação muito grande do capital estrangeiro o que se traduzia no plano do comércio exterior por um grande déficit da balança comercial estrutura moderna e concentrada do capitalismo grande influência do Estado czarista tanto no estabelecimento da infraestrutura como na organização dos circuitos financeiros 12 H Taine Les origines de la France contemporaine Paris Hachette 18761893 A obra de Taine compreende três partes I UAncien Régime 2 vols II La Rèvolution 6 vols III Le régime modeme 3 vols Os três textos sobre o papel dos intelectuaiít na crise do Antigo Regime e a evolução da Revolução constam dos livros III e IV da primeira parte Esses livros intitulamse Uesprit et la doctrine La propagation de la doctrine Ver principalmente os capítulos 2 Uesprit classique 3 e 4 do livro IIJJ Para corrigir o que há de excessivo nesta interpretação leiase o excelente livro de Dl Momet Les origines intellectuelles de la Rèvolution Paris 1933 D Momet demonçl tra que em grande medida os escritores e homens de letras não tinham semelhança conüj a imagem que nos dão a respeito deles Tocqueville e Taine J 13 Oeuvres complètes t II UAncien Régime et la Rèvolution vol 1 p 302 capítulo 2 do livro III intitulase Comment 1irréligion avait pu devenir une passicp générale et dominante chez les Français du XVIIIe siècle et quelle sorte dinfluence cefjj eut sur le caractère de la Rèvolution 1 14 Não sei se em última análise e a despeito dos vícios chocantes de alguns dcw seus membros houve jamais em todo o mundo um clero mais notável do que o clenj católico da França no momento em que foi surpreendido pela Revolução mais esclasj recido mais nacionalista menos entrincheirado em suas virtudes privadas dotado virtudes públicas e ao mesmo tempo de mais fé a perseguição bem o demonstroo Iniciei o estudo da antiga sociedade cheio de preconceitos contra ele concluío cheio de respeito O C t II vol 1 p 173 15 Este retrato sintético se encontra no final de UAncien Régime et la Rèvolution Começa com estas palavras Quando considero esta nação em si mesma achoa mai extraordinária do que qualquer dos eventos de sua história Terá jamais aparecido no mundo O C t II vol 1 pp 249250 Tocqueville anunciao assim Sem uma visão clara da antiga sociedade de suas leis de seus vícios de seus preconceitos de suas misérias de suas grandezas jamais se compreenderá o que os franceses fizeram durante os sessenta anos que se seguiram à sua queda mas essa visão ainda não seri suficiente se não penetrássemos na própria natureza de nossa naçao OS FUNDADORES 243 16 Tocqueville tem muita consciência dessa dificuldade No prefácio do segundo volume de La démocratie en Amérique afirma Devo prevenir o leitor imediatamen te contra um erro que me seria muito prejudicial Vendome atribuir tantos efeitos di versos à igualdade ele poderia concluir que a considero causa única de tudo o que acontece em nossos dias Isto seria me atribuir um ponto de vista muito estreito Há em nossa época muitas opiniões sentimentos e instintos que devem sua origem a fatos estranhos e até mesmo contrários à igualdade Assim se eu tomasse os Estados Unidos como exemplo provaria facilmente que a natureza do país a origem dos seus habitan tes a religião dos fundadores as luzes que adquiriram e seus hábitos anteriores exerce ram e exercem ainda uma imensa influência sobre sua maneira de pensar e de sentir independentemente da democracia Na Europa encontraríamos causas diferentes mas também distintas do fato da igualdade que explicariam em boa parte o que acontece ali Reconheço a existência de todas essas diferentes causas e seu poder mas meu tema não é esse Não estou empenhado em demonstrar a razão de todas as nossas inclinações e de todas as nossas idéias quis somente fazer ver em que a igualdade tinha modificado umas e outras O C 11 vol 2 p 7 17 Primeira parte cap VIII Como a igualdade sugere aos norteamericanos a idéia da perfectibilidade indefinida do Homem O C 11 vol 2 pp 3940 18 Primeira parte cap X Por que os norteamericanos se interessam mais pela prática das ciências do que pela sua teoria O C 11 vol 2 pp 4652 19 Primeira parte cap XIII a XIX especialmente o cap XIII Fisionomia lite rária dos séculos democráticos e o cap XVII Sobre algumas fontes de poesia nas na ções democráticas 20 Primeira parte cap XX Sobre algumas tendências particulares dos historia dores nos séculos democráticos O C 11 vol 2 pp 8992 21 Relendo Tocqueville percebi que uma idéia que eu considerava mais ou menos como minha e que já havia exposto nas minhas aulas sobre a sociedade industrial e a luta de classes já se encontrava com palavras diferentes em Tocqueville o gosto das sociedades industriais modernas pela querela Vide R Aron Dixhuit leçons sur la so ciété industrielle Paris Gallimard 1962 Ed brasileira 18 lições sobre a sociedade industrial São Paulo Martins Fontes Editora 1981 trad Sérgio Bath N do E La lutte de classes Paris Gallimard 1964 22 Nas sociedades democráticas a maioria dos cidadãos não vêem claramente o que poderiam ganhar com uma revolução sentindo contudo a cada instante e de mil maneiras o que poderiam perder O C t I vol 2 p 260 Se houver algum dia grandes revoluções nos Estados Unidos da América elas serão provocadas pela presen ça dos negros em solo americano isto é sua origem não será a igualdade de condições mas ao contrário a desigualdade Ibid p 263 23 Lembrome como se fosse hoje de uma noite num castelo onde morava meu pai em que uma festa de família reunira muitos dos nossos parentes próximos Os empregados foram mantidos afastados Toda a família estava reunida em tomo da larei ra Minha mãe que tinha a voz suave e penetrante pôsse a cantar uma ária famosa durante o período dos distúrbios cuja letra fazia referência às desgraças do rei Luís XVI e à sua morte Quando ela terminou todos choravam não pelas muitas misérias 244 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO individuais sofridas nem pelos muitos parentes perdidos na guerra civil e no cadafalso mas pelo destino daquele homem morto havia mais de quinze anos e que a maior parte daqueles que vertiam lágrimas por ele nunca tinha visto Mas aquele homem tinha sido o rei Citado por JP Mayer in Alexis de Tocqueville Paris Gallimard 1948 p 15 24 Sobre esse assunto ver o cap XXIII da terceira parte Qual é nos exércitos democráticos a classe mais guerreira e mais revolucionária Tocqueville termina esse capí tulo assim Em todo exército democrático é sempre o suboficial que representará menos o espírito pacífico e regular do país e o soldado que o representará melhor O soldado trará para a carreira militar a força ou a fraqueza dos costumes nacionais ele fará com que apareça só a imagem fiel da nação Se ela é ignorante e fraca ele deixará que seus chefes o levem à desordem sem que o perceba ou à sua revelia Se ele for esclarecido e enérgico ele mesmo os manterá dentro da ordem O C 11 vol 2 p 280 25 Esse discurso se encontra na edição de Oeuvres complètes de JP Mayer como um dos apêndices do segundo volume de La démocratie en Amérique O C 11 vol 2 pp 368369 Foi pronunciado a 27 de janeiro de 1848 durante a discussão do projeto de mensagem em resposta ao discurso do trono Nesse discurso Tocqueville denunciava a indignidade da classe dirigente que ficara clara nos inúmeros escândalos do fim do rei nado de LouisPhilippe Tocqueville concluía Será que os senhores não sentem por uma espécie de intuição instintiva que não se pode analisar mas que é certa que mais uma vez o solo da Europa está tremendo Será que os senhores não sentem como diria um vento de revoluções que está no ar Não se sabe onde esse vento nasce nem de onde vem e nem acreditem quem ele arrebata e é numa época como esta que os se nhores se mantêm tranqüilos diante da degradação dos costumes públicos pois essa pala vra não é forte demais 26 Teve como chefe de gabinete Arthur de Gobineau ao qual continuou ligado por uma grande amizade apesar da incompatibilidade radical das respectivas idéias Mas nessa época Gobineau ainda era jovem e Tocqueville já era um homem famoso EmI 1848 os dois volumes de La démocratie en Amérique já tinham sido publicados e Go bineau ainda não havia escrito nem Es sai sur l inégalité des races humaines nem suaái grandes obras literárias Les pléiades Les nouvelles asiatiques La Renaissance AdéA laide e Mademoiselle Irnois Bibliografia OBRAS DE TOCQUEVILLE Oeuvres complètes d Alexis de Tocqueville edição definitiva publicada sob a direção de Jakob Peter Mayer Paris Gallimard Segundo as previsões esta edição deverá compreender treze tomos e vinte e dois volumes Até 1967 tinham sido publicados T I De la démocratie en Amérique 2 vols T II UAncien Régime et la Révolution 2 vols 1 vol texto da primeira parte publi cado em 1856 2 vol Fragments et notes inédites sur la Révolution T III Ecrits et discours politiques 1 vol Études sur 1abolition de 1esclavage l Algérie l Inde T Y Voyages 1 vol Voyages en Sicile et auxEtatsUnis 2 vol Voyages enAngleterre Irlande Suisse et Algérie T VI Correspondance anglaise IP vol Correspondance avec HenryReeve et JohnStuart Mill T IX Correspondance d Alexis de Tocqueville et d Arthur de Gobineau T XII Souvenirs OBRAS GERAIS Chevallier JJ Les grandes oeuvres politiques Paris Armand Colin 1949 Hearnshaw F J C ed The Social Political Ideas of some Representative Thinkers of the Victorian Age artigo de H J Laski Alexis de Tocqueville and Democracy Londres G G Harrap 1933 Leroy Maxime Histoire des idées sociales en France t II de Babeuf à Tocqueville Paris Gallimard 1950 246 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO OBRAS SOBRE ALEXIS DE TOCQUEVILLE Brunius T Alexis de Tocqueville the Sociological Aesthetician Uppsala Almquist and Wiksell 1960 Diez dei Corral L La mentalidad politica de Tocqueville con especial referencia a Pascal Madri Ediciones Castilla 1965 DEichtal E Alexis de Tocqueville et la démocratie libérale Paris CalmannLévy 1857 Gargon E T Alexis de Tocqueville the Criticai Years 18481851 Washington The Catholic University of America Press 1955 Gõring H Tocqueville und die Demokratie MünchenBerlim R Oldenburg 1928 Herr R Tocqueville and the Old Regime Princeton Princeton University Press 1962 Lawlor M Alexis de Tocqueville in the Chamber of Deputies his Views on Foreign and Colonial Policy Washington The Catholic University of America Press 1959 Lively J The Social and Political Thought of Alexis de Tocqueville Oxford Clarendon Press 1962 Mayer J P Alexis de Tocqueville Paris Gallimard 1948 Pierson G W Tocqueville and Beaumont in America Nova York Oxford University Press 1938 Roland Mareei PR Essai politique sur Alexis de Tocqueville Paris Alcan 1910 Alexis de Tocqueville le livre du centenaire 18591959 Paris Éd du CNRS 1960 OBRAS EM PORTUGUÊS Tocqueville Alexis de A democracia na América tradução prefácio e notas de Neil Ribeiro da Silva 2f ed Belo Horizonte Ed Itatiaia São Paulo EDUSP 1977 O Antigo Regime e a Revolução tradução de Yvonne Jean Brasília Editora Univer sidade de Brasília 1979 Os sociólogos e a Revolução de 1848 Quando me ponho a procurar em diferentes épocas nos diferentes po vos a causa eficiente que provocou a ruína das classes que governavam distingo com clareza um certo acontecimento um certo homem uma certa causa acidental ou superficial mas acreditem o motivo real a causa eficiente que leva os homens a perderem o poder é o fato de se tornarem indignos de exercêlo Alexis de Tocqueville Discurso na Câmara dos Deputados em 24 de janeiro de 1848 É interessante sob vários aspectos estudar a atitude dos três últimos so ciólogos apresentados em relação à Revolução de 1848 Para começar a Revolução de 1848 a curta duração da II República e o golpe de Estado de Luís Napoleão Bonaparte marcaram sucessivamente a des truição de uma monarquia constitucional em benefício da república e em segui da a destruição da república em benefício de um regime autoritário O pano de fundo de todos esses acontecimentos foi a ameaça ou o medo de uma revolução socialista No curso do período 18481851 sucederamse a dominação tempo rária de um governo provisório no qual a influência socialista era forte a luta entre a Assembléia Constituinte e o povo de Paris e por fim a rivalidade entre uma Assembléia Legislativa de maioria monarquista que defendia a república e um Presidente eleito pelo sufrágio universal que pretendia estabelecer um império autoritário Em outros termos no curso do período de 18481851 a França conheceu uma luta política que se assemelha mais às lutas políticas do século XX do que a qualquer outro episódio do século XIX Podese observar com efeito no perío do de 18481851 a luta triangular entre os que chamaríamos hoje de fascistas de democratas mais ou menos liberais e de socialistas luta que se observou tam bém por exemplo entre 1920 e 1933 na Alemanha de Weimar Não há dúvida de que os socialistas franceses de 1848 não têm grande se melhança com os comunistas do século XX os bonapartistas de 1850 não são os fascistas de Mussolini nem os nacionalsocialistas de Hitler Contudo não deixa de ser verdade que esse período da história política da França no século XIX já mostra os principais atores e as rivalidades típicas do século XX Além disso este período intrinsecamente interessante foi comentado ana lisado e criticado por Auguste Comte Marx e Tocqueville Seus julgamentos sobre os acontecimentos da época são característicos da doutrina de cada ume 248 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO nos ajudam a compreender ao mesmo tempo a diversidade dos julgamentos de valor a variedade dos sistemas de análises e a abrangência das teorias abstra tas desenvolvidas por estes autores Auguste Comte e a Revolução de 1848 O caso de Auguste Comte é o mais simples Ele se regozija primeiramen te pela destruição das instituições representativas e liberais que para ele esta vam associadas ao espírito metafísico crítico e anarquizante ligadas também às particularidades da evolução da Inglaterra Nos escritos de juventude Auguste Comte compara o processo de desen volvimento político da França com o da Inglaterra Na Inglaterra pensava a aris tocracia se havia aliado à burguesia e até mesmo ao povo para reduzir gradual mente a influência e a autoridade da monarquia A evolução política da França tinha sido em sentido oposto a monarquia se aliara às comunas e à burguesia para reduzir a influência e a autoridade da aristocracia Segundo Auguste Comte o regime parlamentar inglês não era mais do que a forma assumida pela dominação da aristocracia O parlamento inglês era a ins tituição através da qual a aristocracia governava a Inglaterra como antes gover nara Veneza Para Comte portanto o parlamentarismo não é uma instituição política de vocação universal mas um simples acidente da história inglesa Querer intro duzir na França instituições representativas importadas de alémMancha é um erro histórico fundamental pois não há neste país as condições essenciais que permitam o florescimento do parlamentarismo Mais ainda é cometer um erro político de conseqüências funestas procurar justapor monarquia e parlamenta rismo uma vez que a Revolução Francesa teve por inimigo justamente a mo narquia expressão suprema do Antigo Regime Em suma a combinação da monarquia e do parlamentarismo ideal da Cons tituinte parece a Auguste Comte impossível pois repousa num duplo erro de princípio relativo à natureza das instituições representativas em geral e à his tória da França em particular Além disso Auguste Comte é favorável à centralização que lhe parece refletir a lei da história da França Vai tão longe que considera a distinção entre as leis e os decretos como sutilezas inúteis de legistas metafísicos Em função desta interpretação da história ele se satisfaz portanto com a supressão do parlamento francês em benefício do que chama de ditadura tem porária e é tentado a se alegrar com o fato de que Napoleão III tenha definiti vamente liquidado o que Marx teria denominado cretinismo parlamentar1 Um texto do Curso de filosofia positiva caracteriza o pensamento político e histórico de Auguste Comte a esse respeito OS FUNDADORES 249 De acordo com nossa teoria histórica em virtude de toda a condensação ante rior dos diversos elementos do regime antigo em torno da realeza está claro que o esforço primordial da Revolução Francesa para abandonar irrevogavelmente a antiga organização devia consistir de modo necessário na luta direta do poder popular contra o poder real cuja preponderância caracterizava um tal sistema des de o fim da segunda fase moderna Ora embora esta época preliminar só possa ter tido com efeito como única destinação política a de preparar gradualmente a eli minação próxima da realeza que até então os mais intrépidos inovadores não te riam ousado conceber é notável que a metafísica constitucional sonhasse então ao contrário com a união indissolúvel do princípio monárquico com o poder popu lar como a da Constituição católica com a emancipação mental Especulações tão incoerentes não mereceriam hoje a menor atenção filosófica se não devêssemos ver nelas a primeira prova direta de uma aberração geral que exerce ainda a in fluência mais deplorável para dissimular radicalmente a verdadeira natureza da reorganização moderna que reduz esta regeneração fundamental a uma vã imita ção universal da Constituição transitória particular à Inglaterra Tal foi com efeito a utopia política dos principais líderes da Assembléia Cons tituinte e eles buscaram certamente a sua realização direta na medida em que a contradição radical dessa utopia com o conjunto das tendências características da sociabilidade francesa comportava essa busca Eis portanto o lugar apropriado para aplicar imediatamente nossa teoria his tórica à breve apreciação desta perigosa ilusão Embora em si mesma ela tenha sido por demais grosseira para exigir uma análise especial a gravidade das suas con seqüências me obriga a indicar ao leitor as bases principais deste exame que aliás não terá dificuldade em desenvolver espontaneamente de conformidade com as explicações específicas dos dois capítulos precedentes A ausência de toda sã filosofia política antes de mais nada leva a imaginar sem dificuldade o impulso empírico que determinou naturalmente tal aberração que sem dúvida devia ser profundamente inevitável já que pôde seduzir de forma completa até mesmo a razão do grande Montesquieu2 Cours de philosophie posi tive t VI p 190 Essa passagem levanta várias questões fundamentais é verdade que a mo dernidade excluía na França a manutenção da monarquia Auguste Comte tem razão de considerar que uma instituição ligada a um certo sistema de pensamen to não pode sobreviver em outro sistema Um positivista tem motivos para crer que a monarquia francesa tradicional estava vinculada a um sistema intelectual e social católico feudal e teológico mas um liberal teria respondido que uma instituição contemporânea de deter minado sistema de pensamento pode transformandose sobreviver em outro sis tema histórico e continuar a prestar serviços Comte estará certo ao reduzir as instituições de tipo britânico à singulari dade do governo de uma etapa de transição Terá razão em considerar as insti 250 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tuições representativas como ligadas intrinsecamente ao domínio de uma aris tocracia mercantil Inspirandose nessa teoria geral o exaluno da École Polytechnique via em conseqüência sem desprazer um ditador temporal pôr fim à inútil imitação das instituições inglesas e ao domínio aparente dos falastrões metafísicos do Par lamento Em Système de politique positive manifestou esta satisfação chegan do mesmo a escrever na introdução do tomo II uma carta ao Czar em que ex primia a esperança de que esse ditador que qualificava de empírico pudesse aceitar os ensinamentos do mestre da filosofia positiva contribuindo assim de forma decisiva para a reorganização fundamental da sociedade européia Essa dedicatória ao Czar provocou algumas reações na escola positivista No tomo II o autor modificou um pouco o tom devido à aberração temporária à qual o ditador se deixou arrastar a saber a guerra da Criméia cuja responsa bilidade Auguste Comte parece ter atribuído à Rússia O período das grandes guerras estava de fato historicamente encerrado e Auguste Comte felicitou o ditador temporal da França por haver posto fim nobremente à aberração tem porária do ditador temporal da Rússia Esse modo de ver as instituições parlamentares não está se ouso empregar a linguagem de Auguste Comte associado exclusivamente ao caráter especial do grande mestre do positivismo Essa hostilidade em relação às instituições parlamentares consideradas metafísicas ou britânicas existe ainda hoje3 Vale notar aliás que Auguste Comte não queria excluir inteiramente a representa ção mas achava suficiente que uma assembléia se reunisse a cada três anos para aprovar o orçamento j A meu ver os julgamentos históricos e políticos se explicam pela inspira ção principal da sociologia Esta tal como Auguste Comte a concebeu e Durkheim ainda a praticou tomava como centro o social e não o político subordinando mesmo o segundo ao primeiro o que pode levar à depreciação do regime polí tico em benefício da realidade social fundamental Durkheim compartilhava a indiferença tingida de agressividade ou desprezo do criador da palavra sociolo gia com relação às instituições parlamentares Apaixonado pelas questões sociais pelos problemas de moral e de reordenação das organizações profissionais considerava o que acontecia no Parlamento como secundário talvez irrisório Alexis de Tocqueville e a Revolução de 1848 O contraste entre Tocqueville e Comte é marcante Tocqueville considera como o grande projeto da Revolução Francesa o que Auguste Comte qualifica de uma aberração à qual até o grande Montesquieu sucumbiu Lamenta o insuces so da Constituinte isto é o fracasso dos reformadores burgueses que preten OS FUNDADORES 251 diam combinar a monarquia com as instituições representativas Considera im portante se não mesmo essencial a descentralização administrativa que Comte vê com desprezo Finalmente interessase pelas combinações constitucionais que Auguste Comte afastava como metafísicas e indignas de consideração séria A posição social destes dois autores é também muito diferente Auguste Comte era examinador na École Polytechnique e viveu muito tempo com os modestos vencimentos que recebia por esse trabalho Tendo perdido o empre go passou a viver graças às contribuições dos positivistas Pensador solitário que mal saía do seu domicílio na rua MonsieurlePrince criou uma religião da hu manidade de que era ao mesmo tempo Profeta e Grande Sacerdote Esta con dição singular devia dar à manifestação das suas idéias uma forma extrema não adaptada diretamente à complexidade dos acontecimentos Na mesma época Alexis de Tocqueville descendente de uma antiga família da aristocracia francesa representava a circunscrição da Mancha na Câmara dos Deputados da Monarquia de julho Quando ocorreu a Revolução de 1848 encon travase em Paris Ao contrário de Auguste Comte sai do seu apartamento e pas seia pelas ruas emocionase profundamente com o que vê Depois no momento das eleições para a Assembléia Constituinte volta à sua circunscrição eleitoral onde é eleito por imensa maioria Na Assembléia desempenha papel importante como membro da comissão que redige a Constituição da II República Em maio de 1849 com Luís Napoleão Bonaparte na Presidência da Repú blica Tocqueville é nomeado Ministro dos Negócios Estrangeiros na pasta de Odilon Barrot quando do remanejamento ministerial Será Ministro durante cin co meses até que o Presidente da República decide demitir esse Ministério que tinha ainda um caráter excessivamente parlamentar e que era dominado pela antiga posição dinástica isto é pelo partido liberal monarquista que se tomara republicano por resignação já que não era possível naquele momento restaurar a monarquia Portanto no período de 18481851 Tocqueville é um monarquista transfor mado em republicano conservador porque não há restauração possível nem da monarquia legitimista nem da monarquia de Orléans Mas ele é também hostil ao que chama de monarquia bastarda que vê como uma ameaça A monar quia bastarda é o Império de Luís Napoleão que todos os observadores com um mínimo de clarividência passam a temer a partir do dia em que o povo francês votou em sua grande maioria não em Cavaignac o general republicano defen sor da ordem burguesa mas em Luís Napoleão que só tinha em seu favor o nome o prestígio do tio e algumas aventuras ridículas As reações de Tocqueville aos acontecimentos estão registradas num livro apaixonante Souvenirs E o único livro que escreveu ao correr da pena Toc queville trabalhava muito seus escritos meditando no que escrevia e corrigin do incessantemente Contudo a propósito dos acontecimentos de 1848 lançou 252 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO sobre o papel para sua satisfação pessoal memórias em que se exprime com franqueza admirável já que não se destinavam à publicação Fez julgamentos se veros sobre vários de seus contemporâneos dando assim um testemunho de inestimável valor sobre os sentimentos reais que os atores da grande história e os da pequena história têm uns pelos outros No dia da Revolução 24 de fevereiro a reação inicial de Tocqueville é qua se de desespero e de desalento O parlamentar Tocqueville é um conservador li beral resignado com a modernidade democrática apaixonado pelas liberdades intelectuais pessoais e políticas Para ele essas liberdades estão encarnadas nas instituições representativas que as revoluções sempre põem em perigo Está con vencido de que ao se multiplicarem as revoluções tomam cada vez mais impro vável a sobrevivência das liberdades A 30 de julho de 1830 ao raiar do dia encontrei na alameda exterior de Ver salhes as carruagens do Rei Carlos X os brasões reais já raspados rodando vaga rosamente em fila com um ar de funeral Não pude conter as lágrimas diante desse espetáculo Desta vez isto é em 1848 minha impressão era de outra nature za mas ainda mais viva Era a segunda revolução a que assistia em dezessete anos Ambas me haviam afligido mas as impressões causadas pela última eram mais amargas Havia sentido até o fim por Carlos X um resto de afeição hereditária Mas esse Rei caía por ter violado direitos que me eram caros esperava ainda que a liberdade do meu país fosse reanimada com sua queda e não extinta Agora essa liberdade me parecia morta Os príncipes que fugiam nada representavam para mim no entanto sentia que minha causa estava perdida Havia passado os mais belos anos da juventude numa sociedade que parecia retomar à prosperidade e à gran deza ao reconquistar a liberdade Tinha concebido a idéia de uma liberdade mode rada regular contida pelas crenças os costumes e as leis Os encantos de tal liber dade me haviam tocado Ela se tomara a paixão de toda a minha vida Sentia que nunca me consolaria da sua perda e que era preciso renunciar a ela O C t XII p 86 Mais adiante Tocqueville conta uma conversa com Ampère um dos seus amigos e colegas do Instituto que segundo ele era um típico homem de letras Regozijavase por uma revolução que lhe parecia estar de acordo com seu ideal já que os partidários da reforma levavam a melhor sobre os reacionários ao modo de Guizot Via no horizonte depois da ruína da monarquia as perspectivas de uma república próspera Segundo o seu testemunho Tocqueville e Ampère discu tiram com paixão se a revolução seria um acontecimento bom ou mau Depois de muito gritar terminamos por apelar para o julgamento do futuro juiz esclare cido e íntegro mas que sempre chega tarde demais O C t XII p 85 Escrevendo alguns anos depois da Revolução de 1848 Tocqueville está mais convencido do que nunca de que fora um acontecimento infausto Do seu ponto OS FUNDADORES 253 de vista não poderia ser de outro modo uma vez que o último resultado da Re volução tinha sido a substituição de uma monarquia semilegítima liberal e mo derada pelo que Comte chamou de ditador temporário e Tocqueville descreveu como monarquia bastarda e que nós mais vulgarmente chamamos de Império autoritário É difícil acreditar aliás que do ponto de vista político o regime de Luís Napoleão fosse superior ao de LouisPhilippe Mas estes são julgamentos matizados por preferências pessoais hoje ainda nos compêndios escolares de história o entusiasmo de Ampère aparece mais do que o ceticismo moroso de Tocqueville As duas atitudes características da intelligentzia francesa a do en tusiasmo revolucionário que não vê conseqüências e a do ceticismo sobre os resultados últimos das revoluções sobrevivem ainda hoje e provavelmente continuarão vivas quando meus estudantes começarem a ensinar o que se deve pensar da história da França Naturalmente Tocqueville procura explicar as causas da Revolução no seu estilo normal que é o mesmo de Montesquieu A Revolução de fevereiro como to dos os grandes acontecimentos do gênero tem causas gerais completadas pela ação de acidentes Seria tão superficial excluir as primeiras como os segundos Existem causas gerais mas estas não bastam para explicar um acontecimento par ticular que poderia ser diferente O texto mais característico sobre este ponto é o seguinte A Revolução Industrial que em trinta anos tinha feito de Paris a maior cidade industrial da França atraiu para seus muros toda uma nova população de operá rios à qual o trabalho das fortificações acrescentara outra multidão de agricultores agora desempregada o ardor dos prazeres materiais que sob o aguilhão do gover no excitava essa multidão cada vez mais a doença democrática da inveja que a trabalhava surdamente as teorias econômicas e políticas que começavam a se evi denciar tendendo a fazer crer que as misérias humanas eram o resultado das leis e não da Providência que era possível suprimir a pobreza mudando a base da socie dade o desprezo em que haviam caído a classe governante e sobretudo os homens que se encontravam à sua frente desprezo tão generalizado e profundo que para lisava a resistência até mesmo dos que tinham mais interesse na manutenção do poder que se subvertia a centralização que reduzia as operações revolucionárias à conquista de Paris e à tomada da máquina governamental a mobilidade enfim de todas as coisas instituições idéias homens e costumes numa sociedade móvel que foi revolvida por sete grandes revoluções em menos de sessenta anos sem contar um grande número de pequenos distúrbios secundários estas foram as causas gerais sem as quais a Revolução de fevereiro teria sido impossível Os principais aciden tes que a provocaram foram a paixão da oposição dinástica que preparou uma re volta querendo fazer uma reforma a repressão dessa revolta a princípio excessi va depois abandonada o desaparecimento súbito dos antigos ministros destruin do subitamente os fios do poder que os novos ministros muito perturbados não souberam reparar a tempo ou refazer os erros e o espírito desordenado desses mi 254 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO nistros tão insuficientes para reconstruir aquilo que tinham tido tanta força para destruir as hesitações dos generais a ausência dos únicos príncipes que tinham su ficiente vigor e popularidade sobretudo a imbecilidade senil do rei LouisPhilippe fraqueza que ninguém poderia ter previsto e que ainda hoje depois que os fatos a revelaram continua sendo quase incrível O C t XII p 84 Esse tipo de descrição analítica e histórica de uma revolução é característico de um sociólogo que não aceita nem o determinismo inexorável da história nem sua explicação como mera sucessão de acidentes Como Montesquieu Tocqueville quer tomar a história inteligível Contudo tomála inteligível não é mostrar que os acontecimentos não poderiam ter sido diferentes é encontrar a combinação de cau sas gerais e secundárias que tecem a trama dos acontecimentos De passagem Tocqueville acentua um fenômeno endêmico na França o desprezo com que são tratados os governantes Esse fenômeno se repete ao fim de cada regime e explica o caráter pouco sangrento de muitas revoluções fran cesas De modo geral os regimes caem quando ninguém quer continuar a lutar por eles Assim cem anos depois de 1848 a classe política que governava a França havia caído num desprezo tão geral que paralisou mesmo os que teriam tido o maior interesse em se defender Tocqueville compreendeu bem que a Revolução de 1848 apresentava inicial mente um caráter socialista Contudo embora politicamente liberal ele era social mente conservador Pensava que as desigualdades sociais estavam inscritas na ordem natural das coisas ou pelo menos que eram inevitáveis na sua época Julgou por tanto com extrema severidade os membros socialistas do govemo provisório consi derando como o fez Marx aliás que tinham ultrapassado os limites toleráveis da estupidez Aliás um pouco como Marx Tocqueville constata puramente como observador que numa primeira fase entre o mês de fevereiro de 1848 e a reunião da Assembléia Constituinte em maio os socialistas tiveram em Paris portanto em toda a França uma influência considerável Serviramse bastante dessa influência para aterrorizar os burgueses e a maioria dos camponeses e bem pouco para ganhar uma posição de poder No momento do choque definitivo com a Assembléia Constituin te não tinham nenhum meio de saírem vitoriosos senão por uma revolta Os líderes socialistas da Revolução de 1848 não souberam explorar as circunstâncias favorá veis entre fevereiro e maio A partir da reunião da Assembléia Constituinte não sabiam se deviam fazer o jogo da Revolução ou o do regime constitucional De pois no momento decisivo abandonaram suas tropas os operários de Paris que nas terríveis jornadas de junho combateram sozinhos sem chefes Tocqueville é violentamente hostil aos líderes socialistas e aos revoltosos de junho Mas sua hostilidade não o cega De um lado reconhece a coragem extraordinária demonstrada pelos operários parisienses ao enfrentar o exérci to regular mas admite que o descrédito dos líderes socialistas talvez não seja definitivo OS FUNDADORES 255 Segundo Marx a Revolução de 1848 mostra que o problema essencial das sociedades européias passara a ser o problema social As revoluções do século XIX serão sociais e não políticas Preocupado com a liberdade individual Toc queville vê essas revoltas insurreições ou revoluções como catastróficas mas tem consciência do fato de que apresentam um certo caráter socialista Por um lado se uma revolução socialista lhe parece no momento impossível e se não vê com bons olhos um regime estabelecido sobre outras bases que não seja o princípio da propriedade por outro lado conclui prudentemente que O socialismo continuará sepultado no desprezo que cobre tão justamente os socialistas de 1848 Faço esta pergunta sem respondêla Não duvido de que a longo prazo as leis constitutivas da nossa sociedade moderna sejam modificadas na ver dade já o foram em muitas das suas partes principais Chegarseá porém algum dia a destruílas substituindoas por outras Isto me parece impraticável Não avança rei nada mais pois à medida que estudo a situação do mundo antigo e que vejo mais detalhadamente o mundo de nossos dias quando considero sua prodigiosa diversidade não só de leis mas dos princípios em que se assentam e as diferen tes modalidades assumidas pelo direito de propriedade da terra sou tentado a acre ditar que aquilo que chamamos de instituições necessárias muitas vezes são ape nas as instituições com as quais estamos habituados e que em matéria de consti tuição social o campo do possível é bem mais amplo do que imaginam os homens que vivem em cada sociedade O C t XII p 97 Em outras palavras Tocqueville não exclui que os socialistas derrotados em 1848 possam ser num futuro mais ou menos longínquo aqueles que trans formarão a própria organização social Depois da descrição das jornadas de junho o restante das lembranças de Tocqueville está consagrado ao relato sobre a redação da Constituição da II Re pública a sua participação no segundo Ministério Odilon Barrot a luta dos mo narquistas liberais que se tornaram republicanos por oposição tanto à maioria realista da Assembléia quanto a seu Presidente suspeito de pretender restabe lecer o império4 Assim Tocqueville viu o caráter socialista da Revolução de 1848 e conde nou a ação dos socialistas como insensata Pertencia ao partido da ordem bur guesa e durante as revoltas de junho estava pronto a se bater contra os operá rios revoltados Na segunda fase da crise foi um republicano moderado um partidário daquilo que se chamaria mais tarde de república conservadora e se fez antibonapartista Foi derrotado mas não se surpreendeu com a derrota pois desde junho de 1949 pensava que as instituições livres estavam provisoriamen te condenadas que a Revolução tomaria inevitável um regime autoritário e de pois da eleição de Luís Napoleão previu naturalmente a restauração do Império No entanto como não é necessário ter esperança para empreender lutou con 256 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tra a solução que lhe parecia ao mesmo tempo a mais provável e a menos dese jável Sociólogo da escola de Montesquieu não pensava que o que acontece é necessariamente o que devia acontecer ou o que a Providência decidiria se fos se bondosa ou a Razão se fosse todopoderosa Karl Marx e a Revolução de 1848 Marx viveu o período histórico entre 1848 e 1851 de modo bem diferente de Comte e de Tocqueville Não se retirou na torre de marfim da rua Mon sieurlePrince como o primeiro nem foi Deputado à Assembléia Constituinte ou à Assembléia Legislativa e Ministro de Odilon Barrot e de Luís Napoleão como o segundo Jornalista e agitador revolucionário participou ativamente dos acontecimentos na Alemanha Tinha morado na França e conhecia muito bem a política e os revolucionários franceses Era portanto uma testemunha ativa com relação àquele país Além disso acreditava no caráter internacional da Re volução e se sentia diretamente interessado pela crise francesa Muitos julgamentos que encontramos em seus dois livros As lutas de clas ses na França 18481850 e O 18 brumário de Luís Bonaparte estão de acordo com os Souvenirs de Tocqueville Como Tocqueville Marx ficou impressionado com o contraste entre as revol tas de 1848 em que as massas operárias de Paris combateram sós e sem líderes durante vários dias e os distúrbios de 1849 nos quais os líderes parlamentares da Montagne tentaram em vão desencadear revoltas sem serem seguidos por seus partidários Os dois estão igualmente conscientes de que os acontecimentos de 1848 1851 não representam mais simplesmente dificuldades políticas são o pró dromo de uma revolução social Tocqueville constata com espanto que agora se questiona todo o fundamento da sociedade e leis respeitadas há séculos Marx exclama com um tom de triunfo que a subversão social a seus olhos necessá ria está em vias de se realizar As escalas de valores do aristocrata liberal e do revolucionário são diferentes e até contrárias O respeito pelas liberdades polí ticas que para Tocqueville é algo sagrado aos olhos de Marx é superstição de um homem do Antigo Regime Marx não tem nenhum respeito pelo parlamento e pelas liberdades formais O que um quer salvar acima de tudo é para o outro secundário e até mesmo um obstáculo no caminho daquilo que lhe parece es sencial a revolução social Os dois vêem uma espécie de lógica histórica na passagem da Revolução de 1789 para a Revolução de 1848 Para Tocqueville a revolução continua pro vocando o questionamento da ordem social e da propriedade depois da destrui ção da monarquia e das ordens privilegiadas Marx vê nesta revolução social o OS FUNDADORES 257 surgimento do quarto estado após a vitória do terceiro As expressões não são as mesmas os juízos de valor são opostos embora se encontrem num ponto es sencial uma vez destruída a monarquia tradicional derrubada a aristocracia do passado é normal que o movimento democrático que tende à igualdade social se dirija contra os privilégios subsistentes que são os da burguesia No pensa mento de Tocqueville a luta contra a desigualdade econômica está condenada à derrota pelo menos na sua época Ele parece quase sempre considerar as desi gualdades da sorte como naturais ligadas à ordem eterna das sociedades Marx porém acha que não é impossível por uma reorganização da sociedade redu zir ou eliminar as desigualdades econômicas Mas os dois notam a passagem da revolução contra a aristocracia para a revolução contra a burguesia da subver são contra o Estado monárquico para a subversão contra toda a ordem social Finalmente Marx e Tocqueville se encontram na análise das fases da revo lução Os acontecimentos de 18481851 na França fascinavam os espectadores daquela época e continuam a nos parecer fascinantes pela articulação dos con flitos Em poucos anos a França viveu a maioria das situações típicas dos confli tos políticos nas sociedades modernas Durante uma primeira fase de 24 de fevereiro de 1848 a 4 de maio do mesmo ano uma rebelião derruba a monarquia e o governo provisório inclui vários so cialistas que exercem uma influência predominante durante alguns meses Com a reunião da Assembléia Constituinte iniciase uma segunda fase A maioria da Assembléia eleita pelo conjunto da nação é conservadora e até mes mo reacionária e monarquista Surge um conflito entre o governo provisório predominantemente socialista e a Assembléia conservadora Esse conflito le va às revoltas de junho de 1848 revolta do proletariado parisiense contra uma assembléia eleita por sufrágio universal mas que em razão da sua composição é vista como um inimigo pelos operários de Paris A terceira fase tem início com a eleição de Luís Napoleão em dezembro de 1848 ou segundo Marx com o fim da Constituinte em maio de 18490 Pre sidente da República aceita a legitimidade bonapartista e se considera ungido pelo destino Presidente da II República tem de se haver primeiramente com uma Assembléia Constituinte de maioria monarquista depois com uma Assembléia Legislativa que tem igualmente maioria monarquista mas que inclui cento e cin qüenta representantes da Montagne A partir da eleição de Luís Napoleão começa um conflito sutil com fren tes múltiplas Incapazes de chegar a um acordo sobre o nome do monarca e a res tauração da monarquia os monarquistas se tornam defensores da república por hostilidade a um Luís Napoleão desejoso de restaurar o Império Este utiliza procedimentos que os parlamentares consideram demagógicos De fato há na tática de Luís Napoleão elementos do pseudosocialismo ou do socialismo verdadeiro dos fascistas do século XX Como a Assembléia Legislativa come 258 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO te o erro de suprimir o sufrágio universal no dia 2 de dezembro Luís Napoleão revoga a Constituição dissolve a Assembléia Legislativa e restabelece simulta neamente o sufrágio universal Mas Marx também procura e está aí a sua originalidade explicar os acon tecimentos políticos pela infraestrutura social Esforçase por mostrar nos conflitos propriamente políticos a manifestação ou por assim dizer o aflora mento no nível político dos distúrbios profundos dos grupos sociais Tocque ville evidentemente também o faz Mostra os grupos sociais em conflito na França de meados do século XIX Os atores principais do drama são os campo neses a pequena burguesia parisiense os operários de Paris a burguesia e os resíduos da aristocracia atores que não são muito diferentes dos que Marx mostra em cena Contudo embora explique os conflitos políticos pelas disputas sociais Tocqueville mantém o caráter específico ou a autonomia pelo menos relativa da ordem política Marx pelo contrário procura em todas as ocasiões encontrar uma correspondência termoatermo entre os acontecimentos no pla no político e na infraestrutura social Em que medida conseguiu isso As duas brochuras de Marx As lutas de classes na França e O 18 brumário de Luís Bonaparte são obras brilhantes Sob muitos aspectos são a meu ver mais profundas e satisfatórias do que seus grossos livros científicos Inspirado pela sua clarividência de historiador Marx esquece suas teorias e analisa os acon tecimentos como observador genial Exemplificando a interpretação da política pela infraestrutura social es creve 10 de dezembro de 1848 isto é o dia da eleição de Luís Napoleão foi o dia da insurreição dos camponeses Somente a partir desse dia os camponeses da Fran ça tiveram seu fevereiro símbolo que exprime sua entrada no movimento revolu cionário desajeitado e astuto ingênuo e maroto sublime e rude superstição cal culada burlesco patético anacronismo genial e estúpido travessura da história mundial hieróglifo indecifrável para a razão dos homens civilizados um símbolo que marcou sem que possamos nos enganar a fisionomia da classe que representa a barbárie no seio da civilização A ela a República se tinha anunciado pelo arauto da corte mas ela própria se anunciara à República pelo imperador Napoleão era o único homem que representava até o fundo os interesses e a imaginação da nova classe camponesa que 1789 tinha criado Ao escrever seu nome sobre o frontispí cio da República ela declarava guerra ao estrangeiro e reivindicava seus interesses de classe no interior do país Para os camponeses Napoleão não era uma pessoa mas um programa Com bandeiras e com música foram às umas gritando Não mais impostos Abaixo os ricos Abaixo a República Viva o imperador Por trás do im perador se ocultava a rebelião camponesa A República abatida com seus votos era a República dos ricos Les lutíes de classes en France Éd Sociales p 57 OS FUNDADORES 259 Mesmo os nãomarxistas admitem que os camponeses votaram em Luís Napoleão Representando na época a maioria do eleitorado preferiram o sobri nho real ou suposto do Imperador Napoleão a Cavaignac um general repu blicano Num sistema de interpretação psicopolítico dirseia que por causa do seu nome Luís Napoleão era um chefe carismático Diz Marx revelando seu desprezo pelo camponês que este pouco civilizado preferiu um símbolo napo leônico a uma personalidade republicana autêntica nesse sentido Luís Napo leão foi bem o representante dos camponeses contra a república dos ricos O que parece problemático é saber em que Luís Napoleão por ter sido eleito pelos cam poneses se teria tornado o representante dos interesses da classe Não era ne cessário que os camponeses escolhessem Luís Napoleão para interpretar seus interesses de classe Como também não era necessário que as medidas tomadas por Luís Napoleão estivessem de acordo com o interesse de classe dos campo neses O Imperador fez o que seu gênio ou sua estupidez lhe sugeriu O voto camponês em favor de Luís Napoleão é um fato incontestável A transforma ção desse fato em teoria leva à proposição O interesse de classe dos campo neses foi expresso em Luís Napoleão Um texto relativo aos camponeses em O 18 brumário de Luís Bonaparte permite compreendêlo Marx descreve a situação de classe dos camponeses Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições eco nômicas que as separam umas das outràs e opõem seus interesses tipos de vida e cultura aos de outras classes da sociedade essas famílias constituem uma classe Contudo deixam de ser uma classe na medida em que só existe entre esses cam poneses um vínculo local e em que a semelhança dos seus interesses não cria en tre eles nenhuma comunidade ligação nacional ou organização política Por isso são incapazes de defender diretamente seus interesses de classe por meio de um Parlamento ou Assembléia Não podem representar a si mesmos precisam ser re presentados Seus representantes devem parecerlhes ao mesmo tempo como uma autoridade superior e como um poder governamental absoluto que os protege con tra as outras classes e lhes manda do alto a chuva e o bom tempo A influência política dos camponeses encontra assim sua expressão última na subordinação da sociedade ao poder executivo Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte Ed Sociales p 98 Vemos aí uma descrição muito penetrante da condição equívoca classe e nãoclasse da massa camponesa Os camponeses têm um modo de vida mais ou menos semelhante que lhes dá a primeira característica de uma classe social faltalhes porém a capacidade de tomar consciência de si mesmos como uma unidade Incapazes de representar seus próprios interesses eles são uma classe passiva que só pode ser representada por pessoas que não pertençam a ela o que constitui um princípio de explicação para o fato de que os campo neses tenham eleito um homem Luís Napoleão aue não era camponês 260 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Resta porém uma dificuldade importante o que acontece no cenário políti co pode ser explicado adequadamente pelo que ocorre na infraestrutura social Por exemplo segundo Marx a monarquia legitimista representava a pro priedade rural e a monarquia orleanista a burguesia financeira e mercantil Ora estas duas dinastias nunca puderam entenderse Durante a crise de 18481851 a disputa das duas dinastias foi o obstáculo intransponível à restauração da mo narquia Será que as duas famílias reais não podiam chegar a um acordo sobre o nome do pretendente ao trono porque uma representava a propriedade rural e a outra a propriedade industrial e mercantil Ou essa dificuldade de entendi mento se explica pelo fato de que por definição só um dos pretendentes podia ocupar o trono A dúvida não se inspira numa rigidez da crítica ou em falta de sutileza mas coloca o problema fundamental da interpretação da política pela infraestru tura social Admitamos que Marx tenha razão que a monarquia legitimista seja de fato o regime da grande propriedade fundiária e da nobreza tradicional e que a monarquia de Orléans represente os interesses da burguesia financeira Era o conflito de interesses econômicos que impedia a unidade ou o simples fenôme no aritmético por assim dizer de que só podia haver um monarca Naturalmente Marx é tentado a explicar a impossibilidade do acordo pela incompatibilidade dos interesses econômicos5 A fragilidade desta interpreta ção está no fato de que em outros países e em outras circunstâncias os proprie tários de terras puderam conciliar seus interesses com os da burguesia industrial e mercantil Um trecho de O 18 brumário de Luís Bonaparte é particularmente signi ficativo Os diplomatas do partido favorável à ordem acreditavam poder liquidar a luta pelo que chamavam de fusão das duas dinastias dos partidos realistas e suas res pectivas casas reais A verdadeira fusão da Restauração e da monarquia de julho era a República parlamentar na qual se baseavam as cores orleanistas e legitimistas e na qual os diferentes tipos de burgueses desapareciam na burguesia pura e simples no gênero burguês Agora porém o orleanista devia tomarse legitimista e o legi timista um orleanista Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte Éd Sociales pp 7677 Marx tem razão Não se pode exigir nada de semelhante a menos que por sorte o pretendente de uma das duas famílias consinta em morrer A interpre tação é aqui puramente política exata e satisfatória Os dois partidos monar quistas só podiam entrar num acordo em uma república parlamentar única forma de reconciliar os dois pretendentes a um trono que só tolera um ocupan te Quando há dois pretendentes para evitar que um esteja nas Tulherias e o outro no exílio é preciso que nenhum esteja no poder Neste sentido a repúbli ca parlamentar representava a conciliação das duas dinastias Marx continua OS FUNDADORES 261 A realeza que personificava seu antagonismo devia encarnar sua unidade e transformar em interesse comum da sua classe a expressão dos seus interesses ex clusivos de facções A monarquia devia realizar o que a negação das duas monar quias isto é a república podia realizar e tinha efetivamente realizado Era a pedra filosofal para fabricála os doutores do partido da ordem quebravam a cabeça Como se a monarquia legítima pudesse tornarse a monarquia da burguesia indus trial ou a realeza burguesa pudesse ser a realeza da aristocracia fundiária e here ditária Como se a propriedade da terra e a indústria pudessem confraternizar sob a mesma coroa coroa que adornaria uma só cabeça a do irmão mais velho ou a do caçula Como se a indústria pudesse de modo geral conciliarse com a proprie dade fundiária sem que esta se decidisse a se transformar em industrial Se Hen rique V morresse amanhã o conde de Paris não se tomaria o rei dos legitimistas a menos que deixasse de ser o rei dos orleanistas Ibid p 77 Marx faz uma mistura sutil e insinuante de duas explicações a explicação política segundo a qual dois pretendentes ao trono se opondo a única forma de conciliar seus seguidores era a república parlamentar e a interpretação socio econômica fundamentalmente diferente segundo a qual a propriedade da terra não podia conciliarse com a burguesia industrial a menos que se industriali zasse Encontramos hoje uma teoria deste último tipo entre os analistas marxis tas ou de inspiração marxista para explicar a V República francesa Esta não pode ser a república de De Gaulle É preciso que seja a república do capitalis mo modernizado ou de qualquer outro elemento da infraestrutura social6 Esta explicação é naturalmente mais profunda sem contudo ser necessariamente verdadeira A impossibilidade de conciliar os interesses da propriedade fundiá ria e da burguesia industrial é um fantasma sociológico O dia em que um dos dois príncipes não tiver mais descendentes a conciliação dos dois pretendentes se fará automaticamente e os interesses até então opostos encontrarão milagro samente uma forma de compromisso A impossibilidade da reconciliação entre os dois pretendentes era de natureza essencialmente política Não há dúvida de que a explicação dos acontecimentos políticos pela sua base social é legítima e válida mas a explicação termoatermo é em larga medida parte da mitologia sociológica Ela se realiza de fato pela projeção na infraestrutura social do que observamos na cena política Depois de constatar que os dois pretendentes não podiam se entender decretamos que a proprieda de fundiária não pode ser conciliada com a propriedade industrial o que nega mos um pouco adiante ao explicarmos que tal conciliação se faz no seio da re pública parlamentar Ora se o acordo fosse socialmente impossível sêloia tan to numa república parlamentar como numa monarquia Este caso é a meu ver típico Mostra ao mesmo tempo o que é aceitável e até necessário nas explicações sociais dos conflitos políticos e o que é errado Os sociólogos profissionais ou amadores sentem a consciência pesada quando 262 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO se limitam a explicar as mudanças de regime e as crises políticas pela política Pessoalmente inclinome a acreditar que o detalhe dos acontecimentos políti cos raramente pode ser explicado a não ser pelos homens pelos partidos por suas disputas e por suas idéias Luís Napoleão é o representante dos camponeses no sentido de que foi eleito pelo eleitorado do campo O general De Gaulle é do mesmo modo o re presentante dos camponeses porque sua política foi aprovada em 1958 por 85 dos franceses Há cem anos o mecanismo psicopolítico não era essencialmente diferente do que é hoje mas ele nada tem a ver com as distinções das classes sociais e menos ainda com os interesses de classe de um grupo determinado Quando os franceses se cansam com os conflitos sem solução e pressentem a presença de um homem marcado pelo destino os franceses de todas as classes se unem àquele que promete salválos Na última parte de O 18 brumário de Luís Bonaparte Marx procede a uma análise pormenorizada do governo de Luís Napoleão e do modo como ele ser viu aos interesses de diferentes classes Luís Napoleão foi aceito pela burguesia diz Marx porque defendia seus interesses econômicos fundamentais Em con trapartida esta teve de renunciar ao exercício direto do poder político A burguesia não tinha então claramente uma alternativa senão eleger Bona parte Era o despotismo ou a anarquia e favoreceu como era natural o despotis mo Enquanto poder executivo independente da sociedade Bonaparte se sente chamado a garantir a ordem burguesa Mas a força dessa ordem burguesa é a classe média Por isso se coloca como representante dessa classe e promulga de creto dentro desse espírito Mas ele só é alguma coisa porque quebrou e ainda que bra diariamente a influência política dessa classe média Por isso se posiciona como adversário do poder político e literário da classe média Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte Ed Sociales p 104 Há em toda esta análise um elemento particularmente interessante o re conhecimento do poder decisivo do Estado O poder executivo com sua imensa organização burocrática e militar seu me canismo estatal complexo e artificial seu exército de funcionários de meio milhão de homens e seu outro exército de quinhentos mil soldados espantoso corpo para sita que cobre como por uma membrana a sociedade francesa obturando todos os seus poros se constitui na época da monarquia absoluta quando do declínio do feudalismo que ele ajudou a subverter Os privilégios senhoriais dos grandes pro prietários fundiários e das cidades se transformaram em outros tantos atributos do poder do Estado os dignitários feudais em funcionários com vencimentos e o mapa complexo dos direitos soberanos medievais contraditórios tomouse o plano bem formulado de um poder de Estado cujo trabalho é dividido e centralizado como numa fábrica A primeira revolução francesa que assumiu como objetivo destruir OS FUNDADORES 263 todos os poderes independentes locais territoriais municipais e provinciais para criar a unidade burguesa da nação devia necessariamente desenvolver a obra co meçada pela monarquia absoluta a centralização mas ao mesmo tempo também a ampliação os atributos e o aparelho do poder governamental Napoleão acabou de aperfeiçoar o mecanismo do Estado A monarquia legítima e a monarquia de julho só fizeram acrescentar uma maior divisão do trabalho crescendo à medida que a divisão do trabalho dentro da sociedade burguesa criava novos grupos de in teresses e em conseqüência um novo material para a administração de Estado Cada interesse comum foi imediatamente destacado da sociedade oposto a ela a título de interesse superior geral retirado à iniciativa dos membros da sociedade trans formado em objeto da atividade governamental desde a ponte a escola e a pro priedade municipal da menor povoação até as estradas de ferro as universidades e o patrimônio nacional A República parlamentar por fim se viu obrigada na sua luta contra a revolução a fortalecer com suas medidas repressivas os meios de ação e a centralização do poder governamental Todas as revoluções políticas só tinham levado ao aperfeiçoamento desta máquina em vez de levar à sua destruição Os par tidos que se revezaram na luta pelo poder consideravam a conquista desse imenso edifício do Estado como a mais importante presa do vencedor O 18 brumário de Luís Bonaparte Éd Sociales p 96 Em outras palavras Marx descreveu o prodigioso desenvolvimento do Es tado administrativo centralizado este mesmo Estado que Tocqueville analisou e do qual ele mostrou as origens prérevolucionárias que ele viu ganhar pro gressivamente amplitude e poderio à medida que se processava o desenvolvi mento democrático Quem dirige esse Estado exerce inevitavelmente uma influência conside rável sobre a sociedade Também Tocqueville considera que todos os partidos contribuem para o crescimento dessa enorme máquina administrativa Está con vencido além disso de que um Estado socialista contribuiria ainda mais para am pliar as funções do Estado e para centralizar a administração Marx afirma que o Estado adquiriu uma espécie de autonomia com relação à sociedade Basta que um aventureiro vindo do estrangeiro seja guindado ao poder por uma sol dadesca embriagada comprada com aguardente e lingüiça e à qual é necessá rio sempre atirar mais Ibid p 97 Para Marx a verdadeira revolução con sistiria não em se apropriar dessa máquina porém em destruíla A isso Tocque ville teria respondido se a propriedade dos meios de produção deve tomarse coletiva e a gestão da economia precisa ser centralizada que milagre poderia levar à destruição da máquina estatal Na verdade encontramos em Marx duas teorias sobre o papel do Estado na revolução Em A guerra civil na França o livro que escreveu sobre a Co muna de Paris sugere que a Comuna isto é a desativação do Estado central e a descentralização forçada constitui o conteúdo genuíno da ditadura do prole 264 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tariado Em outras passagens porém encontramos a idéia oposta de que é pre ciso reforçar ao máximo o poder político e a centralização estatal para poder fazer a revolução Tocqueville e Marx observaram igualmente a máquina estatal centralizada Tocqueville concluiu que se deveriam multiplicar os corpos intermediários e as instituições representativas para limitar o poder e a extensão indefinida do Es tado Marx admitiu a autonomia parcial do Estado com relação à sociedade fór mula contraditória com sua teoria geral de que o Estado era a simples expressão da classe dominante esperando ao mesmo tempo que a revolução socialista pu desse induzir a destruição da máquina administrativa Como teórico Marx pretende fundamentar a política e seus conflitos nas relações e nas lutas das classes sociais Em vários pontos essenciais contudo sua clarividência de observador vence seu dogmatismo e ele reconhece de cer ta forma involuntariamente os fatores políticos dos conflitos de regime e auto nomia do Estado com respeito aos vários grupos Na medida em que existe esta autonomia pelo menos um elemento do processo de desenvolvimento das so ciedades não pode ser reduzido à luta de classes A demonstração mais gritante do caráter específico e da autonomia da ordem política com relação às lutas sociais é a Revolução Russa de 1917 Um grupo toma o poder à maneira de Luís Napoleão embora com processos mais violentos e transforma toda a estrutura da sociedade russa edificando o socia lismo a partir não da predominância do proletariado mas sim do poder da má quina estatal O que não se encontra no esquema teórico marxista vamos encontrar nas análises históricas de Marx ou nos acontecimentos cujos autores são recomen dados pelo próprio Marx Os quatro autores que estudamos nesta primeira parte do livro deram ori gem a três escolas A primeira é a que se poderia chamar de escola francesa da sociologia polí tica cujos fundadores foram Montesquieu e Tocqueville Em nossos dias Elie Halévy pertence a esta tradição7 É uma escola de sociólogos pouco dogmáticos interessados antes de tudo na política que sem desprezar a infraestrutura social aceitam a autonomia da ordem política e têm idéias liberais Eu mesmo prova velmente sou um descendente atrasado desta escola A segunda escola é a de Auguste Comte Ela leva a Durkheim no princí pio deste século e talvez aos sociólogos franceses de hoje Deprecia a impor tância do político e do econômico em relação ao social colocando a ênfase so bre a unidade do todo social e retendo o conceito de consenso como conceito fundamental Multiplicando análises e conceitos esforçase por reconstruir a totalidade da sociedade OS FUNDADORES 265 A terceira escola a marxista é a que teve o maior êxito se não nos meios acadêmicos pelo menos no cenário da história universal Tal como interpretada por centenas de milhões de pessoas combina a explicação do conjunto social a partir da infraestrutura socioeconômica com um esquema do futuro que garan te a seus fiéis a vitória É a mais difícil de discutir em razão de seu êxito histó rico nunca se sabe que versão discutir a versão do catecismo necessário a toda doutrina de Estado ou a versão sutil a única aceitável pelos espíritos esclareci dos Sobretudo porque entre estas duas versões há uma comunicação incessan te cujas modalidades variam com as peripécias imprevisíveis da história A despeito das divergências na escolha de valores e na visão histórica es sas três escolas sociológicas são interpretações da sociedade moderna Auguste Comte é um admirador quase irrestrito desta sociedade moderna que chama de industrial e que segundo crê será pacífica e positivista Para a escola política a sociedade moderna é uma sociedade democrática que devemos observar sem transportes de entusiasmo ou indignação mas não representa a realização final do destino do homem A terceira escola combina o entusiasmo comtista pela so ciedade industrial com a indignação contra o capitalismo Supremamente oti mista com respeito ao futuro distante é sombriamente pessimista com relação ao futuro imediato anunciando longo período de catástrofes guerras e lutas de classe Em outras palavras a escola comtista é otimista com tendência à serenida de a escola política é reservada com uma sombra de ceticismo a escola mar xista é utopista com a tendência de admitir as catástrofes como desejáveis ou pelo menos inevitáveis Cada uma dessas escolas reconstrói à sua maneira o conjunto social Cada uma delas tem uma versão própria da diversidade das sociedades históricas e atribui um sentido ao nosso presente Cada uma delas se inspira ao mesmo tempo em convicções morais e em afirmações científicas Procurei distinguir o que era convicção e o que era afirmação científica Mas não esqueço que mes mo aquele que procura distinguir esses dois elementos distingueos em função de suas próprias convicções Cronologia da Revolução de 1848 e da II República 18471848 Agitação em Paris e no interior em favor da reforma eleitoral campanha dos banquetes 1848 Fevereiro 22 A despeito da proibição pelo governo banquete e manifestação re formista em Paris Fevereiro 23 A guarda nacional de Paris se manifesta aos gritos de Viva a re forma Guizot demissionário À noite choque entre as tropas e o povo os cor pos dos manifestantes mortos são exibidos pelas ruas Fevereiro 24 De manhã Paris está em plena revolução Os rebeldes republica nos se apossam do Hôtel de Ville e ameaçam as Tulherias LouisPhilippe abdica em favor do conde de Paris seu neto e foge para a Inglaterra Os rebeldes invadem a Câmara dos Deputados para impedir que a regência seja confiada à duquesa de Orléans À noite estabelecese um governo provisório com Dupont de 1Eure Lamartine Crémieux Arago LedruRollin GamierPagès Os secretários do Go verno são A Marrast Louis Blanc Flocon e Albert Fevereiro 25 Proclamação da República Fevereiro 26 Abolição da pena de morte por crimes políticos Fevereiro 29 Abolição dos títulos de nobreza Março 2 Fixação da jornada legal de trabalho em dez horas Paris e onze horas no interior Março 5 Convocação às eleições para a Assembléia Constituinte Março 6 GarnierPagès tornase Ministro das Finanças acrescenta um imposto de 45 centavos por franco a todas as contribuições diretas Março 16 Manifestações dos elementos burgueses da guarda nacional em pro testo contra a dissolução das companhias de elite Março 17 Contramanifestação popular de apoio ao governo provisório Os so cialistas e republicanos de esquerda pedem o adiamento das eleições Abril 16 Nova manifestação popular pelo adiamento das eleições O governo provisório apela à guarda nacional para controlála Abril 23 Eleição dos 900 representantes que compõem a Assembléia Constituin te Os republicanos progressistas só dispõem de 80 cadeiras os legitimistas têm OS FUNDADORES 267 uma centena os orleanistas de diversos matizes têm duas centenas A maioria da Assembléia está com os republicanos moderados cerca de 500 cadeiras Maio 10 A Assembléia nomeia uma comissão executiva de cinco membros pa ra garantir o governo Arago GarnierPagès Lamartine LedruRollin Marie Maio 15 Manifestação em favor da Polônia liderada por Barbès Blanqui e Raspail Os manifestantes invadem a Câmara e o Hôtel de Ville Um novo gover no revolucionário chega a ser anunciado à multidão Barbès e Raspail são presos Junho 45 Luís Napoleão Bonaparte é eleito deputado em três departamentos do Sena Junho 21 Dissolução dos ateliers nationaux Junho 2326 Distúrbios Toda a parte leste e a parte central de Paris caem nas mãos dos operários parisienses rebeldes que graças à inação de Cavaignac Ministro da Guerra se entrincheiram por trás de barricadas Junho 24 A Assembléia dá plenos poderes a Cavaignac que esmaga a insurreição Julhonovembro Constituição de um grande partido defensor da ordem Thiers prestigia Luís Napoleão Bonaparte que é muito popular também nos meios ope rários Redação da Constituição pela Assembléia nacional Novembro 12 Proclamação da Constituição que prevê um Chefe do Executivo eleito por sufrágio universal Dezembro 10 Eleição do presidente da República Luís Napoleão consegue 5500000 votos Cavaignac 1400000 LedruRollin 375000 Lamartine 8000 Dezembro 20 Luís Napoleão jura fidelidade à Constituição 1849 Marçoabril Julgamento e condenação de Barbès Blanqui Raspail chefes das tentativas revolucionárias de 1848 Abriljulho Expedição de Roma Um corpo expedicionário francês toma a cida de e restabelece os direitos do papa Pio IX Maio Eleições para a Assembléia legislativa que conta agora com 75 republica nos moderados 180 Montagnards e 450 monarquistas do partido da ordem le gitimistas e orleanistas Junho Manifestações em Paris e Lyon contra a expedição de Roma 1850 Março 15 Lei Falloux reorganizando o ensino público Maio 31 Lei eleitoral que obriga a três meses de domicílio no cantão de regis tro eleitoral Cerca de três milhões de operários itinerantes são assim impedidos de votar Maiooutubro Agitação socialista em Paris e nos departamentos Agostosetembro Negociações entre legitimistas e orleanistas para a restauração da monarquia Setembrooutubro Desfiles militares no acampamento de Satory diante do Prín cipepresidente A cavalaria desfila aos gritos de Viva o Imperador Luta entre a maioria da Assembléia e o Príncipepresidente 1851 Julho 17 O general Magnan devotado aos interesses do Príncipepresidente é nomeado governador militar de Paris substituindo Changamier fiel à maioria monarquista da Assembléia 268 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Dezembro 2 Golpe de Estado com a proclamação do estado de sítio dissolu ção da Assembléia restabelecimento do sufrágio universal Dezembro 20 O príncipe Napoleão por 7350000 votos contra 646000 é elei to por dois anos e recebe todos os poderes para promulgar uma nova Constituição 1852 Janeiro 14 Promulgação da nova Constituição Novembro 20 Novo plebiscito aprova por 7840000 votos contra 250000 a res tauração da dignidade imperial na pessoa de Luís Napoleão que assume o títu lo de Napoleão III Notas 1 No entanto Auguste Comte não tinha tradição bonapartista Desde o liceu de Montpellier fora mesmo muito hostil à política e à lenda de Napoleão Com exceção do período dos CemDias em que Comte então aluno da École Polytechnique fora to mado pelo entusiasmo jacobino reinante em Paris Napoleão Bonaparte sempre foi para ele o tipo do grande homem que não compreendendo o curso da história teve uma atuação retrógrada não deixando nada atrás de si A 7 de setembro de 1848 véspera da eleição presidencial escreve à sua irmã Eu que nunca mudei meus sentimentos que você bem conheceu em 1814 com respeito ao herói retrógrado consideraria vergonho sa para o meu país a restauração política da sua raça Mais tarde falará do voto fan tástico dos camponeses franceses que poderiam do mesmo modo conferir a seu fetiche uma longevidade de dois séculos com imunidade à gota Mas a 2 de dezembro de 1851 aplaudiu o golpe de Estado preferindo uma ditadura à república parlamentar e à anar quia Essa atitude provoca o afastamento de Littré e dos discípulos liberais da socieda de positivista No entanto isso não impedirá Comte de chamar de mascarade mama mouchique a combinação de soberania popular e de princípio hereditário que a restau ração do Império em 1852 supõe profetizará então que em 1853 ocorrerá um desmo ronamento do regime Auguste Comte em várias ocasiões teve a esperança em 1851 depois quando publicou em 1855 o Appel aos conservadores de que Napoleão pudesse se converter ao positivismo Mas também em várias ocasiões voltou suas esperanças para os proletários dos quais admira a pureza filosófica que opõe à meta física dos eruditos Em fevereiro de 1848 apóia convictamente a revolução Em junho fechado em seu apartamento da rua MonsieurlePrince próximo às barricadas que cer cam o Panthéon e onde se desenrolam lutas muito violentas Comte está a favor dos proletários contra o governo dos metafísicos e literatos Quando fala sobre os rebeldes diz nós mas lamenta que eles ainda sejam seduzidos pelas utopias dos vermelhos esses macacos da grande revolução A atitude política de Comte durante a II República pode parecer portanto muito flutuante e cheia de contradições No entanto é a conseqüência lógica de um pensamento político que coloca o sucesso do positivis mo acima de tudo não pode reconhecêlo em nenhum dos partidos e de qualquer 270 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO forma considera a revolução como apenas uma crise anárquica transitória No entanto há um sentimento que domina todos os outros o desprezo pelo parlamentarismo Uma passagem do prefácio do segundo tomo de Système de politique positive publicado em 1852 nas vésperas do restabelecimento do Império representa a síntese de Auguste Comte sobre os acontecimentos dos quatro últimos anos Nossa última crise fez ao que me parece que a República francesa passasse irrevogavelmente da fase parlamentar que só poderia convir a uma revolução negati va à fase ditatorial única adaptada à revolução positiva de que resultará o fim gra dual da doença ocidental em conseqüência de uma conciliação decisiva entre a ordem e o progresso Mesmo que um exercício muito vicioso da ditadura que acabava de surgir forças se a mudar antes do tempo previsto seu órgão principal essa necessidade deplorável na verdade não restabeleceria a dominação de uma assembléia qualquer salvo talvez durante o curto intervalo exigido pelo advento excepcional de um novo ditador Segundo a teoria histórica que fundei em todo o passado francês a tendência foi sempre fazer prevalecer o poder central Essa disposição normal jamais teria cessado se esse poder não tivesse enfim assumido um caráter retrógrado desde a segunda meta de do reinado de Luís XIV De lá provém um século depois a abolição total da monar quia francesa daí a dominação passageira da única assembléia que deve ter sido real mente popular que já tivemos isto é a Convenção Sua ascendência só resultou mesmo da sua digna subordinação ao enérgico Co mitê surgido de seu seio para dirigir a heróica defesa republicana A necessidade de substituir a monarquia por uma verdadeira ditadura logo se fez sentir dada a anarquia estéril desenvolvida pela nossa primeira tentativa de regime constitucional Infelizmente essa ditadura indispensável não tardou a tomar também uma dire ção profundamente retrógrada combinando a sujeição da França com a opressão da Europa Foi unicamente em oposição a essa política deplorável que a opinião pública fran cesa permitiu em seguida a única experiência séria que poderia ser tentada entre nóS a de um regime próprio à situação inglesa Ele nos convinha tão pouco que apesar dos benefícios da paz ocidental sua pre ponderância oficial durante uma geração tomouse para nós ainda mais funesta do que a tirania imperial pervertendo os espíritos pelo hábito dos sofismas constitucionais corrompendo os corações de acordo com costumes venais ou anárquicos e degradan do os caracteres com o crescente florescimento das táticas parlamentares Em razão da ausência fatal de qualquer doutrina social verdadeira esse regime desastroso subsistiu sob outras formas após a exploração republicana de 1848 Essa nova situação que garantiu espontaneamente o progresso e fez com que se voltassem para a ordem todas as preocupações graves exigia duplamente a influência normal do poder central Ao contrário acreditouse então que a eliminação de uma monarquia vã deveria suscitar o pleno triunfo do poder antagônico Todos aqueles que haviam participado ati vamente do regime constitucional no governo na oposição ou nas conspirações deve riam ter sido há quatro anos irrevogavelmente afastados da cena política como inca pazes ou indignos de dirigir nossa República OS FUNDADORES 271 Mas por todos os lados um envolvimento cego lhes confiou a supremacia de uma constituição que consagrava diretamente a onipotência parlamentar O sufrágio univer sal estendeu até mesmo aos proletários as devastações intelectuais e morais desse regi me que se limitava até então às classes superiores e médias Em lugar da preponderância que deveria retomar o poder central que perdia as sim o prestígio da inviolabilidade e da perpetuidade conservava no entanto a nulida de constitucional que antes eles ocultavam Reduzido a um tal extremo esse poder necessário felizmente acaba de reagir ener gicamente contra uma situação intolerável tão desastrosa para nós quanto vergonhosa para ele O instinto popular abandonou sem defesa um regime anárquico Sentese cada vez mais na França que a constitucionalidade convém apenas a uma pretensa situação monárquica enquanto nossa situação republicana permite e exige a ditadura Système de politique positive t II Prefácio carta a M Vieillard de 28 de fevereiro de 1852 pp XXVIXXVII Sobre o assunto ler H Gouhier La vie dAuguste Comte 2 ed Paris Vrin 1965 La jeunesse dAuguste Comte et laformation du positivisme 11 Paris Vrin 1933 2 Vale notar incidentalmente que aquilo que Comte chama neste texto de aber ração geral continua a existir em meados do século XX já que a Constituição tran sitória peculiar à Inglaterra isto é as instituições representativas tende a se difundir embora temos de reconhecer com êxitos diferentes através de todo o mundo A aber ração é cada vez mais geral cada vez mais aberrante 3 Recebo com regularidade uma publicação intitulada Nouveau Régime tipicamen te inspirada na maneira de pensar positivista Ela opõe a ficção representativa dos par tidos e do Parlamento ao país real Seus redatores são aliás muito inteligentes Bus cam outra forma de representação e não aquela que conhecemos nos partidos e no Par lamento 4 É preciso citar entre as mais brilhantes tiradas o retrato de Lamartine Nunca encontrei um homem cujo espírito fosse mais vazio de preocupação com o bem públi co E naturalmente o retrato de Luís Napoleão Bonaparte 5 Um texto do 18 brumário é sob esse aspecto muito significativo Legitimistas e orleanistas constituíam como já dissemos as duas grandes fac ções do partido da ordem O que ligava essas facções aos seus adeptos e opunhaas uma à outra seriam apenas as floresdelis e a bandeira tricolor a casa dos Bourbons e a casa de Orléans diferentes nuanças do monarquismo Com os Bourbons fora a grande pro priedade que reinara com seus padres e lacaios Com os Orléans fora a alta finança a gran de indústria o grande comércio isto é o capital com seu séquito de advogados de professores e de bons faladores A realeza legítima é apenas a expressão política da do minação hereditária dos senhores da terra assim como a monarquia de julho era apenas a expressão política da dominação usurpada dos novosricos burgueses Em conseqüên cia o que separava as duas facções não eram os pretendidos princípios mas as condições materiais de existência dois tipos diferentes de propriedade o velho antagonismo entre a cidade e o campo a rivalidade entre o capital e a propriedade da terra Ninguém pode negar que ao mesmo tempo velhas lembranças inimizades pessoais medos e esueran 272 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ças preconceitos e ilusões simpatias e antipatias convicções artigos de fé e princípios ligavam uma casa real a outra Sobre as diferentes formas de propriedade sobre as condições de existência social erguese toda uma superestrutura de impressões de ilusões de modos de pensar e de concepções filosóficas particulares A classe inteira criaas e formaas em cima das con dições materiais e das relações sociais correspondentes que constituem a sua base O in divíduo que as recebe por meio da tradição ou da educação pode imaginar que elas constituem as verdadeiras razões determinantes e o ponto de partida de sua atividade Os orleanistas os legitimistas cada facção procurou se persuadir e persuadir os outros de que estavam separadas em razão de suas ligações com suas duas casas reais No entanto a seqüência dos fatos mostrou que era muito mais a divergência de in teresses que impedia a união das duas dinastias E assim como na vida privada distin guimos aquilo que um homem diz ou pensa sobre si mesmo e o que ele é e faz real mente nas lutas históricas é preciso distinguir ainda melhor a fraseologia as pretensões e a constituição dos partidos daquilo que constitui os seus interesses verdadeiros dis tinguir o que eles imaginam ser e aquilo que eles são realmente Durante a República orleanistas e legitimistas estavam lado a lado com preten sões iguais Se cada facção passa a opor à outra a restauração de sua própria dinastia isso quer dizer apenas que os dois grandes interesses que dividem a burguesia pro priedade da terra e capital esforçavamse cada um por seu lado para restabelecer sua própria supremacia e a subordinação do outro Falamos de dois interesses da burguesia porque a grande propriedade da terra apesar do seu coquetismo feudal e seu orgulho de raça se emburguesara completamente com o desenvolvimento da sociedade moder na Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte Paris Éd Sociales 1956 pp 3839 6 Ver principalmente os artigos de Serge Mallet reunidos em livro sob o título Le gaullisme et la gaúche Paris Ed du Seuil 1965 Para esse sociólogo o novo regi me não é um acidente da história mas o estabelecimento de uma estrutura política que corresponda aos anseios do capitalismo O gaullismo é a expressão política do capita lismo moderno Encontramos uma análise comparável a esta em Roger Priouret nãomar xista e que no entanto diz De Gaulle não veio em 1958 unicamente por força do con flito de Argel ele acreditava que trazia um regime concebido em função de sua finali dade histórica e de fato ele adaptou a vida às condições da sociedade Les institu tions politiques de la France en 1970 Bulletin SEDEIS n 786 suplemento Futuribles 1 de maio de 1961 7 Entre as obras de Élie Halévy devemos citar La formation du radicalisme phi losophique Paris Alcan 19011904 3 vols 11 La jeunesse de Bentham t II Lévo lution de la doctrine utilitaire de 1789 et 1815 t III Le radicalisme philosophique Histoire du peuple anglais au XIX siècle Paris Hachette 6 vols os quatro primeiros volumes abrangem de 1815 a 1848 os dois últimos de 1895 a 1914 Lère des tyrannies études sur le socialisme et la guerre Paris Gallimard 1938 Histoire du socialisme eu ropéen redigido a partir de notas de curso Paris Gallimard 1948 Indicações bibliográficas sobre a Revolução de 1848 Bastid P 1848 Lavènement du sujfrage universel Paris PUF 1948 Bastid P Doctrine et institutions politiques de la Seconde République 2 vols Paris Hachette 1945 Comu A Karl Marx et la Rèvolution de 1848 Paris PUF 1948 Duveau G 1848 col Idées Paris Gallimard 1965 Girard M Étude comparèe des mouvements révolutionnaires en France en 1830 1848 18701871 Paris Centre de Documentation Universitaire 1960 Ponteil F 1848 2 ed Paris A Colin 1955 Pouthas CH La Rèvolution de 1848 en France et la Seconde République Centre de Documentation Universitaire 1953 Rubel M Karl Marx devant le bonapartisme Paris La Haye Mouton 1960 LD AL ME GT MEEE MT MECIEA AP TECV AE WIH ALHER SEGUNDA PARTE A geração da passagem do século FTCH Esta segunda parte é dedicada ao estudo das idéias principais de três soció logos Emile Durkheim Vilfredo Pareto e Max Weber Para precisar o método que utilizarei nesta análise será conveniente lembrar em poucas palavras como procedi na interpretação do pensamento de Auguste Comte de Marx e de Toc queville Comte Marx e Tocqueville formaram suas idéias na primeira metade do século XIX Adotaram como tema de meditação as sociedades européias após o drama da Revolução e do Império esforçandose por extrair a significação da crise que acabava de ocorrer bem como a natureza da sociedade em vias de nas cimento Mas a sociedade moderna era definida por eles de maneira diversa aos olhos de Auguste Comte a sociedade moderna era industrial para Marx era capitalista para Tocqueville democrática A escolha de adjetivo revelava o ân gulo do qual cada um desses pensadores via a realidade de seu tempo Para Auguste Comte a sociedade moderna ou industrial se caracterizava pelo desaparecimento das estruturas feudais e teológicas O problema principal da reforma social era o do consenso tratavase de restabelecer a homogeneidade de convicções religiosas e morais sem a qual nenhuma sociedade pode ser es tável Para Marx o dado fundamental da sociedade do seu tempo eram as con tradições internas da sociedade capitalista e da ordem social associada ao capi talismo Havia pelo menos duas contradições a contradição entre as forças e as relações de produção a contradição entre as classes sociais condenadas à hos tilidade enquanto não tivesse desaparecido a propriedade privada dos instru mentos de produção Para Tocqueville enfim a sociedade moderna era definida pelo seu cará ter democrático que para ele queria dizer a atenuação das distinções de clas ses ou de estado a tendência à igualdade progressiva da condição social e até 278 AS ETAPAS D O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mesmo num prazo mais longo da condição econômica Mas esta sociedade democrática cuja vocação era igualitária podia ser segundo múltiplas circuns tâncias ou liberal isto é governada por instituições representativas conserva doras das liberdades intelectuais ou ao contrário despótica se as causas secun dárias fossem desfavoráveis O despotismo novo abrangia indivíduos vivendo de modo análogo mas confundidos na igualdade da impotência e da servidão Segundo o ponto de partida adotado a representação da sociedade moder na é diferente ao mesmo tempo a visão da evolução social também varia Par tindo da noção de sociedade industrial e dando ênfase à necessidade do consen so do restabelecimento da unidade das crenças religiosas e morais Comte vê no futuro a realização progressiva de um tipo social cujas premissas ele observa e para cuja realização quer colaborar Levando em conta as contradições do capi talismo que considera essenciais Marx ao contrário prevê uma revolução ca tastrófica e benéfica conseqüência necessária destas contradições que terá a função de ultrapassálas A revolução socialista promovida pela maioria em be nefício da maioria marcará o fim da préhistória A filosofia histórica de Toc queville não é nem progressiva à maneira da de Comte nem otimista e catas trófica como a de Marx É uma filosofia aberta que marca certas característi cas inevitáveis das sociedades futuras mas afirma também que outros traços de igual importância humana são imprevisíveis Na visão de Tocqueville o futuro não está inteiramente determinado e permite uma certa margem de liberdade Para usar a terminologia que está hoje na moda Tocqueville teria ad mitido que há um sentido se dermos a sentido a acepção de direção no qual a história evolui necessariamente a história evolui para as sociedades democrá ticas mas que não existe sentido da história que possa ser determinado pre viamente se a noção de sentido implica realização da vocação humana As sociedades democráticas direção do devenir em virtude de causas múltiplas po dem ser liberais ou despóticas Em outras palavras o método que utilizei na primeira parte deste livro con sistiu em identificar os temas fundamentais de cada autor em mostrar como cada um desses temas resultava de uma interpretação pessoal da mesma reali dade social que os três procuravam compreender Interpretações que não eram arbitrárias mas pessoais o temperamento do autor seu sistema de valores e modo de percepção exprimindose na interpretação que oferece de uma reali dade que sob certos aspectos é vista por todos Nesta segunda parte usarei o mesmo método com mais facilidade ainda pois É Durkheim V Pareto e M Weber pertencem mais rigorosamente à mes ma geração o que não era o caso de Auguste Comte Karl Marx e Alexis de Toc queville Pareto nasceu em 1848 Durkheim em 1858 Max Weber em 1864 Durkheim morreu em 1917 Max Weber em 1920 Pareto em 1923 Os três pertencem ao A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 279 mesmo momento histórico seu pensamento formado no último terço do sé culo XIX foi aplicado à realidade histórica da Europa no princípio deste século Todos os três já tinham publicado a maior parte da sua obra quando estourou a guerra de 19141 Viveram em um período da história européia que retrospectivamente con sideramos como abençoado É verdade que esta fase da história pode ser amal diçoada pelos asiáticos e os africanos Contudo quando os três autores estavam vivos a Europa gozava de paz relativa As guerras do século XIX entre 1815 e 1914 foram curtas e limitadas e não alteraram imediatamente o rumo da his tória européia Poderseia acreditar que por isso estes três autores tivessem uma visão oti mista da história de que participavam No entanto não foi assim Todos os três embora de maneira diversa tinham o sentimento de que a sociedade européia estava em crise Um sentimento que não é original poucas gerações não passa ram pela impressão de viver uma crise ou até mesmo de testemunhar uma vi rada no curso da história A partir do século XVI teríamos dificuldade em en contrar uma geração que tenha vivido num período estável A impressão de estabilidade é quase sempre retrospectiva De qualquer forma a despeito da paz aparente estes três autores acreditavam que as sociedades estavam atravessan do uma fase de profunda mutação Creio que o tema fundamental da reflexão destes autores era o das relações entre a religião e a ciência Esta interpretação de conjunto por mim sugerida não é corrente pode ser mesmo num certo sentido paradoxal Só o estudo pre ciso de cada um deles poderá justificála contudo já nesta introdução geral quero indicar o que entendo por isso Durkheim Pareto e Weber têm em comum a vontade de fazer ciência Na época em que viveram tanto quanto na nossa ou mais ainda as ciências pareciam aos professores o modelo do pensamento rigoroso e eficaz talvez mesmo o único modelo de pensamento válido Sociólogos os três pretendiam pensar como cientistas Contudo enquanto sociólogos os três por caminhos diferentes che garam à idéia de Comte de que as sociedades só podem manter sua coerência por meio de crenças comuns Constataram também que as crenças comuns de ordem transcendente legadas pela tradição foram abaladas pelo desenvolvi mento do pensamento científico Nada mais banal no fim do século XIX do que a idéia de uma contradição insuperável entre a fé religiosa e a ciência de um certo modo todos os três estavam persuadidos dessa contradição mas justa mente porque eram cientistas e sociólogos reconheciam a necessidade para a Com a ressalva de que Wirtschaft und Gesellschaft Economia e sociedade de Max Weber só foi publicada após a sua morte 280 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO estabilidade social dessas crenças religiosas sujeitas à erosão pelos progressos científicos Enquanto sociólogos estavam tentados a crer que a religião tradicio nal se encontrava em vias de esgotamento Também como sociólogos eram ten tados a acreditar que a sociedade só podia manter sua estrutura e coerência sob a condição de que uma fé comum pudesse reunir os membros da coletividade Este problema que na minha opinião é fundamental encontra expressão diferente em cada um deles No caso de Durkheim essa expressão é simples Foi um professor francês de filosofia de tradição laica cujo pensamento se interrogava sem dificuldade no diálogo que não ousaria chamar de eterno mas que é seguramente duradouro pois ele preenche alguns séculos da história da França entre a Igreja católica e o pen samento laicista Como sociólogo Durkheim pensava constatar que a religião tra dicional não atendia mais às exigências daquilo a que chamava de espírito cientí fico Por outro lado como bom discípulo de Comte considerava que uma socie dade precisa de consenso e que este só pode ser estabelecido por crenças absolu tas Concluía assim com o que me parece ingenuidade professoral que era neces sário instaurar uma moral inspirada no espírito científico A crise da sociedade moderna lhe parecia provocada pela nãosubstituição das morais tradicionais baseadas nas religiões A sociologia deveria servir para fundamentar e reconstituir uma ética que atendesse às exigências do espírito científico Uma contradição análoga aparece na obra de Pareto Este era obcecado pelo desejo de ser um cientista e chega a cansar o leitor com a repetição da afir mativa de que só as proposições obtidas pelo método lógicoexperimental são científicas e que todas as outras em particular as de ordem moral metafísica ou religiosa não têm valor de verdade Contudo ironizando incessantemente a pretendida religião ou moral científica Pareto tem muita consciência de que não é a ciência que determina a ação dos homens Afirma mesmo que se acre ditasse que suas obras devessem ser lidas por muitas pessoas não as publica ria pois não se pode explicar o que é realmente a ordem social pelo método ló gicoexperimental sem destruir os fundamentos dessa ordem Para ele a socie dade se sustenta por sentimentos que não são verdadeiros mas são eficazes Se o sociólogo revela aos homens esse fato arriscase a dissipar ilusões que são indispensáveis Há uma contradição entre os sentimentos necessários para o con senso e a ciência que revela a nãoverdade desses sentimentos Pareto teria con siderado que a moral chamada científica de Durkheim não era mais científi ca do que a moral do catecismo teria até mesmo dito levando essa idéia a seu extremo que tal moral nada tinha de científico pelo fato de cometer o erro insigne de crer que era científica sem o ser sem contar o erro suplementar de imaginar que um dia os homens pudessem estar determinados a agir em função de conside rações racionais A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 281 Há portanto para o sociólogo uma contradição entre a exigência de rigor científico na análise da sociedade e a convicção de que as proposições cientí ficas não bastam para unir os homens e toda sociedade é sempre mantida na sua coerência e ordem por crenças ultra infra e supraracionais Um tema análogo aparece em Max Weber expresso em termos e com sen timentos distintos No caso de Durkheim o sentimento que inspira a análise da oposição entre religião e ciência é o desejo de criar uma moral científica No caso de Pareto é a percepção de uma contradição insolúvel pois em si mesma a ciência não só cria a ordem social mas na medida em que é válida corre o risco de ser destrutiva O sentimento de Max Weber é diferente A sociedade moderna como ele a descreve está em vias de assumir uma organização cada vez mais burocrática e racional A descrição de Weber embora com conceitos diferentes lembra um pouco a de Tocqueville Quanto mais se impõe a modernidade mais se expan de a organização anônima burocrática racional Esta organização racional é a fatalidade das sociedades modernas e Max Weber a aceita Contudo pertencen do a família profundamente religiosa embora ele próprio sem sensibilidade religiosa guarda a nostalgia da fé que era possível no passado e contempla a transformação racionalizante das sociedades modernas com uma mistura de sentimentos Tem horror da rejeição do que é necessário para a sociedade em que vivemos horror das queixas contra o mundo ou a história tais quais existem Ao mesmo tempo porém não se entusiasma com o tipo de sociedade que vemos desenvolverse Compara a situação do homem moderno com a dos puritanos que tiveram um papel importante na formação do capitalismo moderno e cita a fór mula que é tantas vezes repetida para caracterizar sua atitude Os puritanos queriam ser homens de profissão Nós estamos condenados a sêlo O homem de profissão em alemão Berufsmensch está condenado a exercer uma função social estreita dentro de conjuntos vastos e anônimos sem a possibilidade de desenvolvimento total da personalidade que era concebível em outras épocas Max Weber temia que a sociedade moderna que é e será burocrática e racio nal contribuísse para sufocar o que a seus olhos tornava a vida digna de ser vivi da isto é a escolha pessoal a consciência da responsabilidade a ação a fé O sociólogo alemão não sonha com uma moral científica a exemplo do seu colega francês não ironiza os sentimentos tradicionais ou as religiões pseu docientíficas como o pensador italiano Vive numa sociedade racional e quer refletir cientificamente sobre sua natureza embora creia que o que há de mais vital e válido na existência se situe além da atividade profissional definindo se pelo que chamamos hoje de engajamento Com efeito Max Weber se assumirmos o direito de aplicarlhe conceitos que não eram correntes na sua época pertencia como filósofo à corrente exis 282 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tencialista Aliás um dos mais célebres existencialistas Karl Jaspers foi seu amigo e discípulo e o cita como mestre Nos três autores citados encontramos uma reflexão sobre as relações entre ciência e religião ou entre o pensamento racional e o sentimento com base na exigência do pensamento científico e na exigência social de estabilidade ou de consenso Esse tema que reputo fundamental e é comum aos três explica algumas das idéias que os aproximam Concebese assim que na sua concepção da ex plicação sociológica e na sua interpretação do comportamento humano eles tenham simultaneamente ultrapassado o behaviorismo a psicologia do compor tamento e as motivações estritamente econômicas A convicção comum de que as sociedades se sustentam pelas crenças coletivas impedeos de fato de se sa tisfazerem com uma explicação das condutas que fosse do exterior que abs traísse o que se passa na consciência Da mesma forma o reconhecimento do fato religioso como o mais impor tante que comanda a ordem de todas as coletividades contradiz para os três a explicação através da racionalidade egoísta dada pelos economistas quando procuram interpretar os atos humanos por meio de cálculos de interesses Durkheim Pareto e Weber têm em comum o fato de não aceitarem nem as explicações naturalistas ou materialistas externas nem as explicações raciona lizantes e econômicas da conduta humana Talcott Parsons escreveu sobre os três um livro importante The Structure o f Social Action cujo objetivo é salientar O parentesco dos seus sistemas de interpretação conceituai do comportamento humano Parsons procura demonstrar que com linguagens diferentes esses três sociólogos chegaram finalmente a uma concepção muito próxima da estrutura formal da explicação da conduta A origem dessa semelhança formal é na minha opinião o problema comum que enunciei inicialmente Ele constitui quando menos uma razão pois talvez haja uma segunda quem sabe os três descobriram no todo ou em parte o sis tema verdadeiro de explicação do comportamento Quando os pensadores encon tram simultaneamente a verdade este encontro dispensa outra explicação Como1 dizia Spinoza é o erro que tem necessidade de ser explicado não a verdade Nossos três pensadores são europeus e seu pensamento é orientado natu ralmente pela sua situação no mundo europeu Mas todos os três procuram pôr em perspectiva o mundo europeu moderno com relação a outras civilizações Durkheim toma por termo de referência e de oposição as sociedades arcaicas um pouco como Auguste Comte Pareto tem uma cultura histórica que abrange a antiguidade e o mundo moderno suas comparações constantes vão de Atenas e Esparta Roma e Cartago à França e Alemanha ou Inglaterra e Alemanha Quanto a Weber salienta com muita ênfase a originalidade da civilização oci j A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 283 dental para marcála empenhase no estudo comparativo das religiões e das civilizações Se o tema comum desses pensadores é a relação entre a ciência e a religião entre a razão e o sentimento as diferenças entre eles são sob muitos aspectos marcantes Durkheim é por formação um filósofo de universidade francesa Pertence à posteridade de Auguste Comte e coloca no centro da sua reflexão a necessi dade do consenso social Por outro lado como francês o modo como formulou o problema das relações entre ciência e religião recebeu a influência do clima intelectual da França no fim do século XIX época em que a escola laicista bus cava uma moral diferente da religiosa Essa moral tinha sido encontrada pri meiramente num certo kantismo interpretado de acordo com o espírito protes tante e depois parcialmente elaborada a partir do pensamento sociológico Durkheim escreveu três livros importantes que marcam seu itinerário inte lectual e representam três variações sobre o tema fundamental do consenso No primeiro Da divisão do trabalho social o problema estudado é o se guinte a sociedade moderna implica uma diferenciação extrema de funções e ocupações como fazer para que uma sociedade dividida entre inumeráveis es pecialistas mantenha a coerência intelectual e moral que lhe é necessária O segundo grande livro de Durkheim Le suicide O suicídio é uma aná lise de um fenômeno considerado patológico para pôr em evidência o mal que ameaça as sociedades modernas ou industriais a anomia O terceiro As formas elementares da vida religiosa procura investigar na aurora da história humana as características essenciais da ordem religiosa não por curiosidade pelo que aconteceu há milhares de anos mas para encontrar nas sociedades mais simples o segredo essencial das sociedades humanas para compreender melhor o que exige a reforma das sociedades modernas à luz do que eram as sociedades primitivas Italiano Pareto teve formação intelectual diferente Engenheiro de profis são elaborou uma teoria matemática da economia e gradualmente querendo apreender a realidade social concreta descobriu a insuficiência do formalismo matemático e econômico e ao mesmo tempo o papel dos sentimentos na con duta do homem Pelo seu estilo intelectual e estrutura mental não é um filósofo como Durkheim também não recebeu a influência de Comte que tende a desprezar A tradição em que se apóia é a de Maquiavel O maquiavelismo é o esforço diri gido para projetar luz sobre as hipocrisias da comédia social para identificar os sentimentos que motivam verdadeiramente os homens para perceber os con flitos autênticos que constituem a textura do processo de desenvolvimento his tórico para dar um visão despojada de ilusões do que é de fato a sociedade 284 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO O pensamento de Pareto se baseia no reconhecimento da contradição entre a