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Ciências Políticas
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Textos para Discussão INSTITUIÇÕES MULTILATERAIS E GOVERNANÇA GLOBAL Cenários de Reorganização das Estruturas de Governança Global e Perspectivas do Multilateralismo nas Próximas Décadas Maria Regina Soares de Lima Marianna Albuquerque Textos para Discussão No 59 INSTITUIÇÕES MULTILATERAIS E GOVERNANÇA GLOBAL Cenários de Reorganização das Estruturas de Governança Global e Perspectivas do Multilateralismo nas Próximas Décadas Este documento serve como pano de fundo para os temas específicos que foram tratados durante o Seminário O Brasil póspandemia Sistema Interestatal Instituições Multilaterais e Governança Global da Saúde realizado em 3 de maio de 2021 na Fiocruz Rio de Janeiro Abril 2021 AUTORAS AUTORAS Maria Regina Soares de Lima Graduação em Sociologia PUC Rio 1966 Doutora em Ciência Política pela Vanderbilt University 1986 Atualmente é professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ IESPUERJ e coordenadora do Observatório Político Sul Americano OPSA Marianna Albuquerque Graduação em Ciência Política pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 2013 e graduação em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 2013 Mestre em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos IESPUERJ Pesquisadora e coordenadora adjunta do Observatório Político SulAmericano OPSA SUMÁRIO SUMÁRIO Introdução A Organização das Nações Unidas e os Princípios do Multilateralismo Instituições Internacionais e Transições de Poder As bases da crise de legitimidade do multilateralismo contemporâneo Conclusão Perspectivas para o multilateralismo e implicações para o Brasil Referências Bibliográf icas 7 8 11 20 22 7 Textos para Discussão No 59 INSTITUIÇÕES MULTILATERAIS E GOVERNANÇA GLOBAL INSTITUIÇÕES MULTILATERAIS E GOVERNANÇA GLOBAL Cenários de Reorganização das Estruturas de Governança Global Cenários de Reorganização das Estruturas de Governança Global e Perspectivas do Multilateralismo nas Próximas Décadas e Perspectivas do Multilateralismo nas Próximas Décadas 1 1 INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO Em 2020 a pandemia de Covid19 e as crises sanitária econômica social e ambiental decorrentes deixaram evidentes que o sistema internacional precisa aprofundar os mecanismos de atuação coletiva Os desafios que se avolumam como pandemias e mudanças climáticas são por definição transfronteiriços o que inviabiliza a restrição do escopo político ao Estadonação A conclusão de que soluções conjuntas são necessárias para se lidar com as questões internacionais não é nova no entanto mesmo com variações de ênfase No passado o inimigo comum eram as guerras cuja ocorrência frequente demandou a criação de mecanismos coletivos de promoção da paz A assinatura de tratados e a realização de conferências deram lugar a instrumentos dotados de maior grau de institucionalização como as organizações internacionais OIs que poderiam atuar na prevenção de conflitos de forma perene e não apenas em caráter reativo ao início das tensões Mesmo que tenham sido criadas motivadas pela intercorrência de guerras as OIs ampliaram sua agenda temática para tratar de outros temas como direitos humanos desenvolvimento comércio e saúde Nesse ponto a expansão da agenda foi estimulada pelos países do Sul Global progressivamente incorporados a esses instrumentos após as ondas de descolonização Essas organizações promoveriam maior democratização das relações internacionais no sentido de que possibilitariam a tomada de decisão multilateral O conceito não traz apenas a ideia quantitativa de muitas partes envolvidas mas também a dimensão qualitativa de que os interesses dessas partes serão considerados Ao disponibilizarem um espaço de debates e trocas as OIs se consolidaram como uma estratégia prioritária para esses países incluírem na pauta suas demandas particulares de forma a garantir a diversidade e a pluralidade de posições Para os fins do trabalho proposto iremos dar ênfase à principal organização internacional a Organização das Nações Unidas ONU A ONU é uma organização universal e governamental mas é acima de tudo uma organização política Criada para ser a base do sistema de segurança coletiva e de cooperação do pósguerra ela deveria englobar e fortalecer a dimensão participativa e inclusiva para ser de fato multilateral Entretanto desde a sua criação a organização enfrenta dificuldades em garantir os propósitos multilaterais de inclusão e diversidade o que enfraquece e abala progressivamente a sua legitimidade Com isso o objetivo deste trabalho é analisar como o desenho institucional da ONU foi ineficaz em dotála de capacidade de efetivação das premissas multilaterais sobretudo no Conselho de Segurança órgão que adota resoluções vinculantes relegando a participação universal à Assembleia Geral que adota resoluções recomendatórias Para além da questão estrutural iremos apontar como a pandemia de Covid19 constituiu uma conjuntura crítica que evidenciou a crise do multilateralismo ao trazer à tona o power 7 8 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ shift na competição entre duas grandes potências os Estados Unidos e a China Após o fim da bipolaridade da Guerra Fria a expectativa entre analistas era de que a ONU estaria se encaminhando para implementar integralmente os propósitos multilaterais em particular que a paralisia decisória durante a Guerra Fria daria lugar a um ativismo das Nações Unidas permitindo inclusive a implementação das reformas Contudo a promessa não se efetivou O principal fator condicionante a nosso ver é a crise de legitimidade da organização que se manifesta na incapacidade de fazer face à emergência de novos polos de poder e levar avante a reforma do Conselho de Segurança Relacionado a esse desafio cabe apontar o fracasso da instituição em incorporar a diversidade de valores que resulta dessa mesma pluralidade de atores valores e interesses Para se atingir o objetivo o trabalho está dividido em quatro seções além desta breve introdução Na primeira iremos detalhar o conceito de multilateralismo e a morfologia do sistema ONU apresentando um panorama de seus principais órgãos e agências Aqui iremos ressaltar o argumento de que apesar de baseada nos princípios multilaterais a ONU foi desde a sua criação uma organização pautada em valores ocidentais e liberais preconizados pelas grandes potências da época Com isso há uma resistência estrutural na incorporação da diversidade o que culminou na atual crise de legitimidade da organização Na segunda seção analisamos a trajetória da crise do multilateralismo durante três momentos o período da Guerra Fria o imediato pósGuerra Fria e a atualidade em que os questionamentos de legitimidade se intensificaram motivados pela pandemia Na terceira parte iremos apontar possíveis caminhos para o multilateralismo e para as OIs nas próximas décadas dada a transição de poder entre EUA e China e o aprofundamento da crise causado pelos efeitos da Covid19 2 2 A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS E OS PRINCÍPIOS DO A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS E OS PRINCÍPIOS DO MULTILATERALISMO MULTILATERALISMO1 Muito se fala sobre o multilateralismo e sobre as organizações multilaterais mas nem sempre é dedicada atenção ao conteúdo do termo e às formas pelas quais este se institui e se manifesta Em sua acepção minimalista a etimologia do conceito possui uma raiz quantitativa na qual o multilateralismo consiste na coordenação política entre três ou mais Estados Keohane 1990 Entretanto outros autores a exemplo de Ruggie 1992 questionam a definição numérica e apontam que há uma dimensão qualitativa na prática multilateral que traz em seu bojo as noções normativas de reciprocidade e participação Segundo o argumento de Ruggie a definição pelo número esconde o fato de que arranjos formados por múltiplas unidades podem ser na prática comandados por um ou poucos integrantes desvirtuando o propósito de decisão coletiva Dessa forma além da quantidade de membros seriam características do multilateralismo elementos como a interação a institucionalização de espaços deliberativos a redução dos custos de transação a transparência a pluralidade de opiniões e identidades e a legitimidade para sedimentar normas e valores essenciais para a sociedade internacional Milani 2012 A busca pela participação e pela reciprocidade teria como fim último o processo de democratização das relações entre os Estados no sentido de que as instituições multilaterais por serem representativas 1 Esta seção está baseada em Potências médias emergentes e uso da força Brasil e Índia no Conselho de Segurança das Nações Unidas 19462012 Albuquerque no prelo 9 Textos para Discussão No 59 Instituições Multilaterais e Governança Global estabeleceriam mecanismos que evitariam a prevalência da política de poder das grandes potências Essa convicção ganhou força no pósSegunda Guerra Mundial período no qual as organizações internacionais emergiram como potenciais mediadoras e como sustentáculo da nova ordem As OIs não são a única forma de cooperação entre os atores internacionais mas aquela dotada de maior grau de institucionalidade Ao possuírem características como sede orçamento próprio tratado constitutivo e funcionários próprios as OIs podem atuar de forma permanente e não apenas de forma reativa criando um espaço perene de engajamento entre os Estados e demais partes interessadas De modo geral as inúmeras organizações internacionais podem ser subdivididas em três categorias abrangência função e composição Em relação à abrangência podemos classificar as organizações multilaterais em universais ou regionais As primeiras são aquelas que estão abertas a todos que cumpram os requisitos para adesão sem restrição territorial a exemplo da ONU as regionais por sua vez são aquelas cuja composição é restrita a Estados de uma região predeterminada como é o caso do Mercosul ou da União Europeia Em relação à função as OIs podem ser gerais com uma agenda de amplitude temática significativa como a ONU ou especializadas com apenas uma atribuição funcional a exemplo das instituições econômicas de Bretton Woods FMI e Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio OMC Pela terceira categoria a composição as OIs podem ser governamentais ou não governamentais Herz Hoffmann 2004 A primeira organização estabelecida nos moldes contemporâneos foi a Liga das Nações Criada no imediato pós Primeira Guerra Mundial a organização tinha como objetivo central a instituição de um mecanismo de segurança coletiva que impedisse a eclosão de um novo conflito de grandes proporções Como a história nos mostrou o esforço não foi efetivo Em uma perspectiva realista entre os motivos que contribuíram para o malogro da Liga estava uma percepção equivocada sobre a natureza dos Estados classificada por Carr 2001 p 55 como uma crença utópica na harmonia de interesses Para o autor o pensamento liberal predominante após o fim do conflito defendia a ideia de que em liberdade completa os interesses individuais automaticamente conduziriam ao bem coletivo Um exemplo desse pensamento foi a inclusão da decisão por consenso em todos os órgãos da Liga Na prática segundo Carr esses mesmos interesses podem ser incompatíveis o que resultaria na paralisia decisória e no conflito e não na harmonia Com a inevitabilidade da Segunda Guerra o futuro do multilateralismo ficou em cheque Entretanto houve concordância entre as grandes potências do período no diagnóstico de que o problema não residia no multilateralismo em si e sim na estrutura da Liga Com isso não houve dúvidas sobre a necessidade de se reformar o multilateralismo adaptandoo a um modelo de governança que reconhecesse tanto a possibilidade constante de conflito quanto a responsabilidade que as grandes potências têm na estabilização do sistema Durante encontros privados e conferências restritas Estados Unidos Reino Unido e URSS formularam as bases da nova ordem multilateral Com o objetivo de conter o avanço do Japão no Pacífico a China também foi convidada a integrar o seleto grupo bem como a França que se juntou às tratativas após a desocupação nazista Os países elaboraram compromissos que garantissem que pudessem ter a palavra final em questões de segurança e evitar que um outsider 10 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ como a Alemanha nos anos 30 pudesse desequilibrar o sistema Com base nesse entendimento em 1945 durante a Conferência de São Francisco foi criada a ONU Em seu texto a Carta das Nações Unidas documento constitutivo da organização estabelece que a ONU contará com seis órgãos principais cada um voltado para uma tarefa específica com uma composição particular e com o processo decisório desenhado de acordo com as funções e os membros do órgão O Quadro 1 resume quais são os seis órgãos principais e seus principais elementos Quadro 1 Órgãos principais da ONU Órgão Função principal Composição Processo decisório Assembleia Geral das Nações Unidas AGNU Aprovar resoluções recomendatórias sobre todos os temas previstos na Carta da ONU Todos os Estadosmembros da organização Quórum de 23 para temas substantivos Quórum de maioria simples para temas procedimentais Conselho de Segurança das Nações Unidas CSNU Aprovar resoluções vinculantes sobre temas de paz e segurança 15 membros subdivididos em cinco membros permanentes e dez membros não permanentes Quórum de nove votos para temas substantivos com a exigência de que nenhum dos membros permanentes vote negativamente poder de veto Conselho Econômico e Social das Nações Unidas ECOSOC Aprovar resoluções recomendatórias sobre temas econômicos e sociais 54 membros eleitos pela AGNU Quórum de 23 Secretariado das Nações Unidas Administrar o trabalho da organização Funcionários públicos internacionais liderados pelo SecretárioGeral Na Corte Internacional de Justiça CIJ Pareceres consultivos e sentenças para casos contenciosos 15 juízes Quórum de nove ou de maioria a depender da função por turmas Conselho de Tutela Administrar as tutelas dos Estados em processo de independência Os membros permanentes do CSNU os tutelantes e os tutelados Na O órgão está com as atividades suspensas desde 1994 quando o último mandato de tutela foi finalizado Fonte elaboração das autoras Dadas a complexidade e a pluralidade da organização para fins deste trabalho iremos concentrar nossa análise em dois dos seis órgãos a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança A Carta da ONU instituiu a Assembleia Geral como espaço da representação paritária de todas as nações Já o Conselho de Segurança reflete as realidades de poder e garante aos membros permanentes o poder de vetar eventuais ações emanadas da Assembleia Geral A garantia do poder de veto aos membros permanentes de modo que nada que contrariasse seus interesses básicos fosse implementado foi concebida como o principal mecanismo para impedir que a ONU se tornasse irrelevante como ocorrera com a Liga das Nações Há aqui uma dualidade jurídica da universalidade e da pluralidade da AGNU emanam resoluções recomendatórias enquanto do assimétrico CSNU derivam resoluções imperativas cujo descumprimento resulta em sanções Pela descrição anterior podemos perceber que apesar de o conceito de multilateralismo prescrever a importância da diversidade e da inclusão a ONU aplica o princípio de forma mitigada e parcial À AGNU verdadeiro órgão multilateral cabe a elaboração de recomendações que apesar da inegável importância política não asseguram seu cumprimento Já o CSNU foi desenhado de forma a congelar o status quo do pósguerra no período em que a maioria de 11 Textos para Discussão No 59 Instituições Multilaterais e Governança Global seus membros permanentes obedecia a valores ocidentais e liberais a China não havia iniciado sua revolução e a URSS focada em solucionar problemas internos não estava integralmente empenhada na estratégia de internacionalização Nesse sentido a próxima seção irá avaliar em perspectiva histórica de que forma podemos identificar na gênese da ONU as bases para a crise de legitimidade que a organização vivencia na atualidade 3 3 INSTITUIÇÕES INTERNACIONAIS E TRANSIÇÕES DE PODER AS BASES DA INSTITUIÇÕES INTERNACIONAIS E TRANSIÇÕES DE PODER AS BASES DA CRISE DE LEGITIMIDADE DO MULTILATERALISMO CONTEMPORÂNEO CRISE DE LEGITIMIDADE DO MULTILATERALISMO CONTEMPORÂNEO Nosso objetivo nesta seção é analisar a trajetória do multilateralismo político em três conjunturas de inovação e mudança na regulação global centrada na perspectiva da ONU o período da Guerra Fria o pósGuerra Fria e a atualidade em que a crise do multilateralismo se intensificou Antes porém cabe uma breve nota explicitando as premissas teóricas da análise que se segue PODER E INSTITUIÇÃO UMA FALSA DUALIDADE PODER E INSTITUIÇÃO UMA FALSA DUALIDADE É quase um truísmo nas análises convencionais de relações internacionais a afirmativa de que os resultados de guerras sistêmicas envolvendo os principais atores do sistema internacional estabelecem um novo ordenamento mundial favorável aos vencedores Há um suposto implícito na teoria realista convencional de que a assimetria de poder por si só garantiria a estabilização da nova ordem instituída após uma guerra total Entretanto se fosse apenas essa condição que prevalecesse por que os vencedores criam organizações internacionais depois de um conflito global como ocorreu no pósSegunda Guerra Talvez pela pouca importância que as análises convencionais dedicaram às instituições internacionais acabou se consolidando na versão do primado do poder a interpretação de uma oposição entre poder e instituição Mais recentemente essa oposição foi superada a partir das abordagens institucionalistas na análise dos fenômenos políticos Nessa linha cabe mencionar os argumentos sobre o papel das instituições na reconstrução e manutenção da nova ordem internacional gerada pela guerra no período de paz Para essa abordagem a criação de instituições internacionais ao final de um conflito sistêmico é o que garante a manutenção do poder dos vencedores após o fim dele Instituições nessa perspectiva congelam a estratificação de poder resultante de uma guerra sis têmica estabelecendo um ordenamento de normas e estruturas decisórias favoráveis aos seus idealizadores portanto fazem perdurar o poder destes últimos mesmo diante do declínio de suas capacidades materiais Ikenberry 2001 Contudo as instituições também contêm elementos contrahegemônicos ao restringirem o poder dos mais fortes mediante a constituição de um arcabouço normativo fundado em prin cípios jurídicos em especial o da igualdade soberana dos Estados Elas criam um espaço pri vilegiado para os países menores exercerem o que foi denominado de metapoder baseado em recursos simbólicos Krasner 1985 É essa dupla face das instituições internacionais de con gelamento do poder e de contrahegemonia potencial que nos leva a afirmar que a dualidade entre poder e instituição é falsa Para Franz Schurmann 1974 p 69 a criação das Nações Unidas em 1945 12 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ assegurou a primazia do poder americano simbolicamente por sua localização dentro dos Estados Unidos e concretamente por ser uma resultante da aliança das nações que lutaram contra a Alemanha Japão e Itália a maioria das quais estava vinculada aos Estados Unidos E continua o apelo ideológico das Nações Unidas era quase revolucionário na sua promessa de ajudar as nações pobres do mundo na conquista da independência progresso e eventu almente igualdade com relação às nações mais poderosas Sobretudo as Nações Unidas apelavam para o desejo universal da paz2 Para o autor a criação da ONU foi o resultado da visão revolucionária do Presidente Roose velt que concebeu uma instituição palatável às três principais correntes no interior da comu nidade norteamericana de política externa os nacionalistas os internacionalistas e os liberais O desenho institucional da ONU elaborado nos moldes do sistema político norteamericano também foi inovador Conforme apresentado na seção anterior toda a estrutura da organização foi concebida pelos vencedores da Segunda Guerra basicamente Estados Unidos Reino Unido e União Soviética Aos demais aliados coube aprovar o anteprojeto da Carta das Nações Unidas elaborado em conferências privadas com as potências O Brasil foi incluído na comissão de cinco represen tantes incumbidos de coordenar o ponto de vista dos países latinoamericanos com relação ao projeto Oliveira Filho 1998 Com base em documentos analisados no artigo publicados em Foreign Relations of the United States v 1 de 1944 fica evidente a concentração das decisões cruciais nas mãos desses três países e a enorme margem de discrição que tiveram na escolha da arquitetura e dos países que viriam a integrar o Conselho de Segurança da Organização A pretensão brasileira de um assento como membro permanente foi inicialmente endossada pelos Estados Unidos mas rejeitada pelo Reino Unido e pela União Soviética Os três países concor daram com relação à inclusão da França e da China entre os cinco permanentes O PERÍODO GUERRA FRIA RIVALIDADE BIPOLAR E RELAÇÕES NORTESUL O PERÍODO GUERRA FRIA RIVALIDADE BIPOLAR E RELAÇÕES NORTESUL A Carta das Nações Unidas define objetivos bastante ambiciosos que podem ser expressos por suas três tarefas principais promover a paz a cooperação e o desenvolvimento mundial Seu desenho institucional foi concebido de forma a criar uma organização de escopo mundial que se mostrasse efetiva e ao mesmo tempo tivesse capacidade de tomar decisões obrigatórias para todos os países preservando os interesses dos membros mais poderosos A Assembleia Geral garante a participação universal e o Conselho de Segurança assegura a efetividade da institui ção Essa arquitetura dual permitiu que dois dos principais temas substantivos tratados nesse período a segurança internacional e a manutenção da paz no contexto da rivalidade bipolar e a questão do desenvolvimento dos países situados no Sul pudessem seguir caminhos parale los na mesma instituição com escassa interpenetração entre a esfera da segurança e a esfera do desenvolvimento O primeiro tema foi de domínio quase exclusivo do Conselho de Segurança Em razão do poder de veto a tendência foi de que a rivalidade ideológica entre EUA e União Soviética parali 2 Esses e os próximos parágrafos estão baseados em Notas sobre a reforma da ONU e o Brasil LIMA 2010 13 Textos para Discussão No 59 Instituições Multilaterais e Governança Global sasse a discussão no âmbito do Conselho em conflitos afetos diretamente aos dois Nos primei ros anos de funcionamento da ONU a URSS adotou uma política de boicote ao Conselho o que configurava um veto de antemão a todas as resoluções apresentadas O país só reverteu a medida após os EUA procurarem brechas na Carta da ONU e levarem a decisão para outros âmbitos da organização como ocorreu nos casos da Guerra da Coreia e do Canal de Suez O poder de veto que tornara possível a constituição de um sistema de segurança coletiva imperfeito dada a cli vagem fundamental Leste e Oeste simultaneamente impediu que as Nações Unidas pudessem operar com uma instituição de segurança coletiva exceto nos momentos de concordância entre as duas superpotências A dissuasão nuclear por sua vez evitou que os dois rivais se enfrentas sem diretamente transferindo a competição políticoideológica para locais mais distantes na Ásia na África e na América Latina Durante a Guerra Fria Brasil e Índia desenvolveram uma afinidade em determinados temas da agenda multilateral ainda que suas relações bilaterais não fossem expressamente significa tivas Exemplos da aliança foram o comércio tema que se aprofundaria posteriormente e em uma questãochave da agenda de segurança a não proliferação nuclear Ambos desenvolveram conceitos semelhantes para caracterizar a proposta do Tratado de Não Proliferação TNP apre sentada conjuntamente por EUA e União Soviética como uma instância de congelamento do poder mundial da perspectiva brasileira e de colonialismo tecnológico e apartheid nuclear na visão indiana Os dois países se abstiveram juntamente com mais 21 na resolução de endosso do TNP na Assembleia Geral 12061968 e servindo como membros não permanentes do Conselho de Segurança também se abstiveram na resolução de garantias de segurança Nesse sentido Brasil e Índia se recusaram a assinar o TNP assim como Paquistão Argentina Israel e África do Sul3 Após esses episódios o Brasil não se candidatou para o CSNU por cerca de vinte anos retor nando apenas após a democratização LIMA 2013 p 118119 No campo do desenvolvimento a rivalidade LesteOeste acabou por funcionar positivamente para dar à ONU um papel ativoO processo de descolonização ampliou sobremaneira o número de novos Estadosmembros em especial no início dos anos 60 garantindo que a maioria de 23 dos votos na Assembleia coubesse aos países em desenvolvimento A formação do Grupo dos 77 o caucus dos países em desenvolvimento na Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento UNCTAD da silha em inglês foi a mais significativa dessas iniciativas colocando o tema no centro da agenda da ONU A aliança entre o então Terceiro Mundo evidenciou a necessidade de reformas da ordem econômica mundial em temas como comércio produtos primários e questões monetárias para diminuir as desvantagens daqueles países que se sentiam excluídos do crescimento do pósguerra praticamente restrito às economias avançadas de mercado Inicialmente os EUA e os demais países desenvolvidos reagiram negativamente às propostas de reforma A pressão do G77 se tornou efetiva no momento em que a União Soviética passou a demonstrar interesse em discutir questões de comércio LesteOeste Para evitar que a última pudesse tirar proveito de uma aliança tática com os países em desenvolvimento o bloco ociden tal mudou de posição aceitando organizar uma conferência sobre comércio e desenvolvimento A conferência da UNCTAD em 1964 foi a primeira de âmbito global organizada exclusivamente 3 Na década de 90 Brasil Argentina e África do Sul aderiram ao TNP Índia Paquistão e Israel assim como a Coreia do Norte que denunciou o tratado em 2003 são os quatro países não signatários na atualidade 14 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ em torno das questões NorteSul e resultou da mobilização da maioria dos países em desenvol vimento O resultado foi a garantia de um poder de barganha relativo visàvis aos países capi talistas avançados e a manutenção da UNCTAD como organização permanente Nos anos 60 o Brasil fazia parte do grupo dos influentes dentre os países do Sul Nos anos 70 e seguintes o país continuou liderando diversas iniciativas nas questões NorteSul mesmo durante o período do regime militar conforme ilustrado pela eleição do então chanceler brasi leiro Azeredo da Silveira para chairman do G77 O PERÍODO PÓSGUERRA FRIA OS ESTADOS UNIDOS E AS TENSÕES DO MULTILATERALISMO O PERÍODO PÓSGUERRA FRIA OS ESTADOS UNIDOS E AS TENSÕES DO MULTILATERALISMO Para efeitos analíticos é possível examinar a trajetória multilateral no pósGuerra Fria por meio de duas lentes conceituais Por um lado ressaltamos a orientação expressa pelos EUA que tal como ocorreu no período do pósSegunda Guerra foram os principais vencedores da con tenda Por outro destacase a natureza da principal tensão que dividiu os trabalhos das Nações Unidas a partir dos anos 90 representada pela dualidade cosmopolitismo e soberania O tema da reforma da ONU se impôs no final da Guerra Fria mas não por iniciativa dos EUA A demanda foi o resultado de iniciativas difusas de setores diversos da sociedade civil do Secretariado da ONU de membros da Assembleia Geral e de personalidades eminentes contra tadas como consultoras pela organização para planejar a adaptação aos novos tempos Se comparada ao processo iniciado na ONU a estratégia institucional dos EUA foi mini malista Consistiu basicamente na ampliação da Organização do Tratado do Atlântico Norte OTAN com a incorporação de países da Europa do Leste e Central na criação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte NAFTA em inglês e no apoio à criação da OMC ampliando as áreas de regulação multilateral para além da negociação tradicional de concessões tarifárias entre países Com relação às Nações Unidas a orientação estadunidense foi majorita riamente favorável à racionalização e à maior eficiência no funcionamento e nos gastos da orga nização De modo geral sua posição tendeu a privilegiar o status quo com relação à reforma do sistema de segurança coletiva Lima 2010 p 272273 Se no plano institucional a estratégia estadunidense foi minimalista no plano discursivo ocorreu o contrário O mote triunfalista se tornou hegemônico entre os operadores da política externa norteamericana entre seus intelectuais orgânicos e mesmo na literatura de relações internacionais produzida no país Sua base era a crença generalizada na possibilidade de final mente se pôr em prática o