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Filosofia

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II GUINADA PRAGMÁTICA 4 AÇÕES ATOS DE FALA INTERAÇÕES MEDIADAS PELA LINGUAGEM E MUNDO DA VIDA I É possível desindar melhor os vários nexos que existem entre a ação e a linguagem entre o agir e o falar se tomarmos como ponto de partida exemplos simples e claros¹ Para ilustrar o agir eu tomo certas atividades corporais comuns do diaadia tais como correr fazer entregas pregar serrar e explicito o falar lançando mão de atos de fala tais como ordens confissões constatações Em ambos os casos estamos lidando com ações em sentido amplo Entretanto a fim de não misturar as diferenças a serem realçadas a seguir escolho de antemão dois modelos diferentes de descrição Ações em sentido estrito ou seja atividades nãolingüísticas do tipo citado como exemplo são descritas por mim como atividades orientadas para um fim Zwecktätigkeiten através das quais um ator Aktor intervém no mundo a fim de realizar fins propostos empregando meios adequados² Eu descrevo os proferimentos lingüísticos como atos através dos quais um falante gostaria de chegar a um entendimento com um outro falante sobre algo no mundo Eu posso levar a cabo essas descrições assumindo a perspectiva do agente portanto da primeira pessoa Contrastam com esta perspectiva as descrições feitas na perspectiva de uma terceira pessoa que observa o modo como um ator atinge um objetivo através de uma atividade orientada para um fim ou como ele através de um ato de fala chega a um entendimento com alguém sobre algo Descrições na perspectiva da segunda pessoa são sempre possíveis ¹ Dado o caráter da presente contribuição na qual pretendo esboçar globalmente meu princípio pragmáticoformal evito apresentar provas mais detalhadas 2 NT traduzo aqui o termo Aktor criado por Habermas por ator no sentido de atoragente 65 JÜRGEN HABERMAS PENSAMENTO PÓSMETAFÍSICO Estudos Filosóficos tempo brasileiro Rio de Janeiro RJ 1990 quando se trata de ações de fala Você me ordena ele ordena que eu deixe cair a arma no caso de atividades orientadas para um fim essas mesmas descrições somente são possíveis quando introduzidas em contextos cooperativos Você me entrega ele entrega a arma 1 Falar versus Agir Por que será que as ações linguísticas e nãolinguísticas há pouco apresentadas dependem de condições específicas de compreensão A fim de explicar esse fato poderíamos apelar inicialmente para a diferença que existe entre as perspectivas de descrição Quando eu observo que um amigo passa correndo no outro lado da rua eu posso identificar certamente a sua corrida como sendo uma ação E a proposição ele corre na rua pode servir em muitos contextos como descrição de uma ação através dela podemos atribuir ao ator a intenção de atingir o mais rapidamente possível um lugar situado no ponto em direção ao qual ele está correndo No entanto não podemos inferir essa intenção da simples observação nós supomos ao invés disso um contexto geral que justifica a suposição de uma tal intenção Não obstante a ação carece ainda de uma ulterior interpretação o que não deixa de ser curioso O amigo pode estar correndo porque não quer perder o seu trem porque não deseja chegar tarde à aula ou porque não quer chegar atrasado a um encontro marcado mas pode ser também que ele está fugindo porque se sente perseguido que ele escapou de um atentado ou que ele por outros motivos entrou em pânico e simplesmente corre para cá e para lá etc Na perspectiva de um observador nós somos capazes de identificar uma ação mas não estamos em condições de descrever com segurança a execução de um plano específico de ação para chegar a isso teríamos que conhecer a respectiva intenção que comanda a ação Nós podemos inferir essa intenção lançando mão de indicadores os quais adscrevemos hipoteticamente ao agente para nos certificarmos da intenção teríamos que ser capazes de assumir a perspectiva do participante Ora a atividade nãolinguística não oferece por si mesma essa perspectiva ela não revela a partir de si mesma o modo como foi planejada Somente os atos de fala conseguem preencher essa condição Quando eu capto a ordem que minha amiga me dá ou a outrem ao dizer que eu devo ou ele deve deixar cair a arma então eu sei com bas 66 tante certeza qual foi a ação que ela realizou ela proferiu esta determinada ordem Essa ação não carece de interpretação no mesmo sentido que as passadas do amigo apressado Pois no caso exemplar do significado verbal um ato de fala revela a intenção do falante um ouvinte pode deduzir do conteúdo semântico do proferimento o modo como a sentença proferida é utilizada ou seja pode saber qual é o tipo de ação realizado através dele As ações linguísticas interpretamse por si mesmas uma vez que possuem uma estrutura autoreferencial O componente ilocucionário determina o sentido de aplicação do que é dito através de uma espécie de comentário pragmático A idéia de Austin segundo a qual nós ao dizermos algo fazemos algo implica a recíproca ao realizarmos uma ação de fala dizemos também o que fazemos Esse sentido performativo de uma ação de fala só é captado por um ouvinte potencial que assume o enfoque de uma segunda pessoa abandonando a perspectiva do observador e adotando a do participante É preciso falar a mesma linguagem e como que entrar no mundo da vida compartilhado intersubjetivamente por uma comunidade linguística a fim de poder tirar vantagens da peculiar reflexividade da linguagem natural e poder apoiar a descrição de uma ação executada por palavras sobre a compreensão do autocomentário implícito nessa ação verbal Os atos de fala distinguemse das atividades meramente nãolinguísticas em primeiro lugar através da feição reflexiva da autointerpretação e em segundo lugar através do tipo de fins que podem ser visados bem como através do tipo de sucessos que podem ser conseguidos Num nível geral certamente todas as ações linguísticas e não linguísticas podem ser apreendidas como uma atividade orientada para um fim No entanto a partir do momento em que desejamos fazer uma distinção entre ação de entendimento e atividade orientada para um fim temos que levar em conta que a teoria da linguagem e a teoria da ação não atribuem o mesmo sentido ao jogo teleológico de linguagem no qual os atores perseguem objetivos têm sucesso ou produzem resultados da ação os mesmos conceitos básicos são interpretados de modo diferente Para os objetivos a que nos propomos é suficiente descrever globalmente a atividade orientada para um fim como sendo uma intervenção causal no mundo objetivo efetiva e dirigida para um fim Ao fim escolhido sob pontos de vista axiológicos corresponde um estado no mundo que deve adquirir forma e 67 existência através da escolha e da aplicação de meios supostamente adequados E subjaz no plano de ação um significado da situação na qual o alvo da ação a é determinado no mundo objetivo independentemente dos meios intervenientes b como se fora um estado a ser produzido de modo causal c É interessante observar que as ações da fala não se deixam subsumir facilmente a esse modelo da atividade orientada para um fim de qualquer modo o próprio falante não pode visar seus fins ilocucionários sob essa descrição ac Se considerarmos as ações de fala como meios para se atingir o entendimento e se subdividirmos o fim geral do entendimento nos fins subalternos compreensão por parte do ouvinte do significado expresso pela fala e reconhecimento do proferimento como verdadeiro então a descrição que apresenta o modo como um falante pode atingir esses fins não preencherá nenhuma das três condições apontadas a Os fins ilocucionários não podem ser definidos independentemente dos meios linguísticos do entendimento Isso significa que os proferimentos gramaticais são instrumentos do entendimento o que os distingue por exemplo das operações de um cozinheiro que representam os meios para a produção de alimentos comestíveis É que o meio da linguagem natural e o telos do entendimento interpretamse reciprocamente um não pode ser explicado sem o recurso ao outro b O falante não pode visar o fim do entendimento como algo a ser produzido de modo causal porque o sucesso ilocucionário que ultrapassa a simples compreensão do que é dito depende do assentimento racionalmente motivado do ouvinte Para que possa haver acordo na coisa é preciso que um ouvinte o sele de certo modo voluntariamente através do reconhecimento de uma pretensão de validade criticável validez validade situada NT Fins ilocucionários não podem ser atingidos por outro caminho que não seja o da cooperação pois eles não se encontram à disposição do participante individual da comunicação do mesmo modo que os efeitos produzíveis de modo causal Um falante não pode atribuir a si mesmo um efeito ilocucionário como se fosse o agente que situa sua atividade na linha de um fim adescrevendo a si mesmo o resultado de sua intervenção no conjunto de processos do mundo objetivo c Finalmente o processo de comunicação e o resultado a ser produzido por ele não constituem na perspectiva dos participantes esta 68 dos do mundo objetivo Os atores que agem no nível dos fins defrontamse no mundo na qualidade de entidades apesar da liberdade de escolha atribuída reciprocamente um não pode atingir o outro a não ser como objeto ou como rival Ao passo que os falantes e ouvintes assumem um enfoque performativo no qual eles se defrontam reciprocamente como membros do mundo vital de sua comunidade lingüística compartilhada intersubjetivamente isto é como segundas pessoas Enquanto tentam chegar a um entendimento mútuo sobre algo os fins ilocucionários visados situamse na ótica deles além do mundo ao qual eles podem se referir no enfoque objetivador de um observador e no qual podem intervir através de uma atividade teleológica Nesta medida eles assumem uma posição transmundana uns em relação aos outros Apresentamos duas características para distinguir os atos de fala em relação às simples atividades não lingüísticas os atos que se interpretam a si mesmos revelam uma estrutura reflexiva eles visam fins ilocucionários que não assumem o status de um fim realizável no interior do mundo que não podem ser realizados sem a cooperação e o assentimento livre de um destinatário e que só podem ser explicados pelo recurso à idéia de entendimento que habita no interior do próprio meio lingüístico Diferem nos dois casos as condições de compreensão e os conceitos fundamentais com cujo auxílio os próprios atores poderiam descrever os seus fins A relativa independência dos tipos de ação descritos pode ser confirmada além disso se levarmos em conta os respectivos critérios para avaliar os sucessos da ação As intervenções na linha de atividades orientadas para um fim não correspondem às mesmas condições de racionalidade inerentes aos atos de fala A racionalidade não tem tanto a ver com a posse do saber do que com o modo como os sujeitos capazes de falar e de agir empregam o saber Ora tanto as atividades nãolingüísticas como as ações de fala encarnam um saber proposicional contudo o modo específico de empregar o saber decide sobre o sentido da racionalidade que serve como medida para o sucesso da ação Se tomarmos como ponto de partida o uso nãocomunicativo do saber proposicional em ações teleológicas iremos detectar a idéia da racionalidade orientada para um fim Zweckrationalität tal como foi elaborada na teoria da escolha racional E se partirmos do uso comunicativo do saber proposicional em atos de fala descobriremos a idéia da racionalidade orientada para o entendimento Verständigungsra 69 tionalität que numa teoria do significado pode explicitar apoiandose nas