racionalidade das teorias econômicas e a irracionalidade do comportamento humano na constatação às vezes tímida às vezes triunfante de que este com portamento irracional do ponto de vista científico pode ser socialmente efi caz e útil Pareto é filho de um patriota italiano da geração do Risorgimento que já tinha questionado as idéias liberais e humanitárias Convenceuse de que tais idéias podem ser perigosas para as minorias privilegiadas que nelas se apóiem com excessiva sinceridade por outro lado aprendeu com a ciência que a fé na democracia ou no socialismo e as crenças humanitárias não valem muito mais comparativamente ao pensamento lógicoexperimental do que a crença em Deus no demônio ou na feitiçaria Aos olhos de Pareto um homem humanitário é também como um cristão mero brinquedo dos seus sentimentos Poderia dizer que a religião democrática de Durkheim não tem mais valor científico do que a moral tradicional Com um pouco de boa vontade e de psicanálise podese perceber em Pa reto a revolta contra as idéias humanitárias da sua época ou uma imensa justi ficação das decepções amargas a que foi levado pela observação da realidade Por formação Max Weber não foi filósofo nem engenheiro mas jurista e historiador Sua formação universitária foi essencialmente jurídica e chegou a começar uma carreira administrativa Sua erudição histórica era excepcional Era também um nostálgico da política nunca foi um político ativo Chegou a pensar em candidatarse nas eleições que se seguiram à derrota alemã de 1918 mas terminou por afastar esta hipótese Conservou no entanto o desejo insa tisfeito de ser um homem de ação Sua família espiritual é a dos sociólogos que são políticos fracassados depois de uma carreira política como Tucídides ou durante como Maquiavel A metodologia de Max Weber pode ser explicada amplamente pela relação entre a ciência e a atividade entre a sociologia e a política Deseja uma ciência neutra porque não quer que o professor em sua cátedra utilize seu prestígio para impor as idéias que tem Mas quer que a ciência neutra seja útil para o ho mem de ação e para a política Daí a antítese entre juízo de valor em relação aos valores e a distinção entre causalidade e compreensão Além disso a visão histórica de Max Weber não é nem progressista como a de Durkheim nem cíclica como a de Pareto Tem alguma semelhança com a de Tocqueville há nas sociedades modernas certas características intrínsecas que são fatais inevitáveis e devem ser aceitas mas a burocracia e a racionali zação não determinam a totalidade da ordem social e deixam em aberto a du pla possibilidade o respeito às pessoas e às liberdades e o despotismo A aproximação entre os três pensadores que vamos estudar nas página seguintes não é portanto arbitrária É natural proceder a uma comparação his1 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 285 tórica que tenha a função de projetar luz sobre os pontos de semelhança e de di vergência O que há de semelhante entre eles são os elementos comuns da si tuação européia que os três observam e reconhecem O que há de diferente re flete o contexto intelectual e nacional de cada um que lhe influencia o modo de expressão conceituai E também a manifestação das suas personalidades Um é de religião judia outro católico o terceiro é protestante pelo menos de origem Um é um otimis ta severo outro um pessimista irônico o terceiro um observador amargo Esses estilos precisam ser apreciados na interpretação histórica para que suas doutrinas sociológicas apareçam verdadeiramente como realmente foram isto é não somente um esforço de compreensão científica mas também a expres são de três homens ou ainda os diálogos entre homens e uma situação histórica Procurarei identificar portanto nessas doutrinas o que elas contêm de com preensão científica da conduta humana e das sociedades modernas sem esque cer contudo o elemento pessoal que dá colorido particular a cada uma delas Finalmente se isso for possível tentarei imaginar o diálogo que esses três pensadores não chegaram a ter uma vez que mal se conheceram pessoalmente mas que poderiam ter tido É perfeitamente possível reconstituir esse diálogo ou para sermos mais modestos imaginálo Un nurba ollioc de Malto nocillo 20 cm de altura 160 g do peso e madeira fresca Émile Durkheim As paixões humanas só se detêm diante de um poder moral que res peitam Se falta uma autoridade moral desse gênero impera a lei do mais forte latente ou agudo há necessariamente um estado de guerra crônico Enquanto em outros tempos as funções econômicas só tinham um papel secundário hoje ocupam o primeiro plano Diante delas vemos as fun ções militares administrativas e religiosas recuarem cada vez mais Só as funções científicas têm condições de lhes disputar a posição e mesmo assim a ciência hoje só tem prestigio na medida em que pode servir à prática isto é em boa parte às profissões econômicas Por isso se pôde afirmar a respeito das nossas sociedades com uma certa razão que elas são ou tendem a ser essencialmente industriais Uma forma de atividade que assumiu tamanha importância no conjunto da vida social não pode evidentemente permanecer a tal ponto desregulada sem que resultem di ficuldades das mais sérias Isto constitui notadamente uma fonte de des moralização geral De la division du travail social Prefácio da 2 edição pp 34 Esta análise do pensamento de Durkheim focalizará seus três livros princi pais Da divisão do trabalho social Le suicide e As formas elementares da vida religiosa Procurarei depois avançar um pouco mais na minha interpretação re constituindo a evolução do seu pensamento e examinando a relação entre suas verdadeiras idéias e as fórmulas metodológicas que empregou para traduzilas Finalmente estudarei as relações entre a sociologia como a concebia Durkheim e a filosofia Da divisão do trabalho social Da divisão do trabalho social 1893 tese de doutoramento de Durkheim é seu primeiro grande livro E também aquele em que se reconhece mais claramente a influência de Au guste Comte O tema deste primeiro livro é central no pensamento do autor as relações entre os indivíduos e a coletividade Como pode uma coleção de indi víduos constituir uma sociedade Como se chega a esta condição da existência social que é o consenso A esta pergunta fundamental Durkheim responde distinguindo duas formas de soiid aried ad eí SoManedade dita mecânica e a orgânica 288 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A primeira é para usar a expressão de Durkheim uma solidariedade por semelhança Quando esta forma de solidariedade domina uma sociedade os in divíduos diferem pouco uns dos outros Membros de uma mesma coletividade eles se assemelham porque têm os mesmos sentimentos os mesmos valores re conhecem os mesmos objetos como sagrados A sociedade tem coerência por que os indivíduos ainda não se diferenciaram A forma oposta de solidariedade a orgânica é aquela em que o consenso isto é a unidade coerente da coletividade resulta de uma diferenciação ou se exprime por seu intermédio Os indivíduos não se assemelham são diferentes E de certo modo são diferentes porque o consenso se realiza Durkheim chama de orgânica a solidariedade baseada na diferenciação dos indivíduos por analogia com os órgãos de um ser vivo cada um dos quais exer ce uma função própria embora os órgãos não se pareçam uns com os outros todos são igualmente indispensáveis à vida As duas formas de solidariedade correspondem no pensamento de Durkheim a duas formas extremas de organização social As sociedades que há meio século chamávamos de primitivas e que hoje preferimos chamar de arcaicas ou socie dades sem escrita mudança de terminologia que exprime uma mudança de ati tude com relação a essas sociedades se caracterizam pela prevalência da soli dariedade mecânica Os indivíduos de um clã são por assim dizer intercambiá veis O resultado e esta é uma das idéias essenciais do pensamento de Durkheim é que o indivíduo não vem historicamente em primeiro lugar A tomada dfi consciência da individualidade decorre do próprio desenvolvimento histórico Nas sociedades primitivas cada indivíduo é o que são os outros na consciên cia de cada um predominam em número e intensidade os sentimentos comuns a todos os sentimentos coletivos A oposição destas duas formas de solidariedade se combina com a oposi ção entre sociedades segmentárias e aquelas em que aparece a moderna divisãíii de trabalho Num certo sentido uma sociedade de solidariedade mecânica é tam bém uma sociedade segmentária Mas a definição destas duas noções não é exa tamente a mesma No vocabulário de Durkheim um segmento designa um grupo social effl que os membros estão estreitamente integrados Mas o segmento é também uffl grupo situado localmente relativamente isolado dos demais que tem vida própria Comporta uma solidariedade mecânica por semelhança mas pressupõe tam bém a separação com relação ao mundo exterior O segmento se basta a si mes mo tem pouca comunicação com o mundo exterior Por definição portanto 3 organização segmentária contradiz os fenômenos gerais de diferenciação de signados pela expressão de solidariedade orgânica Mas pode acontecer expli ca Durkheim que em certas sociedades em que o correm formas já muito desenl A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 289 volvidas da divisão econômica do trabalho subsista parcialmente uma estrutu ra segmentária Vamos encontrar essa idéia numa passagem curiosa em que Durkheim co menta que a Inglaterra embora tenha uma indústria moderna muito desenvol vida e portanto uma divisão econômica do trabalho conservou o tipo segmen tário e o sistema alveolar mais do que outras sociedades em que a divisão eco nômica do trabalho é menos avançada Durkheim vê a prova desta sobrevivên cia da estrutura segmentária na manutenção da autonomia local e na força da tradição Pode acontecer muito bem que numa sociedade em particular uma certa di visão do trabalho e notadamente a divisão do trabalho econômico seja muito de senvolvida embora o tipo segmentário ainda exista de forma fortemente pronun ciada Parece ser o caso da Inglaterra A grande indústria e o grande comércio pa recem terse desenvolvido ali tanto quanto no continente embora o sistema alveo lar pareça muito acentuado como o demonstram a autonomia da vida local e a autoridade da tradição O que acontece com efeito é que a divisão de trabalho sendo fenômeno de rivado e secundário como acabamos de ver ocorre na superfície da vida social o que é sobretudo verdadeiro no caso da divisão do trabalho econômico Ela está à flor da pele Ora em todo organismo os fenômenos superficiais pela sua própria situação são bem mais acessíveis à ação das causas externas mesmo quando os fatores internos de que dependem de modo geral não se modificam Basta assim que uma circunstância qualquer provoque num povo um desejo mais vivo de bem estar material para que a divisão do trabalho econômico se desenvolva sem que a estrutura social mude sensivelmente O espírito de imitação e o contato com uma civilização mais refinada podem levar a este resultado É assim que o entendimen to parte culminante e em conseqüência mais superficial da consciência pode ser facilmente alterado por influências externas como a educação sem que os funda mentos da vida psíquica sejam atingidos Criamse assim inteligências suficientes para que o êxito seja garantido sem ter contudo raízes profundas Este gênero de talento não se transmite pela hereditariedade Esta comparação mostra que não se deve julgar a posição de uma sociedade na escala social de acordo com sua civilização em especial a civilização econô mica esta pode não ser mais do que uma imitação uma cópia recobrindo estrutu ra social de espécie inferior Não há dúvida de que é um caso excepcional mas ele pode ocorrer De la division du íravail social 7 ed pp 266267 n Portanto a noção de estrutura segmentária não se confunde com a solida riedade por semelhança Sugere apenas o relativo isolamento a autosuficiência dos vários elementos Podese conceber uma sociedade global ocupando amplo espaço que não passasse da justaposição de segmentos todos semelhantes e au tárquicos 290 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO É possível a existência de um grande número de clãs tribos ou grupos re gionalmente autônomos justapostos e talvez até mesmo sujeitos a uma autori dade central sem que a coerência por semelhança do segmento seja quebrada sem que se opere no nível da sociedade global a diferenciação das funções ca racterísticas da solidariedade orgânica A divisão do trabalho que Durkheim procura apreender e definir não se confunde com a que os economistas imaginam A diferenciação das profissões e a multiplicação das atividades industriais exprimem a diferenciação social que Durkheim considera de modo prioritário Esta diferenciação se origina na de sintegração da solidariedade mecânica e da estrutura segmentária Falando destes temas fundamentais podemse tentar identificar algumas das idéias que decorrem desta análise e fazem parte da teoria geral do nosso autor A primeira trata do conceito de consciência coletiva que desde esta época figura no primeiro plano do pensamento de Durkheim Tal como é definida em Da divisão do trabalho social a consciência cole tiva é simplesmente o conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma sociedade Durkheim esclarece que este conjunto for ma um sistema determinado que tem vida própria Ibid p 46 A consciên cia coletiva só existe em virtude dos sentimentos e crenças presentes nas cons ciências individuais mas se distingue pelo menos analiticamente destas últi mas pois evolui segundo suas próprias leis e não é apenas a expressão ou a efeito das consciências individuais Sem dúvida ela não tem como substrato um órgão único é por definiçãôi difusa ocupando toda a extensão da sociedade mas nem por isso deixa de te características específicas que a tornam uma realidade distinta Com efeito ela i independente das condições particulares em que se situam os indivíduos Estei passam ela fica E a mesma no Norte e no Sul nas grandes e nas pequenas cidai des nas diferentes profissões Por outro lado não muda em cada geração mas contrário liga as gerações que se sucedem Portanto não se confunde com as cons ciências particulares embora se realize apenas nos indivíduos É o tipo psíquico di sociedade tipo que tem suas propriedades condições de existência seu modo dí desenvolvimento exatamente como os tipos individuais embora de outra maneira De la division du travail social p 46 Esta consciência coletiva comporta de acordo com as sociedades maiol ou menor extensão ou força Nas sociedades dominadas pela solidariedade me cânica a consciência coletiva abrange a maior parte das consciências indivi duais Nas sociedades arcaicas a fração das existências individuais submetidl a sentimentos comuns é quase coextensíva com a existência inteira Nas sociedades em que aparece a diferenciação dos indivíduos cada um teiHj em muitas circunstâncias a liberdade de crer de querer e agir conforme suai A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 291 preferências Nas sociedades de solidariedade mecânica ao contrário a maior parte da existência é orientada pelos imperativos e proibições sociais O adjeti vo social significa neste momento do pensamento de Durkheim apenas que tais imperativos e proibições se impõem à média à maioria dos membros do grupo que eles têm por origem o grupo e não o indivíduo denotando o fato de que este se submete a esses imperativos e proibições como a um poder superior A força desta consciência coletiva acompanha a sua extensão Nas socie dades primitivas ela não só abrange a maior parte da existência individual co mo também os sentimentos coletivos têm força extrema que se manifesta pelo rigor dos castigos impostos aos que violam as proibições sociais Quanto mais forte a consciência coletiva maior a indignação com o crime isto é contra a violação do imperativo social Finalmente a consciência coletiva também é par ticularizada Cada um dos atos da existência social em particular cada um dos ritos religiosos é definido com precisão Os detalhes relativos ao que é preci so fazer e ao que é preciso crer são impostos pela consciência coletiva Por outro lado quando reina a solidariedade orgânica Durkheim pensa ob servar também uma redução da esfera da existência que cobre a consciência coletiva um enfraquecimento das reações coletivas contra a violação das proi bições e sobretudo uma margem maior na interpretação individual dos impera tivos sociais Para dar um exemplo simples o que a justiça exige numa sociedade pri mitiva é fixado com exatidão minuciosa pelos sentimentos coletivos Por outro lado nas sociedades em que a divisão do trabalho é mais avançada essa exigên cia só será feita de modo abstrato por assim dizer universal Num caso a jus tiça é que tal indivíduo receba tal sanção precisa em outro que haja uma espé cie de igualdade nos contratos e que cada um receba o que lhe é devido que é definido de muitas formas nenhuma das quais é isenta de dúvidas e fixada de modo unívoco Dessa análise Durkheim deduz uma idéia que manteve por toda a sua vida e que ocupa o centro de toda sua sociologia a que pretende que o indivíduo nas ce da sociedade e não que a sociedade nasce dos indivíduos Enunciada assim a fórmula parece paradoxal mas o próprio Durkheim a exprime muitas vezes nesses termos Procurando reconstituir seu pensamento di ria que o primado da sociedade sobre o indivíduo tem pelo menos dois senti dos que no fundo nada têm de paradoxal O primeiro é o da prioridade histórica das sociedades em que os indivíduos se assemelham uns aos outros e estão por assim dizer perdidos no todo com relação àquelas outras sociedades cujos membros adquiriram ao mesmo tempo consciência da sua responsabilidade e da capacidade que têm de exprimila As sociedades coletivistas em que cada um se assemelha a todos vêm historicamen te em primeiro lugar 292 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Dessa prioridade histórica resulta uma prioridade lógica na explicação dos fenômenos sociais Se a solidariedade mecânica precedeu a solidariedade orgâ nica não se podem com efeito explicar os fenômenos da diferenciação social e da solidariedade orgânica a partir dos indivíduos Enganamse os economistas que explicam a divisão do trabalho pelo interesse dos indivíduos em comparti lhar as ocupações de modo a fazer crescer o rendimento da coletividade Essa explicação pela racionalidade da conduta individual parece a Durkheim uma inversão da ordem Dizer que os homens dividiram o trabalho e atribuíram uma ocupação específica a cada um para aumentar a eficácia do rendimento coleti vo é admitir que os indivíduos são diferentes uns dos outros e conscientes des sa diferença antes da diferenciação social Com efeito a consciência da indi vidualidade não podia existir antes da solidariedade orgânica e da divisão do trabalho A busca racional do aumento da produção não pode explicar a dife renciação social pois esta busca pressupõe justamente tal diferenciação social1 Durkheim esboça neste ponto o que será uma das idéias fundamentais em toda a sua carreira a definição da sociologia como a prioridade do todo sobre as partes ou a irredutibilidade do conjunto social à soma dos elementos e a ex plicação dos elementos pelo todo No estudo da divisão do trabalho Durkheim descobriu duas idéias essen ciais a prioridade histórica das sociedades em que a consciência individual está inteiramente fora de si e a necessidade de explicar os fenômenos individuais pelo estado da coletividade e não o estado da coletividade pelos fenômenos in dividuais O fenômeno da divisão do trabalho que o sociólogo quer explicar é dife rente portanto do que os economistas entendem pelo mesmo conceito A divi são do trabalho é uma certa estrutura de toda a sociedade de que a divisão téç nica ou econômica do trabalho não passa de uma manifestação s Depois de definir cientificamente a divisão do trabalho é necessário estu dála melhor A resposta dada por Durkheim à questão metodológica é a seguinte paií estudarcientificamente um fenômeno sociall é preciso estudálo objetivameni te isto é do exterior encontrando o meio pelo qual os estados de consciêncig não perceptíveis diretamente podem ser reconhecidos e compreendidos Esteç sintomas ou expressões dos fenômenos de consciência são em Da divisão dO trabalho social os fenômenos jurídicos De modo sugestivo e talvez um pçucflj simplista Durkheim caracteriza um dos tipos de solidariedade o direito repres sivo que pune as faltas ou crimes e o direito restitutivo ou cooperativo cüj essência não é a punição das violações das regras sociais mas repor as coisa em ordem quando uma falta foi cometida ou organizar a cooperação entre oS indivíduos A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 293 O direito repressivo revela a consciência coletiva nas sociedades de solida riedade mecânica já que pelo próprio fato de que multiplica as sanções mani festa a força dos sentimentos comuns sua extensão e sua particularização Quanto mais ampla a consciência coletiva quanto mais forte e particularizada maior será o número de atos considerados como crimes isto é atos que violam um imperativo ou um interdito que ferem diretamente a consciência da cole tividade Esta definição de crime é tipicamente sociológica no sentido em que Durkheim interpreta o termo sociológico Nesta acepção crime é simplesmen te um ato proibido pela consciência coletiva Não importa que pareça inocente ao observador situado em outra sociedade ou em outro período histórico Num estudo sociológico o crime só pode ser definido do exterior tomando como referência o estado de consciência coletiva da sociedade considerada Esta defi nição é portanto objetiva e relativista Dizer que alguém é sociologicamente um criminoso não significa que o consideremos culpado com relação a Deus ou com relação à nossa própria con cepção de justiça Criminoso é aquele que numa sociedade determinada deixou de obedecer às leis do Estado Nesse sentido Sócrates provavelmente merecia ser considerado criminoso Evidentemente basta levar essa idéia até as últimas conseqüências para que ela se tome trivial ou então chocante para o espírito A definição sociológica do crime leva de fato logicamente a um relativismo integral fácil de pensar em termos abstratos mas ao qual na realidade ninguém adere nem mesmo aqueles que o professam De qualquer forma depois de ter esboçado uma teoria do crime Durkheim deduz dela sem dificuldade uma teoria das sanções Afasta com um certo des prezo as interpretações clássicas segundo as quais as sanções teriam por fina lidade prevenir a repetição do ato culpado Para ele a sanção não tem a função de amedrontar ou de dissuadir seu sentido não é este A função do castigo é sa tisfazer a consciência comum ferida pelo ato cometido por um dos membros da coletividade Ela exige reparação e o castigo do culpado é esta reparação feita aos sentimentos de todos Durkheim considera esta teoria da sanção mais satisfatória do que a inter pretação racionalista pelo efeito de dissuasão É provável que sociologicamen te ele estivesse certo Mas não devemos deixar de reconhecer que se o castigo é sobretudo uma reparação feita à consciência coletiva o prestígio da justiça e a autoridade das sanções ficam enfraquecidos Um cínico como Pareto diria que Durkheim tem razão e que efetivamen te muitos castigos não passam de uma espécie de vingança da consciência cole tiva aplicada a indivíduos indisciplinados embora não convenha admitilo pois não se poderia manter o respeito pela justiça se esta fosse vista como um mero tributo aos preconceitos de uma sociedade arbitrária e irracional 294 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO No direito restitutivo não se trata de punir mas sim de restabelecer o esta do das coisas como deve ser segundo a justiça Aquele que não resgatou sua dí vida deve pagála Mas esse direito restitutivo ao qual pertence por exemplo o direito comercial não é a única forma de direito característica das sociedades de solidariedade orgânica Quando menos devese interpretar o direito restitu tivo num sentido muito amplo de modo a englobar todas as regras jurídicas que têm por objeto a organização da cooperação entre os indivíduos O direito ad ministrativo ou o direito constitucional pertencem como o comercial ao gênero do direito cooperativo constituem menos a expressão dos sentimentos comuns de uma coletividade do que a organização da coexistência regular e ordenada de indivíduos já diferenciados Poderseia acreditar que Durkheim encontra assim uma idéia que tinha uma função importante na sociologia de Spencer e nas teorias dos economistas clássicos a idéia de que a sociedade moderna se baseia essencialmente no con trato isto é em acordos concluídos livremente pelos indivíduos Neste caso a visão de Durkheim se ajustaria de certo modo à fórmula clássica do estatuto ao contrato ou ainda de uma sociedade dominada por imperativos coletivos a uma sociedade na qual a ordem comum é criada pelas livres decisões dos indi víduos Mas não é esta a idéia de Durkheim Para ele a sociedade moderna não se baseia no contrato como a divisão do trabalho não se explica a partir de deci sões racionais dos indivíduos de repartir as ocupações para aumentar a produ ção coletiva Se a sociedade moderna fosse contratualista poderia ser expli cada pelo comportamento dos indivíduos Ora o que o sociólogo quer demons trar é precisamente o contrário Opondose assim aos contratualistas como Spencer e aos economistas Durkheim não nega que nas sociedades modernas os contratos concluídos li vremente pelos indivíduos tenham um papel importante Mas esse elemento contratual é um derivado da estrutura da sociedade e até mesmo um derivado do estado da consciência coletiva na sociedade moderna Para que haja uma esferal cada vez mais ampla em que os indivíduos possam concluir livremente acordos entre si é preciso que a sociedade tenha uma estrutura jurídica que autorizei essas decisões autônomas dos indivíduos Em outras palavras os contratos inte rindividuais se situam dentro de um contexto social que não é determinado pe los próprios indivíduos A divisão do trabalho pela diferenciação é a condição primordial da existência de uma esfera de contrato Encontrase aqui o princí pio da prioridade da estrutura social sobre o indivíduo ou ainda da prioridade do tipo social sobre os fenômenos individuais Os contratos são concluídos entre indivíduos mas suas condições são fixa das por uma legislação que traduz a concepção que a sociedade global tem do justo e do injusto do tolerável e do proibido i A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 295 A sociedade em que predomina o tipo orgânico de solidariedade não é defi nida portanto pela substituição da comunidade pelo contrato A sociedade mo derna também não é definida pela substituição do tipo militar pelo industrial para usar a antítese de Spencer Ela se define prioritariamente pela diferencia ção social de que o contratualismo é uma conseqüência e manifestação Quando os economistas ou os sociólogos explicam a sociedade moderna pe lo contrato eles invertem a ordem histórica e lógica É a partir da sociedade glo bal que compreendemos o que são os indivíduos e como e por que eles podem livremente contratar entre si Mas qual é a causa da solidariedade orgânica ou da diferenciação social que é considerada como a característica essencial das sociedades modernas Observemos antes de mais nada que não é evidente que Durkheim tenha razões para formular este problema nos termos em que o enuncia qual é a cau sa do desenvolvimento da solidariedade orgânica e da diferenciação social Ele não pode ter certeza a priori de que é possível ou mesmo impossível encontrar a causa de um fenômeno que não é simples ou isolável mas sim um aspecto do conjunto da sociedade Durkheim quer determinar a causa do desenvolvi mento da divisão do trabalho nas sociedades modernas Tratase aqui de um fenômeno essencialmente social Quando o fenômeno a explicar tem esta natureza segundo o princípio da homogeneidade da causa e do efeito a causa deve ser também social o que elimina a explicação indivi dualista Curiosamente Durkheim afasta assim uma explicação que Auguste Comte tinha também considerado e eliminado segundo a qual o fator essencial do desenvolvimento social teria sido o enfado ou a procura da felicidade De fato nada prova que nas sociedades modernas os homens sejam mais felizes do que nas sociedades arcaicas Não há dúvida de que neste ponto ele tem razão A única coisa surpreendente é que julgue necessário mas na sua época prova velmente era necessário escrever tantas páginas para demonstrar que a dife renciação social não pode ser explicada pela busca do prazer ou da felicidade É verdade afirma ele que os prazeres são mais numerosos e sutis nas so ciedades modernas mas esta diferenciação dos prazeres é o resultado da dife renciação social não a causa Quanto à felicidade ninguém poderia dizer que somos mais felizes do que os homens que nos precederam Durkheim naquela época já estava impressionado pelo fenômeno do suicídio apresenta a freqüên cia dos suicídios como a melhor prova de que a felicidade não aumenta com o progresso nas sociedades modernas Sugere que os suicídios são mais comuns hoje do que no passado Contudo na falta de estatísticas sobre as sociedades anti gas não podemos ter certeza disto A divisão do trabalho não pode portanto ser explicada pelo enfado pela bus ca da felicidade pelo aumento dos prazeres ou pelo desejo de aumentar a pro 296 ÀS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO dução coletivajA divisão do trabalho é um fenômeno social que só pode ser explicado por outro fenômeno social o de uma combinação do volume densi dade material e moral da sociedade O volume da sociedade é simplesmente o número dos indivíduos que per tencem a uma determinada sociedade Este volume não pode explicar isolada mente a diferenciação social Numa sociedade numerosa estabelecida num vasto território mas constituída pela justaposição de segmentos e pela aproxi mação de um grande número de tribos cada tribo conservando sua estrutura tradicional o volume em si mesmo não provocaria a diferenciação Para que o volume isto é o aumento do número dos indivíduos se tome uma causa da diferenciação é preciso acrescentar a densidade nos dois senti dos o material e o moral A densidade material é o número dos indivíduos em relação a uma superfície dada do solo A densidade moral é a intensidade das comunicações e trocas entre esses indivíduos Quanto mais intenso o relaciona mento entre os indivíduos maior a densidade A diferenciação social resulta da combinação dos fenômenos do volume e da densidade material e moral Para explicar esse mecanismo Durkheim invoca o conceito da luta pela vida que Darwin popularizou na segunda metade do século XIX Quanto mais numerosos os indivíduos que procuram viver em conjunto mais intensa a luta pela vida A diferenciação social é a solução pacífica da luta pela vida Em vez de alguns serem eliminados para que outros sobrevivam como ocorre no reino animal a diferenciação social permite a um número maior de indivíduos sobre viver diferenciandose Cada um deixa de estar em competição com todos poden do assim ter um papel e preencher uma função Deixa de ser necessário elimi nar a maioria dos indivíduos a partir do momento em que não sendo eles se melhantes entre si porém diferentes cada um colabora com uma contribuição que lhe é própria para a vida de todos2 Esta explicação está de acordo com o que Durkheim considera uma regra do método sociológico a explicação de um fenômeno social por outro fenômeno so cial e a explicação de um fenômeno global por outro fenômeno global Desde este primeiro trabalho importante o pensamento de Durkheim se organiza em torno de algumas idéias essenciais A diferenciação social fenômeno característico das sociedades modernas é a condição criadora da liberdade individual Só numa sociedade em que a consciência coletiva perdeu uma parte da sua rigidez o indivíduo pode ter uma certa autonomia de julgamento e de ação Nessa sociedade individualista o problema mais importante é manter o mínimo de consciência coletiva à falta da qual a solidariedade orgânica provo caria a desintegração social O indivíduo é a expressão da coletividade No sistema de solidariedade me cânica ele é intercambiável Numa sociedade arcaica não seria apropriado cha A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 297 málo de o mais insubstituível dos seres segundo a fórmula de Gide Mas mes mo quando se integra numa sociedade em que cada um pode e quer ser o mais in substituível dos seres o indivíduo ainda é a expressão da coletividade A estru tura desta impõe a cada um uma responsabilidade própria Mesmo na socieda de que permite a cada um ser o que é individualmente há uma parte maior do que acreditamos de consciência coletiva presente nas consciências individuais A sociedade de diferenciação orgânica não se poderia manter se fora ou acima do reino contratual não houvesse imperativos e interditos valores e objetos sagra dos coletivos que vinculassem as pessoas ao todo social O suicídio 1897 O livro que Durkheim escreveu sobre o problema do suicídio está estreita mente ligado ao estudo da divisão do trabalho De modo geral Durkheim apro va o fenômeno da divisão orgânica do trabalho que considera um desenvolvi mento normal e sem dúvida alguma feliz das sociedades humanas Considera uma coisa boa a diferenciação dos indivíduos e das profissões a regressão da autoridade da tradição o domínio crescente da razão o desenvolvimento da par te que foi deixada à iniciativa pessoal Contudo observa também que o homem não se sente necessariamente mais feliz com sua sorte nas sociedades moder nas e registra de passagem o aumento do número dos suicídios expressão e pro va de certos traços talvez patológicos da organização atual da vida coletiva A última parte do livro dedicada à divisão do trabalho inclui uma análise dessas características patológicas Durkheim fala já da anomia ausência ou de sintegração das normas sociais conceito que vai ter um papel predominante no estudo do suicídio Passa em revista então certos fenômenos as crises econô micas a inadaptação dos trabalhadores a suas ocupações a violência das rei vindicações dos indivíduos com relação à coletividade Todos esses fenômenos são patológicos Com efeito na medida em que as sociedades modernas se fundamentam na diferenciação tornase indispensável que o trabalho que cada um exerce corresponda a seus desejos e aptidões Além disso uma sociedade que propicia crescentemente o individualismo está obri gada pela sua própria natureza a respeitar a justiça As sociedades dominadas pela tradição atribuem a cada um um lugar fixado pelo nascimento ou pelos im perativos coletivos Nessas sociedades seria anormal que o indivíduo reivindi casse uma situação adaptada a seus gostos ou proporcional aos seus méritos Nas sociedades modernas porém o individualismo é o princípio fundamental Nelas os homens são e se sentem diferentes uns dos outros e cada um quer obter tudo aquilo a que julga ter direito O princípio individualista de justiça se toma o princípio coletivo indispensável da ordem atual As sociedades modernas só podem ser estáveis se respeitarem a justiça 298 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Mesmo nas sociedades baseadas na diferenciação individual subsiste o equi valente da consciência coletiva das sociedades em que impera a solidariedade mecânica isto é as crenças os valores comuns Se esses valores comuns se de bilitam se a esfera dessas crenças se reduz demasiadamente a sociedade fica ameaçada de desintegração O problema central das sociedades modernas como de todas as sociedades é portanto a relação entre os indivíduos e o grupo Este relacionamento é transfor mado pelo fato de que o homem se tomou por demais consciente de si mesmo para aceitar cegamente quaisquer imperativos sociais De outro lado porém tal individualismo em si mesmo desejável comporta perigos pois o indivíduo po de exigir da coletividade mais do que esta lhe pode dar É preciso portanto uma disciplina que só a sociedade pode impor Em De la division du travail social sobretudo no prefácio da segunda edi ção Durkheim alude ao que para ele constitui a solução do problema a orga nização de grupos profissionais que favoreçam a integração dos indivíduos na coletividade O estudo do suicídio trata de um aspecto patológico das sociedades moder nas e revela do modo mais marcante a relação entre o indivíduo e a coletivida de Durkheim quer mostrar até que ponto os indivíduos são determinados pela realidade coletiva Desse ponto de vista o fenômeno do suicídio tem excepcio nal interesse já que aparentemente nada pode ser mais individual do que o fato de um indivíduo destruir sua própria vida Se pudermos provar que esse fenômeno é determinado pela sociedade estará provada a partir do caso mais desfavorável a verdade da tese de Durkheim Quando o indivíduo se sente só e desesperado a ponto de se matar é ainda a sociedade que está presente na consciência do infeliz e o leva mais do que sua história individual a esse ato solitário O estudo durkheimiano do suicídio tem o rigor de uma dissertação acadê mica Começa por definir o fenômeno continua com uma refutação das inter pretações anteriores estabelece uma tipologia e com base nessa tipologia de senvolve uma teoria geral do fenômeno considerado Suicídio é todo caso de morte provocado direta ou indiretamente por um ato positivo ou negativo realizado pela própria vítima e que ela sabia que devia provocar esse resultado Le suicide ed de 1960 p 5 Ato positivo disparar um tiro de revólver na própria têmpora Ato negati vo não abandonar uma casa em chamas ou recusar a alimentação até a morte Uma greve de fome que leva até a morte é um exemplo de suicídio A expressão direta ou indiretamente nos leva a uma distinção compará vel à que foi feita entre o ato positivo e o negativo Um tiro de revólver acarre ta a morte diretamente não abandonar uma casa em chamas ou recusar ali A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 299 mentação pode provocar indiretamente ou a longo prazo o resultado almejado isto é a morte De acordo com esta definição o conceito de suicídio engloba não só os ca sos reconhecidos por todos mas também por exemplo o ato do capitão que prefere afundar seu navio a renderse o do samurai que se mata porque se con sidera desonrado o das mulheres indianas que acompanham seus maridos na morte Em outras palavras é preciso considerar também como suicídio os casos de morte voluntária envoltos em auréola de heroísmo e de glória e que à pri meira vista não somos tentados a englobar nos suicídios ditos comuns como os de amantes desesperados os de banqueiros arruinados de criminosos acossa dos descritos nos noticiários dos jornais As estatísticas nos mostram imediatamente que a taxa de suicídio isto é a freqüência dos suicídios em relação a uma população determinada é relativa mente constante Este fato é considerado essencial por Durkheim A taxa de suicídio é característica de uma sociedade global ou de uma região ou provín cia Ela não varia arbitrariamente mas em função de múltiplas circunstâncias A tarefa do sociólogo é estabelecer correlações entre as circunstâncias e as va riações da taxa de suicídio variações que são fenômenos sociais Convém de fato distinguir o suicídio fenômeno individual tal pessoa em tal conjuntura se matou da taxa de suicídio que é um fenômeno social e que Durkheim procura explicar Para a teoria o mais importante é a relação entre o fenômeno indivi dual suicídio e o fenômeno social taxa de suicídio De acordo com a definição do fenômeno Durkheim afasta as explicações de tipo psicológico Muitos médicos e psicólogos que estudaram suicídios indi viduais se sentem tentados a explicálos em termos psicológicos ou psicopato lógicos Dizem por exemplo que a maioria dos que se matam encontramse num estado patológico ao cometerem esse ato a que os predispunham a sua sen sibilidade ou o seu psiquismo A este tipo de explicação Durkheim opõe ime diatamente a argumentação que segue Admite que haja uma predisposição psicológica ao suicídio predisposição que se pode explicar em termos psicológicos ou psicopatológicos De fato os neuropatas têm maior probabilidade em determinadas circunstâncias de come ter o suicídio Contudo Durkheim afirma que a força que determina o suicídio não é psicológica mas social A discussão científica está centrada nesses dois termos predisposição psi cológica e determinação social Para demonstrar essa distinção Durkheim emprega o método clássico das variações concomitantes Estuda as variações da taxa de suicídio em diferentes populações e procura provar que não há correlação entre a freqüência dos esta dos psicopatológicos e a freqüência dos suicídios 300 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Considera por exemplo as diversas religiões e constata que a proporção de alienados entre os indivíduos de religião judaica é particularmente elevada por outro lado a freqüência dos suicídios entre esses indivíduos é muito baixa Esforçase também por demonstrar que não há uma correlação entre as dispo sições hereditárias e a taxa de suicídio A porcentagem dos suicídios aumenta com a idade o que é pouco compatível com a hipótese segundo a qual a causa eficiente do suicídio seria transmitida pela hereditariedade Procura refutar as sim uma interpretação que poderia ser sugerida pela repetição de casos de sui cídio numa mesma família Um escritor político francês do século passado PrévostParadol embaixa dor da França nos Estados Unidos cometeu suicídio em Washington poucos dias depois da sua chegada e da declaração da guerra de 1870 Cerca de trinta anos mais tarde seu filho também se suicidou em circunstâncias diferentes Esses exemplos de suicídios repetidos na mesma família levariam a acreditar que a predisposição para o suicídio se transmitisse hereditariamente Durkheim porém afasta de modo geral esta hipótese Afasta também nas suas análises preliminares a interpretação do suicídio como fenômeno de imitação Aproveita a oportunidade para acertar as contas com um sociólogo célebre do seu tempo com quem estava em desacordo a res peito de tudo Tratase de Gabriel Tarde que considerava a imitação o fenôme nochave da ordem social3 Para Durkheim sob o nome de imitação três fenô menos distintos são confundidos O primeiro é o que chamaríamos hoje de fusão das consciências que é o fato de que os mesmos sentimentos afetam um grande número de pessoas O exemplo típico é o da massa revolucionária a que JeanPaul Sartre se refere longamente em Crítica da razão dialética Na massa revolucionária os indiví duos tendem a perder a identidade da sua consciência cada um sente o que os outros sentem Os sentimentos que agitam os indivíduos são sentimentos co muns Os atos as crenças as paixões pertencem a cada um porque pertencem a todos Mas o suporte desse fenômeno psicossociológico é a própria coletivi dade e não um ou mais indivíduos O segundo fenômeno é a adaptação do indivíduo à coletividade de forma a se comportar como os outros sem haver contudo uma fusão de consciências Cada um se inclina diante dos imperativos sociais mais ou menos difusos o indivíduo prefere não se singularizar A moda é uma forma atenuada de impe rativo social Uma mulher de certo meio se sentiria humilhada por usar um ves tido diferente do que é considerado apropriado para uma determinada estação Neste caso não há propriamente imitação mas sujeição do indivíduo a uma regra coletiva A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 301 Finalmente só merece ser considerado imitação no sentido exato do ter mo um ato que tem como antecedente imediato a representação de ato seme lhante realizado anteriormente por outrem sem que entre a representação e a execução se intercale qualquer operação intelectual explícita ou implícita so bre as características intrínsecas do ato reproduzido Le suicide p 115 Para compreender este fenômeno basta pensar na tosse de contágio durante confe rência tediosa ou em todas as reações mais ou menos mecânicas que se obser vam às vezes nas reuniões muito numerosas Convém distinguir igualmente o contágio e a epidemia distinção que é tí pica do método de Durkheim O contágio é um fenômeno que podemos chamar de interindividual ou mesmo individual Alguém tosse como reação à tosse do vizinho No fim o número dos que tossem pode ser grande mas cada acesso de tosse é estritamente individual O fenômeno se propaga de um indivíduo para outro como uma pedra que ricocheteia sobre a água Já a epidemia que pode ser transmitida por contágio é um fenômeno coletivo cujo suporte é o conjun to da sociedade Esta distinção entre a sucessão de atos individuais e o fenôme no coletivo permite uma vez mais perceber a intenção essencial de Durkheim a determinação do social enquanto tal Em suma não se pode designar com o mesmo nome de imitação o pro cesso em virtude do qual numa reunião se elabora um sentimento coletivo do qual resulta nossa adesão às regras comuns ou tradicionais de comportamento e por fim o que determina que os carneiros de Panúrgio se lancem à água por que um deles fez isso Sentir em comum inclinarse diante da autoridade da opinião e repetir automaticamente o que os outros fazem são coisas distintas Ibid p 115 Depois dessas análises formais Durkheim refuta com a ajuda de estatísti cas a idéia de que a taxa de suicídio seria determinada essencialmente pela imitação Se os suicídios se devessem ao contágio seria possível seguilos num mapa a partir de um centro onde a taxa seria particularmente elevada para outras regiões Ora a análise geográfica dos suicídios não revela tal tendência Ao lado de regiões onde a taxa é elevada há outras onde é especialmente baixa A distribuição dessas taxas é irregular incompatível com a hipótese da imitação Pode haver contágio em alguns casos por exemplo às vesperas de uma derro ta alguns indivíduos desesperados se suicidam Mas esses fenômenos de contá gio não explicam nem a taxa de suicídio nem suas variações Depois de definir o suicídio e de afastar as explicações do fenômeno pela imitação e a psicopatologia resta a etapa principal da investigação o estabele cimento de uma tipologia Para isso Durkheim trabalha com os dados de suicídio que encontra isto é estatísticas incompletas e parciais que lidam com números reduzidos a taxa 302 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de suicídio oscila entre 100 e 300 por milhão de pessoas por ano Certos médi cos mais céticos sustentaram a tese de que o estudo das variações da taxa de suicídio praticamente não tem nenhum alcance devido ao pequeno número dos casos estudados e às possíveis inexatidões dessas estatísticas Durkheim constata que a taxa de suicídio varia em função de algumas cir cunstâncias que examina acredita que é possível determinar os tipos sociais do suicídio com base em determinadas correlações estatísticas Contudo de acor do com outra teoria seria possível estabelecer as variações dessa taxa em vir tude das circunstâncias sem se chegar porém à determinação de uma tipologia Os três tipos de suicídio que Durkheim se propõe a definir são o suicídio egoísta o suicídio altruísta e o suicídio anòmico O suicídio egoísta é analisado graças à correlação entre a taxa de suicídio e os contextos sociais integradores a religião e a família esta última conside rada sob o duplo aspecto de casamento e prole A taxa de suicídio varia com a idade isto é de modo geral aumenta com ela Varia também de acordo com o sexo é mais elevada entre os homens que en tre as mulheres Flutua com a religião e Durkheim baseandose em estatísti cas alemãs estabelece que os suicídios são mais freqüentes nas populações pro testantes do que nas católicas Compara a situação dos homens e mulheres ca sados com a dos celibatários e a dos viúvos e viúvas Os métodos estatísticos que utiliza são simples compara a freqüência dos suicídios entre os homens casados e solteiros da mesma idade de modo a identificar o que chama de coe ficiente de preservação que indica a diminuição da freqüência do suicídio nu ma idade determinada devido à situação familiar Estabelece também os coe ficientes de preservação ou ao contrário os coeficientes de agravamento para as mulheres celibatárias ou casadas para os viúvos e viúvas Em conclusão verifica que se há uma preservação dos indivíduos homens e mulheres devido ao casamento ela se deve a partir de uma certa idade menos ao estado civil do que à existência de filhos Com efeito depois de uma certa idade as mulheres casadas sem filhos não se beneficiam de um coeficiente de preserva ção elevado ao contrário seu coeficiente de agravamento aumenta Não é pois tanto o casamento que protege mas a família e os filhos A família sem filhos não é um meio integrador suficientemente forte Pode ser que as mulheres sem filhos sofram daquilo que os psicólogos de hoje chamam de frustração Assim os indivíduos deixados a si mesmos têm desejos infinitos Incapa zes de se satisfazerem só atingem um certo equilíbrio graças a uma força exte rior de ordem moral que lhes ensina a moderação e os ajuda a encontrar a paz Toda situação que tende a fazer aumentar a disparidade entre desejos e satisfa ção se traduz por um coeficiente de agravamento Este primeiro tipo social de suicídio identificado por meio do estudo esta tístico das correlações é definido pelo termo egoísmo Homens e mulheres são A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 303 mais inclinados ao suicídio quando pensam essencialmente em si mesmos quan do não estão integrados num grupo social quando os desejos que os animam não podem ser reduzidos a uma medida compatível com o destino humano pela autoridade do grupo e pela força de obrigações impostas por um meio estrito e vigoroso O segundo tipo de suicídio é o altruísta que no livro de Durkheim com porta dois exemplos principais O primeiro que se observa em muitas socieda des arcaicas é o da viúva indiana que aceita ser colocada na fogueira que deve queimar o corpo do marido morto Neste caso não se trata evidentemente de suicídio por excesso de individualismo mas ao contrário pelo completo desa parecimento do indivíduo no grupo O indivíduo se mata devido a imperativos sociais sem pensar sequer em fazer valer seu direito à vida Do mesmo modo o comandante de um navio que não quer sobreviver à perda da sua nave se suici da por altruísmo sacrificase a um imperativo social interiorizado obedecendo ao que o grupo lhe ordena a ponto de sufocar o próprio instinto de conservação Além destes casos de suicídio heróico ou religioso Durkheim descobre nas estatísticas um exemplo moderno de suicídio altruísta o aumento da freqüên cia de suicídios no exército As estatísticas utilizadas por Durkheim e acredito que as estatísticas atuais vão no mesmo sentido revelam de fato para os mili tares de uma certa idade suboficiais e oficiais um coeficiente de agravamento os militares se suicidam um pouco mais do que os civis da mesma idade e de iguais condições Esses suicídios não podem ser explicados como do tipo egoís ta pois por definição os militares tratase de profissionais e graduados per tencem a um grupo fortemente integrado Os soldados recrutados consideram sua situação transitória e combinam a obediência aos superiores com uma gran de liberdade na apreciação do sistema Os militares de carreira com toda a evi dência aderem ao sistema em que estão integrados porque salvo casos excep cionais não o teriam escolhido se não lhe dedicassem um mínimo de lealdade Pertencem a uma organização cujo princípio constitutivo é a disciplina Estão portanto no extremo oposto dos celibatários que rejeitam a disciplina da vida familiar e são incapazes de limitar seus desejos infinitos Há portanto dois tipos básicos na corrente suicidógena os que se afas tam demais do grupo social e os que estão demasiadamente presos ao grupo Os egoístas se suicidam mais facilmente que os outros mas também aqueles que têm excesso de altruísmo que se confundem a tal ponto com o grupo a que per tencem são incapazes de resistir aos golpes do destino Finalmente há um terceiro tipo de suicídio o anômico É o tipo que mais interessa a Durkheim porque é o mais característico da sociedade moderna Este é o suicídio que é revelado pela correlação estatística entre a freqüência do suicídio e afâsss do ciclo econômico 304 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO As estatísticas parecem demonstrar uma tendência ao aumento da freqüên cia dos suicídios nos períodos de crise econômica mas também o que é sur preendente e mais inesperado nos períodos de grande prosperidade Outro fenômeno curioso é que há uma tendência à redução da freqüência dos suicídios durante os grandes acontecimentos políticos Durante as guerras por exemplo o número de suicídios tende a diminuir Esses fenômenos o aumento de freqüência nas fases de agitação social e sua diminuição durante os grandes acontecimentos sugerem ao sociólogo a idéia do suicídio anômico Esta expressão foi usada por Durkheim em Da divisão do trabalho social e corresponde a um conceitochave da sua filosofia social O que lhe interessa acima de tudo chegando ao ponto de obcecálo é a crise da sociedade moderna definida pela desintegração social e pela debilidade dos laços que prendem o indivíduo ao grupo O suicídio anômico não é só aquele que aumenta durante as crises econô micas é também aquele cuja freqüência cresce paralelamente ao número de divórcios Durkheim faz um estudo longo e sutil da influência do divórcio so bre a freqüência dos suicídios entre homens e mulheres As estatísticas fornecem a este respeito resultados relativamente difíceis de interpretar O homem divorciado está mais ameaçado pelo suicídio a ex pressão é de Durkheim do que a mulher Para compreender o fenômeno é pre ciso analisar o que o homem e a mulher recebem de equilíbrio de satisfação e disciplina no casamento O homem encontra equilíbrio e disciplina no casa mento porém graças à tolerância dos costumes conserva uma certa liberdade A mulher Durkheim escrevia num período que já está encerrado vai achar no casamento mais disciplina do que liberdade Por outro lado o homem divorcia do volta à indisciplina à disparidade entre desejos e satisfação enquanto a mu lher divorciada se beneficia de uma liberdade adicional que compensa em parte a perda da proteção familiar Assim além dos dois tipos de suicídio já estudados o egoísta e o altruís ta há o suicídio anômico que atinge os indivíduos devido às condições de vida nas sociedades modernas em que a existência social não é regulamentada pelos costumes Os indivíduos estão em competição permanente uns com os outros esperam muito da vida fazem grandes exigências e se sentem sempre acuados pelo sofrimento resultante da desproporção entre suas aspirações e satisfações Esta atmosfera de inquietação é propícia ao desenvolvimento da corrente sui cidógena Durkheim procura demonstrar em seguida que os tipos sociais que pro põe correspondem aproximadamente a tipos psicológicos O suicídio egoísta se manifestará por um estado de apatia e pela ausência de vinculação com a vida o suicídio altruísta pela energia e a paixão o anô mico enfim pela irritação associada às numerosas situações de decepção ofe A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 305 recidas pela vida moderna por um desgosto resultante da tomada de consciên cia da desproporção entre as aspirações e as satisfações Uma vez traduzidos os tipos sociais em termos psicológicos resta explicar os resultados do estudo o que é essencial do ponto de vista da teoria sociológica A teoria de Durkheim pode ser resumida assim os suicídios são fenôme nos individuais cujas causas são contudo essencialmente sociais Há corren tes suicidógenas para usar a terminologia de Durkheim que atravessam a so ciedade originandose não no indivíduo mas na coletividade e que são a causa real e determinante dos suicídios Indubitavelmente estas correntes suicidóge nas não atingem indiscriminadamente qualquer indivíduo Quem se suicida provavelmente estava predisposto ao suicídio pela sua constituição psicológica por fraqueza nervosa ou distúrbios neuróticos Da mesma forma as circuns tâncias sociais que criam correntes suicidógenas criam também estas predispo sições psicológicas porque os indivíduos vivendo nas condições peculiares da sociedade moderna são mais sensíveis e por conseguinte mais vulneráveis As causas reais dos suicídios são em suma forças sociais que variam de so ciedade para sociedade de grupo para grupo e de religião para religião Ema nam do grupo e não dos indivíduos isoladamente Uma vez mais encontrase aqui o tema fundamental da sociologia de Durkheim a saber o fato de que em si as sociedades são de natureza diferente dos indivíduos Existem fenômenos e forças cujo suporte é a coletividade e não a soma dos indivíduos Estes em conjunto fazem surgir fenômenos ou forças que só podem ser explicados pela sua conjunção Há fenômenos sociais específicos que comandam os fenômenos individuais o exemplo mais notável ou mais eloqüente é justamente o das cor rentes sociais que levam os indivíduos à morte embora cada um deles pense que está obedecendo apenas a si mesmo quando na realidade é um joguete dessas forças coletivas Para extrair as conseqüências práticas do estudo do suicídio convém inda gar sobre o caráter normal ou patológico deste fenômeno Durkheim conside ra o crime um fenômeno socialmente normal o que não significa que os crimi nosos não sejam muitas vezes psiquicamente anormais nem que o crime não mereça ser condenado e punido Contudo sabemos que em todas as sociedades um certo número de crimes são cometidos assim se queremos referirnos ao que se passa regularmente o crime não é um fenômeno patológico Pelo mes mo motivo uma certa taxa de suicídio pode ser considerada normal Mas Durkheim acredita embora não o demonstre conclusivamente que o aumento da taxa de suicídio na sociedade moderna é patológico e que a atual taxa de suicídio revela certos aspectos patológicos da sociedade moderna De fato esta se caracteriza pela diferenciação social a solidariedade orgâ nica a densidade d a população a intensidade das comunicações a luta pela vida 306 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Todos esses fatos ligados à essência da sociedade moderna não devem ser con siderados em si mesmos anormais Contudo na parte final de Da divisão do trabalho social como no fim de Le suicide Durkheim indica que as sociedades modernas apresentam certos sintomas patológicos principalmente a insuficiente integração do indivíduo na coletivida de O tipo de suicídio que sob este ponto de vista interessa mais a Durkheim é o que ele chama de anômico É a causa do aumento da taxa de suicídio nos perío dos de crise econômica e também em períodos de prosperidade isto é em todos os casos em que se produz um exagero da atividade e uma ampliação das trocas e das rivalidades Estes fenômenos são inseparáveis das sociedades em que vive mos mas a partir de um certo limiar tomamse patológicos Há razão para crer que esse agravamento da taxa de suicídio devese não à natureza intrínseca do progresso mas às condições particulares em que ele se rea liza em nossos dias e nada nos assegura que essas condições sejam normais Com efeito não nos devemos deixar cegar pelo brilho do desenvolvimento das ciências das artes e da indústria ao qual assistimos Indubitavelmente ele se realiza no meio de uma efervescência doentia cujos efeitos dolorosos todos sentimos É muito possível portanto e até mesmo verossímil que o aumento do número de suicídios se origine num estado patológico que acompanha atualmente a marcha da civili zação embora não constitua uma condição necessária A rapidez com que o número de suicídios tem aumentado não autoriza nem mesmo outra hipótese Em menos de cinqüenta anos esse número triplicou quadru plicou ou quintuplicou de acordo com o país Por outro lado sabemos que esses suicídios estão associados ao que há de mais entranhado na constituição das socie dades cujo temperamento exprimem E o temperamento dos povos como o dos indivíduos reflete o estado do organismo no que ele tem de mais fundamental É preciso portanto que nossa organização social se tenha modificado profundamen te no curso deste século para ter determinado tal elevação da taxa de suicídio Ora é impossível que uma alteração ao mesmo tempo tão grave e tão rápida não seja mórbida pois uma sociedade não pode mudar de estrutura com tanta rapidez Ela só adquire outras características mediante uma série de modificações lentas e qua se imperceptíveis e ainda assim as transformações possíveis são limitadas Uma vez que o tipo social se fixa ele deixa de ser indefinidamente flexível atinge rapi damente um limite que não pode ser ultrapassado Portanto as modificações implicadas pela estatística dos suicídios atuais não podem ser normais Mesmo sem saber precisamente em que consistem podese afirmar antecipadamente que resul tam não de uma evolução regular mas de um abalo mórbido que pode ter desen raizado as instituições do passado sem contudo substituílas porque não é em pou cos anos que se pode refazer a obra dos séculos Ora se a causa é anormal o efei to não pode ser normal Conseqüentemente o que atesta a maré montante dos sui cídios não é o brilho da nossa civilização mas um estado de crise e de perturba ção que não se pode prolongar sem trazer perigo Ibidp 422 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 307 De qualquer maneira podemos então restaurar a integração do indivíduo na coletividade Durkheim passa em revista sucessivamente o grupo familiar o grupo religioso e o político em particular o Estado procurando demonstrar que nenhum desses três grupos proporciona o contexto social próximo do indivíduo que daria a este segurança embora sujeitandoo às exigências da solidariedade Nosso autor afasta a reintegração no grupo familiar por duas razões De um lado a taxa de suicídio anômico não aumenta menos entre os casados do que entre os solteiros o que indica que o grupo familiar não oferece proteção mais eficaz contra a corrente suicidógena Seria vão portanto contar com a família para que o indivíduo passasse a ter um ambiente mais próximo e capaz de lhe impor disciplina De outro lado as funções da família estão em declínio na so ciedade moderna Cada vez mais limitada seu papel econômico se reduz cada vez mais A família não pode portanto servir de intermediário entre o indivíduo e a coletividade O Estado ou o grupo político está muito afastado do indivíduo é exces sivamente abstrato e autoritário para proporcionar o contexto necessário à inte gração A religião enfim não pode fazer desaparecer a anomia eliminando as cau sas profundas do mal Durkheim espera uma disciplina do grupo que deve agir como órgão de reintegração É preciso que os indivíduos consintam em limitar seus desejos obedecendo aos imperativos que ao mesmo tempo determinam os objetivos que podem adotar e os meios que têm o direito de empregar Ora nas sociedades modernas as religiões apresentam cada vez mais um caráter abstra to e intelectual De certo modo tomamse mais puras contudo perdem em parte sua função de coerção social Incitam os indivíduos a transcender suas paixões e a viver de conformidade com a lei espiritual mas não conseguem mais pre cisar as obrigações ou as regras às quais os homens devem submeterse na vida profana Em suma não constituem escolas de disciplina no mesmo grau em que o foram no passado Ora o que Durkheim procura para remediar os males da sociedade moderna não são teorias ou idéias abstratas mas morais em ação O único grupo social que pode favorecer a integração dos indivíduos na coletividade é por conseguinte a profissão ou para empregar o termo usado por Durkheim a corporação No prefácio da segunda edição de Da divisão do trabalho social Durkheim se refere longamente às corporações como instituições que consideramos hoje anacrônicas mas que na realidade respondem às exigências da ordem atual Cha ma de corporações de modo geral as organizações profissionais que reunin do empregadores e empregados estariam suficientemente próximas do indiví duo para constituir escolas de disciplina seriam suficientemente superiores a cada um para se beneficiar de prestígio e autoridade Além disso as corpora ções responderiam ao caráter das sociedades modernas em que predomina a atividade econÔto 308 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Voltarei a falar sobre essa concepção das corporações versão do socialis mo de Durkheim que tendo sido rejeitada tanto pelos socialistas como pelos liberais foi condenada à sorte ingrata de mera doutrina acadêmica Mas nesta discussão sobre o caráter patológico das taxas atuais de suicídio e a busca de uma terapêutica surge uma idéia central da filosofia de Durkheim abandonado a si mesmo o homem é movido por desejos ilimitados quer sem pre mais do que tem e se decepciona sempre com as satisfações que obtém nu ma existência difícil Como determinar a quantidade de bemestar de conforto de luxo a que um ser humano pode aspirar legitimamente Não encontramos na constituição orgâ nica nem na constituição psicológica do homem nada que marque um limite a tais inclinações O funcionamento da vida individual não exige que os homens se dete nham aqui e não acolá prova disso é o fato de que desde o começo da história os homens não pararam de se desenvolver sempre obtiveram satisfações cada vez mais completas e nem por isso a saúde média foi se enfraquecendo Sobretudo como estabelecer a maneira como devem variar em virtude das condições das pro fissões da importância relativa dos serviços etc Não há uma sociedade em que os homens estejam igualmente satisfeitos nos diferentes graus da hierarquia social Contudo em seus traços essenciais a natureza humana é basicamente a mesma Portanto não é ela que poderá conferir às necessidades esse limite variável que lhes seria necessário Em conseqüência na medida em que dependem só do indi víduo elas são ilimitadas Em si mesma abstraindose as forças exteriores que a regulam nossa sensibilidade é um abismo sem fundo que nada pode preencher Le suicide p 273 O homem individual é um homem de desejos e por isso a primeira neces sidade da moral e da sociedade é a disciplina O homem precisa ser disciplina do por uma força superior autoritária e amável isto é digna de ser amada Esta força que ao mesmo tempo se impõe e atrai só pode ser a própria sociedade As discussões das teses de Durkheim sobre o suicídio tocaram diversos pon tos O primeiro que foi estudado em particular pelo doutor A Delmas tem a ver com o valor das estatísticas4 As estatísticas sobre o suicídio lidam inevita velmente com números reduzidos porque felizmente poucas pessoas se suici dam Por isso as correlações estatísticas são estabelecidas com base em diferen ças de taxa de suicídio relativamente pequenas Assim um médico que aceite a interpretação psicológica do suicídio poderá demonstrar que as variações da taxa de suicídio não são significativas na maioria dos casos devido aos erros que as estatísticas comportam Duas fontes de erro são incontestáveis a primeira é o fato de que os suicí dios quase sempre só são conhecidos pelas declarações dâs famílias Alguns são A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 309 conhecidos porque as próprias circunstâncias do ato desesperado os tomam públicos no entanto um bom número de suicídios são cometidos em condições tais que as autoridades só os registram mediante a declaração das famílias E a proporção dos suicídios nãoconfessados pode variar de acordo com o meio social a época e outros fatores A segunda fonte de erro tem a ver com a freqüência dos suicídios frustra dos ou das tentativas de suicídio Durkheim não chegou a estudar este proble ma que aliás só recentemente foi levado em consideração É na verdade muito complexo pois seria necessário um estudo psicossocial de cada caso a fim de saber se a intenção suicida era verdadeira ou não O segundo ponto de controvérsia está relacionado com a validade das cor relações estabelecidas por Durkheim Maurice Halbwachs dedicouse a uma análise aprofundada dessas correlações5 Para dar uma idéia simples deste gênero de discussão basta aludir à tese clássica de Durkheim os protestantes se suicidam mais freqüentemente do que os católicos porque a religião católica tem uma força integrativa superior à pro testante Essa tese se baseou em certas estatísticas alemãs em regiões de reli gião mista e parece convincente até o momento em que se pergunte se por aca so os católicos moram em zonas agrícolas e os protestantes em cidades Ora se esses dois grupos religiosos forem também populações que têm gênero de vida diferente a teoria do valor integrativo das religiões se toma duvidosa De modo geral o estabelecimento de correlações entre a taxa de suicídio e um fator como o religioso exige a demonstração de que não existem outros fa tores diferenciais nos casos comparados Ora raramente se chega a um resultado incontestável O fator religioso é difícil de isolar Populações próximas umas das outras e de diferentes religiões têm geralmente gêneros de vida e atividades pro fissionais semelhantes O terceiro ponto em discussão o mais interessante do ponto de vista teó rico é a relação entre a interpretação sociológica e a psicológica Os psicólo gos e os sociólogos estão de acordo sobre um fato a maioria dos que se suici dam têm constituição nervosa ou psíquica vulnerável embora não necessaria mente anormal situamse nos limites extremos da normalidade Em palavras mais simples muitos dos que se matam são de um modo ou de outro doentes nervosos do tipo ansioso ou ciclotímico O próprio Durkheim não tinha dificul dade em aceitar esta observação mas comentava que nem todos os neuropatas se suicidam afirmando que o caráter neuropático constitui apenas uma circuns tância favorável à ação da corrente suicidógena que escolhe suas vítimas Não é por haver tantos neuropatas num grupo social que nele ocorrem anual mente tantos suicídios A neuropatia faz apenas com que estes sucumbam mais do que aqueles Esta é a origem da grande diferença que separa o ponto de vista do 310 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO clínico e o do sociólogo O primeiro está sempre diante de casos particulares iso lados constata que muitas vezes a vítima tinha um caráter nervoso ou era um al coólatra e explica por um ou outro desses estados psicopáticos a ação realizada Tem razão num sentido se quem se matou foi aquela pessoa e não os seus vizinhos é porque freqüentemente foi por esse motivo Mas esse motivo não explica que de modo geral há pessoas que se matam e muito menos que numa sociedade um número definido de pessoas se matam em períodos de tempo determinados Le sui cide p 370 O equívoco em textos desse gênero provém da expressão corrente suici dógena conceito que parece sugerir que existe propriamente uma força social ou coletiva emanação de todo o grupo levando os indivíduos a se matar Ora nem os fatos individuais observados diretamente nem os fatos estatísticos nos obrigam a aceitar essa hipótese As taxas de suicídio podem ser explicadas pela porcentagem de nervosos ou de ansiosos numa sociedade e pela incitação ao suicídio que se exerce sobre eles Nem todos os ansiosos se matam e é possí vel conceber que a proporção dos que se suicidam varie de acordo com a situa ção profissional as circunstâncias políticas e o estado civil Em outras palavras nada nos obriga a considerar as correntes suicidógenas como realidade objetiva ou como causa determinante Os fatos estatísticos po dem resultar da ação conjugada de dados psicológicos ou psicopatológicos e das circunstâncias sociais Estas contribuem para o aumento do número dos dese quilibrados psíquicos e dentre estes do número dos que se matam O risco da interpretação ou da terminologia de Durkheim reside na substi tuição da interpretação positiva que combina sem dificuldade fatores indivi duais e coletivos por uma concretização mítica dos fatores sociais transfigu rados em força supraindividual novo Moloch a escolher suas vítimas entre os indivíduos As formas elementares da vida religiosa 1912 O terceiro grande livro de Durkheim As formas elementares da vida reli giosa é certamente o mais importante e profundo o mais original e também a meu ver aquele que revela mais claramente a inspiração do autor Seu objetivo é elaborar uma teoria geral da religião com base na análise das instituições religiosas mais simples e mais primitivas Esta fórmula já reve la uma das idéias fundamentais de Durkheim é legítimo e possível fundamentar uma teoria das religiões superiores no estudo das formas religiosas primitivas O totemismo revela a essência da religião Todas as conclusões extraídas por Durkheim do estudo do totemismo pressupõem que se possa apreender a essên cia de um fenômeno social observando suas formas mais elementares A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 311 Há uma outra razão pela qual o estudo do totemismo tem significação de cisiva no sistema de Durkheim Segundo este a ciência detém hoje nas nossas sociedades individualistas e racionalistas a autoridade intelectual e moral su prema É possível ir adiante da ciência e não permanecer atrás e recusar os seus ensinamentos Mas a sociedade que determina e favorece o desenvolvimento do individualismo e do racionalismo tem necessidade como toda sociedade de crenças comuns Ora ao que parece estas crenças não podem ser proporcionadas pela religião tradicional que não responde às exigências do espírito científico Há uma saída que parece simples a Durkheim e que não sei se ouso em pregar aqui esta palavra é milagrosa a própria ciência não revela que a reli gião não passa no fundo da transfiguração da sociedade Se através da história sob as formas de totem ou de Deus os homens nunca adoraram senão a reali dade coletiva transfigurada pela fé é possível sair deste impasse A ciência da religião revela a possibilidade de reconstituir as crenças necessárias ao consen so não porque seja suficiente para fazer surgir a fé coletiva mas porque deixa a esperança de que a sociedade do futuro ainda seja capaz de fabricar deuses uma vez que todos os deuses do passado não foram senão a transfiguração da pró pria sociedade Neste sentido As formas elementares da vida religiosa representa a solu ção dada por Durkheim à antítese entre ciência e religião Descobrindo a realida de profunda de todas as religiões a ciência não recria uma religião mas dá con fiança na capacidade que têm as sociedades de produzir em cada época os deu ses de que necessitam Os interesses religiosos não passam da forma simbóli ca de interesses sociais e morais Diria que As formas elementares da vida religiosa representa na obra de Durkheim o equivalente de Système de politique positive na obra de Auguste Comte Durkheim não descreve uma religião da sociedade como Comte des creveu pormenorizadamente uma religião da humanidade Chega mesmo a dizer de modo explícito que Comte se enganava ao afirmarque um indivíduo tinha condições de foijar uma religião sob encomenda Com efeito se a religião é uma criação coletiva seria contrário à teoria um sociólogo criar sozinho uma reli gião Contudo na medida em que Durkheim queria demonstrar que o objeto da religião era a transfiguração da sociedade sua indagação é comparável à de Au guste Comte quando este para fundar a religião do futuro afirmava que depois de matar os deuses transcendentes a humanidade amaria a si mesma ou seja àquilo que tinha de melhor As formas elementares da vida religiosa é um livro que pode ser estudado sob três pontos de vista porque reúne três modalidades de estudos comporta uma descrição e uma análise detalhada do sistema de clãs e do totemismo de certas tribos australianas com alusões a tribos da América contém uma teo ria da e s s ê n e dft fsligião baseada no estudo do totemismo australiano Dor 312 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO fim esboça uma interpretação sociológica das formas do pensamento humano isto é uma introdução à sociologia do conhecimento Destes três temas é o primeiro o estudo descritivo do sistema dos clãs e do totemismo que ocupa mais lugar Mas não vou me deter nele pois seria impos sível fazer um resumo da descrição Na verdade é o segundo tema a teoria geral das religiões baseada no estu do do totemismo que me interessa aqui O método de Durkheim é neste livro o mesmo das obras anteriores Começa definindo o fenômeno depois refuta as teorias diferentes das suas finalmente numa terceira etapa demonstra a natu reza essencialmente social das religiões Para Durkheim a essência da religião é a divisão do mundo em fenôme nos sagrados e profanos Não é a crença numa divindade transcendente há reli giões mesmo superiores sem Deus A maioria das escolas budistas por exem plo não professam a fé num deus pessoal e transcendente A religião também não pode ser definida pelas noções de mistério ou de sobrenatural que só podem ser tardias Só se concebe o sobrenatural por oposição ao natural e para ter uma idéia clara do natural é preciso pensar de maneira positiva e científica A noção de sobrenatural não pode preceder a idéia também tardia de uma ordem natural A categoria do religioso é constituída pela distinção bipartida do mundo entre o profano e o sagrado O sagrado se compõe de um conjunto de coisas de crenças e de ritos quando as coisas sagradas mantêm umas com as outras rela ções de coordenação e subordinação de modo a formar um sistema com certa unidade que não cabe em nenhum outro sistema do mesmo gênero o conjunto das crenças e dos ritos correspondentes constitui uma religião A religião pressupõe portanto o sagrado em seguida a organização das crenças relativas ao sagrado e por fim ritos ou práticas derivados das crenças de modo mais ou menos lógico Uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coi sas sagradas isto é separadas proibidas crenças e práticas que unem numa mes ma comunidade moral chamada igreja todos os que a elas aderem Les formes élémentaires de la vie religieuse p 65 A noção de igreja é acrescentada ao conceito de sagrado e ao sistema de crenças para diferenciar a religião da magia que não implica necessariamente o consenso dos fiéis reunidos em igreja Depois de definir a religião Durkheim numa segunda etapa da sua inves tigação afasta as interpretações anteriores à sua Estas interpretações são na primeira parte do livro o animismo e o naturismo que representam as principais concepções existentes da religião elementar Segundo o animismo a crença rej A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 313 ligiosa é a fé em espírito transfiguração da experiência que os homens têm da sua dupla natureza de corpo e alma Para o naturismo os homens adorariam as forças naturais transfiguradas A exposição e a refutação destas duas doutrinas são bastante longas mas há uma idéia subjacente a esta dupla crítica Quer se adote a interpretação animista ou a naturista terminase segundo Durkheim por dissolver o objeto considerado Se a religião consistisse em amar espíritos irreais ou forças naturais transfiguradas pelos homens ela corresponderia a uma alucinação coletiva Ora que se pode dizer de uma ciência cujo resultado mais imediato seria a dissolução da realidade do seu objeto Por outro lado Durkheim acredita poder explicar a realidade do fenômeno religioso Se o homem adora a sociedade transfigurada adora de fato uma rea lidade autêntica Que há de mais real do que a força da coletividade A religião é uma experiência por demais permanente e profunda para não corresponder a uma realidade autêntica Se esta realidade autêntica não é Deus é preciso que seja o que está situado por assim dizer imediatamente abaixo de Deus a saber a sociedade O objetivo da teoria da religião de Durkheim é fundamentar a realidade do objeto da fé sem admitir o conteúdo intelectual das religiões tradicionais con denadas pelo desenvolvimento do racionalismo científico este permite salvar o que parece destruir demonstrando que os homens nunca adoraram senão sua própria sociedade Para estudar as teorias animista e naturista Durkheim se refere às concep ções de Taylor e de Spencer que estavam em moda na época Essas concepções tinham como ponto de partida o fenômeno do sonho No sonho os homens se vêem onde sabem que não estão imaginam assim um duplo de si mesmos e do seu corpo sendolhes fácil conceber que no momento da morte este duplo se separa transformandose num espírito flutuante gênio bom ou mau Por outro lado os primitivos não distinguem bem as coisas animadas das inanimadas Por isso situam as almas dos mortos ou os espíritos flutuantes em determinadas rea lidades Nasce assim o culto dos gênios familiares e dos antepassados A partir desta dualidade corpoalma inspirada no sonho as religiões primitivas desen volvem a concepção de um grupo numeroso de espíritos benfazejos ou temí veis que se agitam em torno dos homens A refutação minuciosa de Durkheim analisa passo a passo os elementos des sa interpretação Por que dar tanta importância ao sonho Supondo que se con ceba um duplo de cada um de nós por que sacralizálo Por que atribuirlhe um valor fora do comum Segundo Durkheim o culto dos antepassados não é um culto primitivo e não é verdade que os cultos dos primitivos se dirigem espe cialmente aos mortos O culto dos mortos não é um fenômeno original De modo geral depois de afirmar que a essência da religião é o sagrado Durkheim não encontra muita dificuldade para marcar as deficiências da inter 314 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO pretação animista Com efeito esta pode a rigor explicar a criação de um mundo dos espíritos mas o mundo dos espíritos não é o mundo do sagrado O essen cial isto é o sagrado continua sem explicação Nem as forças naturais nem os espíritos ou as almas que flutuam à volta dos homens são sagrados por si mes mos Só a sociedade é uma realidade sagrada por si mesma Ela pertence à or dem da natureza mas a ultrapassa É ao mesmo tempo causa do fenômeno reli gioso e justificativa da distinção espontânea entre profano e sagrado Durkheim opõe assim a verdadeira ciência da religião que explica seu obje to às pseudociências que pretendem destruílo É inadmissível que sistemas de idéias como a religião que têm tido um pa pel tão importante na história em que em todos os tempos os povos vieram colher a energia de que precisavam para viver não passem de tecidos de ilusões Hoje concordase que o direito a moral e o próprio pensamento científico nasceram da religião estiveram longamente confundidos com ela continuam penetrados do seu espírito De que modo uma fantasmagoria vã poderia ter modelado tão fortemen te de modo tão durável as consciências humanas Certamente deve ser considera do como um princípio pelas ciências das religiões que a religião não exprime nada que não exista na natureza pois todas as ciências se preocupam com os fenôme nos naturais A questão é saber a que reino natural pertencem essas realidades e o que fez com que os homens as representassem sob esta forma singular própria ao pensa mento religioso Contudo para que se possa enunciar tal pergunta é preciso co meçar pela admissão de que o que assim se representa é uma realidade Quando os filósofos do século XVIII consideravam a religião como um enor me erro imaginado pelos padres podiam pelo menos explicar sua persistência pelo interesse da casta sacerdotal em enganar o povo Mas se os próprios povos fo ram os artesãos desses sistemas de idéias erradas ao mesmo tempo que eles mes mos é que eram enganados como explicar que esse engodo extraordinário se te nha perpetuado em toda a seqüência da história Que dizer de uma ciência cuja descoberta principal levaria ao desaparecimen to do seu objeto Les formes élémentaires de la vie religieuse p 98 Uma bela frase Acredito porém que um nãosociólogo ou um sociólogo que não pertencesse à escola de Durkheim seria tentado a responder Será que uma ciência da religião segundo a qual os homens adoram a sociedade salva guarda seu objeto Como bom cientista Durkheim considera que a ciência das religiões postula em princípio a irrealidade do transcendente e do sobrenatu ral Contudo podese voltar a encontrar a realidade da religião depois de eli minar o que tem de transcendental Para Durkheim e esta idéia tem uma grande importância no seu pensa mento o totemismo é a religião mais simples Uma tal afirmativa implica uma A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 315 representação evolucionista da história da religião Para um pensador não evo lucionista o totemismo seria uma simples religião dentre muitas Se Durkheim afirma que o totemismo é a religião mais simples e elementar admite implici tamente que há um processo de desenvolvimento da religião a partir de uma origem única Além disso para apreender a essência da religião no caso particular do totemismo é preciso subscrever a idéia de que uma experiência bem escolhida revela a essência de um fenômeno comum a todas as sociedades A teoria da re ligião de Durkheim não foi elaborada a partir do estudo de um grande número de fenômenos religiosos A essência do fato religioso é apreendida em um caso particular supostamente revelador do que é essencial em todos os fenômenos do mesmo gênero Durkheim analisa essa religião simples que é o totemismo utilizando as noções de clã e de totem O clã é um grupo de parentesco não constituído por laços de sangue É um grupo talvez o mais simples de todos que exprime sua identidade tomando como referência uma planta ou animal A transmissão do totem do clã se faz nas tribos australianas quase sempre pelo lado materno em bora este processo não tenha a regularidade de uma lei absoluta Ao lado dos to tens de clã existem totens individuais e totens de grupos mais desenvolvidos como as fratrias e as classes matrimoniais6 Nas tribos australianas estudadas por Durkheim cada totem tem seu emble ma e seu brasão Em quase todos os clãs encontramos objetos pedaços de ma deira ou de pedra polida que representam figuradamente o totem e participam do seu caráter sagrado Não é difícil compreender o fenômeno Nas sociedades modernas a bandeira pode ser considerada como o equivalente do churinga australiano Para uma coletividade ela participa do caráter sagrado atribuído à pá tria sua profanação tem relação com certos fenômenos analisados por Durkheim Os objetos totêmicos que trazem o emblema do totem provocam compor tamentos típicos da ordem religiosa isto é práticas de abstenção ou ao contrá rio práticas positivas Os membros do clã precisam absterse de comer ou de tocar o totem bem como os objetos que participam do seu caráter sagrado ou então ao contrário precisam manifestar uma forma explícita de respeito Constituise assim nas sociedades australianas um universo de coisas sa gradas que abrange em primeiro lugar as plantas ou animais que são os próprios totens em seguida os objetos que os representam Eventualmente o sagrado se comunica aos próprios indivíduos Em última análise o conjunto da realidade está dividido em duas categorias fundamentais as coisas profanas a respeito das quais as pessoas se comportam de modo econômico a atividade econômica é o protótipo da atividade profana de outra parte o universo das coisas sagra das plantas animais e suas representações indivíduos que através do clã par ticipam das coisas sagradas universo que se organiza de modo mais ou menos sistemático íí 316 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Para explicar o totemismo Durkheim como de hábito começa por elimi nar as interpretações que o derivam de uma religião mais primitiva Afasta a interpretação segundo a qual o totemismo se teria desenvolvido a partir do culto dos antepassados ou aquela que vê no culto dos animais o fenômeno primiti vo Rejeita a idéia de que o totemismo individual seria anterior ao totemismo clânico e a que vê no totemismo local atribuição a um local determinado do totem o fenômeno primeiro Para ele o fenômeno original histórica e logica mente é o totemismo do clã Esta tese é essencial pois demonstra a prioridade ou anterioridade do culto que os indivíduos dirigem à própria sociedade A ori gem primordial do totemismo é o reconhecimento do sagrado E o sagrado é uma força derivada da coletividade e superior a todos os indivíduos Alguns textos nos farão compreender a teoria melhor do que quaisquer co mentários O totemismo não é a religião de determinados animais de determinados homens ou de certas imagens mas uma espécie de força anônima e impessoal que encontramos em cada um destes seres sem que se confunda com nenhum deles Ninguém a possui inteiramente e todos dela participam É de tal forma indepen dente dos sujeitos particulares em que se manifesta que os precede e sobrevive a eles Os indivíduos morrem as gerações passam e são substituídas por outras Mas esta força permanece atual viva e semelhante a si mesma Anima a geração pre sente como animou a de ontem e como dará vida à de amanhã Se tomamos o ter mo num sentido mais amplo podemos dizer que é o deus adorado por cada culto totêmico mas é um deus impessoal sem nome sem história imanente ao mundo difuso numa pluralidade inumerável de coisas Les formes élémentaires de la vie religieuse p 269 Este belo texto que poderia ser aplicado a qualquer forma de religião explicita de maneira marcante o tema durkheimiano todas as crenças ou práti cas totêmicas são semelhantes em sua essência a qualquer crença ou prática religiosa Os australianos reconhecem como exterior ao mundo das coisas profana uma força anônima impessoal que se encarna indiferentemente em uma planta em um animal ou na representação de uma planta ou de um animal É esta força impessoal e anônima imanente e transcendente ao mesmo tempo que atrai a crença e o culto Seria muito fácil retomar essas expressões e aplicálas a uma religião superior Mas aqui se trata do totemismo cuja interpretação é obtida ao se partir da prioridade do totemismo do clã para que haja o sagrado é preciso que os homens façam a diferença entre o que é profano e cotidiano de uma parte o que é diferente por natureza e portanto sagrado de outra Esta distinção aflo ra à consciência dos primitivos porque eles têm enquanto participantes de uma coletividade o sentimento difuso de que alguma coisa é superior à sua própriii Á GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 317 individualidade e de que esta coisa é a força da sociedade anterior a cada um dos indivíduos que sobrevive a eles e à qual sem saber eles rendem um culto Encontramos entre os povos melanesianos sob o nome de mana uma noção que é o equivalente exato do wakan dos Sioux e do orenda iroquês Eis a defini ção dada por Codrington Os melanesianos crêem na existência de uma força ab solutamente distinta de toda força material que age de múltiplas maneiras seja para o bem seja para o mal e que o homem tem o maior interesse em ter ao alcan ce da mão e dominar É o mana Creio compreender o sentido que esta palavra tem para os indígenas É uma força uma influência de ordem imaterial e num certo sentido sobrenatural mas é pela força física que ela se manifesta ou também por toda espécie de poder e superioridade que possuímos O mana não se fixa sobre um objeto determinado ele pode ser levado sobre qualquer tipo de coisa Toda a reli gião do melanesiano consiste em adquirir o mana seja em proveito próprio seja em proveito de outrem Não se trata pois da própria noção de força anônima e difusa que identificávamos havia pouco como o germe do totemismo australiano Les for mes èlèmentaires de la vie religieuse p 277 Nesse texto o conceito central de interpretação da religião é o de uma for ça anônima e difusa O exemplo é tirado desta vez das sociedades melanesianas Mas o próprio encontro dessas análises aplicadas a diferentes sociedades con firma para Durkheim a teoria segundo a qual a origem da religião reside na dis tinção entre profano e sagrado e segundo a qual a força anônima difusa supe rior aos indivíduos e próxima deles é na verdade o objeto do culto Mas por que a sociedade se torna o objeto da crença e do culto Durkheim responde que a sociedade tem em si mesma algo de sagrado De modo geral não há dúvida de que a sociedade tem tudo o que é preciso para despertar nos espíritos a sensação do divino exclusivamente pela ação que exerce sobre eles ela é para seus membros o que é uma divindade para os fiéis De fato uma divindade é antes de mais nada um ser representado pelo homem sob certos aspectos como superior a si mesmo e do qual ele crê depender Tratese de uma personalidade consciente como Zeus ou Jeová ou de forças abstratas como as que estão em jogo no totemismo o fiel se crê sempre obrigado a certas manei ras de agir que lhe são impostas pela natureza do princípio sagrado com o qual se sente em comunhão Ora a sociedade provoca também em nós a sensação de uma perpétua dependência Como tem uma natureza que lhe é própria diferente da nos sa natureza de indivíduos persegue fins que também lhe são particulares porém como só os pode atingir por meio de nós exige imperiosamente nossa participa ção Exige que esquecendo nossos próprios interesses sejamos seus servidores impondonos todos os tipos de privações trabalhos e sacrifícios sem os quais a vi da social se tomaria impossível É assim que somos obrigados a cada momento a nos submeter a regras de conduta e de pensamento que nem fizemos nem quise 318 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mos e a normas de pensamento que nem formulamos nem pretendemos e que às vezes são mesmo contrárias a nossos instintos e inclinações mais fundamentais Todavia se a sociedade não obtivesse de nós esses sacrifícios e concessões por uma imposição material ela só poderia despertar em nós a idéia de uma força física a que nos faz ceder por necessidade não a de uma potência moral como as que as religiões adoram Na realidade porém o império que ela exerce sobre as consciências está muito menos associado à supremacia física que é seu privilégio do que à autoridade moral de que está investida Aceitamos suas ordens não ape nas porque ela está armada de modo a poder triunfar sobre nossas resistências mas antes de mais nada porque ela é objeto de um respeito verdadeiro Les formes élémentaires de la vie religieuse p 295 fA sociedade desperta em nós o sentimento do divinoÉ ao mesmo tempo um preceito que se impõe e uma realidade qualitativamente superior aos indi víduos que provoca neles o respeito o devotamento e a adoração A sociedade favorece também o surgimento de crenças porque os indiví duos vivem em comunhão uns com os outros e na efervescência da festa ad quirem a capacidade de criar o divino Há dois textos curiosos que a este propósito são característicos No primeiro Durkheim descreve as cenas de exaltação que vivem os australianos de sociedades primitivas no outro alude à Revolução Francesa possível criadora de religião Eis o texto sobre os australianos Já ao cair da noite aconteciam sob a luz das tochas todos os tipos de pro cissões de danças de cânticos crescia também a efervescência geral Num dado momento doze assistentes pegaram cada um uma espécie de grande tocha flame jante e um deles segurando a sua como se fosse uma baioneta investiu contra um grupo de indígenas Os golpes eram aparados com bastões e lanças Formouse uma confusão generalizada Os homens saltavam davam gritos selvagens as tochas brilhavam crepitavam ao atingir as cabeças e os corpos lançando centelhas em to das as direções A fumaça as tochas em chamas a chuva de faíscas essa massa de homens que dançavam e gritavam tudo isso dizem Spencer e Gillen os obser vadores das sociedades australianas estudadas por Durkheim formava uma cena cuja selvageria é impossível descrever com palavras Podese conceber facilmente que chegando a esse estado de exaltação o ho mem não se reconheça mais Sentindose dominado arrastado por uma espécie de poder exterior que o faz pensar e agir de maneira diferente do tempo normal ele na turalmente tem a impressão de não ser mais o mesmo Sentese transformado num novo ser seus adornos os tipos de máscaras com que cobre o rosto representa materialmente essa transformação interior ainda mais porque não contribuem para determinála E como no mesmo instante todos os seus companheiros se sentetO transfigurados do mesmo modo traduzindo seus sentimentos por gritos gestos 4 atitudes tudo se passa como se ele tivesse se transportado realmente para um mun A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 319 do especial muito diferente do cotidiano para um ambiente povoado de forças de excepcional intensidade que o invadem e transformam Experiências como estas sobretudo quando repetidas diariamente durante semanas não poderiam deixar de darlhes a convicção de que há realmente dois mundos heterogêneos e incompará veis Um é aquele onde ele arrasta languidamente sua vida cotidiana no outro ao contrário ele não pode penetrar sem se pôr imediatamente em relação com os poderes extraordinários que o galvanizam até o frenesi O primeiro é o mundo pro fano o segundo o das coisas sagradas Les formes élémentaires de la vie religieu se pp 311313 Esse texto me parece a expressão mais categórica da divisão de Durkheim Imaginemos uma multidão participando de uma cerimônia que é ao mesmo tempo festa e culto indivíduos que se aproximam uns dos outros por práticas comuns por comportamentos semelhantes que dançam e gritam A cerimônia atividade coletiva arrasta os indivíduos para fora de si mesmos faz com que participem da força do grupo dálhes o sentimento de algo que não tem medi da comum com a vida cotidiana que se arrasta languidamente Essa coisa ex traordinária ao mesmo tempo imanente e transcendente é precisamente a força coletiva algo de sagrado Esses fenômenos de efervescência são um bom exem plo do processo psicossocial graças ao qual nascem as religiões Durkheim alude também ao culto revolucionário Na época da Revolução Francesa as pessoas eram dominadas por uma forma de entusiasmo religioso As palavras nação liberdade revolução estavam carregadas de valor sagrado com parável ao do churinga dos australianos Esta aptidão da sociedade para se transformar em divindade ou para criar deuses nunca foi mais visível do que nos primeiros anos da Revolução Com efei to naquela época sob a influência do entusiasmo geral coisas puramente laicas por natureza foram transformadas pela opinião pública em coisas sagradas a Pátria a Liberdade a Razão Uma religião tendia a se estabelecer por si mesma com seu dogma seus símbolos seus altares e suas festas O culto da Razão e do Ser Su premo procurou dar satisfação oficial a estas aspirações espontâneas É bem ver dade que esta renovação religiosa teve duração efêmera O entusiasmo patriótico que a princípio transportava as massas se enfraquecia por si mesmo Desaparecendo a causa o efeito não se podia manter Contudo embora a experiência tenha sido breve guarda todo seu interesse sociológico A verdade é que num caso determi nado viuse a sociedade e suas idéias essenciais se transformarem diretamente e sem transfiguração alguma no objeto de um verdadeiro culto Pp 305306 Outras reviravoltas ocorrerão chegará o momento em que as sociedades modernas serão outra vez possuídas pelo delírio sagrado e deste nascerão no vas religiões A lembrança das cerimônias hitleristas em Nuremberg incitanos a acrescentar iirffeluuiifiute 320 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Bergson termina Les deux sources de la morale et de la religion com a frase O universo é uma máquina de fabricar deuses Durkheim teria dito as sociedades são máquinas de fabricar deuses Mas para que este esforço de cria ção tenha êxito é preciso que os indivíduos escapem da vida cotidiana saiam de si mesmos sejam possuídos pelo fervor de que a exaltação da vida coletiva é causa e expressão7 A interpretação sociológica da religião assume assim em Durkheim duas formas A primeira acentua a idéia de que no totemismo os homens adoram sem que o saibam a sociedade ou ainda de que o sagrado está vinculado em primeiro lugar à força coletiva e impessoal que é uma representação da própria sociedade De acordo com a outra interpretação as sociedades são levadas a criar deuses ou religiões quando entram num estado de exaltação que resulta da in tensificação extrema da própria vida coletiva Nas tribos australianas esta exal tação ocorre durante cerimônias que podemos ainda hoje observar Durkheim sugere nas sociedades modernas sem enunciar uma teoria rigorosa que isto acontece por ocasião das crises políticas e sociais A partir destas idéias fundamentais Durkheim desenvolve uma interpreta ção das noções de alma de espírito de deus esforçandose por seguir a elabo ração intelectual das representações religiosas A religião implica um conjunto de crenças as quais se manifestam por palavras isto é assumem a forma de um pensamento cuja sistematização é levada a atingir maior ou menor grau Durkheim procura investigar até onde vai a sistematização totêmica Quer demonstrar ao mesmo tempo os limites da sistematização intelectual do totemismo e a possi bilidade da passagem do universo totêmico para o das religiões mais comple xas e tardias Além disso Durkheim põe em evidência a importância de dois tipos de fenômenos sociais os símbolos e os ritos Muitas das condutas sociais se dirigem não para as coisas em si mesmas mas para seus símbolos No totemismo as proi bições não se aplicam só aos animais e plantas totêmicas mas também aos obje tos que os representam Do mesmo modo na atualidade nosso comportamento social se orienta cotidianamente não só para as coisas mas para os símbolos des sas coisas Quero aludir à bandeira símbolo da pátria A chama sob o Arco do Triunfo é outro símbolo As manifestações públicas pró ou contra determinada política são também atos dirigidos a símbolos tanto quanto a coisas Durkheim fez uma teoria elaborada dos ritos dos quais examina os dife rentes tipos e funções gerais Distingue três tipos de ritos os negativos os posi tivos e os ritos de expiação Os negativos são essencialmente as proibições interdição de comer de tocar com as mãos que se desenvolvem no sentido de todas as práticas religiosas de ascetismo os positivos são atos de co m unhão que visam por exemplo a promover a fecundidade As práticas de refeiçõeí rituais figuram entre os ritos positivos Durkheim estada também os ritos A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO imitação miméticos ou representativos que tendem a imitar as coisas que se desejam provocar Todos esses ritos têm uma função social importante seu ob jetivo é manter a comunidade acentuar o sentido de participação num grupo revigorar a crença e a fé Uma religião só vive através das práticas símbolos de suas crenças e formas de renoválas