sistema de segurança que sustentava o edifício jurídico e político da organização em função do descongelamento do mecanismo ao fim da bipolaridade A convic ção era de que o sistema de segurança coletiva da ONU pudesse efetivamente funcionar sem a paralisia decisória que a bipolaridade havia impedido Como já observado durante a Guerra Fria o poder de veto interferiu na capacidade de funcionamento do sistema de segurança cole tiva só possível em momentos de concordância entre as duas superpotências O descongelamento no pósGuerra Fria se expressou na diminuição do uso do veto compa rado ao momento anterior no aumento exponencial da quantidade de resoluções aprovadas e no crescimento de resoluções que envolvessem a aprovação do uso da força baseadas no capí tulo VII da Carta da ONU A Tabela 1 resume os dados 15 Textos para Discussão No 59 Instituições Multilaterais e Governança Global Tabela 1 Resoluções totais e resoluções de capítulo VII na Guerra Fria e no pósGuerra Fria Período Resoluções totais Resoluções de capítulo VII Vetos em resoluções Vetos a rascunhos 19461989 646 21 232 192 19902014 1549 664 35 29 Fonte elaboração própria com base nos dados de Wallesteen e Johansson 2016 p 29 Portanto a maior cooperação entre os membros permanentes do Conselho implicou o aumento das decisões envolvendo o uso da força e a intervenção O cenário de um novo con certo entre os poderes ganhou espaço entre analistas e praticantes ao mesmo tempo que se tornaram mais frequentes as consultas informais entre os membros permanentes aumentando ainda mais a opacidade com relação às atividades do Conselho e a exclusão dos demais Estados membros da organização No plano discursivo foi sensível a modificação no mindset das potências ocidentais em espe cial dos EUA Os teóricos realistas que haviam dominado o debate intelectual durante a Guerra Fria foram deixados de lado em comparação à recuperação da influência dos teóricos liberais Para os últimos o principal desafio para a política externa deixara de ser os novos desafiantes à hegemonia dos EUA e passava a ser a interdependência transnacional Tratavase de restaurar o valor analítico e prescritivo da perspectiva idealista em uma restauração tardia do libera lismo wilsoniano Um dos componentes daquele constructo teórico e normativo foi a redesco berta das organizações internacionais entre elas as Nações Unidas renovada na sua capacidade de preservar a paz depois da paralisia imposta pela Guerra Fria Kegley Jr 1995 No Ocidente passou a predominar a visão da recriação de um novo concerto das potências nos moldes do Concerto Europeu celebrado após o Congresso de Viena em 1815 A Guerra do Golfo e as resoluções do Conselho de Segurança condenando a invasão do Kuwait pelo Iraque em agosto de 1990 como a resolução 688 19914 caracterizando a repressão às populações cur das e xiitas pelo governo de Saddam Hussein como ameaça à paz e à segurança internacional foram percebidas como marcos daquela renovação As principais publicações em relações internacionais nos EUA passaram a utilizar termos como nação indispensável momento unipolar e lonely superpower A arrogância do poder em consequência do desaparecimento do principal inimigo sistêmico não tardou a se manifes tar nos EUA com a eleição de George W Bush A invasão estadunidense ao Iraque em março de 2003 sem autorização da ONU entrou para a história como o exemplo acabado do unilate ralismo da política externa norteamericana acentuado após o atentado de 11 de setembro de 2001 e da legitimação na prática da guerra preventiva No campo conceitual uma das principais inovações das propostas de reforma do arcabouço normativo da ONU no pósGuerra Fria visava dar conta das situações de instabilidade e ameaça à paz internas aos Estados O aumento dos conflitos intraestatais e das intervenções com base no capítulo VII geraram resistências entre os países do Sul inclusive o Brasil uma vez que as intervenções coercitivas implicavam maior ingerência política 4 Disponível em httpsdocumentsddsnyunorgdocRESOLUTIONGENNR059624pdfNR059624pdfOpenElement Acesso em 30 nov 2020 16 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ Nas propostas de reforma do sistema de segurança coletiva ficou patente a contradição entre as proposições de natureza cosmopolita e a manutenção do pilar da soberania5 Este último embasa o sistema normativo da ONU uma organização intergovernamental por excelência O eixo cosmopolita acentua a interdependência dos indivíduos diante de fronteiras artificiais cria das pela ordem global das soberanias Tem por base a premissa da existência de uma comu nidade internacional cujo significado moral está expresso na noção de uma comunidade humana que por sua vez é anterior ao Estado soberano Com o fim da Guerra Fria a globalização econômica e a proliferação de situações nacio nais de desrespeito aos direitos humanos limpeza étnica violência contra minorias e contra populações civis perpetradas pelas próprias autoridades nacionais se generalizou a premissa de que a comunidade humana era a perspectiva correta para análise da política mundial Nos anos 90 esse debate ultrapassou as fronteiras da academia e das discussões de filosofia política e passou a fazer parte do léxico dos formuladores de política e dos reformadores das instituições internacionais As propostas de natureza cosmopolita podem ser agrupadas sob a ideia geral de se relativizar a soberania estatal tomando o indivíduo como o centro dos direitos e da proteção na sociedade internacional As mais significativas propõem um alargamento do conceito de segurança e uma definição ampla de ameaças à segurança internacional desafios que por sua natureza estão localizados no âmbito doméstico Como consequência da negação da condição absoluta à sobe rania essas propostas flexibilizaram as situações em que é legítima a intervenção da comunidade internacional sendo o conceito de responsabilidade de proteger a principal inovação concei tual do processo de reforma6 No polo oposto às propostas cosmopolitas estão aquelas que fortalecem a dimensão interes tatal das Nações Unidas em dois aspectos principais na democratização do funcionamento da Organização e na ampliação da sua representatividade Na primeira dimensão perfilam as que visam aumentar o grau de prestação de contas da organização de modo geral mas em par ticular do Conselho de Segurança Nesse ponto destacase a vontade política de limitar o poder discricionário dos membros permanentes do Conselho seja no sentido de elaborar regras mais precisas no que se refere ao uso da força seja para aumentar a transparência dos trabalhos do Conselho Para isso buscouse valorizar a participação da sociedade civil no processo de formu lação conceitual e de debates da reforma As propostas relativas à ampliação da representativi dade da organização incluem o aumento da representação dos Estadosmembros permanentes e não permanentes no Conselho de Segurança bem como a valorização e a ampliação do papel da Assembleia Geral ainda restrito a recomendações A agenda de reforma do sistema de segurança coletiva em debate nos anos 2000 implicava dois movimentos em certa medida contraditórios a reconfiguração do conceito de soberania no sentido de restringir sua natureza absoluta e simultaneamente o reconhecimento do Conse lho de Segurança como o ator soberano coletivo no sentido de conferir a essa instância a autori dade máxima na interpretação das situações passíveis do uso da força O primeiro está referido à comunidade humana o segundo à comunidade das nações A agenda de reforma refletia assim a dualidade constitutiva da ONU uma instituição universal e simultaneamente uma instância oligárquica de decisão 5 Para a tensão entre cosmopolitismo e soberania nas propostas de reforma da ONU ver Lima 2010 p 277285 6 Ver mais em Evans 2008 17 Textos para Discussão No 59 Instituições Multilaterais e Governança Global Essa dupla face da agenda da reforma colocou como item inescapável a necessidade de tornar mais representativo esse soberano coletivo Nenhum dos projetos de resolução de reforma do Conselho de Segurança no sentido de ampliar o número de assentos com poder de veto foi levado à votação na Assembleia Geral e desde então o tema da reforma do Conselho tem estado presente no debate na ONU com o endosso geral da sua necessidade ainda que sem consenso sobre o seu modelo A ressignificação das ameaças transnacionais à segurança coletiva no século XXI que passa ram a incluir itens como pobreza degradação ambiental pandemias armas nucleares químicas e biológicas organizações criminosas e terrorismo e a consequente necessidade de se garan tir a autoridade do Conselho de Segurança indicaram de modo cristalino a necessidade de se aumentar a representatividade do órgão Contudo o processo de reconfiguração de ameaças tem sido incremental e seu encaminha mento vem sendo incorporado à prática da organização de modo consuetudinário em que solu ções ad hoc são adicionadas ao arcabouço normativo em um processo significativo de mudança conceitual e de práticas internacionais O paradoxo é que a agenda de reforma institucional no sentido do aumento da representatividade exige uma mudança constitucional cuja implementa ção tem encontrado sérias objeções pelas potências Desde meados dos anos 2000 a ONU vem experimentando forte descompasso entre as inovações na prática e a rigidez de sua constitucio nalização e legalização por via dos impasses na incorporação das emendas à Carta das Nações Unidas A CRISE DO MULTILATERALISMO POLÍTICO A CRISE DO MULTILATERALISMO POLÍTICO O diagnóstico de crise que caracteriza o período atual é complexo uma vez que inclui mudan ças de natureza sistêmica e estrutural deficiências no funcionamento da ONU e crise de legiti midade para citar as razões mais evidentes Nesse contexto a pandemia da Covid19 pode ser entendida como uma conjuntura crítica que maximizou os efeitos de problemas preexistentes e evidenciou o principal paradoxo hoje da instituição Destarte a pandemia é uma ameaça transnacional Essa condição tem levado alguns analistas a caracterizaremna como um mal público no sentido de que uma vez produzido na forma da transmissão infecciosa entre indivíduos afeta simultaneamente ainda que de modo desigual praticamente toda a população do planeta Como um mal público ele só pode ser estancado por via da autoridade da gestão do Estado no plano doméstico e da coordenação da vontade cole tiva dos Estados no plano internacional Ocorre que a principal organização dedicada ao tema a Organização Mundial da Saúde OMS tem apenas poder normativo A crise sanitária expôs de forma candente o desafio da necessidade de regulação internacional diante dessa e de futuras ameaças transnacionais que se tornaram mais prováveis com a crescente interdependência glo bal entre países e indivíduos O paradoxo é que quando mais necessária é a regulação multilate ral coletiva para fazer face ao mal público mais enfraquecidas estão na atualidade instituições como a ONU e a OMS Cabe destacar entretanto que a pandemia não inaugurou as tensões Os primeiros sinais de crise do multilateralismo em particular no campo comercial já eram visíveis nos anos 90 em função de um conjunto praticamente simultâneo de fatores que engloba profundas mudanças tecnológicas reorganização da produção e do comércio nas economias avançadas e o reorde namento de poder global com a emergência da China e de alguns países do Sul geopolítico As 18 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ transformações do capitalismo com a expansão das cadeias produtivas a proliferação de acor dos de comércio bilaterais plurilaterais regionais e o aumento do número de questões substan tivas sujeitas à regulação no âmbito comercial contribuíram para a fragmentação da governança do comércio mundial Os EUA foram também responsáveis por esse enfraquecimento ao buscarem alternativas bilaterais e plurilaterais na medida em que o papel da OMC passou a ser visto como insuficiente em áreas de seus interesses diretos como propriedade intelectual serviços e investimentos A iniciativa norteamericana ao propor a formação das Parcerias Transatlântica e Transpacífica em arranjos regulatórios fora do âmbito da OMC contribuiu mais ainda para o enfraqueci mento normativo e operacional da própria Organização Mundial do Comércio Pereira 2020 Os anos 2000 trouxeram novos desafios para o multilateralismo político O deslocamento do centro de gravidade da economia internacional e da geopolítica do Atlântico Norte para o Leste Asiático a crise econômica global de 2008 e a recessão que a ela se seguiu contribuíram para o enfraquecimento da coalizão liberal o aumento do protecionismo econômico do nacionalismo e das disputas geopolíticas As consequências no plano doméstico não tardaram a se manifestar com a eleição de governos de direita e extremadireita nos países capitalistas avançados e no Sul geopolítico que pregam o negacionismo e desprezam o multilateralismo Esse clima de instabilidade e incerteza da economia política internacional colocou mais com bustível na demanda por reforma das instituições internacionais vistas como incapazes de for necer soluções para os problemas contemporâneos A nosso ver a origem das contestações que a ONU e as demais instituições políticas universais passaram a sofrer decorrem da inadequação do arcabouço institucional liberalocidental construído no pósSegunda Guerra em fazer face ao realinhamento do poder global com a emergência da China de novos polos de poder e maior diversidade identitária e política Mais recentemente à crise de legitimidade oriunda da demanda por democratização e de mecanismos de prestação de contas do poder discricionário dos membros permanentes do CSNU assim como da necessidade de se aumentar a representatividade da instituição com a ampliação dos membros permanentes e não permanentes como vimos anteriormente agre gouse a necessidade da incorporação de valores distintos à normatividade ocidental liberal ampliando assim sua diversidade cultural Com a eleição de Donald Trump em 2016 o unilateralismo dos EUA que se manifestara inicialmente na política externa de George W Bush na intervenção do Iraque foi retomado por via da política de confronto Juntamente com o acirramento do conflito EUAChina em função da mudança da política externa chinesa para uma orientação mais assertiva estavam dados os ingredientes para um dos momentos mais críticos da crise de legitimidade do multilateralismo Toda organização multilateral está fundada na regra básica