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Sociologia
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DO MESMO AUTOR Lan zéro de lAllemagne La Cité Universelle 1946 Une cornerie Nagel 1947 LHomme et la mort Corréa 1951 Le cinema et lhomme imaginaire Editions de Minuit 1956 Les Stars Le Seuil 1957 Autocritique Julliard 1959 Chronique dun été en collaboration avec Jean Rouch Interspectacle 1962 Cultura de Massas no Século XX O Espirito do Tempo 2 Necrose 1975 EDGAR MORIN Cultura de Massas no Século XX O Espírito do Tempo 1 NEUROSE 9a edição Tradução de Maura Ribeiro Sardinha FORENSE UNIVERSITARIA 9a edição2a reimpressão 2002 Traduzido de LEsprit du Temps Copyright 1962 by Editions Bernard Grasset CIPBrasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ M85c Morin Edgar Cultura de massas no século XX neuroseEdgar Morin tradução de Maura Ribeiro Sardinha 9ed Rio de Janeiro Forense Universitária 1997 208p O espírito do tempo 1 Tradução de Lespirit du temps Inclui bibliografia ISBN 8521802090 1 Civilização moderna 2 Cultura de massa I Título II Título O espírito do tempo 970446 CDD 90982 CDU 008 Proibida a reprodução total ou parcial bem como a reprodução de apostilas a partir deste livro de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico inclusive através de processos xerográficos de fotocópia e de gravação sem permissão expressa do Editor Lei n 9610 de 190298 Reservados os direitos de propriedade desta edição pela EDITORA FORENSE UNIVERSITÁRIA Rio de Janeiro Rua do Rosário 100 Centro CEP 20041002 TelsFax 25093148 25097395 São Paulo Largo de São Francisco 20 Centro CEP 01005010 TelsFax 31042005 31040396 31070842 email editoraforenseuniversitariacombr httpwwwforenseuniversitariacombr Impresso no Brasil Printed in Brazil SUMÁRIO Prefácio à Terceira Edição 7 PRIMEIRA PARTE A INTEGRAÇÃO CULTURAL I UM TERCEIRO PROBLEMA 13 II A INDÚSTRIA CULTURAL 22 III O GRANDE PÚBLICO 35 IV A ARTE E A MÍDIA 48 V O GRANDE CRACKING 53 VI UMA CULTURA DE LAZER 67 VII OS CAMPOS ESTÉTICOS 77 SEGUNDA PARTE UMA MITOLOGIA MODERNA VIII SIMPATIA E HAPPY END 91 IX OS VASOS COMUNICANTES 98 X OS OLIMPIANOS 105 XI O REVÓLVER 110 XII O EROS QUOTIDIANO 119 XIII A FELICIDADE 125 XIV O AMOR 131 XV A PROMOÇÃO DOS VALORES FEMININOS 139 XVI JUVENTUDE 147 XVII A CULTURA PLANETÁRIA 158 XVIII O ESPÍRITO DO TEMPO 186 INTRODUÇÃO A BIBLIOGRAFIA 185 Primeira parte A CULTURA DE MASSA 188 Segunda parte AS COMUNICAÇÕES DE MASSA 198 NOTA DO TRADUTOR Ao fazer a tradução procurei escolher as expressões que melhor traduzissem o pensamento do autor mas mantive na medida do possível as particularidades de seu estilo Assim algumas palavras parecem em português com uma forma à primeira vista inadequada Isso só se verifica nos casos em que a preservação da irregularidade não prejudica a compreensão do texto É o caso por exemplo de fantomatique traduzido por fantasmático palavra inexistente tanto em francês quanto em português Muitos perguntarão por que não empreguei o termo fantasmagórico e a esses respondo que se fosse essa a intenção do autor ele teria usado em francês a palavra fantasmagorique de uso corrente no idioma Neurose meio termo entre um distúrbio da mente e a realidade concessão a que uma pessoa se acomoda em troca de um fantasma um mito ou um rito PREFÁCIO À TERCEIRA EDIÇÃO Este livro escrito em 19601 apareceu em 1962 Nada teria que suprimir e muito que acrescentar Efetivamente os anos de 60 foram marcados por uma transformação da configuração cultural nas nossas sociedades que obviamente afeta a cultura de massas Efetivamente muitas das características que assinalei neste livro ainda persistem hoje Mas o espírito do tempo já é outro O eixo da cultura de massas deslocouse Seu campo ampliouse penetrando cada vez mais intimamente na vida cotidiana no lar no casal na família na casa no automóvel nas férias A mitologia da felicidade tornouse a problematica da felicidade Traços e focos de contracultura e mesmo de revolução cultural formaramse no underground à margem da cultura de consumo porém também penetrandoa irrigandoa A cultura de massas tende a um tempo a deslocarse e a integrar recuperar como se diz as correntes desintegradoras A maior parte dos meus estudos de sociologia do presente de 1963 a 1973 tem relação com essas transformações Do aparecimento de uma nova subcultura juvenil o yeyeye aos impulsos californianos de uma revolução cultural ocidental passando pelas revoltas de estudantes Da promoção dos valores femininos à nova feminilidade e ao novo feminismo Do neoarcaísmo e do novo naturismo às utopias concretas dos clubes de férias e do movimento ecológico Dos obstáculos e das dificuldades opostas ao bemestar aos sintomas de uma crise em profundidade da civilização burguesa Ao passo que a sociologia oficial acreditava trabalhar no solo cada vez mais sólido da sociedade industrial eu me tornava cada vez mais sensível às pressões dos ciclos que se formavam à sombra O que era desprezado como epifenômenos aberrantes ou ridículos representava para mim desvios geradores de novas tendências Onde se viam fogos de palha enxergava eu erupções que revelavam desestruturações em profundidade no núcleo cultural de nossas sociedades Não tenho por que me envergonhar do que escrevi em 1962 em um texto publicado em 1965¹ Sem dúvida preparase uma crise gigantesca crise de fundo do individualismo burguês crise da civilização o beatnik já denuncia em sua recusa voluntária da comodidade norteamericana a inquietação que lhe causa o bemestar a expressão dolce vita já se tornou para os abastados sinônimo de desolação E em 1966 liase no final de um estudo da comuna de Plodemet² Será que se verão aparecer as dificuldades do bemestar ignoradas por um povo que apenas chegou aos primeiros estágios de uma conquista que ainda conhece as dificuldades do desconforto e a lembrança das antigas servidões Será que se verão aparecer as dificuldades da vida privada e a irrupção dos problemas do casal problemas que são silenciados ou escondidos onde quer que surjam Será que se alargará o vazio que já aflora entre os jovens no lazer e até durante as férias Será que se verá o ímpeto martirizante de inquietudes que hoje em dia apenas se entremostram e são transferidos a um futuro indeterminado ou a um cogumelo atômico Será que se assistirá a um impulso mais ardente para a espontaneidade a alegria a plenitude outrora circunscritas às festas e que hoje se insinuam timidamente nos divertimentos e nas férias Veremos a crise A muda O fim da civilização burguesa A partir de agora os novos fermentos culturais estão operando e em seu lugar Entramos em uma época em que se tornou bastante claro que a cultura se coloca em termos problemáticos Assim a este volume se segue um segundo tomo no qual estão articulados e integrados meus estudos dos anos 6273 EM Abril de 1974 ¹ Introdução a uma política do Homem Le Seuil 1965 ² Comuna na França A Metamorfose de Plodemet Fayard 1967 PRIMEIRA PARTE A INTEGRAÇÃO CULTURAL 1 Um Terceiro Problema No começo do século XX o poder industrial estendeuse por todo o globo terrestre A colonização da África a dominação da Ásia chegam a seu apogeu Eis que começa nas feiras de amostras e máquinas de níqueis a segunda industrialização a que se processa nas imagens e nos sonhos A segunda colonização não mais horizontal mas desta vez vertical penetra na grande reserva que é a alma humana A alma é a nova África que começa a agitar os circuitos dos cinemas Cinquenta anos mais tarde um prodigioso sistema nervoso se constituiu no grande corpo planetário as palavras e imagens saíam aos borbotões dos teletipos das rotativas das películas das fitas magnéticas das antenas de rádio e de televisão tudo que roda navega voa transporta jornais e revistas não há uma molécula de ar que nãovibre com as mensagens que um aparelho ou um gesto tornam logo audíveis e visíveis A segunda industrialização que passa a ser a industrialização do espírito e a segunda colonização que passa a dizer respeito à alma progridem no decorrer do século XX Através delas operase esse progresso ininterrupto da técnica não mais unicamente votado à organização exterior mas penetrando no domínio interior do homem e aí derramando mercadorias culturais Não há dúvida de que já o livro o jornal eram mercadorias mas a cultura e a vida privada nunca haviam entrado a tal ponto no circuito comercial e industrial nunca os murmúrios do mundo antigamente suspiros de fantasmas cochichos de fadas anões e duendes palavras de gênios e de deuses hoje em dia músicas palavras filmes levados através de ondas não haviam sido ao mesmo tempo fabricados industrialmente e vendidos comercialmente Essas novas mercadorias são as mais humanas de todas pois vendem a varejo os ectoplasmas de humanidade os amores e os medos romanceados os fatos variados do coração e da alma Os problemas colocados por essa estranha noosfera que flutua na corrente da civilização se encontram entre os terceiros problemas que emergem no meio do século XX Estes passam rapidamente da periferia para o centro das interrogações contemporâneas Não se deixam reduzir às respostas já prontas Só podem ser levantados por um pensamento em movimento É esse o caso daquilo que pode ser considerado como uma Terceira Cultura oriunda da imprensa do cinema do rádio da televisão que surge desenvolvese projetase ao lado das culturas clássicas religiosas ou humanistas e nacionais É no amanhã da Segunda Guerra Mundial que a sociologia americana detecta reconhece a Terceira Cultura e á domina mass culture Cultura de massa isto é produzida segundo as normas maciças da fabricação industrial propaganda pelas técnicas de difusão maciça que um estranho neologismo anglolatino chama de mass media destinandose a uma massa social isto é um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos aquém e além das estruturas internas da sociedade classes família etc O termo cultura de massa como os termos sociedade industrial ou sociedade de massa masssociety do qual ele é o equivalente cultural privilegia excessivamente um dos núcleos da vida social as sociedades modernas podem ser consideradas não só industriais e maciças mas também técnicas burocráticas capitalistas de classes burguesas individualistas A noção de massa é a priori demasiadamente limitada A noção de cultura pode parecer a priori demasiadamente extensa se a tomarmos no sentido próprio etnográfico e histórico muito nobre se a tomarmos no sentido derivado e requintado do humanismo cultivado Uma cultura orienta desenvolve domestica certas virtualidades humanas mas inibe ou proíbe outras Há fatos de cultura que são universais como a proibição do incesto mas as regras e às modalidades desta proibição diferenciamse segundo as culturas Em outras palavras há de um lado uma cultura que define em relação à natureza as qualidades propriamente humanas do ser biológico chamado homem e de outro lado culturas particulares segundo as épocas e as sociedades Podemos adiantar que uma cultura constitui um corpo complexo de normas símbolos mitos e imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade estruturam os instintos orientam as emoções Esta penetração se efetua segundo trocas mentais de projeção e de identificação polarizadas nos símbolos mitos e imagens da cultura como nas personalidades míticas ou reais que encarnam os valores os ancestrais os heróis os deuses Uma cultura fornece pontos de apoio imaginários à vida prática pontos de apoio práticos à vida imaginária ela alimenta o ser semireal semiimaginário que cada um secreta no interior de si sua alma o ser semireal semiimaginário que cada um secreta no exterior de si e no qual se envolve sua personalidade Assim a cultura nacional desde a escola nos imerge nas experiências míticovividas do passado ligandonos por relações de identificação e projeção aos heróis da pátria Vercingetórix Jeanne DArc os quais também se identificam com o grande corpo invisível mas vivo que através dos séculos de provações e vitórias assume a figura materna a MãePátria a quem devemos amor e paterna o Estado a quem devemos obediência A cultura religiosa se baseia na identificação com o deus que salva e com a grande comunidade maternalpaternal que constitui a Igreja Mais sutilmente ou antes de modo mais difuso a cultura humanista procura um saber e uma sensibilidade um sistema de atitudes afetivas e intelectuais por meio do comércio das obras literárias em que os heróis do teatro e do romance as efusões subjetivas dos poetas e das reflexões dos moralistas desempenham de modo atenuado o papel de heróis das antigas mitologias e de sábios das antigas sociedades Como veremos a cultura de massa é uma cultura ela constitui um corpo de símbolos mitos e imagens concernentes à vida prática e à vida imaginária um sistema de projeções e de identificações específicas Ela se acrescenta à cultura nacional à cultura humanista à cultura religiosa e entra em concorrência com estas culturas As sociedades modernas são policulturais Focos culturais de naturezas diferentes encontrãse em atividade a ou as religião o Estado nacional a tradição das humanidades afrontam ou conjugam suas morais seus mitos seus modelos dentro e fora da escola A essas diferentes culturas é preciso acrescentar a cultura de massa O mesmo indivíduo pode ser cristão na missa de manhã francês diante do monumento aos mortos antes de ir ver Le Cid no TNP e de ler FranceSoir e ParisMatch A cultura de massa integra e se integra ao mesmo tempo numa realidade policultural fazse conter controlar censurar pelo Estado pela Igreja e simultaneamente tende a corroer a desagregar as outras culturas A esse título ela não é absolutamente autônoma ela pode embebarse de cultura nacional religiosa ou humanista e por sua vez ela emebebe as culturas nacional religiosa ou humanista Embora não sendo a única cultura do século XX é a corrente verdadeiramente maciça e nova deste século Nascida nos Estados Unidos já se aclimatou à Europa Ocidental Alguns de seus elementos se espalharam por todo o globo Ela é cosmopolita por vocação e planetária por extensão Ela nos coloca os problemas da primeira cultura universal da história da humanidade Crítica intelectual ou crítica dos intelectuais Antes de abordar de frente estes problemas é preciso transpor a barreira intelectual que lhe opõe a inteligentsia cultivada Os cultos vivem numa concepção valorizante diferenciada aristocrática da cultura É por isso que o termo cultura do século XX lhes evoca imediatamente não o mundo da televisão do rádio do cinema dos comics da imprensa das canções do turismo das férias dos lazeres mas Mondrian Picasso Stravinsky Alban Berg Musil Proust Joyce Os intelectuais atiram a cultura de massa nos infernos infraculturais Uma atitude humanista deplora a invasão dos subprodutos culturais da indústria moderna dos subprodutos industriais da cultura moderna Uma atitude de direita tende a considerála como divertimento de ilotas barbarismo plebeu Foi a partir da vulgata marxista que se delineou uma crítica de esquerda que considera a cultura de massa como barbitúrico o novo ópio do povo ou mistificação deliberada o capitalismo desvia as massas de seus verdadeiros problemas Mas profundamente marxista é a crítica da nova alienação da civilização burguesa na falsa cultura a alienação do homem não se restringe apenas ao trabalho mas atinge o consumo e os lazeres Eu tornarei a tratar desses temas é claro mas gostaria primeiramente de observar aqui que por mais diferentes que sejam as origens dos desprezos humanistas de direita e esquerda a cultura de massa é considerada como mercadoria cultural ordinária feia ou como se diz nos Estados Unidos kitsch Pondo entre parênteses qualquer juízo de valor podemos diagnosticar uma resistência global da classe intelectual ou cultivada Não são os intelectuais que fazem essa cultura os primeiros autores de filmes eram estrangeiros os jornais se desenvolveram fora das esferas gloriosas da criação literária rádio e televisão foram o refúgio dos jornalistas ou comediantes fracassados É certo que progressivamente os intelectuais foram atraídos chamados para as salas de redação os estúdios de rádio os escritórios dos produtores de filmes Muitos encontraram aí uma profissão Mas estes intelectuais são empregados pela indústria cultural Só realizam por acaso ou após lutas extenuantes os projetos que trazem em si Em casos extremos o autor é separado de sua obra esta não é mais sua obra A criação é esmagada pela produção Stroheim Welles vencidos são rejeitados pelo sistema uma vez que não se dobram A inteligentsia literária é despojada pelo advento de um mundo cultural no qual a criação é deslocada Protesta tanto mais contra a industrialização do espírito quanto participa parcialmente em pequena escala desta industrialização Não é só de uma espoliação que sofre a inteligentsia É toda uma concepção da cultura da arte que é achincalhada pela intervenção das técnicas industriais como pela determinação mercantil e a orientação consumidora da cultura de massa Ao mercenarismo sucede o mercenarismo O capitalismo instala suas sucursais no coração da grande reserva cultural A reação da inteligentsia é também uma reação contra o imperialismo do capital e o reino do lucro Enfim a orientação consumidora destrói a autonomia e a hierarquia estética próprias da cultura cultivada Na cultura de massa não há descontinuidade entre a arte e a vida Nem retirada solitária nem ritos cerimoniais opõem a cultura de massa à vida quotidiana Ela é consumida no decorrer das horas Os valores artísticos não se diferenciam qualitativamente no seio do consumo corrente os jukebox oferecem ao mesmo tempo Armstrong e Brenda Lee Brassens e Dalida as lengalengas e as melodias Encontramos o mesmo ecletismo no rádio na televisão e no cinema Este universo não é governado regulamentado pela polícia do gosto a hierarquia do belo a alfândega da crítica estética As revistas os jornais de crianças os programas de rádio e salvo exceção os filmes não são mais governados pela crítica cultivada do que o consumo dos legumes detergentes ou máquinas de lavar O produto cultural está estritamente determinado por seu caráter industrial de um lado seu caráter de consumação diária de outro sem poder emergir para a autonomia estética Ele não é policiado nem filtrado nem estruturado pela Arte valor supremo da cultura dos cultos Tudo parece opor a cultura dos cultos à cultura de massa qualidade à quantidade criação à produção espiritualidade ao materialismo estética à mercadoria elegância à grosseria saber à ignorância Mas antes de perguntarmos se a cultura de massa é na realidade como a vê o culto é preciso nos perguntarmos se os valores da alta cultura não são dogmáticos formais mitificados se o culto da arte não esconde muitas vezes um comércio superficial com as obras Tudo que é inovador sempre se opõe às normas dominantes da cultura Essa observação que vale para a cultura de massa não vale também para a cultura cultivada De Rousseau o autodidata a Rousseau o alfandegário de Rimbaud ao surrealismo um revisionismo cultural contesta os cânones e os gostos da alta cultura abre à estética o que parecia trivial ou infantil Foi a vanguarda da cultura que primeiramente amou e integrou Chaplin Hammet o jazz e a canção das ruas Inversamente desdenhase com altivez a cultura de massa nos lugares onde reinam os esnobismos estéticos as receitas literárias os talentos afetados as vulgaridades convencionais Há um filistinismo dos cultos que têm origem na mesma esterotipia vulgar que os padrões desprezados da cultura de massa É é justamente no momento em que elas parecem opostas ao máximo que alta cultura e cultura de massa se reúnem uma pelo seu aristocratismo vulgar outra pela sua vulgaridade sedenta de standing Isto foi bem analisado por Harold Rosenberg De fato o anticonecito de kitsch é um kitsch acrescido Quando Mac Donald fala contra o kitsch parece falar do ponto de vista da arte quando fala da arte suas ideias são kitsch E esta fórmulachave Um dos aspectos da cultura de massa é a crítica kitschista do kitsch Meu objetivo aqui não é exaltar a cultura de massa mas diminuir a cultura cultivada não só para me propiciar algumas satisfações sadomasoquistas das quais são apreciadores os intelectuais mas para fazer literalmente explodir a praça forte o Montségur de onde temos o hábito de contemplar esses problemas e também restabelecer o debate em campo aberto Será que meu propósito é sensível Qualquer que seja o fenômeno estudado é preciso primeiramente que o observador se estude pois o observador ou perturba o fenômeno observado ou nele se projeta de algum modo Seja o que for que empreendamos no domínio das ciências humanas o primeiro passo deve ser de autoanálise de autocrítica Como intelectual atacando o problema da cultura é em primeiro lugar minha concepção da cultura que está em jogo Como pessoa culta dirigindome a pessoas cultas é exatamente essa cultura comum que devo primeiramente colocar em questão Há tais resistências psicológicas e sociológicas no interior do que podemos chamar em bloco de modo superficial se queremos abranger o conjunto dos problemas de modo verídico no caso particular aqui focalizado a classe intelectual sua reação é a tal ponto garantida e homogênea que é para lá primeiramente que é necessário levar à discórdia O problema preliminar a ser circunscrito seria o seguinte em que medida estamos nós mesmos comprometidos com um sistema de defesa às vezes inconsciente mas sempre incontestável contra um processo que tende à destruição dos intelectuais que somos Isso nos leva a reexaminar e autocriticar nossa noção ética ou estética de cultura e recomeçar a partir de uma cultura em imersão histórica e sociológica a cultura de massa nos coloca problemas mal formalizados mal emersos O termo cultura de massa não pode ele mesmo designar essa cultura que emerge com fronteiras ainda fluídas profundamente ligada às técnicas e à indústria assim como à alma e à vida quotidiana São os diferentes estratos de nossas sociedades e de nossa civilização que estão em jogo na nova cultura Somos remetidos diretamente ao complexo global Método Desde então o método de acesso se delineia Método autocrítico e método da totalidade O método da totalidade engloba o método autocrítico porque tende não só a encarar um fenômeno em suas interdependências mas também a encarar o próprio observador no sistema de relações O método autocrítico desentulhando o moralismo altivo e a agressividade frustrada e o antikitsch desembocam naturalmente no método da totalidade De uma só vez podemos evitar o sociologismo abstrato burocrático do investigador interrompido em sua pesquisa que se contenta em isolar este ou aquele setor sem tentar descobrir o que une os setores uns aos outros 20 21 É importante também que o observador participe do objeto de sua observação é preciso num certo sentido apreciar o cinema gostar de introduzir uma moeda num jukebox divertirse com caçaniqueis acompanhar as partidas esportivas no rádio na televisão cantarolar o último sucesso É preciso ser um pouco da multidão dos bailes dos basbaques dos jogos coletivos É preciso conhecer esse mundo sem se sentir um estranho nele É preciso gostar de flanar nos bulevares da cultura de massa Talvez uma das tarefas do narodnik moderno sempre preocupado em atingir o povo seja assistir Dalida A objetividade a ser alcançada é a que integra o observado na observação Não é o objetivismo que acredita alcançar o objeto suprimindo o observado quando não faz senão privilegiar um método de observação não relativista A proposição de Claudel é verdadeira se bem que seu contrário seja igualmente verdadeiro O homem conhece o mundo não pelo que dele subtrai mas pelo que a ele acrescenta de si mesmo O verdadeiro conhecimento dialetiza sem cessar a relação observadorobservado subtraindo e acrescentando Enfim o método da totalidade deve ao mesmo tempo evitar o empirismo parcelado que isolando um campo da realidade acaba por isolálo do real e as grandes idéias abstratas que como as vistas televisionadas de um satélite artificial só mostram um amontoado de nuvens acima dos continentes É preciso seguir a cultura de massa no seu perpétuo movimento da técnica à alma humana da alma humana à técnica lançadeira que percorre todo o processo social Mas ao mesmo tempo é preciso concebela como um dos cruzamentos desse complexo de cultura de civilizações e de história que nós chamamos de século XX Não devemos expulsar de nosso estudo mas sim centralizar os problemas fundamentais da sociedade e do homem pois eles dominam nossos propósitos 2 A Indústria Cultural As invenções técnicas foram necessárias para que a cultura industrial se tornasse possível o cinematógrafo e o telégrafo sem fio principalmente Essas técnicas foram utilizadas com freqüente surpresa de seus inventores o cinematógrafo aparelho destinado a registrar o movimento foi absorvido pelo espetáculo o sonho e o lazer o TSF primeiramente de uso utilitário foi por sua vez absorvido pelo jogo a música e o divertimento O vento que assim as arrasta em direção à cultura é o vento do lucro capitalista É para e pelo lucro que se desenvolvem as novas artes técnicas Não há dúvida de que sem o impulso prodigioso do espírito capitalista essas invenções não teriam conhecido um desenvolvimento tão radical e maciçamente orientado Contudo uma vez dado esse impulso o movimento ultrapassa o capitalismo propriamente dito nos começos do Estado Soviético Lenin e Trotsky reconheceram a importância social do cinema A indústria cultural se desenvolve em todos os regimes tanto no quadro do Estado quanto no da iniciativa privada Dois sistemas Nos sistemas ditos socialistas o Estado é senhor absoluto censor diretor produtor A ideologia do Estado pode portanto desempenhar um papel capital No entanto mesmo nos Estados Unidos a iniciativa privada nunca fica inteiramente entregue à sua própria evolução o Estado é pelo menos polícia Do Estadosoberano cultural ao Estadopolícia há uma gama de situações intermediárias Na França por exemplo o Estado só interfere na imprensa para dar autorização prévia mas tem sob sua proteção a agência nacional de informação AFP no cinema ele autoriza e proíbe subvenciona em parte a indústria do filme controla uma sociedade de produção no rádio ocupa um monopólio de direito mas tolera a concorrência eficaz de emissoras periféricas Luxemburgo Europa nº 1 Monte Carlo Andorra na televisão esforçase por manter seu monopólio Os conteúdos culturais diferem mais ou menos radicalmente segundo o tipo de intervenção do Estado negativo censura controle ou positivo orientação domesticação politização segundo o caráter liberal ou autoritário da intervenção segundo o tipo de Estado interveniente Não levando em conta essas variáveis podese dizer que se há igualmente a preocupação de atingir o maior público possível no sistema privado busca do máximo lucro e no sistema do Estado interesse político e ideológico o sistema privado quer antes de tudo agradar ao consumidor Ele fará tudo para recrear divertir dentro dos limites da censura O sistema de Estado quer convencer educar por um lado tende a propagar uma ideologia que pode aborrecer ou irritar por outro lado não é estimulado pelo lucro e pode propor valores de alta cultura palestras científicas música erudita obras clássicas O sistema privado é vivo porque divertido Quer adaptar sua cultura ao público O sistema de Estado é afetado forçado Quer adaptar o público à sua cultura É a alternativa entre a velha governanta deserotizada Anastácia e a pinup que entreabre os lábios Sendo preciso colocar o problema em termos normativos não existe a meu ver escolha a fazer entre o sistema de Estado e o sistema privado mas a necessidade de instituir uma nova combinação Enquanto isso é na concorrência no seio de uma mesma nação entre sistema privado e sistema de Estado para o rádio a televisão e o cinema que os aspectos mais inquietantes de um e de outro têm as melhores oportunidades de se neutralizarem e que seus aspectos mais interessantes investimento cultural no sistema de Estado consumo cultural imediato no sistema privado podem 22 23 desenvolverse Isso bem entendido colocado abstratamente Não examinarei neste ensaio o problema dos apêndices culturais da política de Estado nem o sistema cultural dito socialista ainda que com exceção feita à China exista em seu seio penetração de elementos da cultura de massa à americana O objeto de meu estudo são os processos culturais que se desenvolveram fora da esfera de orientação estatal religiosa ou pedagógica sob o impulso primeiro do capitalismo privado e que podem de resto se difundir com o tempo até nos sistemas culturais estatais Para evitar qualquer confusão empregarei o termo de cultura industrial para designar os caracteres comuns a todos os sistemas privados ou de Estado de Oeste e de Leste reservando o termo de cultura de massa para a cultura industrial dominante no Oeste ProduçãoCriação o modelo burocráticoindustrial Em um e em outro caso por mais diferentes que sejam os conteúdos culturais há concentração da indústria cultural A imprensa o rádio a televisão o cinema são indústrias ligeiras pelo aparelhamento produtor são ultralegiras pela mercadoria produzida esta fica gravada sobre a folha do jornal sobre a película cinematográfica voa sobre as ondas e no momento do consumo tornase impalpável uma vez que esse consumo é psíquico Entretanto essa indústria ultralegira está organizada segundo o modelo da indústria de maior concentração técnica e econômica No quadro privado alguns grandes grupos de imprensa algumas grandes cadeias de rádio e televisão algumas sociedades cinematográficas concentram em seu poder o aparelhamento rotativas estúdios e dominam as comunicações de massa No quadro público é o Estado que assegura a concentração A essa concentração técnica corresponde uma concentração burocrática Um jornal uma estação de rádio e de televisão são burocraticamente organizados A organização burocrática filtra a idéia criadora submetea a exame antes que ela chegue às mãos daquele que decide o produtor o redatorchefe Este decide em função de considerações anônimas a rentabilidade eventual do assunto proposto iniciativa privada sua oportunidade política Estado em seguida remete o projeto para as mãos de técnicos que o submetem a suas próprias manipulações Em um e outro sistema o poder cultural aquele do autor da canção do artigo do projeto de filme da idéia radiofônica se encontra impensado entre o poder burocrático e o poder técnico A concentração técnicoburocrática pesa universalmente sobre a produção cultural de massa Donde a tendência à despersonalização da criação à predominância da organização racional de produção técnica comercial política sobre a invenção à desintegração do poder cultural No entanto essa tendência exigida pelo sistema industrial se choca com uma exigência radicalmente contrária nascida da natureza própria do consumo cultural que sempre reclama um produto individualizado e sempre novo A indústria do detergente produz sempre o mesmo pó limitandose a variar as embalagens de tempos em tempos A indústria automobilística só pode individualizar as séries anuais por renovações técnicas ou de formas enquanto as unidades são idênticas umas às outras com apenas algumas diferençaspadrão de cor e de enfeites No entanto a indústria cultural precisa de unidades necessariamente individualizadas Um filme pode ser concebido em função de algumas receitaspadrão intriga amorosa happy end mas deve ter sua personalidade sua originalidade sua unicidade Do mesmo modo um programa de rádio uma canção Por outro lado a informação a grande imprensa pescam cada dia o novo o contingente o acontecimento isto é o individual Fazem o acontecimento passar nos seus moldes para restituilo em sua unicidade A indústria cultural deve pois superar constantemente uma contradição fundamental entre suas estruturas burocratizadas padronizadas e a originalidade individualidade e novidade do produto que ela deve fornecer Seu próprio funcionamento se operará a partir desses dois pa 24 25 res antitéticos burocraciainvenção padrãoindividualidade Esse paradoxo é de tal ordem que se pode perguntar de que modo é possível uma organização burocráticoindustrial da cultura Essa possibilidade reside sem dúvida na própria estrutura do imaginário O imaginário se estrutura segundo arquétipos existem figurinosmodelo do espírito humano que ordenam os sonhos e particularmente os sonhos racionalizados que são os temas míticos ou romanescos Regras convenções gêneros artísticos impõem estruturas exteriores às obras enquanto situaçõestipo e personagenstipo lhes fornecem as estruturas internas A análise estrutural nos mostra que se pode reduzir os mitos a estruturas matemáticas Ora toda estrutura constante pode se conciliar com a norma industrial A indústria cultural persegue a demonstração à sua maneira padronizando os grandes temas romanescos fazendo clichês dos arquétipos em estereótipos Praticamente fabricamse romances sentimentais em cadeia a partir de certos modelos tornados conscientes e racionalizados Também o coração pode ser posto em conserva Com a condição porém de que os produtos resultantes da cadeia sejam individualizados Existem técnicaspadrão de individualização que consistem em modificar o conjunto dos diferentes elementos do mesmo modo que se pode obter os mais variados objetos a partir de peçaspadrão de meccano Em determinado momento precisase de mais precisase da invenção É aqui que a produção não chega a abafar a criação que a burocracia é obrigada a procurar a invenção que o padrão se detém para ser aperfeiçoado pela originalidade Donde esse princípio fundamental a criação cultural não pode ser totalmente integrada num sistema de produção industrial Daí um certo número de consequências por um lado contratendência à descentralização e à concorrência por outro lado tendência à autonomia relativa da criação no seio da produção De qualquer maneira há variável segundo as indústrias um limite à concentração absoluta Se por exemplo o mesmo truste de sabão Lever é levado não só a lançar concorrentemente sobre o mercado várias marcas de detergente Omo Rinso Sunil Tide Persil mas ainda a dotar cada marca de uma certa autonomia principalmente na organização da publicidade é porque existe mesmo nesse nível elementar uma necessidade de variedade e individualidade no consumo e porque a máxima eficácia comercial se encontra nessa forma estranha mas relativamente descentralizadora de autoconcorrência O limite à concentração aparece bem mais nitidamente na indústria cultural Se há concentração na escala financeira é não só concebível mas freqüente por exemplo vários jornais concorrentes dependem de fato do mesmo oligopólio como FranceSoir e ParisPresse a concentração em um só jornal uma só emissora de rádio um só organismo de produção cinematográfica contradiz demais as necessidades de variedade e de individualidade a flexibilidade mínima de jogo que é vitalmente necessária à indústria cultural O equilíbrio concentraçãodescentralização até mesmo concentraçãoconcorrência se estabelece e se modifica em função de múltiplos fatores Donde as estruturas de produção híbridas e moventes Na França por exemplo após a crise de 1931 os trustes de cinema desmoronaram a produção se fragmentou em pequenas firmas independentes somente a distribuição ficou controlada em algumas grandes sociedades que por efeito retrospectivo de reconcentração relativa controlam freqüentemente a produção por avanço sobre receitas Nos Estados Unidos após a concorrência da televisão as grandes sociedades como a Fox se descentralizaram deixando as responsabilidades de individuação a produtores semiindependentes Em outras palavras o sistema cada vez que é forçado a isso tende a voltar ao clima de concorrência do capitalismo anterior Do mesmo modo cada vez que é forçado a isso se deixa penetrar por antídotos contra o burocratismo No sistema de Estado de uma outra maneira mantémse permanentemente grandes resistências antiburocráticas estas se tornam virulentas desde que uma brecha racha o sistema em alguns casos as possi bilidades criadoras dos autores podem ser maiores do que no sistema capitalista uma vez que as considerações a respeito de lucro comercial são secundárias nesse tipo de sistema Foi o caso do cinema polonês de 1955 a 1957 O equilíbrio e o desequilíbrio entre as forças contrárias burocráticas e antiburocráticas depende igualmente do próprio produto A imprensa de massa é mais burocratizada do que no cinema porque a originalidade e a individualidade já lhe são préfabricadas pelo acontecimento porque o ritmo de publicação é diário ou semanal e porque a leitura de um jornal está ligada a fortes hábitos O filme deve cada vez encontrar o seu público e acima de tudo deve tentar cada vez uma síntese difícil do padrão e do original o padrão se beneficia do sucesso passado e o original é a garantia do novo sucesso mas o já conhecido corre o risco de fatigar enquanto o novo corre o risco de desagradar É por isso que o cinema procura a vedete que une o arquétipo ao individual a partir daí compreendese que a vedete seja o melhor antirisco da cultura de massa e principalmente do cinema Em cada caso portanto se estabelece uma relação específica entre a lógica industrialburocráticamonopolisticacentralizadorapadronizadora e a contralógica individualistainventivaconcorrencialautonomistainovadora Essa conexão complexa pode ser alterada por qualquer modificação que afete um só de seus aspectos É uma relação de forças submetidas ao conjunto das forças sociais as quais mediatizam a relação entre o autor e seu público dessa conexão de forças depende finalmente a riqueza artística e humana da obra produzida Essa conexão crucial se opera segundo equilíbrios e desequilíbrios A contradição invençãopadronização é a contradição dinâmica da cultura de massa É seu mecanismo de adaptação ao público e de adaptação do público a ela É sua vitalidade É a existência dessa contradição que permite compreender por um lado esse universo imenso estereotipado no filme na canção no jornalismo no rádio e por outro lado essa invenção perpétua no cinema na canção no jornalismo no rádio essa zona de criação e de talento no seio do conformismo padronizado Pois a cultura industrializada integra os Bressons e os Brassens os Faulkners e os Welles ora sufocandoos ora desabrochandoos Em outras palavras a indústria cultural precisa de um eletrodo negativo para funcionar positivamente Esse eletrodo negativo vem a ser uma certa liberdade no seio de estruturas rígidas Essa liberdade pode ser muito restrita essa liberdade pode servir na maioria das vezes para dar acabamento à produçãopadrão portanto para servir à padronização pode algumas vezes suscitar uma espécie de corrente de Humboldt à margem ou no interior de grandes águas a corrente negra do filme americano de 1945 a 1960 de Dmytrik Kazan a Lazlo Benedek Martin Ritt Nicholas Ray a corrente anarquista da canção francesa com Brassens e Léo Ferré etc Ela pode algumas vezes brilhar de maneira fulgurante Kanal Cinzas e Diamantes Produção e Criação a criação industrializada O criador isto é o autor criador da substância e da forma de sua obra emergiu tardiamente na história da cultura é o artista do século XIX Ele se afirma precisamente no momento em que começa a era industrial Tende a se desagregar com a introdução das técnicas industriais na cultura A criação tende a se tornar produção As novas artes da cultura industrial ressuscitam em certo sentido o antigo coletivismo do trabalho artístico aquele das epopeias anônimas dos construtores de catedrais dos ateliers de pintores até Rafael e Rembrandt É surpreendente a analogia entre os heróis homéricos ou os cavaleiros da Távola Redonda cantados por vagas sucessivas de poetas esquecidos e os heróis das epopeias de revistas em quadrinhos da imprensa de massa ilustrados por ondas sucessivas de desenhistas que reagem no anonimato Assim por exemplo John Carter herói de Edgar Rice Burroughs inaugura sob forma romanesca o western interplanetário Em 1934 o King Features Syndicate acusa o desenhista Alex Raymond de pôr em quadrinhos as aventuras desse herói que se transforma em Flash Gordon Depois da morte acidental de Alex Raymond Austin Briggs o sucede 19421949 Este último é substituído por artigos de jornais devem comportar um determinado número de sinais fixando antecipadamente suas dimensões os programas de rádio são cronometrados Na imprensa a padronização do estilo se dá no rewriting Os grandes temas do imaginário romances filmes são eles mesmos em certo sentido arquétipos e estereótipos constituídos em padrão Nesse sentido segundo as palavras de Wright Mills em White Collar a fórmula substitui a forma A divisão do trabalho porém não é de modo nenhum incompatível com a individualização da obra ela já produziu suas obrasprimas no cinema se bem que efetivamente as condições ideais da criação sejam aquelas em que o criador possa assumir ao mesmo tempo as diversas funções industrialmente separadas a idéia o cenário a realização e a montagem A padronização em si mesma não ocasiona necessariamente a desindividualização ela pode ser o equivalente industrial das regras clássicas da arte como as três unidades que impunham as formas e os temas Os constrangimentos objetivos ou sufocam ou ao contrário aumentam a obra de arte O western não é mais rígido que a tragédia clássica e seus temas canônicos permitem as variações mais requintadas da Cavalgada Fantástica a Bronco High Noon Shane Johnny Guitar Rio Bravo Portanto nem a divisão do trabalho nem a padronização são em si obstáculos à individualização da obra Na realidade elas tendem a sufocála e aumentála ao mesmo tempo quanto mais a indústria cultural se desenvolve mais ela apela para a individuação mas tende também a padronizar essa individuação Não foi em seus começos que Hollywood fez apelo aos escritores de talento para seus roteiros é no momento do apogeu do sistema industrial que a usina de sonhos prende Faulkner por contrato ou compra os direitos de Hemingway Esse impulso em direção ao grande escritor que traz o máximo de individuação é ao mesmo tempo contraditório porque apenas contratado Faulkner se viu salvo uma exceção na impossibilidade de escrever cenários faulknerianos e se limitou a fazer floreios sobre temas padrões Em outras palavras a dialética padronizaçãoindividuação tende freqüentemente a se amortecer em uma espécie de termo médio O impulso no sentido da individuação não se traduz somente pelo apelo ao elétrado negativo o criador ele se efetua pelo refúgio em superindividualidades as vedetes A presença de uma vedete superindividualiza o filme A imprensa consome e cria sem cessar vedetes calcadas sobre o modelo de estrelas de cinema as Elizabeth Margaret Bobet Coppi Hergog Bombard Rubirosa As vedetes são personalidades estruturadas padronizadas e individualizadas ao mesmo tempo e assim seu hieratismo resolve da melhor maneira a contradição fundamental Isto pode ser um dos meios essenciais da vedetização sobre o qual não insisti suficientemente em meu livro a respeito das estrelas Entre esses dois pólos de individualização a vedete e o autor cenarista ou realizador de filme de emissão redator do artigo funciona uma dialética na maioria das vezes repulsiva Quanto mais aumenta a individualidade da vedete mais diminui a do autor e viceversa Na maioria das vezes a vedete tem precedência sobre o autor Dizse um filme de Gabin A individualidade do autor é esmagada pela da vedete Esta individualidade se afirma num filme sem vedetes Podemos abordar aqui o problema do autor que a indústria cultural utiliza e engana ao mesmo tempo em sua tríplice qualidade de artista de intelectual e de criador A indústria cultural atrai e prende por salários muitos altos os jornalistas e escritores de talento ela porém não faz frutificar senão a parte desse talento conciliável com os padrões Constituise portanto no seio do mundo da cultura industrial uma inteligentsia criadora sobre a qual pesam grosseiramente a divisão do trabalho e a burocracia e cujas possibilidades são subdesenvolvidas O copydesk anonimamente dá forma às aventuras de Margaret no FranceDimanche Conta o 17 de Outubro como um suspense em que Lenine seria o terceiro homem O roteirista constrói descuidadamente roteiros que ele despreza Um Dassin se submete à Lollobrigida para rodar La Loi um Lazlo Benedeck para escapar ao silêncio aceita a nenhuma convencional de um script E assim vemos frequentemente autores que dizem Isso não é meu filme fui obrigado a aceitar esta vedete tive que aceitar este happy end fui forçado a fazer este artigo mas não o assinarei é realmente preciso que eu diga isso neste programa de rádio No seio da indústria cultural se multiplica o autor não apenas envergonhado de sua obra mas também negando que sua obra seja obra sua O autor não pode mais se identificar com sua obra Entre ambos criouse uma extraordinária repulsa Então desaparece a maior satisfação do artista que é a de se identificar com sua obra isto é de se justificar através de sua obra de fundar nela sua própria transcendência É um fenômeno de alienação não sem analogia com o do operário industrial mas em condições subjetivas e objetivas particulares e com essa diferença essencial o autor é excessivamente bem pago O trabalho mais desprezado pelo autor é frequentemente o que lhe dá melhor remuneração e dessa desmoralizante correlação nascem o cinismo a agressividade ou a má consciência que se misturam à insatisfação profunda nascida da frustração artística ou intelectual É o que explica que negada pelo sistema uma fração dessa inteligentsia criadora negue por sua vez o sistema e coloque no que ela crê seja o antisistema o de Moscou suas esperanças de desforra e de liberdade É o que explica que um surdo progressismo um virulento anticapitalismo se tenham desenvolvido junto aos roteiristas mais bem pagos do mundo aqueles de Hollywood a caça às bruxas de McCarthy revelou que a Cidade dos Sonhos padronizada estava subterraneamente minada pela mais radical contestação Do mesmo modo na imprensa francesa no cinemo francês uma parte da inteligentsia acorrentada e bem remunerada nutria sua contestação no progressismo Contudo sob a própria pressão que ele sofre o autor espreme um suco que pode irrigar a obra Além disso a liberdade de jogo entre padronização e individualização lhe permite às vezes na medida de seus sucessos ditar suas condições A relação padronizaçãoinvenção nunca é estável nem parada ela se modifica a cada obra nova segundo relações de forças singulares e detalhadas Assim a nouvelle vague cinematográfica provocou um recuo real da padronização embora não se saiba até que ponto e por quanto tempo Enfim existe uma zona marginal e uma zona central da indústria cultural Os autores podem expressarse em filmes marginais feitos com um mínimo de despesas nos programas periféricos do rádio e de televisão nos jornais de público limitado Inversamente a padronização restringe a parte da invenção levandose em conta algumas grandes exceções no setor fechado da indústria cultural o setor ultraconcentrado o setor onde funciona a tendência ao consumo máximo 3 O Grande Público Mesmo fora da procura de lucro todo sistema industrial tende ao crescimento e toda produção de massa destinada ao consumo tem sua própria lógica que é a de máximo consumo A indústria cultural não escapa a essa lei Mais que isso nos seus setores os mais concentrados os mais dinâmicos ela tende ao público universal Revistas como Life ou ParisMatch grandes jornais ilustrados como o FranceSoir superproduções de Hollywood ou grandes coproduções cosmopolitas se dirigem efetivamente a todos e a ninguém às diferentes idades aos dois sexos às diversas classes da sociedade isto é ao conjunto de um público nacional e eventualmente ao público mundial A procura de um público variado implica a procura de variedade na informação ou no imaginário a procura de um grande público implica a procura de um denominador comum Um semanário como ParisMatch ou Life tende sistematicamente ao ecletismo num mesmo número há espiritualidade e erotismo religião esportes humor política jogos viagens exploração arte vida privada de vedetes ou princesas etc Os filmespadrão tendem igualmente a oferecer amor ação humor erotismo em doses variáveis misturam os conteúdos viris agressivos e femininos sentimentais os temas juvenis e os temas adultos A variedade no seio de um jornal de um filme de um programa de rádio visa a satisfazer todos os interesses e gostos de modo a obter o máximo de consumo Essa variedade é ao mesmo tempo uma variedade sistematizada homogeneizada a palavra é de Dwight Mac Donald segundo normas comuns O estilo simples claro direto do copydesk visa a tornar a mensagem transparente a conferirlhe uma inteligibilidade imediata O copydesk dá um estilo homogeneizado um estilo universal e essa universalidade oculta os mais diversos conteúdos De modo ainda mais profundo quando o diretor de um grande jornal ou produtor de um filme dizem meu público eles se referem a uma imagem de homem médio resultante de cifras de venda visão em si mesma homogeneizada Eles imputam gostos e desgostos a esse homem médio ideal este pode compreender que Van Gogh tenha sido um pintor amaldiçoado mas não que tenha sido homossexual pode consumir Cocteau ou Dali mas não Breton ou Péret A homogeneização visa a tornar euforicamente assimiláveis a um homem médio ideal os mais diferentes conteúdos Sincretismo é a palavra mais apta para traduzir a tendência a homogeneizar sob um denominador comum a diversidade dos conteúdos O cinema a partir do reinado da longa metragem tende ao sincretismo A maioria dos filmes sincretiza temas múltiplos no seio dos grandes gêneros assim num filme de aventura haverá amor e comicidade num filme de amor haverá aventura e comicidade e num filme cômico haverá amor e aventura Ao mesmo tempo porém uma linguagem homogeneizada ainda que uma infinidade de formas fossem possíveis exprime esses temas O rádio tende ao sincretismo variando a série de canções e programas mas o conjunto é homogeneizado no estilo da apresentação dita radiofônica A grande imprensa e a revista ilustrada tendem ao sincretismo se esforçando por satisfazer toda a gama de interesses mas por meio de uma retórica permanente O sincretismo tende a unificar numa certa medida os dois setores da cultura industrial o setor da informação e o setor do romanesco No setor da informação é muito procurado o sensacionalismo isto é essa faixa de real onde o inesperado o bizarro o homicídio o acidente a aventura irrompem na vida quotidiana e as vedetes que parecem viver abaixo da realidade quotidiana Tudo que na vida real se assemelha ao romanesco ou ao sonho é privilegiado Mais que isso a informação se reveste de elementos romanescos frequentemente inventados ou imaginados pelos jornalistas amores de vedetes e de princesas Inversamente no setor imaginário o realismo domina isto é as ações e intrigas romanescas que têm as aparências da realidade A cultura de massa é animada por esse duplo movimento do imaginário arremedando o real e do real pegando as cores do imaginário Essa dupla contaminação do real e do imaginário o filme A Princesa e o Plebeu assemelhase à realidade e os amores de Margaret assemelhamse ao filme esse prodigioso e supremo sincretismo se inscreve na busca do máximo de consumo e dão à cultura de massa um de seus caracteres fundamentais O novo público No começo do século XX