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ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 1 FONTES HISTÓRICAS UMA INTRODUÇÃO AOS SEUS USOS HISTORIOGRÁFICOS José DAssunção Barros Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro josedassunglobomailcom Para uma definição de Fonte Histórica1 Fonte Histórica é tudo aquilo que por ter sido produzido pelos seres humanos ou por trazer vestígios de suas ações e interferência pode nos proporcionar um acesso significativo à compreensão do passado humano e de seus desdobramentos no Presente As fontes históricas são as marcas da história Quando um indivíduo escreve um texto ou retorce um galho de árvore de modo a que este sirva de sinalização aos caminhantes em certa trilha quando um povo constrói seus instrumentos e utensílios mas também nos momentos em que modifica a paisagem e o meio ambiente à sua volta em todos estes momentos e em muitos outros os homens e mulheres deixam vestígios resíduos ou registros de suas ações no mundo social e natural Este imenso conjunto de vestígios dos mais simples aos mais complexos constitui o universo de possibilidades de onde os historiadores irão constituir as suas fontes históricas Também é verdade que os grandes processos naturais e planetários mesmo sem a interferência originária do homem mas incidindo sobre este podem produzir vestígios que oportunamente poderão conformar fontes históricas Por ora todavia vamos nos ater mais especificamente às fontes históricas produzidas diretamente pela ação e existência humanas No sentido que acabamos de indicar são fontes históricas tanto os já tradicionais documentos textuais crônicas memórias registros cartoriais processos criminais cartas legislativas jornais obras de literatura correspondências públicas e privadas e tantos mais como também quaisquer outros 1 Este texto é adaptação do capítulo inicial do livro Fontes Históricas uma introdução ao seu uso historiográfico Petrópolis Editora Vozes 2019 Utilizoo como ponto de partida simbólico para este Simpósio Temático sobre Fontes Históricas de cuja coordenação participo neste Encontro da ANPUH História e Parcerias 2019 ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 2 registros ou materiais que possam nos fornecer um testemunho ou um discurso proveniente do passado humano da realidade que um dia foi vivida e que se apresenta como relevante para o Presente do historiador Incluemse como possibilidades documentais ou mais precisamente no âmbito do que chamamos de fontes históricas desde os vestígios arqueológicos e outras fontes de cultura material a arquitetura de um prédio uma igreja as ruas de uma cidade monumentos cerâmicas utensílios da vida cotidiana até representações pictóricas entre outras fontes imagéticas e as chamadas fontes da história oral testemunhos colhidos ou provocados pelo historiador2 De igual maneira as investigações sobre o genoma humano fizeram do corpo e da própria genética uma fonte histórica igualmente útil e confiável que inclusive permitiu que os historiadores passassem a ter acesso aos primórdios da aventura humana sobre a Terra forçando a que se problematizasse aquele antigo conceito de préhistória que antes sinalizava toda uma região da realidade um dia vivida que parecia até então interditada ao ofício dos historiadores Podemos lembrar ainda que a partir do século XX quando a Geografia e a História passaram a atuar mais interdisciplinarmente mesmo uma paisagem natural passou a ser encarada como uma possibilidade documental O mesmo se pode dizer das relações entre a História e a Linguística que trouxeram os próprios fatos da língua para o campo das evidências históricas e algo análogo ocorre com as perspectivas que se produziram na confluência entre História e Antropologia as quais permitem que se abordem como fontes históricas as evidências e heranças imateriais já sem nenhum suporte físico e concreto tais como as festas dramáticas populares e os ritos religiosos que se deslocam e perpetuamse tradicionalmente na realidade social ou ainda como os sistemas integrados e reconhecíveis de práticas e representações os gestos e modos de sociabilidade os bens relacionáveis ao chamado patrimônio imaterial modos de fazer algo receitas alimentares provérbios e ditos populares anedotários apenas para citar exemplos As fontes históricas enfim não precisam ser não necessariamente materiais no sentido tradicional desta palavra Nos dias de hoje inclusive começa a se 2 Devemos distinguir as fontes oriundas da tradição oral aquelas que já fazem parte da tradição através do circuito da oralidade tais como os provérbios ditos populares mitos cantigas de roda ou de trabalho ou seja as fontes folclóricas de maneira geral