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Universidade Federal da Paraíba Programa de PósGraduação em Letras O Pagador de Promessas dramaticidade e tragicidade da literatura ao cinema João Pessoa PB 2010 P654p Pinheiro Roberta Vanessa Crispim O Pagador de Promessas dramaticidade e tragicidade da literatura ao cinema Roberta Vanessa Crispim Pinheiro Pessoa Pessoa sn 2010 158f Orientadora Sandra Luna Dissertação Mestrado UFPb CCHLA 1Literatura 2 Cinema 3 Adaptação Fílmica Tragédia e Drama UFPbBC CDU 82043 Roberta Vanessa Crispim Pinheiro O Pagador de Promessas dramaticidade e tragicidade da literatura ao cinema Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras Área de Concentração Literatura e Cultura Linha de Pesquisa Tradição e Modernidade Orientadora Profª Drª Sandra Luna João Pessoa PB 2010 Banca Examinadora PROFª DRª SANDRA LUNA Professora orientadora UFPB PROF DR ALEX BEIGUI DE PAIVA CAVALCANTE 1º examinador UFRN PROF DR HILDEBERTO BARBOSA FILHO 2º examinador UFPB PROF DR ANCO MÁRCIO TENÓRIO VIEIRA Suplente UFPE João Pessoa 22 de abril de 2010 RESUMO Esta pesquisa investiga a produção de efeitos dramáticos e trágicos na peça O Pagador de Promessas escrita por Dias Gomes em 1959 como também em sua adaptação fílmica homônima dirigida por Anselmo Duarte em 1962 A peça revela embates entre culturas antagônicas através de conflitos sociais dramatizados por personagens que não apenas emprestam verossimilhança ao texto como ainda aproximam a ficcionalidade à vida real O humilde agricultor Zé do Burro é um exemplo notável de herói moderno cuja queda resulta não de forças superiores ao homem como divindades ou destino mas de sua própria vontade consciente Contudo embora enquadrado como drama moderno O Pagador de Promessas possui características do modelo clássico de tragédia Sendo assim este trabalho evidencia os processos de atualização de categorias dramáticas clássicas no drama social de Dias Gomes com base em conceitos teóricos formulados por Aristóteles Horácio Hegel Peter Szondi Raymond Williams Albin Lesky entre outros Concernente à análise do texto fílmico utilizamos conceitos das teorias do cinema formuladas por Christian Metz Gerárd Betton James Dudley Andrew entre outros localizando aspectos trágicos e dramáticos com base no quadro conceitual construído para a análise do texto dramático considerando entretanto as peculiaridades da linguagem fílmica de forma a produzir um estudo comparativo interdisciplinar legítimo entre dramaturgia e cinema No referente às investigações sobre ambos o universo dramático e as adaptações fílmicas textos produzidos pela Profª Drª Sandra Luna e pelo Prof Dr João Batista de Brito foram de fundamental importância para a formulação de nossas ideias guiandonos pelas trilhas teóricas seguidas no desenvolvimento desta pesquisa Palavraschave Literatura e Cinema O Pagador de Promessas Dias Gomes Adaptação fílmica Tragédia e Drama ABSTRACT This research investigates the production of dramatic and tragic effects in the theatre play O Pagador de Promessas written by Dias Gomes in 1959 as well as in its homonymous filmic adaptation directed by Anselmo Duarte in 1962 The play reveals cultural clashes through social conflicts dramatized by characters who not only lend verisimilitude to the text but also make the fictional world closer to real life The humble peasant Zé do Burro is a notable example of a modern hero whose downfall results not from powers superior to mankind such as divinities or destiny but from his own conscious will However though categorized as a modern drama O Pagador de Promessas exhibits characteristics of classical tragedy Thus this work retrieves the processes of actualization of classical dramatic categories in Dias Gomes social drama based on theoretical concepts formulated by Aristotle Horace Hegel Peter Szondi Raymond Williams Albin Lesky among others Concerning the analyses of the filmic text we have used concepts formulated by Christian Metz Gérard Betton James Dudley Andrew among others searching for the produced dramatic and tragic effects in the light of the theoretical set of concepts related to the dramatic universe but taking into account the peculiarities of the filmic language so as to approach a legitimate interdisciplinary comparative study between dramaturgy and cinema In relation to the investigations of both the dramatic universe and the filmic adaptations texts by Prof Dr Sandra Luna and by Prof Dr João Batista de Brito have been of fundamental importance to the formulation of our ideas guiding us through the theoretical trends pursued in the development of this research Keywords Literature and Cinema O Pagador de Promessas Dias Gomes Filmic Adaptation Tragedy and Drama A meus pais Daniel e Fátima e meus irmãos Caroline Dyego e Saulo AGRADECIMENTOS À Profª Drª Sandra Luna pessoa admirável por sua inteligência competência e sinceridade Acreditando desde o início nesse projeto apesar de minha pouca maturidade para trilhar tão vasto caminho Sandra pacientemente apresentoume o fascinante mundo das Letras através de seus valiosos ensinamentos Aos meus pais por todo o amor e cuidado Eles que sempre desejaram ver a vida de seus filhos transformada pelos estudos acabaram despertando em mim uma enorme sede de conhecimento que por vezes lhes trouxe aborrecimento devido a minha excessiva dedicação à academia Aos meus irmãos por a cada dia me darem mais certeza de que não estou sozinha em minhas batalhas participando de minhas angústias sacrificando momentos de lazer para ajudarme a cumprir os prazos de entrega dos textos reagindo com paciência aos meus momentos de irritação causados pelas dificuldades surgidas durante esse processo e dissolvendoos com palavras de incentivo ou piadas feitas a partir de minhas lamúrias transformando minhas preocupações em motivos de deliciosas gargalhadas fazendome encontrar nessa etapa eventos que ficarão em minhas lembranças como grandes provas de nossa união Aos meus amigos e amigas em especial Jatobá Shirley Jerry Eudis Fabiana Paulo e Liliane por sempre acreditarem até mais do que eu mesma no êxito deste trabalho Cada um me deu ao seu modo todo o apoio necessário em todos os momentos em que precisei de uma verdadeira mostra de amizade Ao professor Carmélio Reynaldo por colocar meus estudos em primeiro lugar dispensandome do trabalho mesmo nas ocasiões em que minha presença no LDMI parecia importante para o andamento das atividades lá desenvolvidas Agradeçolhe também por seus conselhos e ensinamentos sempre formulados com o objetivo de me ver crescer cada vez mais tanto profissional quanto academicamente À Profª Drª Liane Schneider e à Profª Drª Ana Cristina Marinho coordenadoras do PPGL Agradeço a ambas pela compreensão Por fim agradeço principalmente Àquele que me deu a força necessária para chegar ao término de mais esta etapa dando a mim outra grande vitória fazendose presente em minha vida através de todas estas citadas pessoas É a vontade que faz um homem grande ou pequeno Schiller SUMÁRIO INTRODUÇÃO10 CAPÍTULO I A dramaturgia de Dias Gomes e a cinematografia de Anselmo Duarte no cenário nacional a crítica a O Pagador de Promessas da cena às telas 16 1 A crítica social no teatro de Dias Gomes 16 2 O Pagador de Promessas de Anselmo Duarte sob o olhar da crítica 29 CAPÍTULO II Fundamentos do Drama Trágico 38 1 A Poética Grecolatina fundamentos do drama clássico 38 2 A Poética da modernidade da tragédia ao drama social 54 CAPÍTULO III Fundamentos teóricos para o estudo do texto fílmico 68 CAPÍTULO IV O Pagador de Promessas dramaticidade e tragicidade da literatura ao cinema 84 1 Em cena a ação trágica de O Pagador de Promessas 84 2 O Pagador de Promessas dramaticidade e tragicidade em tela 127 CONCLUSÃO 146 REFERÊNCIAS 151 1 Fontes primárias 151 2 Filmografia do diretor 152 3 Fontes secundárias 153 10 Introdução Desde o início do século XX quando o cineasta francês Georges Méliès inspirouse na obra do escritor Júlio Verne para produzir o primeiro filme de ficção intitulado Viagem à lua os cineastas encontraram na literatura uma vastidão de temas que acabaram por constituir verdadeira fonte de inspiração aos seus trabalhos Além disso as obras literárias também atendiam à carência de roteiros e roteiristas Nesta grande fonte de inspiração os cineastas não demoraram a perceber que um dos mais antigos gêneros literários o drama embora construído por uma linguagem artística aparentemente distanciada da linguagem narrativa do cinema possuía pontos comuns à sétima arte por exemplo a presentificação dos eventos ou seja a ostentação da ação a necessidade de prender a atenção do público e nele causar efeito dentre outras afinidades Na verdade o cinema jamais se afastou do teatro ora adaptando para as telas suas peças trágicas ou cômicas ora extraindo da arte dramática lições milenares sobre estratégias de produção de efeito sempre caras ao teatro No Brasil a partir da década de 60 a literatura foi fundamental para o cinema nacional Grandes obras de nossa literatura foram transpostas para a linguagem cinematográfica a exemplo de Vidas Secas Graciliano RamosNelson Pereira dos Santos em 1963 Menino de Engenho José Lins do RegoWalter Lima Jr em 1965 A Hora e a Vez de Augusto Matraga Guimarães RosaRoberto Santos em 1966 e Macunaíma Mário de AndradeJoaquim Pedro de Andrade em 1969 Sabese que depois de roteirizada e filmada a obra fílmica acaba via de regra distanciandose do texto literário que lhe deu origem fato justificado não apenas sob a perspectiva das intenções do diretor mas sobretudo como conseqüência das próprias diferenças entre as linguagens artísticas Ainda assim parece ser bem comum o dilema vivido por diversos cineastas entre por um lado lutar para se manter fiel à obra adaptada ou por outro apostar na autoria personalizando em grau mais acentuado a produção recriando com ampla liberdade o texto base a partir de suas ideias Essas reflexões sobre a fidelidade embora cheguem a sugerir ingenuidade são importantes para a avaliação crítica da adaptação fílmica feita por Anselmo Duarte considerandose que a versão cinematográfica de O Pagador de Promessas foi vista por alguns críticos do cinema nacional como um texto limitado sem marcas autorais demasiadamente 11 preso à obra original ainda que tal característica segundo o próprio Dias Gomes tenha sido uma condição imposta pelo dramaturgo para a realização do filme A despeito das diferenças de linguagem as artes fílmicas e literárias possuem inúmeras semelhanças revelandoas muito apelativas a estudos comparativos quando se considera o drama Concernente às adaptações de textos teatrais para as telas as pesquisas parecem ainda carentes de reflexões na medida em que tradicionalmente o cinema tem sido visto e estudado como arte narrativa Embora o drama transposto para o cinema não permita o feedback entre a plateia e os atores fator de influência na atuação do elenco de um texto dramático o cinema pode dar maior destaque a determinadas ações através de sua linguagem e montagem O drama no cinema pode adquirir muito mais realismo em suas ambientações estas que no palco são limitadas pelo espaço físico da construção teatral Diante de várias reflexões sobre as relações entre cinema e teatro pretendemos com este trabalho estudar a dramaticidade e a tragicidade da obra de Dias Gomes analisando também a sua transposição para o cinema adotando como corpus de estudo o texto dramático O Pagador de Promessas e o filme homônimo dirigido por Anselmo Duarte As teorias examinadas sugerem que a despeito das transformações formais que consubstanciam a própria história do gênero dramático inclusive a transição da tragédia ao drama a dramaticidade perpetuase na dimensão conflituosa inerente ao gênero definido desde cedo por Aristóteles como imitação da vida Não por acaso é possível haver dramaticidade em outros gêneros literários e em outras formas artísticas Assim também a tragicidade inspirada na práxis subsiste na tradição dramática e em outras formas discursivas muito embora o efeito trágico assuma diferentes nuances com o passar dos séculos a depender das perspectivas adotadas para a representação das dores e dos sofrimentos humanos A peça O Pagador de Promessas escrita em 1959 é um dos textos brasileiros recordistas em traduções e encenações no exterior tendo sido montado na Polônia Argentina Marrocos Itália Colômbia e várias vezes nos Estados Unidos por diferentes diretores O citado texto narra o calvário vivido por um humilde lavrador chamado Zé do Burro que tenta pagar promessa feita a Iansã pela cura de seu burro o qual ele considera como um amigo Para a revolta de sua esposa Rosa Zé também promete dividir suas terras com camponeses mais pobres e depositar uma pesada cruz de madeira no altar de uma igreja de Santa Bárbara Após percorrer sete léguas até a igreja onde 12 seria paga a promessa Zé do Burro é impedido pelo Padre Olavo de adentrar o recinto sagrado visto o sacerdote não considerar Santa Bárbara a mesma divindade a quem havia sido feito o pedido do pagador Zé não desiste pois é movido por fé honestidade e obstinação embora isso o leve à morte Sendo um drama social com estrutura clássica de tragédia esta obra de Dias Gomes do ponto de vista da construção dramática aciona estratégias que a tornam potencialmente muito instigante aos cineastas interessados em produzir uma trama trágica e comovente com forte apelo à representação de conflitos sociais Não por acaso a adaptação cinematográfica de O Pagador de Promessas dirigida por Anselmo Duarte em 1962 foi o primeiro filme brasileiro a concorrer ao Oscar indicado à categoria de Melhor Filme Estrangeiro Mesmo não tendo recebido a estatueta o filme foi premiado em vários festivais obtendo a Palma de Ouro por Melhor Longa Metragem no Festival de Cannes França entre vários outros prêmios nacionais e internacionais Em nossa busca de pesquisas realizadas no Brasil sobre a obra de Dias Gomes encontramos estudos atinentes apenas ao drama O Pagador de Promessas sendo ainda escassos os olhares relativos à adaptação cinematográfica da obra citada Logo com este trabalho pretendemos contribuir não só para a fortuna crítica de Dias Gomes mas também para a compreensão do filme O Pagador de Promessas por um viés do trágico Participando da adaptação fílmica de O Pagador de Promessas Dias Gomes manteve sua ideia de que a engrenagem social é construída sobre um falso conceito de liberdade 2003 p4 Segundo o dramaturgo Zé do Burro é um homem livre apenas por definição De fato ao tentar agir de acordo com sua vontade o personagem luta pelo seu direito de escolha seguindo seu próprio caminho e não aquele que lhe é imposto Esse é um evidente selo de modernidade no processo de caracterização do herói pois nem sempre personagens de ficção foram vistos como donos de suas vontades Embora a idealização romântica tenha feito prevalecer o culto à subjetividade e à liberdade humanas o destino sempre teve papel importante na literatura trágica atrelando as ações dos homens às intervenções de forças desconhecidas representadas por deuses pelo destino e pela fatalidade Zé do Burro não parece conduzido à morte por outra força a não ser a de sua decisão em insistir no plano por ele traçado desde o começo Zé não pretendia morrer mas escolhe lutar até o fim Essa é talvez a grande diferença entre o significado antigo e o sentido moderno de tragicidade Se nas mais célebres tragédias da antiguidade os 13 heróis percorriam um caminho previamente traçado pelo destino na modernidade os heróis do drama desenham com os próprios pés a sua trajetória em direção ao trágico Diante destas colocações vimos empreendendo leituras que contemplam questões importantes para o desenvolvimento do trabalho No campo dos estudos da teoria dramática foram de nosso interesse as reflexões de Aristóteles sobre o teatro trágico De acordo com o filósofo grego tragédia é uma representação de ações graves sérias dignificadoras dos seres representados causando nos espectadores o temor e a piedade Para alguns autores modernos os estudos sobre tragédia não devem se deter somente nas reações ao sofrimento ou à morte nem apenas nos sentimentos de piedade e temor mas principalmente sugerem um olhar mais cauteloso sobre o conteúdo desta forma de expressão artística já que a tragédia moderna tende a não se afastar de preocupações explícitas com a ordem social na qual o drama se desenvolve Por notar em O Pagador de Promessas características do modelo aristotélico de tragédia norteamos inicialmente nossa pesquisa à luz dessa tradição tentando construir um quadro teórico para o estudo da dramaticidade trágica examinando conceitos e ideias formuladas ao longo dos séculos para a apreensão do trágico Dentre os autores consultados destacamse nesse primeiro momento Aristóteles e Horácio nos quais buscamos conceitos teóricos para o estudo da tragédia na antiguidade compondo um quadro teóricoconceitual no qual se destacam as noções de ação verossimilhança catarse caracterização causalidade hamartia peripeteia e anagnorisis Em seguida partimos para Hegel estudando em sua Estética definições modernas acerca do gênero dramático considerando aspectos significativos à história do drama examinando também características peculiares ao drama social através de importantes estudiosos como Peter Szondi e Raymond Williams Nesses autores encontramse fundamentos teóricos essenciais à compreensão da dramaticidade e da tragicidade implicadas na moderna dramaturgia ocidental Partindo desses estudos teóricos sobre o drama pretendeuse construir um quadro conceitual para fundamentar o estudo da dramaticidade e da tragicidade em textos dramáticos considerando de um lado a permanência do conceito de ação na história do drama de outro as mudanças que levaram a tragédia a se transformar em drama social Para a análise da representação dessa ação trágica na arte fílmica obviamente levandose em conta as especificidades da linguagem cinematográfica nessa transposição do quadro conceitual da literatura ao cinema foram referência autores 14 como JeanClaude Bernardet Sergei Eisenstein e Christian Metz Atinentes à estética e à semiótica do cinema consultamos Jacques Aumont Gérard Betton entre outros Sobre a história e as teorias da sétima arte buscamos James Dudley Andrew e Robert Stam Finalmente tanto em relação aos estudos sobre o universo dramático quanto no concernente às relações entre dramaturgia e cinema livros produzidos pela Profª Drª Sandra Luna e pelo Prof Dr João Batista de Brito foram utilizados para embasar nossas ideias e apontar caminhos teóricos a serem seguidos no desenvolvimento desta pesquisa Na leitura do texto dramático O Pagador de Promessas consideramos não apenas os elementos teóricos mas o contexto no qual o mesmo está inserido inspirandonos nas proposições de Antonio Candido segundo as quais o externo se internaliza na própria forma literária Nesse sentido foram utilizados como parâmetros de reflexão as biografias dos autores e a fortuna crítica de suas obras Por biografias entendase a proposição de Dominique Maingueneau para quem nos estudos literários nem se deve cair no simples biografismo nem se pode desconsiderar as relações dialéticas entre a vida bio e a escrita grafia do autor como marcas de escritura Uma vez concluída a análise do universo literário nosso passo seguinte foi o estudo da teoria do cinema com vistas a compreender a dramaticidade e a tragicidade no universo fílmico projetando um quadro teóricoconceitual apto a embasar a análise do filme O Pagador de Promessas também considerando o contexto de sua produção e as críticas realizadas à obra Tendo em vista a leitura da peça em relação à leitura do filme buscamos avaliar ao final como a construção dramática da ação fílmica reflete reconstrói afirma ou modifica a ação do drama Recorrendo aos autores citados anteriormente tentamos esboçar conclusões pertinentes sobre cada um dos dois domínios artísticos visto que os quadros teóricos fundamentadores do estudo possibilitariam reflexões sobre a construção e os princípios lógicos do universo ficcional do texto teatral e de sua adaptação fílmica princípios comunicacionais de cada gênero relação entre produção e recepção construção de personagens dentre outros parâmetros que se mostraram significativos no desenvolvimento da pesquisa Entendendo que os estudos comparados entre literatura e cinema ainda merecem olhares mais detidos sobre as relações entre essas duas formas de linguagem