Finalmente Durkheim extrai do estudo do totemismo uma teoria sociológica do conhecimento De fato não se limita a procurar compreender as crenças e prá ticas das tribos australianas tenta compreender também as maneiras de pensar que estão associadas às crenças religiosas A religião não é apenas o núcleo primitivo do qual saíram por diferenciação regras morais e regras religiosas no sentido escrito é também a origem primitiva do pensamento científico Essa teoria sociológica do conhecimento contém a meu ver três proposições 1 As formas primitivas de classificação estão ligadas às imagens religio sas do universo retiradas das representações que as sociedades fazem de si mesmas e da dualidade do mundo profano e religioso ou sagrado Durkheim dá alguns exemplos É muito provável que jamais tivéssemos pensado em reunir os seres do uni verso em grupos homogêneos os gêneros se não tivéssemos sob os olhos o exem plo das sociedades humanas se não tivéssemos começado por fazer das próprias coisas membros da sociedade dos homens de tal modo que grupos humanos e grupos lógicos foram inicialmente confundidos De outro lado uma classificação é um sistema em que as partes estão dispostas de acordo com a ordem hierárqui ca Há elementos dominantes e outros que estão subordinados aos primeiros As espécies e suas propriedades distintivas dependem dos gêneros e dos atributos que os definem Ou então as diferentes espécies de um mesmo gênero são concebidas como estando situadas todas no mesmo nível Les formes élémentaires de la vie religieuse p 210 De um modo geral o tema de Durkheim é o seguinte classificamos os se res do universo em grupos chamados gêneros porque temos o exemplo das sociedades humanas Estas são tipos de agrupamentos lógicos percebidos ime diatamente pelos indivíduos Ampliamos às coisas da natureza a prática do agru pamento porque concebemos o mundo como uma imagem da sociedade As classificações os elementos dominantes os elementos subordinados são elaborados como imitação da hierarquia que existe na sociedade Necessária para a classificação lógica dos gêneros e das espécies a idéia da hierarquia só pode de fato ser extraída da própria sociedade Nem o espetáculo da natureza física nem o mecanismo das associações mentais poderiam nos dar essa idéia A hierarquia e exclusivamente uma coisa social Só na sociedade existem supe riores inferiores eigugts Em conseqüência ainda que os fatos não o demons 322 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO trassem cabalmente bastaria a análise dessas noções para revelar sua origem Foi à sociedade que as tomamos emprestadas para projetálas depois na nossa concepção do mundo A sociedade forneceu a tela sobre a qual trabalhou o pen samento lógico Ibid p 211 2 Durkheim afirma que uma idéia como a da causalidade provém da so ciedade e só dela pode provir A experiência da vida coletiva faz nascer a idéia de força É a sociedade que dá aos homens a concepção de uma força superior à dos indivíduos 3 Por fim Durkheim se esforça por demonstrar que a teoria sociológica do conhecimento tal como ele a esboça fornece o meio para superar a oposi ção entre o empirismo e o apriorismo esta célebre antítese da filosofia ensi nada pelos professores lição que ele aprendeu no curso de filosofia do colégio muito parecido talvez com o que ainda é ministrado hoje em dia O empirismo é a doutrina segundo a qual as categorias e de modo geral os conceitos resultam diretamente da experiência sensível para o apriorismo entretanto os conceitos ou categorias são dados do espírito humano Ora Durkheim afirma que o empirismo é falso porque não pode explicar como os conceitos ou categorias saem dos dados sensíveis e o apriorismo é falso por que não explica nada uma vez que ele coloca no espírito humano como um dado irredutível e primeiro aquilo que seria preciso explicar A síntese vai re sultar da intervenção da sociedade O apriorismo viu bem que as sensações não podem levar a conceitos ou ca tegorias e que há no espírito do homem mais do que dados sensíveis Mas neiB o apriorismo nem o empirismo perceberam que esta coisa que é mais que os dados sensíveis deve ter uma origem e comportar uma explicação Ora é a vida coletiva que permite justificar a existência dos conceitos e das categorias Oà conceitos são representações impessoais porque são representações coletivas O pensamento coletivo é diferente por natureza do pensamento individual os conceitos são representações que se impõem aos indivíduos porque são re presentações coletivas Além disso enquanto representações coletivas os coni ceitos apresentam um caráter imediato de generalidade De fato as sociedade não se interessam por detalhes e singularidades A sociedade é um mecanismo pelo qual as idéias têm acesso à generalidade e encontram ao mesmo tempo a autoridade característica dos conceitos ou categorias Os conceitos exprimem a maneira pela qual as sociedades se representam as coisas Les formes éle mentaires de la vie religieuse p 626 A ciência tem autoridade sobre nós porque a sociedade em que vivemos assim o quer É preciso que os conceitos mesmo quando construídos de acor do com todas as regras científicas baseiem sua autoridade unicamente no seu valor objetivo Não basta que sejam verdadeiros para que sejam aceitos Se nã4 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 323 se harmonizam com as outras crenças as outras opiniões em uma palavra com o conjunto das representações coletivas serão negados é como se não existis sem Se hoje basta de modo geral que tenham o selo de aprovação da ciência para merecer um crédito privilegiado é porque temos fé na ciência Mas essa fé não difere essencialmente da fé religiosa O valor que atribuímos à ciência depende em suma da idéia que temos coletivamente da sua natureza e do pa pel que deve exercer na vida isto é ela exprime um estado de opinião Com efeito tudo na vida social inclusive a ciência repousa sobre a opinião Indubi tavelmente podese tomar a opinião como objeto de estudo fazendo dela uma ciência nisto consiste principalmente a sociologia Mas a ciência da opinião não faz a opinião Ela só pode esclarecêla tornála mais consciente de si Des te modo é verdade ela pode levála a uma mudança mas a ciência continua a depender da opinião no momento em que parece transformála em lei pois é da opinião que extrai a força necessária para agir sobre a opinião Pp 625626 Assim todas as demonstrações seriam ineficazes se numa certa sociedade desaparecesse a fé na ciência Esta tese é ao mesmo tempo evidente e absurda De um lado é evidente que as demonstrações já não seriam convincentes no dia em que as pessoas deixassem de acreditar no seu valor contudo as proposições continuariam a ser verdadeiras mesmo que os homens decidissem afirmar que o branco é preto ou que o preto é branco Tratandose do fato psicológico da cren ça Durkheim evidentemente tem razão mas se se trata do fato lógico ou cien tífico da verdade creio que ele está de modo igualmente evidente equivocado No curso deste estudo fiz muitas citações porque desconfiava de mim mes mo Tenho de fato uma certa dificuldade em penetrar a maneira de pensar de Durkheim provavelmente devido à falta de simpatia necessária à compreensão Durkheim nos diz que a sociedade é ao mesmo tempo real e ideal e que é essencialmente criadora do ideal Ora se considero a sociedade como uma coleção de indivíduos por exemplo o clã australiano porque a sociedade enquanto realidade que pode ser percebida pelos sentidos se compõe de indi víduos e dos objetos que estes utilizam constato indubitavelmente que esta sociedade uma realidade natural pode de fato favorecer o surgimento de cren ças É difícil imaginar as práticas religiosas de indivíduos solitários Mais ainda todos os fenômenos humanos têm uma dimensão social e a religião qualquer que seja não pode ser concebida fora desses grupos nos quais nas ceu ou das comunidades que chamamos igrejas Mas se dissermos que a sociedade em si mesma não é só real mas ideal e que na medida em que os indivíduos a adoram eles adoram uma realidade transcendente então passo a ter dificuldade em acompanhar o raciocínio pois se a religião consiste em amar uma sociedade concreta sensível enquanto tal este amor me parece idólatra nesta hipótese a religião é uma representação alucinatória exatamente do mes mo grau que interpretação animista ou a naturista 324 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Se a sociedade à qual se dirige o culto religioso é a sociedade concreta perceptível sensorialmente composta de indivíduos e tão imperfeita quanto estes os que a adoram são vítimas de alucinação exatamente como se adoras sem plantas animais espíritos ou almas Se a sociedade é considerada como realidade natural Durkheim não consegue explicar o objeto da religião Mas se a sociedade considerada por Durkheim não é a sociedade real mas uma socie dade diferente da que podemos observar neste caso saímos do totemismo para ingressar numa espécie de religião da humanidade no sentido de Auguste Comte A sociedade a que se dirige a adoração religiosa não é uma realidade concreta mas uma realidade ideal que representa o que há de ideal imperfeitamente rea lizado na sociedade real Neste caso não é a sociedade que explica a noção do sagrado é a noção de sagrado dada ao espírito humano que transfigura a so ciedade como pode transfigurar qualquer outra realidade Durkheim afirma que a sociedade cria a religião quando está em eferves cência Tratase simplesmente de uma circunstância concreta Os indivíduos se encontram num estado psíquico tal que sentem o efeito de forças impessoais ima nentes e transcendentais esta interpretação da religião se baseia numa explica ção causai segundo a qual a efervescência social é favorável ao surgimento da religião Nada sobra da idéia de que a interpretação sociológica da religião per mite salvar seu objeto demonstrando que o homem adora o que efetivamente merece ser adorado E cometemos um erro ao falar da sociedade no singular pois segundo o próprio Durkheim o que existe são sociedades Ora se o cultó se dirige às sociedades só pode haver religiões tribais ou nacionais Neste caso a essência da religião consistiria em inspirar aos homens uma vinculação faná tica a grupos parciais consagrando a ligação de cada um deles com a coletivi dade e ao mesmo tempo sua hostilidade com relação aos outros Pareceme inconcebível definir a essência da religião como a adoração do grupo pelo indivíduo pois pelo menos para mim a adoração da ordem social é precisamente a essência da impiedade Afirmar que os sentimentos religioso têm por objeto a sociedade transfigurada não é explicar uma experiência huma na que a sociologia deseja compreender é degradála As regras do método sociológico No curso da análise dos temas e das idéias fundamentais dos três grandes livros de Durkheim não podemos deixar de notar a semelhança dos métodos utilizados e dos resultados obtidos Em Da divisão do trabalho social como em Le suicide ouj4s formas elementares da vida religiosa o desenvolvimento do pen samento de Durkheim é o mesmo no ponto de partida uma definição do fenôí meno depois numa segunda fase a refutação das interpretações anteriores Po A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 325 fim no ponto de chegada uma explicação propriamente sociológica do fenô meno considerado A semelhança vai ainda mais longe Nos três livros as interpretações ante riores refutadas por Durkheim têm a mesma característica são interpretações individualistas e racionalizantes tais como as que encontramos na ciência eco nômica Em Da divisão do trabalho social Durkheim afasta a interpretação do progresso no sentido da diferenciação pelos mecanismos da psicologia indivi dual demonstra que não se pode explicar a diferenciação social pelo esforço em aumentar a produtividade pela busca do prazer ou da felicidade pelo dese jo de superar o enfado Em Le suicide a explicação que afasta é a visão do sui cídio causado por fatores individuais psicológicos pela loucura ou o alcoolis mo Em As formas elementares da vida religiosa as interpretações rejeitadas são as do animismo e do naturismo que são também essencialmente individua listas e psicológicas Nos três casos a explicação a que chega é essencialmente sociológica em bora o adjetivo tenha em cada livro um sentido algo diferente Em Da divisão do trabalho social a explicação é sociológica porque propõe a prioridade da so ciedade sobre os fenômenos individuais Em particular o acento é posto sobre o volume e a densidade da população como causas da diferenciação social e da solidariedade orgânica Em Le suicide o fenômeno social pelo qual explica o sui cídio é o que chama de corrente suicidógena ou uma tendência social ao suicí dio que se manifesta em determinados indivíduos devido a circunstâncias de ordem individual Finalmente no campo da religião a explicação sociológica tem dupla característica de um lado é a exaltação coletiva provocada pela reu nião de indivíduos num mesmo lugar que faz surgir o fenômeno religioso e ins pira o sentido do sagrado de outro lado é a própria sociedade que os indiví duos adoram sem o saber Tal como concebida por Durkheim a sociologia é o estudo dos fatos essen cialmente sociais e a explicação desses fatos de maneira sociológica As regras do método sociológico representa a formulação abstrata da prá tica dos dois primeiros livros A obra que data de 1895 foi concebida quando Durkheim refletia sobre Da divisão do trabalho social terminado em 1894 e Le suicide de alguns anos depois A concepção da sociologia de Durkheim se baseia em uma teoria do fato so cial Seu objetivo é demonstrar que pode e deve existir uma sociologia objetiva e científica conforme o modelo das outras ciências tendo por objeto o fato social Para que haja tal sociologia duas coisas são necessárias que seu objeto seja espe cífico distinguindose do objeto das outras ciências e que possa ser observado e explicado de modo semelhante ao que acontece com os fatos observados e expli cados pelas outras ciências Esta dupla exigência leva às duas célebres fórmulas com que se costuma resumir o pensamento de Durkheim é preciso considerar os 326 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO fatos sociais como coisas a característica do fato social é que ele exerce uma coer ção sobre os indivíduos A primeira fórmula já foi muito discutida como testemunha o livro de Jules Monnerot Les faits sociaux ne sont pas des choses e exige um esforço de compreensão8 O ponto de partida é a idéia de que não conhecemos no sen tido científico do termo conhecer o que são os fenômenos sociais que nos cercam no meio dos quais vivemos e podese mesmo dizer que vivemos Não sabe mos de fato o que é o Estado a soberania a liberdade política a democracia o socialismo o comunismo Isto não quer dizer que não tenhamos nenhuma idéia sobre esses fenômenos Contudo precisamente porque temos deles uma idéia vaga e confusa é importante considerar os fatos sociais como coisas isto é devemos livrarnos das prénoções e dos preconceitos que nos paralisam quando pretendemos conhecêlos cientificamente É preciso observar os fatos sociais do exterior descobrilos como descobrimos os fatos físicos Como temos a ilusão de conhecer as realidades sociais tornase importante conven cernos de que elas não são conhecidas imediatamente Por isso Durkheim afir ma que é preciso considerar os fatos sociais como coisas As coisas são tudo o que nos é dado tudo o que se oferece ou antes se impõe à nossa observação A fórmula é preciso considerar os fatos sociais como coisas nos leva a uma crítica da economia política isto é a uma crítica das discussões abstratas dos conceitos como o de valor9 Segundo Durkheim todos esses métodos têm o mesmo defeito fundamental Partem da idéia falsa de que podemos compreen der os fenômenos sociais a partir da significação que lhes atribuímos esponta neamente quando na verdade o sentido verdadeiro desses fenômenos só pode ser descoberto mediante uma exploração de tipo objetivo e científico Passamos deste ponto para uma segunda interpretação da fórmula segun do a qual o fato social é toda maneira de fazer suscetível de exercer uma coer ção externa sobre o indivíduo Reconhecemos um fenômeno social na medida em que se impõe ao indi víduo Durkheim dá uma série de exemplos aliás muito variados que demons tram a pluralidade dos sentidos que tem no seu pensamento o termo coerção Há coerção quando numa assembléia ou numa multidão um sentimento se impõe a todos como por exemplo quando por reação coletiva todos riem Este é um fenômeno tipicamente social porque tem como apoio e como sujeito o grupo em seu conjunto e não um indivíduo em particular Assim também a mo da é um fenômeno social cada um se veste de uma certa maneira num deter minado momento porque todos se vestem daquele modo Não é um indivíduo que origina a moda é a sociedade que se manifesta por meio de obrigações implícitas e difusas Durkheim exemplifica também com as correntes de opinião que levam ao casamento ao suicídio a uma maior ou menor natalidade e que A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 327 qualifica de estados de alma coletivos Cita por fim as instituições da educa ção o direito as crenças que têm igualmente como características o fato de se rem dados exteriores aos indivíduos e que se impõem a todos Os fenômenos da multidão as correntes de opinião a moralidade a edu cação o direito e as crenças que os autores alemães chamam de espírito obje tivo tudo isso Durkheim reúne na mesma categoria porque lhes reconhece a mesma característica fundamental São gerais porque são coletivos são dife rentes nas repercussões que exercem sobre cada indivíduo têm como substra to o conjunto da coletividade Em conseqüência é legítimo dizer Fato social é toda maneira de fazer fixa ou não suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior ou então que é geral em toda a extensão de uma dada sociedade embora tenha existência própria independente das suas manifesta ções individuais Les règles de la méthode sociologique p 14 Estas são as duas proposições que servem de fundamento para a metodo logia de Durkheim observar os fatos sociais como coisas e reconhecêlos pela coerção que exercem sobre os indivíduos Estas duas proposições já foram ob jeto de discussões intermináveis as quais em grande parte têm a ver com a am bigüidade dos termos empregados É conveniente dizer que devemos chamar de coisa toda realidade observá vel do exterior e cuja natureza não conhecemos imediatamente Neste sentido Durkheim tem toda a razão em afirmar que é preciso observar os fatos sociais co mo coisas Por outro lado se o termo implica que os fatos sociais não compor tam interpretação diferente da que comportam os fatos naturais ou sugere que toda interpretação do significado que os homens atribuem aos fatos sociais deve ser afastada pela sociologia Durkheim não tem razão Além de tudo esta regra seria contrária à prática do próprio Durkheim que em todos os seus livros procurou apreender o sentido que os indivíduos ou os grupos atribuem à sua maneira de viver suas crenças seus ritos O que chamamos de compreensão é precisamente a apreensão do significado interno dos fenômenos sociais A in terpretação moderada da tese de Durkheim implica simplesmente que esta sig nificação autêntica não é imediata que precisa ser descoberta ou elaborada pro gressivamente Há um duplo equívoco na noção de coerção De um lado o termo tem ordi nariamente um sentido mais limitado do que aquele que lhe empresta Durkheim Na linguagem comum não se fala de coerção a propósito da moda ou das cren ças como estas crenças são interiorizadas os indivíduos têm a impressão ao abra çar a fé dos seus semelhantes de se exprimirem de modo pessoal e nãocoletivo Em outras palavras Durkheim usa o termo coerção de modo infeliz com sen tido muito amplo e vago o que é inconveniente pois o leitor se sente quase ine 328 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO vitavelmente tentado a lembrar apenas o sentido corrente do termo embora a acepção de Durkheim seja muito mais ampla Por outro lado a coerção constitui a essência do fenômeno social ou é ape nas uma característica externa que permite reconhecêlo De acordo com o pró prio Durkheim a segunda interpretação é correta Ele não pretende que a coerção seja a característica essencial dos fatos sociais mas apresentaa apenas como a aparência externa que permite reconhecêlos No entanto é difícil evitar um deslize que faz com que se passe do caráter exterior à definição essencial Já se discutiu muito para saber se seria justo definir o fato social pela coerção Pes soalmente acho que se tomamos a palavra coerção no sentido mais amplo vendo nesta característica nada mais do que um traço facilmente visível a teo ria se torna menos interessante e também menos vulnerável O debate sobre os termos coisa e coerção foi ainda mais vivo porque Durkheim como filósofo é um conceitualista Tem tendência a considerar os conceitos como realidades ou pelo menos achar que a distinção dos gêneros e das espécies está inscrita na própria realidade Em sua teoria sociológica os problemas de definição e de classificação ocupam um lugar importante Em seus três livros principais Durkheim começa por definir o fenômeno considerado Para ele esta operação é essencial pois se trata de isolar uma cate goria de fatos Toda investigação científica se relaciona com um grupo determinado de fenô menos abrangidos numa mesma definição A primeira tarefa do sociólogo é portan to definir as coisas que está estudando para que se possa saber de que se trata e para que ele o saiba também Estai a condição primordial e mais indispensável de qualquer prova ou verificação Com efeito uma teoria só pode ser controlada se reconhecidos os fatos que ela deve explicar Além disso como é por esta definição inicial que se constitui o objeto da ciência este variará de acordo com o modo pelo qual a definição é feita Les règles de la méthode sociologique p 34 Durkheim está sempre inclinado a pensar que uma vez definida certa cate goria de fatos será possível encontrar para eles uma única explicação Um efei to determinado provém sempre da mesma causa Assim se há várias causas de suicídios ou de crimes há vários tipos de suicídios e de crimes A regra segundo a qual é preciso chegar a definições é a seguinte Jamais se deve tomar outro objeto de investigação que não seja um grupo de fenôme nos definidos previamente por certas características externas que lhes são comuns abrangendo na mesma investigação todos os que respondem a esta de finição Ibid p 35 Durkheim comenta assim este preceito Por exemplo constatamos a existência de um certo número de atos que apresentam uma ca racterística externa uma vez realizados determinam por parte da sociedade A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 329 uma reação particular que chamamos de pena Reconhecemos assim um grupo sui generis ao qual impomos uma rubrica comum chamamos de crime todo ato punido e fazemos do crime assim definido o objeto de uma ciência especial a criminologia Portanto o que caracteriza um crime é o fato de que suscita por par te da sociedade uma reação chamada sanção a qual revela que a consciência cole tiva foi ferida pelo ato considerado culpado Serão crimes todos os atos que apre sentarem esta característica externa de uma vez realizados determinarem da parte da sociedade a reação particular a que chamamos castigo Este método não deixa de apresentar alguns problemas Durkheim parte da idéia de que convém definir os fatos sociais pelas características externas facil mente reconhecíveis a fim de evitar os preconceitos ou prénoções Por exem plo o crime enquanto fato social é um ato que provoca uma sanção Se esta definição não for considerada essencial não haverá nenhuma dificuldade te mos aí um procedimento cômodo para reconhecer determinada categoria de fatos Contudo uma vez colocada a definição se aplicamos um pretenso prin cípio de causalidade e declaramos que todos os fatos de tal categoria têm uma causa determinada e uma só sem mesmo examinálos estamos admitindo im plicitamente que a definição extrínseca é equivalente a uma definição intrínse ca postulandose que todos os fatos classificados naquela categoria têm a mesma causa É mediante procedimentos como este que Durkheim em sua teoria da religião passa da definição da religião pelo sagrado para a concepção segundo a qual não há uma diferença fundamental entre o totemismo e as religiões de salvação chegando a sugerir que todas as religiões consistem na adoração da so ciedade O perigo deste método é duplo substituir imperceptivelmente uma defini ção intrínseca por outra extrínseca relacionada com sinais exteriores reco nhecíveis e pressupor arbitrariamente que todos os fatos classificados nessa categoria derivam necessariamente de uma mesma causa Em matéria de religião o alcance destas duas reservas ou críticas é eviden te Pode ser que na religião totêmica os crentes adorem a sociedade sem disso terem consciência Mas isto não quer dizer que a significação essencial da cren ça religiosa no caso de uma religião de salvação seja a mesma A identidade de natureza entre os diferentes fatos classificados na mesma categoria definida por traços extrínsecos está implicada na filosofia conceitualista de Durkheim mas não é evidente Essa tendência a ver os fatos sociais como suscetíveis de serem classifica dos em gêneros e em espécies aparece no Cap V dedicado às regras relativas à constituição dos tipos sociais A classificação das sociedades de Durkheim se baseia no princípio de que o diferente grau de complexidade é que as diferen cia O ponto de partida é o grupo mais simples a que Durkheim chama horda A horda que pode ser uma realidade histórica ou talvez simplesmente uma fic 330 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ção teórica é formada por indivíduos justapostos de maneira por assim dizer atômica A horda é no reino social comparável ao que é o protozoário no reino animal Depois da horda vem o clã que compreende várias famílias Segundo Durkheim as famílias são historicamente posteriores ao clã e não constituem segmentos sociais O clã é a mais simples sociedade historicamente conhecida formada pela reunião de hordas Para classificar as outras sociedades basta aplicar o mesmo princípio As sociedades polissegmentadas simples como a das tribos kabiles seriam formadas por uma pluralidade de clãs justapostos As sociedades polissegmentadas compostas seriam sociedades como as das con federações iroquesas em que os segmentos em lugar de se justaporem aparecem organizados em um conjunto social de tipo superior As sociedades polissegmen tadas duplamente compostas resultam da justaposição ou fusão de sociedades polissegmentadas compostas simples Pertencem a este último tipo a sociedade grega e a romana Esta classificação pressupõe a existência de unidades simples cuja adição constitui os diferentes tipos sociais Segundo esta concepção cada sociedade se rá definida pelo seu grau de complexidade este critério permite determinar a natureza de uma sociedade sem referência às fases históricas tais como as eta pas do desenvolvimento econômico Durkheim indica aliás que uma sociedade ele pensa na sociedade japo nesa pode absorver um certo desenvolvimento econômico de origem externa sem que sua natureza fundamental se transforme A classificação dos gêneros e espécies sociais difere radicalmente da determinação das fases do desenvol vimento econômico ou histórico Os sociólogos do século XIX Auguste Comte e Karl Marx se esforçaram por determinar os momentos principais do devenir histórico e as fases do pro gresso intelectual econômico e social da humanidade Segundo Durkheim estas tentativas não levam a nada Contudo é possível fazer uma classificação cienti ficamente válida dos gêneros e espécies de sociedades com base num critério que reflete a estrutura da sociedade considerada o número dos segmentos justa postos numa sociedade complexa e o modo de combinação desses segmentos As teorias da definição e classificação dos gêneros e espécies levam à dis tinção do normal e do patológico bem como à teoria da explicação A distinção do normal e do patológico desenvolvida no Capítulo III de As re gras do método sociológico tem um papel importante no pensamento de Durkheim A meu ver esta distinção continuará a ser até o fim da sua carreira uma das bases do seu pensamento embora não a tenha empregado com muita freqüência no últi mo período o de As formas elementares da vida religiosa A importância desta distinção se relaciona com as intenções de reforma de Durkheim Sua vontade de ser um cientista puro não o impedia de afirmar que A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 33 a sociologia não valeria uma só hora de trabalho se não permitisse o aperfei çoamento da sociedade Tinha a esperança de poder fundamentar conselhos d ação no estudo objetivo e científico dos fenômenos A distinção entre o norma e o patológico é precisamente uma das intermediações entre a observação doi fatos e os preceitos Se um fenômeno é normal não há por que querer eliminá lo mesmo que nos afete moralmente Mas se é patológico temos um argumen to científico para justificar projetos de reforma Para Durkheim um fenômeno é normal quando pode ser encontrado de modo geral numa sociedade de determinado tipo em certa fase do seu processo de desenvolvimento O crime é um fenômeno normal ou mais exatamente uma certa taxa de crime é normal Assim definese a normalidade pela generalida de mas como as sociedades são diferentes é impossível conhecer a generali dade de modo abstrato e universal Será considerado normal o fenômeno que encontrarmos mais freqüentemente numa sociedade dada num certo momento do seu desenvolvimento Esta definição da normalidade não exclui que subsi diariamente se procure explicar a generalidade isto é se faça um esforço para descobrir a causa que determina a freqüência do fenômeno considerado Mas o sinal primeiro e decisivo da normalidade de um fenômeno é simplesmente sua freqüência Assim como a normalidade é definida pela generalidade a explicação segun do Durkheim é definida pela causa Explicar um fenômeno social é procurar sua causa eficiente identificar o fenômeno antecedente que o produz necessariamen te De forma subsidiária uma vez estabelecida a causa de um fenômeno podese procurar igualmente a função que exerce a sua utilidade Mas a explicação fun cionalista apresentando um caráter teleológico deve estar subordinada à procura da causa eficiente pois fazer ver a utilidade de um fato não é o mesmo que expli car como aconteceu nem como ele é o que é Suas utilizações pressupõem pro priedades específicas que o caracterizam mas não o criam A necessidade que temos das coisas não pode fazer com que elas sejam de uma maneira ou de outra por conseguinte não é esta necessidade que pode retirálas do nada e conferirlhes existência Les règles de la méthode sociologique p 90 As causas dos fenômenos sociais devem ser procuradas no meio social Ê a estrutura da sociedade considerada que constitui a causa dos fenômenos que a sociologia quer explicar É na natureza da própria sociedade que devemos procurar a explicação da vida social P 101 Ou ainda A origem primordial de todo processo social de alguma importância deve ser procurada na constitui ção do meio social interno P 111 A explicação dos fenômenos pelo meio social se opõe à explicação histó rica segundo a qual a causa de um fenômeno deveria ser procurada no passado isto é no cSWfey aatenor da sociedade Durkheim considftcamif ti nrnliiraato 332 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO histórica não é uma verdadeira explicação científica Pensa que se podem expli car os fenômenos sociais pelas condições concomitantes Chega mesmo a dizer que se o meio social não explica os fenômenos observados num determinado momento da história é impossível estabelecer uma relação de causalidade De certa maneira a causalidade eficiente do meio social representa para Durkheim a condição da existência da sociologia científica Esta consiste em estudar os fatos do exterior em definir rigorosamente conceitos graças aos quais é possí vel isolar categorias de fenômenos classificar as sociedades em gêneros e es pécies e por fim dentro de uma dada sociedade explicar um fato particular pelo meio social A prova da explicação é obtida pelo emprego do método das variações con comitantes Só temos um meio de demonstrar que um fenômeno é a causa de um outro comparar os casos em que estão simultaneamente presentes ou ausentes e verifi car se as variações apresentadas nestas diferentes combinações de circunstâncias revelam que um depende do outro Quando podem ser provocados artificialmente de acordo com a vontade do observador o método é a experimentação propria mente dita Quando ao contrário a produção dos fatos não está à nossa disposição e só podemos abordálos tal como ocorrem espontaneamente o método utilizado é o da experimentação indireta ou método comparativo P 124 No caso do suicídio a aplicação deste método era particularmente simples Durkheim se limitava a comparar as taxas de suicídio dentro de uma mesma sociedade ou dentro de sociedades muito próximas entre si Mas o método das variações concomitantes pode e deve comportar a comparação de um mesmo fenômeno por exemplo a família ou o crime em sociedades pertencentes ou não à mesma espécie O objetivo é acompanhar o desenvolvimento integral de um fenômeno dado por exemplo a família ou a religião através de todas as espé cies sociais Só se pode explicar um fato social de alguma complexidade acompanhando seu desenvolvimento integral através de todas as espécies sociais A sociologia com parada não é um ramo especial da sociologia é a própria sociologia quando esta deixa de ser puramente descritiva e aspira a explicar os fatos P 137 No caso da religião Durkheim remonta às formas elementares da vida reli giosa Não tem a ambição de acompanhar o desenvolvimento do fenômeno re ligioso através das espécies sociais mas podemos ver como uma sociologia ideal inspirandose nessa análise partiria de uma categoria de fatos definidos com a ajuda de características externas reconhecíveis seguiria o desenvolvi mento de uma instituição através das espécies sociais para chegar assim a uma A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 33 teoria geral sobre uma ordem de fatos ou mesmo das espécies sociais Ideal mente seria possível conceber uma teoria geral da sociedade cujo princípio fosse uma filosofia conceitualista comportando uma teoria das categorias de fatos sociais uma concepção dos gêneros e das espécies das sociedades e fi nalmente uma doutrina da explicação que visse no meio social a causa deter minante dos fatos sociais Esta teoria da sociologia científica se fundamenta numa afirmativa central do pensamento de Durkheim a sociedade é uma realidade de natureza diferen te das realidades individuais Todo fato social tem como causa um outro fato social e nunca um fato da psicologia individual Dirseá porém que como a sociedade é formada exclusivamente de indiví duos a origem primordial dos fenômenos sociológicos não pode deixar de ser psi cológica Com esse raciocínio podese com igual facilidade afirmar que os fenô menos biológicos são explicáveis analiticamente pelos fenômenos inorgânicos Com efeito é certo que na célula viva só há moléculas de matéria bruta Contudo elas estão associadas e é esta associação que causa os novos fenômenos que ca racterizam a vida e que não podemos localizar nem mesmo em germe em ne nhum dos elementos associados É que o todo não é idêntico à soma de suas partes o todo é alguma coisa diferente e suas propriedades não são iguais às das partes que o compõem A associação não é portanto como já se pensou algumas vezes um fenômeno em si mesmo infecundo que consista apenas em relações externas de fatos conhecidos e propriedades identificadas Não será ela ao contrário a fonte de todas as atividades que se produziram sucessivamente durante a evolução geral das coisas Que diferença há entre os organismos inferiores e os outros entre o ser vivo organizado e o simples plastídio entre este e as moléculas inorgânicas que o compõem a não ser diferenças de associação Em última análise todos estes seres se compõem de elementos da mesma natureza elementos que se encontram às vezes justapostos às vezes associados de uma maneira outras vezes de modo diferente Temos mesmo o direito de perguntar se esta lei não penetra no mundo mineral e se as diferenças que separam os corpos inorgânicos não têm a mesma origem Em virtude deste princípio a sociedade não é mera soma de indivíduos mas o sistema formado pela sua associação representa uma realidade específica com características próprias Sem dúvida nada pode haver de coletivo sem cons ciências particulares Esta condição necessária porém não é suficiente E preciso além disso que as consciências se associem e se combinem e se combinem de de terminada maneira Dessa combinação resulta a vida social assim é essa combi nação que a explica Juntandose penetrandose fúndindose as almas individuais dão vida a um ser ser psíquico se preferirmos que constitui porém uma indivi dualidade psíquica de gênero novo É portanto na natureza desta individualidade e não na das unidades que a compõem que é preciso ir buscar as causas próximas e determinantes dos fatos que se produzem O grupo pensa sente age de modo com 334 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO pletamente diferente daquilo que fariam os membros se estes estivessem isolados Assim se partirmos destes últimos não poderemos compreender o que acontece no grupo Numa palavra há entre a psicologia e a sociologia a mesma solução de continuidade que encontramos entre a biologia e as ciências psicoquímicas Les règles de la méthode sociologique pp 102103 Este é o centro do pensamento metodológico de Durkheim Para ele o fato so cial é específico provocado pela associação dos indivíduos e diferente pela sua natureza do que se passa no nível das consciências individuais Os fatos sociais podem ser objeto de uma ciência geral porque se distribuem em categorias e os próprios conjuntos sociais podem ser classificados em gêneros e espécies Sociologia e socialismo Para estudar as idéias políticas de Durkheim dispomos de três séries de cur sos publicadas depois da sua morte Durkheim tinha o bom hábito de redigir in tegralmente suas aulas Esses textos exprimem portanto exatamente o pensa mento do autor Esses cursos são o curso sobre o socialismo publicado em 1928 com o tí tulo Le socialisme e que trata sobretudo de SaintSimon o curso publicado em 1950 com o título Leçons de sociologie Physique des moeurs et du droit e por fim cursos sobre a educação e os problemas pedagógicos Durkheim é um filósofo por formação Estudante da École Normale Supé rieure por volta dos anos 1880 interessouse apaixonadamente como seus co legas LévyBruhl e Jaurès pelo que se conhecia na época como as questões so ciais tema que parecia mais amplo do que o das simples questões políticas Ao começar suas investigações colocou o problema cujo estudo o leva ria ao livro Da divisão do trabalho social sob a seguinte forma quais são as relações entre o individualismo e o socialismo Seu sobrinho Mareei Mauss no prefácio de Le socialisme lembra este ponto de partida teórico das pesquisas de Durkheim A relação entre estes dois movimentos de idéias o socialismo e o individualismo é de fato em termos filosóficos o problema sociológico de Da divisão do trabalho social A indagação sobre o relacionamento entre o individualismo e o socialismo ou entre o indivíduo e o grupo que leva Durkheim ao tema do consenso per tence aliás à tradição iniciada por Auguste Comte De muitos modos ele é fiel à inspiração do fundador do positivismo O ponto de partida de Durkheim é o absoluto do pensamento científico a única forma de pensamento válida na nossa época Nenhuma doutrina moral ou A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 335 religiosa pelo menos em seu conteúdo intelectual pode ser admitida se não resiste à crítica da ciência De conformidade com uma exigência que estava também na origem da doutrina positivista Durkheim só pode admitir que a ordem social se fundamente num pensamento de tipo científico Além disso Durkheim critica os economistas e mais particularmente os economistas liberais ou teóricos de maneira fundamentalmente idêntica à de Auguste Comte Os dois consideram a atividade econômica como característica das sociedades modernas que são as sociedades industriais A organização da economia deve portanto exercer uma influência decisiva sobre o conjunto da sociedade Contudo não é a partir da rivalidade dos interesses individuais ou da harmonia preestabelecida entre tais interesses que se pode criar o concurso de vontades que constitui condição da estabilidade social da mesma forma co mo não se pode explicar uma sociedade a partir da conduta alegadamente racio nal dos agentes econômicos O problema social não é para começar um problema econômico é sobretu do um problema de consenso isto é de sentimentos comuns aos indivíduos gra ças aos quais os conflitos são atenuados os egoísmos recalcados e a paz manti da O problema social é um problema de socialização Tratase de fazer do indi víduo um membro da coletividade de inculcarlhe o respeito pelos imperativos pelas obrigações e proibições sem as quais a vida coletiva se tomaria impossível O livro sobre a divisão do trabalho constitui a primeira resposta de Durkheim ao problema das relações entre o individualismo e o socialismo e esta respos ta se confunde com a descoberta da sociologia como ciência O problema so cial das relações entre o indivíduo e o grupo não deve ser resolvido em abs trato por via especulativa mas pela via científica E a ciência nos mostra que não há só um tipo de relacionamento entre indivíduo e grupo mas diferentes tipos de integração variáveis de acordo com a época e a sociedade Há particularmente dois tipos fundamentais de integração a solidariedade mecânica baseada na semelhança e a solidariedade orgânica baseada na dife renciação Esta última cada um exerce uma função própria numa sociedade que resulta do concurso necessário entre indivíduos diferentes corresponde à solução de fato demonstrada cientificamente do problema das relações entre individualismo e socialismo Segundo Durkheim a própria ciência nos explica por que um certo tipo social toma necessário o individualismo A autonomia da vontade e a margem de decisão individual são características da solidariedade orgânica A análise da solidariedade orgânica é portanto para Durkheim a resposta a um problema propriamente filosófico o das relações entre o individualismo e o socialismo A sociedade em que domina a solidariedade orgânica permite ao individualismo desenvolverse com base em uma necessidade coletiva e de um imperativo moral A própria moral ordena a cada um que se realize A solida riedade moral não deixa de colocar contudo dois problemas 336 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICi Na sociedade moderna os indivíduos não são mais intercambiáveis e cada um pode realizar a própria vocação Nem por isso deixa de ser necessário haver crenças comuns quando menos a do respeito absoluto pela pessoa humana para manter a coexistência pacífica desses indivíduos diferenciados É impor tante pois atribuir um conteúdo muito extenso e uma autoridade suficiente à consciência coletiva numa sociedade em que o individualismo se tornou a lei suprema Toda sociedade moderna dominada pela solidariedade orgânica comporta riscos de desagregação e anomia Com efeito quanto mais a sociedade moderna encoraja os indivíduos a reivindicar o direito de realizar sua própria personalida de e de satisfazer seus próprios desejos mais se deve temer que o indivíduo es queça as exigências da disciplina e termine numa situação perpétua de insatisfa ção Por maior que seja a presença do individualismo na sociedade moderna não há sociedade sem disciplina sem limitação dos desejos sem uma desproporção entre as aspirações de cada um e as satisfações possíveis Neste ponto da análise o sociólogo aborda o problema do socialismo e pode mos compreender em que sentido Durkheim é socialista e em que sentido não o é ou ainda em que sentido a sociologia como Durkheim a interpreta substitui o socialismo O pensamento de Durkheim está associado historicamente de mo do estreito ao pensamento dos socialistas franceses dos últimos anos do século XIX De acordo com Mareei Mauss foi Durkheim que fez com que o pensamen to de Jaurès se inclinasse na direção do socialismo mostrandolhe a pobreza das idéias radicais que subscrevia na época Provavelmente a conversão de Jaurès ao socialismo não se deve apenas à influência de Durkheim Lucien Herr bibliote cário da Escola Normal teve nela uma participação direta e preponderante Não deixa de ser verdade porém que por volta dos anos 18851895 a concepção que Durkheim tinha do socialismo foi um elemento importante da consciência políti ca francesa nos meios intelectuais de esquerda O curso que Durkheim dedicou ao socialismo é parte de um empreendi mento mais amplo que não chegou a concluir um estudo histórico do conjun to das doutrinas socialistas de que só pôde estudar as origens isto é essencial mente SaintSimon Durkheim aborda este estudo com algumas idéias que esclarecem sua in terpretação do socialismo Embora num certo sentido seja socialista um ver dadeiro socialista de acordo com a definição que emprega não é marxista Opõese mesmo à doutrina marxista como ela é interpretada ordinariamente em dois pontos essenciais Em primeiro lugar não crê na fecundidade dos meios violentos e se recu sa a considerar a luta de classes em particular os conflitos entre operários e empresários como um elemento essencial da sociedade atual e como mola do A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 337 movimento histórico Para Durkheim bom discípulo de Auguste Comte os con flitos entre trabalhadores e empresários demonstram a falta de organização ou a anomia parcial da sociedade moderna que deve ser corrigida Não anunciam a passagem para um regime social ou econômico fundamentalmente diverso Portanto se a luta de classes e a violência ocupam o primeiro lugar no pensa mento marxista como se pensa hoje e se se identifica o socialismo com o mar xismo o que seria um erro é preciso admitir que Durkheim é antípoda do socialismo O sociólogo também não é socialista na medida em que muitos socialistas se inclinam a crer que a solução dos problemas da sociedade moderna virá de uma reorganização econômica Ora para ele o problema social não é tanto eco nômico como moral e além disso está muito longe das idéias marxistas Para Durkheim a essência do pensamento socialista não está no estatuto da proprie dade nem no planejamento O socialismo de Durkheim é em essência o socialismo de Auguste Comte que se resume em duas palavraschave organização e moralização O socialis mo é uma melhor isto é mais consciente organização da vida coletiva que teria por objeto e conseqüência a integração dos indivíduos em instâncias so ciais ou em comunidades dotadas de autoridade moral capazes portanto de preencher uma função educativa O curso sobre o socialismo contém subtítulos Sa définition Ses débuts La doctrine saintsimonienne Sua definição Suas origens A doutrina de Saint Simon Durkheim não distingue com clareza o que pertence ao próprio SaintSi mon e a Augustin Thierry ou Auguste Comte Pessoalmente creio que atribui a SaintSimon grande parte dos méritos virtudes e originalidade que na verda de são dos seus colaboradores Mas não é isso que importa O essencial é a definição do socialismo e a aproximação entre o saintsimonismo e a situação do socialismo no início do século XIX Durkheim quer sempre definir uma realidade social de maneira objetiva Não se atribui o direito reivindicado por Max Weber de escolher sua definição de um fenômeno social Esforçase por determinar do exterior o que é esse fenômeno social acentuando suas características visíveis Formula assim uma definição do socialismo a partir dos traços comuns às doutrinas qualifica das ordinariamente como socialistas Escreve Chamamos de socialista toda dou trina que proponha a incorporação de todas as funções econômicas ou de algu mas delas que na verdade estão dispersas aos centros diretores e conscientes da sociedade Le socialisme p 25 Ou ainda O socialismo não se reduz a uma questão de salário ou como se disse de estômago É antes de tudo uma aspi ração à reorganização do corpo social tendo o efeito de mudar a situação do aparelho industrial no conjunto do organismo tirálo da sombra onde funciona automaticamente chamandoo à luz e ao controle da consciência Podese 338 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO porém perceber desde já que esta aspiração não é sentida apenas pelas classes inferiores mas também pelo próprio Estado que à medida que a atividade eco nômica se toma um fator mais importante da vida em geral é levado pela força das coisas pelas necessidades vitais da mais alta importância a inspecionar e a regulamentar mais suas manifestações Ibid p 34 Estas duas passagens resumem bastante bem a concepção do socialismo de Durkheim que faz uma distinção rigorosa entre as doutrinas que chama de co munistas e as que chama de socialistas Em todas as épocas da história desde a antiguidade houve doutrinas comunistas as quais nasciam do protesto con tra a desigualdade social e a injustiça Sonhavam com um mundo em que a condi ção de todos fosse a mesma Não caracterizam portanto um determinado pe ríodo histórico como as doutrinas socialistas do início do século XIX logo depois da Revolução Francesa Longe de considerar a atividade econômica como fundamental procuraram reduzir ao mínimo o papel da riqueza Muitas se ins piraram numa concepção ascética da existência As doutrinas socialistas ao contrário acentuam o caráter primordial da atividade econômica em vez de al mejar o retomo a uma vida simples e frugal procuram na abundância e no de senvolvimento da capacidade produtiva a solução das dificuldades sociais De acordo com Durkheim as doutrinas socialistas não se definem pela ne gação da propriedade privada ou pelas reivindicações dos trabalhadores ou ainda pelo desejo das classes superiores ou dos dirigentes do Estado de melhorar a condição dos mais desfavorecidos A rejeição da propriedade privada não é ca racterística do socialismo A doutrina de SaintSimon comporta uma crítica da herança mas Durkheim vê nessa crítica uma espécie de confirmação do prin cípio da propriedade privada De fato se chamamos de propriedade privada a propriedade individual esta é justificada quando pertence a quem a adquiriu A transmissão hereditária contraria assim o princípio da propriedade privada já que por herança alguém recebe uma propriedade que não teve o mérito de adquirir Neste sentido diz Durkheim a crítica da herança pode ser considerada como a aplicação lógica do princípio segundo o qual a única propriedade legí tima é privada isto é é privada a propriedade adquirida diretamente pelo pró prio indivíduo Durkheim concorda que as reivindicações operárias e os esforços destina dos a aprimorar a condição dos trabalhadores fazem parte dos sentimentos ins pirados pelas doutrinas socialistas mas afirma que não são essenciais à idéia socialista Em todas as épocas houve pessoas inspiradas pelo espírito de carida de ou de piedade que se debruçaram sobre o destino dos miseráveis procuran do amenizarlhes a situação Mas esta preocupação com a infelicidade alheia não é característica nem das doutrinas socialistas nem de um momento dado da história social européia Além disso não se poderia jamais resolver a questão social por meio de reformas econômicas A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 339 A Revolução Francesa foi um antecedente necessário do desenvolvimento das doutrinas socialistas cuja origem pode ser identificada em certos fenôme nos do século XVIII Multiplicamse os protestos contra as desigualdades e sur ge a idéia de que se podem atribuir ao Estado funções mais amplas Até a Revo lução porém estas teses são embrionárias faltandolhes o essencial a idéia cen tral do socialismo que é a concepção de uma reorganização consciente da vida econômica Esta idéia nasceu depois da Revolução porque esta subverteu a ordem so cial e difundiu o sentimento de crise levando os homens de pensamento à bus ca das causas dessa crise Ao transformar a antiga ordem a Revolução Francesa fez com que se tomasse consciência do papel possível do Estado Enfim foi depois da Revolução Francesa que a contradição entre a maior capacidade de produção e a miséria de grande parte da população apareceu claramente Os ho mens descobriram a anarquia econômica Transferiram à ordem econômica o protesto contra as desigualdades que até então focalizava sobretudo a desigual dade política Houve um encontro da aspiração igualitária favorecida pela Re volução e da consciência da anarquia econômica provocada pelo espetáculo da indústria nascente Esta conjunção do protesto contra a desigualdade e da cons ciência da anarquia econômica provocou o aparecimento das doutrinas socia listas que querem reorganizar a sociedade a partir da vida econômica Para Durkheim a questão social de acordo com sua definição do socialis mo é antes de tudo uma questão de organização Mas também um problema de moralização Numa passagem marcante explica por que o problema social não poderia ser resolvido por reformas inspiradas exclusivamente no espírito de ca ridade Se não nos enganamos esta corrente de piedade e simpatia sucedânea da an tiga corrente comunista que vamos encontrar geralmente no socialismo atual não passa nele de um elemento secundário Completao mas não o constitui Em con seqüência as medidas que são tomadas para conter o problema social deixam in tactas as causas que deram nascimento ao socialismo Se as necessidades que este último traduz são fundadas não será possível satisfazêlas dando alguma satisfa ção a estes vagos sentimentos de fraternidade Ora observem o que acontece em todos os países da Europa Em toda a parte há uma preocupação com o que se deno mina questão social e um esforço para darlhe soluções parciais Entretanto qua se todas as medidas que são tomadas com este fim são destinadas exclusivamente a melhorar a sorte das classes trabalhadoras isto é respondem apenas às tendên cias generosas que constituem a base do comunismo Parece que se considera mais urgente e mais útil aliviar a miséria dos operários e compensar com liberalidades e favores legais o que há de triste na sua condição Há uma disposição para mul tiplicar bolsas subvenções de todo tipo para estender na medida do possível o âmbito da caridade pública para fazer leis destinadas a proteger a saúde dos ópè 340 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO rários etc com o objetivo de diminuir o hiato que separa as duas classes com o propósito de diminuir a desigualdade Não se vê porém e aliás isso acontece con tinuamente com o socialismo que ao proceder assim tomase o secundário pelo essencial Não é testemunhando uma complacência generosa com relação ao que ainda resta do velho comunismo que se poderá algum dia conter o socialismo ou realizálo Não é dando todos os nossos cuidados a uma situação que é de todos os séculos que se melhorará minimamente uma situação que data de ontem Não só passamos assim ao lado do objetivo que deveríamos ter em vista mas até mesmo o objetivo a que nos propomos não poderá ser atingido pelo caminho que se segue Porque será inútil criar para os trabalhadores privilégios que neutralizem em parte aqueles dos patrões inútil diminuir a duração da jornada de trabalho e até mesmo aumentar legalmente os salários pois isto não satisfará os apetites despertados que se reforçarão com os esforços que fizermos para acalmálos Não há limites possíveis para suas exigências Procurar apaziguálos satisfazendoos é pretender completar o tonel das Danaides Se a questão social pudesse ser posta verdadeira mente nestes termos seria melhor declarála insolúvel Le socialisme p 78 Este texto é surpreendente e hoje soa de modo estranho É óbvio que Durkheim não é um inimigo das reformas sociais que não é hostil à diminui ção da jornada de trabalho ou ao aumento dos salários O que é revelador porém é a transformação do sociólogo em moralista O tema fundamental é sempre o mesmo os apetites dos homens são insaciáveis se não houver uma autoridade moral que limite os desejos os homens ficarão eternamente insatisfeitos por que desejarão sempre algo mais que não podem obter De certo modo Durkheim tem razão Mas ele não se propõe a indagação feita por Eric Weil em Philosophiepolitique10 o objetivo da organização social será satisfazer os homens A insatisfação não é parte da condição humana e muito especificamente da condição própria à sociedade em que vivemos Talvez os homens continuem tão insatisfeitos quanto antes à medida que se multipliquem as reformas sociais É possível também que eles o sejam menos ou de modo diferente Por outro lado não se pode admitir que as insatisfações e rei vindicações constituem o motor do movimento histórico Não é necessário ser hegeliano para acreditar que as sociedades se transformam pela recusa dos ho mens em aceitar sua situação qualquer que ela seja Neste sentido a insatisfação não é necessariamente patológica não o é certamente nas sociedades como as nos sas em que a autoridade da tradição perde força e a maneira de viver habitual não parece mais imporse aos homens como uma norma ou ideal Se cada geração pretende viver melhor do que a anterior a insatisfação permanente descrita por Durkheim será inevitável O tonel das Danaides e a rocha de Sísifo são os mitos representativos da sociedade moderna Mas se o problema social só pode ser resolvido por meio de reformas ou pela melhoria da vida dos homens qual é sua característica específica no mundo de hoje A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 341 Outrora em todas as sociedades as funções econômicas estavam subordi nadas a poderes temporais e espirituais Os poderes temporais eram essencial mente militares ou feudais os poderes espirituais essencialmente religiosos Hoje na sociedade industrial moderna as funções econômicas estão abandonadas a si mesmas não são mais moralizadas ou regularizadas Durkheim pensa que SaintSimon compreendeu bem que os antigos poderes de essência militar ou feudal baseados na coerção exercida pelo homem sobre o homem só podiam ser na sociedade moderna um estorvo pois não podiam mais organizar e regulari zar a vida industrial Mas os primeiros socialistas cometeram o erro de crer que esta nãosubordinação das funções econômicas a um poder social era caracte rística da sociedade moderna Em outras palavras constatando que os poderes antigos eram inadaptados à regularização necessária das funções econômicas concluíram que estas funções deviam ser abandonadas a si mesmas e que não precisavam permanecer sujeitas a um poder Esta é a tendência anárquica de certas doutrinas Para Durkheim temos aí um erro fundamental As funções econômicas precisam estar submetidas a um poder e este poder deve ser ao mesmo tempo político e moral Nosso sociólogo descobre esse poder político e moral neces sário para regularizar a vida econômica não no Estado ou na família mas nos grupos profissionais O curso sobre o socialismo data de 1896 No ano anterior Durkheim publi cara As regras do método sociológico Esse curso é portanto contemporâneo da primeira fase da carreira do sociólogo a que pertencem Da divisão do tra balho social e Le suicide Retoma as idéias expostas no fim do primeiro desses livros e que serão mais bem desenvolvidas no prefácio da segunda edição da sua tese A solução do problema social está na reconstituição dos grupos profissio nais as antigas corporações para que exerçam uma autoridade sobre os indiví duos e regularizem a vida econômica moralizandoa O Estado não é capaz de exercer essa função porque está muito distante dos indivíduos A família tornouse muito restrita e perdeu seu papel econômi co A atividade econômica se desenvolve daqui por diante fora da família o lo cal de trabalho não mais se confunde com o local de residência Nem o Estado e nem a família podem exercer um controle sobre a vida econômica Os grupos profissionais as corporações reconstituídas constituirão um intermediário en tre os indivíduos e o Estado pois serão dotados da autoridade social e moral necessária para restabelecer a disciplina sem a qual os homens se deixam levar pela infinidade de seus desejos Assim para Durkheim a sociologia pode trazer uma solução científica ao problema social e compreendese que ele possa ter tomado como ponto de par tida de suas pesquisas uma questão filosófica que comandava o problema polí tico e que tenha encontrado na sociologia tal como a entendia o substituto de uma doutrina socialista 342 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A conclusão do curso sobre o socialismo é interessante Durkheim escre ve que no início do século XIX três movimentos foram quase contemporâneos o surgimento da sociologia um esforço de renovação religiosa e o desenvolvi mento das doutrinas socialistas As doutrinas socialistas tendiam a uma reorganização da sociedade ou ain da a submeter a uma autoridade consciente as funções econômicas hoje difusas O movimento religioso visava a recriar crenças para tomar o lugar das religiões tradicionais que se estavam enfraquecendo A sociologia tinha como objetivo submeter os fatos sociais a um estudo científico inspirado pelo espírito das ciên cias naturais De acordo com Durkheim estes três movimentos estão interligados de muitas formas O socialismo a sociologia e a renovação religiosa coincidiram no princípio do século XIX porque são características da mesma crise O de senvolvimento da ciência que arruina ou pelo menos enfraquece as crenças religiosas tradicionais leva irresistivelmente o espírito científico a se debruçar sobre os fenômenos sociais O socialismo é a tomada de consciência da crise moral e religiosa e da desorganização social resultante do fato de que os anti gos poderes políticos e espirituais não se adaptam mais à natureza da socieda de industrial O socialismo propõe um problema de organização social O esforço de re novação religiosa é uma reação ao enfraquecimento das crenças tradicionais A sociologia é o desenvolvimento do espírito científico e também uma tentativa de encontrar resposta aos problemas enunciados pelo socialismo pelo enfraque cimento das crenças religiosas pelos esforços de renovação espiritual Infelizmente as últimas linhas do curso são ilegíveis mas o sentido da conclusão dessas lições é claro sociólogo Durkheim quer explicar cientifica mente as causas do movimento socialista mostrar o que há de verdade nas dou trinas socialistas indicar com base na ciência em que condições será possível solucionar o que chamamos de problema social Quanto à renovação religiosa não se poderia dizer que Durkheim como sociólogo pretendesse darlhe uma contribuição decisiva Ele não é como Auguste Comte o profeta de uma reli gião sociológica mas acredita que a ciência da sociedade ajuda a compreender de que modo as religiões nasceram das exigências sociais e da efervescência coletiva acha também que ela nos autoriza a crer que outras religiões serão criadas pelo mesmo processo em resposta às mesmas necessidades O que é necessário para que reine a ordem social é que o conjunto dos ho mens se contente com seu destino Mas o que é necessário para que eles se conten tem não é que tenham mais ou menos mas que estejam convencidos de que não lhes assiste o direito de ter mais Para isso é preciso necessariamente que haja uma auto ridade superior reconhecida que estabeleça o direito Porque abandonado exclu A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 343 sivamente à pressão das suas necessidades o indivíduo nunca admitirá que che gou ao limite extremo dos seus direitos Le socialisme p 291 Esse trecho é muito característico do pensamento de Durkheim que se apre senta como uma espécie de síntese apoiada na noção de consciência coletiva entre a antropologia de Hobbes e a moral kantiana do dever O imperativo cate górico da consciência coletiva limita os desejos infinitos do homem Segundo Durkheim portanto o socialismo enquanto movimento de idéias histórico é essencialmente uma reação à anarquia econômica Quer transferir para a área da consciência clara funções que estão hoje dispersas na sociedade Não se confunde com os protestos comunistas imemoriais dirigidos contra a injustiça e a desigualdade Nasce depois da Revolução Francesa no momento em que a inspiração política desta se transfere para a ordem econômica Contem porâneo da industrialização ele tem como objetivo verdadeiro a criação de ór gãos intermediários entre o indivíduo e o Estado dotados ao mesmo tempo de autoridade moral e de autoridade social Visto por Durkheim o tema central do socialismo é portanto a organiza ção e não a luta de classes Seu objetivo é a criação de grupos profissionais e não a transformação do estatuto da propriedade Assim definido o socialismo está ligado à sociologia Não que o sociólogo enquanto tal exprima opiniões políticas mas a sociedade ao estudar objetiva e cientificamente a realidade social deve interessarse pelo movimento socialista Ela explica então seu significado histórico e ao mesmo tempo sugere as refor mas graças às quais a inspiração socialista se manifestará em novas instituições Compreendese portanto o motivo por que Durkheim não se interessa pe los mecanismos propriamente políticos As instituições parlamentares as elei ções e os partidos constituem para ele um aspecto superficial da sociedade A este propósito continua a ser um discípulo de Auguste Comte Este último em bora na primeira parte da sua carreira tivesse aderido às idéias liberais afastou se das instituições representativas enquanto tais à medida que se desenvolveu seu pensamento Para ele os parlamentos eram instituições de espírito contemporâneo à fa se transitória situadas entre a idade metafísica a teologia e o positivismo Na sua representação da sociedade futura Auguste Comte dava muito pouca im portância às eleições aos partidos e parlamentos Ia tão longe neste sentido que por ocasião do golpe de Estado de Napoleão III não se indignou com a eliminação destes resíduos metafísicos na mesma época não tivera dúvida em apelar para o Czar de todas as Rússias dirigindolhe uma carta Estava pronto a aceitar que as reformas necessárias para introduzir a era positivista fossem executadas por um poder absoluto mesmo que este poder não estivesse nas mãos de um homem da tradição 344 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Seguramente Durkheim não ia tão longe no desprezo do parlamentarismo Contudo como afirma Mareei Mauss na introdução do curso sobre o socialis mo para ele as eleições e os parlamentos são fenômenos superficiais Durkheim acreditava na necessidade de reformas profundas de ordem so cial e moral Para ele estas reformas seriam antes paralisadas do que favorecidas pelos conflitos dos partidos e a desordem parlamentar Durkheim fez comentários sobre a democracia em particular em suas Le çons de sociologie Physique des moeurs et du droit publicadas em 1950 De finea porém de modo diferente da definição que hoje é clássica De fato não menciona na sua definição nem o sufrágio universal nem a pluralidade parti dária nem o parlamento A verdadeira característica do Estado democrático se ria a extensão maior da consciência governamental e comunicações mais estreitas entre esta consciência e a massa das consciências individuais Em ou tras palavras entre o Estado e o povo Deste ponto de vista a democracia nos parece uma forma política pela qual a sociedade chega a uma consciência mais pura de si mesma Um povo é tanto mais democrático quanto maior o papel da deliberação da reflexão e do espírito crítico na condução dos assuntos públicos E menos democrático na medida em que preponderam a inconsciência os hábitos inconfessados os sentimentos obs curos os preconceitos sem críticas Isto significa que a democracia não é uma des coberta do nosso século ou um renascimento é o caráter assumido cada vez mais pelas sociedades Se soubermos livrarnos das etiquetas vulgares que só fazem prejudicar a clareza das idéias veremos que a sociedade do século XVII era mais democrática do que a do século XVI mais democrática do que todas as socieda des de base feudal O feudalismo corresponde à dispersão da vida social é o máxi mo de obscuridade e de inconsciência que já se impôs às grandes sociedades atuais Ao centralizar cada vez mais as forças coletivas a monarquia estendendo suas ramificações em todos os sentidos e penetrando mais estreitamente as massas so ciais preparou o futuro da democracia e foi em si mesma um governo democráti co por comparação com o que existia até então O fato de que o chefe de Estado tivesse o título de rei é absolutamente secundário o que é preciso considerar são suas relações com o conjunto do país efetivamente foi o país que se incumbiu desde então da clareza das idéias sociais Portanto não é só há quarenta ou cin qüenta anos que a democracia se desenvolve plenamente seu fluxo é contínuo e vem desde o começo da história Pp 107108 Este texto ao mesmo tempo admirável e ingênuo revela em Durkheim a per sistência do que se poderia chamar de visão evolucionista As sociedades se têm tomado cada vez mais democráticas através dos séculos Contudo resta ainda en tender perfeitamente em que consiste a democracia A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 345 Para chegar a esta concepção de uma sociedade que evolui por si mesma no rumo de uma democracia cada vez mais real e completa é preciso não valo rizar as instituições propriamente políticas ser indiferente ao fato de o chefe de Estado ser ou não um rei designado pela condição do seu nascimento ou por uma eleição A definição da democracia que Durkheim nos propõe implica que a ordem política isto é do comando e da autoridade não passe de um fenômeno secun dário no conjunto da sociedade que a própria democracia que etimologica mente significa o poder do povo se caracterize não pela organização apropria da do comando mas por certos traços das funções governamentais do grau de comunicação entre a massa da população e os governantes Durkheim viveu numa época feliz anterior à guerra de 1914 durante a qual era possível acreditar que não houvesse outra forma de comunicação entre governantes e governados além daquela que merece as simpatias do observa dor Certamente não percebia que de acordo com sua definição de democracia um regime nacionalsocialista poderia em boa medida ser considerado uma democracia Num regime totalitário as funções difusas na sociedade se con centram efetivamente na pessoa dos que governam A função governamental tomase supremamente consciente As comunicações com a massa dos gover nados não se interrompem muito pelo contrário mesmo se essas comunica ções são estabelecidas por procedimentos que um sociólogo racionalista teria seguramente desaprovado E verdade que Durkheim introduzia na sua noção de consciência governa mental os conceitos de deliberação reflexão e espírito crítico Mas não é evi dente que a deliberação esteja ausente de um regime autoritário do tipo fascis ta quanto à reflexão ela pode estar a serviço de objetivos que condenamos Se o protótipo de uma sociedade nãodemocrática é o feudalismo o Estado total se não o Estado totalitário representa o extremo oposto Durkheim adotava uma definição mais sociológica do que política da de mocracia porque supunha que a consciência governamental e a comunicação entre o Estado e as massas só se pudessem efetivar por meio dos procedimen tos que observava na sociedade liberal e no regime representativo Não imagi nou que esta mesma concentração de poder e uma certa forma de comunica ção entre governantes e governados pudessem existir em conjunção com uma negação absoluta das formas representativas do poder e simultaneamente com um modo de governo fundamentalmente diverso Durkheim se preocupa a tal ponto em dar à função governamental uma ca pacidade de deliberação e reflexão que é pouco favorável ao sufrágio universal num só grau Nas suas Leçons de sociologie explica que a anarquia parlamen tar como a observada num país como a França adaptase mal às exigências das sociedades em que vivemos Sugere uma reforma segundo a qual introduziria 346 AS ETAPAS D O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mos o sufrágio em dois graus Este segundo ele teria o mérito de liberar os eleitos da pressão exercida sobre eles pelas paixões obscuras ou cegas das mas sas e por conseguinte de permitir aos governantes deliberar com mais liberdade sobre as necessidades coletivas Além disso a introdução do sufrágio em dois graus permite a Durkheim reencontrar na ordem política sua idéia favorita isto é a criação de corpos intermediários cujo protótipo é a corporação A maneira dos contrarevolucionários franceses da primeira metade do sé culo XIX Durkheim evoca a crise das sociedades modernas provocada pelo choque direto entre indivíduos isolados e um Estado todopoderoso Quer reintroduzir um elemento intermediário entre os indivíduos e o Estado quer que a sociedade seja mais orgânica evitando ao mesmo tempo o Estado total e os indivíduos dispersos e impotentes Contudo em vez de sonhar como os contrarevolucionários com a restauração dos corpos intermediários regionais nas províncias prefere as organi zações funcionais as corporações Há uma força das coisas contra a qual os melhores argumentos nada podem Enquanto os arranjos políticos põem os deputados e os governos de modo geral em contato imediato com os cidadãos é materialmente impossível que estes últi mos façam as leis Por isso os bons espíritos sempre preconizam a constituição das assembléias coletivas mediante sufrágio em dois ou mais graus Os intermediários intercalados liberam o governo E estes intermediários puderam ser instituídos sem que por isso se interrompesse a comunicação entre os conselhos governamentais Nào é necessário que sejâfti imediatos E preciso que a vida circule sem solução de continuidade entre o Estádo e os particulares e entre estes e o Estado Mas não há motivo para que tal circularão não se realize através dos órgãos interpostos Gra ças a esta interposição o Estado revelará mais de si próprio haverá uma distinção mais clara entre ele e o resto da sociedade e por isto será mais capaz de autonomia Nosso malestar político tem portanto a mesma causa do nosso malestar moral a inexistência de elementos secundários intercalados entre o Estado e o indivíduo Já vimos que esses grupos secundários são indispensáveis para que o Estado não oprima o indivíduo Percebemos agora que são necessários para que o Estado se li bere suficientemente do indivíduo Podese imaginar que sejam úteis para os dois lados pois de ambas as partes há interesse em que essas duas forças não estejam em contato direto embora sejam necessariamente ligadas Leçons de sociologie pp 115116 Os cursos de Durkheim sobre o problema da educação representam quanti tativa e qualitativamente uma parte importante da sua obra Quando lecionava na Sorbonne Durkheim teve no princípio uma cátedra de pedagogia e não de socio logia Estava obrigado portanto a dar todos os anos um curso de pedagogia Mas havia uma razão evidente para que se interessasse de qualquer forma pelo problema da educação a educação é em essência um fenômeno social e consiste em socializar os indivíduos Educar uma criança é preparála ou for A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 347 çála a participar de uma ou de várias comunidades Por isso como professor Durkheim encontrava seus temas favoritos quando estudava historicamente as diversas modalidades de educação praticadas na França A educação é um pro cesso social e cada sociedade tem as instituições pedagógicas que lhe convêm Assim como cada sociedade tem uma moral que de modo geral está ajustada às suas necessidades cada sociedade tem igualmente métodos de educação que respondem às necessidades coletivas As teorias da educação de Durkheim se inspiram nas mesmas concepções do homem e da sociedade que encontramos em todos os seus livros No ponto de partida Durkheim como Hobbes vê o homem dominado pelo egoísmo natu ral animado de desejos infinitos tendo necessidade portanto de ser discipli nado A educação consiste assim antes de mais nada em habituar os indivíduos a uma disciplina a qual deve ter e não pode deixar de ter um caráter autoritá rio Não se trata porém de uma autoridade brutal e material Por uma ambiva lência que sabemos hoje característica da própria sociedade a disciplina a que cada indivíduo está submetido é uma disciplina desejada e de certo modo ama da porque provém do grupo Pela ligação que o prende ao grupo o indivíduo descobre tanto a necessidade do devotamento quanto a da disciplina Formar os indivíduos tendo em vista sua integração na sociedade é tomálos conscien tes das normas que devem orientar a conduta de cada um e do valor imanente e transcendente das coletividades às quais cada um de nós pertence ou deverá pertencer Este primeiro tema da disciplina combina com o do individualismo As so ciedades modernas continuam a precisar da autoridade própria da consciência coletiva mas são elas ao mesmo tempo que fazem com que o indivíduo reali ze sua personalidade Nas sociedades modernas o objetivo da educação não é só disciplinar os indivíduos mas também promover o desenvolvimento da per sonalidade criar em cada um o senso da autonomia da reflexão e da escolha A fórmula poderia ser traduzida em termos kantianos é preciso submeter todas as pessoas à autoridade da lei que é essencialmente sòcial mesmo quando é moral mas esta sujeição à lei deve ser desejada por cada indivíduo porque só ela nos permite realizar nossa personalidade racional Encontramos assim o duplo caráter de todas as explicações sociológicas de Durkheim Considerada como meio ambiente a sociedade condiciona o siste ma de educação Todo sistema de educação exprime uma sociedade e respon de a certas exigências sociais mas tem igualmente a função de perpetuar os valores da coletividade Considerada como causa a estrutura social determina a estrutura do sistema de educação e este tem por objetivo associar os indivíduos à coletividade convencendoos a tomar como objeto do seu respeito ou do seu devotamento a própria sociedade 348 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Sociologia e filosofia Temse comentado muito que Durkheim expôs com o nome de sociologia uma filosofia social que foi mais filósofo do que sociólogo Incontestavelmente Durkheim tinha temperamento filosófico talvez mesmo religioso Falava sobre a sociologia com o entusiasmo moral de um profeta Por outro lado sua socio logia traduz uma visão a respeito do homem da sociedade moderna e da histó ria Poderseia alegar porém é o que farei pessoalmente que todos os gran des sistemas sociológicos implicam uma concepção sobre o homem e a histó ria Dizer que uma doutrina sociológica contém elementos filosóficos não é depreciála Deixarei de lado a visão histórica e a concepção sobre o homem já anali sadas em várias oportunidades Mas é preciso observar que a insistência de Durkheim em salientar a necessidade de um consenso assim como sua relati va negligência com respeito aos fatores do conflito estão vinculadas a certas tendências da sua filosofia A interpretação da sociedade moderna em termos de diferenciação social não é a única possível Para Max Weber a característica mais importante da sociedade moderna é a racionalização e não a diferencia ção cada um destes conceitos determina muitas conseqüências tanto do ponto de vista da interpretação científica dos fatos como do ângulo da apreciação mo ral e filosófica Dirigirei minhas observações críticas de preferência ao conceito de socie dade ou ainda à diversidade de acepções com que Durkheim emprega o termo sociedade Esta pluralidade de significados salienta a contradição interna ou pelo menos as tendências divergentes do seu pensamento Durante toda sua vida Durkheim quis ser um pensador positivista e um cientista um sociólogo capaz de estudar os fatos sociais como coisas de con siderálos do exterior e explicálos da mesma forma como os especialistas nas ciências da natureza explicam os fenômenos Há contudo no pensamento de Durkheim além de um positivismo constante e persistente a idéia de que a so ciedade é o lar do ideal e também o objeto real da fé moral e religiosa Evidentemente há equívocos e dificuldades que resultam desta dupla interpretação da sociedade A sociedade concreta observável não pode ser con fundida com a sociedade abrigo do ideal e menos ainda com a sociedade obje to das aspirações e crenças mais elevadas Se a crença mesmo religiosa tinha por objeto a adoração da sociedade concreta a filosofia de Durkheim estaria próxima de uma filosofia de espírito nacionalsocialista o que não é verdade Qualquer crítica de Durkheim precisa insistir nesta dualidade de sentido da própria noção de sociedade termo que pode ser interpretado de acordo com os textos ora como o meio ou conjunto social observado do exterior ora como a fonte do ideal objeto de respeito e amor A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 349 Na primeira acepção a sociedade é definida como o meio social e consi derada como aquilo que determina os outros fenômenos Mas o que é que determina o meio social Durkheim insiste com razão no fato de que as várias instituições família crime educação política moral religião são condiciona das pela organização da sociedade Cada tipo social tem seu tipo de família de educação de Estado de moral Mas tende a tomar o meio social como uma rea lidade total quando este é uma categoria analítica e não uma causa última Se em relação a uma instituição particular o meio social é uma causa sob um ou tro ponto de vista ele não é mais do que o conjunto das instituições que o meio social deveria explicar Durkheim se inclina a ver o meio social como uma realidade sui generis objetiva e materialmente definida quando na verdade ele é apenas uma repre sentação intelectual Esta tendência a realizar abstrações aparece na noção de corrente suicidógena Na verdade não há corrente suicidógena a não ser na imaginação e na terminologia de Durkheim A freqüência do suicídio é maior ou menor conforme as condições sociais e os grupos As taxas de suicídio reve lam certas características dos grupos mas não demonstram que os desespera dos que se matam são transportados por uma corrente coletiva Durkheim se exprime muitas vezes como se o meio social fosse suficien temente determinado para que se pudesse conhecendoo precisar as institui ções que lhe são necessárias Assim Durkheim parte da proposição cada sç ciedade tem sua moral o que todo o mundo pode admitir De fato a moral da sociedade romana difere concretamente da moral do Estado soviético ou do Estado liberal norteamericano É verdade que cada sociedade tem instituições crenças ou práticas morais que lhe são próprias e que caracterizam o tipo á que essas sociedades pertencem Contudo afirmar que as atitudes morais variam de um tipo social para outro não significa que conhecendo um tipo social seja possível determinar a moral que lhe convém Durkheim se exprime muitasve zes como se a sociedade fosse uma unidade fechada sobre si mesma exatamente definida Ora na verdade dentro de cada sociedade há conflitos sobre o que é um bem ou um mal As concepções morais estão em conflito e algumas delas terminam por se impor No entanto é bastante ingênuo imaginar que a ciência poderá um dia estabelecer qual a moral que se ajusta ao tipo da sociedade mo derna como se este tipo exigisse uma só concepção moral como se conhecen do a estrutura de uma sociedade pudéssemos dizer Eis aqui a moral de que esta sociedade precisa Em outras palavras é preciso substituir a noção de sociedade unidade com pleta e integral pela noção de grupos sociais que coexistem dentro de toda sociedade complexa Desde que se admite a pluralidade dos grupos sociais e o conflito das idéias morais percebese também que a ciência social será por mui to tempo e provavelmente para sempre incapaz de dizer aos moralistas e aos educadores qual é a moral que devem pregar em nome da ciência 350 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Há sem dúvida imperativos morais que são aceitos por todos os membros de uma sociedade pelo menos em abstrato Os temas mais interessantes po rém são justamente aqueles sobre os quais não há unanimidade E quando se abordam esses temas a sociologia é normalmente incapaz de indicar qual a moral que responde às necessidades da sociedade Pode ser que as mesmas organiza ções sociais se acomodem a diferentes concepções morais Além disso mesmo que o sociólogo demonstrasse que uma certa concepção moral favorece a esta bilidade da sociedade em que vivemos por que deveríamos em nome da moral colocar como objetivo último a estabilidade de nossa própria sociedade Uma das características dessa sociedade é que seus fundamentos sejam continua mente questionados A sociologia poderá explicar as razões desse questiona mento mas não pode responder às questões que os indivíduos se colocam e muito menos propor uma solução que seja científica Há duas razões para isso De um lado um mesmo tipo social pode ser com patível com várias soluções morais e vários regimes políticos Por outro lado o indivíduo que deseja julgar por si mesmo não está obrigado a se prender ao tipo social existente como à última palavra da aventura humana pode preferir outra moral mesmo que seja incompatível com a sociedade em que vivemos Penso que essa ilusão sobre a possibilidade de deduzir imperativos das aná lises de fato se explica em grande parte pela teoria da classificação dos tipos de sociedade Durkheim acreditava que era possível distribuir as diversas socie dades historicamente conhecidas seguindo uma única linha conforme seu grau de complexidade das sociedades unissegmentadas até as sociedades polisseg mentadas duplamente compostas Esta teoria na qual geralmente os intérpretes quase não insistem me pare ce ter largo alcance não na sociologia efetiva de Durkheim mas no seu sonho de uma forma acabada de ciência social A classificação das sociedades segundo seu grau de complexidade dava a Durkheim a possibilidade de uma distinção que prezava muito entre os fenô menos superficiais que deixava à história não sem um certo desprezo e os fenômenos profundos que pertenceriam essencialmente à sociologia Com efei to se admitirmos que um tipo social é definido pelo seu grau de complexida de ou pelo número de segmentos disporemos imediatamente de um critério para discernir o tipo a que pertence uma dada sociedade Se constatarmos que uma sociedade de tipo relativamente pouco complexo desenvolve de súbito uma indústria moderna como o Japão dirseá que essa sociedade a despeito do seu nível de desenvolvimento econômico continua a ser uma sociedade de tipo diferente mais primitivo do que o das sociedades ocidentais devido ao núme ro e à composição dos seus segmentos Em outras palavras Durkheim pensava ter encontrado o meio de separar os fenômenos fundamentais da estrutura ou da integração social que pertencem A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 35 ao campo da sociologia dos outros fenômenos mais superficiais como os regi mes políticos e até mesmo as instituições econômicas que pertencem ao cam po da ciência histórica e não obedecem a leis estritas Esta classificação das sociedades que leva à oposição do profundo e dc superficial do tipo social e dos fenômenos históricos é provocada a meu ver por uma ilusão positivista ou realista segundo a qual uma classificação das so ciedades e uma só é válida em termos absolutos Para examinar e criticar o segundo sentido durkheimiano de sociedade se gundo o qual ela é concebida como moradia do ideal objeto de respeito e ado ração vou servirme de um livrinho Sociologie et philosophie no qual estão reunidos três ensaios de Durkheim um artigo de 1898 Représentations indi viduelles et représentations collectives uma comunicação à Sociedade France sa de Filosofia de 1906 sobre a Détermination du fait moral e finalmente uma comunicação ao Congresso Internacional de Filosofia realizado em Bolo nha em 1911 sobre Jugements de réalité et jugements de valeur Nesta peque na obra estão enunciados com bastante vigor alguns dos temas essenciais de Durkheim O primeiro tema afirma que o homem só é homem na medida em que é civilizado na sociedade e pela sociedade Só a integração na sociedade faz do homem um animal diferente dos outros Escreve Durkheim Há muito que Rousseau demonstrou que se afastarmos do homem tudo o que lhe vem da sociedade ele ficará sendo apenas um ser reduzido à sensação e mais ou menos indiferenciado do animal Sem a lingua gem coisa eminentemente social as idéias gerais ou abstratas e conseqüente mente todas as funções mentais superiores são praticamente impossíveis Aban donado a si mesmo o indivíduo ficaria na dependência das forças físicas se lhe foi possível escapar libertarse e criar para si uma personalidade é porque pôde abrigarse sob uma força sui generis força intensa porque resulta da as sociação de todas as forças individuais mas força inteligente e moral capaz portanto de neutralizar as energias nãointeligentes e amorais da natureza a força coletiva O pensador teórico pode demonstrar que o homem tem direito à liberdade mas qualquer que seja o valor de tais demonstrações o certo é que esta liberdade só se torna uma realidade por meio da sociedade Sociologie et philosophie p 79 Assim sem a sociedade o homem seria um animal É por meio da socie dade que o homem animal chega à humanidade A isto é fácil de objetar dizen do que não basta que os animais vivam em grupo para que desenvolvam uma linguagem e as formas superiores de inteligência A sociedade é certamente uma condição necessária ao desenvolvimento da humanidade da espécie humana mas esta condição só é suficiente na medida em que o homem animal é dotado de capacidades que as outras espécies não possuem Linguagem compreensão e comunicação implicam evidentemente a existência de vários homens e 352 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO neste sentido uma sociedade Mas não basta que haja vários animais juntos pa ra haver linguagem compreensão e comunicação do mesmo tipo da sociedade humana Durkheim tem razão quando diz que a linguagem a moral e a religião são fenômenos sociais desde que esta proposição evidente banal e desprovida de interesse do modo como acabo de formular não seja interpretada como se acrescentássemos o advérbio essencialmente A moral a linguagem e a reli gião comportam uma dimensão social Todos os fatos humanos apresentam um aspecto social Isto não quer dizer contudo que estes fatos humanos sejam es sencialmente sociais ou que a significação verdadeira do fenômeno considera do resulte da sua dimensão social Esta observação se aplica particularmente à moral Segundo Durkheim só pode haver uma moral se a sociedade for em si mesma carregada de um valor superior aos indivíduos Chegamos portanto a esta conclusão se existe uma moral um sistema de de veres e de obrigações é preciso que a sociedade seja uma pessoa moral qualitati vamente distinta das pessoas individuais que compreende e de cuja síntese resul ta Podemos notar a analogia que há entre este raciocínio e aquele com o qual Kant demonstra a existência de Deus Kant postula Deus porque sem esta hipótese a moral não é inteligível Nós postulamos uma sociedade especificamente diferen te dos indivíduos porque de outro modo a moral perde seu objeto o dever fica sem um ponto de apoio Vale acrescentar que este postulado pode ser verificado facil mente pela experiência Embora já tenha tratado muitas vezes a questão nos meus livros não me seria difícil acrescentar novas razões àquelas que dei anteriormen te para justificar esta concepção De fato toda esta argumentação deriva de alguns temas muito simples corresponde a admitir que de acordo com a opinião corren te a moral só começa quando começam o desprendimento e o devotamento Mas este desprendimento porém só tem sentido se aquilo a que nos subordinamos tem mais valor do que nós indivíduos Ora no mundo da experiência só conheço uma coisa que tem realidade moral mais rica mais complexa do que a nossa é a cole tividade Enganome aliás há outra que poderia desempenhar o mesmo papel a divindade Entre Deus e a sociedade é preciso escolher Não examinarei aqui as razões que podem militar em favor de uma ou de outra solução ambas são coe rentes Acrescento que do meu ponto de vista esta escolha me deixa indiferente pois não vejo na divindade mais do que a sociedade transfigurada e pensada sim bolicamente Sociologie etphilosophie pp 7175 Assim entre Deus e a sociedade é preciso escolher Esta é uma frase bem característica da filosofia de Durkheim que mostra aquilo que realmente pen sava É necessário dizer que na minha opinião a escolha não parece necessária e que o raciocínio de Durkheim me parece pura e simplesmente um sofisma Sua idéia é a seguinte um ato só é moral se tem por objeto uma pessoa que não A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 353 a do seu autor Ora esta outra pessoa não vale mais do que eu Portanto para que possa haver uma moralidade é preciso que haja uma realidade que em si mesma valha mais do que eu ou do que qualquer outra pessoa Esta realidade superior em valor ao ator individual só pode ser Deus ou a sociedade e não há nenhuma diferença entre as duas hipóteses já que a religião de acordo com o estudo das formas elementares da vida religiosa não passa de adoração da so ciedade transfigurada O primeiro sofisma reside na análise do ato moral ou daquilo que consti tui um ato e que faz dele um ato moral Durkheim afirma que se um ato que tem por objeto minha própria pessoa não pode ser moral um ato que tenha outra pessoa por objeto também não poderia sêlo Ora a opinião corrente a que se refere Durkheim está pronta a admitir que o ato de devotamento que tem por objeto salvar a vida de outrem é moral mesmo que a pessoa salva não valha mais do que a que a salvou É o desprendimento e o devotamento a outrem que tor nam o ato moral não o valor realizado no objeto do ato Num romance célebre La carrière de Beauchamp George Meredith apre senta um homem Nevil Beauchamp que no fim do livro perde a vida salvan do a de uma criança11 O episódio ilustra o problema moral devemos admirar o homem superior que sacrifica sua vida para salvar alguém que lhe é inferior ou raciocinando pragmaticamente devemos considerar como absurdo que um homem superior se sacrifique em favor de um ser de valor inferior Deixo aos moralistas a preocupação de resolver este dilema o que não pro voca dúvidas porém é o fato de que a consciência comum não considera que o objeto de um ato deva ser em si mesmo superior à pessoa do seu autor para que o ato seja moral Um filósofo Hamelin perdeu sua vida lançandose à água para salvar alguém que se afogava embora ele próprio não soubesse nadar Um ato sublime e pragmaticamente absurdo De qualquer forma nosso julgamento não é determinado pelo valor da vida a salvar É também um sofisma acreditar que o valor que criamos com nossa conduta deva estar por assim dizer encarnado antecipadamente no real Durkheim toma não tanto a religião mas uma concepção vulgar da religião Quer que os valores superiores existam antecipadamente em Deus e que os valores realizados pelos homens dependam dos valores possuídos antecipadamente pelo ser transcenden te Duvido que seja assim numa interpretação apurada da religião De qualquer forma numa filosofia puramente humana os valores morais são uma criação gra tuita da humanidade O homem é uma espécie animal que alcança progressiva mente a humanidade Postular que haja um objeto valorizado em si mesmo é fal sear o sentido da religião ou o sentido da moralidade humana Um terceiro sofisma consiste em admitir que o termo sociedade é como tal definido e que se podem comparar e opor sociedade e divindade como duas coisas circunscritas e observáveis Não existe a sociedade ou uma sociedade 354 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO há grupos humanos Enquanto não definirmos precisamente a que grupos se aplica o conceito de sociedade permaneceremos na área de um equívoco peri goso Qual é a sociedade equivalente a Deus É a família É a classe social É a sociedade nacional É a humanidade Pelo menos na filosofia de Auguste Comte não havia dúvida sobre este ponto a sociedade objeto de adoração reli giosa era toda a humanidade não a humanidade concreta mas o que há de me lhor nos homens através dos séculos Se não estabelecermos com precisão o que entendemos por sociedade a concepção de Durkheim pode contra sua inten ção levar ou parecer levar às pseudoreligiões da nossa época à adoração de uma coletividade nacional pelos seus próprios membros Por razões múltiplas e evidentes Durkheim um racionalista e liberal teria detestado essas religiões seculares A própria possibilidade deste malentendido mostra o perigo de usar o conceito de sociedade sem uma especificação Essa metafísica da sociedade vicia infelizmente certas intuições profun das de Durkheim sobre as relações entre a ciência a moral e a religião por um lado e o contexto social por outro Segundo Durkheim as diferentes atividades do homem se diferenciaram progressivamente no curso da história Nas sociedades arcaicas a moral é inse parável da religião gradualmente no correr dos séculos as categorias do direi to da ciência da moral e da religião adquiriram sua autonomia Esta afirma ção é correta mas não implica que todas estas categorias tirem sua autoridade de sua origem social Quando Durkheim esboça uma teoria sociológica do co nhecimento e da moral essa teoria deveria resultar da análise objetiva das cir cunstâncias sociais que influenciam o desenvolvimento das categorias científi cas e das noções morais Mas a análise a meu ver é falseada pela convicção de Durkheim de que não há uma diferença fundamental entre ciência e moral en tre julgamento de valor e de fato Nos dois casos estaríamos diante de realida des essencialmente sociais nos dois casos a autoridade de tais julgamentos es taria fundamentada na própria sociedade Dois textos do artigo Jugements de fa it et jugements de valeur mostram a comparação e a quase equivalência dos dois tipos de julgamentos Um julgamento de valor exprime a relação entre uma coisa e um ideal Ora o ideal é dado como a coisa embora de maneira diferente E também uma reali dade a seu modo A relação expressa une assim dois termos dados como num jul gamento de existência Dirseá que os julgamentos de valor põem em jogo os ideais Mas com os julgamentos de realidade acontece o mesmo Isso porque tam bém os conceitos são construções do espírito partindo de ideais e não seria difí cil demonstrar que se trata mesmo de ideais coletivos já que só podem se consti tuir pela linguagem e através da linguagem que é no mais alto grau uma coisa coletiva Portanto os elementos do julgamento são nos dois casos os mesmos So ciologie et philosophie p 139 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 3i Uma frase deste texto é característica os conceitos são construções d espírito partindo dos ideais Se Durkheim quer dizer que as construções do es pírito não são realidades empíricas ou ideais ele tem evidentemente razão Ma se afirma que o conceito é semelhante a ideal no sentido moral do termo su proposição é a meu ver um puro sofisma Mais adiante Durkheim escreve Se todo julgamento opera com ideais estes são de diferentes espécies H aqueles cujo papel é exclusivamente exprimir as realidades a que se aplicam ex primilas tais como são Tratase dos conceitos propriamente ditos Há ainda outros cuja função pelo contrário é transfigurar as realidades a que estão associados São os ideais de valor Nos primeiros casos é o ideal que serve de símbolo à coisa para tornála assimilável pelo pensamento No segundo é a coisa que serve d símbolo ao ideal e o que o torna representável aos diferentes espíritos Natural mente os julgamentos diferem segundo os ideais que empregam Os primeiros se limitam a analisar a realidade e a traduzila tão fielmente quanto possível Os se gundos ao contrário denotam o novo aspecto de que ela se enriquece sob a ação do ideal Ibid pp 139140 Nesta aproximação dos julgamentos de fato e de valor encontramos sem pre a convicção de Durkheim de que a autoridade dos conceitos que tendem a exprimir a realidade ou dos ideais que tendem a informar a ação provém da própria sociedade Creio que neste ponto há um equívoco O estudo sociológico das origens dos conceitos não se confunde absolutamente com a teoria do conhecimento isto é com a análise das condições transcendentais da verdade As condições da verda de científica nada têm a ver com as circunstâncias do advento social da verdade é uma confusão sistemática imaginar que existe uma teoria sociológica do conhe cimento Existe sim uma teoria sociológica das condições nas quais se desen volve a ciência o que conhecemos hoje como uma sociologia do conhecimento a qual presta serviços à teoria do conhecimento mas não se confunde com ela Com relação aos julgamentos de valor o erro é outro Durkheim pretende que o ideal moral seja um ideal social que a sociedade confira seu valor à mo ral Isto a meu ver é outro equívoco Sem dúvida as concepções que podemos ter dos valores dependem de circunstâncias sociais No entanto o fato de que nos sos julgamentos de valor nos sejam sugeridos pelo meio social não prova que a finalidade da moral seja um determinado estado da sociedade Naturalmente quando pretendemos uma certa moralidade por implicação queremos uma certa sociedade ou uma certa modalidade de relações humanas Neste sentido há uma vontade social implicada em toda vontade moral A sociedade porém realidade empírica não determina o conteúdo da moral De duas uma ou che gamos indiretamente à idéia de que a sociedade considerada globalmente im 356 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO plica uma certa moralidade e neste caso surge a objeção que formulei ante riormente uma moral determinada e única não resulta necessariamente de uma determinada estrutura social pois em cada época e em cada sociedade há con flitos a respeito do conteúdo da moral Ou então entendemos que nossa vonta de moral é comandada por uma vontade social mas a afirmativa pode ser inver tida escolhemos um objetivo social ou político em função de um ideal moral O caráter filosófico da sociologia de Durkheim explica a violência das pai xões que levantou há pouco mais de meio século Na época em que lavrava na França o conflito entre