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Sociologia

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O direito à Cidade Isto não quer dizer que esta sociedade se desintegra que ela cai aos pedaços Não Ela funciona Como Por quê Esse é que é o problema Isto também significa que esse funcionamento não deixa de se fazer acompanhar por um enorme malestar sua obsessão Outro tema obsedante a participação ligada à integração Mas não se trata de uma simples obsessão Na prática a ideologia da participação permite obter pelo menor preço a aquiescência das pessoas interessadas e que estão em questão Após um simulacro mais ou menos desenvolvido de informação e de atividade social elas voltam para a sua passiva tranqüilidade para o seu retiro É evidente que a participação real e ativa já tem um nome Chamase autogestão O que levanta outros problemas Forças muito poderosas tendem a destruir a cidade Um certo urbanismo à nossa frente projeta para a realidade a ideologia de uma prática que visa à morte da cidade Essas forças sociais e políticas assolam o urbano em formação Pode esse embrião muito poderoso à sua maneira nascer nas fissuras que ainda subsistem entre essas massas o Estado a Empresa a Cultura que deixa a cidade perecer oferecendo sua imagem e suas obras ao consumo a Ciência ou antes o cientificismo que se põe ao serviço da realidade existente que a legitima Poderá a vida urbana recuperar e intensificar as capacidades de integração e de participação da cidade quase inteiramente desaparecidas e que não podem ser estimuladas nem pela via autoritária nem por prescrição administrativa nem por intervenção de especialistas Desta forma se formula o problema teoricamente fundamental Quer exista ou não um sujeito ao qual a análise possa imputálo quer seja o resultado global de uma sequência de ações não combinadas ou o efeito de uma vontade o sentido político da segregação como estratégia de classe é bem claro Para a classe operária vítima da segregação expulsa da cidade tradicional privada da vida urbana atual ou possível apresentase um problema prático portanto político Isso ainda que esse problema não tenha sido levantado de forma política e que a questão da moradia tenha ocultado até aqui para essa classe e seus representantes a problemática da cidade e do urbano 104 O direito à Cidade A reflexão teórica se vê obrigada a redefinir as formas funções estruturas da cidade econômicas políticas culturais etc bem como as necessidades sociais inerentes à sociedade urbana Até aqui apenas as necessidades individuais com suas motivações marcadas pela sociedade dita de consumo a sociedade burocrática de consumo dirigido foram investigadas e aliás foram antes manipuladas do que efetivamente conhecidas e reconhecidas As necessidades sociais têm um fundamento antropológico opostas e complementares compreendem a necessidade de segurança e a de abertura a necessidade de certeza e a necessidade de aventura a da organização do trabalho e a do jogo as necessidades de previsibilidade e do imprevisto de unidade e de diferença de isolamento e de encontro de trocas e de investimentos de independência e mesmo de solidão e de comunicação de imediaticidade e de perspectiva a longo prazo O ser humano tem também a necessidade de acumular energias e a necessidade de gastálas e mesmo de desperdiçálas no jogo Tem necessidade de ver de ouvir de tocar de degustar e a necessidade de reunir essas percepções num mundo A essas necessidades antropológicas socialmente elaboradas isto é ora separadas ora reunidas aqui comprimidas e ali hipertrofiadas acrescentamse necessidades específicas que não satisfazem os equipamentos comerciais e culturais que são mais ou menos parcimoniosamente levados em consideração pelos urbanistas Tratase da necessidade de uma atividade criadora de obra e não apenas de produtos e de bens materiais consumíveis necessidades de informação de simbolismo de imaginário de atividades lúdicas Através dessas necessidades especificadas vive e sobrevive um desejo fundamental do qual o jogo a sexualidade os atos corporais tais como o esporte a atividade criadora a arte e o conhecimento são manifestações particulares e momentos que superam mais ou menos a divisão parcelar dos trabalhos Enfim a necessidade da cidade e da vida urbana só se exprime livremente nas perspectivas que tentam aqui se isolar e abrir os horizontes As necessidades urbanas específicas não seriam necessi 105 O direito à Cidade dades de lugares qualificados lugares de simultaneidade e de encontros lugares onde a troca não seria tomada pelo valor de troca pelo comércio e pelo lucro Não