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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO UC Literatura em Castelhano Prosa Sara Souza Barbosa 170817 O leitor a ficção e a realidade em Continuidad de los parques de Júlio Cortázar Introdução Ler é um gesto que à primeira vista pode parecer inofensivo Abrimos um livro nos sentamos em um lugar confortável e deixamos que as palavras nos guiem como quem entra em um universo paralelo distante das exigências do mundo real Mas esse gesto por vezes banalizado pela rotina é uma das experiências mais complexas e transformadoras a que nos permitimos Ler é antes de tudo um ato de atenção e entrega É se deixar afetar por algo que não é nosso mas que mesmo assim nos toca e é justamente essa experiência entre o controle e a vulnerabilidade entre o prazer e o risco que Julio Cortázar representa com intensidade no conto Continuidad de los parques Publicado originalmente em Final del juego 1956 o conto é um marco da literatura fantástica latinoamericana e um exemplo da estética de Cortázar Ao narrar a história de um homem que retoma a leitura de um romance e acaba ele próprio sendo engolido por essa leitura o autor argentino nos apresenta muito mais do que um artifício de fusão entre realidade e ficção Ele nos oferece uma crítica sutil porém profunda ao lugar que ocupamos enquanto leitores o lugar da escuta passiva da distração confortável da ausência de vigilância interpretativa Em poucas páginas Cortázar nos faz perceber que ao abrir um livro abrimos também uma brecha em nós mesmos e que se não estivermos atentos aquilo que lemos pode começar a nos ler de volta Esse movimento de inversão entre leitor e personagem entre sujeito e objeto da leitura é o que torna o conto tão inquietante Não se trata apenas de uma surpresa narrativa O leitor da história tanto o interno o homem na poltrona quanto o externo nós que o lemos é capturado pelo enredo O que se revela então é que a leitura não é uma atividade neutra mas uma experiência existencial ela nos constitui nos modifica e nos coloca em prova Cortázar quebra a ideia da leitura como apenas um hobby e a transforma em algo mais simbólico A ficção aqui não é apenas linguagem é acontecimento Nesta ótica este ensaio propõe analisar Continuidad de los parques como uma narrativa que elabora uma crítica à figura do leitor contemporâneo fragilizado e por vezes ausente de si no momento da leitura Em poucas páginas Cortázar propõe uma experiência literária que desafia o lugar tradicional do leitor e estabelece uma relação entre o leitor e o texto lido Para isso será utilizado dois textos fundamentais Algunos aspectos del cuento 1963 ensaio em que Cortázar apresenta sua concepção estética do conto como estrutura voltada a produzir um impacto imediato no leitor e o artigo Continuidad de los parques una poética de lectura 2009 de Silvia Elena Solano Rivera que interpreta o conto como uma advertência crítica ao leitor que se entrega à ficção sem consciência o tornando vítima do seu raso poder interpretativo A tese que atravessa este ensaio é a de que Continuidad de los parques constrói por meio de sua forma sua progressão e seu desfecho uma metáfora precisa da leitura como experiência Ao acabar com as fronteiras entre ficção e realidade o conto obriga o leitor a repensar sua própria relação com o texto propõe uma ética da leitura que exige presença responsabilidade ao interpretar e atenção ao modo como a linguagem nos forma A análise se desenvolverá em torno de três eixos principais a forma narrativa do conto como construção estética de impacto a figura do leitor como personagem central e sujeito vulnerável à ficção e por fim a atualidade desse debate diante da crise contemporânea da leitura uma crise marcada por muita informação falta de foco e pela perda do silêncio que a leitura exige Ler afinal é mais do que decodificar símbolos ou seguir uma trama É um encontro entre mundos o do texto e o nosso e como todo encontro verdadeiro exige disponibilidade escuta e coragem Continuidad de los parques é nesse sentido um chamado um chamado para estarmos presentes na leitura e conscientes da força da linguagem E talvez seja isso que faz do conto uma obra marcante ele não termina quando a história acaba mas quando o leitor já transformado levanta os olhos da página e se pergunta onde estou Porque às vezes ao entrarmos em um livro também nos perdemos de nós mesmos E com sorte nos reencontramos Análise No ensaio Algunos aspectos del cuento Cortázar 1963 defende que o conto deve operar por condensação e intensidade a fim de produzir um impacto imediato no leitor Sua metáfora do knockout comparando o conto ao boxe sugere que a narrativa curta deve abalar o leitor de forma abrupta e definitiva ao contrário do romance que atua por pontos acumulando gradualmente seu efeito O conto é uma esfera perfeita e fechada que se justifica inteiramente por sua tensão interna CORTÁZAR 1963 p 3 Essa concepção estética reflete na estrutura de Continuidad de los parques que conduz o leitor a uma armadilha textual cuidadosamente arquitetada isso acontece porque a narrativa progride de modo fluido e quase hipnotizando o leitor até que no desfecho ele se dá conta de que a linha entre ficção e realidade foi completamente dissolvida Esse efeito não é apenas uma escolha estilística mas um modo de construir uma ligação específica com o leitor que exige dele envolvimento sensorial e existencial O personagem principal um homem que se senta confortavelmente para retomar a leitura de seu romance não é apenas uma figura dentro da história mas um espelho do próprio leitor real cuja experiência de leitura também é gradual e envolvente Ao final quando a narrativa do livro lido pelo personagem se funde com a sua realidade é o leitor externo que se vê deslocado afetado desestabilizado A forma como Cortázar constrói essa transição revela uma das teses centrais da sua teoria o conto deve ser como um estalo diante do leitor rompendo o cotidiano e revelando outra ordem de sentido O efeito de surpresa do final quando o amante armado entra silenciosamente na casa e dirigese à poltrona onde está o homem lendo não é um mero artifício narrativo mas o clímax da construção narrativa que mobiliza os recursos da linguagem para quebrar os limites entre o texto e a vida Nessa ótica a estética do conto se encontra com uma concepção ampliada da leitura que passa o domínio da simples interpretação também ao da experiência Solano 2009 propõe que Continuidadde los parques elabora uma figura particular de leitor aquele que ao entregarse à narrativa sem questionamento tornase vulnerável aos efeitos da ficção Para a autora Cortázar não escreve apenas um conto fantástico mas uma poética de leitura ou seja uma reflexão sobre o modo como os textos literários interpelam seus leitores e os transformam Rivera afirma El texto no sólo representa una historia sino que activa una determinada figura de lector uno que es absorbido por la ficción hasta confundirse con ella RIVERA 2009 p 47 Esse leitor caracterizado como trágico é aquele que abdica de sua posição crítica diante do texto e se deixa absorver completamente pela narrativa A tragédia não está apenas na morte física do personagem mas em sua incapacidade de manter um distanciamento simbólico frente à ficção A leitura deixa de ser mediação e tornase total identificação Essa ideia de entrega sem mediação também é lida por Rivera como uma advertência epistemológica há riscos envolvidos no ato de ler principalmente quando esse ato se dá de forma passiva acrítica e anestesiada A metáfora construída por Cortázar é portanto ambígua por um lado a leitura se apresenta como experiência estética radical que permite a dissolução de fronteiras e a fusão entre sujeito e texto por outro essa fusão implica uma perda da autonomia interpretativa que pode levar à alienação simbólica O personagem tornase presa de uma história que acreditava controlar Ele não percebe que o livro que lê o inclui que a ficção que consome já o devorou Essa inversão ilustra o conceito de lectura especular trabalhado por Rivera em que o leitor vê a si mesmo refletido no texto mas sem reconhecer o espelhamento até que seja tarde demais Ao fundir o espaço da leitura com o espaço da ação Cortázar rompe com a ideia de um leitor protegido observador seguro em sua poltrona A poltrona símbolo clássico do conforto e do recolhimento burguês tornase o cenário da vulnerabilidade O gesto de ler aparentemente inofensivo revelase perigoso A violência final do conto que permanece ambígua não é apenas literal mas simbólica o leitor é atingido por aquilo que leu Dessa maneira a análise de Rivera nos permite compreender Continuidad de los parques como uma crítica aos modos convencionais de leitura A literatura nesse conto não serve para tranquilizar mas para desestabilizar A dissolução da fronteira entre realidade e ficção é o mecanismo através do qual Cortázar propõe uma ética da leitura toda leitura é um risco e todo leitor é potencialmente afetado A figura do leitor trágico é assim o ponto de convergência entre o projeto estético e a crítica epistemológica que atravessa a narrativa A figura do leitor proposta por Cortázar em Continuidad de los parques adquire novos contornos quando observada à luz do contexto contemporâneo marcado pela fragmentação da atenção pela aceleração dos fluxos informacionais e pela predominância de práticas de leitura superficiais A advertência contida no conto antecipa uma das questões centrais da era digital a vulnerabilidade do sujeito diante do excesso de narrativas e discursos A dissolução entre realidade e ficção que no conto aparece como estratégia literária pode ser lida também como metáfora da condição do leitor moderno Hoje as fronteiras entre texto e mundo entre representação e vivência são cada vez mais tênues A leitura já não ocorre em espaços protegidos de contemplação mas em ambientes saturados de estímulos nos quais a crítica a pausa e o silêncio tornamse exceção A passividade denunciada por Rivera não é apenas um traço individual mas sintoma de um processo cultural mais amplo a estetização da informação a espetacularização da linguagem e a erosão da escuta ativa Cortázar ao propor uma literatura que captura e transforma o leitor contrapõese a essas práticas e convoca o sujeito a reocupar seu lugar como agente da leitura A metáfora da morte final do conto não representa apenas a derrota do personagem mas também a morte simbólica de um leitor que renuncia à responsabilidade de interpretar O gesto de ler nesse sentido não é neutro ele produz efeitos interfere na constituição do sujeito molda formas de perceber e de agir no mundo É nesse ponto que a leitura se torna também uma prática política e ética A forma como se lê define não apenas uma postura estética mas uma atitude diante da realidade Assim como a fusão entre ficção e ação na narrativa de Cortázar revela uma armadilha para o personagem ela funciona para o leitor externo como um convite à vigilância interpretativa A leitura longe de ser uma atividade de refúgio emerge como uma arena de disputa simbólica A escolha por manter a ambiguidade no desfecho intensifica essa dimensão crítica Cortázar não oferece respostas fáceis pelo contrário desestabiliza expectativas e obriga o leitor a ocupar uma posição interpretativa ativa Nesse sentido o conto realiza aquilo que o próprio Cortázar defendia como princípio estético provocar no leitor uma espécie de ruptura interior um abalo que o arranque do automatismo perceptivo Tal como afirmava em Algunos aspectos del cuento o verdadeiro conto é aquele que nos obriga a fechar o livro levantar a cabeça e permanecer um tempo em silêncio CORTÁZAR 1963 p 6 Esse silêncio é talvez o efeito mais potente de uma leitura transformadora Continuidad de los parques não é apenas uma narrativa engenhosa do fantástico latinoamericano mas uma reflexão profunda sobre o ato de ler e suas implicações estéticas subjetivas e éticas Ao fundir ficção e realidade Cortázar desestabiliza a posição tradicional do leitor e revela que toda leitura é também um risco ela pode construir mas também desorientar pode ampliar a percepção mas igualmente cegar A figura do leitor trágico proposta por Silvia Elena Solano Rivera sintetiza essa tensão ao se entregar de forma acrítica ao texto o sujeito abre mão da distância interpretativa que poderia protegêlo de ser capturado pelas armadilhas da linguagem A teoria do conto elaborada por Cortázar em Algunos aspectos del cuento ajuda a compreender como a forma narrativa breve intensa circular participa ativamente da construção desse efeito O conto não busca acumular acontecimentos mas criar um impacto concentrado um deslocamento que ecoa para além da leitura Nesse sentido o final abrupto de Continuidad de los parques não se esgota na surpresa mas provoca um gesto reflexivo o leitor é forçado a retornar ao início do texto a reler a se posicionar diante do que pensava compreender Esse movimento de releitura de desnaturalização do gesto de ler é o que confere ao conto sua potência crítica Ao tematizar a leitura como experiência perigosa Cortázar propõe uma ética interpretativa que desafia o leitor a sair da passividade e assumir seu papel como sujeito da linguagem Em tempos marcados pela multiplicação de discursos e pela superficialidade da atenção essa proposta adquire uma relevância ainda maior A literatura como demonstra o conto não se limita a entreter ou ornamentar ela perturba questiona desestabiliza e nesse gesto tornase espaço de reinvenção do próprio sujeito leitor Assim a pergunta deixada em aberto ao final do conto não é apenas o que aconteceu com o homem na poltrona mas o que acontece conosco quando permitimos que a leitura nos atinge profundamente Ao expor os perigos e as potências do texto Cortázar convida à reinvenção da leitura como ato de presença escuta e transformação Ler afinal é também escreverse de novo e isso como nos ensina o conto jamais acontece sem consequências Conclusão Ao atravessar as poucas mas intensas páginas de Continuidad de los parques temos uma certeza há textos que não apenas são lidos mas que nos leem O conto de Cortázar é um desses textos Ele não termina ao fim da narrativa na verdade pelo contrário ele começa ali no momento em que o leitor se vê imerso na poltrona no silêncio e na distração A proposta central deste ensaio consistiu em examinar essa estrutura narrativa construída para que se interligue em nós e o papel do leitor nessa trajetória de leitura Defende se que Cortázar ao juntar realidade e ficção com formalidade nos oferece não apenas um conto memorável mas uma crítica ao gesto da leitura como algo que transcende o ato de ler uma experiência completa Ao longo da análise partimos da concepção estética do conto como estrutura de condensação e impacto imediato conforme defendida pelo próprio autor em Algunos aspectos del cuento Identificamos como essa teoria se realiza de maneira exemplar em Continuidad de los parques cuja forma circular progressão fluida e final ambíguo criam um campo de tensão entre o que se observa e o que se é Complementamos essa