das fontes relacionadas à história oral que correspondem aos depoimentos provocados pelos historiadores através de entrevistas e de uma metodologia específica ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 3 abrir para o tratamento historiográfico um enorme universo virtual produzido pelos ambientes da Internet Estes registros virtuais que serão cada vez mais analisados pelos futuros historiadores como objeto de estudo e abordados como fontes históricas para a investigação sobre temáticas várias devem ser vistos como possuidores da mesma qualidade de fontes que os tradicionais documentos registrados no suporte papel É certo que precisou haver um longo e complexo desenvolvimento historiográfico até que se chegasse ao momento em que para além dos documentos e fontes concretizadas em papel ou qualquer outro material fossem também admitidas as fontes imateriais como campos de evidências das quais poderia o historiador se valer De todo modo podese dizer que na atualidade não há praticamente limites para um historiador quanto às suas possibilidades de transformar qualquer coisa em fonte histórica Um repertório de gestos por exemplo pode ser revelador de permanências do passado Lembremos o hábito de cumprimentar tirando o chapéu que provém do repertório de atitudes medievais quando um cavaleiro cumprimentava o outro tirava o elmo em sinal de que suas intenções eram pacíficas sem o elmo peça bélica defensiva ele manifestava algo como uma proposta de desarmamento Foramse as batalhas e os elmos e veio a galante sociedade oitocentista dos chapéus burgueses O gesto contudo mantevese incrustado no repertório de atitudes e mesmo com os chapéus em desuso ainda permanece nos dias de hoje como um movimento que toca a testa como que para tirar o elmo imaginário É assim que em certos hábitos enraizados expressos na vida cotidiana e na prática comportamental também aí poderemos ir buscar uma fonte uma evidência ou um testemunho do passado Um vocabulário em disputa fontes ou documentos Antes de prosseguir quero esclarecer alguns dos termos que estamos utilizando nesta comunicação Falei atrás em alguns momentos em fontes históricas e em documentos históricos Estas palavras costumam ser empregadas nos meios historiográficos como sinônimos São fontes ou documentos históricos tanto os textos escritos de todos os tipos como também o são as fotografias os objetos de cultura material ou quaisquer outros conteúdos e materiais que os historiadores utilizem ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 4 como vestígios para apreender a história um dia vivida e para concomitantemente escreverem a História no outro sentido o de produto de um campo de saber O que ocorre é que a palavra documento histórico era muito empregada desde o século XIX quando os historiadores utilizavam como fontes de informação e como caminhos de análise de modo muito mais preponderante alguns tipos de textos como aqueles produzidos pelas instituições pelos organismos do Estado e dos poderes constituído ou ainda como as crônicas de época oficiais patrocinadas por estes mesmos poderes entre outras possibilidades Essa escolha de fontes era essencialmente orientada por um modelo específico de História Política que perdurou amplamente no primeiro século da historiografia científica Por causa do amplo predomínio da produção textual no universo que os historiadores tomavam como o seu conjunto de fontes históricas e também por causa da enfática ideia de prova que estes textos assumiam no trabalho dos historiadores a designação documento histórico surgiu como uma tendência no vocabulário historiográfico o que inclusive parecia aproximar do trabalho dos juristas o tipo de trabalho que os historiadores desenvolviam A palavra documento é ela mesma resíduo de um tipo de História que se fazia em um período anterior A prática historiográfica foi mudando bastante ao adentrar novas possibilidades teóricas e metodológicas da mesma forma que o universo de fontes possíveis aos historiadores foi se expandindo para muito além do tipo de textos que os historiadores utilizavam até o século XIX Expandiuse inclusive para além das possibilidades meramente textuais como já ressaltado Por causa disso a palavra documento que estava já bastante incorporada ao metier do historiador foi também expandindo seus sentidos possíveis Começouse a se entender que tanto um texto um documento estatal ou uma receita de bolo como um objeto material uma cadeira por exemplo ou ainda uma foto ou uma canção são todos documentos neste sentido ampliado Essa extraordinária expansão do universo das fontes históricas que abordaremos no momento oportuno assim como a concomitante flexibilização de sentidos a partir