seria também a necessidade de um tempo desses encontros dessas trocas Uma ciência analítica da cidade necessária está hoje ainda em esboço Conceitos e teorias no começo de sua elaboração só podem avançar com a realidade urbana em formação com a práxis prática social da sociedade urbana Atualmente a superação das ideologias e das práticas que fechavam os horizontes que eram apenas pontos de estrangulamento do saber e da ação que marcavam um limite a ultrapassar essa superação como dizia é efetuada não sem dificuldades A ciência da cidade tem a cidade por objeto Esta ciência toma emprestado seus métodos démarches e conceitos às ciências parcelares A síntese lhe escapa duplamente Inicialmente enquanto síntese que se pretendia total e que só pôde consistir a partir da analítica numa sistematização e numa programação estratégicas A seguir porque o objeto a cidade enquanto realidade acabada se decompõem O conhecimento tem diante de si a fim de decepála e recompôla a partir de fragmentos a cidade histórica já modificada Como texto social esta cidade histórica não tem mais nada de uma seqüência coerente de prescrições de um emprego do tempo ligado a símbolos a um estilo Esse texto se afasta Assume ares de um documento de uma exposição de um museu A cidade historicamente formada não vive mais não é mais apreendida praticamente Não é mais do que um objeto de consumo cultural para os turistas e para o estetismo ávidos de espetáculos e do pitoresco Mesmo para aqueles que procuram compreendêla calorosamente a cidade está morta No entanto o urbano persiste no estado de atualidade dispersa e alienada de embrião de virtualidade Aquilo que os olhos e a análise percebem na prática pode na melhor das hipóteses passar pela sombra de um objeto futuro na claridade de um sol nascente Impossível considerar a hipótese da reconstituição da cidade antiga possível apenas encarar a construção de uma nova cidade sobre novas bases numa outra escala em outras condições numa outra sociedade Nem retorno para a cidade tradicional nem fuga para a frente para a aglomeração colossal e informe esta é a prescrição Por outras palavras no que diz respeito à cidade o objeto da ciência não está determinado O passado o presente o 106 HENRI LEFEBVRE possível não se separam É um objeto virtual que o pensamento estuda O que exige novas démarches O velho humanismo clássico acabou sua carreira há muito tempo e acabou mal Está morto Seu cadáver mumificado embalsamado pesa bastante e não cheira bem Ocupa muitos lugares públicos ou não transformados assim em cemitérios culturais com as aparências do humano museus universidades publicações diversas Mais as novas cidades e as revistas de urbanismo Trivialidades e insignificâncias são cobertas por essa embalagem É a medida humana se diz Quando na verdade deveríamos nos encarregar da desmedida e criar alguma coisa à altura do universo Este velho humanismo encontrou a morte nas guerras mundiais durante o impulso demográfico que acompanha sempre os grandes massacres diante das brutais exigências do crescimento e da competição econômica e diante do impulso de técnicas mal dominadas Não é nem mesmo mais uma ideologia apenas um tema para discursos oficiais Como se a morte do humanismo clássico se identificasse com a morte do homem recentemente ouviramse altos gritos Deus está morto o homem também Essas fórmulas divulgadas em livros de sucesso retomadas por uma publicidade pouco responsável não têm nada de novo A meditação nietzschiana começou há quase um século por ocasião da guerra de 18701871 mau presságio para a Europa para sua cultura e sua civilização Quando Nietzsche anunciava a morte de Deus e a morte do homem não deixava atrás de si um vazio berrante não preenchia esse vazio com materiais improvisados e provisórios com a linguagem e com a lingüística Ele anunciava o Superhumano que ele acreditava se tornar Superava o niilismo que ele mesmo diagnosticava Os autores que vendem tesouros teóricos e poéticos com um século de atraso nos jogam de novo no niilismo Depois de Nietzsche os perigos do Superhumano apareceram com uma cruel evidência Por outro lado o homem novo que vemos nascer da produção industrial e da racionalidade planificadora como tal nos desapontou em muito Ainda um caminho se abre o da sociedade urbana e do humano como obra nessa sociedade que seria obra e não produto Ou a superação simultânea do velho animal social e do homem da cidade antiga o animal urbano na direção do homem urbano polivalente polissensorial 107 0 DIREITO À CIDADE HENRI LEFEBVRE capaz de relações complexas e transparentes com o mundo o meio e ele mesmo ou