da reciprocidade que determina que cada participante grande ou pequeno deve aceitar constrangimentos gerais universalmente válidos Fonseca Jr 2008 p 74 Ainda que a regra da reciprocidade admita várias exceções elas devem estar previstas nos documentos constitutivos da organização Uma vez que nas insti tuições multilaterais não existe formalmente um soberano que decida a exceção a legitimidade desta decorre do cumprimento da premissa da igualdade dos Estados As regras ampliam a legi timidade das ações de todos mas também os custos de um eventual comportamento unilateral dos poderosos É por isso que como introduzido nas seções anteriores toda instituição multila 19 Textos para Discussão No 59 Instituições Multilaterais e Governança Global teral tem uma dupla face elas congelam o poder e a assimetria mas potencialmente podem ser contrahegemônicas voltadas ao controle do uso da força e da arbitrariedade dos mais fortes Se qualquer um de seus membros mais poderosos passa sistematicamente a se comportar como a exceção se colocando acima das regras como ocorreu nos governos Bush e Trump está rompida a regra da reciprocidade que é a base de sustentação do multilateralismo Trump denunciou os acordos de segurança de equilíbrio de mísseis balísticos com a Rússia em 2019 retirouse do Tribunal Penal Internacional denunciou o Acordo de Paris e contribuiu para a paralisação do órgão de solução de controvérsias da OMC Mais ainda retirouse da OMS e suspendeu as contribuições norteamericanas àquela organização por conta da alegação de que a OMS escondera dados sobre a responsabilidade chinesa na pandemia de Covid19 Ao violar a reciprocidade os EUA abriram caminho para que as demais potências agissem da mesma forma O mesmo ocorreu com a anexação da Crimeia pela Rússia e a lei de segurança chinesa em Hong Kong também estimulando comportamentos semelhantes de potências regio nais na violação dos princípios constitucionais da ONU Como resultado houve intervenções da Arábia Saudita no Iêmen da Turquia na Síria e de Israel nos territórios palestinos ocupados Num efeito em cadeia o rompimento dos pilares do multilateralismo aprofundou a crise de legitimidade e acentuou o eixo contrahegemônico com demandas por maior democratização e participação Lima Albuquerque 2020 O não reconhecimento da China como um player global e a política de contenção empreen dida pelos EUA também paralisaram a ação do Conselho de Segurança na pandemia Em um processo semelhante ao que ocorria na Guerra Fria entre EUA e URSS mas agora entre EUA e China observamos que a demora do órgão em agir durante a crise sanitária decorreu da falta de entendimento básico entre dois de seus membros permanentes Em abril o SecretárioGeral da ONU Antonio Gutérres solicitou que fosse declarado um cessarfogo universal como forma de barrar o avanço da doença entre tropas e civis Passaram se três meses para que o CSNU aprovasse uma resolução nesse sentido e ainda assim de forma parcial não contemplando as operações que envolvessem o combate a atores não estatais O motivo da demora é de que para a China qualquer resolução sobre saúde precisaria ressaltar o papel central da OMS já para os EUA a menção à agência seria inaceitável pelos motivos aqui expostos A solução encontrada para finalmente aprovar a resolução em julho foi não incluir a OMS no texto mas fazer menção a uma resolução aprovada na Assembleia Geral que ressaltava a importância da organização Em suma a emergência da China amplia a crise de legitimidade na crítica ao viés excessiva mente liberalocidental das instituições multilaterais e sua incapacidade de se abrir à diversidade e incorporar valores culturais não ocidentais Numa tentativa de preserválos e ignorando a mudança do eixo da economia política e da geopolítica globais alguns intelectuais ocidentais defendem a ideia de que um modo de se resolver o problema da ação coletiva que o aumento de participantes gera no sistema multilateral seria fragmentálo em unidades menores plurila terais reunindo países semelhantes likeminded countries ou apenas países democráticos por exemplo Lima Albuquerque 2020 Não custa observar que uma reforma nessa direção sim plesmente anularia a dimensão universal do multilateralismo político e seria contrária aos pro pósitos das Nações Unidas e da OMS cuja razão de ser é sua abrangência global 20 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ 4 4 CONCLUSÃO PERSPECTIVAS PARA O MULTILATERALISMO E CONCLUSÃO PERSPECTIVAS PARA O MULTILATERALISMO E IMPLICAÇÕES PARA O BRASIL IMPLICAÇÕES PARA O BRASIL Com base no exposto nas seções anteriores apresentamos a seguir os principais desafios e os possíveis cenários para o multilateralismo nas próximas décadas bem como as possíveis impli cações para o Brasil Ressaltamos que os cenários apontados não são exclusivos entre si mas sugerimos algumas perspectivas que pela complexidade das interações interestatais podem se manifestar parcialmente de forma combinada ou obedecendo a outros critérios não antevistos A primeira perspectiva a ser destacada é a de que com o enfraquecimento do multilatera lismo universal abrese espaço para o fortalecimento do multilateralismo regional Para inú meras organizações regionais o diagnóstico da instabilidade da ONU não se aplica pois são instituições que obedecem a outra lógica e formato Por um lado podemos ressaltar o fortale cimento de uma organização que vai além do proposto pela ONU englobando uma dimensão supranacional a União Europeia UE Se com o Brexit as análises eram de que o bloco se enfraqueceria os Estadosmembros lograram aprovar um acordo de recuperação econômica da crise o EU Next Generation Além disso a UE alcançou concordância para o estabelecimento de um acordo ambiental o European Green New Deal Por outro lado cabe ressaltar os experimen tos bemsucedidos de organizações de caráter soberanista em que os compromissos dos Estados tendem a ser pontuais e em nichos específicos Este é o caso de organizações asiáticas como a Associação de Nações do Sudeste Asiático ASEAN que vem satisfatoriamente promovendo a recuperação da crise por meio do reforço do comércio e da recémcriada Parceria Regional Econômica Abrangente RCEP a qual integra 15 países da Ásia do Leste e Sudeste e da Oceania O segundo possível caminho para o multilateralismo foi apresentado anteriormente a frag mentação por meio de alianças plurilaterais de likeminded countries Essa prática defendida por muitos países ocidentais é contrária ao próprio conceito de multilateralismo que destaca a diversidade e a inclusão e não a restrição pautada na semelhança Entretanto esse é um expe diente que já vem sendo aplicado nos campos financeiro e comercial dada a paralisia da OMC Exemplos são acordos de alcance parcial e a criação de instituições financeiras próprias como indica a estratégia da China em investir na criação e no fortalecimento de bancos asiáticos ou voltados para países em desenvolvimento Esse momento também é explicado pela falta de con vergência entre as organizações universais marcadamente ocidentais e liberais e os princípios chineses de inserção internacional que obedecem a outra lógica Cabe observar que diferente mente do campo comercial e financeiro acordos de países likeminded no campo da segurança coletiva em última análise configurariam a formação de uma aliança militar o que a nosso ver é improvável a não ser em um cenário de polarização global absoluta A terceira possibilidade é mais otimista e aposta na capacidade de adaptação e resiliência das organizações internacionais Estas são em primeiro lugar fóruns de integração entre os Estados e obedecem ao nível de comprometimento que estes estão dispostos a assumir Não é a primeira vez na história que vemos o multilateralismo ser questionado e em 75 anos de funcionamento a ONU buscou formas ainda imperfeitas de sair de situações de impasse Após o unilateralismo de George W Bush Barack Obama renovou os votos entre os EUA e o multilateralismo mesmo que ainda mantendo operações ilegais iniciadas pelo antecessor Se mantiver seus compromissos de campanha o mesmo cenário se desenha para o governo Joe Biden após o fracasso eleitoral de Trump E mesmo em um cenário com maior propensão a retomar o caminho das reformas é pouco provável que estas incluam um aumento do número de assentos permanentes no Conse 21 Textos para Discussão No 59 Instituições Multilaterais e Governança Global lho de Segurança da ONU objetivo almejado pelo Brasil desde a fundação das Nações Unidas No máximo poderseia esperar a criação de uma camada intermediária entre os cinco mem bros permanentes e os demais países Finalmente já está constatado que mesmo no auge do unilateralismo as potências têm inte resse em permanecer nas organizações para evitar que decisões sejam tomadas à revelia de seus interesses Nem Bush nem Trump retiraram os EUA da ONU nem da OMC mesmo as criticando abertamente Rússia China França e Reino Unido também seguem participando das atividades e assumindo novos compromissos internacionais Ademais a China necessita de uma organização como a ONU para legitimar a sua ascensão global Por essa chave de leitura a competição entre as potências fortalece o multilateralismo e não o contrário Uma característica da ONU contribui para sua permanência mesmo em crise é a única instituição de segurança coletiva de natureza global incluindo todas as potências O compromisso das últimas se reflete na posição que ocupam entre os trinta maiores contri buintes do orçamento regular da ONU No período de 1998 a 2020 os cinco maiores contribuin tes foram pela ordem EUA Japão Alemanha França e Reino Unido se revezando Contudo no triênio de 2016 a 2018 a China passou a ocupar o terceiro lugar entre os trinta maiores e o segundo no de 20192021 previsto A mudança de lugar em um período de tempo relati vamente curto é sugestiva quando se observa que no primeiro triênio dessa série histórica o país ocupava o décimo oitavo lugar O mesmo padrão se repete quando se analisam os maiores contribuintes do orçamento das Missões de Paz Se no início da série a China estava no décimo segundo lugar entre os trinta maiores nos dois últimos triênios já alcançara a segunda posição logo abaixo dos EUA Também nessa lista EUA Japão Alemanha França e Reino Unido pela ordem têm sido os maiores contribuintes Nos dois últimos triênios contudo a contribuição chinesa ultrapassou a japonesa Feldman 2020 p 180181 182183 O último cenário de uma adaptação da ONU e um comportamento relativamente mais cola borativo da política externa norteamericana é o que apresenta as melhores perspectivas para a inserção internacional do Brasil Somos um país que não possui excedentes de poder e que por isso utilizou a diplomacia e a negociação como forma de solução de controvérsias interna cionais com raríssimas exceções Além disso o país identificou há séculos o desenvolvimento como seu principal objetivo Ambos os elementos só são alcançados por meio do multilate ralismo Na condição de país emergente o Brasil possui mais chances de ter suas demandas atendidas em espaços em que seu direito de voz esteja assegurado e que permitam a formação de alianças com países semelhantes que buscam os mesmos objetivos Tais afirmações são feitas a despeito da postura antimultilateral do atual governoem vista da existência de compromis sos internacionais previamente assumidos e da própria provisão da nossa Constituição Federal Houve momentos anteriores de inflexão na política externa brasileira mas não foram suficientes para reverter a tendência histórica mesmo que a recuperação tenha sido lenta 22 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ 5 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE M Potências médias emergentes e uso da força Brasil e Índia no Conselho de Segurança das Nações Unidas 19462012 Curitiba Editora Appris no prelo CARR E H Vinte anos de crise 19191939 uma introdução ao estudo das relações internacionais Brasília Ed UnB 2001 EVANS G The responsibility to protect ending mass atrocities crimes once and for all Washington Brookings Institute Press 2008 FELDMAN L Notas sobre as negociações orçamentárias das Nações Unidas Cadernos de Política Exterior ano IV n 9 p 141183 2020 FONSECA JR G O interesse e a regra ensaios sobre o multilateralismo São Paulo Paz e Terra 2008 HERZ M HOFFMANN A R Organizaçoes internacionais história e práticas Rio de Janeiro Campus Elsevier 2004 IKENBERRY G J After Victory Institutions Strategic Restraint and the Rebuilding of Order after Major Wars Princeton Princeton University Press 2001 KEGLEY JR C W The neoliberal challenge to realist theories of world politics an introduction In KEGLEY JR C W ed Controversies in international relations theory New York St Martin Press 1995 p 124 KEOHANE R Multilateralism an agenda for research International Journal v 45 n 4 p 731764 1990 KRASNER S D Structural conflict Third World against global liberalization Los Angeles University of California Press 1985 LIMA M R S Notas sobre a reforma da ONU e o Brasil In IV CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL IV CNPEPI Reforma da ONU Brasília Funag 2010 p 269301 LIMA M R S The political economy of Brazilian foreign policy nuclear energy trade and Itaipu Brasília Funag 2013 LIMA M R S ALBUQUERQUE M Reordenamento global crise do multilateralismo e implicações para o Brasil Centro Brasileiro de Relações Internacionais Cebri Policy Note p 412 2020 Disponível em httpswwwcebri orgportalpublicacoescebriartigosreordenamentoglobalcrisedomultilateralismoeimplicacoesparaobra sil Acesso em 20 out 2020 MILANI C R S Crise política e relações internacionais uma análise escalar da política externa brasileira In CONFE RÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL 6 Relações Internacionais em Tempos de Crise Econômica e Política Anais Brasília Funag 2012 p 4360 OLIVEIRA FILHO A P O Brasil e o Conselho de Segurança da ONU revelações vinte anos depois Parcerias Estraté gicas n 5 p 94100 set 1998 PEREIRA L V Crise e governança do sistema multilateral de comércio Centro Brasileiro de Relações Internacionais Cebri Policy Note p 413 2020 Disponível em httpswwwcebriorgportalpublicacoescebriartigoscrisee governancadosistemamultilateraldecomercio Acesso em 10 out 2020 RUGGIE J Multilateralism the anatomy of an institution International Organization v 46 n 3 p 561598 1992 SCHURMANN F The logic of world power New York Pantheon Books 1974 WALLESTEEN P JOHANSSON P The UN Security Council decisions and actions In VON EINSIEDEL S MALONE D UGARTE B S eds The UN Security Council in the 21st century Londres Lynne Rienner Publishers 2016 p 2756