daí proporcionados pela palavra documento favoreceram o surgimento de outra palavra muito evocada nos dias de hoje para os mesmos conteúdos materiais vestígios e indícios que os historiadores tinham passado a chamar de documentos históricos Fonte ou fonte histórica é este termo mais fluido que passou a ser empregado alternativamente à palavra documento Pessoalmente acredito que essa nova ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 5 expressão tenda a substituir mais amplamente no futuro próximo o uso da palavra documento histórico uma vez que esta última apresenta uma origem mais restrita e mais bem acomodada aos tipos de textos frequentemente documentos escritos demarcados pelas instituições oficiais e encontráveis nos arquivos com os quais os historiadores costumavam trabalhar mais no século retrasado na sua cuidadosa e obstinada busca de informações De todo modo podese dizer que nos dias de hoje fontes históricas e documentos históricos neste último caso considerando a palavra com o seu sentido estendido são expressões praticamente sinônimas no âmbito mais específico da historiografia Nesta comunicação utilizaremos alternadamente uma ou outra destas expressões entre outras que aparecerão mais eventualmente mas basicamente estaremos nos referindo em um caso e outro à mesma coisa Por fim resta salientar que são ainda comuns nos atuais meios historiográficos outras expressões como vestígios e registros históricos Este último termo tem como vantagem a referência ao aspecto informacional de diversas das fontes históricas e como desvantagem o fato de que deixa de fora o aspecto nãovoluntário de outros tipos de fontes Já a expressão vestígios uma palavra que parece aproximar da historiografia a investigação criminal ou a prática arqueológica é bastante adequada para lançar luz sobre o fato de que muitas fontes são efetivamente produtos ou resíduos de sociedades e processos que já desapareceram ou findaram mas deixase de iluminar o fato de que outro enorme setor de fontes históricas possíveis é constituído por textos e objetos que ainda estão em uso e se beneficiam de releituras ou reapropriações nas sociedades contemporâneas3 3 Por fim é bom lembrar que até o século XIX também a palavra monumento foi muito empregada com o sentido historiográfico de documento LE GOFF 1990 p487 ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 6 Variados tipos de fontes a conquista da diversidade Desde já é oportuno ressaltar que a ampliação documental ou a crescente multidiversificação das fontes históricas foi uma conquista gradual dos historiadores Verificouse mais intensamente à medida que a historiografia expandia seus limites no decurso do século XX O historiador moderno contribuindo para uma incessante renovação do seu próprio saber adotaria no mundo contemporâneo novas perspectivas passaria a dispor de novos métodos e a contar com o diálogo e intercurso de outras disciplinas como a Geografia a Linguística e a Psicologia apenas para mencionar três campos relacionados aos exemplos antes expostos a paisagem a palavra e o gesto Tudo isto e mais o interesse por novos objetos até então negligenciados pela História tradicional fez com que a historiografia contemporânea se encaminhasse para necessitar cada vez mais de outros tipos de fontes que não só as tradicionais crônicas e os habituais registros arquivísticos Assim se os arquivos oficiais continuam a ser fundamentais para o trabalho dos historiadores eles estão longe de serem suficientes para fornecerem tudo o que os historiadores necessitam para o seu trabalho Na verdade a questão de pesquisar ou não em fontes de arquivos tem muito mais a ver com o objeto específico ou com os problemas históricos que estão sendo examinados do que com qualquer outra coisa Por isso conforme já ressaltei anteriormente este aspecto está algo ligado à gradual imposição da expressão fonte histórica em detrimento da antiga ideia de documento histórico expressão mais afinada com a historiografia do século XIX por estar muito relacionada tanto aos arquivos que na época começaram a ser organizados mais sistematicamente como também à maneira como se concebia a História naquele momento De fato quando lançamos um olhar mais longo sobre a historiografia predominante no século XIX podemos notar que se esperava essencialmente nesta primeira fase da historiografia científica que o historiador documentasse ou mesmo comprovasse no sentido mais especificamente jurídico as afirmações que fizesse no decorrer de sua narrativa histórica A ideia de que o historiador deve provar tudo o que diz muito referencial no imaginário historiográfico da época seria depois substituída pela ideia mais corrente de que o historiador