então o niilismo Se o homem está morto para quem vamos construir Como construir Pouco importa que a cidade tenha ou não desaparecido que seja necessário pensála de novo reconstruíla sobre novos fundamentos ou ultrapassála Pouco importa que o terror impere que a bomba atômica seja ou não lançada que o planeta Terra explua ou não O que é que importa Quem ainda pensa quem age quem fala e para quem Se desaparecem o sentido e a finalidade se não podemos nem mesmo declarálos mais numa práxis nada tem importância ou interesse E se as capacidades do ser humano a técnica a ciência a imaginação a arte ou a ausência disso se erigem em poderes autônomos e se o pensamento mediativo se contenta com essa constatação a ausência de sujeito o que replicar O que fazer O velho humanismo se afasta desaparece A nostalgia se atenua e nos voltamos cada vez menos a fim de rever sua forma estendida no meio da estrada Era a ideologia da burguesia liberal Ele se inclinava sobre o povo sobre os sofrimentos humanos Recobria sustentava a retórica das almas caridosas dos grandes sentimentos das boas consciências Compunhase de citações grecolatinas salpicadas de judeocristianismo Um pavoroso coquetel uma mistura de fazer vomitar Apenas alguns intelectuais de esquerda mas será que ainda existem intelectuais de direita nem revolucionários nem abertamente reacionários nem dionisíacos nem apolinianos ainda sentem prazer com essa triste bebida Portanto é na direção de um novo humanismo que devemos tender e pelo qual devemos nos esforçar isto na direção de uma nova práxis e de um outro homem o homem da sociedade urbana E isto escapando aos mitos que ameacem essa vontade destruindo as ideologias que desviam esse projeto e as estratégias que afastam esse trajeto A vida urbana ainda não começou Estamos acabando hoje o inventário dos restos de uma sociedade milenar na qual o campo dominou a cidade cujas idéias e valores tabus e prescrições eram em grande parte de origem agrária de predomínio rural e natural Esporádicas cidades apenas emergiam do oceano do campo A sociedade rural era ainda é a da não abundância da penúria da privação aceita ou repudiada das proibições que dispunham e regularizavam as privações A sociedade rural foi aliás a sociedade da Festa mas este aspecto o melhor deles não foi retido e é ele que é preciso ressuscitar e não os mitos e os limites Observação decisiva a crise da cidade tradicional acompanha a crise mundial da civilização agrária igualmente tradicional Caminham juntas e mesmo coincidem Cabe a nós resolver essa dupla crise notadamente ao criar com a nova cidade a nova vida na cidade Os países revolucionários entre os quais a URSS de dez ou quinze anos após a revolução de Outubro pressentiram o desenvolvimento da sociedade baseada na indústria Apenas pressentiram Nas frases precedentes o nós tem apenas o alcance de uma metáfora Ele designa os interessados Nem o arquiteto nem o urbanista nem o sociólogo nem o economista nem o filósofo ou o político podem tirar do nada por decreto novas formas e relações Se é necessário ser exato o arquiteto não mais do que o sociólogo não tem os poderes de um taumaturgo Nem um nem outro cria às relações sociais Em certas condições favoráveis auxiliam certas tendências a se formular a tomar forma Apenas a vida social a práxis na sua capacidade global possui tais poderes Ou não os possui As pessoas acima relacionadas tomadas separadamente ou em equipe podem limpar o caminho também podem propor tentar preparar formas E também e sobretudo podem inventariar a experiência obtida tirar lições dos fracassos ajudar o parto do possível através de uma maiêutica nutrida de ciência No ponto em que chegamos assinalemos a urgência de uma transformação das démarches e dos instrumentos intelectuais Retomando formulações empregadas noutras ocasiões certas démarches mentais ainda pouco familiares parecem indispensáveis a A transdução É uma operação intelectual que pode ser realizada metodicamente e que difere da indução e da dedução clássicas e também da construção de modelos da simulação do simples enunciado das hipóteses A transdução elabora e constrói um objeto teórico um objeto possível e isto a partir de informações que incidem sobre a realidade bem como a partir de uma problemática levantada por essa realidade A transdução pressupõe uma realimentação feedback incessante entre o contexto conceitual utilizado e as observações empíricas Sua teoria metodologia formaliza certas operações mentais espontâneas do urbanista do arquiteto do sócio 108 109 logo do político do filósofo Ela introduz o rigor na invenção e o conhecimento na utopia