leitura com a abordagem proposta por Silvia Elena Solano Rivera que interpreta o conto como uma poética da leitura elaborando a figura do leitor trágico aquele que se entrega sem mediação à ficção e por isso se torna vulnerável à dissolução de sua autonomia interpretativa Essa figura mais do que um personagem do conto é uma chave simbólica para pensarmos o que significa ser leitor no mundo contemporâneo A síntese desses argumentos revela que Continuidadde los parques não é apenas um conto sobre a relação entre personagem e livro é uma reflexão profunda sobre como a linguagem nos atravessa e nos transforma Cortázar com precisão quase cirúrgica desmonta a suposta neutralidade do ato de ler A leitura não é um passeio seguro por territórios alheios mas uma travessia com consequências A figura do homem sentado confortável em sua poltrona que se vê assassinado pela própria história que lia representa a fragilidade da condição leitora quando esta se ancora na ilusão da distância Somos sempre em alguma medida atravessados pelo texto e ignorar essa travessia é o que o conto denuncia com uma brutalidade sutil mas definitiva Num segundo plano a narrativa de Cortázar atua como uma crítica a uma forma de estar no mundo que se repete na sociedade contemporânea o automatismo da percepção a anestesia da atenção a passividade diante das imagens das palavras dos discursos A leitura que não perturba que não exige reposicionamento do sujeito tornase cópia da realidade que ela deveria questionar Ao propor uma experiência de leitura que exige escuta interrupção e silêncio Cortázar nos oferece uma possibilidade de resistência resistir ao fluxo raso da leitura rápida ao consumo apressado da linguagem à desatenção como forma de estar Seu conto publicado em meados do século XX parece falar diretamente a nós leitores do século XXI que nos debatemos entre excesso de informação e escassez de interioridade Essa dimensão crítica do conto amplia sua relevância para além do campo literário Ela convoca uma ética do ler que se baseia não na produtividade mas na presença Ler aqui não é produzir sentido imediatamente mas tolerar o vazio o intervalo o incômodo É escutar o que o texto tem a nos dizer mas também escutar o que ele faz em nós A dissolução entre realidade e ficção então se apresenta menos como um artifício fantástico e mais como uma metáfora da vida em tempos em que as mediações simbólicas perdem sua nitidez A leitura nesse cenário não é mais um gesto protegido ela é vulnerabilidade exposição e possibilidade de reinvenção Ao final permanece a imagem do leitor que morre na poltrona e ela nos inquieta não apenas pelo desfecho narrativo mas pela identificação incômoda que provoca Quantas vezes lemos como ele absortos passivos anestesiados Quantas vezes permitimos que a linguagem nos atravessasse sem vigilância E por outro lado quantas vezes nos deixamos de fato afetar por aquilo que lemos a ponto de nos transformarmos Cortázar nos mostra que o leitor não é um observador externo ele está no centro da narrativa mesmo quando acredita estar à margem Ao perder essa consciência tornase prisioneiro do texto mas ao retomála tornase seu cocriador Assim Continuidad de los parques nos oferece mais do que uma história engenhosa oferece uma convocação Uma convocação à escuta à presença e à ética do ler Reafirma que o verdadeiro efeito da literatura não é a evasão mas o abalo Que o texto não termina na última linha mas continua em nós nas perguntas que nos deixa nos silêncios que provoca nos olhos que nos obriga a levantar Ler afinal é uma forma de entrar em contato com o outro com a alteridade do mundo da linguagem e de si mesmo E esse encontro como todo encontro verdadeiro nunca acontece sem consequências Porque talvez o conto não seja em última instância sobre um assassinato na sala mas sobre a morte simbólica de um leitor que se esqueceu de estar presente Talvez a pergunta final não seja o que aconteceu com o homem na poltrona mas quem somos nós quando lemos Cortázar com sua narrativa afiada nos convida a responder não com palavras mas com escuta com silêncio com corpo Porque ler no fundo é isso estar disposto a ser tocado E permitir com coragem que algo em nós jamais volte a ser o mesmo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CORTÁZAR Julio Algunos aspectos del cuento 19621963 Casa de las Américas n 1516 La Habana 1963 CORTÁZAR Julio Continuidad de los parques In Final del juego Buenos Aires Sudamericana 1956 RIVERA Silvia Elena Solano Continuidad de los parques una poética de lectura Revista Káñina v 33 n 1 2009 RESTREPO Germán Castaño Cultura popular oralidad y literatura en Los funerales de la Mamá Grande Anales de Literatura Hispanoamericana v 36 p 255268 2007 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO UC Literatura em Castelhano Prosa Sara Souza Barbosa 170817 O leitor a ficção e a realidade em Continuidad de los parques de Júlio Cortázar Introdução Ler pode parecer um gesto simples à primeira vista Pegamos um livro nos acomodamos em um lugar confortável e deixamos as palavras nos conduzirem como se entrássemos em um universo paralelo longe das demandas do mundo real Mas esse ato muitas vezes banalizado pela rotina é uma das experiências mais complexas e transformadoras que podemos viver Ler é antes de tudo um ato de atenção e entrega É se permitir ser afetado por algo que não é totalmente nosso mas que mesmo assim nos toca profundamente E essa é justamente a beleza dessa experiência um equilíbrio delicado entre controle e vulnerabilidade entre o prazer e o risco que Julio Cortázar representa com intensidade no conto Continuidad de los parques Publicado originalmente em Final del juego 1956 o conto é um marco da literatura fantástica latinoamericana e um exemplo da estética de Cortázar Ao narrar a história de um homem que retoma a leitura de um romance e acaba ele próprio sendo engolido por essa leitura o autor argentino nos apresenta muito mais do que um artifício de fusão entre realidade e ficção Ele nos oferece uma crítica sutil porém profunda ao lugar que ocupamos enquanto leitores o lugar da escuta passiva da distração confortável da ausência de vigilância interpretativa Em poucas páginas Cortázar nos faz perceber que ao abrir um livro abrimos também uma brecha em nós mesmos e que se não estivermos atentos aquilo que lemos pode começar a nos ler de volta Esse movimento de inversão entre leitor e personagem entre sujeito e objeto da leitura é o que torna o conto tão inquietante Não se trata apenas de uma surpresa narrativa O leitor da história tanto o interno o homem na poltrona quanto o externo nós que o lemos é capturado pelo enredo O que se revela então é que a leitura não é uma atividade neutra mas uma experiência existencial ela nos constitui nos modifica e nos coloca em prova Cortázar quebra a ideia da leitura como apenas um hobby e a transforma em algo mais simbólico A ficção aqui não é apenas linguagem é acontecimento Nesta ótica este ensaio propõe analisar Continuidad de los parques como uma narrativa que elabora uma crítica à figura do leitor contemporâneo fragilizado e por vezes ausente de si no momento da leitura Em poucas páginas Cortázar propõe uma experiência literária que desafia o lugar tradicional do leitor e estabelece uma relação entre o leitor e o texto lido Para isso será utilizado dois textos fundamentais Algunos aspectos del cuento 1963 ensaio em que Cortázar apresenta sua concepção estética do conto como estrutura voltada a produzir um impacto imediato no leitor e o artigo Continuidad de los parques una poética de lectura 2009 de Silvia Elena Solano Rivera que interpreta o conto como uma advertência crítica ao leitor que se entrega à ficção sem consciência o tornando vítima do seu raso poder interpretativo A tese que atravessa este ensaio é a de que Continuidad de los parques constrói por meio de sua forma sua progressão e seu desfecho uma metáfora precisa da leitura como experiência Ao acabar com as fronteiras entre ficção e realidade o conto obriga o leitor a repensar sua própria relação com o texto uma ética da leitura que exige presença responsabilidade ao interpretar e atenção ao modo como a linguagem nos forma A análise aqui será organizada em torno de três pontos principais a forma narrativa do conto como uma construção estética de impacto a figura do leitor como personagem central e sujeito vulnerável à ficção e por fim a atualidade desse debate diante da crise contemporânea da leitura uma crise marcada por muita informação falta de foco e pela perda do silêncio que a leitura exige Ler na verdade é muito mais do que decifrar símbolos ou seguir uma história É um encontro entre mundos o do texto e o nosso e como todo encontro verdadeiro exige disponibilidade atenção e coragem Continuidad de los parques é nesse sentido um chamado um chamado para estarmos presentes na leitura e conscientes da força da linguagem E talvez seja justamente isso que torna o conto uma obra marcante ele não termina quando a história chega ao fim mas no momento em que o leitor transformado pela experiência levanta os olhos da página e se pergunta onde estou Porque às vezes ao entrarmos em um livro também nos perdemos de nós mesmos E com sorte nos reencontramos Análise No ensaio Algunos aspectos del cuento Cortázar 1963 defende que o conto deve ser marcado por condensação e intensidade com o objetivo de causar um impacto imediato no leitor Ele usa a metáfora do knockout comparando o conto ao boxe para ilustrar que a narrativa curta precisa sacudir o leitor de forma repentina e definitiva Diferente do romance que atua aos poucos acumulando efeitos ao longo do tempo o conto deve ser uma espécie de golpe certeiro O conto é uma esfera perfeita e fechada que se justifica inteiramente por sua tensão interna CORTÁZAR 1963 p 3 Essa ideia estética fica evidente na estrutura de Continuidad de los parques a narrativa leva o leitor por uma armadilha cuidadosamente construída onde tudo acontece de forma fluida e quase hipnotizante Só no final ele percebe que a linha entre ficção e realidade foi completamente apagada Esse efeito não é apenas uma escolha estilística mas um modo de construir uma ligação específica com o leitor que exige dele envolvimento sensorial e existencial O personagem principal um homem que se senta confortavelmente para retomar a leitura de seu romance não é apenas uma figura dentro da história mas um espelho do próprio leitor real cuja experiência de leitura também é gradual e envolvente Ao final quando a narrativa do livro lido pelo personagem se funde com a sua realidade é o leitor externo que se vê deslocado afetado desestabilizado A forma como Cortázar constrói essa transição revela uma das ideias centrais da sua teoria o conto deve ser um estalo para o leitor rompendo o cotidiano e revelando uma nova ordem de sentido O efeito surpresa no final quando o amante armado entra silenciosamente na casa e se dirige à poltrona onde está o homem lendo não é apenas um truque narrativo É o clímax da história que usa a linguagem para romper as barreiras entre o texto e a vida real Assim a estética do conto se conecta a uma visão mais ampla de leitura que v a i a l é m d a s i m p l e s interpretação e também envolve a experiência de quem lê Solano 2009 propõe que Continuidad de los parques constrói uma figura bem particular de leitor aquele que se entrega à narrativa sem questionar deixandose levar por ela Para a autora Cortázar não escreve apenas um conto fantástico mas uma poética de leitura ou seja uma reflexão sobre o modo como os textos literários interpelam seus leitores e os transformam Rivera afirma El texto no sólo representa una historia sino que activa una determinada figura de lector uno que es absorbido por la ficción hasta confundirse con ella RIVERA 2009 p 47 Esse leitor caracterizado como trágico é aquele que abdica de sua posição crítica diante do texto e se deixa absorver completamente pela narrativa A tragédia não está apenas na morte física do personagem mas em sua incapacidade de manter um distanciamento simbólico frente à ficção A leitura deixa de ser mediação e tornase total identificação Essa ideia de entrega sem mediação também é lida por Rivera como uma advertência epistemológica há riscos envolvidos no ato de ler principalmente quando esse ato se dá de forma passiva acrítica e anestesiada A metáfora criada por Cortázar é de certa forma ambígua Por um lado ela mostra que a leitura pode ser uma experiência estética profunda que dissolve fronteiras e faz o sujeito e o texto se fundirem Mas por outro lado essa fusão também pode significar uma perda da autonomia na interpretação o que pode levar a uma espécie de alienação simbólica O personagem acaba se tornando vítima de uma história que achava controlar Ele não percebe que o livro que está lendo também o inclui que a ficção que consome já o engoliu Essa inversão traz à tona o conceito de lectura especular trabalhado por Rivera em que o leitor se vê refletido no texto mas só percebe isso quando já é tarde demais Ao juntar o espaço da leitura com o espaço da ação Cortázar quebra a ideia de um leitor protegido apenas observando de sua poltrona Essa poltrona símbolo clássico de conforto e tranquilidade na rotina burguesa passa a ser cenário de vulnerabilidade O ato de ler que parece tão simples e inofensivo revelase perigoso A violência final do conto que permanece ambígua não é apenas literal mas simbólica o leitor é atingido por aquilo que leu Dessa maneira a análise de Rivera nos permite compreender Continuidad de los parques como uma crítica aos modos convencionais de leitura A literatura nesse conto não serve para tranquilizar mas para desestabilizar A dissolução da fronteira entre realidade e ficção é o mecanismo através do qual Cortázar propõe uma ética da leitura toda leitura é um risco e todo leitor é potencialmente afetado A figura do leitor trágico é assim o ponto de convergência entre o projeto estético e a crítica epistemológica que atravessa a narrativa A figura do leitor proposta por Cortázar em Continuidad de los parques adquire novos contornos quando observada à luz do contexto contemporâneo marcado pela fragmentação da atenção pela aceleração dos fluxos informacionais e pela predominância de práticas de leitura superficiais A advertência contida no conto antecipa uma das questões centrais da era digital a vulnerabilidade do sujeito diante do excesso de narrativas e discursos A dissolução entre realidade e ficção que no conto aparece como estratégia literária pode ser lida também como metáfora da condição do leitor moderno Hoje as fronteiras entre texto e mundo entre representação e vivência são cada vez mais tênues A leitura já não ocorre em espaços protegidos de contemplação mas em ambientes saturados de estímulos nos quais a crítica a pausa e o silêncio tornamse exceção A passividade denunciada por Rivera não é apenas um traço individual mas sintoma de um processo cultural mais amplo a estetização da informação a espetacularização da linguagem e a erosão da escuta ativa Cortázar ao propor uma literatura que captura e transforma o leitor contrapõese