artística esperamos que a aproximação dos estudos dramáticos aos estudos fílmicos 15 adotando como corpus inicial para reflexão o texto O Pagador de Promessas seja uma promissora oportunidade de contribuir para as pesquisas sobre adaptação focalizando a dramaticidade e a tragicidade duas das mais eficientes estratégias para promover a adesão e a comoção do público efeitos amplamente utilizados pelas artes voltadas à representação 16 CAPÍTULO I A dramaturgia de Dias Gomes e a cinematografia de Anselmo Duarte no cenário nacional a crítica a O Pagador de Promessas da cena às telas Somos todos escritores só que alguns escrevem e outros não José Saramago 3 A crítica social no teatro de Dias Gomes Diante da evidente importância de Dias Gomes no cenário da dramaturgia nacional é possível dizer que nos estudos feitos sobre a arte dramática e sua história no Brasil não há como perder de vista a obra deste dramaturgo De acordo com a crítica teatral Dias Gomes entendia a militância política traduzida no engajamento artístico como exercício pleno de cidadania sua opção por uma dramaturgia inspiradora de reflexões críticas sobre o nosso país e a nossa sociedade aliada a outros méritos de ordem estética tornaria suas peças inegavelmente relevantes para a história do moderno teatro brasileiro Segundo Antonio Mercado a dramaturgia e o teatro brasileiros do final da década de 30 e início dos anos 40 viviam um período superficial resumindose em imitar modelos europeus sem relevância dissolvendose entre chanchadas1 e comédias de costume nas quais a realidade brasileira era vista de forma ingênua superficial e folclórica E apesar de ocorrer esparsas e verborrágicas tentativas de teatro sério que não conseguiam superar os limites da subliteratice e da filosofia de algibeira MERCADO 1994 p 9 notavase um grande atraso em comparação ao teatro mundial no qual já se desenvolvia por exemplo o expressionismo alemão e o teatro politicamente engajado demonstrando que a dramaturgia existente em nosso país era 1 O termo chanchada é utilizado para designar filmes peças e programas de TV de baixo nível Geralmente apela para a comicidade escrachada grosseria vulgaridade e escatologia além de fazer uso de recursos do circo e do teatro de revista Aproximase da farsa devido a seus traços parodísticos e sua atmosfera agitada contudo não possui a mesma conotação popular característica da farsa refletindo o gosto e os costumes da classe média Dicionário do teatro brasileiro temas formas e conceitos J Guinsburg João Roberto Faria Mariangela Alves de Lima orgs São Paulo Perspectiva Sesc São Paulo 2006 p 81 17 popular com poucas pretensões objetivando apenas distrair um público não exigente MERCADO 1994 p 11 É nesse panorama do teatro nacional que Dias Gomes começa a dar seus primeiros passos no universo da dramaturgia refletindo em textos construídos com pitadas de comicidade e ironia a rebeldia precocemente afirmada como traço marcante de seu caráter ao mesmo tempo em que seus pontos de vista sobre imposições políticas e religiosas seriam evidenciados em sua obra como uma espécie de denúncia incomodando bastante algumas autoridades Porém diante desse cenário em que os dramaturgos pareciam impedidos de mergulhar em tentativas dramáticas mais sérias tendo de se submeter aos caprichos dos grandes atores da época e à ausência de consciência de um público que buscava no teatro o simples entretenimento Dias Gomes não cedeu à realidade da arte dramatúrgica imposta nesse período e afastouse do teatro dedicandose por anos ao rádio meio que provavelmente contribuiu para o desenvolvimento de sua técnica como escritor cujos textos embora crescessem em complexidade mantinhamse capazes de comunicar ideias clara e diretamente Já na adolescência Dias Gomes começara a definir sua dramaturgia através de temáticas voltadas para os contrastes sociais e políticos de seu tempo quando aos 15 anos escreveu seu primeiro texto teatral intitulado A Comédia dos Moralistas 1937 obra premiada num concurso patrocinado pelo Serviço Nacional do Teatro e pela União Nacional dos Estudantes tendo então despertado a atenção da crítica pela qualidade do trabalho e segurança demonstrada ao tratar do tema proposto o falso moralismo De acordo com Mercado a citada obra de Dias Gomes já denunciava sua inegável vocação dramática cujo tom ferino e cínico possivelmente tenha sofrido certa influência de seu contato com a Academia dos Rebeldes grupo formado por seu irmão mais velho Guilherme Dias Gomes e outros jovens escritores dentre os quais se destacam Edson Carneiro Dias da Costa Jorge Amado e João Amado Pinheiro Viegas Três anos depois de A Comédia dos Moralistas Dias Gomes escreveu Amanhã Será Outro Dia um drama antinazista em três atos que ainda segundo Antônio Mercado já revelava o interesse de Dias Gomes pela teatralização de temas momentosos da atualidade política MERCADO 1994 p 21 ligados à liberdade e lutas travadas entre o indivíduo e o sistema Esta obra representava o drama de um político francês que emigrava com toda a família para o Brasil após a queda de Paris recusandose a colaborar com o governo de Vichy sendo seguido até aqui pela Gestapo A princípio o texto não foi bem aceito pelos dois grandes atoresempresários daquela 18 época Jayme Costa e Procópio Ferreira por considerarem uma temeridade encenar o drama em um período no qual a posição do Brasil ante a ameaça nazista ainda não estava definida No aspecto fundamental porém Amanhã Será Outro Dia alcançou pleno êxito numa peça agradável e interessante capaz de comover e prender pelo suspense o autor conseguiu enfocar temas sérios e atuais sem a tornar pretensiosa ou maçante Infelizmente as contingências políticas só permitiram que a peça fosse montada pela Comédia Brasileira em 1943 Mas então o jovem autor já havia conhecido o sucesso com a encenação de PédeCabra por Procópio em 1942 MERCADO 1994 p 23 A comédia PédeCabra foi a primeira peça montada de Dias Gomes chamando atenção da crítica teatral da época Encomendada por Jayme Costa como uma réplica à obra Deus lhe Pague2 texto de grande sucesso escrito por Joracy Camargo e montada por Procópio Ferreira Pédecabra que na verdade não era uma réplica e sim uma espécie de sátira levou o jovem dramaturgo a ser visto como discípulo de Joracy e marcou o início da primeira fase de seu teatro que segundo o próprio Dias Gomes 1994 p 381 durou de 42 a 44 período no qual se destacam PédeCabra Amanhã Será Outro Dia Zeca Diabo João Cambão Eu Acuso o Céu Os Cinco Fugitivos do Juízo Final e Dr Ninguém Para Dias Gomes esses textos já anunciavam a dramaturgia que desenvolveria mais profundamente a partir do final dos anos 50 com O Pagador de Promessas na qual buscaria provocar reflexões acerca dos problemas sociais brasileiros Contudo o dramaturgo reconhece que embora já tivesse uma noção de que a dramaturgia brasileira deveria surgir de uma análise da realidade brasileira dos problemas brasileiros do comportamento do homem brasileiro suas aspirações frustrações GOMES 1994 p 33 ainda assim os seus primeiros textos são fracos e imaturos pois segundo ele faziam uma análise bem superficial da realidade do país focando de maneira ingênua temáticas muito sérias que exigiam maturidade vivência e base cultural que provavelmente pela pouca idade Dias Gomes ainda não possuía GOMES 1994 p 382 Entretanto de acordo com a crítica apesar da inexperiência e imaturidade Dias Gomes trouxe assuntos de grande relevância retirados da realidade nacional para serem 2 Deus lhe pague segundo Décio de Almeida Prado 1988 p 23 proclamou o nascimento do verdadeiro teatro nacional senão o surgimento de uma nova era dramática pois o texto tinha de tudo um pouco agradando a todos os gostos 19 discutidos e questionados de modo sério mesmo quando fazia uso da comédia como o problema do cangaço e a questão fundiária em Zeca Diabo o preconceito racial em Doutor Ninguém por meio da paixão de um jovem e brilhante médico negro por uma moça branca da sociedade baiana cujos pais aceitam o rapaz como profissional mas o rejeitam como genro em Eu Acuso o Céu o pano de fundo é constituído pela seca no Nordeste e pela migração dos retirantes para o litoral Um Pobre Gênio enfoca uma greve operária a exploração dos trabalhadores nas indústrias a luta de classes MERCADO 1994 p 27 Diante do exposto conforme diz Antonio Mercado percebese que a obra de Dias Gomes em sua primeira fase teatral debruçavase em temáticas polêmicas intensificando a dramaticidade dos conflitos representados Contudo como já dissemos anteriormente a dramaturgia nacional vivia um momento de superficialidade de modo que o conservadorismo e a bilheteria tornaramse os grandes obstáculos do teatro de Dias Gomes que esperava a mudança na mentalidade dos empresários e do público da época o que só ocorreu a partir da década de 50 O surto de nacionalismo e a ânsia de desenvolvimento tomavam conta do Brasil iniciaramse as primeiras mudanças na estrutura política o país tomava noção de suas limitações e de suas possibilidades Tudo isto tinha de se refletir no teatro e as platéias até então alienadas respirando um drama importado passaram a ter curiosidade por aquilo que estando à sua volta era demonstrado no palco Dias Gomes podia recomeçar a escrever e deu início à sua segunda fase RANGEL 1991 p 16 Segundo a pesquisadora Iná Camargo Costa3 apud MACIEL ANDRADE 2007 p 5354 com O Pagador de Promessas Dias Gomes deu início ao segundo momento de sua dramaturgia caracterizada por questões políticas abordadas em contexto nacional buscando na periferia na pobreza o protagonista ideal para representar o povo São deste segundo momento entre outras peças A Invasão A Revolução dos Beatos e O Berço do Herói De um modo geral considerando todas as fases de Dias Gomes é notório que sua obra evidencia demonstrações de subversão na medida em que seus textos retratam de forma irônica temáticas sociais destacando os modelos de opressão legitimados 3 Ainda de acordo com Iná Camargo a obra de Dia Gomes chegou a um terceiro período marcado por alguns romances e contos além de toda a produção de textos para a teledramaturgia e rádio 20 pelos militares com o apoio das classes elitizadas e da própria Igreja levando as autoridades políticas da época a combatêlo e censurálo pois o enxergavam como um subversivo visto que Dias Gomes refletia em sua obra o engajamento ideológico político e sua luta por uma ordem social distinta e mais justa Entretanto segundo Antonio Mercado percebese muito claramente a diferença técnica entre os dois primeiros momentos do teatro de Dias Gomes Essa diferença estaria na relação temaenredo De acordo com o crítico na primeira fase o dramaturgo basicamente concebe o tema para em seguida inventar uma trama capaz de expressar suas ideias sobre este o que confere certa artificialidade ao desenvolvimento da ação dramática As idéias e os significados não emergem do enredo como seria desejável em vez disso parece que as ações os fatos e as situações foram propositalmente criados e ordenados pelo dramaturgo para demonstrar as idéias que tinha em mente Nas peças da maturidade os significados resultam das ações que por isso são necessárias e insubstituíveis fossem outras as ações outro seria o sentido da obra MERCADO 1994 p 31 No referente à segunda fase da obra de Dias Gomes Mercado quer dizer que tema e enredo parecem criados concomitantemente de modo a interagirem de forma perfeita e sincronizada fazendonos lembrar da teoria dramática atinente às leis de causa e efeito recomendadas na produção de um texto dramático no qual a temática vai se revelando conforme o desenrolar da trama Para Flávio Rangel 1991 p 1920 diretor teatral a obra de Dias Gomes é engajada demonstrando sua contribuição à história muito embora tenha sido tão combatida e censurada Talvez por isso Antonio Mercado 1991 p 401 enxergue o autor de O Pagador de Promessas como o mais representativo autor do que se convencionou definir como o moderno teatro brasileiro chamando atenção para o fato de Dias Gomes ter sido um dos dramaturgos brasileiros mais estudados no exterior fora já saberse de sua vasta fortuna crítica dentro do território nacional Em seu livro O mito e o herói no teatro moderno brasileiro Anatol Rosenfeld reúne nove peças de Dias Gomes afirmando ser o propósito crítico do dramaturgo nitidamente observado e realizado por diversos processos dramáticos fazendo parte do grupo de autores que tornam suas obras focos de perturbação Segundo Rosenfeld o sentido clássico do termo tragédia adéquase às peças O 21 Pagador de Promessas e O Santo Inquérito A Invasão é um recorte naturalista da vida de um grupo humano Odorico o Bemamado e O Berço do Herói são duas tragicomédias fortemente assinaladas pelo caráter farsesco principalmente a primeira citada O Túnel é uma metáfora evidente que se destaca singularmente dentro de todo o conjunto da obra de Dias Gomes visto ser um de seus textos mais curtos e menos conhecidos representando um grande engarrafamento em um túnel que dura quatro anos desde 64 onde cada qual busca desesperadamente uma saída Nesse ponto vale assinalar a ideia de enclausuramento bastante presente na obra de Dias Gomes quando são colocados como pauta de discussão a dignidade integridade e plenitude da pessoa humana A realização do homem como tal está na proporção direta de sua liberdade de seu poder de traçar e decidir seu destino O enclausuramento é a antítese desse valor supremo uma tentativa de reduzir o homem à condição infra ou subhumana Não são poucos os personagens dessa dramaturgia que resgatam com a vida a plenitude de sua humanidade enclausurados estão ou ficam no decorrer da ação dramática em medidas e formas diversas Zé do Burro e sua cruz Branca Dias Getúlio Vargas os favelados de A Invasão os seqüestradores de Campeões do Mundo os noivos d As Primícias Sérgio e Nara Penafiel em Amor em Campo Minado o Cabo Jorge nO Berço do Herói e tantos mais Enclausurados estão também os personagens deste Túnel expressando por certo a visão do autor sobre a sociedade brasileira e sobre si mesmo naquele momento soturno de nossa história recente MERCADO 1991 p 216 Em Vamos Soltar os Demônios peça psicológica Dias Gomes desmascara e critica o intelectual nos moldes de um drama matrimonial muito embora após tomar conhecimento da análise feita por Rosenfeld respeitante a este texto Dias Gomes tenha feito uma revisão da obra que recebeu o título de Amor em Campo Minado e teve seu psicologismo diminuído de modo que o aspecto político nessa nova versão tenha sido intensificado GOMES 1991 p 624625 Por fim as peças A Revolução e Dr Getúlio estão sustentadas nos espetáculos brasileiros populares e tradicionais como Bumba meuBoi e os desfiles carnavalescos Diante do exposto Diógenes Maciel e Michel Costa verificam que as considerações de Rosenfeld mostram a trajetória de Dias Gomes entre diversas formas dramáticas daquelas mais tradicionais e clássicas como a tragédia passando pelo drama naturalista e chegando as formas mais distensas da tragicomédia e do teatro popular incorporado à tessitura das tramas mas sempre com destacada ênfase sobre os tipos populares e à perspectiva 22 popularbrasileira sic COSTA MACIEL 2007 p58 Conforme diz Anatol Rosenfeld por se tratar de uma dramaturgia a favor do povo a obra de Dias Gomes tem o teor popular realçado Seus personagens e conflitos embora alcancem significados universais são eminentemente brasileiros assim como seus costumes condições e situações são notavelmente nacionais As peças transpiram vida popular brasileira de todos os poros também graças à linguagem saborosa direta rica de regionalismos expandindose num diálogo espontâneo e comunicativo de grande carga géstica e eficácia cênica O brasileiro sobretudo o povo simples profundamente inserido nos seus costumes vive chora e ri nestas peças com uma autenticidade que lhe garante de imediato a identificação nacional ROSENFELD 1996 p 57 Sendo assim Dias Gomes explora a fala popular e os personagens típicos da forma cômica em todos os textos exceto em O Santo Inquérito A comicidade é perceptível principalmente na visão das fraquezas humanas reconhecidas pelo dramaturgo senão como parte da humana herança ao menos como conseqüência de condições históricosociais ROSENFELD 1996 p 57 sem culpar totalmente os vilões por suas precariedades de comportamento A dramaturgia de Dias Gomes apresenta e analisa em todas as peças um mundo de condições atitudes e tradições cerceadoras de forças mancomunadas com a inércia a estreiteza ou a hipocrisia mundo carregado de pressões e conflitos que tende a suscitar a luta franca ou dúbia coerente ou não pela liberdade e pela emancipação pela dignidade e pela valorização humanas ROSENFELD 1996 p 57 Quanto a O Pagador de Promessas este foi encenado pela primeira vez em 29 de julho de 1960 no Teatro Brasileiro de Comédia TBC de São Paulo assinalando o início da segunda fase da dramaturgia de Dias Gomes consagrandoo como um dos mais destacados dramaturgos brasileiros Até esse momento o TBC não encenava autores nacionais propondose inicialmente a montar apenas textos de autores estrangeiros como Cocteau Anouilh e Tennessee Williams objetivando aproximarse da qualidade dos espetáculos apresentados na França e nos Estados Unidos Contudo quando Franco Zampari fundador do TBC encenou O Pagador de Promessas sob a direção de Flávio Rangel houve uma grande mudança no Teatro Brasileiro de Comédia que daí em diante passaria a dar preferência ao autor brasileiro e a uma dramaturgia 23 preocupada com nossos problemas sociais GOMES 1998a p 169 pois o público agora desejava ver a sua realidade em cena e o TBC se ainda queria sobreviver deveria se adequar aos novos tempos da dramaturgia De acordo com Flávio Rangel o drama de Zé do Burro já entusiasmava o elenco desde os primeiros ensaios tamanha a qualidade do texto Para o diretor O Pagador de Promessas era uma história de admirável imaginação na qual o autor não se limitou a fixar caracteres e se esquivou habilmente de cair no simplesmente episódico ou típico sua história ultrapassa a praça de Salvador onde se localiza a ação para transformarse em termos universais de debate moral e de conflito ético O choque Zé doBurroPadre pode ser elevado às infinitas proporções dos choques entre a liberdade e a intolerância entre a bondade inata e a malicia da ordem estabelecida entre a pureza dos simples e o temor dos medrosos O processo de desintegração que sofre o protagonista nada mais é do que a conseqüência do pacto com a morte que ele assumiu no momento em que sua ingenuidade não permitiu uma elasticidade maior Entre a proposição de enquadrarse no que já está equacionado e de manter a fidelidade ao próprio mundo ele opta pela própria dignidade sic RANGEL 1991 p 17 Para Décio de Almeida Prado a carreira de Dias Gomes começou mesmo em 1960 quando o Teatro Brasileiro de Comédia encenou a saga de Zé do Burro Somente mais tarde quando a mídia e a nova crítica começaram a se interessar pela biografia do autor os críticos descobririam estar enganados em relação ao passado do dramaturgo baiano Todo bom escritor tem o seu instante de graça possui a sua obra prima aquela que congrega numa estrutura perfeita os seus dons mais pessoais Para Dias Gomes essa hora de inspiração veiolhe no dia em que escreveu O Pagador de Promessas Em torno de ZédoBurro herói ideal por unir o máximo de caráter ao mínimo de inteligência naquela zona fronteiriça entre o idiota e o santo o enredo espalha a malícia e a maldade de uma capital como Salvador mitificada pela música popular e pela literatura na qual o explorador de mulheres se chama inevitavelmente Bonitão o poeta popular Dedé CospeRima e o mestre de capoeira Manuelzinho SuaMãe O colorido do quadro contrasta fortemente com a simplicidade da ação que caminha numa linha reta da chegada de ZédoBurro à sua entrada trágica e triunfal na igreja não sob a cruz conforme prometera mas sobre ela carregado pelos capoeiras como um crucificado A história já é por si só comovente mas assume pela singeleza com que é contada a feição de um símbolo algo que não se deixa reduzir com facilidade a explicações racionais menores A aura de poesia dálhe a amplitude de uma fábula de um apólogo quase de um mito o sacrifício do 24 puro do inocente daquele que não provou do fruto do Saber com conotações religiosas e ritualísticas PRADO 1988 p 90 Por outro lado Rosenfeld diverge da ideia de alguns críticos em julgar que o único grande texto escrito