o ensino religioso e o leigo a fórmula sociedade ou divindade incendiava os ânimos Nas escolas normais e nas escolas primárias a sociologia aparecia como a fundamentação da moral leiga substituindo a moral católica Quando Durkheim afirmava não encontrar diferença entre a di vindade e a sociedade esta afirmativa que para ele era respeitosa com relação à religião parecia a alguns atentatória aos valores religiosos Assim se explica por que hoje ainda o pensamento de Durkheim é interpretado de tantas manei ras diferentes Estas interpretações contraditórias são explicáveis se nos lembrarmos de uma dualidade que não é contradição e que encontramos no centro do pensa mento de Durkheim Este procura reconstituir o consenso social e reforçar a autoridade dos imperativos e dos interditos coletivos Para alguns críticos esta res tauração das normas sociais caracteriza um empreendimento conservador tal vez mesmo reacionário De fato as idéias de Durkheim evocam às vezes a segunda parte da carrei ra de Auguste Comte em que este se esforçou no Système de politique positi ve em fundar uma religião da humanidade Esta interpretação é verdadeira só em parte De acordo com Durkheim a norma social cuja autoridade convém re forçar não só autoriza o indivíduo a se realizar livremente mas considera dever de cada um a utilização do próprio julgamento e a afirmação da sua autonomia Durkheim quer estabilizar uma sociedade cujo princípio supremo é o respeito à pessoa humana e o desenvolvimento da autonomia individual Conforme se dê maior ênfase ao reforço das normas pessoais ou ao desenvolvimento da auto nomia individual a interpretação será conservadora ou ao contrário raciona lista e liberal A interpretação mais verdadeira é a que combina estas duas visões apa rentemente divergentes No centro do pensamento de Durkheim vejo o esforço dirigido para a demonstração de que o pensamento racionalista individualista e liberal é o termo provisoriamente último da evolução histórica Esta escola de pensamento que responde à estrutura das sociedades modernas deve ser apro vada contudo ela implica simultaneamente o risco de provocar a desagregação social e o fenômeno da anomia se as normas coletivas indispensáveis a qual quer consenso não forem reforçadas A GERAÇÃO DA PASSAGEM D O SÉCULO 35 Segundo as idéias de Durkheim a sociologia justifica o individualismo ra cionalista e prega ao mesmo tempo o respeito pelas normas coletivas Esta i a conclusão de uma investigação em cuja origem conforme Mareei Mauss noí recorda se coloca a velha questão das relações entre o indivíduo e a socieda de ou entre o individualismo e o socialismo Indicações biográficas 1858 15 de abril Nasce em Épinal Émile Durkheim de uma família judia em que houve vários rabinos Seu pai morre quando Durkheim ainda era muito pequeno Estuda no colégio de Épinal e depois se prepara em Paris no liceu LouisleGrand para o concurso de admissão à École Normale Supérieure Encontro com Jean Jaurès na pensão Jauflret Jaurès ingressa na Escola Normal um ano antes de Durkheim 1879 Durkheim começa a estudar na École Normale Supérieure entre seus professo res estão Fustel de Coulanges e de Boutroux 1882 Formado em filosofia Durkheim é nomeado professor em Sens e em Saint Quentin 18851886 Um ano de licença para estudar ciências sociais em Paris e na Alemanha com Wundt 18861887 De volta da Alemanha Durkheim publica na Revuephilosophique três arti gos Les études récentes de Science sociale La Science positive de la morale en Allemagne La philosophie dans les universités allemandes 1887 Durkheim é nomeado professor de pedagogia e de ciência social na Faculdade de Letras da Universidade de Bordeaux Tratase do primeiro curso de sociologia cria do em uma universidade francesa Espinas Hamelin e Rodier são seus colegas Charles Lalo e Léon Duguit seus alunos12 1888 Artigo sobre Suicídio e natalidade na Revue philosophique 1891 Durkheim dá um curso para os candidatos à diplomação em filosofia para estu dar com eles os grandes precursores da sociologia Aristóteles Montesquieu Comte 1893 Nota sobre a definição do socialismo na Revue philosophique Durkheim defende sua tese de doutoramento Da divisão do trabalho social jun tamente com La contribution de Montesquieu à la constitution de la Science sociale 1895 As regras do método sociológico 1896 O curso de sociologia de Durkheim é transformado numa cátedra Fundação de Lannée sociologique onde Durkheim publica La prohibition de 1inceste et ses origines La définition des phénomènes religieux etc A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 359 1897 Le suicide 1900 Artigo Sur le totémisme em Lannée sociologique Durkheim militante do lai cismo profundamente abalado pelo caso Dreyfus preocupase cada vez mais com o problema religioso 1902 Durkheim é nomeado suplente da cadeira de pedagogia da Sorbonne 1906 Nomeado titular da cadeira de pedagogia da Faculdade de Letras de Paris onde ensina paralelamente sociologia e pedagogia Comunicação à Sociedade Francesa de Filosofia sobre La détermination dufait moral 1909 Curso no Collège de France sobre As grandes doutrinas pedagógicas na França desde o século XVIII 1911 Comunicação ao Congresso de Filosofia de Bolonha sobre Jugements de réalité et jugements de valeur 1912 As formas elementares da vida religiosa 1913 Sua cadeira recebe o nome de Cátedra de Sociologia da Sorbonne Comuni cação à Sociedade Francesa de Filosofia sobre Le problème religieux et la dua lité de la nature humaine 1915 Durkheim perde seu único filho morto em combate na Salônica Publica dois livros inspirado pelas circunstâncias LAllemagne audessus de tout La menta lité allemande et la guerre e Qui a voulu la guerre Les origines de la guerre d après les documents diplomatiques 1917 Em 15 de novembro morre Durkheim em Paris Notas 1 Vêse como a divisão do trabalho nos aparece sob um aspecto diferente daque le que os economistas percebem Para estes a divisão do trabalho consiste essencial mente em produzir mais Para nós esta produtividade maior é apenas uma conseqüên cia necessária uma contrapartida do fenômeno Se nos especializamos não é para pro duzir mais mas para poder viver nas novas condições de existência que surgem De la division du travail social p 259 Foi Adam Smith que em sua célebre obra Pesquisa sobre a natureza e as causas da riqueza das nações 1776 colocou no primeiro plano da análise do sistema econô mico para explicar a produtividade o comércio e o emprego de bens de capital o fe nômeno da divisão do trabalho O estudo de Adam Smith que se encontra essencial mente nos três primeiros capítulos do livro I de A riqueza das nações começa por uma famosa descrição das operações sucessivas de uma fábrica de alfinetes cujos elemen tos foram provavelmente tirados da Grande encyclopédie de Diderot e DAlembert Co meça com esta frase Os maiores aperfeiçoamentos no poder produtivo do trabalho e a maior parte da habilidade da capacidade e da inteligência com a qual ele é dirigido e aplicado devemse ao que parece à divisão do trabalho No capítulo II A Smith procura o princípio que deu origem à divisão do trabalho Esta divisão do trabalho da qual decorrem tantas vantagens não deve ser vista na sua origem como a conseqüên cia de uma sabedoria humana que tenha previsto e que tenha tido como objetivo esta opulência geral que é o seu resultado ela é a conseqüência necessária embora lenta e gradual de uma certa tendência natural em todos os homens que não pretendem ter uma visão assim tão utilitarista é a tendência que os leva a traficar a trocar e negociar uma coisa com outra Adam Smith aliás não vê só vantagens na divisão do trabalho No capítulo V de sua obra ele denuncia os perigos do embrutecimento e do entorpecimen to das faculdades intelectuais que podem resultar de um trabalho parcializado e pede que o governo tome precauções para prevenir esse mal A este propósito vejase o arti go de Nathan Rosenberg Adam Smith and the division of labour two views or one Economica maio de 1965 2 A divisão do trabalho é portanto um resultado da luta pela vida mas é um resultado suavizado Graças à divisão do trabalho com efeito os rivais não são obriga A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 361 dos a se eliminarem mutuamente mas podem coexistir uns ao lado dos outros E tam bém à medida que ela se desenvolve proporciona a um grande número de indivíduos que nas sociedades mais homogêneas estariam condenados ao desaparecimento os meios de se manter e de sobreviver Entre muitos povos inferiores todo organismo mal formado devia perecer pois não tinha utilidade em nenhuma função Às vezes antecipan do e consagrando de certa forma os resultados da seleção natural condenavamse à mor te os recémnascidos débeis ou defeituosos e o próprio Aristóteles considerava natural esse costume Nas sociedades mais avançadas o que acontece é muito diferente Um indivíduo deficiente pode encontrar nos quadros complexos da nossa organização social um lugar onde lhe seja possível prestar serviços à coletividade Se seu defeito é apenas corporal e tem o cérebro sadio poderá dedicarse aos trabalhos de gabinete às funções especulativas Se o seu cérebro é deficiente deverá sem dúvida renunciar a enfrentar a grande concorrência intelectual mas a sociedade tem nos alvéolos secun dários da grande colmeia nichos bem pequenos que não deixarão que seja eliminado Da mesma forma entre as populações primitivas o inimigo vencido é morto mas onde as funções industriais estão separadas das funções militares ele sobreviverá ao lado do vencedor na qualidade de escravo De la division du travail social p 253 3 Gabriel Tarde 18431904 é autor de La criminalité comparée 1888 Les trans formations du droit 1893 Les lois de Vimitation 1890 La logique sociale 1895 Uopposition universelle 1897 e Uopinion de la foule 1901 Sua influência muito pequena na França é maior nos Estados Unidos O professor Paul Lazarsfeld se inte ressa muito por este autor e fala da sua vitória póstuma 4 O mesmo debate foi retomado recentemente por J D Douglas The Social Mea nings of Suicide Princeton Univ Press 1967 5 Maurice Halbwachs Les causes du suicide Paris Alcan 1930 6 A antropologia moderna modificou profundamente a teoria do totemismo até dissolver quase toda a sua realidade Sobre esta revolução ver o livro de Claude LéviStrauss Le totémisme d aujourdhui Paris PUF 1962 7 Bergson escreve A humanidade geme quase esmagada sob o peso dos pro gressos que fez Não sabe o quanto seu futuro depende dela Cabe a ela ver primeiro se quer continuar existindo Cabelhe perguntar depois se quer só existir ou fazer o es forço adicional necessário para que se realize até mesmo em nosso refratário planeta a função essencial do Universo que é uma máquina de fabricar deuses H Bergson Les deux sources de la morale et de la religion Paris PUF 1965 140f edição p 338 8 Jules Monnerot Les faits sociaux ne son pas des choses Paris Gallimard 1946 9 Eis como E Durkheim critica o método dedutivo e abstrato da economia clás sica A economia política tem como objeto diz Stuart Mill os fatos sociais que se pro duzem principal ou exclusivamente com base na aquisição de riquezas A matéria da economia política assim entendida não é feita de realidades que podem ser indicadas com o dedo mas sim de simples possíveis de puras concepções do espírito isto é fatos que o economista concebe como se referindo ao fim considerado e tais como os con cebe Ele empreende por exemplo o estudo daquilo que chama de produção De saída acredita poder enumerar os principais agentes que a tomam possível e passálos em revista Isso ooroue não descobriu sua existência observando as condições das auais 362 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO dependia a coisa estudada senão ele teria começado por expor as experiências que lhe permitiam tirar essa conclusão Se desde o início da pesquisa e em poucas palavras ele faz essa classificação é porque a obteve por simples análise lógica Parte da idéia de produção decompondoa verifica que ela implica logicamente as idéias de forças natu rais de trabalho de instrumento ou de capital a seguir dá a essas idéias derivadas o mesmo tipo de tratamento A mais fundamental das teorias econômicas a de valor é ni tidamente constituída segundo esse método Se o economista estudasse o valor como uma realidade deve ser estudada nós o veríamos primeiramente mostrar como a coisa indi cada com aquele nome pode ser identificada a seguir classificar as espécies procurar por induções metódicas as causas em virtude das quais elas variam comparar final mente esses diversos resultados para deduzir uma fórmula geral A teoria só poderá surgir portanto depois de se ter levado muito longe a ciência Em vez disso nós a en contramos desde o início O economista para fazer ciência contentase em se concen trar tomar consciência da idéia que tem de valor isto é de um objeto que pode ser tro cado pensa que ela implica a idéia de utilidade que esta implica a de raridade etc Cons trói sua definição com os produtos de sua análise Confirmaa sem dúvida com alguns exemplos Mas quando pensamos nos inúmeros fatos que uma tal teoria deve explicar como podemos atribuir algum valor demonstrativo aos fatos necessariamente raros que são citados desse modo ao acaso da sugestão Assim em economia política como em moral a parte da investigação científica é muito restrita e a da arte preponderante Les règles de la méthode sociologique pp 2426 Essa critica foi retomada pelos economistas discípulos de Durkheim como Simiand para contestar as construções da economia pura neoclássica das escolas austríacas ou walrassianas Tem a ver também com as críticas que o historicismo alemão já fazia à eco nomia clássica inglesa 10 Éric Weil Philosophie politique Paris Vrin 1956 11 Beauchamp s Career romance do escritor inglês George Meredith 1828 1909 publicado em 1875 A tradução francesa La carrière de Beauchamp foi publi cada por Gallimard em Paris 1928 12 Espinas 18441922 crítico de Spencer e seu introdutor na França teve uma influência sem dúvida determinante sobre a formação do pensamento sociológico de Durkheim Suas principais obras são Les sociétés animales 1877 Histoire des doc trines économiques 1892 La philosophie sociale au XVIII siècle 1898 Sobre o pen samento de Espinas consultese G Davy Sociologues d hier et d aujourdhui Paris PUF 1950 Bibliografia OBRAS DE DURKHEIM Há uma lista dos principais artigos publicados em revistas em Leçons de sociolo gie Physique des moeurs et du droit pp IXXI Aqui damos apenas uma relação das obras principais De la division du travail social Paris Alcan 1893 lf ed de acordo com a 7 edição Paris PUF 1960 que contém um prefácio acrescentado por Durkheim na 2 edi ção intitulado Quelques remarques sur les groupements professionnels UAllemagne audessus de tout La mentalité allemande et la guerre Paris Armand Colin 1915 La sociologie com M Mauss Paris Larousse 1915 in La Science française Édtica tion et sociologie Paris Alcan 1922 nova ed Paris PUF 1966 Uêduçation morale Paris Alcan 1923 La sociologie dans l enseignement secondaire Opinion de etc Paris Girard et Briè re 1900 La sociologie formaliste in A Cuvillier Ou va la sociologie française Paris Rivière 1953 Leçons de sociologie Physique des moeurs et du droit ed por H Nail Kubali e Geor ges Davy Paris PUF e Istambul 1950 Les formes élémentaires de la vie religieuse Le système totémique en Australie Paris Alcan 1912 as citações feitas referemse à 4 edição Paris PUF 1960 Les règles de la méthode sociologique Paris Alcan 1895 as citações que fiz desta obra referemse à 13 edição Paris PUF 1956 Le socialisme Sa définition ses débuts la doctrine saintsimonienne Paris Alcan 1928 Le suicide Étude de sociologie Paris Alcan 1897 as citações desta obra referemse à nova edição Paris PUF 1960 Lèvolution pédagogique en France I Des origines à la Renaissance II De la Renais sanc Paris Alcan 1938 2 vols 364 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Montesquieu et Rousseau précurseurs de la sociologie Paris Rivière 1953 tradução da tese secundária escrita em latim de 1892 Pragmatisme et sociologie Paris Vrin 1955 cursos de 19131914 reconstituídos por A Cuvillier segundo anotações de alunos Qui a voulu la guerre Les origines de la guerre d après les documents diplomatiques Paris Armand Colin 1915 Quid Secundatus politicae scientiae instituendae contulerit Burdigalae Goumouilhou 1892 trad in Revue d histoirepolitique et constitutionnelle 1937 com o título Mon tesquieu sa part dans la fondation des sciences politiques et de la Science des sociétés Sociologie etphilosophie Paris Alcan 1925 as citações feitas referemse à nova edi ção Paris PUF 1963 Sociologie et sciences sociales Paris Alcan 1909 in De la méthode dans les sciences OBRAS SOBRE DURKHEIM Aimard G Durkheim et la science économique Lapport de la sociologie à la théorie économique moderne Paris PUF 1962 Alpert H Émile Durkheim and his Sociology Nova York Columbia University Press 1939 Annales de VUniversité de Paris n 11960 Centenário do nascimento de É Durkheim textos de G Davy A Lalande R Aron G Gurvitch H LévyBruhl G Lebras Cl LéviStrauss Bouglé C Bilan de la sociologie française contemporaine Paris Alcan 1938 nova ed Davy G Sociologues d hier et d aujourdhui Paris PUF 1950 2 ed Duvignaud J Durkheim sa vie son oeuvre Paris PUF 1965 Fauconnet P The Durkheim school in France in Sociological Review 1927 Gurvitch G La vocation actuelle de la sociologie Paris PUF 11 1957 t II 2 ed 1963 Lacombe R La méthode sociologique de Durkheim Paris 1926 Parsons T The Structure of Social Action Nova York The Free Press 1949 Vialatoux J De Durkheim à Bergson Paris Bloud et Gay 1939 Wolff Kurt H et aí Émile Durkheim 18581917 A Collection of Essays Columbus Ohio University Press 1960 OBRAS EM PORTUGUÊS As regras do método sociológico e outros textos tradução da dra Margarida Garrido Esteves e outros São Paulo Abril Cultural 1973 Os Pensadores 33 As regras do método sociológico e outros textos tradução de Maria Isaura Pereira de Queirós 5f ed São Paulo Editora Nacional 1968 Educação e sociologia com um estudo da obra de Durkheim pelo prof Paul Fauconnet tradução do prof Lourenço Filho 7f ed São Paulo M elhoramentos 1967 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 365 O suicídio estudo de sociologia tradução de Luiz Cary Margarida Garrido J Vascon celos Esteves 2 ed Lisboa Presença Os grupos profissionais tradução e notas de A A Freitas e Silva Lisboa Inquérito 1940 Sociologia organizador José Albertino Rodrigues tradução de Tânia Natal Rodrigues São Paulo Ática 1978 textos selecionados Sociologia e filosofia prefácio de C Bouglé tradução de J M de Toledo Camargo Rio de Janeiro Forense 1970 Admux du malto Un nobre olliño de malta non máis 20 cm de altura 160 g de peso e madeira fresca Vilfredo Pareto O problema da organização social não pode ser resolvido com decla mações baseadas num ideal mais ou menos vago de justiça mas só atra vés de pesquisas científicas destinadas a encontrar o modo de ajustar os meios ao fim e para cada homem o de ajustar o esforço e o sofrimento à satisfação de forma que o mínimo de esforço e sofrimento leve o máxi mo de bemestar ao maior número possível de pessoas Les systèmes socialistes 1903 II p 169 Passando de Durkheim a Vilfredo Pareto mudamos de clima intelectual lin guagem e estilo Consideremos um momento a frase de Durkheim Entre Deus e a sociedade é preciso escolher Pareto ao ouvir esta fórmula teria começa do por sorrir lembrando o que explicou no seu Traité de sociologie générale embora as derivações se transformem rapidamente os resíduos são relativa mente constantes Na terminologia de Pareto os resíduos são os sentimentos ou a expressão dos sentimentos inscritos na natureza humana as derivações são os sistemas intelectuais de justificação pelos quais os indivíduos disfarçam suas paixões ou dão uma aparência de racionalidade a proposições ou condutas que não são racionais Na verdade o homem é um ser não racional que raciocina Embora raramente se comporte de modo lógico sempre quer fazer crer a seus semelhantes que seu comportamento é lógico A fórmula Deus ou a sociedade pareceria sem sentido a Pareto A noção de Deus não é uma noção lógicoexperimental ninguém pôde jamais observar Deus Por isso o cientista deve afastar idéias como essa que por definição esca pam aos únicos procedimentos científicos a observação a experimentação o raciocínio Quanto ao conceito de sociedade é um tipo de conceito igualmente confuso e equívoco A que realidade Durkheim quer se referir quando fala da sociedade A família o público de um curso uma universidade um país toda a humanidade Qual dessas diferentes realidades ele batiza de sociedade e por que pretende impor uma escolha entre um conceito equívoco uma vez que não é defi nido e uma noção transcendente que não tem lugar na ciência 368 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A ação nãológica e a ciência A compreensão do sistema de Pareto exige uma interpretação rigorosa dos conceitos de ação lógica e ação nãológica Precisamos portanto começar pelo estudo destas noções Para compreender o que é uma ação lógica o mais simples é observar o comportamento de um engenheiro ou de um especulador já que a sociologia de Pareto tem origem nas reflexões e decepções de um engenheiro e economista O engenheiro quando não se equivoca conduzse de modo lógico O economista quando não tem ilusões sobre seu saber pode compreender algu mas das condutas humanas A sociologia porém lida com homens que geralmen te não se conduzem nem como engenheiros nem como especuladores atentos O engenheiro que constrói uma ponte conhece o objetivo que pretende al cançar Estudou a resistência dos materiais e tem condições de calcular a rela ção entre estes meios e os fins propostos Há uma correspondência entre a relação meiosfim tal como ele a concebe e a relação meiosfim tal como ocorre ob jetivamente na realidade O comportamento do especulador protótipo do agente econômico tem as mesmas características Seu objetivo é bem preciso ganhar dinheiro Estabele ce uma relação lógica entre os meios que emprega adquirir valores no mo mento em que eles são baratos e o objetivo que quer atingir aumentar seu capital Se sua previsão for correta os acontecimentos reproduzirão objetiva mente a sucessão de meios e fins tal como a imaginara O caso do especulador não é naturalmente tão puro quanto o do engenhei ro Há uma defasagem temporal entre a relação meiosfim concebida e a rela ção efetiva na realidade Supondo contudo que as previsões do especulador sejam confirmadas pelos fatos encontraremos uma correspondência entre a relação meiosfim concebida e a mesma relação tal como se efetivou A ligação lógica entre os meios e o fim existe na consciência do ator e na realidade obje tiva e as duas relações objetiva e subjetiva se correspondem mutuamente Esta análise das experiências do engenheiro e do especulador mostra o que é uma conduta lógica Para que um comportamento seja lógico é preciso que a relação meiosfim na realidade objetiva corresponda à relação meiosfim na consciência do ator Uma vez por todas chamaremos de ações lógicas as operações que estão logicamente associadas a seus objetivos não só com relação ao sujeito que as efe tua mas também com relação àqueles que possuem um conhecimento mais amplo isto é ações que têm subjetiva e objetivamente o sentido acima explicado As outras ações serão ditas nãológicas o que não significa que elas sejam ilógicas Traité de sociologie générale 150 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 369 Em outras palavras pertencem à categoria das ações nãológicas as que subjetiva ou objetivamente não apresentem um vínculo lógico Podese elaborar deste modo um quadro das ações humanas Gêneros e espécies As ações têm fim lógico Objetivamente Subjetivamente 1 classe ações lógicas 0 fim objetivo é idêntico ao fim subjetivo sim sim T classe ações nãológicas 0 fim objetivo é diferente do fina subjetivo 1 gênero não não 2 nao sim 3 sim não 4 sim sim Espécies do 3 e do 4 gênero 34 0 sujeito aceitaria o fim objetivo se o conhecesse 34 0 sujeito não aceitaria o fim objetivo se o conhe cesse Traité de sociologie générale pp 6768 Qual a significação de cada um destes gêneros de ações nãológicas O gênero nãonão significa que a ação não é lógica isto é que os meios não estão associados aos fins nem na realidade nem na consciência Os meios não produzem nenhum resultado que se possa considerar ligado logicamente a eles e por outro lado o ator não chega a conceber um objetivo ou uma relação entre os meios e o objetivo visado O gênero nãonão é raro porque o homem é um ser que raciocina Por mais absurdos que sejam seus atos sempre se esfor ça por darlhes um objetivo Os homens têm uma tendência muito pronunciada para dar um verniz lógico a suas ações estas recaem quase todas no segundo e no quarto gênero Muitas das ações impostas pela cortesia ou pelo costume poderiam pertencer ao primeiro gênero Freqüentemente porém os homens in vocam um motivo qualquer para justificar suas ações o que as transfere para o segundo gênero Traité de sociologie générale 154 Numa enumeração completa porém é preciso reconhecer a classe nãonão como um gênero possível 370 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO O segundo gênero é ao contrário extremamente difundido e comporta inumeráveis exemplos O ato neste caso não está vinculado logicamente ao seu resultado mas o ator imagina erroneamente que os meios de que se utiliza são de molde a provocar o fim desejado Pertence a este gênero a conduta dos povos que quando desejam a chuva oferecem sacrifícios aos deuses convencidos de que suas preces são eficazes para esse fim Neste caso há subjetivamente uma relação meiosfim embora objetivamente tal relação seja inexistente O terceiro gênero é o das ações que têm um resultado vinculado logica mente aos meios empregados mas sem que o ator conceba a relação meiosfim Os exemplos são igualmente numerosos Os atos reflexos pertencem a esta ca tegoria Se fecho as pálpebras no momento em que meus olhos são ameaçados pela poeira este ato é objetivamente lógico mas não o é subjetivamente Não pensei antes e não penso no momento em que ajo na relação entre os meios empregados e o fim que atinjo Os comportamentos instintivos ou animais são quase sempre adaptados mas não são lógicos se admitirmos pelo menos que os animais que se conduzem de acordo com a necessidade de sua sobrevivência não pensam na relação entre os meios que empregam e os fins que alcançam O quarto gênero é o dos atos que têm resultado associado logicamente aos meios empregados e cujo autor subjetivamente concebe uma certa relação entre os meios e os fins sem que os resultados objetivos correspondam aos re sultados subjetivos Aqui Pareto pensa essencialmente no comportamento dos benfeitores da humanidade pacifistas ou revolucionários que pretendem mo dificar a sociedade existente e corrigir seus vícios Assim os revolucionários bolchevistas dirão que querem tomar o poder para garantir a liberdade do povo Depois de realizar uma revolução pela violência são levados por um processo irresistível a estabelecer um regime autoritário Neste caso há uma relação objetiva entre a conduta e os seus resultados e uma relação subjetiva entre a utopia de uma sociedade sem classes e os atos revolucionários Mas o que os homens fazem não corresponde ao que desejavam fazer Os objetivos que alme javam alcançar não podem ser alcançados pelos meios que utilizam Os meios que utilizam levam logicamente a determinados resultados mas há uma discordân cia objetiva entre os resultados objetivos e os resultados subjetivos Pareto dá também exemplos tirados da vida econômica Numa situação de livre concor rência os empresários executam em parte ações nãológicas Esforçandose por reduzir os preços de custo eles obtêm sem querer por exemplo a redução dos preços de venda pois a concorrência traz sempre a igualdade desses dois preços Este quarto gênero comporta subcategorias segundo a aceitação ou não aceitação por parte dos atores dos objetivos que eles de fato atingem caso es tes lhes fossem mostrados antecipadamente Supondo que Lenin tivesse conhe cido antecipadamente as conseqüências inevitáveis de uma revolução socialis A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 371 ta num país ainda não industrializado preferiria ter renunciado a esta revolu ção ou teria aceito a instalação de um Estado totalitário por um longo período de transição As ações nãológicas não são necessariamente ilógicas Na terceira catego ria a dos simnão a ação está eventualmente adaptada às circunstâncias fal tando apenas a consciência da relação meiosfim O estudo destes quatro gêneros de ação nãológica constitui o objeto da primeira parte do Traité de sociologie générale as ações lógicas são reservadas à segunda parte só intervindo quando Pareto substitui o método analítico pelo sintético Esta classificação dos tipos de ação não deixa de criar algumas dificuldades Sem pretender abordálas desde já convém no entanto salientar duas questões em que medida todas as ações humanas podem ser analisadas tomando como referência só a relação meiosfim Se o caráter lógico e nãológico se aplica unicamente à relação entre meios e fins estes últimos podem deixar de ser nãológicos O fato de que a escolha dos fins não possa ser lógica não é uma conseqüência da definição do caráter lógico das ações Assim Pareto define a sociologia em referência e oposição à economia A economia considera essencialmente as ações lógicas enquanto a sociologia trata sobretudo das ações nãológicas Podese portanto estudar o pensamento sociológico de Pareto exclusivamente na base do Traité de sociologie générale Porém uma análise completa do pensamento desse autor exigiria o estudo de seus livros de economia isto é do Cours d économie politique e do Manuel d économie politique Dois gêneros de ações nãológicas são particularmente importantes para o sociólogo O primeiro é o n 2 definido pelos termos nãosim Este gênero agrupa as ações nãológicas que não têm um fim objetivo mas possuem finalidade sub jetiva abrangendo a maioria das condutas rituais ou simbólicas O navegador que dirige suas orações a Poseidon antes de se fazer áo mar não está realizan do um ato que tenha influência na sua navegação mas imagina com base em suas crenças que esse ato terá conseqüências conformes ao que deseja De modo geral podese dizer que todas as ações do tipo religioso isto é todas as ações que se orientam em função de um emblema ou de um símbolo de realidade sagrada pertencem ao gênero n 2 Assim como Durkheim em As formas ele mentares da vida religiosa Pareto estuda os atos rituais começando porém por incluílos na classe das ações nãológicas O segundo gênero importante é o nP 4 que se define pelos termos simsim mas sem coincidência entre o subjetivo e o objetivo Este gênero abrange todas as condutas comandadas por erros científicos O meio empregado produz um resultado efetivo no plano da realidade e foi relacionado com os fihs na cons 372 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ciência do ator mas o que acontece não reflete o que deveria ocorrer de con formidade com as esperanças ou previsões do sujeito que age O erro leva à nãocoincidência da relação objetiva e da relação subjetiva A este gênero per tencem igualmente todas as condutas ditadas por ilusões notadamente as dos políticos e intelectuais Quando os idealistas imaginam criar uma sociedade sem classes e sem exploração ou uma comunidade nacional homogênea os resul tados das suas ações diferem das suas ideologias e há uma nãocoincidência en tre as esperanças alimentadas dos atores e as conseqüências dos seus atos em bora tanto no plano da realidade como no da consciência os meios tenham sido relacionados com os fins Na primeira parte do Traité de sociologie générale Pareto se propõe por tanto a estudar logicamente as ações nãológicas fazendo provisoriamente abs tração das condutas lógicas que voltará a encontrar na segunda parte cujo objetivo é recompor o conjunto social para chegar a uma explicação sintética do conjunto da sociedade e dos movimentos que nela se produzem Fora dessas definições abstratas a distinção fundamental entre as ações ló gicas e as ações nãológicas repousa num critério simples e essencial embora Pareto não a acentue a coincidência entre a relação objetiva e a relação subje tiva dos meios e dos fins implica que a conduta seja determinada pelo raciocí nio Em conseqüência podese aceitar a título provisório que as ações lógicas sejam aquelas que são motivadas pelo raciocínio O ator pensou no que queria fazer no objetivo que pretendia alcançar e esses raciocínios aos quais ele obe deceu constituem o móvel do seu comportamento Por outro lado todas as con dutas nãológicas comportam num certo grau uma motivação pelo sentimento que pode ser definido da forma mais geral como todo estado de espírito dife rente do raciocínio lógico Portanto o objetivo da primeira parte do Traité de sociologie générale é es tudar logicamente as ações nãológicas uma tarefa que não é fácil Como estu dar logicamente as ações nãológicas Pareto estaria pronto a dizer que a maio ria dos livros de sociologia são análises nãológicas de condutas nãológicas ou estudos de condutas nãológicas com a intenção consciente de fazêlas passar por lógicas O objetivo de Pareto é estudar as condutas nãológicas como real mente são A expressão estudo lógico da conduta nãológica não é de Pareto Em bora tenha tido consciência do risco de estudar de modo nãológico as condutas nãológicas Pareto não se explicou de forma tão voluntariamente irônica como o fiz limitandose a dizer que pretendia estudar cientificamente as condutas não lógicas Em que consiste esse estudo A resposta a esta questão pressupõe uma concepção da ciência que Pareto denomina de lógicoexperimental A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 373 O objetivo do sociólogo ao estudar as condutas nãológicas é a verdade não a utilidade nada indica que haja coincidência entre estas duas noções Antes de se empenhar numa batalha os generais romanos consultavam as entranhas de animais sacrificados aos deuses Esta conduta era nãológica pelo menos na medida em que acreditavam que as entranhas lhes revelariam anteci padamente o resultado da batalha Contudo se as entranhas autorizavam uma previsão favorável e se esta previsão era comunicada aos soldados estes adqui riam confiança suplementar na vitória É excelente para o moral dos comba tentes saber que no fim serão vencedores Exemplifico como o fez Pareto com a história romana para dar uma ilustração despojada de atualidade e pai xão mas sob esse aspecto vivemos numa época não muito diferente Em vez de interrogar as entranhas das vítimas interrogamse os mistérios do futuro histó rico Nos dois casos o resultado é o mesmo e os chefes podem proclamar No fim tudo irá bem vós sereis vencedores É útil que os soldados creiam na ver dade dos augúrios ou que os militantes creiam na vitória final da causa A ciência lógicoexperimental que mostra a semelhança dos diversos mo dos de ver um futuro que se ignora é professora de ceticismo Indubitavelmen te é contrário à utilidade social confessar que não se conhece o futuro Por outro lado o estudo lógicoexperimental das condutas nãológicas pode ser contrário também à utilidade de determinado grupo ou mesmo à utilidade do conjunto da sociedade Pareto escreve se acreditasse que meu Traité pudesse ter mui tos leitores não o escreveria De fato na medida em que revela a realidade fun damental o Traité prejudica o equilíbrio social que exige um conjunto de sen timentos que este estudo demonstra que são nãológicos se não mesmo ilógi cos Assim o estudo lógicoexperimental das condutas nãológicas tem por objetivo exclusivo a verdade e não se deve criticálo por não ser útil Associar a utilidade social de uma teoria à sua verdade experimental é um destes princí pios a priori que rejeitamos Estas duas coisas estão ou não sempre unidas É uma questão a que só se pode responder pela observação dos fatos E em segui da encontraremos a prova de que em certos casos podem ser inteiramente in dependentes Peço portanto ao leitor que tenha sempre presente no espírito que quando afirmo o absurdo de uma doutrina não pretendo sustentar implicita mente que ela seja nociva à sociedade Pelo contrário pode ser muito vantajo sa E viceversa quando afirmo a utilidade de uma teoria para a sociedade não quero insinuar em absoluto que ela seja experimentalmente verdadeira Em suma a mesma doutrina pode ser rejeitada do ponto de vista experimental e aceita do ponto de vista da utilidade social ou ao contrário Traité de sociologie géné rale 72 e 73 Há uma oposição marcante com a concepção de Durkheim que por sua vez escreveu que se a sociologia não permitisse aprimorar a sociedade não teria nenhum vàkr Abs olhos de Pareto uma proposição deste tipo é umacon 374 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO fusão entre o objeto científico que é exclusivamente a verdade e o objeto da ação social que é a utilidade sem que haja coincidência necessária entre esses dois objetos Em segundo lugar a ciência lógicoexperimental tem o dever de afastar todas as noções extra ou metaempíricas Todos os termos empregados devem referirse a fatos observados ou observáveis todos os conceitos devem ser defi nidos com relação a realidades constatadas diretamente ou suscetíveis de serem criadas pela experimentação As noções de ordem religiosa e os conceitos que não pertencem à ordem dos fenômenos não têm lugar portanto na ciência lógi coexperimental Todos os conceitos filosóficos ou de essência devem ser excluídos rigorosamente Muitos cientistas ou pseudocientistas se perguntam incessantemente o que é o progresso ou o verdadeiro socialismo ou a igualda de autêntica Essas discussões sobre palavras não constituem uma ciência A natureza da definição científica fica evidente quando distinguimos as ações ló gicas das ações nãológicas Para Pareto discutimos em vão a questão de saber se seria melhor chamar as ações lógicas de ações racionais e as nãológicas de ações nãoracionais Os termos que usamos não têm importância em si mesmos Se não fosse por uma questão de comodidade poderíamos dizer X em lugar de ação lógica e Y em vez de ação nãológica Por outro lado dissertar sobre o conceito de classe é um exercício sem significação científica Podemos inda gar diante de uma definição de classe em que medida um fenômeno assim definido pode ser encontrado nesta ou naquela sociedade mas importa pouco o sentido dadò ao termo classe ou à palavra estrutura As definições são deci sórias desde que as defina rigorosamente cada um dá às palavras que empre ga o sentido que deseja A ciência não tem lugar para nada que ultrapasse a experiência As defini ções essenciais devem ser eliminadas da ciência lógicoexperimental que se utiliza de conceitos claramente definidos com relação a fenômenos observá veis As discussões científicas devem referirse sempre à realidade e não ao sentido que damos às palavras Isto não quer dizer naturalmente que a ciência seja uma pura e simples reprodução dos fenômenos que observamos de fora Muito pelo contrário a ciência implica uma atividade do espírito que é uma recriação cujo caráter pri mordial é a simplificação O mundo humano assim como o mundo natural em que vivemos é por demais rico e complexo para que a ciência possa apreen dêlo inteiramente de uma só vez Ela começa sempre com simplificações observa e retém certos aspectos de determinados fenômenos que designa por meio de conceitos rigorosos em seguida estabelece relações entre os fenôme nos cobertos por tais conceitos esforçandose progressivamente por combinar suas abordagens simplificadas de modo a recompor a realidade complexa Por exemplo no Traité de sociologie générale partese da definição simplificada A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 375 das ações nãológicas para chegar a uma classificação e analisar os fenômenos que a explicam O resultado é uma tipologia das causas das ações nãológicas que será necessariamente simples e grosseira com relação à realidade complexa Assim como a mecânica racional é uma explicação de um universo abstrato a teoria econômica pura é uma interpretação esquemática dos sistemas econômi cos partindo porém destes modelos simples e fazendoos cada vez mais com plexos podemos chegar à realidade Nunca encontraremos a realidade inteira em toda a sua complexidade A ciência é essencialmente inacabada e os que acreditam que um dia ela chegará a ensinar o equivalente ao que ensinava a reli gião são vítimas de uma ilusão Os sociólogos que como Durkheim pensam que a sociologia científica poderá postular os fundamentos de uma moral subs tituindo os dogmas religiosos são prisioneiros de uma modalidade de pensa mento nãológica sem que disso tenham consciência Atribuem à ciência ca racterísticas que ela não terá nunca porque será sempre parcial nunca norma tiva A ciência será sempre um conjunto de proposições de fato ou de causali dade do qual nunca poderemos deduzir a afirmativa de que devemos condu zirnos de uma certa maneira Podemos demonstrar o quanto quisermos que esta ou aquela seqüência regular é observada na realidade dessas correlações regulares não se pode deduzir uma moral qualquer que seja A ciência não po de satisfazer a necessidade infinita de desenvolvimentos pseudológicos sentida pelo homem Ela só pode relacionar os fatos uns com os outros por conseguin te ela sempre se detém em um fato Traité de sociologie générale 973 A concepção da ciência experimental de Pareto reduz muito as ambições da sociologia e nos situa num universo onde a fórmula é preciso escolher sociedade ou divindade não seria o resultado da ciência mas seu objeto na medida em que esta se interessa pelo conjunto das condutas nãológicas Este aspecto do pensamento de Pareto que aliás se compraz em ironizar os traba lhos dos seus colegas explica a extrema impopularidade de que tem sido víti ma este autor entre a maioria dos sociólogos não só enquanto vivia mas depois da sua morte Conheci entre os meus mestres e conheço entre meus colegas inú meros sociólogos que não podem ouvir mencionar o nome de Pareto sem mani festar uma indignação cujo ímpeto resiste ao tempo Para Pareto a ciência é lógicoexperimental Estes dois termos devem ser interpretados rigorosamente Lógico significa que é legítimo deduzir de defini ções enunciadas ou de relações observadas as conseqüências resultantes de pre missas O adjetivo experimental abrange ao mesmo tempo a observação no sen tido restrito do termo e a experimentação A ciência é experimental porque se aplica ao real e se refere a ele como origem e critério de todas as proposições Uma proposição que não comporta demonstração ou refutação pela experiên cia não é científica Como meu mestre Léon Brunschvicg gostava de dizer uma proposicãos não pode ser demonstrada não pode ser verdadeira 376 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Esta idéia é evidente embora não seja percebida por muitos espíritos que vêem na impossibilidade de refutar suas afirmações uma prova da verdade destas Muito pelo contrário uma proposição vaga e indefinida a ponto de não poder ser refutada por nenhuma experiência pode despertar sentimentos satisfazer ou indignar mas não é científica Para que seja científica é preciso que seja atingível pela única crítica válida a dos raciocínios e dos fatos A teoria mar xista da maisvalia deve sua popularidade ao fato de ser irrefutável Em suma a ciência lógicoexperimental tem por objetivo descobrir as rela ções regulares existentes entre os fenômenos isto é na linguagem de Pareto as uniformidades experimentais Estas uniformidades experimentais não são em si mesmas necessárias Os filósofos já discutiram longamente o caráter de vínculo causai que liga dois fenômenos Neste particular Pareto pertence à posteridade de Hume Para ele as relações singulares entre os fenômenos não comportam a necessidade intrínseca da causalidade A regularidade observada é mais ou menos provável de acordo com a natureza dos fenômenos interligados e o nú mero das circunstâncias em que foram observados O problema da necessidade não se coloca porque o objetivo da ciência é muito modestamente constatar uniformidades Pareto resume o caminho que pretende seguir em algumas proposições que constituem as regras da ciência lógicoexperimental 1 Não pretendemos de forma alguma ocuparnos da verdade intrínseca de nenhuma religião fé crença metafísica moral ou de outra natureza Não é que estejamos imbuídos do menor desprezo por essas coisas mas apenas elas saem dos limites em que pretendemos permanecer As religiões crenças etc serão obser vadas somente do exterior enquanto fatos sociais que são sem levar em conta seu valor intrínseco A proposição A deve ser igual a B em virtude de um princípio superior à experiência escapa portanto inteiramente a nosso exame mas estudamos como tal crença nasceu como se desenvolveu e em que relação com os outros fatos sociais ela se encontra 2 O domínio em que trabalhamos não é portanto só o da experiência e da observação Usamos estes termos no sentido que têm nas ciências naturais como a astronomia e a química a fisiologia etc e não para indicar o que se entende por experiência íntima cristã e que com uma simples mudança de nome ressuscita a autoobservação dos antigos metafísicos Consideramos esta autoobservação como um fato exterior nós o estudamos pois como tal não como um sentimen to que nos é próprio 4 Partimos de fatos para compor teorias e procuramos sempre nos afastar o menos possível dos fatos Ignoramos o que é a essência das coisas e não nos preocupamos porque tal estudo escapa a nosso domínio Procuramos as uniformi dades apresentadas pelos fatos dandolhes o nome de leis mas esses fatos não estão sujeitos às leis ao contrário As leis não são n e ce ssá ria s são hipóteses que A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 377 servem para resumir um número maior ou menor de fatos e que têm validade en quanto não são substituídas por hipóteses melhores 5 Todas as nossas investigações são portanto contingentes relativas e dão resultados que são apenas mais ou menos prováveis na melhor das hipóteses muito prováveis Todas as nossas proposições inclusive as de pura lógica devem ser entendidas com a restrição dentro dos limites do tempo e da experiência que nos são conhecidos 6 Raciocinamos exclusivamente sobre coisas não sobre os sentimentos que seus nomes despertam em nós Estes sentimentos são estudados como simples fa tos exteriores Por isto nos recusamos por exemplo a discutir se um ato A é justo nãojusto moral ou imoral se não se deixou bem claro inicialmente a que se quer fazer corresponder tais termos Mas estudaremos como um fato exterior o que os habitantes de um determinado país pertencentes a uma determinada classe social numa determinada época queriam dizer quando afirmavam que A era um ato justo ou moral 1 Buscamos provas para nossas proposições não só na experiência e na ob servação como também nas suas conseqüências lógicas excluindo toda prova fei ta por evidência interna por acordo de sentimentos ou ditada pela consciência 8 Por outro lado empregaremos unicamente termos correspondentes a coi sas empenhando todos os nossos cuidados e nosso zelo em darlhes uma signi ficação tão precisa quanto possível 9 Procedemos por aproximações sucessivas isto é considerando em pri meiro lugar o fenômeno no seu conjunto e negligenciando voluntariamente os de talhes que levaremos em conta nas aproximações seguintes Traité de sociologie générale 69 A ciência lógicoexperimental sendo assim definida em suas grandes linhas colocase logicamente o problema para usar a terminologia de Pareto de ligar a concepção das ações lógicas e nãológicas a esta definição Curiosamente o próprio Pareto não estabelece uma relação explícita entre sua teoria das ações nãológicas e sua teoria da ciência Mas não é difícil esclarecer tal relação As ações lógicas são em sua maioria determinadas pelo saber científico isto é de acordo com uniformidades estabelecidas graças à ciência lógicoexpe rimental A ação lógica é aquela cuja relação subjetiva meiofim corresponde à relação objetiva meiofim Ora como este paralelismo poderia ser assegurado senão porque conhecemos as conseqüências que um certo ato acarreta os efei tos de uma determinada causa ou ainda em outros termos as uniformidades estabelecidas pela ciência lógicoexperimental A uniformidade significa que o fenômeno B sucede regularmente ao fenômeno A Se queremos agir logica mente precisamos saber quais serão as conseqüências do ato A que executa mos e é a ciência que nos dirá que o ato A leva à conseqüência B A ciência não cobre portanto o conjunto das condutas lógicas O compor tamento de um banqueiro de um especulador de um general que prefere ganhar 378 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO a batalha em vez de perdêla é normalmente lógico sem que contudo decorra de uniformidades experimentais de ordem científica De passagem Pareto afir ma que efetivamente a maioria das ações lógicas são determinadas pelas uni formidades científicas mas que inúmeros domínios da ação político militar econômico comportam condutas lógicas determinadas por raciocínios de inspiração científica esforçandose por combinar eficazmente os meios em vista dos fins sem que se possa dizer que tal combinação seja uma dedução direta de uniformidades experimentais As ações lógicas são muito numerosas nos povos civilizados Os trabalhos artísticos e científicos pertencem a esta classe pelo menos no que diz respeito às pessoas que conhecem estas duas dis ciplinas As ações estudadas pela economia política pertencem também em grande parte à mesma classe Devese incluir aí adicionalmente um certo nú mero de operações militares políticas jurídicas etc Traité de sociologie gé nérale 154 Apesar de tudo subsiste uma solidariedade entre a concepção das ações lógicas e a concepção da ciência lógicoexperimental Esta relação é indispensável considerando a própria definição das ações lógicas Para carac terizálas Pareto se refere a operações que são logicamente vinculadas a seus fins não só com relação ao sujeito que as realiza mas ainda com relação aos que têm um conhecimento mais amplo Traité de sociologie générale 150 Estes observadores que dispõem de conhecimentos mais amplos só podem ser os cientistas O progresso da ciência permite ampliar progressivamente a esfe ra das condutas humanas que podemos considerar lógicas Tal como foi definida a ciência só cobre um domínio estreito ou limitado da realidade Estamos longe de conhecer tudo o que se passa no mundo por conseguinte longe de ter condições de dominar o conjunto dos fenômenos na turais As condutas lógicas não cobrem e não podem cobrir mais do que uma par te limitada do conjunto da conduta humana Se a condição para que uma con duta seja lógica é a de podermos prever as conseqüências dos nossos atos e de podermos determinar pelo raciocínio os objetivos que pretendemos alcançar e se a ciência não permite determinar os objetivos ou conhecer as conseqüências dos nossos atos a não ser em domínios limitados a maior parte da conduta hu mana será necessariamente nãológica Chamar uma conduta de nãológica é aliás para Pareto uma forma de criticála Se há uma ironia explícita ou vela da na expressão nãológica ela atinge somente aqueles que agindo de forma nãológica pensam agir logicamente A ironia do observador não quer sugerir aos homens que ajam logicamente ela visa ao fato de que os homens são tão irracionais quanto raciocinadores A principal característica da natureza huma na é se deixar levar pelo sentimento e apresentar justificativas pseudológicas para atitudes sentimentais Compreendese pois por que Pareto é insuportável e por que deseja sêlo Sua primeira tese é a de que todos os homens pretendem dar uma aparência lógica a condutas que não têm substância e sua segunda tese propõe como A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 379 objetivo da sociologia a demonstração de que o comportamento humano é em grande parte nãológico Está claro que quando um sociólogo mostra aos ho mens o que estes não querem ver tomase impopular o que o próprio Pareto reconheceria Não me parece impossível aliás dar uma interpretação lógica a este desejo de impopularidade Para usar o método de Pareto podemos dividir os homens que escrevem em duas categorias os que escrevem com o desejo cons ciente de serem populares e os que escrevem com o desejo consciente de serem impopulares O desejo de ser impopular não é nem mais nem menos lógico do que o de ser popular Um autor pode ter um sentimento de frustração a despei to de tiragens de centenas de milhares de exemplares dos seus livros e um sen timento de êxito com tiragens de quinhentos exemplares Pareto escolheu uma vez por todãs e provavelmente de modo lógico o êxito de autor maldito O que aliás não alcançou inteiramente O paralelo entre a concepção da ciência e a concepção das ações lógicas e nãológicas em Pareto nos lembra que a ciência não determina logicamente objetivos Não há uma solução cientifica para o problema da ação A ciência não pode ir além da indicação dos meios eficazes para atingir objetivos a de terminação dos objetivos não pertence ao seu domínio Em última análise não há solução científica para o problema da conduta individual e não há solução científica para o problema da organização social Pareto responde antecipada mente a todos os contemporâneos que proclamam que a ciência exige esta oü aquela organização da sociedade afirmando que a ciência autêntica e não a pseu dociência não nos pode ensinar qual é a solução para o problema social Das expressões aos sentimentos Os dados do problema do estudo lógico ou científico das ações nãológi cas podem ser representados pela figura seguinte que encontramos no capítu lo II do Traité de sociologie générale 380 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Para estudar logicamente as condutas nãológicas só conhecemos direta mente pela observação os atos B e as expressões C de sentimentos que se desenvolvem com freqüência em teorias morais religiosas e outras O estado psíquico dos atores A escapa à experiência direta O problema se coloca por tanto nos seguintes termos como explicar C e B e sobretudo B isto é os atos se não podemos apreender diretamente A isto é o estado de espírito A tendência muito marcante que têm os homens para considerar as ações nãológicas como ações lógicas os leva a acreditar que B seja um efeito da causa C Estabelecese assim uma relação direta CB em vez da relação indireta que resulta das duas relações AB AC As vezes a relação CB existe de fato mas isto não ocorre tão freqüentemente como se pensa O mesmo sentimento que leva os homens a se abster de uma ação B relação AB os leva a criar uma teoria C relação AC Por exemplo alguém tem horror do homicídio B abstendose de ações ho micidas mas dirá que os deuses punem o homicídio o que constitui uma teoria C Traité de sociologie générale 162 A tendência dos intérpretes é portanto explicar os atos pelas teorias que invocam explicar B por meio de C Mas ao fazer isto são vitimados pela incli nação humana para a racionalização ou usando a terminologia de Pareto para a logicização Iludidos pelo instinto raciocinante dos homens acreditam que seus atos são autenticamente determinados pelas doutrinas invocadas quando na realidade o que determina ao mesmo tempo os atos e suas expressões é A isto é o estado psíquico ou os sentimentos De um certo modo toda a primeira parte do Traité de sociologie générale é uma reflexão e uma análise circular sobre as relações entre A C B ou B C A Com efeito para Pareto o que determina C e B é essencialmente A A con duta dos homens é motivada pelo seu estado psíquico ou por seus sentimentos muito mais do que pelas razões que invocam Contudo não se pode excluir que C isto é as teorias tenha uma certa influência sobre B À força de se conven cer de suas próprias idéias os homens terminam agindo também com base em racionalizações E à força de agir de conformidade com essas racionalizações de praticar um ritual terminam por reforçar aquelas mesmas idéias com que co meçaram a explicar seus atos de modo que há também uma ação de B na me dida em que B é um ato ritual sobre C isto é sobre a doutrina A ação de B sobre C é no fundo aquela a que se refere a fórmula Use a água benta e você acabará acreditando que é uma versão simplificada ou nãológicoexperimen tal da influência do rito sobre a crença O triângulo que apresentamos mostra três séries de relações que convém analisar em pormenor a ação do estado psíquico simultaneamente sobre os atos e as expressões a ação secundária das expressões sobre os atos e a ação secun dária dos atos sobre as expressões isto é sobre as racionalizações as ideolo gias e doutrinas A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 381 Com uma outra figura um pouco mais complexa Pareto explica não só o estado de espírito A e as expressões C mas também dois outros fatores o culto B e os atos que desta vez chamaremos de D Até certo ponto podese identificar o culto de uma religião a B sua teologia a C Os dois provêm de um estado psíquico A Consideremos certas ações D dependentes deste estado psíquico A O culto B não age diretamente sobre D mas sobre A e assim sobre D age igualmente sobre C e por outro lado C age sobre B Pode haver também uma ação direta CD A ação da teologia C sobre A é normalmente fraca em conseqüência esta ação é fraca também sobre D pois a ação CD é também geralmente fraca Portanto em geral cometese um grave erro ao supor que a teologia C é a causa das ações D A proposição que se enuncia muitas vezes O povo age assim porque acredita nisso raramente é verdadeira é quase sempre falsa A proposição inversa O povo acre dita nisso porque age assim apresenta geralmente maior dose de verdade mas ela é absoluta demais e tem sua parte de erro É verdade que as crenças e as ações não são independentes mas sua dependência consiste em serem dois ramos de uma mes ma árvore Antes da invasão dos deuses da Grécia a antiga religião romana não tinha uma teologia C reduziase a um culto B Mas este culto B reagindo sobre A influía for temente nas ações D do povo romano Mais ainda quando existe a relação direta BD ela se apresenta a nós modernos como claramente absurda Mas a relação BAD podia ao contrário em alguns casos ser muito razoável e útil ao povo roma no Em geral a teologia C tem sobre D uma influência direta ainda mais fraca do que sobre A É um grave erro portanto querer estimar o valor social de uma reli gião considerando unicamente o valor lógico e razoável da sua teologia Mas se esta se toma absurda a ponto de agir fortemente sobre A é certo que agirá tam bém fortemente sobre D Este caso contudo é raro só depois de uma modificação do estado psíquico A os homens percebem certos absurdos que até então lhes ha viam escapado inteiramente 382 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Estas observações se aplicam a todas as espécies de teorias Por exemplo C é a teoria do livre comércio D é a adoção prática do sistema de livre comércio num país A é um estado psíquico resultante em grande parte dos interesses eco nômicos políticos e sociais dos indivíduos e das circunstâncias em que vivem A relação direta entre C e D é geralmente muito fraca Agir sobre C para modificar D só produz resultados insignificantes Ao contrário uma modificação de A pode repercutir sobre C e sobre D nós os veremos alterarse ao mesmo tempo e um observador superficial poderá acreditar que D foi modificado pela transformação de C Um estudo mais profundo demonstrará contudo que D e C não dependem diretamente um do outro mas que ambos dependem de uma causa comum A As discussões teóricas C não são portanto muito úteis diretamente para mo dificar D Indiretamente podem ser úteis para modificar A Para chegar a isso porém é preciso recorrer aos sentimentos muito mais do que à lógica e aos resultados da experiência Exprimiremos este fato de maneira incorreta porque excessivamente absoluta embora marcante dizendo que para agir sobre os homens os raciocínios precisam transformarse em sentimentos Na Inglaterra de hoje a prática do livre comércio B seguida durante mui tos anos reagiu sobre o estado A interesses etc e reforçou em conseqüência este estado psíquico opôsse assim à introdução do protecionismo Traité de so ciologie générale 165 166 167 e 168 A partir desta análise elementar e fundamental a sociologia de Pareto pode seguir dois caminhos O primeiro é o que poderíamos chamar de via indutiva que foi percorrida pelo próprio Pareto no Traité A outra é a via dedutiva que pre tendo seguir A via indutiva consiste em procurar como na história das doutrinas as ações nãológicas foram conhecidas ou mal conhecidas dissimuladas e desfiguradas como os homens suspeitaram da noção de ação nãológica esforçandose por não criar uma teoria a esse respeito pois nascido como ser raciocinante o homem prefere acreditar que sua conduta é lógica determinada pelas teorias e não quer confessar a si mesmo que agiu movido por sentimentos Depois do estudo histórico da interpretação dos atos nãológicos Pareto ana lisa cientificamente as teorias que ultrapassam a experiência Estuda as metafí sicas e as teorias que postulam objetos inacessíveis aplicando procedimentos lógicoexperimentais Por exemplo as doutrinas do direito natural que preten dem determinar o que é o direito sem distinção de tempo e de lugar estão além da experiência que só comporta a observação do que é e a dedução a partir de fatos observados Pareto consagra um capítulo também às teorias pseudocientí ficas que existem em grande número Depois destes três capítulos intermediá rios que abrangem perto de trezentas páginas aborda o que constituirá o essencial da teoria das ações nãológicas a saber o estudo dos resíduos e das derivações A segunda via é a que o próprio Pareto considera dedutiva e sobre a qual afirma no princípio do capítulo VI sobre os resíduos que deveria ser seguida A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 383 com vantagem pela exposição O método consiste em atacar imediatamente se não o estado psíquico pelo menos uma realidade próxima desse estado em estabe lecer uma classificação dos resíduos que são manifestações dos sentimentos e as causas principais das ações nãológicas Tratase portanto de procurar o que podemos saber de A sabendo que o estado psíquico ou os sentimentos não são conhecidos de modo direto Como só conhecemos diretamente as expressões os atos ou comportamentos de culto como podemos chegar das expressões às suas causas das teorias ou dos atos aos sentimentos e aos estados de espírito que os determinam O método de Pareto consiste em estudar um grande número de expressões teorias condutas curiosas modalidades de cultos religiosos práticas de magja ou feitiçaria e constatar que se estes atos e condutas diferem e comportam na aparência uma espécie de crescimento anárquico eles revelam através de estu do mais atento uma certa consistência Por exemplo constatamos nas civiliza ções mais diversas que os homens atribuem um valor benéfico ou maléfico a certas cifras a certos dias ou lugares Nas nossas sociedades é o número 13 que segundo se alega traz desgraça Se um jantar de 13 pessoas se realiza numa sextafeira dia 13 há um temor de catástrofes São fenômenos que todos conhecemos e que nos fazem sorrir mas isto não impede que uma donadecasa hesite em organizar um jantar para 13 pessoas embora ela não seja supersticio sa é claro mas é bem possível que um dos convidados possa temer o caráter maléfico do número 13 ou da sextafeira 13 Comentase também que não se de vem acender três cigarros com o mesmo fósforo Ao que parece a origem desta su perstição remonta à guerra do Transvaal Os bôeres que na época contavam com a simpatia da opinião mundial as coisas mudaram tinham a reputação de se rem atiradores excepcionais Quando viam pela terceira vez nas linhas inimigas o brilho de um cigarro alvejavam com tal precisão que o fumante era abatido Não estou seguro de que esta seja a origem autêntica da superstição contudo para usar a linguagem de Pareto tratase claramente de um destes fenômenos nãológicos de que há exemplos em todas as sociedades O traço comum a to dos esses exemplos é a inclinação a atribuir um sentido benéfico ou maléfico a determinados dias lugares números e circunstâncias por razões obscuras Prefiro dizer por razões obscuras Pareto diria com maior precisão por razões que se renovam incessantemente e que mudam em cada sociedade en contrase sempre uma razão pseudológica para explicar por que tal lugar não deve ser freqüentado por que tal número anuncia desgraças e por que tais cir cunstâncias indicam a aproximação de uma catástrofe Desde logo podemse distinguir dois elementos no fenômeno observado uma parte constante que chamaremos a não confundir com o A maiúsculo que re presenta o estado psíquico e uma parte variável b 384 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A parte constante consiste na inclinação dos homens a estabelecer relações entre coisas números lugares e significados benéficos ou maléficos e na atri buição de valor simbólico ou indicativo a determinados fatos O elemento variável é a razão que os homens dão para justificar tais rela ções em cada circunstância Hoje graças aos progressos da racionalidade oci dental não se atribui muitas vezes nenhuma razão de modo geral porém na maioria das sociedades há razões para justificar uma atividade de associação Esta é o elemento constante do fenômeno a teoria explicativa é seu elemento variável Para usar outro exemplo em quase todas as sociedades os homens parecem sentir repugnância pelo que conhecemos como homicídio contudo de acordo com a épocae a sociedade acharão motivos diferentes para explicar ou justifi car esta rejeição Em certos casos dirseá que é Zeus que proíbe o crime em outros que a razão universal não tolera violações à dignidade da pessoa huma na Há várias teorias que fundamentam a interdição do assassínio mas há nelas um elemento constante a rejeição de determinada conduta cuja origem é um estado psíquico ou um sentimento O fenômeno concreto que se oferece à obser vação é o binômio rejeição do homicídiojustificação através de teorias concor rentes O observador de forma analítica estabelece uma distinção entre estas teorias justificativas que têm uma diversidade anárquica e os elementos cons tantes dos fenômenos que se repetem suficientemente para que possamos fazer com eles uma classificação geral Como é pouco cômodo falar sempre em ele mento constante do fenômeno concreto considerado e como é inutilmente pe dante dizer a para designar este elemento constante daqui em diante falare mos de resíduo para designar o que acabo de analisar sem empregar expressões complicadas Quanto às teorias diversas que se multiplicam para justificar os elementos constantes vamos chamálas de derivações As duas noções de resí duo e de derivação a que se chega por via analítica são os dois conceitos fun damentais da armadura da primeira parte do Traité de sociologie générale Para precisar o que são os resíduos Pareto escreve O elemento a corresponde talvez a certos instintos do homem ou dizendo melhor dos homens pois a não tem existência objetiva e varia de acordo com os homens E provavelmente por corresponder a tais instintos que é quase constante nos fenômenos O elemento b corresponde ao trabalho realizado pelo espírito pa ra explicar o elemento a Por isto ele é muito mais variável pois reflete o traba lho da fantasia Mas se a parte a corresponde a certos instintos ela está longe de abranger a todos E o que se vê pela própria maneira como a encontramos Nós analisamos os raciocínios e buscamos a parte constante Assim pois só podemos ter encontrado os instintos que provocam os raciocínios e não poderíamos ter encontrado os que não estão trabalhados pelos raciocínios Restam portanto todos A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 385 os simples apetites os gostos disposições e nos fatos sociais esta classe muito im portante que chamamos de interesses Traité de sociologie générale 850851 Este texto muito curto é um dos mais importantes do Traité de sociologie générale Pareto é um desses autores que são mais concisos quando a questão de que tratam é importante e são prolixos quando o tema é simples e o leitor já o compreendeu Inesgotável em seus exemplos e ilustrações Pareto é extraor dinariamente sucinto quando toca os elementos fundamentais do seu pensa mento Estes dois parágrafos contêm a chave do seu sistema intelectual reve lando duas coisas essenciais 1 Os resíduos não são os sentimentos ou o estado psíquico A são elemen tos intermediários entre o sentimento que não conhecemos diretamente talvez não o conheçamos sequer indiretamente e as expressões ou atos C e B 2 Estes resíduos se relacionam com os instintos do homem mas não abran gem a todos pois o método seguido não permite descobrir que instintos dão lugar a raciocínios Na classificação dos quatro tipos de ação nãológica a classe 3 se define por simnão existência de uma relação objetiva dos meios aos fins mas não de uma relação subjetiva Esta classe 3 abrange as ações diretamente adaptadas do tipo instintivo que não dão lugar a raciocínios teorias e justificações Se par timos das expressões teorias e justificações para chegar aos resíduos que cons tituem manifestações dos instintos só se poderão descobrir aqueles instintos que levam a raciocínios Fora os resíduos há portanto apetites gostos e disposições ou inclinações A meu ver embora Pareto não tenha estabelecido explicitamente uma rela ção entre a terceira classe das ações nãológicas e os termos apetites gostos e disposições tratase no fundo do mesmo fenômeno Se gostamos de um prato enquanto não elaboramos uma filosofia sobre isso e no limitamos a satisfazer nosso gosto pode existir uma relação objetiva meiosfins contudo na ausên cia de qualquer teoria justificativa e de qualquer raciocínio a observação não poderá descobrir nosso gosto a partir das expressões e manifestações Por outro lado se elaboramos teorias sutis relativas à superioridade da cozinha chinesa so bre a cozinha francesa ou viceversa ou se admitimos teorias complicadas sobre as relações entre a satisfação do paladar e a higiene corporal então pas samos da terceira para a quarta classe de ações nãológicas as do simsim sem correspondência entre objetivo e subjetivo O sociólogo paretiano poderá remon tar a certos resíduos mas se nos limitarmos a comer bem permaneceremos fora do seu campo de estudo Os três termos apetites gostos e disposições a meu ver são muito próxi mos e devem 8CT entendidos no seu sentido ordinário Apetite é o deseio ejg 386 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO uma coisa precisa Na medida em que o indivíduo tem apetite por algo satis faz este apetite sem discussões sem controvérsias e sem explicações não há lu gar para perguntas sobre os resíduos Os gostos são também preferências as disposições são tendências Desejo definido preferência tendência tal seria a distinção entre apetites gostos e disposições De modo geral os três termos são aplicados ao comportamento humano na medida em que este constitui a busca de certos bens e de certas satisfações mais ou menos definidas Apetites gos tos e disposições são comparáveis aos instintos animais com a reserva de que no homem se transformam são elaborados e diversificados pelo desenvolvi mento da civilização a ponto de não serem mais necessariamente adaptados co mo são ao que parece a maioria das condutas animais instintivas Pareto não inclui também os interesses entre os resíduos A noção de inte resse resulta da análise econômica primeiro campo de investigação do autor do Traité de sociologie générale Pareceme que no pensamento de Pareto o inte resse provém da tomada de consciência de um objetivo que o indivíduo se pro põe alcançar Maximizar a quantidade de dinheiro é um interesse que suscita quase sempre condutas lógicas Contudo ao lado do interesse econômico po de haver um interesse político Um homem que tem por objetivo arrebatar o poder se comportará de modo interessado e sua conduta será diferente das con dutas nãológicas determinadas pelos resíduos Ao chegarmos à síntese socio lógica precisaremos levar em conta não só os resíduos mas também as condutas determinadas em profundidades pelos instintos apetites gostos e disposições bem como pelos interesses Para completar esta análise resta elucidar a relação entre o resíduo e o es tado psíquico ou sentimento A Pareto se exprime algumas vezes como se os resíduos se confundissem com os sentimentos Contudo não há dúvida de que estabelece uma dupla distinção De um lado os resíduos se situam mais perto dos atos ou das expressões do que os sentimentos porque são identificados a partir de uma análise destes atos ou expressões De outro lado os resíduos não são rea lidades concretas mas conceitos analíticos criados pelo observador para expli car os fenômenos Não se podem ver ou apalpar os resíduos como se faz com uma mesa ou mesmo como se experimenta um sentimento Aliás Pareto é for mal a este respeito É preciso ter o cuidado de não confundir os resíduos a com os sentimentos nem com os instintos aos quais correspondem Os resíduos a são a manifestação de tais sentimentos e instintos como a elevação do nível de mercúrio é num termômetro a manifestação de um aumento da temperatu ra Só por elipse para tomar mais concisa nossa explicação dizemos por exem plo que os resíduos têm um papel importante na determinação do equilíbrio so cial além dos apetites dos interesses etc Da mesma forma dizemos que a águá ferve a 100C Mas as proposições completas seriam os sentimentos ou instin tos que correspondem aos resíduos além daqueles que correspondem aos ape A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 387 tites interesses etc têm um papel importante na determinação do equilíbrio social E a água ferve quando o estado calorífico atinge uma temperatura indi cada por 100 no termômetro centígrado Traité de sociologie générale 875 Precisemos pois o que é capital para a compreensão exata deste pensa mento os resíduos são conceitos analíticos utilizados pelo sociólogo e não pelo psicólogo Pareto diz que o estudo dos sentimentos em si mesmos pertence à esfera da psicologia e não da sociologia Os resíduos correspondem sem dúvi da a algo que existe na natureza ou na conduta humana mas esta coisa é defi nida por um conceito analítico forjado para compreender o funcionamento da sociedade Pareto estabelece nos parágrafos 879 a 884 uma aproximação inte ressante entre as raízes verbais estudadas pelo filólogo e os resíduos estuda dos pelo sociólogo1 De acordo com esta comparação os resíduos são as raízes comuns de grande número de condutas ou expressões Têm portanto enquanto tais o mesmo caráter abstrato das raízes verbais descobertas pelo lingüista que não são dados concretos e no entanto não são apenas ficções porque ajudam a compreender a realidade Resíduos e derivações A teoria dos resíduos leva a uma classificação que se apresenta como uma espécie de análise teórica da natureza humana para uso dos sociólogos Pareto distingue inicialmente seisclasses de resíduos encontra gêneros em cada clas se por fim divide certos gêneros em espécies A distinção certamente mais im portante é a das seis classes que têm significados e alcances múltiplos Estas seis classes são as seguintes a primeira é a do instinto das combinações a segunda a persistência dos agregados a terceira a necessidade de manifestar os sentimentos por meio de atos exteriores a quarta a dos resíduos relacionados com a sociabilidade a quinta a integridade do indivíduo e dos seus dependentes a sexta os resíduos sexuais Observase logo que em certas classes o termo resíduo aparece na defini ção e em outras encontramos o termo instinto ou necessidades Aparentemen te estas seis classes são portanto heterogêneas e nem todas têm a mesma im portância As mais importantes são indubitavelmente as duas primeiras que aparecerão sozinhas ou quase na segunda parte do Traité quando se tratar de compor a síntese 1 A primeira classe de resíduos está constituída pelos resíduos correspon dentes ao instiflto das combinações Para definila Pareto usou o termo ins 388 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tinto que nos leva ao que há de mais profundo no homem isto é aos sentimen tos situados além dos resíduos O instinto das combinações no sentido mais genérico é a tendência para relacionar as idéias e as coisas para tirar as con seqüências de um princípio enunciado para raciocinar bem ou mal O homem é homem porque tem um instinto das combinações que provoca atos expres sões teorias justificações e subsidiariamente o próprio Traité de sociologie générale que é sem dúvida uma conseqüência não inevitável mas efetiva do instinto das combinações O instinto das combinações comporta como um dos seus gêneros a ne cessidade de desenvolvimentos lógicos Ele está portanto na raiz dos progres sos intelectuais da humanidade do desenvolvimento da inteligência e da civi lização Nas sociedades mais brilhantes que não são necessariamente as mais morais abundam os resíduos da primeira classe Segundo Pareto a Atenas do século V antes de Cristo e a França no princípio do século XX são exemplos de sociedades repletas de resíduos da primeira classe que encontramos em menor grau na antiga Esparta e na Prússia do século XVIII Vêemse imediatamente as conseqüências políticas resultantes da freqüência variável de tais resíduos A classe do instinto das combinações se compõe de vários gêneros O pri meiro mais simples e mais abstrato é o instinto das combinações em geral isto é sem especificação O segundo é o instinto das combinações de coisas semelhantes ou contrárias A maioria das operações mágicas comportam com binações deste tipo O terceiro gênero pode ser definido como o poder miste rioso de certas coisas ou de certos atos O quarto é intitulado necessidade de unir os resíduos o quinto necessidade de desenvolvimentos lógicos o sex to a fé na eficácia das combinações O quinto gênero necessidade de desenvolvimentos lógicos abrange a maioria dos resíduos que determinam as derivações É a necessidade do desen volvimento lógico que explica a renovação incessante das teorias e o progresso nas ciências Compreendese desde logo que uma conduta lógica possa ser também de terminada pelos resíduos que são eles próprios a expressão de instintos ou sen timentos A conduta lógica pode originarse em sentimentos no caso de que pela tomada de consciência das relações meiosfins o ator tenha condições de prever as conseqüências efetivas dos meios que emprega e de estabelecer uma correlação entre a relação subjetiva e a relação objetiva Vale notar também que o mesmo instinto das combinações pode deste modo estar na origem das condutas nãológicas como a magia e também daquilo que é a própria característica da conduta lógica isto é a ciência 2 A segunda classe de resíduos é a contrapartida da primeira Se o instin to das combinações é o que impede o homem de se instalar de uma vez por todas A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 389 num certo modo de ação ou de sociedade provocando o desenvolvimento in cessante dos conhecimentos e a renovação indefinida das crenças a persistência dos agregados que Pareto não chama de instinto é comparável à inércia Cor responde à tendência humana para manter as combinações que se estabelece ram a rejeitar as transformações e a aceitar de uma vez por todas os imperativos Certas combinações constituem um agregado de partes unidas estreitamente num certo corpo que termina por adquirir uma personalidade semelhante à dos seres reais Podemse muitas vezes reconhecer tais combinações pela característi ca de ter um nome próprio distinto da simples enumeração das partes Depois que o agregado se constituiu muitas vezes age um certo instinto opõese com força variável a que as coisas assim reunidas se separem se a separação não pode ser evi tada procura dissimulála conservando o simulacro do agregado Podese gros so modo comparar este instinto à inércia mecânica Ele se opõe ao movimento dado por outros instintos Nasce daí a grande importância social dos resíduos da segunda classe Traité de sociologie générale 991 e 992 A segunda classe constitui portanto com a primeira um par de termos opos tos Estas duas tendências fundamentais têm um significado social imediatamen te compreensível Uma induz à mudança e à renovação a outra à estabilidade e à conservação Uma incita a elaborar construções intelectuais a outra a estabili zar as combinações Pareto observa que as revoluções modificam as pessoas dos governantes as idéias em nome das quais estes governam e eventualmente a or ganização dos poderes públicos mais facilmente do que os costumes as crenças e as religiões O que pertence à ordem dos costumes da organização familiar e das crenças religiosas constitui o fundamento da sociedade e é mantido pela per sistência dos agregados As transformações violentas desejadas pelos políticos se chocam contra a resistência dos resíduos da segunda classe Da mesma forma como acontece com os resíduos da primeira classe Pare to estabelece uma classificação dos diferentes gêneros da segunda classe Dis tingue notadamente a persistência das relações entre os vivos e os mortos ou en tre um morto e as coisas que possuía durante a vida De um modo geral as rela ções de um homem com outros homens e dos homens com os lugares são exemplos típicos de resíduos que tendem à persistência dos agregados O fato de que tantas sociedades enterram seus mortos com os respectivos bens ilustra esta solidez dos laços entre cada pessoa e as coisas que lhe pertenceram Da mes ma forma pode haver a persistência de uma abstração Os que falam da Hu manidade do Progresso ou da História são movidos pelos resíduos da segunda classe que pertencem ao gênero persistência de uma abstração ou personi ficação Se se afirma que o Progresso exige ou que o Direito obriga e se se toma seriam ente a palavra abstrata atribuindo à maiúscula um significado agi mos sob a influência de um resíduo da persistência dos agregados o qual nos 390 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO incita a tratar uma abstração como se fosse realidade a personificar uma idéia e a emprestar uma vontade a tais abstrações personificadas As classes 3 e 6 são as que Pareto trata mais brevemente e são também as mais simples 3 A classe 3 é chamada necessidade de manifestar os sentimentos por meio de atos exteriores Uma necessidade que se traduz por um ato ritual por exem plo o aplauso destinado a exprimir um sentimento favorável Não se aplaude em todas as sociedades para manifestar aprovação os gestos ou ruídos com que se exprime aprovação ou desaprovação variam de acordo com a sociedade A diversidade destas manifestações constitui o elemento variável b enquanto o elemento comum a ou resíduo é a necessidade mais ou menos forte de mani festar os seus sentimentos Pareto só reconhece dois gêneros desta terceira clas se o primeiro é simplesmente a necessidade de agir manifestandose por com binações o segundo é a exaltação religiosa Não é difícil imaginar através de todàs as sociedades antigas ou modernas as inumeráveis circunstâncias em que a necessidade de manifestar os seus sentimentos se exterioriza livremente Em nossa época os espetáculos desportivos e as manifestações políticas proporcio nam ocasiões favoráveis 4 A última classe que Pareto faz figurar na sua classificação dos resíduos é a dos resíduos sexuais Estamos aqui no limite do instinto isto é de uma realidade que em si mesma não entra no campo de estudo da sociologia A classificação dos resíduos não considera os instintos no seu estado puro Pareto escreve a este respeito O simples apetite sexual embora aja vigorosamente so bre a raça humana não nos deve ocupar aqui Traité de sociologie générale 1324 Uma boa parte das condutas comandadas pelo instinto sexual não entra na esfera de análise do sociólogo mas certas condutas ligadas aos resí duos sexuais podem interessálo Devemos estudar o resíduo sexual de racio cínios e de teorias De modo geral este resíduo e os sentimentos em que se ori gina podem ser encontrados num grande número de fenômenos estão porém mui tas vezes dissimulados especialmente nos povos modernos Ibid Entre seus alvos prediletos Pareto incluía os propagandistas da virtude Detestava as associações e as pessoas que faziam campanha contra as publica ções licenciosas e de modo geral em favor de costumes puritanos Em dezenas de páginas examina o que chama de religião da virtude associada aos resí duos sexuais por complementaridade oposição ou negação Este exemplo nos ajuda a compreender a noção de resíduo e os laços entre instintos e resíduos Na medida em que os homens satisfazem seus apetites deixam de interessar ao sociólogo a menos que elaborem uma filosofia ou uma ética relativa à sexua lidade Os parágrafos consagrados aos resíduos da sexta classe também tratam da religião da virtude e das religiões propriamente ditas pois todas as crenças adotaram e ensinaram uma certa atitude com relação à sexualidade2 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 391 5 A classe 4 é a dos resíduos relacionados com a sociabilidade Está de finida por Pareto nos seguintes termos Esta classe está constituída por resíduos que têm relação com a vida social Podemse nela incluir também os resíduos relacionados com a disciplina se admi tirmos que os sentimentos correspondentes são reforçados pela vida em socieda de Neste sentido observouse que todos os animais domésticos exceção feita do gato viviam em sociedade quando ainda estavam em liberdade Por outro lado a sociedade é impossível sem uma certa disciplina em conseqüência o estabeleci mento de uma sociabilidade e o estabelecimento de uma disciplina têm necessa riamente certos pontos de contato 1113 A classe 4 dos resíduos relacionados com a sociedade tem portanto uma certa relação com a classe 2 da persistência dos agregados Mas as definições são outras e estas classes diferem em alguns pontos Os diferentes gêneros distinguidos por Pareto permitem precisar mais esta classe de resíduos O primeiro é o das sociedades particulares Pareto alude aqui ao fato de que todos os homens se inclinam a criar associações notadamente associações voluntárias exteriores aos grupos primários nos quais estão ime diatamente integrados Estas associações tendem a provocar sentimentos de fi delidade e de lealdade que os fazem persistir em seu ser O exemplo mais sim ples é o de uma associação esportiva Quando eu era jovem os parisienses se di vidiam em torcedores do Racing Club e do Stade Français Mesmo os que hão praticavam nenhum esporte se ligavam por sentimento espontâneo ao Racing ou ao Stade O patriotisme stadiste e o patriotisme du Racing provocavam a pre sença de numeroso público nos jogos disputados pelas duas equipes O exemplo é ao mesmo tempo irônico e sério As associações voluntárias só perduram pelo devotamento dos seus membros Pessoalmente por razões que me escapam conservei um patriotisme stadiste Quando o time de futebol do Stade ganha um jogo contra o Racing sua vitória me dá uma certa satisfação Não há nenhuma razão lógica para esta fidelidade Vejo nela um exemplo da vinculação às socie dades particulares e concluo que sou dotado de numerosos resíduos da quarta classe O segundo gênero mencionado por Pareto é a necessidade de uniformida de Esta necessidade é incontestavelmente uma das mais difundidas e mais fortes que existem nos seres humanos Cada um de nós se inclina a julgar que a maneira como vive é a maneira como deve viver Nenhuma sociedade pode existir se não impõe a seus membros certos modos de pensar de crer e de agir Mas porque toda sociedade toma obrigatórias estas maneiras de viver toda sociedade tende também a perseguir os heréticos A necessidade de uniformi dade é o resíduo a partir do qual se desenvolvem as perseguições dos dissiden tes tão c o m a n s na história Esta inclinação a perseguir os heréticos é aliás tão 392 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO característica dos livrepensadores como dos crentes Os ateus que perseguem os padres com seu desprezo e os racionalistas que denunciam as superstições ma nifestam esta necessidade de uniformidade que persiste mesmo em grupos cujo dogma oficial é a liberdade de crença Assim como os psicanalistas se referem às armadilhas dos complexos Pareto poderia falar das armadilhas dos resíduos O terceiro gênero é caracterizado pelos fenômenos da piedade e da cruel dade A relação entre este gênero e os outros resíduos ligados à sociabilidade não é tão clara como nos casos precedentes Com efeito Pareto analisa os sen timentos de autopiedade projetada sobre a repugnância instintiva pelo sofri mento em geral e a repugnância dos sofrimentos inúteis baseada no raciocínio Sugere que uma certa rejeição do sofrimento alheio é normal e que a benevo lência deveria inclinarnos a reduzir na medida do possível as penas dos nossos semelhantes Mas estes sentimentos de piedade podem na sua opinião tomarse excessivos estigmatiza assim a indulgência manifestada pelos tribunais do seu tempo com relação aos anarquistas e assassinos Pareto multiplica as observa ções irônicas a respeito das pessoas humanitárias que terminam pensando ex clusivamente no sofrimento dos assassinos e esquecendo suas vítimas É in contestável que há um século a repressão dos crimes se tomou cada vez mais fraca Não passa um ano sem que sejam promulgadas novas leis em favor dos delinqüentes e a legislação existente é aplicada pelos tribunais e pelos júris com indulgência cada vez maior Pareceria pois que a piedade com relação aos delinqüentes aumenta e diminui a piedade com respeito às suas vítimas 1133 O humanitarismo exagerado é um dos alvos preferidos de Pareto que justifica sua crítica com o fato de que muitas vezes estes excessos de sensibilidade e de piedade precedem os massacres Quando uma sociedade perde o sentido da dis ciplina coletiva está perto de uma revolução que provocará uma subversão dos valores A indiferença pelo sofrimento alheio substituirá a fraqueza inspirada pela piedade cega uma autoridade forte sucederá a desagregação por falta de dis ciplina Evidentemente Pareto não elogia a brutalidade mas procura demons trar que as duas atitudes extremas humanitarismo excessivo ou a crueldade são prejudiciais ao equilíbrio social Só uma atitude moderada pode evitar desgra ças O sentimento próprio dos seres fortes enérgicos que sabem o que que rem e são capazes de se deter no ponto exato que consideram necessário atin gir é a repugnância dos sofrimentos inúteis baseada no raciocínio escreve ele no princípio de um parágrafo que resume bastante bem seu ideal moral Instin tivamente os súditos de um governo compreendem muito bem á diferença entre este gênero de piedade e o precedente Respeitam estimam amam a piedade dos governos fortes Criticam e desprezam a piedade dos governos fracos Esta últi ma é para eles covardia a primeira é generosidade O termo inútil é aqui sub jetivo designa um sentimento de quem o emprega Em certos casos podese A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 393 saber também que certas coisas são objetivamente inúteis à sociedade em mui tos outros casos porém ficamos na dúvida e a sociologia está bem longe de po der resolver esta questão Concluir contudo com base em possibilidade eventual e longínqua que os sofrimentos infligidos são úteis seria um raciocínio equivo cado É preciso tomar posição de acordo com a maior ou menor probabilidade Seria absurdo evidentemente dizer que é útil matar ao acaso uma centena de pessoas porque entre elas pode haver um futuro assassino Mas ao contrário surge uma dúvida com respeito ao raciocínio que muitas vezes foi feito para justificar as perseguições contra as feiticeiras ao afirmar que entre elas havia um bom número de criminosas comuns É possível que a dúvida subsistisse à falta de um meio para separar as envenenadoras das mulheres histéricas con vencidas de ter tido relações com o diabo Mas como este meio existe desapa rece a dúvida e os sofrimentos infligidos são objetivamente inúteis Não é este o lugar apropriado para continuar expondo tais considerações que nos fazem sair do campo dos resíduos transportandonos para a esfera das ações lógicas 1144 O gênero n4 é a tendência a impor a si mesmo um mal pelo bem de ou trem em termos ordinários o devotamento que leva alguns indivíduos a se sacri ficarem pelos outros No sistema de pensamento de Pareto este devotamento aos outros que se traduz por um sacrifício imposto a si próprio é uma ação nãológi ca As ações interessadas nas quais o ator combina os meios para atingir a satis fação máxima para si mesmo são ações lógicas Inversamente o sacrifício de si em favor dos outros é quase sempre uma ação nãológica Esta observação mos tra perfeitamente que batizar uma ação de nãológica não implica desvalorizála e sim simplesmente dizer que o determinante de tal ação exprime sentimentos quase sempre não conhecidos claramente pelos próprios atores No entanto Pareto que é pessimista acrescenta que não se deve acreditar que os indivíduos da clas se dominante que tomam o partido da classe inferior agem necessariamente com base nesta tendência em se impor um mal para o bem de outrem Os burgueses que ingressam em partidos revolucionários têm muitas vezes o objetivo de alcançar vantagens políticas ou financeiras Estão atuando interessadamente ao representar a comédia do altruísmo Hoje os industriais e financistas descobriram que é pos sível obter vantagens aliandose aos socialistas Vemos industriais e banqueiros muito ricos que preconizam ieis sociais e podemos ser levados a crer que agem motivados pelo puro amor do próximo e que inflamados por este amor ardem com o desejo de distribuir seus bens Mas é preciso atentar bem para o que acontecerá depois da adoção dessas leis sociais sua riqueza não diminui mas ao contráno cresce Assim eles nada deram aos outros mas ao contrário retira ram deles alguma coisa 1152 Indubitavelmente é raro que os líderes dos par tidos revolucionários sejam inteiramente cínicos pois é impossível ao homem 394 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO viver na duplicidade do cinismo integral O homem que prega doutrinas revolucio nárias de direita ou de esquerda termina por acreditar nelas quando menos para assegurar seu equilíbrio e a paz de sua consciência Não está provado porém que este indivíduo esteja animado exclusivamente pelo amor dos seus semelhantes pode estar iludido pelos seus resíduos e suas derivações resíduos que o impulsio nam para uma carreira política derivações que lhe dão a ilusão de que suas atitu des favoráveis às reformas e à revolução têm base no puro idealismo O gênero seguinte n 5 é o dos sentimentos ligados à hierarquia isto é à deferência do inferior com relação ao superior a benevolência e a proteção uni das à dominação e ao orgulho do superior com relação ao inferior São em suma os sentimentos que os membros de uma coletividade situados em diferentes níveis hierárquicos experimentam uns pelos outros É fácil compreender que uma sociedade hierarquizada não poderia perdurar se os inferiores não fossem obrigados à obediência e se os que comandam não exigissem tal obediência dos inferiores ou não lhes manifestassem benevolência Os sentimentos de hierar quia tanto da parte dos inferiores como da dos superiores se observam já nos animais e são muito comuns nas sociedades humanas Parece mesmo que quan do estas sociedades apresentam um certo grau de complexidade precisam des ses sentimentos para subsistir A hierarquia se transforma mas subsiste sempre mesmo nas sociedades que aparentemente proclamam a igualdade dos indiví duos Constituise uma espécie de feudalidade temporária na qual se desce dos grandes líderes políticos até os mais modestos 1153 O último gênero em que Pareto insiste muito está constituído pelo con junto dos fenômenos do ascetismo Observase entre os homens um gênero especial de sentimentos que não tem nenhum equivalente nos animais e que leva o indivíduo a se infligir sofrimentos a absterse de prazeres sem nenhuma finalidade de utilidade pessoal indo em sentido contrário ao do instinto que impulsiona os seres vivos a buscar as coisas agradáveis e a fugir das coisas desagradáveis Este é o núcleo dos fenômenos que conhecemos sob a denomi nação de ascetismo 1163 Pareto não gosta dos ascetas Ele os despreza vendoos com mistura de espanto de indignação e de admiração Este sociólo go objetivo abandona sua posição de neutralidade diante dos ascetas De acordo com seu método Pareto passa em revista os fenômenos do asce tismo desde as instituições dos espartanos até os místicos cristãos e os adver sários da literatura não engajada ou de pura distração e conclui que esse turbi lhão de fenômenos comporta um elemento comum uma parte constante que se encontra nos sofrimentos que os ascetas se infligem A definição do ascetismo de Pareto não deixa de lembrar a filosofia de Durkheim É inevitável que os indivíduos sejam obrigados a refrear muitos dos seus desejos por não terem con dições de satisfazer a todos Por sua natureza os homens têm tantos desejos que nunca possuem recursos suficientes para satisfazer a todos Os sentimentos que le vam a uma disciplina dos desejos como a disposição ao devotamento ou ao A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 395 sacrifício são socialmente úteis Mas quando estes sentimentos se desenvolvem de forma exagerada levam ao ascetismo que não é útil a ninguém e que o so ciólogo vê como uma ampliação patológica da disciplina dos desejos Os atos do ascetismo são em grande parte atos que têm um resíduo inerente à vida social e que persistem mesmo depois de ter cessado sua utilidade Ou então adquirem intensidade tal que os leva além dos limites da sua utilidade O resíduo do as cetismo deve portanto ser posto entre os resíduos relacionados com a sociabili dade e representa freqüentemente uma hipertrofia dos sentimentos de sociabi lidade 1171 A maioria destes gêneros de resíduos da quarta classe postas à parte as formas extremas da piedade e do ascetismo têm portanto uma função social de modo geral conservadora Por este meio os resíduos da quarta classe estão liga dos aos da segunda isto é à persistência dos agregados Quando Pareto na se gunda parte do seu livro considera os sentimentos ou resíduos que variam si multaneamente através da história reúne muitas vezes os resíduos da segunda e da quarta classes os sentimentos de conservadorismo religioso e os sentimentos de conservadorismo social A persistência dos agregados religiosos dá durabi lidade às religiões os sentimentos associados à hierarquia fazem perdurar as estruturas sociais Contudo a correspondência não é total A piedade e o asce tismo podem ser socialmente prejudiciais 6 A quinta classe é definida como integridade do indivíduo e dos seus dependentes e Pareto acrescenta O conjunto dos sentimentos que denomi namos de interesses tem a mesma natureza dos sentimentos a que correspon dem os resíduos deste gênero Assim a rigor deveria fazer parte deles mas tem tão grande importância intrínseca para o equilíbrio social que é útil concebêlo à margem dos resíduos 1207 Como o indivíduo é levado espontaneamente por instinto a desejar coisas agradáveis aquele que se esforça por alcançar o máximo de satisfações e com bina racionalmente os meios com vista a este fim age de modo lógico Do mesmo modo se é normal que o homem deseje o poder o homem político que combi na astuciosamente os meios para arrebatar o poder age também de forma lógi ca Os interesses definidos pela riqueza e o poder são portanto a origem e os determinantes de um amplo setor de ações lógicas Os resíduos da integridade do indivíduo e dos seus dependentes correspondem na ordem nãológica ao que é o interesse na esfera da lógica Em outras palavras quando o indivíduo se afir ma de modo egoísta a partir de resíduos e de sentimentos ele se comporta de maneira nãológica como age logicamente quando se esforça por adquirir ri queza e poder Nem todos os gêneros desta quinta classe se ajustam facilmente a esta con cepção geral O segundo gênero o sentimento de igualdade entre os inferio res podejfijpipreendido sem dificuldade é um sentimento que leva os infer 396 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO riores a reivindicar a igualdade com os superiores É a contrapartida dos senti mentos ligados à hierarquia que comanda a aceitação da desigualdade Tratase de um resíduo cuja expressão é uma reivindicação geral de igualdade Mas es te sentimento é muitas vezes uma defesa da integridade do indivíduo que per tence a uma classe inferior e uma maneira de fazêlo ascender a uma classe superior Isto se efetua sem que o indivíduo que experimente tal sentimento seja consciente da diversidade que há entre o objetivo real e o aparente No lugar do seu próprio interesse ele coloca o da sua classe social simplesmente porque es ta é a forma usual de se expressar 12203 A rigor o terceiro gênero pode também entrar na definição geral ele é definido como o restabelecimento da integridade por operações que se rela cionam com os sujeitos que sofreram a alteração Os fenômenos a que Pareto se refere são aqueles que poderíamos chamar usando um termo genérico de ritos de purificação que são correntes nas religiões mas podem existir em ou tros contextos No princípio do século na França quando Gustave Hervé na épo ca um extremista revolucionário antes de se tomar durante a guerra de 19141918 um ultrapatriota declarou em artigo que era preciso mergulhar a bandeira na sujeira muitos pensaram que o símbolo de uma realidade sagrada tinha sido enxovalhado e houve várias manifestações de purificação em todo o país Este exemplo é típico dos resíduos que tendem ao restabelecimento da integridade por operações relacionadas seja com o objeto culpado seja com o objeto víti ma da alteração A noção de impureza aparece em todas as religiões que do totemismo até as religiões atuais de salvação têm práticas destinadas a purifi car os crentes de seus pecados ou a lavar as coisas da impureza Estas práticas são para Pareto a expressão dos resíduos que levam o indivíduo a afirmar ou a restabelecer a integridade de si mesmo e dos que dele dependem O primeiro gênero é o dos sentimentos que contrastam com as alterações do equilíbrio social Levam os indivíduos a punir aquele que cometeu um ato contrário aos imperativos da sociedade e à sua concepção do justo e do injus to Os membros de cada sociedade são impulsionados pelos resíduos da quinta classe a interpretar dogmaticamente as exigências da justiça Quando um ato deste tipo