deve demonstrar tudo o que afirma uma diferença sutil mas significativa para as novas posturas historiográficas ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 7 Acrescento ao que já foi discutido até aqui sobre a tendência cada vez mais saliente de predomínio da expressão fonte histórica o fato de que o historiador de hoje não costuma mais esperar dos materiais e evidências que lhes chegam do passado apenas ou necessariamente uma prova encarando também as fontes como discursos a serem analisados ou como redes de práticas e representações a serem compreendidas A História na mesma medida em que deixou de ser limitadamente factual em favor de uma nova historiografia principalmente interpretativa não se interessa tão somente em oferecer informações descrever acontecimentos ou encadear eventos mas também e principalmente em elaborar interpretações demonstráveis e bem fundamentadas sobre os processos históricos em propor hipóteses em promover análises problematizar Onde começa a História no problema ou na fonte Este passo nos leva a uma questão crucial Um famoso dito proferido pelo historiador francês Charles Seignobos 18541942 costumava resumir a preocupação dominante da velha historiografia sem documentos não há História4 Seu conterrâneo Lucien Febvre 18581956 já um historiador de novo tipo e pertencente a uma nova geração historiográfica confrontou este dito com outro igualmente importante sem Problema não há História Esta nova e emblemática sentença foi muito representativa do alvorecer de uma nova historiografia Venerar o documento como o princípio essencial e único da operação historiográfica tal como pareciam propor alguns historiadores tradicionais como Seignobos e Langlois podia trazer a reboque a ideia incorreta de que os documentos já estão prontos à espera do historiador e de que os mesmos conteriam informações imobilizadas prontas para serem extraídas da documentação à maneira da pérola que se obtém da ostra Ao contrário ao situar o problema como o princípio de tudo Lucien Febvre chama atenção para o fato de que a própria documentação é delimitada ou constituída pelo historiador a partir do problema histórico que ele tem em vista e no próprio ato da operação historiográfica Além disso 4 Nada supre a ausência de documentos onde não há documentos não há história SEIGNOBOS e LANGLOIS 1946 p15 original 1898 ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 8 o que se pode buscar neste ou naquele documento histórico também dependeria essencialmente do problema Sem reduzirlhe a importância esta dessacralização do documento e sobretudo do chamado documento de arquivo foi decerto muito importante a seu tempo No seio de uma nova históriaproblema hoje já francamente estabelecida as fontes históricas assumem novos papéis para além da mera disponibilização e comprovação de conteúdo informativo As fontes não seriam meros registros repletos de informações a serem capturadas pelos historiadores mas também diversificados discursos a serem decifrados compreendidos interpretados Não mais seriam apenas uma solução para o problema mas parte do próprio problema Nas fontes espelhos de dupla face poderíamos ver o passado mas também a nós mesmos Não mais um solene ponto de partida ou de chegada o bigbang místico a partir da qual é gerada a operação historiográfica ou o Santo Graal finalmente encontrado depois de obstinadas aventuras as fontes seriam sim um lugar movente no qual o historiador interage com as ressonâncias deixadas pelas sociedades e processos que decidiu examinar Neste sentido as fontes são como que pontos de encontro portais através dos quais se tocam duas épocas Elas são o passadopresente para aqui empregar uma feliz expressão cunhada pelo historiador alemão Reinhart Koselleck 19232006 Por tudo isto quero propor um pequeno ajuste um novo dito que permitirá reunir os dois anteriores sem o encontro entre um problema e suas fontes possíveis não há História Para construir História não basta uma ideia na cabeça ou tampouco ter uma fonte nas mãos Estas duas condições são necessárias mas isoladas não são insuficientes Para se fazer História adequadamente e dentro do que se espera de uma historiografia científica o que se precisa é assegurar uma espécie de entrelaçamento entre estas duas instâncias É deste encontro entre o Problema e a Fonte envolvido pela vontade de fazer a História que tudo começa Atingimos aqui o mais íntimo âmago da palavra fonte Podemos finalmente compreender por que ela é a expressão ideal que se apresenta para se referir de maneira adequada ao extremamente vasto conjunto de documentos vestígios e ressonâncias que aos historiadores se oferecem para a percepção da passagem da vida humana pelo