b A utopia experimental Atualmente quem não é utópico Só os práticos estreitamente especializados que trabalham sob encomenda sem submeter ao menor exame crítico as normas e coações estipuladas só esses personagens pouco interessantes escapam ao utopismo Todos são utópicos inclusive os prospectivistas os planificadores que projetam a Paris do ano 2000 os engenheiros que fabricaram Brasília e assim por diante Mas existem vários utopismos O pior não seria aquele que não diz seu nome que se cobre de positivismo que por essa razão impõe as coações mais duras e a mais irrissória ausência de tecnicidade A utopia deve ser considerada experimentalmente estudandose na prática suas implicações e consequências Estas podem surpreender Quais são quais serão os locais que socialmente terão sucesso Como detectálos Segundo que critérios Quais tempos quais ritmos de vida cotidiana se inscrevem se escrevem se prescrevem nesses espaços bem sucedidos isto é nesses espaços favoráveis à felicidade É isso que interessa Outras démarches intelectualmente indispensáveis discernir sem os dissociar os três conceitos teóricos fundamentais a saber a estrutura a função a forma Conhecer o alcance deles suas áreas de validade seus limites e suas relações recíprocas saber que eles formam um todo mas que os elementos desse todo têm uma certa independência e uma autonomia relativa não privilegiar nenhum deles fato que dá origem a uma ideologia isto é um sistema dogmático e fechado de significa ções o estruturalismo o formalismo o funcionalismo Utilizálos alternadamente em pé de igualdade para a análise do real análise que não é nunca exaustiva e sem resíduos bem como para a operação dita transdução Compreender que uma função pode se realizar através de estruturas diferentes que não existe ligação unívoca entre os termos Que função e estrutura se revestem de formas que as revelam e que as ocultam que a triplicidade desses aspectos constitui um todo que é mais que esses aspectos elementos e partes Dentre os instrumentos intelectuais de que dispomos há um que não merece nem o desprezo nem o privilégio do absoluto o sistema ou antes o subsistema de significações 110 HENRI LEFEBVRE Os políticos têm seus sistemas de significações as ideologias que lhes permitem subordinar a suas estratégias os atos e acontecimentos sociais que são por eles influenciados O humilde habitante tem seu sistema de significações ou antes seu subsistema ao nível ecológico O fato de habitar aqui ou ali comporta a recepção a adoção a transmissão de um determinado sistema por exemplo o do habitat pavilhonista O sistema de significações do habitante diz das suas passividades e das suas atividades é recebido porém modificado pela prática É percebido Os arquitetos parecem ter estabelecido e dogmatizado um conjunto de significações mal explicitado como tal e que aparece através de diversos vocábulos função forma estrutura ou antes funcionalismo formalismo estruturalismo Elaboramno não a partir das significações percebidas e vividas por aqueles que habitam mas a partir do fato de habitar por eles interpretado Esse conjunto é verbal e discursivo tendendo para a metalinguagem É grafismo e visualização Pelo fato de que esses arquitetos constituem um corpo social que eles se ligam a instituições seu sistema tende a se fechar sobre si mesmo a se impor a eludir qualquer crítica Haveria razões para se formular esse sistema freqüentemente erigido em urbanismo por extrapolação sem nenhum outro procedimento nem precaução A teoria que se poderia legitimamente chamar de urbanismo que se reuniria às significa ções da velha prática chamada habitar isto é o humano que acrescentaria a esses fatos parciais uma teoria geral dos temposespaços urbanos que indicaria uma nova prática decorrente dessa elaboração este urbanismo existe virtualmente Só pode ser concebido enquanto implicação prática de uma teoria completa da cidade e do urbano que supera as cisões e separações atuais Especialmente a cisão entre filosofia da cidade e ciência ou ciências da cidade entre parcial e global Neste trajeto podem figurar os projetos urbanísticos atuais mas apenas através de uma crítica sem fraquezas de suas implica ções ideológicas e estratégicas Por mais que se possa definilo nosso projeto o urbano não estará nunca inteiramente presente e plenamente atual hoje diante de nossa reflexão Mais do que qualquer outro objeto ele possui um caráter de totalidade altamente complexo simultaneamente em ato e em potencial que visa à pesquisa que se descobre pouco a pouco que só se esgotará lentamente e mesmo nunca talvez Tomar esse objeto por real como um