é cometido os resíduos da integridade do indivíduo se manifestam sob a forma de desejo de sanções pela indignação e a perseguição Os resíduos da quinta classe têm significações sociais variadas Quando se trata do segundo gênero o sentimento de igualdade entre os inferiores a quinta classe é a contrapartida da quarta Os sentimentos de inovação e de rei vindicação se opõem ou se colocam paralelamente aos sentimentos conserva dores Por este segundo gênero a quinta classe se aproximaria da primeira a do instinto de combinação De outro lado porém o primeiro e o terceiro gêne ro estão muito mais associados à quarta classe São sentimentos conservadores mais do que inovadores A dificuldade de fixar exatamente o significado social A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 397 da quarta e da quinta classes tem como resultado o quase desaparecimento destas classes na segunda parte do Traité isto é na síntese As duas classes que têm o papel mais importante são portanto o instinto de combinação e a persistência dos agregados a quarta classe a dos resíduos ligados à sociabilidade está liga da quase sempre à segunda A justificação desta longa tipologia dos resíduos aparece mais claramente na segunda parte do Traité Desde agora porém podese ver como ela é essen cial ao pensamento de Pareto A classificação dos resíduos e das derivações é uma doutrina da natureza humana tal como esta se manifesta na vida social As diferentes classes de resíduos correspondem aos conjuntos de sentimentos que agem em todas as sociedades e através da história Para Pareto as classes de resíduos variam pouco Em outras palavras o homem assim definido não mu da fundamentalmente A afirmação de que o homem não muda em profundida de se confunde com a tese da constância aproximada das classes de resíduos Aí está a origem do pessimismo de Pareto Se a esquerda se define pela idéia dó progresso e pela convicção de que é possível transformar a natureza humana então Pareto pertence indubitavelmente à direita As derivações são os elementos variáveis do conjunto constituído pela con duta humana e seu acompanhamento verbal Representam na linguagem de Pa reto o equivalente do que chamamos normalmente de ideologia ou teoria justi ficativa São os diferentes meios de ordem verbal pelos quais os indivíduos e os grupos dão uma lógica aparente ao que na verdade não tem lógica ou nem tanto quanto os atores gostariam de fazer crer O estudo das derivações no Traité de sociologie générale comporta vários aspectos Podemse com efeito examinar as manifestações verbais dos atores com relação à lógica e mostrar como e quando dela se afastam Podemse tam bém confrontar as derivações com a realidade experimental para marcar a dis tância entre a representação do mundo pelos atores e o mundo tal como ele é efetivamente Pareto procedeu longamente a tais confrontações de derivações com a lógi ca e a realidade experimental nos capítulos que se situam antes da exposição da teoria dos resíduos Quando depois de expor a classificação dos resíduos ele aborda as derivações examinaas só sob um determinado aspecto Estuda es sencialmente as derivações sob o aspecto subjetivo da força persuasiva que po dem ter Se ouvimos um orador numa reunião pública afirmar que a moral univer sal proíbe a execução de um condenado à morte podemos estudar seu discur so com relação à lógica para ver em que medida as proposições encadeadas se seguem de maneira necessária Podese confrontar este discurso isto é a ideo logia da moral universal com o mundo tal como ele é podese enfim ouvir o 398 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO orador e perguntar por que suas observações são persuasivas com relação a seus ouvintes O estudo sociológico procura saber como os homens utilizam os pro cedimentos psicológicos lógicos ou pseudológicos a fim de convencer outros homens Pareto chega por este caminho a uma classificação das derivações em quatro classes A primeira classe é a das simples afirmações cujo tipo é o das palavras da mãe que se dirige ao filho Obedeça porque é preciso obedecer Como pai filho ou soldado todos já ouvimos esta fórmula é assim porque é assim A derivação da primeira classe é eficaz se o é preciso porque é preciso é pro nunciado em tom conveniente pela pessoa apropriada São relações interpes soais de um tipo determinado que fazem com que a derivação da simples afir mação atinja seu objetivo A segunda classe das derivações pode ser ilustrada pela ordem materna você deve obedecer porque papai quer Em termos abstratos é o argumento de autoridade o Philosophus dixit É fácil pôr no lugar de Aristóteles tal pensa dor que esteja hoje na moda tratarseá sempre de derivações que tiram sua for ça persuasiva da autoridade de certos homens da tradição ou do costume Se a autoridade paterna entretanto não for suficiente a mãe poderá usar a terceira classe de derivações invocando o bichopapão ou o Papai Noel Em outras palavras as derivações podem fundamentarse em sentimentos ou prin cípios entidades jurídicas ou metafísicas e apelar para a vontade de seres so brenaturais Neste caso sua força persuasiva deriva do acordo com os senti mentos ou os princípios Quando Pareto decompõe esta terceira classe de deri vações em gêneros enumera sucessivamente os sentimentos os interesses indi viduais e coletivos as entidades jurídicas por exemplo o Direito a Justiça as entidades metafísicas a Solidariedade o Progresso a Humanidade a Demo cracia todas entidades que manifestam vontades nas derivações e as entidades sobrenaturais A derivação torna convincentes as afirmações os imperativos e os interditos despertando sentimentos demonstrando o acordo entre as propo sições e os interesses existentes ou proclamando a alegada vontade de uma enti dade abstrata ou de um ser sobrenatural A quarta classe de derivações está composta por aquelas que fundamentam sua força de persuasão em provas verbais As derivações verbais são obtidas graças ao uso de termos de sentido indeterminado duvidoso equívoco e que não se ajustam à realidade 1543 Por exemplo um regime é considerado democrático porque trabalha no interesse das massas populares Ora esta é uma proposição duplamente equívoca Que chamamos de democracia Que significa trabalhar no interesse de alguém A maioria dos discursos políticos pertencem à categoria das provas verbais É preciso acrescentar e Pareto tem consciência disto que um discurso composto exclusivamente de demonstrações lógicoexpe rimentais não seria ouvido numa reunião pública e talyez nem mesmo numa A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 399 sala de aula Pareto ironiza o caráter nãológico das derivações mas repete que não deseja que os homens se comportem de modo lógicoexperimental quan do fazem política Isto não seria possível nem eficaz No capítulo X do Traité consagrado às derivações ele estuda de modo penetrante os procedimentos com os quais os políticos ou os escritores persuadem convencem seduzem em suma os procedimentos psicológicos pelos quais os homens agem uns sobre os outros Bem antes de Hitler Pareto afirmou que um dos meios mais eficientes para convencer seus ouvintes ou leitores é a repetição incessante da mesma coisa A repetição ainda que sem o menor valor lógicoexperimental vale mais do que a melhor demonstração lógicoexperimental Age mormente sobre os sentimentos modificando os resíduos enquanto a demonstração lógicoexpe rimental age sobre a razão e na hipótese mais favorável pode modificar as derivações mas tem pouco efeito sobre os sentimentos Quando um governo ou alguma potência financeira deseja defender uma medida pelos jornais quase sempre os argumentos que emprega estão longe de ser os melhores para demons trar a utilidade dessa medida usa em geral as piores derivações verbais dé auto ridade e outras semelhantes Mas isto pouco importa pelo contrário às vezes é útil É preciso ter sobretudo uma derivação simples que todo o mundo possa compreender até mesmo os mais ignorantes e repetila incessantemente 1749 Também muito antes de Hitler Pareto afirmou que não importa ser ra cional ou lógico mas sim dar a impressão de que se está raciocinando Há pala vras que exercem uma espécie de influência mágica sobre a multidão convém portanto empregar essas palavras embora não tenham um sentido preciso so bretudo por isto Depois fezse melhor ainda e os psicólogos inspirados na psicanálise e na psicologia de Pareto analisaram da maneira mais precisa os processos de violação das multidões4 A teoria das derivações de Pareto é uma contribuição à psicologia das relações interpessoais e intergrupais no domínio da política Estas quatro classes de derivações são inteligíveis com referência ao pen samento lógicoexperimental Este demonstra não por afirmações puras mas pelo acordo entre as proposições e os fatos observados não invoca a autorida de da tradição ou de uma pessoa mas os resultados das experiências as regu laridades constatadas Tem por obrigação empregar termos definidos exata mente e não utilizar conceitos equívocos As proposições que Pareto considera como lógicoexperimentais não se ajustam no seu conjunto aos nossos sentimentos Este desacordo ilustra a dis tinção radical entre as verdades científicas e os sentimentos das pessoas e nada tem de surpreendente As verdades experimentais ou científicas não são tão importantes na vida humana e num certo sentido seria legítimo afastálas uma vez oor todas como secundárias As proposições lógicoexperimentais só têm 400 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO interesse real para uma categoria de homens pouco numerosa os homens que preferem a verdade à utilidade o que em matéria social ou econômica é raro Precisando assim a natureza do pensamento lógicoexperimental e do pen samento nãocientífico Pareto define as relações que podem existir entre sua própria concepção do conhecimento e a de Auguste Comte Para ele o pensamento nãológicoexperimental toma como ponto de par tida fatos experimentais e a partir desses fatos chega a princípios pseudoexpe rimentais Quando é utilizado por pessoas cultas pode passar a uma terceira fa se a das abstrações sentimentais ou metafísicas fórmulas abstratas das quais os autores deduzem todas as conseqüências que lhes agradam por fim em alguns casos passa também a uma quarta fase que é a mais distanciada dos fatos expe rimentais a da personificação destas abstrações sentimentais ou metafísicas Por outro lado entre as pessoas sem cultura a ordem das fases três e quatro se inver te A invocação de forças pessoais ou da divindade lhes parece menos afastada dos fatos experimentais do que as abstrações sentimentais ou metafísicas Não é necessário um grande esforço de imaginação para transportar a outros seres a vontade e as idéias que observamos habitualmente no homem Concebese Mi nerva muito mais facilmente do que a inteligência abstrata O Deus do Decálogo é mais fácil de compreender do que o imperativo categórico 1533 Uma úl tima categoria de pessoas mesmo nas nossas sociedades pode deterse na se gunda fase a dos princípios pseudoexperimentais deixando de lado as abstra ções sentimentais ou metafísicas e as personificações Chamemos de a b e c estas três categorias Pareto escreve Já sabe mos que a evolução não segue uma linha única e que em conseqüência a hipó tese de uma população que passasse do estado c ao b e depois ao a esta ria fora da realidade Contudo para chegar ao fenômeno real podemos partir desta hipótese acrescentandolhe em seguida as considerações que nos aproxi marão da realidade Se por hipótese uma população passa sucessivamente pelos três estados c b a concluise das considerações que fizemos que a massa das ações nãológicas de c e das explicações rudimentares que são dadas produzirá aos poucos explicações por via de personificações e depois por meio de abstrações as explicações metafísicas Até o presente nunca se viu já não diríamos toda uma população mas uma parte importante de uma população chegar a dar explicações exclusivamente lógicoexperimentais e atingir assim o estado A aquele em que os homens empregam rigorosamen te e exclusivamente o método lógicoexperimental Não nos é dado de fato prever se isto acontecerá um dia Contudo se considerarmos um número limi tado possivelmente muito restrito de pessoas cultas podemos dizer que hoje há indivíduos que se aproximam deste estado A poderia acontecer embora nos falte o meio de demonstrálo que no futuro haja um número maior de pes soas que atinjam completamente esse estado 1534 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 401 Um pouco adiante Pareto comenta O fenômeno hipotético descrito pre viamente para o conjunto de uma população já foi visto bem ou mal por Comte e constitui o fundamento da sua célebre teoria dos estados fetichista teológico metafísico e positivista Ele concebe uma evolução que se poderia considerar semelhante à evolução c b a A 1536 Hoje os homens cultos quando não são lógicoexperimentais no sentido de Pareto ou positivistas no sentido de Auguste Comte recorrem às abstrações sentimentais e metafísicas Durkheim utiliza assim a idéia da sociedade como um princípio a partir do qual seria possível fazer deduções dos imperativos morais ou religiosos As abstrações sentimentais de Pareto eqüivalem aos con ceitos que Auguste Comte chamava de metafísicos Inversamente os que põem as personificações antes das abstrações se encontram ainda na fase do pensa mento teológico e os que só conhecem os fatos e os princípios pseudoexperi mentais misturando fatos observados com explicações fictícias são no fundo fetichistas na classificação de Comte Há contudo uma diferença importante entre a concepção de Pareto e a de Comte Para este último a despeito de eventuais atrasos a evolução humana avança do fetichismo para o positivismo passando pela teologia e a metafísica para Pareto estes quatro modos de pensar podem ser encontrados normalmen te em diferentes graus em todas as épocas Ainda hoje há pessoas que não ul trapassaram o pensamento fetichista ou teológico Não há portanto para a hu manidade considerada em conjunto a passagem necessária de um tipo de pen samento para outro A lei dos três estados seria verdadeira se nossos contempo râneos pensassem exclusivamente de modo lógicoexperimental mas não é isto que acontece Este método representa apenas um setor muito limitado do pen samento humano da atualidade Não é mesmo concebível que possa abranger em sua totalidade o pensamento dos indivíduos ou das sociedades Não há por tanto passagem de um tipo de pensamento a outro mediante processo único e ir reversível mas sim oscilações de acordo com o momento as sociedades e as classes na influência relativa de cada um destes modos de pensamento Tudo o que temos direito de dizer é que há uma ampliação muito lenta do setor coberto pelo pensamento lógicoexperimental testemunhada pelo desen volvimento das ciências naturais Hoje a humanidade atribui a esse pensamen to uma importância maior do que no passado De certo modo porém este pro gresso não é definitivo por outro lado não se pode imaginar que continue in definidamente Uma sociedade que estivesse toda ela sujeita ao pensamento lógi coexperimental é inconcebível Com efeito o pensamento lógicoexperimental se define pelo ajustamento entre as relações pensadas e as relações objetivas e não comporta a determinação dos fins Os homens não podem viver e agir sem assumir objetivos postulados por métodos nãocientíficos Além disso para que ajam de forma lógicoexperimental é preciso que sejam motivados pelo racio 402 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO cínio de modo a assegurar o paralelismo entre as conseqüências imaginadas e as conseqüências reais Ora a natureza do animal humano é tal que sua condu ta não pode ser sempre motivada pelo raciocínio Resíduos e derivações são palavras escolhidas arbitrariamente para designar fenômenos identificados por uma análise indutiva Esta tomando como ponto de partida derivados concretos que são as condutas humanas chega às expres sões dos sentimentos que são os resíduos e às expressões pseudoracionais que são as derivações5 Os resíduos não devem ser considerados assim como realidades concre tas e autônomas Uma conduta humana particular raramente pode ser explica da por um só resíduo A própria classificação não pretende ser definitiva suge re apenas as principais tendências das condutas humanas e ao mesmo tempo dos sentimentos Essa classificação enquanto tal não deixa de ter contudo uma significação importante porque demonstra que os comportamentos humanos são estruturados e que as motivações das condutas não são anárquicas Prova que há uma ordem interna na natureza humana e que se pode descobrir uma espé cie de lógica nas condutas nãológicoexperimentais dos homens que vivem em sociedade Esta estrutura inteligível dos resíduos é percebida através das seis classes de que as quatro mais importantes se caracterizam pelos termos combinação conservação sociabilidade e integridade pessoal Poderseia simplificar ainda mais observando que na maioria dos resíduos ligados à sociabilidade ou à inte gridade pessoal se manifestam modalidades dos resíduos da segunda classe Chegaríamos assim por uma simplificação excessiva mas fiel à inspiração de Pareto à antítese do espírito de inovação que está na origem do desenvolvimen to intelectual e do espírito de conservação que constitui o cimento necessário da ordem social A persistência dos agregados a sociabilidade e a integridade pessoal são três expressões que designam resíduos correspondentes na lingua gem ordinária aos sentimentos religiosos sociais e patrióticos O espírito de com binação tende a dissolver os conjuntos sociais mas também a favorecer os pro gressos do saber e as formas superiores da civilização Há uma espécie de anti nomia permanente na história o próprio instinto de combinação cria os valores intelectuais e dissolve a sociedade Ao lado desta estruturação dos resíduos im plicada diretamente nos textos de Pareto podese elaborar uma classificação diferente dos resíduos que embora não se encontre no texto do Traité de socio logie générale pode ser deduzida das suas proposições Indica uma interpreta ção muito diferente Distinguiríamos uma primeira categoria de resíduos os que determinam os objetivos das nossas ações O lógicoexperimental só se aplica à relação meiosfins por isso os objetivos precisam ser estabelecidos por outro proces A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 403 so que não o raciocínio em outras palavras pelos sentimentos Num primeiro sentido os resíduos exprimem portanto os estados psíquicos que fixam os obje tivos que cada um de nós assume em sua vida Em segundo lugar certas condutas não são lógicoexperimentais porque são simbólicas Os ritos de um culto religioso são condutas nãológicoexperimen tais pela simples razão de que não objetivam alcançar um efeito comparável ao obtido pela conduta do engenheiro do comandante militar ou do especulador mas sim exprimir ou simbolizar sentimentos a respeito de realidades sagradas Perten cem a esta segunda categoria as condutas rituais nãológicas porque seu sentido resulta apenas do seu caráter simbólico Uma terceira categoria de condutas que não comportam também coinci dência entre a série subjetiva e a objetiva é a das condutas políticas orientadas no sentido de objetivos ideais e comandadas na verdade por ilusões Pareto lem bra incansavelmente a aventura dos revolucionários de todas as épocas que pro metem sempre renovar o cotidiano tradicional das sociedades hoje por exemplo prometem uma sociedade sem classes e chegam a resultados às vezes úteis mas fundamentalmente diversos dos que queriam alcançar É neste ponto que intervém a teoria dos mitos de Georges Sorel6 Os homens agem com base em representações ideais que não podem ser transformadas em realidade mas têm forte poder de persuasão Os líderes socialistas provocam o entusiasmo operá rio com o mito da greve geral para citar um exemplo de Sorel ou animam ã re volta dos proletários apontando a imagem de uma sociedade sem classes no hori zonte do futuro Mas quando os chefes da revolta operária tomam o poder con clui Pareto reconstituem uma sociedade melhor ou pior do que a anterior pou co importa mas muito afastada do modelo ideal que prometiam às massas antes da revolução Este comportamento pode ser chamado de conduta pela ilu são Um objetivo é proposto aos homens e das condutas resulta uma mudan ça social no entanto o resultado efetivo não coincide com o fim pretendido pelos atores Não há uma coincidência entre a série subjetiva e a série objetiva mas esta difere por sua natureza da nãocoincidência das condutas rituais Finalmente uma quarta categoria é a das condutas determinadas por pseu doraciocínios lógicoexperimentais ou por erros Se um governo visando res tabelecer o equilíbrio da balança de pagamentos decide aumentar maciçamen te os direitos aduaneiros ou impor um controle administrativo das importações e estas medidas em lugar de favorecer o equilíbrio da balança de pagamentos agem em sentido contrário porque por exemplo com a proteção aduaneira os preços internos se elevam dificultando as exportações esta conduta governa mental é nãológicoexperimental não por se inspirar na ilusão de um objetivo ideal ou por ser um mero rito simbólico mas simplesmente porque se baseia numa teotlú T0Mi Pareto considera as condutas mágicas como pertencendo a 404 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO este tipo isto é seriam condutas determinadas por raciocínios falsos O método da análise não se ajustava às exigências lógicoexperimentais Destas quatro categorias de resíduos a quarta merece ser chamada de iló gica propriamente O nãológico decorre do fato do erro Contudo a determi nação dos fins pelos resíduos é nãológica mas não é ilógica já que de qual quer forma não há determinação lógica dos fins Da mesma forma as condu tas rituais são nãológicas mas não são ilógicas Um gesto de respeito diante da bandeira para exprimir o amor à pátria não é uma conduta ilógica porque é normal manifestar simbolicamente nosso devotamento a uma realidade sagra da Quanto aos comportamentos inspirados por ilusões eles se prestam antes a observações irônicas Se os líderes políticos que prometem a seus seguidores um objetivo ideal não acreditam no que pregam estão sendo lógicos Se acre ditam não o são O hipócrita age logicamente não o crente Estas afirmativas podem parecer chocantes mas decorrem do sentido que damos às palavras Se o líder político é um cínico quer inflamar a multidão e tomar o poder se dis tingue entre a série que apresenta a seus seguidores e a série objetiva que vai acontecer é evidentemente lógico porque tem em vista um objetivo que vai atin gir efetivamente isto é assumir o poder e modificar a sociedade em seu bene fício Mas se é uma vítima da ilusão que procura impor aos outros é nãológi co porque busca resultados que de fato não poderá obter Neste ponto da análise Pareto que estou seguindo com uma certa liberda de acrescenta que a maioria dos líderes políticos são de fato nãológicos vítimas das ilusões que pretendem difundir E preciso que seja assim porque é difícil fingir sentimentos ou difundir convicções de que não participamos Os chefes de Estado mais persuasivos acreditam na sua vocação e na sua capacidade de transformar o mundo Pelo menos até um certo ponto os condutores de povos precisam ser prisioneiros das ilusões de que os governados necessitam Não há dúvida de que esta proposição que é verdadeira é também pouco agradável Mas comentaria Pareto não há motivo para que a verdade coincida com a utilidade Afirmar que é necessário que os condutores de povos tenham as mesmas ilusões que difundem é talvez pronunciar uma afirmativa verdadei ra Contudo será necessário revelar esta verdade Será que o bom sociólogo es tá condenado a ser um mau cidadão A síntese sociológica Depois de estudar a natureza do homem social com seus resíduos e deri vações Pareto passa à análise do funcionamento da sociedade considerada em seu conjunto Este esforço de síntese sociológica corresponde aos três últimos capítulos do Traité de sociologie générale Propriétés des résidus et des déri A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 405 vations Propriedades dos resíduos e das derivações Forme générale de la so ciété Forma geral da sociedade e Léquilibre social dans 1histoire O equilí brio social na história Sabese que as classes dos resíduos variam pouco Ao longo dos séculos que podemos observar diretamente ou por meio de testemunhos históricos as seis classes de resíduos têm uma importância que não varia de modo decisivo Constatamse porém uma lenta progressão do pensamento lógicoexperimental e oscilações na importância relativa das diferentes classes de resíduos Estas os cilações da força relativa dos resíduos da primeira e da segunda classe constituem mesmo a principal causa das transformações históricas e os fatores decisivos do destino dos povos e dos Estados Pareto pergunta assim se tais resíduos expressão dos sentimentos são de terminados por sua vez por causas externas de ordem material Pareto foi influenciado numa certa época da sua vida pelo darwinismo so cial isto é pelas idéias de luta pela vida e de seleção natural aplicadas às socie dades humanas Foi tentado a explicar as lutas entre classes e sociedade pela luta pela vida os vencedores e os sobreviventes seriam os mais bemdotados Mas não se engajou muito nesta interpretação que considerava por demais mecânica e unívoca Só guardou dela sua idéia geral afinal de contas evidente a idéia de que os sentimentos ou os resíduos não devem estar em contradição muito clara com as condições da sobrevivência Se os modos de pensar e de sentir são incom patíveis com as exigências da vida coletiva a sociedade não pode durar Um mí nimo de adaptação entre os sentimentos dos povos e as necessidades vitais é sem pre necessário Sem este mínimo os povos desaparecem Pareto esclarece aliás que é possível conceber em abstrato dois tipos ex tremos de sociedade 1 Uma sociedade em que agem exclusivamente os sen timentos sem raciocínios de qualquer espécie Muito provavelmente as socie dades animais se aproximam deste tipo 2 Uma sociedade em que agem exclu sivamente os raciocínios lógicoexperimentais 2141 A sociedade humana encontrase num estado intermediário entre os dois tipos indicados Sua forma é determinada não só pelas circunstâncias externas mas também pelos sentimen tos interesses e raciocínios lógicoexperimentais que têm por objetivo assegurar a satisfação dos sentimentos e dos interesses mas também de maneira subor dinada pelas derivações que exprimem e que às vezes justificam sentimentos e interesses servindo em certos casos como meios de propaganda 2146 Uma sociedade composta exclusivamente por condutas lógicoexperimen tais não pode ser concebida afirma Pareto porque o pensamento lógicoexpe rimental não tem condições de determinar os objetivos últimos da sociedade Embora isto desagrade aos positivistas e aos humanistas não existe e não pode existir uma sociedade determinada exclusivamente pela razão Não porque os preconceitos dos homens os impeçam de seguir os ensinamentos da razão mas 406 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO porque faltam os dados do problema que se quer resolver pelo raciocínio lógi coexperimental Aparece aqui a indeterminaçao da noção de utilidade As no ções dos diferentes indivíduos a respeito do que é bom para si mesmos ou para os outros são essencialmente heterogêneas e não há uma forma de reduzilas à unidade 2143 Esta determinação nãológicoexperimental dos objetivos introduz uma li berdade na sociedade com relação ao efeito do meio natural Não que não haja uma influência do meio natural sobre as sociedades humanas mas esta influên cia está inscrita nos sentimentos e nos resíduos dos homens O mínimo de adap tação necessária é dado portanto no ponto de partida e é possível pôr entre parênteses a influência do meio natural e compreender o funcionamento da so ciedade retendo essencialmente os resíduos as derivações os interesses e a he terogeneidade social Se a determinação dos objetivos nunca é lógicoexperimental será normal falar de uma categoria de condutas ditas lógicoexperimentais Num certo sen tido até mesmo uma conduta lógicoexperimental não o é na medida em que pressupõe uma determinação do seu objetivo Esta questão permite abordar as teorias paretianas do interesse e da utilidade Por interesses entendemos as tendências que fazem com que os indivíduos e as coletividades sejam levados pelo instinto e pela razão a se apropriar dos meios materiais úteis e agradáveis à vida assim como a procurar consideração e honrarias Estas tendências se manifestam nas condutas que têm maiores pro babilidades de serem lógicas as dos sujeitos econômicos e as dos sujeitos polí ticos isto é as condutas dos que buscam o máximo de satisfação material para si mesmos e o máximo de poder e de prestígio na competição social A conduta dos trabalhadores ou dos engenheiros dirá Pareto é lógicoexpe rimental por definição O problema do objetivo fica resolvido porque a finali dade atribuída a essas condutas é evidente Consideremos o caso do engenhei ro que vai construir uma ponte É verdade que a decisão de construir uma ponte não é lógicoexperimental e que num certo sentido até mesmo um objetivo de natureza técnica decorre de decisão nãológicoexperimental mas como este objetivo tem utilidade evidente para os indivíduos interessados é fácil acentuar o acordo entre o processo intelectual dos construtores e o processo real que se desenvolve de conformidade com suas previsões A conduta dos sujeitos econômicos é interessada e lógicoexperimental por que a ciência econômica considera os indivíduos admitindo que querem alcançar determinados objetivos e empregam os meios mais apropriados para ter êxito A ciência econômica se encontra numa situação privilegiada para definir estes objetivos pois a escolha dos objetivos é feita pelo próprio sujeito O eco nomista toma os sujeitos econômicos com sua hierarquia de preferências sem fazer um julgamento a respeito dos méritos respectivos das diversas escalas de A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 407 escolha Se uma pessoa prefere gastar seu último centavo comprando pão e a outra vinho o economista toma conhecimento destas decisões mas não profere nenhum julgamento sobre sua qualidade relativa A partir das escalas de prefe rência estabelecidas livremente por cada um o economista procura reconstruir um comportamento lógico por meio do qual cada um tenta alcançar o máximo de satisfações com base nos recursos disponíveis Supõese simplesmente que os atores têm por objetivo alcançar com os recursos de que dispõem este máxi mo de satisfação Tais satisfações são fatos observáveis já que se confundem para o observador com as escolhas efetivas dos sujeitos Esta análise é objetiva uma vez que se limita a constatar as preferências dos indivíduos e não estabelece nenhuma comparação entre as satisfações do sujeito A e as do sujeito B A economia pura escolheu uma norma única que é a satisfação do indivíduo e determinou que ele é o único juiz dessa satisfa ção Assim se definiu a utilidade econômica ou ofelimidade Mas se colocarmos o problema também muito simples de procurar o que é mais vantajoso para o indivíduo abstraindo sua preferência aparece logo a necessidade de uma regra que é arbitrária Por exemplo diremos que é melhor para ele sofrer fisicamen te para desfrutar moralmente ou viceversa Diremos que é melhor para ele procurar exclusivamente a riqueza ou preocuparse com outra coisa Em eco nomia pura nós lhe deixamos a responsabilidade de decidir 2110 Para evi tar confusão falaremos portanto de ofelimidade em vez de utilidade para indi car as satisfações obtidas pelo indivíduo em virtude da sua hierarquia de prefe rências e dos meios de que dispõe Um indivíduo age logicamente na medida em que tende a maximizar seu valor É normal de fato que cada indivíduo queira garantir para si a satisfação máxima ficando entendido que este máximo não è necessariamente o máximo de prazer mas pode ser também o máximo de pri vações Se uma pessoa encontra a satisfação máxima na moralidade e não nos prazeres pode comportarse tão logicamente quanto o avaro ou o ambicioso Para falar de ofelimidade é preciso que cada indivíduo seja o único árbitro da sua escala de preferências e que a conduta que assegura o máximo de valor seja de terminada com base na conjuntura Duas dificuldades se apresentam imediatamente na transferência deste con ceito de ofelimidade para a sociedade Esta não é uma pessoa e não tem portanto uma escala de preferências porque os indivíduos que a compõem têm normal mente hierarquias de preferências distintas Se as utilidades dos indivíduos fos sem quantidades homogêneas e fosse possível em conseqüência comparálas e somálas nosso estudo não seria difícil pelo menos teoricamente Adicionaríamos as utilidades dos diversos indivíduos e teríamos a utilidade da coletividade cons tituída por eles Voltaríamos assim aos problemas já estudados Mas as coisas não acontecem tão ôplmente assim As utilidades dos diferentes indivíduos são quan 408 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tidades heterogêneas não tendo sentido falar na soma destas quantidades esta soma não existe e não é possível concebêla 21262127 Por outro lado para uma sociedade no seu conjunto hesitamos entre dife rentes categorias de utilidade Por exemplo podese considerar que a utilidade da sociedade é o máximo de poder no cenário internacional ou o máximo de pros peridade econômica ou de justiça social esta última compreendida como a igual dade na repartição das rendas Em outras palavras a utilidade não é um conceito definido e antes de falar de modo lógicoexperimental sobre a utilidade social é preciso chegar a um acordo sobre o critério de utilidade A utilidade social é um estado da sociedade suscetível de variações para mais e para menos que só pode ser definido a partir de um critério escolhido arbitrariamente pelo sociólogo A utilidade social não é um conceito unívoco e só passa a sêlo na medida em que o sociólogo indique exatamente o sentido que atribui a essa noção Se decide cha mar de utilidade o poderio militar este pode ser de mais ou de menos Mas esta definição é apenas uma dentre outras que são também possíveis O problema da utilidade social se coloca portanto nos seguintes termos Não há solução lógicoexperimental para o problema social ou o pro blema de conduta que o indivíduo deve adotar porque os objetivos da conduta nunca são determinados de modo lógicoexperimental A noção de utilidade é equívoca e só se toma clara pela escolha de um critério que incumbe ao observador Não devemos concluir que é impossível re solver os problemas que consideram ao mesmo tempo diferentes utilidades he terogêneas contudo para tratar destas utilidades heterogêneas é preciso admitir uma hipótese que as tome comparáveis Quando falta esta hipótese o que acon tece com muita freqüência tratar desses problemas é absolutamente inútil Neste caso ela é simplesmente uma derivação com que escondemos certos sentimen tos sobre os quais devemos fixar exclusivamente nossa atenção 2137 Podemos medir em teoria com rigor e objetividade a ofelimidade de um indivíduo mas esta mensuração só é possível se admitimos a priori como váli da a escala de preferências do indivíduo que age Mesmo admitindo um critério definido de utilidade convém distinguir a utilidade direta e a indireta a utilidade total é a soma destas duas utilidades A utilidade indireta resulta em primeiro lugar dos efeitos do ato sobre o am biente do indivíduo que age Se uma potência deseja adquirir no mundo atual uma força atômica a utilidade direta será a vantagem ou a desvantagem se se trata de utilidade negativa resultante da aquisição daquela força A utilidade indireta positiva ou negativa será a que resulte para o Estado da transformação provocada no conjunto do sistema internacional Se o aumento do número de po tências atômicas faz com que cresça a probabilidade de uma guerra nuclear a utilidade indireta será por essa razão negativa A utilidade indireta negativa pode aliás ser maior ou menor do que a utilidade direta Para medir a utilidade glo A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 409 bal de um indivíduo ou de uma coletividade será preciso levar em conta além da utilidade direta a indireta ligada à transformação do sistema considerado A utilidade indireta pode resultar também das repercussões do comportamento dos outros sobre o ator e não da transformação de todo o sistema Por exemplo no contexto atual se os Estados Unidos ou a União Soviética se conduzem com re lação à França pelo fato de que este país possui uma força atômica de maneira diferente da que adotariam se a França não fosse uma potência nuclear o resul tado é uma utilidade positiva ou negativa que será preciso acrescentar à utili dade direta para calcular a utilidade total O raciocínio parece levar a um impasse para prosseguir convém distinguir entre o máximo de utilidade para uma coletividade e o máximo de utilidade de uma coletividade O máximo de utilidade para uma coletividade é o ponto a partir do qual é impossível aumentar a utilidade de um indivíduo dessa coletividade sem dimi nuir a de um outro Enquanto este ponto não for alcançado isto é enquanto for possível aumentar a utilidade de certas pessoas sem diminuir a de outras o óti mo não terá sido atingido e será racional prosseguir Este máximo de utilidade para uma coletividade supõe um critério de uti lidade Se como na economia pura definimos a utilidade em termos de ofeli midade ou de satisfação para os indivíduos de acordo com seus próprios siste mas de preferência será normal e lógico por parte dos governantes ir até o ponto de utilidade máxima para a coletividade Quando a coletividade se encon tra num ponto Q do qual pode afastarse com vantagem para todos os indiví duos obtendo para todos maiores satisfações está claro que do ponto de vista econômico e caso se procure apenas o interesse de todos os indivíduos que com põem a coletividade convém não se deter em um tal ponto mas continuar a se distanciar enquanto for vantajoso para todos 2129 Podese falar portanto sobre um máximo de ofelimidade para a coletivi dade determinada independentemente de qualquer comparação entre as ofeli midades de indivíduos distintos Contrariamente como não se podem por defi nição comparar e em seguida adicionar as ofelimidades de A e B porque são quantidades heterogêneas a coletividade não pode ser considerada como uma pessoa e o máximo de ofelimidade de uma coletividade não existe ou mais exatamente não pode existir Em sociologia podese contudo ao lado do máximo de utilidade para uma coletividade considerar o máximo de utilidade de uma coletividade vista como o equivalente a uma pessoa sem confundir as duas coisas O máximo de utili dade de uma coletividade não pode ser objeto de uma determinação lógicoex perimental De um lado ele exige para ser definido a escolha de um critério como a glória o poder a prosperidade Por outro lado uma coletividade não é uma pessoa os sistemas de valores e as preferências dos indivíduos não são os 410 AS ETAPAS D O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mesmos e em conseqüência o máximo de utilidade de uma coletividade só po derá ser objeto de uma determinação arbitrária isto é em que não podem ser aplicados os métodos lógicoexperimentais Se considerarmos as satisfações dos indivíduos é normal que elas sejam aumentadas ao máximo e este máximo não será atingido enquanto for possí vel aumentar as satisfações de alguns sem diminuir as de outros Quando este ponto for atingido entraremos na faixa dos equívocos inextricáveis da compa ração das utilidades Além desse ponto será possível dar mais satisfação a alguns admitamos ao maior número à custa das satisfações de alguns outros que poderiam constituir o menor número contudo para poder afirmar que devemos proceder logicamente a esta redistribuição das utilidades é preciso admitir que as utilidades dos diferentes indivíduos são comparáveis Ora sabe mos que as utilidades de duas pessoas são radicalmente incomparáveis pelo me nos usando métodos científicos Todavia feitas estas reservas até mesmo o ponto do máximo de utilidade para a coletividade não se impõe com a força da evidência aos que refletem sobre o destino da sociedade Com efeito não se pode excluir que este ponto do máximo de utilidade para uma coletividade a saber o ponto em que o maior número possível de indivíduos têm toda a satisfação possível com base em re cursos disponíveis seja um ponto de fraqueza ou de rebaixamento nacional Ora entre a noção do máximo de satisfação para o maior número possível de indivíduos e a noção de poder ou de glória da coletividade a heterogeneidade é radical A sociedade mais próspera não é necessariamente a mais poderosa ou a mais gloriosa O Japão de 1937 era uma grande potência militar Tinha criado um império o Manchuco e estava em vias de dominar a China Simultanea mente o nível de vida da população japonesa era relativamente baixo o regi me político do país era autoritário e a disciplina social severa A situação do Japão de 1937 não representava o máximo de utilidade para a coletividade Muitas medidas poderiam ter sido tomadas para melhorar a satisfação de muitos sem diminuir a de ninguém A partir de 19461947 o Japão passou a ter o mais elevado índice de crescimento do produto nacional bruto em todo o mundo inclusive o mundo soviético e o nível de vida se elevou rapidamente Ao mesmo tempo o Japão deixou de ter força militar marinha de guerra e império colo nial O que é preferível a situação do Japão economicamente próspero de 1962 ou a situação do Japão militarmente poderoso de 1937 Não há uma resposta lógicoexperimental a esta pergunta O estado demográfico econômico ou so cial de um país onde os indivíduos vivem agradavelmente pode ser acompanha do pelo declínio da glória ou do prestígio A noção de heterogeneidade tem um papel muito importante na sociologia de Pareto Assim a sociedade não pode ser considerada como uma pessoa por A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 411 que os sistemas de valores dos indivíduos são radicalmente heterogêneos Pa reto usa também a expressão heterogeneidade social para designar o fato de que todas as sociedades conhecidas comportam a separação e num certo sentido a oposição entre a massa dos indivíduos governados e um pequeno número de pessoas que dominam e que ele chama de elite Na sociologia de Marx a dis tinção das classes é fundamental na sociologia de Pareto a distinção entre mas sas e elite é decisiva Esta distinção pertence à tradição maquiaveliana Encontramos em Pareto duas definições de elite uma ampla que cobre o conjunto da elite social e outra mais restrita que se aplica apenas à elite gover namental A definição ampla considera que fazem parte da elite o pequeno número de indivíduos que cada um na sua esfera de ação chegaram a um escalão ele vado da hierarquia profissional Vamos admitir que em todos os ramos da ati vidade humana se atribui a cada indivíduo um índice representativo das suas capacidades mais ou menos como são atribuídas notas aos alunos num exame nas diferentes matérias estudadas nas escolas Por exemplo aos que são exce lentes na sua profissão daremos nota 10 Àquele que consegue um só cliente daremos nota 1 de modo a atribuir 0 ao que é realmente cretino A quem con seguiu ganhar milhões pelo bem ou pelo mal daremos 10 A quem ganha mi lhares de francos daremos 6 Àquele que consegue deixar de morrer de fome 1 Ao que termina hospitalizado num asilo de indigentes daremos 0 À mulher política tal como Aspásia de Péricles Maintenon de Luís X iy Pompadour de Luís XV que souberam atrair as boas graças de um homem poderoso e que tive ram um papel no governo da coisa pública daremos nota 8 ou 9 À mulher de vida fácil que só sabe satisfazer os sentidos desses homens e não tem nenhuma influência sobre a coisa pública daremos nota 0 Ao escroque habilidoso que engana as pessoas mas escapa do código penal atribuiremos 89 ou 10 segun do o número de bobos que ele soube prender nas malhas de sua rede e o dinhei ro que lhes soube arrancar Ao pobre ladrão de pouca importância que rouba talheres num restaurante e se deixa apanhar pela polícia daremos 0 Com rela ção aos jogadores de xadrez podemos adotar índices mais precisos refletindo o número de partidas que ganharam E assim por diante em todos os campos da atividade humana Formaremos então uma classe incluindo todos os que têm índices mais elevados no seu ramo respectivo de atividade e chamaremos esta classe de elite Qualquer outro nome e até mesmo uma simples letra do al fabeto bastariam para o objetivo a que nos propomos 2027 e 2031 De acordo com a regra do método de Pareto esta definição é objetiva e neutra Não é preciso procurar um sentido profundo metafísico ou moral para a noção de elite tratase de uma categoria social objetivamente perceptível Não precisa mos indagar se a elite é verdadeira ou falsa e quem tem direito de figurar nela Todas estas questões são vãs A elite está composta dos que mereceram boas notas no concurso da vida ou tiveram sorte na loteria da existência social 412 AS ETAPAS D O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Mas Pareto praticamente não se utiliza desta definição ampla que na rea lidade tem o propósito de introduzir a definição restrita de elite governante que agrupa um pequeno número de indivíduos entre os que tiveram êxito que exer cem funções políticas ou socialmente dirigentes Para nosso estudo que tem como objeto o equilíbrio social será bom dividir essa classe em duas Poremos à parte aqueles que de forma direta ou indireta desempenham uma função notá vel no governo e que constituem a elite governante O resto formará a elite não governante Por exemplo um célebre jogador de xadrez participa indubitavel mente da elite contudo seus méritos de jogador de xadrez não lhe abrem cami nho para exercer uma influência no governo Em conseqüência se não tiver ou tras qualidades não fará parte da elite governante As amantes dos soberanos absolutos ou dos políticos muito poderosos com freqüência pertencem à elite seja por causa de sua beleza seja por seus dotes intelectuais Mas só algumas delas que tinham as aptidões especiais requeridas pela política desempenharam um papel no governo Identificamos portanto duas camadas na população 1 a ca mada inferior classe estranha à elite No momento não vamos estudar a influên cia que ela pode exercer sobre o governo 2 a camada superior a elite que se divi de em duas d a elite governante b a elite nãogovemante 2032 a 20347 Pareto esclarece mais adiante que é tal a tendência a personificar as abs trações ou a darlhes apenas uma realidade objetiva que muitas pessoas conce bem a classe governante quase que como uma pessoa ou pelo menos como uma unidade concreta que supõem ter uma vontade única acreditam que ado tando medidas lógicas ela realiza seus programas É assim que muitos antise mitas imaginam os semitas e muitos socialistas imaginam os burgueses 2254 É evidente que pelo menos a priori as coisas não são assim Por sua vez a clas se governante não é homogênea Ibid As sociedades são caracterizadas pela natureza das suas elites sobretudo das suas elites governantes De fato todas as sociedades têm uma característica que os moralistas podem considerar deplorável mas que os sociólogos são obriga dos a constatar há uma distribuição muito desigual dos bens neste mundo e uma distribuição mais desigual ainda do prestígio do poder e das honrarias associa das à competição política Esta distribuição desigual dos bens materiais e mo rais é possível porque afinal um pequeno número de pessoas governa um gran de número recorrendo a dois tipos de meios a força e a astúcia A população se deixa dirigir pela elite porque esta detém os meios de força ou então porque consegue convencer isto é sempre enganar mais ou menos o grande número Governo legítimo é aquele que teve êxito no processo de persuasão dos gover nados convencendoos de que é apropriado aos seus interesses a seus deveres ou à sua honra obedecer ao pequeno número Esta distinção dos dois meios de governo a força e a astúcia é a transposição da famosa oposição entre os leões e as raposas apontada por Maquiavel As elites políticas dividemse natural A GERAÇÃO DA PASSAGEM D O SÉCULO 413 mente em duas famílias uma das quais merece ser chamada de família dos leões porque tem preferência marcante pela brutalidade e a outra de família das ra posas porque se inclina para a sutileza Esta teoria da heterogeneidade social e das elites desenvolvida no Traitè de sociologie générale deve ser aproximada da teoria da repartição da renda exposta em vários livros entre eles o Cours d économ iepolitique e Les systè mes socialistes No Cours d économie politique Pareto explica que a curva de distribuição da renda pode ser representada por uma reta cuja equação é log N log A a log x em que x é a dimensão da renda e N o número de indivíduos que têm renda igual ou superior a x A e a são constantes a serem determinadas de acordo com as estatísticas disponíveis a dá a inclinação sobre o eixo dos x da linha dos logaritmos Na parte do gráfico em escala logarítmica dupla onde estão representadas as rendas superiores à média uma diminuição da inclina ção de a indica uma menor desigualdade das rendas8 Todas as séries estatísti cas essencialmente de origem fiscal mostram segundo Pareto que a tem um valor semelhante em todos os países valor que se situa em tomo de 15 A mesma fórmula de distribuição das rendas se aplica portanto a todas as sociedades Pareto comenta Estes resultados são notáveis É absolutamente impossível admitir que são devidos somente ao acaso Não há dúvida de que existe uma cau sa que produz a tendência das rendas para se dispor segundo uma curva deter minada A forma desta curva parece depender muito pouco da diferença de condições econômicas pois os efeitos são mais ou menos os mesmos em paí ses cujas condições econômicas são tão diferentes entre si quanto a Inglaterra a Irlanda a Alemanha cidades italianas e mesmo o Peru Cours d économie politique 960 E mais adiante A desigualdade da distribuição das rendas parece depender portanto muito mais da própria natureza dos homens do que da organização econômica da sociedade Modificações profundas nesta organi zação poderiam ter pouca influência no sentido de alterar a lei da distribuição da renda Ibid 1012 A distribuição das rendas que se observa esclarece contudo Pareto não reflete exatamente a heterogeneidade social isto é a dis tribuição desigual das qualidades eugênicas Seria assim se houvesse uma per feita mobilidade entre as diferentes camadas sociais mas esta depende ao mes mo tempo da repartição das qualidades que permitem aos homens se enrique cer e da disposição dos obstáculos que impedem o exercício dessas faculda des Cf a Addition au cours d économiepolitique t II p 418 Em Les sys tèmes socialistes Pareto resume suas idéias de maneira muito clara Demons tramos que a curva da distribuição das rendas tinha uma estabilidade notável ela se altera muito pouco quando as circunstâncias de tempo e de lugar em que é observada mudam muito Esta proposição que decorre dos fatos recolhidos pela estatística surpreende à primeira vista Sua origem reside provavelmente na distribuição dos caracteres psicológicos dos homens e também no fato de que 414 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO as proporções em que os capitais se combinam não podem ser indefinidas T I p 162 Pareto conclui que as rendas inferiores não podem aumentar e que a desigualdade das rendas não pode diminuir a não ser que haja um crescimen to das riquezas proporcional à população O problema do crescimento do bem estar das classes pobres é mais um problema de produção e de conservação da riqueza do que um problema de distribuição O meio mais seguro para melho rar a condição das classes pobres é agir de modo que a riqueza cresça mais de pressa do que a população Cours d économie politique 1036 Assim a idéia da constância da ordem social teria um fundamento econô mico Sem entrar aqui numa discussão detalhada da lei de Pareto levantarei pelo menos duas reservas Nos países socialistas não é certo que a fórmula antiga continue válida mesmo que o fosse a ordem social não é caracterizada adequa damente só pela curva da distribuição da riqueza e das rendas A teoria das elites governantes se aproxima das teses que outro italiano Gaetano Mosca tinha exposto um pouco antes de Pareto o que provocou vio lenta controvérsia na Itália Teria Pareto utilizado as idéias de Mosca mais do que era conveniente citandoo um pouco menos do que seria justo9 A teoria das elites governantes de Mosca era menos psicológica e mais política Segundo este autor cada elite política se caracteriza por uma fórmula de governo que eqüivale mais ou menos ao que chamamos de ideologia da legitimidade A fór mula de governo ou fórmula política é a idéia em nome da qual uma minoria governante justifica seu domínio procurando convencer o povo da legitimida de do seu poder Na sociologia de Pareto as diversas elites políticas são carac terizadas sobretudo pela abundância relativa dos resíduos da primeira e da segunda classes As raposas são as elites que dotadas de abundantes resíduos da primeira classe preferem a astúcia e a sutileza e se esforçam por manterse no poder pela propaganda multiplicando as combinações políticofinanceiras Essas elites são características dos regimes chamados democráticos que Pareto chamava de plutodemocráticos Esta interpretação das peripécias da política em termos de resíduos da pri meira ou da segunda classe pode ser encontrada ainda hoje em certos autores Um pouco antes da passagem da IV para a V República Jules Monnerot expli cou que a classe política da IV República sofria de um excesso de resíduos da primeira classe e que era necessário para restabelecer a estabilidade no país favorecer o acesso ao poder de uma elite que tivesse resíduos da segunda clas se mais numerosos usando menos a astúcia e mais a força10 O paretiano J Monnerot suspeitava de que as raposas da IV República dessem a independên cia à Argélia e quando isso aconteceu passou para a oposição Quatro variáveis permitem portanto compreender o movimento geral da sociedade os interesses os resíduos as derivações e a heterogeneidade social Es tas quatro variáveis principais das quais depende o movimento da sociedade estão em estado de mútua dependência A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 415 A fórmula da mútua dependência se opõe à fórmula atribuída ao marxismo da determinação do conjunto dos fenômenos sociais pela economia Significa que cada uma das variáveis age sobre as outras três ou é afetada por elas O inte resse age sobre os resíduos e as derivações de acordo com a correlação eviden ciada pelo materialismo histórico que é real Mas os resíduos e as derivações os sentimentos e as ideologias agem também sobre as condutas e os sistemas econômicos Finalmente a heterogeneidade social isto é a rivalidade das elites e a luta entre as massas e a elite é afetada pelos interesses mas age também sobre eles Não há uma determinação do conjunto por uma variável mas sim pela ação recíproca das variáveis umas sobre as outras11 A oposição entre a teoria de Pareto e a de Marx pelo menos como ele com preendia esta última aparece mais claramente no modo como interpreta a luta de classes Pareto afirma explicitamente em particular em Les systèmes socia listes que Marx tem razão e que através de toda a história a luta de classes é um dado fundamental talvez mesmo o dado fundamental Marx porém segundo Pareto errou em dois pontos Em primeiro lugar é falso que a luta de classes seja determinada exclusivamente pela economia isto é pelos conflitos resultantes da propriedade dos meios de produção pois a posse do Estado e da força militar pode constituir igualmente a fonte da oposi ção entre a elite e a massa Há uma página de Les systèmes socialistes muito clara a este respeito Muitas pessoas acreditam que se fosse possível encontrar uma receita para fazer desaparecer o conflito entre o trabalho e o capital a luta de classes desapareceria também Tratase de uma ilusão da classe muito nume rosa dos que confundem a forma com o fundo A luta de classes não passa de uma modalidade da luta pela vida e o que conhecemos como conflito entre o traba lho e o capital não é mais do que uma forma da luta de classes Na Idade Média poderseia ter acreditado que se desaparecessem os conflitos religiosos a socie dade se teria pacificado Esses conflitos religiosos não eram senão uma forma de luta de classes desapareceram pelo menos em parte e foram substituídos pelos conflitos socialistas Suponhamos que o coletivismo esteja estabelecido que o capital não exista mais está claro que nesta hipótese ele não poderia mais entrar em conflito com o trabalho Contudo apenas uma forma da luta de clas ses terá desaparecido e será substituída por outras Surgirão conflitos entre os diferentes tipos de trabalhadores no Estado socialista entre os intelectuais e os nãointelectuais entre diferentes grupos de políticos entre estes e seus ad ministrados entre os inovadores e os conservadores Haverá realmente quem imagine com seriedade que a instituição do socialismo secará completamente a fonte das inovações sociais Que a fantasia dos homens não dará à luz novos projetos e que os interesses não induzirão certas pessoas a adotar esses oroie 416 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tos na esperança de alcançar um lugar preponderante na sociedade Les sys tèmes socialistes t II p 467 Além disso Marx se enganava ao acreditar que a luta de classes atual dife re essencialmente da que podemos observar através dos séculos e que a vitó ria do proletariado lhe porá um fim A luta de classes da época contemporânea na medida em que é a do proletariado e da burguesia não levará à ditadura do proletariado mas sim ao domínio dos que falarão em nome do proletariado isto é de uma minoria privilegiada como todas as elites que a precederam e que a sucederão Para Pareto não se pode crer ou esperar que a luta das minorias pelo poder possa modificar a evolução imemorial das sociedades levando a um esta do fundamentalmente diferente Em nossos dias os socialistas viram muito bem que a revolução do fim do século XVIII simplesmente colocou a burguesia no lugar da antiga elite e chegaram mesmo a exagerar consideravelmente o peso da opressão dos novos senhores embora acreditem com toda a sinceridade que uma nova elite de políticos manterá suas promessas melhor do que as que se su cederam até hoje Todos os revolucionários proclamam sucessivamente que as revoluções passadas não fizeram mais do que iludir o povo só a revolução que eles têm em vista será a verdadeira O Manifesto do partido comunista afirma va em 1848 que todos os movimentos históricos foram até aqui movimentos minoritários em favor de minorias O movimento proletário seria o movimen to espontâneo da imensa maioria em benefício da imensa maioria Infelizmen te esta verdadeira revolução que deve trazer aos homens a felicidade sem qual quer mistura não passa de uma miragem decepcionante que nunca se transfor ma em realidade Lembra a idade do ouro dos milenários sempre esperada ela se perde nas brumas do futuro escapando a seus fiéis no momento em que estes pensam alcançála Les systèmes socialistes 11 pp 6062 De acordo com Pareto o fenômeno historicamente mais importante é o da vida e da morte das minorias governamentais ou para usar um termo que ele às vezes emprega das aristocracias Há uma fórmula célebre A história é um ce mitério de aristocracias Traité de sociologie générale 2053 Ou ainda A história das sociedades humanas é em grande parte a história da sucessão das aristocracias Manuel d économiepolitique Cap VII 115 A história das sociedades é a história da sucessão de minorias privilegiadas que se formam lutam chegam ao poder aproveitam o poder e decaem para ser substituídas por outras minorias Este fenômeno das novas elites que por um incessante movi mento de circulação surgem das camadas inferiores da sociedade sobem até as camadas superiores se desenvolvem e em seguida decaem são aniquiladas e desaparecem é um dos principais da história é indispensável leválo em conta para compreender os grandes movimentos sociais Les systèmes socialistes 11 p 24 O sociólogo precisa indagar por que as aristocracias ou as minorias dirigentes têm quase sempre tão pouca estabilidade e duração A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 417 As causas desta mortalidade das aristocracias tais como Pareto as analisa são as seguintes 1 Muitas aristocracias foram aristocracias militares que pereceram dizi madas em combates As aristocracias militares desaparecem mais rapidamente porque seus membros são obrigados a arriscar a vida nos campos de batalha 2 De modo quase geral ao fim de algumas gerações as aristocracias per dem sua vitalidade ou sua capacidade de usar a força Pareto diria que não é possível governar os homens sem uma certa propensão à violência embora não se devam confundir força e violência que afirma acompanha muitas vezes a fra queza Geralmente os netos e bisnetos dos que conquistaram o poder aproveita ram sua situação familiar privilegiada desde cedo sendo marcados pelo desen volvimento dos resíduos da primeira classe Dedicamse às combinações inte lectuais às vezes até mesmo aos prazeres superiores da civilização e da arte mas se tomam incapazes da ação exigida pela ordem social De acordo com a filo sofia de Pareto as aristocracias mais moderadas e em conseqüência as mais suportáveis pelos povos são aquelas que vítimas da sua debilidade são arras tadas por uma revolução e substituídas por uma elite violenta A nobreza fran cesa do fim do século XVIII estava esgotada aderiu a uma filosofia humanitá ria sabia gozar a vida encorajava as idéias liberais E morreu no cadafalso Seu desaparecimento foi ao mesmo tempo deplorável e justo pelo menos na ordem da justiça que exige que as aristocracias cumpram sua função e não se aban donem a sentimentos talvez apreciáveis mas que não permitem que uma classe continue a ser dirigente Toda elite que não está disposta a lutar para defender suas posições está em plena decadência Nada lhe resta senão entregar seu lugar a uma outra elite que tenha as qualidades viris que lhe faltam Se imagina que os princípios humanitá rios que proclamou lhe serão aplicados sonha os vencedores farão ressoar nos seus ouvidos o implacável vae victis A lâmina da guilhotina era afiada na sombra quando no fim do século as classes dirigentes francesas aplicavamse ao desenvol vimento da sua sensibilidade Essa sociedade ociosa e frívola que vivia como parasita falava em ceias elegantes sobre o modo de livrar o mundo da supersti ção e de esmagar o infame sem pensar que ela própria seria esmagada Les sys tèmes socialistes 11 p 40 3 Por fim e principalmente não pode haver uma harmonia duradoura en tre os dons dos indivíduos e as posições sociais que estes ocupam As posições ocupadas pelos indivíduos dependem amplamente das vantagens que tiveram no ponto de partida isto é das posições ocupadas pelos pais Contudo as leis da hereditariedade são tais que não se pode contar com que os filhos dos que têm capacidade de comando terão a mesma capacidade Em cada elite em cada mo mento há indivíduos que não merecem participar dela e na massa há pessoas 418 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO que têm qualidades para fazer parte da elite Se as aristocracias humanas fossem sempre semelhantes às grandes raças de animais que se reproduzem por longos períodos quase que com as mesmas características a história da raça humana seria totalmente diferente da que conhecemos Traité de sociologie générale 2055 Nestas condições como a estabilidade social pode ser mantida Fundamentalmente toda elite que encontra na massa uma minoria digna de pertencer ao pequeno grupo dos dirigentes pode escolher entre dois procedimen tos que pode também empregar simultaneamente em proporções variáveis eli minar os candidatos a participar da elite que são normalmente revolucionários ou absorvêlos Este último processo é naturalmente mais humano e pode tam bém ser mais eficaz isto é o mais apropriado para evitar as revoluções A elite que demonstrou maior virtuosismo no método de absorção dos revolucionários potenciais foi a inglesa que há vários séculos abriu suas portas a alguns dos mais bemdotados dentre os que não nasceram na classe privilegiada A eliminação é feita por diferentes sistemas O mais humano é o exílio De acordo com uma teoria difundida na Europa no século XIX a principal virtude das colônias era justamente proporcionar um caminho de escape para os revolu cionários Em 1871 Renan em La réforme intelectuelle et morale de la France ainda considerava que as sociedades privadas da válvula de segurança que era a emigração estavam condenadas aos distúrbios internos as colônias eram precio sas deste ponto de vista Pensava que toda sociedade tem líderes virtuais insa tisfeitos que convém absorver ou então eliminar O procedimento desumano da eliminação que Pareto observa com objetividade é naturalmente a morte méto do que tem sido utilizado com muita freqüência através da história Seguindo ciclos de dependência mútua as sociedades conhecem portanto uma circulação das elites fenômeno que constitui o principal aspecto daquilo que Pareto chama de forma geral da sociedade Devido à impossibilidade de uma harmonia total entre os dons herdados dos indivíduos e a posição que ocupam na hierarquia toda sociedade tem fato res de instabilidade As sociedades são agitadas também pelas oscilações de freqüência dos resíduos da primeira e da segunda classe Quando uma elite está por muito tempo no poder sofre de um excesso de resíduos da primeira classe tornase excessivamente intelectual o que não significa demasiadamente inte ligente rejeitando com exagero o uso da força Por isto mesmo é vulnerável Os violentos nascidos na massa mobilizam então essa força contra a elite O equilíbrio social isto é a situação que reduz os riscos de revolução pres supõe um certo grau de abundância dos resíduos da primeira classe na elite e uma abundância maior dos resíduos da segunda classe na massa Para que uma ordem seja duradoura é preciso religião para o povo e inteligência nos que go vernam muitos o disseram de forma diferente mais cínica e talvez mais cho A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 41 cante Isto quer dizer em linguagem paretiana que é preciso que as massas tt nham mais resíduos da segunda classe e eventualmente da quarta e da quintí e que as elites que têm necessidade de agir com eficácia disponham de resíduo da primeira Entretanto mesmo na elite os resíduos da primeira classe não podem ser exa geradamente numerosos nem se degradarem completamente os resíduos da persis tência dos agregados da sociabilidade e da integridade pessoal Com efeito à me dida que aumentam os resíduos da primeira classe os indivíduos se tom am mai inclinados a seus interesses pessoais e mais egoístas Ora se uma classe dirigen te deve ter a inteligência de responder às circunstâncias e a capacidade de se Hap tar ao mundo tal como ele é para poder durar precisa também conservar o senti mento do dever e a consciência da sua própria solidariedade Surge assim uma espécie de contradição entre a propensão às combinações e o sentido da solidariedade moral e social elementos indispensáveis às elites Por isso inevitavelmente a história se faz com oscilações de duração mais ou menos longa Uma fase marcada pelo espírito de dúvida e o ceticismo é de re pente seguida pelo ressurgimento dos resíduos da segunda da quarta e da quin ta classe O ressurgimento dos resíduos da segunda classe corresponde aos gran des movimentos de fé coletiva a que Durkheim aludia ao dizer que as crises de exaltação coletiva nascem da religião Pareto poderia admitir essa fórmula e poderia acrescentar precisamente que a história é feita de alternâncias repeti das incessantemente entre fases de ceticismo e também muitas vezes de civili zação e inteligência e fases de fé patriótica ou religiosa São as oscilações dos resíduos na massa e na elite que determinam os ciclos de dependência mútua Para completar esta reconstrução do conjunto do movimento social Pareto desenvolve ainda duas antíteses que se situam na ordem econômica entre os que vivem de especulação e os que vivem de renda e entre a atividade livre dos agentes econômicos criadores de riqueza e a burocratização A oposição entre os especuladores e os que vivem de renda corresponde de certo modo na ordem econômica à antítese dos leões e das raposas na ordem política12 Tratase com efeito de duas atitudes econômicas possíveis a dos cria dores de riqueza pela combinação e a especulação e a dos indivíduos que al mejam acima de tudo a segurança dos seus bens e se esforçam por obtêla me diante aplicações que consideram seguras Se não houvesse falências e desva lorização monetária os que vivem de renda terminariam por possuir toda a riqueza existente Um centavo investido com juros compostos na época do nas cimento de Cristo se mantido seu valor real representaria hoje provavelmente uma fortuna superior à de toda a humanidade É preciso portanto que de tempo em tempo aqueles que vivem de renda sejam despojados do seu patrimônio Is to não deve acontecer contudo com muita freqüência para que a raça dos que vivem 8 criadores de poupança não desapareça De fato as so 420 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ciedades continuam a incluir pessoas que criam riquezas e que delas se apode ram graças à arte das combinações e pessoas que buscando a segurança termi nam vitimadas pelos astuciosos ou pelos violentos A última antítese é a que existe entre a iniciativa e a burocracia e não se confunde com a anterior Pareto é engenheiro e economista de formação En genheiro pôde observar o trabalho criador de riqueza economista de inspira ção liberal analisou a conduta dos agentes econômicos que defendendo seus interesses próprios contribuem para o desenvolvimento dos recursos da coleti vidade À livre iniciativa dos agentes econômicos Pareto opõe a cristalização social ou a organização estatal e burocrática Por razões políticas e demagógi cas os Estados são levados a intervir no funcionamento da economia a nacio nalizar as empresas a redistribuir as rendas e a substituir assim progressiva mente a concorrência favorável às iniciativas individuais e à expansão por uma ordem burocrática que tende progressivamente à cristalização Para Pareto as sociedades da Europa ocidental eram governadas por elites plutocráticas pertencentes à família das raposas dominadas exageradamente pelo instinto das combinações e cada vez mais incapazes de empregar a força indispensável ao governo das sociedades Via surgirem novas elites que usariam mais a força e menos a astúcia renovando as fórmulas de legitimidade Pareto te ria certamente reconhecido nas elites fascistas e comunistas estas elites violentas da família dos leões que tomam o poder nas sociedades decadentes Ao mesmo tempo na visão de Pareto o movimento das sociedades européias modernas se orienta no sentido da ampliação gradual do número das atividades burocratiza das no sentido do recalque do papel da livre iniciativa criadora de riqueza As sociedades européias evoluem no sentido da economia coletivista e cristaliza da Bizâncio nos mostra aonde pode levar a curva de evolução que nossas so ciedades estão em vias de percorrer Traité de sociologie générale 2612 Não se pode dizer com certeza que Pareto considerava esta cristalização bu rocrática como próxima Na verdade sobre este ponto os textos são contraditó rios Às vezes esta perspectiva é apresentada como distante outras vezes Pareto parece acreditar que a fase burocrática poderia ter início brevemente13 Não há dúvida porém de que quando escreveu o Traité de sociologie générale isto é às vésperas da guerra de 1914 surgiam elites violentas e economias estatiza das Por mais desagradável que pudesse ser sua teoria seria difícil não lhe atri buir uma parte de verdade O Traité de sociologie générale e de modo mais amplo toda a obra socio lógica de Pareto leva portanto a um diagnóstico das sociedades democráticas que ele chama de plutodemocráticas lembrando que sua característica é a ligação entre a classe política ou elite no sentido estrito do termo e os quadros dirigentes da indústria e das finanças De acordo com Pareto os regimes pluto democráticos são governados por elites que empregam astúcia de preferência à A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 421 força Pareto constata por outro lado o desenvolvimento das ideologias humani tárias e acredita que seu excesso é perigoso para o equilíbrio social Finalmente nota a expansão gradual da gestão administrativa da economia e a diminuição correlata do domínio da iniciativa privada e dos mecanismos do mercado Vê assim as sociedades ocidentais evoluírem como a sociedade romana do Baixo Império no caminho da cristalização burocrática Ciência e política Em que medida Pareto conseguiu estudar cientificamente a sociedade co mo era sua intenção Em outras palavras para empregar uma expressão que eu mesmo já utilizei em que medida logrou estudar logicamente as condutas não lógicas Há uma primeira resposta que se impõe imediatamente a esta questão Se gundo o próprio Pareto um estudo lógicoexperimental das condutas nãológicas deve ser moral e politicamente neutro desprovido de julgamentos de valor e de paixão pois não há solução lógicoexperimental para o problema da conduta humana Ora é evidente a todo leitor do Traité de sociologie générale que os es critos de Pareto são passionais estão repletos de julgamentos de valor O autor tem seus alvos preferidos seus inimigos íntimos suas vítimas preferidas de go zação Esta atitude que não difere da de outros sociólogos não se ajusta em princípio à vontade que proclama sem cessar de fazer ciência com neutralida de e objetividade Este contraste entre uma intenção declarada de ciência pura e a paixão reprimida pode servir de ponto de partida para nosso exame crítico Como combinar essas intenções e essa prática Pareto reserva sua ironia e suas invectivas a certos homens e a certas idéias Antes de mais nada tem horror às associações virtuosas e aos propagandistas da virtude que procuram melhorar os costumes É severo também com deter minadas versões do humanitarismo moderno e impiedoso com os que pretendem em nome da ciência prescrever uma moralidade ou um programa social e con dena os cientistas que agem assim Finalmente não suporta a burguesia deca dente que perdeu a percepção dos seus interesses e cega ou hipócrita não re conhece a lei de ferro da oligarquia imaginando que a sociedade atual corres ponde à fase conclusiva da história mostrandose incapaz de se defender A burguesia decadente tolera as violências dos grevistas e se indigna com as da polícia Está pronta movida pela esperança de apaziguar as reivindicações po pulares a proceder a qualquer forma de nacionalização das empresas corren do o risco de burocratizar a vida econômica Não encontra outro método para se manter no poder além da corrupção dos líderes sindicais que podem represen tar a novactò 422 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Atualmente quando os conflitos são sobretudo econômicos acusase o governo de intervir numa disputa econômica quando ele quer proteger os pa trões ou os furadores de greve contra a violência dos grevistas Se os agentes da força pública não se deixam bater sem usar suas armas dizse que lhes falta sanguefrio que são impulsivos ou neurastênicos Os julgamentos dos tribu nais são vistos como julgamentos de classe de qualquer forma são sempre considerados muito severos Por fim admitese a conveniência de que as anistias apaguem todas as lembranças desses conflitos Dirseia que do lado dos patrões há derivações exatamente opostas já que seus interesses se opõem aos dos trabalhadores mas isto não acontece ou só acontece de forma atenuada em surdina Muitos patrões são especuladores que pretendem recuperarse dos pre juízos causados pelas greves com a ajuda do governo à custa dos consumidores e dos contribuintes Seus conflitos com os grevistas são contestações de cúmpli ces que querem compartilhar o resultado da pilhagem Os grevistas que fazem parte do povo que abunda em resíduos da segunda classe têm não só interes ses mas também um ideal Os patrões especuladores que fazem parte da clas se enriquecida por combinações têm ao contrário resíduos da primeira classe em abundância Em conseqüência têm sobretudo interesses e poucos ideais ou nenhum ideal Empregam melhor seu tempo em operações lucrativas do que na elaboração de teorias Entre eles encontramos muitos demagogos plutocratas há beis em fazer virar a seu favor uma greve que parecia feita verdadeiramente con tra eles Traité de sociologie générale 218714 Aos propagandistas da virtude adversários da vida e dos seus prazeres Pareto opõe um sistema de valores aristocrático Nobre descendente de famí lia de patrícios de Gênova era favorável a uma versão moderada e elegante do epicurismo e hostil às formas extremas do moralismo puritano e do ascetismo Para ele não havia razão que justificasse a recusa do que a existência nos pro porciona e os que se instauram como portavozes da virtude são animados fre qüentemente por sentimentos menos puros Mas este primeiro inimigo tem pouco interesse político e revela mais a personalidade privada de Pareto do que suas convicções políticas e sociais Os outros alvos de Pareto revelam contudo o sistema intelectual moral e político do autor do Traité de sociologie générale A denúncia do cientismo resulta do seu respeito e amor pela ciência Para ele nada mais contrário ao espírito científico do que a supervalorização da ciência do que a tendência a pensar que ela nos pode dar como pensava Durkheim uma doutrina política talvez mesmo uma religião Esta crítica do cientismo é simul taneamente a crítica de uma forma do racionalismo comum no fim do século XIX e no princípio do século XX Para Pareto a única razão autêntica é a cien tífica Ora esta só se sustenta se tem consciência das suas limitações A ciência estabelece simplesmente as uniformidades verificadas pela concordância entre A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 423 nossas idéias e a experiência não esgota a realidade não descobre os princí pios últimos não ensina uma moral ou uma metafísica em nome de um racio nalismo experimental e pragmático O racionalismo paretiano é também a crí tica da ilusão racionalista na psicologia isto é da ilusão segundo a qual os homens seriam em última análise motivados por argumentos racionais O pen samento de Pareto é uma reação contra as esperanças racionalistas do estúpi do século XIX como diria Léon Daudet Ele próprio empregaria com prazer esta expressão dandolhe um sentido preciso e limitado Segundo Pareto é ab surda a idéia de que os progressos da ciência darão como resultado a raciona lização das próprias sociedades e de que os homens transformados pelo pro gresso do conhecimento serão capazes de organizar a sociedade com base na razão Pareto denuncia impiedosamente esta esperança falaciosa Admite um a expansão muito lenta do pensamento lógicoexperimental e não nega que a lon go prazo aumentará o papel da conduta lógica determinada pela razão mas este aumento não levará a uma sociedade cimentada pela razão científica Por defi nição o pensamento lógicoexperimental não pode fixar os objetivos individuais ou coletivos e a sociedade só mantém sua unidade na medida em que os indiví duos consentem em sacrificar seu próprio interesse ao interesse coletivo Pareto consagra longas páginas ao problema da concordância ou da contradição entre o interesse egoísta do indivíduo e o interesse da coletividade e não deixa de fo calizar os sofismas com que os filósofos e moralistas ensinam o ajuste final des ses dois objetivos Os que pretendem demonstrar o acordo essencial entre o interesse indivi dual e o coletivo alegam geralmente a necessidade que tem o indivíduo de que a sociedade exista e de que seus membros tenham confiança uns nos outros Em conseqüência se um indivíduo rouba ou mente ele contribui para destruir a confiança recíproca necessária à ordem comum e por isso age contrariamen te a seu interesse A isso Pareto responde sem dificuldade que é preciso dis tinguir entre o interesse direto e o indireto O interesse direto pode ser para um certo indivíduo mentir e roubar mas disso resultará para ele certamente um prejuízo indireto na medida em que o atentado à ordem social reduz a vanta gem que extrai do seu ato moralmente culpado contudo em grande número de casos este prejuízo indireto é inferior quantitativamente à vantagem direta causada pelo ato culposo Se o indivíduo se limita a calcular seu interesse con siderará lógico violar as regras coletivas Em outras palavras não se podem con vencer os indivíduos por meio de raciocínios lógicoexperimentais de que devem sacrificarse pela coletividade ou obedecer às normas coletivas Se a maior par te do tempo os indivíduos obedecem a estas normas é que por felicidade não agem de modo lógicoexperimental e não se converteram racionalmente ao egoísm o a ponto de só agir no próprio interesse por meio de um cálculo rigo roso O s homens agem por paixão ou por sentimento e são as paixões e os sen 424 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO timentos que os fazem agir de modo que a sociedade possa existir As socieda des existem porque as condutas humanas não são lógicas A expressão condu ta nãológica não é enquanto tal pejorativa Certas condutas lógicas são mo ralmente repreensíveis por exemplo as do especulador e do ladrão A argumentação paretiana é odiosa ao racionalista tradicional Afirmando que a coerência das coletividades é garantida pelos sentimentos e não pela razão chega com efeito à conclusão de que o progresso do pensamento cien tífico traz o risco de aumentar o egoísmo que pode desagregar a comunidade social Esta é mantida pelos resíduos da segunda e em grau menor da quarta e quinta classes Ora estes resíduos se enfraquecem ou são corroídos pelo desen volvimento de uma atitude intelectual que está na origem das civilizações supe riores e também dos desmoronamentos sociais O pensamento de Pareto leva portanto a um sistema de valores históricos profundamente antinômicos Ten demos a crer que o progresso da moralidade acompanha o progresso da razão e da civilização mas Pareto cuja reflexão é marcada por um pessimismo pro fundo afirma que a razão não pode ganhar sem que o egoísmo triunfe que as so ciedades cuja civilização é a mais brilhante são também as que estão mais pró ximas do declínio que as cidades onde se desenvolve o espírito humanitário não estão longe de grandes efusões de sangue que as elites mais toleráveis por que menos violentas atraem as revoluções que vão destruílas Este sistema de interpretação histórica se opõe radicalmente ao do profes sor de filosofia Durkheim otimista e racionalista Durkheim escreveu que em bora os Estados conservem ainda certas funções militares associadas à rivali dade das soberanias estas sobrevivências do passado estavam a ponto de desa parecer Pareto teria julgado com severidade este otimismo que consideraria uma forma típica de doutrina pseudocientífica determinada na realidade por resíduos No entanto Durkheim e Pareto estão de acordo num ponto importan te Os dois vêem as crenças religiosas surgirem da própria sociedade dos sen timentos que agitam as multidões Mas Durkheim queria salvar o caráter racional dessas crenças coletivas dandolhes um objeto de adoração digno dos seus sen timentos Com um cinismo algo desconcertante Pareto alega que esses senti mentos não necessitam de um objeto digno não são os objetos que suscitam os sentimentos mas os sentimentos preexistentes que escolhem objetos quaisquer que sejam Esta listagem dos inimigos de Pareto inimigos políticos os humanitaristas os burgueses decadentes e inimigos científicos os filósofos que interpretam racionalmente as condutas humanas os moralistas que pretendem demonstrar a harmonia preestabelecida entre os interesses particulares e o interesse coleti vo permite a meu ver compreender os diferentes sentidos que podemos atri buir ao pensamento do autor do Traité de sociologie générale A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 425 O que Pareto queria sugerir Qual o partido político ou intelectual que de fendia com seus argumentos No período entre as duas guerras Pareto foi interpretado com base no fascis mo Num artigo escrito há quase trinta anos eu mesmo o acusei de ter oferecido uma ideologia ou uma justificação ao fascismo Mas isso foi em 1937 época em que as paixões que nos agitavam eram bem diferentes das de hoje embora devido à pobreza do vocabulário as palavras não tenham mudado15 A interpretação de Pareto tomando como ponto de referência o fascismo é muito fácil Os fascistas e estou pensando nos fascistas italianos e não nos na cionalsocialistas alemães defendiam e ilustravam uma teoria oligárquica do governo exatamente como Pareto Afirmavam que os povos são sempre gover nados por minorias e que estas minorias só podem manter seu domínio quando são dignas das funções que assumem na sociedade Lembravam que as funções dos dirigentes políticos nem sempre são agradáveis e que em conseqüência as pessoas de muita sensibilidade deviam renunciar a elas ou serem afastadas Pa reto não era de modo algum um selvagem Admitia que o objetivo da política era reduzir o mais possível a violência histórica mas acrescentava que a pre tensão ilusória de suprimir toda violência levava quase sempre ao seu cresci mento desmesurado Os pacifistas contribuem para provocar as guerras os hu manitaristas ajudam a precipitar as revoluções Os fascistas podiam utilizar esta argumentação paretiana deformandoa Simplificando sua teoria afirmavam que as elites governantes para serem eficazes precisam ser violentas Muitos intelectuais do fascismo italiano utilizaram de fato Pareto como uma recomendação apresentandose como burgueses nãodecadentes prontos a subs tituir a burguesia decadente Justificavam sua violência pretendendo que era uma réplica necessária à violência operária Privadamente se não em público afir mavam que sua justificação suprema era a capacidade que tinham de restabe lecer a ordem ainda que fosse pela força E como em última análise não há uma justificação intrínseca moral ou filosófica para o poder da minoria dirigente qualquer elite que a substitui está justificada em larga medida pelo seu pró prio êxito Era igualmente fácil associar o pensamento fascista ao de Pareto interpre tando a distinção entre o máximo de utilidade para a coletividade e o máximo de utilidade da coletividade O primeiro conceito isto é a maior satisfação do maior número possível de indivíduos é no fundo o ideal dos humanitaristas ou dos socialistas democráticos Dar a cada um em toda a medida do possível o que cada um deseja elevar o nível de todos é o ideal burguês das elites pluto democráticas Pareto não afirma explicitamente que adotar esse objetivo seja um erro mas sugere que existe outro objetivo o máximo de utilidade da socie dade isto e o máximo de poder ou de glória da coletividade considerada como 426 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO uma pessoa Afirmar a impossibilidade de uma escolha científica entre estes dois termos desvaloriza o máximo de utilidade da coletividade e pode ser con siderado como uma opção implícita em favor do máximo de utilidade da cole tividade Podese mesmo dizer que quem nega a possibilidade de uma escolha racional entre dois regimes políticos como Pareto serve à causa das elites vio lentas que pretendem demonstrar pela força seu direito ao governo As relações entre o próprio Pareto e o fascismo foram limitadas Pareto mor reu em 1923 muito pouco tempo depois da ascensão de Mussolini ao poder Não foi radicalmente hostil ao movimento do Duce16 inclusive porque era um sociólogo não um político e porque sua sociologia explicava aquela reação his tórica Para ele o fascismo era claramente uma reação do corpo social aos proble mas causados pelo excesso de resíduos da primeira classe pelo desenvolvimento exagerado do espírito humanitarista e o enfraquecimento da vontade burguesa Numa sociedade normal problemas deste tipo provocam reações de sentido con trário A revolução fascista era uma fase de um ciclo de dependência mútua uma resposta violenta às desordens provocadas pelo declínio de uma elite astuciosa17 Que regime políticoeconômico mereceria teoricamente as preferências de Pareto De um lado ele considerava que a iniciativa individual era o meca nismo econômico mais favorável ao crescimento da riqueza Era portanto em doutrina econômica um liberal que admitia aliás certas intervenções do Esta do na medida em que estas ou facilitavam o funcionamento do mercado ou per mitiam aos especuladores se ocupar dos seus negócios e dos negócios de todos No plano político suas idéias levam a favorecer um regime autoritário e mode rado Pareto poderia ter combinado os adjetivos prediletos de Maurras a saber absoluto e limitado Não é assim que se exprime mas o regime mais desejável para todos pelo menos de acordo com sua idéia do bem de todos é aquele em que os governantes têm a capacidade de tomar decisões mas não têm a preten são de tudo regular sobretudo não tentam impor aos cidadãos e em particular aos intelectuais e professores o que devem pensar Em outras palavras Pareto te ria sido favorável a um governo forte e liberal tanto do ponto de vista econô mico como do científico Recomendaria o liberalismo intelectual aos governos não só porque esta posição o atraía pessoalmente mas porque a seus olhos a li berdade de investigação e de pensamento era indispensável ao progresso da ciên cia e a longo prazo toda a sociedade se beneficia com o progresso do pensa mento lógicoexperimental Portanto se não é impossível interpretar Pareto no sentido do fascismo o que tem sido feito com freqüência é igualmente possível interpretálo num con texto liberal e empregar os argumentos paretianos p ara justificar as instituições democráticas ou plutodemocráticas A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 427 G Mosca que Pareto conhecia tinha passado a primeira parte da sua vida a expor as torpezas dos regimes democráticos representativos que chamava tam bém de plutodemocráticos Na segunda parte da sua vida procurou demonstrar que tais regimes a despeito das suas falhas eram os melhores que a história havia conhecido pelo menos para os indivíduos E possível assim aceitando muitas das críticas de Pareto aos regimes demo cráticos considerálos os menos maus para os indivíduos já que como todo re gime é oligárquico a oligarquia plutodemocrática tem pelo menos a vantagem de estar dividida e ao mesmo tempo limitada nas suas possibilidades de ação As elites democráticas são as menos perigosas para a liberdade individual Admirador apaixonado de Pareto Maurice Aliais vê nele um teórico do li beralismo não só econômico mas político e moral A doutrina de Pareto cons tituiria uma resposta à questão sobre como reduzir ao mínimo o inevitável do mínio da sociedade sobre o indivíduo Para limitar a dominação do homem sobre o homem é preciso que os mecanismos do mercado funcionem livremente e que haja um Estado suficientemente forte para impor o respeito às liberdades inte lectuais de alguns e às liberdades econômicas de todos Como vimos Pareto não é necessariamente um doutrinário dos regimes au toritários como se ouve às vezes Na verdade ele oferece argumentos a muitas correntes de opinião talvez a todas suas idéias podem ser utilizadas em senti dos diferentes A elite que detém o poder invoca Pareto para dar fundamento a sua legitimidade pois como todas as legitimidades são arbitrárias o êxito se toma a legitimidade suprema Neste tipo de debate quem tem o poder dá a últi ma palavra Quem perde a posição de comando ou não consegue conquistála pode abrir o Traité de sociologie générale e encontrará ali se não uma justifi cativa da causa perdida pelo menos um consolo para sua desgraça Estes pode rão afirmar então que o fato de terem sido mais honestos do que os que estão no poder e de terem recusado a violência necessária éque fez com que fossem terminar sua vida numa prisão e não nos palácios do governo Há uma certa verdade nestas explicações Em 1917 houve acesos debates entre as diversas escolas marxistas russas sobre a possibilidade de uma revolu ção socialista num país ainda nãoindustrializado Os mencheviques diziam que devido à falta de industrialização e capitalismo a Rússia não estava madu ra para uma revolução socialista acrescentavam que se por infelicidade um par tido operário tentasse realizar uma revolução socialista sem as necessárias con dições objetivas a conseqüência inevitável seria uma tirania de pelo menos meio século De seu lado os socialistas revolucionários queriam uma revolução mais populista do que marxista e não se dispunham a sacrificar todas as liberdades Quanto aos bolchevistas depois de muitas discussões arites da guerra de 1914 sobre a possibilidade da revolução socialista num país nãoindustrializado 428 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO empenharamse na ação esquecendo suas divergências teóricas achando que o mais importante antes de qualquer outra coisa era tomar o poder Em suma os bolchevistas tiveram a última palavra e os menchevistas tam bém Os primeiros conquistaram o poder que detêm até hoje os menchevistas foram postos na prisão embora tivessem previsto corretamente os acontecimen tos porque a revolução feita num país de capitalismo nascente resultou de fato num regime autoritário que se mantém há meio século Pareto não é portavoz de nenhum grupo Tinha suas paixões mas estas eram tais que permitiam a várias escolas concordar com suas idéias Muitos fascistas italianos adotaram seu pensamento juntamente com o de Sorel o pró prio Pareto provavelmente viu no fascismo a princípio uma reação sadia con tra certos excessos Contudo como liberal autêntico não poderia ter ficado muito tempo ao lado do poder Sociólogo liberal anuncia lucidamente as vio lências vindouras às quais não se resignará Ou se ama ou se detesta Pareto mas é preciso ver nele não o representante de um partido mas o intérprete de uma maneira de ser pessimista e cínica à qual ninguém adere de todo nem mesmo ele felizmente Pareto é um destes pensadores que são definidos em grande parte pelos seus inimigos pensam contra Ele pensa ao mesmo tempo contra os bárbaros e os civilizados contra os déspotas e os democratas ingênuos contra os filósofos que pretendem encontrar a verdade definitiva e os cientistas para quem só a ciência tem valor Em conseqüência a significação intrínseca da sua obra só pode ser ambígua Explicitamente Pareto se recusa a determinar o objetivo do indi víduo ou da sociedade Indagando se seria bom para uma coletividade algumas décadas ou alguns séculos de civilização se este período brilhante devesse ter minar com a perda da independência nacional afirma que não há resposta para uma indagação deste gênero Alguns leitores pensarão que é melhor salvaguar dar o brilho de uma civilização mesmo que este leve à queda política no futu ro outros dirão que é preciso antes de mais nada manter a unidade e a força da nação ainda que à custa da sua cultura Pareto sugere uma espécie de contradição intrínseca que haveria entre a verdade científica e a utilidade social A verdade a respeito da sociedade é antes um fator de desagregação social O verdadeiro não é necessariamente útil O útil é feito de ficções e de ilusões Cada indivíduo é livre para escolher a verdade mo vido por sua preferência pessoal ou a utilidade para servir a sociedade a que pertence A lição política de Pareto é portanto ambígua por essência Uma obra contestada O Traité de sociologie générale ocupa um lugar especial na literatura so ciológica É um enorme bloco enorme no sentido físico fora das grandes cor A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 429 rentes da sociologia que continua a ser objeto dos julgamentos mais contradi tórios Alguns o consideram uma das obrasprimas do espírito humano outros com igual paixão o vêem como um monumento de estupidez18 Já ouvi estes julgamentos extremados por parte de homens igualmente qualificados Tratase de um caso raro Quase sempre depois de meio século as paixões se abatem e as obras encontram um lugar que não corresponde necessariamen te ao mérito exato do autor mas que tem uma certa relação com ele No caso do Traité de sociologie générale não é possível fazer referência à opinião comum porque ela não existe Isto significa que o Traité tem caráter ambíguo e sobre tudo que as paixões que despertou quando foi publicado ainda estão vivas A razão essencial é que o livro cria um certo malestar no leitor alguns como um dos meus amigos italianos dizem que o pensamento de Pareto é apropriado a pessoas de uma certa idade desgostosas com a marcha do mundo Mas é pre ciso evitar estas paixões e os julgamentos exagerados Minha própria opinião que gostaria agora de esclarecer se situa entre os dois extremos O mecanismo psicológico com que Pareto elaborou o Traité é o seguinte o sociólogo começou como engenheiro e na sua profissão teve a experiência daquilo que é a ação lógica uma ação comandada pelo conhecimento científi co cuja eficácia demonstra o acordo entre os atos da consciência e o modo co mo os fatos se desenrolam no mundo objetivo De engenheiro passou a econo mista encontrando sob forma diferente as mesmas características da conduta lógica definida agora pelo cálculo dos lucros custos e rendimentos O cálculo econômico permite definir uma ação lógica que diante de certos objetivos e de determinados meios disponíveis se esforça por responder a uma hierarquia de preferências levando em conta as circunstâncias externas de acordo com os co nhecimentos científicos Mas Pareto não continuou como economista Observou o mundo político os regimes da França e da Itália nos fins do século XIX e no princípio do século XX Ficou impressionado com as diferenças fundamentais entre as ações lógicas do engenheiro ou do agente econômico e as condutas dos homens políticos Os políticos invocam a razão raciocinam indefinidamente mas são irracionais Al guns pensam que a religião da humanidade tem a mesma origem que a conduta do engenheiro ou do sujeito econômico outros acreditam poder transformar a or dem das sociedades humanas graças à ciência e anunciam o reino da justiça de pois de uma revolução socialista ou liberal Em outras palavras confrontando sua experiência de engenheiro e de econo mista com a observação do cenário político Pareto concebeu o tema fundamen tal da sua obra a saber a antinomia entre as ações lógicas e as ações nãológicas Simultaneamente descobriu que a pior ilusão é a dos liberais e dos democratas da geração anterior que pensavam que os progressos da razão iam introduzir a hum anidade numa nova era Pareto pensa contra as convicções erradas da gera 430 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ção de 1848 Constatando como terminou a democracia efetiva como funcionam as instituições representativas conclui com amargura que nada mudou e que são sempre as minorias privilegiadas que fazem o jogo As minorias podem mudar indefinidamente de derivação ou de teoria justificativa mas a realidade é a mesma Todo regime político é oligárquico todo homem político é interessado ou então ingênuo e muitas vezes o menos ingênuo quer dizer o menos honesto é mais útil à sociedade Aliás por que razão a honestidade individual deveria ser uma con dição da utilidade coletiva Por que a verdade científica deveria servir de cimento à sociedade Este é a meu ver o centro do pensamento de Pareto compreendese por tanto por que ele permanecerá sempre isolado entre os professores e os soció logos é quase insuportável para o espírito confessar que a verdade enquanto tal pode ser nociva Não sei se o próprio Pareto acreditava nisso integralmente mas usava todo o seu charme para afirmálo Para apreciar o Traité de sociologie générale como sociólogo é preciso exa minar sucessivamente suas duas partes fundamentais isto é a teoria dos resí duos e das derivações e de outro lado a teoria da circulação das elites e dos ci clos de mútua dependência A teoria paretiana dos resíduos e das derivações pertence a um movimen to de idéias que inclui também as obras de Marx Nietzsche e Freud O tema é o de que os motivos e o significado dos atos e dos pensamentos dos homens não são os que os próprios atores confessam A teoria de Pareto se relaciona com o que chamamos de psicologia profunda desde Nietzsche e Freud ou com a sociolo gia das ideologias a partir da obra de Marx Mas a crítica de Pareto difere do método psicanalítico e do método sociológico de interpretação Contrariamente ao método psicanalítico o método de Pareto não é psicológico porque ignora voluntariamente os sentimentos ou os estados de espírito de que os resíduos são apenas a expressão Pareto renuncia à exploração do subconsciente e do incons ciente para focalizar um nível intermediário entre as profundezas da interiori dade e os atos ou as palavras perceptíveis do exterior de forma imediata Compa rado à crítica marxista das ideologias o método de Pareto apresenta uma dupla originalidade não privilegia o relacionamento das derivações ou ideologias com as classes sociais Pareto nem mesmo sugere que as classes sociais sejam os su jeitos dos conjuntos ideológicos Preocupase pouco com as particularidades históricas e singulares das derivações e teorias Sua investigação que tende a uma enumeração integral das classes de resíduos e de derivações tende a reduzir o interesse pelo curso da história humana e a apresentar um homem eterno ou uma estrutura social permanente O método paretiano não é portanto nem propriamente psicológico nem es pecificamente histórico é generalizador Indubitavelmente Pareto na busca de A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 431 uma tipologia universal dos resíduos se aproxima de vez em quando da análise dos mecanismos psicológicos Em particular ao estudar os métodos pelos quais os homens são persuadidos e convencidos dá uma contribuição à psicologia moderna da propaganda e da publicidade Mas ele não pretende nos revelar os impulsos fundamentais da natureza humana à maneira de um psicanalista que distingue o impulso sexual o impulso de possuir o impulso orientado para o que os alemães chamam de Geltungsbedürfnis a necessidade de ser reconhecido pe los outros Pareto