espaçotempo e para a compreensão dos processos históricos por ela gerados Fonte Fascinante palavra que tanto remete ao fluir as fontes dos rios como à ideia de princípio fonte da vida fonte de ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 9 energia fonte da informação Para os historiadores de fato as fontes podem e devem ser duplamente associadas à fluência e ao princípio Sim as fontes constituem de alguma maneira um dos princípios da História que sem elas não seria possível mas elas também são intrinsecamente o que assegura o próprio fluir do discurso do historiador um tipo de texto no qual tudo almeja ser demonstrado passo a passo revivido quando possível imaginado quando necessário problematizado sempre Um tipo de texto simultaneamente científico e artístico no qual se assegura ao leitor a possibilidade singular de transitar entre duas ou mais épocas distintas a do próprio historiador de onde surgem os problemas demandados pelo seu próprio tempo e aquelas épocas que já desapareceram ao deixaram uma infinidade de vestígios5 No fluir das fontes a História encontra a própria história Por uma tipologia das fontes históricas Vou propor na sequência desta comunicação uma tipologia de fontes históricas que dê conta da sua enorme diversidade de possibilidades Na organização esquemática proposta pelo Quadro 1 podemos ver três grandes campos de maior destaque que denominamos respectivamente 1 fontes materiais 2 fontes de conteúdo e 3 fontes imateriais Os tempos recentes anunciadores e portadores de uma autêntica revolução digital e informática que terminou por se espraiar planetariamente levamnos a admitir como fontes para a história contemporânea também um universo digital que simplificaremos com a designação fontes virtuais 4 5 Este ponto é importante Se o leitor do livro de História pertence à mesma época do historiador que o escreveu estará circulando entre seu próprio Presente o nível de análise do historiador e a época na qual se inscreve o objeto histórico examinado Entrementes quando lemos um livro de História escrito em uma época anterior à nossa por exemplo a História da Revolução Francesa escrita por Jules Michelet entre 1847 e 1853 temos a oportunidade de circular entre duas épocas que não são as nossas O próprio historiadorautor neste caso pode se tornar um objeto de análise para o leitor dele mais distanciado ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 10 Quadro 1 A diversidade de fontes conforme os seus suportes e linguagens No âmbito das fontes de conteúdo conforme se pode observar no quadro proposto concebemos uma partição em dois hemisférios laterais de modo a melhor ressaltar que de um lado existem as fontes verbais amplamente utilizadas pelos historiadores de todas as épocas e de outro lado as fontes nãoverbais cujo uso historiográfico tem crescido muito nos tempos recentes Como o próprio nome já diz as fontes nãoverbais ultrapassam o horizonte da linguagem verbalizada seja ela escrita ou falada e alcançam outros tipos de linguagens e formas de expressão principalmente centradas na exclusividade ou predomínio da imagem ou do som Ao mesmo tempo um grupo importante que chamei de fontes complexas procura abarcar os gêneros de realizações culturais e de fontes históricas que reúnem dentro de si mais de uma linguagem sendo que o grande exemplar desta multiplicidade coordenada de linguagens é o Cinema já que uma fonte fílmica contém verbalização falada e escrita imagem seja a imagemmovimento seja a imagem fixa das cenografias e por fim o som sob a forma de música trilha sonora sonoplastia e outras Incluise também aqui a performance através da atuação dos atores o que implica todo um sistema gestualizações modos de expressão diversos linguagens corporais entre outros aspectos performáticos O Teatro acompanha este exemplar em muitos aspectos ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 11 Vamos deixar que nosso olhar se retenha por ora no âmbito das fontes de conteúdo No interior de cada hemisfério fontes verbais e fontes nãoverbais situamos alguns retângulos maiores os quais expressam algumas categorias de fontes com relação aos tipos de suporte e à linguagem por elas empregados escrita oralidade imagem som Nas palavras menores sem quadratura registramos alguns gêneros de fontes que podem ser agrupados no interior destas categorias mais amplas ou mesmo entre elas se considerarmos o caso das fontes complexas6 Assim os manuscritos documentos de arquivos livros e impressos diversos acomodamse ou giram em torno da categoria das fontes textuais Mais adiante veremos que será preciso avançar para outra linha de reflexões de modo a que possamos compreender mais adequadamente as fontes textuais pois existem