por Dias Gomes tenha sido O Pagador de Promessas Para este crítico a análise da obra do autor baiano em sua totalidade invalida tal opinião Apesar de altos e baixos a obra no seu todo se apresenta repleta de esplêndidas invenções povoada de uma humanidade exemplar na glória e na miséria Distinguemna a imaginação rica a variedade de caracteres vivos a extraordinária latitude da escala emocional indo dos comoventes destinos de Zé do Burro e Branca Dias ao riso amargo de O Berço do Herói e Dr Getúlio e à franca gargalhada de Odorico Aberta ao sublime sensível à grandeza trágica a obra recorre ao mesmo tempo aos variados enfoques do humor do sarcasmo e da ironia para lidar com os aspectos frágeis ou menos nobres da espécie humana O realismo crítico da observação vai por vezes até à caricatura e ao grotesco apreendendo a realidade com lentes que distorcem para revelar ROSENFELD 1996 p 8586 Nascido em Salvador Dias Gomes teve sua formação no ensino fundamental em um colégio católico o que a nosso ver lhe deu certo embasamento para o enriquecimento da caracterização de seus personagens envolvidos com o universo religioso além de marcarlhe e imprimir profundamente em sua memória a imposição de uma fé religiosa GOMES 1994 p 390 Segundo o próprio Dias Gomes 1994 p 391 considerando que seu teatro coloca em cena o embate entre o homem e o sistema social o papel desempenhado pela Igreja na formação do povo seria um ponto de grande relevância que ele não poderia deixar de explorar em sua obra Todavia na visão de Décio de Almeida Prado Dias Gomes dirige todo seu sarcasmo à Igreja e seus participantes os padres os fanáticos e as beatas Não obstante acrescenta o crítico a simpatia do autor estaria toda voltada ao misticismo popular como forma de expressar uma revolta mal compreendida já que nem todos estão dentro do quadro de privilégios sociais Dias Gomes homem declaradamente de esquerda usa o arsenal épico quando o enredo o requer mas nada tão contrário ao seu temperamento quanto a teoria do distanciamento ou mesmo certas posições de Brecht que nunca hesitou em aceitar como normais no palco e na vida o medo da morte as concessões feitas para salvar a pele as acomodações temporárias o lance de astúcia que engana o 25 inimigo O escritor brasileiro tendo enfrentado perigos menores sempre fez questão de exaltar o destemor o sacrifício efetuado em nome de uma idéia superior Não é incomum em seus dramas nas comédias a morte dáse por equívoco o herói afirmarse e reconhecer se como tal dispondose a antes perecer que transigir PRADO 1988 p89 Diferentemente do que pensaram alguns críticos O Pagador de Promessas segundo Dias Gomes nasceu de sua necessidade interior de entender o mundo Não seria uma peça didática nem tampouco panfletária Ao contrário embora ela tenha como tema fundamental a liberdade de escolha ante o qual me posiciono não tive ao escrevêla a menor preocupação de expelir qualquer mensagem política GOMES 1998a p178179 O dramaturgo afirma que O Pagador O Santo Inquérito e A Revolução dos Beatos são textos em que a Igreja é representada como parte de uma engrenagem social repressora aliada sempre aos poderosos em sua essência anticristã O Pagador não é uma peça anticlerical É uma peça contra a intolerância o dogmatismo uma fábula sobre a liberdade de escolha temas sempre atuais Não é a Igreja que está em causa como instituição E Padre Olavo é apenas um símbolo de intolerância Poderia ser uma fábula dos anos 70 anos de intolerância e obscurantismo em que muitos ZésdoBurro tombaram querendo pagar suas promessas Se O Pagador for entendido como uma metáfora nunca perderá sua atualidade GOMES 1994 p 391 Mas Prado ainda assim afirma que há um plano político por baixo do plano moral aflorando à superfície e dando sentido à história Para o crítico a luta travada não é como se pode pensar entre intolerância e tolerância e sim entre duas intolerâncias a boa e a má a legítima por trabalhar a favor da justiça social e a ilegítima que deseja apenas perpetuar os privilégios atuais PRADO 1988 p 89 Mesmo admitindo ser o próprio Dias Gomes quem considera O Pagador de Promessas como um protesto a todas as formas de intolerância Prado acredita haver outros ângulos na peça a serem observados A princípio o crítico afirma que Zé do Burro não entra em choque apenas contra a Igreja mas sim contra toda a cidade de Salvador através da diversidade de tipos sociais representada pela prostituta o cafetão o jornalista e o comerciante interesseiro cujos diálogos o protagonista tem maior dificuldade de compreender que de aceitar E então para exemplificar esta incompreensão demonstrada pelos diálogos Prado cita a cena na qual o Repórter ao 26 entrevistar Zé do Burro traduz as respostas do pagador em termos manchetados Zé do Burro dividiu parte do sítio entre os amigos que passavam fome Então é contra o latifúndio contra a exploração do homem pelo homem a favor da reforma agrária O que nos faz sorrir não é só o vocabulário político do momento mas a impressão que temos de incongruência de que estas idéias teóricas não representam os verdadeiros motivos que conduzem Zé do burro Raciocinar em termos universais e abstratos não é a sua especialidade Ele apenas sente intui O sítio os amigos o próprio burro a que o liga uma amizade por assim dizer fraterna sem qualquer ironia são para ele realidades vivas concretas emocionais imediatas Ora os homens da cidade jogando com conceitos pensam e falam em outra linguagem PRADO 2002 p 170171 Conforme o exposto Costa e Maciel 2007 p 62 chamam atenção para a falta de comunicação entre os grupos formados no texto dramático pertencentes a lados opostos Segundo os citados autores diante da impossibilidade de se ter diálogo a luta das classes se formaliza Simultaneamente a esta crise do meio verbal entra em crise também a figura do indivíduo autônomo mostrandonos que o dramaturgo portanto também está urdindo sua trama e a forma em que busca veicular o conteúdo social numa área de crise como convém ao drama moderno Assim ler este texto como uma tragédia é algo que pode desviar o foco de suas questões principais e de sua proximidade com a perspectiva nacionalpopular COSTA MACIEL 2007 p 62 O pensamento de Costa e Maciel lembranos Prado para quem o elemento dramático de O Pagador de Promessas se caracteriza menos pela intolerância que pela distância entre ricos e pobres no Brasil gente das camadas rurais e da zona urbana Ademais Prado completa que inegavelmente este drama escrito por Dias Gomes oferece um impressionante e fiel testemunho da falta de interação das camadas rurais em nossa vida de civilizados 2002 p 171 Rosenfeld referente a esta divisão de classes surpreendese com a forma como Dias Gomes consegue nos fazer simpatizar com Zé do Burro e os seus semelhantes representativos dos elementos suburbanos e marginais relacionados à cidade ao mesmo tempo em que nos afastamos dos personagens mais pautados nos rudimentos citadinos como o repórter o padre o delegado o tira o monsenhor e o comerciante Não obstante na visão deste crítico o dramaturgo deixase levar um pouco pelo clichê do 27 caipira imaculado e da cidade perversa visto esta se sair tão mal no texto ao ponto de não se salvar um sequer de seus personagens representantes Isso surpreende um pouco já que Dias Gomes decerto não quer exaltar a volta ao mundo arcaico de pureza e inocência de Zé do Burro como se só ali houvesse integridade humana Semelhante visão bucólica muito velha na literatura reforçada por Rousseau e pelo romantismo e ainda muito visível por exemplo nas comédias de Martins Pena e seus seguidores como em toda uma ala de literatura regional fascinada pelo chavão de raça e roça certamente não corresponde ao pensamento de Dias Gomes Tal enfoque unilateral bem pretobranco empobrece um pouco o todo estético e cria um curioso desequilíbrio numa peça que visando evidentemente a fins progressistas acaba exaltando uma atitude arcaica ROSENFELD 1996 p 94 De acordo com Anatol Rosenfeld neste texto dramático a lógica inabalável a partir da qual se desenvolve o conflito o rigoroso encadeamento das cenas que levam a ação ao trágico desenlace a unidade de ação tempo e lugar aproximariam a obra da tragédia clássica se o ambiente os personagens populares e a prosa saborosa de traços regionais não estivessem em desacordo com a tradição aristocrática do classicismo ROSENFELD 1996 p 58 Além disso a oposição do mundo de Zé do Burro à cidade é apresentada através da tipificação das personagens citadinas desde as mais representativas da moderna civilização até as ainda não pertencentes a ela por completo A prostituta mormente seu rufião representam o cinismo e a corrupção moral o padre o formalismo abstrato o guarda bonachão o jeitoso oportunismo o repórter a agilidade esperta de uma mente estruturada em torno de clichês superficiais desumanizada por um ambiente de contatos breves e apressados raciocinando em termos de consumo de sensações o tira o galego e outros sugerem vários graus de mentalidade interesseira fria e impiedosa ROSENFELD 1996 p 62 Ainda segundo Rosenfeld Dias Gomes realça demasiadamente as descrições negativas dos representantes mais simbólicos da cidade fazendo toda a simpatia recair sobre os personagens ainda ligados ao mundo rural e subdesenvolvido Para o crítico essa supervalorização do mundo arcaico seria corrigida em A Revolução dos Beatos obra na qual Dias Gomes apresenta um quadro amplo do misticismo popular na sua ambígua aparência e manipulado primitivismo diferentemente de O Pagador de Promessas em que o dramaturgo sugere o misticismo apenas através do comportamento de Zé do Burro e dos diálogos 28 Embora compreenda toda a qualidade do texto Décio de Almeida Prado faz somente uma pequena restrição a duas cenas segundo ele menos felizes Primeiro o diálogo inicial de Zé do Burro com o padre Olavo que para o crítico é longo e muito estático por isso revelando sem disfarce o caráter meramente expositivo do primeiro ato quase por inteiro A segunda cena observada é a do assassinato do pagador ocorrida no meio de um tipo de redemoinho popular estratégia usada pelo encenador Flávio Rangel para simbolizar que Zé do Burro é assassinado por toda a cidade de Salvador Para Prado esse artifício era desnecessário pois esta imagem do protagonista ser vítima de toda a comunidade citadina já estava expressa no texto ou nas entrelinhas Já o crítico Sábato Magaldi 1962 p 249 faz uma análise da peça tanto no conteúdo como na sua forma sob o ponto de vista do processo de construção do drama em relação às produções dos trágicos gregos Segundo Elri Bandeira de Sousa 2005 p 143 Magaldi buscava elementos definidores de uma tragédia quase clássica entendendo antes de tudo a utilização do recurso trágico do conflito entre Zé e Padre Olavo como uma maneira de criticar o formalismo clerical pois enxergava em O Pagador de Promessas o embate entre o homem isolado e desprotegido e as forças de um mundo superior a ele Desse modo tomando impulso no viés da tragicidade apontado na crítica de Sábato Magaldi seguiremos nossos estudos considerando que o texto O Pagador de Promessas é um drama social com características formais de uma tragédia clássica E para fortalecer nossa concepção mais adiante percorreremos o universo teórico fundamentador da dramaturgia trágica para que em nossa análise do corpus escolhido possamos investigar como se dá na obra O Pagador de Promessas a relação entre os conceitos de tragédia e drama averiguando seus limites e transgressões Para finalizar o caminho percorrido até aqui podemos dizer que a obra dramática de Dias Gomes é marcada por uma unidade fundamental que convive no interesse conseqüente e persistente por valores políticosociais e portanto humanos favorecendo a visão crítica de um homem não satisfeito com os fatos Assim este intelectual e escritor analisa criticamente esta realidade aferindoa segundo uma imagem julgada mais perfeita segundo normas morais e sociais julgadas mais humanas não necessariamente especificadas mas subjacentes à própria crítica ROSENFELD 1996 p 55 Os estudos de Anatol Rosenfeld revelam que Dias Gomes se posiciona política e socialmente propondo através de seu trabalho uma visão crítica de nossa realidade E esse olhar focando as diferenças de classes preocupandose com os conflitos políticosociais faz de sua obra uma forte instância de crítica social 29 favorecedora da dramaticidade e tragicidade justamente por acentuar a vida popular através de figuras tipificadas que representam o regionalismo a simplicidade e a força tão caracteristicamente associada ao povo brasileiro que rindo ou chorando persiste em suas lutas Assim a autenticidade presente na obra de Dias Gomes garante identificação nacional na medida em que a recepção se vê nas situações dramatizadas no palco por uma variedade de caracteres típicos de nosso Brasil 2 O Pagador de Promessas de Anselmo Duarte sob o olhar da crítica Quando se remete à história do cinema brasileiro é praticamente impossível não tocar no nome de Anselmo Duarte único cineasta brasileiro laureado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes um dos eventos mais importantes do cinema mundial De acordo com o jornalista Luiz Carlos Merten esse grande feito fez de Anselmo Duarte um diretor extremamente visado pelos críticos e profissionais ligados ao movimento do Cinema Novo4 Na verdade em um primeiro momento nos parece que tomar conhecimento da vida e obra de Anselmo Duarte com o objetivo de compreender sua cinematografia é depararse com muitas intrigas e pouco reconhecimento à importância de um trabalho que marca o nascimento de um novo cinema nacional o que dificulta uma leitura melhor contextualizada de sua obra cinematográfica cuja fortuna crítica se mostra bem restrita Dentre todos os projetos de Anselmo Duarte o de maior destaque é O Pagador de Promessas obra que certamente teve como enorme contribuição o excelente texto original de Dias Gomes Porém Alex Viany embora valorize a participação do dramaturgo baiano na produção do citado filme dá destaque ao importante trabalho de Anselmo 4 O Cinema Novo foi um movimento cultural brasileiro inspirado na técnica e estética do neorealismo italiano Para alguns cineastas e historiadores do cinema este movimento iniciouse em 1955 a partir do filme Rio 40 Graus dirigido por Nelson Pereira O Cinema Novo buscava levar o público a pensar sobre questões econômicas sociais e políticas através de filmes que tinham por temática a fome a seca o folclore o misticismo religioso e o Nordeste Além disso esse movimento tinha por objetivo mostrar a possibilidade de produzir filmes de forma independente sem a necessidade de aceitar as imposições das normas de produção da época Além de Nelson Pereira destacamse como principais representantes do Cinema Novo os cineastas Glauber Rocha e Ruy Guerra RODRIGUES 2005 p 2122 30 Mas a contribuição pessoal de Anselmo Duarte é enorme não estando na adaptação cinematográfica de Dias Gomes por exemplo dois dos melhores momentos do filme a cena em que Zé do Burro retomando a cruz namora Santa Bárbara que numa procissão sobe as escadas da igreja em seu andor e a seqüência em que o padre agoniado por suas dúvidas e enfurecido com o barulho que fazem os berimbaus lá fora na festa herética de Iansã inutilmente tenta fazer com que seus sinos abafem os sons do mundo exterior VIANY 1999 p 45 O lugar polêmico ocupado por Anselmo Duarte na história do cinema brasileiro parece deverse primeiramente à sua vinculação original à arte cinematográfica Sabe se que Anselmo Duarte iniciouse no cinema como ator na década de 40 tornandose ao longo dos anos um dos mais queridos galãs do cinema nacional atuando principalmente nas principais tentativas de cinema industrial do país representadas respectivamente pela Companhia Atlântida Cinematográfica e Companhia Cinematográfica Vera Cruz que segundo Merten 2005 p 89 nunca foram estimadas pela crítica de esquerda visto que a primeira realizava apenas chanchadas carnavalescas consideradas pelos membros do Cinema Novo como alienadas e alienantes enquanto a Vera Cruz tinha como objetivo transformarse na Hollywood brasileira tendo suas produções avaliadas pela crítica de esquerda como outra forma de alienação Apesar de vir de duas escolas de cinema vistas de maneira tão negativa Anselmo obteve sucesso de público e de crítica ao dirigir seu primeiro longametragem em 1956 A fórmula policial de briga e confusão no filme Absolutamente Certo baseavase em suas pesquisas sobre a reação do público nas salas de cinema para assim conseguir montar uma trama que agradasse os espectadores obtendo destes todas as reações desejadas pelo diretor Os críticos gostaram do Absolutamente Certo a maioria escreveu que havia feito um bom filme popular com noções adequadas de ritmo e movimento com uma melhora bastante acentuada do nível das comédias que eu mesmo interpretara DUARTE apud MERTEN 2004 p102 Para o cineasta e crítico Glauber Rocha Absolutamente Certo é o verdadeiro filme de autor feito por Anselmo Duarte Porém na visão de alguns críticos o grande salto qualitativo do cineasta foi marcado pelo filme O Pagador de Promessas realizado por Anselmo quando este retornou ao Brasil após morar durante um ano na França No período vivido na Europa o citado ator conheceu o Festival de Cannes alguns 31 importantes diretores o júri do festival e seu processo de apreciação obtendo embasamento suficiente para construir um filme à altura do evento Retornando ao Brasil Anselmo enxergou em O Pagador de Promessas o texto que precisava para realizar o filme que lhe daria a Palma de Ouro No entanto apesar de seu preparo e domínio de outras etapas da produção cinematográfica como o argumento roteiro montagem e direção o título de galã o marcava como um sinal de incompetência de modo que o próprio Dias Gomes não acreditava na possibilidade de Anselmo ser o melhor diretor para a versão fílmica de sua obra Anselmo percebendo a resistência de Dias Gomes garantiulhe que se o texto lhe fosse entregue ganharia o prêmio em Cannes Esta afirmação fez Dias Gomes ceder não por acreditar na obtenção do citado prêmio mas pela determinação do cineasta em fazer o melhor Ainda assim Dias Gomes assinou um contrato com o produtor do filme Oswaldo Massaini no qual constava uma cláusula que obrigava Anselmo a seguir cena por cena o roteiro definitivo aprovado pelo dramaturgo Desse contrato constava também a obrigação de fazer a adaptação cinematográfica onde procurei também me resguardar mantendo quase literalmente o desenvolvimento e os diálogos da peça e nisso amarrando a direção reconheço dessa acusação que é feita a Anselmo eu tenho toda a culpa GOMES 1998a p 182183 Segundo Glauber Rocha 2003 p 161 ninguém acreditava que o ator Anselmo Duarte diretor de chanchada fosse encenar cinematograficamente um texto de intelectual Mesmo assim na visão de Rocha a direção de Anselmo Duarte é vista de forma simples boa e direta embora seu trabalho como autor não seja percebido devido às exigências limitantes de Dias Gomes que não lhe deram liberdade para criar fazendo de O Pagador de Promessas um filme que não provoca reflexões No entanto entendemos que o mero fato de transpor uma obra literária para o cinema por mais singela que pareça ser a montagem já é uma nova criação ou seja há sim autoria nessa adaptação uma vez que se trata de linguagens completamente distintas Feita a negociação com o autor do texto O Pagador de Promessas Anselmo deu início à adaptação cinematográfica da obra visando o Festival de Cannes do qual já conhecia todos os critérios de avaliação Baseandose nas informações concernentes ao festival o diretor cortou diálogos que julgava desnecessários substituindoos por símbolos incluindo algumas cenas como a mais aplaudida em todos os festivais na qual vemos Zé do Burro acompanhando a imagem de Santa Bárbara carregada em uma 32 procissão encarandoa numa expressão de cumplicidade Ciente das diferenças entre as duas formas de arte teatro e cinema Anselmo Duarte sabia que não poderia seguir fielmente o texto original por isso o tomou apenas como ponto de partida buscando fugir da ideia de teatro filmado MERTEN 2004 p 120121 Chamanos atenção a escolha do cenário que para nós se mostra muito pertinente quando nos colocamos a pensar na análise do texto fílmico e sua rede de significações uma vez que o cineasta optou pela igreja de Senhor dos Passos com sua grande escadaria no Pelourinho por entender que a história de Zé do Burro