se mantém no nível intermediário dos resíduos isto é das ex pressões dos sentimentos perceptíveis através das condutas Não se pode dizer que este método seja em si mesmo ilegítimo mas ele comporta evidentemen te o perigo de levar a constatar e não a explicar ou o perigo de substituir a ex plicação pelo próprio fato da conduta traduzido em termos de resíduos Vou tomar um exemplo predileto de Pareto Os antropólogos constatam que os indivíduos atribuem significado especial a um lugar ou a uma coisa a uma pedra ou a um elemento Alguns procuraram explicar tais combinações buscando o sistema de pensamento que lhes dá um sentido Pareto objeta que este modo de explicação consiste em levar a sério as derivações que são fenômenos secun dários nãodeterminantes da conduta e que podem ser renovados indefinida mente sem que os agregados afetivos se modifiquem É verdade que o sistema intelectual não é necessariamente o determinante das condutas mas se explica mos estes agregados afetivos dizendo que são um exemplo da segunda classe de resíduos uma pessoa imbuída de má vontade poderá dizer que a explicação é mais ou menos tão convincente quanto a da ação do ópio pela virtude dormitiva Em última análise explicar os conjuntos afetivos pelos resíduos da persistência dos agregados pode não ser mais do que uma pseudoexplicação Em outras palavras como Pareto não se preocupa com os mecanismos psi cológicos tais como foram analisados por Nietzsche e por Freud ou com os mecanismos sociais tal como Marx procura analisar nas sociedades concretas o método intermediário das generalidades sociológicas se mantém num nível formal Não ousaria dizer que os resultados são falsos mas pode ser que nem sempre sejam instrutivos Finalmente surpreende constatar que Pareto distingue seis classes de resí duos mas que na segunda parte do Traité quando aborda os ciclos de mútua dependência só duas classes têm uma função importante o instinto das com binações e a persistência dos agregados O primeiro é a origem da investigação intelectual do progresso da ciência e do desenvolvimento do egoísmo isto é ao mesmo tempo o princípio das civilizações superiores e a causa do seu declínio A persistência dos agregados corresponde ao equivalente do conjunto dos sen timentos religiosos nacionais patrióticos que mantêm as sociedades Neste momento temse a impressão súbita e um pouco desagradável de que se está ouvindo um filósofo do Iluminismo com seus valores parcialmen 432 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO te invertidos No fundo vemos de um lado o progresso da razão e do espírito crítico de outro os padres de todas as Igrejas difundindo ilusões e entretendo aber rações com a ressalva de que o espírito de superstição não é obra dos padres como teriam dito os enciclopedistas mas a expressão permanente da necessi dade humana de crer sem provas e de se dedicar a mitos Neste sentido Pareto está na linha do pensamento racionalista do século XVIII embora passe talvez das esperanças excessivas para uma resignação pre matura Qualquer que seja a verdade parcial desta oposição não se pode deixar de perguntar se é indispensável escrever tantos capítulos páginas e exemplos para chegar à velha antítese da conduta lógica e da ação pelo sentimento da ra zão científica e da superstição religiosa a antítese que é apresentada como a es trutura fundamental do homem e das sociedades Se a primeira parte do Traité me parece insuficientemente psicológica a segunda me parece ao contrário demasiadamente psicológica Esta crítica não é um paradoxo O método da primeira parte devido à ambição generalizada e à recusa de ir até o sentimento se detém no limiar da psicologia Na segunda par te porém as elites são caracterizadas sobretudo pelos seus traços psicológi cos Elites violentas e elites astuciosas predominância dos resíduos da primei ra ou dos resíduos de segunda classe todas estas noções são fundamentalmen te de natureza psicológica As peripécias das histórias nacionais são interpre tadas e explicadas pelos sentimentos os humores as atitudes das elites e das massas O despertar das paixões patrióticas e religiosas no princípio do século XX representa para Pareto mais um exemplo da permanência nas consciências humanas dos mesmos resíduos um exemplo a mais da determinação dos acon tecimentos históricos pelas flutuações dos sentimentos humanos Pareto con cordo reconhece de forma explícita que o curso da história depende das orga nizações sociais mais do que dos sentimentos dos indivíduos A parte princi pal do fenômeno é a organização e não a vontade consciente dos indivíduos que em certos casos podem mesmo ser levados pela organização aonde sua vonta de consciente jamais os levaria Traité de sociologie générale 2254 Mas as últimas páginas do Traité são uma espécie de resumo da história da antiguida de escrita em termos de resíduos da primeira e da segunda classes de elites astuciosas e de elites violentas Este modo de interpretação deixa o leitor insa tisfeito embora tenha uma parte de verdade Pareto procura elaborar um sistema geral de interpretação que seja um mo delo simplificado comparável ao da mecânica racional Admite que suas pro posições são muito esquemáticas e que exigem precisões e complexidades su cessivas mas pensa ter determinado com os ciclos de mútua dependência as características gerais do equilíbrio social Ora podese considerar ao mesmo tem po que algumas das suas afirmativas são verdadeiras que se aplicam efetiva A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 433 mente a todas as sociedades e que no entanto não apreendem o essencial Em outros termos em matéria de sociologia o que é geral não é necessariamente essencial nem o mais interessante ou o mais importante Pareto afirma que em todas as sociedades há uma minoria privilegiada uma elite no sentido amplo na qual se pode distinguir uma elite governante no sentido restrito Esta proposição me parece indiscutível Todas as sociedades conhecidas até nossos dias foram fundamentalmente desiguais É legítimo por tanto distinguir o pequeno número de pessoas que ocupam as melhores posi ções do ponto de vista econômico e político da grande massa Pareto afirma em seguida que estas minorias privilegiadas conservam sua situação por uma combinação de força e de astúcia Se convencionarmos chamar de astúcia todos os meios de persuasão não hesitaria em darlhe razão De fato como poderia uma só pessoa comandar um grande número de indivíduos senão pelo uso da força ou então persuadindoos da necessidade da obediência A fórmula segundo a qual as minorias governam pela força ou pela astúcia é incontestável desde que se interpretem estes dois termos de modo suficientemente vago Parece porém que os problemas começam a aparecer depois Quais são as relações reais entre a minoria privilegiada e o grande número Que princípios de legitimidade invocam as diferentes elites Quais são os métodos pelos quais estas elites se mantêm no poder Que possibilidades existem de que os indiví duos que não participam de uma elite possam nela penetrar Admitidas as pro posições mais gerais as diferenças históricas me parecem consideráveis e por isso mais importantes E verdade que Pareto não negaria as observações que acabo de fazer Ele se limitaria a responder que lembrou essas proposições gerais porque os gover nantes e até mesmo os governados tendem a esquecêlas que ele não nega as diferenças substanciais entre os diversos modos de exercer o poder pelas dife rentes classes políticas e que conhece as conseqüências desta diversidade para com os governados Contudo a verdade é que sentimos uma tendência explíci ta ou implícita para desvalorizar as diferenças entre os regimes entre as elites e entre os modos de governo Sugere que quanto mais isso muda mais conti nua igual e portanto que a história se repete indefinidamente e que as dife renças entre tipos de regime são secundárias Ensina quer ele queira quer não uma aceitação mais ou menos resignada do mundo como ele é e chama quase automaticamente de ilusões os esforços dirigidos para a reorganização das sociedades num sentido que chamaríamos de justiça Minhas objeções são portanto as seguintes de um lado Pareto caracteri za os regimes pela psicologia das elites mais do que pela organização dos po deres e da sociedade de outro sugere que o mais geral é também o mais impor Plus cela change plus cest la même chose 434 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tante Confunde assim as características comuns a todas as sociedades com os traços comuns a toda ordem social desvaloriza as diferenciações históricas e tira quase todo o significado do próprio devenir Minha última observação diz respeito à teoria do lógico e do nãológico De acordo com a definição de Pareto as ações nãológicas podem ser divididas em muitas categorias o caráter lógico ou nãológico de uma ação é apreciado pelo observador com base nos seus conhecimentos e nos conhecimentos do ator Nes tas condições a ação ditada por um erro científico é uma ação nãológica e a ação que se inspira em ilusões ou mitos é também nãológica Os atos que deno minamos simbólicos ou rituais são nãológicos porque sua função consiste ape nas em manifestar sentimentos a seres ou a coisas que representam valores Fi nalmente as condutas religiosas ou mágicas são nãológicas Será apropriado incluir na mesma categoria os erros científicos as supers tições associadas a metafísicas que nos parecem hoje anacrônicas os atos ins pirados por convicções idealistas ou otimistas as condutas rituais e as práticas mágicas Tratase verdadeiramente de uma única categoria Podese como Pa reto considerar que todos estes atos por serem nãológicos não são determi nados pela razão mas por sentimentos ou estados de espírito A dualidade lógi conãológico serve para introduzir à dualidade das ações determinadas pela razão e de outro lado das ações determinadas pelos sentimentos ou estados de espírito Esta antinomia simplificadora não seria além de perigosa deforma dora da realidade Será evidente que uma conduta comandada por proposições aparentemente científicas mas que constatamos depois serem errôneas possa ser explicada por um mecanismo comparável ao que explica uma prática ritual ou uma ação revolucionária19 É bem verdade que se pode complicar progressivamente a classificação de Pareto mas a dualidade ações lógicasações nãológicas levando à antítese ação pela razãoação pelo sentimento é perigosamente esquemática Ela leva Pareto a uma representação dualista da natureza humana e a uma tipologia dualista das elites e dos regimes Estes antagonismos estilizados podem suscitar uma fi losofia que o próprio Pareto não subscreveria mas que teria dificuldade em renegar inteiramente Como afinal de contas a única justificação incontestá vel do poder de uma elite é o êxito é tentador procurar alcançar êxito por meios eficazes a curto prazo Diante de uma elite astuciosa isto é de uma elite que quer persuadir o revolucionário poderá recorrer à coerção com a consciência tran qüila De fato os bons sentimentos não acabarão por arruinar a sociedade do mesmo modo como degradam a literatura Indicações biográficas 1848 15 de julho nasce em Paris Vilíredo Pareto Sua família originária da Ligúria recebeu título de nobreza no princípio do século XVIII Seu avô o marquês Giovanni Benedetto Pareto em 1811 foi feito barão do Império porNapoleão Seu pai partidário de Mazzini foi exilado devido a suas idéias republicanas e antipiemontesas Casouse em Paris com Marie Méténier a mãe de Vilíredo C 1850 A família de Pareto volta à Itália Vilfredo faz estudos secundários clássicos e depois estudos científicos na Universidade Politécnica de Turim 1869 Pareto defende tese sobre os Princípios fundamentais do equilíbrio dos corpos sólidos 18741892 Instalase em Florença Depois de ter sido engenheiro ferroviário e nomea do diretorgeral das estradas de ferro italianas Suas funções o levam a viajar ao exterior principalmente à Inglaterra Participa também com a Sociedade Adam Smith de Florença em campanhas contra o socialismo de Estado o protecionis mo e a política militarista do governo italiano Nesta época Pareto é partidário da democracia e de um liberalismo intransigente 1882 Candidatase sem êxito a deputado pela circunscrição de Pistóia 1889 Casamento com Alessandra Bakunin de origem russa Participa de um congres so em favor da paz e da arbitragem internacional em Roma onde apresenta uma proposta que é aprovada defendendo a liberdade de comércio 1891 Toma conhecimento da obra Princípios de economia pura de Maffeo Pantaleo ni Este revela a Pareto as obras de Walras Cournot e Edgeworth Uma das con ferências de Pareto é interrompida pela polícia em Milão Contato com L Walras O governo italiano nega a Pareto autorização para dar um curso gratuito de eco nomia política 1892 Walras propõe a Pareto que o substitua na cadeira de economia política da Uni versidade de Lausanne 18921894 Publica alguns estudos sobre os princípios fundamentais da economia pura sobre a economia matemática e sobre diversos pontos de teoria econômica 436 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 1893 É nomeado professor de economia política na Universidade de Lausanne A par tir desse momento começa uma nova carreira dedicandose inteiramente à ciên cia marcada pela publicação de suas obras 18961897 Cours d économie politique publicado em francês em Lausanne 1898 Pareto herda um patrimônio importante de um tio Acolhe na Suíça socialistas italianos foragidos depois da repressão que se seguiu a distúrbios em Milão e Pavia 1901 Instalase em Céligny Cantão de Genebra na vila Angora Suas idéias se tor nam mais conservadoras mais hostis ao humanitarismo da burguesia decadente Viagem a Paris para ensinar na École de Hautes Études Sua esposa o deixa e par te para a Rússia Pareto solicita imediatamente a separação A partir de 1902 vi verá com Jeanne Régis que esposará pouco antes de morrer e a quem dedicará o Traité de sociologie générale 19011902 Les systèmes socialistes publicado em francês em Paris 1907 Manuale d economiapolitica publicado em Milão 19071908 Doente Pareto deixa aos poucos seu curso de economia para Pascal Bonin segni Em 1912 deixará de ensinar economia mantendo apenas um curso restrito de sociologia 1909 Tradução francesa muito reformulada do Manuale d economia politica 1911 Le mythe vertuiste et la littérature immorale publicado em francês em Paris 1916 Pareto dá pela última vez uma série de aulas de sociologia Trattato di sociologia generale publicado em italiano em Florença 1917 Jubileu de Pareto na Universidade de Lausanne 19171919 Tradução francesa do Trattato di sociologia generale que aparece em Lau sanne e em Paris 1920 Fatti e teorie coleção de artigos políticos especialmente sobre a Primeira Guer ra Mundial publicada em Florença 1921 Transformazioni delia democrazia publicado em Milão 1922 Em protesto contra uma iniciativa dos socialistas suíços que querem instituir um imposto sobre a riqueza Pareto se instala em Divonne durante alguns meses No fim deste ano aceita o princípio de representar o governo italiano de Mussolini na Sociedade das Nações 1923 Pareto é nomeado senador do Reino da Itália Em dois artigos publicados em Gerarchia manifesta uma certa adesão ao fascismo mas recomenda aos fascistas uma atitude liberal Em 19 de agosto morre Pareto em Céligny onde é sepultado Notas 1 Tendo chegado a este ponto o leitor já terá talvez percebido que as investiga ções a que nos dedicamos apresentam uma analogia com outras que são habituais na filologia isto é as que têm por objetivo pesquisar as raízes e as derivações que origi nam as palavras de uma língua Não se trata de uma analogia artificial Ela provém do fato de que nos dois casos tratase de produtos da atividade do espírito humano que têm um processo comum E isto não é tudo Há também analogias de outro gênero A filologia moderna sa be muito bem que a linguagem é um organismo que se desenvolveu de acordo com suas próprias leis que não foi criada artificialmente Só alguns termos técnicos como oxi gênio metro termômetro etc foram fabricados pela atividade lógica dos cientistas e correspondem às ações lógicas na sociedade mas a formação do maior número de pa lavras empregadas ordinariamente corresponde a ações nãológicas É hora de a socio logia progredir procurando atingir o nível em que a filologia já se encontra Traité de sociologie générale 879 e 883 2 Este ponto do pensamento de Pareto não pode ser compreendido se não nos lembrarmos das suas convicções profundamente liberais Do mesmo modo Pareto to mou a defesa dos padres católicos perseguidos na França pelos radicais e o bloco das es querdas no início do século ou dos socialistas perseguidos na Itália em 1898 É essen cialmente contrário a todas as inquisições O livro de Giuseppe La Feria Vilfredo Pareto filósofo volteriano Florença La Nuova Italia 1954 mostra bem este aspecto da perso nalidade do autor do Traité de sociologie générale 3 Estudando este tipo de resíduo Pareto procede a uma análise impiedosa e inte ressante das reivindicações igualitárias cuja hipocrisia ele se empenha em desmascarar Poderia dizer como G Orwell em A revolução dos bichos que os igualitaristas têm como fórmula Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais do que outros Pareto escreve As demandas de igualdade ocultam quase sempre demandas de privilégios 1222 Falase da igualdade para obtêla em geral Fazse depois uma infinidade de distinções para negála em particular Ela deve pertencer a todos mas só é conferida a alguns 1222 Entre nossos contemporâneos a igualdade dos homens é um artigo 438 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de fé mas isso não impede que na França e na Itália existam enormes desigualdades entre os trabalhadores conscientes entre os simples cidadãos e aqueles que são pro tegidos por deputados senadores altas autoridades Existem casas de jogo nas quais a política não ousaria tocar porque encontraria ali os legisladores ou outras altas perso nalidades 1223 Seus comentários se tomam uma crítica eloqüente da hipocrisia so cial com a constatação da diferença que existe entre os ideais proclamados pela socie dade e sua realidade cotidiana 4 É conhecido o livro de S Tchakhotine Le viol des foules par la propagande politique Paris 1952 Existe uma considerável literatura sociológica moderna sobre os meios de propaganda sobretudo em língua inglesa Podese citar por exemplo D Lemer Propaganda in War and Crisis 1951 A Inkeles Public Opinion in Soviet Rús sia 1951 L Fraser Propaganda 1957 Eis uma frase característica de Hitler Em sua grande maioria o povo tem uma disposição tão feminina que suas opiniões e seus atos são levados muito mais pela impressão que recebem sensorialmente do que pelo pen samento puro Não é uma impressão sutil mas sim bastante simples e limitada Não comporta nuanças mas somente as noções positivas ou negativas de amor e de ódio de justiça ou de injustiça de verdade ou de mentira os sentimentos parciais não existem Todo o gênio empregado na organização de uma propaganda seria puro desperdício se não estivesse apoiado de modo absolutamente rigoroso sobre um princípio fundamen tal E preciso limitarse a um pequeno número de idéias e repetilas constantemente Texto extraído de Ma doctrine Paris Fayard 1938 pp 6162 5 Pareto retorna muitas vezes a esta idéia pois teme ser mal compreendido De vemos ter cuidado com o perigo de atribuir uma existência objetiva aos resíduos ou mesmo aos sentimentos De fato só podemos observar homens que se encontram num estado que é revelado por aquilo que chamamos de sentimentos Traité de sociologie générale 1690 6 Georges Sorel 18471922 foi contemporâneo de Pareto e manteve com ele estreito contato epistolar e intelectual Apresenta muitos pontos comuns com o autor de Traité de sociologie générale Como ele teve formação científica Sorel foi aluno da Éco le Polytechnique como ele seguiu a carreira de engenheiro Sorel foi engenheiro de pontes e estradas como ele interessouse pela economia Sorel publicou uma Intro duction à l économie moderne como ele afirmou seu desprezo pela burguesia deca dente Um bom número de teses de Sorel têm correspondentes na obra de Pareto mas o pensamento de Sorel é mais próximo do marxismo mais idealista e sobretudo mais confuso Suas obras principais são Les réflexions sur la violence 1906 La décompo sition du marxisme 1908 Matériaux pour une théorie du prolétariat 1919 De l uti lité du pragmatisme 1921 todas publicadas em Paris por Rivière O pensamento de Sorel teve grande repercussão na Itália tanto por parte dos cientistas quanto dos ideó logos fascistas ou socialistas Sobre a relação entre Pareto e Sorel consultese o livro de Tommaso GiacaloneMonaco Pareto e Sorel riflessione e ricerche Pádua CEDAM tomo I 1960 tomo II 1961 7 Na introdução de Les systèmes socialistes obra anterior ao Traité de sociologie générale Pareto apresenta o fenômeno da elite governante da seguinte forma Os ho mens podem ser dispostos em pirâmides de distribuição desigual com a forma aproxi A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 439 mada de um pião conforme possuam mais ou menos um bem ou uma qualidade deseja da riqueza inteligência valor moral talento político Os mesmos indivíduos não ocupam os mesmos lugares nas mesmas figuras que acabamos de tratar como hipótese Com efei to seria evidentemente absurdo afirmar que os indivíduos que ocupam as camadas supe riores na figura que representa a distribuição do gênio matemático ou político sejam os mesmos que ocupam a camada superior na figura que representa a distribuição da rique za Contudo se distribuirmos os homens de acordo com seu grau de influência e de poder político e social na maioria das sociedades serão pelo menos em parte os mesmos ho mens que ocuparão os mesmos lugares neste gráfico e no gráfico da distribuição da ri queza Assim as classes ditas superiores são geralmente as mais ricas Representam uma elite uma aristocracia Les systèmes socialistes 11 pp 2728 8 Sobre a lei da distribuição da renda de Pareto consultemse além do Cours d économiepolitique e do Manuel d économiepolitique os Êcrits sur la courbe de la répartition de la richesse reunidos e apresentados por G Busino Genebra Dorz 1965 Esta lei de Pareto deu lugar a uma importante literatura econômica Citemos especialmente G Tintner Mathématiques et statistiques pour les écono mistes Paris Dunod 11 J Tinbergen La théorie de la distribution du revenu Cahiers de 1ISEA Cahiers francoitaliens n 2 1963 R Roy Pareto staticien la distribution des revenus Revue d economiepolitique 1949 N O Johnson The Pareto Law Review ofEconomic Statistics 1937 C BrescianiTuroni Annual Survey of Statistical Data Paretos Law and the Index of Inequality of Incomes Econométrica 1939 Mary J Bowman A Graphical Analysis of Personal Income Distribution in the United States American Economic Review 1945 reproduzido in Readings in the Theory o f Income Distribution Homewood R D Irwin 1951 pp 7299 D H Mac Gregor Paretos Law Economic Journal 1936 F Giancardi Sulla curva dei redditi Giornale degli economisti 1949 R Addario Richerche sulla curva dei redditi ibid E C Rhodes The Pareto distribution of incomes Economica 1944 9 G Mosca tinha desenvolvido sua teoria da elite governamental e da fórmula política dezessete anos antes da publicação de Systèmes socialistes num livro intitula do Sulla teoria dei governi et sul governo parlamentare A utilização da obra por Pareto não é nem um pouco certa Mas como escreve G H Bousquet Mosca tendo gentil mente solicitado a Pareto que reconhecesse a sua prioridade este recusou alegando que os pontos de semelhança se reduziam a idéias banais já enunciadas por Buckle Taine e outros mais Tudo o que Mosca conseguiu foi ser mencionado em uma nota do Manuale aliás não traduzida na edição francesa com um tom insolente e injusto Pareto le savant et Vhomme Lausanne Payot 1960 p 117 Sobre esta polêmica ver A De PietriTonelli Mosca e Pareto Revista interna zionale di scienze sociali 1935 Mais tarde Mosca desenvolveu seu pensamento no seu Elementi de scienza políti ca La ed em 18962 ed revista e aumentada em 1923 publicada por Bocca Turim da qual existe uma tradução inglesa com o título The Ruling Class Nova York MacGraw Hill 1939 Podese encontrar um resumo do livro de G Mosca em francês Histoire des doctrinespolitiques Paris Payot 1965 pp 79 e pp 243253 Ver também o capí tulo sobre Mosca no livro de J Bumham Les machiavèliens défenseurs de la libertè Paris Calmann Lévy 1949 pp 97125 440 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 10 Cf art de Jules Monnerot Politique en connaissance de cause in Êcrits pour une Renaissance Paris Plon 1958 publicado pelo grupo Nação Francesa Monnerot escreveu também Sociologie du communisme Paris Gallimard 1949 muito inspirado na Sociologia de Pareto 11 A teoria sociológica da mútua dependência é a transposição das teorias econô micas da interdependência geral e do equilíbrio que Pareto desenvolveu no Curso e no Manual cuja essência tinha sido formulada por Léon Walras em Êlements d économie pure Sobre essas teorias econômicas ver G Pirou Les théories de l équilibre économi que L Walras et VPareto Paris DomatMontchrestien 1938 2 ed F Oules Lécole de Lausanne textes choisis de L Walras et K Pareto Paris Dalloz 1950 J Schumpeter History o f Economic Analysis Londres Allen Unwin 1963 12 Têmse confundido e continuamse a confundir sob o nome de capitalistas pessoas que tiram uma renda de suas terras ou de suas economias e empresários Isto prejudica bastante o conhecimento do fenômeno econômico e ainda mais o conheci mento do fenômeno social Na realidade essas duas categorias de capitalistas têm inte resses bem diferentes e às vezes opostos Chegam mesmo a ser mais opostas do que as categorias das classes ditas capitalistas e proletárias Do ponto de vista econômico é vantajoso para o empresário que a renda da poupança e dos outros capitais que ele toma por empréstimo aluga seja mínima mas para esses produtores ao contrário é vantajo so que ela seja máxima Um encarecimento da mercadoria que ele produz é vantajoso para o empresário Para ele pouco importa um encarecimento das outras mercadorias se isso for compensado no ganho que ele tem com a sua própria mercadoria enquanto todos esses encarecimentos prejudicam o possuidor da simples poupança Quanto ao empresário os direitos fiscais sobre as mercadorias que ele produz prejudicamno um pouco às vezes eles o favorecem afastando os concorrentes Prejudicam sempre o con sumidor cujas rendas se originam do fato de colocarem as suas economias a juros De modo geral o empresário quase sempre pode se recuperar em cima do consumidor dos aumentos das despesas ocasionados por pesados impostos o simples possuidor da pou pança quase nunca Assim também o encarecimento da mãodeobra prejudica freqüen temente muito pouco ao empresário somente para os contratos em vigência uma vez que para os contratos futuros o empreendedor pode se recuperar pelo aumento dos pre ços dos produtos O simples possuidor de poupança ao contrário sofre habitualmente esses aumentos de preço sem poder se recuperar de maneira alguma Em conseqüência nesse caso os empresários e seus trabalhadores têm um interesse comum que se opõe ao do simples possuidor de economias O mesmo acontece com os empresários e operários das indústrias que gozam de proteção alfandegária Do ponto de vista social as oposi çÕes não são menores Entre os empresários encontramse pessoas com um instinto das combinações muito desenvolvido e esse instinto é indispensável para ter sucesso nessa profissão As pessoas em que predominam os resíduos da persistência dos agregados per manecem entre os simples possuidores de poupança Por isso os empresários são geral mente pessoas aventureiras intrépidas sempre em busca de novidades tanto no campo econômico quanto no social Os movimentos não lhes desagradam eles esperam tirar vantagem Os simples possuidores de poupança ao contrário são freqüentemente pes soas tranqüilas tímidas que estão sempre levantando a orelha como a lebre Esperam A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 441 pouco e temem muito os movimentos porque sabem por uma dura experiência que são eles que pagam os prejuízos Traité de sociologie générale 22312232 13 A prosperidade dos nossos países é pelo menos em parte fruto da liberdade de ação dos sujeitos do ponto de vista econômico e social durante uma parte do século XIX Agora começa a cristalização exatamente como no Império Romano Ela é dese jada pelos povos e em muitos casos parece aumentar a prosperidade Indubitavelmente estamos longe ainda de uma situação em que o trabalhador esteja definitivamente liga do à sua profissão mas os sindicatos e as restrições impostas à circulação entre os Es tados nos encaminham nesse sentido Constituídos graças à imigração os Estados Unidos que devem aos imigrantes sua atual prosperidade procuram agora rejeitar por todos os meios a imigração Em outros países como a Austrália fazse o mesmo Os sindicatos operários tentam impedir as pessoas nãosindicalizadas de trabalhar Por outro lado es tão bem longe de aceitar qualquer um como membro Os governos e as comunidades intervém diariamente cada vez mais nos assuntos econômicos São impelidos pela von tade da população e muitas vezes com uma vantagem aparente para o povo É fácil per ceber que nós nos movemos segundo uma curva semelhante à que percorreu a socieda de romana depois da fundação do Império e que após um período de prosperidade pro longouse até a decadência A história nunca se repete e não é provável a menos que se acredite no perigo amarelo que a prosperidade futura decorra de outra invasão bár bara Seria menos improvável que resultasse de uma revolução interior a qual daria o poder aos indivíduos que possuem em abundância resíduos da segunda classe e que sabem podem e querem usar a força Mas essas eventualidades distantes e incertas per tencem mais ao domínio da fantasia do que da ciência experimental Traité de socio logie générale 2553 14 O desprezo pela burguesia decadente leva Pareto a escrever Assim como a sociedade romana foi salva da ruína pelas legiões de César e pelas de Octávio pode acontecer que nossa sociedade um dia seja salva da decadência por aqueles que serão os herdeiros dos nossos sindicatos e de nossos anarquistas Traité de sociologie géné rale 1858 15 Este artigo intitulado A sociologia de Pareto foi publicado em 1937 no Zeitschrift für Sozialforschung VI 1937 pp 489521 Ver também o primeiro capítu lo de Uhomme contre les tyrans Paris Gallimard 1945 Le machiavélisme doctrine des tyrannies modemes pp 1121 16 As relações entre Pareto e o fascismo foram analisadas de forma completa por G H Bousquet em Pareto le savant et Vhomme Lausanne Payot 1960 pp 188197 Segundo G H Bousquet até o advento do fascismo o mestre adotou com rela ção a ele uma atitude das mais reservadas por vezes até hostil Depois deu o seu apoio indiscutível à forma bastante moderada que o movimento revestia então Esta aprova ção foi feita com reserva enfatizando a necessidade de salvaguardar um certo número de liberdades No dia l de junho de 1922 cinco meses antes da marcha sobre Roma dos CamisasNegras Pareto escreve a um amigo Posso estar enganado mas não vejo no fascismo uma força permanente e profunda Mas em 13 de novembro de 1922 alguns dias depois da tomada do poder ele dizia que como homem estava feliz com a vitória do fascismo e feliz também como cientista cujas teorias se vêem assim confirmadas 442 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Pareto aceita as honras do novo regime o cargo de representante da Itália na Comissão de Desarmamento da Sociedade das Nações em dezembro de 1922 uma cadeira de se nador em março de 1923 Pareto havia recusado esta última honraria quando ela lhe fora oferecida no regime anterior Em março de 1923 escreve Se a reconstrução da Itália marca uma mudança no ciclo percorrido pelos povos civilizados Mussolini será uma figura histórica digna da antiguidade ou ainda A França só se poderá salvar se encontrar um Mussolini Mas na mesma época também escreve que se recusa a fazer parte dos aduladores e que se a salvação da Itália reside talvez no fascismo existem abismos perigosos Seu pen samento foi expresso aliás de modo muito claro na revista doutrinai do partido fascis ta Gerarchia em que publicou um artigo intitulado Libertà O fascismo escreve não é bom apenas por ser ditatorial isto é capaz de restabelecer a ordem mas porque até agora os efeitos têm sido bons Vários obstáculos precisam ser evitados as aventu ras bélicas a restrição da liberdade de imprensa os impostos excessivos aos ricos e camponeses a submissão à Igreja e ao clericalismo a limitação da liberdade de ensi no Convém que a liberdade de ensinar nas universidades não tenha nenhum limite qúe seja possível ensinar tanto as teorias de Newton como as de Einstein as de Marx como as da escola histórica Em outras palavras Pareto era favorável a uma versão pacífica liberal no plano eco nômico e intelectual laica e socialmente conservadora de um regime autoritário Não foi a favor do corporativismo nem dos acordos de Latrão nem da conquista da Etiópia nem do juramento de fidelidade imposto aos professores da Universidade a partir de 1921 e é provável que exercesse sua verve e sua crítica contra todos os desvios hegelianos e nacionalistas dos Gentile Volpe Rocco e Bottai Sem querer adivinhar o que teria sido a evolução das idéias de Pareto em relação ao fascismo o que seria absurdo não é inútil lembrar que Benedetto Croce que se tomou um dos líderes da oposição liberal também deu no início de 1923 sua caução e sua adesão ao novo regime Quanto à influência de Pareto sobre o fascismo é fato indiscutível mas que está longe de ser preponderante Mussolini passou algum tempo em Lausanne em 1902 É possível que tenha assistido às aulas de Pareto mas não entrou em contato com ele Não é evidente que o tenha lido e em todo o caso essa leitura não teria sido a única do jovem socialista exilado e autodidata As lições de Marx de Darwin de Maquiavel e sua tradição de Sorel de Maurras de Nietzsche de Croce e do hegelianismo italiano e com toda a evidência escritores nacionalistas tiveram pelo menos tanta influência quanto as de Pareto na formação da ideologia fascista A parte do maquiavelismo e em conseqüência do paretismo só pode ser considerada importante no fascismo se dermos dele uma definição universal Resta saber se um tal esforço de abstração não é inútil na medida em que são muito grandes as particularidades nacionais das experiências polí ticas e dos movimentos ditos políticos 17 O modo como Pareto apresenta os políticos plutodemocratas entre os quais predominam de modo quase exclusivo os resíduos da primeira classe é dificilmente compreensível se não se recordar o espetáculo da vida política italiana no fim do século passado e no princípio deste século Em 1876 a direita italiana ou mais exatamente piemontesa perde o poder Três homens passam a dominar o cenário político sucessi A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 443 vãmente Depretis de 1876 a 1887 Crispi e sobretudo Giolitti de 1897 a 1914 Gio litti liberal moderado em política e em economia é um realista e um empirista Sua ação interna retoma os métodos do transformismo de Depretis dividir para reinar evitando repressões brutais e manobrando com habilidade entre os homens e as tendên cias do parlamento e dos sindicatos Sua ditadura é flexível conciliatória distribuin do favores que neutralizam os adversários ou asseguram sua aliança apóiase na cor rupção eleitoral para garantir uma maioria Eficaz no plano tático o giolittismo contri buiu para desacreditar a instituição parlamentar e para debilitar a idéia do civismo num país onde a tradição democrática tinha ainda raízes muito frágeis Paul Guichonnet Mussolini et le Fascisme Paris PUE 1966 18 De acordo com G H Bousquet o Traité de sociologie générale é um dos mais vigorosos esforços do espírito humano para apreender a estrutura das sociedades e o valor das reflexões que nelas têm curso Pareto le savant et l homme Lausanne Payot 1960 p 150 Segundo G Gurvitch uma tal concepção parece ter apenas uma vanta gem científica a de constituir um exemplo do que é preciso evitar Le concept de clas ses sociales de Marx à nos jours Paris CDU 1957 p 78 19 Por exemplo a maioria dos economistas do começo deste século e mesmo nos anos 20 acreditavam que em caso de crise de desemprego e de retração das exporta ções a melhor maneira de restabelecer o pleno emprego e o equilíbrio externo seria promover a redução dos salários e dos preços Os keynesianos demonstraram que dada a rigidez estrutural e a importância dos custos fixos uma política deflacionária não po dia na verdade restabelecer o pleno emprego e abrir os mercados externos O equilí brio pela deflação constituía talvez uma possibilidade teórica mas não era segura mente uma política eficaz a não ser à custa de sacrifícios desproporcionais As políti cas de Lavai e Bruning da cK cida de 30 ou a de Churchill em 1925 que no entanto eram apoiadas por eminentes homens de ciência e se apresentavam de modo sensato não constituíam apesar de tudo condutas nãológicas da mesma categoria das práticas mágicas do adeptos do Vudu Bibliografia OBRAS DE PARETO Existem duas bibliografias quase completas dos escritos de Pareto a de G H Bous quet publicada pela Faculdade de Economia e de Comércio de Gênova e a do tomo III das Cartas de Pareto a Pantaleoni editadas pela Banca Nazionale dei Lavoro Roma 1960 O editor Droz de Genebra publicou sob a direção de G Busino as Obras com pletas de Pareto Até novembro de 1968 12 volumes tinham sido publicados Cours d économiepolitique 1 vol 1964 Ecrits sur la courbe de répartition de la richesse 1 vol 1965 Le marché financier italien 18911899 1 vol 1965 Les systèmes socialistes 1 vol 1965 Lettres d Italie Chroniques sociales et économiques 1 vol 1967 Libreéchangisme protectionnisme et socialisme 1 vol 1965 Manuel d économiepolitique 1 vol 1966 Marxisme et économie pure 1 vol 1966 Mythes et idéologies de la politique 1 vol 1965 Sommaire du cours de sociologie seguido de Mon Journal 1 vol 1967 Statistique et économie mathématique 1 vol 1966 Traité de sociologie générale 1 vol 1968 As outras obras importantes de Pareto são Fatti e teorie Florença Vallechi 1920 Le mythe vertuiste et la littérature immorale Paris Rivière 1911 Transformazioni delia democrazia Milão Corbaccio 1921 OBRAS SOBRE PARETO Amoroso L e Jannaccone P Vilfredo Pareto economista e sociologo Roma Bardi 1948 Aron R La sociologie de Pareto Zeitschrift ju r Sozialforschune 1937 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 445 Borkenau F Pareto Londres Chapman Hall 1936 Bousquet GH Pareto 18481923 Le savant et 1homme Lausanne Payot 1960 Bousquet GH Précis de sociologie d après Vilfredo Pareto Paris Payot 1925 Bousquet GH Vilfredo Pareto sa vie et son oeuvre Paris Payot 1918 contém uma bibliografia Burnham J Les machiavéliens défenseurs de la liberté Paris CalmannLévy 1949 Cahiers de UISEA suplemento Cahiers francoitaliens n 2 1963 número especial sobre Pareto Cahiers Vilfredo Pareto Revue européenne d histoire des sciences sociales Genebra Librairie Droz sete números publicados desde 1963 todos eles contendo um ou mais artigos sobre Pareto GiacaloneMonaco T Le Cronachepolitiche e economichediPareto Pádua CEDAM 1961 GiacaloneMonaco T Pareto e Sorel Riflessioni e ricerche Pádua CEDAM t II 1961 Henderson L J Pareto s General Sociology A Physiologists Interpretation Cambridge Harvard University Press 1935 La Feria G Vilfredo Pareto filosofo volteriano Pádua CEDAM 1958 Meisel James H Pareto and Mosca Nova Jersey Prentice Hall 1965 Meisel James H The Myth o f the Ruling Class Ann Arbor Michigan Press 1958 Oules Firmin VEcole de Lausanne Textes choisis de L Walras et V Pareto apresenta dos e comentados por F Oulès Paris Dalloz 1950 Parsons T Pareto artigo in Encyclopedia o f the Social Sciences vol XI 1933 Parsons T The Structure o f Social Action Nova York MacGraw Hill 1937 Perrin G Sociologie de Pareto Paris PUF 1966 grande bibliografia PietriTonelli A de Vilfredo Pareto Rivista di politica economica três números pu blicados 19341935 Pirou G Les théories de Véquilibre économique Walras et Pareto Paris Domat Montchrestien 1938 2 ed Revue d économie politique número especial sobre Pareto 1949 Schumpeter J History o f Economic Analysis Londres Allen Unwin 1963 Schumpeter J Ten Great Economists Nova York Oxford University Press 1965 OBRAS EM PORTUGUÊS Crítica a O capital de K Marx tradução e prefácio de Nogueira de Paula Rio de Ja neiro Pongetti 1937 Schumpeter Joseph A Dez grandes economistas tradução de Japy Freire Rio de Ja neiro Civilização Brasileira 1958 Schumpeter Joseph A História da análise econômica tradução de Alfredo Moutinho dos Reis José Luís Silveira Miranda e Renato Rocha Rio de Janeiro USAID 1964 Un nobre olliño de malto non máis 20 cm de altura 160 g de peso e madeira fresca Max Weber A racionalização da atividade comunitária não tem como conseqüên cia uma universalização do conhecimento com relação às condições e às relações desta atividade mas quase sempre produz o efeito contrário O selvagem conhece infinitamente mais sobre as condições econômi cas e sociais da sua própria existência do que o civilizado no sentido ordinário do termo sabe sobre as suas Essais sur la théorie de la Science p 397 La sociologie compréhensive A obra de Max Weber é considerável e variada Portanto não poderei expô la seguindo o método que usei para analisar os trabalhos de Durkheim e de Pareto Resumidamente podemse classificar as obras de Max Weber em quatro ca tegorias 1 Os estudos de metodologia crítica e filosofia que tratam essencial mente do espírito objeto e métodos das ciências humanas história e sociologia São simultaneamente epistemológicos e filosóficos levam a uma filosofia do homem na história a uma concepção das relações entre a ciência e a ação Os prin cipais trabalhos deste gênero estão reunidos numa coletânea intitulada Gesam melte Aufsãtze zur Wissenschaftslehre traduzida para o francês sob o título Essais sur la théorie de la science Ensaios sobre a teoria da ciência 2 As obras propriamente históricas um estudo sobre as relações de pro dução na agricultura do mundo antigo Agrarverhãltnisse im Altertum uma história econômica geral cursos dados por Max Weber e publicados depois da sua morte trabalhos especiais sobre problemas econômicos da Alemanha ou da Europa contemporânea por exemplo uma pesquisa sobre a situação econômi ca da Prússia oriental em particular sobre as relações entre os camponeses poloneses e as classes dirigentes alemãs2 3 Os trabalhos de sociologia da religião a começar pelo célebre estudo sobre as relações entre A ética protestante e o espírito do capitalismo que Max Weber continuou com uma análise comparativa das grandes religiões e da ação recíproca entre 3 condições econômicas as situações sociais e as convicções religiosas3 4 Finalme sua obraprima o tratado de sociologia geral intitulado Economia e sociedade Wirtschaft und Gesellschafi publicado postumamen te Max Weber trabalhava nesse livro quando foi atingido pela gripe espanhola logo depois da Primeira Guerra Mundial4 448 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO É impossível resumir em algumas páginas essa obra de riqueza tão excep cional Pretendo assim examinar as principais idéias dos trabalhos da primei ra categoria numa tentativa de expor as concepções fundamentais de Max Weber no campo da ciência e da política e suas mútuas relações Esta interpretação das relações entre a ciência e a política leva a uma certa filosofia que na época não se chamava ainda existencialista mas que pertence ao tipo que hoje é as sim chamado Resumirei em seguida os temas principais das investigações pro priamente sociológicas por fim analisarei a interpretação dada por Max Weber à época contemporânea de modo a manter o paralelismo entre este capítulo e os dois precedentes Teoria da ciência Para estudar a teoria weberiana da ciência podese seguir o mesmo méto do do capítulo precedente tomando como ponto de partida a classificação dos tipos de ação Pareto parte da antítese entre a ação lógica e a ação nãológica Da mesma forma é válido dizer embora não seja este o procedimento clássi co de exposição que Weber parte da distinção entre quatro tipos de ação a ação racional com relação a um objetivo zweckrational a ação racional com rela j ção a um valor wertrationa l a ação afetiva ou emocional e por último a ação tradicional A ação racional com relação a um objetivo corresponde aproximadamente 1 à ação lógica de Pareto é a ação do engenheiro que constrói uma ponte do es peculador que se esforça por ganhar dinheiro do general que quer ganhar uma batalha Em todos estes casos a ação zweckrational é definida pelo fato de que o ator concebe claramente seu objetivo e combina os meios disponíveis para atingilo Entretanto Weber não diz explicitamente como Pareto que a ação na qual o ator escolhe meios impróprios devido à inexatidão dos seus conhecimentos é nãoracional A racionalidade com relação a um objetivo é definida com base nos conhecimentos do ator e não do observador Esta última definição seria a de Pareto5 A ação racional com relação a um valor é por exemplo a do socialista ale j mãoTLassalIe que se deixou matar num duelo ou do capitão aue afunda com seu navio A ação e racional não porque tende a alcançar um objetivo definido e exte rior mas porque seria desonroso deixar de responder a um desafio ou abandonar í o navio que afunda O ator age racionalmente aceitando todos os riscos não para obter um resultado extrínseco mas para permanecer fiel à sua idéia de honra j A ação cue Weber chama de afetiva é a ação ditada imediatamente pelo es j tado de consciência ou o humor do sujeito É a bofetada dada pela mãe na crian j A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 449 ça que se comporta de modo insuportável é o soco dado numa partida He fute bol pelo jogador que perdeu o controle dos nervos Em todos estes casos a ação é definida por uma reação emocional do ator em determinadas circunstâncias e não em relação a um objetivo ou a um sistema de valores ação tradicional é aquela ditada pelos hábitos costumes e crenças trans formada numa segunda natureza Para agir de conformidade com a tradição o ator não precisa conceber um objetivo ou um valor nem ser impelido por uma emoção obedece simplesmente a reflexos enraizados por longa prática j Esta classificação dos tipos de ação foi discutida e refinada durante quase meio século Limitome aqui a indicála acentuando que de certo modo ela elu cida todas as concepções de Max Weber de fato voltaremos a encontrála em vários níveis sociologia é uma ciência que procura compreender a ação social a com preensão implica a percepção do sentido que o ator atribui à sua conduta En quanto Pareto julga a lógica das ações referindose aos conhecimentos do obser vador ío objetivo e a preocupação de Weber é compreender o sentido que cada rãtõTdá à própria conduta A compreensão dos sentidos subjetivos implica uma classificação dos tipos de conduta e leva à percepção da sua estrutura inteligíveLJ A classificação dos tipos de ação comanda em certa medida a interpretação weberiana da época contemporânea O traço característico do mundo em que vivemos é a racionalização Numa primeira aproximação esta corresponde a uma ampliação da esfera das ações zweckrational O empreendimento econô mico é racional a gestão do Estado pela burocracia também A sociedade moder na tende toda ela à organização zweckrational e o problema filosófico do nos so tempo problema eminentemente existencial consiste em delimitar o setor da sociedade em que subsiste e deve subsistir uma ação de outro tipo Esta classificação dos tipos de ação está associada por fim com o que constitui o centro da reflexão filosófica de Max Weber a saber os vínculos de solidariedade e de independência entre a ciência e a política A indagação sobre o tipo ideal do político e do Gientista apaixonava Max Weber Como é possível ser ao mesmo tempo um homem de ação e um professor O problema era para ele ao mesmo tempo filosófico e pessoal Embora nunca tenha sido um político Max Weber jamais deixou de sonhar com a possibilidade de vir a sêlo Na verdade sua atividade propriamente polí tica foi a de professor ocasionalmente atuou como jornalista e às vezes como um conselheiro do príncipe naturalmente não ouvido Durante a Primeira Guer ra Mundial enviou um memorando confidencial ao governo de Berlim quando os líderes militares e políticos alemães se preparavam para declarar uma guer ra submarina irrestrita o que trazia o risco de precipitar a intervenção dos Es tados Unidos da América Neste memorando secreto expunha as razões pelas quais essa decisão provocaria provavelmente uma catástrofe para a Alemanha 450 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Fez parte também da delegação alemã que foi à França tomar conhecimento das condições do armistício Weber apreciaria ter sido um dirigente partidário ou lí der político mas foi sobretudo um professor e um cientista O gosto pelas idéias claras e a honestidade intelectual fizeram com que não deixasse de especular so bre as condições em que a ciência histórica ou sociológica pode ser objetiva sobre as condições que permitem à ação política ser conforme à sua vocação Estas concepções estão resumidas em duas conferências intituladas Po litik ais Beruf e Wissenschaft ais Beruf o que significa A política como profis sã e A ciência como profissão r m pA ação do cientista é racional com referência a um objetivo O cientista se propõe a enunciar proposições factuais relações de causalidade e interpreta ções compreensivas que sejam universalmente válidas A investigação científica é assim um exemplo importante de ação racio nal com relação a um objetivo que é a verdade Mas este objetivo é determina do por um juízo de valor isto é por um julgamento sobre o valor da verdade demonstrada pelos fatos ou por argumentos universalmente válidos A ação científica é portanto uma combinação da ação racional em relação a um objetivo e da ação racional em relação a um valor que é a verdade A ra cionalidade resulta do respeito pelas regras da lógica e da pesquisa respeito ne cessário para que os resultados alcançados sejam válidos Tal como Weber a entende a ciência é um aspecto do processo de raciona lização característico das sociedades ocidentais modernas Weber chegou mes mo a sugerir e a afirmar que a ciência histórica e sociológica da nossa época representa um fenômeno historicamente singular na medida em que não houve em outras culturas o equivalente a esta compreensão racionalizada do funcio namento e do desenvolvimento das sociedades7 A ciência positiva e racional valorizada por Max Weber faz parte do pro cesso histórico de racionalização e apresenta duas características que coman dam o significado e o alcance da verdade científica Estes dois traços específi cos são o nãoacabamento essencial e a objetividade esta última sendo defini da pela validade da ciência para todos os que procuram este tipo de verdade e pela rejeição dos juízos de valor8 O cientista observa com a mesma serenidade o charlatão e o médico o demagogo e o estadista Para Max Weber o nãoacabamento é fundamental ele que não imagina como Durkheim uma época futura em que a sociologia estivesse plenamente edificada com a existência de um sistema completo de leis sociais Nada mais distante do modo de pensar de Weber do que a concepção cara a Auguste Comte de uma ciência que chegasse a formular um quadro claro e definitivo das leis fundamentais A ciência dos tempos antigos podia considerarse num certo sen tido acabada porque procurava apreender os princípios do ser A ciência mo A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 451 derna é por essência um devenir ignora as proposições relativas ao sentido últi mo das coisas tende a um objetivo situado no infinito e renova sem cessar as indagações dirigidas à natureza Para todas as disciplinas tanto ciências da natureza como ciências da cul tura o conhecimento é uma conquista que nunca chega ao seu termo A ciên cia é o devenir da ciência É sempre possível ir mais longe na análise levar mais adiante a investigação na direção dos dois infinitos Mas para as ciências da realidade humana da história e da cultura não é só isso O conhecimento nesse caso está subordinado às questões que o cientista coloca à realidade A medida que a história avança e renova os sistemas de valor e os monumentos do espírito o historiador e o sociólogo espontaneamente for mulam novas questões sobre os fatos presentes ou passados Como a história realidade renova a curiosidade do historiador ou do sociólogo é impossível conceber uma história ou uma sociologia acabadas A história e a sociologia só poderiam ser completadas se o devenir humano chegasse ao fim Seria necessá rio que a humanidade perdesse a capacidade de criar para que a ciência do ho mem fosse definitiva9 Essa renovação das ciências históricas graças às questões formuladas pelo historiador pode parecer que coloca em dúvida a validade universal da ciência m ascara Weber não é issoA validade universal da ciência exige que o cientis t a não projete seus próprios juízos de valor na investigação em que está empe nhado isto é que não a contamine com suas preferências estéticas ou políticas O fato de que tais preferências se manifestam na orientação da curiosidade do cientista não exclui a validade universal das ciências históricas e sociológicas que devem ser respostas universalmente válidas a questões orientadas legitima mente pelos nossos interesses e valores pelo menos em teoria Descobrimos assim que as ciências da história e da sociedade cujas carac terísticas são analisadas por Weber diferem profundamente das ciências da na tureza embora tenham a mesma inspiração racional As características originais e distintivas destas ciências são três elas são compreensivas históricas e se orientam para a cultura O termo compreensão no sentido de entendimento é a tradução clássica do alemão Verstehen A idéia de Weber é a seguinte no domínio dos fenômenos naturais só podemos apreender as regularidades observadas por meio de propo sições de forma e natureza matemáticas Em outras palavras é preciso explicar os fenômenos por meio de proposições confirmadas pela experiência para ter o sentimento de compreendêlas A compreensão é por conseguinte mediata passa por intermediários conceitos ou relações No caso da conduta humana a compreensão é num certo sentido imediata o professor compreende o com 452 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO portamento dos que acompanham suas aulas o viajante compreende por que o motorista do táxi pára diante do sinal vermelho Não é necessário constatar quan tos motoristas se detêm diante do sinal vermelho para entender por que razão eles agem assim A conduta humana tem uma inteligibilidade intrínseca que vem do fato de que os homens são dotados de consciência Com muita freqüência certas relações inteligíveis se tornam imediatamente perceptíveis entre atos e objetivos entre as ações de uma pessoa e as de outraAs condutas sociais têm uma textura inteligível que as ciências da realidade humana são capazes de apreender Esta inteligibilidade não significa que o sociólogo ou o historiador compreendam intuitivamente tais condutas Pelo contrário o cientista social as reconstrói gradualmente com base em textos e em documentos Para o sociólogo o sentido subjetivo é ao mesmo tempo imediatamente perceptível e equívoco A compreensão não implica no pensamento de Weber uma faculdade mis teriosa capacidade exterior ou superior à razão ou aos processos lógicos das ciências da natureza A inteligibilidade não é imediata no sentido de que pos samos apreender de súbito sem qualquer investigação prévia o significado da conduta dos outros Mesmo quando se trata dos nossos contemporâneos pode mos dar imediatamente uma interpretação de suas ações ou de suas obras mas sem investigação e sem provas não podemos saber qual interpretação é a ver dadeira Em suma é mais apropriado falar em inteligibilidade intrínseca do que em inteligibilidade imediata lembrando sempre que esta inteligibilidade impli ca por essência uma ambigüidade O ator nem sempre conhece os motivos da sua ação o observador é menos capaz ainda de adivinhálos intuitivamente Pre cisa investigálos para poder distinguir entre o verdadeiro e o verossímil A idéia weberiana da compreensão é em grande parte tomada da obra de Karl Jaspers notadamente dos trabalhos que Jaspers escreveu na juventude so bre a psicopatologia em particular o Tratado que JeanPaul Sartre traduziu em parte10 O centro da psicopatologia de Jaspers reside na distinção entre explicação e compreensão O psicanalista compreende um sonho a relação entre determi nada experiência infantil e um certo complexo o desenvolvimento de uma neu rose Há portanto segundo Jaspers no nível das experiências vividas uma com preensão intrínseca dos seus significados Contudo existem limites para esta compreensão Estamos longe de poder compreender o vínculo entre um certo estado de consciência e determinado sintoma patológico Compreendese uma neurose mas nem sempre se compreende uma psicose Num certo momento a inteligibilidade desaparece dos fenômenos patológicos Por outro lado não se compreendem as condutas reflexas Em termos gerais podese dizer que as con dutas são compreensíveis dentro de certos quadros fora desses quadros as re lações entre o estado de consciência e o estado físico ou psicológico deixam de iteligíveis embora sejam explicáveis A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 453 Esta distinção é a meu ver o ponto de partida da idéia weberiana segundo a qual as condutas sociais oferecem um imenso campo suscetível de uma com preensão por parte do sociólogo comparável à compreensão do psicólogo É óbvio que a compreensão sociológica não se confunde com a compreensão psi cológica A esfera autônoma da inteligibilidade social não abrange a da inteli gibilidade psicológica Do fato de sermos capazes de compreender resulta que podemos explicar fenômenos singulares sem a intermediação das proposições gerais Há um vín culo entre a inteligibilidade intrínseca dos fenômenos humanos e a orientação histórica destas ciências Não que elas visem sempre ao que aconteceu uma só vez e se interessem exclusivamente pelas características singulares dos fenô menos Como compreendemos o singular a dimensão propriamente histórica assume nas ciências que têm por objeto a realidade humana uma importância e um alcance que ela não pode ter nas ciências da natureza Nas ciências da realidade humana devemse distinguir duas orientações uma no sentido da história do relato daquilo que não acontecerá uma segunda vez a outra no sentido da sociologia isto é da reconstrução conceituai das institui ções sociais e do seu funcionamento Estas duas orientações são complementa res Max Weber nunca diria como Durkheim que a curiosidade histórica deve subordinarse à investigação de generalidades Quando o objeto do conheci mento é a humanidade é legítimo o interesse pelas características singulares de um indivíduo de uma época ou de um grupo tanto quanto pelas leis que coman dam o funcionamento e o desenvolvimento das sociedades r Ãs ciências que se orientam para a realidade humana são as ciências da cul tura que se esforçam por compreender ou explicar as obras criadas pelos homens no curso do seu devenir não só as obras de arte mas também as leis as institui ções os regimes políticos as experiências religiosas as teorias científicas A ciên cia weberiana se define assim como um esforço destinado a compreender e a ex plicar os valores aos quais os homens aderiram e as obras que construíram As obras humanas são criadoras de valores ou se definem por referência a valores Como pode existir uma ciência objetiva isto é não falseada pelos nos sos julgamentos de valor obras carregadas de valores O objetivo específico da ciência é a validade universal Ela é para empregar os conceitos weberianos uma conduta racional cuja finalidade é atingir julgamentos de fato universal mente válidos Como é possível formular tais julgamentos a propósito dè obras que se definem como criações de valores i Max Weber respondia a esta questão que está no centro de toda sua reflexão I filosófica e epistemológica traçando a distinção entre o julgamento de valor Werturteil e a relação com os valores Wertbeziehung 454 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A noção de julgamento de valor é fácil de compreender O cidadão que con sidera que a liberdade é algo essencial e afirma que a liberdade de expressão e de pensamento é um valor fundamental está fazendo um julgamento em que sua personalidade se manifesta As outras pessoas estão livres para rejeitar tal julgamento e achar que a liberdade de expressão não tem grande importância Os julgamentos de valor são pessoais e subjetivos todos têm o direito de con siderar a liberdade como um valor positivo ou negativo primordial ou secun dário como um valor que convém salvaguardar antes de tudo ou que podemos subordinar ou sacrificar a alguma outra consideração Por outro lado a fórmu la relação aos valores significa para retomar o exemplo precedente que o sociólogo da política considerará a liberdade como um objeto a respeito do qual os sujeitos históricos se debaterão como aquilo que estava em jogo nas contro vérsias ou nos conflitos entre os homens e os partidos e que ele irá explorar a realidade política do passado estabelecendo uma relação entre ela e o valor li berdade A liberdade é um ponto de referência para o sociólogo que nem por isso está obrigado a declarar seu apreço com relação a ela Bastarlheá que seja um dos conceitos com a ajuda dos quais vai delimitar e organizar uma parte da realidade a estudar Isto implica simplesmente que a liberdade política seja um valor para os homens que a viveram Em suma não formulamos um julgamen to de valor mas relacionamos a matéria estudada com um valor que é a liber dade política O julgamento de valor é uma afirmação moral ou vital a relação aos valo res é um procedimento de seleção e de organização da ciência objetiva Como professor Max Weber queria ser um cientista e não um político A distinção entre o julgamento de valor e a relação aos valores lhe permitia ao mesmo tem po marcar a diferença entre a atividade do cientista e a do político e a seme lhança de interesses entre um e outro Esta distinção não é contudo imediatamente óbvia e coloca vários problemas Antes de mais nada por que razão é necessário utilizar este método e re lacionar a matéria histórica ou sociológica com valores A resposta em sua forma mais elementar é que o cientista para determinar seu objeto de estudo está obrigado a fazer uma opção com respeito à realidade uma seleção dos fa tos e a elaboração de conceitos que exigem um procedimento do tipo relação aos valores Por que é necessário selecionar A resposta de Max Weber é dupla e pode situarse ora no nível de uma crítica transcendental de inspiração kantiana ora no de um estudo epistemológico e metodológico sem pressupostos filosóficos ou críticos No nível da crítica transcendental a idéia weberiana tem raízes na filoso fia do neokantiano H Rickert11 Para este o que é dado primordialmente ao es A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 455 pírito humano é uma matéria informe que a ciência elabora e constrói Rickert tinha desenvolvido também a idéia de que há dois tipos de ciência conforme a natureza da elaboração a que essa matéria é submetida A elaboração caracte rística das ciências da natureza consiste em considerar os caracteres gerais dos fenômenos e estabelecer relações regulares ou necessárias entre eles Ela tende à construção de um sistema de leis ou de relações cada vez mais gerais tanto quanto possível de forma matemática O ideal da ciência natural é a física de Newton ou de Einstein na qual os conceitos designam objetos construídos pelo espírito O sistema é dedutivo e se organiza a partir de leis ou princípios sim ples e fundamentais Mas existe também um segundo tipo de elaboração científica característi ca das ciências históricas ou das ciências da cultura Neste caso o espírito não procura inserir progressivamente a matéria informe num sistema de relações matemáticas aplica uma seleção à matéria relacionandoa a valores Se um his toriador pretendesse contar com todos os detalhes com todos os seus caracte res qualitativos cada um dos atos e dos pensamentos de uma só pessoa num só dia não conseguiria fazêlo Alguns romancistas contemporâneos tentaram registrar os pensamentos que podem cruzar uma consciência durante determi nado período de tempo Foi o que fez por exemplo Michel Butor no romance La modification que se passa numa viagem entre Paris e Roma Esta narrativa das aventuras interiores de um singular indivíduo durante um só dia exige um número respeitável de centenas de páginas Basta imaginar o trabalho do histo riador que pretendesse contar do mesmo modo o que aconteceu em todas as consciências de todos os soldados que participaram da batalha de Austerlitz para perceber que esta narrativa impossível exigiria mais páginas do que todos os livros já escritos sobre todas as épocas da humanidade O exemplo que pertence ao método da experiência mental mostra bem que se pode admitir sem dificuldade que todo relato histórico é uma reconstru ção seletiva do que aconteceu no passado Esta seleção é predeterminada em parte pela seleção operada nos documentos Somos incapazes de reconstituir uma grande parte do que aconteceu nos séculos passados pela simples razão de que os documentos disponíveis não nos permitem conhecer tudo o que ocorreu Contudo mesmo quando os documentos são abundantes o historiador selecio na com base no que H Rickert e Max Weber chamam de valores estéticos morais ou políticos Não tentamos reconstruir tudo o que os homens viveram no passado tentamos antes reconstruir a partir de documentos sua existência histórica realizando uma seleção orientada pelos valores vividos pelos mesmos homens objeto da história e pelos valores dos historiadores sujeitos da ciên cia histórica Se admitíssemos a ciência como acabada chegaríamos no caso das ciên cias da natureza a um sistema hipotéticodedutivo que poderia explicar todos 456 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO os fenômenos a partir de princípios axiomas e leis Este sistema hipotéticodedu tivo não nos permitiria contudo determinar como e por que em todos os deta lhes concretos se produziu uma explosão em determinado momento do tempo e do espaço Haverá sempre um hiato entre a explicação legal e o acontecimen to histórico concreto No caso das ciências da cultura e da história chegase não a um sistema hipotéticodedutivo mas a um conjunto de interpretações todas seletivas e in separáveis do sistema de valores escolhido Se cada reconstrução é seletiva e comandada por um sistema de valores haverá tantas perspectivas históricas ou sociológicas quantos sistemas de valores orientando a seleção Passamos assim do nível transcendental para o metodológico em que se situa o historiador ou o sociólogo Max Weber tomou emprestado a H Rickert a oposição entre reconstrução generalizadora e reconstrução singularizante com base nos valores O que o interessava nesta idéia ele que não era um filósofo profissional mas um soció logo era o fato de que ela lhe permitia lembrar que uma obra de história ou de sociologia deve seu interesse em parte ao interesse das questões propostas pelo historiador ou sociólogo As ciências humanas são animadas e orientadas por questões que os cientistas dirigem à realidade O interesse das respostas depen de amplamente do interesse das questões Neste sentido não é mau que os so ciólogos que estudam a política se interessem pela política e que os sociólogos da religião tenham interesse pela religião Max Weber pretendia superar deste modo uma antinomia bem conhecida o cientista que se apaixona pelo objeto da sua investigação não será nem impar cial nem objetivo Mas quem estima que a religião só se compõe de superstição corre o risco de nunca compreender em profundidade a vida religiosa Distin guindo assim as perguntas e as respostas Weber encontra uma saída é preciso ter o senso do interesse daquilo que os homens viveram para compreendêlos autenticamente mas é preciso distanciarse do próprio interesse para encontrar uma resposta universalmente válida a uma questão inspirada pelas paixões do ho mem histórico As questões a partir das quais Max Weber elaborou uma sociologia da reli gião da política e da sociedade atual foram de ordem existencial Têm a ver com a existência de cada um de nós com relação à vida em sociedade à verdade reli giosa ou metafísica Max Weber perguntouse quais as regras a que obedece o homem de ação quais as leis da vida política que sentido o homem pode dar a sua existência neste mundo Qual é a relação entre a concepção religiosa de cada pessoa e a maneira como vive sua atitude em relação à economia ao Estado A sociologia weberiana se inspira numa filosofia existencialista que propõe uma dupla negação Nenhuma ciência poderá dizer aos homens como devem viver ou ensinar às sociedades como se devem organizar Nenhuma ciência poderá indicar à A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 457 humanidade qual é o seu futuro A primeira negação o opõe a Durkheim a se gunda a Marx Uma filosofia do tipo marxista é falsa porque é incompatível com a natu reza da ciência e da existência humana Toda ciência histórica e social repre senta um ponto de vista parcial é incapaz de prever o futuro pois este não é I predeterminado Na medida em que alguns acontecimentos futuros são pre I determinados o homem terá sempre a liberdade seja de recusar este determi 1 nismo parcial seja de se adaptar a ele de diferentes maneiras A distinção entre julgamento de valor e relação aos valores coloca portan í to duas outras questões fundamentais Na medida em que a seleção e a construção do objeto da ciência dependem das questões propostas pelo observador os resultados científicos estão aparen temente relacionados com a curiosidade do cientista e portanto com o contexto histórico em que este se situa Ora o objetivo da ciência é chegar a julgamentos universalmente válidos De que forma uma ciência orientada por questões que se modificam pode a despeito de tudo alcançar uma validade universal Por outro lado e este ponto é ao contrário do precedente filosófico e não metodológico por que os julgamentos de valor são em essência não univer salmente válidos Por que são subjetivos ou existenciais necessariamente con traditórios O ato científico enquanto conduta racional se orienta pelo valor da ver dade universalmente válida Ora a elaboração científica começa por uma esco lha que só tem justificação subjetiva Quais são portanto os procedimentos que permitem para além desta escolha subjetiva garantir a validade universal dos re sultados da ciência A maior parte da obra metodológica de Max Weber tem por objetivo respon der a esta dificuldade Muito esquematicamente sua resposta é que os resultados científicos devem ser obtidos a partir de uma escolha subjetiva por procedimen tos sujeitos a verificação que se imponham a todos os espíritos Esforçase por demonstrar que a ciência histórica é racional demonstrativa que só procura enunciar proposições do tipo científico sujeitas a confirmação Nas ciências his tóricas ou sociológicas a intuição não tem um papel diferente do que desempe nha nas ciências naturais As proposições históricas ou sociológicas são proposi ções de fato que não tendem de modo algum a atingir verdades essenciais Max Weber diria como Pareto que os que pretendem apreender a essência de um de terminado fenômeno vão além da ciência As proposições históricas e sociológi cas tratam dos fatos observáveis e visam atingir uma realidade definida a con duta dos homens na significação que lhe dão os próprios atores Como Pareto Max Weber considera a sociologia uma ciência da conduta humana na medida em que esta conduta é social Tomando como centro de refe rência a conduta lógica Pareto acentua os aspectos nãológicos da conduta que 458 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO explica pelos estados de espírito ou pelos resíduos Weber que também estuda as condutas sociais dá ênfase ao conceito de significação vivida ou de sentido subjetivo Sua ambição é compreender como os homens puderam viver em sociedades diversas com base em crenças diferentes como segundo as épocas se dedicaram a esta ou àquela atividade depositando suas esperanças ora neste mundo ora no outro mundo ora obcecados pela salvação ora pelo crescimen to econômico Cada sociedade tem sua cultura no sentido que os sociólogos norteame ricanos dão ao termo isto é um sistema de crenças e de valores O sociólogo se esforça para compreender como os homens viveram inumeráveis formas de exis tência que só se tomam inteligíveis à luz do sistema próprio de crenças e de conhecimentos de cada sociedade considerada História e sociologia Mas as ciências históricas e sociológicas são não só interpretações com preensivas do sentido subjetivo das condutas mas também ciências causais O sociólogo não se limita a tornar inteligível o sistema de crenças e de conduta das coletividades ele quer determinar como as coisas ocorrem como uma certa crença determina uma maneira de agir como uma certa organização política influencia a organização da economia Em outras palavras as ciências históricas e sociais pretendem explicar causalmente além de interpretar de maneira com preensiva A análise das determinações causais é um dos procedimentos que garantem a validade universal dos resultados científicos Segundo Max Weber a investigação causai pode se orientar em dois senti dos que chamaremos para simplificar de causalidade histórica e causalidade sociológica A primeira determina as circunstâncias únicas que provocaram um certo acontecimento A segunda pressupõe a determinação de relação regular entre dois fenômenos Esta relação não assume necessariamente a forma o fe nômeno A toma inevitável o fenômeno B Mas pode ser formulada assim o fenô meno A favorece mais ou menos fortemente o fenômeno B Um exemplo é a proposição verdadeira ou falsa os regimes despóticos favorecem a interven ção do Estado na gestão da economia O problema da causalidade histórica é o da determinação do papel dos di versos antecedentes na origem de um acontecimento Pressupõe os passos se guintes Em primeiro lugar é preciso construir a individualidade histórica cujas causas queremos determinar Pode tratarse de um acontecimento particular co moaguerrade 19141918 ou a Revolução Russa de 1917 pode ser também uma A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 459 individualidade histórica de proporções mais amplas como o capitalismo A construção da individualidade histórica permite determinar com precisão as ca racterísticas do acontecimento cujas causas buscamos Procurar as causas da guer ra de 1914 é indagar por que houve uma guerra na Europa no mês de agosto de 1914 As causas deste acontecimento singular não se confundem nem com as causas da freqüência das guerras na história da Europa nem com as causas do fenômeno que encontramos em todas as civilizações e que se chama guer ra Em outras palavras a primeira regra da metodologia causai em matéria his tórica e sociológica consiste em definir com precisão as características do indi víduo histórico que se quer explicar Em segundo lugar convém analisar o fenômeno histórico que é por sua natureza complexo em seus elementos Uma relação causai nunca é uma rela ção estabelecida entre a totalidade de um instante te a totalidade de um instan te precedente t1 Ela é sempre uma relação parcial e construída entre certos elementos do indivíduo histórico e determinados dados anteriores Em terceiro lugar se considerarmos uma seqüência singular que só ocor reu uma vez para chegar a uma determinação causai precisaremos depois de proceder à análise do indivíduo histórico e seus antecedentes pressupor por ex periência mental que um desses elementos antecedentes não se produziu ou se produziu de modo diferente Em termos vulgares deveremos formular a ques tão Que teria ocorrido se No caso da guerra de 19141918 que teria acon tecido se Raymond Poincaré não fosse o Presidente da República Francesa ou se o Czar Nicolau II não tivesse assinado a ordem de mobilização algumas horas antes de o Imperador da Áustria tomar a mesma decisão ou se a Sérvia tives se aceito o ultimato austríaco etc Aplicada a uma seqüência histórica singular a análise causai deve passar pela modificação irreal de um dos seus elementos e procurar responder à pergunta que teria ocorrido se este elemento não tives se existido ou tivesse sido diferente Finalmente convém comparar o devenir irreal construído a partir da hipó tese de uma modificação de um dos antecedentes com a evolução real para po der concluir que o elemento modificado pelo pensamento foi de fato uma das causas do indivíduo histórico considerado no ponto de partida da pesquisa Esta análise lógica apresentada de modo abstrato e simplificado coloca um problema evidente como se poderia saber o que teria acontecido se o que aconteceu não tivesse acontecido Este esquema lógico foi muitas vezes criti cado e mesmo impiedosamente ironizado pelos historiadores profissionais pre cisamente porque este procedimento parece exigir um conhecimento daquilo que jamais conheceremos com certeza a saber um conhecimento do irreal Max Weber respondia que os historiadores podiam afirmar o quanto qüi sessem que eles não colocavam tais questões mas de fato eles não poderiam j deixar de fazêlo Não há narrativa histórica que não comporte implicitamente I 460 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO questões e respostas do tipo das que descrevemos Se deixarmos de formular per guntas deste gênero ficaremos limitados a uma narrativa pura em tal data esta pessoa disse ou fez tal coisa Para a análise causai é preciso que se sugira im plicitamente que sem determinada ação o curso dos acontecimentos teria sido outro Ora é só isso que uma tal metodologia propõe Não há absolutamente nada de inútil na questão o que poderia ter aconte cido se Bismarck não tivesse tomado a decisão de fazer a guerra Ela toca de fato o ponto decisivo para a estruturação histórica da realidade a saber que significa ção causai devemos no fundo atribuir a esta decisão individual no centro da tota lidade dos elementos infinitamente numerosos que deviam justamente ser agen ciados daquela maneira e não de outra para levar àquele resultado e que lugar tal decisão ocupa na exposição histórica Se a história pretende se elevar acima do nível de uma simples crônica dos acontecimentos e das personalidades não lhe res ta outro caminho senão o de formular questões deste tipo E enquanto ciência ela sempre procedeu assim Essais sur la théorie de la science p 291 Comentando livremente Max Weber poderíamos acrescentar que os histo riadores têm tendência a considerar simultaneamente que o passado foi fatal e que o futuro é indeterminado Ora essas duas proposições são contraditórias O tempo não é heterogêneo O que corresponde ao nosso passado representou o futuro para outros homens Se o futuro fosse indeterminado não poderia haver nenhuma explicação determinista na história Na teoria a possibilidade de uma explicação causai é a mesma com relação ao passado ou ao futuro Não se pode conhecer com certeza o futuro pelas mesmas razões que fazem com que não se possa chegar a uma explicação necessária quando procedemos a uma análise causai do passado Os acontecimentos complexos resultaram sempre simulta neamente de um grande número de circunstâncias Nos momentos cruciais da história um homem tomou certas decisões Da mesma forma amanhã outras pes soas tomarão determinadas decisões Essas decisões influenciadas pelas cir cunstâncias comportam sempre uma margem de indeterminação no sentido preciso de que um outro homem naquele lugar poderia ter tomado uma decisão diferente Em cada instante há tendências fundamentais que operam deixando contudo uma margem de liberdade para os homens Ou pode haver uma multi plicidade de fatores agindo em sentidos diferentes A análise causai retrospectiva tende a distinguir o que foi num momento dado a influência das circunstâncias gerais e a eficácia de um certo acidente ou de certa pessoa Como os indivíduos e os acidentes exercem um papel na história e a direção do futuro não é prefixada tomase interessante fazer uma análise causai do passado para determinar as responsabilidades assumidas por certos homens para encontrar a hesitação do destino no momento em que se gundo a decisão que tivesse sido tomada a história teria se orientado numa ou A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 461 outra direção Esta interpretação do devenir histórico permitia a Weber respei tar o sentido da grandeza do homem de ação Se os homens não podem deixar de ser cúmplices de um destino fixado antecipadamente a política é uma ativida de miserável Mas como na verdade o futuro é incerto e alguns homens podem foijálo a política é uma das atividades nobres da humanidade Assim a análise causai retrospectiva está associada a uma concepção do devenir histórico Esta metodologia abstrata está ligada a uma filosofia da histó ria Mas esta filosofia é a da história positiva e se limita a dar forma ao que vive mos e pensamos espontaneamente Nenhum homem de ação age refletindo que o que quer que eu faça o resultado será o mesmo não há homem de ação que pense que qualquer outro em seu lugar faria o mesmo ou que se o outro não fizes se o mesmo nem por isso o resultado seria diferente O que Max Weber enuncia de forma lógica é a experiência espontânea e a meu ver autêntica do homem his tórico isto é daquele que vive a história antes de reconstruíla Deste modo o procedimento pelo qual se chega a uma causalidade histó rica comporta a título de método essencial a construção do que teria ocorrido se um dos antecedentes não houvesse existido ou tivesse sido diferente Em ou tras palavras a construção do irreal é um meio necessário para compreender como na realidade os acontecimentos se desenrolaram Mas como podemos construir um desenvolvimento irreal A resposta é que não é necessário reconstruir em detalhe o que poderia ter acontecido Basta par tir da realidade histórica tal como ela se apresentou para demonstrar que se este ou aquele antecedente singular não tivesse ocorrido o acontecimento que que remos explicar também teria sido diferente Quem pretende que o acontecimento histórico singular não teria sido dife rente mesmo se um certo acontecimento particular não tivesse sido o que foi faz uma afirmação que cabe a ele demonstrar O papel das pessoas ou dos acidentes na origem dos acontecimentos históricos é um dado primordial e imediato cabe aos que o negam a tarefa de provar que esse papel é uma ilusão Por outro lado podese às vezes encontrar por comparação não o meio de construir em detalhe a evolução histórica irreal mas a forma de demonstrar a probabilidade de que outra evolução teria sido possível Max Weber dá o exem pltfcTasgüerras cios gregos contra os medas Imaginemos que os atenienses ti vessem perdido a batalha de Maratona ou a de Salamina e que o Império dos persas pudesse ter conquistado a Grécia Nesta hipótese a evolução da Grécia teria sido substancialmente diferente da que conhecemos Se pudermos demons trar a probabilidade de que na hipótese aventada elementos importantes da cul tura grega teriam sido modificados estaremos focalizando a eficácia causai de uma vitória militar Para Max Weber é possível construir esta evolução irreal de duas maneiras podese observar o que aconteceu nas regiões efetivamente con quistadas pelos persas e por outro lado analisar a situação da Grécia na época 462 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO das batalhas de Maratona e de Salamina Na Grécia daquela época havia germes de uma cultura e de uma religião diferentes das que se desenvolveram no con texto das cidades gregas Começavam a se expandir religiões dionisíacas pró ximas das orientais Por isso é provável por referência ao que aconteceu em ou tras partes que uma conquista persa tivesse impedido o progresso do pensamen to racional que foi a maior contribuição da cultura grega à obra comum da humanidade Neste sentido podemos dizer que a batalha de Maratona que ga rantiu a independência das cidades helênicas foi uma das causas necessárias da cultura racional Ninguém expôs de forma mais clara e agradável do que Meyer cuja metodolo gia explícita é questionada por Weber o alcance histórico e universal das guerras contra os medas para o desenvolvimento da cultura ocidental Qual foi o seu proce dimento lógico Basicamente demonstrou que a batalha de Maratona decidiu entre duas possibilidades de um lado uma cultura teocráticoreligiosa cujos germes pode mos encontrar nos mistérios e nos oráculos e que se teria desenvolvido sob o patro cínio do protetorado dos persas pois sabemos que estes utilizavam em toda a parte tanto quanto possível a religião nacional como instrumento de domínio por exem plo no caso dos judeus de outro lado a vitória do espírito helênico livre voltado para os bens deste mundo que nos deu valores culturais que continuam ainda hoje a nos alimentar Essa batalha de proporções reduzidas foi portanto a condição pré via indispensável da construção da frota ática e também do desenvolvimento ulte rior da luta pela liberdade para a salvaguarda da independência da cultura grega para o impulso que deu origem à historiografia própria do Ocidente à evolução completa do drama e a toda a vida espiritual singular que se desenrolou considerando as coi sas quantitativamente nesta pequena cena Duodezbünhe da história do mundo Essais sur la théorie de la Science pp 300301 Fica claro portanto que numa situação histórica dada basta um aconteci mento uma vitória ou derrota militar para decidir a evolução de toda uma cultu ra num sentido ou em outro Essa interpretação tem o mérito de devolver às pes soas e aos acontecimentos sua eficácia de mostrar que o curso da história não está determinado antecipadamente e que os homens de ação podem alterálo O mesmo tipo de análise poderia ser aplicado a uma conjuntura histórica di ferente Por exemplo que teria acontecido na França de LouisPhilippe se o Du que de Orléans não tivesse morrido num acidente de carruagem e se a oposição dinástica pudesse ter se reunido em tomo do herdeiro que era considerado libe ral Que teria acontecido se depois da primeira revolta de fevereiro de 1848 al guns tiros acidentais nas ruas não tivessem reacendido a insurreição e se o tro no de LouisPhilippe tivesse sido salvo naquela data precisa Mostrar como fatos parciais podem determinar um movimento de alcance considerável não significa negar o determinismo global dos fatos econômicos A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 463 ou demográficos digamos em termos abstratos dos fatos maciços Significa apenas conceder aos acontecimentos do passado a dimensão de incerteza e pro babilidade que caracteriza os acontecimentos tais como os vivemos ou como qual quer homem de ação os concebe Enfim a análise da causalidade histórica será tão mais rigorosa quanto mais o historiador dispuser de proposições genéricas que lhe permitam seja construir evo luções irreais seja precisar a probabilidade de um certo acontecimento com base em tal ou tal antecedente Há no pensamento de Max Weber uma solidariedade estreita entre causa lidade histórica e causalidade sociológica uma e outra expressas em termos de probabilidade Uma fórmula de causalidade histórica seria por exemplo a que afirmasse que devido à situação global da França em 1848 era provável uma revolução o que significa que muitos acidentes de todos os tipos seriam sufi cientes para provocála Dizer também que a guerra era provável em 1914 sig nifica que dado o sistema político europeu muitos acidentes seriam suficien tes para provocar a explosão Assim a causalidade entre uma situação e um acontecimento é adequada quando concebemos que essa situação tomava se não inevitável pelo menos muito provável o acontecimento que procuramos explicar O grau de probabilidade desta relação varia aliás de acordo com as circunstâncias De um modo mais geral todo o pensamento causai de Max Weber se expri me em termos de probabilidades ou de oportunidades O exemplo da relação entre um certo regime econômico e a organização política é típico Muitos autores libe rais afirmaram que a planificação econômica tomava impossível um regime de mocrático enquanto os marxistas afirmam que um regime de propriedade privada dos meios de produção toma inevitável o poder político da minoria proprietária de tais meios Todas estas proposições relativas à determinação de um elemento da sociedade por outro devem segundo Max Weber ser expressas em termos de probabilidade Um regime econômico de planejamento total toma apenas mais provável um certo tipo de organização política Se imàginarmos um dado regime econômico a organização do poder político se situa dentro da maigem que é pos sível delimitar de modo mais ou menos preciso ç Não há portanto uma determinação unilateral do conjunto da sociedade por um elemento seja ele o econômico o político ou o religioso Max Weber con cebe as relações causais da sociologia como relações parciais e prováveis São l relações parciais no sentido de que um fragmento dado da realidade toma pro vável ou improvável um outro fragmento Por exemplo um poder político abso í lutista favorece a intervenção governamental no funcionamento da economia Í Mas podemos também conceber e estabelecer relações de sentido contrário j isto é partir de um dado econômico como a planificação a propriedade priva da ou a propriedade pública e indicar em que medida esse elemento da econo 464 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO mia favorece ou desfavorece uma maneira de pensar ou um modo de organizar o poder As relações causais são parciais e não globais comportam um caráter de probabilidade e não de determinação necessária Esta teoria da causalidade parcial e analítica é e pretende ser uma refu tação da interpretação vulgar do materialismo histórico Exclui a possibilidade de que um elemento da realidade seja considerado como determinante dos outros aspectos da realidade sem ser também influenciado por eles Esta rejeição da determinação do conjunto da sociedade por um só elemen to exclui também a possibilidade de que o conjunto da sociedade futura seja determinado a partir de certas características da sociedade presente Analítica e parcial a filosofia weberiana proíbe prever em detalhes o que será a sociedade capitalista do futuro ou o que será a sociedade póscapitalista Não é que Max Weber julgue impossível prever certas características da sociedade do futuro Ele estava convencido por exemplo de que o processo de racionalização e bu rocratização continuaria inexoravelmente Para ele esta evolução não parecia suficiente para determinar a natureza exata dos regimes políticos nem a manei ra de viver de pensar e de crer dos homens de amanhã Em outras palavras o que permanece indeterminado é o que mais nos inte ressa Uma sociedade racionalizada e burocratizada pode ser como Tocqueville teria dito despótica ou liberal Como diria Max Weber ela pode ser composta por homens sem alma ou ao contrário permitir a autenticidade dos sentimentos re ligiosos tornando possível aos homens viverem humanamente Esta é a interpretação geral que Max Weber dá à causalidade e às relações en tre a causalidade histórica e a sociológica Esta teoria representa uma síntese entre as duas versões da originalidade das ciências humanas professadas pelos filóso fos alemães do seu tempo Uns consideravam que essa originalidade consistia no interesse que encontramos nessas ciências pelo histórico e pelo devenir singular pelo que jamais se repetirá Disso resultava uma teoria segundo a qual as ciências da realidade humana são antes de tudo ciências históricas Outros acentuavam as características originais do homem como objeto de estudo explicando que essas ciências humanas apreendiam a inteligibilidade imanente da conduta humana Max Weber aceita estes dois elementos mas se recusa a considerar que as ciências que têm por objeto a realidade humana sejam exclusivamente ou mes mo prioritariamente históricas É verdade que as ciências da realidade humana se interessam mais pelo singular pelo devenir único do que as ciências da na tureza Mas não é verdade que não se interessem por proposições de caráter geral As ciências da realidade humana só são ciências na medida em que são ca pazes de formular proposições gerais mesmo quando buscam compreender o sin gular Há portanto uma relação íntima entre a análise dos acontecimentos e a formulação de proposições gerais A história e a sociologia marcam duas dire ções da curiosidade não duas disciplinas condenadas a se ignorar mutuamen A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 465 te A compreensão histórica exige a utilidade de proposições gerais e estas só podem ser demonstradas a partir de análises e comparações históricas Esta solidariedade da história e da sociologia aparece muito claramente na concepção do tipo ideal que é de um certo modo o centro da doutrina episte mológica de Max Weber O conceito de tipo ideal se situa no ponto de convergência de várias tendên cias do pensamento weberiano O tipo ideal está ligado à noção de compreen são pois todo tipo ideal é uma organização de relações inteligíveis próprias a um conjunto histórico ou a uma seqüência de acontecimentos Por outro lado o ti po ideal está associado ao que é característico da sociedade e da ciência moder na a saber o processo de racionalização A construção de tipos ideais é uma expressão do esforço de todas as disciplinas científicas para tomar inteligível a matéria identificando sua racionalidade interna e até mesmo construindo esta racionalidade a partir de uma matéria ainda meio informe Por fim o tipo ideal se vincula também à concepção analítica e parcial da causalidade O tipo ideal per mite de fato perceber indivíduos históricos ou conjuntos históricos Mas o tipo ideal é uma percepção parcial de um conjunto global conserva para toda rela ção causai o seu caráter parcial mesmo quando em aparência abrange toda uma sociedade A dificuldade da teoria weberiana do tipo ideal prendese ao fato de que este conceito é empregado tanto para designar todos os conceitos das ciências culturais como também para algumas espécies determinadas de conceitos Pen so portanto que se deve distinguir de um lado a tendência idealtípica de todos os conceitos das ciências da cultura e de outro as espécies definidas de tipos ideais que Max Weber propõe pelo menos implicitamente Por tendência idealtípica de todos os conceitos utilizados pelas ciências da cultura quero dizer que os conceitos mais característicos das ciências da cultura quer se trate de religião dominação profetismo ou burocracia comportam um elemento de estilização ou de racionalização Diria mesmo correndo o risco de chocar alguns leitores que a tarefa dos sociólogos consiste em tomar a matéria social ou histórica mais inteligível do que ela foi na experiência que tiveram dela aqueles que a viveram Toda sociologia é uma reconstrução que tende à inteligi bilidade das existências humanas que são confusas e obscuras como todas as existências humanas O capitalismo nunca é tão claro como nos conceitos dos sociólogos e estaríamos errados se os criticássemos por isso Os sociólogos têm o objetivo de tomar inteligível até o limite o que não o foi de fazer aparecer o sentido daquilo que foi vivido sem que o sentido tenha sido consciente aos que o viveram Os tipos ideais se exprimem por definições que não se ajustam ao modelo da lógica aristotélica Um conceito histórico não retém as características que 466 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO todos os indivíduos incluídos na extensão do conceito apresentam e menos ain da as características médias dos indivíduos considerados visa ao típico ao essen cial Quando se diz que os franceses são indisciplinados e inteligentes não se quer dizer que todos eles sejam indisciplinados e inteligentes o que é improvável O que se pretende é reconstruir um indivíduo histórico os franceses identifican do certos traços que parecem típicos e definindo sua originalidade Quando um filósofo afirma que os homens são prometéicos que definem seu futuro toman do consciência do passado que a existência humana é um engajamento ele não quer dizer que todos os homens concebem sua existência pela reflexão simul tânea a respeito do passado e do futuro Está sugerindo que o homem é verdadei ramente homem quando se eleva a este nível de reflexão e de decisão Quer se trate da burocracia ou do capitalismo do regime democrático ou de uma nação particular como a Alemanha o conceito não será definido nem pelas caracterís ticas comuns a todos os indivíduos nem pelas características médias Será uma reconstrução estilizada um isolamento dos traços típicos12 A tendência idealtípica está ligada à filosofia geral de Max Weber e impli ca a relação com os valores e a compreensão Compreender o homem históri co enquanto prometéico significa compreendêlo tomando como ponto de refe rência o que nos parece decisivo isto é sua vocação própria Para que se possa chamar o homem histórico de prometéico é preciso admitir que ele se interro ga sobre si mesmo seus valores e sua vocação A tendência idealtípica é inse parável do caráter compreensível da conduta e da existência humana assim como a relação com os valores da atitude inicial das ciências da cultura13 Simplificando podese dizer que Max Weber chama de tipos ideais três es pécies de conceitos A primeira espécie é a dos tipos ideais de indivíduos históricos por exem plo o capitalismo ou a cidade ocidental Neste caso o tipo ideal é uma recons trução inteligível de uma realidade histórica global e singular global porque o conjunto de um regime econômico é chamado de capitalismo singular porque para Weber o capitalismo segundo sentido em que define este termo só se rea lizou plenamente nas sociedades ocidentais modernas O tipo ideal de um indi víduo histórico é uma reconstrução parcial o sociólogo seleciona no conjunto histórico um certo número de características para constituir um todo inteligí vel A reconstrução é uma entre várias outras que são possíveis e a realidade toda não entra na imagem mental do sociólogo A segunda espécie é a dos tipos ideais que designam elementos abstratos da realidade histórica que encontramos em um grande número de circunstâncias Quando combinados estes conceitos permitem caracterizar e compreender os conjuntos históricos reais A oposição entre estas duas espécies de tipos ideais aparecerá claramente se tomarmos o capitalismo como exemplo da primeira espécie e da segunda A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 467 a burocracia No primeiro caso designamos um conjunto histórico real e singu lar no segundo definimos um aspecto das instituições políticas que não cobre todo um regime e que pode ser encontrado em diferentes momentos da história Estes tipos ideais dos elementos característicos da sociedade se situam em diferentes níveis de abstração Num nível inferior aparecem conceitos tais como burocracia ou feudalismo Num nível mais elevado de abstração figuram os três tipos de dominação o racional o tradicional e o carismático Cada um destes três tipos é definido pela motivação da obediência ou pela natureza da legitimi dade pretendida pelo chefe A dominação racional se justifica por leis e regu lamentos a dominação tradicional pelo passado e o costume a dominação caris mática pela virtude excepcional quase mágica que atribuem ao chefe os que o seguem e a ele são devotados Os três tipos de dominação constituem exem plos de conceitos que poderíamos chamar de atômicos São utilizados como elementos graças aos quais se reconstroem e compreendem regimes políticos con cretos A maioria destes últimos combinam elementos pertencentes aos três ti pos de dominação Uma vez mais como a realidade é confusa precisamos abordála com idéias claras Como os tipos se confundem na realidade é pre ciso definilos rigorosamente é porque não existe regime puramente carismá tico ou tradicional que é preciso separálos rigorosamente em nosso espírito A reconstrução dos tipos ideais representa não o fim da investigação científica mas um meio Utilizando conceitos precisamente definidos medimos o seu afas tamento da realidade e combinando conceitos múltiplos apreendemos uma reali dade complexa Finalmente num terceiro nível de abstração temos os tipos de ação a ação racional com relação ao objetivo a ação racional com relação aos valores a ação tradicional e a ação afetiva Por fim chegamos à terceira espécie dos tipos ideais constituída pelas re construções racionalizantes de condutas de um tipo particular O conjunto das proposições da teoria econômica segundo Max Weber não passa da reconstru ção idealtípica do modo como os sujeitos se comportariam se fossem sujeitos econômicos puros A teoria econômica concebe o comportamento econômico ri gorosamente conforme sua essência e definido de maneira precisa14 As antinomias da condição humana Assim as ciências da cultura são compreensivas e causais A relação de cau salidade é segundo o caso histórica ou sociológica O historiador visa pesar a eficácia causai dos diferentes antecedentes numa única conjuntura o sociólo go procura estabelecer relações de sucessão que se repetiram ou que são susce tíveis de repetição O instrumento principal da compreensão é o tipo ideal nas suas diversas variedades cujo traço comum é a tendência para a racionalização 468 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ou então a percepção da lógica implícita ou explícita de um tipo de conduta ou de um fenômeno histórico singular Em todos os casos o tipo ideal é sempre um meio não um fim o objetivo das ciências da cultura é compreender os senti dos subjetivos isto é em última análise a significação que os homens atribuem à sua existência Esta idéia de que a ciência da cultura busca compreender o sentido subje tivo das condutas não é evidente Muitos sociólogos atuais a abandonaram e consideram que o objetivo científico autêntico é a lógica inconsciente das so ciedades ou das existências Para Max Weber o objetivo consiste em compreen der a existência vivida Provavelmente esta orientação da curiosidade científi ca está vinculada à relação que se estabelece no pensamento de Max Weber e na sua teoria epistemológica entre o conhecimento e a ação