a essas práticas e convoca o sujeito a reocupar seu lugar como agente da leitura A metáfora da morte final do conto não representa apenas a derrota do personagem mas também a morte simbólica de um leitor que renuncia à responsabilidade de interpretar O gesto de ler nesse sentido não é neutro ele produz efeitos interfere na constituição do sujeito molda formas de perceber e de agir no mundo É nesse ponto que a leitura se torna também uma prática política e ética A forma como se lê define não apenas uma postura estética mas uma atitude diante da realidade Assim como a fusão entre ficção e ação na narrativa de Cortázar revela uma armadilha para o personagem ela funciona para o leitor externo como um convite à vigilância interpretativa A leitura longe de ser uma atividade de refúgio emerge como uma arena de disputa simbólica A escolha por manter a ambiguidade no desfecho intensifica essa dimensão crítica Cortázar não oferece respostas fáceis pelo contrário desestabiliza expectativas e obriga o leitor a ocupar uma posição interpretativa ativa Nesse sentido o conto realiza aquilo que o próprio Cortázar defendia como princípio estético provocar no leitor uma espécie de ruptura interior um abalo que o arranque do automatismo perceptivo Tal como afirmava em Algunos aspectos del cuento o verdadeiro conto é aquele que nos obriga a fechar o livro levantar a cabeça e permanecer um tempo em silêncio CORTÁZAR 1963 p 6 Esse silêncio é talvez o efeito mais potente de uma leitura transformadora Continuidad de los parques não é apenas uma narrativa engenhosa do fantástico latinoamericano mas uma reflexão profunda sobre o ato de ler e suas implicações estéticas subjetivas e éticas Ao fundir ficção e realidade Cortázar desestabiliza a posição tradicional do leitor e revela que toda leitura é também um risco ela pode construir mas também desorientar pode ampliar a percepção mas igualmente cegar A figura do leitor trágico proposta por Silvia Elena Solano Rivera sintetiza essa tensão ao se entregar de forma acrítica ao texto o sujeito abre mão da distância interpretativa que poderia protegêlo de ser capturado pelas armadilhas da linguagem A teoria do conto elaborada por Cortázar em Algunos aspectos del cuento ajuda a compreender como a forma narrativa breve intensa circular participa ativamente da construção desse efeito O conto não busca acumular acontecimentos mas criar um impacto concentrado um deslocamento que ecoa para além da leitura Nesse sentido o final abrupto de Continuidad de los parques não se esgota na surpresa mas provoca um gesto reflexivo o leitor é forçado a retornar ao início do texto a reler a se posicionar diante do que pensava compreender Esse movimento de releitura de desnaturalização do gesto de ler é o que confere ao conto sua potência crítica Ao tematizar a leitura como experiência perigosa Cortázar propõe uma ética interpretativa que desafia o leitor a sair da passividade e assumir seu papel como sujeito da linguagem Em tempos marcados pela multiplicação de discursos e pela superficialidade da atenção essa proposta adquire uma relevância ainda maior A literatura como demonstra o conto não se limita a entreter ou ornamentar ela perturba questiona desestabiliza e nesse gesto tornase espaço de reinvenção do próprio sujeito leitor Assim a pergunta deixada em aberto ao final do conto não é apenas o que aconteceu com o homem na poltrona mas o que acontece conosco quando permitimos que a leitura nos atinja profundamente Ao expor os perigos e as potências do texto Cortázar convida à reinvenção da leitura como ato de presença escuta e transformação Ler afinal é também escreverse de novo e isso como nos ensina o conto jamais acontece sem consequências Conclusão Ao atravessar as poucas mas intensas páginas de Continuidad de los parques temos uma certeza há textos que não apenas são lidos mas que nos leem O conto de Cortázar é um desses textos Ele não termina ao fim da narrativa na verdade pelo contrário ele começa ali no momento em que o leitor se vê imerso na poltrona no silêncio e na distração A proposta central deste ensaio consistiu em examinar essa estrutura narrativa construída para que se interligue em nós e o papel do leitor nessa trajetória de leitura Defendese que Cortázar ao juntar realidade e ficção com formalidade nos oferece não apenas um conto memorável mas uma crítica ao gesto da leitura como algo que transcende o ato de ler uma experiência completa Ao longo da nossa análise começamos pensando na concepção estética do conto como uma estrutura que busca condensar ideias e causar um impacto imediato conforme próprio autor defende em Algunos aspectos del cuento Vimos como essa teoria se aplica de forma exemplar em Continuidad de los parques A forma circular a progressão fluida e o final ambíguo criam uma tensão entre o que é visto e o que é sentido entre a narrativa e a interpretação Para ampliar essa compreensão também recorremos à abordagem de Silvia Elena Solano Rivera que entende o conto como uma poética da leitura Ela fala sobre o leitor trágico aquele que se entrega à ficção sem mediações tornandose vulnerável à dissolução de sua autonomia interpretativa Essa figura mais do que um personagem da história serve como uma metáfora importante para refletirmos sobre o que significa ser leitor nos dias de hoje A síntese desses argumentos revela que Continuidad de los parques não é apenas um conto sobre a relação entre personagem e livro é uma reflexão profunda sobre como a linguagem nos atravessa e nos transforma Cortázar com precisão quase cirúrgica desmonta a suposta neutralidade do ato de ler A leitura não é um passeio seguro por territórios alheios mas uma travessia com consequências A figura do homem sentado confortável em sua poltrona que se vê assassinado pela própria história que lia representa a fragilidade da condição leitora quando esta se ancora na ilusão da distância Somos sempre em alguma medida atravessados pelo texto e ignorar essa travessia é o que o conto denuncia com uma brutalidade sutil mas definitiva No segundo plano a narrativa de Cortázar funciona como uma crítica a uma forma de estar no mundo que ainda se repete na sociedade de hoje o automatismo de perceber as coisas a anestesia da atenção a passividade diante das imagens palavras e discursos Quando a leitura não desafia não exige que a gente mude de lugar ou repense algo ela acaba sendo uma cópia da realidade que deveria estar questionando Ao propor uma experiência de leitura que pede escuta pausa e silêncio Cortázar nos oferece uma chance de resistência resistir ao ritmo superficial da leitura rápida ao consumo acelerado da linguagem e à desatenção como jeito de estar no mundo Seu conto escrito na metade do século XX parece falar diretamente conosco leitores do século XXI que convivemos com um excesso de informações e uma escassez de momentos de interioridade Essa dimensão fundamental do conto amplia seu significado além do universo literário Ela nos convida a repensar uma ética do ato de ler que não se baseia na busca por produtividade mas na presença verdadeira Ler nesse sentido não é simplesmente produzir sentido de imediato é aprender a tolerar o vazio o intervalo e o desconforto que eles podem gerar É ouvir com atenção o que o texto tem a dizer mas também perceber o que ele provoca em nós A mistura entre realidade e ficção portanto aparece menos como um truque fantástico e mais como uma metáfora da vida em tempos nos quais as mediações simbólicas vão perdendo sua clareza Nesse contexto a leitura deixa de ser um ato protegido e passa a ser algo vulnerável uma exposição que abre espaço para novas possibilidades de reinvenção No final fica a imagem do leitor que morre na poltrona Essa imagem nos incomoda não só pelo desfecho da história mas também pelo incômodo de nós identificar com ela Quantas vezes lemos de forma passiva abstraídos ou anestesiados Quantas vezes deixamos a linguagem nos atravessar sem atenção E por outro lado quantas vezes nos permitimos de fato sermos tão impactados pelo que lemos a ponto de nos transformarmos Cortázar nos mostra que o leitor não é apenas um observador externo ele está no centro da narrativa mesmo quando pensa estar à margem dela Quando perdemos essa consciência nos tornamos prisioneiros do texto Mas ao retomála passamos a ser cocriadores da história Assim Continuidad de los parques nos oferece mais do que uma história inteligente ela nos convida a refletir É uma convocação à escuta à presença e à ética do ato de ler Reforça que o verdadeiro efeito da literatura não é a fuga mas o impacto aquele abalo que ela provoca O texto não termina na última linha ele continua vivo dentro de nós nas perguntas que deixa nos silêncios que desperta e até nos olhares que nos obrigam a levantar Afinal ler é uma maneira de se conectar com o outro com a alteridade do mundo da linguagem e de si mesmo E esse encontro como todo verdadeiro encontro nunca ocorre sem deixar marcas Talvez no fim das contas o conto não seja apenas sobre um assassinato na sala mas sobre a morte simbólica de um leitor que se esqueceu de estar presente Talvez a pergunta final não seja O que aconteceu com o homem na poltrona mas sim Quem somos nós quando lemos Cortázar com sua narrativa afiada nos convida a responder não apenas com palavras mas com escuta silêncio e o corpo Porque no fundo ler é isso estar disposto a ser tocado E com coragem permitir que algo em nós nunca mais seja o mesmo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CORTÁZAR Julio Algunos aspectos del cuento 19621963 Casa de las Américas n 1516 La Habana 1963 CORTÁZAR Julio Continuidad de los parques In Final del juego Buenos Aires Sudamericana 1956 RIVERA Silvia Elena Solano Continuidad de los parques una poética de lectura Revista Káñina v 33 n 1 2009 RESTREPO Germán Castaño Cultura popular oralidad y literatura en Los funerales de la Mamá Grande Anales de Literatura Hispanoamericana v 36 p 255268 2007 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO UC Literatura em Castelhano Prosa Sara Souza Barbosa 170817 O leitor a ficção e a realidade em Continuidad de los parques de Júlio Cortázar Introdução Ler pode parecer um gesto simples à primeira vista Pegamos um livro nos acomodamos em um lugar confortável e deixamos as palavras nos conduzirem como se entrássemos em um universo paralelo longe das demandas do mundo real Mas esse ato muitas vezes banalizado pela rotina é uma das experiências mais complexas e transformadoras que podemos viver Ler é antes de tudo um ato de atenção e entrega É se permitir ser afetado por algo que não é totalmente nosso mas que mesmo assim nos toca profundamente E essa é justamente a beleza dessa experiência um equilíbrio delicado entre controle e vulnerabilidade entre o prazer e o risco que Julio Cortázar representa com intensidade no conto Continuidad de los parques Publicado originalmente em Final del juego 1956 o conto é um marco da literatura fantástica latinoamericana e um exemplo da estética de Cortázar Ao narrar a história de um homem que retoma a leitura de um romance e acaba ele próprio sendo engolido por essa leitura o autor argentino nos apresenta muito mais do que um artifício de fusão entre realidade e ficção Ele nos oferece uma crítica sutil porém profunda ao lugar que ocupamos enquanto leitores o lugar da escuta passiva da distração confortável da ausência de vigilância interpretativa Em poucas páginas Cortázar nos faz perceber que ao abrir um livro abrimos também uma brecha em nós mesmos e que se não estivermos atentos aquilo que lemos pode começar a nos ler de volta Esse movimento de inversão entre leitor e personagem entre sujeito e objeto da leitura é o que torna o conto tão inquietante Não se trata apenas de uma surpresa narrativa O leitor da história tanto o interno o homem na poltrona quanto o externo nós que o lemos é capturado pelo enredo O que se revela então é que a leitura não é uma atividade neutra mas uma experiência existencial ela nos constitui nos modifica e nos coloca em prova Cortázar quebra a ideia da leitura como apenas um hobby e a transforma em algo mais simbólico A ficção aqui não é apenas linguagem é acontecimento Nesta ótica este ensaio propõe analisar Continuidad de los parques como uma narrativa que elabora uma crítica à figura do leitor contemporâneo fragilizado e por vezes ausente de si no momento da leitura Em poucas páginas Cortázar propõe uma experiência literária que desafia o lugar tradicional do leitor e estabelece uma relação entre o leitor e o texto lido Para isso será utilizado dois textos fundamentais Algunos aspectos del cuento 1963 ensaio em que Cortázar apresenta sua concepção estética do conto como estrutura voltada a produzir um impacto imediato no leitor e o artigo Continuidad de los parques una poética de lectura 2009 de Silvia Elena Solano Rivera que interpreta o conto como uma advertência crítica ao leitor que se entrega à ficção sem consciência o tornando vítima do seu raso poder interpretativo A tese que atravessa este ensaio é a de que Continuidad de los parques constrói por meio de sua forma sua progressão e seu desfecho uma metáfora precisa da leitura como experiência Ao acabar com as fronteiras entre ficção e realidade o conto obriga o leitor a repensar sua própria relação com o texto uma ética da leitura que exige presença responsabilidade ao interpretar e atenção ao modo como a linguagem nos forma A análise aqui será organizada em torno de três pontos principais a forma narrativa do conto como uma construção estética de impacto a figura do leitor como personagem central e sujeito vulnerável à ficção e por fim a atualidade desse debate diante da crise contemporânea da leitura uma crise marcada por muita informação falta de foco e pela perda do silêncio que a leitura exige Ler na verdade é muito mais do que decifrar símbolos ou seguir uma história É um encontro entre mundos o do texto e o nosso e como todo encontro verdadeiro exige disponibilidade atenção e coragem Continuidad de los parques é nesse sentido um chamado um chamado para estarmos presentes na leitura e conscientes da força da linguagem E talvez seja justamente isso que torna o conto uma obra marcante ele não termina quando a história chega ao fim mas no momento em que o leitor transformado pela experiência levanta os olhos da página e se pergunta onde estou Porque às vezes ao entrarmos em um livro também nos perdemos de nós mesmos E com sorte nos reencontramos Análise No ensaio Algunos aspectos del cuento Cortázar 1963 defende que o conto deve ser marcado por condensação e intensidade com o objetivo de causar um impacto imediato no leitor Ele usa a metáfora do knockout comparando o conto ao boxe para ilustrar que a narrativa curta precisa sacudir o leitor de forma repentina e definitiva Diferente do romance que atua aos poucos acumulando efeitos ao longo do tempo o conto deve ser uma espécie de golpe certeiro O conto é uma esfera perfeita e fechada que se justifica inteiramente por sua tensão interna CORTÁZAR 1963 p 3 Essa ideia estética fica evidente na estrutura de Continuidad de los parques a narrativa leva o leitor por