chega a um ponto sem saída restando somente a morte Logo a locação selecionada atendia perfeitamente à ideia de fazer sobressair o aspecto claustrofóbico da situação visto os paredões ao lado da escadaria criarem um forte espaço dramático fechado sobre si mesmo Segundo Alex Viany no início da década de 60 ocorreu uma melhoria no cinema brasileiro que até então demonstrava pouca qualidade em suas produções tornandose difícil a tarefa de encontrar filmes que não envergonhassem o país no exterior VIANY 1999 p 22 Assim em 1962 o Brasil pela primeira vez participou de todos os festivais internacionais de cinema Este ano para selecionar o representante do Brasil em Cannes uma comissão Itamarati Geicine críticos teve de escolher um dentre três filmes sendo que dois foram finalmente autorizados a comparecer a concursos no estrangeiro Mandacaru vermelho Nelson Pereira dos Santos viajou para Mar del Plata O pagador de promessas Anselmo DuarteDias Gomes para Cannes Os cafajestes Rui GuerraMiguel Torres deve ir a Berlim Barravento Glauber Rocha a Karlovy Vary Três cabras de Lampião Aurélio TeixeiraMiguel Torres a Veneza e há filmes de sobra para os demais festivais A melhoria de qualidade vem além disso juntamente com o crescimento numérico da produção em 1962 pela primeira vez o cinema brasileiro lançará mais de 40 filmes no mercado VIANY 1999 p 22 Ainda de acordo com Viany dentre esses 40 filmes seis eram chanchadas e melodramas dezesseis representavam a nova fase do cinema nacional e ao menos sete estavam direta ou indiretamente envolvidos com a ideia do Cinema Novo entre eles O Pagador de Promessas Não podemos perder de vista que esse novo modo de fazer cinema tinha como objetivo se comprometer com a estética e a política mostrando assim a cara do Brasil nas telas a exemplo de Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos e Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha 33 Na visão de Alex Viany em O processo do cinema novo o filme O Pagador de Promessas é um caso fronteiriço entre o velho e o novo cinema ou seja ainda que evidenciasse características do Cinema Novo esse filme ainda apresentava alguns macetes rançosos que relembravam os tempos da produção hollywoodiana Vera Cruz VIANY 1999 p 180181 Entretanto nem sempre Viany pensou assim a respeito da citada produção Afinal como confirma Luiz Carlos Merten o Cinema Novo surgiu quando no Itamaraty o filme de Anselmo Duarte foi escolhido para representar o Brasil no Festival de Cannes Para Viany O Pagador de Promessas e Os Cafajestes marcavam o nascimento do novo cinema brasileiro pois na passagem para a década de 60 acontecia um novo surto de produções nordestinas ou filmadas na região delineando mais nitidamente alguns elementos formadores do Cinema Novo5 como a crítica social e política mais explícita principalmente expressa nos filmes do chamado ciclo baiano destacandose Redenção A Grande Feira Bahia de Todos os Santos O Pagador de Promessas e Barravento Estes filmes mesmo sendo idealizados de maneira tradicional apresentavam temas e posicionamentos cada vez mais engajados Em um ou outro sentido cada um deles procurava questionar as instituições arraigadas quer no campo comportamental quer no campo da cidadania Efetivavase assim uma luta contra a alienação do povo e estimulavase a sua tomada de consciência enquanto ser político O enquadramento destas propostas inclusive se tornaria o divisor de águas entre os que prosseguiriam em uma linha dita mais conservadora buscando apelar à boa consciência do público através de uma manipulação emocional da narrativa O Pagador de Promessas de Anselmo Duarte e aqueles que se lançariam à uma crítica da postura passiva do espectador implodindo alguns dos cânones do bom filme o Barravento de Glauber Rocha6 Para Fernão Ramos Anselmo Duarte aproveitou em O Pagador de Promessas a moda dos cenários nordestinos vigente no cinema nacional àquela época mantendo poucos vínculos com a produção baiana restante Segundo Ramos O Pagador foi confundido com o Cinema Novo visto a proximidade com a temática defendida pelos cinemanovistas 5 Um século do cinema brasileiro revista produzida pelo SESC Serviço Social do Comércio em comemoração aos cem anos do cinema nacional com o objetivo de resgatar a história da cinematografia brasileira Sl sn 19 6 Um século do cinema brasileiro revista produzida pelo SESC Serviço Social do Comércio em comemoração aos cem anos do cinema nacional com o objetivo de resgatar a história da cinematografia brasileira Sl sn 19 34 Anselmo fazia parte da velha guarda oriunda da chanchada e da Vera Cruz e nunca se deu muito bem com os meninos do jovem cinema Em O PAGADOR DE PROMESSAS apresenta toda uma temática próxima ao Cinema Novo mostrando além do universo ficcional carregado de brasilidade a questão da opressão e sofrimento popular Um camponês teima em sua inocência em cumprir numa igreja promessa feita em terreiro de umbanda O padre se recusa a abrir as portas do templo sagrado e o camponês acampa nas escadarias onde se inicia intensa movimentação de tipos e personagens que constroem o miolo do filme Apesar do mesmo núcleo temático e de personagens e universo ficcional próximos a distância com relação ao Cinema Novo se estabelece ao abordarmos a forma narrativa através da qual este conteúdo é disposto na seqüência de planos RAMOS 1987 p 340341 O fato é que ganhando inúmeros prêmios em importantes festivais do universo cinematográfico O Pagador de Promessas passou a ser visto como representante do novo cinema brasileiro e na tentativa de refrear todo esse entusiasmo críticos e diretores do Cinema Novo que antes faziam elogios a O Pagador reagiram de forma negativa ao sucesso do filme Anselmo Duarte não fazia parte do grupo cinemanovista nem surgira dentro do movimento entretanto percebeuse o risco de o citado diretor tornarse o líder do Cinema Novo Era preciso dar um basta e foi o que a turma do Cinema Novo fez A abordagem da realidade nacional a visão dos excluídos e da cultura popular tudo aproximava O Pagador da estética da fome defendida pelos cinenovistas Mas a produção da Cinedistri uma empresa comercial era de perfil oposto às do Cinema Novo E depois se o movimento tinha um líder ou profeta esse era Glauber Rocha e não um exgalã como Anselmo Duarte MERTEN 2004 p 21 Por outro lado Luiz Carlos Merten nos faz pensar que o próprio Anselmo Duarte tenha contribuído para a sua difícil relação com o Cinema Novo já que acusava esse movimento de colaborar para a perda de qualidade do cinema nacional não reconhecendo embora possam ser feitas inúmeras críticas ao Cinema Novo o importante papel desta corrente na história da arte cinematográfica no Brasil Apesar de todo esse conflito entre Anselmo e os cinemanovistas a respeito de sua obra mais importante para o veterano Alinor Azevedo o filme O Pagador de Promessas abre as portas de um verdadeiro cinema do Brasil mostrando eou resolvendo problemas aparentemente sem solução como 35 1 O filme sério não é comercial diziam os apóstolos da chanchada Mas apesar de seu tema complexo cheio de subentendidos e sutilezas O pagador de promessas é acessível em vários níveis tendo mensagens correlatas que serão facilmente apreendidas por quaisquer platéias E assim está fadado a um enorme sucesso de bilheteria é de fato aquilo que muitas vezes se anunciou e não se fez um filme brasileiro para o mundo 2 Não há cineastas no Brasil gozavam os snobs Mas justamente quem se revela um diretor de importância internacional é Anselmo Duarte exgalã que na Atlântida como na Vera Cruz nunca perdeu uma oportunidade de trabalhar nas salas de corte e em todos os departamentos técnicos O pagador de promessas é um filme cheio de problemas técnicos e artísticos cenas de multidão transformação de peça teatral em cinema muitas personagens marcantes muitos motivos entrecruzados etc que o diretor Anselmo Duarte resolve com extraordinária segurança e perspicácia 3 Não há elencos no Brasil denunciavam os basbaques Pois O pagador de promessas tem um elenco a funcionar em conjunto se bem que este ou aquele se destaque com Leonardo Vilar em primeiríssimo plano E o trio central de Os cafajestes nada fica a dever com Norma Benguel inesperadamente subindo às alturas de uma Jeanne Moreau 4 A língua portuguesa não se adapta ao cinema apregoavam os colonos Mas O pagador de promessas como aliás Os cafajestes acaba de vez com essa lenda dandonos uma dialogação legítima em sua força popular 5 Os filmes brasileiros devem procurar os temas universaisaconselhavam os alienados propondo uma temática sueca a la Bergman ou italiana a la Fellini Mas O pagador de promessas demonstra uma verdade há muito conhecida dos revolucionários de teatro e do cinema do Brasil quanto mais brasileiro o tema mais universal ele é Não é por acaso que O pagador de promessas reúne um diretor paulista exgalã da Atlântida e da Vera Cruz com um escritor baiano tarimbado em rádioteatro e um ator paulista do TBC O filme afinal é o resultado de uma experiência coletiva de muita gente de muitos de erros tanto no teatro como no rádio e no cinema Chegou a hora da soma e somando tudo temos sem desprezo pelos exercícios e tentativas do passado o que deve ser visto e analisando como o Opus 1 do Cinema Novo AZEVEDO apud VIANY 1999 p 30 31 Com base nessa fala de Alinor Azevedo fica evidente toda a importância do filme O Pagador de Promessas Esta produção não só sinaliza o início de um novo movimento do cinema nacional como coloca abaixo várias ideias antes defendidas por profissionais de cinema da época Porém para Glauber Rocha O Pagador de Promessas é um filme de envergadura mas não tanto a ponto de ser visto de maneira mais positiva que seus concorrentes Buñuel O Anjo Exterminador Bresson O Processo de Joana dArc ou Cacoyannis Electra entre outros Segundo Rocha O 36 pagador de promessas na Europa venceu a par de seus defeitos pelas características de espetáculo que apresentava superiores e mais sadias do que os filmes históricos italianos e americanos 2003 p 172 Todavia o crítico não deixa de reconhecer que em O Pagador Anselmo Duarte mostrou ter o senso do ritmo popular cujas fontes estão na gramática americana do gangster e do western o manejo dos instrumentos de trabalho é estabelecido e executando rigorosamente um roteiro detalhado transcreveu facilmente em imagens a estória polêmica de Dias Gomes O grande final com o povo levando Zé do Burro crucificado aos pés do altar arrebentou aplausos levantou o prêmio o fecho de ouro a apoteose contaminante é infalível ROCHA 2003 p 163164 A adaptação cinematográfica do drama de Zé do Burro foi escolhida por um colegiado de críticos e historiadores de cinema do Brasil em 1998 como um dos 30 melhores filmes da história de nosso cinema Conforme diz Luiz Carlos Merten 2004 p 20 O Pagador de Promessas baseado no texto de Dias Gomes mas de forma desteatralizada trata do embate entre a fé ingênua do povo e a fé institucionalizada da Igreja Poucos filmes no Brasil e no mundo bateram com tanta força nessa idéia da Igreja como uma instituição contrária ao homem Não precisamos refletir muito para perceber e concordar com os críticos de cinema aqui citados quanto ao grande salto dado por Anselmo Duarte entre a direção de Absolutamente Certo e O Pagador de Promessas É preciso levar em consideração que Anselmo Duarte teve em Absolutamente Certo sua primeira oportunidade na direção de um longametragem assim justificando com sua falta de experiência a simplicidade da trama e de toda a técnica cinematográfica Referimonos mais profundamente apenas a essas duas obras porque são as produções de Anselmo Duarte mais comentadas pela crítica Contudo é importante dizer que Anselmo dirigiu dentre uma diversidade de trabalhos cinematográficos outros filmes de destaque a exemplo de Vereda de Salvação produzido em 1964 e baseado em uma obra de Jorge Amado Quelé do Pajeú primeiro filme brasileiro em 70mm7 realizado no fim da década de 60 e Um Certo Capitão Rodrigo superprodução dos anos 70 obras que podem ser consideradas de grande valor dentro da história do cinema nacional 7 De acordo com Chris Rodrigues 2005 p15 as películas de 70mm foram utilizadas durante algum tempo no Brasil mas atualmente sua aplicação restringese às superproduções visto que as películas de 35mm são as mais utilizadas no mundo inteiro pelos profissionais do cinema 37 Apesar de tantas críticas na maioria das vezes negativas ao seu trabalho as importantes contribuições e trilhas deixadas por Anselmo Duarte são reconhecidas por profissionais e apaixonados pela sétima arte Todavia embora o conhecimento técnico do citado diretor tenha implicações diretas na qualidade das obras por ele produzidas o objetivo de nossa pesquisa é observar e analisar como Anselmo Duarte utiliza os recursos característicos da linguagem cinematográfica na construção da ação fílmica podendo através de seu discurso autoral amplificar transformar nuançar ou intensificar a dramaticidade e a tragicidade da adaptação fílmica do texto dramático original Por isso mesmo antes da investigação sobre o próprio universo fílmico será fundamental iniciarmos uma viagem pelas teorias do drama conhecendo as categorias dramáticas que nos servirão de base em nossas leituras tanto do texto dramático quanto do texto fílmico 38 CAPÍTULO II Fundamentos do Drama Trágico A visão dos espectadores costuma ser melhor que a dos protagonistas Provérbio Chinês 1 A Poética Grecolatina fundamentos do drama clássico Mesmo com a diversidade de estudos sobre o gênero dramático não se pode perder de vista que a maioria deles toma como ponto de partida a Poética de Aristóteles Esta obra apreciada como o primeiro tratado sobre a arte imitativa é leitura básica para os interessados no estudo da dramaturgia Embora os escritos de Aristóteles na Poética não sejam regras a serem seguidas no teatro e apesar de todo o desenvolvimento do drama desde sua origem até os nossos dias é possível discernir na estrutura de determinadas obras a atualização de conceitos formulados por Aristóteles A pertinência das formulações aristotélicas em relação às estratégias dramáticas que consubstanciaram os mais célebres textos das tragédias gregas e a tradição nelas inspiradas acabou por definir esse próprio cânone dramático como a tradição aristotélica Mesmo depois que a tragédia clássica cedeu às pressões do mundo moderno essa tradição aristotélica ainda se deixa transparecer no chamado drama social É o caso do texto teatral O Pagador de Promessas obra escolhida como corpus desta pesquisa um drama social cuja estrutura se molda com base em elementos característicos das antigas tragédias o que o permite ser apreendido num arcabouço teórico inspirado nessa tradição A Poética apresentase então como ponto de partida para nossas reflexões sobre os fundamentos da tragédia clássica A tragédia um dos gêneros imitativos observados por Aristóteles é definida como imitação de uma ação de caráter elevado completa e de certa extensão em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamento distribuídas pelas diversas partes do drama imitação que se efetua não por narrativa mas mediante atores e que suscitando o terror e a piedade tem por efeito a purificação dessas emoções ARISTÓTELES 1993 p37 39 Dentre as seis partes constituintes da tragédia mito ação caracteres elocução pensamento espetáculo cênico e canto melopéia Aristóteles enxerga a ação como o componente mais importante pois é através dela que se organizam e se estruturam os fatos a serem imitados O elemento mais importante é a trama dos fatos pois a Tragédia não é imitação de homens mas de ações e de vida de felicidade e infelicidade mas felicidade ou infelicidade reside na ação e a própria finalidade da vida é uma ação não uma qualidade ARISTÓTELES 1993 p41 Segundo Alfredo Leme Coelho de Carvalho 1998 p 49 Aristóteles se refere aos fatos não como teriam ocorrido ou poderiam ocorrer ou se diz que tivessem ocorrido mas sim à sua organização à estrutura que lhes dá o autor à sua composição ao poiéin à factura mimética Basicamente a ação se caracteriza pela extensão e unidade Quando fala sobre a extensão de uma ação trágica Aristóteles diz que a tragédia imita uma ação completa formando um todo com certa expansão pois de acordo com ele existe um todo não dotado de extensão De maneira muito didática o filósofo explica o todo como aquilo que possui início meio e fim Todo é aquilo que tem princípio meio e fim Princípio é o que não contém em si mesmo o que quer que siga necessariamente outra coisa e que pelo contrário tem depois de si algo com que está ou estará necessariamente unido Fim ao invés é o que naturalmente sucede a outra coisa por necessidade ou porque assim acontece na maioria dos casos e que depois de si nada tem Meio é o que está depois de alguma coisa e tem outra depois de si É necessário portanto que os Mitos bem compostos não comecem nem terminem ao acaso mas que se conformem aos mencionados princípios ARISTÓTELES 1993 p 47 Usando exemplos de extensão e ordem das partes Aristóteles esclarece que a tragédia não deve ser curta demais pois deste modo não prenderia a atenção do público como também não deve ser demasiadamente longa porque assim não se fixaria na memória da plateia Logo o ideal é a duração de um texto trágico com extensão suficiente para o verossímil desenvolvimento dos acontecimentos de acordo com as leis de causalidade e necessidade mudando em infortúnio a felicidade do protagonista do texto ou pelo contrário fazendoo passar do infortúnio para a felicidade Como diz 40 Sandra Luna 2005 p 239 a ação deve ser longa o suficiente para que se dê a mudança de fortuna mas suficientemente curta para ser apreendida como um todo artístico Iniciar o drama em um determinado ponto já próximo à calamidade contribui para a redução da extensão da obra adequandoa ao tamanho ideal proposto por Aristóteles Quando o autor escolhe iniciar sua tragédia in medias res ele está dando início à trama de um modo estratégico em meio a eventos importantes da ação estratégia favorecedora da intensificação da tragicidade da obra não apenas pela condensação de efeitos que esse início estratégico propicia mas também devido à impossibilidade de que sejam revertidos os fatos anteriores à ação efetivamente dramatizada ao ponto dos acontecimentos que embora ocorridos no passado deflagram a catástrofe afinal como diz F L Lucas o pretérito é realmente o mais trágico dos tempos Se foi feliz não é mais se foi desastroso não pode ser desfeito LUCAS apud LUNA 2005 p 242 No capítulo V da Poética Aristóteles faz menção à unidade de tempo observando que a Tragédia procura o mais que é possível caber dentro de um período do sol ou pouco excedêlo ARISTÓTELES 1993 p 35 Segundo Sandra Luna essa limitação de tempo parece referirse ao tempo da ação dramatizada sugerindo que os incidentes que se desenrolam diante de nossos olhos dêem a impressão de terem ocorrido em um período de sol LUNA 2005 p 251 ainda sendo possível observar no drama mais duas instâncias temporais o tempo do espetáculo período do qual o autor dispõe para a encenação de sua obra e o tempo da narrativa mítica cujos fatos podem ter decorrido em vários anos mesmo não encenados tendo a possibilidade de serem recuperados através de falas das personagens ou do coro O início in media res seria um recurso para burlar também as limitações de espaço permitindo que toda a encenação ocorra em um único cenário Considerese que na espacialidade característica do teatro grego as limitações das condições cênicas eram determinantes à estrutura do próprio gênero dramático como explica Aristóteles Na Tragédia não é possível representar muitas partes da ação que se desenvolvem no mesmo tempo mas tãosomente aquela que na cena se desenrola entre os atores mas na Epopéia porque narrativa muitas ações contemporâneas podem ser apresentadas ações que sendo conexas com a principal virão acrescer a majestade da poesia ARISTÓTELES 1993 p 127 41 Aristóteles referese à concentração de tempo e lugar porém recorta com insistência ainda maior a unidade de ação questão por ele considerada fundamental para a estrutura de uma tragédia perfeita Não é correto pensar que a unidade de ação se dá simplesmente pela presença de um único protagonista criada através de um conjunto de ações cometidas por apenas um agente Essa unidade explica Aristóteles surge do atrelamento das partes formadoras da ação arriscando estremecer ou modificar a integração criada se uma dessas partes for