Um dos temas fundamentais do pensamento de Weber é a oposição já ana lisada entre o julgamento de valor e a relação com os valores A existência his tórica é por essência criação e afirmação de valores A ciência da cultura é a compreensão dessa existência e sua abordagem é a relação com os valores A vida humana é feita de uma sucessão de escolhas pelas quais os homens edificam um sistema de valores A ciência da cultura é a reconstrução e a compreensão das escolhas humanas pelas quais um universo de valores foi edificado A filosofia dos valores tem uma relação estreita com a teoria da ação Max Weber pertence ao grupo dos sociólogos frustrados da política cuja aspira ção não satisfeita pela ação é um dos móbeis do esforço científico A filosofia dos valores de Max Weber se origina na filosofia neokantiana tal como era apresentada no seu tempo nas universidades da Alemanha do Su doeste É uma filosofia que propõe como ponto de partida a distinção radical entre os fatos e os valores Ds valores não são dados nem no plano sensível nem no plano transcen dente são criados pelas decisões humanas que diferem dos atos pelos quais o espírito percebe o real e elabora a verdade Pode ser certos filósofos neokantia nos o afirmam que a própria verdade seja um valor Para Max Weber porém há uma diferença fundamental entre a ordem da ciência e a ordem dos valores A essência da primeira é a sujeição da consciência aos fatos e às provas a essência da segunda é o livre arbítrio e a livre afirmação Ninguém pode ser obri gado por uma demonstração a reconhecer um valor ao qual não adere15 Neste ponto vale a pena fazer uma comparação entre Weber Durkheim e Pareto Durkheim pensava encontrar naquilo que chamava sociedade o objeto sa grado por excelência e o sujeito criador de valores Pareto postulava em princí pio que só a relação entre meios e fins pode ser caracterizada como lógica e que em conseqüência toda determinação dos fins é enquanto tal nãológica Pro curou nos estados de espírito nos sentimentos ou resíduos as forças que afirmam os fins em outras palavras que determinam os valores Mas esta determinação A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 469 só o interessava nas suas características constantes Acreditava que todas as sociedades são trabalhadas por contradições fundamentais contradições entre o lugar ocupado por cada um e seus méritos entre o egoísmo dos indivíduos e as necessidades do devotamento ou do sacrifício pela coletividade Desejava antes de mais nada estabelecer uma classificação dos resíduos que fosse per manentemente válida isto é queria construir o equivalente a uma teoria da na tureza humana à qual remontava a partir da diversidade infinita dos fenôme nos históricos Nenhuma destas fórmulas se coaduna com o pensamento weberiano Weber teria respondido a Durkheim que as sociedades são efetivamente o meio am biente onde os valores são criados mas que as sociedades reais são compostas de homens isto é por nós mesmos e pelos outros e que em conseqüência não é a sociedade concreta como tal que nós adoramos ou devemos adorar Se é ver dade que cada sociedade nos sugere ou nos impõe um sistema de valores isto não prova que a sociedade em que vivemos seja melhor do que a dos nossos ini migos ou da que nós mesmos queremos construir A criação de valores é social mas é também histórica Dentro de cada sociedade surgem conflitos entre gru pos partidos e indivíduos O universo de valores a que cada um de nós acaba ade rindo é uma criação ao mesmo tempo individual e coletiva Resulta da respos ta da nossa consciência a um meio ou a uma situação Portanto não tem cabi mento transfigurar o sistema social existente e atribuir a ele um valor superior ao da nossa própria escolha Este último é talvez criador do futuro enquanto o sis tema que recebemos representa a herança do passado Weber teria respondido a Pareto que as classes dos resíduos correspondem talvez a tendências permanentes da natureza humana mas que insistindo numa classificação dos resíduos o sociólogo ignora ou negligencia o que há de mais interessante no curso da história Claro todas as teodicéias todas as filosofias são nãológicas ou comportam desrespeitos às regras de lógica e aos ensina mentos dos fatos mas o historiador quer compreender os significados que os homens deram a sua existência o modo como aceitaram o mal a combinação que estabeleceram entre o egoísmo e o devotamento Todos estes sistemas de signi ficações ou de valores têm caráter histórico são múltiplos e variados e inte ressantes na sua singularidade e por causa dela Pareto procura o constante en quanto Max Weber quer apreender os sistemas sociais e intelectuais nos seus tra ços singulares O que o apaixona é a determinação precisa do papel da religião numa determinada sociedade e a determinação da hierarquia dos valores ado tados por uma época ou uma comunidade O objetivo predominante da curio sidade weberiana são os sistemas nãológicos como diria Pareto de interpre tação do mundo e da sociedade A meu ver Max Weber tratou de duas maneiras esse mundo de valores mun do da ação e objeto da ciência atual e estes dois tratamentos levam a resultados 470 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO coerentes entre si De um lado enquanto filósofo da política Weber procurou elaborar o que eu chamaria de as antinomias da ação De outro como sociólo go ele quis refletir sobre as diferentes atitudes religiosas e a influência que exercem sobre a conduta dos homens notadamente sobre sua conduta econô mica A antinomia fundamental da ação de acordo com Max Weber é a da moral da responsabilidade e da moral da convicção Maquiavel de um lado Kant de outro A ética da responsabilidade Verantwortungsethik é aquela que o homem de ação não pode deixar de adotar ela ordena a se situar numa situação a pre ver as conseqüências das suas possíveis decisões e a procurar introduzir na trama dos acontecimentos um ato que atingirá certos resultados ou determina rá certas conseqüências que desejamos A ética da responsabilidade interpreta a ação em termos de meiosfins Se é preciso convencer os oficiais de um exér cito a aceitar uma política que não apreciam ela será apresentada em lingua gem tal que eles não a compreenderão ou com fórmulas que tolerem interpre tação estritamente contrária à intenção real do ator ou ao objetivo procurado É possível que num momento dado haja uma tensão entre o homem de ação e os executantes estes talvez tenham a sensação de que foram enganados mas se este era o único meio de atingir o objetivo pretendido quem terá o direito de condenar os que enganaram pelo bem do Estado Max Weber gostava de tomar como símbolo da ética da responsabilidade o cidadão de Florença que segundo Maquiavel preferiu a grandeza do Estado à salvação da sua alma O homem de Estado emprega meios reprovados pela ética vulgar para realizar um objetivo supraindividual que é o bem da coletividade Weber não elogia o maquiavelis mo e uma ética da responsabilidade não é necessariamente maquiavélica no sentido comum do termo A ética da responsabilidade é simplesmente a que se preocupa com a eficácia e se define pela escolha dos meios ajustados ao fim que se pretende Max Weber acrescentava que ninguém vai até o extremo da moral da responsabilidade no sentido de aceitar qualquer meio que seja contanto que em última análise ele seja eficaz Citava Maquiavel e o sacrifício da salvação da alma à grandeza do Estado mas lembrava também Lutero e sua famosa fór mula diante da Dieta de Worms Hier stehe ich ich kann nich anders Gott helfe mir Amen Aqui me detenho não posso fazer de outro modo que Deus me ajude Amém A moral da ação comporta dois termos extremos o pecado para salvar a cidade e nas circunstâncias extremas a afirmação incondicional de uma vontade quaisquer que sejam as conseqüências Acrescentemos que a moral da responsabilidade não basta a si mesma na medida em que se define pela busca de meios adaptados aos objetivos e que estes objetivos permanecem indeterminados Aparece aqui o que alguns auto res como Léo Strauss chamaram de niilismo weberiano Weber não acreditava A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 471 que pudesse haver um acordo entre os homens e as sociedades sobre o objetivo a alcançar Tinha uma concepção voluntarista dos valores criados pelos homens negava a existência de uma hierarquia universal dos fins e mais ainda pensa va que cada um de nós é obrigado a escolher entre valores que em última aná lise são incompatíveis entre si Em matéria de ação há escolhas que implicam sacrifícios Os diversos valores a que podemos aspirar estão encarnados nas coletivida des humanas e por isso entram espontaneamente em conflito uns com os ou tros Max Weber retomava a tradição de Hobbes a do estado de natureza exis tente entre as sociedades políticas Os grandes Estados estão empenhados numa competição de poder permanente Cada um desses Estados é portador de uma cer ta cultura essas culturas se defrontam pretendendo a superioridade sem que se possa de modo nenhum resolver a disputa Dentro de uma coletividade não há medida política que não traga vanta gem para uma classe e sacrifício para outra Por isso as decisões políticas que podem e devem ser iluminadas pela reflexão científica serão sempre em últi ma análise ditadas por julgamentos de valor não suscetíveis de demonstração Ninguém pode determinar com segurança a medida em que tal indivíduo ou tal grupo deve ser sacrificado pelo bem de outro grupo ou da coletividade global O bem da coletividade global só pode ser definido por um grupo em particular Em outros termos de acordo com o pensamento de Max Weber a noção genéri ca de bem comum não comporta uma determinação rigorosa Há mais Para Weber a teoria da justiça implica uma antinomia fundamental Os homens são desigualmente dotados do ponto de vista físico intelectual e mo ral Há uma loteria genética no ponto de partida da existência humana os genes que recebemos dependem no sentido exato do termo de um cálculo de proba bilidades Sendo a desigualdade o fenômeno natural e primeiro nossa tendência pode ser ou apagar pelo esforço social a desigualdade natural ou pelo contrá rio retribuir a cada um com base nas suas qualidades Com ou sem razão Max Weber afirmava que a ciência não pode orientar a escolha entre as duas posi ções a que defende a proporcionalidade entre condição social e desigualdades naturais e o esforço para suprimir essas desigualdades Cada um precisa esco lher sozinho seu Deus ou seu demônio Enfim os deuses do Olimpo para falar como Max Weber estão naturalmen te em conflito Por outro lado sabemos hoje que uma coisa pode ser bela não apesar de não ser moral mas porque não é moral Não só os valores podem ser historicamente incompatíveis no sentido de que uma mesma sociedade não pode realizar ao mesmo tempo os valores do poder militar da justiça social e da cultura mas também a realização de alguns valores estéticos pode contrariar a realização de certos valores morais e a realização destes últimos pode difi cultar a realização de determinados valores políticos 472 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO O problema da escolha dos valores nos introduz à ética da convicção Ge sinnungsethik que incita a agir de acordo com nossos sentimentos sem refe rência explícita ou implícita às conseqüências Weber dá dois exemplos o do pacifista absoluto e o do sindicalista revolucionário O pacifista absoluto se recusa incondicionalmente a portar armas e matar seu semelhante Se ele pensa que irá impedir as guerras com essa recusa é um ingê nuo e no plano da moral da responsabilidade ineficiente Mas se seu objetivo é simplesmente agir de acordo com sua consciência e se a própria recusa é o objeto de sua conduta se torna sublime ou absurdo não importa mas não pode ser refutado Quem proclama antes a prisão e a morte do que matar seu seme lhante está agindo de acordo com a ética da convicção Podese não lhe dar razão mas não se pode demonstrar que está enganado pois o ator não invoca outro juiz a não ser sua própria consciência e a consciência de cada um é irrefutável na medida em que não tem a ilusão de transformar o mundo e a única satisfa ção que ambiciona é a própria fidelidade No plano da responsabilidade pode ser que os pacifistas não contribuam para suprimir a violência mas apenas para a derrota da sua pátria Estas objeções contudo não preocupam os moralistas da convicção O mesmo acontece com o sindicalista revolucionário que diz não à sociedade indiferente às conseqüências imediatas ou a longo prazo da sua re cusa na medida em que tem consciência do que faz ele escapa às críticas cien tíficas ou políticas dos que se colocam no plano dos fatos Vocês perderão o seu tempo expondo da forma mais persuasiva possível a um sindicalista convencido da verdade da ética de convicção que o único resultado da sua ação será aumentar as possibilidades da reação retardar a ação da sua clas se e escravizála ainda mais Ele não acreditará Quando as conseqüências de um ato realizado por sua convicção são negativas 0 partidário dessa ética não atribui rá a responsabilidade ao agente mas ao mundo à tolice dos homens ou à vontade de Deus que criou os homens como são Le savant et le politique p 187 Haveria muito a dizer sobre esta antinomia fundamental É evidente que não há moral da responsabilidade que não se inspire em convicções pois em últi ma análise esta moral é uma procura de eficácia e podemos questionar o objeti vo de tal procura Está claro também que a moral da convicção não pode ser a moral do Es tado Diremos mesmo que a moral da convicção no sentido extremo não pode ser a ética do homem que participa por menos que seja do jogo político mes mo que seja pelo uso da palavra oral ou escrita Ninguém diz ou escreve sem se preocupar com as conseqüências de suas palavras e de seus atos unicamente preocupado em obedecer à consciência A moral unicamente da convicção é um tipo ideal do qual ninguém deve se aproximar demais a fim de poder ficar den tro dos limites da conduta racional A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 473 Apesar de tudo penso que subsiste uma idéia profunda na antinomia webe riana da convicção e da responsabilidade No campo da ação notadamente na ação política ficamos divididos entre duas atitudes talvez devêssemos dizer en tre o desejo de duas atitudes A primeira que chamaria de instrumental busca produzir resultados adequados aos nossos objetivos obriganos assim a ver o mundo como é e a analisar as conseqüências prováveis do que fazemos ou dize mos A segunda moral nos leva muitas vezes a falar e a agir sem considerar os j outros e nem o determinismo dos acontecimentos As vezes cansamonos de fa I zer cálculos e obedecemos ao impulso irresistível de entregar nas mãos de Deus j ou mandar para o inferno as conseqüências de nossos atos A ação baseada na J razão inspirase ao mesmo tempo nestas duas atitudes Mas é útil e na minha opinião esclarecedor enunciar rigorosamente os tipos ideais das duas atitudes entre as quais oscilamos a do homem de Estado certamente mais inclinado à responsabilidade quando menos para se justificar e o cidadão mais propenso à convicção talvez apenas para criticar o estadista Max Weber afirmava As duas máximas éticas se opõem num antagonismo eterno que é absolutamente impossível de superar com os meios de uma moral fundamentada puramente em si mesma Essais sur la théorie de la Science p 425 e também que A ética da convicção e a ética da responsabilidade não são contraditórias mas se com pletam mutuamente constituindo juntas o homem autêntico isto é um homem que pode pretender à vocação política Le savant et le politique p 199 A sociologia da religião No pensamento weberiano a moral da convicção aparece como uma das expressões possíveis da atitude religiosa A moral do Sermão da Montanha é o tipo desta moral O pacifista ideal se recusa a tomar armas a responder à vio lência com a violência Weber costumava citar a fórmula oferecer a outra face afirmando que se esta fórmula não for sublime é covarde Ò cristão que por um esforço de vontade deixa de responder a uma ofensa está agindo com grande za aquele que faz o mesmo por fraqueza ou medo é desprezível A mesma ati tude pode ser sublime quando exprime uma convicção religiosa ou vil se tra duz falta de coragem ou de dignidade A análise da moral da convicção leva assim a uma sociologia da religião O pacifismo por convicção só se explica dentro de uma concepção global do mundo O pacifismo do cristão só é inteligível isto é adquire seu verdadei ro sentido com referência à idéia que ele tem da vida e aos valores supremos aos quais ele adere Para ser compreendida toda atitude exige a percepção da con cepção global da existência que anima o ator e na qual ele vive Este é o ponto de partida do estudo weberiano no campo da sociologia da religião Essas atitu 474 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO des respondem à seguinte indagação em que medida as concepções religiosas têm influenciado o comportamento econômico das diferentes sociedades Temse afirmado muitas vezes que Weber procurou refutar o materialismo histórico e explicar o comportamento econômico pelas religiões em vez de pos tular que estas são apenas a superestrutura de uma sociedade cuja infraestru tura seria constituída pelas relações de produção Na verdade Weber não pen sava assim Ele quis demonstrar que a conduta dos homens nas diversas socie dades só pode ser compreendida dentro do quadro da concepção geral que esses homens têm da existência Os dogmas religiosos e sua interpretação são partes integrantes dessa visão do mundo é preciso entendêlos para compreender a conduta dos indivíduos e dos grupos notadamente seu comportamento econô mico Por outro lado Weber quis provar que as concepções religiosas são efe tivamente um determinante da conduta econômica e em conseqüência uma das causas das transformações econômicas das sociedades Sobre estes dois pontos o estudo mais elucidativo é o que Max Weber dedi cou às relações entre o espírito do capitalismo e a ética protestante Para interpretar corretamente este famoso estudo é preciso partir da análise do capitalismo contida na introdução e no capítulo 2 do livro Segundo Max Weber não há um capitalismo mas capitalismos Em outras palavras toda sociedade capi talista apresenta singularidades que não encontramos em outras sociedades do mesmo tipo O método dos tipos ideais aplicase portanto neste caso Se existe um objeto ao qual esta expressão espírito do capitalismo pode ser apli cada de modo sensato só poderá ser um indivíduo histórico isto é um complexo de relações presentes na realidade histórica que devido a sua significação cultural reu nimos num todo conceituai Ora este tipo de conceito histórico não pode ser defini do de acordo com a fórmula genus proximum differentia specifica porque está asso ciado a um fenômeno significativo considerado no seu caráter individual próprio mas deve ser composto gradualmente a partir dos elementos singulares que precisam ser extraídos um a um da realidade histórica Portanto o conceito definitivo não pode ser encontrado no início mas sim no fim da investigação Em outras palavras só duran te a discussão se revelará seu resultado essencial a saber o melhor modo de formu lar o que entendemos por espírito do capitalismo o melhor modo isto é o modo mais apropriado de acordo com os pontos de vista que nos interessam aqui Além disto estes pontos de vista a partir dos quais os fenômenos históricos que estudamos podem ser analisados não são absolutamente os únicos possíveis Como acontece com cada fenômeno histórico outros pontos de vista nos mostrariam outros traços co mo sendo essenciais Seguese portanto que sob o conceito de espírito do capi talismo não é necessário compreender só o que se apresenta a nós como essencial pa ra o objeto de nossa investigação Isto decorre da própria natureza da conceituação dos fenômenos históricos que não enquadra para servir como metodologia a realidade em categorias abstratas mas procura articulála em relações genéticas concretas que assumem inevitavelmente um caráter individual próprio Uéthiqueprotestante et l es prit du capitalisme pp 4748 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 475 É válido portanto construir um tipo ideal do capitalismo isto é uma defini ção centrada em tomo de certas características escolhidas porque nos interessam particularmente e porque comandam uma série de fenômenos subordinados16 Segundo Max Weber o capitalismo é definido pela existência de empresas Betrieb cujo objetivo é produzir o maior lucro possível e cujo meio é a orga nização racional do trabalho e da produção É a união do desejo de lucro e da disciplina racional que constitui historicamente o traço singular do capitalismo ocidental Em todas as sociedades conhecidas houve sempre indivíduos ávidos de dinheiro mas o que é raro e provavelmente único é o fato de este desejo ten der a satisfazerse não pela conquista especulação ou aventura mas pela disci plina e pela ciência Um empreendimento capitalista visa ao lucro máximo por meio de uma organização burocrática A expressão lucro máximo aliás não é inteiramente justa O que constitui o capitalismo não é tanto o lucro máximo quanto a acumulação indefinida Os comerciantes sempre quiseram auferir o maior lucro possível em qualquer negócio o que caracteriza o capitalismo não é o fato de ele não limitar seu apetite de ganhos mas de estar animado pelo desejo de acumular sempre cada vez mais de sorte que também a vontade de produzir se toma indefinida A sede de adquirir e a busca do lucro do dinheiro da maior quantidade pos sível de dinheiro em si mesmas nada têm a ver com o capitalismo Garçons médi cos cocheiros artistas prostitutas funcionários venais soldados ladrões cruza dos freqüentadores de jogatinas mendigos todos podem ser possuídos por esta sede A avidez por ganhos sem limites não corresponde em nada ao capitalismo e menos ainda a seu espírito O capitalismo poderia ser identificado mais com a do minação Bãndigung pelo menos com a moderação racional deste impulso irra cional Não há dúvida de que o capitalismo se identifica com a procura do lucro de um lucro sempre renovado numa empresa contínua racional e capitalista ele é procura da rentabilidade Ele é obrigado a isso Onde toda a economia está sujei ta à ordem capitalista uma empresa capitalista individual que não se orientasse orientiert pela procura da rentabilidade estaria condenada ao desaparecimento Chamaremos de ação econômica capitalista a que se fundamenta na expectativa de lucro pela exploração das possibilidades de troca isto é as possibilidades for malmente pacíficas de lucro Se a aquisição capitalista é objeto de uma procura racional a ação correspondente será analisada por meio de um cálculo efetuado em termos de capital O que significa que se a ação utiliza metodicamente materiais ou serviços pessoais como meio de aquisição o balanço da empresa expresso em dinheiro ao fim de um período de atividade ou o valor do ativo avaliado periodi camente no caso de um empreendimento contínuo deverá exceder o capital isto é o valor dos meios materiais de produção movimentados para a aquisição por meio da troca O importante para nosso conceito o que determina aqui a ação econômica de modo decisivo é a tendência Orientierung efetiva a comparar um resultado expresso em dinheiro com um investimento avaliado em dinheiro fleld 476 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO schãtzunseinsatz por mais primitiva que seja tal comparação Na medida em que os documentos econômicos nos permitem julgar houve neste sentido em todos os países civilizados um capitalismo e empreendimentos capitalistas baseados numa racionalização aceitável das avaliações de capital Kapitalrechnung Na China na índia na Babilônia no Egito na antiguidade mediterrânea na Idade Média como nos nossos dias Nos tempos modernos porém o Ocidente conheceu propriamen te uma outra forma de capitalismo a organização racional capitalista do trabalho formalmente livre do qual em outros lugares só são encontrados vagos esboços Mas a organização racional da empresa associada às previsões de um mercado regular e não às oportunidades irracionais ou políticas especulativas não é a única particularidade do capitalismo ocidental Não teria sido possível sem dois outros fatores importantes a separação entre a família Haushalt e a empresa Betrieb que domina toda a vida econômica moderna e a contabilidade racional que lhe é intimamente associada Encontramos também aliás a separação espacial da resi dência e da oficina ou loja como por exemplo o bazar oriental e as ergasteria de certas civilizações No Levante no Extremo Oriente na antiguidade encontra mos associações capitalistas com sua contabilidade independente Contudo com parativamente à moderna independência das empresas estas são apenas tentativas modestas Houve sempre uma tendência a que as empresas que procuram lucros se desenvolvessem a partir de uma grande economia familiar quer ela seja de prín cipe quer seja de senhores de domínios o oikos como bem notou Rodbertus elas apresentam ao lado de um parentesco superficial com a economia moderna uma evolução divergente talvez mesmo oposta Contudo em última análise todas essas particularidades do capitalismo ocidental só receberam seu sentido moderno por sua associação com a organização capitalista do trabalho O que conhecemos de modo geral como comercialização o desenvolvimento de títulos negociáveis e a Bolsa que é a racionalização da especulação lhe estão também estreitamente li gados Sem a organização racional do trabalho capitalista todos estes fatos mesmo admitindo que fossem possíveis estariam longe de ter a mesma significação so bretudo no que se refere à estrutura social e todos os problemas próprios do Oci dente moderno que lhe são conexos O cálculo exato fundamento de todo o resto só é possível na base do trabalho livre Em conseqüência o problema central nu ma história universal da civilização mesmo do ponto de vista puramente econô mico não será para nós em última análise o desenvolvimento da atividade capi talista em si mesma diferente de forma segundo as civilizações ora aventureira ora mercantil ou orientada para a guerra para a política ou para a administração será antes o desenvolvimento do capitalismo de empresa burguês com sua orga nização racional do trabalho livre ou para nos expressarmos em termos de histó ria das civilizações nosso problema será o do nascimento da classe burguesa oci dental com seus traços distintivos Léthique protestante et 1esprit du capitalis me passim pp 15 a 23 De acordo com Max Weber a burocracia não é uma singularidade das so ciedades ocidentais O novo Império egípcio o Império chinês a Igreja católi A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 477 ca romana os Estados europeus todos tiveram burocracias como as têm as em presas capitalistas modernas de grandes dimensões No sentido weberiano a burocracia é definida por alguns traços estruturais é a organização permanen te da cooperação entre numerosos indivíduos na qual cada um exerce uma íun ção especializada O burocrata exerce uma profissão separada da sua vida fami liar afastada por assim dizer da sua individualidade Quando lidamos com um funcionário do correio escondido atrás do balcão não nos relacionamos com uma pessoa mas com um executante anônimo Chegamos mesmo a ficar um tanto chocados quando a funcionária do correio troca algumas observações de caráter pessoal com a colega O burocrata deve cumprir uma função que nada tem a ver com seus filhos ou com as suas férias Esta impessoalidade é essencial à natureza da burocracia em que teorica mente todos conhecem as leis e agem em virtude das ordens abstratas de uma regulamentação estrita E por último a burocracia assegura a todos os que tra balham no seu seio uma remuneração determinada segundo certas normas o que exige que disponha de recursos próprios17 Esta definição do capitalismo isto é da empresa trabalhando para a acumu lação indefinida do lucro e funcionando segundo a racionalidade burocrática difere da de SaintSimon e da maioria dos economistas liberais Aproximase da de Marx apresentando porém algumas diferenças Como Marx Max Weber afirma que a essência do regime capitalista é a busca do lucro por intermédio do mercado Também ele insiste na presença de trabalhadores juridicamente livres que alugam sua força de trabalho aos proprietários dos meios de produ ção e por fim mostra que a empresa capitalista moderna utiliza meios cada vez mais poderosos renovando perpetuamente as técnicas para acumular lucros su plementares O progresso técnico é aliás o resultado não procurado da concor rência dos produtores É notório que a forma propriamente moderna do capitalismo ocidental tenha sido determinada em larga medida pelo desenvolvimento das possibilidades téc nicas Hoje sua racionalidade depende essencialmente da possibilidade de avaliar os fatores técnicos mais importantes O que significa que ela depende de caracterís ticas particulares da ciência moderna em especial das ciências da natureza funda mentadas na matemática e na experimentação racional Por outro lado o desenvol vimento dessas ciências e das técnicas delas derivadas recebeu e recebe por sua vez um impulso decisivo por parte dos interesses capitalistas que associam recompen sas Prãmie às suas aplicações práticas embora a origem da ciência ocidental não tenha sido determinada por tais interesses Uéthique protestante et 1esprit du ca pitalisme p 23 A diferença entre Marx e Weber está em que segundo este a principal carac terística da sociedade moderna e do capitalismo é a racionalização burocrática 478 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO que não pode deixar de ser procurada qualquer que seja o estatuto da proprie dade dos meios de produção Max Weber evocava de bom grado a socialização da economia mas não a considerava uma transformação fundamental A necessi dade da organização racional para obter a produção com o melhor custo sub sistiria depois da revolução que tivesse dado ao Estado a propriedade dos meios de produção Os seguidores de SaintSimon acentuavam o aspecto técnico da sociedade moderna isto é a ampliação prodigiosa dos meios de produzir Em conseqüên cia não atribuíam uma importância decisiva à oposição entre trabalhadores e empresários e não acreditavam na necessidade da luta de classes para a reali zação da sociedade moderna Como Marx Max Weber se refere à organização típica da empresa moderna O proletariado enquanto classe não podia existir fora do Ocidente por falta de empresa que organizasse o trabalho livre Léthi que protestante et Vesprit du capitalisme p 22 Mas acaba como os seguido res de SaintSimon por reduzir a importância da oposição socialismocapita lismo porque a racionalização burocrática sendo essencial à sociedade moder na e subsistindo em qualquer regime de propriedade uma modificação deste regime não representaria uma mutação da sociedade moderna Mais do que isso Max Weber aderindo a um sistema de valores individualista temia os pro gressos da sociedade suscetíveis de reduzir a margem de liberdade de ação dei xada ao indivíduo Numa sociedade socialista pensava ele a promoção ao nível superior da hierarquia seria realizada de acordo com procedimentos burocráti cos Chegavase a ser um homem político ou um ministro da mesma maneira co mo se chega a funcionário graduado de um ministério Por outro lado numa sociedade de tipo democrático a promoção se faz por meio do conflito e do diá logo em outras palavras por procedimentos que reservam um lugar mais im portante para a personalidade dos candidatos Hoje não há mais necessidade de motivação metafísica ou moral para que os indivíduos se conformem com a lei do capitalismo Do ponto de vista histó ricosociológico é preciso ainda distinguir entre a explicação da formação do regime e a explicação do funcionamento do regime Hoje pouco nos importa saber se o indivíduo que se encontra à frente de uma grande sociedade industrial é católico protestante ou judeu se é luterano ou calvinista se vê uma relação entre seu êxito econômico e as promessas de salvação O sistema existe funcio na e é o meio social que comanda os comportamentos econômicos Os purita nos queriam ser homens de profissão e nós estamos condenados a sêlo Hoje o espírito do ascetismo religioso fugiu da gaiola definitivamente Quem pode ria dizêlo De qualquer forma o capitalismo vitorioso não tem mais neces sidade desse apoio uma vez que se sustenta sobre uma base mecânica Ibid pp 245246 Muito diferente porém é o problema de saber como este regime foi instituído E não está excluído que motivações psicorreligiosas tenham inter A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 479 vindo na sua constituição A hipótese avançada por Weber é que uma certa inter pretação do protestantismo criou algumas das motivações que favoreceram a for mação do regime capitalista Para poder confirmar esta hipótese Weber orientou sua investigação em três direções No início de seu estudo realizou análises estatísticas análogas às de Durkheim em Le suicide para determinar o seguinte fato nas regiões da Alemanha onde coexistem os grupos religiosos os protestantes e especialmente os protestan tes de certas Igrejas possuem uma porcentagem desproporcional da riqueza e das posições econômicas mais importantes Isto não demonstra que a variável religiosa determine o êxito econômico mas coloca a questão de saber se as concepções religiosas não exerceriam uma certa influência sobre a orientação que os homens e os grupos dão à sua atividade Max Weber passa rapidamente sobre estas análises estatísticas que constituem apenas uma introdução a estudo mais profundo Outras análises procuram estabelecer a adequação intelectual ou espiritual entre o espírito da ética protestante ou de uma certa ética protestante e o espí rito do capitalismo Tratase neste caso de relacionar de modo compreensivo um pensamento religioso com uma atitude a respeito de certos problemas da ação Por fim desenvolvendo em outros trabalhos o estudo sobre o capitalismo e o protestantismo Weber procura saber em que medida as condições sociais e religiosas seriam favoráveis ou desfavoráveis à formação de um capitalismo do tipo ocidental em outras civilizações como na China índia no judaísmo pri mitivo e no Islã Embora existam fenômenos capitalistas em civilizações exte riores ao Ocidente as características específicas do capitalismo ocidental a com binação da busca do lucro com a disciplina racional do trabalho só apareceram uma única vez no curso da história Em nenhum lugar fora da civilização oci dental se desenvolveu esse tipo de capitalismo Max Weber se perguntou assim em que medida uma atitude particular em relação ao trabalho determinada por crenças religiosas teria constituído o fato diferencial presente no Ocidente e ine xistente em outras regiões capaz de explicar o rumo singular da história do Ocidente Essa interrogação é fundamental no pensamento de Max Weber que inicia seu livro sobre a ética protestante deste modo Todos aqueles que cria dos na civilização européia de hoje estudam os problemas da história universal são levados cedo ou tarde a colocar com razão a seguinte pergunta a que en cadeamento de circunstâncias devemos atribuir o surgimento na civilização oci dental e unicamente nesta civilização de fenômenos culturais que pelo menos gostamos de pensar assim se revestiram de significado e de valor universais Ibid p 11 A tese de Max Weber é a da adequação significativa do espírito do capita lismo e do espírito do protestantismo Exposta em seus elementos essenciais J esta tese pode ser apresentada da seguinte forma ajustase ao espírito de um certo protestantismo a adoção de uma certa atitude em relação à atividade eco nômica que é ela própria adequada ao espírito do capitalismo Há uma afini dade espiritual entre uma certa visão do mundo e determinado estilo de ativida de econômica A ética protestante mencionada por Max Weber é basicamente a concepção calvinista que ele resume em cinco proposições inspirandose sobretudo no tex to da Confissão de Westminster de 1647 Existe um Deus absoluto transcendente que criou o mundo e o governa mas que não pode ser percebido pelo espírito finito dos homens Esse Deus todopoderoso e misterioso predestinou cada um de nós à sal vação ou à condenação sem que por nossas obras possamos modificar este decreto divino Deus criou o mundo para sua glória O homem que será salvo ou condenado tem o dever de trabalhar para a glória de Deus e de criar seu reino sobre a terra As coisas terrestres a natureza humana a carne pertencem à ordem do pecado e da morte a salvação só pode ser para o homem um dom totalmente gratuito da graça divina Todos estes elementos precisa Max Weber estão dispersos em outras con cepções religiosas mas sua combinação é original e única E as conseqüências são importantes Uma visão religiosa dessa ordem exclui inicialmente qualquer misticismo A comunicação entre o espírito finito da criatura e o espírito infinito de Deus criador é interditada antecipadamente Tratase também de concepção antiritua lista que inclina a consciência no sentido de uma ordem natural que a ciência pode e deve explorar Ela é portanto indiretamente favorável ao desenvolvimen to da investigação científica e contrária a todas as formas de idolatria Assim na história das religiões chegava à sua conclusão esse longo proces so de desencantamento Entzauberung do mundo iniciado com as profecias do judaísmo antigo e que de acordo com o pensamento grego rejeitava todos os meios mágicos de alcançar a salvação como outros tantos sacrilégios e superstições O puritano autêntico chegava à rejeição de qualquer suspeita de cerimônia religiosa nos funerais enterrava seus próximos sem cânticos ou música para não deixar transparecer nenhuma superstição para não dar nenhuma impressão de acredi tar na eficácia das práticas mágicosacramentais com vistas à salvação Ibid pp 121122 Neste mundo de pecado o crente deve trabalhar na obra de Deus Mas co mo Neste ponto as várias seitas calvinistas têm interpretações diferentes Aque AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 481 la que é favorável ao capitalismo não é nem a mais original nem a mais autên tica O próprio Calvino se esforçou por edificar uma república de conformidade com a lei de Deus Mas há outra interpretação que é pelo menos concebível O calvinista não pode saber se será salvo ou condenado o que é uma conclusão que pode se tomar intolerável Por uma inclinação nãológica mas psicológica pro curará no mundo os sinais da sua escolha Max Weber sugere que é assim que certas seitas calvinistas terminaram por ver no êxito econômico uma prova dessa escolha de Deus O indivíduo se dedica ao trabalho para vencer a angústia pro vocada pela incerteza da salvação No fundo Calvino só admite uma resposta para a pergunta sobre como o indi víduo pode ter certeza da sua eleição devemos contentarnos em saber que Deus decidiu e perseverar na inabalável confiança em Cristo que resulta da fé verda deira Por princípio ele rejeita a hipótese de que se possa reconhecer pelo com portamento de uma pessoa se ela foi eleita ou condenada pois seria temerário pretender penetrar nos segredos de Deus Nesta vida os eleitos não se distinguem em nada exteriormente dos que não o são melhor ainda todas as experiências subjetivas dos primeiros que como ludibria spiritus sancti estão igualmente ao alcance dos segundos à exceção contudo da confiança perseverante e fielfinali ter Os eleitos constituem assim a Igreja invisível de Deus Naturalmente tudo era muito diferente com os epígonos desde Théodore de Bèze e com mais razão ainda para a grande massa dos homens comuns A certitudo salutis no sentido da possibilidade de reconhecer o estado de graça se revestia necessariamente muss té a seus olhos de importância absolutamente primordial Em toda a parte onde se mantinha a doutrina da predestinação era impossível abafar a pergunta há crité rios pelos quais se pode reconhecer com segurança quem pertence ao número dos electil Na medida em que se colocava a questão sobre o estado de graça pessoal era impossível aceitar a confiança de Calvino no testemunho da fé perseverante que resultava da ação da graça sobre o homem confiança que nunca foi formal mente abandonada pela doutrina ortodoxa pelo menos em princípio Sobretudo na prática do serviço das almas os pastores não se satisfaziam com ela porque se man tinham em contato direto com os tormentos engendrados por tal doutrina A prá tica pastoral se acomodou portanto às dificuldades de diferentes maneiras Na me dida em que a predestinação não sofria nova interpretação não era suavizada e no fundo abandonada surgiram dois tipos de conselhos pastorais interligados De um lado considerarse eleito constituía um dever qualquer espécie de dúvida a este respeito precisava ser afastada como tentação do demônio já que uma falta de confiança em si mesmo decorria de uma fé insuficiente isto é da eficácia insufi ciente da graça A exortação do apóstolo a consolidar a sua vocação pessoal é in terpretada aqui como o dever de conquistar na luta cotidiana a certeza subjetiva da sua própria eleição e da sua justificação Em lugar dos humildes pecadores a quem Lutero promete a graça em troca de confiança em Deus com fé e arrepen dimento surgem os santos conscientes de si mesmos que nós encontramos na queles comerciantes puritanos de têmpera de aço dos tempos heróicos do capita 482 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO lismo e de que ainda hoje aparecem exemplos isolados De outro lado para ter confiança em si o meio recomendado como o melhor é o trabalho sem descanso numa profissão Isto e só isto dissipa a dúvida religiosa e dá a certeza da graça Nas particularidades profundas dos sentimentos religiosos professados na Igreja refor mada encontrase a razão pela qual a atividade temporal é capaz de dar essa cer teza e pode ser considerada por assim dizer o meio apropriado para reagir con tra os sentimentos de angústia religiosa Contrastando com o luteranismo estas diferenças aparecem mais nitidamente na doutrina da justificação pela fé Ibid pp 131135 Esta derivação psicológica de uma certa teologia favorece o individualis mo Cada um de nós está só diante de Deus O sentido da comunhão com o pró ximo e do dever com relação aos outros se enfraquece O trabalho racional re gular constante termina sendo interpretado como a obediência a um manda mento divino Operase além disso uma surpreendente convergência entre certas exigências da lógica teológica e calvinista e determinadas exigências da lógica capitalista A ética protestante convida o crente a desconfiar dos bens deste mundo e a ado tar um comportamento ascético Ora trabalhar racionalmente tendo em vista o lucro e não gastálo é por excelência uma conduta necessária ao desenvolvi mento do capitalismo sinônimo do reinvestimento contínuo do lucro nãocon sumido É aí que aparece com o máximo de clareza a afinidade espiritual entre uma atitude protestante e a atitude capitalista O capitalismo pressupõe a orga nização racional do trabalho implica que a maior parte do lucro não seja consu mida mas sim poupada a fim de permitir o desenvolvimento dos meios de pro dução Como afirmava Marx em O capital Acumulai acumulai esta é a lei e os profetas De acordo com Max Weber a ética protestante proporciona uma ex plicação e uma justificativa deste comportamento estranho de que não há exem plo nas sociedades nãoocidentais a busca do lucro máximo não para gozar a vida mas para a satisfação de produzir cada vez mais Este exemplo ilustra claramente o método weberiano da compreensão Pon do à parte o problema da causalidade Weber tornou pelo menos verossímil a afinidade entre uma atitude religiosa e um comportamento econômico Colocou um problema sociológico de grande alcance o da influência das concepções do mundo nas organizações sociais e nas atitudes individuais Weber quer apreender a atitude global de indivíduos ou de grupos Quando o acusamos de ser um analista ou um detalhista sob o pretexto de que ele não utiliza o termo totalidade tão na moda estamos ignorando que foi ele quem tor nou evidente a necessidade de abranger o conjunto dos comportamentos das con cepções do mundo e da sociedade A verdadeira compreensão deve ser global Mas como Weber era um cientista e não um metafísico não acreditou que devia A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 483 chegar à conclusão de que sua própria compreensão era a única possível Tendo interpretado de determinada maneira a ética protestante não quis excluir que ou tras pessoas em outras épocas pudessem perceber o protestantismo sob luz di j ferente estudandoo de um outro ângulo Não rejeitou a pluralidade das inter j pretações mas exigiu a globalidade da interpretação j Por outro lado Weber demonstrou que fora da lógica científica há outras i coisas além da loucura e da arbitrariedade A meu ver a fraqueza do Traité de i sociologie générale reside no fato de que Pareto abrange sob a mesma etique I ta de nãológico tudo o que não se ajusta ao espírito da ciência experimental í Max Weber mostra que há organizações inteligíveis do pensamento e da exis tência que embora não sejam científicas não são destituídas de significação Tende a reconstruir estas lógicas mais psicológicas do que científicas pelas quais se passa por exemplo da incerteza sobre a salvação para a procura de j sinais de eleição Tratase de uma passagem inteligível sem que no entanto se ajuste propriamente às regras do pensamento lógicoexperimental Finalmente Max Weber demonstrou por que a oposição entre a explicação pelo interesse e a explicação pelas idéias não tem sentido pois são as idéias e as idéias metafísicas ou religiosas que comandam a percepção que cada um de nós tem dos seus interesses Pareto põe os resíduos de um lado e do outro os inte resses no sentido econômico ou político O interesse parece reduzirse ao poder político e à fortuna econômica O que Weber demonstra é que a direção do inte resse de cada um é orientada pela sua visão do mundo Que há de mais interes sante para um calvinista do que descobrir os sinais da sua eleição É a teologia que comanda a orientação da existência Como o calvinista tem uma concepção determinada das relações entre o criador e a criatura como tem uma certa idéia da eleição vive e trabalha de um certo modo Desta forma a conduta econômica é função de uma visão geral do mundo e o interesse que tem cada um nesta ou naquela atividade se toma inseparável de um sistema de valores ou de uma visão total da existência Com relação ao materialismo histórico o pensamento weberiano não repre senta uma inversão total Nada mais falso do que imaginar que Max Weber sus tentou tese exatamente oposta à de Marx explicando a economia pela religião em lugar de explicar a religião pela economia Ele não pretendeu derrubar a doutrina do materialismo histórico para substituir a causalidade das forças eco nômicas pela causalidade das forças religiosas embora tenha usado algumas vezes em particular numa conferência pronunciada em Viena no fim da Pri meira Guerra Mundial a expressão refutação positiva do materialismo históri co Para começar uma vez instituído o regime capitalista é o meio que deter mina as condutas quaisquer que sejam as motivações fato de que temos muitas provas na difusão da empresa capitalista por todas as civilizações Além disso mesmo para explicar a origem do sistema capitalista Weber não propõe uma 484 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO outra modalidade de causalidade exclusiva O que quis demonstrar é que a ati tude econômica pode ser orientada pelo sistema de crenças tanto quanto o sis tema de crenças pode ser comandado num dado momento pelo sistema econô mico Será necessário afirmar que nosso objetivo não é substituir uma interpre tação causai exclusivamente materialista por uma interpretação espiritualista da civilização e da história que não seria menos unilateral As duas pertencem ao domínio do possível Na medida em que não se limitam ao papel de trabalho preparatório mas pretendem chegar a conclusões as duas servem mal à verdade histórica Ibid pp 248249 Max Weber incita seus leitores portanto a ad mitir que não há determinação das crenças pela realidade socioeconômica ou pelo menos que não é legítimo postular como ponto de partida uma determina ção desse tipo Ele próprio demonstrou que se pode às vezes compreender a con duta econômica de um grupo social a partir da sua visão do mundo e abriu uma discussão em tomo da proposição segundo a qual numa conjuntura determina da motivações metafísicas ou religiosas podem comandar o desenvolvimento eco nômico O essencial para Weber e também para seus comentaristas é a análise de uma concepção religiosa do mundo isto é de uma atitude com relação à exis tência por parte de homens que interpretavam sua situação a partir de certas crenças Max Weber quis demonstrar principalmente a afinidade intelectual e existencial entre uma interpretação do protestantismo e determinada conduta econômica Esta afinidade entre o espírito do capitalismo e a ética protestante torna inteligível o modo como uma forma de conceber o mundo pode orientar a ação O estudo de Weber permite compreender de forma positiva e científica a influência dos valores e das crenças nas condutas humanas Mostra a maneira como opera através da história a causalidade das idéias religiosas18 Os outros estudos de sociologia religiosa feitos por Weber são dedicados à China à índia e ao judaísmo primitivo Representam o esforço de uma socio logia comparativa das grandes religiões de acordo com o método weberiano da relação aos valores Max Weber coloca duas interrogações à matéria histórica Podese encontrar fora da civilização ocidental o equivalente da ascese no mundo da qual o exemplo típico é a ética protestante Em outras palavras po dese encontrar em outro lugar além da civilização ocidental uma interpreta ção religiosa do mundo que se exprime numa conduta econômica comparável àquela com a qual a ética protestante se manifestou no Ocidente Como se podem pôr em evidência os diferentes tipos fundamentais de con cepção religiosa e desenvolver uma sociologia geral das relações existentes en tre as concepções religiosas e os comportamentos econômicos A primeira questão surge diretamente das reflexões que levaram à concep ção de A ética protestante e o espírito do capitalismo Sabemos que o regime I A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 48 capitalista não se desenvolveu em nenhuma outra região a não ser no Ocidente Esta singularidade poderia ser explicada pelo menos em parte pelas concep ções religiosas ocidentais Esta forma de análise vem a dar no que chamaríamos dentro da lógica de Stuart Mill de método da ausência Se tivesse havido o mesmo conjunto de cir cunstâncias nas civilizações nãoocidentais e na civilização ocidental e o únic antecedente encontrado no Ocidente e ausente nas outras civilizações fosse a reli gião haveria uma demonstração convincente da causalidade do antecedente re ligioso com relação ao regime capitalista É desnecessário dizer que na realidade não é possível encontrar circunstância exatamente iguais às do Ocidente onde o único fator diferencial seria a ausên cia de uma ética religiosa do tipo da protestante A experimentação causai feití por comparação histórica não pode dar resultados tão rigorosos como no esque ma ideal do método da ausência Contudo Max Weber constata que em outra civilizações a chinesa por exemplo havia muitas das condições necessárias ac desenvolvimento de um regime econômico capitalista e que uma das variávei necessárias ao desenvolvimento desse regime ou seja a variável religiosa esta va ausente Por meio destas comparações históricas que são experimentações intelec tuais Max Weber tem a ambição de pelo menos confirmar a tese de que a re presentação religiosa da existência e a conduta econômica por ela determinada foram no Ocidente uma das causas do desenvolvimento do regime econômicc capitalista sendo este antecedente fora do mundo ocidental um daqueles cuja ausência explica o nãodesenvolvimento de um tal regime A segunda questão é retomada e desenvolvida em termos genéricos na parte de Economia e sociedade dedicada à sociologia geral das religiões Seria impos sível resumir aqui as análises weberianas que são extraordinariamente ricas em especial as relativas à China e à índia Limitome a indicar algumas das idéias essenciais nesta exposição de conjunto Para Max Weber o conceito de racionalidade material é característico da concepção chinesa do mundo Num certo sentido tratase de concepção tão racional e talvez mais razoável do que a racionalidade protestante Contudo ela é contrária ao desenvolvimento do capitalismo típico Se uma sociedade vive de acordo com uma concepção de determinada or dem cósmica e adota uma maneira de viver segundo a tradição mais ou menos determinada pela ordem cósmica os objetivos da sua existência estão dados e seu estilo de vida está fixoNo quadro desta representação do mundo há lugar para uma racionalização isto é para um trabalho eficaz O objetivo não será como no caso da ascese temporal protestante produzir o máximo e consumir o menos possível o que de certo ponto de vista é o grau extremo da insensatez embora constitua a essência do capitalismo visto por Marx e a essência do sis 486 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO tema soviético visto pelos nãocomunistas O objetivo será trabalhar tanto quan to for necessário para atingir um certo equilíbrio ou felicidade que não tem ne nhuma razão para se modificar O surgimento do capitalismo ou em outras pala vras de uma racionalidade da produção tendo por objetivo uma produção sem pre crescente exigia uma atitude humana à qual só uma moral ascética podia dar sentido Em contrapartida a racionalização do trabalho e da existência no contexto de uma ordem cósmica e tradicional não comporta a abstenção do pra zer nem o investimento nem o crescimento indefinido da produção que cons tituem a essência do capitalismo Se o ponto de partida tivesse sido uma outra definição do capitalismo por exemplo uma definição pela técnica as análises históricas teriam sido inevitavelmente diferentes Na índia também ocorreu um processo de racionalização Mas esta racio nalização se operou dentro de uma religião ritualista no contexto de uma meta física cujo tema central era a transmigração das almas De acordo com Max Weber o ritualismo religioso é um princípio muito forte de conservadorismo social As transformações históricas das sociedades tiveram como condição a ruptura do ritualismo Na linguagem de Pareto este último representava o triunfo dos resí duos da segunda classe isto é da persistência dos agregados e do relaciona mento das coisas e dos seres das idéias e dos atos O ritualismo de Weber e a persistência dos agregados são duas conceituações do mesmo fenômeno funda mental Para Weber o ritualismo pode ser superado pela idéia profética para Pareto os resíduos da primeira classe isto é o instinto das combinações são a força revolucionária de caráter mais geral mais abstrato e também e sobretudo mais intelectual Na visão paretiana é o instinto das combinações que quebra o conservadorismo dos agregados Na visão weberiana é o espírito profético que triunfa sobre o conservadorismo ritualista Na sociedade indiana o ritualismo não era o único fator que tomava im possível o desenvolvimento de uma economia capitalista A formação progres siva e a evolução da mais orgânica e da mais estável das sociedades que se po deriam imaginar em que cada indivíduo nasce em determinada casta e fica limita do a uma certa categoria profissional em que toda uma série de interditos limitam as relações entre indivíduos e castas foram os obstáculos decisivos Mas esta estabilização de uma sociedade de castas teria sido inconcebível sem a idéia da transmigração das almas que desvalorizava o destino terreno de cada um e fazia com que os desfavorecidos esperassem em outra vida uma compensação para a injustiça aparente da sua situação atual O tema central da sociologia weberiana das religiões é uma idéia simples e profunda Para compreender uma sociedade ou uma existência humana é preciso que não nos limitemos como Pareto a relacionar as instituições ou as condutas a classes de resíduos é necessário identificar sua lógica implícita a partir das concepções metafísicas ou religiosas Para Pareto só há lógica na ciência experi A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 487 mental ou nas relações entre meios e fins Weber demonstra que existe uma racio nalidade nas religiões e nas sociedades nas existências vividas e pensadas que não é uma racionalidade científica mas não deixa de ser uma atividade do espírito uma dedução semiracional semipsicológica a partir de princípios O leitor do Traité de sociologie générale de Pareto tem a sensação de que toda a história humana é comandada pela força dos resíduos que determinam o retomo regular dos ciclos de mútua dependência embora o setor do pensamento científico se expanda gradualmente Max Weber nos dá a impressão de uma hu manidade que propôs e continua a propor a questão fundamental sobre o senti do da existência isto é uma questão que não implica resposta logicamente impe rativa mas comporta muitas respostas significativas igualmente válidas a partir de premissas aleatórias A sociologia da religião de Max Weber tal como a vemos em Gesammelte Aufsãtze zur Religionssoziologie e no capítulo de Economia e sociedade intitu lado Typen Religiõser Vergemeinschaftung se baseia numa interpretação da religião primitiva muito próxima da concepção de Durkheim em As formas ele mentares da vida religiosa Talcott Parsons também notou esta semelhança e é bem possível que se trate de um empréstimo Há trinta anos falei sobre isso a Mareei Mauss que me respondeu ter visto no escritório de Max Weber toda a coleção de Uannée sociologique Discussões como esta se têm mantido vivas através da história pois os cientistas são homens Weber considera como o con ceito mais importante da religião primitiva a noção de carisma muito próxima da noção de sagrado ou de mana de Durkheim O carisma é a qualidade de quem está nas palavras de Max Weber fora do cotidiano ausseralltâglich Há seres animais plantas e coisas carismáticas O mundo primitivo comporta uma distin ção entre o banal e o excepcional para me exprimir em termos weberianos e entre o profano e o sagrado para usar conceitos de Durkheim O ponto de partida da história religiosa da humanidade é portanto um mun do povoado de sagrado Seu ponto de chegada em nosso tempo é o que Max Weber caracterizou como o desencantamento do mundo Entzauberung der Welt O sagrado ou excepcional que na aurora da aventura humana se associava a coi sas e a seres que nos rodeiam desapareceu expulso pelos homens O mundo no qual vive o capitalista em que todos vivemos hoje soviéticos e ocidentais é feito de matéria ou de seres que se encontram à disposição da humanidade des tinados a serem utilizados transformados consumidos e que não têm mais os encantos do carisma Neste mundo material desencantado a religião tem de se retirar para a intimidade da consciência ou escapar para além de um deus trans cendente e um destino individual depois da existência terrena A força religiosa e histórica que rompe o conservadorismo ritualista e os la ços estreitos que unem o carisma e as coisas é o profetismo Este é religiosamen te revolucionário porque se dirige a todos os homens e não apenas aos membros 488 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO de um só grupo étnico ou nacional e porque estabelece uma oposição fundamen tal entre este mundo e o outro entre as coisas e o carisma Por isso porém o pro fetismo coloca alguns problemas difíceis para a razão humana Se admitimos a existência de um Deus único e nosso criador como podemos justificar a existên cia do mal A teodicéia se transforma no centro da religião exigindo a procura de uma razão para resolver as contradições ou para ao menos lhes dar um sentido Por que Deus criou o mundo se a humanidade está entregue à desgraça e à infeli cidade Deus dará uma recompensa aos que foram injustamente atingidos Estas são as questões a que o profetismo se esforça por responder e que comandam a atividade racionalizante da teologia e da ética O problema da experiência da ir racionalidade do mundo foi a força motriz do desenvolvimento de todas as reli giões Le savant et le politique p 190 A sociologia weberiana procurou estabelecer uma tipologia das atitudes reli giosas fundamentais que constituiriam respostas aos problemas intelectuais de que estão carregadas as mensagens proféticas Weber opõe duas atitudes funda mentais o misticismo e o ascetismo que são duas respostas possíveis ao proble ma do mal dois caminhos possíveis para a redenção O ascetismo de seu lado comporta duas modalidades fundamentais o asce tismo no mundo e fora do mundo A ética protestante é o exemplo perfeito do ascetismo no mundo isto é da atividade levada além das normas ordinárias não em busca de prazeres materiais ou espirituais mas em vista do cumprimento de um dever terreno Além destas análises tipológicas Max Weber concebeu e desenvolveu em particular um capítulo intitulado Zwischenbetrachtung Theorie der Stufen und Richtungen religiõser Weltablehnung que se encontra no fim do primeiro to mo de Sociologia da religião uma análise do mesmo estilo isto é ao mesmo tempo racional e sociológica da relação entre as representações religiosas e as diferentes ordens da atividade humana A oposição entre o mundo mágico dos primitivos e o mundo nãomágico dos modernos domina a evolução religiosa da humanidade Uma outra idéia diretriz é a da diferenciação das ordens de atividade humana Nas sociedades conserva doras e ritualistas não há uma diferenciação de ordens os mesmos valores sociais e religiosos impregnam ao mesmo tempo a economia a política e a vida privada O rompimento do conservadorismo ritualista pelo profetismo abre cami nho para a economia crescente de cada ordem de atividade e ao mesmo tempo coloca os problemas da incompatibilidade ou da contradição entre os valores re ligiosos e os valores políticos econômicos ou científicos Como já vimos não há tabela científica de valores A ciência não pode estabelecer em nome da ver dade as ações que devemos realizar Os deuses do Olimpo estão em conflito per manente A filosofia weberiana dos valores é uma descrição do universo de va lores a que chega a evolução histórica O conflito dos deuses é o termo da dife A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 489 renciação social do mesmo modo como o desencantamento do mundo é o ponto de chegada da evolução religiosa Cada religião precisou em cada época con ciliar as exigências resultantes dos princípios religiosos e as exigências internas de um certo domínio de atividades As interdições que pesam sobre os emprés timos com juros se opuseram muitas vezes à lógica intrínseca da atividade eco nômica Assim também a política comporta o emprego da força A conduta digna não implica que se ofereça a outra face ao agressor mas ao contrário que se responda à força com a força Há portanto um conflito possível entre a moral cristã do Sermão da Montanha e a moral da dignidade ou da honra do comba tente Aparecem essas contradições à medida que as diferentes ordens de ativi dade tendem a se afirmar na sua essência própria e que a moral metafísica ou religiosa antes total tende a ser recalcada fora da existência terrena A ética religiosa se ajustou de diferentes maneiras à situação fundamental que faz com que nos situemos em regimes de vida diferentes subordinados a leis igual mente diversas O politeísmo helênico oferecia sacrifícios a Afrodite e a Hera a Apo lo e a Dionísio sabendo que esses deuses freqüentemente se davam combate O sis tema de vida hindu regulava cada profissão com uma ética particular um dharma separandoas por meio de castas e integrandoas numa hierarquia imutável O indi víduo nascido numa certa casta não tinha mais possibilidade de desertála a não ser mediante uma reencamação numa vida futura Em conseqüência cada profissão estava a uma distância diferente maior ou menor da salvação suprema Cada casta tinha seu dharma desde a dos ascetas e brâmanes até a dos ladrões e prostitutas dentro da hierarquia baseada em leis imanentes próprias a cada profissão A guer ra e a política encontraram naturalmente um lugar nessa estrutura Lendo no Bha gavad Gitâ o diálogo entre Krishna e Aijuna vemos que a guerra é parte integran te da vida Faz o que é necessário o que quer dizer cumpre o dever que te impõe o dharma da casta dos guerreiros e as prescrições que a regulam em suma realiza a obra objetivamente necessária ao objetivo de tua casta a saber fazer a guerra Segundo esta crença cumprir a obrigação de guerreiro estava longe de representar para este um perigo à sua salvação era ao contrário benéfico para a alma Sempre o guerreiro hindu teve tanta certeza de alcançar depois de uma morte heróica o céu de Indra quanto o guerreiro germânico de ser acolhido no Walhala teria tanto des denhado o nirvana quanto o germânico o paraíso cristão com os seus coros angélicos Esta especialização da ética permite à moral hindu considerar a arte real da políti ca como uma atividade perfeitamente conseqüente sujeita a suas próprias leis sem pre mais consciente de si própria A literatura hindu nos oferece mesmo uma expo sição clássica do maquiavelismo radical no sentido popular de maquiavelismo basta ler o Arthaçâstra de Kautilya escrito muito antes da era cristã provavelmen te na época de Chandragupta Comparado a ele O príncipe de Maquiavel é inofen sivo Sabemos que na ética católica os consilia evangelica constituem uma moral especial reservada aos que têm o privilégio do carisma da santidade Ao lado do mon ge proibido de buscar lucros ou de derramar sangue encontramos as figuras do 490 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO cavalheiro e do burguês piedoso que tinham estes direitos o primeiro podia derramar sangue o segundo enriquecer Indubitavelmente a diferenciação ética e sua integra ção num sistema de salvação são menos marcantes do que na índia Contudo dadas as pressuposições da fé cristã podia e devia ser assim A doutrina da corrupção do mundo pelo pecado original permitia integrar com relativa facilidade a violência na ética enquanto meio para combater o pecado e as heresias que constituem precisa mente perigos para a alma Entretanto as exigências acósmicas do Sermão da Mon tanha sob a forma de uma pura ética da convicção assim como o direito natural cristão compreendido como uma exigência absoluta baseada nesta doutrina conser varam sua força revolucionária retomando sempre à superfície com toda sua furia em quase todos os períodos de convulsão social Notadamente deram nascimento a seitas que professam um pacifismo radical uma delas tinha mesmo tentado ins tituir na Pensilvânia um Estado que se recusava a utilizar a força nas relações exte riores experiência que foi aliás trágica pois quando estourou a guerra da Inde pendência os quakers não puderam intervir num conflito cujo objetivo era a defe sa de ideais idênticos aos seus O protestantismo comum pelo contrário em geral legitima o Estado e assim o recurso à violência como uma instituição divina e jus tifica particularmente o Estado autoritário legítimo Lutero retirou do indivíduo a responsabilidade ética pela guerra atribuindoa à autoridade política de modo que a obediência às ordens dos poderes políticos não pode implicar culpa exceto nas questões de fé O calvinismo reconhecia também em princípio a força como meio de defesa da fé legitimando em conseqüência as guerras de religião Sabese que estas guerras foram sempre um elemento vital do Islã Vêse agora portanto que não é a incredulidade moderna nascida do culto renascentista dos heróis que le vantou o problema da ética política Todas as religiões debateram este problema com maior ou menor êxito e nosso estudo demonstrou suficientemente que não podia ser de outro modo Le savant et le politique pp 191194 Há finalmente um duplo conflito implícito entre o universo da religião e o da ciência A ciência positiva experimental e matemática expulsou gradualmen te deste mundo o sagrado deixandonos num universo utilizável mas sem sen tido Em toda a parte onde a aplicação sistemática dos conhecimentos empíricos racionais retirou do mundo seu aspecto mágico fazendo dele um mecanismo sujeito às leis da causalidade o postulado ético segundo o qual o mundo é um universo ordenado por Deus tendo em conseqüência um certo sentido no plano moral foi definitivamente contestado pois uma concepção empírica do mundo e principalmente matemática exclui por princípio todo modo de pensar que procura um sentido qualquer que ele seja nos fenômenos do mundo interior Gesammelte Aufsàtze zur Religionssoziologie p 564 Por outro lado a ciên cia leva a uma crise espiritual pois na medida em que os homens se lembram da religião a ciência os deixa insatisfeitos Uma concepção religiosa do mundo dava um significado aos seres aos acontecimentos e ao destino individual O cien tista sabe que jamais encontrará uma resposta definitiva não ignora que seu A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 491 trabalho será ultrapassado pois a ciência positiva é por essência um processo que nunca chega ao fim Há portanto uma contradição fundamental entre o saber positivo demonstra do mas inacabado e o saber nascido das religiões que não pode ser provado mas que dá resposta às questões essenciais Segundo Max Weber os homens hoje só encontram resposta a tais questões através de uma decisão individual arbitrária e incondicional Cada um de nós deve escolher seu Deus ou seu demônio Economia e sociedade Economia e sociedade Wirtschaft und Gesellschaft é um tratado de socio logia geral que desenvolve ao mesmo tempo uma sociologia econômica jurídi ca política e religiosa Seu objeto é a história universal Todas as civilizações todas as épocas e todas as sociedades são utilizadas como exemplos ou ilustrações Mas este trata do é uma obra de sociologia não de história Tem o objetivo de tomar inteligíveis as diferentes formas de economia de direito de dominação e de religião inserin doas num único sistema conceituai Esse tratado de sociologia geral orientase para o presente propõese a pôr em evidência a originalidade da civilização oci dental comparativamente às outras civilizações São quase oitocentas páginas cerradas representando portanto mais ou me nos a metade do Traité de Pareto mas ao contrário deste não permite ao leitor saltar páginas e é quase impossível de resumir Procurarei assim retraçar as eta pas da conceituação geral para explicar em que consiste aquilo que alguns têm chamado de nominalismo e individualismo de Max Weber Tomarei como exem plo a sociologia política para mostrar como se opera a conceituação weberia na num nível menos abstrato Segundo Max Weber a sociologia é a ciência da ação social que ela quer compreender interpretando e cujo desenvolvimento quer explicar socialmente Os três termos fundamentais são aqui compreender verstehen interpretar deu teri e explicar erklãren respectivamente apreender a significação organizar o sentido subjetivo em conceitos e evidenciar as regularidades das condutas A ação social é um comportamento humano Verhalten em outras pala vras uma atitude interior ou exterior voltada para a ação ou para a abstenção Este comportamento é a ação quando o ator atribui à sua conduta um certo sen tido A ação é social quando de acordo com o sentido que lhe atribui o ator ela se relaciona com o comportamento de outras pessoas O professor age social mente na medida em que o ritmo lento da sua elocução se relaciona com a con duta dos seus estudantes que devem fazer um esforço para tomar nota das de 492 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO monstrações escritas no quadronegro Se falasse sozinho muito depressa sem se dirigir a ninguém sua ação não seria social pois não estaria orientada para a conduta de um grupo de ouvintes A ação social se organiza em relação social soziale Beziehung Há uma rela ção social quando o sentido de cada ator de um grupo de atores que age se relacio na com a atitude do outro de modo que suas ações são mutuamente orientadas O professor e seus alunos vivem uma relação social Se as condutas de vários atores se orientam regularmente umas com rela ção a outras é preciso que algo determine a regularidade de tais relações sociais Dizse que há costume Brauch quando tal relação social é regular e que há hábito Sitten quando a origem dessa relação é uma longa tradição que a trans forma numa segunda natureza Max Weber emprega o termo eingeleitet um costume por assim dizer penetra na vida A tradição se toma uma forma es pontânea de agir Neste ponto da análise surge a noção de probabilidade Quer se trate de costume ou de hábito a regularidade não é absoluta Podese dizer que é cos tume nas universidades os estudantes não tumultuarem as aulas portanto é provável que a palavra do professor encontre alunos silenciosos mas esta pro babilidade não é uma certeza Mesmo no caso das universidades francesas onde em geral os estudantes ouvem passivamente não poderíamos dizer como uma afirmação de fato que durante uma hora só o professor fale O conceito de ordem legítima intervém logo depois da noção de relação regular A regularidade da relação social pode ser apenas o resultado de um lon go hábito mas é mais freqüente que haja fatores suplementares a convenção ou o direitó A ordem legítima é convencional quando a sanção que responde à sua violação é uma desaprovação coletiva É jurídica quando esta sanção assu me a forma de coerção física Os termos convenção e direito são definidos pela natureza da sanção correspondente como em Durkheim Ás ordens legítimas legitime Ordnung podem ser classificadas de acordo com as motivações dos que obedecem Weber distingue quatro tipos que lembram os quatro tipos de ação mas não são exatamente os mesmos as ordens são afetivas ou emocionais racionais com relação a valores religiosas e finalmente determi nadas pelo interesse As ordens legítimas determinadas pelo interesse são racio nais com relação a um objetivo as ordens determinadas pela religião são chama das tradicionais o que põe em evidência a afinidade entre religião e tradição pelo menos numa certa fase da evolução histórica pois o profetismo e a racionaliza ção religiosa nele originada são freqüentemente revolucionários Da ordem legítima Max Weber passa ao conceito de combate Kampf que desde o início da análise tem um sentido evidente Ao contrário do que alguns sociólogos se inclinam a crer as sociedades não são conjuntos harmoniosos Comte insistia na idéia do consenso e dizia que a sociedade é composta tanto de mor A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 493 tos como de vivos Para Max Weber as sociedades são feitas tanto de lutas como de acordos O combate é uma relação social fundamental Num duelo a ação de cada duelista está orientada para a ação do outro A orientação recíproca das con i dutas é neste caso ainda mais necessária do que num acordo pois o que está i I em jogo é a própria existência dos combatentes A relação social do combate se i define pela vontade de cada um dos atores de imporse ao outro malgrado sua 1 resistência Quando o combate não comporta o uso da força física chamase con j corrência Quando seu objetivo é a própria sobrevivência dos atores nós o cha jnamos de seleção Auslese v Os conceitos de relação social e de combate permitem numa etapa subse qüente da conceituação passar à própria constituição dos grupos sociais O processo de integração dos atores pode levar à criação de uma sociedade ou de uma comunidade A distinção entre estes dois processos Vergesellschaftung e Vergemeinschaftung é a seguinte Quando o resultado do processo de integração é uma comunidade Ge meinschaft o fundamento do grupo é um sentimento de pertinência experimen tado pelos participantes cuja motivação pode ser afetiva óu tradicional Se este processo de integração leva a uma sociedade Gesellschaft isto se deve ao fato de que a motivação das ações sociais se constitui de considerações ou ligações de interesses ou leva a um acerto de interesses Uma sociedade comercial por ações ou um contrato são integrações racionais com relação a um objetivo O proces so de integração social ou comunitário resulta no agrupamento Verband O grupo pode ser aberto ou fechado se a entrada nele for estritamente reservada ou ao contrário acessível a todos ou quase todos O agrupamento acrescenta às socie dades ou às comunidades um órgão de administração Verwaltungsstab e uma ordem regulamentar Depois do agrupamento vem a empresa Betrieb Esta se caracteriza pela ação contínua de vários atores e pela racionalidade com vistas a um fim Um agrupamento de empresa Betriebverband é uma sociedade com um óigão de ad ministração com vistas a uma ação racional A combinação dos conceitos de agru pamento e de empresa mostra bem como progride a conceituação weberiana O agrupamento comporta um órgão especializado de administração a empresa in troduz as duas noções de ação contínua e de ação racional com vistas a um fim Combinando as duas noções obtémse um grupo de empresa sociedade sujeita a um órgão de administração e que exerce uma ação contínua e racional Max Weber define ainda alguns conceitoschave na sua reconstrução da ação social Os dois primeiros são os de associação Verem e instituição Anstalt Na associação a regulamentação é aceita consciente e voluntariamente pelos participantes na instituição ela é imposta por decretos aos quais os participan tes devem submeterse 494 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Dois outros conceitos importantes são os de poder Macht e de domina ção Herrschaft O poder é definido simplesmente como a probabilidade de um ator impor sua vontade a outro mesmo contra a resistência deste Situase portanto dentro de uma relação social e indica a situação de desigualdade que faz com que um dos atores possa impor sua vontade ao outro Estes atores podem ser grupos por exemplo Estados ou indivíduos A dominação Herrschaft é a situação em que há um senhor Herr pode ser definida pela probabilidade que tem o senhor de contar com a obediência dos que em teoria devem obede cêlo A diferença entre poder e dominação está em que no primeiro caso o co mando não é necessariamente legítimo nem a obediência forçosamente um dever no segundo a obediência se fundamenta no reconhecimento por aqueles que obedecem das ordens que lhes são dadas As motivações da obediência permi tirão portanto construir uma tipologia da dominação Para passar do poder e da dominação para a realidade política é preciso acrescentar a idéia de agrupa mento político politischer Verband O agrupamento político contém as noções de território de continuidade do agrupamento e de ameaça de aplicação da força física para impor respeito às ordens ou às regras Entre os agrupamentos polí ticos o Estado é a instância que dispõe do monopólio da coerção física Weber introduz por fim um último conceito o de grupo hierocrático ou sagrado hierokratischer Verband É o agrupamento no qual a dominação per tence aos que detêm os bens sagrados e podem dispensálos Os agrupamen tos hierocráticos evocam os regimes teocráticos de Auguste Comte sem contudo ser seus equivalentes Quando o poder recorre ao sagrado e o poder temporal e o espiritual se confundem a obediência é imposta menos pela coerção física do que pela posse das receitas de salvação Se o poder distribui os bens dos quais os indivíduos esperam a redenção é ele que possui para cada um e para todos o segredo da vida feliz neste mundo ou no outro Em Economia e sociedade Max Weber trata duas vezes da sociologia políti ca Uma primeira vez na primeira parte expõe a tipologia das formas de domina ção Die Typen der Herrschaft depois na segunda parte notadamente nos dois últimos capítulos Politische Gemeischaften e Sociologie der Herrschaft des creve com mais pormenores a diferenciação dos regimes políticos observados através da história servindose da tipologia exposta na primeira parte Vou determe no capítulo sobre sociologia política de Economia e socieda de Primeiramente é menos difícil identificar suas grandes linhas do que resu mir a sociologia econômica Minha exposição será esquelética e pobre compa rada com a riqueza do texto de Weber mas não trairá talvez o pensamento do autor Um resumo da sociologia econômica exigiria porém muitas páginas A sociologia política de Weber se inspira diretamente em uma interpretação da situação contemporânea da Alemanha imperial e da Europa ocidental Permite A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 495 perceber o projeto mais importante de Max Weber que era compreender seu tempo à luz da história universal ou ainda tomar inteligível a história universal na medida em que esta tende à situação presente como à sua conclusão Finalmente ela se associa estreitamente à personalidade do autor mais do que qualquer outro capítulo de Economia e sociedade Max Weber pertence à escola dos sociólogos que se interessam pela sociedade a partir do interesse que sentem pela coisa pública Como Maquiavel é um desses sociólogos nostálgi cos da ação política e desejaria participar da luta política e exercer o poder So nhava em ser estadista Na verdade ele não foi um homem político mas somen te um conselheiro do príncipe conselheiro que não foi ouvido como ele mesmo confessa A sociologia política de Weber se baseia numa distinção entre a essência da economia e a essência da política estabelecida a partir do sentido subjetivo das condutas humanas Este método deriva diretamente da definição da sociologia Se toda sociologia é compreensão interpretativa da ação humana isto é do sentido subjetivo que os atores atribuem ao que fazem ou deixam de fazer é no plano do sentido subjetivo das condutas que definimos a ação econômica e a ação política A ação economicamente orientada é aquela que de acordo com o sentido que lhe é atribuído se relaciona com a satisfação dos desejos de utilidade Nutz leistungen de Leistung que vem do verbo leisten realizar produzir e de Nutz raiz do termo utilidade Esta definição se aplica à ação economicamente orien tada e não ao comportamento econômicoEste wirtschaften verbo foijado a par tir do substantivo Wirtschaft designa o exercício pacífico de uma capacidade de disposições economicamente orientadas A orientação para a categoria eco nômica implica apenas que se procuram satisfazer as necessidades que os indi víduos sentem de prestações de utilidade O conceito de prestação de utilidade engloba simultaneamente os bens materiais e os imateriais como os serviços O agir econômico implica por outro lado uma ação pacífica o que exclui a guerra e o banditismo que foram através da história meios freqüentemente emprega dos e quase sempre eficazes de assegurar prestações de utilidade Em todos os tempos os mais fortes sempre foram aconselhados não pèla moral mas pela ra cionalidade instrumental a se apropriar dos bens produzidos com o trabalho alheio Este método para satisfazer os desejos de prestação de utilidade é con tudo afastado pela definição weberiana do agir econômico que pressupõe além de tudo o que citartios o emprego de coisas e de pessoas para alcançar a satis fação de necessidades O trabalho é um agir econômico na medida em que é o exercício pacífico da capacidade de um ou vários indivíduos de dispor de mate riais ou de instrumentos no sentido da satisfação de necessidades Se qualifica mos o agir econômico com o adjetivo racional teremos o agir econômico ca racterístico das sociedades atuais isto é uma atividade que comporta a arregi mentação dos recursos disponíveis de acordo com um plano e a continuidade do esforço dirigido para a satisfação das necessidades 496 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Uma primeira distinção surge logo entre a ordem da política e a da economia A economia tem a ver com a satisfação das necessidades e também com o objeti vo determinado pela organização racional da conduta a política se caracteriza pela dominação exercida por um homem ou por alguns homens sobre outros homens Estas definições permitem simultaneamente compreender a interrelação do agir econômico e do agir político cuja distinção é apenas conceituai não real Concretamente é impossível separar o agir econômico do agir político como se se separassem dois corpos em uma composição química O agir econômico pode comportar o recurso aqui ou ali a meios de força e por conseguinte compor tar uma dimensão política Por outro lado qualquer ação política isto é qual quer exercício contínuo de dominação de um ou de alguns homens sobre outros homens exige um agir econômico isto é a posse ou a disponibilidade de meios para satisfazer às necessidades Há uma economia da política e uma política da economia A oposição entre os dois termos só se torna rigorosa conceitualmen te na medida em que se excluem do agir econômico propriamente dito os meios de força na medida também em que se relaciona a racionalidade própria do agir econômico com a escassez e a escolha racional dos meios A política é portanto o conjunto das condutas humanas que comportam a dominação do homem pelo homem O termo dominação traduz o alemão Herrschaft Julien Freund que traduziu Max Weber para o francês escolheu esse termo porque Herr significa senhor e porque dominação provém do latim dominus senhor Se voltarmos ao sentido original da palavra dominação ela se aplica perfeitamente à situação do senhor com relação àqueles que o obede cem É preciso porém afastar a conotação desagradável desta palavra entenden doa apenas como a probabilidade de que as ordens dadas sejam efetivamente cumpridas pelos que as recebem O termo autoridade não seria apropriado co mo tradução de Herrschaft pois Max Weber o utiliza também Autoritãt para designar as qualidades naturais ou sociais que possui o senhor Os tipos de dominação são em número de três racional tradicional e caris mática A tipologia se fundamenta portanto no caráter próprio da motivação que comanda a obediência Racional é a dominação baseada na crença na legalidade da ordem e dos títulos dos que exercem a dominação Tradicional é a domina ção fundamentada na crença do caráter sagrado das tradições antigas e na legi timidade dos que são chamados pela tradição a exercer a autoridade Carismá tica é a dominação que se baseia no devotamento fora do cotidiano justificado pelo caráter sagrado ou pela força heróica de uma pessoa e da ordem revelada ou criada por ela Os exemplos destes três tipos de dominação são abundantes O agente tri butário nos faz obedecer porque acreditamos na legalidade dos títulos que lhe permite enviarnos documentos de cobrança fiscal Sua dominação é portanto A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 497 racional De modo geral o conjunto da gestão administrativa das sociedades mo dernas quer se trate da regulamentação da circulação dos automóveis dos exa mes universitários ou do fisco comporta uma dominação tal de homens sobre outros homens que estes se submetem às ordens legais ou aos intérpretes e exe cutantes da própria legalidade e não a indivíduos isolados A ilustração da do minação tradicional é menos fácil de encontrar nas sociedades modernas mas se a rainha da Inglaterra exercesse ainda um poder efetivo o fundamento desta dominação seria o longo passado e a crença na legitimidade da sua autoridade cuja origem remonta a muitos séculos Hoje resta apenas a aparência desta domina ção Os homens continuam a respeitar o detentor desse poder tradicional mas de fato não têm oportunidade de o obedecer As leis são promulgadas em nome da rainha mas não é ela que determina o conteúdo Hoje nos países que conserva ram a monarquia a dominação tradicional é meramente simbólica Podemos encontrar nos nossos dias contudo muitos exemplos do poder ca rismático Lenin exerceu durante alguns anos uma dominação carismática que não se baseava na legalidade ou em antigas tradições mas no devotamento dos ho mens convencidos da virtude incomum daquele que se propunha convulsionar a ordem social Hitler e o general De Gaulle são outros exemplos embora tão opos tos de chefes carismáticos segundo a definição weberiana O próprio De Gaulle acentuou o caráter carismático da sua dominação nas circunstâncias em que tendo de escolher entre apelar para a legitimidade eleitoral e apelar para o 18 de junho de 1940 ele escolheu a segunda alternativa Em abril de 1961 para exigir obediên cia contra os generais rebeldes da Argélia voltou a envergar o uniforme de ge neraldebrigada de junho de 1940 dirigindose aos oficiais e aos soldados não como Presidente da República eleito por um congresso mas como o general De Gaulle que havia vinte anos representava a legitimidade nacional Quando um homem declara encarnar a legitimidade nacional durante dois decênios sua domi nação não pertence mais à ordem racional como não pertence à ordem tradicional o general De Gaulle não nasceu numa família real reinante é carismático19 O chefe está fora do cotidiano do mesmo modo que está fora do cotidiano o devotamento que os homens consagram a esta personalidade heróica e exemplar Como é natural estes três tipos de dominação pertencem a uma classifica ção simplificada Max Weber esclarece que a realidade é sempre uma mistura ou confusão desses três tipos puros Não obstante sua análise coloca uma série de questões Weber distingue quatro tipos de ação e três tipos de dominação Por que não há uma conformidade entre a tipologia das condutas e a tipologia das dominações Os três tipos de dominação correspondem aproximadamente a três dos quatro tipos de conduta O quarto tipo de conduta não está representado por um tipo específico de dominação Entre a conduta racional em relação a um fim e 498 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO a dominação legal o paralelismo é perfeito Entre a conduta afetiva e a domina ção carismática há uma aproximação pelo menos justificável A conduta tradi cional e a dominação tradicional são designadas pelo mesmo termo Devemos dizer que a classificação das condutas está errada Que só há na realidade três motivações fundamentais e por conseguinte três tipos de conduta e três tipos de dominação A razão a emoção e o sentimento explicariam a conduta racional afetiva ou tradicional e do mesmo modo a dominação racional carismática ou tradicional Esta interpretação é possível mas o problema me parece mais sutil A clas sificação dos tipos de dominação se refere às motivações dos que obedecem mas estas motivações são de natureza essencial e não psicológica O cidadão que re cebe a intimação de impostos a pagar pagará o que lhe é cobrado quase sempre não por ter refletido sobre a legalidade do sistema fiscal ou porque tenha medo das sanções implicadas no nãopagamento mas apenas pelo hábito de obedecer A motivação psicológica efetiva não coincide necessariamente com o tipo abstrato de motivação ligado ao tipo de dominação O hábito pode comandar a obediên cia no caso de uma dominação racional em lugar da razão Se é verdade que a distinção entre os tipos de dominação deriva de uma classificação das motivações estas não são as que podemos observar no sentido comum do termo A melhor prova está em que Max Weber apresenta várias tipologias dife rentes da motivação da obediência No primeiro capítulo de Economia e so ciedade depois de ter formulado o conceito de ordem legítima ele se pergun ta sobre uma classificação em duas ou quatro categorias Uma ordem legítima pode ser sustentada interiormente pelos sentimentos innerlich dos que a obe decem Se ela é interiorizada há três modalidades possíveis deste fenômeno que se referem aos três tipos de conduta a afetiva a racional com relação aos va lores e a religiosa substituindo neste caso a tradicional Se não é interioriza da a ordem legítima pode ser apoiada pela reflexão a respeito das conseqüên cias do ato esta reflexão determinando a conduta dos que obedecem Neste caso a tipologia das motivações da obediência tem portanto quatro categorias e não reproduz a tipologia tríplice dos modos de dominação Em outra passa gem do primeiro capítulo ao tratar dos motivos pelos quais se atribui legitimi dade a uma certa ordem Weber retoma quatro termos que desta vez são exa tamente paralelos aos quatro tipos de conduta Ele considera com efeito que há quatro fórmulas de legitimidade tradicional afetiva racional em relação a valores e resultado da afirmação positiva de uma ordem legal Vemos assim que Max Weber hesita entre diferentes classificações E che ga sempre à fórmula da ação racional em relação a um fim que é o tipo ideal da ação econômica ou política Esta ação é de fato também a ação comandada por uma ordem legal e a ação determinada pela consideração das conseqüências possíveis da conduta do tipo da conduta interessada ou do contrato Contudo A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 499 a ação emocional está sempre presente nas classificações Sua correspondência no mundo da política é o tipo profético ou carismático Por outro lado dois tipos de conduta recebem nomes diferentes que ora aparecem ora desaparecem A ação tradicional se transforma às vezes em ação religiosa e na verdade a religião é uma forma de tradição mas num certo sentido é a forma inicial e profunda da tradição Por outro lado a ação wertrational figura em alguns casos como um dos fundamentos da legitimidade a honra mas desaparece na tipologia dos modos de dominação porque não constitui um tipo abstrato Estas dificuldades de tipologia se relacionam com o fato de que Max Weber não escolheu entre conceitos puramente analíticos e conceitos semihistóricos Os três modos de dominação deveriam ser considerados como simples e puros conceitos analíticos mas Weber lhes atribui também um sentido histórico De qualquer forma esta tipologia da dominação permite a Max Weber entrar na casuística conceituai dos tipos de dominação Partindo da noção de domina ção racional ele analisa as características da organização burocrática Tomando como ponto de partida a noção de dominação tradicional acompanha o seu de senvolvimento e diferenciação progressiva dominação gerontocrática patriarcal patrimonial Esforçase por demonstrar como é possível passar da definição simplificada de uma forma de dominação para a infinita diversidade das insti tuições historicamente observadas mediante a discriminação de diferentes mo dos A diversidade histórica se toma então inteligível porque deixa de parecer arbitrária Desde que existem homens que refletem sobre as instituições sociais a pri meira surpresa é causada pela existência do outro De fato vivemos numa so ciedade mas há outras sociedades uma certa ordenação política ou religiosa nos parece evidente ou sagrada e há outras ordens Podemos reagir a esta desco berta pela afirmação agressiva ou ansiosa da validade absoluta da nossa ordem e a desvalorização simultânea de todas as outras A sociologia começa com o re conhecimento desta diversidade e com a vontade de compreendêla o que não implica que todas as modalidades de ordem social se situem no mesmo nível de valor mas apenas que todas são inteligíveis porque exprimem a mesma nature za humana e social A política de Aristóteles tomou inteligível a diversidade de regimes das cidades gregas a sociologia política de Max Weber tenta fazer o mes mo no contexto da história universal Aristóteles se interrogava a respeito das dificuldades que cada regime precisava resolver e as perspectivas de sobrevi vência e prosperidade de cada um Max Weber pergunta qual é a evolução pro vável possível ou necessária de um tipo de dominação A análise das transformações da dominação carismática é exemplar Esta forma de dominação tem na sua origem algo que está fora do cotidiano aus seralltàglich Possui portanto em si mesma alguma coisa de precário porque os homens não podem viver de forma duradoura fora do cotidiano e porque tudo 500 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO o que é incomum inevitavelmente se desgasta Ocorre em conseqüência um processo estreitamente ligado à dominação carismática o retorno do poder carismático à vida cotidiana Veralltãglichung deo Charismas A dominação fundamentada nas qualidades excepcionais de um homem pode sobreviver a esse homem Todo regime marcado pela origem carismática do seu líder supre mo não pode deixar de ser confrontado com a questão da sobrevivência e da he rança Max Weber se volta assim para uma tipologia dos métodos pelos quais se resolve o problema mais importante da dominação carismática que é o da sucessão Pode haver uma procura organizada de outro portador do carisma como na teocracia tibetana tradicional Os oráculos e o apelo ao julgamento divino podem ser utilizados também para institucionalização do excepcional O chefe caris mático pode escolher pessoalmente seu sucessor mas é preciso que este seja aceito pela comunidade dos fiéis O sucessor pode ser selecionado igualmente pelo estadomaior do chefe carismático e depois reconhecido pela comunida de Podese admitir que o carisma é inseparável do sangue tornandose heredi tário Erbcharisma A dominação carismática leva neste caso à dominação tra dicional A graça de uma pessoa se torna propriedade de uma família Final mente o carisma pode ser transmitido de acordo com certos processos mágicos ou religiosos A coroação dos reis da França representava a transmissão da graça desse modo ela passava a pertencer a uma família e não a um homem Este exemplo simples ilustra bem o método e o sistema de Max Weber Seu objetivo é sempre o mesmo Tratase de identificar a lógica das instituições hu manas e de compreender as singularidades das instituições sem com isto re nunciar ao uso dos conceitos Tratase de elaborar uma sistematização flexível que permita ao mesmo tempo integrar fenômenos diversos num quadro contex tual único e não eliminar o que constitui a singularidade de cada regime ou de cada sociedade Esta forma de conceituação leva Max Weber a perguntar qual é a influên cia exercida pelo modo de dominação sobre a organização e a racionalidade da economia qual a relação entre um tipo de economia e um tipo de direito Em outras palavras a conceitualização não tem só por fim uma compreensão mais ou menos sistemática mas também a colocação dos problemas de causalidade ou das influências recíprocas dos diferentes setores do universo social A categoria que domina esta análise causai é a de oportunidade ou de influência e de probabi lidade Um tipo de economia influencia o direito num certo sentido é provável que um tipo de dominação se manifeste na administração ou no direito de uma certa maneira Mas não há nem pode haver causalidade unilateral de uma série de instituições particulares sobre o resto da sociedade Neste sentido o méto do weberiano pode ser admirado ou criticado pois multiplica as relações parciais e não acrescenta aquilo que os filósofos chamam hoje de totalização No estu A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 501 do sociológico das religiões Max Weber se esforçou por reconstruir o conjunto de uma maneira de viver e pensar o mundo Ele não ignorava a necessidade de inse rir cada elemento de uma existência ou de uma sociedade num conjunto Contudo em Economia e sociedade analisa as relações entre os setores e por isso multipli ca as relações parciais sem reconstruir a totalidade Pareceme que Max Weber poderia justificarse afirmando que não excluía outros métodos e que no nível da generalidade conceituai em que se situa sua análise era impossível identificar re lações causais comportando uma rigorosa necessidade e que era impossível tam bém reconstruir a totalidade de uma sociedade particular ou de um regime políti co singular porque o objetivo procurado é a apreensão dos diferentes aspectos de tais totalidades com a ajuda dos conceitos A sociologia política de Max Weber é inseparável da realidade histórica em que viveu20 Politicamente Weber era na Alemanha de Guilherme II um nacio nalliberal Weber foi um nacionalliberal mas não um liberal no sentido norte americano Ele não era propriamente um democrata no sentido francês inglês ou norteamericano Punha acima de tudo a grandeza da nação e o poder do Es tado Indubitavelmente estimava as liberdades a que aspiram os liberais do velho continente Sem um mínimo de direitos individuais escreveu não poderíamos mais viver Não acreditava porém na vontade geral ou no direito dos povos de dispor de si mesmos nem na ideologia democrática Se desejava uma parla mentarização do regime alemão era para aprimorar a qualidade dos líderes e não por princípio Pertencia à geração pósbismarckiana que se propunha como tarefa primordial a manutenção da herança do fundador do Império alemão e como segunda tarefa o acesso da Alemanha à política mundial Weltpolitik Não era um desses sociólogos como Durkheim que acreditavam que as funções militares dos Estados eram anacrônicas Acreditava na permanência dos confli tos entre as grandes potências e esperava que a Alemanha unificada ocupasse um lugar importante no cenário mundial Só levava em conta as questões sociais da atualidade tomando como referência o objetivo supremo da grandeza do Reich Weber foi um adversário apaixonado de Guilherme II a quem atribuiu duran te a guerra de 1914 a principal responsabilidade pelas desgraças que se abate ram sobre sua pátria Na mesma época esboçou um projeto de reforma das ins tituições cujo objetivo era a parlamentarização do regime alemão Atribuía a mediocridade da diplomacia do II Reich ao sistema de recrutamento dos minis tros e à ausência de vida parlamentar Pensava Weber que a dominação burocrática caracteriza todas as socieda des modernas e constitui um setor importante de qualquer regime mas o fun cionário não foi feito para impulsionar o Estado ou para exercer funções pro priamente políticas e sim para aplicar os regulamentos de acordo com os pre cedentes Formouse na disciplina não na iniciativa e na luta e por isto será normalmente um mau ministro O recrutamento dos políticos implica regras 502 ÀS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO diferentes das que se aplicam ao recrutamento dos burocratas Por isso Max Weber desejava a transformação do regime alemão no sentido parlamentar As assembléias dariam oportunidade de aparecerem melhores líderes isto é de líde res mais bem formados para a batalha política do que aqueles que só escolhiam um imperador ou que ocupavam funções no alto da hierarquia administrativa O regime alemão comportava um elemento tradicional o imperador e um elemento burocrático a administração Faltavalhe o elemento carismático Obser vando as