as barreiras das classes sociais das idades do nível de educação delimitavam as zonas respectivas de cultura A imprensa de opinião se diferenciava grandemente da imprensa de informação a imprensa burguesa da imprensa popular a imprensa séria da imprensa fácil A literatura popular era solidamente estruturada segundo os modelos melodramáticos ou rocambolescos A literatura infantil era rosa ou verde romances para crianças quitetas ou para imaginações viajantes O cinema nascente era um espetáculo estrangeiro Essas barreiras não estão abolidas Novas estratificações foram formadas uma imprensa feminina e uma imprensa infantil se desenvolvem depois de cinquênta anos e criam para si públicos específicos Essas novas estratificações não devem mascarar o dinamismo fundamental da cultura de massa A partir da década dos 30 primeiramente nos Estados Unidos e depois nos países ocidentais emerge um novo tipo de imprensa de rádio de cinema cujo caráter próprio é o de se dirigir a todos Há na França o nascimento do ParisSoir diário dirigindose tanto aos cultos como aos incultos aos burgueses como aos populares aos homens como às mulheres aos jovens como aos adultos o ParisSoir tem em vista a universalidade e de fato a alcança Ele não abarca todos os leitores mas abrange leitores de todas as ordens de todas as categorias Depois há a transformação do Match de revista esportiva em revista para todos pai do atual ParisMatch que também busca a universalidade Paralelamente criase a RadioCité o ParisSoir radiofônico A RadioCité cria um novo pólo de atração um estilo dinâmico de variedades Nesse meio tempo o cinema passa do espetáculo estrangeiro a espetáculo de todos A guerra a ocupação esgotam a cultura de massa depois o movimento se recupera e hoje com a RádioLuxemburgo e Europa nº 1 com o FranceSoir ParisMatch Jours de France com os filmes de vedetes e as grandes produções podese constatar que o setor mais dinâmico mais concentrado da indústria cultural é ao mesmo tempo aquele que efetivamente criou e ganhou o grande público a massa isto é as camadas sociais as idades e os sexos diferentes Concotrentemente se desenvolvem a imprensa infantil e a imprensa feminina A grande cadeia internacional Opera Mundi cria na França a nova imprensa infantil com Tarzan e a nova imprensa feminina com Confidences Depois essas duas impressas conquistam para a cultura de massa o mundo infantil e o mundo feminino E vista mais de perto a imprensa feminina não se opõe à masculina A grande imprensa não é masculina ela é femininomasculina como veremos mais adiante A imprensa feminina se especializa maciçamente nos conteúdos femininos diluídos ou circunscritos na imprensa masculinofeminina A imprensa infantil literalmente criada pela indústria cultural e que floresce atualmente com Mickey Tintin Spirou os Flintstones se especializa nos conteúdos infantis que por aí na imprensa adulta estão diluídos os circunscritos página das crianças quadrinhos jogos Contudo ela é ao mesmo tempo uma preparação para a imprensa do mundo adulto A existência de uma imprensa infantil de massa é o sinal de que uma mesma estrutura industrial comanda a imprensa infantil e a imprensa adulta Esses sinais de diferenciação são portanto também elementos de comunicação Ao mesmo tempo o fosso que separa o mundo infantil do mundo dos adultos tende a desaparecer a grande imprensa para adultos está impregnada de conteúdos infantis principalmente a invasão das histórias em quadrinhos e multiplicou o emprego da imagem fotos e desenhos isto é de uma linguagem imediatamente inteligível e atraente para a criança ao mesmo tempo a imprensa infantil tornouse um instrumento de aprendizagem para a cultura de massa Podese considerar que quatorze anos é a idade de acesso à cultura de massa adulta é a idade em que já se vai ver filmes de todos os gêneros exceto evidentemente os censurados em que já se fica apaixonado pelas revistas em que já se escutam os mesmos programas de rádio ou de televisão que os adultos Podese dizer que a cultura de massa em seu setor infantil leva precocemente a criança ao alcance do setor adulto enquanto em seu setor adulto ela se coloca ao alcance da criança Esta cultura cria uma criança com caracteres préadultos ou um adulto acriança A resposta a essa pergunta não é necessariamente alternativa Horkhimer vai mais longe longe demais porém indica uma tendência O desenvolvimento deixou de existir A criança é adulto desde que sabe andar e o adulto fica em princípio estacionário Assim uma homogeneização da produção se prolonga em homogeneização do consumo que tende a atenuar as barreiras entre as idades Não há dúvida de que essa tendência ainda não realizou todas as suas potencialidades isto é ainda não atingiu seus limites Essa homogeneização das idades tende a se inxar numa nota dominante a dominante juvenil Esbocemos aqui uma observação que reencontraremos mais adiante a temática da juventude é um dos elementos fundamentais da nova cultura Não são apenas os jovens e os adultos jovens os grandes consumidores de jornais revistas discos programas de rádio a televisão como veremos é exceção mas os temas da cultura de massa inclusive a televisão são também temas jovens Embora a cultura de massa tenha desenvolvido uma imprensa feminina não desenvolveu salvo exceções isoladas uma imprensa específica masculina Algumas vezes a grande imprensa chega a ser mesmo mais feminina que masculina se se pensa no lugar dado aos temas sentimentais O cinema por sua vez conseguiu ultrapassar a alternativa que caracteriza a época do mundo entre filmes com características femininas ternas lacrimosas dolorosas e filmes com características viris violentas agressivas ele produz filmes sincretizados nos quais o conteúdo sentimental se mistura com o conteúdo violento Há portanto uma tendência ao mixage4 de conteúdos de interesses femininos e masculinos com uma ligeira dominante feminina no interior desse mixage e fora dele uma imprensa feminina especializada em economia doméstica moda e assuntos amorosos A cultura tradicional a cultura humanista se detinham nas fronteiras das classes o mundo camponês e operário mesmo quando entrou no circuito da cultura primária da alfabetização ficou à margem das humanidades o teatro era e continua a ser um privilégio de consumo burguês A cultura camponesa ainda permanecia folclórica nas primeiras décadas do século XX Da mesma maneira a cultura operária se achava fechada nos subúrbios industriais ou então era elaborada no interior dos sindicatos ou partidos socialistas Ora o cinema foi o primeiro a reunir em seus circuitos os espectadores de todas as classes sociais urbanas e mesmo camponesas Os inquéritos nos Estados Unidos Inglaterra e França nos indicam que a percentagem de freqüência para as classes sociais é aproximadamente a mesma Depois os espetáculos esportivos por sua vez drenaram um público saído de todas as camadas da sociedade A partir da década dos 30 o rádio irrigou rapidamente todo o campo social A televisão tomou impulso tanto nos lares populares quanto nos ricos Enfim a grande imprensa de informação no estilo FranceSoir as grandes revistas ilustradas no gênero ParisMatch se difundiram desigualmente é verdade mas incontestavelmente em todas as bancas As fronteiras culturais são abolidas no mercado comum das mass media Na verdade as estratificações são reconstituídas no interior da nova cultura Os cinemas de arte e os cinemas de circuito popular diferenciam o público cinematográfico Mas essa diferenciação não é exatamente a mesma das classes sociais Os programas e sucessos do cinema de arte nem sempre coincidem com os dos circuitos comuns mas muitas vezes são os mesmos Os ouvintes de rádio se diferenciam pela escolha das estações e dos programas e essa diferenciação de gostos é também uma diferenciação social parcial As revistas são difundidas muitas vezes segundo as estratificações sociais a FranceDimanche é mais popular Noir et Blanc menos popular que ParisMatch A ParisPresse é mais burguesa Le Monde mais intelectual que FranceSoir os artigos podem ser apreciados de maneira diferente pelo operário ou pelo burguês nos mesmos jornais mas ParisMatch FranceSoir permanecem os grandes veículos comuns a todas as classes Se alguém pensar que nos Estados Unidos e na Europa Ocidental as classes ou categorias sociais permanecem separadas no trabalho por relações de autoridade ou relações de vendedor a comprador separadas no habitat por quarteirões ou blocos isso ainda apesar das novas unidades de alojamento podese adiantar que a cultura industrial é o único grande terreno de comunicação entre as classes sociais o operário e o patrão cantarolarão Piaf ou Dalida terão visto o mesmo programa na TV terão seguido as mesmas séries desenhadas do FranceSoir terão quase no mesmo instante visto o mesmo filme E se alguém pensa nos lazeres comuns com temporadas de férias comuns para operários empregados quadros comerciantes permanece a diferença entre o lugarejo de barracas e as casas de campo já se pode perceber que a nova cultura se prolonga no sentido de uma homogeneização de costumes cusam a identificarse com os operários os operários permanecem com sua consciência de classe a fábrica continua sendo o gueto da civilização industrial Prestígios convenções hierarquias reivindicações diferenciam e dividem essa grande camada assalariada Mas o que a homogeneíza não é apenas o estatuto sarial seguros sociais aposentadorias às vezes seguros de desempregos é a identidade dos valores de consumo e são esses valores comuns que veiculam as mass media é essa unidade que caracteriza a cultura de massa Assim a uma nova camada salarial em vías de homogeneização essas duas tendências contraditórias se efetuando em diferentes níveis corresponde uma cultura ela mesma em vias de homogeneização e de heterogeneização Não quero dizer que as estratificações culturais correspondam às estratificações da nova camada quero assinalar uma correspondência sociológica mais vasta e global Esta cultura industrial seria pois em certo sentido a cultura cujo meio de desenvolvimento seria o novo salariado Alguns problemas podem ser colocados de imediato se bem que só mais adiante possamos examinálos a fundo Se é verdade que o novo salariado é caracterizado pela progressão dos colarinhos brancos isto é dos empregados em firmas de 1930 a 1950 o número dos white collars jobs passou de 30 para 37 nos Estados Unidos se é verdade que segundo Leo Bogart Os Estados Unidos são hoje em dia um país de classe média não apenas em sua renda mas em seus valores5 podese supor que a nova cultura corresponde igualmente à preponderância ou à progressão dos valores de classe média no seio do novo salariado com a condição evidentemente de não se pensar tanto nas antigas classes médias pequenos proprietários pequenos artesãos pequenos camponeses quanto com a confluência de valores pequenoburgueses nos valores do welfare moderno Em outras palavras a nova cultura se inscreve no complexo sociológico constituído pela economia capitalista a democratização do consumo a formação e o desenvolvimento do novo salariado a progressão de determinados valores Ela é quando consideramos as classes da sociedade quando consideramos os estatutos sociais no seio do novo salariado o lugarcomum o meio de comunicação entre esses diferentes estratos e as diferentes classes Em certos centros de férias como o clube Mediterranée já se podem encontrar operários empregados quadros técnicos fisicamente misturados e não mais apenas imagina riamente confundidos no isolamento do ouvinte de rádio da leitura do jornal ou da sala escura Podese também como Leo Bogart adiantar que o nivelamento das diferenças sociais faz parte da padronização dos gostos e interesses aos quais as mass media dão uma expressão e para a qual contribuem6 Abordamos aí ainda uma vez um problema de fundo Fiquemos porém no momento na verificação do caráter sincretizante e homogeneizante da cultura industrial Esse caráter se verifica enfim sobre o plano das nações A tendência homogeneizante é ao mesmo tempo uma tendência cosmopolita que tende a enfraquecer as diferenciações culturais nacionais em prol de uma cultura das grandes áreas transnacionais A cultura industrial no seu setor mais concentrado mais dinâmico já está organizada de modo internacional As grandes cadeias de imprensa como a Opera Mundi a cadeia Del Duca fornecem materiais que são adaptados para múltiplos idiomas principalmente no domínio dos comics e da imprensa amorosa O cinema de Hollywood visa não apenas ao público americano mas ao público mundial e há mais de 10 anos as agências especializadas eliminam os temas suscetíveis de chocarem as platéias européias asiáticas ou africanas Ao mesmo tempo se desenvolve um novo cinema estruturalmente cosmopolita o cinema de coprodução reunindo não apenas capitais mas vedetes autores técnicos de diversos países É o caso por exemplo de Barrage contre le Pacifique coprodução francoítaloamericana que foi rodada na Tailândia por um diretor francês baseado numa adaptação americana feita por Irving Shaw do romance francês de Marguerite Duras com vedetes italiana Silvana Mangano e americana Anthony Perkins Todo filme subtitulado já é cosmopolita Todo filme dublado é um estranho produto cosmopolitizado cuja língua foi retirada para ser substituída por outra Ele não obedece às leis da tradução como o livro mas às leis da hibridação industrial A cultura industrial adapta temas folclóricos locais transformandoos em temas cosmopolitas como o western o jazz os ritmos tropicais samba mambo chácháchá etc Pegando esse impulso cosmopolita ela favorece por um lado os sincretismos culturais filmes de coprodução transplantação para uma área de cultura de temas provenientes de uma outra área cultural e por outro lado os temas antropológicos isto é adaptados a um denominador comum de humanidade Esse cosmopolitismo se irradia a partir de um pólo de desenvolvimento que domina todos os outros os Estados Unidos Foi lá que nasceu a cultura de massa É lá que se encontra concentrado seu máximo de potência e energia mundializante A cultura industrial se desenvolve no plano do mercado mundial Dali sua formidável tendência ao sincretismoecletismo e à homogeneização seu fluxo imaginário lúdico estético atenta contra as barreiras locais étnicas sociais nacionais de idade sexo educação ela separa dos folclores e das tradições temas que ela universaliza ela inventa temas imediatamente universais Encontramos novamente o problema do denominador comum do homem ao mesmo tempo médio e universal esse modelo por um lado ideal e abstrato por outro sincrético e múltiplo da cultura de massa O homem médio Qual é esse homem universal É o homem puro e simples isto é o grau de humanidade comum a todos os homens Sim e não Sim no sentido em que se trata do homem imaginário que em toda a parte responde às imagens pela identificação ou projeção Sim se se trata do homemcriança que se encontra em todo homem curioso gostando do jogo do divertimento do mito do conto Sim se se trata do homem que em toda parte dispõe de um tronco comum de razão perceptiva de possibilidades de decifração de inteligência Nesse sentido o homem médio é uma espécie de anthropos universal A linguagem adaptada a esse anthropos é a audiovisual linguagem de quatro instrumentos imagem som musical palavra escrita Linguagem tanto mais acessível na medida em que é envolvimento politônico de todas as linguagens Linguagem enfim que se desenvolve tanto e mais sobre o tecido do imaginário e do jogo que sobre o tecido da vida prática Ora as fronteiras que separam os reinos imaginários são sempre fluidas diferentemente daquelas que separam os reinos da terra Um homem pode mais facilmente participar das lendas de uma outra civilização do que se adaptar à vida desta civilização Assim é sobre esses fundamentos antropológicos que se apoia a tendência da cultura de massa à universalidade Ela revela e desperta uma universalidade primeira Ao mesmo tempo porém ela cria uma nova universalidade a partir de elementos culturais particulares à civilização moderna e singularmente à civilização americana É por isso que o homem universal não é apenas o homem comum a todos os homens É o homem novo que desenvolve uma civilização nova que tende à universalidade A tendência à universalidade se funde portanto não apenas sobre o anthropos elementar mas sobre a corrente dominante da era planetária O consumo cultural Em certo sentido aplicamse as palavras de Marx a produção cria o consumidor A produção produz não só um objeto para o sujeito mas também um sujeito para o objeto De fato a produção cultural cria o público de massa o público universal Ao mesmo tempo porém ela redescobre o que estava subjacente um tronco humano comum ao público de massa Em outro sentido a produção cultural é determinada pelo próprio mercado Por esse traço igualmente ela se diferencia fundamentalmente das outras culturas estas utilizam também e cada vez mais as mass media impresso filme programas de rádio ou televisão mas tem um caráter normativo são impostas pedagógica ou autoritariamente na escola no catecismo na caserna sob forma de injunções ou proibições A cultura de massa no universo capitalista não é imposta pelas instituições sociais ela depende da indústria e do comércio ela é proposta Ela se sujeita aos tabus da religião do Estado etc mas não os cria ela propõe modelos mas não ordena nada Passa sempre pela mediação do produto vendável e por isso mesmo toma emprestadas certas características do produto vendável como a de se dobrar à lei do mercado da oferta e da procura Sua lei fundamental é a do mercado Dali sua relativa elasticidade A cultura de massa é o produto de um diálogo entre uma produção e um consumo Esse diálogo é desigual A priori é um diálogo entre um prolixo e um mudo A produção o jornal o filme o programa de rádio desenvolve as narrações as histórias expressase através de uma linguagem O consumidor o espectador não responde a não ser por sinais pavlovianos o sim ou o não o sucesso ou o fracasso O consumidor não fala Ele ouve ele vê ou se recusa a ouvir ou a ver Teoricamente só se pode concluir que haja uma concorrência infinitamente fraca 10 no máximo entre essa oferta e essa procura No entanto se nos colocamos do ponto de vista dos próprios mecanismos de consumo e do ponto de vista do tempo podemos considerar que ao longo dos anos os temas que desabrocham ou desfalecem evoluem ou se estabilizam no cinema na imprensa no rádio ou na televisão traduzem uma certa dialética da relação produçãoconsumo Não se pode colocar a alternativa simplista é a imprensa ou o cinema ou o rádio etc que faz o público ou é o público que faz a imprensa A cultura de massa é imposta do exterior ao público e lhe fabrica pseudonecessidades pseudointeresses ou reflete as necessidades do público É evidente que o verdadeiro problema é o da dialética entre o sistema de produção cultural e as necessidades culturais dos consumidores Essa dialética é muito complexa pois por um lado o que chamamos de público é uma resultante econômica abstrata da lei da oferta e da procura é o público médio ideal do qual falei e por outro lado os constrangimentos do Estado censura e as regras do sistema industrial capitalista pesam sobre o caráter mesmo desse diálogo A cultura de massa é portanto o produto de uma dialética produçãoconsumo no centro de uma dialética global que é a da sociedade em sua totalidade É que os efeitos sobre o público não estão em consequência e em relação direta com as intenções daquele que comunica nem com o conteúdo da comunicação As predisposições do leitor ou do ouvinte estão profundamente engajadas na situação e podem bloquear ou modificar o efeito esperado e até provocar um efeito boomerang B BERELSON Communications and Public Opinions in The Process and Effects of Mass Communication ref cit in Bibliografia pág 355 Autoseleção opinionleader efeito boomerang cf LAZARSFELD Tendences actuelles de la sociologie des communications et comportements du public de la radiotélévision américaine referência citada na Bibliografia pág 196 4 A Arte e a Média Recapituloemos agora do ponto de vista das consequências artísticas os dados focalizados até aqui De um lado um impulso em direção ao conformismo e o produto padrão de outro lado um impulso em direção à criação artística e à livre invenção No primeiro sentido há o Estado seja ele censor ou patrão Existe a estrutura técnicoburocrática que é sempre um fator de conformismo Existe a estrutura industrial que é sempre um fator de padronização Existe a economia capitalista que tende à procura do máximo de público com as consequências já examinadas homogeneização fabricação de uma cultura para a nova camada salarial O público mesmo tomado como uma massa anônima concebido sob o aspecto de um homem médio abstrato é um fator de conformismo Os fatores de conformismo agem portanto do cume até a base do sistema em todos os escalões Mas é igualmente em todos os escalões que encontramos os antídotos O Estado pode isentar a arte dos constrangimentos do lucro donde a possibilidade tanto de uma arte santuária como o Alexandre Newski de Eisenstein como de uma arte de pesquisa como os filmes de McLarren na National Film Board of Canada O capitalismo privado pode isentar a arte dos constrangimentos do Estado Por outro lado a criação pode utilizar todas as falhas do grande sistema estatal ou capitalistaindustrial todos os fracassos da grande máquina Podese dizer que no sistema capitalista o produtor cosmopolita o judeuzinho Pinia que ficou milhardário desempenha papel progressivo em relação ao administrador ao homem de negócios ao banqueiro normal As vezes ele corre riscos cuja importância sua falta de cultura não pode medir às vezes confia em empreendimentos insensatos cuja rentabilidade pensa pressentir Os cinemas americano e francês ainda não se burocratizaram inteiramente eles ainda se ressentem de suas origens e ainda têm alguma coisa do antigo sistema arriscado e improvisado sem ideologia e sem preconceitos conformistas Ainda há qualquer coisa de judeu no cinema isto é qualquer coisa de não conforme de não totalmente adaptado e integrado Em regra geral tudo que persiste do antigo setor selvagem e savana da sociedade industrial tudo que se mantém na concorrência favorece sempre alguma abertura original e inventiva Além disso as necessidades da nova camada salarial à qual se dirige a indústria cultural estão em plena fermentação concernem problemas fundamentais do homem em busca da felicidade Convocam então não apenas simples divertimentos mas conteúdos que colocam em xeque o ser humano profundo É portanto um sistema bem menos rígido que se apresenta à primeira vista está em certo sentido fundamentalmente dependente da invenção e da criação que estão todavia sob sua dependência as resistências as aspirações e a criatividade do grupo intelectual podem funcionar no interior do sistema A inteligentsia nem sempre é radicalmente vencida em sua luta pela expressão autêntica e pela liberdade de criação E é por isso que ao mesmo tempo que fabrica e padroniza o sistema também permite que o cinema seja uma arte No próprio seio da produção em série há jogos para adultos jornais de crianças canções da moda folhetins comics os Signé Furax e os SuperCrétin de la Terre ricos em fantasia humor ou poesia Enfim a indústria cultural não produz apenas clichês ou monstros A indústria de Estado e o capitalismo privado não esterilizam toda a criação Apenas no seu ponto extremo de rigidez política ou religiosa o sistema de Estado pode durante algum tempo talvez longo demais anular quase totalmente a expressão independente Entre o pólo de onirismo desenfreado e o pólo de papronização estereotipada se desenvolve uma grande corrente cultural média onde se atrofiam os impulsos mais inventivos mas onde se purificam os padrões mais grosseiros Há um enfraquecimento constante nos Estados Unidos na Inglaterra na França de jornais e revistas de baixo nível em benefício dos de nível médio Mediocridade no sentido mais exato da palavra isto é qualidade do que é médio e não tanto no sentido do termo tornado pejorativo As águas baixas sobem e as águas altas descem Você não notou que nossos jornalistas ficam sempre melhores e nossos poetas sempre piores põe na boca de Arnheim Robert Musil em LHomme sans Qualités Efetivamente os padrões se enchem de talento mas sufocam o gênio Um copydesk do ParisMatch escreve melhor que Henri Bordeaux mas não saberia ser André Breton A qualidade literária e sobretudo a qualidade técnica sobem na cultura industrializada qualidade redacional dos artigos qualidade das imagens cinematográficas qualidade das emissões radiofônicas mas os canais de irrigação seguem implacavelmente os grandes traçados do sistema Em todo lugar a qualidade Boussac substitui de uma só vez a antiga mercadoria ordinária e o velho artigo feito à mão Em todo lugar o nylon substitui os velhos tecidos de algodão e a seda natural O acabamento industrial explica essa subida e essa baixa qualitativa A subida qualitativa dos padrões não responde mais aos critérios aristocráticos de oposição da qualidade à quantidade ela nasce da própria quantidade Por exemplo a qualidade dos westerns provém também de sua quantidade isto é de uma longa tradição de produção em série Ao mesmo tempo o gênio tende a ser integrado na medida em que é curiosidade novidade esquisitice escândalo Cocteau e Picasso fazem parte da galeria das vedetes com Distel Margaret Bardot O gênio dá a marca alta cultura análoga à marca alta da cultura de massa A corrente média triunfa e nivela mistura e homogeneíza levando Van Gogh e Jean Nohain Favorece as estéticas médias as poesias médias os talentos médios as inteligências médias as bobagens médias É que a cultura de massa é média em sua inspiração e seu objetivo porque ela é a cultura do denominador comum entre as idades os sexos as classes os povos porque ela está ligada a seu meio natural de formação a sociedade na qual se desenvolve uma humanidade média de níveis de vida médios de tipo de vida médio Mas a corrente principal não é a única Ao mesmo tempo se constitui uma contracorrente na franja da indústria cultural Ainda que a corrente média tenha êxito em misturar o padrão e o individual a contracorrente se apresenta como o negativo da corrente dominante A corrente principal de Hollywood mostra o happy end a felicidade o êxito a contracorrente aquela que vai da Morte de um CaixeiroViajante a No Down Payment mostra o fracasso a loucura a degradação As redes negativas são ao mesmo tempo sempre secundárias e sempre presentes Assim nós vemos que a contradição fundamental é a seguinte o sistema tende a secretar continuamente seus próprios antídotos e tende continuamente a impedilos de agir essa contradição se neutraliza na corrente média que é ao mesmo tempo a corrente principal ela se afia na oposição entre a contracorrente negativa e a corrente principal mas a corrente negativa tende a ser repelida para a periferia E finalmente há a terceira corrente a corrente negra a corrente em que fermentam as perguntas e as contestações fundamentais que permanece fora da indústria cultural esta pode usurpar em parte adaptar a si tornar consumíveis publicamente certos aspectos digamos de Marx Nietzsche Rimbaud Freud Breton Péret Artaud mas a parte condenada o antipróton da cultura seu rádium ficam de fora Mas o quê O que existia antes da cultura de massa Hölderlin Novalis Rimbaud eram eles reconhecidos enquanto vivos O conformismo burguês a mediocridade arrogante não reinavam nas letras e nas artes Antes dos gerentes da grande empresa dos produtores de cinema dos burocratas do rádio não havia os acadêmicos as personalidades gabaritadas os salões literários A velha alta cultura tinha horror ao que revolucionava as idéias e as formas Os criadores se esgotavam sem impor sua 25 obra Não houve idade de ouro da cultura antes da cultura industrial E esta não anuncia a idade de ouro Em seu movimento ela traz mais possibilidades que a antiga cultura congelada mas em sua procura da qualidade média destrói essas possibilidades Sob outras formas a luta entre o conformismo e a criação o modelo congelado e a invenção continua 5 O Grande Cracking Os discos long playing e o rádio multiplicam Bach e Alban Berg Os livros de bolso multiplicam Malraux Camus Sartre As reproduções multiplicam Piero della Francesca Masaccio Cézanne ou Picasso Em outras palavras a cultura cultivada se democratiza pelo livro barato o disco a reprodução Há portanto uma zona onde a distinção entre a cultura e a cultura de massa se torna puramente formal A Condição Humana A Náusea ou A Peste entram na cultura de massa sem deixar contudo a cultura cultivada Essa democratização da cultura cultivada é efetivamente uma das correntes da cultura de massa mas como veremos mais adiante não é a corrente principal nem a corrente específica Por outro lado se essa democratização multiplicadora das obras anuncia talvez uma integração futura das duas correntes não atenta contra os privilégios da alta cultura Esta pelas obras mesmas onde se dá a democratização mantém um setor reservado no qual detém o monopólio da atualidade e do original Os livros de bolso só aparecem depois de transcorrido certo tempo em favor da primeira edição O disco não suprime a cerimônia que é o concerto A reprodução do quadro não reduz em nada o valor mitificado do original A alta cultura resiste à integração às vezes cultivando valores míticos como a assinatura do artista embaixo do seu quadro se bem que a reprodução no estágio de perfei 26 ção a que chegou possa anular o valor do original do mesmo modo que um protótipo automobilístico perde todo o valor a partir da fabricação em série Mas culturalmente a reprodução pelo contrário supervaloriza o original Isso significa que em certo sentido essa mitificação pode ser considerada como uma resistência à invasão conquistadora da cultura de massa Por sua vez a cultura industrial não faz senao multiplicarse pura e simplesmente freqüentemente transforma segundo suas próprias normas aquilo que vai buscar nas reservas de alta cultura Ao mesmo tempo que repugna à alta cultura desprestigiar seus valores a cultura industrial tende a integrar bem demais em seus moldes as formas e os conteúdos de que se apropria Há portanto ao lado da democratização propriamente dita multiplicação pura e simples uma vulgarização transformação tendo em vista a multiplicação um estudo de Chopin depois de tratamento adequado vira uma melodia de jukebox uma melodia de Beethoven vira um chácháchá cantado por Dalida o Vermelho e o Negro não é simplesmente traduzido da linguagem do romance para a linguagem do filme ele é adaptado para o grande público isto é vulgarizado O digest moderno diversamente do resumo que é um auxílio para a memorização substitui a obra lenta e densa pela condensação agradável e simplificadora Um exemplo de vulgarização ininterrupta esclarecerá esse propósito O Vermelho e o Negro de Stendhal se torna um filme adaptado aos padrões comerciais desse filme nasce O Vermelho e o Negro folhetim em quadrinhos publicado num diário Os processos elementares de vulgarização são simplificação modernização maniqueização atualização A simplificação foi estudada na tese de Leister Asheim From Book to Film cf Bibliografia Asheim fez uma análise comparativa de romances como O Morro dos Ventos Uivantes Os Miseráveis etc e de filmes tirados desses romances por Hollywood esquematização da intriga redução do número de personagens redução dos caracteres a uma psicologia clara eliminação do que poderia ser dificilmente inteligível para a massa dos espectadores para o spectador médio ideal Essa tendência simplificadora não provém da expressão cinematográfica em si mesma por serem diferentes os recursos artísticos do cinema não são menores que os do romance por serem subdesenvolvidos seus recursos intelectuais não são menos equivalentes mas da natureza presente da cultura de massa Além disso a mesma vulgarização funciona no sentido inverso do filme ao romance dele saído A tendência à simplificação muitas vezes está em pé de igualdade com a tendência ao maniqueísmo polarizase mais nitidamente que na obra original o antagonismo entre o bem e o mal acentuamse traços simpáticos e traços antipáticos a fim de aumentar a participação afetiva do espectador tanto no seu apego pelos heróis como na sua repulsa pelos maus A atualização introduz a psicologia e a dramatização moderna no seio de obra do passado Por exemplo os filmes sobre os mártires cristãos estarão centrados sobre uma história de amor entre uma bela cristã e um centurião romano o filme Theodora mostranosá o grande amor da imperatriz de Bizâncio o faraó egípcio beijará na boca sua bela esposa o amor moderno triunfará na antiguidade mais remota Mais radical que a atualização a modernização opera a transferência pura e simples da ação do passado para o tempo presente As Ligações Amorosas são transplantadas para 1960 Simplificação maniqueização atualização modernização concorrem para aclimatar as obras de alta cultura na cultura de massa Essa aclimatação por retiradas e acréscimos visa a tornálas facilmente consumíveis deixa mesmo que se introduzam nelas temas específicos da cultura de massa ausentes da obra original como por exemplo o happy end A capa ilustrada dos livros de bolso é apenas um chamariz de apresentação em que nada modifica a obra reproduzida A aclimatação cria híbridos culturais A inteligentsia humanista vê com bons olhos a democratização com horror a hibridação Ela se felicita por uma peça de Shakespeare poder ser vista em uma só representação televisada por um maior número de espectadores que em dois séculos de teatro mas a Société des Gens de Lettres não pode suportar que Laclos seja mani pulado por Vadim Ela aprova o long playing mas condena as vulgaridades para jukebox Contudo fidelidade e traição em relação à obra popularização e degradação da cultura se desenvolvem no interior de uma mesma corrente O prolongamento cultural o romance burguês Se tomamos um pouco de distância constatamos que a cultura de massa não está em ruptura radical com as culturas literárias anteriores Ela é herdeira de um movimento que começa com a tipografia A tipografia inaugura o que poderíamos chamar de páleocultura de massa no sentido de que ela atrai um lento movimento de democratização da cultura clássica grecolatinacristã e que ela sustenta a cultura burguesa O movimento secular de democratização da cultura escrita se efetua por etapas mas sob o signo de uma tripla correlação um progresso de burguesia corresponde à promoção do romance e à promoção da mulher É no século XVII que se afirma um duplo impulso romanesco do qual ainda não separamos bem a relação dialética uma espécie de dualidade cultural parece opor a literatura aristocrática a do romance quimérico como lAstrée à nova literatura burguesa realista e terraaterra como a que inaugura o Romance burguês de Puretière Através de Boileau e Molière que ridicularizam os romances de Mlle de Scudéry femmes savantes e précieuses ridicules é o burguês Crysale que reivindica orgulhosamente os direitos prosaicos do que já poderíamos quase chamar de realismo Os romances de amor aventurosos viagens no mapa da Ternura13 sem dúvida ancestrais da imprensa amorosa fogem pelo contrário da vida prosaica e burguesa Mas tratase af de duas respostas para o mesmo prosaísmo real Na verdade a cavalaria está bem morta e porque ela está morta é que sonhadores aristocratas e afetados burgueses empreendem sonhos romanescos nos quais desabrocha a grande mitologia do amor sublime A vida prosaica começa e chama por um lado os grandes sonhos compensadores de lAstrée por outro o novo realismo Desde o século XVI o Don Quixote de Cervantes colocava no segundo grau de ironia a contradição entre o sonho sublime e a realidade simples No século XVII o romance é esquartejado entre os dois pólos da quimera e do realismo mas logo esses dois pólos vão operar uma eletrólise de onde sairá o romance moderno Os temas de amor serão extraídos dos romances de cavalaria que se enfraquecerá para serem integrados no romance burguês que deixará de ser cínico e caricatural para ficar realista Dessa dupla transfusão que começa com La Princesse de Clèves no quadro aristocrático e que se ampliará até o quadro burguês nascerá o romance burguês moderno no século XIX romance de relações conflitos problemas entre os indivíduos no seio de sua sociedade onde o amor desempenha um papel essencial Albert Thibaudet pôs em destaque os progressos correlativos ao século XIX da burguesia da democracia da mulher do romance14 Um momentochave desse processo é Madame Bovary Em Madame Bovary a consumidora típica do romance a burguesa culta se torna a heroína típica do romance Emma se aborrece sonha com o amor não pode satisfazerse com a vida monótona de província É no romanesco que ela procura a saída e isto intervirá em sua vida de modo patético e irrisório ela viverá esse grande amor que ao mesmo tempo será uma paródia de amor mas essa paródia terá sido vivida amargamente a tal ponto que se transformará em tragédia e se resolverá na morte Pela primeira vez tão radicalmente desde Don Quixote mas dessa vez no plano feminino e burguês o processo de identificação que une o leitor a leitora ao herói a heroína do romance é impulsionado até a permutação a burguesa sonhadora se torna a heroína do romance enquanto a heroína do romance se tornou o sonhadora leitora burguesa Madame Bovary é o Don Quixote do romance burguês Don Quixote e Emma Bovary se matam a querer idealizar o mundo e se tornam as testemunhas nas quais se identificam um com o outro o que René Girard chama 57 de mentira romântica e verdade romanesca15 eles vivem essa vida híbrida semionírica semireal onde se dá o diálogo entre o romance moderno e seu leitor O delírio deles faz nascer uma nova tragédia a tragédia do mundo burguês onde o amor ideal se choca com o real sem poder transfiguralo Quixote permanece o amante platônico que não conhece a materialidade do amor Emma heroína mais prosaica de um mundo tornado mais prosaico pratica no adultério esse amor cuja essência finalmente lhe escapa No Don Quixote a dominante é masculina Em Madame Bovary a dominante se tornou feminina e o amor se tornou o tema identificativo essencial Assim a cultura literária burguesa encontra em Madame Bovary seu símbolo mais surpreendente Cultura romanesca cultura da pessoa particular cultura das necessidades da alma e das necessidades do amor cultura da projeção dos problemas humanos no universo imaginário mas cada vez mais fortemente de identificação entre o leito e seus heróis Como veremos mais adiante o bovarismo entendido nesse sentido de identificação entre o romanesco e o real será solidamente integrado na cultura de massa a partir de 1930 para se tornar um de seus temas fundamentais A corrente bovarizante que é de integrar o real no imaginário o imaginário no real se ramificará de maneira múltipla o eu do autor e o eu do herói poderseão confundir e finalmente o romancista procurará continuamente transformar o real na lembrança transformar a si mesmo por sua obra e na sua obra Os romances burgueses sob diversas formas se tornam os tu e eu tu leitor que sou eu autor eu autor que sou tu leitor tu personagem de romance que sou eu eu personagem de romance que sou tu um jogo de perseguição passos cruzados incessantes entre a vida e o conto O romance popular No século XIX a corrente mais significativa do romance burguês tende a criar uma relação bovarista entre a obra e o leitor sobretudo a leitora enquanto surge e se desenvolve o romance popular O imaginário popular o dos contos de serão narrações de saltimbancos da tradição oral se fixa na tipografia a partir do século XVIII São os romances de venda ambulante levados de casa em casa pelos mercadores errantes nos quais se encontram contos da fadas lendas narrações maravilhosas do folclore e nos quais se introduzem os temas beirando o fantástico do romance negro inglês Nesse imaginário popular o extraordinário é mais alimentado que o ordinário isto é as correntes de projeção dominam as correntes de identificação ao contrário do imaginário burguês que se funde no realismo isto é assegura uma identificação mais estreita entre o leitor e o herói No entanto o imaginário popular vai modificarse no folhetim de imprensa do século XIX O impulso do jornal determina o aparecimento de episódios do diaadia e multiplica a procura do romance O folhetim se torna um centro de osmose entre a corrente burguesa e a corrente popular a corrente popular pega personagens da vida quotidiana mas essas personagens estão empenhadas em aventuras rocambolescas onde às vezes até o fantástico irrompe Les Mémoires du Diable de Frédéric Soulié Le Juif Errant de Eugène Sue Uma parte do imaginário burguês se deixa arrebatar pela aventura rocambolesca romances de Balzac principalmente a Histoire des Treize a série dos Vautrin a Recherche de lAbsolu romances de Hugo como QuatreVingtTreize e sobretudo Les Misérables Essas duas correntes se misturam como se misturam na leitura do jornal os leitores busgueses e agora leitores populares onde dominam os leitores pequenoburgueses ainda mal libertados das raízes populares mas já semiencaixados na cultura burguesa O folhetim cria um gênero romanesco híbrido no qual se acham lado a lado gente do povo lojistas burgueses ricos aristocratas e príncipes onde a órfã é a filha ignorada do príncipe onde o mistério do nascimento opera estranhas permutas sociológicas onde a opulência se disfarça em miséria e onde a miséria chega a opulência a vida quotidiana é transformada pelo mistério as correntes subterrâneas do sonho 59 irrigam as grandes cidades prosaicas o rebuliço do desconhecido submerge as noites das capitais aventureiros desenfreados reinam sobre as sombras da cidade mendicantes e vagabundos Desse estranho casamento do realismo e do onirismo nascem admiráveis epopéias populistas essas obrasprimas hoje em dia desconhecidas que são os Mistères de Paris Le Juif Errant de Eugène Sue Les Mistères de Londres de Paul Féval Les Aventures de Rocambole de Ponson du Terrail sem falar nesses romances históricos que transformam a história como a Ilíada transformava a conquista de Tróia mas sem fazerem interditar os deuses a série dos Dumas o Corcunda de Notre Dame de Paul Féval Les Pardaillan de Michel Zévaco etc Diversamente da tendência burguesa que vai em direção do psicologismo os conflitos de sentimentos e de caracteres dramas ou comédias triangulares do esposo do amante e da mulher adúltera a corrente popular permanece fiel aos temas melodramáticos mistério do nascimento substituição de crianças padrastos e madrastas identidades falsas disfarces sósias gêmeos rechaços extraordinários falsas mortes perseguição da inocência herdeiros da mais antiga e universal tradição do imaginário a tragédia grega o drama elisabetano mas adaptada ao quadro urbano moderno No começo do século XX a diferenciação entre as duas correntes se precisa tanto mais que durante os trinta primeiros anos do século a corrente popular é que será integrada no cinema e no folhetim barato A cultura industrial nascente imprensa popular e cinema mudo não faz senão investir na corrente do imaginário popular Nenhuma ruptura portanto Os romancesfolhetins e os filmes folhetinescos se multiplicam sobre os mesmos modelos E efetivamente o público das primeiras décadas do cinema é o público popular o mesmo que o dos folhetins de grande tiragem Mas desde 1920 e sobretudo a partir de 1930 os temas do imaginário burguês se desenvolvem paixão entre uma mulher casada e um amante indivíduo que quer se afirmar em sua vida privada e que busca o sucesso atenuação ou desaparecimento dos caracteres melodramáticos da intriga em benefício do realismo Não é senão por volta de 19301936 que começa a se operar nos Estados Unidos a partir dessas duas correntes e com a contribuição de elementos novos um sincretismo que vai dar à cultura de massa suas características originais Porque desde então emergem os novos desenvolvimentos que modificam as condições de vida das classes populares os novos quadros da civilização técnica Assim os conteúdos da cultura de massa não foram fabricados artificialmente A cultura de massa em certo sentido o sentido indicado acima é a herdeira e a continuadora do movimento cultural das sociedades ocidentais Na cultura de massa vão confluir as duas correntes com as águas freqüentemente misturadas e no entanto fortemente diferenciadas logo que a industrialização da cultura aparece a corrente popular e a corrente burguesa a primeira dominando de início a segunda se desenvolvendo em seguida A cultura de massa integra esses conteúdos mas para logo desintegrálos e operar uma nova metamorfose Os conteúdos da cultura impressa do século XIX concorrem para a cultura de massa do século XX alimentamna e nela se metamorfoseiam progressivamente Sem querer no momento examinar essa metamorfose em si mesma é preciso contudo examinar às consequências culturais oriundas diretamente das inovações técnicas que condicionaram a nova cultura a rapidez das transmissões do jornal moderno a implantação das salas de cinema nas cidades e depois no campo e sobretudo a telecomunicação que operam rádio e televisão tornam a cultura de massa onipresente Ela está em toda parte para todos acompanha até o solitário que leva seu transistor à tiracolo Esse duplo caráter de extensão e de intensificação em relação à cultura impressa marca a etapa que separa uma industrialização evoluída e generalizada de uma industrialização primitiva e restrita Mas essa diferença quantitativa ao criar um mercado universal a possibilidade de atender a um público global a cada instante cria de um mesmo golpe as condições de uma diferenciação qualitativa Uma outra diferenciação qualitativa aparece com o cinema o rádio a televisão O impresso é um sinal abs 60 6 Uma Cultura de Lazer O consumo da cultura de massa se registra em grande parte no lazer moderno O lazer moderno não é apenas o acesso democrático a um tempo livre que era o privilégio das classes dominantes Ele saiu da própria organização do trabalho burocrático e industrial O tempo de trabalho enquadrado em horários fixos permanentes independentes das estações se retraiu sob o impulso do movimento sindical e segundo a lógica de uma economia que englobando lentamente os trabalhadores em seu mercado encontrase obrigada a lhes fornecer não mais apenas um tempo de repouso e de recuperação mas um tempo de consumo A semana de trabalho passa de 70 horas em 1860 para 37 horas em 1960 nos Estados Unidos de 8085 horas para 4548 horas na França muitas vezes um dia suplementar de lazer é acrescentado ao domingo Nesse sentido o lazer é um tempo ganho sobre o trabalho Mas é um tempo que se diferencia do tempo das festas característico do antigo modo de vida As festas distribuídas ao longo do ano eram simultaneamente o tempo das comunhões coletivas dos ritos sagrados das cerimônias da retirada dos tabus das pândegas e dos festins O tempo das festas foi corroído pela organização moderna e a nova repartição das zonas de tempo livre fimdesemana férias Ao mesmo tempo o folclore das festas se enfraqueceu em benefício do novo emprego do tempo livre A ampliação a estabilização a quotidianização do novo tempo livre se efetuam simultaneamente em detrimento do trabalho e da festa Essa zona de tempo livre não foi recuperada pela vida familiar tradicional nem pelas relações trato a imagem impressa é imóvel O filme a televisão o rádio reproduzem diretamente a vida em seu movimento real Podemos portanto prolongar aqui uma proposição antecedente a cultura impressa se integra na cultura industrial não para nela se destruir mas para nela se metamorfosear Essa metamorfose se dá a partir do caráter novo trazido pelo poder de intensificação e de extensão ilimitada das mass media e mais largamente pela nova civilização que criou essa extensão e essa intensificação a civilização técnica e que ao mesmo tempo é criada por essa extensão e essa intensificação Ela se dá igualmente a partir do caráter novo das técnicas que trazem o movimento real a presença viva Os folclores as culturas do hic e do nunc Pelo movimento real e a presença viva a cultura de massa reencontra um caráter da cultura préimpressa folclórica ou ainda arcaica a presença visível dos seres e das coisas a presença permanente do mundo invisível Os cantos danças jogos ritmos do rádio da televisão do cinema ressuscitam o universo das festas danças jogos ritmos dos velhos folclores Os doubles da tela e do vídeo as vozes radiofônicas são um pouco como esses espíritos fantasmas gênios que perseguiam permanentemente o homem arcaico e se reencarnavam em suas festas A presença viva humana a expressão viva dos gestos mímicas vozes a participação coletiva são reintroduzidas na cultura industrial ainda que fossem escorraçadas pela cultura impressa Mas em revanche a cultura de massa quebra a unidade da cultura arcaica na qual num mesmo lugar todos participavam ao mesmo tempo como atores e espectadores da festa do rito da cerimônia Ela separa fisicamente espectadores e atores O espectador só participa fisicamente do espetáculo televisado do filme do programa de rádio e mesmo nos grandes espetáculos esportivos se ele está presente fisicamente não joga Do mesmo modo a festa momento supremo da cultura folclórica na qual todos participam do jogo e do rito tende a desaparecer em benefício do espetáculo Ao homem da festa sucede o que chamamos público audiência expectadores O elo imediato e concreto se torna uma teleparticipação mental Enfim a cultura arcaica separa os dias de festa da vida quotidiana Diversamente da festa arcaica que quebra o fio dos dias ela se inscreve no fio dos dias e de um golpe acaba com a festa para substituíla pelo lazer As mass media se restabelecem a relação humana que destrói o impresso tendem a quebrar a estrutura mesma das relações humanas da cultura folclórica A presença humana na televisão ou nos filmes é ao mesmo tempo uma ausência humana a presença física do espectador é ao mesmo tempo uma passividade física Essa nova estruturação das relações humanas se inscreve na nova estruturação cultural que já preparava a cultura do impresso e que efetua a cultura industrial A cultura folclórica era uma cultura do hic e do nunc As festas e os usos locais eram enraizadas em um terreiro e situadas em um calendário aniversários festas sagradas ou profanas Cultura local de aldeia cultura regional de província ela dispunha de sua linguagem patuá dialeto de seus próprios meios de expressão danças ritos e jogos de suas lendas do culto de seu passado das regras de seu presente A cultura urbana popular e sobretudo operária do século XIX e do começo do século XX conserva certos traços da cultura folclórica É verdade que ela não tem mais raízes num passado local profundo mas ela tem suas girias os espetáculos ambulantes que nela se detêm são de um velho folclore urbano circos saltimbancos feiras de amostras E sobretudo é uma cultura da proximidade das relações de vizinhança de parentesco e de solidariedade Ela tem seus centros culturais locais a taverna o bistrô o pub onde os jogos são interindividuais jogos de cartas ou de gamão Certamente essas culturas folclóricas rurais e sobretudo urbanas estão há muito tempo revestidas de estados culturais mais amplos alguns nacionais outros internacionais a cultura cristã os esboços de cultura socialista