separada das outras Por conseguinte tal como é necessário que nas demais artes miméticas una seja a imitação quando o seja de um objeto uno assim também o Mito porque é imitação de ações deve imitar as que sejam unas e completas e todos os acontecimentos se devem suceder em conexão tal que uma vez suprimido ou deslocado um deles também se confunda ou mude a ordem do todo Pois não faz parte de um todo o que quer seja quer não seja não altera esse todo ARISTÓTELES 1993 p 53 Para entendermos melhor a ideia de unidade de ação proposta por Aristóteles vejamos o que mais ele diz a esse respeito Uno é o Mito mas não por se referir a uma só pessoa como crêem alguns pois há muitos acontecimentos e infinitamente vários respeitantes a um só indivíduo entre os quais não é possível estabelecer unidade alguma Muitas são as ações que uma pessoa pode praticar mas nem por isso elas constituem uma ação una Assim parece que tenham errado todos os poetas que compuseram uma Heracleida ou uma Teseida ou outros poemas que tais por entenderem que sendo Héracles um só todas as ações haviam de constituir uma unidade Porém Homero assim como se distingue em tudo o mais também parece ter visto bem fosse por arte ou por engenho natural pois ao compor a Odisséia não poetou todos os sucessos da vida de Ulisses por exemplo o ter sido ferido no Parnaso e o simularse louco no momento em que se reuniu o exército Porque de haver acontecido uma dessas coisas não se seguia necessária e verossimilmente que a outra houvesse de acontecer mas compôs em torno de uma ação una a Odisséia una no sentido que damos a esta palavra e de modo semelhante a Ilíada ARISTÓTELES 1993 p 51 Com base nos exemplos citados o filósofo explicita sua concepção de unidade de ação insistindo em como esta é essencial para a feitura de uma tragédia perfeita Luna explica que embora uma obra tenha vários episódios estes se agrupam em uma sequência movida por um eixo condutor uma ação central LUNA 2005 p 241 como ocorre com a Odisséia cujo eixo fundamental é o retorno de Ulisses os episódios 42 sendo todos os obstáculos enfrentados pelo herói Assim para garantir a unidade de ação Aristóteles recomenda ao poeta primeiramente a constituição do esboço do eixo central de sua obra para só depois fazer a inclusão dos episódios alcançando a devida extensão Contudo diferentemente do ocorrido na epopéia os episódios incluídos na tragédia serão mais compactos devido às limitações temporais impostas ao gênero dramático LUNA 2005 p 242 Aristóteles no capítulo XIII da Poética indica os caminhos a serem seguidos pelos poetas na construção das ações as escolhas a serem evitadas e os meios a serem utilizados Para começar o filósofo orienta que a melhor tragédia é aquela cuja ação não é simples e sim complexa fazendo uso dos elementos que despertam os sentimentos de temor e piedade objetivo último da tragédia Vejamos a definição de ação simples e complexa formulada por Aristóteles Chamo ação simples aquela que sendo una e coerente do modo acima determinado efetua a mutação de fortuna sem Peripécia ou Reconhecimento ação complexa denomino aquela em que a mudança se faz pelo Reconhecimento ou pela Peripécia ou por ambos conjuntamente ARISTÓTELES 1993 p 59 A ação simples representa apenas o pathos pois os elementos causadores da mudança de fortuna da personagem já teriam acontecido antes do início da ação representada Isto é a plateia não testemunha as causas que levam os sujeitos ao sofrimento diferentemente da ação complexa na qual a mudança de fortuna ocorre diante dos olhos do público Na ação complexa a trajetória em direção à catástrofe ou parte desta como diz Sandra Luna é construída em cena seja através de uma peripeteia peripécia ou de uma anagnorisis reconhecimento sendo mais efetiva contudo a ação complexa na qual a anagnorisis coincide com a peripeteia LUNA 2005 p 255 A peripécia é a mudança de fortuna para a infelicidade ou o inverso ocorrendo sempre em conformidade com o necessário e o verossímil É uma reviravolta uma inversão da situação encenada como acontece em Édipo Rei quando o mensageiro que viera no propósito de tranqüilizar o rei e de libertálo do terror que sentia nas suas relações com a mãe descobrindo quem ele era causou o efeito contrário ARISTÓTELES 1993 p 61 Compreendese a peripécia como um recurso dramático amplificador do efeito trágico que surgindo inesperadamente causa surpresa na plateia O reconhecimento ou anagnorisis é o conhecimento de algo antes ignorado é outro artifício dramático determinante da mudança de sorte das personagens Segundo 43 Aristóteles 1993 p 61 o Reconhecimento como indica o próprio significado da palavra é a passagem do ignorar ao conhecer que se faz para amizade ou inimizade das personagens que estão destinados para a dita ou para a desdita Na visão de Aristóteles a mais bela anagnorisis ocorre concomitantemente à peripeteia Todavia estes elementos reconhecimento e peripécia devem fazer parte da construção da ação de forma que venham a resultar dos sucessos antecedentes ou necessária ou verossimilmente Porque é muito diverso acontecer uma coisa por causa de outra ou acontecer meramente depois de outra ARISTÓTELES 1993 p 5961 Ainda no capítulo XIII no qual Aristóteles indica aos argumentistas o caminho a ser tomado para o alcance dos efeitos trágicos o estagirita esclarece que para despertar os sentimentos de temor e piedade não é preciso abusar do infortúnio levando pessoas de bem da felicidade para a infelicidade pois tal acontecimento não agrada nem tampouco causa os sentimentos citados e próprios da tragédia Em relação aos homens maus que passam do delito à felicidade além de tornarse completamente oposto ao trágico por não inspirar nem temor nem piedade ainda causa revolta no público Como a composição das Tragédias mais belas não é simples mas complexa e além disso deve imitar casos que suscitam o terror e a piedade porque tal é o próprio fim desta imitação evidentemente se segue que não devem ser representados nem homens muito bons que passem da boa para a má fortuna caso que não suscita terror nem piedade mas repugnância nem homens muito maus que passem da má para a boa fortuna pois não há coisa menos trágica faltandolhe todos os requisitos para tal efeito não é conforme aos sentimentos humanos nem desperta terror ou piedade O Mito também não deve representar um malvado que se precipite da felicidade para a infelicidade Se é certo que semelhante situação satisfaz os sentimentos de humanidade também é certo que não provoca terror nem piedade porque a piedade tem lugar a respeito do que é infeliz sem o merecer e o terror a respeito do nosso semelhante desditoso pelo que neste caso o que acontece não parecerá terrível nem digno de compaixão ARISTÓTELES 1993 p 67 Diante do exposto Aristóteles aponta em seguida uma situação intermediária capaz de produzir idealmente o efeito trágico constituindo papel importante na feitura da tragédia Resta portanto a situação intermediária É a do homem que não se distingue muito pela virtude e pela justiça se cai no infortúnio tal acontece não porque seja vil e malvado mas por força de algum erro e esse homem há de ser algum daqueles que gozam de grande 44 reputação e fortuna como Édipo e Tiestes ou outros insignes representantes de famílias ilustres ARISTÓTELES 1993 p 69 Aristóteles trata neste trecho da hamartia ou erro trágico Em uma tragédia perfeita idealizada pelo estagirita este seria um erro involuntário cujas conseqüências perniciosas são entendidas como imerecidas favorecendo assim o despertar da compaixão A tragédia mostra um agente causador da catástrofe que mesmo errando involuntariamente chama a si a responsabilidade ou culpa pelo acontecido muito embora a catástrofe não possua caráter punitivo mas seja conseqüência do erro praticado Ou seja a hamartia engendra um ato nocivo prejudicial embora cometido por ignorância por não estar o agente atento a alguma circunstância crucial o instrumento o objeto o efeito da ação etc Neste sentido como diz Aristóteles a catástrofe não seria uma punição por um comportamento vil mas simplesmente o resultado de uma ação maléfica porém involuntária que se revelaria trágica LUNA 2005 p 267 Mesmo se não for atribuída culpa moral ao sujeito causador da hamartia ainda assim esse erro cometido acarretará terríveis conseqüências Dessa forma Sandra Luna chama atenção para dois elementos recorrentes na estruturação das tragédias gregas que não são tratados por Aristóteles em sua Poética mas estão relacionados com a hamartia São estes elementos a até e a hybris A até pode ser entendida como uma força superior ao homem uma maldição que o faz agir erroneamente Associada à hamartia a até por interferência divina torna o herói cego levandoo a cometer um erro causador de sua própria ruína e de outros sujeitos LUNA 2005 p 313 A hybris por outro lado é um traço característico do herói pois se trata de um comportamento excessivo aproximado da soberba uma arrogância que ultrapassa os limites do lícito e que responde em certo sentido pela responsabilidade do herói sobre a catástrofe que o abate LUNA 2005 p 314 De acordo com o teórico Albin Lesky a hybris representa a contribuição do próprio homem para a fatalidade rejeitando assim a ideia de que os deuses castigam de maneira indiscriminada visando arruinar por acaso a vida de inocentes Melhor dizendo para Lesky eventos catastróficos resultam igualmente do deus e do homem pois a ardente vontade do homem topa com uma grande ordem apoiada no divino que lhe mostra seus limites e faz com que sua queda se torne significativamente um 45 testemunho dessa ordem LESKY 1976 p 88 Por sua vez Sandra Luna ressalta que nem sempre as relações entre hamartia até eou hybris são previsíveis quando estes conceitos se associam em determinadas tragédias Algumas vezes por exemplo é a hybris do herói que desencadeia a até sobre ele e sobre os seus descendentes criando oportunidades para a hamartia que por sua vez reforçaria a até com relação às gerações vindouras outras vezes a até já pesa sobre o herói e a hybris parece ser apenas uma forma de justificar a responsabilidade do herói sobre sua hamartia LUNA 2005 p 315 De todo modo a hamartia é assim vista como uma estratégia eficazmente dramática na construção de uma tragédia bem elaborada O erro funciona como elemento desencadeador da peripécia causando a mudança de fortuna impulsionando a ação até a catástrofe O erro involuntário sugere a intervenção da fatalidade do destino das maldições portanto do imprevisto do imerecido LUNA 2005 p 278 dessa maneira as tragédias nas quais se expressa o sofrimento não dos culpados mas dos que o destino ou as circunstâncias tornam culpados parecem mais trágicas despertando a compaixão Porém este sentimento vai depender ainda de certo grau de identificação entre aquele que sofre e aquele que testemunha o sofrimento Essa identificação acontece quando a testemunha do sofrimento reconhece naquela situação ou em outra semelhante a possibilidade de sofrer o mesmo mal Luna amplia os limites dessa proposição ao ilustrar que a compaixão é experimentada quando testemunhamos a impassibilidade da situação humana diante de males imerecidos desde que haja entre nós e este sujeito que sofre alguma identificação algum traço que favoreça a empatia LUNA 2005 p 225 Nesse ponto voltamos a Albin Lesky em cuja obra A tragédia grega enumera três pontos para a obtenção do efeito trágico o despertar do temor e da piedade O primeiro requisito faz referência à noção aristotélica da ação como alma da tragédia significando dizer nas palavras do próprio Lesky que a simples descrição de um estado de miséria necessidade e abjeção pode comovernos profundamente e atingir nossa consciência com muito apelo mas o trágico ainda assim não tem lugar aqui LESKY 1976 p 26 O segundo ponto essencial à produção do efeito trágico está relacionado à aproximação entre o público e o fato representado É preciso considerar a possibilidade de relação com o nosso próprio mundo O caso deve nos interessar afetar e comover porque de acordo com o teórico somente experimentamos 46 verdadeiramente o trágico quando temos a sensação do Nostra res agitur quando nos sentimos atingidos nas profundas camadas de nosso ser LESKY 1976 p 2627 Este requisito apontado por Lesky não foi esquecido por Aristóteles o qual já em sua Poética propunha a construção de personagens modelados para comover o público através da semelhança e empatia Por fim o terceiro ponto indicado por Lesky diz respeito ao agente trágico que precisa ser consciente de seu sofrimento reconhecendo suas causas e aceitandoo como se fosse uma prestação de contas Segundo Albin Lesky 1976 p 27 o sujeito da ação trágica o que está enredado num conflito insolúvel deve ter elevado a sua consciência tudo isso e sofrer tudo conscientemente Onde uma vítima sem vontade é conduzida surda e muda ao matadouro não há impacto trágico Diante dessas reflexões Sandra Luna 2005 p 365 entende esta última proposição de Lesky como estando relacionada a um reconhecimento próximo à essência da anagnorisis aristotélica Logo a tragédia tem por finalidade suscitar o temor e a piedade e embora estes sentimentos possam surgir do espetáculo cênico é preferível que tais emoções sejam despertadas pelo ajustamento dos fatos Desse modo independentemente do espetáculo visto a ação precisa ser composta para produzir medo e compaixão a partir da própria trama pois conforme explica Aristóteles em sua Poética os autores que procuram sugerir pelo espetáculo não o tremendo mas o monstruoso esses nada produzem de trágico porque da Tragédia não há que extrair toda a espécie de prazeres mas tãosó o que lhe é próprio ARISTÓTELES 1993 p 73 Pensando na necessidade de provocar no espectador o temor e a piedade através da imitação Aristóteles cita os fatos para ele capazes de assombrar ou inspirar pena considerando que se as coisas se passam entre inimigos não há que compadecernos nem pelas ações nem pelas intenções deles a não ser pelo aspecto lutuoso dos acontecimentos e assim também entre estranhos Mas se as ações catastróficas sucederem entre amigos como por exemplo o irmão que mata ou esteja em vias de matar o irmão ou um filho o pai ou a mãe um filho ou um filho a mãe ou quando aconteçam outras coisas que tais eis os casos a discutir ARISTÓTELES 1993 p 73 A tragédia ao imitar ações graves desperta temor e piedade operando a catarse dessas emoções Embora alguns tradutores utilizem para falar do efeito trágico as palavras purgação ou purificação Carvalho sugere a manutenção do termo catarse devido à proximidade com a palavra original grega katharsis Essa proposta é 47 na verdade uma maneira de evitar posturas interpretativas do significado da expressão grega que por um lado servia como termo médico referindose à idéia de purgação eliminação por exemplo no tocante ao uso de laxativos ou eméticos por outro lado a palavra katharsis era empregada no contexto religioso com o sentido de purificação LUNA 2005 p 214 Entretanto mesmo interpretada a catarse ora como purgação ora como purificação compreendese que a tragédia tem como efeito catártico o alívio e a tranquilização das emoções temor e piedade despertados pelo drama Para produzir a catarse o efeito trágico não se pode esquecer a caracterização de personagens Embora o estagirita trate insistentemente da ação como ponto mais importante da tragédia Aristóteles não esquece de fazer referência à relação entre ação e caráter Ora os homens possuem tal ou tal qualidade conformemente ao caráter mas são bem ou malaventurados pelas ações que praticam Daqui se segue que na Tragédia não agem as personagens para imitar caracteres mas assumem caracteres para efetuar certas ações por isso as ações e o Mito constituem a finalidade da Tragédia e a finalidade é de tudo o que mais importa ARISTÓTELES 1993 p 41 Neste trecho da Poética Aristóteles chama atenção para a questão da caracterização de personagens É preciso realçar o caráter e o pensamento como elementos determinantes da maneira de agir de uma figura dramática e por isso mesmo Aristóteles nos diz que os atos cometidos já apresentam o caráter da personagem sendo seu modo de agir resultado da forma de ser e pensar Diante disso fica claro porque Aristóteles afirma que sem ação não poderia haver Tragédia mas poderia havêla sem caracteres ARISTÓTELES 1993 p 41 Como sugere Luna não se deve confundir caráter com agente pois o estagirita diz ser possível produzir a tragédia sem muito investimento na caracterização das personagens pois mesmo sendo as ações determinadas pelos caracteres estes podem ser conhecidos através das ações No contexto da Poética segundo Luna o caráter ethos somente se torna uma categoria explicitamente dramática quando o personagem revela escolhas morais Isso quer dizer que só quando as ações ou os discursos demonstram explicitamente escolhas morais livrearbítrio o caráter se define De outra forma quando o personagem simplesmente age sem demonstrar ponderação sobre o seu ato não se pode falar de ethos já que este não se revelou explicitamente LUNA 2005 p 237 48 No capítulo XV da Poética são anunciadas quatro qualidades importantes no processo da caracterização de personagens em uma tragédia considerada perfeita Os caracteres devem ser bons adequados semelhantes e coerentes No respeitante a caracteres a quatro pontos importa visar Primeiro e mais importante é que devem eles ser bons E se como dissemos há caráter quando as palavras e as ações derem a conhecer alguma propensão se esta for boa é bom o caráter Tal bondade é possível em toda categoria de pessoas com efeito há uma bondade de mulher e uma bondade de escravo se bem que o caráter de mulher seja inferior e o de escravos genericamente insignificante Segunda qualidade do caráter é a conveniência há um caráter de virilidade mas não convém à mulher ser viril ou terrível Terceira é a semelhança qualidade distinta da bondade e da conveniência tal como foram explicadas E quarta é a coerência ainda que a personagem a representar não seja coerente nas suas ações é necessário todavia que no drama ela seja incoerente coerentemente ARISTÓTELES 1993 p 7779 Diz Aristóteles no capítulo II da Poética que na tragédia os homens são imitados melhores do que geralmente o são Baseandose nessa passagem e na afirmação de os caracteres deverem ser bons há uma propensão da crítica a ver nessa afirmativa uma alusão ao grau de excelência dos personagens sem que essa menção de bondade seja interpretada sob perspectivas estritamente moralizantes no trecho acima transcrito O personagem trágico seria portanto construído em relação a parâmetros de elevação dignidade excelência nobreza que o alça acima dos homens comuns O segundo ponto é a conveniência isto é o caráter deve estar em conformidade à classe de pessoas representadas Ao usar a mulher como exemplo desta qualidade dos caracteres Aristóteles se refere ao que é geralmente esperado de um determinado tipo de personagem por exemplo traços típicos do homem como a coragem e o valor não seriam apropriados para uma figura feminina CARVALHO 1998 p 156157 Esta ideia nos leva à terceira questão importante na caracterização de personagens a semelhança que se acredita ser uma referência à verossimilhança Ou seja mesmo as tragédias representando os tradicionais mitos estes devem ser apresentados verossimilmente A quarta e última qualidade da caracterização é a coerência Para se tornarem convincentes Aristóteles só admite a incoerência de personagens se estes forem coerentemente incoerentes 49 Com base nos pontos levantados por Aristóteles sobre a caracterização de personagens Sandra Luna de forma muito clara vem nos dizer que Do ponto de vista da rentabilidade teórica dos conceitos propostos na Poética parecem mais produtivas as interpretações que convergem para enquadrar os caracteres em uma tragédia como sendo bons não no sentido ético ou moral mas sim dignificados retratados com um certo grau de excelência adequados moldados com propriedade em relação ao seu gênero ao seu status etc semelhantes verossímeis convincentes e coerentes LUNA 2005 p 288 Grifo da autora Encontrase ainda no capítulo XV da Poética exemplos de uso negativo destas qualidades modeladoras das personagens Exemplo de maldade de caráter desnecessária o Menelau do Orestes de impropriedade e inconveniência as lamentações de Ulisses na Cila e o discurso de Melanipa paradigma de caráter incoerente é a Ifigênia em Áulis porque a Ifigênia suplicante é muito