uma armadilha cuidadosamente construída onde tudo acontece de forma fluida e quase hipnotizante Só no final ele percebe que a linha entre ficção e realidade foi completamente apagada Esse efeito não é apenas uma escolha estilística mas um modo de construir uma ligação específica com o leitor que exige dele envolvimento sensorial e existencial O personagem principal um homem que se senta confortavelmente para retomar a leitura de seu romance não é apenas uma figura dentro da história mas um espelho do próprio leitor real cuja experiência de leitura também é gradual e envolvente Ao final quando a narrativa do livro lido pelo personagem se funde com a sua realidade é o leitor externo que se vê deslocado afetado desestabilizado A forma como Cortázar constrói essa transição revela uma das ideias centrais da sua teoria o conto deve ser um estalo para o leitor rompendo o cotidiano e revelando uma nova ordem de sentido O efeito surpresa no final quando o amante armado entra silenciosamente na casa e se dirige à poltrona onde está o homem lendo não é apenas um truque narrativo É o clímax da história que usa a linguagem para romper as barreiras entre o texto e a vida real Assim a estética do conto se conecta a uma visão mais ampla de leitura que v a i a l é m d a s i m p l e s interpretação e também envolve a experiência de quem lê Solano 2009 propõe que Continuidad de los parques constrói uma figura bem particular de leitor aquele que se entrega à narrativa sem questionar deixandose levar por ela Para a autora Cortázar não escreve apenas um conto fantástico mas uma poética de leitura ou seja uma reflexão sobre o modo como os textos literários interpelam seus leitores e os transformam Rivera afirma El texto no sólo representa una historia sino que activa una determinada figura de lector uno que es absorbido por la ficción hasta confundirse con ella RIVERA 2009 p 47 Esse leitor caracterizado como trágico é aquele que abdica de sua posição crítica diante do texto e se deixa absorver completamente pela narrativa A tragédia não está apenas na morte física do personagem mas em sua incapacidade de manter um distanciamento simbólico frente à ficção A leitura deixa de ser mediação e tornase total identificação Essa ideia de entrega sem mediação também é lida por Rivera como uma advertência epistemológica há riscos envolvidos no ato de ler principalmente quando esse ato se dá de forma passiva acrítica e anestesiada A metáfora criada por Cortázar é de certa forma ambígua Por um lado ela mostra que a leitura pode ser uma experiência estética profunda que dissolve fronteiras e faz o sujeito e o texto se fundirem Mas por outro lado essa fusão também pode significar uma perda da autonomia na interpretação o que pode levar a uma espécie de alienação simbólica O personagem acaba se tornando vítima de uma história que achava controlar Ele não percebe que o livro que está lendo também o inclui que a ficção que consome já o engoliu Essa inversão traz à tona o conceito de lectura especular trabalhado por Rivera em que o leitor se vê refletido no texto mas só percebe isso quando já é tarde demais Ao juntar o espaço da leitura com o espaço da ação Cortázar quebra a ideia de um leitor protegido apenas observando de sua poltrona Essa poltrona símbolo clássico de conforto e tranquilidade na rotina burguesa passa a ser cenário de vulnerabilidade O ato de ler que parece tão simples e inofensivo revelase perigoso A violência final do conto que permanece ambígua não é apenas literal mas simbólica o leitor é atingido por aquilo que leu Dessa maneira a análise de Rivera nos permite compreender Continuidad de los parques como uma crítica aos modos convencionais de leitura A literatura nesse conto não serve para tranquilizar mas para desestabilizar A dissolução da fronteira entre realidade e ficção é o mecanismo através do qual Cortázar propõe uma ética da leitura toda leitura é um risco e todo leitor é potencialmente afetado A figura do leitor trágico é assim o ponto de convergência entre o projeto estético e a crítica epistemológica que atravessa a narrativa A figura do leitor proposta por Cortázar em Continuidad de los parques adquire novos contornos quando observada à luz do contexto contemporâneo marcado pela fragmentação da atenção pela aceleração dos fluxos informacionais e pela predominância de práticas de leitura superficiais A advertência contida no conto antecipa uma das questões centrais da era digital a vulnerabilidade do sujeito diante do excesso de narrativas e discursos A dissolução entre realidade e ficção que no conto aparece como estratégia literária pode ser lida também como metáfora da condição do leitor moderno Hoje as fronteiras entre texto e mundo entre representação e vivência são cada vez mais tênues A leitura já não ocorre em espaços protegidos de contemplação mas em ambientes saturados de estímulos nos quais a crítica a pausa e o silêncio tornamse exceção A passividade denunciada por Rivera não é apenas um traço individual mas sintoma de um processo cultural mais amplo a estetização da informação a espetacularização da linguagem e a erosão da escuta ativa Cortázar ao propor uma literatura que captura e transforma o leitor contrapõese a essas práticas e convoca o sujeito a reocupar seu lugar como agente da leitura A metáfora da morte final do conto não representa apenas a derrota do personagem mas também a morte simbólica de um leitor que renuncia à responsabilidade de interpretar O gesto de ler nesse sentido não é neutro ele produz efeitos interfere na constituição do sujeito molda formas de perceber e de agir no mundo É nesse ponto que a leitura se torna também uma prática política e ética A forma como se lê define não apenas uma postura estética mas uma atitude diante da realidade Assim como a fusão entre ficção e ação na narrativa de Cortázar revela uma armadilha para o personagem ela funciona para o leitor externo como um convite à vigilância interpretativa A leitura longe de ser uma atividade de refúgio emerge como uma arena de disputa simbólica A escolha por manter a ambiguidade no desfecho intensifica essa dimensão crítica Cortázar não oferece respostas fáceis pelo contrário desestabiliza expectativas e obriga o leitor a ocupar uma posição interpretativa ativa Nesse sentido o conto realiza aquilo que o próprio Cortázar defendia como princípio estético provocar no leitor uma espécie de ruptura interior um abalo que o arranque do automatismo perceptivo Tal como afirmava em Algunos aspectos del cuento o verdadeiro conto é aquele que nos obriga a fechar o livro levantar a cabeça e permanecer um tempo em silêncio CORTÁZAR 1963 p 6 Esse silêncio é talvez o efeito mais potente de uma leitura transformadora Continuidad de los parques não é apenas uma narrativa engenhosa do fantástico latinoamericano mas uma reflexão profunda sobre o ato de ler e suas implicações estéticas subjetivas e éticas Ao fundir ficção e realidade Cortázar desestabiliza a posição tradicional do leitor e revela que toda leitura é também um risco ela pode construir mas também desorientar pode ampliar a percepção mas igualmente cegar A figura do leitor trágico proposta por Silvia Elena Solano Rivera sintetiza essa tensão ao se entregar de forma acrítica ao texto o sujeito abre mão da distância interpretativa que poderia protegêlo de ser capturado pelas armadilhas da linguagem A teoria do conto elaborada por Cortázar em Algunos aspectos del cuento ajuda a compreender como a forma narrativa breve intensa circular participa ativamente da construção desse efeito O conto não busca acumular acontecimentos mas criar um impacto concentrado um deslocamento que ecoa para além da leitura Nesse sentido o final abrupto de Continuidad de los parques não se esgota na surpresa mas provoca um gesto reflexivo o leitor é forçado a retornar ao início do texto a reler a se posicionar diante do que pensava compreender Esse movimento de releitura de desnaturalização do gesto de ler é o que confere ao conto sua potência crítica Ao tematizar a leitura como experiência perigosa Cortázar propõe uma ética interpretativa que desafia o leitor a sair da passividade e assumir seu papel como sujeito da linguagem Em tempos marcados pela multiplicação de discursos e pela superficialidade da atenção essa proposta adquire uma relevância ainda maior A literatura como demonstra o conto não se limita a entreter ou ornamentar ela perturba questiona desestabiliza e nesse gesto tornase espaço de reinvenção do próprio sujeito leitor Assim a pergunta deixada em aberto ao final do conto não é apenas o que aconteceu com o homem na poltrona mas o que acontece conosco quando permitimos que a leitura nos atinja profundamente Ao expor os perigos e as potências do texto Cortázar convida à reinvenção da leitura como ato de presença escuta e transformação Ler afinal é também escreverse de novo e isso como nos ensina o conto jamais acontece sem consequências Conclusão Ao atravessar as poucas mas intensas páginas de Continuidad de los parques temos uma certeza há textos que não apenas são lidos mas que nos leem O conto de Cortázar é um desses textos Ele não termina ao fim da narrativa na verdade pelo contrário ele começa ali no momento em que o leitor se vê imerso na poltrona no silêncio e na distração A proposta central deste ensaio consistiu em examinar essa estrutura narrativa construída para que se interligue em nós e o papel do leitor nessa trajetória de leitura Defendese que Cortázar ao juntar realidade e ficção com formalidade nos oferece não apenas um conto memorável mas uma crítica ao gesto da leitura como algo que transcende o ato de ler uma experiência completa Ao longo da nossa análise começamos pensando na concepção estética do conto como uma estrutura que busca condensar ideias e causar um impacto imediato conforme próprio autor defende em Algunos aspectos del cuento Vimos como essa teoria se aplica de forma exemplar em Continuidad de los parques A forma circular a progressão fluida e o final ambíguo criam uma tensão entre o que é visto e o que é sentido entre a narrativa e a interpretação Para ampliar essa compreensão também recorremos à abordagem de Silvia Elena Solano Rivera que entende o conto como uma poética da leitura Ela fala sobre o leitor trágico aquele que se entrega à ficção sem mediações tornandose vulnerável à dissolução de sua autonomia interpretativa Essa figura mais do que um personagem da história serve como uma metáfora importante para refletirmos sobre o que significa ser leitor nos dias de hoje A síntese desses argumentos revela que Continuidad de los parques não é apenas um conto sobre a relação entre personagem e livro é uma reflexão profunda sobre como a linguagem nos atravessa e nos transforma Cortázar com precisão quase cirúrgica desmonta a suposta neutralidade do ato de ler A leitura não é um passeio seguro por territórios alheios mas uma travessia com consequências A figura do homem sentado confortável em sua poltrona que se vê assassinado pela própria história que lia representa a fragilidade da condição leitora quando esta se ancora na ilusão da distância Somos sempre em alguma medida atravessados pelo texto e ignorar essa travessia é o que o conto denuncia com uma brutalidade sutil mas definitiva No segundo plano a narrativa de Cortázar funciona como uma crítica a uma forma de estar no mundo que ainda se repete na sociedade de hoje o automatismo de perceber as coisas a anestesia da atenção a passividade diante das imagens palavras e discursos Quando a leitura não desafia não exige que a gente mude de lugar ou repense algo ela acaba sendo uma cópia da realidade que deveria estar questionando Ao propor uma experiência de leitura que pede escuta pausa e silêncio Cortázar nos oferece uma chance de resistência resistir ao ritmo superficial da leitura rápida ao consumo acelerado da linguagem e à desatenção como jeito de estar no mundo Seu conto escrito na metade do século XX parece falar diretamente conosco leitores do século XXI que convivemos com um excesso de informações e uma escassez de momentos de interioridade Essa dimensão fundamental do conto amplia seu significado além do universo literário Ela nos convida a repensar uma ética do ato de ler que não se baseia na busca por produtividade mas na presença verdadeira Ler nesse sentido não é simplesmente produzir sentido de imediato é aprender a tolerar o vazio o intervalo e o desconforto que eles podem gerar É ouvir com atenção o que o texto tem a dizer mas também perceber o que ele provoca em nós A mistura entre realidade e ficção portanto aparece menos como um truque fantástico e mais como uma metáfora da vida em tempos nos quais as mediações simbólicas vão perdendo sua clareza Nesse contexto a leitura deixa de ser um ato protegido e passa a ser algo vulnerável uma exposição que abre espaço para novas possibilidades de reinvenção No final fica a imagem do leitor que morre na poltrona Essa imagem nos incomoda não só pelo desfecho da história mas também pelo incômodo de nós identificar com ela Quantas vezes lemos de forma passiva abstraídos ou anestesiados Quantas vezes deixamos a linguagem nos atravessar sem atenção E por outro lado quantas vezes nos permitimos de fato sermos tão impactados pelo que lemos a ponto de nos transformarmos Cortázar nos mostra que o leitor não é apenas um observador externo ele está no centro da narrativa mesmo quando pensa estar à margem dela Quando perdemos essa consciência nos tornamos prisioneiros do texto Mas ao retomála passamos a ser cocriadores da história Assim Continuidad de los parques nos oferece mais do que uma história inteligente ela nos convida a refletir É uma convocação à escuta à presença e à ética do ato de ler Reforça que o verdadeiro efeito da literatura não é a fuga mas o impacto aquele abalo que ela provoca O texto não termina na última linha ele continua vivo dentro de nós nas perguntas que deixa nos silêncios que desperta e até nos olhares que nos obrigam a levantar Afinal ler é uma maneira de se conectar com o outro com a alteridade do mundo da linguagem e de si mesmo E esse encontro como todo verdadeiro encontro nunca ocorre sem deixar marcas Talvez no fim das contas o conto não seja apenas sobre um assassinato na sala mas sobre a morte simbólica de um leitor que se esqueceu de estar presente Talvez a pergunta final não seja O que aconteceu com o homem na poltrona mas sim Quem somos nós quando lemos Cortázar com sua narrativa afiada nos convida a responder não apenas com palavras mas com escuta silêncio e o corpo Porque no fundo ler é isso estar disposto a ser tocado E com coragem permitir que algo em nós nunca mais seja o mesmo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CORTÁZAR Julio Algunos aspectos del cuento 19621963 Casa de las Américas n 1516 La Habana 1963 CORTÁZAR Julio Continuidad de los parques In Final del juego Buenos Aires Sudamericana 1956 RIVERA Silvia Elena Solano Continuidad de los parques una poética de lectura Revista Káñina v 33 n 1 2009 RESTREPO Germán Castaño Cultura popular oralidad y literatura en Los funerales de la Mamá Grande Anales de Literatura