Elas já estão em via de enfraquecimento Mas é a cultura industrial que desagrega definitivamente as culturas do hic e do nunc Ela tende ao público indeterminado Não possui raízes mas uma implantação técnicoburocrática Conquista os subúrbios e os campos dando caça aos velhos folclores aos jogos de São João aos ritos locais às crenças e superstições com uma rapidez que se acelera A velha festa patronal das aldeias muda de conteúdo as antigas danças os antigos jogos desaparecem para dar lugar ao baile às canções de moda corridas de ciclistas à gincanas e outros jogos popularizados pelas mass media O gosto o odor o aroma dos terreiros se dissipam O produto cultural a conservação cultural se propagam Destruição radical Antes desintegração acompanhada de novas integrações Certos temas folclóricos são absorvidos pela cultura de massa e com ou sem modificações são universalizados O folclore do Oeste americano dá origem ao western que se torna um tema do novo folclore planetário A arte do circo londrino dá origem à slapstick comedy que com os Mac Sennett Ben Turpin O Gordo e o Magro Harry Langdon Carlitos fornecem ao cinema as fontes profundas de sua comicidade O folclore infantil dos animais antropomorfos triunfa no desenho animado Os velhos jogos e concursos se metamorfoseiam em jogos e concursos irradiados e televisados O folclore negro de Nova Orleans ele mesmo nascido do encontro de correntes indígenas e exógenas remonta a Chicago depois difunde pelo mundo graças às mass media O tango o acordeão dos bairros de Buenos Aires é dançado à luz coada de todos os bailes da Europa Assim também de Cuba da Bahia os ritmos tropicais enxamearam nas orquestras dos cinco continentes Logo a cultura industrial não fabrica seus produtos ex nihilo Como a indústria da conserva alimentar ela escolhe dentre as colheitas do local Mas ela pode transformar esses produtos naturais alterálos mais ou menos profundamente em função do consumo universal paralelamente à difusão do flamengo andaluz há a produção em massa de espanholadas fabricadas em Paris e Nova York a par de sambas autóctones difundidos no mundo há a fabricação pseudobrasileira das festas do algodão e colheita do café Paralelamente ao ritmo de Nova Orleans houve os jazz de Jack Milton e Ray Ventura eclipsados por sua vez pelo retorno em massa das formações menos ecléticas porém evolutivas Um verdadeiro cracking analítico transforma os produtos naturais em produtos culturais homogenizados para o consumo maciço Em outras palavras certos temas folclóricos privilegiados são mais ou menos desintegrados a fim de serem mais ou menos integrados no novo grande sincretismo O hic não foi abolido tornouse relativo O nunc se torna um novo nunc cosmopolitizado o da voga da moda do sucesso do dia do eterno presente Mas o que é talvez mais notável é que desintegrando os folclores a cultura industrial não desintegra o arcaísmo Os ritmos primitivos pelo contrário os que vieram da África através do jazz e os ritmos tropicais se impõem ao seio da civilização dos arranhacéus o símbolo primitivo revive nos cartazes publicitários as batalhas elementares de homens lutas selvagens jogos guerreiros estão presentes em todas as telas do mundo a música está pelo menos tão presente na civilização das mass media nos lares nos filmes nas praias nos carros quanto podiam estar os cantos e os ritmos da civilização arcaica Há uma espécie de neoarcaísmo Esse neoarcaísmo se explica em função das determinações que mencionei no capítulo precedente procurando o público universal a cultura da massa se dirige também ao anthropos comum ao tronco mental universal que é em parte o homem arcaico que cada um traz em si mesmo É esse denominador comum arcaico que chama o neoarcaísmo dos filmes dos jogos da música A essas determinações é preciso acrescentar uma outra a cultura industrial se dirige também ao homem novo das sociedades evoluídas mas esse homem do trabalho parcelar e burocratizado enclausurado no meio técnico na maquinaria monótona das grandes cidades sente necessidades de evasão e sua evasão procura tanto a selva a savana a floresta virgem quanto os ritmos e as presenças da cultura arcaica A reação contra um universo abstrato quantificado objetivado se dá por um retorno às fontes primeiras da afetividade Assim a cultura industrial nega de modo dialético a cultura do impresso e a cultura folclórica desintegraas integrandoas integra o impresso e seus conteúdos mas para metamorfoseálos desintegra os folclores mas para com eles universalizar certos temas Acrescentemos ela sincretiza em si os temas e estruturas da cultura impressa e os da cultura folclóricaarcaica Faz comunicar essas duas correntes até então justapostas derramando ambas no grande curso novo Esse curso novo é em certa medida a resultante desse sincretismo Contudo é mais ainda É o que examinaremos mais adiante sociais costumeiras Segundo uma evolução paralela a unidade complexa da grande familia se reduz ao núcleo formado pelo casal e as crianças As preocupações de investimento familiar economia transmissão de uma herança diminuem o peso dos trabalhos domésticos fica aliviado a atração do lar é moderada cada um dos membros da família adquire uma autonomia interna E a cultura de massa se estende à zona abandonada pelo trabalho pela festa e pela famíiia O novo tempo livre conquistado sobre a necessidade se enche de conteúdos que abandonam o trabalho a família e a festa Os conteúdos humanos do trabalho se atrofiam a integração dos antigos trabalhadores autônomos artesãos comerciantes no seio do salariado atenua o apego quase biológico mantido em relação às atividades laboriosas O trabalho em migalhas descrito por Georges Friedmann no seio dos grandes conjuntos industriais ou burocráticos foi esvaziado de responsabilidade e de criatividade pelo O S16 operário especializado em máquina ou o empregado de escritório que preenche formulários Desde então a personalidade negada no trabalho tenta se reencontrar fora da zona estéril efetuamos durante o lazer trabalhos pelos quais nos sentimos individualmente interessados e responsáveis mesmo inventivos como o bricolage17 ou então desenvolvemos talentos pessoais hobbies ou idéias fixas ou ainda mitificamos numa mania de colecionador a necessidade irreprimível de fazer alguma coisa por nós mesmos Mas sobretudo os lazeres abrem os horizontes do bemestar do consumo e de uma nova vida privada A fabricação em série a venda a crédito abrem as portas para os bens industriais para a limpeza do lar com aparelhos eletrodomésticos para os finsdesemana motorizados É então possível começar a participar da civilização do bemestar e essa participação embrionária no consumo significa que o lazer não é mais apenas o vazio do repouso e da recuperação física e nervoa não é mais a participação coletiva na festa não é tanto a participação nas atividades familiares produtivas ou acumulativas é também progressivamente a possibilidade de ter uma vida consumidora O consumo dos produtos se torna ao mesmo tempo o autoconsumo da vida individual Cada um tende não mais a sobreviver na luta contra a necessidade não mais a se enroscar no lar familiar não inversamente a consumir sua vida na exaltação mas a consumir sua própria existência As massas têm acesso no quadro de um lazer determinado pelos desenvolvimentos técnicos aos níveis de individualidade já atingidos pelas classes médias O lazer moderno surge portanto como o tecido mesmo da vida pessoal o centro onde o homem procura se afirmar enquanto indivíduo privado É essencialmente esse lazer que diz respeito à cultura de massa ela ignora os problemas do trabalho ela se interessa muito mais pelo bemestar do lar do que pela coesão familiar ela se mantém à parte se bem que possam pesar sobre ela dos problemas políticos ou religiosos Dirigese às necessidades da vida do lazer às necessidades da vida privada ao consumo e ao bemestar por um lado ao amor e à felicidade por outro lado O lazer é o jardim dos novos alimentos terrestres A cultura de massa pode assim ser considerada como uma gigantesca ética do lazer Vamos dizer de outro modo a ética do lazer que desabrocha em detrimento da ética do trabalho e ao lado de outras éticas vacilantes toma corpo e se estrutura na cultura de massa Esta não faz outra coisa senão mobilizar o lazer através dos espetáculos das competições da televisão do rádio da leitura de jornais e revistas ela orienta a busca da saúde individual durante o lazer e ainda mais ela acultura o lazer que se torna o estilo de vida O lazer não é apenas o pano de fundo no qual entram os conteúdos essenciais da vida e onde a aspiração à felicidade individual se torna exigência Ele é por si mesmo ética cultural O lazer não é apenas o quadro dos valores privados ele é também um acabamento em si mesmo E mais particularmente o divertimento se torna um acabamento enquanto tal Muitos moralistas que se crëem Pascal e não são mais que Duhamel não puderam compreender a natureza desse 69 divertimento moderno Para dizer a verdade bem que existe algo do divertimento pascaliano a leitura dos fatos diversos a hipnose do vídeo o fimdesemana motorizado as férias turísticas matamos o tempo fugimos da angústia ou da solidão estamos em outro lugar Não há dúvida de que mesmo com o jornal o rádio a televisão o lar nunca foi tanto um outro lugar Mas o que também existe nos espetáculos esportivos nos jogos radiofônicos e televisados nas saídas e nas partidas nas férias é um retorno maciço às fontes infantis do jogo Jogo e espetáculo mobilizam uma parte do lazer moderno Nada disso é absolutamente novo pois os espetáculos assim como os jogos de azar ou de competição sempre estiveram presentes nas festas e nos lazeres antigos O que constitui novidade é a extensão televisionária ou teleauditiva do espetáculo abrindose até os horizontes cósmicos são os progressos de uma concepção lúdica da vida O espectador olha Também é espectador o leitor do jornal e da revista As novas técnicas criam um tipo de espectador puro isto é destacado fisicamente do espetáculo reduzido ao estado passivo e voyeur Tudo se desenrola diante de seus olhos mas ele não pode tocar aderir corporalmente àquilo que contempla Em compensação o olho do espectador está em toda parte no camarim de Brigitte Bardot como no foguete espacial de Titov A cultura de massa mantém e amplifica esse voyeurismo fornecendolhe além disso mexericos confidências revelações sobre a vida das celebridades O espectador tipicamente moderno é aquele que se devota à televisão isto é aquele que sempre vê tudo em plano aproximado como na teleobjetiva mas ao mesmo tempo numa impalpável distância mesmo o que está mais próximo está infinitamente distante da imagem sempre presente é verdade nunca materializada Ele participa do espetáculo mas sua participação é sempre pelo intermédio do corifeu mediador jornalista locutor fotógrafo cameraman vedete herói imaginário Mais amplamente um sistema de espelhos e de vidros telas de cinema vídeos de televisão janelas envidraçadas dos apartamentos modernos plexiglas dos carros Pullman postigos de avião sempre alguma coisa de translúcido transparente ou refletidor nos separa da realidade física Essa membrana invisível nos isola e ao mesmo tempo nos permite ver melhor e sonhar melhor isto é também participar Com efeito através da transparência de uma tela da impalpabilidade de uma imagem uma participação por olho e por espírito nos abre o infinito do cosmos real e das galáxias imaginárias Assim participamos dos mundos à altura da mão mas fora do alcance da mão Assim o espetáculo moderno é ao mesmo tempo a maior presença e a maior ausência É insuficiência passividade errância televisual e ao mesmo tempo participação na multiplicidade do real e do imaginário No limite extremo o homem televisual seria um ser abstrato num universo abstrato por um lado a substância ativa do mundo parcialmente se evapora uma vez que sua materialidade se evaporou por outro lado e simultaneamente o espírito do espectador se evade e erra fantasma invisível por entre as imagens Nesse sentido poderíamos adiantar que as telecomunicações digam elas respeito ao real ou ao imaginário empobrecem as comunicações concretas do homem com seu meio É revelador o exemplo banal da televisão que empobrece as comunicações familiares no decorrer da refeição E finalmente não é apenas a comunicação com o outro é nossa própria presença perante nós mesmos que se diluiria em virtude de ser sempre mobilizada para outro lugar Poderseia aplicar à televisão as palavras de Machado Sonhei sem dormir talvez até mesmo sem acordar Contudo nas participações televisuais certos sucos penetram através da membrana do vídeo da tela da foto que vão nutrir as comunicações vividas As trocas afetivas se efetuam nas conversações onde se fala dos filmes das estrelas dos programas de fatos variados nós nos expressamos e conhecemos o outro evocando aquilo em que nós projetamos Por outro lado o homem do lazer não é apenas o homem televisual é também o homem da vida privada A força centrípeta do individualismo funciona ao mesmo tempo que a força centrífuga das teleparticipações e com exceção de casos marginais anciãos doentes psi 71 cóticos essa força centrípeta vai estimular a afirmação de si na vida real É o que ocorre em relação aos jovens ativistas da massculture estudada por Lazarsfeld E como ainda veremos uma das correntes essenciais da teleparticipação induz à vida pessoal Não saberíamos ainda aqui diagnosticar a triste vitória do anônimo sobre o pessoal do abstrato sobre o concreto do imaginário sobre o real Enfim os sucos que penetram através das membranas televisuais purgam e irrigam simultaneamente a personalidade e a própria vida do homem moderno Existe implicitamente em todo espetáculo de teatro cinema televisão uma componente lúdica aliás difícil de isolar Ela emerge nos espetáculos esportivos nos jogos radiofônicos e televisados Está mais ou menos misturada com preocupações utilitárias nos bricolages com preocupações eróticoamigáveis nas festinhas e com preocupações higiênicas nos esportes Ela se desempenha com grande nitidez nos hobbies saídas passeios divertimentos Um dos aspectos do divertimento moderno é esse desabrochar do jogo enquanto atividade cujo fim se encontra no prazer que com ele se sente e em nenhum outro lugar Montherlant Assim simultaneamente com o espetáculo a cultura do lazer desenvolve o jogo Dualidade ao mesmo tempo antagonista uma vez que o espetáculo é passivo o jogo ativo e complementar que não apenas se registra no lazer mas também o estrutura em parte Efetivamente uma parte do lazer tem tendência a tomar a forma de um grande jogoespetáculo Essa tendência se exprime de modo particularmente significativo nas férias modernas na medida em que elas representam o tempo realmente vivo realmente vivido em contraposição ao tempo escleroso e exangue do ano de trabalho Essas férias não são apenas entreatos recuperadores no seio da natureza sono repouso caminhada mas também dos prazeres e dos jogos seja por meio do exercício de atividades ancestralmente vitais pesca caça colheita reencontrado por forma lúdica seja pela participação nos novos jogos esportes de praia esqui a quático pesca submarina A vida de férias se torna uma grande brincadeira brincase de ser camponês montanhês pescador lenhador de lutar correr nadar Paralelamente o turismo se torna uma grande viagemespetáculo ao interior de um universo de paisagens monumentos museus O turista só se interessa pelo universo dos guides bleus e foge da vida real quotidiana salvo nos casos em que esta é classificada como pitoresca isto é volta a ser digna da imagem Ele leva sua máquina fotográfica a tiracolo e dentro em pouco está mais preocupado em registrar que em ver Nessa deturpação imaginante em primeiro grau ver para se lembrar e em segundo grau fotografar para ver suas lembranças o turismo moderno apresenta analogias surpreendentes com o cinema Ele é sucessão precipitada de imagens voyeurismo ininterrupto O parentesco turismocinema se afirma nas viagens coletivas em ônibus panorâmicos os espectadores enfiados em suas poltronas olham através do plexiglas membrana da mesma natureza que o vídeo de televisão a tela de cinema a foto do jornal e a grande janela envidraçada do apartamento moderno janela cada vez mais cinematoscópica sobre o mundo e ao mesmo tempo fronteira invisível Contudo a diferença entre o cinema e o turismo é essencial senão seria suficiente ver no cinema o Coliseu o Alcaçar ou a Acrópole para se evitar a viagem O turista não é apenas um espectador em movimento Ele não se beneficia apenas sobretudo quando circula de automóvel de uma volúpia particular que vem da consumação do espaço devorar os quilômetros Ele se comunica pessoalmente com a região visitada por algumas palavras elementares e saudações cerimoniosas trocadas com os indígenas por coitos psiquicamente encarados pelo olhar ou efetivamente realizados com a espécie do sexo oposto Por algumas compras de objetos simbólicos tidos como souvenirs Torre de Pisa em miniatura cinzeiros figurativos e outras bugigangas no gênero ele se apropria magicamente da Espanha ou da Itália Enfim ele consome o ser físico do país visitado na refeição gastronômica rito cosmófago cada vez mais divulgado depois das férias efetuamos ritos de reminiscência exibição de fotografias narrações pitorescas às vezes em torno de uma refeição a chianti onde reencontramos um pouco da 73 cação Na estética em compensação a reificação nunca é acabada Entre a criação romanesca de um lado e a evocação dos espíritos por um feiticeiro ou um médium de outro lado os processos mentais são até um certo grau análogos O romancista se projeta em seus heróis como um espírito vodu que habita seus personagens e inversamente escreve sob seu ditado como um médium possuído pelos espíritos as personagens que invocou A criação literária é um fenômeno meiomediúnico meiozar para retomar a expressão etiopiana que corresponde a uma espécie de simulação sincera a meiocaminho entre o espetáculo o jogo e a magia de onde nasce um sistema ectoplasmático projetado e objetivado em universo imaginário pelo romancista Esse universo imaginário adquire vida para o leitor se este é por sua vez possuído e médium isto é se ele se projeta e se identifica com os personagens em situação se ele vive neles e se eles vivem nele Há um desdobramento do leitor ou espectador sobre os personagens uma interiorização dos personagens dentro do leitor ou espectador simultâneas e complementares segundo transferências incessantes e variáveis Essas transferências psíquicas que asseguram a participação estética nos universos imaginários são ao mesmo tempo inframágicas eles não chegam aos fenômenos propriamente mágicos e supramágicos eles correspondem a um estágio no qual a magia está superada É sobre eles que se inserem as participações e as considerações artísticas que concernem ao estilo da obra sua originalidade sua autenticidade sua beleza etc Em outras palavras eu não defino a estética como a qualidade própria das obras de arte mas como um tipo de relação humana muito mais ampla e fundamental Assim feita de modo estético a troca entre o real e o imaginário é se bem que degradada ou ainda que sublimada ou demasiado sutil a mesma troca que entre o homem e o além o homem e os espíritos ou os deuses que se fazia por intermédio do feiticeiro ou do culto A degradação ou o supremo requinte é precisamente essa passagem do mágico ou do religioso para a estética No decorrer da evolução a poesia se afastou da magia encantamento e invocação a literatura se afastou da mitologia desde alguns séculos a música a escultura a pintura se afastaram por completo da religião a finalidade cultural ou ritual das obras do passado se atrofiou ou desapareceu progressivamente para deixar emergir uma finalidade propriamente estética assim nós removemos estátuas e quadros dos templos para museus removendo de um só golpe as significações das anunciações e das crucificações O mundo imaginário não é mais apenas consumido sob forma de ritos de cultos de mitos religiosos de festas sagradas nas quais os espíritos se encarnam mas também sob forma de espetáculos de relações estéticas As vezes até as significações imaginárias desaparecem assim as danças modernas ressuscitam as danças arcaicas de possessão mas os espíritos não estão nelas Todo um setor das trocas entre o real e o imaginário nas sociedades modernas se efetua no modo estético através das artes dos espetáculos dos romances das obras ditas de imaginação A cultura de massa é sem dúvida a primeira cultura da história mundial a ser também plenamente estética Isso significa que apesar de seus mitos e seus engodos religiosos como o culto das estrelas de cinema é uma cultura fundamentalmente profana veremos mais adiante que é finalmente importante considerar que apesar de fundamentalmente estética e profana ela secreta uma mitologia Isso significa também que a cultura de massa põe a tônica sobre o usufruto individual presente não existe na relação estética uma dádiva em si aos deuses ao mundo a valores transcendentais a dupla consciência estética é uma consciência irônica se podemos modificar um pouco o sentido hegeliano desse termo ora nessa consciência irônica deixo desaparecer o que há de mais elevado não usufruo senão de mim mesmo Philosophie du Droit 140 Isso significa enfim que desabrochando tardiamente na história a relação estética restitui uma relação quase primária com o mundo essa relação embora reprimida desde a infância arcaica da humanidade pelas duras necessidades práticas e embora encoberta pelas reificaçöes mágicas se traduz pelo encantamento do jogo do canto da dança da poesia da imagem da fábula 79 36 Itália à paella onde reencontramos um pouco da Espanha à bouillabaisse onde reencontramos um pouco de sol O turista pode dizer eu eu vi eu comi eu estive lá eu fiz 5000 quilômetros e é essa evidência física indiscutível esse sentimento de estar lá em movimento em jogo que valoriza o turismo em relação ao espetáculo Em relação ao espectador o turista está percorre eu percorri a Espanha e adquire souvenirs Há na visitação turística a introdução simultaneamente de um suplemento de ser e de um quantum de ter A autoampliação física é ao mesmo tempo uma apropriação certamente semimágica experimentada como uma exaltação um enriquecimento de si O sentido complexo do lazer moderno aparece claramente nos lugarejos de férias como Palinuro Clube Mediterranée estudado por Henry Raymond18 Ai a organização das férias é racionalizada planificada quase cronometrada Chegase a esse milagre a produção burocrática do estado de natureza por meio de bilhetes coletivos guias aldeias de tenda Tudo está previsto comodidades festas distrações etapas ritos emoções alegrias A técnica moderna recria um universo taitiano e lhe acrescenta o conforto dos bujões de gás duchas transistores Essa organização cria uma espantosa sociedade temporária inteiramente fundada no jogoespetáculo passeios excursões esportes náuticos festas bailes Essa vida de jogoespetáculo é ao mesmo tempo a acentuação de uma vida privada onde se travam de modo mais intenso que na vida quotidiana relações amizades flertes amores É feita à imagem da vida cinematográfica das férias que conduzem os olímpicos a Miami Taiti Palinuro é um microcosmo vivido da cultura de massa Nele se distinguem dois grupos de um lado os olimpianos ativos que tomam os aperitivos no bar dançam com destreza praticam os esportes aquáticos flertam seduzem e de outro lado aqueles que são antes espectadores menos ativos e que contemplam os olimpianos Mas em Palinuro o fosso que separa as duas classes é bem menos profundo bem mais estreito do que o que separa as celebridades e vedetes do comum dos mortais em Palinuro os contatos são fáceis a passagem para o Olimpo é possível Assim de modo fragmentário temporário o Olimpo da cultura de massa toma forma e figura no que Raymond chama com muita propriedade uma utopia concreta Isto significa igualmente que o ideal da cultura do lazer sua obscura finalidade é a vida dos olimpianos modernos heróis do espetáculo do jogo e do esporte Esses heróis da cultura de massa foram promovidos a vedete em detrimento das antigas celebridades comparando os artigos consagrados em 1904 e em 1941 às personalidades eminentes no Saturday Evening Post Léo Lowenthal19 constata que os animadores dentre os quais emergiram astros de cinema e campeões esportivos aumentaram em 50 em detrimento dos homens de negócios ou políticos A imprensa o rádio a televisão nos informam sem cessar sobre sua vida privada verídica ou fictícia Eles vivem de amores de festivais de viagens Sua existência está livre da necessidade Ela se efetua no prazer e no jogo Sua personalidade desabrocha sobre a dupla face do sonho e do imaginário Até mesmo seu trabalho é uma espécie de grande divertimento votado à glorificação de sua própria imagem ao culto de seu próprio double duplo Esses olimpianos propõem o modelo ideal da vida de lazer sua suprema aspiração Vivem segundo a ética da felicidade e do prazer do jogo e do espetáculo Essa exaltação simultânea da vida privada do espetáculo do jogo é aquela mesma do lazer e aquela mesma da cultura de massa Assim se esboçam as correlações complexas entre o lazer a cultura de massa os valores privados o jogoespetáculo as férias os olimpianos modernos Acrescentemos aqui a promoção do jogoespetáculo caminha lado a lado com a decadência das significações do trabalho com a atual crise dos grandes sistemas de valor o Estado a religião a família O complexo jogoespetáculo se afirma em uma civilização onde se pulverizam as grandes Transcendências que não chegam mais a controlar senão 74 75 37 em parte a vida dos indivíduos Da vacância dos grandes valores nasce o valor das grandes vacances20 Aliás nada disso é estranho ao niilismo contemporâneo que não é apenas negócio de filósofos literatos ou beatniks mas é historicamente vivido senão em toda parte e por todo mundo nas sociedades ocidentais pelo menos em todos os níveis da existência como experiência do declínio ou da morte das grandes Transcendências das significações exteriores e superiores a uma vida mortal Nesse sentido o tecido do individualismo moderno é de fato niilista21 a partir do momento em que nada vem justificar o indivíduo senão sua própria felicidade Nesse niilismo e além desse niilismo nós presenciamos um impulso no sentido da readesão às infraestruturas lúdicas da vida O lazer jogoespetáculo o lazer afirmação da vida privada se tornam conjuntamente orientação e sentido da existência Os aspectos negativos de divertimento de evasão de passividade impressionaram sobretudo os moralistas dessa confederação helvética do espírito que são as letras e a universidade No entanto é preciso também indicar que através do lazer moderno toda uma fração de humanidade de modo obscuro e grosseiro adere a uma espécie de jogo onde não se sabe quem joga e o que é jogado encara o problema do destino singular e pessoal isto é encara sem o saber mas concreta e experimentalmente os problemas colocados no século passado por Steiner Marx e Nietzsche É o esboço informe de uma busca no sentido de assumir a condição humana 20 O autor jogou com as palavras vacance vacância vaga e vacances férias N T 21 O extraordinário desenvolvimento do humor na cultura de massa o humor substituindo a sátira nas páginas humorísticas o humor absurdo se impondo na comicidade cinematográfica os irmãos Marx Helzapopin Tashlin os desenhos animados Bosustow ou Tex Avery testemunham o progresso desse niilismo e de seus antídotos o jogo o divertimento 7 Os Campos Estéticos Produzida industrialmente distribuída no mercado de consumo registrandose principalmente no lazer moderno a cultura de massa se apresenta sob diversas formas informações jogos por exemplo mas particularmente sob a forma de espetáculo É através dos espetáculos que seus conteúdos imaginários se manifestam Em outras palavras é por meio do estético que se estabelece a relação de consumo imaginário A participação estética se diferencia das participações práticas técnicas religiosas etc se bem que possa se justapor a elas um automóvel pode ser ao mesmo tempo bonito e útil podese admirar uma estátua e venerála Ela desabrocha plenamente além das participações práticas Existe na relação estética uma participação ao mesmo tempo intensa e desligada uma dupla consciência O leitor de romance ou o espectador de filme entra num universo imaginário que de fato passa a ter vida para ele mas ao mesmo tempo por maior que seja a participação ele sabe que lê um romance que vê um filme A relação estética reaplica os mesmos processos psicológicos da obra na magia ou na religião onde o imaginário é percebido como tão real até mesmo mais real do que o real Mas por outro lado a relação estética destrói o fundamento da crença porque o imaginário permanece conhecido como imaginário Por outras palavras magia e religião reificam literalmente o imaginário deuses ritos cultos templos túmulos catedrais os mais sólidos e os mais duráveis de todos os monumentos humanos testemunham essa grandiosa reifi 76 77 E nós reencontramos aqui contraditoriamente associados na participação primária como na ironia estética evoluída os dois níveis do homem que prospeta a cultura de massa o do anthropos universal e o do individualismo em vias de universalização da civilização moderna Parentes das participações projeçõesidentificações mágicas e religiosas por seu caráter muitas vezes imaginário as participações estéticas são parentes por seu caráter profano das participações afetivas que comandam nossas relações vividas com o outro afeições amores ódios etc como com as grandes potências da vida nação pátria família partido etc Mas também aí a ausência de implicação prática física ou vital imediata diferencia a relação estética Por certo as projeçõesidentificações dizem respeito a todas as esferas do interesse humano por certo não há verdadeiras fronteiras entre as três ordens prática mágicoreligiosa estética e suas relações são fluídas Mas destacase uma esfera estética principalmente no imaginário Convém agora encarar a significação e o papel do imaginário na relação estética O imaginário é o além multiforme e multidimensional de nossas vidas no qual se banham igualmente nossas vidas É o infinito jorro virtual que acompanha o que é atual isto é singular limitado e finito no tempo e no espaço É a estrutura antagonista e complementar daquilo que chamamos real e sem a qual sem dúvida não haveria o real para o homem ou antes não haveria realidade humana O imaginário começa na imagemreflexo que ele dota de um poder fantasma a mágica do sósia e se dilata até aos sonhos mais loucos desdobrando ao infinito as galáxias mentais Dá uma fisionomia não apenas a nossos desejos nossas aspirações nossas necessidades mas também as nossas angústias e temores Liberta não apenas nossos sonhos de realização e felicidade mas também nossos monstros interiores que violam os tabus e a lei trazem a destruição a loucura ou o horror Não só delineia o possível e o realizável mas cria mundos impossíveis e fantásticos Pode ser tímido ou audacioso seja mal decolando do real mal ousando transpor as primeiras censuras seja se atirando à embriaguez dos instintos e do sonho As grandes mitologias contêm de maneira misturada as diferentes virtualidades e os diferentes níveis do imaginário Mas cada grande mitologia possui suas próprias estruturas e cada cultura orienta relações próprias entre os homens e o imaginário Uma cultura afinal de contas constitui uma espécie de sistema neurovegetativo que irriga segundo seus entrelaçamentos a vida real de imaginário e o imaginário de vida real Essa irrigação se efetua segundo o duplo movimento de projeção e de identificação O imaginário é um sistema projetivo que se constitui em universo espectral e que permite a projeção e a identificação mágica religiosa ou estética Na relação mágica ou religiosa a comunicação imaginária ecoa profundamente sobre a vida o imaginário dita suas ordens Na relação estética ao contrário pode parecer que a vida esteja colocada entre parênteses Mas mesmo que só haja colocação entre parênteses esta apenas porque procura evasão ou divertimento pode desempenhar um papel consolador ou regulador na vida seja orientando as pressões interiores em direção às vias de escapamento imaginárias seja permitindo as semisatisfações psíquicas análogas em certo sentido à satisfação onanista na qual o amor é feito com fantasmas assim por exemplo as innumeráveis agressões cinematográficas podem aliviar em parte as necessidades agressivas impossibilitadas de serem satisfeitas na vida Há sempre uma certa libertação psíquica em tudo o que é projeção isto é expulsão para fora de si daquilo que fermenta no interior obscuro de si Dentre todas as projeções possíveis a mais significativa é a que toma um caráter de exorcismo desde que fixa o mal o terror a fatalidade sobre as personagens em questão finalmente votadas a uma morte quase de sacrifício Isso é a tragédia A morte trágica de um herói integra na relação estética e de maneira evidentemente atenuada as virtudes de um dos mais arcaicos e universais ritos mágicos o sacrifício O sacrifício não é apenas uma oferenda agradável aos espíritos e aos deuses é também um apelo às próprias fontes da vida segundo a magia de morterenascimento é enfim dentro de certas condições a transferência psíquica das forças de mal de infelicidade e de morte para uma 81 vítima expiatória como no bode expiatório do rito judeu substituto aliás de um sacrifício humano primitivo que exorciza o rito operatório da morte O sacrifício de um ser inocente e puro cordeiro místico do cristianismo jovem virgem da tragédia grega é assim dotado das maiores virtudes purificadoras E é exatamente esse mecanismo purificador catarse que Aristóteles descobre no coração da tragédia Édipo não faz senão atrair para si a carga incestuosa difundida na atmosfera coletiva oculta no segredo de cada um seu terrível castigo apazigua a cólera dos deuses isto é a angústia dos humanos Do mesmo modo os innumeráveis heróis vítimas da fatalidade trágica os inocentes perseguidos do melodrama fixam e exorcizam de modo por certo bem menos eficaz que o do verdadeiro sacrifício o mal o pecado e a morte As potências de projeção isto é também as de divertimento de evasão de compensação de expulsão até mesmo de transferência quase sacrificial se propagam por todos os horizontes do imaginário Elas tecem os enfáticos universos da epopeia da magia do fantástico Atiramse nos alhures do tempo e do espaço regiões exóticas ou passados fabulosos Mergulham no submundo do crime e da morte Divertemse nos universos idealizados onde tudo é mais intenso mais forte melhor No meio de todas essas projeções funciona uma certa identificação o leitor ou o espectador ao mesmo tempo em que libera fora dele virtualidades psíquicas fixandoas sobre os heróis em questão identificase com personagens que no entanto lhe são estranhas e se sente vivendo experiências que contudo não pratica Diferentes fatores favorecem a identificação o ótimo da identificação se estabelece num certo equilíbrio de realismo e de idealização é preciso haver condições de verossimilhança e de veridicidade que assegurem a comunicação com a realidade vivida que as personagens participem por algum lado da humanidade quotidiana mas é preciso também que o imaginário se eleve alguns degraus acima da vida quotidiana que as personagens vivam com mais intensidade mais amor mais riqueza afetiva do que o comum dos mortais É preciso também que as situações imaginárias correspondam a interesses profundos que os problemas tratados digam respeito intimamente a necessidades e aspirações dos leitores ou espectadores é preciso enfim que os heróis sejam dotados de qualidades eminentemente simpáticas Atingindo esse ótimo as personagens suscitam apego amor ternura já se tornam não tanto os oficiais de um mistério sagrado como na tragédia mas uns alter ego idealizados do leitor ou espectador que realizam do melhor modo possível o que este sente em si de possível Mais do que isso esses heróis de romance ou de cinema podem vir a ser exemplos modelos a identificação bovarysta suscita um desejo de imitação que pode desembocar na vida determinar mimetismos de detalhes imitação dos penteados vestimentas maquiagens mímicas etc dos heróis de filmes ou orientar condutas essenciais como a busca do amor e da felicidade Num determinado optimum identificativo da projeçãoidentificação portanto o imaginário secreta mitos diretores que podem constituir verdadeiros modelos de cultura Inversamente há um ótimo projetivo de evasão como da purificação isto é da expulsãotransferência das angústias fantasmas temores como das necessidades insatisfeitas e aspirações proibidas Há igualmente as pessima se assim podemos dizer nas quais a relação realimaginário mantém uma espécie de tensão angustiante bloqueada entre o sonho e a vida o desejo de imitação pode ser intenso sem poder realizase e determinar uma neurose que volta incansavelmente a se fixar sobre o imaginário insaciavelmente insatisfeita a projeção pode ser a tal ponto fascinante que ocasiona uma espécie de conversão hipnótica da vida que se sonambuliza e cuja seiva toda se escoa no consumo imaginário Esses optima e esses pessima variam não só em função dos temas romaneses mas também dos leitores e espectadores idade sexo condição classe social nacionalidade psicologia individual etc A dialética da projeçãoidentificação se abre sobre possibilidades infinitamente variáveis e divergentes Recorrerrei abstratamente a um duplo exemplo tomemos um filme A cujo herói é um rico e simpático personagem um filme B cujo herói é um miserável e simpático personagem como Carlitos O espectador rico e o especta83 dor pobre poderão comprazarse nesses dois filmes e achar igualmente simpáticos ambos os heróis No entanto na vida real há grandes probabilidades de que o espectador rico se desvie com nojo de um vagabundo de que o espectador pobre considere com ressentimento o milhardário Projeção e identificação modificaram a relação social O espectador pobre e o espectador rico puderam sair da própria pele projeção para o rico no caso do filme B para o pobre no caso do filme A As relações B rico A pobre aliviarão talvez por algum tempo as necessidades de fuga tanto de um quanto de outro No que concerne à identificação suponhamos agora que o espectador rico seja seduzido pelas atitudes e os modos de vida do herói do filme A ele poderá em seguida consciente ou inconscientemente servir o mesmo coquetel que o herói do filme beber como ele o seu drink fazer a corte a uma bela mulher como ele e adotar a mesma marca de carro ou o mesmo estilo de móveis Suponhamos que o pobre seduzido pelo vagabundo do filme B decida levar a vida com despreocupação ele reagirá no dia seguinte com relação a seu contramestre por brincadeira assim como seu herói Suponhamos agora que o espectador rico sonhe em abandonar tudo para assemelharse ao despreocupado vagabundo mas sem coragem de mudar de vida ele entreterá seu sonho impotente nos filmes inversamente o espectador pobre poderia entreter um sonho impotente de riqueza Esses dois filmes alimentarão fantasmas obsessionais O rico e o pobre poderão ser substituídos pelo Americano e o Russo o Negro e o Branco o homem do século XVIII e o homem do século XX Entre esses homens de classes sociais de condições de raças de épocas diferentes um campo comum imaginário é possível e de fato há campos imaginários comuns Eles são comuns isto é neles as relações de projeçãoidentificação podem ser multiformes Numa mesma obra eles podem efetuarse em nível mágico em nível religioso em nível estético a Bíblia assim como as estátuas da catedral de Reims provocam nos descrentes projeçõesidentificações estetizadas A mitologia grega manteve mais de dois milênios projeçõesidentificações estéticas sempre renovadas Uma peça romântica como o Chatterton de Alfred de Vigny foi percebida identificativamente pelos jovens poetas e alguns encontraram aí uma incitação ao suicídio enquanto os burgueses vulgares percebiamna projetivamente O campo comum imaginário permite conceber que uma obra procedente de condições psicológicas sociológicas e históricas determinadas possa ter uma irradiação fora de seu meio e de sua época É o paradoxo da universalidade das obrasprimas As obras de arte universais são aquelas que detêm originalmente ou que acumulam em si possibilidades infinitas de projeçãoidentificação Assim uma obra de arte escapa à sua própria sociologia mas ao mesmo tempo remete à sociologia A obra de Homero sai da Grécia arcaica não do céu das essências estéticas mas para reencarnarse metamorfosearse através dos séculos e das civilizações inscrevendose nos campos comuns imaginários A cultura de massa desenvolve seus campos comuns imaginários no espaço a tendência ao máximo de público levaa a se adaptar às classes sociais às idades às nações diferentes Mas isso não impede que ela expresse correntes sociais predominantes na civilização ocidental Para compreender sua especialidade é preciso considerar ao mesmo tempo seus temas seu enraizamento histórico e sociológico e sua difusão Múltiplas diligências incessante dialética do social ao imaginário mas que nos permite esclarecer melhor um e outro um pelo outro Tratase também de saber hic et nunc em que medida a cultura de massa procura divertimento e evasão compensação expulsão purificação catarse em que medida ela mantém fantasmas obsessionais em que medida ela fornece modelos de vida dando forma e realce às necessidades que aspiram a se realizar Isto é em que medida a estética invalida e informa a vida prática 85 SEGUNDA PARTE UMA MITOLOGIA MODERNA A cultura de massa se desenvolveu em suas características originais a partir da década dos 30 primeiramente nos Estados Unidos Ela constitui para si uma temática coerente depois da Segunda Guerra Mundial no conjunto dos países ocidentais A hipótese global que se segue deve ser inevitavelmente colocada essa temática corresponde aos desenvolvimentos da sociedade americana em primeiro lugar e das sociedades ocidentais em seguida Esses desenvolvimentos são bem conhecidos as massas populares urbanas e de uma parte dos campos têm acesso a novos padrões de vida entram progressivamente no universo do bemestar do lazer do consumo que era até então o das classes burguesas As transformações quantitativas elevação do poder aquisitivo substituição crescente do trabalho da máquina pelo esforço humano aumento do tempo de lazer operam uma lenta metamorfose qualitativa os problemas da vida individual privada os problemas da realização de uma vida pessoal se colocam de hoje em diante com insistência não mais apenas no nível das classes burguesas mas da nova camada salarial em desenvolvimento O trabalho assalariado no interior dos gigantescos conjuntos burocráticos e industriais é nos escalões de execução privado de criatividade de autonomia e de responsabilidade Com a crescente mecanização o trabalho é menos penoso do ponto de vista físico mas com a crescente especialização ele se esvazia de toda e qualquer substância pessoal É o trabalho em migalhas do operário de fábrica o trabalho abstrato do escriturário As relativas seguranças adquiridas no trabalho contratos coletivos seguros sociais garantias funcionariadas aposentadorias o desenvolvimento do lazer tendendo a diminuir a intensidade afetiva das preocupações ligadas à vida de trabalho A seiva da vida encontra novas irrigações fora do trabalho as vivências vão se refugiar no lazer e vão acentuar o movimento geral no sentido da vida privada 89 Assim a modificação das condições de vida sob o efeito das técnicas a elevação das possibilidades de consumo a promoção da vida privada correspondem a um novo grau de individualização da existência humana A cultura de massa se constitui em função das necessidades individuais que emergem Ela vai fornecer à vida privada as imagens e os modelos que dão forma a suas aspirações Algumas dessas aspirações não podem se satisfazer nas grandes cidades civilizadas burocratizadas nesse caso a cultura resgata uma evasão por procuração em direção a um universo onde reinam a aventura o movimento a ação sem freio a liberdade não a liberdade no sentido político do termo mas a liberdade no sentido individual afetivo íntimo da realização das necessidades ou instintos inibidos ou proibidos Mas sobre um outro plano as imagens se aproximam do real ideais tornamse modelos que incitam a uma certa práxis Um gigantesco impulso do imaginário em direção ao real tende a propor mitos de autorealização heróis modelos uma ideologia e receitas práticas para a vida privada Se considerarmos que de hoje em diante o homem das sociedades ocidentais orienta cada vez mais suas preocupações para o bemestar e o standing por um lado o amor e a felicidade por outro lado a cultura de massa fornece os mitos condutores das aspirações privadas da coletividade Como disse Leo Bogart em The Age of Television pág 7 as mass media divulgaram a consciência popular do que constitui uma boa vida Produzindo essa boa vida familiar elas a fizeram parecer possível tanto quanto desejável para as grandes massas E é porque a cultura de massa se torna o grande fornecedor dos mitos condutores do lazer da felicidade do amor que nós podemos compreender o movimento que a impulsiona não só do real para o imaginário mas também do imaginário para o real Ela não é só evasão ela é ao mesmo tempo e contraditoriamente integração 8 Simpatia e Happy End A partir da década dos 30 delineiamse nitidamente as linhas de força que orientam o imaginário em direção ao realismo e que estimulam a identificação do espectador ou leitor como herói A imprensa amorosa introduzida na França por Confidences 1937 integra nos quadros realistas os temas sentimentais dos romances de Delly e Max du Veuzit Ela conserva certamente um importante setor melodramático com mansões órfãos tristes e tenebrosos e os cineromances desenvolvem um imaginário projetivo com luxuosos Cadillacs e herdeiras ricas Mas uma quantidade dessas narrações se inscrevem nos quadros realistas e além disso Confidences apresenta seus contos como se fossem histórias vividas permitindo a confusão do imaginário com o real No próprio domínio da imprensa infantil esse grande reino dos sonhos projetivos os cavaleiros lendários assumem a condição de aviadores arrojados as antigas narrações fabulosas e se filtra em parte na nova epopeia de antecipação o onirismo se mistura intimamente com a técnica além disso os fermentos de identificação estão em ação Tintin é um superboy realista que fixa sobre si a identificação do leitor de 10 anos esse antiGrand Meaulnes não dirige os sonhos da infância para paraísos verdes para os segredos esquizofrênicos da fantasia interior pelo contrário conduz o sonho para o seio do universo realista da aventura policial científica exótica com esse único viático da pequena infância ingênua o amigo cão que fala Mas é no cinema primeiramente o americano ocidental a seguir que por volta de 19301940 se dá a evolução ver 90 91 dadeiramente radical e significativa As intrigas se registram dentro de quadros plausíveis O cenário confere as aparências da realidade O ator se torna cada vez mais natural até aparecer não mais como um monstro sagrado executando um rito mas como um sósia exaltado do espectador ao qual este está ligado por semelhanças e simultaneamente por uma simpatia profunda O herói simpático tão diferente do herói trágico ou do herói lastimável e que desabrocha em detrimento deles é o herói ligado identificativamente ao espectador Ele pode ser admirado lastimado mas deve ser sempre amado É amado porque é amável e amante Esse herói amávelamanteamado se mete na pele dos heróis de filmes estando aí incluído também o herói cômico este não é apenas palhaço isto é grotesco também ele se torna simpático também ele se beneficiará do happy end A partir da década dos 30 estabelecese cada vez mais solidamente uma correlação entre a corrente realista o herói simpático e o happy end O happy end é a felicidade dos heróis simpáticos adquirida de modo quase providencial depois das provas que normalmente deveriam conduzir a um fracasso ou uma saída trágica A contradição que fundamenta toda e qualquer atividade dramática a luta contra a fatalidade o conflito com a natureza a cidade o outro ou consigo mesmo ao invés de se solucionar como na tragédia quer com a morte do herói quer com uma longa prova ou expiação se resolve com o happy end A introdução em massa do happy end limita o universo da tragédia ao interior do imaginário contemporâneo Ela rompe com uma tradição milenar proveniente da tragédia grega que prossegue com o teatro espanhol do Século de Ouro o drama elizabetano a tragédia clássica francesa o romance de Balzac Stendhal Zola Daudet o melodrama o romance naturalista e o romance popular de Eugène Sue a Ponson du Terrail enfim o cinema melodramático da época muda O happy end rompe com uma tradição não só ocidental mas universal que aliás ainda se mantém em parte nos filmes latinoamericanos e em maior escala nos filmes indianos e egípcios Na universal e milenar tradição o herói redentor ou mártir ou ainda redentor e mártir fica sobre si às vezes até a morte a infelicidade e o sofrimento Ele expia as faltas do outro o pecado original de sua família e apazigua com seu sacrifício a maldição ou a cólera do destino A grande tradição precisa não só de castigo dos maus mas do sacrifício dos inocentes dos puros dos generosos O sacrifício é a morte ou uma longa vida de provações Nesse último caso pode haver aí quer apaziguamento ou reconciliação Édipo quer reparação final o pequeno Rémi de Sans Famile O Conde de Monte Cristo O Corcunda de Notre Dame No filme de happy end se o herói é vítima do mal padece até a tortura moral ou física as provações são de curta duração dificilmente elas acompanham toda uma vida como no caso de Jean Valjean ou toda uma infância como em As Duas Órfãs O herói que supera os riscos parece terse tornado invulnerável à morte O filme termina com uma espécie de eterna primavera onde o amor algumas vezes acompanhado pelo dinheiro o poder ou a glória brilhará para todo sempre O happy end não é reparação ou apaziguamento mas irrupção da felicidade Há vários graus no happy end desde a felicidade total amor dinheiro prestígio até à esperança da felicidade onde o casal parte corajosamente pela estrada ao encontro da vida Raros e marginais são os filmes que acabam com a morte ou pior ainda pois a morte sempre tem virtudes tônicas com o fracasso do herói Uma revolução no reino do imaginário se dá com a irrupção em massa do happy end A idéia de felicidade veremos mais adiante se torna o núcleo afetivo do novo imaginário Correlativamente o happy end implica um apego intensificado de identificação com o herói Ao mesmo tempo em que os heróis se aproximam da humanidade quotidiana que nela imergem que se impõem seus problemas psicológicos são cada vez menos oficiantes de um mistério sagrado para se tornarem os alter ego do espectador O elo sentimental e pessoal que se estabelece entre espectador e herói é tal no novo clima de simpatia de realismo e de psicologismo que o espectador não suporta mais que seu alter ego seja imolado Pelo contrário ele espera o sucesso o êxito a prova de que a felicidade é possível Assim paradoxalmente é na medida em que o filme se aproxima da vida real que ele acaba na visão mais