diversa da Ifigênia que se mostra no fim ARISTÓTELES 1993 p 79 No trecho citado percebese a condenação por parte de Aristóteles respeitante ao exagero nas caracterizações de personagens podendo tornarse uma ostentação gratuita e inútil Logo assim como ocorre o entrosamento dos fatos na construção de uma ação na representação dos caracteres é também fundamental aterse à verossimilhança e à necessidade de maneira que as palavras e os atos de uma personagem de certo caráter devem justificarse por sua verossimilhança e necessidade tal como nos Mitos os sucessos de ação para ação ARISTÓTELES 1993 p 7981 Verossimilhança e lógica de causalidade são de grande importância para Aristóteles e obstinadamente apontadas por ele considerando ser objetivo da tragédia imitar episódios capazes de despertar o temor e a piedade episódios estes que nos assombram por parecerem possíveis de ocorrer a nós mesmos Recomendase ainda a não utilização do irracional no drama para evitar o risco de inverossimilhança pois levando em consideração as limitações impostas pela própria dimensão cênica do espetáculo dramático a verossimilhança pode ser ameaçada pelo irracional Todavia Aristóteles admite a possibilidade do impossível fazer parte da peça desde que este pareça provável de acontecer Na verdade para garantir a verossimilhança o estagirita diz ser na elaboração da trama preferível o impossível provável que o possível improvável 50 Com efeito na poesia é de preferir o impossível que persuade ao possível que não persuade Talvez seja impossível existirem homens quais Zêuxis os pintou esses porém correspondem ao melhor e o paradigma deve ser superado E depois a opinião comum também justifica o irracional além de que às vezes irracional parece o que o não é pois verossimilmente acontecem coisas que inverossímeis parecem ARISTÓTELES 1993 p 143 Estes foram os principais conceitos formulados por Aristóteles em sua Poética na antiga Grécia No entanto mesmo sendo as recomendações aristotélicas de pouca influência durante o período imediatamente seguinte ao da vida de Aristóteles na antiguidade latina um segundo tratado poético seria escrito por Horácio filósofo e poeta lírico Este tratado ao qual nos referimos intitulase Arte Poética e aponta para algumas questões semelhantes àquelas explicitadas na Poética aristotélica senão em seu formato certamente em seus conceitos fundamentais por exemplo no respeitante às noções de unidade de uma obra poética à adequação dos processos de verossimilhança caracterização e ação A unidade da obra poética é o ponto de partida do tratado horaciano Fazendo uso de um exemplo um tanto esdrúxulo em que se imagina um pintor construindo uma figura na qual nada se ajusta e que por isso arrancaria risos do espectador Horácio afirma que semelhante a este quadro seria uma obra literária construída sem unidade Embora certo da liberdade dos poetas para ousar na visão de Horácio esta licença concedida não deveria produzir obras cujas partes não se combinam Para Horácio acontece de os poetas obterem por vezes um resultado diferente do idealizado e ao buscarem livrarse de defeitos na construção de sua obra acabam sendo conduzidos a um vício devido à má composição do todo A maioria dos poetas ó pai e moços dignos do pai deixamonos enganar por uma aparência de perfeição Esfalfome por ser conciso e acabo obscuro este busca a leveza e faltamlhe nervos e fôlego aquele promete o sublime e sai empolado um excedese em cautelas com medo à tempestade e roja pelo chão outro recorre ao maravilhoso para dar variedade a matéria una e acaba pintando golfinhos no mato e javalis nas ondas HORÁCIO 1997 p 5556 Diante disso o filósofo aconselha aos poetas escolher temas cujo desenvolvimento esteja ao seu alcance pensando bem antes de decidir escrever sobre algo que não dominem Não se fala aqui de dominar apenas o assunto mas também o gênero literário É repugnante para Horácio a ideia de ver desenvolvido em versos 51 trágicos um tema cômico por exemplo Cada mote necessita ser adequado ao gênero que lhe cabe para assim alcançar o efeito desejado na plateia Não basta serem belos os poemas têm de ser emocionantes de conduzir os sentimentos do ouvinte aonde quiserem O rosto da gente como ri com quem ri assim se condói de quem chora se me queres ver chorar tens de sentir a dor primeiro tu só então meu Télefo ou Peleu me afligirão os teus infortúnios se declamares mal o teu papel ou dormirei ou desandarei a rir Se um semblante é triste quadram lhe as palavras sombrias se irado as carregadas de ameaças se chocarreiro as joviais se severo as graves A natureza moldanos primeiramente por dentro para todas as vicissitudes ela nos alegra ou impele à cólera ou prostra em terra agoniados ao peso da aflição depois é que interpreta pela linguagem as emoções da alma Se a fala da personagem destoar de sua boa ou má fortuna romperão em gargalhadas os romanos cavaleiros e peões HORÁCIO 1997 p 58 Seja a figura apresentada um rei um deus um velho um ardente moço na flor da juventude ou um cidadão comum de Tebas ou de qualquer outro lugar não importa o tipo de personagem apresentado na obra o fundamental é que suas falas e características sejam coerentes com a sua origem status social idade etc Se uma personagem da tradição for reelaborada devese manter a coerência em sua caracterização sem distanciála do mito original E quando uma personagem for criada o ideal é conservá la fiel a si mesma até o fim tal como surgiu no início É o caso de Aquiles e Medéia Mesmo sendo estes reeditados para Horácio é preciso que o primeiro continue impetuoso genioso inabalável e a segunda permaneça indomável e feroz Horácio nos dá a entender que a garantia da atenção da plateia até o fim de uma apresentação dramática é justamente pautada na coerência e na adequação das personagens aos tipos que estas representam e dá como exemplo a observação dos hábitos de cada idade considerando que mudanças de anos produzem aspectos distintos nos caracteres A começar pela criança que já possuindo a capacidade de andar e falar comumente anseia por brincar com crianças iguais a ela mas sem motivo aparente se irrita e de uma hora para outra já está calma novamente Quando adolescente agrada se com cavalos e cães reage às advertências com atrevimento é apaixonado e vaidoso Na fase adulta busca o prestígio e os amigos cativase das honrarias Na velhice gaba se do passado repreende e reprova os mais jovens queixase com impertinência Logo não se deve dar a um personagem moço características de um velho nem de um adulto a um menino pois cada um deve manter os traços típicos e convenientes a cada fase da vida Isto não só seria coerente como também verossímil Estas lições dadas pelos 52 autores clássicos acerca dos parâmetros para construção de personagens permanecerão no horizonte dos dramaturgos ocidentais Em sua obra O Pagador de Promessas Dias Gomes fará excelente aproveitamento de processos de caracterização que convergirão para representar através de figuras tipificadas estratos diversos da nossa realidade social De volta às recomendações da poética clássica podese dizer que assim como Aristóteles Horácio também se mostra preocupado com relação à estruturação do enredo chamando a atenção dos poetas para a positividade do início da ação in medias res Tampouco se deve começar como certo autor cíclico outrora Cantarei a sorte de Príamo e a guerra ilustre Que matéria nos dará esse prometedor digna de tamanha boca aberta Vai parir a montanha nascerá um ridículo camundongo Bem mais acertado andou este outro que nada planeja de modo inepto Falame Musa do herói que após a tomada de Tróia viu os costumes e cidades de muitos homens Ele não se propõe tirar fumaça dum clarão mas luz da fumaça a fim de nos exibir em seguida maravilhas deslumbrantes um Antífates e uma Cila uma Caribde além dum Ciclope Não inicia pela morte de Meléagro o regresso de Diomedes nem pelo par de ovos a guerra de Tróia avança sempre rápido para o desfecho e arrebata o ouvinte para o centro dos acontecimentos como se fossem estes já conhecidos abandona os passos que não espera possam brilhar graças ao tratamento e de tal forma nos ilude de tal modo mistura verdade e mentira que do começo não destoa o meio nem do meio o fim HORÁCIO 1997 p 59 Podendo ser representadas através de atores ou por narração as ações afirma Horácio quando apenas narradas causam menos emoção do que quando são encenadas ou melhor dizendo o espectador ao testemunhar as ações com seus próprios olhos tem um envolvimento emocional mais forte No entanto assim como Aristóteles Horácio condena a gratuidade de determinados excessos como por exemplo a encenação de atos violentos no palco Isto seria uma cena desnecessária e inconveniente devendo apenas ser relatada por outro personagem Não vá Medéia trucidar os filhos à vista do público nem o abominável Atreu cozer vísceras humanas nem se transmudará Procne em ave ou Cadmo em serpente diante de todos Descreio e abomino tudo que for mostrado assim HORÁCIO 1997 p 60 53 O autor da Arte Poética reforça o conselho de Aristóteles no respeitante à extensão da obra dramática Segundo Horácio uma peça não deve ultrapassar o quinto ato e também não devem ser usados recursos cênicos como a intervenção de deuses no desenlace das tramas clara referência ao deus ex machina artifício dramático também não recomendado por Aristóteles empregado no desfecho de algumas obras como forma de resolver a situação encenada de maneira inverossímil e artificial uma vez que este tipo de desenlace parece não resultar da própria composição da trama De acordo com o filósofo e poeta latino o bom senso é a fonte da arte de escrever A elaboração do texto poderia tomar por base os escritos socráticos quando indicam que uma vez obtidas as ideias e extraindo delas a matériaprima as palavras surgirão de maneira espontânea pois quem aprende os seus deveres com a pátria amigos familiares e hóspedes além de conhecer as obrigações de senadores juízes e generais não terá dificuldades em dar aos seus personagens as caracterizações convenientes Eu o aconselharei a como imitador ensinado observar o modelo da vida e dos caracteres e daí colher uma linguagem viva Uma peça abrilhantada pelas verdades gerais e pela correta descrição dos caracteres porém de nenhuma beleza sem peso nem arte por vezes deleita mais fortemente o público e o retém melhor do que versos pobres de assunto e bagatelas maviosas HORÁCIO 1997 p 64 Dando continuidade às suas proposições Horácio sugere aos poetas não se distanciarem da realidade quando suas ficções visarem o prazer nem esperem que se creia em tudo por eles inventado em suas fábulas E embora estes desejem ser proveitosos ou deleitar ou ainda ser ao mesmo tempo úteis e agradáveis suas expressões devem ser breves para serem facilmente recolhidas e guardadas Quando Horácio diz que as centúrias dos quarentões recusam as peças sem utilidade os Rammes passam adiante desdenhando as sensaborias Arrebata todos os sufrágios quem mistura o útil e o agradável deleitando e ao mesmo tempo instruindo o leitor HORÁCIO 1997 p 65 entendemos como uma indicação de que para conseguir atingir e agradar todo tipo de público é preciso obter o equilíbrio entre prazer e utilidade caso em que a obra ecoaria pelos séculos afora daí a célebre formulação horaciana segundo a qual a arte deveria ser pautada pelos objetivos últimos de deleitar e instruir Embora há muito se tenha contestado qualquer função moralizante à obra artística a doutrinação sendo estratégia que ameaça e rasura a dimensão estética 54 sobretudo no drama porquanto arte dos conflitos senão uma função moralizante certamente uma função crítica parece inseparável do próprio gênero que favorece apreciações sobre as relações entre os seres humanos e suas ações Através de sua Arte Poética Horácio traz importantes contribuições da teoria latina concernente à arte trágica Sabendo que ainda na antiguidade a Poética de Aristóteles havia deixado de circular percebemos através do texto horaciano que as ideias aristotélicas relativas ao universo dramático não se perderam completamente e permaneceram vivas servindo de fonte para os dramaturgos modernos Raymond Williams diz que a tragédia grega que vazou primeiramente para o mundo moderno através da tradição latina influenciou o drama trágico em vários períodos subseqüentes de seu desenvolvimento em todos os seus estágios de uma percepção geral à imitação consciente WILLIAMS 2002 p 35 Apesar das diversas mudanças operadas no teatro trágico ao longo dos séculos os efeitos caracterizadores da construção da tragédia clássica foram em grau significativo mantidos mesmo quando estas modificações deram origem a um subgênero conhecido como drama moderno considerado por alguns como legítimo herdeiro da antiga dramatização trágica 2 A Poética da modernidade da tragédia ao drama social De acordo com Peter Szondi 2001 p 29 o drama moderno surge no Renascimento representando unicamente através da reprodução de relações intersubjetivas a coragem e ousadia espiritual de um homem que após a decadente visão de mundo medieval voltase para si mesmo Nesse período histórico o prólogo o coro e o epílogo do antigo teatro clássico são abolidos e o diálogo tornase o elemento único da peça teatral Após a Idade Média período em que a arte teatral foi suprimida8 os renascentistas redescobrem os conceitos aristotélicos e horacianos referentes ao gênero 8 Na Idade Média a Igreja Católica passa a controlar a produção científica e cultural tornando os temas religiosos predominantes nas diversas formas de expressão artística No referente ao teatro a Igreja proíbe os textos escritos nos moldes pagãos daí o definhamento da arte trágica que sai totalmente de circulação no período medieval Todavia por volta do século X a Igreja Católica inaugura uma nova tradição teatral encenando dentro dos templos dramas litúrgicos que com o passar do tempo desdobraramse em outras formas teatrais como as moralidades Essas manifestações mais tarde iriam convergir para corporificar as troupes de atores que profissionalizandose ensejariam o início das 55 dramático aliandoos às tradições populares nascidas no teatro religioso ao fim da era medieval Nesse teatro da Renascença já secularizado permanece a fórmula clássica de tragédia com suas personagens elevadas linguagem rebuscada e conflitos encerrados em finais infelizes No entanto bobos da corte feiticeiras gente do povo enfim figuras que fazem parte do universo do teatro medieval cômico são acolhidas pela tragédia renascentista embora mantendose a distinção entre os gêneros trágicos e cômicos A partir do teatro trágico renascentista não há mais a presença dos deuses O fim desditoso dos homens resulta como diz Szondi das interrelações entre as personagens Os embates deixam de ser entre homens e forças metafísicas para dar lugar ao conflito de homens contra homens ou destes contra sua própria consciência Para Sandra Luna 2008 p 22 a ênfase na noção de sujeito e suas implicações como ação consciente livrearbítrio e vontade são algumas das contribuições dadas ao drama pelo mundo moderno sendo a noção de sujeito um dos mais significativos parâmetros de demarcação entre a arte trágica moderna e a tragédia antiga já que como se pretende esse sujeito humano seria uma invenção da modernidade LUNA 2008 p 2223 Segundo Raymond Williams a primeira fase da secularização da tragédia está atrelada a uma nova noção de dignidade e críticos literários defendem que a posição social elevada de um protagonista nobre representativo da aristocracia serve para mostrar que qualquer pessoa está sujeita às reviravoltas da Fortuna Contudo nessa fase a tragédia é impulsionada muito mais pelo comportamento do próprio sujeito do que pelo erro involuntário ou alguma condição imposta por forças superiores à vontade do homem Nesse momento o caráter do herói é interpretado cada vez mais isoladamente Seu erro é moral uma fraqueza num homem que à exceção desse erro é bom e de quem se pode ainda ter piedade WILLIAMS 2002 p 47 Mais precisamente no século XVIII o gênero dramático inicia um processo de severa modificação através de dois caminhos postulando a possibilidade de um progresso da dramaturgia e da representação a partir de uma transformação de suas bases teóricas ROUBINE 2003 p 59 JeanJacques Roubine chama o primeiro caminho de relativista já que este não rompe com as noções aristotélicas antecedentes mas as altera a ponto de fazer o atividades teatrais no mundo moderno acolhidas nesse novo momento as antigas tradições do teatro clássico 56 teatro por elas gerado responder às aspirações contemporâneas conforme faz Voltaire Quanto ao segundo caminho este se trata de uma transformação mais severa por isso chamado por Roubine de radical devido à ruptura das regras tradicionais nesse novo teatro que como se vê em Diderot por exemplo rejeita a unidade de lugar os diálogos em verso a mitologia e grandeza do gênero trágico mesmo que parte desses preceitos tradicionais apenas sejam mantidos conforme determinadas conveniências Esse teatro inovador radical no dizer de Roubine propõese encenar personagens que pertencem à experiência cotidiana de cada espectador burgueses artesãos homens do povo etc e que fala a mesma linguagem que ele que enfrentam problemas angústias que lhe são familiares Em suma essa nova doutrina recusa radicalmente as convenções do aristotelismo em nome de um realismo Condena a estética da bela natureza em nome da natureza verdadeira Seu sonho consiste em suplantar a tragédia pelo drama burguês ROUBINE 2003 p 59 Logo as tragédias que até então lidavam exclusivamente com protagonistas de elevado status social falando uma linguagem poética elevada sofre o que os críticos chamaram de um rebaixamento estético visto estes protagonistas darem lugar a pessoas comuns falando uma linguagem prosaica Esta transformação influenciada pelas próprias mudanças no cenário político que colocou no poder a burguesia converteu a tragédia em drama social Esse novo aspecto do gênero dramático secularizado e voltado para os conflitos sociais como causadores do trágico molda a antiga estrutura da tragédia sob novas perspectivas que entretanto não se privam dos conceitos estruturadores da dramaticidade e da tragicidade inerentes ao próprio gênero Com essa mudança para o drama moderno JeanJacques Roubine nos chama atenção para a proximidade e o afastamento duas categorias proeminentes em relação à emoção teatral Segundo o citado autor enquanto a proximidade cria imediatamente uma intensa identificação no público a mesma é enfraquecida pelo afastamento Assim como um espelho a proximidade reflete fielmente no palco a realidade mais familiar aos espectadores entretanto não excluindo as adversidades A cena do drama acolhe e reivindica essa acolhida representantes de todos os meios de todos os estados da sociedade diferentemente da tragédia que sob pretexto de magnificência não admitia senão uma população de príncipes e de heróis A vocação do drama é esboçar o 57 retrato fidedigno de toda uma sociedade Ora a maior parte dos indivíduos que a constituem tem atividades próprias inerentes a uma situação financeira a uma condição ou a um ofício O palco deverá se tornar o espelho dessa diversidade Deverá também ecoar as mil preocupações fomentadas por essas atividades ao passo que a tragédia se limitava à esfera dos grandes interesses de Estado a política eou à das paixões pessoais o amor a ambição etc ROUBINE 2003 p 66 Ademais a proximidade também se relaciona à temporalidade entre palco e plateia quando diferentemente das antigas tragédias que segundo Roubine valorizavam o afastamento no tempo ou espaço distanciando os espectadores daquilo que era representado no palco através de personagens como reis imperadores e príncipes o drama moderno representa fatos contextualizados na época vivida pelo público Na prática o drama como aliás indica o qualificativo a ele aplicado burguês se concentra na célula familiar burguesa Este é claramente o microcosmo mais familiar para os autores e para o público O drama deve representar os infortúnios que ameaçam fraturar essa célula Esta é a concepção de Diderot que define o drama como tragédia doméstica e burguesa e de Beaumarchais que lhe pede para esboçar a pintura comovente de uma infelicidade doméstica Até Mercier que quer introduzir no palco todas as categorias sociais considera que o pólo natural do drama é o seio de uma família ROUBINE 2003 p 67 Ainda no século XVIII