Hispanoamericana v 36 p 255268 2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO UC Literatura em Castelhano Prosa Sara Souza Barbosa 170817 O leitor a ficção e a realidade em Continuidad de los parques de Júlio Cortázar Introdução Ler é um gesto que à primeira vista pode parecer inofensivo Abrimos um livro nos sentamos em um lugar confortável e deixamos que as palavras nos guiem como quem entra em um universo paralelo distante das exigências do mundo real Mas esse gesto por vezes banalizado pela rotina é uma das experiências mais complexas e transformadoras a que nos permitimos Ler é antes de tudo um ato de atenção e entrega É se deixar afetar por algo que não é nosso mas que mesmo assim nos toca e é justamente essa experiência entre o controle e a vulnerabilidade entre o prazer e o risco que Julio Cortázar representa com intensidade no conto Continuidad de los parques Publicado originalmente em Final del juego 1956 o conto é um marco da literatura fantástica latinoamericana e um exemplo da estética de Cortázar Ao narrar a história de um homem que retoma a leitura de um romance e acaba ele próprio sendo engolido por essa leitura o autor argentino nos apresenta muito mais do que um artifício de fusão entre realidade e ficção Ele nos oferece uma crítica sutil porém profunda ao lugar que ocupamos enquanto leitores o lugar da escuta passiva da distração confortável da ausência de vigilância interpretativa Em poucas páginas Cortázar nos faz perceber que ao abrir um livro abrimos também uma brecha em nós mesmos e que se não estivermos atentos aquilo que lemos pode começar a nos ler de volta Esse movimento de inversão entre leitor e personagem entre sujeito e objeto da leitura é o que torna o conto tão inquietante Não se trata apenas de uma surpresa narrativa O leitor da história tanto o interno o homem na poltrona quanto o externo nós que o lemos é capturado pelo enredo O que se revela então é que a leitura não é uma atividade neutra mas uma experiência existencial ela nos constitui nos modifica e nos coloca em prova Cortázar quebra a ideia da leitura como apenas um hobby e a transforma em algo mais simbólico A ficção aqui não é apenas linguagem é acontecimento Nesta ótica este ensaio propõe analisar Continuidad de los parques como uma narrativa que elabora uma crítica à figura do leitor contemporâneo fragilizado e por vezes ausente de si no momento da leitura Em poucas páginas Cortázar propõe uma experiência literária que desafia o lugar tradicional do leitor e estabelece uma relação entre o leitor e o texto lido Para isso será utilizado dois textos fundamentais Algunos aspectos del cuento 1963 ensaio em que Cortázar apresenta sua concepção estética do conto como estrutura voltada a produzir um impacto imediato no leitor e o artigo Continuidad de los parques una poética de lectura 2009 de Silvia Elena Solano Rivera que interpreta o conto como uma advertência crítica ao leitor que se entrega à ficção sem consciência o tornando vítima do seu raso poder interpretativo A tese que atravessa este ensaio é a de que Continuidad de los parques constrói por meio de sua forma sua progressão e seu desfecho uma metáfora precisa da leitura como experiência Ao acabar com as fronteiras entre ficção e realidade o conto obriga o leitor a repensar sua própria relação com o texto propõe uma ética da leitura que exige presença responsabilidade ao interpretar e atenção ao modo como a linguagem nos forma A análise se desenvolverá em torno de três eixos principais a forma narrativa do conto como construção estética de impacto a figura do leitor como personagem central e sujeito vulnerável à ficção e por fim a atualidade desse debate diante da crise contemporânea da leitura uma crise marcada por muita informação falta de foco e pela perda do silêncio que a leitura exige Ler afinal é mais do que decodificar símbolos ou seguir uma trama É um encontro entre mundos o do texto e o nosso e como todo encontro verdadeiro exige disponibilidade escuta e coragem Continuidad de los parques é nesse sentido um chamado um chamado para estarmos presentes na leitura e conscientes da força da linguagem E talvez seja isso que faz do conto uma obra marcante ele não termina quando a história acaba mas quando o leitor já transformado levanta os olhos da página e se pergunta onde estou Porque às vezes ao entrarmos em um livro também nos perdemos de nós mesmos E com sorte nos reencontramos Análise No ensaio Algunos aspectos del cuento Cortázar 1963 defende que o conto deve operar por condensação e intensidade a fim de produzir um impacto imediato no leitor Sua metáfora do knockout comparando o conto ao boxe sugere que a narrativa curta deve abalar o leitor de forma abrupta e definitiva ao contrário do romance que atua por pontos acumulando gradualmente seu efeito O conto é uma esfera perfeita e fechada que se justifica inteiramente por sua tensão interna CORTÁZAR 1963 p 3 Essa concepção estética reflete na estrutura de Continuidad de los parques que conduz o leitor a uma armadilha textual cuidadosamente arquitetada isso acontece porque a narrativa progride de modo fluido e quase hipnotizando o leitor até que no desfecho ele se dá conta de que a linha entre ficção e realidade foi completamente dissolvida Esse efeito não é apenas uma escolha estilística mas um modo de construir uma ligação específica com o leitor que exige dele envolvimento sensorial e existencial O personagem principal um homem que se senta confortavelmente para retomar a leitura de seu romance não é apenas uma figura dentro da história mas um espelho do próprio leitor real cuja experiência de leitura também é gradual e envolvente Ao final quando a narrativa do livro lido pelo personagem se funde com a sua realidade é o leitor externo que se vê deslocado afetado desestabilizado A forma como Cortázar constrói essa transição revela uma das teses centrais da sua teoria o conto deve ser como um estalo diante do leitor rompendo o cotidiano e revelando outra ordem de sentido O efeito de surpresa do final quando o amante armado entra silenciosamente na casa e dirigese à poltrona onde está o homem lendo não é um mero artifício narrativo mas o clímax da construção narrativa que mobiliza os recursos da linguagem para quebrar os limites entre o texto e a vida Nessa ótica a estética do conto se encontra com uma concepção ampliada da leitura que passa o domínio da simples interpretação também ao da experiência Solano 2009 propõe que Continuidadde los parques elabora uma figura particular de leitor aquele que ao entregarse à narrativa sem questionamento tornase vulnerável aos efeitos da ficção Para a autora Cortázar não escreve apenas um conto fantástico mas uma poética de leitura ou seja uma reflexão sobre o modo como os textos literários interpelam seus leitores e os transformam Rivera afirma El texto no sólo representa una historia sino que activa una determinada figura de lector uno que es absorbido por la ficción hasta confundirse con ella RIVERA 2009 p 47 Esse leitor caracterizado como trágico é aquele que abdica de sua posição crítica diante do texto e se deixa absorver completamente pela narrativa A tragédia não está apenas na morte física do personagem mas em sua incapacidade de manter um distanciamento simbólico frente à ficção A leitura deixa de ser mediação e tornase total identificação Essa ideia de entrega sem mediação também é lida por Rivera como uma advertência epistemológica há riscos envolvidos no ato de ler principalmente quando esse ato se dá de forma passiva acrítica e anestesiada A metáfora construída por Cortázar é portanto ambígua por um lado a leitura se apresenta como experiência estética radical que permite a dissolução de fronteiras e a fusão entre sujeito e texto por outro essa fusão implica uma perda da autonomia interpretativa que pode levar à alienação simbólica O personagem tornase presa de uma história que acreditava controlar Ele não percebe que o livro que lê o inclui que a ficção que consome já o devorou Essa inversão ilustra o conceito de lectura especular trabalhado por Rivera em que o leitor vê a si mesmo refletido no texto mas sem reconhecer o espelhamento até que seja tarde demais Ao fundir o espaço da leitura com o espaço da ação Cortázar rompe com a ideia de um leitor protegido observador seguro em sua poltrona A poltrona símbolo clássico do conforto e do recolhimento burguês tornase o cenário da vulnerabilidade O gesto de ler aparentemente inofensivo revelase perigoso A violência final do conto que permanece ambígua não é apenas literal mas simbólica o leitor é atingido por aquilo que leu Dessa maneira a análise de Rivera nos permite compreender Continuidad de los parques como uma crítica aos modos convencionais de leitura A literatura nesse conto não serve para tranquilizar mas para desestabilizar A dissolução da fronteira entre realidade e ficção é o mecanismo através do qual Cortázar propõe uma ética da leitura toda leitura é um risco e todo leitor é potencialmente afetado A figura do leitor trágico é assim o ponto de convergência entre o projeto estético e a crítica epistemológica que atravessa a narrativa A figura do leitor proposta por Cortázar em Continuidad de los parques adquire novos contornos quando observada à luz do contexto contemporâneo marcado pela fragmentação da atenção pela aceleração dos fluxos informacionais e pela predominância de práticas de leitura superficiais A advertência contida no conto antecipa uma das questões centrais da era digital a vulnerabilidade do sujeito diante do excesso de narrativas e discursos A dissolução entre realidade e ficção que no conto aparece como estratégia literária pode ser lida também como metáfora da condição do leitor moderno Hoje as fronteiras entre texto e mundo entre representação e vivência são cada vez mais tênues A leitura já não ocorre em espaços protegidos de contemplação mas em ambientes saturados de estímulos nos quais a crítica a pausa e o silêncio tornamse exceção A passividade denunciada por Rivera não é apenas um traço individual mas sintoma de um processo cultural mais amplo a estetização da informação a espetacularização da linguagem e a erosão da escuta ativa Cortázar ao propor uma literatura que captura e transforma o leitor contrapõese a essas práticas e convoca o sujeito a reocupar seu lugar como agente da leitura A metáfora da morte final do conto não representa apenas a derrota do personagem mas também a morte simbólica de um leitor que renuncia à responsabilidade de interpretar O gesto de ler nesse sentido não é neutro ele produz efeitos interfere na constituição do sujeito molda formas de perceber e de agir no mundo É nesse ponto que a leitura se torna também uma prática política e ética A forma como se lê define não apenas uma postura estética mas uma atitude diante da realidade Assim como a fusão entre ficção e ação na narrativa de Cortázar revela uma armadilha para o personagem ela funciona para o leitor externo como um convite à vigilância interpretativa A leitura longe de ser uma atividade de refúgio emerge como uma arena de disputa simbólica A escolha por manter a ambiguidade no desfecho intensifica essa dimensão crítica Cortázar não oferece respostas fáceis pelo contrário desestabiliza expectativas e obriga o leitor a ocupar uma posição interpretativa ativa Nesse sentido o conto realiza aquilo que o próprio Cortázar defendia como princípio estético provocar no leitor uma espécie de ruptura interior um abalo que o arranque do automatismo perceptivo Tal como afirmava em Algunos aspectos del cuento o verdadeiro conto é aquele que nos obriga a fechar o livro levantar a cabeça e permanecer um tempo em silêncio CORTÁZAR 1963 p 6 Esse silêncio é talvez o efeito mais potente de uma leitura transformadora Continuidad de los parques não é apenas uma narrativa engenhosa do fantástico latinoamericano mas uma reflexão profunda sobre o ato de ler e suas implicações estéticas subjetivas e éticas Ao fundir ficção e realidade Cortázar desestabiliza a posição tradicional do leitor e revela que toda leitura é também um risco ela pode construir mas também desorientar pode ampliar a percepção mas igualmente cegar A figura do leitor trágico proposta por Silvia Elena Solano Rivera sintetiza essa tensão ao se entregar de forma acrítica ao texto o sujeito abre mão da distância interpretativa que poderia protegêlo de ser capturado pelas armadilhas da linguagem A teoria do conto elaborada por Cortázar em Algunos aspectos del cuento ajuda a compreender como a forma narrativa breve intensa circular participa ativamente da construção desse efeito O conto não busca acumular acontecimentos mas criar um impacto concentrado um deslocamento que ecoa para além da leitura Nesse sentido o final abrupto de Continuidad de los parques não se esgota na surpresa mas provoca um gesto reflexivo o leitor é forçado a retornar ao início do texto a reler a se posicionar diante do que pensava compreender Esse movimento de releitura de desnaturalização do gesto de ler é o que confere ao conto sua potência crítica Ao tematizar a leitura como experiência perigosa Cortázar propõe uma ética interpretativa que desafia o leitor a sair da passividade e assumir seu papel como sujeito da linguagem Em tempos marcados pela multiplicação de discursos e pela superficialidade da atenção essa proposta adquire uma relevância ainda maior A literatura como demonstra o conto não se limita a entreter ou ornamentar ela perturba questiona desestabiliza e nesse gesto tornase espaço de reinvenção do próprio sujeito leitor Assim a pergunta deixada em aberto ao final do conto não é apenas o que aconteceu com o homem na poltrona mas o que acontece conosco quando permitimos que a leitura nos atinge profundamente Ao expor os perigos e as potências do texto Cortázar convida à reinvenção da leitura como ato de presença escuta e transformação Ler afinal é também escreverse de novo e isso como nos ensina o conto jamais acontece sem consequências Conclusão Ao atravessar as poucas mas intensas páginas de Continuidad de los parques temos uma certeza há textos que não apenas são lidos mas que nos leem O conto de Cortázar é um desses textos Ele não termina ao fim da narrativa na verdade pelo contrário ele começa ali no momento em que o leitor se vê imerso na poltrona no silêncio e na distração A proposta central deste ensaio consistiu em examinar essa estrutura narrativa construída para que se interligue em nós e o papel do leitor nessa trajetória de leitura Defende se que Cortázar ao juntar realidade e ficção com formalidade nos oferece não apenas um conto memorável mas uma crítica ao gesto da leitura como algo que transcende o ato de ler uma experiência completa Ao longo da análise partimos da concepção estética do conto como estrutura de condensação e impacto imediato conforme defendida pelo próprio autor em Algunos aspectos del cuento Identificamos como essa teoria se realiza de maneira exemplar em Continuidad de los parques cuja forma circular progressão fluida e final ambíguo criam um campo de tensão entre o que se observa e o que se é Complementamos essa leitura com a abordagem proposta