condições para a aceitabilidade de ações de fala Subjaz a esse conceito a experiência intuitiva da força da fala argumentativa que funda o consenso e é livremente unificadora A racionalidade orientada para um fim aponta para as condições necessárias a uma intervenção eficiente do ponto de vista causal no mundo dos estados de coisas existentes ao passo que a racionalidade dos processos de entendimento medese pelo conjunto de condições de validade exigidas para atos de fala por pretensões de validez que se manifestam através de atos de fala e por razões para o resgate discursivo dessas pretensões O formato das condições requeridas para a racionalidade de ações de fala bem sucedidas não é o mesmo das condições para o sucesso da racionalidade da atividade que visa fins Essa observação não pretende ser mais do que um indício para uma afirmação subseqüente a saber que a racionalidade orientada para um fim e a racionalidade orientada para o entendimento não são intercambiáveis Sob essa premissa eu considero a atividade que visa fins e o agir orientado para o entendimento como tipos elementares de ação irredutíveis um ao outro Nas páginas seguintes iremos concentrar nossa atenção nas ligações que ambos os tipos assumem em interações mediadas lingüisticamente De uma destas ligações surge aquilo que eu chamo de agir comunicativo 2 Agir Comunicativo versus Agir Estratégico Eu emprego o termo agir social ou interação como um conceito complexo que pode ser analisado com o auxílio dos conceitos elementares agir e falar Nas interações medidas pela linguagem às quais limitaremos a partir de agora nosso discurso esses dois tipos de ação encontramse ligados um ao outro É verdade que eles aparecem em constelações diferentes quando as forças ilocucionárias dos atos de fala assumem o papel de coordenadoras da ação a constelação é uma e será outra toda vez que as ações de fala estiverem subordinadas de tal modo à dinâmica extralingüística das influências de atores que se influenciam mutuamente através de uma atividade orientada para um fim que as energias de ligação especificamente lingüísticas deixam de ser utilizadas Podemos entender uma interação como sendo a solução para um problema de coordenação como coordenar entre si os planos de ação de 70 vários atores de tal modo que as ações de Alter possam ser engatadas nas de Ego Ligação significa aqui inicialmente apenas a redução do campo de jogo de possibilidades de escolha contingentes e conflitantes tomando uma medida a qual torna possível um entrelaçamento radial de temas e de ações em espaços sociais e épocas históricas Se assumirmos a perspectiva dos participantes a necessidade de contato resultará do próprio interesse na perseguição de planos de ação específicos a cada um Uma ação teleológica pode ser descrita como a realização de um plano que se apóia no significado da situação do ator Ao executar um plano de ação ele domina uma situação e a situação de ação forma uma parte do mundo ambiente interpretado pelo ator Esse recorte constituise à luz das possibilidades de ação que o ator considera relevantes tendo em vista o sucesso de um plano O problema da coordenação colocase a partir do momento em que o ator só pode executar o seu plano de ação de modo interativo isto é com o auxílio ou mediante a omissão de auxílio de pelo menos um outro ator Do modo de Alter conectar seus planos e ações aos planos e ações de Ego resultam diferentes tipos de interações mediadas lingüisticamente Os tipos de interação distinguemse em primeiro lugar de acordo com o mecanismo de coordenação da ação é preciso saber antes de mais nada se a linguagem natural é utilizada apenas como meio para a transmissão de informações ou também como fonte da integração social No primeiro caso tratase no meu entender de agir estratégico no segundo de agir comunicativo No segundo caso a força consensual do entendimento lingüístico isto é as energias de ligação da própria linguagem tornamse efetivas para a coordenação das ações ao passo que no primeiro caso o efeito de coordenação depende da influência dos atores uns sobre os outros e sobre a situação da ação a qual é veiculada através de atividades nãolingüísticas Vistos na perspectiva dos participantes os dois mecanismos o do entendimento motivador da convicção e o da influenciação que induz o comportamento excluemse mutuamente Ações de fala não podem ser realizadas com a dupla intenção de chegar a um acordo com um destinatário sobre algo e ao mesmo tempo produzir algo nele de modo causal Na perspectiva de falantes e ouvintes um acordo não pode ser imposto a partir de fora e nem ser forçado por uma das partes seja através da intervenção direta na situação da ação seja indiretamente 71 através de uma influência calculada sobre os enfoques proposicionais de um oponente Aquilo que se obtêm visivelmente através de gratificação ou ameaça sugestão ou engano não pode valer intersubjetivamente como acordo tal intervenção fere as condições sob as quais as forças ilocucionárias despertam convicções e geram contactos Uma vez que o agir comunicativo depende do uso da linguagem dirigida ao entendimento ele deve preencher condições mais rigorosas Os atores participantes tentam definir cooperativamente os seus planos de ação levando em conta uns aos outros no horizonte de um mundo da vida compartilhado e na base de interpretações comuns da situação Além disso eles estão dispostos a atingir esses objetivos mediatos da definição da situação e da escolha dos fins assumindo o papel de falantes e ouvintes que falam e ouvem através de processos de entendimento O entendimento através da linguagem funciona da seguinte maneira os participantes da interação unemse através da validade pretendida de suas ações de fala ou tomam em consideração os dissensos constatados Através das ações de fala são levantadas pretensões de validade criticáveis as quais apontam para um reconhecimento intersubjetivo A oferta contida num ato de fala adquire força obrigatória quando o falante garante através de sua pretensão de validez que está em condições de resgatar essa pretensão caso seja exigido empregando o tipo correto de argumentos O agir comunicativo distinguese pois do estratégico uma vez que a coordenação bem sucedida da ação não está apoiada na racionalidade teleológica dos planos individuais de ação mas na força racionalmente motivadora de atos de entendimento portanto numa racionalidade que se manifesta nas condições requeridas para um acordo obtido comunicativamente Ofertas de atos de fala somente podem é verdade desenvolver um efeito coordenador de ações porque a força cogente de uma ação de fala compreensível para o ouvinte e aceita por ele se difunde também para as consequências relevantes da ação que resultam do conteúdo semântico do proferimento seja de modo assimétrico para ouvintes e falantes tomados isoladamente seja de modo simétrico para ambas as partes Quem aceita uma ordem sentese obrigado a executála quem faz uma promessa sentese no dever de cumprila caso seja necessário quem aceita uma asserção acredita nela e comportase de acordo com ela Eu caracterizei o compreender e o aceitar de ações de fala como sucessos ilocucioná 72 rios todos os fins e efeitos que vão além disso devem ser chamados perlocucionários Eu quero fazer uma distinção entre os efeitos perlocucionários 1 que resultam do significado do ato de fala e os efeitos perlocucionários 2 que não resultam do que é dito como se fossem sucessos gramaticalmente regulados mas que se põem de modo contingente porém condicionado através de um sucesso ilocucionário O ouvinte NT compreende sucesso ilocucionário 1 e aceita sucesso ilocucionário2 a ordem de dar dinheiro a Y O dá dinheiro a Y sucesso perlocucionário1 e alegra com isso a mulher dele sucesso perlocucionário2 Esse último tipo de efeitos não regulados gramaticalmente será via de regra um componente público da interpretação da situação ou pelo menos um tipo de efeitos que poderiam ser declarados sem prejudicar o curso da ação O contrário acontece quando o falante pretende através de sua ordem levar o destinatário a dar dinheiro a Y para que este tenha condições de realizar um assalto crime que não teria o assentimento de O como F falante NT muito bem sabe Nesse caso a execução do crime planejado transformarseia num efeito perlocucionário3 o qual não aconteceria caso o falante tivesse declarado desde o início que tal efeito seria o alvo Esse caso de agir estratégico latente oferece um exemplo interessante porém deficiente para o modo como o mecanismo de entendimento trabalha na construção de interações o ator somente conseguirá atingir seu objetivo estratégico de cumplicidade numa ação criminosa na forma de um efeito perlocucionário3 não público se sua ordem puder produzir um sucesso ilocucionário ora isso só será possível se o falante afirmar que irá seguir sem reservas o objetivo ilocucionário de seu ato de fala portanto se deixar o ouvinte na ignorância sobre o real e unilateral rompimento dos pressupostos do agir orientado ao entendimento O uso estratégico latente da linguagem vive parasitariamente do uso normal da linguagem porque ele somente pode funcionar quando pelo menos uma das partes toma como ponto de partida que a linguagem está sendo utilizada no sentido do entendimento Esse status deduzido aponta para a lógica própria subjacentena comunicação linguística a qual só tem efeitos coordenadores durante o tempo em que submeter a atividade teleológica dos atores a determinados limites É verdade que no próprio agir comunicativo as cadeias de ações dos atores singulares estruturadas teleologicamente atravessam os processos 73 de entendimento porque as atividades orientadas para um fim dos participantes da interação estão unidas umas às outras através do meio que é a linguagem Contudo o meio lingüístico só pode desempenhar essa função de cópula se ele interromper os planos de ação controlados respectivamente pelo próprio sucesso e se modificar temporariamente o modo da ação O contato comunicativo através de atos de fala realizados sem reservas coloca as orientações da ação e os processos da ação talhados conforme o respectivo ator sob os limites estruturais de uma linguagem compartilhada intersubjetivamente Essas limitações impõem aos agentes uma mudança de perspectiva os atores têm de abandonar o enfoque objetivador de um agente orientado pelo sucesso que deseja produzir algo no mundo e assumir o enfoque performativo de um falante o qual procura entenderse com uma segunda pessoa sobre algo no mundo Sem essa reorientação que leva em conta as condições do uso da linguagem voltada ao entendimento eles não teriam acesso ao potencial das energias de ligação existentes na linguagem Por isso a ação latentemente estratégica fracassa tão logo o destinatário descobre que o falante não deixou realmente de lado a sua busca de sucesso No agir estratégico a constelação do agir e do falar modificase Aqui as forças ilocucionárias de ligação enfraquecem a linguagem encolhese transformandose num simples meio de informação É possível ilustrar melhor esse fato tomando o exemplo há pouco apresentado 1 F Eu exorto você a dar dinheiro a Y No caso do agir comunicativo o destinatário de uma ordem ou de uma exigência precisa conhecer o contexto normativo que autoriza o falante a fazer sua exigência e que justifica destarte a sua expectativa de que o destinatário terá razões para realizar a ação solicitada O conhecimento das condições de sucesso para a entrega do dinheiro dedutíveis do conteúdo proposicional 1 não é suficiente para se compreender o significado ilocucionário dessa ação de fala isto é o seu caráter específico de