autores passaram a defender que não era o status social das personagens trágicas o elemento crucial para o despertar das emoções no espectador Entre estes autores encontrase o dramaturgo e crítico alemão G E Lessing cuja obra Dramaturgia de Hamburgo é considerada como a maior contribuição à crítica e à dramaturgia do século XVIII Para Raymond Williams os escritos de Lessing são ao mesmo tempo uma rejeição teórica do neoclassicismo uma defesa de Shakespeare uma defesa da tragédia burguesa e a escrita de peças de acordo com essa mesma convenção WILLIAMS 2002 p 49 Lessing conseguiu através de suas discussões sobre as formulações aristotélicas mostrar que estas tinham sido mal interpretadas pelos neoclássicos e suas próprias interpretações influenciaram o drama moderno Referindose aos conceitos formulados por Aristóteles Lessing interpreta a Poética de forma clara analisando peças encenadas em Hamburgo no período de 1767 a 1768 fazendo observações concernentes às formulações aristotélicas tais como a questão da verossimilhança e veracidade reafirmando um dos pressupostos do filósofo 58 grego de que a arte poética não é História por isso não devendo os poetas considerar que a factualidade precisa necessariamente nortear a verossimilhança Segundo Lessing é a habilidade do dramaturgo em representar algo existente ou inexistente não importa que tornará determinado fato aceitável como verossímil e não a factualidade ou a crença do espectador como podemos observar em sua crítica negativa aos fantasmas de Voltaire a quem opõe como ilustração positiva a habilidade de Shakespeare em forjar seres do outro mundo com base em critérios de verossimilhança O espectro de Shakespeare vem realmente do outro mundo assim nos parece Pois ele surge na hora solene em meio ao tenebroso silêncio da noite acompanhado pelo séquito completo dos lúgubres e misteriosos acidentes quando e com os quais estamos acostumados desde o berço a conceber e esperar espíritos Mas o espectro voltairiano não serve sequer de bichopapão para assustar crianças é o simples comediante travestido que nada diz nada faz que possa tornar verossímil que ele seja aquilo pelo qual se apresenta bem ao contrário todas as circunstâncias em que aparece antes perturbam a ilusão e traem a criação de um dramaturgo frio que de bom grado gostaria de nos iludir e nos amedrontar mas não sabe como começar Basta considerar o seguinte em pleno dia em meio da assembléia dos Estados do Império anunciado pelo estrondo de um trovão o espectro voltairiano sai de sua tumba Onde já ouviu Voltaire que fantasmas sejam tão audazes LESSING 1991 p 3940 Com base na citação acima a respeito da verossimilhança no fantasma representado em Hamlet entendemos porque a obra de Shakespeare é valorizada por Lessing e tomada como grande referência pelos dramaturgos românticos Entretanto a principal contribuição de Lessing no atinente à dramaturgia é sua proposta de rebaixamento da posição social dos personagens trágicos Os nomes de príncipes e heróis podem emprestar pompa e majestade a uma peça mas não contribuem em nada para a nossa emoção Os infortúnios daqueles cujas circunstâncias mais parecem as nossas devem naturalmente penetrar com mais profundidade em nossos corações e se temos piedade de reis temos piedade deles como seres humanos não como reis Embora suas posições freqüentemente torne seus infortúnios mais importantes elas não os tornam mais interessantes Nações inteiras podem estar envolvidas nelas mas nossa simpatia requer um objeto individual e um Estado é uma concepção abstrata demais para tocar nossos sentimentos LESSING apud LUNA 2008 p 182 Todavia o projeto de uma tragédia composta por personagens que representassem pessoas comuns não foi aceito com facilidade Hegel compatriota de 59 Lessing ao comentar sobre a dicção dramática em sua Estética considera o drama prosaico uma ameaça à sobrevivência da linguagem poética LUNA 2008 p 184 Diderot Lessing Goethe e Schiller na juventude inclinaramse principalmente para o realismo Lessing defendendo este ponto de vista com argumentos de ordem estética e dando mostras de um grande espírito de observação Goethe e Schiller em virtude das suas preferências pelo rude vigor das manifestações directas da vida Que os homens pudessem falar agora como outrora nas comédias e tragédias gregas ou ainda no teatro francês mas no que se referia a este último o reparo não era totalmente injustificado eis o que os dramaturgos alemães consideravam absurdo por absolutamente destituído de naturalidade Mas a naturalidade excessiva aproximase da aridez prosaica em que por vezes cai e então as personagens exprimem não o lado substancial dos caracteres sentimentos e acções mas as manifestações directas da individualidade sem tomarem completa consciência de si mesmos nem das condições em que se encontram Quanto mais os homens se mostram naturais no seu falar realista tanto mais prosaicos são Pois os homens naturais nas conversas e discussões que têm comportamse como meros indivíduos acidentais que vistos através da particularidade imediata aparecem totalmente desprovidos de universalidade HEGEL 1964 p 294 A citação acima não quer dizer que Hegel seja contra a representação de pessoas comuns como protagonistas das tragédias mas aponta sua preocupação para com o realismo das falas dessas personagens o que segundo o filósofo tornaria a linguagem do drama menos artística A despeito dessa resistência hegeliana à adoção da linguagem prosaica pelo drama moderno a teorização da ação dramática avançou consideravelmente com as discussões apresentadas em sua Estética Em linhas gerais o filósofo alemão trata do princípio geral da poesia imitativa e suas particularidades Segundo Hegel a poesia dramática surgiu da necessidade do homem de ver atos e situações da vida humana representadas por personagens que descrevam os acontecimentos e expressem através de falas longas ou curtas suas finalidades HEGEL 1964 p 279 O drama é para Hegel a conciliação do princípio épico e lírico tendo surgido durante o desaparecimento da epopéia e da subjetividade característica da poesia lírica Porém o drama não poderia se bastar apenas com o pensamento épico ou lírico por isso os abreviou representando essa conciliação do modo citado abaixo 60 A poesia épica desenrola já diante de nós uma acção mas uma acção considerada como uma totalidade substancial do espírito nacional sob uma forma em que se encontra assegurado o equilíbrio entre a vontade pessoal o fim individual e as circunstâncias exteriores por um lado e os obstáculos reais por outro Pelo contrário na poesia lírica é o indivíduo quem se afirma e quem exprime os sentimentos da própria alma Ora bem se o drama quiser reunir em si estes dois princípios deverá antes de mais apresentarnos como a epopéia um acontecimento um feito ou uma acção deverá porém despojálos da exterioridade e colocar no seu lugar o indivíduo consciente e activo Com efeito o drama não representa uma interioridade lírica em oposição com os acontecimentos exteriores mas uma interioridade na sua realização exterior HEGEL 1964 p 280281 Hegel quer dizer que não resulta das circunstâncias exteriores o que acontece ao indivíduo mas sim de sua vontade e caráter Contudo este indivíduo não permanece recluso em si mesmo Pelo contrário deixase obrigar pelas forças das circunstâncias dentro das quais persegue um fim opondose em combates contra outras personagens cuja ação oferece contra a vontade e previsão do sujeito complicações e lutas que o conduzirão a um desenlace no qual se manifesta a natureza íntima dos fins dos caracteres e dos conflitos humanos em geral HEGEL 1964 p 281 Além disso segundo o filósofo alemão a ação dramática não deve ser limitada à mera progressão para um determinado fim A acção dramática não se limita porém à calma e simples progressão para um fim determinado pelo contrário decorre essencialmente num meio repleto de conflitos e de oposições porque está sujeita às circunstâncias paixões e caracteres que se lhe opõem HEGEL 1964 p 279 Conforme Hegel estes conflitos e oposições acima citados vão originar ações e reações que produzirão ao final da trama o apaziguamento necessário Continuemos com o texto de Hegel O que vemos assim directamente são fins individualizados sob a forma de caracteres vivos e de situações ricas em conflitos caracteres e situações que se entrecruzam e determinam reciprocamente procurando cada caráter e cada situação afirmarse e ocupar o primeiro lugar em detrimento dos outros até que se processe o apaziguamento final HEGEL 1964 p 279 61 São as ações das personagens seus fins e caracteres revelados que dão às situações valor e sentido no drama Estão encerrados nas manifestações exteriores intenções e fins individuais sendo o indivíduo diretamente atingido pelas conseqüências da ação as quais influenciarão também seu caráter e os estados de sua alma Só deste modo a acção aparece como acção isto é como realização efectiva de intenções e de fins intenções e fins com os quais o indivíduo se confunde como parte integrante de si mesmo e que por conseguinte também devem aderir antecipadamente a todas as conseqüências exteriores da sua realização O indivíduo dramático recolhe os frutos dos próprios actos HEGEL 1964 p 282 Cada indivíduo é movido por forças morais e espirituais como por exemplo amor dos filhos dos pais ou irmãos No entanto o conteúdo essencial de seus sentimentos só vai adquirir caráter dramático se enfrentar outros indivíduos com fins opostos de modo que todos os envolvidos terão seus êxitos comprometidos e retardados pelos choques conflitos e oposições Quando trata especificamente da tragédia Hegel limitase a indicar os princípios mais gerais deste gênero começando pelos interesses civis e forças universais que servem de conteúdo para os autores de obras trágicas O verdadeiro conteúdo da acção trágica é fornecido pelas forças universais que regem a vontade humana e se justificam por si mesmas o amor carnal o amor paternal e maternal o amor filial o amor fraternal e consequentemente o direito natural depois os interesses da vida civil o municipalismo e o patriotismo dos cidadãos a autoridade dos reis a vida religiosa não sob a forma de um misticismo resignado que renuncia à acção ou como obediência passiva à vontade de Deus mas pelo contrário sob a forma de uma intervenção activa destes interesses Esta actividade e este vigor são inerentes a qualquer carácter verdadeiramente trágico HEGEL 1964 p 322 Estes caracteres são individualidades animadas de uma força que as leva a se identificarem ou não com algum dos conteúdos acima citados Porém estes caracteres são diferentes tanto nas manifestações individuais quanto no conteúdo tendo em vista passarem a agir motivados por suas paixões e o fim que perseguem dando início aos conflitos Ainda conforme Hegel o divino se constitui como verdadeiro tema da tragédia não na forma vista pela idolatria religiosa mas se manifesta de maneira oculta na ação individual pois 62 sob esta forma a substância divina da vontade da acção é o elemento moral pois a moralidade quando apreendida na sua substancialidade directa e não tal como é formulada pela reflexão é o divino na sua realidade profana HEGEL 1964 p 323 Mas assim como os caracteres das personagens as forças morais têm suas particularidades suas diferenças quando estas forças atuam na poesia dramática e desencadeiam a ação destroem o acordo existente entre elas dando início a um combate mútuo de maneira que uma ação individual busca realizar sua finalidade ou impor sua superioridade isolandose e levantando uma paixão oposta contra si HEGEL 1964 p 323 gerando conflitos considerados inevitáveis O trágico está no fato de que as duas forças opostas ainda com igual razão tornamse também ao mesmo tempo culpadas já que cada uma entende seu fim e caráter como negação ao caráter e fim da força oposta combatendoo Entretanto este conflito deve ser solucionado É preciso que se restitua a substância e unidade moral que foi suprimida pela individualidade que perturbava a relação harmoniosa dos indivíduos e seus fins Segundo Hegel devese realizar na ação dramática o restabelecimento dos acordos entre os sujeitos e seus fins O que se encontra assim destruído no desenlace de um conflito trágico é unicamente a particularidade unilateral que incapaz de se submeter a esta harmonia se inclina demasiado até ao abismo ao trágico da acção ou vêse pelo menos forçada na medida do possível a renunciar aos seus fins HEGEL 1964 p 325 Segundo Sandra Luna 2008 p 202 na tradição aristotélica o universo dramático ainda que conflituoso deve constituir uma unidade e lembranos da indicação de Hegel sobre a unidade de ação para o qual esta seria a única lei verdadeiramente inviolável do drama Em geral toda a acção deve ter um fim determinado predeterminado em vista do qual se efectua pois o homem desde que actua intervém na realidade concreta na qual o mais geral se reduz e se delimita para se transformar em manifestação particular É portanto aqui que se deve procurar a unidade de realização concreta de um fim determinado em circunstâncias e condições particulares Ora como vimos as circunstâncias de uma acção dramática são tais que ao fim individual se antepõem obstáculos postos por outros indivíduos que perseguem fins diferentes e não menos justificados pelo que surgem conflitos e complicações de toda a espécie A acção dramática processase assim essencialmente por um conjunto de conflitos e a 63 verdadeira unidade só pode resultar do movimento total do movimento de todos Isto equivale a dizer que o conflito deve encontrar a sua explicitação exaustiva nas circunstâncias em que se produz assim como nos caracteres e nos fins das personagens e evoluir para a conciliação graças até às circunstâncias nas quais teve origem Tal como a acção este desenlace deve ser simultaneamente subjectivo e objectivo Com efeito por um lado é a luta de fins opostos que se encontra apaziguada por outro lado os indivíduos puseram toda a sua existência e a sua vontade na empresa a realizar de modo que o êxito ou fracasso desta a sua completa ou incompleta realização a derrota inevitável ou a conciliação pacífica entre intenções aparentemente hostis decidem da sorte do individuo na medida em que este se identifica com as acções que se viu forçado a realizar Por isso não se pode falar de verdadeira conclusão final senão nos casos em que o fim e o interesse da acção em torno da qual o drama gira fazem por assim dizer parte integrante do individuo ou mais exactamente são uma e a mesma coisa Conforme as diferenças e oposições os caracteres envolvidos na acção dramática são simples ou se decompõem num grande número de acções episódicas secundárias mais ou menos numerosas assim a unidade será mais ou menos rigorosa HEGEL 1964 p 288289 Assim Hegel quer nos dizer que todos os episódios conflitos e ações por menores que sejam devem estar relacionados contribuindo de forma coesa para a progressão da ação dramática Para Hegel o objetivo da tragédia não seria apenas despertar o temor e a piedade e sim representar a harmonia entre a razão e a verdade do espírito Por isso embora reconheça a autoridade de Aristóteles no assunto Hegel insiste em não se deter simplesmente nos sentimentos de piedade e temor mas conduzir nosso interesse e atenção para o conteúdo da obra que através da expressão artística deve nos livrar dos sentimentos citados Segundo Hegel o sofrimento genuinamente trágico está vinculado às personagens como decorrência de seus próprios atos concomitantemente legítimos e por isso causadores dos conflitos que produziram De acordo com o autor alemão os heróis trágicos são inocentes e culpados ao mesmo tempo Se admitirmos que o homem só é culpado quando pode escolher e se decide pelo que poderia ter evitado teremos de reconhecer que as figuras plásticas estão inocentes comportase como tal carácter e obedece a tal paixão porque tem precisamente esse carácter e está animado dessa paixão não há para ele hesitação ou escolha possíveis HEGEL 1964 p 344345 64 A grandeza dos caracteres está em sua determinação ou melhor dizendo em sua integridade no respeitante ao que desejam e fazem Mesmo quando não hesitam e nem escolhem estes caracteres são sempre eles mesmos não mudam e isso lhes dá força e unidade pois de acordo com Hegel a ação se torna enfraquecida quando a pessoa como tal e o seu objeto se separam de modo que carácter vontade e fim não parecem formar uma unidade absoluta e como o indivíduo não está dominado por um fim permanente e firme que faça parte integrante da sua personalidade e lhe anime a vontade de uma paixão irresistível mantémse na incerteza sobre o que deve fazer ou não fazer até que acaba por se decidir ao acaso As figuras plásticas ignoram por completo este estado de indecisão e estas hesitações o laço que une a subjectividade ao objecto perseguido por sua vontade é indissolúvel O que as leva a agir é precisamente essa paixão moralmente justificada e que até na eloqüência patética com que as personagens defendem os respectivos fins haure os seus argumentos não na retórica subjectiva do coração ou na sofística das paixões mas nessa objectividade perfeita de todas as suas partes cuja profundidade medida e vivente beleza plástica Sófocles soube exprimir com tanta virtuosidade HEGEL 1964 p 345 No entanto Hegel chama atenção para o exagero nos conflitos das paixões que podem levar os heróis a cometerem atos cruéis e culpáveis e quando isso acontece estes heróis se vangloriam do que fizeram Para estes heróis seria uma afronta acusálos de agir de maneira inconsciente uma vez que a honra destes consiste em saberemse culpados e proclamarem a responsabilidade das suas faltas Não querem pedir desculpa não pretendem despertar compaixão nem piedade HEGEL 1964 p 345 Assim estes heróis não despertam emoção e sim admiração devido à força e firmeza de seu caráter que constitui uma unidade com sua paixão e sua desventura Para Hegel os melhores exemplos de caracteres firmes e fortes são os heróis shakespereanos É precisamente Shakespeare quem em oposição a estes caracteres hesitantes e dúbios nos apresenta os mais belos exemplos de personagens firmes estáveis e conseqüentes consigo mesmas e que sucumbem precisamente em virtude da sua firmeza e dedicação a si mesmas e aos próprios fins Independentemente de qualquer justificação moral e obedecendo apenas às necessidades formais da individualidade deixamse arrastar para a acção pelas circunstâncias exteriores ou lançamse nela às cegas e até mesmo quando só agem constrangidos pela necessidade encontram na sua vontade a força para perseguirem o que começaram unicamente porque o empreenderam O despertar de uma paixão que embora inerente ao carácter não teve ainda ocasião para se manifestar e apenas começou 65 a expandirse esse desenvolvimento de vida interior de uma grande alma o quadro das suas lutas contra as circunstâncias e as condições exteriores e contra as conseqüências destas lutas que conduzem os homens à própria ruína e à própria destruição eis o tema principal das mais interessantes tragédias de Shakespeare HEGEL 1964 p 363 Para diferenciar a tragédia antiga da moderna Hegel exemplifica suas proposições com os heróis trágicos partindo do seguinte princípio Os heróis da tragédia antiga estão colocados ante tais circunstâncias que quando se decidem a agir em conformidade com o único princípio moral que convém à sua natureza entram necessariamente em conflito com uma força moral oposta igualmente legítima Os caracteres românticos pelo contrário encontramse desde o começo no meio de uma grande variedade de circunstâncias e condições fortuitas que lhes permitem agir de uma maneira ou de outra de modo que o conflito para o qual as circunstâncias bem podem fornecer o pretexto depende essencialmente do carácter a que o indivíduo obedece na sua paixão não porque procure uma justificação moral mas unicamente porque quer permanecer fiel a si mesmo HEGEL 1964 p 358 Hegel não perde de vista que os heróis gregos também agiam conforme sua individualidade e esta no apogeu da tragédia se confunde com o princípio moral Todavia o herói moderno não importa se comete crimes ou injustiças segue apenas sua própria vontade ou age sob influência de casos exteriores As noções hegelianas de conflito como elemento de progressão da ação dramática permanecem inspirando outros autores a conceberem novas ideias relativas à dramaturgia É o caso de Ferdinand Brunetière que em 1894 