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Textos para Discussão INSTITUIÇÕES MULTILATERAIS E GOVERNANÇA GLOBAL Cenários de Reorganização das Estruturas de Governança Global e Perspectivas do Multilateralismo nas Próximas Décadas Maria Regina Soares de Lima Marianna Albuquerque Textos para Discussão No 59 INSTITUIÇÕES MULTILATERAIS E GOVERNANÇA GLOBAL Cenários de Reorganização das Estruturas de Governança Global e Perspectivas do Multilateralismo nas Próximas Décadas Este documento serve como pano de fundo para os temas específicos que foram tratados durante o Seminário O Brasil póspandemia Sistema Interestatal Instituições Multilaterais e Governança Global da Saúde realizado em 3 de maio de 2021 na Fiocruz Rio de Janeiro Abril 2021 AUTORAS AUTORAS Maria Regina Soares de Lima Graduação em Sociologia PUC Rio 1966 Doutora em Ciência Política pela Vanderbilt University 1986 Atualmente é professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ IESPUERJ e coordenadora do Observatório Político Sul Americano OPSA Marianna Albuquerque Graduação em Ciência Política pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 2013 e graduação em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 2013 Mestre em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos IESPUERJ Pesquisadora e coordenadora adjunta do Observatório Político SulAmericano OPSA SUMÁRIO SUMÁRIO Introdução A Organização das Nações Unidas e os Princípios do Multilateralismo Instituições Internacionais e Transições de Poder As bases da crise de legitimidade do multilateralismo contemporâneo Conclusão Perspectivas para o multilateralismo e implicações para o Brasil Referências Bibliográf icas 7 8 11 20 22 7 Textos para Discussão No 59 INSTITUIÇÕES MULTILATERAIS E GOVERNANÇA GLOBAL INSTITUIÇÕES MULTILATERAIS E GOVERNANÇA GLOBAL Cenários de Reorganização das Estruturas de Governança Global Cenários de Reorganização das Estruturas de Governança Global e Perspectivas do Multilateralismo nas Próximas Décadas e Perspectivas do Multilateralismo nas Próximas Décadas 1 1 INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO Em 2020 a pandemia de Covid19 e as crises sanitária econômica social e ambiental decorrentes deixaram evidentes que o sistema internacional precisa aprofundar os mecanismos de atuação coletiva Os desafios que se avolumam como pandemias e mudanças climáticas são por definição transfronteiriços o que inviabiliza a restrição do escopo político ao Estadonação A conclusão de que soluções conjuntas são necessárias para se lidar com as questões internacionais não é nova no entanto mesmo com variações de ênfase No passado o inimigo comum eram as guerras cuja ocorrência frequente demandou a criação de mecanismos coletivos de promoção da paz A assinatura de tratados e a realização de conferências deram lugar a instrumentos dotados de maior grau de institucionalização como as organizações internacionais OIs que poderiam atuar na prevenção de conflitos de forma perene e não apenas em caráter reativo ao início das tensões Mesmo que tenham sido criadas motivadas pela intercorrência de guerras as OIs ampliaram sua agenda temática para tratar de outros temas como direitos humanos desenvolvimento comércio e saúde Nesse ponto a expansão da agenda foi estimulada pelos países do Sul Global progressivamente incorporados a esses instrumentos após as ondas de descolonização Essas organizações promoveriam maior democratização das relações internacionais no sentido de que possibilitariam a tomada de decisão multilateral O conceito não traz apenas a ideia quantitativa de muitas partes envolvidas mas também a dimensão qualitativa de que os interesses dessas partes serão considerados Ao disponibilizarem um espaço de debates e trocas as OIs se consolidaram como uma estratégia prioritária para esses países incluírem na pauta suas demandas particulares de forma a garantir a diversidade e a pluralidade de posições Para os fins do trabalho proposto iremos dar ênfase à principal organização internacional a Organização das Nações Unidas ONU A ONU é uma organização universal e governamental mas é acima de tudo uma organização política Criada para ser a base do sistema de segurança coletiva e de cooperação do pósguerra ela deveria englobar e fortalecer a dimensão participativa e inclusiva para ser de fato multilateral Entretanto desde a sua criação a organização enfrenta dificuldades em garantir os propósitos multilaterais de inclusão e diversidade o que enfraquece e abala progressivamente a sua legitimidade Com isso o objetivo deste trabalho é analisar como o desenho institucional da ONU foi ineficaz em dotála de capacidade de efetivação das premissas multilaterais sobretudo no Conselho de Segurança órgão que adota resoluções vinculantes relegando a participação universal à Assembleia Geral que adota resoluções recomendatórias Para além da questão estrutural iremos apontar como a pandemia de Covid19 constituiu uma conjuntura crítica que evidenciou a crise do multilateralismo ao trazer à tona o power 7 8 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ shift na competição entre duas grandes potências os Estados Unidos e a China Após o fim da bipolaridade da Guerra Fria a expectativa entre analistas era de que a ONU estaria se encaminhando para implementar integralmente os propósitos multilaterais em particular que a paralisia decisória durante a Guerra Fria daria lugar a um ativismo das Nações Unidas permitindo inclusive a implementação das reformas Contudo a promessa não se efetivou O principal fator condicionante a nosso ver é a crise de legitimidade da organização que se manifesta na incapacidade de fazer face à emergência de novos polos de poder e levar avante a reforma do Conselho de Segurança Relacionado a esse desafio cabe apontar o fracasso da instituição em incorporar a diversidade de valores que resulta dessa mesma pluralidade de atores valores e interesses Para se atingir o objetivo o trabalho está dividido em quatro seções além desta breve introdução Na primeira iremos detalhar o conceito de multilateralismo e a morfologia do sistema ONU apresentando um panorama de seus principais órgãos e agências Aqui iremos ressaltar o argumento de que apesar de baseada nos princípios multilaterais a ONU foi desde a sua criação uma organização pautada em valores ocidentais e liberais preconizados pelas grandes potências da época Com isso há uma resistência estrutural na incorporação da diversidade o que culminou na atual crise de legitimidade da organização Na segunda seção analisamos a trajetória da crise do multilateralismo durante três momentos o período da Guerra Fria o imediato pósGuerra Fria e a atualidade em que os questionamentos de legitimidade se intensificaram motivados pela pandemia Na terceira parte iremos apontar possíveis caminhos para o multilateralismo e para as OIs nas próximas décadas dada a transição de poder entre EUA e China e o aprofundamento da crise causado pelos efeitos da Covid19 2 2 A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS E OS PRINCÍPIOS DO A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS E OS PRINCÍPIOS DO MULTILATERALISMO MULTILATERALISMO1 Muito se fala sobre o multilateralismo e sobre as organizações multilaterais mas nem sempre é dedicada atenção ao conteúdo do termo e às formas pelas quais este se institui e se manifesta Em sua acepção minimalista a etimologia do conceito possui uma raiz quantitativa na qual o multilateralismo consiste na coordenação política entre três ou mais Estados Keohane 1990 Entretanto outros autores a exemplo de Ruggie 1992 questionam a definição numérica e apontam que há uma dimensão qualitativa na prática multilateral que traz em seu bojo as noções normativas de reciprocidade e participação Segundo o argumento de Ruggie a definição pelo número esconde o fato de que arranjos formados por múltiplas unidades podem ser na prática comandados por um ou poucos integrantes desvirtuando o propósito de decisão coletiva Dessa forma além da quantidade de membros seriam características do multilateralismo elementos como a interação a institucionalização de espaços deliberativos a redução dos custos de transação a transparência a pluralidade de opiniões e identidades e a legitimidade para sedimentar normas e valores essenciais para a sociedade internacional Milani 2012 A busca pela participação e pela reciprocidade teria como fim último o processo de democratização das relações entre os Estados no sentido de que as instituições multilaterais por serem representativas 1 Esta seção está baseada em Potências médias emergentes e uso da força Brasil e Índia no Conselho de Segurança das Nações Unidas 19462012 Albuquerque no prelo 9 Textos para Discussão No 59 Instituições Multilaterais e Governança Global estabeleceriam mecanismos que evitariam a prevalência da política de poder das grandes potências Essa convicção ganhou força no pósSegunda Guerra Mundial período no qual as organizações internacionais emergiram como potenciais mediadoras e como sustentáculo da nova ordem As OIs não são a única forma de cooperação entre os atores internacionais mas aquela dotada de maior grau de institucionalidade Ao possuírem características como sede orçamento próprio tratado constitutivo e funcionários próprios as OIs podem atuar de forma permanente e não apenas de forma reativa criando um espaço perene de engajamento entre os Estados e demais partes interessadas De modo geral as inúmeras organizações internacionais podem ser subdivididas em três categorias abrangência função e composição Em relação à abrangência podemos classificar as organizações multilaterais em universais ou regionais As primeiras são aquelas que estão abertas a todos que cumpram os requisitos para adesão sem restrição territorial a exemplo da ONU as regionais por sua vez são aquelas cuja composição é restrita a Estados de uma região predeterminada como é o caso do Mercosul ou da União Europeia Em relação à função as OIs podem ser gerais com uma agenda de amplitude temática significativa como a ONU ou especializadas com apenas uma atribuição funcional a exemplo das instituições econômicas de Bretton Woods FMI e Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio OMC Pela terceira categoria a composição as OIs podem ser governamentais ou não governamentais Herz Hoffmann 2004 A primeira organização estabelecida nos moldes contemporâneos foi a Liga das Nações Criada no imediato pós Primeira Guerra Mundial a organização tinha como objetivo central a instituição de um mecanismo de segurança coletiva que impedisse a eclosão de um novo conflito de grandes proporções Como a história nos mostrou o esforço não foi efetivo Em uma perspectiva realista entre os motivos que contribuíram para o malogro da Liga estava uma percepção equivocada sobre a natureza dos Estados classificada por Carr 2001 p 55 como uma crença utópica na harmonia de interesses Para o autor o pensamento liberal predominante após o fim do conflito defendia a ideia de que em liberdade completa os interesses individuais automaticamente conduziriam ao bem coletivo Um exemplo desse pensamento foi a inclusão da decisão por consenso em todos os órgãos da Liga Na prática segundo Carr esses mesmos interesses podem ser incompatíveis o que resultaria na paralisia decisória e no conflito e não na harmonia Com a inevitabilidade da Segunda Guerra o futuro do multilateralismo ficou em cheque Entretanto houve concordância entre as grandes potências do período no diagnóstico de que o problema não residia no multilateralismo em si e sim na estrutura da Liga Com isso não houve dúvidas sobre a necessidade de se reformar o multilateralismo adaptandoo a um modelo de governança que reconhecesse tanto a possibilidade constante de conflito quanto a responsabilidade que as grandes potências têm na estabilização do sistema Durante encontros privados e conferências restritas Estados Unidos Reino Unido e URSS formularam as bases da nova ordem multilateral Com o objetivo de conter o avanço do Japão no Pacífico a China também foi convidada a integrar o seleto grupo bem como a França que se juntou às tratativas após a desocupação nazista Os países elaboraram compromissos que garantissem que pudessem ter a palavra final em questões de segurança e evitar que um outsider 10 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ como a Alemanha nos anos 30 pudesse desequilibrar o sistema Com base nesse entendimento em 1945 durante a Conferência de São Francisco foi criada a ONU Em seu texto a Carta das Nações Unidas documento constitutivo da organização estabelece que a ONU contará com seis órgãos principais cada um voltado para uma tarefa específica com uma composição particular e com o processo decisório desenhado de acordo com as funções e os membros do órgão O Quadro 1 resume quais são os seis órgãos principais e seus principais elementos Quadro 1 Órgãos principais da ONU Órgão Função principal Composição Processo decisório Assembleia Geral das Nações Unidas AGNU Aprovar resoluções recomendatórias sobre todos os temas previstos na Carta da ONU Todos os Estadosmembros da organização Quórum de 23 para temas substantivos Quórum de maioria simples para temas procedimentais Conselho de Segurança das Nações Unidas CSNU Aprovar resoluções vinculantes sobre temas de paz e segurança 15 membros subdivididos em cinco membros permanentes e dez membros não permanentes Quórum de nove votos para temas substantivos com a exigência de que nenhum dos membros permanentes vote negativamente poder de veto Conselho Econômico e Social das Nações Unidas ECOSOC Aprovar resoluções recomendatórias sobre temas econômicos e sociais 54 membros eleitos pela AGNU Quórum de 23 Secretariado das Nações Unidas Administrar o trabalho da organização Funcionários públicos internacionais liderados pelo SecretárioGeral Na Corte Internacional de Justiça CIJ Pareceres consultivos e sentenças para casos contenciosos 15 juízes Quórum de nove ou de maioria a depender da função por turmas Conselho de Tutela Administrar as tutelas dos Estados em processo de independência Os membros permanentes do CSNU os tutelantes e os tutelados Na O órgão está com as atividades suspensas desde 1994 quando o último mandato de tutela foi finalizado Fonte elaboração das autoras Dadas a complexidade e a pluralidade da organização para fins deste trabalho iremos concentrar nossa análise em dois dos seis órgãos