por Silvia Elena Solano Rivera que interpreta o conto como uma poética da leitura elaborando a figura do leitor trágico aquele que se entrega sem mediação à ficção e por isso se torna vulnerável à dissolução de sua autonomia interpretativa Essa figura mais do que um personagem do conto é uma chave simbólica para pensarmos o que significa ser leitor no mundo contemporâneo A síntese desses argumentos revela que Continuidadde los parques não é apenas um conto sobre a relação entre personagem e livro é uma reflexão profunda sobre como a linguagem nos atravessa e nos transforma Cortázar com precisão quase cirúrgica desmonta a suposta neutralidade do ato de ler A leitura não é um passeio seguro por territórios alheios mas uma travessia com consequências A figura do homem sentado confortável em sua poltrona que se vê assassinado pela própria história que lia representa a fragilidade da condição leitora quando esta se ancora na ilusão da distância Somos sempre em alguma medida atravessados pelo texto e ignorar essa travessia é o que o conto denuncia com uma brutalidade sutil mas definitiva Num segundo plano a narrativa de Cortázar atua como uma crítica a uma forma de estar no mundo que se repete na sociedade contemporânea o automatismo da percepção a anestesia da atenção a passividade diante das imagens das palavras dos discursos A leitura que não perturba que não exige reposicionamento do sujeito tornase cópia da realidade que ela deveria questionar Ao propor uma experiência de leitura que exige escuta interrupção e silêncio Cortázar nos oferece uma possibilidade de resistência resistir ao fluxo raso da leitura rápida ao consumo apressado da linguagem à desatenção como forma de estar Seu conto publicado em meados do século XX parece falar diretamente a nós leitores do século XXI que nos debatemos entre excesso de informação e escassez de interioridade Essa dimensão crítica do conto amplia sua relevância para além do campo literário Ela convoca uma ética do ler que se baseia não na produtividade mas na presença Ler aqui não é produzir sentido imediatamente mas tolerar o vazio o intervalo o incômodo É escutar o que o texto tem a nos dizer mas também escutar o que ele faz em nós A dissolução entre realidade e ficção então se apresenta menos como um artifício fantástico e mais como uma metáfora da vida em tempos em que as mediações simbólicas perdem sua nitidez A leitura nesse cenário não é mais um gesto protegido ela é vulnerabilidade exposição e possibilidade de reinvenção Ao final permanece a imagem do leitor que morre na poltrona e ela nos inquieta não apenas pelo desfecho narrativo mas pela identificação incômoda que provoca Quantas vezes lemos como ele absortos passivos anestesiados Quantas vezes permitimos que a linguagem nos atravessasse sem vigilância E por outro lado quantas vezes nos deixamos de fato afetar por aquilo que lemos a ponto de nos transformarmos Cortázar nos mostra que o leitor não é um observador externo ele está no centro da narrativa mesmo quando acredita estar à margem Ao perder essa consciência tornase prisioneiro do texto mas ao retomála tornase seu cocriador Assim Continuidad de los parques nos oferece mais do que uma história engenhosa oferece uma convocação Uma convocação à escuta à presença e à ética do ler Reafirma que o verdadeiro efeito da literatura não é a evasão mas o abalo Que o texto não termina na última linha mas continua em nós nas perguntas que nos deixa nos silêncios que provoca nos olhos que nos obriga a levantar Ler afinal é uma forma de entrar em contato com o outro com a alteridade do mundo da linguagem e de si mesmo E esse encontro como todo encontro verdadeiro nunca acontece sem consequências Porque talvez o conto não seja em última instância sobre um assassinato na sala mas sobre a morte simbólica de um leitor que se esqueceu de estar presente Talvez a pergunta final não seja o que aconteceu com o homem na poltrona mas quem somos nós quando lemos Cortázar com sua narrativa afiada nos convida a responder não com palavras mas com escuta com silêncio com corpo Porque ler no fundo é isso estar disposto a ser tocado E permitir com coragem que algo em nós jamais volte a ser o mesmo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CORTÁZAR Julio Algunos aspectos del cuento 19621963 Casa de las Américas n 1516 La Habana 1963 CORTÁZAR Julio Continuidad de los parques In Final del juego Buenos Aires Sudamericana 1956 RIVERA Silvia Elena Solano Continuidad de los parques una poética de lectura Revista Káñina v 33 n 1 2009 RESTREPO Germán Castaño Cultura popular oralidad y literatura en Los funerales de la Mamá Grande Anales de Literatura Hispanoamericana v 36 p 255268 2007 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO UC Literatura em Castelhano Prosa Sara Souza Barbosa 170817 O leitor a ficção e a realidade em Continuidad de los parques de Júlio Cortázar Introdução Ler pode parecer um gesto simples à primeira vista Pegamos um livro nos acomodamos em um lugar confortável e deixamos as palavras nos conduzirem como se entrássemos em um universo paralelo longe das demandas do mundo real Mas esse ato muitas vezes banalizado pela rotina é uma das experiências mais complexas e transformadoras que podemos viver Ler é antes de tudo um ato de atenção e entrega É se permitir ser afetado por algo que não é totalmente nosso mas que mesmo assim nos toca profundamente E essa é justamente a beleza dessa experiência um equilíbrio delicado entre controle e vulnerabilidade entre o prazer e o risco que Julio Cortázar representa com intensidade no conto Continuidad de los parques Publicado originalmente em Final del juego 1956 o conto é um marco da literatura fantástica latinoamericana e um exemplo da estética de Cortázar Ao narrar a história de um homem que retoma a leitura de um romance e acaba ele próprio sendo engolido por essa leitura o autor argentino nos apresenta muito mais do que um artifício de fusão entre realidade e ficção Ele nos oferece uma crítica sutil porém profunda ao lugar que ocupamos enquanto leitores o lugar da escuta passiva da distração confortável da ausência de vigilância interpretativa Em poucas páginas Cortázar nos faz perceber que ao abrir um livro abrimos também uma brecha em nós mesmos e que se não estivermos atentos aquilo que lemos pode começar a nos ler de volta Esse movimento de inversão entre leitor e personagem entre sujeito e objeto da leitura é o que torna o conto tão inquietante Não se trata apenas de uma surpresa narrativa O leitor da história tanto o interno o homem na poltrona quanto o externo nós que o lemos é capturado pelo enredo O que se revela então é que a leitura não é uma atividade neutra mas uma experiência existencial ela nos constitui nos modifica e nos coloca em prova Cortázar quebra a ideia da leitura como apenas um hobby e a transforma em algo mais simbólico A ficção aqui não é apenas linguagem é acontecimento Nesta ótica este ensaio propõe analisar Continuidad de los parques como uma narrativa que elabora uma crítica à figura do leitor contemporâneo fragilizado e por vezes ausente de si no momento da leitura Em poucas páginas Cortázar propõe uma experiência literária que desafia o lugar tradicional do leitor e estabelece uma relação entre o leitor e o texto lido Para isso será utilizado dois textos fundamentais Algunos aspectos del cuento 1963 ensaio em que Cortázar apresenta sua concepção estética do conto como estrutura voltada a produzir um impacto imediato no leitor e o artigo Continuidad de los parques una poética de lectura 2009 de Silvia Elena Solano Rivera que interpreta o conto como uma advertência crítica ao leitor que se entrega à ficção sem consciência o tornando vítima do seu raso poder interpretativo A tese que atravessa este ensaio é a de que Continuidad de los parques constrói por meio de sua forma sua progressão e seu desfecho uma metáfora precisa da leitura como experiência Ao acabar com as fronteiras entre ficção e realidade o conto obriga o leitor a repensar sua própria relação com o texto uma ética da leitura que exige presença responsabilidade ao interpretar e atenção ao modo como a linguagem nos forma A análise aqui será organizada em torno de três pontos principais a forma narrativa do conto como uma construção estética de impacto a figura do leitor como personagem central e sujeito vulnerável à ficção e por fim a atualidade desse debate diante da crise contemporânea da leitura uma crise marcada por muita informação falta de foco e pela perda do silêncio que a leitura exige Ler na verdade é muito mais do que decifrar símbolos ou seguir uma história É um encontro entre mundos o do texto e o nosso e como todo encontro verdadeiro exige disponibilidade atenção e coragem Continuidad de los parques é nesse sentido um chamado um chamado para estarmos presentes na leitura e conscientes da força da linguagem E talvez seja justamente isso que torna o conto uma obra marcante ele não termina quando a história chega ao fim mas no momento em que o leitor transformado pela experiência levanta os olhos da página e se pergunta onde estou Porque às vezes ao entrarmos em um livro também nos perdemos de nós mesmos E com sorte nos reencontramos Análise No ensaio Algunos aspectos del cuento Cortázar 1963 defende que o conto deve ser marcado por condensação e intensidade com o objetivo de causar um impacto imediato no leitor Ele usa a metáfora do knockout comparando o conto ao boxe para ilustrar que a narrativa curta precisa sacudir o leitor de forma repentina e definitiva Diferente do romance que atua aos poucos acumulando efeitos ao longo do tempo o conto deve ser uma espécie de golpe certeiro O conto é uma esfera perfeita e fechada que se justifica inteiramente por sua tensão interna CORTÁZAR 1963 p 3 Essa ideia estética fica evidente na estrutura de Continuidad de los parques a narrativa leva o leitor por uma armadilha cuidadosamente construída onde tudo acontece de forma fluida e quase hipnotizante Só no final ele percebe que a linha entre ficção e realidade foi completamente apagada Esse efeito não é apenas uma escolha estilística mas um modo de construir uma ligação específica com o leitor que exige dele envolvimento sensorial e existencial O personagem principal um homem que se senta confortavelmente para retomar a leitura de seu romance não é apenas uma figura dentro da história mas um espelho do próprio leitor real cuja experiência de leitura também é gradual e envolvente Ao final quando a narrativa do livro lido pelo personagem se funde com a sua realidade é o leitor externo que se vê deslocado afetado desestabilizado A forma como Cortázar constrói essa transição revela uma das ideias centrais da sua teoria o conto deve ser um estalo para o leitor rompendo o cotidiano e revelando uma nova ordem de sentido O efeito surpresa no final quando o amante armado entra silenciosamente na casa e se dirige à poltrona onde está o homem lendo não é apenas um truque narrativo É o clímax da história que usa a linguagem para romper as barreiras entre o texto e a vida real Assim a estética do conto se conecta a uma visão mais ampla de leitura que v a i a l é m d a s i m p l e s interpretação e também envolve a experiência de quem lê Solano 2009 propõe que Continuidad de los parques constrói uma figura bem particular de leitor aquele que se entrega à narrativa sem questionar deixandose levar por ela Para a autora Cortázar não escreve apenas um conto fantástico mas uma poética de leitura ou seja uma reflexão sobre o modo como os textos literários interpelam seus leitores e os transformam Rivera afirma El texto no sólo representa una historia sino que activa una determinada figura de lector uno que es absorbido por la ficción hasta confundirse con ella RIVERA 2009 p 47 Esse leitor caracterizado como trágico é aquele que abdica de sua posição crítica diante do texto e se deixa absorver completamente pela narrativa A tragédia não está apenas na morte física do personagem mas em sua incapacidade de manter um distanciamento simbólico frente à ficção A leitura deixa de ser mediação e tornase total identificação Essa ideia de entrega sem mediação também é lida por Rivera como uma advertência epistemológica há riscos envolvidos no ato de ler principalmente quando esse ato se dá de forma passiva acrítica e anestesiada A metáfora criada por Cortázar é de certa forma ambígua Por um lado ela mostra que a leitura pode ser uma experiência estética profunda que dissolve fronteiras e faz o sujeito e o texto se fundirem Mas por outro lado essa fusão também pode significar uma perda da autonomia na interpretação o que pode levar a uma espécie de alienação simbólica O personagem acaba se tornando vítima de uma história que achava controlar Ele não percebe que o livro que está lendo também o inclui que a ficção que consome já o engoliu Essa inversão traz à tona o conceito de lectura especular trabalhado por Rivera em que o leitor se vê refletido no texto mas só percebe isso quando já é tarde demais Ao juntar o espaço da leitura com o espaço da ação Cortázar quebra a ideia de um leitor protegido apenas observando de sua poltrona Essa poltrona símbolo clássico de conforto e tranquilidade na rotina burguesa passa a ser cenário de vulnerabilidade O ato de ler que parece tão simples e inofensivo revelase perigoso A violência final do conto que permanece ambígua não é apenas literal mas simbólica o leitor é atingido por aquilo que leu Dessa maneira a análise de Rivera nos permite compreender Continuidad de los parques como uma crítica aos modos convencionais de leitura A literatura nesse conto não serve para tranquilizar mas para desestabilizar A dissolução da fronteira entre realidade e ficção é o mecanismo através do qual Cortázar propõe uma ética da leitura toda leitura é um risco e todo leitor é potencialmente afetado A figura do leitor trágico é assim o ponto de convergência entre o projeto estético e a crítica epistemológica que atravessa a narrativa A figura do leitor proposta por Cortázar em Continuidad de los parques adquire novos contornos quando observada à luz do contexto contemporâneo marcado pela fragmentação da atenção pela aceleração dos fluxos informacionais e pela predominância de práticas de leitura superficiais A advertência contida no conto antecipa uma das questões centrais da era digital a vulnerabilidade do sujeito diante do excesso de narrativas e discursos A dissolução entre realidade e ficção que no conto aparece como estratégia literária pode ser lida também como metáfora da condição do leitor moderno Hoje as fronteiras entre texto e mundo entre representação e vivência são cada vez mais tênues A leitura já não ocorre em espaços protegidos de contemplação mas em ambientes saturados de estímulos nos quais a crítica a pausa e o silêncio tornamse exceção A passividade denunciada por Rivera não é apenas um traço individual mas sintoma de um processo cultural mais amplo a estetização da informação a espetacularização da linguagem e a erosão da escuta ativa Cortázar ao propor uma literatura que captura e transforma o leitor contrapõese a essas práticas e convoca o