exigência Para o conhecimento das condições de sucesso a é necessário acrescentar as condições b sob as quais o falante pode ter razões para considerar válida uma exigência de conteúdo a ou seja neste caso para considerála justificada normativamente F pode dirigirse por exemplo a um amigo a um colega sabidamente generoso em questões de dinheiro a um credor ou a um cúmplice E caso a pessoa abordada não aceite ela estará recusando uma pretensão de validez normativa 74 10 Não você não tem o direito de solicitar de mim tal coisa Em contextos de agir manifestamente estratégico tais pretensões de validez são minadas pretensões de verdade proposicional de correção normativa e de veracidade subjetiva Suspendese o pressuposto de que a orientação está se dando na base de pretensões de validade A expressão Mãos ao alto proferida pelo assaltante de banco o qual apontando uma pistola exige dinheiro do caixa revela de modo drástico que nessa situação as condições de validade normativa foram substituídas por condições de sanção As condições de aceitabilidade de um imperativo despido de qualquer cobertura normativa têm de ser substituídas por tais condições de sanção Assim também no caso da exigência 1 Caso o destinatário seja fiel à lei e saiba que Y pretende utilizar o dinheiro a ser entregue por ele para preparar uma ação criminosa F terá que complementar sua exigência fazendo referência a possíveis sanções e afirmar por exemplo 2 F Eu exorto você a dar dinheiro a Y senão eu comunico à polícia que você está metido nesse negócio até o pescoço A dissolução do pano de fundo normativo revelase sintomaticamente através da estruturaseentão da ameaça a qual coloca pretensões de poder no lugar das pretensões de validade pressupostas no agir comunicativo Nisso se manifesta a constelação modificada do agir e do falar No agir manifestamente estratégico os atos de fala emasculados ilocucionariamente perdem o papel de coordenação da ação em favor de influências externas à linguagem A linguagem debilitada passa a preencher apenas as funções de informação que restam quando se retira do entendimento linguístico a formação do consenso o que faz com que a validade do proferimento deixada em suspenso na própria comunicação não possa mais ser apreendida diretamente A ação de fala 2 só é exortação na aparência de fato ela é uma ameaça 2a F Se você não der dinheiro a Y eu comunico à polícia que Ameaças são exemplos de atos de fala que desempenham uma função instrumental em contextos de agir estratégico que perderam sua força ilocucionária e que emprestam o seu significado ilocucionário a outros contextos de aplicação nos quais normalmente as mesmas frases são proferidas numa perspectiva de entendimento Tais atos que se tornam independentes de modo perlocucionário não são realmente atos ilocucio 75 nários pois não visam a tomada de posição racionalmente motivada de um destinatário O modo como as ameaças são repelidas revela isso 2a F Não você não tem nada de concreto contra mim O não referese a condições empíricas as únicas sob as quais a ameaça poderia obter o efeito perlocucionário desejado O ouvinte contesta as razões que deveriam movêlo a agir do modo prognosticado por F Ameaças não se apóiam como os atos ilocucionários em razões gerais independentes do destinatário capazes de convencer a qualquer um Pelo contrário o seu componente seentão aponta para razões particulares capazes de constituir para determinados destinatários e em circunstâncias especiais um motivo empírico para que reajam de um determinado modo Os próprios xingamentos por se tratar de imperativos simples possuem muitas vezes um caráter ambíguo Eles podem ter um respaldo normativo e expressar por exemplo um julgamento moral podem outrossim tornarse independentes de modo perlocucionário e servir por exemplo para assustar ou incutir medo no destinatário II O conceito agir comunicativo introduzido provisoriamente está apoiado numa determinada concepção de linguagem e de entendimento E esta concepção deve ser desenvolvida em contextos das teorias do significado Não posso aprofundar aqui esta fundamentação No entanto desejo ao menos introduzir e ventilar a idéia fundamental da teoria formal e pragmática do significado a qual se refere ao nexo interno existente entre significado e validade 1 Através disso porém ainda não se disse nada sobre a fecundidade do princípio teórico no campo das ciências sociais O conceito agir comunicativo deve comprovarse na teoria sociológica da ação E esta pretende esclarecer de que modo é possível a ordem social Neste trabalho a análise dos pressupostos do agir comunicativo pode servir de auxílio Esta análise explora as dimensões que servem de pano de fundo ao mundo da vida o qual estabiliza e entrelaça as interações transformandoas em agregados de nível superior 2 76 1 A Guinda Pragmática na Teoria do Significado O esboço do agir comunicativo é um desdobramento da intuição segundo a qual o telos do entendimento habita na linguagem O conceito entendimento possui conteúdo normativo que ultrapassa o nível da compreensão de uma expressão gramatical Um falante entendese com outro sobre uma determinada coisa E ambos só podem visar tal consenso se aceitarem os proferimentos por serem válidos isto é por serem conformes à coisa O consenso sobre algo medese pelo reconhecimento intersubjetivo da validade de um proferimento fundamentalmente aberto à crítica Existe certamente uma diferença entre compreender o significado de uma expressão linguística e entenderse com alguém sobre algo com o auxilio de uma expressão tida como válida da mesma forma é preciso distinguir claramente entre um proferimento válido e um proferimento tido como válido No entanto não é possível dissociar plenamente questões de significado de questões de validade Não é possível isolar de um lado a questão fundamental da teoria do significado isto é o que significa compreender o significado de uma expressão linguística e de outro lado a questão referente ao contexto em que essa expressão pode ser aceita como válida Pois não saberíamos o que significa compreender o significado de uma expressão linguística caso não soubéssemos como utilizála para nos entendermos com alguém sobre algo Podemos ler nas próprias condições para a compreensão de expressões linguísticas que os atos de fala que podem ser formados com o seu auxílio apontam para um consenso racionalmente motivado sobre o que é dito Nesta medida a orientação pela possível validade de proferimentos faz parte das condições pragmáticas não só do entendimento mas também da própria compreensão da linguagem Na linguagem as dimensões do significado e da validade estão ligadas internamente A semântica da verdade apropriouse desta idéia desde a época de Frege nós compreendemos uma proposição assertórica quando sabemos o que é o caso se ele for verdadeiro No entanto não é por acaso que se toma aqui uma proposição como modelo não um ato de fala mais precisamente uma proposição assertórica No âmbito desta teoria a problemática da validade é localizada exclusivamente na relação da língua 77 gem com o mundo tido como a totalidade dos fatos A validade é equiparada à verdade de asserções por isso um nexo entre o significado e a validez de expressões linguísticas só se estabelece no discurso que constata fatos No entanto a função de representação constitui conforme já fora observado por Karl Bühler apenas uma de três funções originárias da linguagem Enunciados utilizados de modo comunicativo servem simultaneamente para expressar intenções ou experiências de um falante para representar estados de coisas ou algo que aparece no mundo e para contrair relações com um destinatário Nessas três funções se refletem os três aspectos fundamentais do entenderse com um outro sobre algo Existe uma relação tríplice entre o significado de uma expressão linguística e a o que se entende com ela b o que se diz nela c o modo de sua utilização no ato de fala Curiosamente as três teorias do significado mais conhecidas esclarecem o aspecto global do significado a partir de uma única função da linguagem tomando como ponto de partida apenas um dos três raios de significação que se encontram na linguagem amarrados em feixe A semântica intencionalista de Grice até Bennett e Shiffer toma como ponto de partida fundamental aquilo que o falante pensa ou procura dar a entender ao utilizar uma expressão numa determinada situação a semântica formal de Frege através do primeiro Wittgenstein até Dummett parte das condições sob as quais uma proposição é verdadeira ou é tomada verdadeira e a teoria do significado enquanto uso inaugurada pelo segundo Wittgenstein refere tudo em última instância aos contextos de interação praticados nos quais as expressões linguísticas preenchem funções práticas Cada uma destas três teorias do significado concorre com as outras ligandose precisamente a um único aspecto do processo de entendimento Elas pretendem esclarecer o significado de uma expressão linguística numa única perspectiva seja na perspectiva do que é pensado como significado pensado seja na perspectiva do que é dito como significado textual seja na perspectiva do uso em interações como significado do proferimento A estilização de apenas um dos aspectos que aparecem simultaneamente no esquema de Bühler criou dificuldades que eu não posso discutir aqui Como resposta a elas surgiu a teoria da ação de fala desenvolvida a partir de Austin e Searle Esta teoria reserva um lugar adequado à intenção do falante sem reduzir simplesmente o entendimento que se dá através da linguagem ao 78 agir estratégico como é o caso da semântica de Grice Ao levar em conta o componente ilocucionário ela considera também a relação interpessoal e o caráter accional inerente ao falar sem excluir porém como é o caso da pragmática wittgensteiniana as pretensões de validez que apontam para o além da provincialidade dos jogos particulares de linguagem que em princípio têm os mesmos direitos Ao esboçar as condições de preenchimento a teoria da ação de fala respeita igualmente a relação que existe entre linguagem e mundo entre enunciado e estado de coisas É verdade que com essa determinação unidimensional da validez como preenchimento de condições de verdade proposicional ela fica presa ao cognitivismo da semântica da verdade Eu constato precisamente nisso a deficiência a ser sanada no momento em que reconhecemos que todas as funções da linguagem e não apenas as da representação estão prenhes de pretensões de validez O enunciado Eu dou dinheiro a Y é modalmente equívoco conforme o contexto ele pode ser decodificado como uma promessa uma confissão ou ainda como uma previsão 3 F Eu prometo a você que darei dinheiro a Y 4 F Eu confesso a você que estou dando dinheiro a Y 5 F Eu posso garantir a você que X o falante dará dinheiro a Y As respectivas negações através das quais o ouvinte poderia recusar essas ofertas de atos de fala revelam os tipos de pretensões de validez que um falante pode unir a promessas confissões e previsões 3 0 Não nessas coisas você nunca foi confiável 4 0 Não você apenas quer me enganar 5 0 Não você nem tem dinheiro Através de 3 o falante levanta a pretensão normativa de contrair uma obrigação através de 4 a pretensão à sinceridade subjetiva isto é de pensar o mesmo que está dizendo e através de 5 uma pretensão à verdade proposicional De resto é possível negar um ato de fala não somente sob o aspecto de validez respectivamente dominante A ordem 1 F Eu exorto você a dar dinheiro a Y pode ser recusada não somente através de 1 0 Não você não tem nenhum direito a isso mas também através da dúvida com relação à sinceridade do falante ou 79 com relação aos