irreal mais mítica a satisfação dos desejos a felicidade eternizada Assim é que num certo sentido o happy end introduz o fim providencial dos contos de fadas no realismo moderno mas concentrado num momento de êxito ou finalização O velho conto terminava com a continuidade pacifica de eles foram felizes e tiveram muitos filhos O happy end eterniza um beijo que exalta um fortíssimo musical Aniquila passado e futuro no absoluto do instante supremo A cultura de massa no happy end oferece um novo modo estéticorealista que substitui a salvação religiosa na qual o homem por procuração realiza sua aspiração na eternidade O happy end se desenvolveu paralelamente no romance popular moderno romance policial romance de aventura na imprensa amorosa onde todas as novelas acabam bem e enfim na corrente maior do cinema ao passo que persiste no andar inferior da cultura de massa um setor melodramático e épico e no andar superior um setor trágico A força constrangedora do happy end se manifesta de maneira reveladora na adaptação de obras romanescas para o cinema A pressão do happy end é tão forte que chega ao ponto de metamorfosear o fim dos romances quando no entanto a adaptação deveria proteger o tabu do respeito à obra de arte É claro que não se ousa modificar o desfecho de obrasprimas do passado como Anna Karenina ou os Irmãos Karamazov se bem que as últimas imagens do filme de Richard Brooks insistam fortemente na esperança de fuga de Dimitri e Grouchenka Mas modificase o fim de romances contemporâneos consagrados como A Ponte do Rio Kwai de Pierre Boulle Os Deuses Vencidos de Irwin Shaw Un Barrage contre le Pacifique de Marguerite Duras O romance de Pierre Boulle acaba com um fracasso Por culpa do coronel inglês a ponte construída sobre o rio Kwai não explode Só o trem japonês fica danificado Pierre Boulle que fez a adaptação de seu livro para a tela batalhou longamente para que fosse aceito seu próprio fim Mas os produtores foram intratáveis A ponte deveria ir pelos ares O heroísmo do pequeno comando britânicoamericano não podia ser em vão A morte da maior parte dos personagens simpáticos do filme tinha que ser compensada recompensada pela destruição da ponte o coronel inglês devia mesmo se remir inconscientemente caindo sobre o detonador Pierre Boulle teve que se curvar conservando apenas em parte o sentido final de seu romance no último plano em que o médico militar britânico com o rosto desvairado grita por duas vezes como no final de um drama shakesperiano madness madness antes que a câmara suba do vale para o céu elevando o sacrifício dos heróis numa espécie de oferenda cósmica O final de Os Deuses Vencidos The Young Lions foi totalmente modificado Coisa estranha mas corrente não foi Irwin Shaw embora roteirista de grande reputação em Hollywood que adaptou seu próprio romance para a tela mas sim Edward Anhalt No final do romance os dois GIs amigos Michael e Noah Ackermann estão na Floresta Negra nos últimos dias da derrota nazista Eles superaram todos os perigos A guerra vai terminar Por seu lado Christian o herói alemão também sobreviveu Ele surpreende Michael e Noah Pela força do hábito mata Noah Michael o abaterá O livro acaba da seguinte maneira O americano estava em pé dominavao com toda sua estatura Christian sorri Bemvindo à Alemanha diz ele em bom inglês Ele olhou o americano erguer o fuzil e apertar o gatilho O filme substitui esse fim por um happy end Só o alemão é morto e a última imagem nos mostra Noah já desmobilizado de volta a Nova Iorque saindo de uma abertura de metrô Ele olha para a janela de seu apartamento e vê sua mulher que o aguarda com seu bebê nos braços Sorriso radiante No crescendo de uma música alegre a palavra End embrulha a felicidade deles numa eternidade de celofane Irwin Shaw adaptador do romance de Marguerite Duras para a tela submeteu Un Barrage contre le Pacifique ao mesmo tratamento infligido a seu próprio romance nas mãos de Edward Anhalt Numa plantação isolada na costa vietnamita uma viúva teima em lutar contra o mar que inunda suas colheitas Seus dois filhos Joseph e Suzanne só sonham com a fuga Uma vez que a mãe morra ambos partirão definitivamente No filme Suzanne não parte sozinha mas com o homem que ama no livro ela era a amante sem amor do filho do vizinho Joseph ficará na terra familiar graças à chegada providencial de cimento ele poderá construir uma barragem indestrutível A palavra fim é inscrita sobre a imagem do ônibus que leva os amantes felizes enquanto Joseph ao fundo da estrada amorosa fazlhes grandes sinais Em compensação o romance termina com o enterro da mãe que se baseia num grande tema cósmico de morterenascimento pôrdosol gritaria de crianças Joseph se levantou e os outros fizeram o mesmo A mulher pôs o carro em movimento e circundou o local Agosti e Joseph carregaram o caixão Já havia caído a noite Os camponeses ainda estão lá esperando que eles vão embora para poderem ir também Mas as crianças partiram ao mesmo tempo que o sol Ouviase sua suave gritaria sair das chocas Nesses três filmes que se situam acima do nível da produção corrente estabelecese um compromisso entre o happy end e o fim natural de essência trágica Em Os Deuses Vencidos o alemão Christian Diestl Marlon Brando personagem fundamentalmente simpático morre assim mesmo quando poderia terse rendido aos americanos e terse entregue a uma comovente profissão de fé democrática Mas essa morte é apagada pelo retorno feliz de Noah Ackermann Montgomery Clift Un Barrage contre le Pacifique acaba ao mesmo tempo com um happy end clássico amor vencedor com um semihappy end o filho continua com sucesso a obra de sua mãe e com um dilaceramento o irmão se separa da irmã O que houve foi a supressão do absurdo da luta selvagem da mãe para salvar sua terra Assim também o que foi atenuado em A Ponte do Rio Kwai foi o absurdo radical do esforço inútil Isso nos mostra que o happy end por meio de uma relação de identificação espectadorherói simpático se inscreve numa concepção articulada da vida Esforçandose para expulsar a tragédia o happy end se esforça ao mesmo tempo para exorcizar o sentimento do absurdo e da loucura dos empreendimentos humanos o shakesperiano life is a tale told by an idiot full of sound and fury and signifying nothing3 Uma vez que desde Kafka e Camus a literatura dos intelectuais está como que corroída pelo absurdo a cultura de massa se esforça em aclimatar aclimar e finalmente sufocar o absurdo dar um sentido à vida por meio da exclusão do contrasenso da morte O happy end é postulado pelo otimismo da felicidade o otimismo da rentabilidade do esforço é preciso que todo empreendimento nobre e heróico tenha sua recompensa aqui na Terra Por outro lado qualquer intervenção do poder político no meio da cultura postula igualmente um final feliz porque o poder afirma que tudo é bom na sociedade que ele governa É por isso que ao lado do happy end privado do filme ocidental há um happy end político na URSS e nas democracias populares o final otimista reinou durante a era stalinista depois a nova corrente se traduziu pela tragédia de Kanal ou de Quando Voam as Cegonhas De maneira diversa a ordem estabelecida a Leste e a Oeste quer exorcizar o pessimismo em relação ao mundo realista que é fermento de crítica social ou de desintegração ideológica Mas existe uma diferença entre o fim otimista em favor do sistema social e o happy end em favor do indivíduo privado No happy end privado a eliminação ou o evitar do absurdo a vontade de salvar os heróis dos perigos constituem negativamente uma espécie de segurança social ou de garantia contra todos os riscos imaginários positivamente uma valorização mitológica da felicidade Esses dois aspectos negativo e positivo mostram que o happy end dá uma forma imaginária sintética às aspirações vividas que adquirem consistência no Welfare State e na busca da felicidade privada A tirania do happy end corresponde ao novo demos 8 A vida é um conto contado por um idiota cheio de som e fúria e significando nada N T 9 Os Vasos Comunicantes Desde o século XIX o romancefolhetim e o conto foram introduzidos no jornal Mas é no começo do século XX que o imaginário arrebenta sobre as mass media Formase uma imprensa periódica exclusivamente romanesca sentimental adventurosa ou policial O cinematográfico se transforma em espetáculo e se dedica principalmente aos filmes de ficção Depois o rádio se torna o grande veiculo das canções e dos jogos seguido pela televisão Assim antes do novo curso o imaginário havia conquistado um lugar real nos domínios que pareciam destinados exclusivamente à informação imprensa à representação do real cinematográfico à transmissão das comunicações rádio Formase então um duplo setor no seio das mass media existe em todo espetáculo de cinema ao lado do grande filme romanesco uma parte de atualidades até mesmo de documentário os programas de televisão são distribuídos segundo uma alternância do informativo e do imaginário do documentário e do espetáculo a mesma dualidade se dá de modo diverso na imprensa o romanesco é minoritário na imprensa quotidiana preponderante na imprensa amorosa A partir da década dos 30 o novo curso da cultura de massa introduz no meio do setor informativo com insistência cada vez maior determinados esquemas e temas que ele faz triunfar no imaginário Em outras palavras a cultura de massa extravasa o imaginário e ganha a informação Assim a dramatização tende a preponderar sobre a informação propriamente dita A imprensa se apropria da espera de Chessman para poder fazer um suspense com a morte o homem que vive os dias de sua morte é seguido de hora em hora pelo voyeurismo coletivo uma montagem paralela faz alternar a corrida da morte o mecanismo implacável do sistema judiciário e a corrida contra a morte recursos dos advogados petições intervenções da opinião internacional O human touch o human interest tendem a transformar em vedete os personagens mais comoventes como o casal morto na véspera de seu casamento pela catástrofe de Frejus Fazendo vedete de tudo que pode ser comovente sensacional excepcional a imprensa de massa faz vedete de tudo que diz respeito às próprias vedetes suas conversas beijos confidências disputas são transmitidas através dos artigos falatórios flashes como se o leitor fosse o voyeur de um grande espetáculo de um supershow permanente cujos deuses seriam os atores Esse extraordinário consumo da vida privada das vedetes caminha lado a lado com o desenvolvimento do setor privado da informação que concerne não apenas à vida privada dos personagens públicos mas também aos fatos variados Assim os temas fundamentais do cinema a aventura a proeza o amor a vida privada são igualmente privilegiados junto à informação Até a política entra parcialmente no campo da cultura de massa principalmente nos Estados Unidos a batalha eleitoral toma cada vez mais a forma de uma competição televisada onde as qualidades simpáticas do candidato seu rosto o sorriso e a beleza de sua mulher se tornam triunfos políticos A cultura de massa integra em si os grandes políticos não tanto exaltando suas qualidades supremas de chefe o que é a mola da propaganda política mas revelando suas qualidades humanas de pai ou de esposo seus gostos privados sua intimidade por certo que um Hitler um Stalin um Franco assim como aliás um bonachão presidente da República Francesa já se fizeram fotografar ou cinematografar com uma meninazinha nos braços Mas essa pose era tanto paternalista como paterna confirmando o chefe em seu mito de pai da pátria Reciprocamente a propaganda política utiliza de hoje em diante em seu proveito certas receitas de popularidade elaboradas pela cultura de massa Mas apesar das inter ferências as diferenças permanecem a cultura de massa despolitiza relativamente o político que ela integra em seu seio no sentido de que ela pode ser indiferente aos temas políticos propriamente ditos dando a mesma acolhida a um Nixon ou a um Kennedy quase a mesma acolhida a um Krushev ou a um Eisenhower Relativamente indiferente aos temas propriamente políticos a cultura de massa vedetiza por vedetizar porque ela precisa de vedetes e é nesse sentido que ela exalta a grandeza olimpiana das recepções das visitas oficiais etc e prospecta todas as dimensões da familiaridade privada do olimpiano político Enfim o novo curso acentua a vedetização dos fatos variados Os fatos variados não são acontecimentos que informam o andamento do mundo são em comparação com a História atos gratuitos Mas esses atos afirmam a presença da paixão da morte e do destino para o leitor que domina as extremas virulências de suas paixões proíbe seus instintos e se abriga contra os perigos No sensacionalismo as balaustradas da vida normal são rompidas pelo acidente a catástrofe o crime a paixão o ciúme o sadismo O universo do sensacionalismo tem isso em comum com o imaginário o sonho o romance o filme infringe a ordem das coisas viola os tabus compele ao extremo a lógica das paixões Tem em comum com a tragédia o fato de se sujeitar à implacável fatalidade É esse universo de sonho vivido de tragédia vivida e de fatalidade que valorizam os jornais modernos do mundo ocidental Por outro lado o sensacionalismo é tanto mais privilegiado quanto é espetacular as grandes catástrofes são quase cinematográficas o crime é quase romanesco o processo é quase teatral A imprensa seleciona as situações existenciais carregadas de uma grande intensidade afetiva as crianças mártires apelam para a afetividade materna os crimes passionais apelam para a afetividade amorosa os acidentes apelam para o pathos elementar No fato variado a situação é privilegiada e é a partir de situaçõeschave que os personagens afetivamente significativos são vedetizados Na informação olimpiana o personagem vedete é privilegiado e privilegia as situações que para o comum dos mortais estariam mergulhadas no anonimato casamentos divórcios partos acidentes Evidentemente o caso ideal mas raro é o olimpiano em situação de sensacionalismo James Dean se mata com o automóvel a filha de Lana Turner mata o amante de sua mãe Enfim uma certa imprensa secreta incansavelmente uma verdadeira substância romanesca ou dramática camuflada em informação para colocar semanalmente em vedete seus olimpianos assim durante mais de um ano FranceDimanche e IciParis nos fornecem inúmeros pseudosrechaços nas relações quadrangulares entre Margaret Elizabeth Tony Philip e nas relações triangulares entre o Xá Soraya e Farah Diba Aqui nós podemos aprender ao vivo uma das diligências essenciais da mitologização A informação romanciada e vedetizada de um lado o sensacionalismo de outro apelam finalmente para os mesmos processos de projeçãoidentificação que os filmes romances novelas De fato os personagens em situação dramática dos fatos variados as vedetes em situação romanciada da atualidade fornecem uma matéria real mas da mesma estrutura afetiva do imaginário O sensacionalismo funciona como tragédia a vedetização funciona como mitologia Por certo a projeçãoidentificação intervém em todas as relações humanas desde que estas sejam coloridas de afetividade nós nos projetamos e nós nos identificamos em nossas amizades nossos amores nossas admirações nossos ódios nossas cóleras etc E por isso o imaginário se acha comprometido com o tecido quotidiano de nossas vidas mas o importante aqui é salientar que a irrupção da cultura de massa na informação desenvolve em determinado tipo de relações de projeção e de identificação que vão no sentido do romanesco da tragédia e da mitologia Assim ao mesmo tempo em que a matéria imaginária privilegiada pelo novo curso da cultura de massa é aquela que apresenta as aparências da vida vivida a matéria informativa privilegiada é aquela que apresenta as estruturas afetivas do imaginário Ao mesmo tempo em que o imaginário se compromete com o realismo e eu dou a esse termo não o sentido restrito que ele tomou na literatura e no cinema mas um sentido global que o opõe à magia e ao fantástico a informação tende a estruturar o acontecimento de modo romanesco ou teatral cinema tográfico em suma e desenvolve uma tendência mitologizante4 Esses dois movimentos de sentido inverso imagináriorealista e informação romanesca ou mitologizante tendem ao mesmo nível de equilíbrio médio Não há no imaginário da cultura de massa salvo em alguns setores literatura para crianças filmes fantásticos grande desabrochamento mitológico Inversamente raras são as informações próprias da cultura de massa não embebidas de substância mitologizante Essas comunicações entre o real e o imaginário devem ser ligadas a um desenvolvimento mais geral O novo curso tende a multiplicar os contatos entre a cultura de massa e seus consumidores É assim que a imprensa de massa introduz e generaliza a correspondência dos leitores Estes não são apenas chamados a dar sua opinião mas a pedir conselho correio amoroso O intercâmbio entre a leitora da imprensa feminina e seu jornal circula através de mil traçados alimentados não só pelo correio amoroso mas também pelas entrevistas o calendário astrológico os conselhos de uso doméstico e de vestuário etc É um contato simpático que o novo curso estabelece no rádio e depois na televisão RadioCité foi o primeiro que introduziu na França uma comunicação alerta com o ouvinte Com esse lançamento a Europa no 1 substituiu o locutor por um animador de programa mantendo uma cordial e engraçada conversação O novo estilo de familiaridade de amizade de cumplicidade sucede à solenidade recitante e cerimonial Ao mesmo tempo o novo curso desenvolveu maciçamente no rádio grandes jogosconcursos dos quais participa o público Este tem acesso às salas onde se efetuam os grandes programas de variedades e de jogo assim como ele tem acesso ao estúdio do jornal de Europa no 1 Os amadores de crochet radiofônico os participantes de concursos esses novos Édipos a quem a esfinge da cultura de massa perpetuamente propõe enigmas são como os delegados do ouvinte seus alter ego A televisão tornou tudo isso visível Ela valorizou o rosto simpático da locutora não só bonita moça mas sobretudo doce amiga sorridente Multiplicou a familiaridade a grande familiaridade5 da cultura de massa Essa multiplicação das mediações das comunicações e dos contatos cria e mantém um clima simpático entre a Cultura e seu público A cultura de massa tende a constituir idealmente um gigantesco clube de amigos uma grande família não hierarquizada Nessa oceânica e multiforme simpatia o novo curso persegue seu ímpeto além do imaginário além da informação propondo conselhos de saberviver Através dos conselhos de amor e de vida privada correio amoroso os conselhos de higiene onde se misturam a preocupação estética e a preocupação de saúde a vitamina e a juventude do corpo as defesas contra o câncer e as defesas contra a velhice se destaca sobretudo um tipo ideal de homem e de mulher sempre sãos jovens belos sedutores O método de Gayelord Hauser estabeleceu a síntese entre as preocupações de beleza saúde e juventude Outros conselhos hedonistas e práticos se seguem conselhos de mobiliário e de decoração conselhos de vestuário e de moda conselhos de cozinha conselhos de leitura baseados não na crítica literária mas nos sucessos do bestseller e da publicidade conselhos astrológicos conselhos para cada um e para todos Todos esses conselhos vão cumulativamente para o sentido do prestígio pessoal do standing do bemestar A esses conselhos aparentemente desinteressados acrescentamse as incitações interessadas da publicidade onipresente A publicidade se torna pois parte integrante da cultura de massa Ela diz respeito igualmente à saúde ao conforto à facilidade ao prestígio à beleza à sedução Assim desde os heróis imaginários até os cartazes 4 Um certo tipo de imprensa diária que o novo curso desenvolveu nos Estados Unidos na Inglaterra e em diversos países na França assinalemos a tentativa do ParisJour semifraÇasso os tabloid newspapers metamorfoseou literalmente o jornal que se torna assim como diz Leo Bogard mais um veículo de divertimento do que um veículo de informação Comic strips and their adult readers ref cit pág 275 5 O autor ora emprega o termo familiarite intimidade ora emprega o termo familialité comunidade N T publicitários a cultura de massa carrega uma infinidade de stimuli de incitações que desenvolvem ou criam invejas desejos necessidades O estágio no qual os temas imaginários da cultura de massa se prolongam em normas práticas é precisamente o estágio no qual se exerce a pressão da indústria e do comércio para derramar os produtos de consumo É o estágio no qual se dá uma osmose multiforme entre a publicidade e a cultura de massa A cultura de massa como veremos mais precisamente nos capítulos seguintes desenvolve no imaginário e na informação romanceada os temas da felicidade pessoal do amor da sedução A publicidade propõe os produtos que asseguram bemestar conforto libertação pessoal standing prestígio e também sedução Essa complementariedade concerne ao mesmo tecido humano que é a vida privada Daí a estreita ligação entre publicidade e cultura de massa A publicidade apadrinha tão bem a cultura de massa programas de rádio e de televisão competições esportivas quanto é apadrinhada por ela A cultura de massa é o terreno onde a publicidade obtém sua maior eficácia e inversamente os orçamentos publicitários das grandes firmas criam os programas de rádio os filmes publicitários isto é todo um setor da cultura de massa A cultura de massa em certo sentido é um aspecto publicitário do desenvolvimento consumidor do mundo ocidental Num outro sentido a publicidade é um aspecto da cultura de massa um de seus prolongamentos práticos Vamos colocar as coisas ainda de uma outra maneira através do imaginário através da informação romanceada ou vedetizada através dos contatos e dos conselhos através da publicidade efetuase o impulso de temas fundamentais que tendem a se encarnar na vida vivida E é uma imagem da vida desejável o modelo de um estilo de vida que finalmente esboçam como as peças de um quebracabeças os múltiplos setores e temas da cultura de massa Essa imagem é ao mesmo tempo hedonista e idealista ela se constrói por um lado com os produtos industriais de consumo e de uso cujo conjunto fornece o bemestar e o standing e por outro lado com a representação das aspirações privadas o amor o êxito pessoal e a felicidade 10 Os Olimpianos É provável que em média o conhecimento dos americanos a respeito das vidas dos amores e neuroses dos semideuses e deusas que vivem nas alturas olimpianas de Beverly Hills ultrapasse de muito seus conhecimentos dos negócios civicos B ROSENBERG e D MANNING WHITE No encontro do ímpeto do imaginário para o real e do real para o imaginário situamse as vedetes da grande imprensa os olimpianos6 modernos Esses olimpianos não são apenas os astros de cinema mas também os campeões príncipes reis playboys exploradores artistas célebres Picasso Cocteau Dalí Sagan O olimpismo de uns nasce do imaginário isto é de papéis encarnados nos filmes astros o de outros nasce de sua função sagrada realeza presidência de seus trabalhos heróicos campeões exploradores ou eróticos playboys distels Margaret e BB Soraya e Liz Taylor a princesa e a estrela se encontram no Olimpo da notícia dos jornais dos coquetéis recepções Capri Canárias e outras moradas encantadas A informação transforma esses olimpos em vedetes da atualidade Ela eleva à dignidade de acontecimentos históricos acontecimentos destituídos de qualquer significação política como as ligações de Soraya e Margaret os casamentos ou divórcios de Marilyn Monroe ou Liz Taylor os partos de Gina Lollobrigida Brigitte Bardot Farah Diba ou Elizabeth da Inglaterra Nesse último caso por 6 As palavras são de Henri Raymond cf artigos citados na Bibliografia pág 197 exemplo a Corte da Inglaterra ocupa durante alguns dias o lugar de vedete na imprensa francesa sob forma de um mistério sagrado pondo em cena a rainha Elizabeth o príncipe Philip a princesa Margaret e a entourage real esse mistério que nos mergulha no tempo mítico dos nascimentos fabulosos o in illo tempore situase ao mesmo tempo na cronologia da atualidade e nos mostra que a rainha de flancos augustos participa dos estremecimentos das angústias e das servidões carnais de todas as mulheres Uma síntese ideal da projeção e da identificação na qual a rainha cumpre ao mesmo tempo sua sobrehumanidade e sua extrema humanidade transforma um comunicado em flash espetacular7 Esse novo Olimpo é de fato o produto mais original do novo curso da cultura de massa As estrelas de cinema já haviam sido anteriormente promovidas a divindades O novo curso as humanizou Multiplicou as relações humanas com o público Elevou ao estrelato as cortes reais os playboys e até certos homens políticos Desde que as estrelas inacessíveis e sublimes do cinema desceram à terra desde que as cortes reais se transformaram em Trianons da cultura de massa isto é desde o progresso propriamente dito da cultura de massa enquanto tal a vida dos olimpianos participa da vida quotidiana dos mortais seus amores lendários participam dos destinos dos amores mortais seus sentimentos são experimentados pela humanidade média esses olimpianos podem até no futuro aceitar o aburguesamento de um casamento plebeu o fotógrafo da princesa britânica o médico da diva italiana com a condição de que esse casamento plebeu seja transfigurado pelo amor Os novos olimpianos são simultaneamente magnetizados no imaginário e no real simultaneamente ideais inimitáveis e modelos imitáveis sua dupla natureza é análoga à dupla natureza teológica do heróideus da religião cristã olimpianas e olimpianos são sobrehumanos no papel que eles encarnam humanos na existência privada que eles levam A imprensa de massa ao mesmo tempo que investe os olimpianos de um papel mitológico mergulha em suas vidas privadas a fim de extrair delas a substância humana que permite a identificação Esse processo pode funcionar igualmente para os chefes de Estados Ike Kennedy e no relaxamento de tensão internacional Krushev ao mesmo tempo que guias soberanos aparecem como amáveis pais de família esposos amantes gente boa típica de sua terra Familiares e inacessíveis também eles podem ter acesso à dupla natureza dos olimpianos humana e sobrehumana Também eles são perseguidos pelos fotógrafos os entrevistadores os mexeriqueiros que fazem força para sugar os sucos de sua intimidade Um Olimpo de vedetes domina a cultura de massa mas se comunica pela cultura de massa com a humanidade corrente Os olimpianos por meio de sua dupla natureza divina e humana efetuam a circulação permanente entre o mundo da projeção e o mundo da identificação Concentram nessa dupla natureza um complexo virulento de projeçãoidentificação Eles realizam os fantasmas que os mortais não podem realizar mas chamam os mortais para realizar o imaginário A esse título os olimpianos são os condensadores energéticos da cultura de massa Sua segunda natureza por meio da qual cada um se pode comunicar com sua natureza divina fálos participar também da vida de cada um Conjugando a vida quotidiana e a vida olimpiana os olimpianos se tornam modelos de cultura no sentido etnográfico do termo isto é modelos de vida São heróis modelos Encarnam os mitos de autorealização da vida privada De fato os olimpianos e sobretudo as estrelas que se beneficiam da eficácia do espetáculo cinematográfico isto é do realismo identificador nos múltiplos gestos e atitudes da vida filmada são os grandes modelos que trazem a cultura de massa e sem dúvida tendem a destronar os antigos modelos pais educadores heróis nacionais Já em 1930 os Payne Fund Studies verificavam que os jovens americanos encontravam no comportamento dos heróis de filme não apenas incitações ao sonho mas também modelos de conduta A obra de M Thorp os inquéri tos de J P Mayer na Inglaterra8 confirmam que gestos poses palavras penteados etc eram imitados que a prática cinematográfica do love making dos beijos carícias e relações amorosas era assimilada por jovens espectadores A publicidade apoderandose das estrelas para fazer delas modelos de beleza maquilagens de Elizabeth Arden de Max Factor confirma explicitamente seu papel exemplar Podese dizer ainda de modo mais amplo que os múltiplos modelos de conduta que dizem respeito a gestos atitudes modo de andar beleza se integram num grande modelo global o de um estilo de vida baseado na sedução no amor no bemestar Nesse sentido as estrelas em suas vidas de lazer de jogo de espetáculo de amor de luxo e na sua busca incessante da felicidade simbolizam os tipos ideais da cultura de massa Heróis e heroínas da vida privada os astros e estrelas são a ala ativa da grande corte dos olimpianos que animam a imagem da verdadeira vida Assim uma nova alta sociedade mais mitológica do que as antigas altas sociedades burguesas ou aristocráticas mas paradoxalmente mais próxima da humanidade quotidiana é constituída pela nova camada olimpiana Os olimpianos estão presentes em todos os setores da cultura de massa Heróis do imaginário cinematográfico são também os heróis da informação vedetizada Estão presentes nos pontos de contato entre a cultura de massa e o público entrevistas festas de caridade exibições publicitárias programas televisados ou radiofônicos Eles fazem os três universos se comunicarem o do imaginário o da informação o dos conselhos das incitações e das normas Concentram neles os poderes mitológicos e os poderes práticos da cultura de massa Nesse sentido a sobreindividualidade dos olimpianos é o fermento da individualidade moderna Consumida esteticamente a cultura de massa desenvolve além da estética uma práxis e uma mitologia Isso significa que ela ultrapassa a estética tanto no sentido do real como no sentido do imaginário Esses dois movimentos aparentemente contraditórios são de fato inseparáveis É precisamente por meio dos olimpianos que eles se exercitam com o maior vigor Como toda cultura a cultura de massa produz seus heróis seus semideuses embora ela se fundamente naquilo que é exatamente a decomposição do sagrado o espetáculo a estética Mas precisamente a mitologização é atrofia não há verdadeiros deuses heróis e semideuses participam da existência empírica enferma e mortal Sob a inibidora pressão da realidade informativa e do realismo imaginário sob a pressão orientadora das necessidades de identificação e das normas da sociedade de consumo não há grande arrebamento mitológico como nas religiões ou nas epopeias mas um desdobramento ao nível da terra O Olimpo moderno se situa além da estética mas não ainda na religião Como toda cultura a cultura de massa elabora modelos normas mas para essa cultura estruturada segundo a lei do mercado não há prescrições impostas mas imagens ou palavras que fazem apelo à imitação conselhos incitações publicitárias A eficácia dos modelos propostos vem precisamente do fato de eles corresponderem às aspirações e necessidades que se desenvolvem realmente Como estão longe as antigas lendas epopeias e contos de fadas como estão diferentes as religiões que permitem a identificação com o deus imortal mas no além como estão ignorados ou enfraquecidos os mitos de participação no Estado na nação na pátria na família Mas como está próximo como é atrativa e fascinante a mitologia da felicidade 11 O Revólver Quase todos os nossos desejos são criminosos em essência P Valéry O negativo isto é a liberdade isto é o crime Hegel Hollywood já proclamou sua receita há muito tempo a girl and a gun Uma moça e um revólver O erotismo o amor a felicidade de um lado De outro a agressão o homicídio a aventura Esses dois temas emaranhados uns portadores dos valores femininos outros dos valores viris são contudo valores diferentes Os temas aventurosos e homicidas não podem realizarse na vida eles tendem a se distribuir projetivamente Os temas amorosos interferem nas experiências vividas eles tendem a se distribuir identificativamente Os temas femininos constituem a polaridade positiva da cultura de massa os temas viris a polaridade negativa Por um lado irrigação da vida quotidiana por outro irrigação da vida onírica Dois sóis gêmeos efetuam uma rotação um sobre o outro Um aquece com seus raios os fermentos que se desenvolvem na sociedade o outro dá uma plenitude imaginária a tudo que falta na sociedade As louváveis aventuras cinematográficas respondem à mediocridade das existências reais os espectadores são as sombras cinzentas dos espectros deslumbrantes que cavalgam as imagens Há uma plenitude uma superabundância uma exuberância devastadora e proliferadora de vida nos jornais e nas telas que compensa a hipotensão a regulação a pobreza da vida real A vida não é apenas mais intensa na cultura de massa Ela é outra Nossas vidas quotidianas estão submetidas à lei Nossos instintos são reprimidos Nossos desejos são censurados Nossos medos são camuflados adormecidos Mas a vida dos filmes dos romances do sensacionalismo é aquela em que a lei é enfrentada dominada ou ignorada em que o desejo logo se torna amor vitorioso em que os instintos se tornam violências golpes homicídios em que os medos se tornam suspense angústias É a vida que conhece a liberdade não a liberdade política mas a liberdade antropológica na qual o homem não está mais à mercê da norma social a lei Essa liberdade propriamente imaginária é aquela que os sóstias adquirem nas mitologias arcaicas aquela que os deuses detêm e que os heróis das mitologias históricas conquistam aquela que privilegia os reis dos contos populares aquela que aparece de modo ingênuo ou absoluto no ingênuo Tintin ou no infantil Superman Contudo no universo realista da cultura de massa a liberdade não se encarna a não ser excepcionalmente fora da condição humana Ela se exerce em quadros plausíveis mas esses quadros são supra extra ou infrasociais isto é acima fora ou abaixo da lei social É portanto nos horizontes geográficos exotismo ou históricos o passado aventureiro ou mesmo o futuro de sciencefiction ou ainda nos cumes ou submundos da vida vivida que se desdobra a vida que falta em nossas vidas Os reis e os chefes que estão acima da lei gozam da supraliberdade Os ricos os olimpianos escapam aos constrangimentos da vida cotidiana deslocamse de avião amam divorciamse facilmente É claro que os olimpianos também estão sujeitos às servidões e não conseguem escapar a toda e qualquer lei Por essa razão mesmo eles revelam seu lado humano aquele que os torna identificáveis Mas o oxigênio que eles respiram é mais rico sua facilidade de movimento é maior Seus caprichos podem com mais frequência virar atos Os olimpianos estão isentos do constrangimento do trabalho e vivem nas liberdades do lazer 110 111 A liberdade extra é evidentemente a das viagens no tempo e no espaço aventuras históricas ou exóticas Esse outro mundo mais livre é o dos cavaleiros e mosqueteiros como o das selvas das savanas das florestas virgens das terras sem lei Os heróis desse outro mundo são o aventureiro o justiceiro o cavaleiro andante A característica do western é de se situar num tempo épico e genético dos primórdios da civilização que é ao mesmo tempo um tempo histórico realista recente o fim do século XIX Ainda não existe o império da lei mas está prestes a se constituir o herói do western é o Zorro o justiceiro que age contra uma falsa lei corrupta e prepara a verdadeira lei ou o xerife que soberano instaura de revólver em punho a lei que assegurará a liberdade Essa ambigüidade opera uma verdadeira síntese entre o tema da lei e o tema da liberdade aventurosa Ela resolve existencialmente o grande conflito entre o homem e o interdito o indivíduo e a lei aberto desde o Prometeu de Ésquilo e a Antígona de Sófocles A isso acrescentase o tema do herói fundador Rômulo moderno que opera a passagem do caos à ordem A riqueza mitológica em estado nascente do western explica sua ressonância universal Existem outros filmes de aventuras Mas a aventura westerniana é exemplar A liberdade infra se exerce abaixo das leis nos submundos da sociedade junto aos vagabundos ladrões gangsters Esse mundo da noite é talvez um dos mais significativos da cultura de massa Porque o homem civilizado regulamentado burocratizado o homem que obedece aos agentes aos editais de interdição aos bata antes de entrar aos da parte de quem se liberta projetivamente na imagem daquele que ousa tomar o dinheiro ou a mulher que ousa matar que ousa obedecer à sua própria violência Ao mesmo tempo a gang exerce uma fascinação particular porque responde a estruturas afetivas elementares do espírito humano baseiase na participação comunitária do grupo na solidariedade coletiva na fidelidade pessoal na agressividade em relação a tudo que é estrangeiro na vindita vingança em relação ao outro e responsabilidade coletiva dos seus para realização dos instintos predadores e depredadores A gang é como o clã arcaico mas purificada de todo e qualquer sistema tradicional de prescrições e de interdições é um clã em estado nascente E o sonho maldito e comunitário do indivíduo ao mesmo tempo reprimido e atomizado o contrato social da alma obscura dos homens sujeitos às regras abstratas e coercitivas É por causa disso aliás que os jovens tanto nos subúrbios como os dos bairros elegantes tanto no Leste como no Oeste tendem naturalmente a constituir bandos clãsgangs elementares para viver conforme o estado natural da afetividade Compreendese a partir daí a fascinação da gang e o papel dos submundos na cultura de massa Quer seja o herói o gangster o policial clássico o private eye revelado por Dashiell Hammett ou o agente secreto do FBI de Peter Cheney quer ele lute contra a lei ou pela lei ou sobretudo quer ele lute pela lei com meios ilegais os mesmos usados pelo foradalei Hammett Cheney ele nos fará mergulhar no mundo sem lei mundo maldito no qual se libertam os doubles Antonin Artand dizia em Le Théâtre et son double Toda liberdade verdadeira é negra De fato toda liberdade verdadeira desemboca na parte maldita na zona de sombra dos instintos e dos interditos E foi com sua profundidade habitual que Hegel pôde dizer a liberdade isto é o crime É aqui que o segundo termo do slogan hollywoodiano a girl and a gun adquire um sentido completo O tema da liberdade se apresenta através das janelas diariamente abertas da tela do vídeo do jornal como evasão onírica ou mítica fora do mundo civilizado fechado burocratizado É a esse título que existe relação profunda entre o tema do rei e o do vagabundo o tema do foradalei e o do taitiano entre o estado natural e a gang Ao mesmo tempo porém o tema da liberdade se inscreve no grande conflito entre o Homem e o Interdito Qualquer que seja a saída desse conflito e mesmo que o homem finalmente seja vencido ou domesticado pela lei a revolta antropológica contra a regra social o conflito fundamental do indivíduo e da sociedade é colocada e as energias do homem são empregadas nesse combate Nesse sentido a cultura de massa continua a grande tradição imaginária de todas as culturas Mas o que a diferencia das outras culturas é a exteriorização mul 112 113 tifome maciça e permanente da violência que jorra dos comics da televisão do cinema dos jornais sensacionalismo acidentes catástrofes dos livros série negra policial aventura 9 Bofetadas golpes tumultos batalhas guerras explosões incêndios erupções enchentes assaltam sem cessar os homens pacíficos de nossas cidades como se o excesso de violência consumido pelo espírito compensasse uma insuficiência de violência vivida Fazemos em toda segurança a experiência da insegurança isto é ainda da liberdade pois o homem livre é necessariamente sem segurança como disse Eric Fromm Fazemos pacificamente a experiência da guerra Fazemos passivamente a experiência do homicídio Fazemos inofensivamente a experiência da morte É preciso insistir nesse último ponto que nunca é salientado não é só pela necessidade de fazer a experiência do homicídio que existe a violência é também pela necessidade de viver a morte de conhecêla é isso que nos revelam claramente os jogos guerreiros das crianças estes se contentam não só em matar ficticiamente mas também em morrer ficticiamente em cair num espasmo de agonia 10 O grande fascínio da morte emerge obscuramente sob o jorro da violência A proliferação das violências imaginárias se acrescenta a vedetização das violências que explodem na periferia da vida quotidiana sob forma de acidentes catástrofes crimes A imprensa da cultura de massa abre suas colunas para os fatos variados isto é para os acontecimentos contingentes que só se justificam por seu valor emocional Enquanto a imprensa do Leste os ignore o Partido pretende governar uma sociedade harmoniosa da qual são excluídos crimes e catástrofes a imprensa capitalista consome de uma só vez as grandes catástrofes como Fréjus os grandes atos de sadismos os raptos os belos crimes passionais Através do sensacionalismo através dessas esquisitices do comportamento humano que refletem a verdadeira natureza do homem Durrel Mountolive através do universo do crime enfim o leitor redescobre vivendoos e realizandoos seus sonhos menos conscientes Sádicos assassinos são a personificação de instintos simplesmente reprimidos pelos outros homens a encarnação de seus homicídios imaginários de suas violências sonhadas R Musil LHomme sans Qualités II pág 445 Os grandes criminosos são portanto literalmente os bodes expiatórios da coletividade As estruturas do fato variado são as do imaginário Mas existe uma diferença fundamental entre o fato variado e o filme O filme de happy end é providencial ele poupa seus heróis a morte enquanto sofrimento perda irreparável é escamoteada em benefício da morte agressão do homicídio que abate os comparsas ou os maus Em compensação o fato variado é trágico a fatalidade se abate sobre vítimas inocentes a morte se apropria cegamente dos bons como dos maus Em certo sentido o sensacionalismo ressuscita a tragédia que desapareceu no imaginário Como a tragédia o sensacionalismo vai até ao extremo da morte ou da mutilação com a lógica irreparável da fatalidade Transcreve as paradas e os jogos do destino Contudo a um segundo exame notase que a presença no sensacionalismo do horrível do ilícito do destino e da morte na vida quotidiana é atenuada pelo modo do consumo jornalístico o sensacionalismo é consumado não segundo o rito cerimonial da tragédia mas à mesa no metrô com café com leite Os mortos das notícias sensacionalistas ainda que bem reais enquanto os mortos de teatro são simulados estão afinal mais longe do leitor do que os mortos shakesperianos o estão do espectador As vítimas do sensacionalismo como da tragédia são projetivas isto é são ofertadas em sacrifício à infelicidade e à morte Mas o sacrifício ritual dos grandes dias é outra coisa como é outra coisa a fornada diária que os frustrados da vida levam à morte A catarse é como que digerida no quotidiano isto quer dizer que o grande tema de sacrifício eles morrem em meu lugar se atenua num são os outros que morrem e não eu Assim paradoxalmente existe menos identificação com o herói do fato variado do que com o herói de filmes 114 115 menos comunicação humana entre o homem quotidiano e os fatos variados de seu quotidiano do que entre esse homem quotidiano e o cinema Isso não impede entretanto que por uma curiosa reviravolta moderna seja a realidade vivida e não mais a imaginária que se torne o fornecedor trágico da cultura O ah que horror que provocam os acidentes de automóvel os crimes passionais o suicídio com gás e o gemido da tragédia terra a terra que não só se prende ao acaso e circunstâncias mas ao destino e à fatalidade Os mortos do domingo são o tributo pago à festa A Páscoa com seus acidentes de estrada estatisticamente transformados em vedete é também a estação moderna das Parcas11 Ao redor das antigas aldeias os homens projetavam seus fantasmas lugares malditos anaons fogosfátuos Espíritos a noite pululava de fantasmas Ao redor das grandes cidades industriais a franja projetiva é constituída pelos acidentes e os crimes do noticiário sensacionalista As noites são iluminadas tranqüilizadoras Os fantasmas em toda parte presentes dia e noite modificaram sua natureza são os inumeráveis doubles que aparecem sobre as telas ou vídeos Os cidadãos da idade burguesa a expressão é de Musil vivem uma vida cuja largura está reduzida à sua faixa central segundo a espantosa fórmula de HANS FREYER Theorie des gegenwartigen Zeitalters Stuttgart 1955 pág 60 Todo o resto acima e abaixo é espetáculo e sonho voyeurismo permanente a grande política a atividade criadora a violência a liberdade o crime a desmedida E a virulência agressiva das faixas marginais parece crescer enquanto cresce na faixa central a segurança social o Estadoprovidência o conforto pacífico o bemestar As necessidades agressivas que não se atualizam na faixa cen tral são mantidas tanto pelos fatos variados dos jornais quanto pelas aventuras dos filmes e os esportes violentos boxe judô ou de competição Será que essas necessidades ainda são excitadas ou pelo contrário são acalmadas purificadas Em que medida existe descarga psíquica catarse ou pelo contrário permanente recarga agressiva Será que não há acumulação de fúrias latentes prontas para jorrar à primeira crise verdadeira da sociedade Ou antes pelo contrário não há dissolução voyeurista transferência salutar dos impulsos agressivos para fantasmas No que me diz respeito creio que as duas séries contraditórias de hipóteses são igualmente fundamentadas O espetáculo da violência ao mesmo tempo incita e apazigua incita parcialmente a adolescência em que a projeção e a identificação não se distribuem de modo racionalizado como acontece com os adultos a buscar exutórios práticos nessa violência principalmente nos pequenos bandos modernos beatniks e transviados etc mas ao mesmo tempo apazigua parcialmente as necessidades agressivas da adolescência Por outro lado há nas nossas sociedades um setor crescente de descargas agressivas físicas é o esporte Atualmente podese mesmo considerar o esporte como a única saída concreta para o instinto de combate Em sentido mais amplo só uma civilização de jogos seria capaz de drenar inofensivamente a enorme necessidade de afirmação ofensiva reprimida Um problema mais central permanece há um fundo de violência no ser humano que precede nossa civilização qualquer civilização e que não pode ser reduzido definitivamente por nenhum dos modos atualmente conhecidos pela civilização A civilização é uma fina película que pode solidificarse e conter o fogo central mas sem apagálo A civilização do conforto pacífico da vida sem riscos da felicidade que quer ignorar a morte será que constitui uma crosta cada vez mais sólida abaixo das energias dementes da espécie Ainda aqui a resposta é dupla Se de fato a superfície se endurece e torna a se fechar sobre o fogo central então a pressão interna se decuplica Que a crosta venha a se romper e os monstros quebrando suas correntes farão irrupção não mais sobre as telas e os jornais mas em cada um de nós Todas as experiências nos provam que ninguém está definitivamente civilizado um pequeno burguês pacífico pode tomarse em certas condições um SS ou um carrasco a guerra das nações civilizadas é pelo menos tão odiosa atroz implacável como as guerras das sociedades primitivas A cultura de massa nos entope nos embebeda com barulhos e fúrias Mas ela não nos curou de nossas fúrias fundamentais Ela as distrai elas as projeta em filmes e notícias sensacionalistas clarete de Postillon ou que algum afável vaqueiro enfeite as etiquetas de camembert é a mercadoria moderna que tende a se envolver em sexappeal É que se operou uma espantosa conjunção entre o erotismo feminino e o próprio movimento do capitalismo moderno que procura estimular o consumo O dinheiro sempre insaciável se dirige ao Eros sempre subnutrido para estimular o desejo o prazer e o gozo chamados e entregues pelos produtos lançados no mercado Em sua expansão vertical o capitalismo depois de haver anexado o reino dos sonhos se esforça por domesticar o Eros Ele mergulha na profundezas do onirismo e da libido Reciprocamente o Eros entra triunfalmente no circuito econômico e dotado do poder industrial desaba sobre a civilização ocidental As mercadorias carregadas de um suplemento erótico são também carregadas de um suplemento mítico é um erotismo imaginário isto é dotado de imagens e de imaginação que imbeve ou aureola esses produtos fabricados esse erotismo imaginário se adapta aliás ao erotismo vivido que não é somente multiplicação da esttimulação epidérmica mas também multiplicação dos fantasmas libidinosos Utilizando o desejo e o sonho como ingredientes e meios no jogo da oferta e da procura o capitalismo longe de reduzir a vida humana ao materialismo impregnoua ao contrário de um onirismo e de um erotismo difusos O erotismo da mercadoria é antes de tudo publicitário e por isso ele concerne diretamente à cultura de massa que engloba os mais importantes meios modernos de publicidade jornais rádio televisão De fato a virulência erótica se manifesta muito mais nas publicidades do que nas mercadorias mesmo isto é muito mais na incitação a consumir do que no consumo a pinup que mostra suas pernas para Schweppes não se encontra é claro nessa garrafa de refrigerante A injeção de erotismo na representação de uma mercadoria não erótica as publicidades que juntam uma atraente imagem feminina a uma geladeira uma máquina de lavar ou uma soda tem por função não apenas ou tanto provocar diretamente o consumo masculino mas de estetizar aos olhos das mulheres a mercadoria de que elas se apropriarão ela põe em jogo junto ao eventual cliente a magia da identificação sedutora a mercadoria faz o papel de mulher desejável para ser desejada pelas mulheres apelando para seu desejo de serem desejadas pelos homens Ao mesmo tempo em que a pinup se torna símbolo estético da qualidade indica que em seu domínio o produto dispõe das virtudes encantadoras da beldade Essa pinupisação se acrescenta à nova estética da oferta vendável por carenagens aerodinâmicas embalagens de celofane cores vivas Por outro lado a publicidade opera para certos produtos uma revalação quase psicanalítica das latências eróticas que podem despertar seu consumo e sobretudo ela aumenta a voltagem dos objetos já dotados de carga erótica Assim o impulso erótico se torna virulento ao extremo nos produtos para a epiderme e as partes sexuais secundárias do corpo cabeleira peito coxas e também nos produtos para a alma jornais revistas filmes É certo que sempre existiram produtos de sedução Mas é o novo curso publicitário que devia transformar os produtos de higiene em produtos de beleza é de sedução A publicidade de massa revelou o erotismo até então latente e até recalcado do produto tipo de higiene o sabonete e impregnouo de erotismo até transformálo em produto de sedução 9 entre 10 estrelas de cinema usam o sabonete Lux A publicidade franqueou rapidamente o caminho que vai da limpeza à beleza e da beleza ao sexappeal Xampus cremes pastas dentifrícias viram sua finalidade primeira submersa pela finalidade erótica Colgate Gibbs não combatem a cárie eles buscam dente branco hálito fresco sorriso encantador mil beijos Os produtos de regime por sua vez tornaramse produtos de sedução acrescentando a valência beleza à valência saúde uma vez que eles trazem futuro além da saúde para o hepático a esbeltez para o barrigudo Os Baudelaire do onirismo publicitário despertando as úteis correspondências da pinupidade levaram na esteira erotizante os produtos destinados à sensualidade oral