dado da verdade é uma ideologia uma operação mistificante O conhecimento deve considerar um número considerável de métodos para apreender esse objeto sem se fixar numa démarche As decupagens analíticas seguirão de tão perto quanto possível as articulações internas dessa coisa que não é uma coisa serão seguidos por reconstruções nunca acabadas Descrições análises tentativas de síntese não podem nunca passar por exaustivas ou definitivas Todas as noções todas as baterias de conceitos entrarão em ação forma estrutura função nível dimensão variáveis dependentes e independentes correla ções totalidade conjunto sistema etc Tanto neste como em outros casos porém mais do que em outros casos o resíduo se revela o mais precioso Cada objeto construído será por sua vez submetido ao exame crítico Na medida do possível será realizado e submetido à verificação experimental A ciência da cidade exige um período histórico para se construir e para orientar a prática social Necessária essa ciência não basta Ao mesmo tempo que percebemos sua necessidade percebemos seus limites A reflexão urbanística propõe o estabelecimento ou a reconstituição de unidades sociais localizadas fortemente originais particularizadas e centralizadas cujas ligações e tensões restabeleceriam uma unidade urbana dotada de uma ordem interna complexa não sem estrutura mas com uma estrutura flexível e uma hierarquia Mais precisamente ainda a reflexão sociológica visa ao conhecimento e à reconstituição das capacidades integrativas do urbano bem como às condições da participação prática Por que não Com uma condição a de nunca subtrair essas tentativas parcelares portanto parciais à crítica à verificação prática à preocupação global O conhecimento pode portanto construir e propor modelos Cada objeto neste sentido não é outra coisa além de um modelo de realidade urbana No entanto semelhante realidade não se tornará nunca manejável como uma coisa nem se tornará instrumental Mesmo para o conhecimento mais operatório Que a cidade torne a ser o que foi ato e obra de um pensamento complexo quem não desejaria isso Mas assim nos mantemos ao nível dos votos e das aspirações e não se determina uma estratégia urbana Esta não pode deixar de levar em conta de um lado as estratégias existentes HENRI LEFEBVRE e por outro lado os conhecimentos adquiridos ciência da cidade conhecimento que tende para a pianificação do crescimento e para o domínio do desenvolvimento Quem diz estratégia diz hierarquia das variáveis a serem consideradas algumas das quais têm uma capacidade estratégica e outras permanecem ao nível tático também chamado de força suscetível de realizar essa estratégia na prática Apenas grupos classes ou frações de classes sociais capazes de iniciativas revolucionárias podem se encarregar das e levar até a sua plena realização soluções para os problemas urbanos com essas forças sociais e políticas a cidade renovada se tornará a obra Tratase inicialmente de desfazer as estratégias e as ideologias dominantes na sociedade atual O fato de haver diversos grupos ou várias estratégias como divergências entre o estatal e o privado por exemplo não modifica a situação Das questões da propriedade da terra aos problemas da segregação cada projeto de reforma urbana põe em questão as estruturas as da sociedade existente as das relações imediatas individuais e cotidianas mas também as que se pretende impor através da via coatora e institucional àquilo que resta da realidade urbana Em si mesma reformista a estratégia de renovação urbana se torna necessariamente revolucionária não pela força das coisas mas contra as coisas estabelecidas A estratégia urbana baseada na ciência da cidade tem necessidade de um suporte social e de forças políticas para se tornar atuante Ela não age por si mesma Não pode deixar de se apoiar na presença e na ação da classe operária a única capaz de pôr fim a uma segregação dirigida essencialmente contra ela Apenas esta classe enquanto classe pode contribuir decisivamente para a reconstrução da centralidade destruída pela estratégia de segregação e reencontrada na forma ameaçadora dos centros de decisão Isto não quer dizer que a classe operária fará sozinha a sociedade urbana mas que sem ela nada é possível A integração sem ela não tem sentido e a desintegração continuará sob a máscara e a nostalgia da integração Existe aí não apenas uma opção mas também um horizonte que se abre ou que se fecha Quando a classe operária se cala quando ela não age e quando não pode realizar aquilo que a teoria define como sendo sua missão histórica é então que faltam o sujeito e o objeto O pensamento que