pressupostos de existência do conteúdo da asserção 1 0 Não você não está falando sério Você apenas quer brincar comigo 1 0 Não eu nem tenho como encontrar Y para darlhe dinheiro Mutatis mutandis o mesmo vale para ações de fala constatativas e expressivas É certo que as condições de verdade são o critério para saber se um proferimento preenche ou não sua função de representação todavia o preenchimento da função interativa e expressiva da linguagem medese através de condições da autorização e da sinceridade que são análogas à verdade Em geral cada ação de fala pode ser criticada reiteradamente como inválida sob três aspectos como inverídica em relação a uma asserção feita ou seja pressupostos em relação à existência do conteúdo da asserção como incorreta em relação a contextos normativos existentes ou em relação à legitimidade das normas pressupostas e como nãosincera em relação à intenção do falante Suponhamos que esta ampliação tricotômica do conceito de validez aqui apenas esboçada possa ser realizada detalhadamente na prática que contribuição ela traria para a resposta à questão fundamental da teoria do significado Dummett deu o primeiro passo rumo a uma reinterpretação pragmática da problemática da validez ao demonstrar que a semântica da verdade ao menos nos casos de enunciados observacionais predicativos simples pode abstrair das circunstâncias nas quais um ouvinte está em condições de reconhecer em que momento as condições de verdade de uma proposição assertórica estão preenchidas Apoiado na distinção pragmática entre truth e assertibility entre a verdade de uma frase e o direito de formar com ela uma asserção Dummett substitui o conhecimento das condições de verdade por um saber indireto O ouvinte precisa conhecer o tipo de razões com as quais o falante poderia eventualmente resgatar a sua pretensão quanto ao preenchimento de determinadas condições de verdade Nós compreendemos um enunciado afirmativo quando sabemos que tipo de razões um falante deveria aduzir a fim de convencer um ouvinte de que ele o falante tem o direito de levantar uma pretensão de verdade para a sua frase Portanto as condições de compreensão a serem preenchidas na prática comunicativa cotidiana induzem à suposição de um jogo de argumentação no qual o falante na qualidade de proponente poderia convencer um ouvinte ou oponente de que uma pretensão de validez possi 80 velmente problemática é justificada Após essa guinada epistêmica da semântica da verdade não podemos mais considerar a questão da validez de uma proposição como se fora uma simples questão do nexo objetivo entre linguagem e mundo completamente alheia ao processo de comunicação A sugestão que se apresenta então consiste em não definir mais semanticamente a pretensão de verdade nem reduzila apenas à perspectiva do falante Pretensões de validez formam o ponto de convergência do reconhecimento intersubjetivo por parte de todos os participantes Elas desempenham um papel pragmático na dinâmica que perpassa a oferta do ato de fala e a tomada de posição do destinatário em termos de simnão Esta guinada pragmática da semântica da verdade implica uma transformação da força ilocucionária Austin a entendera como sendo o componente irracional da ação de fala o elemento propriamente racional seria monopolizado pelo conteúdo da asserção De acordo com o modo de ler esclarecido pela pragmática o componente modal determina a pretensão de validez que o falante manifesta em casos exemplares com o auxílio de uma proposição performativa Assim o componente ilocucionário transformase na sede de uma racionalidade a qual se apresenta como um nexo estrutural entre condições de validez pretensões de validez a elas referidas e razões para seu resgate discursivo Como resultado disso as condições de validade não são mais fixadas no componente proposicional e descobrimos um lugar para a introdução de outras pretensões de validez não mais orientadas pelas condições de verdade ou de sucesso ou seja que não são talhadas de acordo com a relação entre a linguagem e o mundo objetivo Após a ampliação da verdade proposicional por intermédio da correção normativa e da veracidade subjetiva é possível num derradeiro lance generalizar a explicação de Dummett Nós compreendemos uma ação de fala quando conhecemos o tipo de razões que um falante poderia aduzir a fim de convencer um ouvinte de que ele falante em determinadas circunstâncias tem o direito de pretender validade para a sua expressão ou seja em síntese quando sabemos o que as torna aceitáveis Através de uma pretensão de validez um falante apela para um potencial de razões que ele poderia aduzir em favor dela As razões interpretam as condições de validade e se integram deste modo às próprias condições que tornam aceitável uma expressão Isso faz com que as condições de aceitabilidade apontem para o caráter holístico das linguagens naturais toda a ação singular de fala ligase através de fios lógicosemânticos a muitas outras ações de fala potenciais as quais poderiam assumir o papel pragmático desempenhado pelas razões Por isso o conhecimento de uma linguagem entrelaçase com o conhecimento daquilo que acontece realmente no mundo explorado pela linguagem O conhecimento que temos do mundo e o conhecimento que temos da linguagem dependem de uma cadeia de razões mas parece que a cadeia de razões na qual se apóia o conhecimento do mundo é mais longa do que a cadeia na qual se apóia o conhecimento da linguagem O fato de ambos não poderem ser isolados com nitidez um do outro vem confirmar a idéia básica que tomamos como ponto de partida compreender uma expressão significa saber de que modo podemos nos servir dela a fim de chegarmos a um entendimento com alguém sobre algo Se conseguíssemos elaborar suficientemente esse princípio de uma teoria pragmáticoformal do significado e tornálo plausível ele poderia esclarecer porque o meio da linguagem natural dispõe de um potencial de forças de ligação utilizável para fins de coordenação da ação No momento em que um falante assume através de sua pretensão de validez criticável a garantia de aduzir eventualmente razões em prol da validade da ação de fala o ouvinte que conhece as condições de aceitabilidade e compreende o que é dito é desafiado a tomar uma posição baseado em motivos racionais caso ele reconheça a pretensão de validez aceitando a oferta contida no ato de fala ele assume a sua parte de obrigatoriedades decorrentes do que é dito as quais são relevantes para as conseqüências da interação e se impõem a todos os envolvidos 2 Do Agir Social à Ordem Social Eu abordei o agir comunicativo e o estratégico como duas variantes da interação mediada pela linguagem No entanto somente ao agir comunicativo é aplicável o princípio segundo o qual as limitações estruturais de uma linguagem compartilhada intersubjetivamente levam os atores no sentido de uma necessidade transcendental ténue a abandonar o egocentrismo de uma orientação pautada pelo fim racional de seu próprio sucesso e a se submeter aos critérios públicos da racionalidade do entendi mento Podemos pois tomar as estruturas suprasubjetivas da linguagem na perspectiva da teoria da ação e tentar encontrar a partir delas uma resposta à questão clássica como é possível a ordem social O conceito atomista do agir estratégico não pode fornecer a partir de si mesmo um equivalente para isso No entanto se for tomado mesmo assim como conceito básico de uma teoria sociológica da ação será preciso explicar de que modo contextos de interação que resultam exclusivamente da influência recíproca de atores que se posicionam uns em relação aos outros levados pelo sucesso podem perpetuarse na forma de ordens estáveis A partir de Hobbes multiplicaramse as tentativas visando explicar a formação de normas com pretensão de validez obrigatória e intersubjetiva as quais tomavam como base os interesses e o cálculo individual das vantagens de atores que casualmente se encontram e decidem de modo racionalcomrelaçãoaum fim Esse problema hobbesiano Parsons é abordado hoje em dia com os meios fornecidos pelas teorias do jogo E na medida em que acompanhei as discussões de D Lewis até John Elster eu tive a impressão de que a abordagem da questão da emergência da ordem a partir da dupla contingência de atores que decidem independentemente não avançou muito em relação à época de Hobbes A introdução de um novo meio de comunicação capaz de canalizar correntes de informação que dirigem o comportamento parece ser mais promissora do que a tentativa de renovar com o auxílio de meios modernos o conceito clássico da ordem instrumental Na medida em que este esboço é definido de acordo com o modelo do mercado dirigido pelo dinheiro o agir estratégico talhado na medida da escolha racional pode ser mantido como o conceito de ação que convém ao meio de direção Se tomarmos por exemplo as informações que correm através do código dinheiro veremos que elas condicionam as decisões da ação devido a uma estrutura de preferências aí embutida sem que haja necessidade de apelar para realizações de entendimento mais arriscadas e pretensiosas orientadas por pretensões de validez O ator assume um enfoque orientado pelo sucesso em caso limite um enfoque racionalcomrelaçãoaumfim É verdade que a mudança para interações dirigidas por meios vem acarretarlhe uma inversão objetiva da relação entre a escolha dos meios e a colocação do fim A partir de agora o próprio meio proporciona os imperativos de conservação da existência do sistema correspondente no caso o sistema de mercado Como o próprio Marx já percebera o ator experimenta essa inversão entre meios e fim como sendo o caráter reificador de processos sociais reificados E nesta medida as interações dirigidas pelos meios não encarnam mais uma razão instrumental localizada na racionalidade teleológica dos portadores da decisão mas uma razão funcionalista que habita no interior dos sistemas autodirigidos Todavia esse princípio propagado nas ciências da economia e da organização abrange apenas domínios especiais de ação ele não preenche as condições de uma explicação generalizada capaz de reduzir o agir social em geral ao agir estratégico Uma vez que os meios de comunicação que dirigem o comportamento tais como por exemplo o dinheiro constituem códigos especiais e ramificações da linguagem comum que por sua vez se estrutura de modo muito mais rico a teoria dos meios remete ao quadro mais amplo de uma teoria da linguagem cf Theorie des Kommunikativen Handelns Teoria do agir comunicativo vol 2 p 384ss Como alternativa resta apenas abandonar a idéia de desenvolver um esboço da ordem social em geral na perspectiva de uma teoria da ação No lugar das estruturas linguísticas intersubjetivas entrelaçadas com a prática cotidiana Parsons e Luhmann colocam sistemas capazes de manter os limites os quais são delineados num plano mais geral do que o que é ocupado pelos atores e pelas interações mediadas através da linguagem Estes podem então por seu turno ser interpretados como sistemas psíquicos e sociais que se observam reciprocamente e formam ambientes uns para os outros O princípio objetivista da teoria do sistema e sua independência em relação à teoria da ação precisa pagar um preço O funcionamento do sistema rejeita o saber intuitivo do mundo da vida e de seus membros O acesso hermenêutico a esse potencial de saber passa pela participação ao menos virtual na prática comunicativa cotidiana É certo que as ciências sociais face a sociedades mais complexas são obrigadas outrossim a extrair de seu objeto conhecimentos contraintuitivos Todavia a sociedade tecida com as malhas de interações mediadas linguisticamente não aparece como uma