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DO MESMO AUTOR Lan zéro de lAllemagne La Cité Universelle 1946 Une cornerie Nagel 1947 LHomme et la mort Corréa 1951 Le cinema et lhomme imaginaire Editions de Minuit 1956 Les Stars Le Seuil 1957 Autocritique Julliard 1959 Chronique dun été en collaboration avec Jean Rouch Interspectacle 1962 Cultura de Massas no Século XX O Espirito do Tempo 2 Necrose 1975 EDGAR MORIN Cultura de Massas no Século XX O Espírito do Tempo 1 NEUROSE 9a edição Tradução de Maura Ribeiro Sardinha FORENSE UNIVERSITARIA 9a edição2a reimpressão 2002 Traduzido de LEsprit du Temps Copyright 1962 by Editions Bernard Grasset CIPBrasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ M85c Morin Edgar Cultura de massas no século XX neuroseEdgar Morin tradução de Maura Ribeiro Sardinha 9ed Rio de Janeiro Forense Universitária 1997 208p O espírito do tempo 1 Tradução de Lespirit du temps Inclui bibliografia ISBN 8521802090 1 Civilização moderna 2 Cultura de massa I Título II Título O espírito do tempo 970446 CDD 90982 CDU 008 Proibida a reprodução total ou parcial bem como a reprodução de apostilas a partir deste livro de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico inclusive através de processos xerográficos de fotocópia e de gravação sem permissão expressa do Editor Lei n 9610 de 190298 Reservados os direitos de propriedade desta edição pela EDITORA FORENSE UNIVERSITÁRIA Rio de Janeiro Rua do Rosário 100 Centro CEP 20041002 TelsFax 25093148 25097395 São Paulo Largo de São Francisco 20 Centro CEP 01005010 TelsFax 31042005 31040396 31070842 email editoraforenseuniversitariacombr httpwwwforenseuniversitariacombr Impresso no Brasil Printed in Brazil SUMÁRIO Prefácio à Terceira Edição 7 PRIMEIRA PARTE A INTEGRAÇÃO CULTURAL I UM TERCEIRO PROBLEMA 13 II A INDÚSTRIA CULTURAL 22 III O GRANDE PÚBLICO 35 IV A ARTE E A MÍDIA 48 V O GRANDE CRACKING 53 VI UMA CULTURA DE LAZER 67 VII OS CAMPOS ESTÉTICOS 77 SEGUNDA PARTE UMA MITOLOGIA MODERNA VIII SIMPATIA E HAPPY END 91 IX OS VASOS COMUNICANTES 98 X OS OLIMPIANOS 105 XI O REVÓLVER 110 XII O EROS QUOTIDIANO 119 XIII A FELICIDADE 125 XIV O AMOR 131 XV A PROMOÇÃO DOS VALORES FEMININOS 139 XVI JUVENTUDE 147 XVII A CULTURA PLANETÁRIA 158 XVIII O ESPÍRITO DO TEMPO 186 INTRODUÇÃO A BIBLIOGRAFIA 185 Primeira parte A CULTURA DE MASSA 188 Segunda parte AS COMUNICAÇÕES DE MASSA 198 NOTA DO TRADUTOR Ao fazer a tradução procurei escolher as expressões que melhor traduzissem o pensamento do autor mas mantive na medida do possível as particularidades de seu estilo Assim algumas palavras parecem em português com uma forma à primeira vista inadequada Isso só se verifica nos casos em que a preservação da irregularidade não prejudica a compreensão do texto É o caso por exemplo de fantomatique traduzido por fantasmático palavra inexistente tanto em francês quanto em português Muitos perguntarão por que não empreguei o termo fantasmagórico e a esses respondo que se fosse essa a intenção do autor ele teria usado em francês a palavra fantasmagorique de uso corrente no idioma Neurose meio termo entre um distúrbio da mente e a realidade concessão a que uma pessoa se acomoda em troca de um fantasma um mito ou um rito PREFÁCIO À TERCEIRA EDIÇÃO Este livro escrito em 19601 apareceu em 1962 Nada teria que suprimir e muito que acrescentar Efetivamente os anos de 60 foram marcados por uma transformação da configuração cultural nas nossas sociedades que obviamente afeta a cultura de massas Efetivamente muitas das características que assinalei neste livro ainda persistem hoje Mas o espírito do tempo já é outro O eixo da cultura de massas deslocouse Seu campo ampliouse penetrando cada vez mais intimamente na vida cotidiana no lar no casal na família na casa no automóvel nas férias A mitologia da felicidade tornouse a problematica da felicidade Traços e focos de contracultura e mesmo de revolução cultural formaramse no underground à margem da cultura de consumo porém também penetrandoa irrigandoa A cultura de massas tende a um tempo a deslocarse e a integrar recuperar como se diz as correntes desintegradoras A maior parte dos meus estudos de sociologia do presente de 1963 a 1973 tem relação com essas transformações Do aparecimento de uma nova subcultura juvenil o yeyeye aos impulsos californianos de uma revolução cultural ocidental passando pelas revoltas de estudantes Da promoção dos valores femininos à nova feminilidade e ao novo feminismo Do neoarcaísmo e do novo naturismo às utopias concretas dos clubes de férias e do movimento ecológico Dos obstáculos e das dificuldades opostas ao bemestar aos sintomas de uma crise em profundidade da civilização burguesa Ao passo que a sociologia oficial acreditava trabalhar no solo cada vez mais sólido da sociedade industrial eu me tornava cada vez mais sensível às pressões dos ciclos que se formavam à sombra O que era desprezado como epifenômenos aberrantes ou ridículos representava para mim desvios geradores de novas tendências Onde se viam fogos de palha enxergava eu erupções que revelavam desestruturações em profundidade no núcleo cultural de nossas sociedades Não tenho por que me envergonhar do que escrevi em 1962 em um texto publicado em 1965¹ Sem dúvida preparase uma crise gigantesca crise de fundo do individualismo burguês crise da civilização o beatnik já denuncia em sua recusa voluntária da comodidade norteamericana a inquietação que lhe causa o bemestar a expressão dolce vita já se tornou para os abastados sinônimo de desolação E em 1966 liase no final de um estudo da comuna de Plodemet² Será que se verão aparecer as dificuldades do bemestar ignoradas por um povo que apenas chegou aos primeiros estágios de uma conquista que ainda conhece as dificuldades do desconforto e a lembrança das antigas servidões Será que se verão aparecer as dificuldades da vida privada e a irrupção dos problemas do casal problemas que são silenciados ou escondidos onde quer que surjam Será que se alargará o vazio que já aflora entre os jovens no lazer e até durante as férias Será que se verá o ímpeto martirizante de inquietudes que hoje em dia apenas se entremostram e são transferidos a um futuro indeterminado ou a um cogumelo atômico Será que se assistirá a um impulso mais ardente para a espontaneidade a alegria a plenitude outrora circunscritas às festas e que hoje se insinuam timidamente nos divertimentos e nas férias Veremos a crise A muda O fim da civilização burguesa A partir de agora os novos fermentos culturais estão operando e em seu lugar Entramos em uma época em que se tornou bastante claro que a cultura se coloca em termos problemáticos Assim a este volume se segue um segundo tomo no qual estão articulados e integrados meus estudos dos anos 6273 EM Abril de 1974 ¹ Introdução a uma política do Homem Le Seuil 1965 ² Comuna na França A Metamorfose de Plodemet Fayard 1967 PRIMEIRA PARTE A INTEGRAÇÃO CULTURAL 1 Um Terceiro Problema No começo do século XX o poder industrial estendeuse por todo o globo terrestre A colonização da África a dominação da Ásia chegam a seu apogeu Eis que começa nas feiras de amostras e máquinas de níqueis a segunda industrialização a que se processa nas imagens e nos sonhos A segunda colonização não mais horizontal mas desta vez vertical penetra na grande reserva que é a alma humana A alma é a nova África que começa a agitar os circuitos dos cinemas Cinquenta anos mais tarde um prodigioso sistema nervoso se constituiu no grande corpo planetário as palavras e imagens saíam aos borbotões dos teletipos das rotativas das películas das fitas magnéticas das antenas de rádio e de televisão tudo que roda navega voa transporta jornais e revistas não há uma molécula de ar que nãovibre com as mensagens que um aparelho ou um gesto tornam logo audíveis e visíveis A segunda industrialização que passa a ser a industrialização do espírito e a segunda colonização que passa a dizer respeito à alma progridem no decorrer do século XX Através delas operase esse progresso ininterrupto da técnica não mais unicamente votado à organização exterior mas penetrando no domínio interior do homem e aí derramando mercadorias culturais Não há dúvida de que já o livro o jornal eram mercadorias mas a cultura e a vida privada nunca haviam entrado a tal ponto no circuito comercial e industrial nunca os murmúrios do mundo antigamente suspiros de fantasmas cochichos de fadas anões e duendes palavras de gênios e de deuses hoje em dia músicas palavras filmes levados através de ondas não haviam sido ao mesmo tempo fabricados industrialmente e vendidos comercialmente Essas novas mercadorias são as mais humanas de todas pois vendem a varejo os ectoplasmas de humanidade os amores e os medos romanceados os fatos variados do coração e da alma Os problemas colocados por essa estranha noosfera que flutua na corrente da civilização se encontram entre os terceiros problemas que emergem no meio do século XX Estes passam rapidamente da periferia para o centro das interrogações contemporâneas Não se deixam reduzir às respostas já prontas Só podem ser levantados por um pensamento em movimento É esse o caso daquilo que pode ser considerado como uma Terceira Cultura oriunda da imprensa do cinema do rádio da televisão que surge desenvolvese projetase ao lado das culturas clássicas religiosas ou humanistas e nacionais É no amanhã da Segunda Guerra Mundial que a sociologia americana detecta reconhece a Terceira Cultura e á domina mass culture Cultura de massa isto é produzida segundo as normas maciças da fabricação industrial propaganda pelas técnicas de difusão maciça que um estranho neologismo anglolatino chama de mass media destinandose a uma massa social isto é um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos aquém e além das estruturas internas da sociedade classes família etc O termo cultura de massa como os termos sociedade industrial ou sociedade de massa masssociety do qual ele é o equivalente cultural privilegia excessivamente um dos núcleos da vida social as sociedades modernas podem ser consideradas não só industriais e maciças mas também técnicas burocráticas capitalistas de classes burguesas individualistas A noção de massa é a priori demasiadamente limitada A noção de cultura pode parecer a priori demasiadamente extensa se a tomarmos no sentido próprio etnográfico e histórico muito nobre se a tomarmos no sentido derivado e requintado do humanismo cultivado Uma cultura orienta desenvolve domestica certas virtualidades humanas mas inibe ou proíbe outras Há fatos de cultura que são universais como a proibição do incesto mas as regras e às modalidades desta proibição diferenciamse segundo as culturas Em outras palavras há de um lado uma cultura que define em relação à natureza as qualidades propriamente humanas do ser biológico chamado homem e de outro lado culturas particulares segundo as épocas e as sociedades Podemos adiantar que uma cultura constitui um corpo complexo de normas símbolos mitos e imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade estruturam os instintos orientam as emoções Esta penetração se efetua segundo trocas mentais de projeção e de identificação polarizadas nos símbolos mitos e imagens da cultura como nas personalidades míticas ou reais que encarnam os valores os ancestrais os heróis os deuses Uma cultura fornece pontos de apoio imaginários à vida prática pontos de apoio práticos à vida imaginária ela alimenta o ser semireal semiimaginário que cada um secreta no interior de si sua alma o ser semireal semiimaginário que cada um secreta no exterior de si e no qual se envolve sua personalidade Assim a cultura nacional desde a escola nos imerge nas experiências míticovividas do passado ligandonos por relações de identificação e projeção aos heróis da pátria Vercingetórix Jeanne DArc os quais também se identificam com o grande corpo invisível mas vivo que através dos séculos de provações e vitórias assume a figura materna a MãePátria a quem devemos amor e paterna o Estado a quem devemos obediência A cultura religiosa se baseia na identificação com o deus que salva e com a grande comunidade maternalpaternal que constitui a Igreja Mais sutilmente ou antes de modo mais difuso a cultura humanista procura um saber e uma sensibilidade um sistema de atitudes afetivas e intelectuais por meio do comércio das obras literárias em que os heróis do teatro e do romance as efusões subjetivas dos poetas e das reflexões dos moralistas desempenham de modo atenuado o papel de heróis das antigas mitologias e de sábios das antigas sociedades Como veremos a cultura de massa é uma cultura ela constitui um corpo de símbolos mitos e imagens concernentes à vida prática e à vida imaginária um sistema de projeções e de identificações específicas Ela se acrescenta à cultura nacional à cultura humanista à cultura religiosa e entra em concorrência com estas culturas As sociedades modernas são policulturais Focos culturais de naturezas diferentes encontrãse em atividade a ou as religião o Estado nacional a tradição das humanidades afrontam ou conjugam suas morais seus mitos seus modelos dentro e fora da escola A essas diferentes culturas é preciso acrescentar a cultura de massa O mesmo indivíduo pode ser cristão na missa de manhã francês diante do monumento aos mortos antes de ir ver Le Cid no TNP e de ler FranceSoir e ParisMatch A cultura de massa integra e se integra ao mesmo tempo numa realidade policultural fazse conter controlar censurar pelo Estado pela Igreja e simultaneamente tende a corroer a desagregar as outras culturas A esse título ela não é absolutamente autônoma ela pode embebarse de cultura nacional religiosa ou humanista e por sua vez ela emebebe as culturas nacional religiosa ou humanista Embora não sendo a única cultura do século XX é a corrente verdadeiramente maciça e nova deste século Nascida nos Estados Unidos já se aclimatou à Europa Ocidental Alguns de seus elementos se espalharam por todo o globo Ela é cosmopolita por vocação e planetária por extensão Ela nos coloca os problemas da primeira cultura universal da história da humanidade Crítica intelectual ou crítica dos intelectuais Antes de abordar de frente estes problemas é preciso transpor a barreira intelectual que lhe opõe a inteligentsia cultivada Os cultos vivem numa concepção valorizante diferenciada aristocrática da cultura É por isso que o termo cultura do século XX lhes evoca imediatamente não o mundo da televisão do rádio do cinema dos comics da imprensa das canções do turismo das férias dos lazeres mas Mondrian Picasso Stravinsky Alban Berg Musil Proust Joyce Os intelectuais atiram a cultura de massa nos infernos infraculturais Uma atitude humanista deplora a invasão dos subprodutos culturais da indústria moderna dos subprodutos industriais da cultura moderna Uma atitude de direita tende a considerála como divertimento de ilotas barbarismo plebeu Foi a partir da vulgata marxista que se delineou uma crítica de esquerda que considera a cultura de massa como barbitúrico o novo ópio do povo ou mistificação deliberada o capitalismo desvia as massas de seus verdadeiros problemas Mas profundamente marxista é a crítica da nova alienação da civilização burguesa na falsa cultura a alienação do homem não se restringe apenas ao trabalho mas atinge o consumo e os lazeres Eu tornarei a tratar desses temas é claro mas gostaria primeiramente de observar aqui que por mais diferentes que sejam as origens dos desprezos humanistas de direita e esquerda a cultura de massa é considerada como mercadoria cultural ordinária feia ou como se diz nos Estados Unidos kitsch Pondo entre parênteses qualquer juízo de valor podemos diagnosticar uma resistência global da classe intelectual ou cultivada Não são os intelectuais que fazem essa cultura os primeiros autores de filmes eram estrangeiros os jornais se desenvolveram fora das esferas gloriosas da criação literária rádio e televisão foram o refúgio dos jornalistas ou comediantes fracassados É certo que progressivamente os intelectuais foram atraídos chamados para as salas de redação os estúdios de rádio os escritórios dos produtores de filmes Muitos encontraram aí uma profissão Mas estes intelectuais são empregados pela indústria cultural Só realizam por acaso ou após lutas extenuantes os projetos que trazem em si Em casos extremos o autor é separado de sua obra esta não é mais sua obra A criação é esmagada pela produção Stroheim Welles vencidos são rejeitados pelo sistema uma vez que não se dobram A inteligentsia literária é despojada pelo advento de um mundo cultural no qual a criação é deslocada Protesta tanto mais contra a industrialização do espírito quanto participa parcialmente em pequena escala desta industrialização Não é só de uma espoliação que sofre a inteligentsia É toda uma concepção da cultura da arte que é achincalhada pela intervenção das técnicas industriais como pela determinação mercantil e a orientação consumidora da cultura de massa Ao mercenarismo sucede o mercenarismo O capitalismo instala suas sucursais no coração da grande reserva cultural A reação da inteligentsia é também uma reação contra o imperialismo do capital e o reino do lucro Enfim a orientação consumidora destrói a autonomia e a hierarquia estética próprias da cultura cultivada Na cultura de massa não há descontinuidade entre a arte e a vida Nem retirada solitária nem ritos cerimoniais opõem a cultura de massa à vida quotidiana Ela é consumida no decorrer das horas Os valores artísticos não se diferenciam qualitativamente no seio do consumo corrente os jukebox oferecem ao mesmo tempo Armstrong e Brenda Lee Brassens e Dalida as lengalengas e as melodias Encontramos o mesmo ecletismo no rádio na televisão e no cinema Este universo não é governado regulamentado pela polícia do gosto a hierarquia do belo a alfândega da crítica estética As revistas os jornais de crianças os programas de rádio e salvo exceção os filmes não são mais governados pela crítica cultivada do que o consumo dos legumes detergentes ou máquinas de lavar O produto cultural está estritamente determinado por seu caráter industrial de um lado seu caráter de consumação diária de outro sem poder emergir para a autonomia estética Ele não é policiado nem filtrado nem estruturado pela Arte valor supremo da cultura dos cultos Tudo parece opor a cultura dos cultos à cultura de massa qualidade à quantidade criação à produção espiritualidade ao materialismo estética à mercadoria elegância à grosseria saber à ignorância Mas antes de perguntarmos se a cultura de massa é na realidade como a vê o culto é preciso nos perguntarmos se os valores da alta cultura não são dogmáticos formais mitificados se o culto da arte não esconde muitas vezes um comércio superficial com as obras Tudo que é inovador sempre se opõe às normas dominantes da cultura Essa observação que vale para a cultura de massa não vale também para a cultura cultivada De Rousseau o autodidata a Rousseau o alfandegário de Rimbaud ao surrealismo um revisionismo cultural contesta os cânones e os gostos da alta cultura abre à estética o que parecia trivial ou infantil Foi a vanguarda da cultura que primeiramente amou e integrou Chaplin Hammet o jazz e a canção das ruas Inversamente desdenhase com altivez a cultura de massa nos lugares onde reinam os esnobismos estéticos as receitas literárias os talentos afetados as vulgaridades convencionais Há um filistinismo dos cultos que têm origem na mesma esterotipia vulgar que os padrões desprezados da cultura de massa É é justamente no momento em que elas parecem opostas ao máximo que alta cultura e cultura de massa se reúnem uma pelo seu aristocratismo vulgar outra pela sua vulgaridade sedenta de standing Isto foi bem analisado por Harold Rosenberg De fato o anticonecito de kitsch é um kitsch acrescido Quando Mac Donald fala contra o kitsch parece falar do ponto de vista da arte quando fala da arte suas ideias são kitsch E esta fórmulachave Um dos aspectos da cultura de massa é a crítica kitschista do kitsch Meu objetivo aqui não é exaltar a cultura de massa mas diminuir a cultura cultivada não só para me propiciar algumas satisfações sadomasoquistas das quais são apreciadores os intelectuais mas para fazer literalmente explodir a praça forte o Montségur de onde temos o hábito de contemplar esses problemas e também restabelecer o debate em campo aberto Será que meu propósito é sensível Qualquer que seja o fenômeno estudado é preciso primeiramente que o observador se estude pois o observador ou perturba o fenômeno observado ou nele se projeta de algum modo Seja o que for que empreendamos no domínio das ciências humanas o primeiro passo deve ser de autoanálise de autocrítica Como intelectual atacando o problema da cultura é em primeiro lugar minha concepção da cultura que está em jogo Como pessoa culta dirigindome a pessoas cultas é exatamente essa cultura comum que devo primeiramente colocar em questão Há tais resistências psicológicas e sociológicas no interior do que podemos chamar em bloco de modo superficial se queremos abranger o conjunto dos problemas de modo verídico no caso particular aqui focalizado a classe intelectual sua reação é a tal ponto garantida e homogênea que é para lá primeiramente que é necessário levar à discórdia O problema preliminar a ser circunscrito seria o seguinte em que medida estamos nós mesmos comprometidos com um sistema de defesa às vezes inconsciente mas sempre incontestável contra um processo que tende à destruição dos intelectuais que somos Isso nos leva a reexaminar e autocriticar nossa noção ética ou estética de cultura e recomeçar a partir de uma cultura em imersão histórica e sociológica a cultura de massa nos coloca problemas mal formalizados mal emersos O termo cultura de massa não pode ele mesmo designar essa cultura que emerge com fronteiras ainda fluídas profundamente ligada às técnicas e à indústria assim como à alma e à vida quotidiana São os diferentes estratos de nossas sociedades e de nossa civilização que estão em jogo na nova cultura Somos remetidos diretamente ao complexo global Método Desde então o método de acesso se delineia Método autocrítico e método da totalidade O método da totalidade engloba o método autocrítico porque tende não só a encarar um fenômeno em suas interdependências mas também a encarar o próprio observador no sistema de relações O método autocrítico desentulhando o moralismo altivo e a agressividade frustrada e o antikitsch desembocam naturalmente no método da totalidade De uma só vez podemos evitar o sociologismo abstrato burocrático do investigador interrompido em sua pesquisa que se contenta em isolar este ou aquele setor sem tentar descobrir o que une os setores uns aos outros 20 21 É importante também que o observador participe do objeto de sua observação é preciso num certo sentido apreciar o cinema gostar de introduzir uma moeda num jukebox divertirse com caçaniqueis acompanhar as partidas esportivas no rádio na televisão cantarolar o último sucesso É preciso ser um pouco da multidão dos bailes dos basbaques dos jogos coletivos É preciso conhecer esse mundo sem se sentir um estranho nele É preciso gostar de flanar nos bulevares da cultura de massa Talvez uma das tarefas do narodnik moderno sempre preocupado em atingir o povo seja assistir Dalida A objetividade a ser alcançada é a que integra o observado na observação Não é o objetivismo que acredita alcançar o objeto suprimindo o observado quando não faz senão privilegiar um método de observação não relativista A proposição de Claudel é verdadeira se bem que seu contrário seja igualmente verdadeiro O homem conhece o mundo não pelo que dele subtrai mas pelo que a ele acrescenta de si mesmo O verdadeiro conhecimento dialetiza sem cessar a relação observadorobservado subtraindo e acrescentando Enfim o método da totalidade deve ao mesmo tempo evitar o empirismo parcelado que isolando um campo da realidade acaba por isolálo do real e as grandes idéias abstratas que como as vistas televisionadas de um satélite artificial só mostram um amontoado de nuvens acima dos continentes É preciso seguir a cultura de massa no seu perpétuo movimento da técnica à alma humana da alma humana à técnica lançadeira que percorre todo o processo social Mas ao mesmo tempo é preciso concebela como um dos cruzamentos desse complexo de cultura de civilizações e de história que nós chamamos de século XX Não devemos expulsar de nosso estudo mas sim centralizar os problemas fundamentais da sociedade e do homem pois eles dominam nossos propósitos 2 A Indústria Cultural As invenções técnicas foram necessárias para que a cultura industrial se tornasse possível o cinematógrafo e o telégrafo sem fio principalmente Essas técnicas foram utilizadas com freqüente surpresa de seus inventores o cinematógrafo aparelho destinado a registrar o movimento foi absorvido pelo espetáculo o sonho e o lazer o TSF primeiramente de uso utilitário foi por sua vez absorvido pelo jogo a música e o divertimento O vento que assim as arrasta em direção à cultura é o vento do lucro capitalista É para e pelo lucro que se desenvolvem as novas artes técnicas Não há dúvida de que sem o impulso prodigioso do espírito capitalista essas invenções não teriam conhecido um desenvolvimento tão radical e maciçamente orientado Contudo uma vez dado esse impulso o movimento ultrapassa o capitalismo propriamente dito nos começos do Estado Soviético Lenin e Trotsky reconheceram a importância social do cinema A indústria cultural se desenvolve em todos os regimes tanto no quadro do Estado quanto no da iniciativa privada Dois sistemas Nos sistemas ditos socialistas o Estado é senhor absoluto censor diretor produtor A ideologia do Estado pode portanto desempenhar um papel capital No entanto mesmo nos Estados Unidos a iniciativa privada nunca fica inteiramente entregue à sua própria evolução o Estado é pelo menos polícia Do Estadosoberano cultural ao Estadopolícia há uma gama de situações intermediárias Na França por exemplo o Estado só interfere na imprensa para dar autorização prévia mas tem sob sua proteção a agência nacional de informação AFP no cinema ele autoriza e proíbe subvenciona em parte a indústria do filme controla uma sociedade de produção no rádio ocupa um monopólio de direito mas tolera a concorrência eficaz de emissoras periféricas Luxemburgo Europa nº 1 Monte Carlo Andorra na televisão esforçase por manter seu monopólio Os conteúdos culturais diferem mais ou menos radicalmente segundo o tipo de intervenção do Estado negativo censura controle ou positivo orientação domesticação politização segundo o caráter liberal ou autoritário da intervenção segundo o tipo de Estado interveniente Não levando em conta essas variáveis podese dizer que se há igualmente a preocupação de atingir o maior público possível no sistema privado busca do máximo lucro e no sistema do Estado interesse político e ideológico o sistema privado quer antes de tudo agradar ao consumidor Ele fará tudo para recrear divertir dentro dos limites da censura O sistema de Estado quer convencer educar por um lado tende a propagar uma ideologia que pode aborrecer ou irritar por outro lado não é estimulado pelo lucro e pode propor valores de alta cultura palestras científicas música erudita obras clássicas O sistema privado é vivo porque divertido Quer adaptar sua cultura ao público O sistema de Estado é afetado forçado Quer adaptar o público à sua cultura É a alternativa entre a velha governanta deserotizada Anastácia e a pinup que entreabre os lábios Sendo preciso colocar o problema em termos normativos não existe a meu ver escolha a fazer entre o sistema de Estado e o sistema privado mas a necessidade de instituir uma nova combinação Enquanto isso é na concorrência no seio de uma mesma nação entre sistema privado e sistema de Estado para o rádio a televisão e o cinema que os aspectos mais inquietantes de um e de outro têm as melhores oportunidades de se neutralizarem e que seus aspectos mais interessantes investimento cultural no sistema de Estado consumo cultural imediato no sistema privado podem 22 23 desenvolverse Isso bem entendido colocado abstratamente Não examinarei neste ensaio o problema dos apêndices culturais da política de Estado nem o sistema cultural dito socialista ainda que com exceção feita à China exista em seu seio penetração de elementos da cultura de massa à americana O objeto de meu estudo são os processos culturais que se desenvolveram fora da esfera de orientação estatal religiosa ou pedagógica sob o impulso primeiro do capitalismo privado e que podem de resto se difundir com o tempo até nos sistemas culturais estatais Para evitar qualquer confusão empregarei o termo de cultura industrial para designar os caracteres comuns a todos os sistemas privados ou de Estado de Oeste e de Leste reservando o termo de cultura de massa para a cultura industrial dominante no Oeste ProduçãoCriação o modelo burocráticoindustrial Em um e em outro caso por mais diferentes que sejam os conteúdos culturais há concentração da indústria cultural A imprensa o rádio a televisão o cinema são indústrias ligeiras pelo aparelhamento produtor são ultralegiras pela mercadoria produzida esta fica gravada sobre a folha do jornal sobre a película cinematográfica voa sobre as ondas e no momento do consumo tornase impalpável uma vez que esse consumo é psíquico Entretanto essa indústria ultralegira está organizada segundo o modelo da indústria de maior concentração técnica e econômica No quadro privado alguns grandes grupos de imprensa algumas grandes cadeias de rádio e televisão algumas sociedades cinematográficas concentram em seu poder o aparelhamento rotativas estúdios e dominam as comunicações de massa No quadro público é o Estado que assegura a concentração A essa concentração técnica corresponde uma concentração burocrática Um jornal uma estação de rádio e de televisão são burocraticamente organizados A organização burocrática filtra a idéia criadora submetea a exame antes que ela chegue às mãos daquele que decide o produtor o redatorchefe Este decide em função de considerações anônimas a rentabilidade eventual do assunto proposto iniciativa privada sua oportunidade política Estado em seguida remete o projeto para as mãos de técnicos que o submetem a suas próprias manipulações Em um e outro sistema o poder cultural aquele do autor da canção do artigo do projeto de filme da idéia radiofônica se encontra impensado entre o poder burocrático e o poder técnico A concentração técnicoburocrática pesa universalmente sobre a produção cultural de massa Donde a tendência à despersonalização da criação à predominância da organização racional de produção técnica comercial política sobre a invenção à desintegração do poder cultural No entanto essa tendência exigida pelo sistema industrial se choca com uma exigência radicalmente contrária nascida da natureza própria do consumo cultural que sempre reclama um produto individualizado e sempre novo A indústria do detergente produz sempre o mesmo pó limitandose a variar as embalagens de tempos em tempos A indústria automobilística só pode individualizar as séries anuais por renovações técnicas ou de formas enquanto as unidades são idênticas umas às outras com apenas algumas diferençaspadrão de cor e de enfeites No entanto a indústria cultural precisa de unidades necessariamente individualizadas Um filme pode ser concebido em função de algumas receitaspadrão intriga amorosa happy end mas deve ter sua personalidade sua originalidade sua unicidade Do mesmo modo um programa de rádio uma canção Por outro lado a informação a grande imprensa pescam cada dia o novo o contingente o acontecimento isto é o individual Fazem o acontecimento passar nos seus moldes para restituilo em sua unicidade A indústria cultural deve pois superar constantemente uma contradição fundamental entre suas estruturas burocratizadas padronizadas e a originalidade individualidade e novidade do produto que ela deve fornecer Seu próprio funcionamento se operará a partir desses dois pa 24 25 res antitéticos burocraciainvenção padrãoindividualidade Esse paradoxo é de tal ordem que se pode perguntar de que modo é possível uma organização burocráticoindustrial da cultura Essa possibilidade reside sem dúvida na própria estrutura do imaginário O imaginário se estrutura segundo arquétipos existem figurinosmodelo do espírito humano que ordenam os sonhos e particularmente os sonhos racionalizados que são os temas míticos ou romanescos Regras convenções gêneros artísticos impõem estruturas exteriores às obras enquanto situaçõestipo e personagenstipo lhes fornecem as estruturas internas A análise estrutural nos mostra que se pode reduzir os mitos a estruturas matemáticas Ora toda estrutura constante pode se conciliar com a norma industrial A indústria cultural persegue a demonstração à sua maneira padronizando os grandes temas romanescos fazendo clichês dos arquétipos em estereótipos Praticamente fabricamse romances sentimentais em cadeia a partir de certos modelos tornados conscientes e racionalizados Também o coração pode ser posto em conserva Com a condição porém de que os produtos resultantes da cadeia sejam individualizados Existem técnicaspadrão de individualização que consistem em modificar o conjunto dos diferentes elementos do mesmo modo que se pode obter os mais variados objetos a partir de peçaspadrão de meccano Em determinado momento precisase de mais precisase da invenção É aqui que a produção não chega a abafar a criação que a burocracia é obrigada a procurar a invenção que o padrão se detém para ser aperfeiçoado pela originalidade Donde esse princípio fundamental a criação cultural não pode ser totalmente integrada num sistema de produção industrial Daí um certo número de consequências por um lado contratendência à descentralização e à concorrência por outro lado tendência à autonomia relativa da criação no seio da produção De qualquer maneira há variável segundo as indústrias um limite à concentração absoluta Se por exemplo o mesmo truste de sabão Lever é levado não só a lançar concorrentemente sobre o mercado várias marcas de detergente Omo Rinso Sunil Tide Persil mas ainda a dotar cada marca de uma certa autonomia principalmente na organização da publicidade é porque existe mesmo nesse nível elementar uma necessidade de variedade e individualidade no consumo e porque a máxima eficácia comercial se encontra nessa forma estranha mas relativamente descentralizadora de autoconcorrência O limite à concentração aparece bem mais nitidamente na indústria cultural Se há concentração na escala financeira é não só concebível mas freqüente por exemplo vários jornais concorrentes dependem de fato do mesmo oligopólio como FranceSoir e ParisPresse a concentração em um só jornal uma só emissora de rádio um só organismo de produção cinematográfica contradiz demais as necessidades de variedade e de individualidade a flexibilidade mínima de jogo que é vitalmente necessária à indústria cultural O equilíbrio concentraçãodescentralização até mesmo concentraçãoconcorrência se estabelece e se modifica em função de múltiplos fatores Donde as estruturas de produção híbridas e moventes Na França por exemplo após a crise de 1931 os trustes de cinema desmoronaram a produção se fragmentou em pequenas firmas independentes somente a distribuição ficou controlada em algumas grandes sociedades que por efeito retrospectivo de reconcentração relativa controlam freqüentemente a produção por avanço sobre receitas Nos Estados Unidos após a concorrência da televisão as grandes sociedades como a Fox se descentralizaram deixando as responsabilidades de individuação a produtores semiindependentes Em outras palavras o sistema cada vez que é forçado a isso tende a voltar ao clima de concorrência do capitalismo anterior Do mesmo modo cada vez que é forçado a isso se deixa penetrar por antídotos contra o burocratismo No sistema de Estado de uma outra maneira mantémse permanentemente grandes resistências antiburocráticas estas se tornam virulentas desde que uma brecha racha o sistema em alguns casos as possi bilidades criadoras dos autores podem ser maiores do que no sistema capitalista uma vez que as considerações a respeito de lucro comercial são secundárias nesse tipo de sistema Foi o caso do cinema polonês de 1955 a 1957 O equilíbrio e o desequilíbrio entre as forças contrárias burocráticas e antiburocráticas depende igualmente do próprio produto A imprensa de massa é mais burocratizada do que no cinema porque a originalidade e a individualidade já lhe são préfabricadas pelo acontecimento porque o ritmo de publicação é diário ou semanal e porque a leitura de um jornal está ligada a fortes hábitos O filme deve cada vez encontrar o seu público e acima de tudo deve tentar cada vez uma síntese difícil do padrão e do original o padrão se beneficia do sucesso passado e o original é a garantia do novo sucesso mas o já conhecido corre o risco de fatigar enquanto o novo corre o risco de desagradar É por isso que o cinema procura a vedete que une o arquétipo ao individual a partir daí compreendese que a vedete seja o melhor antirisco da cultura de massa e principalmente do cinema Em cada caso portanto se estabelece uma relação específica entre a lógica industrialburocráticamonopolisticacentralizadorapadronizadora e a contralógica individualistainventivaconcorrencialautonomistainovadora Essa conexão complexa pode ser alterada por qualquer modificação que afete um só de seus aspectos É uma relação de forças submetidas ao conjunto das forças sociais as quais mediatizam a relação entre o autor e seu público dessa conexão de forças depende finalmente a riqueza artística e humana da obra produzida Essa conexão crucial se opera segundo equilíbrios e desequilíbrios A contradição invençãopadronização é a contradição dinâmica da cultura de massa É seu mecanismo de adaptação ao público e de adaptação do público a ela É sua vitalidade É a existência dessa contradição que permite compreender por um lado esse universo imenso estereotipado no filme na canção no jornalismo no rádio e por outro lado essa invenção perpétua no cinema na canção no jornalismo no rádio essa zona de criação e de talento no seio do conformismo padronizado Pois a cultura industrializada integra os Bressons e os Brassens os Faulkners e os Welles ora sufocandoos ora desabrochandoos Em outras palavras a indústria cultural precisa de um eletrodo negativo para funcionar positivamente Esse eletrodo negativo vem a ser uma certa liberdade no seio de estruturas rígidas Essa liberdade pode ser muito restrita essa liberdade pode servir na maioria das vezes para dar acabamento à produçãopadrão portanto para servir à padronização pode algumas vezes suscitar uma espécie de corrente de Humboldt à margem ou no interior de grandes águas a corrente negra do filme americano de 1945 a 1960 de Dmytrik Kazan a Lazlo Benedek Martin Ritt Nicholas Ray a corrente anarquista da canção francesa com Brassens e Léo Ferré etc Ela pode algumas vezes brilhar de maneira fulgurante Kanal Cinzas e Diamantes Produção e Criação a criação industrializada O criador isto é o autor criador da substância e da forma de sua obra emergiu tardiamente na história da cultura é o artista do século XIX Ele se afirma precisamente no momento em que começa a era industrial Tende a se desagregar com a introdução das técnicas industriais na cultura A criação tende a se tornar produção As novas artes da cultura industrial ressuscitam em certo sentido o antigo coletivismo do trabalho artístico aquele das epopeias anônimas dos construtores de catedrais dos ateliers de pintores até Rafael e Rembrandt É surpreendente a analogia entre os heróis homéricos ou os cavaleiros da Távola Redonda cantados por vagas sucessivas de poetas esquecidos e os heróis das epopeias de revistas em quadrinhos da imprensa de massa ilustrados por ondas sucessivas de desenhistas que reagem no anonimato Assim por exemplo John Carter herói de Edgar Rice Burroughs inaugura sob forma romanesca o western interplanetário Em 1934 o King Features Syndicate acusa o desenhista Alex Raymond de pôr em quadrinhos as aventuras desse herói que se transforma em Flash Gordon Depois da morte acidental de Alex Raymond Austin Briggs o sucede 19421949 Este último é substituído por artigos de jornais devem comportar um determinado número de sinais fixando antecipadamente suas dimensões os programas de rádio são cronometrados Na imprensa a padronização do estilo se dá no rewriting Os grandes temas do imaginário romances filmes são eles mesmos em certo sentido arquétipos e estereótipos constituídos em padrão Nesse sentido segundo as palavras de Wright Mills em White Collar a fórmula substitui a forma A divisão do trabalho porém não é de modo nenhum incompatível com a individualização da obra ela já produziu suas obrasprimas no cinema se bem que efetivamente as condições ideais da criação sejam aquelas em que o criador possa assumir ao mesmo tempo as diversas funções industrialmente separadas a idéia o cenário a realização e a montagem A padronização em si mesma não ocasiona necessariamente a desindividualização ela pode ser o equivalente industrial das regras clássicas da arte como as três unidades que impunham as formas e os temas Os constrangimentos objetivos ou sufocam ou ao contrário aumentam a obra de arte O western não é mais rígido que a tragédia clássica e seus temas canônicos permitem as variações mais requintadas da Cavalgada Fantástica a Bronco High Noon Shane Johnny Guitar Rio Bravo Portanto nem a divisão do trabalho nem a padronização são em si obstáculos à individualização da obra Na realidade elas tendem a sufocála e aumentála ao mesmo tempo quanto mais a indústria cultural se desenvolve mais ela apela para a individuação mas tende também a padronizar essa individuação Não foi em seus começos que Hollywood fez apelo aos escritores de talento para seus roteiros é no momento do apogeu do sistema industrial que a usina de sonhos prende Faulkner por contrato ou compra os direitos de Hemingway Esse impulso em direção ao grande escritor que traz o máximo de individuação é ao mesmo tempo contraditório porque apenas contratado Faulkner se viu salvo uma exceção na impossibilidade de escrever cenários faulknerianos e se limitou a fazer floreios sobre temas padrões Em outras palavras a dialética padronizaçãoindividuação tende freqüentemente a se amortecer em uma espécie de termo médio O impulso no sentido da individuação não se traduz somente pelo apelo ao elétrado negativo o criador ele se efetua pelo refúgio em superindividualidades as vedetes A presença de uma vedete superindividualiza o filme A imprensa consome e cria sem cessar vedetes calcadas sobre o modelo de estrelas de cinema as Elizabeth Margaret Bobet Coppi Hergog Bombard Rubirosa As vedetes são personalidades estruturadas padronizadas e individualizadas ao mesmo tempo e assim seu hieratismo resolve da melhor maneira a contradição fundamental Isto pode ser um dos meios essenciais da vedetização sobre o qual não insisti suficientemente em meu livro a respeito das estrelas Entre esses dois pólos de individualização a vedete e o autor cenarista ou realizador de filme de emissão redator do artigo funciona uma dialética na maioria das vezes repulsiva Quanto mais aumenta a individualidade da vedete mais diminui a do autor e viceversa Na maioria das vezes a vedete tem precedência sobre o autor Dizse um filme de Gabin A individualidade do autor é esmagada pela da vedete Esta individualidade se afirma num filme sem vedetes Podemos abordar aqui o problema do autor que a indústria cultural utiliza e engana ao mesmo tempo em sua tríplice qualidade de artista de intelectual e de criador A indústria cultural atrai e prende por salários muitos altos os jornalistas e escritores de talento ela porém não faz frutificar senão a parte desse talento conciliável com os padrões Constituise portanto no seio do mundo da cultura industrial uma inteligentsia criadora sobre a qual pesam grosseiramente a divisão do trabalho e a burocracia e cujas possibilidades são subdesenvolvidas O copydesk anonimamente dá forma às aventuras de Margaret no FranceDimanche Conta o 17 de Outubro como um suspense em que Lenine seria o terceiro homem O roteirista constrói descuidadamente roteiros que ele despreza Um Dassin se submete à Lollobrigida para rodar La Loi um Lazlo Benedeck para escapar ao silêncio aceita a nenhuma convencional de um script E assim vemos frequentemente autores que dizem Isso não é meu filme fui obrigado a aceitar esta vedete tive que aceitar este happy end fui forçado a fazer este artigo mas não o assinarei é realmente preciso que eu diga isso neste programa de rádio No seio da indústria cultural se multiplica o autor não apenas envergonhado de sua obra mas também negando que sua obra seja obra sua O autor não pode mais se identificar com sua obra Entre ambos criouse uma extraordinária repulsa Então desaparece a maior satisfação do artista que é a de se identificar com sua obra isto é de se justificar através de sua obra de fundar nela sua própria transcendência É um fenômeno de alienação não sem analogia com o do operário industrial mas em condições subjetivas e objetivas particulares e com essa diferença essencial o autor é excessivamente bem pago O trabalho mais desprezado pelo autor é frequentemente o que lhe dá melhor remuneração e dessa desmoralizante correlação nascem o cinismo a agressividade ou a má consciência que se misturam à insatisfação profunda nascida da frustração artística ou intelectual É o que explica que negada pelo sistema uma fração dessa inteligentsia criadora negue por sua vez o sistema e coloque no que ela crê seja o antisistema o de Moscou suas esperanças de desforra e de liberdade É o que explica que um surdo progressismo um virulento anticapitalismo se tenham desenvolvido junto aos roteiristas mais bem pagos do mundo aqueles de Hollywood a caça às bruxas de McCarthy revelou que a Cidade dos Sonhos padronizada estava subterraneamente minada pela mais radical contestação Do mesmo modo na imprensa francesa no cinemo francês uma parte da inteligentsia acorrentada e bem remunerada nutria sua contestação no progressismo Contudo sob a própria pressão que ele sofre o autor espreme um suco que pode irrigar a obra Além disso a liberdade de jogo entre padronização e individualização lhe permite às vezes na medida de seus sucessos ditar suas condições A relação padronizaçãoinvenção nunca é estável nem parada ela se modifica a cada obra nova segundo relações de forças singulares e detalhadas Assim a nouvelle vague cinematográfica provocou um recuo real da padronização embora não se saiba até que ponto e por quanto tempo Enfim existe uma zona marginal e uma zona central da indústria cultural Os autores podem expressarse em filmes marginais feitos com um mínimo de despesas nos programas periféricos do rádio e de televisão nos jornais de público limitado Inversamente a padronização restringe a parte da invenção levandose em conta algumas grandes exceções no setor fechado da indústria cultural o setor ultraconcentrado o setor onde funciona a tendência ao consumo máximo 3 O Grande Público Mesmo fora da procura de lucro todo sistema industrial tende ao crescimento e toda produção de massa destinada ao consumo tem sua própria lógica que é a de máximo consumo A indústria cultural não escapa a essa lei Mais que isso nos seus setores os mais concentrados os mais dinâmicos ela tende ao público universal Revistas como Life ou ParisMatch grandes jornais ilustrados como o FranceSoir superproduções de Hollywood ou grandes coproduções cosmopolitas se dirigem efetivamente a todos e a ninguém às diferentes idades aos dois sexos às diversas classes da sociedade isto é ao conjunto de um público nacional e eventualmente ao público mundial A procura de um público variado implica a procura de variedade na informação ou no imaginário a procura de um grande público implica a procura de um denominador comum Um semanário como ParisMatch ou Life tende sistematicamente ao ecletismo num mesmo número há espiritualidade e erotismo religião esportes humor política jogos viagens exploração arte vida privada de vedetes ou princesas etc Os filmespadrão tendem igualmente a oferecer amor ação humor erotismo em doses variáveis misturam os conteúdos viris agressivos e femininos sentimentais os temas juvenis e os temas adultos A variedade no seio de um jornal de um filme de um programa de rádio visa a satisfazer todos os interesses e gostos de modo a obter o máximo de consumo Essa variedade é ao mesmo tempo uma variedade sistematizada homogeneizada a palavra é de Dwight Mac Donald segundo normas comuns O estilo simples claro direto do copydesk visa a tornar a mensagem transparente a conferirlhe uma inteligibilidade imediata O copydesk dá um estilo homogeneizado um estilo universal e essa universalidade oculta os mais diversos conteúdos De modo ainda mais profundo quando o diretor de um grande jornal ou produtor de um filme dizem meu público eles se referem a uma imagem de homem médio resultante de cifras de venda visão em si mesma homogeneizada Eles imputam gostos e desgostos a esse homem médio ideal este pode compreender que Van Gogh tenha sido um pintor amaldiçoado mas não que tenha sido homossexual pode consumir Cocteau ou Dali mas não Breton ou Péret A homogeneização visa a tornar euforicamente assimiláveis a um homem médio ideal os mais diferentes conteúdos Sincretismo é a palavra mais apta para traduzir a tendência a homogeneizar sob um denominador comum a diversidade dos conteúdos O cinema a partir do reinado da longa metragem tende ao sincretismo A maioria dos filmes sincretiza temas múltiplos no seio dos grandes gêneros assim num filme de aventura haverá amor e comicidade num filme de amor haverá aventura e comicidade e num filme cômico haverá amor e aventura Ao mesmo tempo porém uma linguagem homogeneizada ainda que uma infinidade de formas fossem possíveis exprime esses temas O rádio tende ao sincretismo variando a série de canções e programas mas o conjunto é homogeneizado no estilo da apresentação dita radiofônica A grande imprensa e a revista ilustrada tendem ao sincretismo se esforçando por satisfazer toda a gama de interesses mas por meio de uma retórica permanente O sincretismo tende a unificar numa certa medida os dois setores da cultura industrial o setor da informação e o setor do romanesco No setor da informação é muito procurado o sensacionalismo isto é essa faixa de real onde o inesperado o bizarro o homicídio o acidente a aventura irrompem na vida quotidiana e as vedetes que parecem viver abaixo da realidade quotidiana Tudo que na vida real se assemelha ao romanesco ou ao sonho é privilegiado Mais que isso a informação se reveste de elementos romanescos frequentemente inventados ou imaginados pelos jornalistas amores de vedetes e de princesas Inversamente no setor imaginário o realismo domina isto é as ações e intrigas romanescas que têm as aparências da realidade A cultura de massa é animada por esse duplo movimento do imaginário arremedando o real e do real pegando as cores do imaginário Essa dupla contaminação do real e do imaginário o filme A Princesa e o Plebeu assemelhase à realidade e os amores de Margaret assemelhamse ao filme esse prodigioso e supremo sincretismo se inscreve na busca do máximo de consumo e dão à cultura de massa um de seus caracteres fundamentais O novo público No começo do século XX as barreiras das classes sociais