a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança A Carta da ONU instituiu a Assembleia Geral como espaço da representação paritária de todas as nações Já o Conselho de Segurança reflete as realidades de poder e garante aos membros permanentes o poder de vetar eventuais ações emanadas da Assembleia Geral A garantia do poder de veto aos membros permanentes de modo que nada que contrariasse seus interesses básicos fosse implementado foi concebida como o principal mecanismo para impedir que a ONU se tornasse irrelevante como ocorrera com a Liga das Nações Há aqui uma dualidade jurídica da universalidade e da pluralidade da AGNU emanam resoluções recomendatórias enquanto do assimétrico CSNU derivam resoluções imperativas cujo descumprimento resulta em sanções Pela descrição anterior podemos perceber que apesar de o conceito de multilateralismo prescrever a importância da diversidade e da inclusão a ONU aplica o princípio de forma mitigada e parcial À AGNU verdadeiro órgão multilateral cabe a elaboração de recomendações que apesar da inegável importância política não asseguram seu cumprimento Já o CSNU foi desenhado de forma a congelar o status quo do pósguerra no período em que a maioria de 11 Textos para Discussão No 59 Instituições Multilaterais e Governança Global seus membros permanentes obedecia a valores ocidentais e liberais a China não havia iniciado sua revolução e a URSS focada em solucionar problemas internos não estava integralmente empenhada na estratégia de internacionalização Nesse sentido a próxima seção irá avaliar em perspectiva histórica de que forma podemos identificar na gênese da ONU as bases para a crise de legitimidade que a organização vivencia na atualidade 3 3 INSTITUIÇÕES INTERNACIONAIS E TRANSIÇÕES DE PODER AS BASES DA INSTITUIÇÕES INTERNACIONAIS E TRANSIÇÕES DE PODER AS BASES DA CRISE DE LEGITIMIDADE DO MULTILATERALISMO CONTEMPORÂNEO CRISE DE LEGITIMIDADE DO MULTILATERALISMO CONTEMPORÂNEO Nosso objetivo nesta seção é analisar a trajetória do multilateralismo político em três conjunturas de inovação e mudança na regulação global centrada na perspectiva da ONU o período da Guerra Fria o pósGuerra Fria e a atualidade em que a crise do multilateralismo se intensificou Antes porém cabe uma breve nota explicitando as premissas teóricas da análise que se segue PODER E INSTITUIÇÃO UMA FALSA DUALIDADE PODER E INSTITUIÇÃO UMA FALSA DUALIDADE É quase um truísmo nas análises convencionais de relações internacionais a afirmativa de que os resultados de guerras sistêmicas envolvendo os principais atores do sistema internacional estabelecem um novo ordenamento mundial favorável aos vencedores Há um suposto implícito na teoria realista convencional de que a assimetria de poder por si só garantiria a estabilização da nova ordem instituída após uma guerra total Entretanto se fosse apenas essa condição que prevalecesse por que os vencedores criam organizações internacionais depois de um conflito global como ocorreu no pósSegunda Guerra Talvez pela pouca importância que as análises convencionais dedicaram às instituições internacionais acabou se consolidando na versão do primado do poder a interpretação de uma oposição entre poder e instituição Mais recentemente essa oposição foi superada a partir das abordagens institucionalistas na análise dos fenômenos políticos Nessa linha cabe mencionar os argumentos sobre o papel das instituições na reconstrução e manutenção da nova ordem internacional gerada pela guerra no período de paz Para essa abordagem a criação de instituições internacionais ao final de um conflito sistêmico é o que garante a manutenção do poder dos vencedores após o fim dele Instituições nessa perspectiva congelam a estratificação de poder resultante de uma guerra sis têmica estabelecendo um ordenamento de normas e estruturas decisórias favoráveis aos seus idealizadores portanto fazem perdurar o poder destes últimos mesmo diante do declínio de suas capacidades materiais Ikenberry 2001 Contudo as instituições também contêm elementos contrahegemônicos ao restringirem o poder dos mais fortes mediante a constituição de um arcabouço normativo fundado em prin cípios jurídicos em especial o da igualdade soberana dos Estados Elas criam um espaço pri vilegiado para os países menores exercerem o que foi denominado de metapoder baseado em recursos simbólicos Krasner 1985 É essa dupla face das instituições internacionais de con gelamento do poder e de contrahegemonia potencial que nos leva a afirmar que a dualidade entre poder e instituição é falsa Para Franz Schurmann 1974 p 69 a criação das Nações Unidas em 1945 12 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ assegurou a primazia do poder americano simbolicamente por sua localização dentro dos Estados Unidos e concretamente por ser uma resultante da aliança das nações que lutaram contra a Alemanha Japão e Itália a maioria das quais estava vinculada aos Estados Unidos E continua o apelo ideológico das Nações Unidas era quase revolucionário na sua promessa de ajudar as nações pobres do mundo na conquista da independência progresso e eventu almente igualdade com relação às nações mais poderosas Sobretudo as Nações Unidas apelavam para o desejo universal da paz2 Para o autor a criação da ONU foi o resultado da visão revolucionária do Presidente Roose velt que concebeu uma instituição palatável às três principais correntes no interior da comu nidade norteamericana de política externa os nacionalistas os internacionalistas e os liberais O desenho institucional da ONU elaborado nos moldes do sistema político norteamericano também foi inovador Conforme apresentado na seção anterior toda a estrutura da organização foi concebida pelos vencedores da Segunda Guerra basicamente Estados Unidos Reino Unido e União Soviética Aos demais aliados coube aprovar o anteprojeto da Carta das Nações Unidas elaborado em conferências privadas com as potências O Brasil foi incluído na comissão de cinco represen tantes incumbidos de coordenar o ponto de vista dos países latinoamericanos com relação ao projeto Oliveira Filho 1998 Com base em documentos analisados no artigo publicados em Foreign Relations of the United States v 1 de 1944 fica evidente a concentração das decisões cruciais nas mãos desses três países e a enorme margem de discrição que tiveram na escolha da arquitetura e dos países que viriam a integrar o Conselho de Segurança da Organização A pretensão brasileira de um assento como membro permanente foi inicialmente endossada pelos Estados Unidos mas rejeitada pelo Reino Unido e pela União Soviética Os três países concor daram com relação à inclusão da França e da China entre os cinco permanentes O PERÍODO GUERRA FRIA RIVALIDADE BIPOLAR E RELAÇÕES NORTESUL O PERÍODO GUERRA FRIA RIVALIDADE BIPOLAR E RELAÇÕES NORTESUL A Carta das Nações Unidas define objetivos bastante ambiciosos que podem ser expressos por suas três tarefas principais promover a paz a cooperação e o desenvolvimento mundial Seu desenho institucional foi concebido de forma a criar uma organização de escopo mundial que se mostrasse efetiva e ao mesmo tempo tivesse capacidade de tomar decisões obrigatórias para todos os países preservando os interesses dos membros mais poderosos A Assembleia Geral garante a participação universal e o Conselho de Segurança assegura a efetividade da institui ção Essa arquitetura dual permitiu que dois dos principais temas substantivos tratados nesse período a segurança internacional e a manutenção da paz no contexto da rivalidade bipolar e a questão do desenvolvimento dos países situados no Sul pudessem seguir caminhos parale los na mesma instituição com escassa interpenetração entre a esfera da segurança e a esfera do desenvolvimento O primeiro tema foi de domínio quase exclusivo do Conselho de Segurança Em razão do poder de veto a tendência foi de que a rivalidade ideológica entre EUA e União Soviética parali 2 Esses e os próximos parágrafos estão baseados em Notas sobre a reforma da ONU e o Brasil LIMA 2010 13 Textos para Discussão No 59 Instituições Multilaterais e Governança Global sasse a discussão no âmbito do Conselho em conflitos afetos diretamente aos dois Nos primei ros anos de funcionamento da ONU a URSS adotou uma política de boicote ao Conselho o que configurava um veto de antemão a todas as resoluções apresentadas O país só reverteu a medida após os EUA procurarem brechas na Carta da ONU e levarem a decisão para outros âmbitos da organização como ocorreu nos casos da Guerra da Coreia e do Canal de Suez O poder de veto que tornara possível a constituição de um sistema de segurança coletiva imperfeito dada a cli vagem fundamental Leste e Oeste simultaneamente impediu que as Nações Unidas pudessem operar com uma instituição de segurança coletiva exceto nos momentos de concordância entre as duas superpotências A dissuasão nuclear por sua vez evitou que os dois rivais se enfrentas sem diretamente transferindo a competição políticoideológica para locais mais distantes na Ásia na África e na América Latina Durante a Guerra Fria Brasil e Índia desenvolveram uma afinidade em determinados temas da agenda multilateral ainda que suas relações bilaterais não fossem expressamente significa tivas Exemplos da aliança foram o comércio tema que se aprofundaria posteriormente e em uma questãochave da agenda de segurança a não proliferação nuclear Ambos desenvolveram conceitos semelhantes para caracterizar a proposta do Tratado de Não Proliferação TNP apre sentada conjuntamente por EUA e União Soviética como uma instância de congelamento do poder mundial da perspectiva brasileira e de colonialismo tecnológico e apartheid nuclear na visão indiana Os dois países se abstiveram juntamente com mais 21 na resolução de endosso do TNP na Assembleia Geral 12061968 e servindo como membros não permanentes do Conselho de Segurança também se abstiveram na resolução de garantias de segurança Nesse sentido Brasil e Índia se recusaram a assinar o TNP assim como Paquistão Argentina Israel e África do Sul3 Após esses episódios o Brasil não se candidatou para o CSNU por cerca de vinte anos retor nando apenas após a democratização LIMA 2013 p 118119 No campo do desenvolvimento a rivalidade LesteOeste acabou por funcionar positivamente para dar à ONU um papel ativoO processo de descolonização ampliou sobremaneira o número de novos Estadosmembros em especial no início dos anos 60 garantindo que a maioria de 23 dos votos na Assembleia coubesse aos países em desenvolvimento A formação do Grupo dos 77 o caucus dos países em desenvolvimento na Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento UNCTAD da silha em inglês foi a mais significativa dessas iniciativas colocando o tema no centro da agenda da ONU A aliança entre o então Terceiro Mundo evidenciou a necessidade de reformas da ordem econômica mundial em temas como comércio produtos primários e questões monetárias para diminuir as desvantagens daqueles países que se sentiam excluídos do crescimento do pósguerra praticamente restrito às economias avançadas de mercado Inicialmente os EUA e os demais países desenvolvidos reagiram negativamente às propostas de reforma A pressão do G77 se tornou efetiva no momento em que a União Soviética passou a demonstrar interesse em discutir questões de comércio LesteOeste Para evitar que a última pudesse tirar proveito de uma aliança tática com os países em desenvolvimento o bloco ociden tal mudou de posição aceitando organizar uma conferência sobre comércio e desenvolvimento A conferência da UNCTAD em 1964 foi a primeira de âmbito global organizada exclusivamente 3 Na década de 90 Brasil Argentina e África do Sul aderiram ao TNP Índia Paquistão e Israel assim como a Coreia do Norte que denunciou o tratado em 2003 são os quatro países não signatários na atualidade 14 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ em torno das questões NorteSul e resultou da mobilização da maioria dos países em desenvol vimento O resultado foi a garantia de um poder de barganha relativo visàvis aos países capi talistas avançados e a manutenção da UNCTAD como organização permanente Nos anos 60 o Brasil fazia parte do grupo dos influentes dentre os países do Sul Nos anos 70 e seguintes o país continuou liderando diversas iniciativas nas questões NorteSul mesmo durante o período do regime militar conforme ilustrado pela eleição do então chanceler brasi leiro Azeredo da Silveira para chairman do G77 O PERÍODO PÓSGUERRA FRIA OS ESTADOS UNIDOS E AS TENSÕES DO MULTILATERALISMO O PERÍODO PÓSGUERRA FRIA OS ESTADOS UNIDOS E AS TENSÕES DO MULTILATERALISMO Para efeitos analíticos é possível examinar a trajetória multilateral no pósGuerra Fria por meio de duas lentes conceituais Por um lado ressaltamos a orientação expressa pelos EUA que tal como ocorreu no período do pósSegunda Guerra foram os principais vencedores da con tenda Por outro destacase a natureza da principal tensão que dividiu os trabalhos das Nações Unidas a partir dos anos 90 representada pela dualidade cosmopolitismo e soberania O tema da reforma da ONU se impôs no final da Guerra Fria mas não por iniciativa dos EUA A demanda foi o resultado de iniciativas difusas de setores diversos da sociedade civil do Secretariado da ONU de membros da Assembleia Geral e de personalidades eminentes contra tadas como consultoras pela organização para planejar a adaptação aos novos tempos Se comparada ao processo iniciado na ONU a estratégia institucional dos EUA foi mini malista Consistiu basicamente na ampliação da Organização do Tratado do Atlântico Norte OTAN com a incorporação de países da Europa do Leste e Central na criação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte NAFTA em inglês e no apoio à criação da OMC ampliando as áreas de regulação multilateral para além da negociação tradicional de concessões tarifárias entre países Com relação às Nações Unidas a orientação estadunidense foi majorita riamente favorável à racionalização e à maior eficiência no funcionamento e nos gastos da orga nização De modo geral sua posição tendeu a privilegiar o status quo com relação à reforma do sistema de segurança coletiva Lima 2010 p 272273 Se no plano institucional a estratégia estadunidense foi minimalista no plano discursivo ocorreu o contrário O mote triunfalista se tornou hegemônico entre os operadores da política externa norteamericana entre seus intelectuais orgânicos e mesmo na literatura de relações internacionais produzida no país Sua base era a crença generalizada na possibilidade de final