natureza exterior acessível apenas à observação o sentido sedimentado em seus contextos simbólicos e autointerpretações só se abre à intervenção compreensiva da interpretação E quem não deseja obstruir esse caminho mas abrir o contexto sóciocultural a partir de dentro precisa tomar como ponto de partida um 84 conceito de sociedade que possa ser engatado nas perspectivas de ação e no trabalho de interpretação dos participantes da interação O mundo da vida é um conceito que se oferece para esse primeiro passo a análise pragmáticoformal dos pressupostos do agir comunicativo defrontase com esse conceito antes mesmo de elaborar uma teoria sociológica A idéia de que a ordem social deveria produzirse pelo caminho de processos de formação do consenso parece trivial à primeira vista No entanto tão logo nos lembramos que qualquer acordo obtido comunicativamente depende de uma tomada de posição em termos de simnão com relação a pretensões de validade criticáveis salta aos olhos a inverossimilhança de tal idéia A dupla contingência a ser absorvida por cada formação de interação assume no caso do agir comunicativo a forma especialmente precária de um risco de dissenso sempre presente e embutido no próprio mecanismo de entendimento e todo dissenso implica grandes custos Com ele colocamse várias alternativas as principais são simples trabalhos de reparo a suspensão ou olvido de pretensões de validade controversas o que traria como conseqüência o definhamento do solo comum de convicções compartilhadas a passagem para discursos muito dispendiosos cujo desenlace é incerto e cujos efeitos são problemáticos a quebra da comunicação ou finalmente a passagem para o agir estratégico Quando se considera que todo o assentimento explícito à oferta contida num ato de fala repousa numa dupla negação ou seja a recusa da rejeição sempre possível descobrese que os processos de entendimento que se desdobram através de pretensões de validade criticáveis não são indicados como trilhos confiáveis para a integração social A motivação racional que repousa sobre o poderdizernão forma uma esteira de problematização à luz da qual a formação linguística do consenso aparece mais como um mecanismo destrutivo É que o risco de dissenso é alimentado sempre a cada passo através de experiências E experiências quebram a rotina daquilo que é autoevidente constituindo uma fonte de contingências Elas atravessam expectativas correm contra os modos costumeiros de percepção desencadeiam surpresas trazem coisas novas à consciência Experiências são sempre novas experiências e constituem um contrapeso à confiança Com isso nós obtemos uma primeira indicação sobre os fenômenos complementares que são o familiar e o surpreendente O fato de se estarpreliminarmenteementendimento numa camada mais profunda de 85 autoevidências certezas e familiaridade poderia explicar de que modo esse risco de dissenso do entendimento linguístico que está à espreita em todo lugar é recolhido regulado e represado na prática cotidiana É sabido que Husserl trabalhou durante a sua última fase no conceito mundo da vida esforçandose em explorar o solo daquilo que é imediatamente familiar e inquestionavelmente certo Ele tentou esclarecer com meios fenomenológicos esse campo do saber implícito do elemento prépredicativo e précategorial do fundamento do sentido esquecido da prática vital diária e da experiência do mundo Não vou me deter aqui no método de Husserl nem no contexto que cerca a introdução de seu conceito mundo da vida eu me aproprio do conteúdo material dessas pesquisas estribandome na idéia de que também o agir comunicativo está embutido num mundo da vida responsável pela absorção dos riscos e pela proteção da retaguarda de um consenso de fundo As realizações explícitas de entendimento por parte daqueles que agem comunicativamente movimentamse no horizonte de convicções comuns e indubitáveis a inquietação através da experiência e da crítica parece que se rompe de encontro a uma rocha profunda ampla e inamovível de modelos consentidos de interpretação de lealdades e práticas Através do conceito saber nãotemático Husserl mostrou um caminho pelo qual é possível descobrir esse fundamento do sentido É verdade que se devem levar em conta nesse ponto duas delimitações É preciso fazer uma distinção entre o saber préreflexivo que acompanha os processos de entendimento sem transformarse em tema e o saber que é tematizado juntamente com as ações de fala Num ato de fala Mp o enunciado com conteúdo proposicional é o portador do saber temático A proposição performativa expressa uma pretensão de validade e específica em que sentido os enunciados são empregados Esse comentário autoreferente é anunciado de modo performativo através da realização de uma ação e não apresentado explicitamente como saber como acontece com o conteúdo comentado da asserção Para tornar disponível o saber temático bem como o significado do ato ilocucionário tematizado juntamente é preciso transformar Mp numa descrição de Mp 1 F Eu exorto você a dar dinheiro a Y transformada em 1a Ao enunciar 1 F exigiu p de O 86 O saber nãotemático distinguese do sabertematizadojuntamente pelo fato de não podermos ter acesso a ele através de uma simples transformação da perspectiva do participante numa perspectiva do observador o saber nãotemático exige antes uma análise dos pressupostos Nãotemáticos são os pressupostos dos quais os participantes da comunicação necessariamente partem para que a ação de fala adquira um determinado significado numa situação dada e para que possa ser válida ou inválida em geral Porém nem todo o saber nãotemático é constitutivo para um determinado mundo da vida Neste contexto não é relevante o saber geral e generativo que coloca os falantes competentes em condição de utilizar corretamente enunciados gramaticais e proferimentos Também não é relevante o saber relativo ao preenchimento dos pressupostos pragmáticos gerais do agir comunicativo por exemplo o saber acerca do modo como nos orientamos por pretensões de validez e nos imputamos reciprocamente a responsabilidade pessoal como identificamos objetos e estabelecemos o contato entre a linguagem e o mundo como distinguimos entre fins ilocucionários e perlocucionários como separamos o mundo subjetivo e o mundo social como passamos do agir para a argumentação etc Tudo isso faz parte de um saber implícito que dominamos intuitivamente e que exige o trabalho reflexivo de uma reconstrução racional capaz de transformar o know how num know that No entanto esse saber universal ou saber préreflexivonãotemático serve para a produção de ações de fala em geral produz agir comunicativo mas não contribui para a sua complementação Temos que nos concentrar nesse outro tipo de saber nãotemático que complementa o agir comunicativo acompanhandoo e fixandoo num contexto NT Tratase do saber concreto acerca da linguagem e do mundo que permanece no luscofusco do elemento prépredicativo e précategorial e que forma o solo nãoproblemático para todo o saber temático e tematizadojuntamente III O conceito fenomenológico mundo da vida sugere que se trata de um termo da constituição do mundo cedido pela epistemologia que não 87 pode ser aplicado sem mais nem menos à sociologia Para escapar das dificuldades da fenomenologia social a teoria da sociedade precisa separarse logo no início da teoria da constituição do conhecimento e travar relações com as diretrizes da pragmática da linguagem a qual abrange naturalmente interações mediadas linguisticamente Por isso o tema mundo da vida deve ser introduzido como um conceito complementar do agir comunicativo 1 A investigação pragmáticoformal que se conscientiza tomando o caminho de uma análise dos pressupostos que constituem o pano de fundo do mundo da vida é realizada na perspectiva participante e reconstrutiva de um falante O emprego desse conceito numa ciência social exige uma mudança metódica do enfoque é preciso passar do enfoque performativo da segunda pessoa para o enfoque teórico da terceira pessoa 2 1 A concepção pragmáticoformal do mundo da vida No seu tratado sobre A crise das Ciências européias Husserl introduziu o conceito do mundo da vida na perspectiva de uma crítica da razão No âmbito da única realidade que as ciências naturais admitem ele destaca o contexto preliminar da prática natural da vida e da experiência do mundo como sendo o fundamento reprimido do sentido Nesta medida o mundo da vida é um conceito oposto às idealizações que formam o campo de objetos das ciências naturais Contra as idealizações do medir da suposição de causalidade e da matematização e contra uma tendência à tecnicização Husserl conclama o mundo da vida como a esfera imediatamente presente de realizações originárias na perspectiva dele ele critica as idealizações que o objetivismo das ciências naturais esqueceu Entretanto uma vez que a filosofia do sujeito é cega para o sentido próprio da intersubjetividade lingüística Husserl não é capaz de reconhecer que o próprio solo da prática comunicativa cotidiana descansa sobre pressupostos idealizadores Através de pretensões de validez que transcendem todas as medidas simplesmente locais a tensão entre pressupostos transcendentais e dados empíricos passa a habitar na facticidade do próprio mundo da vida A teoria do agir comunicativo destranscendentaliza o reino do inteligível a partir 88 do momento em que descobre a força idealizadora da antecipação nos pressupostos pragmáticos inevitáveis dos atos de fala portanto no coração da própria prática de entendimento idealizações que se manifestam também e de modo mais visível nas formas não tão comuns da comunicação que se realiza através da argumentação A idéia do resgate de pretensões de validade criticáveis impõe idealizações as quais caídas do céu transcendental para o chão do mundo da vida desenvolvem seus efeitos no meio da linguagem natural nelas se manifesta também a força de resistência de uma razão comunicativa que opera astutamente contra as deturpações cognitivoinstrumentais de formas de vida modernizadas seletivamente E uma vez que essas idealizações devem sua existência a uma competência lingüística da qual os falantes dispõem de modo préreflexivo na forma de um saber implícito o conflito entre o saber explícito que depende de idealizações e o saber de fundo que absorve os riscos desenrolase no interior da esfera do saber nãotemático ele não se manifesta como Husserl pensara na concorrência entre o saber sofisticado das ciências experimentais e as convicções préteóricas do diaadia A maior parte daquilo que é dito na prática comunicativa cotidiana não atinge o nível da problematização fugindo à crítica e à pressão desenvolvida pela surpresa das experiências críticas porque vive de um adiantamento de validez proporcionado por certezas consentidas preliminarmente ou seja por certezas do mundo da vida O peso da plausibilização de pretensões de validez é assumido prima facie por um saber nãotemático que caminha juntamente um saber relativamente destacado no qual os participantes se apóiam na forma de pressupostos semânticos e pragmáticos Tratase aí em primeiro lugar de um saber acerca de um horizonte a e de um saber acerca de um contexto dependente de temas b ad a O ambiente apreendido forma o ponto central da situação de fala a qual está embutida em horizontes espaçotemporais apreendidos e agrupados de modo não concêntrico Os participantes podem supor normalmente que eles interpretam de modo mais ou menos consensual e a partir de perspectivas coordenadas os componentes mais triviais da situação de fala e dos ambientes que se tornam mais difusos à medida que cresce a distância eles também partem da idéia