diferentes gêneros de textos como os tratados comerciais processos criminais ensaios obras literárias testamentos certidões diários relatos de viagem apenas para dar exemplos de alguns itens relacionáveis a uma diversidade realmente muito grande de distintos gêneros textuais Esta segunda diversidade será exposta no Quadro 2 relacionado às fontes textuais Por enquanto como o que nos interessa neste momento inicial é principalmente enfatizar a combinação entre os suportes e as modalidades mais amplas de linguagens verbal imagística sonora digital vamos apenas entender as fontes textuais nos termos de divisões mais simples como os manuscritos e fontes impressas os documentos de arquivo e os livros na verdade não deixam de ser submodalidades de fontes impressas lembrandose ainda que nos tempos mais recentes surgiu a possibilidade das fontes digitalizadas e disponibilizadas na rede mundial de computadores As fontes textuais as fontes orais as fontes iconográficas e as fontes sonoras incluindo aqui não apenas as fontes musicais mas também gravações de todos os tipos podem ser compreendidas tal como já ressaltamos como subcategorias das já mencionadas fontes de conteúdo Para os historiadores esta primeira variedade de fontes adquire importância principalmente pelo conteúdo que transmitem Isto posto é importante considerar que estas fontes de conteúdo também podem apresentar um suporte qualquer ou uma materialidade que permite que o conteúdo seja exposto de 6 O retângulo Fontes Complexas rigorosamente não deveria se localizar em nenhum lugar pois se espalha um pouco pelo esquema todo Mas decidimos indicar a sua presença no Quadro de modo a que este aspecto pudesse ser levado em consideração nas reflexões que desenvolveremos a seguir ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 12 uma maneira ou de outra Se não houver um suporte material tradicional como o suportelivro ou qualquer outra forma de materialidade impressa ao menos deve ocorrer ou ser assegurada a ocorrência de um meio de transmissão qualquer para este conteúdo A oralidade e a virtualidade são dois exemplos de transmissores substitutivos de suportes materiais pois um poema sempre pode ser recitado por alguém que o memorizou ou transmitido instantaneamente pela Internet As quatro modalidades básicas de fontes de conteúdo também implicam em diferentes tipos de linguagens que devem ser bem compreendidas conforme já veremos pois a escrita e a verbalização oral trazem implicações bem distintas quando comparadas àquelas que são trazidas pela imagem ou pela sonoridade Uma fonte textual por exemplo apresentase frequentemente em suporte livro jornal revista ou qualquer outro Nos dias de hoje conforme já assinalamos o mesmo texto que está registrado nas páginas de um livro também pode ser transmitido via Internet adquirindo uma existência virtual ou pode ser registrado em CDs e DVDs assumindo uma existência digital Não obstante o que interessa principalmente na fonte textual quando esta é utilizada pelo historiador costuma ser essencialmente o seu conteúdo ainda que uma reflexão sobre o suporte original de um texto possa ou deva também ser incorporada à análise historiográfica tal como têm proposto autores como Roger Chartier 1994 e Alberto Manguel 2004 em suas reflexões sobre a modalidade livro De igual maneira podemos apreender diretamente ou indiretamente cada texto hieroglífico desenhado nas paredes de uma pirâmide ou que se encontre talvez registrado em um papiro originário do Egito antigo Em cada um destes casos o historiador precisará ter consciência de que suporte trará eventualmente implicações bastante importantes para a análise historiográfica embora o principal da análise se volte mesmo para o conteúdo ao menos nos casos em que a mensagem textual for o principal objetivo historiográfico Ou seja os historiadores devem considerar em suas análises que há implicações concernentes ao fato de um texto ter sido escrito originalmente no suporte livro em suporte papiro nas paredes de uma pirâmide ou em um muro urbano mas de todo modo ainda assim eles poderão aqui analisar textos e imagens que importam muito mais pelo seu conteúdo Considerar o suporte em algum nível é importante sim para a análise historiográfica O autor de um grafite clandestino por exemplo precisou materializar a ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 13 sua mensagem escrita de maneira muito rápida de modo a não ter corrido o risco de ser capturado pela polícia O papiro apresenta formas de degradação e preservação distintas do papel moderno utilizado no livro e este atende também aos ditames editoriais que trabalham para transformar o objeto livro em algo atraente para o seu provável