das idades do nível de educação delimitavam as zonas respectivas de cultura A imprensa de opinião se diferenciava grandemente da imprensa de informação a imprensa burguesa da imprensa popular a imprensa séria da imprensa fácil A literatura popular era solidamente estruturada segundo os modelos melodramáticos ou rocambolescos A literatura infantil era rosa ou verde romances para crianças quitetas ou para imaginações viajantes O cinema nascente era um espetáculo estrangeiro Essas barreiras não estão abolidas Novas estratificações foram formadas uma imprensa feminina e uma imprensa infantil se desenvolvem depois de cinquênta anos e criam para si públicos específicos Essas novas estratificações não devem mascarar o dinamismo fundamental da cultura de massa A partir da década dos 30 primeiramente nos Estados Unidos e depois nos países ocidentais emerge um novo tipo de imprensa de rádio de cinema cujo caráter próprio é o de se dirigir a todos Há na França o nascimento do ParisSoir diário dirigindose tanto aos cultos como aos incultos aos burgueses como aos populares aos homens como às mulheres aos jovens como aos adultos o ParisSoir tem em vista a universalidade e de fato a alcança Ele não abarca todos os leitores mas abrange leitores de todas as ordens de todas as categorias Depois há a transformação do Match de revista esportiva em revista para todos pai do atual ParisMatch que também busca a universalidade Paralelamente criase a RadioCité o ParisSoir radiofônico A RadioCité cria um novo pólo de atração um estilo dinâmico de variedades Nesse meio tempo o cinema passa do espetáculo estrangeiro a espetáculo de todos A guerra a ocupação esgotam a cultura de massa depois o movimento se recupera e hoje com a RádioLuxemburgo e Europa nº 1 com o FranceSoir ParisMatch Jours de France com os filmes de vedetes e as grandes produções podese constatar que o setor mais dinâmico mais concentrado da indústria cultural é ao mesmo tempo aquele que efetivamente criou e ganhou o grande público a massa isto é as camadas sociais as idades e os sexos diferentes Concotrentemente se desenvolvem a imprensa infantil e a imprensa feminina A grande cadeia internacional Opera Mundi cria na França a nova imprensa infantil com Tarzan e a nova imprensa feminina com Confidences Depois essas duas impressas conquistam para a cultura de massa o mundo infantil e o mundo feminino E vista mais de perto a imprensa feminina não se opõe à masculina A grande imprensa não é masculina ela é femininomasculina como veremos mais adiante A imprensa feminina se especializa maciçamente nos conteúdos femininos diluídos ou circunscritos na imprensa masculinofeminina A imprensa infantil literalmente criada pela indústria cultural e que floresce atualmente com Mickey Tintin Spirou os Flintstones se especializa nos conteúdos infantis que por aí na imprensa adulta estão diluídos os circunscritos página das crianças quadrinhos jogos Contudo ela é ao mesmo tempo uma preparação para a imprensa do mundo adulto A existência de uma imprensa infantil de massa é o sinal de que uma mesma estrutura industrial comanda a imprensa infantil e a imprensa adulta Esses sinais de diferenciação são portanto também elementos de comunicação Ao mesmo tempo o fosso que separa o mundo infantil do mundo dos adultos tende a desaparecer a grande imprensa para adultos está impregnada de conteúdos infantis principalmente a invasão das histórias em quadrinhos e multiplicou o emprego da imagem fotos e desenhos isto é de uma linguagem imediatamente inteligível e atraente para a criança ao mesmo tempo a imprensa infantil tornouse um instrumento de aprendizagem para a cultura de massa Podese considerar que quatorze anos é a idade de acesso à cultura de massa adulta é a idade em que já se vai ver filmes de todos os gêneros exceto evidentemente os censurados em que já se fica apaixonado pelas revistas em que já se escutam os mesmos programas de rádio ou de televisão que os adultos Podese dizer que a cultura de massa em seu setor infantil leva precocemente a criança ao alcance do setor adulto enquanto em seu setor adulto ela se coloca ao alcance da criança Esta cultura cria uma criança com caracteres préadultos ou um adulto acriança A resposta a essa pergunta não é necessariamente alternativa Horkhimer vai mais longe longe demais porém indica uma tendência O desenvolvimento deixou de existir A criança é adulto desde que sabe andar e o adulto fica em princípio estacionário Assim uma homogeneização da produção se prolonga em homogeneização do consumo que tende a atenuar as barreiras entre as idades Não há dúvida de que essa tendência ainda não realizou todas as suas potencialidades isto é ainda não atingiu seus limites Essa homogeneização das idades tende a se inxar numa nota dominante a dominante juvenil Esbocemos aqui uma observação que reencontraremos mais adiante a temática da juventude é um dos elementos fundamentais da nova cultura Não são apenas os jovens e os adultos jovens os grandes consumidores de jornais revistas discos programas de rádio a televisão como veremos é exceção mas os temas da cultura de massa inclusive a televisão são também temas jovens Embora a cultura de massa tenha desenvolvido uma imprensa feminina não desenvolveu salvo exceções isoladas uma imprensa específica masculina Algumas vezes a grande imprensa chega a ser mesmo mais feminina que masculina se se pensa no lugar dado aos temas sentimentais O cinema por sua vez conseguiu ultrapassar a alternativa que caracteriza a época do mundo entre filmes com características femininas ternas lacrimosas dolorosas e filmes com características viris violentas agressivas ele produz filmes sincretizados nos quais o conteúdo sentimental se mistura com o conteúdo violento Há portanto uma tendência ao mixage4 de conteúdos de interesses femininos e masculinos com uma ligeira dominante feminina no interior desse mixage e fora dele uma imprensa feminina especializada em economia doméstica moda e assuntos amorosos A cultura tradicional a cultura humanista se detinham nas fronteiras das classes o mundo camponês e operário mesmo quando entrou no circuito da cultura primária da alfabetização ficou à margem das humanidades o teatro era e continua a ser um privilégio de consumo burguês A cultura camponesa ainda permanecia folclórica nas primeiras décadas do século XX Da mesma maneira a cultura operária se achava fechada nos subúrbios industriais ou então era elaborada no interior dos sindicatos ou partidos socialistas Ora o cinema foi o primeiro a reunir em seus circuitos os espectadores de todas as classes sociais urbanas e mesmo camponesas Os inquéritos nos Estados Unidos Inglaterra e França nos indicam que a percentagem de freqüência para as classes sociais é aproximadamente a mesma Depois os espetáculos esportivos por sua vez drenaram um público saído de todas as camadas da sociedade A partir da década dos 30 o rádio irrigou rapidamente todo o campo social A televisão tomou impulso tanto nos lares populares quanto nos ricos Enfim a grande imprensa de informação no estilo FranceSoir as grandes revistas ilustradas no gênero ParisMatch se difundiram desigualmente é verdade mas incontestavelmente em todas as bancas As fronteiras culturais são abolidas no mercado comum das mass media Na verdade as estratificações são reconstituídas no interior da nova cultura Os cinemas de arte e os cinemas de circuito popular diferenciam o público cinematográfico Mas essa diferenciação não é exatamente a mesma das classes sociais Os programas e sucessos do cinema de arte nem sempre coincidem com os dos circuitos comuns mas muitas vezes são os mesmos Os ouvintes de rádio se diferenciam pela escolha das estações e dos programas e essa diferenciação de gostos é também uma diferenciação social parcial As revistas são difundidas muitas vezes segundo as estratificações sociais a FranceDimanche é mais popular Noir et Blanc menos popular que ParisMatch A ParisPresse é mais burguesa Le Monde mais intelectual que FranceSoir os artigos podem ser apreciados de maneira diferente pelo operário ou pelo burguês nos mesmos jornais mas ParisMatch FranceSoir permanecem os grandes veículos comuns a todas as classes Se alguém pensar que nos Estados Unidos e na Europa Ocidental as classes ou categorias sociais permanecem separadas no trabalho por relações de autoridade ou relações de vendedor a comprador separadas no habitat por quarteirões ou blocos isso ainda apesar das novas unidades de alojamento podese adiantar que a cultura industrial é o único grande terreno de comunicação entre as classes sociais o operário e o patrão cantarolarão Piaf ou Dalida terão visto o mesmo programa na TV terão seguido as mesmas séries desenhadas do FranceSoir terão quase no mesmo instante visto o mesmo filme E se alguém pensa nos lazeres comuns com temporadas de férias comuns para operários empregados quadros comerciantes permanece a diferença entre o lugarejo de barracas e as casas de campo já se pode perceber que a nova cultura se prolonga no sentido de uma homogeneização de costumes cusam a identificarse com os operários os operários permanecem com sua consciência de classe a fábrica continua sendo o gueto da civilização industrial Prestígios convenções hierarquias reivindicações diferenciam e dividem essa grande camada assalariada Mas o que a homogeneíza não é apenas o estatuto sarial seguros sociais aposentadorias às vezes seguros de desempregos é a identidade dos valores de consumo e são esses valores comuns que veiculam as mass media é essa unidade que caracteriza a cultura de massa Assim a uma nova camada salarial em vías de homogeneização essas duas tendências contraditórias se efetuando em diferentes níveis corresponde uma cultura ela mesma em vias de homogeneização e de heterogeneização Não quero dizer que as estratificações culturais correspondam às estratificações da nova camada quero assinalar uma correspondência sociológica mais vasta e global Esta cultura industrial seria pois em certo sentido a cultura cujo meio de desenvolvimento seria o novo salariado Alguns problemas podem ser colocados de imediato se bem que só mais adiante possamos examinálos a fundo Se é verdade que o novo salariado é caracterizado pela progressão dos colarinhos brancos isto é dos empregados em firmas de 1930 a 1950 o número dos white collars jobs passou de 30 para 37 nos Estados Unidos se é verdade que segundo Leo Bogart Os Estados Unidos são hoje em dia um país de classe média não apenas em sua renda mas em seus valores5 podese supor que a nova cultura corresponde igualmente à preponderância ou à progressão dos valores de classe média no seio do novo salariado com a condição evidentemente de não se pensar tanto nas antigas classes médias pequenos proprietários pequenos artesãos pequenos camponeses quanto com a confluência de valores pequenoburgueses nos valores do welfare moderno Em outras palavras a nova cultura se inscreve no complexo sociológico constituído pela economia capitalista a democratização do consumo a formação e o desenvolvimento do novo salariado a progressão de determinados valores Ela é quando consideramos as classes da sociedade quando consideramos os estatutos sociais no seio do novo salariado o lugarcomum o meio de comunicação entre esses diferentes estratos e as diferentes classes Em certos centros de férias como o clube Mediterranée já se podem encontrar operários empregados quadros técnicos fisicamente misturados e não mais apenas imagina riamente confundidos no isolamento do ouvinte de rádio da leitura do jornal ou da sala escura Podese também como Leo Bogart adiantar que o nivelamento das diferenças sociais faz parte da padronização dos gostos e interesses aos quais as mass media dão uma expressão e para a qual contribuem6 Abordamos aí ainda uma vez um problema de fundo Fiquemos porém no momento na verificação do caráter sincretizante e homogeneizante da cultura industrial Esse caráter se verifica enfim sobre o plano das nações A tendência homogeneizante é ao mesmo tempo uma tendência cosmopolita que tende a enfraquecer as diferenciações culturais nacionais em prol de uma cultura das grandes áreas transnacionais A cultura industrial no seu setor mais concentrado mais dinâmico já está organizada de modo internacional As grandes cadeias de imprensa como a Opera Mundi a cadeia Del Duca fornecem materiais que são adaptados para múltiplos idiomas principalmente no domínio dos comics e da imprensa amorosa O cinema de Hollywood visa não apenas ao público americano mas ao público mundial e há mais de 10 anos as agências especializadas eliminam os temas suscetíveis de chocarem as platéias européias asiáticas ou africanas Ao mesmo tempo se desenvolve um novo cinema estruturalmente cosmopolita o cinema de coprodução reunindo não apenas capitais mas vedetes autores técnicos de diversos países É o caso por exemplo de Barrage contre le Pacifique coprodução francoítaloamericana que foi rodada na Tailândia por um diretor francês baseado numa adaptação americana feita por Irving Shaw do romance francês de Marguerite Duras com vedetes italiana Silvana Mangano e americana Anthony Perkins Todo filme subtitulado já é cosmopolita Todo filme dublado é um estranho produto cosmopolitizado cuja língua foi retirada para ser substituída por outra Ele não obedece às leis da tradução como o livro mas às leis da hibridação industrial A cultura industrial adapta temas folclóricos locais transformandoos em temas cosmopolitas como o western o jazz os ritmos tropicais samba mambo chácháchá etc Pegando esse impulso cosmopolita ela favorece por um lado os sincretismos culturais filmes de coprodução transplantação para uma área de cultura de temas provenientes de uma outra área cultural e por outro lado os temas antropológicos isto é adaptados a um denominador comum de humanidade Esse cosmopolitismo se irradia a partir de um pólo de desenvolvimento que domina todos os outros os Estados Unidos Foi lá que nasceu a cultura de massa É lá que se encontra concentrado seu máximo de potência e energia mundializante A cultura industrial se desenvolve no plano do mercado mundial Dali sua formidável tendência ao sincretismoecletismo e à homogeneização seu fluxo imaginário lúdico estético atenta contra as barreiras locais étnicas sociais nacionais de idade sexo educação ela separa dos folclores e das tradições temas que ela universaliza ela inventa temas imediatamente universais Encontramos novamente o problema do denominador comum do homem ao mesmo tempo médio e universal esse modelo por um lado ideal e abstrato por outro sincrético e múltiplo da cultura de massa O homem médio Qual é esse homem universal É o homem puro e simples isto é o grau de humanidade comum a todos os homens Sim e não Sim no sentido em que se trata do homem imaginário que em toda a parte responde às imagens pela identificação ou projeção Sim se se trata do homemcriança que se encontra em todo homem curioso gostando do jogo do divertimento do mito do conto Sim se se trata do homem que em toda parte dispõe de um tronco comum de razão perceptiva de possibilidades de decifração de inteligência Nesse sentido o homem médio é uma espécie de anthropos universal A linguagem adaptada a esse anthropos é a audiovisual linguagem de quatro instrumentos imagem som musical palavra escrita Linguagem tanto mais acessível na medida em que é envolvimento politônico de todas as linguagens Linguagem enfim que se desenvolve tanto e mais sobre o tecido do imaginário e do jogo que sobre o tecido da vida prática Ora as fronteiras que separam os reinos imaginários são sempre fluidas diferentemente daquelas que separam os reinos da terra Um homem pode mais facilmente participar das lendas de uma outra civilização do que se adaptar à vida desta civilização Assim é sobre esses fundamentos antropológicos que se apoia a tendência da cultura de massa à universalidade Ela revela e desperta uma universalidade primeira Ao mesmo tempo porém ela cria uma nova universalidade a partir de elementos culturais particulares à civilização moderna e singularmente à civilização americana É por isso que o homem universal não é apenas o homem comum a todos os homens É o homem novo que desenvolve uma civilização nova que tende à universalidade A tendência à universalidade se funde portanto não apenas sobre o anthropos elementar mas sobre a corrente dominante da era planetária O consumo cultural Em certo sentido aplicamse as palavras de Marx a produção cria o consumidor A produção produz não só um objeto para o sujeito mas também um sujeito para o objeto De fato a produção cultural cria o público de massa o público universal Ao mesmo tempo porém ela redescobre o que estava subjacente um tronco humano comum ao público de massa Em outro sentido a produção cultural é determinada pelo próprio mercado Por esse traço igualmente ela se diferencia fundamentalmente das outras culturas estas utilizam também e cada vez mais as mass media impresso filme programas de rádio ou televisão mas tem um caráter normativo são impostas pedagógica ou autoritariamente na escola no catecismo na caserna sob forma de injunções ou proibições A cultura de massa no universo capitalista não é imposta pelas instituições sociais ela depende da indústria e do comércio ela é proposta Ela se sujeita aos tabus da religião do Estado etc mas não os cria ela propõe modelos mas não ordena nada Passa sempre pela mediação do produto vendável e por isso mesmo toma emprestadas certas características do produto vendável como a de se dobrar à lei do mercado da oferta e da procura Sua lei fundamental é a do mercado Dali sua relativa elasticidade A cultura de massa é o produto de um diálogo entre uma produção e um consumo Esse diálogo é desigual A priori é um diálogo entre um prolixo e um mudo A produção o jornal o filme o programa de rádio desenvolve as narrações as histórias expressase através de uma linguagem O consumidor o espectador não responde a não ser por sinais pavlovianos o sim ou o não o sucesso ou o fracasso O consumidor não fala Ele ouve ele vê ou se recusa a ouvir ou a ver Teoricamente só se pode concluir que haja uma concorrência infinitamente fraca 10 no máximo entre essa oferta e essa procura No entanto se nos colocamos do ponto de vista dos próprios mecanismos de consumo e do ponto de vista do tempo podemos considerar que ao longo dos anos os temas que desabrocham ou desfalecem evoluem ou se estabilizam no cinema na imprensa no rádio ou na televisão traduzem uma certa dialética da relação produçãoconsumo Não se pode colocar a alternativa simplista é a imprensa ou o cinema ou o rádio etc que faz o público ou é o público que faz a imprensa A cultura de massa é imposta do exterior ao público e lhe fabrica pseudonecessidades pseudointeresses ou reflete as necessidades do público É evidente que o verdadeiro problema é o da dialética entre o sistema de produção cultural e as necessidades culturais dos consumidores Essa dialética é muito complexa pois por um lado o que chamamos de público é uma resultante econômica abstrata da lei da oferta e da procura é o público médio ideal do qual falei e por outro lado os constrangimentos do Estado censura e as regras do sistema industrial capitalista pesam sobre o caráter mesmo desse diálogo A cultura de massa é portanto o produto de uma dialética produçãoconsumo no centro de uma dialética global que é a da sociedade em sua totalidade É que os efeitos sobre o público não estão em consequência e em relação direta com as intenções daquele que comunica nem com o conteúdo da comunicação As predisposições do leitor ou do ouvinte estão profundamente engajadas na situação e podem bloquear ou modificar o efeito esperado e até provocar um efeito boomerang B BERELSON Communications and Public Opinions in The Process and Effects of Mass Communication ref cit in Bibliografia pág 355 Autoseleção opinionleader efeito boomerang cf LAZARSFELD Tendences actuelles de la sociologie des communications et comportements du public de la radiotélévision américaine referência citada na Bibliografia pág 196 4 A Arte e a Média Recapituloemos agora do ponto de vista das consequências artísticas os dados focalizados até aqui De um lado um impulso em direção ao conformismo e o produto padrão de outro lado um impulso em direção à criação artística e à livre invenção No primeiro sentido há o Estado seja ele censor ou patrão Existe a estrutura técnicoburocrática que é sempre um fator de conformismo Existe a estrutura industrial que é sempre um fator de padronização Existe a economia capitalista que tende à procura do máximo de público com as consequências já examinadas homogeneização fabricação de uma cultura para a nova camada salarial O público mesmo tomado como uma massa anônima concebido sob o aspecto de um homem médio abstrato é um fator de conformismo Os fatores de conformismo agem portanto do cume até a base do sistema em todos os escalões Mas é igualmente em todos os escalões que encontramos os antídotos O Estado pode isentar a arte dos constrangimentos do lucro donde a possibilidade tanto de uma arte santuária como o Alexandre Newski de Eisenstein como de uma arte de pesquisa como os filmes de McLarren na National Film Board of Canada O capitalismo privado pode isentar a arte dos constrangimentos do Estado Por outro lado a criação pode utilizar todas as falhas do grande sistema estatal ou capitalistaindustrial todos os fracassos da grande máquina Podese dizer que no sistema capitalista o produtor cosmopolita o judeuzinho Pinia que ficou milhardário desempenha papel progressivo em relação ao administrador ao homem de negócios ao banqueiro normal As vezes ele corre riscos cuja importância sua falta de cultura não pode medir às vezes confia em empreendimentos insensatos cuja rentabilidade pensa pressentir Os cinemas americano e francês ainda não se burocratizaram inteiramente eles ainda se ressentem de suas origens e ainda têm alguma coisa do antigo sistema arriscado e improvisado sem ideologia e sem preconceitos conformistas Ainda há qualquer coisa de judeu no cinema isto é qualquer coisa de não conforme de não totalmente adaptado e integrado Em regra geral tudo que persiste do antigo setor selvagem e savana da sociedade industrial tudo que se mantém na concorrência favorece sempre alguma abertura original e inventiva Além disso as necessidades da nova camada salarial à qual se dirige a indústria cultural estão em plena fermentação concernem problemas fundamentais do homem em busca da felicidade Convocam então não apenas simples divertimentos mas conteúdos que colocam em xeque o ser humano profundo É portanto um sistema bem menos rígido que se apresenta à primeira vista está em certo sentido fundamentalmente dependente da invenção e da criação que estão todavia sob sua dependência as resistências as aspirações e a criatividade do grupo intelectual podem funcionar no interior do sistema A inteligentsia nem sempre é radicalmente vencida em sua luta pela expressão autêntica e pela liberdade de criação E é por isso que ao mesmo tempo que fabrica e padroniza o sistema também permite que o cinema seja uma arte No próprio seio da produção em série há jogos para adultos jornais de crianças canções da moda folhetins comics os Signé Furax e os SuperCrétin de la Terre ricos em fantasia humor ou poesia Enfim a indústria cultural não produz apenas clichês ou monstros A indústria de Estado e o capitalismo privado não esterilizam toda a criação Apenas no seu ponto extremo de rigidez política ou religiosa o sistema de Estado pode durante algum tempo talvez longo demais anular quase totalmente a expressão independente Entre o pólo de onirismo desenfreado e o pólo de papronização estereotipada se desenvolve uma grande corrente cultural média onde se atrofiam os impulsos mais inventivos mas onde se purificam os padrões mais grosseiros Há um enfraquecimento constante nos Estados Unidos na Inglaterra na França de jornais e revistas de baixo nível em benefício dos de nível médio Mediocridade no sentido mais exato da palavra isto é qualidade do que é médio e não tanto no sentido do termo tornado pejorativo As águas baixas sobem e as águas altas descem Você não notou que nossos jornalistas ficam sempre melhores e nossos poetas sempre piores põe na boca de Arnheim Robert Musil em LHomme sans Qualités Efetivamente os padrões se enchem de talento mas sufocam o gênio Um copydesk do ParisMatch escreve melhor que Henri Bordeaux mas não saberia ser André Breton A qualidade literária e sobretudo a qualidade técnica sobem na cultura industrializada qualidade redacional dos artigos qualidade das imagens cinematográficas qualidade das emissões radiofônicas mas os canais de irrigação seguem implacavelmente os grandes traçados do sistema Em todo lugar a qualidade Boussac substitui de uma só vez a antiga mercadoria ordinária e o velho artigo feito à mão Em todo lugar o nylon substitui os velhos tecidos de algodão e a seda natural O acabamento industrial explica essa subida e essa baixa qualitativa A subida qualitativa dos padrões não responde mais aos critérios aristocráticos de oposição da qualidade à quantidade ela nasce da própria quantidade Por exemplo a qualidade dos westerns provém também de sua quantidade isto é de uma longa tradição de produção em série Ao mesmo tempo o gênio tende a ser integrado na medida em que é curiosidade novidade esquisitice escândalo Cocteau e Picasso fazem parte da galeria das vedetes com Distel Margaret Bardot O gênio dá a marca alta cultura análoga à marca alta da cultura de massa A corrente média triunfa e nivela mistura e homogeneíza levando Van Gogh e Jean Nohain Favorece as estéticas médias as poesias médias os talentos médios as inteligências médias as bobagens médias É que a cultura de massa é média em sua inspiração e seu objetivo porque ela é a cultura do denominador comum entre as idades os sexos as classes os povos porque ela está ligada a seu meio natural de formação a sociedade na qual se desenvolve uma humanidade média de níveis de vida médios de tipo de vida médio Mas a corrente principal não é a única Ao mesmo tempo se constitui uma contracorrente na franja da indústria cultural Ainda que a corrente média tenha êxito em misturar o padrão e o individual a contracorrente se apresenta como o negativo da corrente dominante A corrente principal de Hollywood mostra o happy end a felicidade o êxito a contracorrente aquela que vai da Morte de um CaixeiroViajante a No Down Payment mostra o fracasso a loucura a degradação As redes negativas são ao mesmo tempo sempre secundárias e sempre presentes Assim nós vemos que a contradição fundamental é a seguinte o sistema tende a secretar continuamente seus próprios antídotos e tende continuamente a impedilos de agir essa contradição se neutraliza na corrente média que é ao mesmo tempo a corrente principal ela se afia na oposição entre a contracorrente negativa e a corrente principal mas a corrente negativa tende a ser repelida para a periferia E finalmente há a terceira corrente a corrente negra a corrente em que fermentam as perguntas e as contestações fundamentais que permanece fora da indústria cultural esta pode usurpar em parte adaptar a si tornar consumíveis publicamente certos aspectos digamos de Marx Nietzsche Rimbaud Freud Breton Péret Artaud mas a parte condenada o antipróton da cultura seu rádium ficam de fora Mas o quê O que existia antes da cultura de massa Hölderlin Novalis Rimbaud eram eles reconhecidos enquanto vivos O conformismo burguês a mediocridade arrogante não reinavam nas letras e nas artes Antes dos gerentes da grande empresa dos produtores de cinema dos burocratas do rádio não havia os acadêmicos as personalidades gabaritadas os salões literários A velha alta cultura tinha horror ao que revolucionava as idéias e as formas Os criadores se esgotavam sem impor sua 25 obra Não houve idade de ouro da cultura antes da cultura industrial E esta não anuncia a idade de ouro Em seu movimento ela traz mais possibilidades que a antiga cultura congelada mas em sua procura da qualidade média destrói essas possibilidades Sob outras formas a luta entre o conformismo e a criação o modelo congelado e a invenção continua 5 O Grande Cracking Os discos long playing e o rádio multiplicam Bach e Alban Berg Os livros de bolso multiplicam Malraux Camus Sartre As reproduções multiplicam Piero della Francesca Masaccio Cézanne ou Picasso Em outras palavras a cultura cultivada se democratiza pelo livro barato o disco a reprodução Há portanto uma zona onde a distinção entre a cultura e a cultura de massa se torna puramente formal A Condição Humana A Náusea ou A Peste entram na cultura de massa sem deixar contudo a cultura cultivada Essa democratização da cultura cultivada é efetivamente uma das correntes da cultura de massa mas como veremos mais adiante não é a corrente principal nem a corrente específica Por outro lado se essa democratização multiplicadora das obras anuncia talvez uma integração futura das duas correntes não atenta contra os privilégios da alta cultura Esta pelas obras mesmas onde se dá a democratização mantém um setor reservado no qual detém o monopólio da atualidade e do original Os livros de bolso só aparecem depois de transcorrido certo tempo em favor da primeira edição O disco não suprime a cerimônia que é o concerto A reprodução do quadro não reduz em nada o valor mitificado do original A alta cultura resiste à integração às vezes cultivando valores míticos como a assinatura do artista embaixo do seu quadro se bem que a reprodução no estágio de perfei 26 ção a que chegou possa anular o valor do original do mesmo modo que um protótipo automobilístico perde todo o valor a partir da fabricação em série Mas culturalmente a reprodução pelo contrário supervaloriza o original Isso significa que em certo sentido essa mitificação pode ser considerada como uma resistência à invasão conquistadora da cultura de massa Por sua vez a cultura industrial não faz senao multiplicarse pura e simplesmente freqüentemente transforma segundo suas próprias normas aquilo que vai buscar nas reservas de alta cultura Ao mesmo tempo que repugna à alta cultura desprestigiar seus valores a cultura industrial tende a integrar bem demais em seus moldes as formas e os conteúdos de que se apropria Há portanto ao lado da democratização propriamente dita multiplicação pura e simples uma vulgarização transformação tendo em vista a multiplicação um estudo de Chopin depois de tratamento adequado vira uma melodia de jukebox uma melodia de Beethoven vira um chácháchá cantado por Dalida o Vermelho e o Negro não é simplesmente traduzido da linguagem do romance para a linguagem do filme ele é adaptado para o grande público isto é vulgarizado O digest moderno diversamente do resumo que é um auxílio para a memorização substitui a obra lenta e densa pela condensação agradável e simplificadora Um exemplo de vulgarização ininterrupta esclarecerá esse propósito O Vermelho e o Negro de Stendhal se torna um filme adaptado aos padrões comerciais desse filme nasce O Vermelho e o Negro folhetim em quadrinhos publicado num diário Os processos elementares de vulgarização são simplificação modernização maniqueização atualização A simplificação foi estudada na tese de Leister Asheim From Book to Film cf Bibliografia Asheim fez uma análise comparativa de romances como O Morro dos Ventos Uivantes Os Miseráveis etc e de filmes tirados desses romances por Hollywood esquematização da intriga redução do número de personagens redução dos caracteres a uma psicologia clara eliminação do que poderia ser dificilmente inteligível para a massa dos espectadores para o spectador médio ideal Essa tendência simplificadora não provém da expressão cinematográfica em si mesma por serem diferentes os recursos artísticos do cinema não são menores que os do romance por serem subdesenvolvidos seus recursos intelectuais não são menos equivalentes mas da natureza presente da cultura de massa Além disso a mesma vulgarização funciona no sentido inverso do filme ao romance dele saído A tendência à simplificação muitas vezes está em pé de igualdade com a tendência ao maniqueísmo polarizase mais nitidamente que na obra original o antagonismo entre o bem e o mal acentuamse traços simpáticos e traços antipáticos a fim de aumentar a participação afetiva do espectador tanto no seu apego pelos heróis como na sua repulsa pelos maus A atualização introduz a psicologia e a dramatização moderna no seio de obra do passado Por exemplo os filmes sobre os mártires cristãos estarão centrados sobre uma história de amor entre uma bela cristã e um centurião romano o filme Theodora mostranosá o grande amor da imperatriz de Bizâncio o faraó egípcio beijará na boca sua bela esposa o amor moderno triunfará na antiguidade mais remota Mais radical que a atualização a modernização opera a transferência pura e simples da ação do passado para o tempo presente As Ligações Amorosas são transplantadas para 1960 Simplificação maniqueização atualização modernização concorrem para aclimatar as obras de alta cultura na cultura de massa Essa aclimatação por retiradas e acréscimos visa a tornálas facilmente consumíveis deixa mesmo que se introduzam nelas temas específicos da cultura de massa ausentes da obra original como por exemplo o happy end A capa ilustrada dos livros de bolso é apenas um chamariz de apresentação em que nada modifica a obra reproduzida A aclimatação cria híbridos culturais A inteligentsia humanista vê com bons olhos a democratização com horror a hibridação Ela se felicita por uma peça de Shakespeare poder ser vista em uma só representação televisada por um maior número de espectadores que em dois séculos de teatro mas a Société des Gens de Lettres não pode suportar que Laclos seja mani pulado por Vadim Ela aprova o long playing mas condena as vulgaridades para jukebox Contudo fidelidade e traição em relação à obra popularização e degradação da cultura se desenvolvem no interior de uma mesma corrente O prolongamento cultural o romance burguês Se tomamos um pouco de distância constatamos que a cultura de massa não está em ruptura radical com as culturas literárias anteriores Ela é herdeira de um movimento que começa com a tipografia A tipografia inaugura o que poderíamos chamar de páleocultura de massa no sentido de que ela atrai um lento movimento de democratização da cultura clássica grecolatinacristã e que ela sustenta a cultura burguesa O movimento secular de democratização da cultura escrita se efetua por etapas mas sob o signo de uma tripla correlação um progresso de burguesia corresponde à promoção do romance e à promoção da mulher É no século XVII que se afirma um duplo impulso romanesco do qual ainda não separamos bem a relação dialética uma espécie de dualidade cultural parece opor a literatura aristocrática a do romance quimérico como lAstrée à nova literatura burguesa realista e terraaterra como a que inaugura o Romance burguês de Puretière Através de Boileau e Molière que ridicularizam os romances de Mlle de Scudéry femmes savantes e précieuses ridicules é o burguês Crysale que reivindica orgulhosamente os direitos prosaicos do que já poderíamos quase chamar de realismo Os romances de amor aventurosos viagens no mapa da Ternura13 sem dúvida ancestrais da imprensa amorosa fogem pelo contrário da vida prosaica e burguesa Mas tratase af de duas respostas para o mesmo prosaísmo real Na verdade a cavalaria está bem morta e porque ela está morta é que sonhadores aristocratas e afetados burgueses empreendem sonhos romanescos nos quais desabrocha a grande mitologia do amor sublime A vida prosaica começa e chama por um lado os grandes sonhos compensadores de lAstrée por outro o novo realismo Desde o século XVI o Don Quixote de Cervantes colocava no segundo grau de ironia a contradição entre o sonho sublime e a realidade simples No século XVII o romance é esquartejado entre os dois pólos da quimera e do realismo mas logo esses dois pólos vão operar uma eletrólise de onde sairá o romance moderno Os temas de amor serão extraídos dos romances de cavalaria que se enfraquecerá para serem integrados no romance burguês que deixará de ser cínico e caricatural para ficar realista Dessa dupla transfusão que começa com La Princesse de Clèves no quadro aristocrático e que se ampliará até o quadro burguês nascerá o romance burguês moderno no século XIX romance de relações conflitos problemas entre os indivíduos no seio de sua sociedade onde o amor desempenha um papel essencial Albert Thibaudet pôs em destaque os progressos correlativos ao século XIX da burguesia da democracia da mulher do romance14 Um momentochave desse processo é Madame Bovary Em Madame Bovary a consumidora típica do romance a burguesa culta se torna a heroína típica do romance Emma se aborrece sonha com o amor não pode satisfazerse com a vida monótona de província É no romanesco que ela procura a saída e isto intervirá em sua vida de modo patético e irrisório ela viverá esse grande amor que ao mesmo tempo será uma paródia de amor mas essa paródia terá sido vivida amargamente a tal ponto que se transformará em tragédia e se resolverá na morte Pela primeira vez tão radicalmente desde Don Quixote mas dessa vez no plano feminino e burguês o processo de identificação que une o leitor a leitora ao herói a heroína do romance é impulsionado até a permutação a burguesa sonhadora se torna a heroína do romance enquanto a heroína do romance se tornou o sonhadora leitora burguesa Madame Bovary é o Don Quixote do romance burguês Don Quixote e Emma Bovary se matam a querer idealizar o mundo e se tornam as testemunhas nas quais se identificam um com o outro o que René Girard chama 57 de mentira romântica e verdade romanesca15 eles vivem essa vida híbrida semionírica semireal onde se dá o diálogo entre o romance moderno e seu leitor O delírio deles faz nascer uma nova tragédia a tragédia do mundo burguês onde o amor ideal se choca com o real sem poder transfiguralo Quixote permanece o amante platônico que não conhece a materialidade do amor Emma heroína mais prosaica de um mundo tornado mais prosaico pratica no adultério esse amor cuja essência finalmente lhe escapa No Don Quixote a dominante é masculina Em Madame Bovary a dominante se tornou feminina e o amor se tornou o tema identificativo essencial Assim a cultura literária burguesa encontra em Madame Bovary seu símbolo mais surpreendente Cultura romanesca cultura da pessoa particular cultura das necessidades da alma e das necessidades do amor cultura da projeção dos problemas humanos no universo imaginário mas cada vez mais fortemente de identificação entre o leito e seus heróis Como veremos mais adiante o bovarismo entendido nesse sentido de identificação entre o romanesco e o real será solidamente integrado na cultura de massa a partir de 1930 para se tornar um de seus temas fundamentais A corrente bovarizante que é de integrar o real no imaginário o imaginário no real se ramificará de maneira múltipla o eu do autor e o eu do herói poderseão confundir e finalmente o romancista procurará continuamente transformar o real na lembrança transformar a si mesmo por sua obra e na sua obra Os romances burgueses sob diversas formas se tornam os tu e eu tu leitor que sou eu autor eu autor que sou tu leitor tu personagem de romance que sou eu eu personagem de romance que sou tu um jogo de perseguição passos cruzados incessantes entre a vida e o conto O romance popular No século XIX a corrente mais significativa do romance burguês tende a criar uma relação bovarista entre a obra e o leitor sobretudo a leitora enquanto surge e se desenvolve o romance popular O imaginário popular o dos contos de serão narrações de saltimbancos da tradição oral se fixa na tipografia a partir do século XVIII São os romances de venda ambulante levados de casa em casa pelos mercadores errantes nos quais se encontram contos da fadas lendas narrações maravilhosas do folclore e nos quais se introduzem os temas beirando o fantástico do romance negro inglês Nesse imaginário popular o extraordinário é mais alimentado que o ordinário isto é as correntes de projeção dominam as correntes de identificação ao contrário do imaginário burguês que se funde no realismo isto é assegura uma identificação mais estreita entre o leitor e o herói No entanto o imaginário popular vai modificarse no folhetim de imprensa do século XIX O impulso do jornal determina o aparecimento de episódios do diaadia e multiplica a procura do romance O folhetim se torna um centro de osmose entre a corrente burguesa e a corrente popular a corrente popular pega personagens da vida quotidiana mas essas personagens estão empenhadas em aventuras rocambolescas onde às vezes até o fantástico irrompe Les Mémoires du Diable de Frédéric Soulié Le Juif Errant de Eugène Sue Uma parte do imaginário burguês se deixa arrebatar pela aventura rocambolesca romances de Balzac principalmente a Histoire des Treize a série dos Vautrin a Recherche de lAbsolu romances de Hugo como QuatreVingtTreize e sobretudo Les Misérables Essas duas correntes se misturam como se misturam na leitura do jornal os leitores busgueses e agora leitores populares onde dominam os leitores pequenoburgueses ainda mal libertados das raízes populares mas já semiencaixados na cultura burguesa O folhetim cria um gênero romanesco híbrido no qual se acham lado a lado gente do povo lojistas burgueses ricos aristocratas e príncipes onde a órfã é a filha ignorada do príncipe onde o mistério do nascimento opera estranhas permutas sociológicas onde a opulência se disfarça em miséria e onde a miséria chega a opulência a vida quotidiana é transformada pelo mistério as correntes subterrâneas do sonho 59 irrigam as grandes cidades prosaicas o rebuliço do desconhecido submerge as noites das capitais aventureiros desenfreados reinam sobre as sombras da cidade mendicantes e vagabundos Desse estranho casamento do realismo e do onirismo nascem admiráveis epopéias populistas essas obrasprimas hoje em dia desconhecidas que são os Mistères de Paris Le Juif Errant de Eugène Sue Les Mistères de Londres de Paul Féval Les Aventures de Rocambole de Ponson du Terrail sem falar nesses romances históricos que transformam a história como a Ilíada transformava a conquista de Tróia mas sem fazerem interditar os deuses a série dos Dumas o Corcunda de Notre Dame de Paul Féval Les Pardaillan de Michel Zévaco etc Diversamente da tendência burguesa que vai em direção do psicologismo os conflitos de sentimentos e de caracteres dramas ou comédias triangulares do esposo do amante e da mulher adúltera a corrente popular permanece fiel aos temas melodramáticos mistério do nascimento substituição de crianças padrastos e madrastas identidades falsas disfarces sósias gêmeos rechaços extraordinários falsas mortes perseguição da inocência herdeiros da mais antiga e universal tradição do imaginário a tragédia grega o drama elisabetano mas adaptada ao quadro urbano moderno No começo do século XX a diferenciação entre as duas correntes se precisa tanto mais que durante os trinta primeiros anos do século a corrente popular é que será integrada no cinema e no folhetim barato A cultura industrial nascente imprensa popular e cinema mudo não faz senão investir na corrente do imaginário popular Nenhuma ruptura portanto Os romancesfolhetins e os filmes folhetinescos se multiplicam sobre os mesmos modelos E efetivamente o público das primeiras décadas do cinema é o público popular o mesmo que o dos folhetins de grande tiragem Mas desde 1920 e sobretudo a partir de 1930 os temas do imaginário burguês se desenvolvem paixão entre uma mulher casada e um amante indivíduo que quer se afirmar em sua vida privada e que busca o sucesso atenuação ou desaparecimento dos caracteres melodramáticos da intriga em benefício do realismo Não é senão por volta de 19301936 que começa a se operar nos Estados Unidos a partir dessas duas correntes e com a contribuição de elementos novos um sincretismo que vai dar à cultura de massa suas características originais Porque desde então emergem os novos desenvolvimentos que modificam as condições de vida das classes populares os novos quadros da civilização técnica Assim os conteúdos da cultura de massa não foram fabricados artificialmente A cultura de massa em certo sentido o sentido indicado acima é a herdeira e a continuadora do movimento cultural das sociedades ocidentais Na cultura de massa vão confluir as duas correntes com as águas freqüentemente misturadas e no entanto fortemente diferenciadas logo que a industrialização da cultura aparece a corrente popular e a corrente burguesa a primeira dominando de início a segunda se desenvolvendo em seguida A cultura de massa integra esses conteúdos mas para logo desintegrálos e operar uma nova metamorfose Os conteúdos da cultura impressa do século XIX concorrem para a cultura de massa do século XX alimentamna e nela se metamorfoseiam progressivamente Sem querer no momento examinar essa metamorfose em si mesma é preciso contudo examinar às consequências culturais oriundas diretamente das inovações técnicas que condicionaram a nova cultura a rapidez das transmissões do jornal moderno a implantação das salas de cinema nas cidades e depois no campo e sobretudo a telecomunicação que operam rádio e televisão tornam a cultura de massa onipresente Ela está em toda parte para todos acompanha até o solitário que leva seu transistor à tiracolo Esse duplo caráter de extensão e de intensificação em relação à cultura impressa marca a etapa que separa uma industrialização evoluída e generalizada de uma industrialização primitiva e restrita Mas essa diferença quantitativa ao criar um mercado universal a possibilidade de atender a um público global a cada instante cria de um mesmo golpe as condições de uma diferenciação qualitativa Uma outra diferenciação qualitativa aparece com o cinema o rádio a televisão O impresso é um sinal abs 60 6 Uma Cultura de Lazer O consumo da cultura de massa se registra em grande parte no lazer moderno O lazer moderno não é apenas o acesso democrático a um tempo livre que era o privilégio das classes dominantes Ele saiu da própria organização do trabalho burocrático e industrial O tempo de trabalho enquadrado em horários fixos permanentes independentes das estações se retraiu sob o impulso do movimento sindical e segundo a lógica de uma economia que englobando lentamente os trabalhadores em seu mercado encontrase obrigada a lhes fornecer não mais apenas um tempo de repouso e de recuperação mas um tempo de consumo A semana de trabalho passa de 70 horas em 1860 para 37 horas em 1960 nos Estados Unidos de 8085 horas para 4548 horas na França muitas vezes um dia suplementar de lazer é acrescentado ao domingo Nesse sentido o lazer é um tempo ganho sobre o trabalho Mas é um tempo que se diferencia do tempo das festas característico do antigo modo de vida As festas distribuídas ao longo do ano eram simultaneamente o tempo das comunhões coletivas dos ritos sagrados das cerimônias da retirada dos tabus das pândegas e dos festins O tempo das festas foi corroído pela organização moderna e a nova repartição das zonas de tempo livre fimdesemana férias Ao mesmo tempo o folclore das festas se enfraqueceu em benefício do novo emprego do tempo livre A ampliação a estabilização a quotidianização do novo tempo livre se efetuam simultaneamente em detrimento do trabalho e da festa Essa zona de tempo livre não foi recuperada pela vida familiar tradicional nem pelas relações trato a imagem impressa é imóvel O filme a televisão o rádio reproduzem diretamente a vida em seu movimento real Podemos portanto prolongar aqui uma proposição antecedente a cultura impressa se integra na cultura industrial não para nela se destruir mas para nela se metamorfosear Essa metamorfose se dá a partir do caráter novo trazido pelo poder de intensificação e de extensão ilimitada das mass media e mais largamente pela nova civilização que criou essa extensão e essa intensificação a civilização técnica e que ao mesmo tempo é criada por essa extensão e essa intensificação Ela se dá igualmente a partir do caráter novo das técnicas que trazem o movimento real a presença viva Os folclores as culturas do hic e do nunc Pelo movimento real e a presença viva a cultura de massa reencontra um caráter da cultura préimpressa folclórica ou ainda arcaica a presença visível dos seres e das coisas a presença permanente do mundo invisível Os cantos danças jogos ritmos do rádio da televisão do cinema ressuscitam o universo das festas danças jogos ritmos dos velhos folclores Os doubles da tela e do vídeo as vozes radiofônicas são um pouco como esses espíritos fantasmas gênios que perseguiam permanentemente o homem arcaico e se reencarnavam em suas festas A presença viva humana a expressão viva dos gestos mímicas vozes a participação coletiva são reintroduzidas na cultura industrial ainda que fossem escorraçadas pela cultura impressa Mas em revanche a cultura de massa quebra a unidade da cultura arcaica na qual num mesmo lugar todos participavam ao mesmo tempo como atores e espectadores da festa do rito da cerimônia Ela separa fisicamente espectadores e atores O espectador só participa fisicamente do espetáculo televisado do filme do programa de rádio e mesmo nos grandes espetáculos esportivos se ele está presente fisicamente não joga Do mesmo modo a festa momento supremo da cultura folclórica na qual todos participam do jogo e do rito tende a desaparecer em benefício do espetáculo Ao homem da festa sucede o que chamamos público audiência expectadores O elo imediato e concreto se torna uma teleparticipação mental Enfim a cultura arcaica separa os dias de festa da vida quotidiana Diversamente da festa arcaica que quebra o fio dos dias ela se inscreve no fio dos dias e de um golpe acaba com a festa para substituíla pelo lazer As mass media se restabelecem a relação humana que destrói o impresso tendem a quebrar a estrutura mesma das relações humanas da cultura folclórica A presença humana na televisão ou nos filmes é ao mesmo tempo uma ausência humana a presença física do espectador é ao mesmo tempo uma passividade física Essa nova estruturação das relações humanas se inscreve na nova estruturação cultural que já preparava a cultura do impresso e que efetua a cultura industrial A cultura folclórica era uma cultura do hic e do nunc As festas e os usos locais eram enraizadas em um terreiro e situadas em um calendário aniversários festas sagradas ou profanas Cultura local de aldeia cultura regional de província ela dispunha de sua linguagem patuá dialeto de seus próprios meios de expressão danças ritos e jogos de suas lendas do culto de seu passado das regras de seu presente A cultura urbana popular e sobretudo operária do século XIX e do começo do século XX conserva certos traços da cultura folclórica É verdade que ela não tem mais raízes num passado local profundo mas ela tem suas girias os espetáculos ambulantes que nela se detêm são de um velho folclore urbano circos saltimbancos feiras de amostras E sobretudo é uma cultura da proximidade das relações de vizinhança de parentesco e de solidariedade Ela tem seus centros culturais locais a taverna o bistrô o pub onde os jogos são interindividuais jogos de cartas ou de gamão Certamente essas culturas folclóricas rurais e sobretudo urbanas estão há muito tempo revestidas de estados culturais mais amplos alguns nacionais outros internacionais a cultura cristã os esboços de cultura socialista Elas já estão em via de