que suas perspectivas 89 biográficas divergentes acorrem aqui e agora uma de encontro às outras emprestando possivelmente relevâncias diferentes à interpretação comum da situação Esse saberacercadeumhorizonte é atualizado implicitamente junto com o que é dito é ele que faz com que um proferimento seja nãoproblemático e é ele também que promove sua aceitabilidade Por exemplo se durante um small talk no GrüneburgPark de Frankfurt eu disser que está nevando na Califórnia meu colega de diálogo só não fará perguntas se ele souber que eu estou acabando de chegar de San Francisco ou que trabalho por exemplo como meteorologista no serviço de informações meteorológicas ad b O saberacercadeumcontexto dependentedetemas que um falante pode pressupor no quadro da mesma linguagem da mesma cultura da mesma formacão escolar etc portanto no quadro de um ambiente comum ou horizonte de vivências desempenha igualmente um papel importante na estabilizacao da validez O falante que aborda um determinado tema traz implicitamente à tona contextos objetivos à luz deles o que é dito pode parecer trivial ou surpreendente informativo ou inverossímil Do saber acerca de um contexto que é atualizado juntamente é possível extrair conforme a necessidade informações e razões Isso é necessário sempre que se constatar ser errônea a suposição de que o saber que caminha juntamente de modo nãotemático é compartilhado intersubjetiva e consensualmente Minha tentativa de introduzir o conceito mundo da vida no âmbito de uma teoria da comunicação como estou fazendo neste momento provocará objeções e perguntas especializadas de colegas mas elas variarão dependendo do público que estiver me ouvindo por exemplo em Madri em Paris ou em Berkeley Esse tipo de saber nãotemático facilmente cai na esteira da problematizacão Basta que o horizonte da situaçao ou o tema se alonguem um pouco Se eu ultrapasso apenas dez minutos a duração normal de uma hora de aula ou se fujo do tratamento acadêmico do tema mundo da vida passando a falar sobre uma iminente viagem de férias nossa atençäo se dirige para os pressupostos pragmáticos feridos que até esse momento tínhamos compartilhado cegamente Sob este aspecto o saber acerca de um horizonte que se refere a uma situaçao e o saber acerca de um contexto dependente de temas distinguemse do saberacercadeumpanodefundo oriundo do mundo da vida c Este encontrase sob outras 90 condiçóes de tematizaçâo Nâo é possível trazêlo intencionalmente â consciéncia da mesma maneira que os outros saberes NT pois forma uma camada profunda de saber nâotematico na qual lançam raizes o saber destacado acerca de um horizonte e o saber acerca de um contexto ad c O saber que serve de pano de fundo possui uma estabilidade maior uma vez que é imune à pressâo problematizadora das experiências que produzem contingência Chegamos a essa conclusâo porque essa camada de saber elíptico e sempre pressuposto só pode ser retirada do modo inacessível ou do fundo inquestionável onde se encontra e transformada em tema através de um esforço metódico e mesmo assim pedaço por pedaço Husserl sugeriu para isso o procedimento da variação eidética portanto a livre imaginação de modificaçôes do mundo ou o esboço de mundos contrastantes os quais podem lança r uma luz sobre nossas expectativas de normalidade inconscientes inabaláveis e indisponíveis bem como trazer à tona o fundamento de nossa prática cotidiana o qual se aproxima muito de uma cosmovisâo Esse método é sugerido pelos exemplos dos quais J Searle lança mão para demonstrar que o significado dos atos de fala permanece indeterminado enquanto não pudermos completar suas condicóes de validade semantíca mente definidas através de suposiçôes de fundo sabidas de modo intuitivo que permanecem implícitas e nâo tematicas pressupostas como algo nâoproblemático Searle lança no espaço o Gato sobre o tapete a fim de chamar a atençâo através desta modificaçâo para o fato de que nós representamos normalmente um corpo apoiado sobre uma base e o fazemos influenciados pela força gravitacional da terra Da mesma maneira o Homo sapiens deve ter tido desde o momento em que se mantêm vivo através da utilização de certos instrumentos um saber intuitivo acerca da lei da alavanca no entanto esta lei só foi descoberta enquanto tal e translada da para a forma de um saber explícito no decorrer de um questionamento metódico de nosso saber préteórico através da ciência moderna O método da livre variação de pressupostos inevitáveis não tarda em se chocar com limites O segundo plano do mundo da vida nâo está â disposição de nosso arbítrio assim como nâo estamos em condiçoes de submeter simplesmente tudo a uma dúvida abstrata Ao colocar pragmaticamente em dúvida esta dúvida cartesiana Ch S Peirce veio lembrar que os problemas que abalam certezas no nível do mundo da vida nos 91 atingem com a força objetiva de contingências históricas Ele próprio tinha ligado sua análise do mundo da vida ao motivo da crise Foi uma crise surgida das consequêcias das ciências modernas que arrancou Husserl do autoesquecimento e do esquecimento do mundo fruto do objetivismo A pressâo problemática de tais situaçôes de crise sejam elas crises pessoais ou da história mundial modifica objetivamente as condiçôes da tematizaçâo criando assim uma distân cia clarificadora com relaçâo àquilo que está mais próximo e é mais autoevidente Um exemplo disso é o impulso em direção ao universalismo moral que tem início nas religiôes mundiais proféticas e que rompe com a familiaridade ingênua e com a eticidade substancial da tribo ou do clâ que impôe piedade uma arrancada que desencadeou tantas regressôes a ponto de se ter que renovar reiteradamente esse universalismo de intervalo a intervalo até mesmo em nosso século quando os campos de concentraçâo abriram suas portas ao aniquilamento Como todo saber nâotemático o mundo da vida que serve de pano de fundo está presente de modo implícito e préreflexivo O que o caracteriza em primeiro lugar é o modo de uma certeza imediata Esse modo empresta ao saber do qual vivemos proximamente no qual fazemos experiên cias falamos e agimos um caráter paradoxal A presença do pano de fundo ao mesmo tempo importuna e despercebida mostrase como uma forma intensificada e nâo obstante deficiente do saber O saber que serve de pano de fundo carece de ligacâo interna com a possibilidade de problematizaçâo pois ele só entra em contato com pretensôes de validez criticáveis no instante da pronúncia quando é transformado em saber falível Certezas absolutas permanecem inabaláveis até o momento em que se decompõem de maneira brusca pois elas nâo representam nenhum tipo de saber no sentido estrito da falibilidade Em segundo lugar o saber que serve de pano de fundo caracterizase através de sua força totalizadora O mundo da vida forma uma totalidade que possui um ponto central e limites indeterminados porosos e mesmo assim intransponíveis que vão recuando O saberacercadeumhorizonte e acercadeumcontexto que aparece em primeiro plano extrai o seu caráter do pano de fundo no qual se encontra enraizado seja na dimensão da percepçâo seja na do significado O centro no qual confluem antes de qualquer objetivaçâo através de operaçôes de medida os espaços sociais 92 escalonados concentricamente conforme verticais e horizontais e os tempos históricos que se abrem em três dimensões é formado pela situação comum de fala e não pelo meu respectivo corpo como chegou a ser afirmado pela fenomenologia antropologizante O espaço e o tempo vividos são sempre coordenadas de nosso respectivo mundo interpretadas ou encarnadas concretamente como a comunidade de um local de uma região de um Estado de uma nação de uma sociedade mundial etc ou como a sequência de gerações de épocas de eras de biografias individuais perante Deus etc Eu em meu corpo e enquanto meu corpo encontrome num mundo compartilhado intersubjetivamente de tal modo que os mundos vitais habitados coletivamente encontramse engrenados entrecruzados e entrelaçados como o texto e o contexto Uma terceira característica é dada pelo holismo do saber que serve de pano de fundo e que se relaciona com a totalização e a imediatetz esse holismo apesar de sua aparente transparência torna esse saber intransparente o mundo da vida emaranhado Nele os componentes encontramse liquefeitos os quais são depois desdobrados em diferentes categorias do saber através de experiências problematizadoras No âmblto da pragmática formal o pesquisador alçado ao mirante do saber temático diferenciado de acordo com fatos normas e experiências vivenciais lança também os olhos para o mundo da vida situado em baixo Somente o ricochatear desse olhar diferenciado permitelhe concluir que no âmbito do saber que serve de pano de fundo as convicções acerca de algo estão ligadas com o entregarse a algo com o ser tocado por algo com o poder exercitar algo As opiniões de fundo seguridades e familiaridades as concordâncias e habilidades engrenadas umas nas outras constituem formas préreflexivas ou prefigurações daquilo que se bifurca após a tematização em atos de fala assumindo o significado do saber proposicional da relação interpessoal estabelecida ilocucionariamente ou da intenção do falante As três características da imediatetz da força totalizadora e da constituição holística desse saber pressuposto de modo nãotemático consigam talvez explicar a função paradoxal do mundo da vida a função de terreno o representante concreto da contingência A partir de garantias que só podemos extrair da experiência o mundo da vida levanta um muro contra surpresas que provêm da experiência Se o saber acerca do mundo se define pelo fato de ser adquirido a posteriori ao passo que 93 o saber acerca da linguagem considerado relativamente configura um saber a priori então o paradoxo pode residir precisamente na integração que existe no fundo do mundo da vida entre o saber acerca do mundo e o saber acerca da linguagem Ora a força problematizadora das experiências críticas introduz uma separação entre o pano de fundo do mundo da vida e o seu primeiro plano Nesse processo as próprias experiências se diferenciam de acordo com as formas práticas de se tratar aquilo que descobrimos no mundo coisas e acontecimentos pessoas e histórias nas quais as pessoas estão envolvidas O mundo das coisas e os contextos pragmáticos constituemse através da abordagem manual de coisas e acontecimentos o mundo solidário e os conjuntos históricos formamse na relação interativa entre pessoas de referência respectivamente no quadro de comunidades de cooperação ou de comunidades de linguagem Do ponto de vista ontogenético o mundo da experiência da abordagem técnicoprática da natureza exterior só se distingue aos poucos da abordagem moralprática no interior de uma sociedade As experiências com nossa própria natureza interior com o corpo com as necessidades e sentimentos são de tipo indireto elas se refletem nas experiências com o mundo exterior E quando essas experiências se tornam independentes assumindo a forma estética de obras da arte autônomas passam a ser objetos capazes de abrir os olhos de provocar novas maneiras de ver novos enfoques e novos modos de comportamento As experiências estéticas não estão embutidas em formas da prática elas não estão referidas a habilidades cognitivoinstrumentais e a representações morais que se formam no interior de processos intramundanos de aprendizagem elas estão entrelaçadas com a função da linguagem que constitui e que explora o mundo A articulação da experiência reflete a arquitetura do mundo da vida na medida em que está ligada à constituição tricotômica dos atos de fala e do saber que serve de pano de fundo ao