sujeito a reocupar seu lugar como agente da leitura A metáfora da morte final do conto não representa apenas a derrota do personagem mas também a morte simbólica de um leitor que renuncia à responsabilidade de interpretar O gesto de ler nesse sentido não é neutro ele produz efeitos interfere na constituição do sujeito molda formas de perceber e de agir no mundo É nesse ponto que a leitura se torna também uma prática política e ética A forma como se lê define não apenas uma postura estética mas uma atitude diante da realidade Assim como a fusão entre ficção e ação na narrativa de Cortázar revela uma armadilha para o personagem ela funciona para o leitor externo como um convite à vigilância interpretativa A leitura longe de ser uma atividade de refúgio emerge como uma arena de disputa simbólica A escolha por manter a ambiguidade no desfecho intensifica essa dimensão crítica Cortázar não oferece respostas fáceis pelo contrário desestabiliza expectativas e obriga o leitor a ocupar uma posição interpretativa ativa Nesse sentido o conto realiza aquilo que o próprio Cortázar defendia como princípio estético provocar no leitor uma espécie de ruptura interior um abalo que o arranque do automatismo perceptivo Tal como afirmava em Algunos aspectos del cuento o verdadeiro conto é aquele que nos obriga a fechar o livro levantar a cabeça e permanecer um tempo em silêncio CORTÁZAR 1963 p 6 Esse silêncio é talvez o efeito mais potente de uma leitura transformadora Continuidad de los parques não é apenas uma narrativa engenhosa do fantástico latinoamericano mas uma reflexão profunda sobre o ato de ler e suas implicações estéticas subjetivas e éticas Ao fundir ficção e realidade Cortázar desestabiliza a posição tradicional do leitor e revela que toda leitura é também um risco ela pode construir mas também desorientar pode ampliar a percepção mas igualmente cegar A figura do leitor trágico proposta por Silvia Elena Solano Rivera sintetiza essa tensão ao se entregar de forma acrítica ao texto o sujeito abre mão da distância interpretativa que poderia protegêlo de ser capturado pelas armadilhas da linguagem A teoria do conto elaborada por Cortázar em Algunos aspectos del cuento ajuda a compreender como a forma narrativa breve intensa circular participa ativamente da construção desse efeito O conto não busca acumular acontecimentos mas criar um impacto concentrado um deslocamento que ecoa para além da leitura Nesse sentido o final abrupto de Continuidad de los parques não se esgota na surpresa mas provoca um gesto reflexivo o leitor é forçado a retornar ao início do texto a reler a se posicionar diante do que pensava compreender Esse movimento de releitura de desnaturalização do gesto de ler é o que confere ao conto sua potência crítica Ao tematizar a leitura como experiência perigosa Cortázar propõe uma ética interpretativa que desafia o leitor a sair da passividade e assumir seu papel como sujeito da linguagem Em tempos marcados pela multiplicação de discursos e pela superficialidade da atenção essa proposta adquire uma relevância ainda maior A literatura como demonstra o conto não se limita a entreter ou ornamentar ela perturba questiona desestabiliza e nesse gesto tornase espaço de reinvenção do próprio sujeito leitor Assim a pergunta deixada em aberto ao final do conto não é apenas o que aconteceu com o homem na poltrona mas o que acontece conosco quando permitimos que a leitura nos atinja profundamente Ao expor os perigos e as potências do texto Cortázar convida à reinvenção da leitura como ato de presença escuta e transformação Ler afinal é também escreverse de novo e isso como nos ensina o conto jamais acontece sem consequências Conclusão Ao atravessar as poucas mas intensas páginas de Continuidad de los parques temos uma certeza há textos que não apenas são lidos mas que nos leem O conto de Cortázar é um desses textos Ele não termina ao fim da narrativa na verdade pelo contrário ele começa ali no momento em que o leitor se vê imerso na poltrona no silêncio e na distração A proposta central deste ensaio consistiu em examinar essa estrutura narrativa construída para que se interligue em nós e o papel do leitor nessa trajetória de leitura Defendese que Cortázar ao juntar realidade e ficção com formalidade nos oferece não apenas um conto memorável mas uma crítica ao gesto da leitura como algo que transcende o ato de ler uma experiência completa Ao longo da nossa análise começamos pensando na concepção estética do conto como uma estrutura que busca condensar ideias e causar um impacto imediato conforme próprio autor defende em Algunos aspectos del cuento Vimos como essa teoria se aplica de forma exemplar em Continuidad de los parques A forma circular a progressão fluida e o final ambíguo criam uma tensão entre o que é visto e o que é sentido entre a narrativa e a interpretação Para ampliar essa compreensão também recorremos à abordagem de Silvia Elena Solano Rivera que entende o conto como uma poética da leitura Ela fala sobre o leitor trágico aquele que se entrega à ficção sem mediações tornandose vulnerável à dissolução de sua autonomia interpretativa Essa figura mais do que um personagem da história serve como uma metáfora importante para refletirmos sobre o que significa ser leitor nos dias de hoje A síntese desses argumentos revela que Continuidad de los parques não é apenas um conto sobre a relação entre personagem e livro é uma reflexão profunda sobre como a linguagem nos atravessa e nos transforma Cortázar com precisão quase cirúrgica desmonta a suposta neutralidade do ato de ler A leitura não é um passeio seguro por territórios alheios mas uma travessia com consequências A figura do homem sentado confortável em sua poltrona que se vê assassinado pela própria história que lia representa a fragilidade da condição leitora quando esta se ancora na ilusão da distância Somos sempre em alguma medida atravessados pelo texto e ignorar essa travessia é o que o conto denuncia com uma brutalidade sutil mas definitiva No segundo plano a narrativa de Cortázar funciona como uma crítica a uma forma de estar no mundo que ainda se repete na sociedade de hoje o automatismo de perceber as coisas a anestesia da atenção a passividade diante das imagens palavras e discursos Quando a leitura não desafia não exige que a gente mude de lugar ou repense algo ela acaba sendo uma cópia da realidade que deveria estar questionando Ao propor uma experiência de leitura que pede escuta pausa e silêncio Cortázar nos oferece uma chance de resistência resistir ao ritmo superficial da leitura rápida ao consumo acelerado da linguagem e à desatenção como jeito de estar no mundo Seu conto escrito na metade do século XX parece falar diretamente conosco leitores do século XXI que convivemos com um excesso de informações e uma escassez de momentos de interioridade Essa dimensão fundamental do conto amplia seu significado além do universo literário Ela nos convida a repensar uma ética do ato de ler que não se baseia na busca por produtividade mas na presença verdadeira Ler nesse sentido não é simplesmente produzir sentido de imediato é aprender a tolerar o vazio o intervalo e o desconforto que eles podem gerar É ouvir com atenção o que o texto tem a dizer mas também perceber o que ele provoca em nós A mistura entre realidade e ficção portanto aparece menos como um truque fantástico e mais como uma metáfora da vida em tempos nos quais as mediações simbólicas vão perdendo sua clareza Nesse contexto a leitura deixa de ser um ato protegido e passa a ser algo vulnerável uma exposição que abre espaço para novas possibilidades de reinvenção No final fica a imagem do leitor que morre na poltrona Essa imagem nos incomoda não só pelo desfecho da história mas também pelo incômodo de nós identificar com ela Quantas vezes lemos de forma passiva abstraídos ou anestesiados Quantas vezes deixamos a linguagem nos atravessar sem atenção E por outro lado quantas vezes nos permitimos de fato sermos tão impactados pelo que lemos a ponto de nos transformarmos Cortázar nos mostra que o leitor não é apenas um observador externo ele está no centro da narrativa mesmo quando pensa estar à margem dela Quando perdemos essa consciência nos tornamos prisioneiros do texto Mas ao retomála passamos a ser cocriadores da história Assim Continuidad de los parques nos oferece mais do que uma história inteligente ela nos convida a refletir É uma convocação à escuta à presença e à ética do ato de ler Reforça que o verdadeiro efeito da literatura não é a fuga mas o impacto aquele abalo que ela provoca O texto não termina na última linha ele continua vivo dentro de nós nas perguntas que deixa nos silêncios que desperta e até nos olhares que nos obrigam a levantar Afinal ler é uma maneira de se conectar com o outro com a alteridade do mundo da linguagem e de si mesmo E esse encontro como todo verdadeiro encontro nunca ocorre sem deixar marcas Talvez no fim das contas o conto não seja apenas sobre um assassinato na sala mas sobre a morte simbólica de um leitor que se esqueceu de estar presente Talvez a pergunta final não seja O que aconteceu com o homem na poltrona mas sim Quem somos nós quando lemos Cortázar com sua narrativa afiada nos convida a responder não apenas com palavras mas com escuta silêncio e o corpo Porque no fundo ler é isso estar disposto a ser tocado E com coragem permitir que algo em nós nunca mais seja o mesmo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CORTÁZAR Julio Algunos aspectos del cuento 19621963 Casa de las Américas n 1516 La Habana 1963 CORTÁZAR Julio Continuidad de los parques In Final del juego Buenos Aires Sudamericana 1956 RIVERA Silvia Elena Solano Continuidad de los parques una poética de lectura Revista Káñina v 33 n 1 2009 RESTREPO Germán Castaño Cultura popular oralidad y literatura en Los funerales de la Mamá Grande Anales de Literatura Hispanoamericana v 36 p 255268 2007 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO UC Literatura em Castelhano Prosa Sara Souza Barbosa 170817 O leitor a ficção e a realidade em Continuidad de los parques de Júlio Cortázar Introdução Ler pode parecer um gesto simples à primeira vista Pegamos um livro nos acomodamos em um lugar confortável e deixamos as palavras nos conduzirem como se entrássemos em um universo paralelo longe das demandas do mundo real Mas esse ato muitas vezes banalizado pela rotina é uma das experiências mais complexas e transformadoras que podemos viver Ler é antes de tudo um ato de atenção e entrega É se permitir ser afetado por algo que não é totalmente nosso mas que mesmo assim nos toca profundamente E essa é justamente a beleza dessa experiência um equilíbrio delicado entre controle e vulnerabilidade entre o prazer e o risco que Julio Cortázar representa com intensidade no conto Continuidad de los parques Publicado originalmente em Final del juego 1956 o conto é um marco da literatura fantástica latinoamericana e um exemplo da estética de Cortázar Ao narrar a história de um homem que retoma a leitura de um romance e acaba ele próprio sendo engolido por essa leitura o autor argentino nos apresenta muito mais do que um artifício de fusão entre realidade e ficção Ele nos oferece uma crítica sutil porém profunda ao lugar que ocupamos enquanto leitores o lugar da escuta passiva da distração confortável da ausência de vigilância interpretativa Em poucas páginas Cortázar nos faz perceber que ao abrir um livro abrimos também uma brecha em nós mesmos e que se não estivermos atentos aquilo que lemos pode começar a nos ler de volta Esse movimento de inversão entre leitor e personagem entre sujeito e objeto da leitura é o que torna o conto tão inquietante Não se trata apenas de uma surpresa narrativa O leitor da história tanto o interno o homem na poltrona quanto o externo nós que o lemos é capturado pelo enredo O que se revela então é que a leitura não é uma atividade neutra mas uma experiência existencial ela nos constitui nos modifica e nos coloca em prova Cortázar quebra a ideia da leitura como apenas um hobby e a transforma em algo mais simbólico A ficção aqui não é apenas linguagem é acontecimento Nesta ótica este ensaio propõe analisar Continuidad de los parques como uma narrativa que elabora uma crítica à figura do leitor contemporâneo fragilizado e por vezes ausente de si no momento da leitura Em poucas páginas Cortázar propõe uma experiência literária que desafia o lugar tradicional do leitor e estabelece uma relação entre o leitor e o texto lido Para isso será utilizado dois textos fundamentais Algunos aspectos del cuento 1963 ensaio em que Cortázar apresenta sua concepção estética do conto como estrutura voltada a produzir um impacto imediato no leitor e o artigo Continuidad de los parques una poética de lectura 2009 de Silvia Elena Solano Rivera que interpreta o conto como uma advertência crítica ao leitor que se entrega à ficção sem consciência o tornando vítima do seu raso poder interpretativo A tese que atravessa este ensaio é a de que Continuidad de los parques constrói por meio de sua forma sua progressão e seu desfecho uma metáfora precisa da leitura como experiência Ao acabar com as fronteiras entre ficção e realidade o conto obriga o leitor a repensar sua própria relação com o texto uma ética da leitura que exige presença responsabilidade ao interpretar e atenção ao modo como a linguagem nos forma A análise aqui será organizada em torno de três pontos principais a forma narrativa do conto como uma construção estética de impacto a figura do leitor como personagem central e sujeito vulnerável à ficção e por fim a atualidade desse debate diante da crise contemporânea da leitura uma crise marcada por muita informação falta de foco e pela perda do silêncio que a leitura exige Ler na verdade é muito mais do que decifrar símbolos ou seguir uma história É um encontro entre mundos o do texto e o nosso e como todo encontro verdadeiro exige disponibilidade atenção e coragem Continuidad de los parques é nesse sentido um chamado um chamado para estarmos presentes na leitura e conscientes da força da linguagem E talvez seja justamente isso que torna o conto uma obra marcante ele não termina quando a história chega ao fim mas no momento em que o leitor transformado pela experiência levanta os olhos da página e se pergunta onde estou Porque às vezes ao entrarmos em um livro também nos perdemos de nós mesmos E com sorte nos reencontramos Análise No ensaio Algunos aspectos del cuento Cortázar 1963 defende que o conto deve ser marcado por condensação e intensidade com o objetivo de causar um impacto imediato no leitor Ele usa a metáfora do knockout comparando o conto ao boxe para ilustrar que a narrativa curta precisa sacudir o leitor de forma repentina e definitiva Diferente do romance que atua aos poucos acumulando efeitos ao longo do tempo o conto deve ser uma espécie de golpe certeiro O conto é uma esfera perfeita e fechada que se justifica inteiramente por sua tensão interna CORTÁZAR 1963 p 3 Essa ideia estética fica evidente na estrutura de Continuidad de los parques a narrativa leva o leitor por uma armadilha cuidadosamente