reflete interina essa ausência Isto quer dizer que convém elaborar duas séries de proposições 112 113 a Um programa político de reforma urbana reforma não definida pelos contextos e possibilidades da sociedade atual não sujeita a um realismo ainda que baseado no estudo das realidades por outras palavras a reforma assim concebida não se limita ao reformismo Esse programa terá portanto um caráter singular e mesmo paradoxal Será estabelecido a fim de ser proposto às forças políticas isto é aos partidos Podese mesmo acrescentar que ele será submetido preferencialmente aos partidos de esquerda formações políticas que representam ou que querem representar a classe operária Mas esse programa não será estabelecido em função dessas forças e formações Em relação a elas terá um caráter específico o que provém do conhecimento Terá portanto uma parte científica Será proposto livre para ser modificado por e para aqueles que se encarregará dele Que as forças políticas assumam suas responsabilidades Neste setor que compromete o futuro da sociedade moderna e dos produtores a ignorância e o desconhecimento acarretam responsabilidades diante da história que é reivindicada b Projetos urbanísticos bem desenvolvidos compreendendo modelos formas de espaço e de tempo urbanos sem se preocupar com seu caráter atualmente realizável ou não utópico ou não isto é lucidamente utópicos Não parece que esses modelos possam resultar seja de um simples estudo das cidades e dos tipos urbanos existentes seja de uma simples combinatória de elementos As formas de tempo e de espaço serão salvo experiência em contrário inventadas e propostas à práxis Que a imaginação se descobre não o imaginário que permite a fuga e a evasão que veicula ideologias mas sim o imaginário que se investe na apropriação do tempo do espaço da vida fisiológica do desejo Por que não opor à cidade eterna as cidades efêmeras e aos centros estáveis as centralidades móveis São permitidas todas as audácias Por que limitar essas proposições apenas à morfologia do espaço e do tempo Não se excluem proposições referentes ao estilo de vida ao modo de viver na cidade ao desenvolvimento do urbano em relação a esse plano Nestas duas séries entrarão proposições a curto prazo a prazo médio e a longo prazo constituindo estas a estratégia urbana propriamente dita A sociedade em que vivemos parece voltada na direção da plenitude ou pelo menos na direção do pleno objetos e bens duráveis quantidade satisfação racionalidade Na verdade permite que se cave em si mesma um vazio colossal nesse vazio agitamse as ideologias espalhase a bruma das retóricas Uma das maiores aspirações que o pensamento ativo pode propor a si mesmo pensamento este que tenha saído da especulação e da contemplação e também das decupagens fragmentárias e dos conhecimentos parcelares é o de povoar essa lacuna e povoar não apenas com a linguagem Num período em que os ideólogos discorrem abundantemente sobre as estruturas a desestruturação da cidade manifesta a profundidade dos fenômenos de desintegração social cultural Esta sociedade considerada globalmente descobre que é lacunar Entre os subsistemas e as estruturas consolidadas por diversos meios coação terror persuasão ideológica existem buracos às vezes abismos Esses vazios não provêm do acaso São também os lugares do possível Contêm os elementos deste possível elementos flutuantes ou dispersos mas não a força capaz de os reunir Mais ainda as ações estruturantes e o poder do vazio social tendem a impedir a ação e a simples presença de semelhante força As instâncias do possível só podem ser realizadas no decorrer de uma metamorfose radical Nessa conjuntura a ideologia pretende dar um caráter absoluto à cientificidade incidindo a ciência sobre o real decupandoo recompondoo e com isso afastando o possível e barrando o caminho Ora numa tal conjuntura a ciência isto é as ciências parcelares tem apenas um alcance programático Contribui com elementos para um programa Admitindose que esses elementos constituem desde agora uma totalidade e querendose executar literalmente o programa já aí se estará tratando o objeto virtual como um objeto técnico Realizase um projeto sem crítica nem autocritica e esse projeto realiza projetandoa na prática uma ideologia a ideologia dos tecnocratas Necessário o programático não basta Ele se transforma no decorrer da execução Apenas a força social capaz de se investir a si mesma no urbano no decorrer de uma longa experiência política pode se encarregar da realização do programa referente à sociedade urbana Reciproca mente a ciência da cidade traz para essa perspectiva um fundamento