mundo da vida Essas estruturas gerais do mundo da vida somente se revelam é verdade se nós modificarmos nosso enfoque metódico Os termos pano de fundo primeiro plano e recorte do mundo da vida relevante para a situação só fazem sentido se adotarmos a perspectiva de um falante que deseja entenderse com um outro sobre algo no mundo e que pode apoiar a plausibilidade da oferta de seu ato de fala sobre uma massa de saber nãotemático partilhado 94 intersubjetivamente Como um todo o mundo da vida só atinge o campo da visão no momento em que nos colocamos como que às costas do ator e entendemos o agir comunicativo como elemento de um processo circular no qual o agente não aparece mais como iniciador mas como produto de tradições nas quais ele está inserido de grupos solidários aos quais ele pertence e de processos de socialização e de aprendizagem aos quais ele está submetido Após esse primeiro passo objetivador a rede de ações comunicativas forma o meio através do qual o mundo da vida se reproduz 2 A sociedade como mundo da vida simbolicamente estruturado Qualquer ato da fala através do qual um falante se entende com um outro sobre algo localiza a expressão lingüística em três referências com o mundo em referências com o falante com o ouvinte e com o mundo Sob o ponto de vista da formação de interações nós nos ocupamos principalmente do segundo aspecto a relação interpessoal Através de seus atos de fala os participantes da interação assumem ações de coordenação ao produzir relações interpessoais Porém eles não conseguem tal sucesso através do preenchimento exato de uma única função da linguagem Os atos de fala servem em geral à coordenação tornando possível um acordo racionalmente motivado entre vários atores e nisso colaboram também as outras duas funções da linguagem a representação e a expressão Portanto o ponto de vista da coordenação da ação está situado num nível mais abstrato não se confundindo com o do ator que visa produzir diretamente uma determinada relação interpessoal A coordenação da ação em geral serve à integração social de um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente pelos participantes É bom notar que essa descrição já pressupõe a mudança de perspectiva que nos permite inquirir acerca da contribuição das ações comunicativas para a reprodução de um mundo da vida Após termos realizado metodicamente essa mudança de enfoque podemos instaurar uma reflexão semelhante no que respeita ao entendimento sobre algo que foi dito ou no que tange à socialização das pessoas participantes as ações de fala também preenchem esses papéis em todas as suas funções Sob o aspecto do entendimento elas servem à tradição e à 95 continuidade do saber cultural sob o aspecto da socialização servem à formação e à conservação de identidades pessoais Podemos imaginar os componentes do mundo da vida a saber os modelos culturais as ordens legítimas e as estruturas de personalidade como se fossem condensações e sedimentações dos processos de entendimento da coordenação da ação e da socialização os quais passam através do agir comunicativo Aquilo que brota das fontes do pano de fundo do mundo da vida e desemboca no agir comunicativo que corre através das comportas da tematização e que torna possível o domínio de situações constitui o estoque de um saber comprovado na prática comunicativa Esse saber consolidase através dos trilhos da interpretação assumindo a forma de modelos de interpretação os quais são transmitidos na rede de interações de grupos sociais ele se cristaliza na forma de valores e normas pelo caminho dos processos de socialização ele se condensa na forma de enfoque competências modos de percepção e identidades Os componentes do mundo da vida resultam da continuidade do saber válido da estabilização de solidariedades grupais da formação de atores responsáveis e se mantêm através deles A rede da prática comunicativa cotidiana espalhase sobre o campo semântico dos conteúdos simbólicos sobre as dimensões do espaço social e sobre o tempo histórico constituindo o meio através do qual se forma e se reproduz a cultura a sociedade e as estruturas da personalidade Para mim cultura é o armazém de saber do qual os participantes da comunicação extraem interpretações no momento em que se entendem mutuamente sobre algo A sociedade compõese de ordens legítimas através das quais os participantes da comunicação regulam sua pertença a grupos sociais e garantem solidariedade Conto entre as estruturas da personalidade todos os motivos e habilidades que colocam um sujeito em condições de falar e de agir bem como de garantir sua identidade própria Para os que agem comunicativamente a cultura forma o cone luminoso no interior do qual surgem entidades que podem ser representadas ou manipuladas ao passo que as normas e vivências se lhes afiguram como algo no mundo social ou num mundo subjetivo ao qual eles podem referirse assumindo um enfoque expressivo ou conforme as normas A fim de evitar um malentendido amplamente difundido tenho que explicar antes de mais nada porque essa cena se modifica repentinamente 96 aos olhos dos sujeitos participantes no momento em que passam do agir comunicativo para o estratégico porém inalterada aos olhos do cientista social que emprega esse conceito de mundo da vida Considerada em sentido amplo como um mundo da vida estruturado simbolicamente a sociedade se forma e se reproduz apenas através do agir comunicativo Disso não segue porém que o observador instruído nas ciências sociais não possa descobrir interações estratégicas nos mundos da vida constituídos de tal maneira É verdade que as interações estratégicas não têm aqui o mesmo valor posicional que lhes é reservado em Hobbes ou na teoria do jogo Essas teorias interpretam o agir estratégico como sendo um mecanismo de produção da sociedade tida como uma ordem instrumental Na perspectiva da teoria da comunicação porém as interações estratégicas somente podem surgir no interior do horizonte de mundos da vida já constituídos noutra parte e precisamente como alternativas para ações comunicativas fracassadas Podese afirmar que elas ocupam posteriormente espaços sociais e tempos históricos portanto seções em dimensões de um mundo da vida já constituído preliminarmente através do agir comunicativo Quem age estrategicamente continua mantendo às costas o seu mundo da vida ou pano de fundo e tendo ante os olhos as instituições ou pessoas de seu mundo da vida ambas as coisas porém numa figura modificada O mundo da vida que serve de pano de fundo é curiosamente neutralizado quando se trata de vencer situações que caíram sob imperativos do agir orientado pelo sucesso o mundo da vida perde sua força coordenadora em relação à ação deixando de ser a fonte garantidora do consenso E como todos os outros dados do mundo da vida que nesse momento não é mais compartilhado intersubjetivamente também os participantes da ação aparecem apenas como fatos sociais como objetos que o ator pode influenciar eventualmente com o auxílio de efeitos perlocucionários ou induzir para que apresentem determinadas reações Entretanto o enfoque objetivador e estratégico impede que o agente se entenda com eles no nível de uma segunda pessoa Portanto o observador instruído nas ciências sociais pode descobrir no mundo da vida que ele analisa sequências de ação e em certas circunstâncias até sistemas de ação que não são integrados através de valores normas ou processos de entendimento mas quando muito através da influenciação recíproca como por exemplo através das relações do mer 97 cado ou do poder Surge então uma questão empírica a de saber se esse princípio do mundo da vida é mais realista do que um princípio do tipo hobbesiano À primeira vista existem muitos elementos que falam a favor Também as relações de mercado e de poder são reguladas normativamente quase sempre pelo direito portanto abrangidos por um quadro institucional Os próprios conflitos bélicos continuam embutidos em contextos normativos Guerras civis especialmente os genocídios deixam atrás de si vestígios de uma comoção moral os quais denotam que os mundos da vida compartilhados intersubjetivamente constituem a base imprescindível inclusive para as interações estratégicas Os componentes do mundo da vida a cultura a sociedade e as estruturas da personalidade formam conjuntos de sentido complexos e comunicantes embora estejam incorporados em substratos diferentes O saber cultural está encarnado em formas simbólicas em objetos de uso e tecnologias em palavras e teorias em livros e documentos bem como em ações A sociedade encarnase nas ordens institucionais nas normas do direito ou nas entrançaduras de práticas e costumes regulados normativamente As estruturas da personalidade finalmente estão encarnadas literalmente no substrato dos organismos humanos Os elementos encarnados desta maneira passam a ser conteúdos semânticos que também podem ser dissolvidos e postos em circulação como moeda corrente da linguagem normal No mercado da prática comunicativa cotidiana todo o sentido conflui para o mesmo ponto Não obstante os diferentes componentes do mundo da vida formam grandezas distintas isso se depreende ontologicamente dos aspectos espaciais e temporais de suas encarnações As tradições culturais difundemse por sobre as fronteiras de coletividades e comunidades de linguagem e sua duração não depende da identidade de sociedades nem mesmo de pessoas as religiões mundiais fornecem o exemplo mais contundente Por outro lado as sociedades envolvem um espaço social maior e períodos históricos mais longos do que as pessoas e suas histórias de vida porém têm limites menos difusos e mais claramente circunscritos do que as tradições Finalmente as estruturas da personalidade apegadas a seus substratos orgânicos são as mais nitidamente definidas em termos de espaço e tempo Para os indivíduos a cultura e a sociedade se apresentam antes de tudo na figura de um extenso conjunto de gerações 98 No entanto esses componentes do mundo da vida não devem ser entendidos como sistemas que formam ambientes uns para os outros através do meio comum que é a linguagem cotidiana eles se cruzam entre si E enquanto não surgir nesse meio nenhum código especial diferente jogado como por exemplo o dinheiro ou o poder administrativo os quais provocam por seu turno a diferenciação de sistemas de ação funcionalmente especificados e extraídos da sociedade como componente do mundo da vida uma linguagem comum multifuncional levanta barreiras à diferenciação do mundo da vida Também os sistemas de ação especializados em alto grau na reprodução cultural escola na integração social direito ou na socialização família não operam seletivamente Através do código comum da linguagem comum eles preenchem além disso as demais funções correndo de certo modo juntos mantendo assim de pé uma relação com a totalidade do mundo da vida O mundo da vida que é um complexo simbolicamente estruturado perpassando as diferentes formas de encarnação e as funções compõese de três elementos originariamente entrecruzados O conceito mundo da vida explicitado desta maneira não fornece apenas uma resposta à questão clássica como é possível a ordem social Através da idéia do entrecruzamento dos componentes do mundo da vida é possível responder também a uma outra questão da teoria clássica da sociedade ou seja ao problema da relação entre indivíduo e sociedade O mundo da vida não forma um ambiente cujas influências contingentes o indivíduo teria que combater a fim de autoafirmarse O indivíduo e a sociedade não formam sistemas que se encontram em seu ambiente e que se referem um ao outro de modo externo como se fossem observadores De outro lado