mente se pôr em prática o sistema de segurança que sustentava o edifício jurídico e político da organização em função do descongelamento do mecanismo ao fim da bipolaridade A convic ção era de que o sistema de segurança coletiva da ONU pudesse efetivamente funcionar sem a paralisia decisória que a bipolaridade havia impedido Como já observado durante a Guerra Fria o poder de veto interferiu na capacidade de funcionamento do sistema de segurança cole tiva só possível em momentos de concordância entre as duas superpotências O descongelamento no pósGuerra Fria se expressou na diminuição do uso do veto compa rado ao momento anterior no aumento exponencial da quantidade de resoluções aprovadas e no crescimento de resoluções que envolvessem a aprovação do uso da força baseadas no capí tulo VII da Carta da ONU A Tabela 1 resume os dados 15 Textos para Discussão No 59 Instituições Multilaterais e Governança Global Tabela 1 Resoluções totais e resoluções de capítulo VII na Guerra Fria e no pósGuerra Fria Período Resoluções totais Resoluções de capítulo VII Vetos em resoluções Vetos a rascunhos 19461989 646 21 232 192 19902014 1549 664 35 29 Fonte elaboração própria com base nos dados de Wallesteen e Johansson 2016 p 29 Portanto a maior cooperação entre os membros permanentes do Conselho implicou o aumento das decisões envolvendo o uso da força e a intervenção O cenário de um novo con certo entre os poderes ganhou espaço entre analistas e praticantes ao mesmo tempo que se tornaram mais frequentes as consultas informais entre os membros permanentes aumentando ainda mais a opacidade com relação às atividades do Conselho e a exclusão dos demais Estados membros da organização No plano discursivo foi sensível a modificação no mindset das potências ocidentais em espe cial dos EUA Os teóricos realistas que haviam dominado o debate intelectual durante a Guerra Fria foram deixados de lado em comparação à recuperação da influência dos teóricos liberais Para os últimos o principal desafio para a política externa deixara de ser os novos desafiantes à hegemonia dos EUA e passava a ser a interdependência transnacional Tratavase de restaurar o valor analítico e prescritivo da perspectiva idealista em uma restauração tardia do libera lismo wilsoniano Um dos componentes daquele constructo teórico e normativo foi a redesco berta das organizações internacionais entre elas as Nações Unidas renovada na sua capacidade de preservar a paz depois da paralisia imposta pela Guerra Fria Kegley Jr 1995 No Ocidente passou a predominar a visão da recriação de um novo concerto das potências nos moldes do Concerto Europeu celebrado após o Congresso de Viena em 1815 A Guerra do Golfo e as resoluções do Conselho de Segurança condenando a invasão do Kuwait pelo Iraque em agosto de 1990 como a resolução 688 19914 caracterizando a repressão às populações cur das e xiitas pelo governo de Saddam Hussein como ameaça à paz e à segurança internacional foram percebidas como marcos daquela renovação As principais publicações em relações internacionais nos EUA passaram a utilizar termos como nação indispensável momento unipolar e lonely superpower A arrogância do poder em consequência do desaparecimento do principal inimigo sistêmico não tardou a se manifes tar nos EUA com a eleição de George W Bush A invasão estadunidense ao Iraque em março de 2003 sem autorização da ONU entrou para a história como o exemplo acabado do unilate ralismo da política externa norteamericana acentuado após o atentado de 11 de setembro de 2001 e da legitimação na prática da guerra preventiva No campo conceitual uma das principais inovações das propostas de reforma do arcabouço normativo da ONU no pósGuerra Fria visava dar conta das situações de instabilidade e ameaça à paz internas aos Estados O aumento dos conflitos intraestatais e das intervenções com base no capítulo VII geraram resistências entre os países do Sul inclusive o Brasil uma vez que as intervenções coercitivas implicavam maior ingerência política 4 Disponível em httpsdocumentsddsnyunorgdocRESOLUTIONGENNR059624pdfNR059624pdfOpenElement Acesso em 30 nov 2020 16 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ Nas propostas de reforma do sistema de segurança coletiva ficou patente a contradição entre as proposições de natureza cosmopolita e a manutenção do pilar da soberania5 Este último embasa o sistema normativo da ONU uma organização intergovernamental por excelência O eixo cosmopolita acentua a interdependência dos indivíduos diante de fronteiras artificiais cria das pela ordem global das soberanias Tem por base a premissa da existência de uma comu nidade internacional cujo significado moral está expresso na noção de uma comunidade humana que por sua vez é anterior ao Estado soberano Com o fim da Guerra Fria a globalização econômica e a proliferação de situações nacio nais de desrespeito aos direitos humanos limpeza étnica violência contra minorias e contra populações civis perpetradas pelas próprias autoridades nacionais se generalizou a premissa de que a comunidade humana era a perspectiva correta para análise da política mundial Nos anos 90 esse debate ultrapassou as fronteiras da academia e das discussões de filosofia política e passou a fazer parte do léxico dos formuladores de política e dos reformadores das instituições internacionais As propostas de natureza cosmopolita podem ser agrupadas sob a ideia geral de se relativizar a soberania estatal tomando o indivíduo como o centro dos direitos e da proteção na sociedade internacional As mais significativas propõem um alargamento do conceito de segurança e uma definição ampla de ameaças à segurança internacional desafios que por sua natureza estão localizados no âmbito doméstico Como consequência da negação da condição absoluta à sobe rania essas propostas flexibilizaram as situações em que é legítima a intervenção da comunidade internacional sendo o conceito de responsabilidade de proteger a principal inovação concei tual do processo de reforma6 No polo oposto às propostas cosmopolitas estão aquelas que fortalecem a dimensão interes tatal das Nações Unidas em dois aspectos principais na democratização do funcionamento da Organização e na ampliação da sua representatividade Na primeira dimensão perfilam as que visam aumentar o grau de prestação de contas da organização de modo geral mas em par ticular do Conselho de Segurança Nesse ponto destacase a vontade política de limitar o poder discricionário dos membros permanentes do Conselho seja no sentido de elaborar regras mais precisas no que se refere ao uso da força seja para aumentar a transparência dos trabalhos do Conselho Para isso buscouse valorizar a participação da sociedade civil no processo de formu lação conceitual e de debates da reforma As propostas relativas à ampliação da representativi dade da organização incluem o aumento da representação dos Estadosmembros permanentes e não permanentes no Conselho de Segurança bem como a valorização e a ampliação do papel da Assembleia Geral ainda restrito a recomendações A agenda de reforma do sistema de segurança coletiva em debate nos anos 2000 implicava dois movimentos em certa medida contraditórios a reconfiguração do conceito de soberania no sentido de restringir sua natureza absoluta e simultaneamente o reconhecimento do Conse lho de Segurança como o ator soberano coletivo no sentido de conferir a essa instância a autori dade máxima na interpretação das situações passíveis do uso da força O primeiro está referido à comunidade humana o segundo à comunidade das nações A agenda de reforma refletia assim a dualidade constitutiva da ONU uma instituição universal e simultaneamente uma instância oligárquica de decisão 5 Para a tensão entre cosmopolitismo e soberania nas propostas de reforma da ONU ver Lima 2010 p 277285 6 Ver mais em Evans 2008 17 Textos para Discussão No 59 Instituições Multilaterais e Governança Global Essa dupla face da agenda da reforma colocou como item inescapável a necessidade de tornar mais representativo esse soberano coletivo Nenhum dos projetos de resolução de reforma do Conselho de Segurança no sentido de ampliar o número de assentos com poder de veto foi levado à votação na Assembleia Geral e desde então o tema da reforma do Conselho tem estado presente no debate na ONU com o endosso geral da sua necessidade ainda que sem consenso sobre o seu modelo A ressignificação das ameaças transnacionais à segurança coletiva no século XXI que passa ram a incluir itens como pobreza degradação ambiental pandemias armas nucleares químicas e biológicas organizações criminosas e terrorismo e a consequente necessidade de se garan tir a autoridade do Conselho de Segurança indicaram de modo cristalino a necessidade de se aumentar a representatividade do órgão Contudo o processo de reconfiguração de ameaças tem sido incremental e seu encaminha mento vem sendo incorporado à prática da organização de modo consuetudinário em que solu ções ad hoc são adicionadas ao arcabouço normativo em um processo significativo de mudança conceitual e de práticas internacionais O paradoxo é que a agenda de reforma institucional no sentido do aumento da representatividade exige uma mudança constitucional cuja implementa ção tem encontrado sérias objeções pelas potências Desde meados dos anos 2000 a ONU vem experimentando forte descompasso entre as inovações na prática e a rigidez de sua constitucio nalização e legalização por via dos impasses na incorporação das emendas à Carta das Nações Unidas A CRISE DO MULTILATERALISMO POLÍTICO A CRISE DO MULTILATERALISMO POLÍTICO O diagnóstico de crise que caracteriza o período atual é complexo uma vez que inclui mudan ças de natureza sistêmica e estrutural deficiências no funcionamento da ONU e crise de legiti midade para citar as razões mais evidentes Nesse contexto a pandemia da Covid19 pode ser entendida como uma conjuntura crítica que maximizou os efeitos de problemas preexistentes e evidenciou o principal paradoxo hoje da instituição Destarte a pandemia é uma ameaça transnacional Essa condição tem levado alguns analistas a caracterizaremna como um mal público no sentido de que uma vez produzido na forma da transmissão infecciosa entre indivíduos afeta simultaneamente ainda que de modo desigual praticamente toda a população do planeta Como um mal público ele só pode ser estancado por via da autoridade da gestão do Estado no plano doméstico e da coordenação da vontade cole tiva dos Estados no plano internacional Ocorre que a principal organização dedicada ao tema a Organização Mundial da Saúde OMS tem apenas poder normativo A crise sanitária expôs de forma candente o desafio da necessidade de regulação internacional diante dessa e de futuras ameaças transnacionais que se tornaram mais prováveis com a crescente interdependência glo bal entre países e indivíduos O paradoxo é que quando mais necessária é a regulação multilate ral coletiva para fazer face ao mal público mais enfraquecidas estão na atualidade instituições como a ONU e a OMS Cabe destacar entretanto que a pandemia não inaugurou as tensões Os primeiros sinais de crise do multilateralismo em particular no campo comercial já eram visíveis nos anos 90 em função de um conjunto praticamente simultâneo de fatores que engloba profundas mudanças tecnológicas reorganização da produção e do comércio nas economias avançadas e o reorde namento de poder global com a emergência da China e de alguns países do Sul geopolítico As 18 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ transformações do capitalismo com a expansão das cadeias produtivas a proliferação de acor dos de comércio bilaterais plurilaterais regionais e o aumento do número de questões substan tivas sujeitas à regulação no âmbito comercial contribuíram para a fragmentação da governança do comércio mundial Os EUA foram também responsáveis por esse enfraquecimento ao buscarem alternativas bilaterais e plurilaterais na medida em que o papel da OMC passou a ser visto como insuficiente em áreas de seus interesses diretos como propriedade intelectual serviços e investimentos A iniciativa norteamericana ao propor a formação das Parcerias Transatlântica e Transpacífica em arranjos regulatórios fora do âmbito da OMC contribuiu mais ainda para o enfraqueci mento normativo e operacional da própria Organização Mundial do Comércio Pereira 2020 Os anos 2000 trouxeram novos desafios para o multilateralismo político O deslocamento do centro de gravidade da economia internacional e da geopolítica do Atlântico Norte para o Leste Asiático a crise econômica global de 2008 e a recessão que a ela se seguiu contribuíram para o enfraquecimento da coalizão liberal o aumento do protecionismo econômico do nacionalismo e das disputas geopolíticas As consequências no plano doméstico não tardaram a se manifestar com a eleição de governos de direita e extremadireita nos países capitalistas avançados e no Sul geopolítico que pregam o negacionismo e desprezam o multilateralismo Esse clima de instabilidade e incerteza da economia política internacional colocou mais com bustível na demanda por reforma das instituições internacionais vistas como incapazes de for necer soluções para os problemas contemporâneos A nosso ver a origem das contestações que a ONU e as demais instituições políticas universais passaram a sofrer decorrem da inadequação do arcabouço institucional liberalocidental construído no pósSegunda Guerra em fazer face ao realinhamento do poder global com a emergência da China de novos polos de poder e maior diversidade identitária e política Mais recentemente à crise de legitimidade oriunda da demanda por democratização e de mecanismos de prestação de contas do poder discricionário dos membros permanentes do CSNU assim como da necessidade de se aumentar a representatividade da instituição com a ampliação dos membros permanentes e não permanentes como vimos anteriormente agre gouse a necessidade da incorporação de valores distintos à normatividade ocidental liberal ampliando assim sua diversidade cultural Com a eleição de Donald Trump em 2016 o unilateralismo dos EUA que se manifestara inicialmente na política externa de George W Bush na intervenção do Iraque foi retomado por via da política de confronto Juntamente com o acirramento do conflito EUAChina em função da mudança da política externa chinesa para uma orientação mais assertiva estavam dados os ingredientes para um dos momentos mais críticos da crise de legitimidade do multilateralismo Toda organização multilateral