consumidor O suporte enfim é importante Não obstante não há de fato como negar que nas fontes de conteúdo como por exemplo as fontes textuais o conteúdo ou a mensagem situamse diretamente no centro da análise ao contrário do objeto de cultura material que estiver sendo analisado de um ponto de vista arqueológico no qual a análise da materialidade ocupa uma posição fundamental na interpretação do objeto O suporte além disso não deve ser apenas considerado para o caso das fontes textuais Também a fonte iconográfica uma pintura por exemplo é sempre produzida originalmente em um suporte como é o caso dos quadros em óleo sobre tela que afloram na pintura ocidental a partir do Renascimento italiano Mais ainda este suporte é único de maneira que só existe uma única Mona Lisa original produzida em 1503 pelo pintor renascentista Leonardo da Vinci 14521519 Entrementes a verdade é que a imagem da Mona Lisa pode ser transmitida através de inúmeras reproduções e também através dos recursos virtuais dos tempos contemporâneos da mesma forma que ocorre com um texto À parte isto o que nos interessa neste momento é que essencialmente quando o historiador se aproxima da Mona Lisa estará analisando principalmente o seu conteúdo imagético embora em uma pesquisa ou outra possa ocorrer o tratamento desta fonte no caso a Mona Lisa original como objeto material Evoquei mais atrás as fontes imateriais representadas na parte direita do Quadro 2 que de modo geral são aquelas que não admitem o suporte ou que dele prescindem muito claramente Um sistema de gestos uma festa dramática um ritual religioso uma prática que sobrevive milenarmente através de suas repetidas variações uma outra prática que já foi até mesmo tombada como patrimônio cultural imaterial eis aqui alguns exemplos que podem se referir a um tipo de fonte que rigorosamente falando não comporta o suporte material Estas fontes imateriais por excelência reatualizamse a cada momento e delas podem se valer os historiadores de muitas maneiras sem que se apresente aqui o suporte nem obrigatoriamente nem circunstancialmente Nada impede é claro que alguém filme uma performance de Festa Dramática e com isso superponha a esta realização específica de uma festa dramática ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 14 uma nova fonte audiovisual que é a mídia onde foi ou será gravada a fonte imaterial Mas agora teremos de fato uma nova fonte pontual visual e sonora ao mesmo tempo gravada no suporte mídia escolhido Da mesma maneira podemos facilmente gravar um comediante performatizando um repertório de anedotas que já fazem parte da cultura popular e assim por diante A piada a fonte imaterial em si já integrada a um repertório popular de anedotas que circula na sociedade deve ser distinguida é claro da performance específica desta piada que foi gravada pelo pesquisador Temos aqui enfim duas fontes envolvidas em superposição a piada circulante fonte imaterial e a piada performatizada gravada no registro digital em determinado lugar e data As fontes materiais 1 constituem um capítulo à parte com muitas implicações Conforme já foi dito as fontes materiais devem ser compreendidas como aquelas que são o próprio suporte os objetos de cultura material ou que se valem muito demarcadamente de suportes específicos para transmitir mensagens e conteúdos em diferentes tipos de linguagens em distintos níveis simbólicos e integrando variadas funções As inscrições por exemplo apresentam uma mensagem escrita que se mostra inseparável do seu objeto e um grafite certamente não faz sentido fora do muro que se tornou seu corpo Enquanto isso um poema adquire vida própria fora do livro em que foi publicado pela primeira vez e pode ser lido em voz alta sem necessitar deste suporte para a sua plena compreensão De fato quando ouvimos um poema é o texto o que realmente importa a não ser é claro no caso muito específico da poesia concreta que une o discurso poético a uma certa disposição gráfica que se torna ela mesma parte do poema e fornecedora de sentido Fontes materiais por excelência são os objetos os utensílios e artefatos mas também a espacialidade material tal como o tecido viário através do qual o historiador pode ler a história da cidade e também os lugares nos quais se fundam e se perpetuam as práticas culturais coletivas Chamo atenção para um problema importante que concerne à análise das fontes materiais No caso delas a forma material é a questão de primeira ordem além dos materiais concretos que constituem substancialmente a fonte Isso não quer dizer contudo que esta modalidade de fontes não apresente questões ideológicas simbólicas e discursivas a serem analisadas Pretendo mostrar isso a partir de alguns