enfraquecimento Mas é a cultura industrial que desagrega definitivamente as culturas do hic e do nunc Ela tende ao público indeterminado Não possui raízes mas uma implantação técnicoburocrática Conquista os subúrbios e os campos dando caça aos velhos folclores aos jogos de São João aos ritos locais às crenças e superstições com uma rapidez que se acelera A velha festa patronal das aldeias muda de conteúdo as antigas danças os antigos jogos desaparecem para dar lugar ao baile às canções de moda corridas de ciclistas à gincanas e outros jogos popularizados pelas mass media O gosto o odor o aroma dos terreiros se dissipam O produto cultural a conservação cultural se propagam Destruição radical Antes desintegração acompanhada de novas integrações Certos temas folclóricos são absorvidos pela cultura de massa e com ou sem modificações são universalizados O folclore do Oeste americano dá origem ao western que se torna um tema do novo folclore planetário A arte do circo londrino dá origem à slapstick comedy que com os Mac Sennett Ben Turpin O Gordo e o Magro Harry Langdon Carlitos fornecem ao cinema as fontes profundas de sua comicidade O folclore infantil dos animais antropomorfos triunfa no desenho animado Os velhos jogos e concursos se metamorfoseiam em jogos e concursos irradiados e televisados O folclore negro de Nova Orleans ele mesmo nascido do encontro de correntes indígenas e exógenas remonta a Chicago depois difunde pelo mundo graças às mass media O tango o acordeão dos bairros de Buenos Aires é dançado à luz coada de todos os bailes da Europa Assim também de Cuba da Bahia os ritmos tropicais enxamearam nas orquestras dos cinco continentes Logo a cultura industrial não fabrica seus produtos ex nihilo Como a indústria da conserva alimentar ela escolhe dentre as colheitas do local Mas ela pode transformar esses produtos naturais alterálos mais ou menos profundamente em função do consumo universal paralelamente à difusão do flamengo andaluz há a produção em massa de espanholadas fabricadas em Paris e Nova York a par de sambas autóctones difundidos no mundo há a fabricação pseudobrasileira das festas do algodão e colheita do café Paralelamente ao ritmo de Nova Orleans houve os jazz de Jack Milton e Ray Ventura eclipsados por sua vez pelo retorno em massa das formações menos ecléticas porém evolutivas Um verdadeiro cracking analítico transforma os produtos naturais em produtos culturais homogenizados para o consumo maciço Em outras palavras certos temas folclóricos privilegiados são mais ou menos desintegrados a fim de serem mais ou menos integrados no novo grande sincretismo O hic não foi abolido tornouse relativo O nunc se torna um novo nunc cosmopolitizado o da voga da moda do sucesso do dia do eterno presente Mas o que é talvez mais notável é que desintegrando os folclores a cultura industrial não desintegra o arcaísmo Os ritmos primitivos pelo contrário os que vieram da África através do jazz e os ritmos tropicais se impõem ao seio da civilização dos arranhacéus o símbolo primitivo revive nos cartazes publicitários as batalhas elementares de homens lutas selvagens jogos guerreiros estão presentes em todas as telas do mundo a música está pelo menos tão presente na civilização das mass media nos lares nos filmes nas praias nos carros quanto podiam estar os cantos e os ritmos da civilização arcaica Há uma espécie de neoarcaísmo Esse neoarcaísmo se explica em função das determinações que mencionei no capítulo precedente procurando o público universal a cultura da massa se dirige também ao anthropos comum ao tronco mental universal que é em parte o homem arcaico que cada um traz em si mesmo É esse denominador comum arcaico que chama o neoarcaísmo dos filmes dos jogos da música A essas determinações é preciso acrescentar uma outra a cultura industrial se dirige também ao homem novo das sociedades evoluídas mas esse homem do trabalho parcelar e burocratizado enclausurado no meio técnico na maquinaria monótona das grandes cidades sente necessidades de evasão e sua evasão procura tanto a selva a savana a floresta virgem quanto os ritmos e as presenças da cultura arcaica A reação contra um universo abstrato quantificado objetivado se dá por um retorno às fontes primeiras da afetividade Assim a cultura industrial nega de modo dialético a cultura do impresso e a cultura folclórica desintegraas integrandoas integra o impresso e seus conteúdos mas para metamorfoseálos desintegra os folclores mas para com eles universalizar certos temas Acrescentemos ela sincretiza em si os temas e estruturas da cultura impressa e os da cultura folclóricaarcaica Faz comunicar essas duas correntes até então justapostas derramando ambas no grande curso novo Esse curso novo é em certa medida a resultante desse sincretismo Contudo é mais ainda É o que examinaremos mais adiante sociais costumeiras Segundo uma evolução paralela a unidade complexa da grande familia se reduz ao núcleo formado pelo casal e as crianças As preocupações de investimento familiar economia transmissão de uma herança diminuem o peso dos trabalhos domésticos fica aliviado a atração do lar é moderada cada um dos membros da família adquire uma autonomia interna E a cultura de massa se estende à zona abandonada pelo trabalho pela festa e pela famíiia O novo tempo livre conquistado sobre a necessidade se enche de conteúdos que abandonam o trabalho a família e a festa Os conteúdos humanos do trabalho se atrofiam a integração dos antigos trabalhadores autônomos artesãos comerciantes no seio do salariado atenua o apego quase biológico mantido em relação às atividades laboriosas O trabalho em migalhas descrito por Georges Friedmann no seio dos grandes conjuntos industriais ou burocráticos foi esvaziado de responsabilidade e de criatividade pelo O S16 operário especializado em máquina ou o empregado de escritório que preenche formulários Desde então a personalidade negada no trabalho tenta se reencontrar fora da zona estéril efetuamos durante o lazer trabalhos pelos quais nos sentimos individualmente interessados e responsáveis mesmo inventivos como o bricolage17 ou então desenvolvemos talentos pessoais hobbies ou idéias fixas ou ainda mitificamos numa mania de colecionador a necessidade irreprimível de fazer alguma coisa por nós mesmos Mas sobretudo os lazeres abrem os horizontes do bemestar do consumo e de uma nova vida privada A fabricação em série a venda a crédito abrem as portas para os bens industriais para a limpeza do lar com aparelhos eletrodomésticos para os finsdesemana motorizados É então possível começar a participar da civilização do bemestar e essa participação embrionária no consumo significa que o lazer não é mais apenas o vazio do repouso e da recuperação física e nervoa não é mais a participação coletiva na festa não é tanto a participação nas atividades familiares produtivas ou acumulativas é também progressivamente a possibilidade de ter uma vida consumidora O consumo dos produtos se torna ao mesmo tempo o autoconsumo da vida individual Cada um tende não mais a sobreviver na luta contra a necessidade não mais a se enroscar no lar familiar não inversamente a consumir sua vida na exaltação mas a consumir sua própria existência As massas têm acesso no quadro de um lazer determinado pelos desenvolvimentos técnicos aos níveis de individualidade já atingidos pelas classes médias O lazer moderno surge portanto como o tecido mesmo da vida pessoal o centro onde o homem procura se afirmar enquanto indivíduo privado É essencialmente esse lazer que diz respeito à cultura de massa ela ignora os problemas do trabalho ela se interessa muito mais pelo bemestar do lar do que pela coesão familiar ela se mantém à parte se bem que possam pesar sobre ela dos problemas políticos ou religiosos Dirigese às necessidades da vida do lazer às necessidades da vida privada ao consumo e ao bemestar por um lado ao amor e à felicidade por outro lado O lazer é o jardim dos novos alimentos terrestres A cultura de massa pode assim ser considerada como uma gigantesca ética do lazer Vamos dizer de outro modo a ética do lazer que desabrocha em detrimento da ética do trabalho e ao lado de outras éticas vacilantes toma corpo e se estrutura na cultura de massa Esta não faz outra coisa senão mobilizar o lazer através dos espetáculos das competições da televisão do rádio da leitura de jornais e revistas ela orienta a busca da saúde individual durante o lazer e ainda mais ela acultura o lazer que se torna o estilo de vida O lazer não é apenas o pano de fundo no qual entram os conteúdos essenciais da vida e onde a aspiração à felicidade individual se torna exigência Ele é por si mesmo ética cultural O lazer não é apenas o quadro dos valores privados ele é também um acabamento em si mesmo E mais particularmente o divertimento se torna um acabamento enquanto tal Muitos moralistas que se crëem Pascal e não são mais que Duhamel não puderam compreender a natureza desse 69 divertimento moderno Para dizer a verdade bem que existe algo do divertimento pascaliano a leitura dos fatos diversos a hipnose do vídeo o fimdesemana motorizado as férias turísticas matamos o tempo fugimos da angústia ou da solidão estamos em outro lugar Não há dúvida de que mesmo com o jornal o rádio a televisão o lar nunca foi tanto um outro lugar Mas o que também existe nos espetáculos esportivos nos jogos radiofônicos e televisados nas saídas e nas partidas nas férias é um retorno maciço às fontes infantis do jogo Jogo e espetáculo mobilizam uma parte do lazer moderno Nada disso é absolutamente novo pois os espetáculos assim como os jogos de azar ou de competição sempre estiveram presentes nas festas e nos lazeres antigos O que constitui novidade é a extensão televisionária ou teleauditiva do espetáculo abrindose até os horizontes cósmicos são os progressos de uma concepção lúdica da vida O espectador olha Também é espectador o leitor do jornal e da revista As novas técnicas criam um tipo de espectador puro isto é destacado fisicamente do espetáculo reduzido ao estado passivo e voyeur Tudo se desenrola diante de seus olhos mas ele não pode tocar aderir corporalmente àquilo que contempla Em compensação o olho do espectador está em toda parte no camarim de Brigitte Bardot como no foguete espacial de Titov A cultura de massa mantém e amplifica esse voyeurismo fornecendolhe além disso mexericos confidências revelações sobre a vida das celebridades O espectador tipicamente moderno é aquele que se devota à televisão isto é aquele que sempre vê tudo em plano aproximado como na teleobjetiva mas ao mesmo tempo numa impalpável distância mesmo o que está mais próximo está infinitamente distante da imagem sempre presente é verdade nunca materializada Ele participa do espetáculo mas sua participação é sempre pelo intermédio do corifeu mediador jornalista locutor fotógrafo cameraman vedete herói imaginário Mais amplamente um sistema de espelhos e de vidros telas de cinema vídeos de televisão janelas envidraçadas dos apartamentos modernos plexiglas dos carros Pullman postigos de avião sempre alguma coisa de translúcido transparente ou refletidor nos separa da realidade física Essa membrana invisível nos isola e ao mesmo tempo nos permite ver melhor e sonhar melhor isto é também participar Com efeito através da transparência de uma tela da impalpabilidade de uma imagem uma participação por olho e por espírito nos abre o infinito do cosmos real e das galáxias imaginárias Assim participamos dos mundos à altura da mão mas fora do alcance da mão Assim o espetáculo moderno é ao mesmo tempo a maior presença e a maior ausência É insuficiência passividade errância televisual e ao mesmo tempo participação na multiplicidade do real e do imaginário No limite extremo o homem televisual seria um ser abstrato num universo abstrato por um lado a substância ativa do mundo parcialmente se evapora uma vez que sua materialidade se evaporou por outro lado e simultaneamente o espírito do espectador se evade e erra fantasma invisível por entre as imagens Nesse sentido poderíamos adiantar que as telecomunicações digam elas respeito ao real ou ao imaginário empobrecem as comunicações concretas do homem com seu meio É revelador o exemplo banal da televisão que empobrece as comunicações familiares no decorrer da refeição E finalmente não é apenas a comunicação com o outro é nossa própria presença perante nós mesmos que se diluiria em virtude de ser sempre mobilizada para outro lugar Poderseia aplicar à televisão as palavras de Machado Sonhei sem dormir talvez até mesmo sem acordar Contudo nas participações televisuais certos sucos penetram através da membrana do vídeo da tela da foto que vão nutrir as comunicações vividas As trocas afetivas se efetuam nas conversações onde se fala dos filmes das estrelas dos programas de fatos variados nós nos expressamos e conhecemos o outro evocando aquilo em que nós projetamos Por outro lado o homem do lazer não é apenas o homem televisual é também o homem da vida privada A força centrípeta do individualismo funciona ao mesmo tempo que a força centrífuga das teleparticipações e com exceção de casos marginais anciãos doentes psi 71 cóticos essa força centrípeta vai estimular a afirmação de si na vida real É o que ocorre em relação aos jovens ativistas da massculture estudada por Lazarsfeld E como ainda veremos uma das correntes essenciais da teleparticipação induz à vida pessoal Não saberíamos ainda aqui diagnosticar a triste vitória do anônimo sobre o pessoal do abstrato sobre o concreto do imaginário sobre o real Enfim os sucos que penetram através das membranas televisuais purgam e irrigam simultaneamente a personalidade e a própria vida do homem moderno Existe implicitamente em todo espetáculo de teatro cinema televisão uma componente lúdica aliás difícil de isolar Ela emerge nos espetáculos esportivos nos jogos radiofônicos e televisados Está mais ou menos misturada com preocupações utilitárias nos bricolages com preocupações eróticoamigáveis nas festinhas e com preocupações higiênicas nos esportes Ela se desempenha com grande nitidez nos hobbies saídas passeios divertimentos Um dos aspectos do divertimento moderno é esse desabrochar do jogo enquanto atividade cujo fim se encontra no prazer que com ele se sente e em nenhum outro lugar Montherlant Assim simultaneamente com o espetáculo a cultura do lazer desenvolve o jogo Dualidade ao mesmo tempo antagonista uma vez que o espetáculo é passivo o jogo ativo e complementar que não apenas se registra no lazer mas também o estrutura em parte Efetivamente uma parte do lazer tem tendência a tomar a forma de um grande jogoespetáculo Essa tendência se exprime de modo particularmente significativo nas férias modernas na medida em que elas representam o tempo realmente vivo realmente vivido em contraposição ao tempo escleroso e exangue do ano de trabalho Essas férias não são apenas entreatos recuperadores no seio da natureza sono repouso caminhada mas também dos prazeres e dos jogos seja por meio do exercício de atividades ancestralmente vitais pesca caça colheita reencontrado por forma lúdica seja pela participação nos novos jogos esportes de praia esqui a quático pesca submarina A vida de férias se torna uma grande brincadeira brincase de ser camponês montanhês pescador lenhador de lutar correr nadar Paralelamente o turismo se torna uma grande viagemespetáculo ao interior de um universo de paisagens monumentos museus O turista só se interessa pelo universo dos guides bleus e foge da vida real quotidiana salvo nos casos em que esta é classificada como pitoresca isto é volta a ser digna da imagem Ele leva sua máquina fotográfica a tiracolo e dentro em pouco está mais preocupado em registrar que em ver Nessa deturpação imaginante em primeiro grau ver para se lembrar e em segundo grau fotografar para ver suas lembranças o turismo moderno apresenta analogias surpreendentes com o cinema Ele é sucessão precipitada de imagens voyeurismo ininterrupto O parentesco turismocinema se afirma nas viagens coletivas em ônibus panorâmicos os espectadores enfiados em suas poltronas olham através do plexiglas membrana da mesma natureza que o vídeo de televisão a tela de cinema a foto do jornal e a grande janela envidraçada do apartamento moderno janela cada vez mais cinematoscópica sobre o mundo e ao mesmo tempo fronteira invisível Contudo a diferença entre o cinema e o turismo é essencial senão seria suficiente ver no cinema o Coliseu o Alcaçar ou a Acrópole para se evitar a viagem O turista não é apenas um espectador em movimento Ele não se beneficia apenas sobretudo quando circula de automóvel de uma volúpia particular que vem da consumação do espaço devorar os quilômetros Ele se comunica pessoalmente com a região visitada por algumas palavras elementares e saudações cerimoniosas trocadas com os indígenas por coitos psiquicamente encarados pelo olhar ou efetivamente realizados com a espécie do sexo oposto Por algumas compras de objetos simbólicos tidos como souvenirs Torre de Pisa em miniatura cinzeiros figurativos e outras bugigangas no gênero ele se apropria magicamente da Espanha ou da Itália Enfim ele consome o ser físico do país visitado na refeição gastronômica rito cosmófago cada vez mais divulgado depois das férias efetuamos ritos de reminiscência exibição de fotografias narrações pitorescas às vezes em torno de uma refeição a chianti onde reencontramos um pouco da 73 cação Na estética em compensação a reificação nunca é acabada Entre a criação romanesca de um lado e a evocação dos espíritos por um feiticeiro ou um médium de outro lado os processos mentais são até um certo grau análogos O romancista se projeta em seus heróis como um espírito vodu que habita seus personagens e inversamente escreve sob seu ditado como um médium possuído pelos espíritos as personagens que invocou A criação literária é um fenômeno meiomediúnico meiozar para retomar a expressão etiopiana que corresponde a uma espécie de simulação sincera a meiocaminho entre o espetáculo o jogo e a magia de onde nasce um sistema ectoplasmático projetado e objetivado em universo imaginário pelo romancista Esse universo imaginário adquire vida para o leitor se este é por sua vez possuído e médium isto é se ele se projeta e se identifica com os personagens em situação se ele vive neles e se eles vivem nele Há um desdobramento do leitor ou espectador sobre os personagens uma interiorização dos personagens dentro do leitor ou espectador simultâneas e complementares segundo transferências incessantes e variáveis Essas transferências psíquicas que asseguram a participação estética nos universos imaginários são ao mesmo tempo inframágicas eles não chegam aos fenômenos propriamente mágicos e supramágicos eles correspondem a um estágio no qual a magia está superada É sobre eles que se inserem as participações e as considerações artísticas que concernem ao estilo da obra sua originalidade sua autenticidade sua beleza etc Em outras palavras eu não defino a estética como a qualidade própria das obras de arte mas como um tipo de relação humana muito mais ampla e fundamental Assim feita de modo estético a troca entre o real e o imaginário é se bem que degradada ou ainda que sublimada ou demasiado sutil a mesma troca que entre o homem e o além o homem e os espíritos ou os deuses que se fazia por intermédio do feiticeiro ou do culto A degradação ou o supremo requinte é precisamente essa passagem do mágico ou do religioso para a estética No decorrer da evolução a poesia se afastou da magia encantamento e invocação a literatura se afastou da mitologia desde alguns séculos a música a escultura a pintura se afastaram por completo da religião a finalidade cultural ou ritual das obras do passado se atrofiou ou desapareceu progressivamente para deixar emergir uma finalidade propriamente estética assim nós removemos estátuas e quadros dos templos para museus removendo de um só golpe as significações das anunciações e das crucificações O mundo imaginário não é mais apenas consumido sob forma de ritos de cultos de mitos religiosos de festas sagradas nas quais os espíritos se encarnam mas também sob forma de espetáculos de relações estéticas As vezes até as significações imaginárias desaparecem assim as danças modernas ressuscitam as danças arcaicas de possessão mas os espíritos não estão nelas Todo um setor das trocas entre o real e o imaginário nas sociedades modernas se efetua no modo estético através das artes dos espetáculos dos romances das obras ditas de imaginação A cultura de massa é sem dúvida a primeira cultura da história mundial a ser também plenamente estética Isso significa que apesar de seus mitos e seus engodos religiosos como o culto das estrelas de cinema é uma cultura fundamentalmente profana veremos mais adiante que é finalmente importante considerar que apesar de fundamentalmente estética e profana ela secreta uma mitologia Isso significa também que a cultura de massa põe a tônica sobre o usufruto individual presente não existe na relação estética uma dádiva em si aos deuses ao mundo a valores transcendentais a dupla consciência estética é uma consciência irônica se podemos modificar um pouco o sentido hegeliano desse termo ora nessa consciência irônica deixo desaparecer o que há de mais elevado não usufruo senão de mim mesmo Philosophie du Droit 140 Isso significa enfim que desabrochando tardiamente na história a relação estética restitui uma relação quase primária com o mundo essa relação embora reprimida desde a infância arcaica da humanidade pelas duras necessidades práticas e embora encoberta pelas reificaçöes mágicas se traduz pelo encantamento do jogo do canto da dança da poesia da imagem da fábula 79 36 Itália à paella onde reencontramos um pouco da Espanha à bouillabaisse onde reencontramos um pouco de sol O turista pode dizer eu eu vi eu comi eu estive lá eu fiz 5000 quilômetros e é essa evidência física indiscutível esse sentimento de estar lá em movimento em jogo que valoriza o turismo em relação ao espetáculo Em relação ao espectador o turista está percorre eu percorri a Espanha e adquire souvenirs Há na visitação turística a introdução simultaneamente de um suplemento de ser e de um quantum de ter A autoampliação física é ao mesmo tempo uma apropriação certamente semimágica experimentada como uma exaltação um enriquecimento de si O sentido complexo do lazer moderno aparece claramente nos lugarejos de férias como Palinuro Clube Mediterranée estudado por Henry Raymond18 Ai a organização das férias é racionalizada planificada quase cronometrada Chegase a esse milagre a produção burocrática do estado de natureza por meio de bilhetes coletivos guias aldeias de tenda Tudo está previsto comodidades festas distrações etapas ritos emoções alegrias A técnica moderna recria um universo taitiano e lhe acrescenta o conforto dos bujões de gás duchas transistores Essa organização cria uma espantosa sociedade temporária inteiramente fundada no jogoespetáculo passeios excursões esportes náuticos festas bailes Essa vida de jogoespetáculo é ao mesmo tempo a acentuação de uma vida privada onde se travam de modo mais intenso que na vida quotidiana relações amizades flertes amores É feita à imagem da vida cinematográfica das férias que conduzem os olímpicos a Miami Taiti Palinuro é um microcosmo vivido da cultura de massa Nele se distinguem dois grupos de um lado os olimpianos ativos que tomam os aperitivos no bar dançam com destreza praticam os esportes aquáticos flertam seduzem e de outro lado aqueles que são antes espectadores menos ativos e que contemplam os olimpianos Mas em Palinuro o fosso que separa as duas classes é bem menos profundo bem mais estreito do que o que separa as celebridades e vedetes do comum dos mortais em Palinuro os contatos são fáceis a passagem para o Olimpo é possível Assim de modo fragmentário temporário o Olimpo da cultura de massa toma forma e figura no que Raymond chama com muita propriedade uma utopia concreta Isto significa igualmente que o ideal da cultura do lazer sua obscura finalidade é a vida dos olimpianos modernos heróis do espetáculo do jogo e do esporte Esses heróis da cultura de massa foram promovidos a vedete em detrimento das antigas celebridades comparando os artigos consagrados em 1904 e em 1941 às personalidades eminentes no Saturday Evening Post Léo Lowenthal19 constata que os animadores dentre os quais emergiram astros de cinema e campeões esportivos aumentaram em 50 em detrimento dos homens de negócios ou políticos A imprensa o rádio a televisão nos informam sem cessar sobre sua vida privada verídica ou fictícia Eles vivem de amores de festivais de viagens Sua existência está livre da necessidade Ela se efetua no prazer e no jogo Sua personalidade desabrocha sobre a dupla face do sonho e do imaginário Até mesmo seu trabalho é uma espécie de grande divertimento votado à glorificação de sua própria imagem ao culto de seu próprio double duplo Esses olimpianos propõem o modelo ideal da vida de lazer sua suprema aspiração Vivem segundo a ética da felicidade e do prazer do jogo e do espetáculo Essa exaltação simultânea da vida privada do espetáculo do jogo é aquela mesma do lazer e aquela mesma da cultura de massa Assim se esboçam as correlações complexas entre o lazer a cultura de massa os valores privados o jogoespetáculo as férias os olimpianos modernos Acrescentemos aqui a promoção do jogoespetáculo caminha lado a lado com a decadência das significações do trabalho com a atual crise dos grandes sistemas de valor o Estado a religião a família O complexo jogoespetáculo se afirma em uma civilização onde se pulverizam as grandes Transcendências que não chegam mais a controlar senão 74 75 37 em parte a vida dos indivíduos Da vacância dos grandes valores nasce o valor das grandes vacances20 Aliás nada disso é estranho ao niilismo contemporâneo que não é apenas negócio de filósofos literatos ou beatniks mas é historicamente vivido senão em toda parte e por todo mundo nas sociedades ocidentais pelo menos em todos os níveis da existência como experiência do declínio ou da morte das grandes Transcendências das significações exteriores e superiores a uma vida mortal Nesse sentido o tecido do individualismo moderno é de fato niilista21 a partir do momento em que nada vem justificar o indivíduo senão sua própria felicidade Nesse niilismo e além desse niilismo nós presenciamos um impulso no sentido da readesão às infraestruturas lúdicas da vida O lazer jogoespetáculo o lazer afirmação da vida privada se tornam conjuntamente orientação e sentido da existência Os aspectos negativos de divertimento de evasão de passividade impressionaram sobretudo os moralistas dessa confederação helvética do espírito que são as letras e a universidade No entanto é preciso também indicar que através do lazer moderno toda uma fração de humanidade de modo obscuro e grosseiro adere a uma espécie de jogo onde não se sabe quem joga e o que é jogado encara o problema do destino singular e pessoal isto é encara sem o saber mas concreta e experimentalmente os problemas colocados no século passado por Steiner Marx e Nietzsche É o esboço informe de uma busca no sentido de assumir a condição humana 20 O autor jogou com as palavras vacance vacância vaga e vacances férias N T 21 O extraordinário desenvolvimento do humor na cultura de massa o humor substituindo a sátira nas páginas humorísticas o humor absurdo se impondo na comicidade cinematográfica os irmãos Marx Helzapopin Tashlin os desenhos animados Bosustow ou Tex Avery testemunham o progresso desse niilismo e de seus antídotos o jogo o divertimento 7 Os Campos Estéticos Produzida industrialmente distribuída no mercado de consumo registrandose principalmente no lazer moderno a cultura de massa se apresenta sob diversas formas informações jogos por exemplo mas particularmente sob a forma de espetáculo É através dos espetáculos que seus conteúdos imaginários se manifestam Em outras palavras é por meio do estético que se estabelece a relação de consumo imaginário A participação estética se diferencia das participações práticas técnicas religiosas etc se bem que possa se justapor a elas um automóvel pode ser ao mesmo tempo bonito e útil podese admirar uma estátua e venerála Ela desabrocha plenamente além das participações práticas Existe na relação estética uma participação ao mesmo tempo intensa e desligada uma dupla consciência O leitor de romance ou o espectador de filme entra num universo imaginário que de fato passa a ter vida para ele mas ao mesmo tempo por maior que seja a participação ele sabe que lê um romance que vê um filme A relação estética reaplica os mesmos processos psicológicos da obra na magia ou na religião onde o imaginário é percebido como tão real até mesmo mais real do que o real Mas por outro lado a relação estética destrói o fundamento da crença porque o imaginário permanece conhecido como imaginário Por outras palavras magia e religião reificam literalmente o imaginário deuses ritos cultos templos túmulos catedrais os mais sólidos e os mais duráveis de todos os monumentos humanos testemunham essa grandiosa reifi 76 77 E nós reencontramos aqui contraditoriamente associados na participação primária como na ironia estética evoluída os dois níveis do homem que prospeta a cultura de massa o do anthropos universal e o do individualismo em vias de universalização da civilização moderna Parentes das participações projeçõesidentificações mágicas e religiosas por seu caráter muitas vezes imaginário as participações estéticas são parentes por seu caráter profano das participações afetivas que comandam nossas relações vividas com o outro afeições amores ódios etc como com as grandes potências da vida nação pátria família partido etc Mas também aí a ausência de implicação prática física ou vital imediata diferencia a relação estética Por certo as projeçõesidentificações dizem respeito a todas as esferas do interesse humano por certo não há verdadeiras fronteiras entre as três ordens prática mágicoreligiosa estética e suas relações são fluídas Mas destacase uma esfera estética principalmente no imaginário Convém agora encarar a significação e o papel do imaginário na relação estética O imaginário é o além multiforme e multidimensional de nossas vidas no qual se banham igualmente nossas vidas É o infinito jorro virtual que acompanha o que é atual isto é singular limitado e finito no tempo e no espaço É a estrutura antagonista e complementar daquilo que chamamos real e sem a qual sem dúvida não haveria o real para o homem ou antes não haveria realidade humana O imaginário começa na imagemreflexo que ele dota de um poder fantasma a mágica do sósia e se dilata até aos sonhos mais loucos desdobrando ao infinito as galáxias mentais Dá uma fisionomia não apenas a nossos desejos nossas aspirações nossas necessidades mas também as nossas angústias e temores Liberta não apenas nossos sonhos de realização e felicidade mas também nossos monstros interiores que violam os tabus e a lei trazem a destruição a loucura ou o horror Não só delineia o possível e o realizável mas cria mundos impossíveis e fantásticos Pode ser tímido ou audacioso seja mal decolando do real mal ousando transpor as primeiras censuras seja se atirando à embriaguez dos instintos e do sonho As grandes mitologias contêm de maneira misturada as diferentes virtualidades e os diferentes níveis do imaginário Mas cada grande mitologia possui suas próprias estruturas e cada cultura orienta relações próprias entre os homens e o imaginário Uma cultura afinal de contas constitui uma espécie de sistema neurovegetativo que irriga segundo seus entrelaçamentos a vida real de imaginário e o imaginário de vida real Essa irrigação se efetua segundo o duplo movimento de projeção e de identificação O imaginário é um sistema projetivo que se constitui em universo espectral e que permite a projeção e a identificação mágica religiosa ou estética Na relação mágica ou religiosa a comunicação imaginária ecoa profundamente sobre a vida o imaginário dita suas ordens Na relação estética ao contrário pode parecer que a vida esteja colocada entre parênteses Mas mesmo que só haja colocação entre parênteses esta apenas porque procura evasão ou divertimento pode desempenhar um papel consolador ou regulador na vida seja orientando as pressões interiores em direção às vias de escapamento imaginárias seja permitindo as semisatisfações psíquicas análogas em certo sentido à satisfação onanista na qual o amor é feito com fantasmas assim por exemplo as innumeráveis agressões cinematográficas podem aliviar em parte as necessidades agressivas impossibilitadas de serem satisfeitas na vida Há sempre uma certa libertação psíquica em tudo o que é projeção isto é expulsão para fora de si daquilo que fermenta no interior obscuro de si Dentre todas as projeções possíveis a mais significativa é a que toma um caráter de exorcismo desde que fixa o mal o terror a fatalidade sobre as personagens em questão finalmente votadas a uma morte quase de sacrifício Isso é a tragédia A morte trágica de um herói integra na relação estética e de maneira evidentemente atenuada as virtudes de um dos mais arcaicos e universais ritos mágicos o sacrifício O sacrifício não é apenas uma oferenda agradável aos espíritos e aos deuses é também um apelo às próprias fontes da vida segundo a magia de morterenascimento é enfim dentro de certas condições a transferência psíquica das forças de mal de infelicidade e de morte para uma 81 vítima expiatória como no bode expiatório do rito judeu substituto aliás de um sacrifício humano primitivo que exorciza o rito operatório da morte O sacrifício de um ser inocente e puro cordeiro místico do cristianismo jovem virgem da tragédia grega é assim dotado das maiores virtudes purificadoras E é exatamente esse mecanismo purificador catarse que Aristóteles descobre no coração da tragédia Édipo não faz senão atrair para si a carga incestuosa difundida na atmosfera coletiva oculta no segredo de cada um seu terrível castigo apazigua a cólera dos deuses isto é a angústia dos humanos Do mesmo modo os innumeráveis heróis vítimas da fatalidade trágica os inocentes perseguidos do melodrama fixam e exorcizam de modo por certo bem menos eficaz que o do verdadeiro sacrifício o mal o pecado e a morte As potências de projeção isto é também as de divertimento de evasão de compensação de expulsão até mesmo de transferência quase sacrificial se propagam por todos os horizontes do imaginário Elas tecem os enfáticos universos da epopeia da magia do fantástico Atiramse nos alhures do tempo e do espaço regiões exóticas ou passados fabulosos Mergulham no submundo do crime e da morte Divertemse nos universos idealizados onde tudo é mais intenso mais forte melhor No meio de todas essas projeções funciona uma certa identificação o leitor ou o espectador ao mesmo tempo em que libera fora dele virtualidades psíquicas fixandoas sobre os heróis em questão identificase com personagens que no entanto lhe são estranhas e se sente vivendo experiências que contudo não pratica Diferentes fatores favorecem a identificação o ótimo da identificação se estabelece num certo equilíbrio de realismo e de idealização é preciso haver condições de verossimilhança e de veridicidade que assegurem a comunicação com a realidade vivida que as personagens participem por algum lado da humanidade quotidiana mas é preciso também que o imaginário se eleve alguns degraus acima da vida quotidiana que as personagens vivam com mais intensidade mais amor mais riqueza afetiva do que o comum dos mortais É preciso também que as situações imaginárias correspondam a interesses profundos que os problemas tratados digam respeito intimamente a necessidades e aspirações dos leitores ou espectadores é preciso enfim que os heróis sejam dotados de qualidades eminentemente simpáticas Atingindo esse ótimo as personagens suscitam apego amor ternura já se tornam não tanto os oficiais de um mistério sagrado como na tragédia mas uns alter ego idealizados do leitor ou espectador que realizam do melhor modo possível o que este sente em si de possível Mais do que isso esses heróis de romance ou de cinema podem vir a ser exemplos modelos a identificação bovarysta suscita um desejo de imitação que pode desembocar na vida determinar mimetismos de detalhes imitação dos penteados vestimentas maquiagens mímicas etc dos heróis de filmes ou orientar condutas essenciais como a busca do amor e da felicidade Num determinado optimum identificativo da projeçãoidentificação portanto o imaginário secreta mitos diretores que podem constituir verdadeiros modelos de cultura Inversamente há um ótimo projetivo de evasão como da purificação isto é da expulsãotransferência das angústias fantasmas temores como das necessidades insatisfeitas e aspirações proibidas Há igualmente as pessima se assim podemos dizer nas quais a relação realimaginário mantém uma espécie de tensão angustiante bloqueada entre o sonho e a vida o desejo de imitação pode ser intenso sem poder realizase e determinar uma neurose que volta incansavelmente a se fixar sobre o imaginário insaciavelmente insatisfeita a projeção pode ser a tal ponto fascinante que ocasiona uma espécie de conversão hipnótica da vida que se sonambuliza e cuja seiva toda se escoa no consumo imaginário Esses optima e esses pessima variam não só em função dos temas romaneses mas também dos leitores e espectadores idade sexo condição classe social nacionalidade psicologia individual etc A dialética da projeçãoidentificação se abre sobre possibilidades infinitamente variáveis e divergentes Recorrerrei abstratamente a um duplo exemplo tomemos um filme A cujo herói é um rico e simpático personagem um filme B cujo herói é um miserável e simpático personagem como Carlitos O espectador rico e o especta83 dor pobre poderão comprazarse nesses dois filmes e achar igualmente simpáticos ambos os heróis No entanto na vida real há grandes probabilidades de que o espectador rico se desvie com nojo de um vagabundo de que o espectador pobre considere com ressentimento o milhardário Projeção e identificação modificaram a relação social O espectador pobre e o espectador rico puderam sair da própria pele projeção para o rico no caso do filme B para o pobre no caso do filme A As relações B rico A pobre aliviarão talvez por algum tempo as necessidades de fuga tanto de um quanto de outro No que concerne à identificação suponhamos agora que o espectador rico seja seduzido pelas atitudes e os modos de vida do herói do filme A ele poderá em seguida consciente ou inconscientemente servir o mesmo coquetel que o herói do filme beber como ele o seu drink fazer a corte a uma bela mulher como ele e adotar a mesma marca de carro ou o mesmo estilo de móveis Suponhamos que o pobre seduzido pelo vagabundo do filme B decida levar a vida com despreocupação ele reagirá no dia seguinte com relação a seu contramestre por brincadeira assim como seu herói Suponhamos agora que o espectador rico sonhe em abandonar tudo para assemelharse ao despreocupado vagabundo mas sem coragem de mudar de vida ele entreterá seu sonho impotente nos filmes inversamente o espectador pobre poderia entreter um sonho impotente de riqueza Esses dois filmes alimentarão fantasmas obsessionais O rico e o pobre poderão ser substituídos pelo Americano e o Russo o Negro e o Branco o homem do século XVIII e o homem do século XX Entre esses homens de classes sociais de condições de raças de épocas diferentes um campo comum imaginário é possível e de fato há campos imaginários comuns Eles são comuns isto é neles as relações de projeçãoidentificação podem ser multiformes Numa mesma obra eles podem efetuarse em nível mágico em nível religioso em nível estético a Bíblia assim como as estátuas da catedral de Reims provocam nos descrentes projeçõesidentificações estetizadas A mitologia grega manteve mais de dois milênios projeçõesidentificações estéticas sempre renovadas Uma peça romântica como o Chatterton de Alfred de Vigny foi percebida identificativamente pelos jovens poetas e alguns encontraram aí uma incitação ao suicídio enquanto os burgueses vulgares percebiamna projetivamente O campo comum imaginário permite conceber que uma obra procedente de condições psicológicas sociológicas e históricas determinadas possa ter uma irradiação fora de seu meio e de sua época É o paradoxo da universalidade das obrasprimas As obras de arte universais são aquelas que detêm originalmente ou que acumulam em si possibilidades infinitas de projeçãoidentificação Assim uma obra de arte escapa à sua própria sociologia mas ao mesmo tempo remete à sociologia A obra de Homero sai da Grécia arcaica não do céu das essências estéticas mas para reencarnarse metamorfosearse através dos séculos e das civilizações inscrevendose nos campos comuns imaginários A cultura de massa desenvolve seus campos comuns imaginários no espaço a tendência ao máximo de público levaa a se adaptar às classes sociais às idades às nações diferentes Mas isso não impede que ela expresse correntes sociais predominantes na civilização ocidental Para compreender sua especialidade é preciso considerar ao mesmo tempo seus temas seu enraizamento histórico e sociológico e sua difusão Múltiplas diligências incessante dialética do social ao imaginário mas que nos permite esclarecer melhor um e outro um pelo outro Tratase também de saber hic et nunc em que medida a cultura de massa procura divertimento e evasão compensação expulsão purificação catarse em que medida ela mantém fantasmas obsessionais em que medida ela fornece modelos de vida dando forma e realce às necessidades que aspiram a se realizar Isto é em que medida a estética invalida e informa a vida prática 85 SEGUNDA PARTE UMA MITOLOGIA MODERNA A cultura de massa se desenvolveu em suas características originais a partir da década dos 30 primeiramente nos Estados Unidos Ela constitui para si uma temática coerente depois da Segunda Guerra Mundial no conjunto dos países ocidentais A hipótese global que se segue deve ser inevitavelmente colocada essa temática corresponde aos desenvolvimentos da sociedade americana em primeiro lugar e das sociedades ocidentais em seguida Esses desenvolvimentos são bem conhecidos as massas populares urbanas e de uma parte dos campos têm acesso a novos padrões de vida entram progressivamente no universo do bemestar do lazer do consumo que era até então o das classes burguesas As transformações quantitativas elevação do poder aquisitivo substituição crescente do trabalho da máquina pelo esforço humano aumento do tempo de lazer operam uma lenta metamorfose qualitativa os problemas da vida individual privada os problemas da realização de uma vida pessoal se colocam de hoje em diante com insistência não mais apenas no nível das classes burguesas mas da nova camada salarial em desenvolvimento O trabalho assalariado no interior dos gigantescos conjuntos burocráticos e industriais é nos escalões de execução privado de criatividade de autonomia e de responsabilidade Com a crescente mecanização o trabalho é menos penoso do ponto de vista físico mas com a crescente especialização ele se esvazia de toda e qualquer substância pessoal É o trabalho em migalhas do operário de fábrica o trabalho abstrato do escriturário As relativas seguranças adquiridas no trabalho contratos coletivos seguros sociais garantias funcionariadas aposentadorias o desenvolvimento do lazer tendendo a diminuir a intensidade afetiva das preocupações ligadas à vida de trabalho A seiva da vida encontra novas irrigações fora do trabalho as vivências vão se refugiar no lazer e vão acentuar o movimento geral no sentido da vida privada 89 Assim a modificação das condições de vida sob o efeito das técnicas a elevação das possibilidades de consumo a promoção da vida privada correspondem a um novo grau de individualização da existência humana A cultura de massa se constitui em função das necessidades individuais que emergem Ela vai fornecer à vida privada as imagens e os modelos que dão forma a suas aspirações Algumas dessas aspirações não podem se satisfazer nas grandes cidades civilizadas burocratizadas nesse caso a cultura resgata uma evasão por procuração em direção a um universo onde reinam a aventura o movimento a ação sem freio a liberdade não a liberdade no sentido político do termo mas a liberdade no sentido individual afetivo íntimo da realização das necessidades ou instintos inibidos ou proibidos Mas sobre um outro plano as imagens se aproximam do real ideais tornamse modelos que incitam a uma certa práxis Um gigantesco impulso do imaginário em direção ao real tende a propor mitos de autorealização heróis modelos uma ideologia e receitas práticas para a vida privada Se considerarmos que de hoje em diante o homem das sociedades ocidentais orienta cada vez mais suas preocupações para o bemestar e o standing por um lado o amor e a felicidade por outro lado a cultura de massa fornece os mitos condutores das aspirações privadas da coletividade Como disse Leo Bogart em The Age of Television pág 7 as mass media divulgaram a consciência popular do que constitui uma boa vida Produzindo essa boa vida familiar elas a fizeram parecer possível tanto quanto desejável para as grandes massas E é porque a cultura de massa se torna o grande fornecedor dos mitos condutores do lazer da felicidade do amor que nós podemos compreender o movimento que a impulsiona não só do real para o imaginário mas também do imaginário para o real Ela não é só evasão ela é ao mesmo tempo e contraditoriamente integração 8 Simpatia e Happy End A partir da década dos 30 delineiamse nitidamente as linhas de força que orientam o imaginário em direção ao realismo e que estimulam a identificação do espectador ou leitor como herói A imprensa amorosa introduzida na França por Confidences 1937 integra nos quadros realistas os temas sentimentais dos romances de Delly e Max du Veuzit Ela conserva certamente um importante setor melodramático com mansões órfãos tristes e tenebrosos e os cineromances desenvolvem um imaginário projetivo com luxuosos Cadillacs e herdeiras ricas Mas uma quantidade dessas narrações se inscrevem nos quadros realistas e além disso Confidences apresenta seus contos como se fossem histórias vividas permitindo a confusão do imaginário com o real No próprio domínio da imprensa infantil esse grande reino dos sonhos projetivos os cavaleiros lendários assumem a condição de aviadores arrojados as antigas narrações fabulosas e se filtra em parte na nova epopeia de antecipação o onirismo se mistura intimamente com a técnica além disso os fermentos de identificação estão em ação Tintin é um superboy realista que fixa sobre si a identificação do leitor de 10 anos esse antiGrand Meaulnes não dirige os sonhos da infância para paraísos verdes para os segredos esquizofrênicos da fantasia interior pelo contrário conduz o sonho para o seio do universo realista da aventura policial científica exótica com esse único viático da pequena infância ingênua o amigo cão que fala Mas é no cinema primeiramente o americano ocidental a seguir que por volta de 19301940 se dá a evolução ver 90 91 dadeiramente radical e significativa As intrigas se registram dentro de quadros plausíveis O cenário confere as aparências da realidade O ator se torna cada vez mais natural até aparecer não mais como um monstro sagrado executando um rito mas como um sósia exaltado do espectador ao qual este está ligado por semelhanças e simultaneamente por uma simpatia profunda O herói simpático tão diferente do herói trágico ou do herói lastimável e que desabrocha em detrimento deles é o herói ligado identificativamente ao espectador Ele pode ser admirado lastimado mas deve ser sempre amado É amado porque é amável e amante Esse herói amávelamanteamado se mete na pele dos heróis de filmes estando aí incluído também o herói cômico este não é apenas palhaço isto é grotesco também ele se torna simpático também ele se beneficiará do happy end A partir da década dos 30 estabelecese cada vez mais solidamente uma correlação entre a corrente realista o herói simpático e o happy end O happy end é a felicidade dos heróis simpáticos adquirida de modo quase providencial depois das provas que normalmente deveriam conduzir a um fracasso ou uma saída trágica A contradição que fundamenta toda e qualquer atividade dramática a luta contra a fatalidade o conflito com a natureza a cidade o outro ou consigo mesmo ao invés de se solucionar como na tragédia quer com a morte do herói quer com uma longa prova ou expiação se resolve com o happy end A introdução em massa do happy end limita o universo da tragédia ao interior do imaginário contemporâneo Ela rompe com uma tradição milenar proveniente da tragédia grega que prossegue com o teatro espanhol do Século de Ouro o drama elizabetano a tragédia clássica francesa o romance de Balzac Stendhal Zola Daudet o melodrama o romance naturalista e o romance popular de Eugène Sue a Ponson du Terrail enfim o cinema melodramático da época muda O happy end rompe com uma tradição não só ocidental mas universal que aliás ainda se mantém em parte nos filmes latinoamericanos e em maior escala nos filmes indianos e egípcios Na universal e milenar tradição o herói redentor ou mártir ou ainda redentor e mártir fica sobre si às vezes até a morte a infelicidade e o sofrimento Ele expia as faltas do outro o pecado original de sua família e apazigua com seu sacrifício a maldição ou a cólera do destino A grande tradição precisa não só de castigo dos maus mas do sacrifício dos inocentes dos puros dos generosos O sacrifício é a morte ou uma longa vida de provações Nesse último caso pode haver aí quer apaziguamento ou reconciliação Édipo quer reparação final o pequeno Rémi de Sans Famile O Conde de Monte Cristo O Corcunda de Notre Dame No filme de happy end se o herói é vítima do mal padece até a tortura moral ou física as provações são de curta duração dificilmente elas acompanham toda uma vida como no caso de Jean Valjean ou toda uma infância como em As Duas Órfãs O herói que supera os riscos parece terse tornado invulnerável à morte O filme termina com uma espécie de eterna primavera onde o amor algumas vezes acompanhado pelo dinheiro o poder ou a glória brilhará para todo sempre O happy end não é reparação ou apaziguamento mas irrupção da felicidade Há vários graus no happy end desde a felicidade total amor dinheiro prestígio até à esperança da felicidade onde o casal parte corajosamente pela estrada ao encontro da vida Raros e marginais são os filmes que acabam com a morte ou pior ainda pois a morte sempre tem virtudes tônicas com o fracasso do herói Uma revolução no reino do imaginário se dá com a irrupção em massa do happy end A idéia de felicidade veremos mais adiante se torna o núcleo afetivo do novo imaginário Correlativamente o happy end implica um apego intensificado de identificação com o herói Ao mesmo tempo em que os heróis se aproximam da humanidade quotidiana que nela imergem que se impõem seus problemas psicológicos são cada vez menos oficiantes de um mistério sagrado para se tornarem os alter ego do espectador O elo sentimental e pessoal que se estabelece entre espectador e herói é tal no novo clima de simpatia de realismo e de psicologismo que o espectador não suporta mais que seu alter ego seja imolado Pelo contrário ele espera o sucesso o êxito a prova de que a felicidade é possível Assim paradoxalmente é na medida em que o filme se aproxima da vida real que ele acaba na visão mais irreal mais mítica a satisfação