porém o mundo da vida não constitui uma espécie de recipiente no qual os indivíduos estariam incluídos como partes de um todo A figura de pensamento utilizada pela filosofia do sujeito fracassa do mesmo modo que a da teoria do sistema Do ponto de vista da filosofia do sujeito a sociedade foi concebida como um todo constituído de partes seja no nível do Estado dos cidadãos políticos seja no nível da associação dos produtores livres O conceito mundo da vida rompe igualmente com essa figura de pensamento Os sujeitos socializados comunicativamente não seriam propriamente sujeitos se não houvesse a malha das ordens institucionais e das tradições da socie dade e da cultura É verdade que os sujeitos que agem comunicativamente experimentam seu mundo da vida como um todo que no fundo é compartilhado intersubjetivamente No entanto essa totalidade que deveria decomporse aos seus olhos no instante da tematização e da objetivação é formada pelos motivos e habilidades dos indivíduos socializados pelas autoevidências culturais e pelas solidariedades grupais O mundo da vida estruturase através de tradições culturais de ordens institucionais e de identidades criadas através de processos de socialização Por isso ele não constitui uma organização à qual os indivíduos pertençam como membros nem uma associação à qual se integram nem uma coletividade composta de membros singulares A prática comunicativa cotidiana na qual o mundo da vida está centrado alimentase de um jogo conjunto resultante da reprodução cultural da integração social e da socialização e esse jogo está por sua vez enraizado nessa prática Os organismos só podem ser descritos como pessoas quando e na medida em que forem socializados isto é penetrados por conjuntos de sentido culturais e sociais e estruturados através deles Pessoas são estruturas simbólicas ao passo que o substrato natural simbolicamente estruturado mesmo sendo experimentado como o próprio corpo é enquanto natureza tão exterior aos indivíduos como a base material da natureza é exterior ao mundo da vida tomado como um todo A natureza interior e a exterior estabelecem limites externos para os indivíduos socializados e para o seu mundo da vida erigindo barreiras contra um ambiente ao passo que as pessoas com sua cultura e sua sociedade permanecem internamente entrelaçadas através de relações gramaticais Conteúdos transmitidos culturalmente configuram sempre e potencialmente um saber de pessoas sem a apropriação hermenêutica e sem o aprimoramento do saber cultural através de pessoas não se formam nem se mantêm tradições Nesta medida as pessoas e suas interpretações realizam algo em prol da cultura Esta por seu turno oferece uma fonte para as pessoas Elas não são obviamente portadoras de tradições no mesmo sentido que o substrato orgânico pode ser descrito como portador de estruturas da personalidade Toda a tradição cultural é simultaneamente um processo de formação para sujeitos capazes de ação e de fala os quais se formam no interior dela e que por seu turno mantêm viva a cultura Cristalizadas em instituições ou flutuantes no ar como contextos fugidios as ordens normativas configuram sempre ordens de relações interpessoais As redes de interação de grupos mais ou menos integrados do ponto de vista social mais ou menos coesos solidariamente só se formam a partir das ações de coordenação de sujeitos que agem comunicativamente No entanto se descrevêssemos as pessoas como portadoras dessas redes de integração a descrição seria falsa O indivíduo e a sociedade constituemse reciprocamente Toda a integração social de conjuntos de ação é simultaneamente um fenômeno de socialização para sujeitos capazes de ação e de fala os quais se formam no interior desse processo e por seu turno renovam e estabilizam a sociedade como a totalidade das relações interpessoais legitimamente ordenadas cf o diagrama abaixo Cruzamento das estruturas da personalidade com a cultura e a sociedade Pessoa Cultura Interação Ego Alter Sociedade Reprodução e inovação de saber cultural tradição cultural Adoção de saber cultural Enculturação Mobilização de habilidades MotivosSocialização Produção e manutenção da solidarité integração social Adoção de lealdades Realização Fonte ressource 101 Processos de formação e de socialização são processos de aprendizagem que dependem de pessoas Não se pode confundilos com os efeitos da aprendizagem que são suprasubjetivos manifestandose na forma de inovações culturais e sociais e sedimentandose em forças produtivas ou estruturas morais da consciência Esses processos de aprendizagem intramundanos têm uma relação com problemas da reprodução material que não são tomados aqui como tema Os processos da diferenciação estrutural do próprio mundo da vida não estão no mesmo nível que os processos intramundanos da aprendizagem Vista internamente esta dinâmica se explica a partir de uma ação recíproca entre a exploração linguística do mundo inovadora e processos de aprendizagem intramundanos Antes de finalizar convém iluminar a lógica desse jogo lançando mão de uma recordação pragmáticoformal Sabemos através da teoria do significado que existe um nexo interno entre significado e validez nós compreendemos o significado de um ato de fala quando estamos cientes das condições sob as quais ele pode ser aceito como válido Portanto as regras semânticas determinam as condições de validade das proposições e atos de fala possíveis num sistema de linguagem Com tais conjuntos de sentido a linguagem abre para os participantes um horizonte de possíveis ações e experiências Heidegger afirma que a linguagem que explora o mundo permite que algo no mundo apareça como algo Um outro problema porém é saber se as possibilidades esboçadas linguisticamente no trato intramundano também se comprovam A força exploradora do mundo inerente à linguagem não é suficiente para que as condições de validade determinadas semanticamente sejam preenchidas ao ponto de as proposições e proferimentos possíveis encontrarem o seu lugar em jogos de linguagem que funcionam é preciso também que a prática intramundana tenha sucesso a qual no entanto só é possível através do sistema de linguagem Não devemos hipostasiar as inovações criadoras no âmbito da cosmovisão linguística como foi o caso de Heidegger e de Foucault que as transformaram respectivamente numa história imemorável e melancólica da ontologia ou das formas do saber Com o horizonte da significação linguística modificamse apenas as condições para a validade de proferimentos pois uma compreensão modificada tem de comprovarse na abordagem daquilo que realmente se manifesta no interior do horizonte modificado O espectro de pretensões de validez 102 inscrito no agir comunicativo cuida além disso para que a prática intramundana seja ligada a processos de aprendizagem As estruturas da imagem do mundo que tornam possível a prática intramundana através de uma compreensão preliminar do sentido não se renovam apenas graças à criação poética do sentido elas também reagem por seu turno aos processos de aprendizagem que elas mesmas tomaram possíveis cujos resultados se sedimentam durante o processo de modificação das estruturas das imagem do mundo De outro lado também não podemos hipostasiar as limitações contingentes do ambiente que influenciam a partir de fora e que se fazem valer na elaboração da pressão oriunda de problemas inerentes a experiências críticas não podemos transformálas num imperativo absoluto da autoafirmação de sistemas em meio a ambientes supercomplexos O funcionalismo do sistema absolutiza desta maneira um aspecto o qual é enquanto tal legítimo Sob o aspecto do sistema as sociedades se apresentam pelo ângulo que Marx designou metaforicamente como sendo o do metabolismo da sociedade com a natureza exterior O aspecto constitutivo para uma formação de sistema é a diferenciação entre uma perspectiva interior e uma perspectiva exterior cabendo ao sistema a manutenção da diferençasistemaambiente No entanto essa atribuição não deve ser feita na perspectiva de um observador o qual passa a impor também ao mundo da vida um modelo de sistema Se for preciso objetivar mais uma vez o mundo da vida sob o aspecto de um sistema que mantém os limites esse mundo da vida ao qual se teve acesso hermeneuticamente na perspectiva do participante e que foi apreendido em suas estruturas gerais de modo reconstrutivo então não se pode desperdiçar os frutos trazidos pelas ciências sociais que analisaram o mundo da vida A fim de evitar uma confusão de paradigmas eu tentei ligar noutro lugar a teoria da ação aos conceitos fundamentais da teoria do sistema tomando como fio condutor o par de conceitos integração social e integração pelo sistema Cf Theorie des kommunikativen Handelns Teoria do agir comunicativo vol 2 Então é possível explicar também por que os elementos sistêmicos se formam como resultados de processos históricos A dinâmica de delimitação contra ambientes complexos que configuram o caráter sistêmico da sociedade como um todo somente imigra para o interior da sociedade através dos subsistemas dirigidos pelos meios 103 Ética do discurso Habermas afirma que podemos ser éticos sem ser propriamente com ações como estamos acostumados a conhecer como o agir tomada de consciência Porém Habermas pensa esse agir na perspectiva da nossa fala ou seja para esse teórico a nossa ética é moldada através do que falamos expomos dialogamos Ou seja se trata de uma razão comunicativa e não uma razão reflexiva como anteriormente era proposto por outros filósofos Não falando unicamente da fala a ética do discurso também se refere ao diálogo para que através dele possámos descobrir o que é ético nas nossas relações a partir desse processo de troca Ele considera ético não aquilo que já nos é entregue pronto já definido como verdade através dos meios de comunicação de massas e sim o que as pessoas falam entre si e o que pensam nesse processo já que esse processo realmente pode colaborar para as mudanças de opiniões De acordo com Habermas a essência da vida emancipada está exatamente nessa capacidade da gente colocar esse pensamento racional para funcionar mas em um processo de troca de informação que nos permite entender uns aos outros já que sem isso tiramos de nós o nosso princípio humano ou seja a racionalidade quando olhamos para o outro indivíduo como um animal racional assim como nós possuinte de vontades que não deve unicamente se submeter às nossas vontades e pensamentos Essa interação deve ser feita sem pressões do sistema político e econômico para que interesses particulares não sejam beneficiados A ética do discurso deve ocorrer de maneira processual construída no diálogo e relação entre os sujeitos permitindo que estes sejam capazes de formular um posicionamento crítico Por fim a validade da norma deve ser estabelecida a partir do consenso encontrado pelo grupo que desenvolveu o diálogo A subjetividade pode ser transformada em intersubjetividade através desse processo de troca dos indivíduos o que nos leva a pensar em uma ação comunicativa que pressupõe o entendimento entre os indivíduos que procuram convencer o outro através de argumentos racionais o que leva a um consenso A ética do discurso foi dividida em quatro etapas principais sendo o conflito ou seja a divergência de pensamentos e opiniões a segunda etapa se trata da discussão que é o processo de diálogo a terceira etapa é o consenso que é quando os indivíduos se entendem através do diálogo tomando um único posicionamento para então chegarem na última etapa a universalização que diz respeito a aceitação dessa norma discutida a inserindo em um contexto mais completo da sociedade a validação da norma