está fundada na regra básica da reciprocidade que determina que cada participante grande ou pequeno deve aceitar constrangimentos gerais universalmente válidos Fonseca Jr 2008 p 74 Ainda que a regra da reciprocidade admita várias exceções elas devem estar previstas nos documentos constitutivos da organização Uma vez que nas insti tuições multilaterais não existe formalmente um soberano que decida a exceção a legitimidade desta decorre do cumprimento da premissa da igualdade dos Estados As regras ampliam a legi timidade das ações de todos mas também os custos de um eventual comportamento unilateral dos poderosos É por isso que como introduzido nas seções anteriores toda instituição multila 19 Textos para Discussão No 59 Instituições Multilaterais e Governança Global teral tem uma dupla face elas congelam o poder e a assimetria mas potencialmente podem ser contrahegemônicas voltadas ao controle do uso da força e da arbitrariedade dos mais fortes Se qualquer um de seus membros mais poderosos passa sistematicamente a se comportar como a exceção se colocando acima das regras como ocorreu nos governos Bush e Trump está rompida a regra da reciprocidade que é a base de sustentação do multilateralismo Trump denunciou os acordos de segurança de equilíbrio de mísseis balísticos com a Rússia em 2019 retirouse do Tribunal Penal Internacional denunciou o Acordo de Paris e contribuiu para a paralisação do órgão de solução de controvérsias da OMC Mais ainda retirouse da OMS e suspendeu as contribuições norteamericanas àquela organização por conta da alegação de que a OMS escondera dados sobre a responsabilidade chinesa na pandemia de Covid19 Ao violar a reciprocidade os EUA abriram caminho para que as demais potências agissem da mesma forma O mesmo ocorreu com a anexação da Crimeia pela Rússia e a lei de segurança chinesa em Hong Kong também estimulando comportamentos semelhantes de potências regio nais na violação dos princípios constitucionais da ONU Como resultado houve intervenções da Arábia Saudita no Iêmen da Turquia na Síria e de Israel nos territórios palestinos ocupados Num efeito em cadeia o rompimento dos pilares do multilateralismo aprofundou a crise de legitimidade e acentuou o eixo contrahegemônico com demandas por maior democratização e participação Lima Albuquerque 2020 O não reconhecimento da China como um player global e a política de contenção empreen dida pelos EUA também paralisaram a ação do Conselho de Segurança na pandemia Em um processo semelhante ao que ocorria na Guerra Fria entre EUA e URSS mas agora entre EUA e China observamos que a demora do órgão em agir durante a crise sanitária decorreu da falta de entendimento básico entre dois de seus membros permanentes Em abril o SecretárioGeral da ONU Antonio Gutérres solicitou que fosse declarado um cessarfogo universal como forma de barrar o avanço da doença entre tropas e civis Passaram se três meses para que o CSNU aprovasse uma resolução nesse sentido e ainda assim de forma parcial não contemplando as operações que envolvessem o combate a atores não estatais O motivo da demora é de que para a China qualquer resolução sobre saúde precisaria ressaltar o papel central da OMS já para os EUA a menção à agência seria inaceitável pelos motivos aqui expostos A solução encontrada para finalmente aprovar a resolução em julho foi não incluir a OMS no texto mas fazer menção a uma resolução aprovada na Assembleia Geral que ressaltava a importância da organização Em suma a emergência da China amplia a crise de legitimidade na crítica ao viés excessiva mente liberalocidental das instituições multilaterais e sua incapacidade de se abrir à diversidade e incorporar valores culturais não ocidentais Numa tentativa de preserválos e ignorando a mudança do eixo da economia política e da geopolítica globais alguns intelectuais ocidentais defendem a ideia de que um modo de se resolver o problema da ação coletiva que o aumento de participantes gera no sistema multilateral seria fragmentálo em unidades menores plurila terais reunindo países semelhantes likeminded countries ou apenas países democráticos por exemplo Lima Albuquerque 2020 Não custa observar que uma reforma nessa direção sim plesmente anularia a dimensão universal do multilateralismo político e seria contrária aos pro pósitos das Nações Unidas e da OMS cuja razão de ser é sua abrangência global 20 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ 4 4 CONCLUSÃO PERSPECTIVAS PARA O MULTILATERALISMO E CONCLUSÃO PERSPECTIVAS PARA O MULTILATERALISMO E IMPLICAÇÕES PARA O BRASIL IMPLICAÇÕES PARA O BRASIL Com base no exposto nas seções anteriores apresentamos a seguir os principais desafios e os possíveis cenários para o multilateralismo nas próximas décadas bem como as possíveis impli cações para o Brasil Ressaltamos que os cenários apontados não são exclusivos entre si mas sugerimos algumas perspectivas que pela complexidade das interações interestatais podem se manifestar parcialmente de forma combinada ou obedecendo a outros critérios não antevistos A primeira perspectiva a ser destacada é a de que com o enfraquecimento do multilatera lismo universal abrese espaço para o fortalecimento do multilateralismo regional Para inú meras organizações regionais o diagnóstico da instabilidade da ONU não se aplica pois são instituições que obedecem a outra lógica e formato Por um lado podemos ressaltar o fortale cimento de uma organização que vai além do proposto pela ONU englobando uma dimensão supranacional a União Europeia UE Se com o Brexit as análises eram de que o bloco se enfraqueceria os Estadosmembros lograram aprovar um acordo de recuperação econômica da crise o EU Next Generation Além disso a UE alcançou concordância para o estabelecimento de um acordo ambiental o European Green New Deal Por outro lado cabe ressaltar os experimen tos bemsucedidos de organizações de caráter soberanista em que os compromissos dos Estados tendem a ser pontuais e em nichos específicos Este é o caso de organizações asiáticas como a Associação de Nações do Sudeste Asiático ASEAN que vem satisfatoriamente promovendo a recuperação da crise por meio do reforço do comércio e da recémcriada Parceria Regional Econômica Abrangente RCEP a qual integra 15 países da Ásia do Leste e Sudeste e da Oceania O segundo possível caminho para o multilateralismo foi apresentado anteriormente a frag mentação por meio de alianças plurilaterais de likeminded countries Essa prática defendida por muitos países ocidentais é contrária ao próprio conceito de multilateralismo que destaca a diversidade e a inclusão e não a restrição pautada na semelhança Entretanto esse é um expe diente que já vem sendo aplicado nos campos financeiro e comercial dada a paralisia da OMC Exemplos são acordos de alcance parcial e a criação de instituições financeiras próprias como indica a estratégia da China em investir na criação e no fortalecimento de bancos asiáticos ou voltados para países em desenvolvimento Esse momento também é explicado pela falta de con vergência entre as organizações universais marcadamente ocidentais e liberais e os princípios chineses de inserção internacional que obedecem a outra lógica Cabe observar que diferente mente do campo comercial e financeiro acordos de países likeminded no campo da segurança coletiva em última análise configurariam a formação de uma aliança militar o que a nosso ver é improvável a não ser em um cenário de polarização global absoluta A terceira possibilidade é mais otimista e aposta na capacidade de adaptação e resiliência das organizações internacionais Estas são em primeiro lugar fóruns de integração entre os Estados e obedecem ao nível de comprometimento que estes estão dispostos a assumir Não é a primeira vez na história que vemos o multilateralismo ser questionado e em 75 anos de funcionamento a ONU buscou formas ainda imperfeitas de sair de situações de impasse Após o unilateralismo de George W Bush Barack Obama renovou os votos entre os EUA e o multilateralismo mesmo que ainda mantendo operações ilegais iniciadas pelo antecessor Se mantiver seus compromissos de campanha o mesmo cenário se desenha para o governo Joe Biden após o fracasso eleitoral de Trump E mesmo em um cenário com maior propensão a retomar o caminho das reformas é pouco provável que estas incluam um aumento do número de assentos permanentes no Conse 21 Textos para Discussão No 59 Instituições Multilaterais e Governança Global lho de Segurança da ONU objetivo almejado pelo Brasil desde a fundação das Nações Unidas No máximo poderseia esperar a criação de uma camada intermediária entre os cinco mem bros permanentes e os demais países Finalmente já está constatado que mesmo no auge do unilateralismo as potências têm inte resse em permanecer nas organizações para evitar que decisões sejam tomadas à revelia de seus interesses Nem Bush nem Trump retiraram os EUA da ONU nem da OMC mesmo as criticando abertamente Rússia China França e Reino Unido também seguem participando das atividades e assumindo novos compromissos internacionais Ademais a China necessita de uma organização como a ONU para legitimar a sua ascensão global Por essa chave de leitura a competição entre as potências fortalece o multilateralismo e não o contrário Uma característica da ONU contribui para sua permanência mesmo em crise é a única instituição de segurança coletiva de natureza global incluindo todas as potências O compromisso das últimas se reflete na posição que ocupam entre os trinta maiores contri buintes do orçamento regular da ONU No período de 1998 a 2020 os cinco maiores contribuin tes foram pela ordem EUA Japão Alemanha França e Reino Unido se revezando Contudo no triênio de 2016 a 2018 a China passou a ocupar o terceiro lugar entre os trinta maiores e o segundo no de 20192021 previsto A mudança de lugar em um período de tempo relati vamente curto é sugestiva quando se observa que no primeiro triênio dessa série histórica o país ocupava o décimo oitavo lugar O mesmo padrão se repete quando se analisam os maiores contribuintes do orçamento das Missões de Paz Se no início da série a China estava no décimo segundo lugar entre os trinta maiores nos dois últimos triênios já alcançara a segunda posição logo abaixo dos EUA Também nessa lista EUA Japão Alemanha França e Reino Unido pela ordem têm sido os maiores contribuintes Nos dois últimos triênios contudo a contribuição chinesa ultrapassou a japonesa Feldman 2020 p 180181 182183 O último cenário de uma adaptação da ONU e um comportamento relativamente mais cola borativo da política externa norteamericana é o que apresenta as melhores perspectivas para a inserção internacional do Brasil Somos um país que não possui excedentes de poder e que por isso utilizou a diplomacia e a negociação como forma de solução de controvérsias interna cionais com raríssimas exceções Além disso o país identificou há séculos o desenvolvimento como seu principal objetivo Ambos os elementos só são alcançados por meio do multilate ralismo Na condição de país emergente o Brasil possui mais chances de ter suas demandas atendidas em espaços em que seu direito de voz esteja assegurado e que permitam a formação de alianças com países semelhantes que buscam os mesmos objetivos Tais afirmações são feitas a despeito da postura antimultilateral do atual governoem vista da existência de compromis sos internacionais previamente assumidos e da própria provisão da nossa Constituição Federal Houve momentos anteriores de inflexão na política externa brasileira mas não foram suficientes para reverter a tendência histórica mesmo que a recuperação tenha sido lenta 22 Textos para Discussão No 59 BRASIL SAÚDE AMANHÃ 5 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE M Potências médias emergentes e uso da força Brasil e Índia no Conselho de Segurança das Nações Unidas 19462012 Curitiba Editora Appris no prelo CARR E H Vinte anos de crise 19191939 uma introdução ao estudo das relações internacionais Brasília Ed UnB 2001 EVANS G The responsibility to protect ending mass atrocities crimes once and for all Washington Brookings Institute Press 2008 FELDMAN L Notas sobre as negociações orçamentárias das Nações Unidas Cadernos de Política Exterior ano IV n 9 p 141183 2020 FONSECA JR G O interesse e a regra ensaios sobre o multilateralismo São Paulo Paz e Terra 2008 HERZ M HOFFMANN A R Organizaçoes internacionais história e práticas Rio de Janeiro Campus Elsevier 2004 IKENBERRY G J After Victory Institutions Strategic Restraint and the Rebuilding of Order after Major Wars Princeton Princeton University Press 2001 KEGLEY JR C W The neoliberal challenge to realist theories of world politics an introduction In KEGLEY JR C W ed Controversies in international relations theory New York St Martin Press 1995 p 124 KEOHANE R Multilateralism an agenda for research International Journal v 45 n 4 p 731764 1990 KRASNER S D Structural conflict Third World against global liberalization Los Angeles University of California Press 1985 LIMA M R S Notas sobre a reforma da ONU e o Brasil In IV CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL IV CNPEPI Reforma da ONU Brasília Funag 2010 p 269301 LIMA M R S The political economy of Brazilian foreign policy nuclear energy trade and Itaipu Brasília Funag 2013 LIMA M R S ALBUQUERQUE M Reordenamento global crise do multilateralismo e implicações para o Brasil Centro Brasileiro de Relações Internacionais Cebri Policy Note p 412 2020 Disponível em httpswwwcebri orgportalpublicacoescebriartigosreordenamentoglobalcrisedomultilateralismoeimplicacoesparaobra sil Acesso em 20 out 2020 MILANI C R S Crise política e relações internacionais uma análise escalar da política externa brasileira In CONFE RÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL 6 Relações Internacionais em Tempos de Crise Econômica e Política Anais Brasília Funag 2012 p 4360 OLIVEIRA FILHO A P O Brasil e o Conselho de Segurança da ONU revelações vinte anos depois Parcerias Estraté gicas n 5 p 94100 set 1998 PEREIRA L V Crise e governança do sistema multilateral de comércio Centro Brasileiro de Relações Internacionais Cebri Policy Note p 413 2020 Disponível em httpswwwcebriorgportalpublicacoescebriartigoscrisee governancadosistemamultilateraldecomercio Acesso em 10 out 2020 RUGGIE J Multilateralism the anatomy of an institution International Organization v 46 n 3 p 561598 1992 SCHURMANN F The logic of world power New York Pantheon Books 1974 WALLESTEEN P JOHANSSON P The 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