democracias anglosaxãs Max Weber imaginava um líder político ca rismático que como chefe partidário adquirisse na luta as qualidades sem as quais não há estadista a saber a coragem de decidir a audácia de inovar a capacidade de despertar a fé e de conseguir a obediência21 Este sonho de um líder carismá tico foi vivido pela geração que sucedeu à de Max Weber Mas evidentemen te este não teria reconhecido seu sonho na realidade alemã de 19331945 A sociologia política de Weber leva a uma interpretação da sociedade pre sente como sua sociologia da religião conduz a uma interpretação das civiliza ções contemporâneas O que singulariza o universo em que vivemos é o desen cantamento do mundo A ciência nos habitua a ver a realidade exterior apenas como conjunto de forças cegas que podemos pôr à nossa disposição nada resta dos mitos e das divindades com que o pensamento selvagem povoava o universo Nesse mundo despojado desses encantamentos e cego as sociedades se desen volvem no sentido de uma organização cada vez mais racional e burocrática Sabemos que uma obra só é realmente científica quando pode e deve ser ultrapassada Daí o caráter patético de uma vida dedicada à pesquisa que mesmo no caso de êxito está condenada a não encontrar toda a verdade Jamais chega remos ao ponto final do nosso esforço renovado nunca teremos resposta defi nitiva às perguntas que consideramos mais importantes Por outro lado quanto mais racional a sociedade mais cada um de nós está condenado ao que os marxistas chamam de alienação Sentimonos sujeitos a um conjunto que vai além de nós condenados a só realizar uma parte daquilo que po deríamos ser condenados a exercer toda a nossa vida uma ocupação limitada sem outra esperança de grandeza senão a de aceitar tal limitação Desde logo o que é preciso salvaguardar antes de tudo dizia Max Weber são os direitos humanos que dão a cada indivíduo a possibilidade de viver uma existência autêntica independentemente do lugar que ocupa na organização ra cional Do ponto de vista político é a maigem de livre competição graças à qual se afirma a personalidade e podem ser escolhidos os líderes verdadeiros e não meros burocratas Além da racionalização científica do mundo precisamos reservar os direi tos de uma religião puramente interior Além da racionalização burocrática é preciso salvaguardar a liberdade de consciência e o confronto das pessoas Sem suprimir as desigualdades entre os indivíduos e entre as classes o socialismo A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 503 marcaria se se transformasse de utopia em realidade uma etapa do proces so de burocratização integral A conclusão weberiana procede da análise existencial da incompatibilidade dos valores e da luta entre os deuses O mundo é racionalizado pela ciência pela administração e pela gestão rigorosa dos empreendimentos econômicos mas continua a luta entre as classes as nações e os deuses Como não há um árbitro ou um juiz só existe uma atitude adequada à dignidade a escolha solitá ria de cada um de nós diante da sua consciência Pode ser que a última palavra des ta atitude filosófica seja a de engajamento Max Weber dizia escolha e decisão Entscheidung A decisão era menos a escolha entre dois partidos do que o engajamento em favor de um deus que podia ser um demônio Weber nosso contemporâneo Mais do que Durkheim Max Weber é ainda nosso contemporâneo Admi ramos a análise estatística das causas do suicídio como uma etapa da ciência Continuamos a utilizar o conceito de anomia mas deixamos de nos interessar pelas idéias políticas de Durkheim e as teorias morais que ele pretendia difundir nas escolas de formação de professores O Traité de sociologie générale é um mo numento estranho obraprima de uma pessoa extraordinária objeto de admira ção para uns de irritação ou exasperação para outros Pareto não tem muitos dis cípulos ou continuadores Mas o caso de Max Weber é bem diferente Em 1964 em Heidelberg durante um congresso organizado por Deutsche Gesellschaft für Soziologie por ocasião do centésimo aniversário do nascimen to de Weber houve um debate ardoroso que continuou depois de encerrada a reunião Um historiador suíço Herbert Lüthy chegou mesmo a escrever que ha via weberianos da mesma forma como marxistas igualmente suscetíveis quando alguma das idéias de seu mestre era questionada Na verdade weberia nos e marxistas têm pouco em comum os primeiros estão nas universidades os segundos governam Estados O marxismo pode ser resumido e vulgarizado num catecismo destinado às multidões mas o pensamento de Weber não se presta à elaboração de uma ortodoxia a menos que se considere como ortodoxia a rejei ção de todas as ortodoxias Por que razão quase meio século depois de morto Max Weber desperta ain da tantas paixões Devido a sua obra ou à sua personalidade A controvérsia científica sobre A ética protestante e o espírito do capita lismo não terminou ainda não só porque este famoso livro passou por uma refutação empírica do materialismo histórico mas também porque propõe dois problemas de grande alcance O primeiro é histórico em que medida certas sei tas protestantes ou de modo mais geral o espírito protestante influenciaram 504 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO a formação do capitalismo O segundo problema é teórico ou sociológico em que sentido a compreensão das condutas econômicas exige a referência às cren ças religiosas e aos sistemas do mundo dos atores Entre o homem econômico e o homem religioso não há uma separação radical E devido a uma ética deter minada que o homem concreto de carne e ossos o homem de desejos e gozos se transforma em algumas raras situações em homo oeconomicus A tentativa weberiana de analisar a estrutura da ação social de elaborar uma tipologia das condutas de comparar os sistemas religiosos econômicos políticos e sociais por mais criticável que nos pareça em alguns dos seus méto dos e resultados é ainda do nosso tempo Deveríamos mesmo dizer que ela ul trapassa de longe o que os sociólogos atuais se julgam capazes de realizar Pelo menos a teoria abstrata e as interpretações históricas tendem a se dissociar A grande teoria no estilo de T Parsons caminha para a abstração extrema de um vocabulário conceituai utilizável para a compreensão de qualquer sociedade Ela pretende afastarse da sociedade moderna e da filosofia que inspirava Weber A referência ao presente terá desaparecido da conceituação do tipo parsoniano ou mais genericamente da conceituação peculiar à sociologia de hoje Esta é uma questão que pode ser debatida O que queríamos era demonstrar que com binando uma teoria abstrata dos conceitos fundamentais da sociologia com uma interpretação semiconcreta da história universal Max Weber é mais ambicioso do que os professores de nossos dias Neste sentido pertence possivelmente tanto ao passado quanto ao futuro da sociologia Por mais válidos em si mesmos que sejam estes argumentos eles não ex plicam a violência dos debates em tomo de Weber que têm ocorrido aliás na Europa não nos Estados Unidos Nos Estados Unidos Max Weber foi interpre tado e traduzido por Talcott Parsons Sua obra é acolhida sobretudo como a de um cientista puro Foi por isso que ela penetrou nas universidades onde é agora ex posta comentada muitas vezes também discutida Quanto ao homem que se exprime na obra ou se esconde atrás dela não é ele um democrata hostil a Gui lherme II Por outro lado não é legítimo ignorar o político e só reconhecer o cientista Na Europa o centenário do nascimento de Max Weber despertou paixões Os professores de formação européia alguns dos quais se naturalizaram norte americanos adotaram posições veementes pró e contra Weber como político filósofo e sociólogo A este propósito nada foi mais revelador do que as três sessões plenárias do congresso de Heidelberg a que já me referi A primeira aberta com conferência de Talcott Parsons sobre as concepções metodológicas de Weber provocou um debate propriamente acadêmico As duas seguintes po rém tiveram outro caráter bem diferente A conferência que pronunciei sobre Max Weber und die Machtpolitik se inseria na polêmica desencadeada pelo li vro de Wolfgang J Mommsen22 a qual prossegue até o momento em que escre A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 505 vo este estudo 1966 A conferência de Herbert Marcuse Industrialisierung und Kapitalismus parecia animada por uma espécie de furor contra Weber como se ele estivesse ainda vivo e se mantivesse em posição irredutível Estes dois debates um relativo ao lugar ocupado por Max Weber na polí tica alemã às suas opiniões o outro a propósito de sua filosofia e de suas atitu des fundamentais diferem em alcance e em estilo Alguns autores nos Estados Unidos e na República Federal Alemã tinham tendido a apresentar Weber como um bom democrata de estilo ocidental conforme à imagem que se tinha disso depois da Segunda Guerra Mundial Esta concepção estava evidentemente muito distante da realidade O valor que Max Weber punha acima de tudo por sua livre decisão era como vimos a grandeza nacional não a democracia ou as liberdades pessoais Tinha sido favorável à democratização mais por motivos circunstanciais do que por princípio Os funcionários entre os quais o imperador escolhia seus ministros eram segundo ele desprovidos por formação e temperamento de am bição do poder primeira qualidade dos governantes e talvez mesmo dos povos em um mundo duro entregue à luta entre indivíduos classes e Estados A filosofia da política inspirada pelo seu trabalho como cientista e por sua ação é pessimista Alguns vêem em Weber um novo Maquiavel Em artigo pene trante a despeito de um tom que os admiradores de Weber têm dificuldade em suportar Eugene Fleischmann23 focalizou as duas influências mais importantes possivelmente sucessivas a de Marx e a de Nietzsche a partir das quais se for mou o pensamento de Weber Marx da burguesia e mais nietzscheano do que democrata Esta reinterpretação da política weberiana causou escândalo porque tirava do seu pedestal um dos patronos e fundadores da nova democracia alemã um antepassado cheio de glória um gênio Contudo ela é no essencial indiscutível fundamentandose em textos e aliás está marcada pelo respeito devido a uma personalidade excepcional Max Weber foi nacionalista como o foram os euro peus a partir do fim do século passado e como deixaram de sêlo hoje Um na cionalismo que não se limitava ao patriotismo à preocupação com a indepen dência ou a soberania estatal mas que conduzia de modo quase irresistível ao que hoje seriamos tentados a chamar de imperialismo As nações estão engaja das numa competição permanente ora aparentemente pacífica ora claramente cruel Esta competição não tem fim e é impiedosa Os homens morrem em trin cheiras ou vegetam trabalhando em minas ou fábricas ameaçados pela concor rência econômica ou pelo fogo dos canhões O poder da nação é ao mesmo tem po um meio e um fim garante a segurança contribui para a difusão da cultura porque as culturas são essencialmente nacionais mas o poder é desejado por si mesmo como expressão da grandeza humana Indubitavelmente o pensamento político de Max Weber é mais complexo do que o sugerem estas breves indicações Se ele viu na unidade alemã uma etapa 506 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO do processo que levava à política mundial não ignorou o fato de que o poder do Estado não implicava o desenvolvimento da cultura Em particular no caso da história alemã a fase de desenvolvimento espiritual e a fase de poder estatal não parecem coincidir Embora tenha empregado a expressão Herrenvolk povo de senhores não o fez no sentido em que Hitler a usou Como Nietzsche Weber criticava muitas vezes o povo alemão pela obediência passiva a aceitação de um regime tradicional suas atitudes de novorico condutas indignas de um povo que assume e deve assumir um papel de importância mundial Quanto à de mocracia de sua preferência com um líder escolhido por todo o povo ela tem alguns traços que vamos encontrar em todas as democracias da nossa época lembrando sobretudo a V República da França sob o general De Gaulle Líder carismático eleito por sufrágio universal tomando sozinho as grandes deci sões responsável perante sua consciência e a história tal é o chefe democrá tico imaginado por Max Weber figura que os déspotas do período de entre as duas guerras caricaturaram e que o Presidente da República francesa encarnou a partir de 1959 Nem o Presidente norteamericano nem o Primeiroministro bri tânico correspondem em grau e estilo a esse Führer condutor do povo que lide ra as massas a serviço da ambição que nutre por elas e para si Esta ascendên cia carismática do líder político representava para Weber uma reação salvado ra ao reinado anônimo dos burocratas Ele não ignorava contudo a importância da deliberação dos parlamentares e o respeito pelas regras Conhecia a neces sidade de uma Constituição de manter o Estado de direito Rechtstaat o valor das liberdades pessoais É possível que tivesse sobretudo a tendência a crer como homem do século XIX que as frágeis conquistas da civilização política estavam já definitivamente consolidadas O segundo debate iniciado por Herbert Marcuse focaliza em última aná lise a filosofia histórica de Max Weber Este toma como tema central da sua interpretação da moderna sociedade ocidental a racionalização tal como se manifesta na ciência na indústria e na burocracia O regime capitalista basea do na propriedade individual dos meios de produção e na concorrência do mer cado esteve historicamente associado ao processo de racionalização Este pro cesso é o destino do homem contra o qual seria vão nos revoltarmos e ao qual nenhum regime pode escapar Max Weber foi hostil ao socialismo a despeito da admiração que sentia por Marx e não só porque era nacionalista ou porque na luta de classes tão fatal quanto a luta das nações se situava ao lado da burgue sia O que ameaçava a dignidade do homem a seus olhos era a servidão dos indivíduos com relação a organizações anônimas O sistema de produção efi caz é também um sistema de dominação do homem sobre o homem Max Weber reconhecia que os operários seriam sempre socialistas de um modo ou de ou tro chegou mesmo a afirmar que não há nenhum meio de eliminar as con vicções socialistas e as esperanças socialistas24 no que talvez se enganasse A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 507 mas o socialismo realizado comportaria para os valores humanos os mesmos perigos que o próprio capitalismo Mais ainda o socialismo não poderia deixar de agravar esses perigos na medida em que para restaurar e manter a discipli na do trabalho num regime burocratizado precisava impor uma dominação mais rigorosa ainda do homem sobre o homem ou da organização sobre o indivíduo limitando ainda mais as liberdades pessoais Terão os acontecimentos desmentido Max Weber sobre este ponto Eviden temente eles lhe deram razão e é o próprio Herbert Marcuse que o confessa En quanto espírito cristalizado a máquina não é neutra a razão técnica é a razão social que domina em cada época e pode ser transformada na sua própria estru tura Enquanto razão técnica ela pode ser utilizada tendo em vista uma técnica de liberação Para Max Weber esta posição era uma utopia Hoje parece que ele tinha razão Em outras palavras Marcuse recrimina Max Weber pelo fato de ter denunciado antecipadamente como utopia o que se revelou efetivamente até o presente uma utopia isto é a idéia de uma liberação humana que passa pela mo dificação do regime da propriedade e pela planificação Entre a propriedade coletiva dos meios de produção e a planificação de um lado e a liberação do homem de outro não há nenhum vínculo causai ou lógico A história dos últimos cinqüenta anos o demonstrou indiscutivelmente Um marxista de Frankfurt que não é marxistaleninista detesta em Max Weber aquele que nunca compartilhou suas ilusões e que lhe rouba os sonhos de que talvez precise para viver Mas a utopia socialista é hoje radicalmente vazia de substância Um sistema de pro dução ainda mais automatizado trará talvez outras possibilidades concretas de libe ração Não suprimirá a ordem burocrática a saber a dominação racional e anônima denunciada com um certo exagero por Weber e pelos marxistas Certamente a sociedade industrial de hoje não é a sociedade capitalista que Max Weber conheceu não é mais essencialmente burguesa nem mesmo essen cialmente capitalista se este regime pode ser definido antes de mais nada pela propriedade e a iniciativa do empresário individual Contudo precisamente por este motivo estaria tentado pessoalmente a criticar Weber de outro ponto de vista muito diferente ele foi demasiado marxista na sua interpretação da sociedade moderna isto é muito pessimista Não percebeu exatamente nem as perspectivas de bemestar para as massas graças ao crescimento da produtividade nem a ate nuação dos conflitos de classes e talvez mesmo dos conflitos entre as nações numa época em que a riqueza depende mais da eficiência do trabalho que das dimensões territoriais Por outro lado é um mérito e não um erro ter distinguido rigorosamente a racionalidade científica ou burocrática da razão histórica A ex periência nos mostrou que o espírito e os meios da tecnologia podem ser empre gados no genocídio mas a responsabilidade não cabe ao capitalismo à burgue sia e menos ainda a Max Weber Este tinha reconhecido antecipadamente que a racionalização não garante o triunfo do que os hegelianos chamam de razão his tórica e os democratas de boa vontade chamam de valores liberais 508 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Em Weber uma filosofia da luta e do poder de inspiração marxista e nietzs cheana se combina com a visão de uma história universal que leva a um mundo desencantado a uma humanidade em servidão despojada das suas virtudes mais elevadas Max Weber colocava acima de tudo não o êxito e o poder mas uma certa nobreza a coragem de afrontar a condição humana tal como ela aparece a quem rejeita as ilusões da religião como das ideologias políticas Todos os que pensam possuir uma verdade absoluta ou total todos os que pretendem recon ciliar valores contraditórios marxistashegelianos doutrinários da democracia ou do direito natural continuam com razão sua polêmica contra um autor que dá caráter dogmático à recusa do dogmatismo que empresta uma verdade defini tiva à contradição de valores que só conhece a ciência parcial e as escolhas es tritamente arbitrárias Alguns destes dogmatismos estão na origem dos totalitarismos da nossa época Contudo é preciso reconhecêlo Max Weber com sua filosofia do en gajamento não oferece necessariamente uma melhor proteção contra o retomo dos bárbaros O líder carismático devia servir de recurso contra a dominação anô nima da burocracia Aprendemos a temer as promessas dos demagogos mais do que a banalidade da organização racional Estes debates sobre a personalidade a filosofia e as opiniões de Max Weber ilustram a meu ver a multiplicidade dos sentidos em que me parece apropriado afirmar que ele é nosso contemporâneo Primeiramente porque pertence à fa mília dos grandes pensadores cuja obra é tão rica e ambígua que cada nova ge ração a lê interroga e interpreta à sua maneira Depois porque é um cientista cuja contribuição está ultrapassada mas que ainda permanece atual Tratese da compreensão dos tipos ideais da distinção entre julgamento de valor e relação aos valores do sentido subjetivo enquanto objeto próprio do estudo sociológico da oposição entre a maneira como os autores se compreenderam a si mesmos e a maneira como o sociólogo os compreende sentimonos sempre tentados a mul tiplicar questões ou pelo menos objeções Não é certo que a prática de Weber res ponda sempre à sua teoria É mesmo duvidoso que ele próprio se tenha abstido de qualquer julgamento de valor e mais duvidoso ainda que a referência aos valores e o julgamento de valor possam ser separados radicalmente A sociologia de Weber poderia ser talvez mais científica mas seria na minha opinião me nos apaixonante se não tivesse sido animada por um homem que colocava cons tantemente as questões fundamentais o relacionamento entre o conhecimento e a fé a ciência e a ação entre a Igreja e o profetismo a burocracia e a lideran ça carismática entre a racionalização e a liberdade individual E que graças a uma erudição histórica quase monstruosa procurava em todas as civilizações as res postas dadas a suas próprias questões para no fim dessa exploração por natu reza indefinida encontrarse só e dilacerado diante da escolha do seu próprio destino Indicações biográficas 1864 21 de abril Nasce Max Weber em Erfurt na Turíngia Seu pai era um jurista de família de industriais e comerciantes de têxteis da Vestfália Em 1869 foi com a fa mília para Berlim onde foi membro da Dieta municipal foi deputado na Dieta prussiana e no Reichstag pertencia ao grupo dos liberais de direita cujo líder era Hanovrien Bennigsen Sua mãe Helena FallensteinWeber era uma mulher de grande cultura preocupada com os problemas religiosos e sociais Até sua morte em 1919 ela manteve estreito contato intelectual com o filho em quem avivava a nostalgia da fé religiosa Na casa dos seus pais o jovem Max Weber conheceu a maioria dos intelectuais e políticos mais importantes da época 1882 Depois da sua Abitur Max Weber inicia os estudos superiores em Heidelberg Ins crevese na Faculdade de Direito mas estuda também história economia filoso fia e teologia Participa das cerimônias e duelos da sua corporação estudantil 1883 Depois de três semestres em Heidelberg Max Weber faz um ano de serviço mili tar em Estrasburgo como simples soldado e depois como oficial Toda sua vida Weber terá muito orgulho de seu título de oficial do Exército Imperial 1884 Max Weber retoma seus estudos nas Universidades de Berlim e de Gõttingen 18871888 Participa de várias manobras militares na Alsácia e na Prússia Oriental Tor nase membro da Verein für Sozialpolitik que agrupa os universitários de todas as tendências preocupados com os problemas sociais Essa associação havia sido fundada em 1872 por G Schmoller e era dominada pelos Socialistas da Cátedra 1889 Doutorado em Direito com tese sobre as empresas comerciais na Idade Média Aprende italiano e espanhol Inscrevese no Tribunal de Berlim 1890 Novos exames de direito Inicia uma pesquisa sobre o campesinato na Prússia Oriental a pedido da Verein für Sozialpolitik 1891 História agrária de Roma e sua significação para o direito público e privado Esta defesa de tese na qual Weber teve um diálogo com Mommsen lhe valeu um cargo na Faculdade de Direito de Berlim Inicia então uma carreira de professor universitário 1 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO 2 Entrega o seu relatório sobre a situação dos trabalhadores rurais na Alemanha Oriental 893 Casamento com Marianne Schnitger 894 Nomeado professor de Economia Política na Universidade de Friburgo As tendências da evolução da situação dos trabalhadores rurais da Alemanha Oriental 5 Viagem à Escócia e à Irlanda Inicia seu curso em Friburgo com uma conferência sobre O Estado Nacional e a política econômica 6 Aceita uma cadeira na Universidade de Heidelberg onde Knies acaba de se apo sentar 7 Doença nervosa séria que o obriga a interromper seus trabalhos durante quatro anos Viagem à Itália à Córsega e à Suíça para tentar apaziguar sua ansiedade 9 M Weber deixa voluntariamente de pertencer à Liga Pangermanista 2 Retoma seu curso na Universidade de Heidelberg mas não poderá mais ter uma vida universitária tão ativa como antes 3 Funda com Wemer Sombart os Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik 904 Viagem aos Estados Unidos da América para participar do Congresso de Ciên cias Sociais em SaintLouis O Novo Mundo lhe causa profunda impressão Em SaintLouis faz uma conferência sobre o capitalismo e a sociedade rural na Ale manha Publicação da primeira parte de A ética protestante e o espírito do capitalismo e um ensaio sobre A objetividade do conhecimento nas ciências e políticas sociais 5 A revolução russa levao a se interessar pelos problemas do Império dos czares e aprender o russo para ler os documentos originais Publicação da segunda parte de A ética protestante e o espírito do capitalismo 906 A situação da democracia burguesa na Rússia A evolução da Rússia para um constitucionalismo de fachada Estudos críticos para servir à lógica das ciências da cultura As seitas protestantes e o espírito do capitalismo 907 Recebe uma herança o que lhe permite aposentarse e se dedicar à ciência 8 Interessase pela psicossociologia industrial e publica dois estudos sobre o tema Em sua casa em Heidelberg recebe a maioria dos cientistas alemães da época Windelband Jellinek Troeltsch Naumann Sombart Simmel Michels Tõnnies Orienta jovens estudantes universitários como Georg Lukács e Karl Lõwenstein Organiza a Associação Alemã de Sociologia e lança uma coleção de obras de ciên cias sociais 09 As relações de produção na agricultura do mundo antigo Começa a redigir Economia e sociedade 10 No congresso da Associação Alemã de Sociologia toma posição contra o racismo 12 Deixa o Comitê Diretor da Associação Alemã de Sociologia devido a divergên cia sobre a questão da neutralidade axiológica J13 Ensaio sobre algumas categorias da sociologia compreensiva A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 511 1914 Quando estoura a guerra Max Weber pede para ser reintegrado ao serviço mili tar Até o fim de 1915 dirige um grupo de hospitais implantados na região de Hei delberg 1915 Publicação de A ética econômica das religiões universais Introdução e Con fucionismo e Taoísmo 19161917 Várias missões oficiosas em Bruxelas Viena e Budapeste multiplica os es forços para convencer as autoridades alemãs a evitar uma ampliação da guerra mas ao mesmo tempo afirma a vocação da Alemanha para a política mundial e vê na Rússia a principal ameaça Publicação em 1916 dos capítulos da Sociolo gia da religião relativos ao Induísmo e Budismo e em 1917 O Judaísmo An tigo 1918 Em abril curso de verão na Universidade de Viena quando apresenta sua socio logia da política e da religião como uma Crítica positiva da concepção mate rialista da história No inverno pronuncia duas conferências na Universidade de Munique A pro fissão e a vocação do cientista A profissão e a vocação do homem político Após a capitulação tomase consultor da delegação alemã em Versalhes Publica o ensaio sobre o Sentido da neutralidade axiológica nas ciências so ciológicas e econômicas 1919 Aceita uma cátedra na Universidade de Munique onde sucede a Brentano O curso que dá no período 19191920 será publicado em 1924 com o mesmo títu lo História econômica geral Max Weber que apoiou sem entusiasmo a República e que vê em Munique a ditadura revolucionária de Kurt Eisner participa da comissão incumbida de redi gir a Constituição de Weimar Continua a redigir Economia e sociedade que começa a ser impresso no outono desse ano Mas o livro ficará inacabado 1920 Em 14 de junho morre Max Weber em Munique 1922 Publicação de Economia e sociedade por Marianne Weber Outras edições au mentadas aparecerão em 1925 e 1956 Notas 1 Paris Plon 1965 Esta coletânea compreende a tradução para o francês dos qua tro ensaios epistemológicos mais importantes de Max Weber A objetividade do co nhecimento nas ciências e políticas sociais que é de 1904 Estudos críticos para servir à lógica das ciências da cultura de 1906 o Ensaio sobre alguns conceitos da so ciologia compreensiva de 1913 e o Ensaio sobre o sentido da neutralidade axiológi ca nas ciências sociológicas e econômicas de 19171918 A tradução francesa da célebre conferência pronunciada em Munique em 1919 com o título Wissenschaft ais Beruf e cujo texto original foi publicado na Alemanha na coletânea Gesammelte Aufsãtze zur Wissenschaftslehre está incluída no livro Le savant et le politique Paris Plon 1959 A coletânea alemã inclui ainda outros quatro ensaios de maior importância que nunca foram traduzidos para outra língua Roscher und Knies und die logischen Probleme der historischen Nationalõkonomie R Stammlers Uberwindung der materialistischen Geschichtsauffassung Die Grenznutzlehre und das psychophysis che Grundgesetz Energetische Kulturtheorien 2 São numerosos os estudos de Max Weber sobre a antiguidade Não podemos esquecer que um dos seus primeiros professores foi o grande historiador Mommsen e que deve sua formação às faculdades de Direito onde na época na Alemanha como na França o Direito Romano tinha um lugar preponderante Além do livro intitulado Agrarverhãltnisse im Altertum cuja edição definitiva é de 1909 Weber escreveu um estudo sobre As causas sociais da decadência da civilização antiga 1896 e sua tese era sobre A história agrária de Roma 1891 Nenhum desses estudos foi traduzido em francês A história econômica geral foi o curso dado em Munique em 1919 um pouco antes de morrer Esse curso foi publicado em 1923 Existe também uma tradução ingle sa Os trabalhos de Weber sobre os problemas políticos econômicos e sociais da Alema nha e da Europa contemporânea são muito variados e estão dispersos Encontramse em três coletâneas Gesammelte politische Schriften Gesammelte Aufsãtze zur Sozialund Wirtschaftsgeschichte Gesammelte Aufsãtze zur Soziologie und Sozialpolitik O estu do sobre as tendências na evolução da situação dos trabalhos rurais na Alemanha Orien tal foi publicado na segunda coletânea Foi realizado por Weber em 18901892 a partir A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 513 de uma pesquisa nessa região que lhe havia sido solicitada pela Verein für Sozialpolitik Weber mostrava nesse estudo que os grandes proprietários de terra do Leste do Elba para reduzir seus custos salariais não hesitavam em importar mãodeobra de origem eslava russa e polonesa para suas propriedades forçando assim os trabalhadores de raça e cultura germânica a emigrar para as cidades industriais do Oeste Denunciava esta ati tude capitalista dos junkers que desgermanizavam assim o Leste alemão 3 Os estudos de sociologia das religiões foram reunidos nos Gesammelte Aufsãtze zur Religionssoziologie que compreendem três tomos O tomo I contém os dois estudos sobre o protestantismo e o espírito do capitalismo e a primeira parte de A ética econô mica das religiões universais Introdução Confucionismo e Taoísmo e Zwischenbe trachtung O tomo II compreende a segunda parte de A ética econômica das religiões Hinduísmo e Budismo O tomo III contém a terceira parte O Judaísmo Antigo Na época da sua morte Max Weber projetava acrescentar um IV tomo dedicado ao Islã Para ter uma visão completa da sociologia religiosa é necessário acrescentar aos textos dessa coletânea os capítulos de Wirtschaft und Gesellschaft relativos à religião principalmen te o capítulo V da segunda parte Typen religiõser Vergemeinschaftung 4 Ver a Bibliografia 5 Chamamos comportamento racional por finalidade aquele que se orienta ex clusivamente pelos meios dos quais fazemos uma representação subjetivamente como sendo adequados aos fins percebidos subjetivamente de maneira unívoca Essais sur la théorie de la Science Paris Plon 1965 p 328 6 Estas duas conferências pronunciadas em Munique em 1919 foram traduzidas para o francês e publicadas sob o título Le savant et le politique Paris Plon 1959 O texto alemão de Politik ais Beruf faz parte dos Gesammelte Politische Schriften 7 O método de Tucídides não se encontra na alta erudição dos historiadores chi neses Não há dúvida de que Maquiavel teve precursores na índia mas falta a todos os escritores políticos asiáticos um método sistemático comparável ao de Aristóteles e sobretudo faltamlhes conceitos racionais As formas de pensamento estritamente siste máticas indispensáveis a toda doutrina jurídica racional próprias ao direito romano e ao seu herdeiro o direito ocidental não existem em nenhum outro lugar E isso a despeito de ter havido verdadeiros inícios na índia com a escola Mimâmsâ a despeito de vastas codificações como as da Ásia anterior e a despeito de todos os livros de leis indianos ou outros Além disso só o Ocidente possui um edifício como o direito canônico Uéthique protestante et Vesprit du capitalisme Paris Plon 1964 Introdução p 12 8 É e continua sendo verdade que na esfera das ciências sociais uma demonstra ção científica metodologicamente correta que pretende ter atingido seu fim também deve poder ser reconhecida como exata por um chinês ou mais precisamente deve ter este objetivo embora talvez não seja possível realizálo plenamente devido a uma insu ficiência de ordem material De qualquer forma é verdade que a análise lógica de um ideal destinada a desvendar seu conteúdo e seus axiomas últimos bem como a explica ção das conseqüências que dele decorrem lógica e praticamente quando se considera que nosso esforço logrou êxito devem ser válidas também para um chinês embora este possa nada compreender dos nossos imperativos éticos e até mesmo rejeitar o que seguramente acontecerá muitas vezes o próprio ideal e as avaliações concretas que 514 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO dele decorrem sem contestar em absolutamente nada o valor científico da análise teó rica Essais sur la théorie de la Science p 131 9 Existem ciências que estão destinadas a permanecer sempre jovens E o caso de todas as disciplinas históricas e todas aquelas para as quais o fluxo eternamente em movimento da civilização traz sem cessar novos problemas Por essência sua tarefa se defronta com a fragilidade de todas as construções idealtípicas mas são inevitavelmen te obrigadas a elaborar continuamente outras Nenhum desses sistemas de pensamen to que não podemos desprezar se quisermos apreender os elementos cada vez mais sig nificativos da realidade pode esgotar sua riqueza infinita Não são nada mais do que tentativas para pôr ordem no caos dos fatos que fizemos entrar no círculo de nosso inte resse sobre a base a cada vez do estado de nosso conhecimento e das estruturas con ceituais que estão cada vez à nossa disposição O aparelho intelectual que o passado desenvolveu por uma elaboração reflexiva o que quer dizer na verdade por uma trans formação reflexiva da realidade imediata e por sua integração nos conceitos que cor respondiam ao estado do conhecimento e à orientação da curiosidade está perpetua mente em processo com aquilo que nós podemos e queremos adquirir em novos conhe cimentos da realidade O progresso de trabalho nas ciências da cultura se realiza por esse debate O resultado é um processo continuo de transformação de conceitos por meio dos quais procuramos perceber a realidade A história das ciências da vida social em conseqüência é e permanece uma contínua alternância entre a tentativa de ordenar teoricamente os fatos por uma construção de conceitos decompondo os quadros de pensamento assim obtidos graças a uma ampliação e um deslocamento do horizonte da ciência e a construção de novos conceitos sobre a base assim modificada Não se quer significar com isso de modo algum que seria errado construir em geral sistemas de conceitos porque toda ciência mesmo a simples história descritiva trabalha com a pro visão de conceitos de sua época Ao contrário o que se mostra é o fato de que nas ciên cias da cultura humana a construção de conceitos depende do modo de colocar os pro blemas que por sua vez varia com o próprio conteúdo da civilização A relação concei toconcebido traz para as ciências da cultura a fragilidade de todas as sínteses O valor das grandes tentativas de construções conceituais em nossa ciência consistia geralmen te em mostrarem os limites da significação do ponto de vista que lhes servia de fun damento Os maiores progressos no campo das ciências sociais estão ligados positivamen te ao fato de que os problemas práticos da civilização se deslocam e que eles tomam a forma de uma crítica da construção dos conceitos Essais sur la théorie de la Science pp 202204 10 Allgemeine Psychopathologie traduzido para o francês por Kastler e Mun dousse sob o título Psychopatologie générale Paris 1923 3 edição Esta tradução foi revista em parte por JeanPaul Sartre e PaulYves Nizam 11 Rickert 18651936 foi professor de filosofia em Heidelberg Suas obras prin cipais são Die Grenzen der naturwissenschaftlichen Begriffsbildung 18961902 Die Probleme der Geschichtsphilosophie 1904 Kulturwissenschaft und Naturwissenschaft 1899 Para uma análise crítica da sua obra vide Raymond Aron La philosophie criti que de Vhistoire Essai sur une théorie allemande de l histoire Paris Vrin 3 edição 1964 pp 113157 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 515 12 Um tipo é obtido acentuandose unilateralmente um ou vários pontos de vista e encadeando uma infinidade de fenômenos dados isoladamente difusos e discretos que são encontrados ora em grande ora em pequeno número e que não são encontra dos em certos lugares que são ordenados segundo os pontos de vista anteriores esco lhidos unilateralmente para formar um quadro de pensamento homogêneo einheitlich Um quadro como esse nunca será encontrado empiricamente em lugar algum na sua pure za conceituai é uma utopia O que compete ao trabalho histórico é determinar em cada caso particular o quanto a realidade se aproxima ou se afasta desse quadro ideal em que medida é preciso por exemplo atribuir no sentido conceituai a qualidade de eco nomia urbana às condições econômicas de determinada cidade Aplicado com critério este conceito dá a ajuda específica que se espera dele em benefício da pesquisa e da cla reza Essais sur la théorie de la Science p 181 O tipo ideal é um quadro de pensamento não é a realidade histórica e sobretu do não é a realidade autêntica e serve ainda menos como esquema no qual se pudes se ordenar a realidade a título de exemplar Não significa outra coisa que um conceito limite grenzbegriff puramente ideal com o qual se mede messeri a realidade para tomar claro o conteúdo empírico de alguns de seus elementos importantes e com o qual ela é comparada Esses conceitos são imagens Gebilde nas quais nós construímos rela ções utilizando a categoria de possibilidade objetiva que nossa imaginação formada e orientada de acordo com a realidade julga adequadas Nessa função o tipo ideal é em particular uma tentativa para apreender as indivi dualidades históricas ou seus diferentes elementos em conceitos genéticos Tomemos por exemplo as noções de Igreja e de seita Elas se deixam analisar por meio da pura clas sificação em um complexo de características nas quais não apenas a fronteira entre os dois conceitos mas também seu conteúdo permanecerão sempre indistintos Pelo contrá rio se me proponho a apreender geneticamente o conceito de seita isto é se eu o con cebo em relação a certas significações importantes para a cultura que o espírito de seita manifestou na civilização moderna então certas características precisas de um e de outro desses dois conceitos se tomam essenciais porque comportam uma relação causai ade quada em relação à sua ação significativa Ibid pp 185186 13 A construção dos tipos ideais em relação aos valores é em abstrato distinta dos juízos de valor No trabalho concreto do cientista pçrém é freqüente o deslize Todas as exposições que têm como tema a essência do cristianismo são tipos ideais que quando reivindicam a qualidade de uma exposição histórica do dado empí rico têm apenas necessária e constantemente uma validade relativa e problemática por outro lado têm um grande valor heurístico para a pesquisa e um grande valor sistemático para a exposição se forem utilizados simplesmente como meios conceituais para com parar e medir a realidade Nessa função eles são mesmo indispensáveis Mas existe ainda um outro elemento que regra geral está ligado a esse tipo de apresentações idealtípicas que complicam ainda mais a sua significação Em geral elas se propõem a ser e também podem sêlo inconscientemente tipos ideais não apenas no sentido lógico mas também no sentido prático isto é tipos exemplares vorbildli che Typeri que no nosso exemplo contêm aquilo que o cristianismo deve ter sein soll segundo o ponto de vista do cientista isto é aquilo que segundo ele é essencial 516 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO nessa religião pelo fato de ela representar um valor permanente Sendo assim essas des crições contêm então conscientemente ou o que é mais freqüente inconscientemen te os ideais que o cientista associa com o cristianismo quando o avalia Wertend isto é as tarefas e os fins segundo os quais o sábio orienta sua própria idéia do cristianis mo Naturalmente esses ideais podem ser diferentes e sem dúvida sempre o serão dos valores aos quais os contemporâneos da época estudada por exemplo os primeiros cris tãos associavam por seu lado o cristianismo Nesse caso as idéias evidentemente não são mais auxiliares puramente lógicos nem conceitos com os quais a realidade é medi da por comparação mas sim ideais a partir dos quais se julga a realidade avaliandoa Não se trata mais então do procedimento puramente teórico da relação do empírico a seus valores Biziehung auf Werté mas propriamente juízos de valor Werturteile que são acolhidos no conceito de cristianismo Como o tipo ideal reivindica nesse caso uma validade empírica ele adentra a área da interpretação avaliativa do cristianismo aban donamos o domínio da ciência e encontramonos em presença de uma profissão de fé pessoal e não mais de uma construção conceituai propriamente idealtípica Por mais marcante que seja esta distinção quanto aos princípios constatamos que a confusão entre essas duas significações fundamentalmente diferentes da noção de idéia invade com muita freqüência a condução do trabalho histórico Ela espreita principalmente o historiador logo que ele se põe a expor sua própria interpretação de uma personalidade ou de uma época Contrariamente aos padrões éticos estabelecidos que Schlõsser utilizou dentro do espírito do racionalismo o historiador moderno de es pírito relativista que se propõe por um lado a compreender em si mesma a época sobre a qual trabalha e que por outro lado insiste em fazer um julgamento sente a neces sidade de tomar na própria matéria do seu estudo os padrões de seus julgamentos isto quer dizer que ele deixa surgir a idéia no sentido de ideal da idéia no sentido de tipo ideal Além disso a atração estética desse procedimento levao sem cessar a apa gar a linha que separa as duas ordens daí esta meia medida que por um lado não pode privarse de fazer juízos de valor e que por outro lado faz de tudo para não assu mir a responsabilidade desses julgamentos A isso é necessário opor o dever elementar do controle científico de si mesmo que é também o único meio de nos preservar das con fusões convidandonos a fazer uma distinção estrita entre a relação que compara a reali dade com tipos ideais no sentido lógico e a apreciação valorizante dessa realidade com base em ideais O tipo ideal como nós o entendemos é repito algo totalmente indepen dente da apreciação avaliativa não tem nada em comum com uma outra perfeição sua relação é puramente lógica Existem tipos ideais de bordéis assim como de religiões no que se refere aos primeiros existem aqueles que do ponto de vista da ética policial con temporânea poderiam aparecer como tecnicamente oportunos ao contrário de outros que não o seriam Essais sur la théorie de la science pp 191194 14 A teoria abstrata da economia nos oferece um exemplo desses tipos de sínte ses que designamos habitualmente por idéias ideen dos fenômenos históricos Com efeito ela nos apresenta um quadro ideal Idealbild dos acontecimentos que ocorrem no mercado de bens no caso de uma sociedade organizada segundo o princípio da tro ca da livre concorrência e de uma atividade estritamente racional Esse quadro de pen samento Gedankenbild reúne relações e acontecimentos determinados da vida histó rica num cosmos não contraditório de relações pensadas Por seu conteúdo essa cons A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 517 tração tem o caráter de uma utopia que se obtém acentuando pelo pensamento gedank liche Steingerung determinados elementos da realidade Sua relação com os fatos que são dados empiricamente consiste simplesmente no seguinte ali onde se constata ou se suspeita que relações do tipo das que são apresentadas abstratamente na construção ci tada anteriormente no caso os acontecimentos que dependem do mercado tive ram a um certo grau uma ação sobre a realidade podemos representar pragmaticamen te de modo intuitivo e compreensível a natureza particular dessas relações segundo um tipo ideal Idealtypus Esta possibilidade pode ser preciosa até mesmo indispensável para a pesquisa assim como para a exposição dos fatos Quanto à pesquisa o conceito idealtípico se propõe a formar o julgamento de imputação não é em si mesmo uma hi pótese mas procura guiar a elaboração das hipóteses Por outro lado não é uma expo sição do real mas se propõe a dotar a exposição de meios de expressão unívocos É portanto a idéia da organização moderna historicamente dada da sociedade numa eco nomia de troca idéia esta que se deixa desenvolver por nós exatamente segundo os mesmos princípios lógicos que serviram por exemplo para construir a da economia urbana na Idade Média sob a forma de um conceito genético genetischer Begriff Neste último caso o conceito de economia urbana não é formado estabelecendo uma média dos princípios econômicos que existiram efetivamente na totalidade das cidades examinadas mas sim justamente construindo um tipo ideal Essais sur la théorie de la Science pp 178181 15 O destino de uma época de cultura que provou do fruto da árvore da sabedo ria é saber que não podemos ler o sentido do devenir mundial no resultado por mais per feito que seja da exploração que possamos fazer desse devenir mas que nós mesmos é que temos de ser capazes de criálo que as concepções do mundo não podem ser nun ca o produto de um progresso do saber empírico e que em conseqüência os ideais pro fundos que atuam mais fortemente sobre nós só se atualizam na luta contra ideais que são tão sagrados para os outros quanto os nossos o são para nós Essais sur la théorie de la Science p 130 16 Max Weber retomou o problema da definição do capitalismo no fim da sua vi da no curso de Munique sobre a história econômica geral Encontramonos no capitalismo naquele ponto em que numa economia de produ ção as necessidades de um grupo humano são cobertas por meio da empresa pouco im portando a natureza dessas necessidades a serem satisfeitas e a empresa capitalista ra cional é de modo particular uma empresa que comporta um cálculo de capitais isto é uma empresa de produção que calcula e controla a rentabilidade pelo cálculo graças à contabilidade moderna e à realização de um balanço exigido pela primeira vez em 1608 pelo teórico holandês Simon Stevin É claro que as medidas em que uma unidade eco nômica pode se orientar de modo capitalista podem ser radicalmente diferentes Alguns aspectos do suprimento das necessidades podem ser organizados segundo o principio capitalista outros de um modo não capitalista na base do artesanato ou da economia de subsistência Wirtschaftsgeschichte citado por Julien Freund in Sociologie de Max Weber p 150 17 Max Weber definiu a burocracia no Capítulo 6 da terceira parte de Wirtschaft und Gesellschaft Julien Freund resumindo essa passagem e algumas outras expõe as sim o pensamento weberiano 518 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO A burocracia é o exemplo mais típico da dominação legal Baseiase nos seguin tes princípios 1 A existência de serviços definidos portanto de competências rigoro samente determinadas pelas leis ou regulamentos de modo que as funções são nitida mente divididas e distribuídas assim como os poderes de decisão necessários ao cum primento das tarefas correspondentes 2 A proteção dos funcionários no exercício de suas funções em virtude de um estatuto inamovibilidade dos juizes por exemplo Geralmente o indivíduo se toma funcionário para toda a vida de modo que ao lado de um outro trabalho o serviço do Estado se toma uma profissão principal e não uma ocupa ção secundária 3 A hierarquia das funções o que significa que o sistema administra tivo é fortemente estruturado em serviços subalternos e cargos de direção com possi bilidade de se apelar de uma instância para a instância superior esta estrutura é em geral monocrática e nãocolegiada e mostra uma tendência para a maior centralização 4 O recmtamento se faz por concurso exames ou títulos o que exige uma formação especializada por parte dos candidatos Em geral o funcionário é nomeado raramente eleito com base na seleção livre e no compromisso contratual 5 A remuneração regu lar do funcionário sob a forma de um salário fixo e de uma aposentadoria quando deixa o serviço do Estado As remunerações são hierarquizadas com base na hierarquia inter na da administração e da importância das responsabilidades 6 O direito da autorida de de controlar o trabalho de seus subordinados eventualmente por meio da instituição de uma comissão de disciplina 7 A possibilidade de os funcionários progredirem com base em critérios objetivos e não segundo a descrição da autoridade 8 A separação completa entre a função e o homem que a ocupa porque nenhum funcionário poderia ser proprietário da sua tarefa ou dos meios da administração Essa descrição só tem valor evidentemente para configurar o estado moderno porque o fenômeno burocrático é mais antigo uma vez que já o podemos encontrar no Egito antigo na época do principado romano em particular depois do reino de Dio cleciano na Igreja romana a partir do séc XIII na China desde a época de Shihoang ti A burocracia modema se desenvolveu sob a proteção do absolutismo real no início da era modema As antigas burocracias tinham um caráter essencialmente patrimonial isto é os funcionários não gozavam das garantias estatutárias atuais nem da remunera ção em espécie A burocracia que conhecemos desenvolveuse com a economia finan ceira modema mas não é possível no entanto estabelecer uma relação unilateral de causalidade porque outros fatores entram em consideração o racionalismo do direito a importância do fenômeno de massas a centralização crescente devida às facilidades de comunicação e às concentrações de empresas a ampliação da intervenção estatal nos mais diversos campos da atividade humana e sobretudo o desenvolvimento da racio nalização técnica Sociologie de Max Weber pp 205206 18 A ética protestante e o espírito do capitalismo foi e continua a ser o livro mais conhecido de Max Weber Foi amplamente comentado e suscitou o aparecimento de toda uma literatura em razão da importância dos problemas históricos evocados e do seu caráter de refutação da versão corrente do materialismo histórico Citemos entre as resenhas recentes a controvérsia entre Herbert Lüthy e Julien Freund Preuves julhose tembro de 1964 o artigo bibliográfico de Jacques Ellul Boletim do SEDEIS 20 de dezembro de 1964 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO 519 Citemos entre a literatura sobre o protestantismo e o capitalismo A Bieler La pen sée économique et sociale de Calvin Genebra Georg 1963 R H Tawney La religion et Vessor du capitalisme Paris Rivière 1951 W Sombart Le bourgeois Paris Payot 1966 H Sée Les origines du capitalisme moderne Paris Armand Colin 1926 H Sée Dans quelle mesure puritains et juifs ontils contribué au progrès du capitalisme moderne Revue historique 1927 M Halbwachs Les origines puritaines du capitalisme moder ne Revue d histoire et de philosophie religieuses marçoabril de 1925 H Hauser Les débuts du capitalisme Paris 1927 B Groethuysen Les origines de Vesprit bourgeois en France Paris Gallimard 1927 H Lüthy La banque protestante en France de la révo cation de VÊdit de Nantes à la Révolution Paris SEVPEN 19601962 2 vols 19 Algumas vezes a teoria da dominação carismática gerou malentendidos por que se procurou ver nela a posteriori uma prefiguração do regime nazista Alguns ten taram até mesmo fazer de Weber um precursor de Hitler embôra ele apenas se limi tasse à análise sociológica e idealtípica de uma forma de dominação que sempre exis tiu Houve regimes carismáticos antes de Hitler e houve outros depois como por exem plo o de Fidel Castro Mesmo supondo que a análise weberianapossa ter ajudado os nazistas a adquirir uma consciência mais nítida de sua posição ainda assim a acusação precedente não é menos ridícula porque eqüivale a responsabilizar o médico pela doen ça que ele diagnostica Se fosse assim a sociologia política deveria transformarse em questão de bons sentimentos renunciar ao exame objetivo de certos fenômenos e por fim renegarse como ciência para fazer condenações que agradariam aos que reduzem o pensamento às puras avaliações ideológicas Uma atitude assim seria contrária à dis tinção que Max Weber sempre fez entre constatação empírica e juízo de valor ao seu princípio da neutralidade axiológica em sociologia e ao dever que ele exige do cientista de nunca fugir diante do exame de realidades que lhe pareçam pessoalmente desagradá veis Além disso os censores de Max Weber negligenciaram o essencial de sua concep ção do tipo carismático Em vez de procurar aí a teoria de um movimento histórico par ticular que ele não conheceu ganhariam mais lendo as páginas consagradas a esse tipo de dominação elas contêm de modo explícito seu pensamento sobre o fenômeno revo lucionário porque ao redigilas ele pensava sobretudo em Lenin ou em Kurt Eisner este último citado explicitamente Julien Freund Sociologie de Max Weber pp 211212 20 Sobre Max Weber e a política alemã vide J P Mayer Max Weber in German Politics Londres Faber 1956 W Mommsen Max Weber und die Deutsche Politik Tü bingen Mohr 1959 21 Marianne Weber relata a conversa que seu marido teve em 1919 com Ludendorff que ele considerava um dos responsáveis pelo desastre alemão Depois de um diálogo de surdos em que Max Weber procurou convencêlo a se sacrificar apresentandose aos Alia dos como prisioneiro de guerra a conversa se orienta para a situação política da Alemanha Ludendorff acusa Max Weber e a Frankfurter Zeitung da qual Max Weber era um dos principais editorialistas de se constituírem advogados da democracia Weber E você pensa que eu considero essa porcaria que temos atualmente como democracia Ludendorff Se você fala assim talvez nós possamos chegar a um acordo W Mas a porcaria de antes também não era monarquia 520 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO L O que você entende por democracia W Na democracia o povo escolhe um chefe Führer em quem deposita a sua confiança Depois aquele que foi escolhido diz Agora calai a boca e obedecei O po vo e os partidos não têm mais direito de colocar seu grão de sal L Uma tal democracia me agradaria W Mais tarde o povo pode julgar Se o chefe cometeu erros que se enforque Marianne Weber Max Weber ein Lebensbild Tübingen J C B Mohr 1926 pp 664665 22 Max Weber und die Deutsche Politik Tübingen 1959 23 Archives européennes de sociologie t V 1964 2 pp 190238 24 As citações são de uma conferência pronunciada em Viena em 13 de junho de 1918 diante de oficiais da monarquia austrohúngara e reproduzidas em Gesammelte Aufsãtze zur Soziologie und Sozialpolitik e em Max Weber Werk und Person por E Baumgarten Tübingen 1964 pp 243270 Bibliografia OBRAS DE MAX WEBER Para as obras de Max Weber o leitor poderá consultar os apêndices sobre os traba lhos do autor publicados anexos às traduções francesas já editadas pela Livraria Plon Essas bibliografias compreendem não apenas as obras em alemão a maior parte pu blicada por Mohr em Tübingen mas também as referências às traduções inglesas es panholas e italianas Já estão publicadas em francês Paris Plon Essais sur la théorie de la Science 1965 trad J Freund trad dos ensaios mais impor tantes da coletânea Gesammelte Aufsãtze Wissenschaftslehre Le savant et le politique 1959 trad J Freund trad de Politik ais Beruf e Wissenschaft ais Beruf Léthique protestante et Vesprit du capitalisme 1964 trad J Chavy trad de Die pro testantische Ethik und der Geist des Kapitalismus e de Die protestantischen Sekten und der Geist des Kapitalismus Em 1967 tinha sido anunciada uma tradução integral de Wirtschaft und Gesellschaft A 4 edição alemã foi ampliada e estabelecida por J Winckelmann Tübingen Mohr 1956 há uma edição italiana integral Economia e società Milão Edizioni di Com munità 1962 e ainda traduções inglesas infelizmente incompletas e dispersas From Max Weber Essays in Sociology Nova York Oxford University Press A Galaxy Book 1958 trad Gerth e Mills Max Weber on Law in Economy and Society Cambridge Mass Harvard University Press 1954 trad E A Shils e M Rheinstein The City Glencoe The Free Press 1958 trad D Martindale e G Neuwirth The Sociology of Religion Boston Beacon Press 1963 trad E Fischoff The Theory of Social and Economic Organisation Nova York Oxford University Press 1947 trad A M Henderson e T Parsons 522 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO OBRAS SOBRE MAX WEBER Aron Raymond Introdução à tradução de Politik ais Beruf e de Wissenschaft ais Beruf Max Weber Le savant et lepolitique Paris Plon 1959 pp 957 Aron Raymond La philosophie critique de l histoire Essai sur une théorie allemande de Vhistoire Paris Vrin 3 ed 1964 Somente o cap IV pp 219273 Les limites de 1objectivité historique et la philosophie du choix é sobre a obra de Max Weber Aron Raymond La sociologie allemande contemporaine Paris PUF 2 ed 1950 O capítulo III pp 97153 é uma exposição da obra de Max Weber Essas duas obras contêm uma grande bibliografia dos trabalhos alemães consagrados a Max Weber anteriores a 1938 Baumgarten Eduard Max Weber Werk und Person Tübingen J C B Mohr 1964 Bendix R Max Weber an Intellectual Portrait Nova York Anchor Books Doubleday Co 1962 Fleischmann E De Weber à Nietzsche archives européennes de sociologie t V 1964 n 2 pp 190238 Freund J Introdução à tradução de Wissenschaftslehere Max Weber Essais sur la théo rie de la science Paris Plon 1965 pp 9116 Freund J Sociologie de Max Weber Paris PUF 1966 bibliografia Gerth H H e Gerth H I Bibliography on Max Weber Social Research vol XVI 1949 Gerth H H e Mills C Wright Introdução aos textos extraídos da obra de Max Weber publicados com o título de From Max Weber Essays in Sociology Nova York Oxford University Press A Galaxy Book 1958 pp 374 Halbwachs M Économistes et historiens Max Weber un homme une oeuvre Annales dhistoire économique et sociale n 1 jan 1929 Hughes H Stuart Consciousness and Society Nova York Alfred A Knopf 2aed 1961 Max Weber und die Soziologie heute Rapports et débats du XVe Congrès de la Société allemande de sociologie Tübingen J C B Mohr 1965 A Universidade de Munique publicou uma obra coletiva Max Weber por ocasião do centenário do seu nascimento Berlim Duncker und Humblot 1966 O livro foi publicado por Karl Engisch Bernhard Pfister Johannes Winckelmann Mayr J P Max Weber in German Politics Londres Faber T ed 1956 MerleauPonty M Les aventures de la dialectique Paris Gallimard 1955 pp 1542 Mommsen W J Max Weber und die deutsche Politik 18901920 Tübingen Mohr 1959 Parsons T The Structure of Social Action Glencoe The Free Press 2 ed 1949 Revue internationale des sciences sociales publicada pela UNESCO vol XVII 1965 n 1 quatro artigos sobre a atualidade de Max Weber Bendix R Max Weber et la sociologie contemporaine Mommsen W La sociologie politique de Max Weber et sa philosophie de lhistoire universelle Parsons T Évaluation et objectivité dans le domaine des sciences sociales une interprétation des travaux de Max Weber Rossi P Objectivité scientifique et présuppositions axiologiques Strauss L Droit naturel et histoire trad Paris Plon 1954 A GERAÇÃO DA PASSAGEM DO SÉCULO Weber Marianne Max Weber ein Lebensbild Tübingen J C B Mohr 1926 bib grafia da obra de Max Weber Weinreich M Max Weber Vhomme et le savant Paris Les Presses Modemes 193 Winckelmann Johannes Max Weber Soziologie weltgeschitliche Analysen Poi Krõner Taschenausgabe n 229 OBRAS EM PORTUGUÊS Ciência e política duas vocações prefácio de Manoel T Berlinck tradução de L nidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota 2 ed São Paulo Cultrix 1972 Ensaios de sociologia org e introd de H H Gerth e C Wright Mills tradução Waltensir Dutra revisão técnica do prof F H Cardoso Rio de Janeiro Zahar 19 Ensaios de sociologia e outros escritos seleção de Maurício Tragtenberg tradução M Tragtenberg e outros São Paulo Abril Cultural 1974 Os Pensadores 37 Ética protestante e o espírito do capitalismo tradução de M Irene de Q F Szmrecsá e Tamás J M K Szmrecsányi São Paulo Pioneira 1967 História geral da economia tradução de Calógera A Pajuaba São Paulo Mestre J 1968 Freund Julien Sociologia de Max Weber tradução de Luís Cláudio de Castro e Coí Rio de Janeiro Forense 1970 Gerth Hans Heinrich Ensaios de sociologia org e introd de H H Gerth e C Wrij Mills tradução de Waltensir Dutra revisão técnica de F H Cardoso Rio de Janei Zahar 1964 Raymond Aron As Etapas do Pensamento Sociológico 316 A769s Conclusão Émile Durkheim Vilfredo Pareto e Max Weber pertencem a três nações di ferentes e ao mesmo período histórico Sua formação intelectual não foi a mes ma e contudo os três se esforçaram por promover a mesma disciplina Estas constatações nos levam a propor questões que permitem traçar um paralelismo do seu pensamento e da sua obra Quais foram os elementos pessoais e nacionais que marcaram cada uma destas três doutrinas sociológicas Qual foi o contexto histórico em que se situaram estes três autores e que interpretações análogas ou distintas eles deram da conjuntura em que viveram Qual foi a con tribuição da sua geração ao progresso da sociologia O tom destes três sociólogos é diferente Durkheim é dogmático Pareto irô nico Max Weber patético Durkheim demonstra uma verdade que pretende ser científica e moral Pareto elabora um sistema científico que concebe como par cial e provisório e que a despeito da sua intenção de objetividade ironiza as ilu sões dos humanitaristas as esperanças dos revolucionários e desmascara os ines crupulosos e os ingênuos os violentos e os plutocratas Max Weber se esforça por compreender o sentido de todas as existências individuais e coletivas im postas ou escolhidas sem dissimular o peso das necessidades sociais ou a obri gação inelutável de tomar decisões que nunca poderão ser demonstradas cien tificamente O tom de cada um destes autores é explicado pelo seu temperamen to pessoal e pelas condições nacionais em que viveram Durkheim foi um livredocente de filosofia francês e o estilo dos seus livros foi influenciado pelo menos superficialmente pelo das dissertações a que foi obrigado a fim de vencer as barreiras sucessivas que a Universidade francesa an tepõe às ambições dos intelectuais Este professor universitário da III Repúbli ca acreditava na ciência e no seu valor ético com uma paixão de profeta É ou pretende ser cientista e reformador social observador dos fatos e criador de um sistema moral Esta combinação hoje pode nos parecer estranha mas não pare 526 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO cia assim no princípio do século numa época em que a fé na ciência era quase uma religião A expressão mais forte desta combinação de fé e de ciência é o conceito de sociedade Na sociologia de Durkheim é o princípio explicativo a fonte dos valores superiores e o objeto de uma forma de adoração Para Durkheim francês de origem judia professor universitário à procura de resposta para os problemas tradicionais da França isto é para os conflitos da Igreja e do Estado ou da moral religiosa e da moral laica a sociologia era o fundamento da ética Explicitada pela ciência sociológica a sociedade propõe como valores supremos da idade moderna o respeito pela pessoa humana e a autonomia do julgamento individual Esta tentativa de encontrar na ciência nova o fundamento de uma mo ral laica sociológica e racionalista é característica de um momento histórico Passando de Durkheim a Pareto abandonamos o normalien livredocen te em filosofia para encontrar um patrício italiano sem ilusões engenheiro hostil à metafísica e um observador sem preconceitos O estilo não é mais o do professor de ética mas o do aristocrata refinado e culto que não deixa de ter al guma simpatia pelos bárbaros Este erudito está longe de ser um cientista puro Observa com ironia o trabalho de professores como Durkheim que procuram fundamentar uma ética na ciência Se soubéssemos o que é a ciência dizia ele saberíamos que não se pode deduzir dela uma moral Se soubéssemos o que são os homens saberíamos também que eles não têm nenhuma necessidade de descobrir razões científicas para aderir a uma moral o homem tem bastante engenhosidade e sofisma para imaginar motivos que a seus olhos sejam con vincentes para aderir a valores que na verdade nada têm a ver com a ciência e a lógica Pareto pertence à cultura italiana do mesmo modo como Durkheim perten ce à cultura francesa Ele se situa claramente na linha de pensadores políticos que se origina em Maquiavel o primeiro e o maior de todos eles A insistência na dua lidade dos governantes e dos governados a observação à distância talvez até cí nica do papel das elites e da cegueira das massas criam uma sociologia focali zada no tema político característico de uma tradição italiana ilustrada por Guic ciardini e Mosca além de Maquiavel E preciso não exagerar porém a ação do meio nacional Um dos autores que influenciaram Pareto foi o francês Georges Sorel Não faltaram na França autores da escola que chamamos de maquiaveliana por outro lado houve na Itália na época de Pareto autores racionalistas e cientistas prisioneiros da ilu são de uma sociologia que fosse ao mesmo tempo uma ciência e o fundamen to da moral Como Pareto é descendente intelectual de Maquiavel ele nos pare ce essencialmente italiano Mas não será isto um preconceito do observador francês Na verdade as duas correntes de idéias representadas por Durkheim e Aluno da École Normalle Supérieure uma das Grandes Escolas N do E CONCLUSÃO 527 por Pareto se manifestaram tanto na França como na Itália Houve pensadores franceses que aplicaram também às ilusões humanitárias e às esperanças dos revolucionários a mesma crítica sociológica que Pareto manejou com o maior virtuosismo Max Weber é sem dúvida profundamente alemão Seu pensamento para ser bem compreendido deve ser visto no contexto da história intelectual alemã Formado pela escola histórica foi a partir do idealismo histórico que ele pro curou formular sua concepção de uma ciência social objetiva capaz de demons trações e de provas compreensiva da realidade social inteiramente separada de uma metafísica do espírito e da história Contrariamente a Durkheim Weber não tinha formação filosófica mas sim jurídica e econômica Vários aspectos do seu pensamento têm raízes nesta dupla formação Por exemplo quando acentua a noção de sentido subjetivo e afirma que o sociólogo pretende apreender essencialmente o sentido que o ator atribui a seus atos decisões e abstenções está sendo influenciado pela sua reflexão de jurista Com efeito é fácil distinguir o sentido objetivo que o professor pode dar às regras de direito e o sentido subjetivo dessas regras isto é a interpretação que lhes dão os que estão sujeitos a elas e esta distinção permite compreender a ação que a regra de direito exerce sobre a conduta dos indivíduos Em vários dos seus estudos epistemológicos Max Weber se esforçou por discriminar rigorosamente os diferentes modos de interpretação do direito para lembrar sempre que o so ciólogo procura o sentido subjetivo isto é a realidade vivida do direito tal como é concebida pelos indivíduos e tal como condiciona em parte as condutas De igual modo sua experiência de economista levouo a refletir sobre as relações entre a teoria econômica enquanto reconstrução racionalizante da conduta e a realidade econômica concreta muitas vezes incoerente tal como é vivida pelos homens Mas o pensamento de Weber nascido da experiência do jurista e do econo mista foi marcado sobretudo por uma tensão interior que parece ligada à con tradição entre uma nostalgia religiosa e as exigências da ciência Já observei na introdução desta segunda parte que o tema central dos três autores foi o das rela ções entre a ciência e a religião Para Durkheim a ciência permite compreender a religião e conceber o surgimento de novas crenças Para Pareto a propensão à religião é eterna Os resíduos não mudam e qualquer que seja a diversidade das derivações novas crenças surgirão Weber por sua vez viu de maneira patética a contradição entre uma sociedade que se racionaliza e as necessidades da fé O mundo está desencantado não há mais lugar para os encantos das religiões do passado na natureza explicada pela ciência e manipulada pela tecnologia A fé deve portanto retirarse para a intimidade da consciência e o homem se divide entre uma atividade profissional cada vez mais parcial e racionalizada e a aspi ração a uma visão global do mundo e a certezas definitivas 528 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Weber foi dilacerado também pela contradição entre a ciência e a ação en tre sua profissão de professor e a de homem político Pertence à escola de so ciólogos que a frustração política conduziu e limitou à ciência e à universidade Combinava além disso em política opções que não se casam bem Apaixona do pelas liberdades pessoais acreditava que sem um mínimo de direitos indivi duais não era possível viver Por outro lado tinha a obsessão da grandeza nacio nal e sonhava durante a Primeira Guerra Mundial com o acesso da sua pátria à Weltpolitik Embora manifestasse oposição às vezes frenética ao imperador Guilherme II mantinhase partidário do regime imperial Paixão pela liberdade e obsessão pela grandeza alemã hostilidade a Gui lherme II e fidelidade ao regime imperial estas atitudes levaram à concepção de uma reforma da Constituição do Reich num sentido parlamentar que com o recuo de quase meio século nos parece hoje uma solução insignificante para os problemas que ele mesmo havia levantado Durkheim criou uma moral a ser ensinada nas escolas de formação de pro fessores Pareto destruiu ironicamente todas as ideologias Max Weber preco nizou uma reforma parlamentar da Constituição alemã Não há dúvida de que estes três pensadores pertenciam a diferentes países da Europa Quando começou a guerra Durkheim se comportou como um patriota apai xonado que precisou suportar com dor e coragem a morte de seu filho único e os insultos vergonhosos proferidos na tribuna do Senado Max Weber foi um patriota alemão igualmente apaixonado Cada um deles escreveu um estudo so bre as origens da guerra mundial Estes estudos a meu ver nada acrescentam à sua glória científica Por serem cientistas nenhum deles deixava de ser cida dão Pareto foi também fiel a si mesmo isto é observador irônico e bom profe ta Pensava que a única esperança de que a guerra terminasse com uma paz es tável residia em que ela terminasse por um compromisso1 Poderseia dizer portanto que cada um destes três sociólogos reagiu aos acontecimentos de 19141918 à sua maneira Mas a verdade é que Durkheim não tinha nada na sua sociologia que o predispusesse a reagir aos acontecimentos a não ser como um homem comum Considerava que os Estados tinham ainda fun ções militares mas estas eram apenas lembranças de um passado em vias de rá pido desaparecimento Quando essas lembranças revelaram em 1914 um vigor imprevisto talvez imprevisível Durkheim não se comportou como um profes sor otimista inspirado por Comte mas como cidadão compartilhou as emoções e as esperanças de todos os franceses intelectuais e nãointelectuais Weber por seu lado acreditava na permanência e na irredutibilidade dos conflitos entre as classes os valores e as nações A guerra não o perturbava em sua concepção do mundo Não acreditava que as sociedades modernas fossem essen cialmente pacíficas Aceitava a violência como parte da ordem normal da histó CONCLUSÃO 529 ria e da sociedade Foi hostil à guerra submarina sem limites e às pretensões dos pangermanistas que sonhavam com vastas anexações territoriais e nisso não foi menos extremado Durkheim teria pensado do mesmo modo se não tivesse falecido antes da vitória Podemse comparar também estes três pensadores examinando a interpre tação que deram da sociedade em que viviam Para Durkheim o problema social é essencialmente um problema moral e a crise das sociedades contemporâneas é uma crise moral cujo fundamento pode ser encontrado na estrutura da sociedade Ao colocar deste modo o pro blema Durkheim se opõe a Pareto e a Weber Podese classificar a maior parte dos sociólogos com base no sentido que deram às lutas sociais Durkheim co mo Auguste Comte pensa que a sociedade é por natureza uma nnidaHp basea da num consenso Os conflitos não constituem nem a mola do movimento his tórico nem o acompanhamento inevitável de toda vida em comum mas a marca de uma doença de um desregramento As sociedades modernas são definidas pelo interesse predominante associado à atividade econômica pela diferencia ção extrema das funções e das pessoas e portanto pelo risco de uma desagre gação do consenso sem o qual não é possível haver ordem social Durkheim porém que teme a anomia ou decomposição do consenso prin cipal ameaça às sociedades modernas não duvida de que os valores sagrados da nossa época sejam a dignidade humana a liberdade do indivíduo o julgamento autônomo e a crítica Seu pensamento tem portanto um duplo aspecto que jiis tifica a existência de duas interpretações contraditórias Se seguindo o método de Bergson eu precisasse resumir em uma frase a intuição fundamental de Durkheim diria que para ele as sociedades modernas são definidas pela obrigação assumida pela coletividade com relação a todos os seus membros no sentido de que cada um seja o que é e realize sua função social desenvolvendo ao mesmo tempo sua personalidade autônoma É a pró pria sociedade que postula o valor da autonomia pessoal Essa instituição é profundamente paradoxal Como o fundamento do valor da personalidade autônoma é o imperativo social o que dizer quando a religião surgida da sociedade se volta contra os valores individualistas e obriga cada um em nome da reconstituição do consenso não a ser ele mesmo mas a obedecer Se de acordo com a essência do pensamento de Durkheim o princípio e o obje to das obrigações e das crenças morais e religiosas é a sociedade Durkheim pode ser incluído na linha dos pensadores que como Bonald postularam de fato e de direito o primado da coletividade sobre o indivíduo Mas se aceitarmos ao con trário que os valores supremos da nossa época são o individualismo e o racio nalismo Durkheim aparece como herdeiro da Filosofia do Iluminismo Jusquauboutiste N do B 530 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Evidentemente o verdadeiro Durkheim não se esgota em nenhuma destas interpretações Ajustase mais a uma combinação delas O problema central do pensamento de Durkheim é no fundo o mesmo problema de Auguste Comte pensador de inspiração racionalista quer fundamentar os valores do racionalis mo sobre imperativos sociais Pareto e Weber podem ser situados mais facilmente do que Durkheim Bas ta analisálos com relação a Marx isto é com relação a um autor em que não se inspiraram diretamente mas que leram muito e criticaram Pareto se referiu com muita freqüência à obra de Marx e o pensamento paretiano pode ser considerado uma crítica do marxismo Em Les systèmes so cialisíes Pareto fez uma crítica econômica profunda de O capital notadamen te das teorias do valortrabalho e da exploração Em suma Pareto que pertence à Escola de Lausanne onde deu continuidade à obra de Walras desenvolveu uma teoria do equilíbrio a partir das escolhas individuais considerando a noção de valortrabalho como metafísica definitivamente ultrapassada Todas as de monstrações marxistas da maisvalia e da exploração são para ele desprovidas de valor científico Além disso Pareto acredita que a desigualdade das rendas é mais ou menos constante em todas as sociedades Os dados empíricos mais di versos demonstram segundo ele que a curva da distribuição da renda tem sem pre a mesma expressão matemática As possibilidades de modificar a distribuição da renda com uma revolução socialista são portanto pequenas Além disso Pa reto afirma como bom economista que em qualquer regime o cálculo econô mico é sempre indispensável Em conseqüência persistirão muitas das caracte rísticas das economias capitalistas mesmo depois de uma revolução do tipo so cialista Em nossa época não há economia eficiente sem uma organização racional da produção isto é sem submissão às exigências do cálculo econômico2 A partir daí Pareto justifica pela eficácia o regime de propriedade privada e a concorrência A concorrência é em certa medida uma forma de seleção Pa reto vai buscar no darwinismo social a analogia entre a luta pela vida no reino animal e de outro lado a concorrência econômica e as lutas sociais A concor rência econômica que os marxistas chamam de anarquia capitalista é na ver dade um processo de seleção relativamente favorável ao progresso econômico Pareto não é um liberal dogmático Muitas medidas condenáveis no plano estri tamente econômico podem ter efeitos favoráveis indiretamente por meio dos mecanismos sociológicos Assim por exemplo uma medida que traz benefícios consideráveis aos especuladores que é humanamente injusta e economicamente condenável pode ser benéfica se os lucros forem investidos em empreendimen tos úteis à coletividade Pareto responde de modo definitivo à crítica marxista do capitalismo afir mando que alguns dos elementos denunciados pelo marxismo são encontrados em todos os outros sistemas que o cálculo econômico está associado intrinse CONCLUSÃO 531 camente a uma economia racional moderna que não há exploração global dos trabalhadores pois os salários tendem a se manter no nível da produtividade marginal e que a noção de maisvalia não tem sentido Em Max Weber a crítica da teoria marxista tem mais ou menos o mesmo estilo mas a ênfase é posta menos na importância do cálculo econômico em qualquer regime do que na constância da burocracia e dos fenômenos de orga nização e de poder Para Pareto a concorrência e a propriedade privada são de modo geral as instituições econômicas mais favoráveis ao desenvolvimento da riqueza assim o crescimento da burocracia a extensão do socialismo estatal e a absorção de rendas pela administração em benefício próprio ou de setores improdutivos causariam provavelmente um declínio de toda a economia Max Weber demonstrou que a organização racional e a burocracia constituíam as es truturas reais das sociedades modernas Longe de serem atenuadas pela instau ração do socialismo estas características seriam antes reforçadas Uma econo mia socialista em que a propriedade dos meios de produção fosse coletiva acen tuaria os traços que o próprio Max Weber considerava como os mais perigosos para a salvaguarda dos valores humanos3 Pareto e Weber rejeitam a crítica marxista da economia capitalista consi derandoa cientificamente infundada Nenhum dos dois nega que num regime capitalista haja uma classe privilegiada que retém para si uma parte importan te da renda e da riqueza Não afirmam que o regime capitalista seja perfeita mente justo ou o único possível Mais ainda ambos tendem a acreditar que este regime evoluirá no sentido do socialismo mas os dois se recusam a aceitar a teo ria da maisvalia e da exploração e negam que uma economia socialista seja fun damentalmente diferente de uma economia capitalista no que se refere à orga nização da produção e à distribuição da renda Não se detém aí a crítica de Pareto e de Weber ao pensamento de Marx Tomam também como alvo o racionalismo implícito ou pelo menos aparente da psicologia e da interpretação histórica do marxismo Quando Pareto ridiculariza as esperanças dos revolucionários em particular dos marxistas a primeira forma dessa refutação irônica é econômica Mostra que uma economia socialista se assemelharia em todos os seus defeitos a uma economia capitalista contando ainda com um certo número de defeitos suple mentares Uma economia baseada na propriedade coletiva dos meios de produ ção e privada dos mecanismos do mercado e da concorrência seria uma econo mia burocratizada com os trabalhadores submetidos a uma disciplina autoritá ria pelo menos tão opressiva quanto a das empresas capitalistas Seria também menos eficaz do ponto de vista do desenvolvimento das riquezas A segunda forma de refutação consiste em apresentar as esperanças revolu cionárias não como uma reação racional a uma crise social efetivamente obser vada e experimentada mas como a expressão de resíduos permanentes ou de 532 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO sonhos metafísicos etemos Na versão corrente do marxismo as contradições do capitalismo provocam a organização do proletariado em classe e este realiza a obra exigida pela Razão histórica A perspectiva marxista é racional com rela ção à história global Sugere assim uma espécie de psicologia racional segundo a qual os indivíduos ou os grupos agem com base nos seus interesses Otimista na verdade é uma psicologia que pressupõe que os homens são egoístas e clari videntes Ordinariamente esta interpretação da conduta humana é considerada materialista ou cínica Que ilusão A vida das sociedades seria mais fácil se todos os grupos conhecessem seus interesses e agissem com base neles Como disse um profundo psicólogo chamado Adolf Hitler é sempre possível conciliar inte resses mas nunca é possível conciliar diferentes concepções do mundo Pareto e de certo modo também Max Weber respondem a esta visão racio nalista de Marx afirmando que os movimentos sociais entre eles o socialismo não se inspiram na consciência dos interesses coletivos e não representam um produto da Razão histórica mas constituem a manifestação de necessidades afe tivas ou religiosas tão duradouras quanto a própria humanidade Max Weber chamou sua sociologia das religiões de refutação empírica do materialismo histórico Ela mostra de fato que a atitude de certos grupos com relação à vida econômica pode ser determinada por concepções religiosas Não há necessariamente uma determinação das concepções religiosas pelas atitudes econômicas e o contrário pode ser também verdadeiro Para Pareto se os homens agissem logicamente sua conduta seria determi nada efetivamente pela busca de lucros ou do poder a luta entre os grupos poderia ser interpretada em termos estritamente racionais Na realidade porém são os resíduos de classes relativamente constantes que movem os homens A história não evolui no sentido de uma conclusão que seria a reconciliação da humanidade mas obedece a ciclos de mútua dependência As flutuações da for ça de uma classe de resíduos produzem as fases da história sem que nunca se possam imaginar um ponto de chegada e uma estabilização definitiva Nem Pareto nem Weber deixam de levar em conta a contribuição de Marx Para Pareto a parte sociológica da obra de Marx é do ponto de vista científi co muito superior à parte econômica Les systèmes socialistes t II p 386 A luta de classes preenche uma grande parte da crônica dos séculos e consti tui um dos fenômenos mais importantes de todas as sociedades conhecidas A luta pela vida e pelo bemestar é um fenômeno geral de todos os seres vivos e tudo o que sabemos sobre ela nos leva a considerála um dos fatores mais poderosos para a conservação e o aprimoramento da raça Ibid p 455 Pareto admite portanto a luta de classes dandolhe porém um significado diferente do de Marx De um lado a sociedade não tende a se dividir em duas classes e só duas a dos proprietários dos meios de produção e a grande massa explorada A luta de classes se complica e se ramifica Estamos longe de uma simples luta entre duas CONCLUSÃO 533 classes as divisões se acentuam tanto entre os burgueses como entre os prole tários Ibid p 420 Existem muitos grupos sociais e econômicos Por outro lado na medida em que Pareto adota uma representação dualista da sociedade esta representação dualista se fundamenta na oposição entre governantes e go vernados elite e massa A integração na elite não é definida necessariamente pela propriedade dos meios de produção Como a dualidade fundamental é a que existe entre governantes e governados a luta de classes é eterna e não pode ser superada num regime em que não haja exploração Se como pensava Marx a luta de classes tem sua origem última na propriedade dos meios de produção é pos sível conceber uma sociedade sem propriedade privada e portanto sem explora ção Contudo se a origem última dos conflitos sociais é o poder exercido por uma minoria sobre a maioria a heterogeneidade social é irredutível e a esperança de uma sociedade sem classes se alimenta de uma mitologia pseudoreligiosa Por último Pareto tende a caracterizar as classes essencialmente pela sua psicologia As elites são violentas ou astuciosas compõemse de combatentes ou de pluto cratas são ricas em especuladores e agiotas assemelhamse ao leão ou à raposa Todas estas fórmulas tendem a sugerir uma característica psicológica mais do que propriamente sociológica das classes e principalmente da classe dirigente Max Weber cujo pensamento social é dramático e nada tem de irônico admitia também a realidade e a importância da luta de classes e num certo sen tido aceitava portanto a herança marxista e o valor das observações sociológi cas que servem como ponto de partida para o Manifesto comunista Quem quer que assuma a responsabilidade de enfiar os dedos entre os raios da roda do de senvolvimento político de sua pátria deve ter os nervos sólidos e não ser muito sentimental para poder fazer a política temporal E quem se empenha no cami nho da política temporal precisa antes de mais nada permanecer livre de ilu sões e reconhecer o fato fundamental da existência da luta inevitável e eter na dos homens contra os homens nesta terra Protokoll über die Vertreter Versammlung aller NationalSozialen Erfúrt 1896 citado por Julien Freund in Essais sur la théorie de la Science Introdução p 15 Embora riãíomasse com a mesma crueza os argumentos de Pareto Weber observava que num regi me de propriedade coletiva e de planificação uma minoria disporia de imensoV poder econômico e político e só uma confiança desmedida na natureza huma na justificaria a expectativa de que esta minoria não cometesse abusos As desi gualdades na distribuição da renda e dos privilégios sobreviverão ao desapare cimento da propriedade privada e da concorrência capitalista Mais ainda numa sociedade socialista os que alcançassem o cume seriam os mais hábeis numa com petição burocrática obscura mal conhecida seguramente menos agradável do que a concorrência econômica A seleção burocrática seria menos má do ponto de vista humano do que a de caráter semiindividualista que subsiste nos inters tícios das organizações coletivas das sociedades capitalistas 534 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Para estabilizar e moralizar as sociedades modernas Durkheim concebia e preconizava uma reconstituição das corporações profissionais Pareto não assu mia o direito de propor reformas mas anunciava a cristalização burocrática e a ascensão ao poder de elites violentas que sucederiam as raposas da plutocracia hesitava apenas com relação aos prazos Já Max Weber profetizava com pessi mismo a expansão gradual da organização burocrática Destes três autores a meu ver Durkheim é aquele cujas sugestões foram me nos apoiadas pelos acontecimentos Tais como as concebia isto é como corpos intermediários dotados de autoridade moral as corporações não se desenvolve ram em nenhum dos países de economia moderna Estes se dividem hoje em dois tipos de regimes mas não há lugar para essas corporações em nenhum deles nem na Rússia soviética nem nas sociedades ocidentais Na Rússia soviética porque o princípio de toda autoridade e de toda moralidade deve ser o Partido e o Estado confundidos no Ocidente porque seria necessário ter excepcional acuidade de vi são a fim de perceber o menor traço de autoridade moral aceita ou reconhecida nas organizações profissionais de assalariados e de empresários Em compensa ção Pareto não errou ao anunciar a ascensão de elites violentas como Weber também não se enganou ao prever a expansão da burocracia Se estes dois fenô menos não esgotam toda a realidade social modema sua combinação é segura mente uma das características do nosso tempo As contribuições desses três autores para o progresso da sociologia cientí fica foram diferentes e convergentes Todos os três pensaram no mesmo con texto histórico sobre o tema das relações entre ciência e religião esforçandose para dar uma explicação social das religiões e uma explicação religiosa dos mo vimentos sociais O ser social é um ser religioso e o crente de todas as Igrejas é membro de uma sociedade Esta preocupação primordial elucida a contribui ção deles ao desenvolvimento da sociologia como ciência Pareto e Max Weber de modo explícito como também Durkheim implicitamente enunciaram a concepção da sociologia como a ciência da ação social Ser social e religioso o homem cria valores e sistemas sociais e a sociologia procura apreender a estru tura desses valores e sistemas isto é da ação social Para Max Weber a sociolo gia é uma ciência compreensiva da ação humana Se esta definição não pode ser encontrada palavra por palavra no Traité de sociologie générale uma idéia aná loga aparece na obra de Pareto e a definição de Durkheim não é muito diferente Concebida desta maneira a sociologia elimina a explicação naturalista ex cluindo que se possa explicar a ação social a partir da hereditariedade ou do meio O homem age define objetivos combina meios adaptase às circunstâncias inspirase em sistemas de valores Cada uma destas fórmulas visa a um aspecto da compreensão das condutas e leva a um elemento da estrutura da ação social CONCLUSÃO 535 A fórmula mais simples é a da relação meiosfins É este o aspecto da ação que Pareto colocava no centro da sua definição da conduta lógica e que Max Weber integrava na noção de conduta racional com relação a um fim A análi se das relações entre os meios e os fins nos leva diretamente a propor as ques tões sociológicas essenciais como são determinados os fins Quais são as mo tivações das condutas Ela permite desenvolver uma casuística da compreen são das condutas humanas cujos elementos mais importantes são a relação meiosfins as motivações das condutas o sistema de valores com base no qual os homens agem e eventualmente a situação à qual o ator se adapta e de acordo com a qual determina seus objetivos T Parsons dedicou seu primeiro livro importante The Structure o f Social Action ao estudo das obras de Pareto Durkheim e Weber consideradas como contribuições à teoria da ação social que deve servir de fundamento à sociolo gia Ciência da ação humana a sociologia é ao mesmo tempo compreensiva e explicativa Compreensiva identifica a lógica ou a racionalidade implícita das condutas individuais ou coletivas explicativa estabelece as regularidades e in sere as condutas parciais em conjuntos que lhes dão um sentido Pareto Durkheim e Weber segundo Parsons proporcionam com conceitos distintos os materiais para uma teoria comum da estrutura da ação social Esta teoria compreensiva resumindo o que há de válido na contribuição dos três autores seria natural mente a teoria do próprio Parsons Durkheim Pareto e Weber são os últimos grandes sociólogos a elaborar dou trinas de sociologia histórica isto é sínteses globais que comportam simultanea mente uma análise microscópica da ação humana uma interpretação da época moderna e uma visão do desenvolvimento histórico a longo prazo Estes dife rentes elementos reunidos nas doutrinas da primeira geração 18301870 a de Comte Marx e Tocqueville e que se encontravam ainda mais ou menos unidos nas doutrinas da segunda geração 18901920 estão hoje dissociados Para estudar a sociologia contemporânea seria necessário analisar a teoria abstrata da conduta social encontrar os conceitos fundamentais utilizados pe los sociólogos e examinar o desenvolvimento da investigação empírica em dife rentes setores Os sociólogos empíricos do Ocidente se recusam a fazer inter pretações históricas da época moderna argumentando que elas ultrapassam as possibilidades da ciência No Leste estas interpretações históricas são anterio res a qualquer investigação e baseadas nos resíduos de uma doutrina da primei ra época que uma astúcia da Razão histórica transformou em ortodoxia estatal Mas os marxistas da Europa oriental se converteram à pesquisa empírica E é possível por outro lado que estas pesquisas contenham uma interpretaçao da sociedade moderna Eisnos aqui no limiar do presente retomando à Introdução deste livro Se não fosse imprudente na minha idade desafiar os deuses anunciaria de boa vontade o livro que deveria seguirse a este Notas 1 Durkheim escreveu dois trabalhos sobre a guerra de 19141918 LAllemagne audessus de tout la neutralité Allemande et la guerre e Qui a voulu la guerre les ori gines de la guerre d après les documents diplomatiques os dois publicados por Armand Colin em 1915 Nesse mesmo ano perdeu o filho único morto no front da Salônica Pouco tempo depois da morte de seu filho um senador exigiu no Senado que a comissão incumbi da de controlar as permissões de permanência dos estrangeiros revisse a situação desse francês de ascendência estrangeira professor na nossa Sorbonne e sem dúvida representante é pelo menos o que se alega do Kriegsministerium Ministério da Guerra alemão Os escritos de Weber relativos à guerra foram reunidos em Gesammelte Politische Schriften Tübingen Mohr 2f ed 1958 cf principalmente os dois artigos de 1919 Zum thema der Kriegschuld e Die Untersuchung der Schuldfrage Pareto se absteve de mencionar a guerra em curso no seu Traité de sociologie générale cuja edição italiana foi publicada em 1916 mas ele a analisou depois que as hostilidades terminaram em Fatti e teorie Florença Vallechi 1920 Antes da guerra pensava que no caso de um conflito a Alemanha venceria Por instinto preferia aliás o império alemão à França e à Itália plutocráticas e foi sempre rebelde ao entusiasmo da maioria de seus amigos e compatriotas como Pantaleoni Mas alegrase com a vitó ria dos aliados Em seus sentimentos em relação á Itália havia muito de amor desiludi do Em Fatti e teorie explica os erros da diplomacia alemã Desde 1915 declarava que essa guerra não seria a última e que ela trazia o risco de gerar uma outra 2 Para Pareto se uma organização socialista qualquer que seja pretende obter o máximo de ofelimidade para a sociedade só pode agir sobre a distribuição que ela irá alterar diretamente retirando de uns o que dará aos outros Quanto à produção precisa rá ser organizada exatamente como no regime de livre concorrência e de apropriação de capitais Cours d économiepolitique 1022 Para demonstrar essa afirmativa Pareto supõe uma economia em que a propriedade seria coletiva e em que o governo regularia tanto a distribuição quanto a produção i b i d 1013 a 1023 e mostra que se um regi CONCLUSÃO 537 me socialista pode exercer uma ação sobre a escolha dos titulares das rendas essa esco lha podendo ser feita para aumentar a utilidade da espécie a organização da produ ção se o governo pretende obter o máximo de ofelimidade a seus administrados supõe um cálculo econômico realizado a partir de relações de troca isto é de preços e não apenas para os bens consumíveis mas também para os serviços produtores A determi nação dos preços dos bens consumíveis supõe um mercado de bens de consumo Qualquer que seja a regra que o governo queira estabelecer para a repartição das mer cadorias de que dispõe é evidente que se quiser obter o máximo de ofelimidade para seus administrados deverá cuidar para que cada um tenha a mercadoria de que mais necessita Não dará óculos de míope a um presbita e viceversa Seja permitindo que seus administrados troquem entre eles os objetos que lhes são distribuídos seja fazendo ele mesmo essa nova distribuição o resultado é o mesmo Se as trocas de bens consu míveis são permitidas os preços reaparecem se é o Estado que realiza essa nova dis tribuição os preços apenas mudarão de nome serão relações segundo as quais se fará a nova distribuição 1014 A determinação dos preços dos serviços produtores e especialmente dos capitais supõe trocas entre as unidades de produção e as adminis trações Essas trocas poderão ser feitas sobre uma simples base contábil e a realidade econômica fundamental será a mesma que num regime capitalista É preciso repartir os capitais entre as diferentes produções de modo que a quantidade de mercadorias corres ponda à necessidade existente Quando se pretende fazer esse cálculo surgem certas quantidades auxiliares que são simplesmente os preços que teriam os serviços desses capitais num regime de apropriação de capitais e de livre concorrência Para dar a esse cálculo uma forma tangível podese supor que o ministério da produção se divida em dois departamentos um que administrará os capitais e que venderá os serviços ao outro departamento a preços tais que esse segundo departamento seja obrigado a economizar os serviços de capitais mais raros mais preciosos e procurar substituílos pelos servi ços de capitais mais abundantes e menos preciosos Recorrendo à matemática demons trase que os preços que preenchem essa condição são exatamente os mesmos que se estabeleceriam num regime de apropriação de capitais e de livre concorrência Esses preços aliás só têm utilidade para a contabilidade interna do ministério O segundo dos departamentos em questão exercerá as funções de empresário e transformará os serviços de capitais em produtos 1017 Assim para Pareto uma economia socialista gerida de modo eficaz e organizada para obter o máximo de ofelimidade dos indivíduos não di fere fundamentalmente de uma economia capitalista Como esta ela só pode ter como base a troca e o cálculo econômico Mas para provar esta identidade dos problemas eco nômicos fundamentais quaisquer que sejam os regimes e o parentesco essencial das ins tituições econômicas Pareto foi levado a mostrar e foi o primeiro economista a fazêlo que um regime socialista podia funcionar isto é que a priori a propriedade privada não era indispensável ao cálculo econômico quando o mercado ou seu substituto per maneciam Estas observações de Pareto desenvolvidas um pouco mais tarde por E Barone servirão de base para os economistas que como O Lange F Taylor H D Dickinson A P Lemer procuraram responder à crítica de F A von Hayek L Robbms L von Mises e N G Pierson sobre a impossibilidade do cálculo econômico em regune socialista Para a escola Lange Taylor se uma economia socialista mantiver a liberdade 38 AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO e escolha dos consumidores e a liberdade de escolher as ocupações isto é se mantiver m mercado de bens de consumo e a livre negociação dos salários será mesmo mais acionaí que uma economia capitalista e se aproximará cada vez mais do estado ideal ue resulta da concorrência pura e perfeita Pareto num sentido é o primeiro dos eco omistas que são favoráveis à economia socialista de mercado Até hoje no entanto a economia socialista de mercado permanece uma hipótese e escola Sem fazer ym julgamento antecipado sobre as experiências que se realizam tualmentena Iugoslávia na Tchecoslováquia e mesmo na União Soviética é preciso onstatar como o faz Peter Kende De O Lange a J Marczewski um grande núme o de eminentes economistas se empenharam em refutar o argumento de Mises sobre a mpossibilidade do cálculo racional em uma economia coletivista Parecenos no ntanto que a maior parte deles facilitaram um pouco as coisas demonstrando a possi lilidade de organizar uma economia socialista que seja com a ajuda do mercado New ocialist School de TaylorLange seja por um cálculo organizado segundo os princí i í o s marginalistas Dobb Marczewski seja enfim graças aos modelos da era eletrô dca Koopmans conhecesse os verdadeiros preços dos fatores Mises visava a uma iconomia que não conhece os preços em questão Enquanto a viabilidade dos diferen es modelos propostos contra Mises ainda está por ser demonstrada o modelo real da iconomia planificada se assemelha de modo impressionante àquele que Mises tinha em ista Logique de 1économie centralisée un exemple la Hongrie Paris SEDES 964 p 491 Sobre esse problema ver F A von Hayek et alLeconomie dirigée en régime collec iviste Paris Médicis 1939 esta obra contém além dos estudos de Hayek a tradução do rtigo de 1920 de L von Mises Le calcul économique en régime collectiviste e a tra lução do ensaio de 1908 de E Baroni Le ministère de la production dans un État collec iviste O Lange e F M Taylor On the Economic Theory of Socialism Nova York Mac íraw Hill 1964 reedição de dois ensaios um de F Taylor datadó de 1929 e o outro de O ange de 1937 L von Mises Le socialisme étude économique et sociologique Paris 4édicis 1938 P Wiles The Political Economy of Communism Oxford Blackwell 1962 3 No pensamento de Max Weber não estão ausentes as considerações de cálculo conômico F A von Hayek em seu estudo sobre a natureza e o histórico do problema ias possibilidades do socialismo até cita Max Weber entre os primeiros autores que rataram detalhadamente do problema do cálculo econômico em economia socialista lax Weber em sua grande obra póstuma Wirtschaft und Gesellschaft publicada em 921 trata explicitamente das condições que fazem com que decisões racionais sejam assivas num sistema econômico complexo Como L von Mises cujo artigo de 1929 obre o cálculo econômico numa comunidade socialista ele cita dizendo só ter chega lo ao seu conhecimento quando seu próprio estudo já estava sendo impresso Max Veber insiste no fato de que os cálculos in natura propostos pelos principais defenso es de uma economia planificada não poderiam oferecer uma solução racional aos pro lemas que as autoridades de um tal sistema teriam de resolver Insiste principalmente m que o uso racional e a preservação do capital só poderiam ser obtidos num sistema iaseado na troca e no uso da moeda e que o desperdício provocado pela impossibi idade do cálculo racional num sistema completamente socializado poderia ser tão sério CONCLUSÃO 539 que tomasse impossível a vida dos habitantes dos países atualmente mais populosos Não é um argumento de peso supor que um sistema qualquer de cálculo seria encon trado a tempo se se procurasse enfrentar seriamente o problema de uma economia sem moeda o problema é o problema fundamental de toda socialização completa e é cer tamente impossível falar de uma economia racionalmente planificada quando na medi da em que o ponto essencial é envolvido não se conhece nenhum meio de construção de um plano Wirtschaft und Gesellschaft Léconomie dirigée en régime collectiviste Paris Médicis 1939 pp 4243 ISBN 8533609361 9788533609365