teórico e crítico uma base positiva A utopia controlada pela razão dialética serve de parapeto às ficções pretensamente científicas ao imaginário que se extraviaria Esse fundamento e essa base por outro lado impedem que a refle 114 115 xão se perca no programático puro O movimento dialético se apresenta aqui como uma relação entre a ciência e a força política como um diálogo ato que atualiza as relações teoriaprática e positividadenegatividade crítica Necessária como a ciência não suficiente a arte traz para a realização da sociedade urbana sua longa meditação sobre a vida como drama e fruição Além do mais e sobretudo a arte restitui o sentido da obra ela oferece múltiplas figuras de tempos e de espaços apropriados não impostos não aceitos por uma resignação passiva mas metamorfoseados em obra A música mostra a apropriação do tempo a pintura e a escultura a apropriação do espaço Se as ciências descobrem determinismos parciais a arte e a filosofia também mostra como nasce uma totalidade a partir de determinismos parciais Cabe à força social capaz de realizar a sociedade urbana tornar efetiva e eficaz a unidade a síntese da arte da técnica do conhecimento Conquanto que a ciência da cidade a arte e a história da arte entrem na meditação sobre o urbano que quer tornar eficaz as imagens que o anunciam Esta meditação voltada para a ação realizadora seria assim utópica e realista superando essa oposição É mesmo possível afirmar que o máximo de utopismo se reunirá ao optimum de realismo Entre as contradições características desta época estão aquelas particularmente duras existentes entre as realidades da sociedade e os fatos de civilização que nela se inscrevem De um lado o genocídio e do outro os esforços médicos e outros que permitem salvar uma criança ou prolongar uma agonia Uma das últimas contradições entre a socialização da sociedade e a segregação generalizada Existem muitas outras por exemplo entre a etiqueta de revolucionário e o apego às categorias de um nacionalismo produtivista superado No seio dos efeitos sociais devidos à pressão das massas o individual não morre e se afirma Surgem direitos estes entram para os costumes ou em prescrições mais ou menos seguidas por atos e sabese bem como esses direitos concretos vêm completar os direitos abstratos do homem e do cidadão inscritos no frontão dos edifícios pela democracia quando de seus primórdios revolucionários direitos das idades e dos sexos a mulher a criança o velho direitos das condições o proletário o camponês direitos à instrução e à educação direito ao trabalho à cultura ao repouso à saúde 116 à habitação Apesar ou através das gigantescas destruições das guerras mundiais das ameaças do terror nuclear A pressão da classe operária foi e continua a ser necessária mas não suficiente para o reconhecimento desses direitos para a sua entrada para os costumes para a sua inscrição nos códigos ainda bem incompletos Muito estranhamente o direito à natureza ao campo e à natureza pura entrou para a prática social há alguns anos em favor dos lazeres Caminhou através das vituperações que se tornaram banais contra o barulho a fadiga o universo concentraçãoista das cidades enquanto a cidade apodrece ou explode Estranho percurso dizemos a natureza entra para o valor de troca e para a mercadoria é comprada e vendida Os lazeres comercializados industrializados organizados institucionalmente destroem essa naturalidade da qual as pessoas se ocupam a fim de traficála e trafegar por ela A natureza ou aquilo que é tido como tal aquilo que dela sobrevive tornase o gueto dos lazeres o lugar separado do gozo a aposentadoria da criatividade Os urbanos transportam o urbano consigo ainda que não carreguem a urbanidade Por eles colonizado o campo perde as qualidades propriedades e encantos da vida camponesa O urbano assola o campo este campo urbanizado se opõe a uma ruralidade sem posses caso extremo da grande miséria do habitante do habitat do habitar O direito à natureza e o direito ao campo não se destroem a si mesmos Face a esse direito ou pseudodireito o direito à cidade se afirma como um apelo como uma exigência Através de surpreendentes desvios a nostalgia o turismo o retorno para o coração da cidade tradicional o apelo das centralidades existentes ou recentemente elaboradas esse direito caminha lentamente A reivindicação da natureza o desejo de aproveitar dela são desvios do direito à cidade Esta última reivindicação se anuncia indiretamente como tendência de fugir à cidade deteriorada e não renovada à vida urbana alienada antes de existir realmente A necessidade e o direito à natureza contrariam