exemplos bem simples O primeiro deles refere se ao fato de que nos objetos materiais a forma e a função achamse particularmente ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 15 integradas de modo que é possível analisar uma a partir da outra o que é particularmente importante para a análise historiográfica Pensemos por exemplo em uma ponte Este artefato urbano ou rural foi idealizado pelos seres humanos para cumprir uma determinada função e é assim que as pontes reaparecem inúmeras vezes em realizações específicas que assumem em cada caso a forma mais apropriada A forma abaulada de uma ponte pode ser compreendida como a materialização de uma função específica que é a própria razão de ser deste objeto Melhor dizendo quando uma fonte possui a forma abaulada isso se dá para atender à combinação de suas duas funções principais permitir o trânsito de uma à outra margem do rio e permitir que abaixo de si as embarcações circulem Se a ponte é de içar isso significa que eventualmente o rio é atravessado por grandes embarcações Conforme se vê a mais simples análise da forma de um objeto já permite entrever sua função pois esta se materializa na própria matéria e formato do objeto Uma colher foi feita para escavar comida Um garfo é constituído em seu formato para espetar comida e depois içála à boca da mesma forma que no formato e nos materiais que constituem uma faca bem como na presença de um lado cortante fica muito explícita a sua função de cortar e partir Os objetos desta maneira falam de si mesmos e de suas funções através de seus formatos e dos materiais que os constituem Eles também têm uma história e devem ser inseridos na série histórica que os redefiniu além de serem comparados com outros objetos de mesmo tipo presentes na sua contemporaneidade Por fim em um pequeno triângulo à parte 4 situamos as fontes virtuais Geradas pela Internet as fontes virtuais podem conduzir textos e imagens e haverá um momento em que talvez se tornem aptas a conduzir informações que permitam a impressão de um objeto de três dimensões Quando um site expõe virtualmente um texto estamos diante da fonte virtual mas também da fonte textual que a nós se apresenta e que facilmente poderia ser reconduzida às páginas de um livro impresso Podemos vislumbrar no mesmo site a imagem de uma pintura de Leonardo da Vinci ou de Pablo Picasso e também poderemos têlas no instante seguinte se apertarmos o comando que aciona a impressora ligada ao computador No universo tecnológico atual enfim é possível um trânsito imediato entre o virtual e o impresso e deste àquele através do recurso de scanner Se dermos vazão à imaginação da ficção científica talvez se torne mesmo possível o trânsito entre o material e o virtual e o registro rigoroso da ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 16 combinatória de padrões que constituem um indivíduo vivo poderá um dia se abrir até mesmo a possibilidades como o teletransporte no qual o material se transforma em virtual e depois é reconvertido ao seu estado material de origem As fontes virtuais desta maneira constituem um caso à parte porque ampliam as possibilidades de conversão e reconversão de fontes textuais sonoras imagéticas materiais e mesmo naturais O Quadro 1 enfim procurou apenas retratar uma complexidade e não resolvêla Apenas para situar uma nova variedade e mostrar como a diversificação de tipos de fontes prosseguiria por dentro desta variedade inicial quero registrar um segundo quadro agora só relativo às fontes textuais Os limites de espaçotexto desta comunicação não me permitirão comentálo em maior detalhe como fiz com o Quadro 1 mas o leitor poderá encontrar os esclarecimentos detalhados deste segundo quadro proposto Fontes Textuais no livro Fontes Históricas uma introdução aos seus usos historiográficos 2019 que acabei de publicar ANPUH RJ 2019 História e Parcerias Fontes Históricas José DA BARROS 17 REFERÊNCIAS BARROS José DAssunção Fontes Históricas uma introdução aos seus usos historiográficos Petrópolis Editora Vozes 2019 BARROS José DAssunção A Fonte Histórica e seu lugar de produção Petrópolis Editora Vozes 2020 CHARTIER Roger 1994 A Ordem dos Livros leitores autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII Brasília Editora UNB original 1992 FEBVRE Lucien Combates pela história Lisboa Ed Presença 1989 original 1953 KOSELLECK Reinhart 2006 Futuro Passado contribuição à semântica dos tempos históricos Rio de Janeiro Contraponto original 1979 LE GOFF Jacques História e Memória Campinas Unicamp 1990 original 1984 MANGEL A Uma história da leitura São Paulo Cia das Letras 2004 orig 1996 SEIGNOBOS C e LANGLOIS C 1946 Introdução aos Estudos Históricos São Paulo Renascença original 1897