dos desejos a felicidade eternizada Assim é que num certo sentido o happy end introduz o fim providencial dos contos de fadas no realismo moderno mas concentrado num momento de êxito ou finalização O velho conto terminava com a continuidade pacifica de eles foram felizes e tiveram muitos filhos O happy end eterniza um beijo que exalta um fortíssimo musical Aniquila passado e futuro no absoluto do instante supremo A cultura de massa no happy end oferece um novo modo estéticorealista que substitui a salvação religiosa na qual o homem por procuração realiza sua aspiração na eternidade O happy end se desenvolveu paralelamente no romance popular moderno romance policial romance de aventura na imprensa amorosa onde todas as novelas acabam bem e enfim na corrente maior do cinema ao passo que persiste no andar inferior da cultura de massa um setor melodramático e épico e no andar superior um setor trágico A força constrangedora do happy end se manifesta de maneira reveladora na adaptação de obras romanescas para o cinema A pressão do happy end é tão forte que chega ao ponto de metamorfosear o fim dos romances quando no entanto a adaptação deveria proteger o tabu do respeito à obra de arte É claro que não se ousa modificar o desfecho de obrasprimas do passado como Anna Karenina ou os Irmãos Karamazov se bem que as últimas imagens do filme de Richard Brooks insistam fortemente na esperança de fuga de Dimitri e Grouchenka Mas modificase o fim de romances contemporâneos consagrados como A Ponte do Rio Kwai de Pierre Boulle Os Deuses Vencidos de Irwin Shaw Un Barrage contre le Pacifique de Marguerite Duras O romance de Pierre Boulle acaba com um fracasso Por culpa do coronel inglês a ponte construída sobre o rio Kwai não explode Só o trem japonês fica danificado Pierre Boulle que fez a adaptação de seu livro para a tela batalhou longamente para que fosse aceito seu próprio fim Mas os produtores foram intratáveis A ponte deveria ir pelos ares O heroísmo do pequeno comando britânicoamericano não podia ser em vão A morte da maior parte dos personagens simpáticos do filme tinha que ser compensada recompensada pela destruição da ponte o coronel inglês devia mesmo se remir inconscientemente caindo sobre o detonador Pierre Boulle teve que se curvar conservando apenas em parte o sentido final de seu romance no último plano em que o médico militar britânico com o rosto desvairado grita por duas vezes como no final de um drama shakesperiano madness madness antes que a câmara suba do vale para o céu elevando o sacrifício dos heróis numa espécie de oferenda cósmica O final de Os Deuses Vencidos The Young Lions foi totalmente modificado Coisa estranha mas corrente não foi Irwin Shaw embora roteirista de grande reputação em Hollywood que adaptou seu próprio romance para a tela mas sim Edward Anhalt No final do romance os dois GIs amigos Michael e Noah Ackermann estão na Floresta Negra nos últimos dias da derrota nazista Eles superaram todos os perigos A guerra vai terminar Por seu lado Christian o herói alemão também sobreviveu Ele surpreende Michael e Noah Pela força do hábito mata Noah Michael o abaterá O livro acaba da seguinte maneira O americano estava em pé dominavao com toda sua estatura Christian sorri Bemvindo à Alemanha diz ele em bom inglês Ele olhou o americano erguer o fuzil e apertar o gatilho O filme substitui esse fim por um happy end Só o alemão é morto e a última imagem nos mostra Noah já desmobilizado de volta a Nova Iorque saindo de uma abertura de metrô Ele olha para a janela de seu apartamento e vê sua mulher que o aguarda com seu bebê nos braços Sorriso radiante No crescendo de uma música alegre a palavra End embrulha a felicidade deles numa eternidade de celofane Irwin Shaw adaptador do romance de Marguerite Duras para a tela submeteu Un Barrage contre le Pacifique ao mesmo tratamento infligido a seu próprio romance nas mãos de Edward Anhalt Numa plantação isolada na costa vietnamita uma viúva teima em lutar contra o mar que inunda suas colheitas Seus dois filhos Joseph e Suzanne só sonham com a fuga Uma vez que a mãe morra ambos partirão definitivamente No filme Suzanne não parte sozinha mas com o homem que ama no livro ela era a amante sem amor do filho do vizinho Joseph ficará na terra familiar graças à chegada providencial de cimento ele poderá construir uma barragem indestrutível A palavra fim é inscrita sobre a imagem do ônibus que leva os amantes felizes enquanto Joseph ao fundo da estrada amorosa fazlhes grandes sinais Em compensação o romance termina com o enterro da mãe que se baseia num grande tema cósmico de morterenascimento pôrdosol gritaria de crianças Joseph se levantou e os outros fizeram o mesmo A mulher pôs o carro em movimento e circundou o local Agosti e Joseph carregaram o caixão Já havia caído a noite Os camponeses ainda estão lá esperando que eles vão embora para poderem ir também Mas as crianças partiram ao mesmo tempo que o sol Ouviase sua suave gritaria sair das chocas Nesses três filmes que se situam acima do nível da produção corrente estabelecese um compromisso entre o happy end e o fim natural de essência trágica Em Os Deuses Vencidos o alemão Christian Diestl Marlon Brando personagem fundamentalmente simpático morre assim mesmo quando poderia terse rendido aos americanos e terse entregue a uma comovente profissão de fé democrática Mas essa morte é apagada pelo retorno feliz de Noah Ackermann Montgomery Clift Un Barrage contre le Pacifique acaba ao mesmo tempo com um happy end clássico amor vencedor com um semihappy end o filho continua com sucesso a obra de sua mãe e com um dilaceramento o irmão se separa da irmã O que houve foi a supressão do absurdo da luta selvagem da mãe para salvar sua terra Assim também o que foi atenuado em A Ponte do Rio Kwai foi o absurdo radical do esforço inútil Isso nos mostra que o happy end por meio de uma relação de identificação espectadorherói simpático se inscreve numa concepção articulada da vida Esforçandose para expulsar a tragédia o happy end se esforça ao mesmo tempo para exorcizar o sentimento do absurdo e da loucura dos empreendimentos humanos o shakesperiano life is a tale told by an idiot full of sound and fury and signifying nothing3 Uma vez que desde Kafka e Camus a literatura dos intelectuais está como que corroída pelo absurdo a cultura de massa se esforça em aclimatar aclimar e finalmente sufocar o absurdo dar um sentido à vida por meio da exclusão do contrasenso da morte O happy end é postulado pelo otimismo da felicidade o otimismo da rentabilidade do esforço é preciso que todo empreendimento nobre e heróico tenha sua recompensa aqui na Terra Por outro lado qualquer intervenção do poder político no meio da cultura postula igualmente um final feliz porque o poder afirma que tudo é bom na sociedade que ele governa É por isso que ao lado do happy end privado do filme ocidental há um happy end político na URSS e nas democracias populares o final otimista reinou durante a era stalinista depois a nova corrente se traduziu pela tragédia de Kanal ou de Quando Voam as Cegonhas De maneira diversa a ordem estabelecida a Leste e a Oeste quer exorcizar o pessimismo em relação ao mundo realista que é fermento de crítica social ou de desintegração ideológica Mas existe uma diferença entre o fim otimista em favor do sistema social e o happy end em favor do indivíduo privado No happy end privado a eliminação ou o evitar do absurdo a vontade de salvar os heróis dos perigos constituem negativamente uma espécie de segurança social ou de garantia contra todos os riscos imaginários positivamente uma valorização mitológica da felicidade Esses dois aspectos negativo e positivo mostram que o happy end dá uma forma imaginária sintética às aspirações vividas que adquirem consistência no Welfare State e na busca da felicidade privada A tirania do happy end corresponde ao novo demos 8 A vida é um conto contado por um idiota cheio de som e fúria e significando nada N T 9 Os Vasos Comunicantes Desde o século XIX o romancefolhetim e o conto foram introduzidos no jornal Mas é no começo do século XX que o imaginário arrebenta sobre as mass media Formase uma imprensa periódica exclusivamente romanesca sentimental adventurosa ou policial O cinematográfico se transforma em espetáculo e se dedica principalmente aos filmes de ficção Depois o rádio se torna o grande veiculo das canções e dos jogos seguido pela televisão Assim antes do novo curso o imaginário havia conquistado um lugar real nos domínios que pareciam destinados exclusivamente à informação imprensa à representação do real cinematográfico à transmissão das comunicações rádio Formase então um duplo setor no seio das mass media existe em todo espetáculo de cinema ao lado do grande filme romanesco uma parte de atualidades até mesmo de documentário os programas de televisão são distribuídos segundo uma alternância do informativo e do imaginário do documentário e do espetáculo a mesma dualidade se dá de modo diverso na imprensa o romanesco é minoritário na imprensa quotidiana preponderante na imprensa amorosa A partir da década dos 30 o novo curso da cultura de massa introduz no meio do setor informativo com insistência cada vez maior determinados esquemas e temas que ele faz triunfar no imaginário Em outras palavras a cultura de massa extravasa o imaginário e ganha a informação Assim a dramatização tende a preponderar sobre a informação propriamente dita A imprensa se apropria da espera de Chessman para poder fazer um suspense com a morte o homem que vive os dias de sua morte é seguido de hora em hora pelo voyeurismo coletivo uma montagem paralela faz alternar a corrida da morte o mecanismo implacável do sistema judiciário e a corrida contra a morte recursos dos advogados petições intervenções da opinião internacional O human touch o human interest tendem a transformar em vedete os personagens mais comoventes como o casal morto na véspera de seu casamento pela catástrofe de Frejus Fazendo vedete de tudo que pode ser comovente sensacional excepcional a imprensa de massa faz vedete de tudo que diz respeito às próprias vedetes suas conversas beijos confidências disputas são transmitidas através dos artigos falatórios flashes como se o leitor fosse o voyeur de um grande espetáculo de um supershow permanente cujos deuses seriam os atores Esse extraordinário consumo da vida privada das vedetes caminha lado a lado com o desenvolvimento do setor privado da informação que concerne não apenas à vida privada dos personagens públicos mas também aos fatos variados Assim os temas fundamentais do cinema a aventura a proeza o amor a vida privada são igualmente privilegiados junto à informação Até a política entra parcialmente no campo da cultura de massa principalmente nos Estados Unidos a batalha eleitoral toma cada vez mais a forma de uma competição televisada onde as qualidades simpáticas do candidato seu rosto o sorriso e a beleza de sua mulher se tornam triunfos políticos A cultura de massa integra em si os grandes políticos não tanto exaltando suas qualidades supremas de chefe o que é a mola da propaganda política mas revelando suas qualidades humanas de pai ou de esposo seus gostos privados sua intimidade por certo que um Hitler um Stalin um Franco assim como aliás um bonachão presidente da República Francesa já se fizeram fotografar ou cinematografar com uma meninazinha nos braços Mas essa pose era tanto paternalista como paterna confirmando o chefe em seu mito de pai da pátria Reciprocamente a propaganda política utiliza de hoje em diante em seu proveito certas receitas de popularidade elaboradas pela cultura de massa Mas apesar das inter ferências as diferenças permanecem a cultura de massa despolitiza relativamente o político que ela integra em seu seio no sentido de que ela pode ser indiferente aos temas políticos propriamente ditos dando a mesma acolhida a um Nixon ou a um Kennedy quase a mesma acolhida a um Krushev ou a um Eisenhower Relativamente indiferente aos temas propriamente políticos a cultura de massa vedetiza por vedetizar porque ela precisa de vedetes e é nesse sentido que ela exalta a grandeza olimpiana das recepções das visitas oficiais etc e prospecta todas as dimensões da familiaridade privada do olimpiano político Enfim o novo curso acentua a vedetização dos fatos variados Os fatos variados não são acontecimentos que informam o andamento do mundo são em comparação com a História atos gratuitos Mas esses atos afirmam a presença da paixão da morte e do destino para o leitor que domina as extremas virulências de suas paixões proíbe seus instintos e se abriga contra os perigos No sensacionalismo as balaustradas da vida normal são rompidas pelo acidente a catástrofe o crime a paixão o ciúme o sadismo O universo do sensacionalismo tem isso em comum com o imaginário o sonho o romance o filme infringe a ordem das coisas viola os tabus compele ao extremo a lógica das paixões Tem em comum com a tragédia o fato de se sujeitar à implacável fatalidade É esse universo de sonho vivido de tragédia vivida e de fatalidade que valorizam os jornais modernos do mundo ocidental Por outro lado o sensacionalismo é tanto mais privilegiado quanto é espetacular as grandes catástrofes são quase cinematográficas o crime é quase romanesco o processo é quase teatral A imprensa seleciona as situações existenciais carregadas de uma grande intensidade afetiva as crianças mártires apelam para a afetividade materna os crimes passionais apelam para a afetividade amorosa os acidentes apelam para o pathos elementar No fato variado a situação é privilegiada e é a partir de situaçõeschave que os personagens afetivamente significativos são vedetizados Na informação olimpiana o personagem vedete é privilegiado e privilegia as situações que para o comum dos mortais estariam mergulhadas no anonimato casamentos divórcios partos acidentes Evidentemente o caso ideal mas raro é o olimpiano em situação de sensacionalismo James Dean se mata com o automóvel a filha de Lana Turner mata o amante de sua mãe Enfim uma certa imprensa secreta incansavelmente uma verdadeira substância romanesca ou dramática camuflada em informação para colocar semanalmente em vedete seus olimpianos assim durante mais de um ano FranceDimanche e IciParis nos fornecem inúmeros pseudosrechaços nas relações quadrangulares entre Margaret Elizabeth Tony Philip e nas relações triangulares entre o Xá Soraya e Farah Diba Aqui nós podemos aprender ao vivo uma das diligências essenciais da mitologização A informação romanciada e vedetizada de um lado o sensacionalismo de outro apelam finalmente para os mesmos processos de projeçãoidentificação que os filmes romances novelas De fato os personagens em situação dramática dos fatos variados as vedetes em situação romanciada da atualidade fornecem uma matéria real mas da mesma estrutura afetiva do imaginário O sensacionalismo funciona como tragédia a vedetização funciona como mitologia Por certo a projeçãoidentificação intervém em todas as relações humanas desde que estas sejam coloridas de afetividade nós nos projetamos e nós nos identificamos em nossas amizades nossos amores nossas admirações nossos ódios nossas cóleras etc E por isso o imaginário se acha comprometido com o tecido quotidiano de nossas vidas mas o importante aqui é salientar que a irrupção da cultura de massa na informação desenvolve em determinado tipo de relações de projeção e de identificação que vão no sentido do romanesco da tragédia e da mitologia Assim ao mesmo tempo em que a matéria imaginária privilegiada pelo novo curso da cultura de massa é aquela que apresenta as aparências da vida vivida a matéria informativa privilegiada é aquela que apresenta as estruturas afetivas do imaginário Ao mesmo tempo em que o imaginário se compromete com o realismo e eu dou a esse termo não o sentido restrito que ele tomou na literatura e no cinema mas um sentido global que o opõe à magia e ao fantástico a informação tende a estruturar o acontecimento de modo romanesco ou teatral cinema tográfico em suma e desenvolve uma tendência mitologizante4 Esses dois movimentos de sentido inverso imagináriorealista e informação romanesca ou mitologizante tendem ao mesmo nível de equilíbrio médio Não há no imaginário da cultura de massa salvo em alguns setores literatura para crianças filmes fantásticos grande desabrochamento mitológico Inversamente raras são as informações próprias da cultura de massa não embebidas de substância mitologizante Essas comunicações entre o real e o imaginário devem ser ligadas a um desenvolvimento mais geral O novo curso tende a multiplicar os contatos entre a cultura de massa e seus consumidores É assim que a imprensa de massa introduz e generaliza a correspondência dos leitores Estes não são apenas chamados a dar sua opinião mas a pedir conselho correio amoroso O intercâmbio entre a leitora da imprensa feminina e seu jornal circula através de mil traçados alimentados não só pelo correio amoroso mas também pelas entrevistas o calendário astrológico os conselhos de uso doméstico e de vestuário etc É um contato simpático que o novo curso estabelece no rádio e depois na televisão RadioCité foi o primeiro que introduziu na França uma comunicação alerta com o ouvinte Com esse lançamento a Europa no 1 substituiu o locutor por um animador de programa mantendo uma cordial e engraçada conversação O novo estilo de familiaridade de amizade de cumplicidade sucede à solenidade recitante e cerimonial Ao mesmo tempo o novo curso desenvolveu maciçamente no rádio grandes jogosconcursos dos quais participa o público Este tem acesso às salas onde se efetuam os grandes programas de variedades e de jogo assim como ele tem acesso ao estúdio do jornal de Europa no 1 Os amadores de crochet radiofônico os participantes de concursos esses novos Édipos a quem a esfinge da cultura de massa perpetuamente propõe enigmas são como os delegados do ouvinte seus alter ego A televisão tornou tudo isso visível Ela valorizou o rosto simpático da locutora não só bonita moça mas sobretudo doce amiga sorridente Multiplicou a familiaridade a grande familiaridade5 da cultura de massa Essa multiplicação das mediações das comunicações e dos contatos cria e mantém um clima simpático entre a Cultura e seu público A cultura de massa tende a constituir idealmente um gigantesco clube de amigos uma grande família não hierarquizada Nessa oceânica e multiforme simpatia o novo curso persegue seu ímpeto além do imaginário além da informação propondo conselhos de saberviver Através dos conselhos de amor e de vida privada correio amoroso os conselhos de higiene onde se misturam a preocupação estética e a preocupação de saúde a vitamina e a juventude do corpo as defesas contra o câncer e as defesas contra a velhice se destaca sobretudo um tipo ideal de homem e de mulher sempre sãos jovens belos sedutores O método de Gayelord Hauser estabeleceu a síntese entre as preocupações de beleza saúde e juventude Outros conselhos hedonistas e práticos se seguem conselhos de mobiliário e de decoração conselhos de vestuário e de moda conselhos de cozinha conselhos de leitura baseados não na crítica literária mas nos sucessos do bestseller e da publicidade conselhos astrológicos conselhos para cada um e para todos Todos esses conselhos vão cumulativamente para o sentido do prestígio pessoal do standing do bemestar A esses conselhos aparentemente desinteressados acrescentamse as incitações interessadas da publicidade onipresente A publicidade se torna pois parte integrante da cultura de massa Ela diz respeito igualmente à saúde ao conforto à facilidade ao prestígio à beleza à sedução Assim desde os heróis imaginários até os cartazes 4 Um certo tipo de imprensa diária que o novo curso desenvolveu nos Estados Unidos na Inglaterra e em diversos países na França assinalemos a tentativa do ParisJour semifraÇasso os tabloid newspapers metamorfoseou literalmente o jornal que se torna assim como diz Leo Bogard mais um veículo de divertimento do que um veículo de informação Comic strips and their adult readers ref cit pág 275 5 O autor ora emprega o termo familiarite intimidade ora emprega o termo familialité comunidade N T publicitários a cultura de massa carrega uma infinidade de stimuli de incitações que desenvolvem ou criam invejas desejos necessidades O estágio no qual os temas imaginários da cultura de massa se prolongam em normas práticas é precisamente o estágio no qual se exerce a pressão da indústria e do comércio para derramar os produtos de consumo É o estágio no qual se dá uma osmose multiforme entre a publicidade e a cultura de massa A cultura de massa como veremos mais precisamente nos capítulos seguintes desenvolve no imaginário e na informação romanceada os temas da felicidade pessoal do amor da sedução A publicidade propõe os produtos que asseguram bemestar conforto libertação pessoal standing prestígio e também sedução Essa complementariedade concerne ao mesmo tecido humano que é a vida privada Daí a estreita ligação entre publicidade e cultura de massa A publicidade apadrinha tão bem a cultura de massa programas de rádio e de televisão competições esportivas quanto é apadrinhada por ela A cultura de massa é o terreno onde a publicidade obtém sua maior eficácia e inversamente os orçamentos publicitários das grandes firmas criam os programas de rádio os filmes publicitários isto é todo um setor da cultura de massa A cultura de massa em certo sentido é um aspecto publicitário do desenvolvimento consumidor do mundo ocidental Num outro sentido a publicidade é um aspecto da cultura de massa um de seus prolongamentos práticos Vamos colocar as coisas ainda de uma outra maneira através do imaginário através da informação romanceada ou vedetizada através dos contatos e dos conselhos através da publicidade efetuase o impulso de temas fundamentais que tendem a se encarnar na vida vivida E é uma imagem da vida desejável o modelo de um estilo de vida que finalmente esboçam como as peças de um quebracabeças os múltiplos setores e temas da cultura de massa Essa imagem é ao mesmo tempo hedonista e idealista ela se constrói por um lado com os produtos industriais de consumo e de uso cujo conjunto fornece o bemestar e o standing e por outro lado com a representação das aspirações privadas o amor o êxito pessoal e a felicidade 10 Os Olimpianos É provável que em média o conhecimento dos americanos a respeito das vidas dos amores e neuroses dos semideuses e deusas que vivem nas alturas olimpianas de Beverly Hills ultrapasse de muito seus conhecimentos dos negócios civicos B ROSENBERG e D MANNING WHITE No encontro do ímpeto do imaginário para o real e do real para o imaginário situamse as vedetes da grande imprensa os olimpianos6 modernos Esses olimpianos não são apenas os astros de cinema mas também os campeões príncipes reis playboys exploradores artistas célebres Picasso Cocteau Dalí Sagan O olimpismo de uns nasce do imaginário isto é de papéis encarnados nos filmes astros o de outros nasce de sua função sagrada realeza presidência de seus trabalhos heróicos campeões exploradores ou eróticos playboys distels Margaret e BB Soraya e Liz Taylor a princesa e a estrela se encontram no Olimpo da notícia dos jornais dos coquetéis recepções Capri Canárias e outras moradas encantadas A informação transforma esses olimpos em vedetes da atualidade Ela eleva à dignidade de acontecimentos históricos acontecimentos destituídos de qualquer significação política como as ligações de Soraya e Margaret os casamentos ou divórcios de Marilyn Monroe ou Liz Taylor os partos de Gina Lollobrigida Brigitte Bardot Farah Diba ou Elizabeth da Inglaterra Nesse último caso por 6 As palavras são de Henri Raymond cf artigos citados na Bibliografia pág 197 exemplo a Corte da Inglaterra ocupa durante alguns dias o lugar de vedete na imprensa francesa sob forma de um mistério sagrado pondo em cena a rainha Elizabeth o príncipe Philip a princesa Margaret e a entourage real esse mistério que nos mergulha no tempo mítico dos nascimentos fabulosos o in illo tempore situase ao mesmo tempo na cronologia da atualidade e nos mostra que a rainha de flancos augustos participa dos estremecimentos das angústias e das servidões carnais de todas as mulheres Uma síntese ideal da projeção e da identificação na qual a rainha cumpre ao mesmo tempo sua sobrehumanidade e sua extrema humanidade transforma um comunicado em flash espetacular7 Esse novo Olimpo é de fato o produto mais original do novo curso da cultura de massa As estrelas de cinema já haviam sido anteriormente promovidas a divindades O novo curso as humanizou Multiplicou as relações humanas com o público Elevou ao estrelato as cortes reais os playboys e até certos homens políticos Desde que as estrelas inacessíveis e sublimes do cinema desceram à terra desde que as cortes reais se transformaram em Trianons da cultura de massa isto é desde o progresso propriamente dito da cultura de massa enquanto tal a vida dos olimpianos participa da vida quotidiana dos mortais seus amores lendários participam dos destinos dos amores mortais seus sentimentos são experimentados pela humanidade média esses olimpianos podem até no futuro aceitar o aburguesamento de um casamento plebeu o fotógrafo da princesa britânica o médico da diva italiana com a condição de que esse casamento plebeu seja transfigurado pelo amor Os novos olimpianos são simultaneamente magnetizados no imaginário e no real simultaneamente ideais inimitáveis e modelos imitáveis sua dupla natureza é análoga à dupla natureza teológica do heróideus da religião cristã olimpianas e olimpianos são sobrehumanos no papel que eles encarnam humanos na existência privada que eles levam A imprensa de massa ao mesmo tempo que investe os olimpianos de um papel mitológico mergulha em suas vidas privadas a fim de extrair delas a substância humana que permite a identificação Esse processo pode funcionar igualmente para os chefes de Estados Ike Kennedy e no relaxamento de tensão internacional Krushev ao mesmo tempo que guias soberanos aparecem como amáveis pais de família esposos amantes gente boa típica de sua terra Familiares e inacessíveis também eles podem ter acesso à dupla natureza dos olimpianos humana e sobrehumana Também eles são perseguidos pelos fotógrafos os entrevistadores os mexeriqueiros que fazem força para sugar os sucos de sua intimidade Um Olimpo de vedetes domina a cultura de massa mas se comunica pela cultura de massa com a humanidade corrente Os olimpianos por meio de sua dupla natureza divina e humana efetuam a circulação permanente entre o mundo da projeção e o mundo da identificação Concentram nessa dupla natureza um complexo virulento de projeçãoidentificação Eles realizam os fantasmas que os mortais não podem realizar mas chamam os mortais para realizar o imaginário A esse título os olimpianos são os condensadores energéticos da cultura de massa Sua segunda natureza por meio da qual cada um se pode comunicar com sua natureza divina fálos participar também da vida de cada um Conjugando a vida quotidiana e a vida olimpiana os olimpianos se tornam modelos de cultura no sentido etnográfico do termo isto é modelos de vida São heróis modelos Encarnam os mitos de autorealização da vida privada De fato os olimpianos e sobretudo as estrelas que se beneficiam da eficácia do espetáculo cinematográfico isto é do realismo identificador nos múltiplos gestos e atitudes da vida filmada são os grandes modelos que trazem a cultura de massa e sem dúvida tendem a destronar os antigos modelos pais educadores heróis nacionais Já em 1930 os Payne Fund Studies verificavam que os jovens americanos encontravam no comportamento dos heróis de filme não apenas incitações ao sonho mas também modelos de conduta A obra de M Thorp os inquéri tos de J P Mayer na Inglaterra8 confirmam que gestos poses palavras penteados etc eram imitados que a prática cinematográfica do love making dos beijos carícias e relações amorosas era assimilada por jovens espectadores A publicidade apoderandose das estrelas para fazer delas modelos de beleza maquilagens de Elizabeth Arden de Max Factor confirma explicitamente seu papel exemplar Podese dizer ainda de modo mais amplo que os múltiplos modelos de conduta que dizem respeito a gestos atitudes modo de andar beleza se integram num grande modelo global o de um estilo de vida baseado na sedução no amor no bemestar Nesse sentido as estrelas em suas vidas de lazer de jogo de espetáculo de amor de luxo e na sua busca incessante da felicidade simbolizam os tipos ideais da cultura de massa Heróis e heroínas da vida privada os astros e estrelas são a ala ativa da grande corte dos olimpianos que animam a imagem da verdadeira vida Assim uma nova alta sociedade mais mitológica do que as antigas altas sociedades burguesas ou aristocráticas mas paradoxalmente mais próxima da humanidade quotidiana é constituída pela nova camada olimpiana Os olimpianos estão presentes em todos os setores da cultura de massa Heróis do imaginário cinematográfico são também os heróis da informação vedetizada Estão presentes nos pontos de contato entre a cultura de massa e o público entrevistas festas de caridade exibições publicitárias programas televisados ou radiofônicos Eles fazem os três universos se comunicarem o do imaginário o da informação o dos conselhos das incitações e das normas Concentram neles os poderes mitológicos e os poderes práticos da cultura de massa Nesse sentido a sobreindividualidade dos olimpianos é o fermento da individualidade moderna Consumida esteticamente a cultura de massa desenvolve além da estética uma práxis e uma mitologia Isso significa que ela ultrapassa a estética tanto no sentido do real como no sentido do imaginário Esses dois movimentos aparentemente contraditórios são de fato inseparáveis É precisamente por meio dos olimpianos que eles se exercitam com o maior vigor Como toda cultura a cultura de massa produz seus heróis seus semideuses embora ela se fundamente naquilo que é exatamente a decomposição do sagrado o espetáculo a estética Mas precisamente a mitologização é atrofia não há verdadeiros deuses heróis e semideuses participam da existência empírica enferma e mortal Sob a inibidora pressão da realidade informativa e do realismo imaginário sob a pressão orientadora das necessidades de identificação e das normas da sociedade de consumo não há grande arrebamento mitológico como nas religiões ou nas epopeias mas um desdobramento ao nível da terra O Olimpo moderno se situa além da estética mas não ainda na religião Como toda cultura a cultura de massa elabora modelos normas mas para essa cultura estruturada segundo a lei do mercado não há prescrições impostas mas imagens ou palavras que fazem apelo à imitação conselhos incitações publicitárias A eficácia dos modelos propostos vem precisamente do fato de eles corresponderem às aspirações e necessidades que se desenvolvem realmente Como estão longe as antigas lendas epopeias e contos de fadas como estão diferentes as religiões que permitem a identificação com o deus imortal mas no além como estão ignorados ou enfraquecidos os mitos de participação no Estado na nação na pátria na família Mas como está próximo como é atrativa e fascinante a mitologia da felicidade 11 O Revólver Quase todos os nossos desejos são criminosos em essência P Valéry O negativo isto é a liberdade isto é o crime Hegel Hollywood já proclamou sua receita há muito tempo a girl and a gun Uma moça e um revólver O erotismo o amor a felicidade de um lado De outro a agressão o homicídio a aventura Esses dois temas emaranhados uns portadores dos valores femininos outros dos valores viris são contudo valores diferentes Os temas aventurosos e homicidas não podem realizarse na vida eles tendem a se distribuir projetivamente Os temas amorosos interferem nas experiências vividas eles tendem a se distribuir identificativamente Os temas femininos constituem a polaridade positiva da cultura de massa os temas viris a polaridade negativa Por um lado irrigação da vida quotidiana por outro irrigação da vida onírica Dois sóis gêmeos efetuam uma rotação um sobre o outro Um aquece com seus raios os fermentos que se desenvolvem na sociedade o outro dá uma plenitude imaginária a tudo que falta na sociedade As louváveis aventuras cinematográficas respondem à mediocridade das existências reais os espectadores são as sombras cinzentas dos espectros deslumbrantes que cavalgam as imagens Há uma plenitude uma superabundância uma exuberância devastadora e proliferadora de vida nos jornais e nas telas que compensa a hipotensão a regulação a pobreza da vida real A vida não é apenas mais intensa na cultura de massa Ela é outra Nossas vidas quotidianas estão submetidas à lei Nossos instintos são reprimidos Nossos desejos são censurados Nossos medos são camuflados adormecidos Mas a vida dos filmes dos romances do sensacionalismo é aquela em que a lei é enfrentada dominada ou ignorada em que o desejo logo se torna amor vitorioso em que os instintos se tornam violências golpes homicídios em que os medos se tornam suspense angústias É a vida que conhece a liberdade não a liberdade política mas a liberdade antropológica na qual o homem não está mais à mercê da norma social a lei Essa liberdade propriamente imaginária é aquela que os sóstias adquirem nas mitologias arcaicas aquela que os deuses detêm e que os heróis das mitologias históricas conquistam aquela que privilegia os reis dos contos populares aquela que aparece de modo ingênuo ou absoluto no ingênuo Tintin ou no infantil Superman Contudo no universo realista da cultura de massa a liberdade não se encarna a não ser excepcionalmente fora da condição humana Ela se exerce em quadros plausíveis mas esses quadros são supra extra ou infrasociais isto é acima fora ou abaixo da lei social É portanto nos horizontes geográficos exotismo ou históricos o passado aventureiro ou mesmo o futuro de sciencefiction ou ainda nos cumes ou submundos da vida vivida que se desdobra a vida que falta em nossas vidas Os reis e os chefes que estão acima da lei gozam da supraliberdade Os ricos os olimpianos escapam aos constrangimentos da vida cotidiana deslocamse de avião amam divorciamse facilmente É claro que os olimpianos também estão sujeitos às servidões e não conseguem escapar a toda e qualquer lei Por essa razão mesmo eles revelam seu lado humano aquele que os torna identificáveis Mas o oxigênio que eles respiram é mais rico sua facilidade de movimento é maior Seus caprichos podem com mais frequência virar atos Os olimpianos estão isentos do constrangimento do trabalho e vivem nas liberdades do lazer 110 111 A liberdade extra é evidentemente a das viagens no tempo e no espaço aventuras históricas ou exóticas Esse outro mundo mais livre é o dos cavaleiros e mosqueteiros como o das selvas das savanas das florestas virgens das terras sem lei Os heróis desse outro mundo são o aventureiro o justiceiro o cavaleiro andante A característica do western é de se situar num tempo épico e genético dos primórdios da civilização que é ao mesmo tempo um tempo histórico realista recente o fim do século XIX Ainda não existe o império da lei mas está prestes a se constituir o herói do western é o Zorro o justiceiro que age contra uma falsa lei corrupta e prepara a verdadeira lei ou o xerife que soberano instaura de revólver em punho a lei que assegurará a liberdade Essa ambigüidade opera uma verdadeira síntese entre o tema da lei e o tema da liberdade aventurosa Ela resolve existencialmente o grande conflito entre o homem e o interdito o indivíduo e a lei aberto desde o Prometeu de Ésquilo e a Antígona de Sófocles A isso acrescentase o tema do herói fundador Rômulo moderno que opera a passagem do caos à ordem A riqueza mitológica em estado nascente do western explica sua ressonância universal Existem outros filmes de aventuras Mas a aventura westerniana é exemplar A liberdade infra se exerce abaixo das leis nos submundos da sociedade junto aos vagabundos ladrões gangsters Esse mundo da noite é talvez um dos mais significativos da cultura de massa Porque o homem civilizado regulamentado burocratizado o homem que obedece aos agentes aos editais de interdição aos bata antes de entrar aos da parte de quem se liberta projetivamente na imagem daquele que ousa tomar o dinheiro ou a mulher que ousa matar que ousa obedecer à sua própria violência Ao mesmo tempo a gang exerce uma fascinação particular porque responde a estruturas afetivas elementares do espírito humano baseiase na participação comunitária do grupo na solidariedade coletiva na fidelidade pessoal na agressividade em relação a tudo que é estrangeiro na vindita vingança em relação ao outro e responsabilidade coletiva dos seus para realização dos instintos predadores e depredadores A gang é como o clã arcaico mas purificada de todo e qualquer sistema tradicional de prescrições e de interdições é um clã em estado nascente E o sonho maldito e comunitário do indivíduo ao mesmo tempo reprimido e atomizado o contrato social da alma obscura dos homens sujeitos às regras abstratas e coercitivas É por causa disso aliás que os jovens tanto nos subúrbios como os dos bairros elegantes tanto no Leste como no Oeste tendem naturalmente a constituir bandos clãsgangs elementares para viver conforme o estado natural da afetividade Compreendese a partir daí a fascinação da gang e o papel dos submundos na cultura de massa Quer seja o herói o gangster o policial clássico o private eye revelado por Dashiell Hammett ou o agente secreto do FBI de Peter Cheney quer ele lute contra a lei ou pela lei ou sobretudo quer ele lute pela lei com meios ilegais os mesmos usados pelo foradalei Hammett Cheney ele nos fará mergulhar no mundo sem lei mundo maldito no qual se libertam os doubles Antonin Artand dizia em Le Théâtre et son double Toda liberdade verdadeira é negra De fato toda liberdade verdadeira desemboca na parte maldita na zona de sombra dos instintos e dos interditos E foi com sua profundidade habitual que Hegel pôde dizer a liberdade isto é o crime É aqui que o segundo termo do slogan hollywoodiano a girl and a gun adquire um sentido completo O tema da liberdade se apresenta através das janelas diariamente abertas da tela do vídeo do jornal como evasão onírica ou mítica fora do mundo civilizado fechado burocratizado É a esse título que existe relação profunda entre o tema do rei e o do vagabundo o tema do foradalei e o do taitiano entre o estado natural e a gang Ao mesmo tempo porém o tema da liberdade se inscreve no grande conflito entre o Homem e o Interdito Qualquer que seja a saída desse conflito e mesmo que o homem finalmente seja vencido ou domesticado pela lei a revolta antropológica contra a regra social o conflito fundamental do indivíduo e da sociedade é colocada e as energias do homem são empregadas nesse combate Nesse sentido a cultura de massa continua a grande tradição imaginária de todas as culturas Mas o que a diferencia das outras culturas é a exteriorização mul 112 113 tifome maciça e permanente da violência que jorra dos comics da televisão do cinema dos jornais sensacionalismo acidentes catástrofes dos livros série negra policial aventura 9 Bofetadas golpes tumultos batalhas guerras explosões incêndios erupções enchentes assaltam sem cessar os homens pacíficos de nossas cidades como se o excesso de violência consumido pelo espírito compensasse uma insuficiência de violência vivida Fazemos em toda segurança a experiência da insegurança isto é ainda da liberdade pois o homem livre é necessariamente sem segurança como disse Eric Fromm Fazemos pacificamente a experiência da guerra Fazemos passivamente a experiência do homicídio Fazemos inofensivamente a experiência da morte É preciso insistir nesse último ponto que nunca é salientado não é só pela necessidade de fazer a experiência do homicídio que existe a violência é também pela necessidade de viver a morte de conhecêla é isso que nos revelam claramente os jogos guerreiros das crianças estes se contentam não só em matar ficticiamente mas também em morrer ficticiamente em cair num espasmo de agonia 10 O grande fascínio da morte emerge obscuramente sob o jorro da violência A proliferação das violências imaginárias se acrescenta a vedetização das violências que explodem na periferia da vida quotidiana sob forma de acidentes catástrofes crimes A imprensa da cultura de massa abre suas colunas para os fatos variados isto é para os acontecimentos contingentes que só se justificam por seu valor emocional Enquanto a imprensa do Leste os ignore o Partido pretende governar uma sociedade harmoniosa da qual são excluídos crimes e catástrofes a imprensa capitalista consome de uma só vez as grandes catástrofes como Fréjus os grandes atos de sadismos os raptos os belos crimes passionais Através do sensacionalismo através dessas esquisitices do comportamento humano que refletem a verdadeira natureza do homem Durrel Mountolive através do universo do crime enfim o leitor redescobre vivendoos e realizandoos seus sonhos menos conscientes Sádicos assassinos são a personificação de instintos simplesmente reprimidos pelos outros homens a encarnação de seus homicídios imaginários de suas violências sonhadas R Musil LHomme sans Qualités II pág 445 Os grandes criminosos são portanto literalmente os bodes expiatórios da coletividade As estruturas do fato variado são as do imaginário Mas existe uma diferença fundamental entre o fato variado e o filme O filme de happy end é providencial ele poupa seus heróis a morte enquanto sofrimento perda irreparável é escamoteada em benefício da morte agressão do homicídio que abate os comparsas ou os maus Em compensação o fato variado é trágico a fatalidade se abate sobre vítimas inocentes a morte se apropria cegamente dos bons como dos maus Em certo sentido o sensacionalismo ressuscita a tragédia que desapareceu no imaginário Como a tragédia o sensacionalismo vai até ao extremo da morte ou da mutilação com a lógica irreparável da fatalidade Transcreve as paradas e os jogos do destino Contudo a um segundo exame notase que a presença no sensacionalismo do horrível do ilícito do destino e da morte na vida quotidiana é atenuada pelo modo do consumo jornalístico o sensacionalismo é consumado não segundo o rito cerimonial da tragédia mas à mesa no metrô com café com leite Os mortos das notícias sensacionalistas ainda que bem reais enquanto os mortos de teatro são simulados estão afinal mais longe do leitor do que os mortos shakesperianos o estão do espectador As vítimas do sensacionalismo como da tragédia são projetivas isto é são ofertadas em sacrifício à infelicidade e à morte Mas o sacrifício ritual dos grandes dias é outra coisa como é outra coisa a fornada diária que os frustrados da vida levam à morte A catarse é como que digerida no quotidiano isto quer dizer que o grande tema de sacrifício eles morrem em meu lugar se atenua num são os outros que morrem e não eu Assim paradoxalmente existe menos identificação com o herói do fato variado do que com o herói de filmes 114 115 menos comunicação humana entre o homem quotidiano e os fatos variados de seu quotidiano do que entre esse homem quotidiano e o cinema Isso não impede entretanto que por uma curiosa reviravolta moderna seja a realidade vivida e não mais a imaginária que se torne o fornecedor trágico da cultura O ah que horror que provocam os acidentes de automóvel os crimes passionais o suicídio com gás e o gemido da tragédia terra a terra que não só se prende ao acaso e circunstâncias mas ao destino e à fatalidade Os mortos do domingo são o tributo pago à festa A Páscoa com seus acidentes de estrada estatisticamente transformados em vedete é também a estação moderna das Parcas11 Ao redor das antigas aldeias os homens projetavam seus fantasmas lugares malditos anaons fogosfátuos Espíritos a noite pululava de fantasmas Ao redor das grandes cidades industriais a franja projetiva é constituída pelos acidentes e os crimes do noticiário sensacionalista As noites são iluminadas tranqüilizadoras Os fantasmas em toda parte presentes dia e noite modificaram sua natureza são os inumeráveis doubles que aparecem sobre as telas ou vídeos Os cidadãos da idade burguesa a expressão é de Musil vivem uma vida cuja largura está reduzida à sua faixa central segundo a espantosa fórmula de HANS FREYER Theorie des gegenwartigen Zeitalters Stuttgart 1955 pág 60 Todo o resto acima e abaixo é espetáculo e sonho voyeurismo permanente a grande política a atividade criadora a violência a liberdade o crime a desmedida E a virulência agressiva das faixas marginais parece crescer enquanto cresce na faixa central a segurança social o Estadoprovidência o conforto pacífico o bemestar As necessidades agressivas que não se atualizam na faixa cen tral são mantidas tanto pelos fatos variados dos jornais quanto pelas aventuras dos filmes e os esportes violentos boxe judô ou de competição Será que essas necessidades ainda são excitadas ou pelo contrário são acalmadas purificadas Em que medida existe descarga psíquica catarse ou pelo contrário permanente recarga agressiva Será que não há acumulação de fúrias latentes prontas para jorrar à primeira crise verdadeira da sociedade Ou antes pelo contrário não há dissolução voyeurista transferência salutar dos impulsos agressivos para fantasmas No que me diz respeito creio que as duas séries contraditórias de hipóteses são igualmente fundamentadas O espetáculo da violência ao mesmo tempo incita e apazigua incita parcialmente a adolescência em que a projeção e a identificação não se distribuem de modo racionalizado como acontece com os adultos a buscar exutórios práticos nessa violência principalmente nos pequenos bandos modernos beatniks e transviados etc mas ao mesmo tempo apazigua parcialmente as necessidades agressivas da adolescência Por outro lado há nas nossas sociedades um setor crescente de descargas agressivas físicas é o esporte Atualmente podese mesmo considerar o esporte como a única saída concreta para o instinto de combate Em sentido mais amplo só uma civilização de jogos seria capaz de drenar inofensivamente a enorme necessidade de afirmação ofensiva reprimida Um problema mais central permanece há um fundo de violência no ser humano que precede nossa civilização qualquer civilização e que não pode ser reduzido definitivamente por nenhum dos modos atualmente conhecidos pela civilização A civilização é uma fina película que pode solidificarse e conter o fogo central mas sem apagálo A civilização do conforto pacífico da vida sem riscos da felicidade que quer ignorar a morte será que constitui uma crosta cada vez mais sólida abaixo das energias dementes da espécie Ainda aqui a resposta é dupla Se de fato a superfície se endurece e torna a se fechar sobre o fogo central então a pressão interna se decuplica Que a crosta venha a se romper e os monstros quebrando suas correntes farão irrupção não mais sobre as telas e os jornais mas em cada um de nós Todas as experiências nos provam que ninguém está definitivamente civilizado um pequeno burguês pacífico pode tomarse em certas condições um SS ou um carrasco a guerra das nações civilizadas é pelo menos tão odiosa atroz implacável como as guerras das sociedades primitivas A cultura de massa nos entope nos embebeda com barulhos e fúrias Mas ela não nos curou de nossas fúrias fundamentais Ela as distrai elas as projeta em filmes e notícias sensacionalistas clarete de Postillon ou que algum afável vaqueiro enfeite as etiquetas de camembert é a mercadoria moderna que tende a se envolver em sexappeal É que se operou uma espantosa conjunção entre o erotismo feminino e o próprio movimento do capitalismo moderno que procura estimular o consumo O dinheiro sempre insaciável se dirige ao Eros sempre subnutrido para estimular o desejo o prazer e o gozo chamados e entregues pelos produtos lançados no mercado Em sua expansão vertical o capitalismo depois de haver anexado o reino dos sonhos se esforça por domesticar o Eros Ele mergulha na profundezas do onirismo e da libido Reciprocamente o Eros entra triunfalmente no circuito econômico e dotado do poder industrial desaba sobre a civilização ocidental As mercadorias carregadas de um suplemento erótico são também carregadas de um suplemento mítico é um erotismo imaginário isto é dotado de imagens e de imaginação que imbeve ou aureola esses produtos fabricados esse erotismo imaginário se adapta aliás ao erotismo vivido que não é somente multiplicação da esttimulação epidérmica mas também multiplicação dos fantasmas libidinosos Utilizando o desejo e o sonho como ingredientes e meios no jogo da oferta e da procura o capitalismo longe de reduzir a vida humana ao materialismo impregnoua ao contrário de um onirismo e de um erotismo difusos O erotismo da mercadoria é antes de tudo publicitário e por isso ele concerne diretamente à cultura de massa que engloba os mais importantes meios modernos de publicidade jornais rádio televisão De fato a virulência erótica se manifesta muito mais nas publicidades do que nas mercadorias mesmo isto é muito mais na incitação a consumir do que no consumo a pinup que mostra suas pernas para Schweppes não se encontra é claro nessa garrafa de refrigerante A injeção de erotismo na representação de uma mercadoria não erótica as publicidades que juntam uma atraente imagem feminina a uma geladeira uma máquina de lavar ou uma soda tem por função não apenas ou tanto provocar diretamente o consumo masculino mas de estetizar aos olhos das mulheres a mercadoria de que elas se apropriarão ela põe em jogo junto ao eventual cliente a magia da identificação sedutora a mercadoria faz o papel de mulher desejável para ser desejada pelas mulheres apelando para seu desejo de serem desejadas pelos homens Ao mesmo tempo em que a pinup se torna símbolo estético da qualidade indica que em seu domínio o produto dispõe das virtudes encantadoras da beldade Essa pinupisação se acrescenta à nova estética da oferta vendável por carenagens aerodinâmicas embalagens de celofane cores vivas Por outro lado a publicidade opera para certos produtos uma revalação quase psicanalítica das latências eróticas que podem despertar seu consumo e sobretudo ela aumenta a voltagem dos objetos já dotados de carga erótica Assim o impulso erótico se torna virulento ao extremo nos produtos para a epiderme e as partes sexuais secundárias do corpo cabeleira peito coxas e também nos produtos para a alma jornais revistas filmes É certo que sempre existiram produtos de sedução Mas é o novo curso publicitário que devia transformar os produtos de higiene em produtos de beleza é de sedução A publicidade de massa revelou o erotismo até então latente e até recalcado do produto tipo de higiene o sabonete e impregnouo de erotismo até transformálo em produto de sedução 9 entre 10 estrelas de cinema usam o sabonete Lux A publicidade franqueou rapidamente o caminho que vai da limpeza à beleza e da beleza ao sexappeal Xampus cremes pastas dentifrícias viram sua finalidade primeira submersa pela finalidade erótica Colgate Gibbs não combatem a cárie eles buscam dente branco hálito fresco sorriso encantador mil beijos Os produtos de regime por sua vez tornaramse produtos de sedução acrescentando a valência beleza à valência saúde uma vez que eles trazem futuro além da saúde para o hepático a esbeltez para o barrigudo Os Baudelaire do onirismo publicitário despertando as úteis correspondências da pinupidade levaram na esteira erotizante os produtos destinados à sensualidade oral