o direito à cidade sem conseguir eludilo Isto não significa que não se deva preservar amplos espaços naturais diante das proliferações da cidade que explodiu O direito à cidade não pode ser concebido como um simples direito de visita ou de retorno às cidades tradicionais Só pode ser 117 7 formulado como direito à vida urbana transformada renovada Pouco importa que o tecido urbano encerre em si o campo e aquilo que sobrevive da vida camponesa conquanto que o urbano lugar de encontro prioridade do valor de uso inscrição no espaço de um tempo promovido à posição de supremo bem entre os bens encontre sua base morfológica sua realização práticosensível O que pressupõe uma teoria integral da cidade e da sociedade urbana que utilize os recursos da ciência e da arte Só a classe operária pode se tornar o agente o portador ou o suporte social dessa realização Aqui ainda como há um século ela nega e contesta unicamente com sua presença a estratégia de classe dirigida contra ela Como há um século ainda que em novas condições ela reúne os interesses aqueles que superam o imediato e o superficial de toda a sociedade e inicialmente de todos aqueles que habitam Os moradores do Olimpo e a nova aristocracia burguesa quem o ignora não habitam mais Andam de palácio em palácio ou de castelo em castelo comandam uma armada ou um país de dentro de um iate estão em toda parte e em parte alguma Daí provém a causa da fascinação que exercem sobre as pessoas mergulhadas no cotidiano eles transcendem a cotidianidade possuem a natureza e deixam os esbirros fabricar a cultura Será indispensável descrever longamente ao lado da condição dos jovens e da juventude dos estudantes e dos intelectuais dos exércitos de trabalhadores com ou sem colarinho e gravata dos interioranos dos colonizados e semicolonizados de toda espécie de todos aqueles que sofrem a ação de uma cotidianidade bem ordenada será necessário mostrar aqui a miséria irrisória e sem nada de trágico do habitante dos suburbanos das pessoas que moram nos guetos residenciais nos centros em decomposição das cidades velhas e nas proliferações perdidas longe dos centros dessas cidades Basta abrir os olhos para compreender a vida cotidiana daquele que corre de sua moradia para a estação próxima ou distante para o metrô superlotado para o escritório ou para a fábrica para retomar à tarde o mesmo caminho e voltar para casa a fim de recuperar as forças para recomeçar tudo no dia seguinte O quadro dessa miséria generalizada não poderia deixar de se fazer acompanhar pelo quadro das satisfações que a dissimulam e que se tornam os meios de eludila e de evadirse dela 118 Perspectiva ou prospectiva Desde os seus primórdios a filosofia clássica que tem por base social e fundamento teórico a Cidade que pensa a Cidade se esforça por determinar a imagem da Cidade ideal O Critias de Platão vê na cidade uma imagem do mundo ou antes do cosmo um microcosmo O tempo e o espaço urbanos reproduzem na terra a configuração do universo tal como a filosofia a descobre Atualmente ao se desejar uma representação da cidade ideal e das suas relações com o universo não é entre os filósofos que se deve ir procurar essa imagem e menos ainda na visão analítica que decupa a realidade urbana em facções em setores em relações em correlações São os autores de ficção científica que trazem essa imagem Nos romances de ficção científica foram consideradas todas as variantes possíveis e impossíveis da futura realidade urbana Ora os antigos núcleos urbanos as Arquépolis agonizam recobertos pelo tecido urbano que prolifera e que se estende sobre o planeta mais ou menos espesso mais ou menos esclerosado ou cancerizado por placas nesses núcleos destinados ao desaparecimento após um longo declínio vivem ou vegetam fracassados artistas intelectuais gangsters Ora reconstituemse cidades colossais trazendo para um nível mais elevado as antigas lutas pelo poder No exemplo limite na obra magistral de Asimov A Fundacão uma cidade gigante cobre um planeta inteiro Trantor Ela possui todos os meios do conhecimento e do poder É um centro de decisão na escala de uma galáxia que ela domina Através de gigantescas peripécias Trantor salva o universo e o leva para a sua finalidade isto é para o reino das finalidades alegria e felicidade na desmedida enfim dominada no espaço cósmico e no tempo do mundo enfim apropriados Entre esses dois extremos os visionários da ficção científica situaram versões intermediárias a cidade regida por um poderoso computador a cidade muito especializada numa produção indispensável e que se desloca entre os sistemas planetários e as galáxias etc 119