construída onde tudo acontece de forma fluida e quase hipnotizante Só no final ele percebe que a linha entre ficção e realidade foi completamente apagada Esse efeito não é apenas uma escolha estilística mas um modo de construir uma ligação específica com o leitor que exige dele envolvimento sensorial e existencial O personagem principal um homem que se senta confortavelmente para retomar a leitura de seu romance não é apenas uma figura dentro da história mas um espelho do próprio leitor real cuja experiência de leitura também é gradual e envolvente Ao final quando a narrativa do livro lido pelo personagem se funde com a sua realidade é o leitor externo que se vê deslocado afetado desestabilizado A forma como Cortázar constrói essa transição revela uma das ideias centrais da sua teoria o conto deve ser um estalo para o leitor rompendo o cotidiano e revelando uma nova ordem de sentido O efeito surpresa no final quando o amante armado entra silenciosamente na casa e se dirige à poltrona onde está o homem lendo não é apenas um truque narrativo É o clímax da história que usa a linguagem para romper as barreiras entre o texto e a vida real Assim a estética do conto se conecta a uma visão mais ampla de leitura que v a i a l é m d a s i m p l e s interpretação e também envolve a experiência de quem lê Solano 2009 propõe que Continuidad de los parques constrói uma figura bem particular de leitor aquele que se entrega à narrativa sem questionar deixandose levar por ela Para a autora Cortázar não escreve apenas um conto fantástico mas uma poética de leitura ou seja uma reflexão sobre o modo como os textos literários interpelam seus leitores e os transformam Rivera afirma El texto no sólo representa una historia sino que activa una determinada figura de lector uno que es absorbido por la ficción hasta confundirse con ella RIVERA 2009 p 47 Esse leitor caracterizado como trágico é aquele que abdica de sua posição crítica diante do texto e se deixa absorver completamente pela narrativa A tragédia não está apenas na morte física do personagem mas em sua incapacidade de manter um distanciamento simbólico frente à ficção A leitura deixa de ser mediação e tornase total identificação Essa ideia de entrega sem mediação também é lida por Rivera como uma advertência epistemológica há riscos envolvidos no ato de ler principalmente quando esse ato se dá de forma passiva acrítica e anestesiada A metáfora criada por Cortázar é de certa forma ambígua Por um lado ela mostra que a leitura pode ser uma experiência estética profunda que dissolve fronteiras e faz o sujeito e o texto se fundirem Mas por outro lado essa fusão também pode significar uma perda da autonomia na interpretação o que pode levar a uma espécie de alienação simbólica O personagem acaba se tornando vítima de uma história que achava controlar Ele não percebe que o livro que está lendo também o inclui que a ficção que consome já o engoliu Essa inversão traz à tona o conceito de lectura especular trabalhado por Rivera em que o leitor se vê refletido no texto mas só percebe isso quando já é tarde demais Ao juntar o espaço da leitura com o espaço da ação Cortázar quebra a ideia de um leitor protegido apenas observando de sua poltrona Essa poltrona símbolo clássico de conforto e tranquilidade na rotina burguesa passa a ser cenário de vulnerabilidade O ato de ler que parece tão simples e inofensivo revelase perigoso A violência final do conto que permanece ambígua não é apenas literal mas simbólica o leitor é atingido por aquilo que leu Dessa maneira a análise de Rivera nos permite compreender Continuidad de los parques como uma crítica aos modos convencionais de leitura A literatura nesse conto não serve para tranquilizar mas para desestabilizar A dissolução da fronteira entre realidade e ficção é o mecanismo através do qual Cortázar propõe uma ética da leitura toda leitura é um risco e todo leitor é potencialmente afetado A figura do leitor trágico é assim o ponto de convergência entre o projeto estético e a crítica epistemológica que atravessa a narrativa A figura do leitor proposta por Cortázar em Continuidad de los parques adquire novos contornos quando observada à luz do contexto contemporâneo marcado pela fragmentação da atenção pela aceleração dos fluxos informacionais e pela predominância de práticas de leitura superficiais A advertência contida no conto antecipa uma das questões centrais da era digital a vulnerabilidade do sujeito diante do excesso de narrativas e discursos A dissolução entre realidade e ficção que no conto aparece como estratégia literária pode ser lida também como metáfora da condição do leitor moderno Hoje as fronteiras entre texto e mundo entre representação e vivência são cada vez mais tênues A leitura já não ocorre em espaços protegidos de contemplação mas em ambientes saturados de estímulos nos quais a crítica a pausa e o silêncio tornamse exceção A passividade denunciada por Rivera não é apenas um traço individual mas sintoma de um processo cultural mais amplo a estetização da informação a espetacularização da linguagem e a erosão da escuta ativa Cortázar ao propor uma literatura que captura e transforma o leitor contrapõese a essas práticas e convoca o sujeito a reocupar seu lugar como agente da leitura A metáfora da morte final do conto não representa apenas a derrota do personagem mas também a morte simbólica de um leitor que renuncia à responsabilidade de interpretar O gesto de ler nesse sentido não é neutro ele produz efeitos interfere na constituição do sujeito molda formas de perceber e de agir no mundo É nesse ponto que a leitura se torna também uma prática política e ética A forma como se lê define não apenas uma postura estética mas uma atitude diante da realidade Assim como a fusão entre ficção e ação na narrativa de Cortázar revela uma armadilha para o personagem ela funciona para o leitor externo como um convite à vigilância interpretativa A leitura longe de ser uma atividade de refúgio emerge como uma arena de disputa simbólica A escolha por manter a ambiguidade no desfecho intensifica essa dimensão crítica Cortázar não oferece respostas fáceis pelo contrário desestabiliza expectativas e obriga o leitor a ocupar uma posição interpretativa ativa Nesse sentido o conto realiza aquilo que o próprio Cortázar defendia como princípio estético provocar no leitor uma espécie de ruptura interior um abalo que o arranque do automatismo perceptivo Tal como afirmava em Algunos aspectos del cuento o verdadeiro conto é aquele que nos obriga a fechar o livro levantar a cabeça e permanecer um tempo em silêncio CORTÁZAR 1963 p 6 Esse silêncio é talvez o efeito mais potente de uma leitura transformadora Continuidad de los parques não é apenas uma narrativa engenhosa do fantástico latinoamericano mas uma reflexão profunda sobre o ato de ler e suas implicações estéticas subjetivas e éticas Ao fundir ficção e realidade Cortázar desestabiliza a posição tradicional do leitor e revela que toda leitura é também um risco ela pode construir mas também desorientar pode ampliar a percepção mas igualmente cegar A figura do leitor trágico proposta por Silvia Elena Solano Rivera sintetiza essa tensão ao se entregar de forma acrítica ao texto o sujeito abre mão da distância interpretativa que poderia protegêlo de ser capturado pelas armadilhas da linguagem A teoria do conto elaborada por Cortázar em Algunos aspectos del cuento ajuda a compreender como a forma narrativa breve intensa circular participa ativamente da construção desse efeito O conto não busca acumular acontecimentos mas criar um impacto concentrado um deslocamento que ecoa para além da leitura Nesse sentido o final abrupto de Continuidad de los parques não se esgota na surpresa mas provoca um gesto reflexivo o leitor é forçado a retornar ao início do texto a reler a se posicionar diante do que pensava compreender Esse movimento de releitura de desnaturalização do gesto de ler é o que confere ao conto sua potência crítica Ao tematizar a leitura como experiência perigosa Cortázar propõe uma ética interpretativa que desafia o leitor a sair da passividade e assumir seu papel como sujeito da linguagem Em tempos marcados pela multiplicação de discursos e pela superficialidade da atenção essa proposta adquire uma relevância ainda maior A literatura como demonstra o conto não se limita a entreter ou ornamentar ela perturba questiona desestabiliza e nesse gesto tornase espaço de reinvenção do próprio sujeito leitor Assim a pergunta deixada em aberto ao final do conto não é apenas o que aconteceu com o homem na poltrona mas o que acontece conosco quando permitimos que a leitura nos atinja profundamente Ao expor os perigos e as potências do texto Cortázar convida à reinvenção da leitura como ato de presença escuta e transformação Ler afinal é também escreverse de novo e isso como nos ensina o conto jamais acontece sem consequências Conclusão Ao atravessar as poucas mas intensas páginas de Continuidad de los parques temos uma certeza há textos que não apenas são lidos mas que nos leem O conto de Cortázar é um desses textos Ele não termina ao fim da narrativa na verdade pelo contrário ele começa ali no momento em que o leitor se vê imerso na poltrona no silêncio e na distração A proposta central deste ensaio consistiu em examinar essa estrutura narrativa construída para que se interligue em nós e o papel do leitor nessa trajetória de leitura Defendese que Cortázar ao juntar realidade e ficção com formalidade nos oferece não apenas um conto memorável mas uma crítica ao gesto da leitura como algo que transcende o ato de ler uma experiência completa Ao longo da nossa análise começamos pensando na concepção estética do conto como uma estrutura que busca condensar ideias e causar um impacto imediato conforme próprio autor defende em Algunos aspectos del cuento Vimos como essa teoria se aplica de forma exemplar em Continuidad de los parques A forma circular a progressão fluida e o final ambíguo criam uma tensão entre o que é visto e o que é sentido entre a narrativa e a interpretação Para ampliar essa compreensão também recorremos à abordagem de Silvia Elena Solano Rivera que entende o conto como uma poética da leitura Ela fala sobre o leitor trágico aquele que se entrega à ficção sem mediações tornandose vulnerável à dissolução de sua autonomia interpretativa Essa figura mais do que um personagem da história serve como uma metáfora importante para refletirmos sobre o que significa ser leitor nos dias de hoje A síntese desses argumentos revela que Continuidad de los parques não é apenas um conto sobre a relação entre personagem e livro é uma reflexão profunda sobre como a linguagem nos atravessa e nos transforma Cortázar com precisão quase cirúrgica desmonta a suposta neutralidade do ato de ler A leitura não é um passeio seguro por territórios alheios mas uma travessia com consequências A figura do homem sentado confortável em sua poltrona que se vê assassinado pela própria história que lia representa a fragilidade da condição leitora quando esta se ancora na ilusão da distância Somos sempre em alguma medida atravessados pelo texto e ignorar essa travessia é o que o conto denuncia com uma brutalidade sutil mas definitiva No segundo plano a narrativa de Cortázar funciona como uma crítica a uma forma de estar no mundo que ainda se repete na sociedade de hoje o automatismo de perceber as coisas a anestesia da atenção a passividade diante das imagens palavras e discursos Quando a leitura não desafia não exige que a gente mude de lugar ou repense algo ela acaba sendo uma cópia da realidade que deveria estar questionando Ao propor uma experiência de leitura que pede escuta pausa e silêncio Cortázar nos oferece uma chance de resistência resistir ao ritmo superficial da leitura rápida ao consumo acelerado da linguagem e à desatenção como jeito de estar no mundo Seu conto escrito na metade do século XX parece falar diretamente conosco leitores do século XXI que convivemos com um excesso de informações e uma escassez de momentos de interioridade Essa dimensão fundamental do conto amplia seu significado além do universo literário Ela nos convida a repensar uma ética do ato de ler que não se baseia na busca por produtividade mas na presença verdadeira Ler nesse sentido não é simplesmente produzir sentido de imediato é aprender a tolerar o vazio o intervalo e o desconforto que eles podem gerar É ouvir com atenção o que o texto tem a dizer mas também perceber o que ele provoca em nós A mistura entre realidade e ficção portanto aparece menos como um truque fantástico e mais como uma metáfora da vida em tempos nos quais as mediações simbólicas vão perdendo sua clareza Nesse contexto a leitura deixa de ser um ato protegido e passa a ser algo vulnerável uma exposição que abre espaço para novas possibilidades de reinvenção No final fica a imagem do leitor que morre na poltrona Essa imagem nos incomoda não só pelo desfecho da história mas também pelo incômodo de nós identificar com ela Quantas vezes lemos de forma passiva abstraídos ou anestesiados Quantas vezes deixamos a linguagem nos atravessar sem atenção E por outro lado quantas vezes nos permitimos de fato sermos tão impactados pelo que lemos a ponto de nos transformarmos Cortázar nos mostra que o leitor não é apenas um observador externo ele está no centro da narrativa mesmo quando pensa estar à margem dela Quando perdemos essa consciência nos tornamos prisioneiros do texto Mas ao retomála passamos a ser cocriadores da história Assim Continuidad de los parques nos oferece mais do que uma história inteligente ela nos convida a refletir É uma convocação à escuta à presença e à ética do ato de ler Reforça que o verdadeiro efeito da literatura não é a fuga mas o impacto aquele abalo que ela provoca O texto não termina na última linha ele continua vivo dentro de nós nas perguntas que deixa nos silêncios que desperta e até nos olhares que nos obrigam a levantar Afinal ler é uma maneira de se conectar com o outro com a alteridade do mundo da linguagem e de si mesmo E esse encontro como todo verdadeiro encontro nunca ocorre sem deixar marcas Talvez no fim das contas o conto não seja apenas sobre um assassinato na sala mas sobre a morte simbólica de um leitor que se esqueceu de estar presente Talvez a pergunta final não seja O que aconteceu com o homem na poltrona mas sim Quem somos nós quando lemos Cortázar com sua narrativa afiada nos convida a responder não apenas com palavras mas com escuta silêncio e o corpo Porque no fundo ler é isso estar disposto a ser tocado E com coragem permitir que algo em nós nunca mais seja o mesmo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CORTÁZAR Julio Algunos aspectos del cuento 19621963 Casa de las Américas n 1516 La Habana 1963 CORTÁZAR Julio Continuidad de los parques In Final del juego Buenos Aires Sudamericana 1956 RIVERA Silvia Elena Solano Continuidad de los parques una poética de lectura Revista Káñina v 33 n 1 2009 RESTREPO Germán Castaño Cultura popular oralidad y literatura en Los funerales de la Mamá Grande Anales de Literatura Hispanoamericana v 36 p 255268 2007