entende a vontade do herói como eixo condutor da ação dramática No seu entender os tipos de obstáculos enfrentados pela vontade do herói podem diferenciar as ações dramáticas em variadas espécies e assim como explica Sandra Luna 2008 p 215 obstáculos insuperáveis engendrariam uma tragédia obstáculos sociais determinariam o drama romântico ou o drama social dois obstáculos opostos dariam uma comédia Na moderna teorização do drama encontramos pensadores como John Dryden afirmando que a ação dramática é determinada pela vontade correspondente à concretização de um processo planejado executado e finalizado pela intenção do sujeito LUNA 2008 p 198 ou seja Dryden considera que a ação dramática é movida por um objetivo finis Por outro lado o teórico Friederich Von Schiller considera que o agente da ação deve ter escolhas vontade consciente livrearbítrio 66 Para Schiller a tragédia é uma imitação de uma ação que nos permite ver o homem em sofrimento de forma a suscitar a nossa piedade Entretanto o sofrimento só se mostra tragicamente comovente tocante quando afeta uma pessoa no sentido mais humano do termo para o autor espíritos puros ou demônios não sofrem e portanto não cabem na tragédia Nessa perspectiva o herói trágico ideal deveria na concepção de Schiller colocarse em algum lugar intermediário entre perversidade absoluta e a completa perfeição aí convidado a exercer o seu livrearbítrio portanto a experimentar sua vontade consciente LUNA 2008 p 199 Em 1936 o conflito social vai ser a base da teoria de Lawson que considera este tipo de conflito como elemento fundamental ao drama um gênero que lida com conflitos que posiciona pessoas contra pessoas indivíduos contra grupos grupos contra outros grupos indivíduos ou grupos contra forças sociais ou naturais LUNA 2008 p 218 Através das discussões sobre livrearbítrio vontade consciente e conflito é possível chegar à teorização da ação dramática até meados do século XX e observar como o desenvolvimento destes elementos transformouse na tragédia burguesa ou drama social Sobre todo esse processo de desenvolvimento da ação dramática durante esse percurso histórico citamos um trecho muito significativo do texto de Sandra Luna Como consideração final desse percurso poderíamos dizer que apesar das mudanças significativas na construção da ação e na caracterização do herói ao longo dos séculos apresentandose o conflito trágico modificado travestido formulado em outros termos que não os das tragédias gregas o fato é que a essência do trágico permanece o herói seja ele uma peça do destino que o impele a cometer um erro por ignorância um sujeito racional decidido a atingir seus objetivos ou finalmente um nãosujeito um ser estilhaçado por forças sociais e movido pelas pulsões do seu inconsciente o fato é que a sua trajetória continua a fornecer o eixo em torno do qual se constrói a ação trágica o que significa que é ainda através de suas ações e reações que o poeta denuncia a problemática relação entre o homem e o seu universo LUNA 2008 p 232 Diante do exposto encerramos essa caminhada pelas teorias fundamentadoras dos estudos da tragédia e do drama moderno concluindo que apesar de todas as mudanças ocorridas ao longo do tempo ainda é possível notar em obras contemporâneas a presença dos conceitos formulados por essa tradição em relação à poesia dramática trágica e aos efeitos característicos da tragédia Assim partimos para a observância destes elementos fundamentais para a produção da ação trágica no texto O Pagador de Promessas de Dias Gomes obra 67 escolhida como objeto de estudo desta pesquisa Antes contudo devemos examinar como essas formulações teóricas sobre dramaticidade e tragicidade permitem se vislumbrar em relação às teorias do cinema 68 Capítulo III Fundamentos teóricos para estudo do texto fílmico Num filme o que importa não é a realidade mas o que dela possa extrair a imaginação Charles Chaplin Com o objetivo de analisar como a adaptação fílmica constrói a ação do texto teatral O Pagador de Promessas ressaltamos que os conceitos fundamentais examinados em relação ao universo dramático tais como ação conflito anagnorisis peripeteia e hamartia permanecem válidos no domínio fílmico sendo necessário contudo observar como estes elementos estruturadores da dramaticidade e da tragicidade se atualizam na arte cinematográfica sendo o cinema uma linguagem distinta Pretendemos neste capítulo focalizar elementos formais e estruturais que orientarão nosso estudo da ação no universo fílmico Para demarcar claramente o território de nossa investigação é importante distinguirmos entre o fílmico e o cinematográfico De acordo com o pesquisador e crítico de literatura e cinema João Batista de Brito o fílmico corresponde ao conjunto de significados compreendidos e interpretados pelo espectador a partir do que ele vê apresentado no espaço específico da tela Por sua vez o cinematográfico compreende o lado prático do cinema ou seja a forma de fazer ou construir o filme e seus significados através de técnicas que não interessam ao espectador porém de grande valor para os profissionais de cinema e aprendizes de cineasta Amparados nessa distinção almejamos neste trabalho limitarmonos ao domínio fílmico buscando construir um quadro teórico sob perspectivas estéticas e semióticas a partir de reflexões sobre o modo como o drama O Pagador de Promessas atualizase no filme a ser analisado Damos início à avaliação das categorias basilares do drama trágico dentro do universo fílmico partindo das aproximações entre cinema e teatro a começar pela abordagem à iconicidade Embora possua grande semelhança com as formas narrativas o cinema conta suas histórias mostrando personagens em ação e justamente esse caráter de ostentação o aproxima da arte dramática Assim como o teatro o cinema presentifica os eventos isto é insere a ação num eterno presente Até mesmo o passado 69 pode ser apresentado de maneira presentificada através de flashbacks tudo no filme acontecendo aqui e agora diante dos olhos do espectador LUNA 2009 p 95 Artes miméticas e por isso trabalhando no domínio da representação teatro e cinema empenhamse em produzir um sentido de realidade Todavia enquanto formas artísticas ambos cinema e teatro necessitam que o público lembre e esqueça ao mesmo tempo que está vendo uma ficção Contudo talvez pela estreita relação entre o filme artístico e o documental o caráter de ficcionalidade artística do cinema parece menos evidente a um público leigo Já se disse inclusive que o realismo no drama é convenção no cinema é ausência de convenção De qualquer forma a significação fílmica é tão constrangida pelos dois domínios o real e o ficcional quanto a representação teatral LUNA 2009 p 96 Concernente à relação entre ficção e realidade no cinema Gerárd Betton em sua Estética do Cinema diz que desde suas origens o cinema busca reproduzir o real da forma mais fiel e completa possível Para isso são empregados diversos recursos como cenários que imitam minuciosamente a vida diária sonorização e linguagem do dia a dia além de questões técnicas e estéticas como o uso da cor do relevo a ampliação das dimensões da tela o uso freqüente do planoseqüência da profundidade de campo o respeito à duração real do acontecimento BETTON 1987 p 9 recursos estes que provocam no espectador a sensação de realidade Entretanto a realidade vista na tela é conforme explica o citado autor resultante de inúmeros fatores ao mesmo tempo objetivos e subjetivos imbricação de ações e interações de ordem ao mesmo tempo física integração e parâmetros sensoriais e principalmente do continuum espaço tempo e psíquica como todos os sentimentos e reflexos pessoais o que aparece é um simples aspecto relativo e transitório da realidade de uma realidade estética que resulta da visão eminentemente subjetiva e pessoal do realizador BETTON 1987 p 9 Baseandose nessa citação entendemos que a realidade vista na tela é um recorte do real reproduzido pelo diretor com base em suas próprias interpretações Sendo assim a realidade fílmica é construída não apenas pela escolha de recursos técnicos peculiares do cinema mas também por fatores característicos da personalidade do diretor como seus valores anseios e pontos de vista Esse ponto pode nos levar a discussões acerca do discurso autoral assunto que por enquanto deixaremos suspenso 70 para a ele retornarmos mais adiante Assim continuaremos a tecer comentários sobre a realidade no cinema visto a importância dessa questão concernente às artes miméticas Segundo Christian Metz o cinema suscita no público uma impressão de realidade maior do que a pintura figurativa o romance e o teatro pois desencadeia no espectador um processo ao mesmo tempo perceptivo e afetivo de participação METZ1972 p 1617 rapidamente adquirindo certa credibilidade e convencendo o público a levar a sério o que está sendo mostrado Essa impressão de realidade tem fundamentos psicológicos e a credibilidade despertada equivale não apenas a filmes realistas como também aos extraordinários que só serão de fato espantosos se convencerem o público do contrário serão meramente ridículos E a eficácia do irrealismo no cinema provém do fato de que o irreal aparece como atualizado e apresentase aos olhos com a aparência de um acontecimento e não como uma ilustração aceitável de algum processo extraordinário que tivesse simplesmente sido inventado Os assuntos de filme podem ser classificados em realistas e irrealistas como se queira mas o poder atualizador do veículo fílmico é comum aos dois gêneros garantindo ao primeiro a sua força de familiaridade tão agradável à afetividade e ao segundo seu poder de desnorteio tão estimulante para a imaginação METZ 1972 p 1718 O grau de impressão de realidade varia bastante conforme as técnicas representativas existentes até hoje como fotografia teatro cinema pintura escultura figurativa etc Se comparado com a fotografia por exemplo a impressão de realidade do cinema é mais forte por conta do movimento que dá corporalidade e autonomia aos objetos desprendendoos do fundo plano e estático da fotografia dandolhes vida através do relevo trazido pelo movimento A questão do realismo sempre esteve presente em vários movimentos estéticos cinematográficos como o surrealismo realismo poético neorealismo e realismo subjetivo Segundo Robert Stam diversas definições do realismo cinematográfico envolvem alegações de verossimilhança pressupondo que o realismo além de possível é também desejável Outras definições enfatizam as diferentes aspirações de um autor ou escola no sentido de compor uma representação relativamente mais fiel vista como um corretivo à falsidade de estilos cinematográficos ou protocolos de representação precedentes Esse corretivo pode ser 71 estilístico como no ataque da Nouvelle Vague francesa à afetação da tradição de qualidade ou social o neorealismo italiano que pretendia mostrar a verdadeira face da Itália do pósguerra ou ambos o Cinema Novo brasileiro revolucionando tanto a temática social como os protocolos cinematográficos do cinema brasileiro antecedente STAM 2003 p 165 Consideramos importante tocar nessas questões concernentes ao realismo uma vez que o filme O Pagador de Promessas se enquadra no cinema realista devido a ser uma das obras como já dissemos anteriormente fundamentadoras do Cinema Novo movimento que tinha por objetivo transformar a sociedade expondo nas telas a realidade nacional da época as vidas dos menos favorecidos e as injustiças sociais Dando continuidade às aproximações entre o cinema e a dramaturgia Sandra Luna destaca que assim como o texto dramático o texto fílmico também sofre imposições externas em relação à categoria de tempo 2009 p 97 em consequência de seu estatuto de arte do espetáculo Logo o intervalo de aproximadamente duas horas em que a ação se desenrola diante dos olhos do espectador relativo ao tempo de consumo da representação pode ser ajustado ao tempo dos espetáculos teatrais significando que assim como no teatro a arte cinematográfica busca a concentração de efeitos utilizando recursos facilitadores de economia temporal Apesar dessa possibilidade de ajustamento ao tempo de uma peça o cinema trata o tempo de forma bem mais complexa do que o teatro quando se refere à duração e estruturação cronológica MARTINS 2008 p 27 devido às possibilidades de que dispõe o cinema para comandar a escala do tempo a exemplo da duração das cenas que podem ser alongadas encurtadas interrompidas ou invertidas dando às imagens exibidas valor educativo filosófico artístico humorístico e científico Este domínio do tempo se dá por meio do emprego dos seguintes elementos câmera lenta ou rápida inversão ou interrupção do movimento contração ou dilatação do tempo Com estes subsídios o cineasta pode brincar com o tempo condensálo esticálo desacelerálo invertêlo imobilizálo subvertêlo ou valorizálo BETTON 1987 p 28 Ademais o cinema conta com o emprego de elipses flashbacks e flahs forwards especificidades temporais do universo narrativo que podem no universo fílmico incorporar diversos significados ultrapassando a mera participação na economia temporal De acordo com Sandra Luna 72 por mais sofisticados que sejam os teatros em termos de efeitos especiais por mais hábeis que sejam os dramaturgos em burlar categorias espaçotemporais ou em produzir metáforas nãoverbais no palco por mais inteligentes que possam ser as leituras interpretativas feitas pelos diretores encarregados da representação cênica dos textos dramáticos os recursos fílmicos parecem infinitamente mais capazes de dramatizar o que no teatro é nãodramatizável Essas constatações por si sós revelam o quanto é complexa a descrição das possibilidades de actualização fílmica LUNA 2009 p 98 Significa dizer que o cinema através de seu caráter narrativo recursos técnicos e linguagem específica consegue por exemplo intensificar ou produzir sentidos a partir da divisão do filme em planos capazes de isolar na tela um determinado objeto uma mão rosto ou olhar dando realce à sua significação tirando da imagem a mera função descritiva Obviamente que assim como o teatro o cinema faz uso de gestos e movimentos do elenco utiliza som e iluminação além da palavra como produtores de sentidos Entretanto o fazer fílmico conta com as possibilidades de extrair de planos isolados significados contidos em seus enquadramentos angulações movimentos internos ou externos e da montagem do filme através do encadeamento desses planos Para encerrar nossas reflexões sobre a categoria de tempo no universo fílmico não podemos perder de vista a convenção do início in medias res no cinema Esta arte faz uso do citado artifício com o mesmo objetivo do espetáculo teatral concentrar efeitos pois sendo o texto fílmico iniciado em meio a momentos importantes da trama a impossibilidade de mudar os fatos não vistos mas já ocorridos até ali intensifica a dramaticidade do texto Além disso o início in media res assim como no teatro contribui para a economia temporal da obra Da mesma forma como controla o tempo o cinema também tem domínio sobre o espaço manipulandoo esteticamente através de planos ângulos e movimentos O espaço fílmico raras vezes reproduz fielmente uma espacialidade física existente tal como ela é A espacialidade fílmica é conceptual imaginária estruturada artificial e construída às vezes até de maneira deformada como se vê no cinema expressionista havendo condensações fragmentações e junções O espaço fílmico é mais que um quadro com representações em imagens bidimensionais ele é um espaço vivo em nada independente de seu conteúdo intimamente ligado às personagens que nele evoluem Tem o valor dramático ou psicológico uma significação simbólica tem também um valor figurativo e plástico e um considerável caráter estético BETTON 1987 p 29 73 O espaço off é uma questão que merece destaque em estudos atinentes à espacialidade fílmica por tratarse daquilo que não é visto nos limites da tela Na verdade o mundo representado no espaço fílmico dividese em visível e nãovisível isto é quando a câmera focaliza algo imediatamente imaginase o que está fora do quadro Essa imposição leva o espectador a colaborar para o preenchimento das lacunas deixadas pelo texto fílmico importando para o processo de apreensão da obra informações do mundo real contribuindo para a construção da obra tornandoa mais coerente e coesa É importante lembrar que esse apelo à participação do público no preenchimento desses espaços vazios não é uma particularidade apenas do cinema mas de qualquer universo ficcional produzido por diversos tipos de textos artísticos Nem o teatro nem o livro nem um filme são capazes de esgotar a descrição de um universo dramático o mundo possível do drama precisa sempre ser complementado pelo receptor Qualquer universo ficcional enquanto construção hipotética depende dessa colaboração do receptor que embora o reconheça como contrafactual irreal interpretao à luz de uma estratégia do tipo como se como se fosse realidade estratégia que introduz o decodificador num contexto que parece corresponder a um aqui e agora LUNA 2009 p 102 O fato de o espaço mostrado na tela não estar completo mas sugerir elementos não vistos porque estão além dos limites da tela convida o receptor a participar do processo de construção de significados a partir do preenchimento de lacunas existentes no texto Desse modo o espectador leva para o cinema verdades trazidas do mundo real que complementam os espaços não descritos no filme por impossibilidades ou inutilização de tal representação Por exemplo é desnecessário dramatizar a infância de um personagem adulto somente para convencer o público de que naquele texto ficcional todos os personagens já foram um dia crianças porque ao ver no palco ou na tela homens e mulheres adultos o receptor transfere leis e verdades do mundo concreto para completar as lacunas respeitantes a um passado do universo ficcional dramatizado De acordo com João Batista de Brito 1995 p 191 o cinema mostra apenas uma parte do espaço ficcional por isso dando àquilo que não é mostrado a função de construção de sentido proporcional ao que é desvendado Assim continua Brito o espaço visível e o nãovisível tornamse existentes em tensão da qual depende parcialmente o efeito conjunto do filme É importante que num filme exista espaços em brancos para o espectador os preencher conforme achar apropriado Para entender melhor essa característica do texto fílmico vejamos o exemplo abaixo 74 Numa residência suponhamos o telefone toca e um homem atende apreensivo no próximo plano o vemos numa sala de hospital em visita a um amigo há pouco acidentado o percurso que lhe custou para trocar de roupa fechar as portas tomar o carro enfrentar o trânsito etc nos é poupado pela narração mas o mais importante a notar aqui não é a economia de elementos própria de qualquer linguagem e sim o preenchimento que fazemos desse não visto Se por exemplo o nosso personagem chegou ao hospital de colarinho desarrumado não é improvável que ao contarmos o filme a alguém o descrevamos se vestindo apressadamentequando de fato isto ou seja o ato de vestirse não esteve em nenhum momento na tela BRITO 1995 p 192 Dando continuidade ao nosso estudo no domínio da espaçotemporalidade passamos à questão da segmentação do texto fílmico em planos O plano9 é um dos componentes mais importantes da linguagem cinematográfica sendo considerado por muitos teóricos como um tipo de unidade de significação Segundo Shirley Mônica Silva Martins 2008 p 177 o termo plano provém do suporte película cuja estrutura física é plana e após receber luz suficiente para a impressão de imagens é revelada em um laboratório passando do suporte negativo para positivo e por fim projetado na tela de cinema superfície igualmente plana Sabese que o plano isolado pode alcançar diversas cargas de significado conforme sua composição Logo tendo o objetivo de analisar a rede de significações intrincada em um texto fílmico consideramos necessário apresentar uma tipologia da planificação recurso técnico tão importante para o processo de construção da linguagem cinematográfica e que certamente servirá de base para nossa compreensão da forma como o diretor do filme O Pagador de Promessas constrói a ação trágica através de suas escolhas relativas à utilização da linguagem do cinema Tecnicamente o plano recebe nomes específicos que dependem da distância entre a câmera e o objeto filmado o ângulo e o tempo de duração para a filmagem10 Respeitante à distância entre câmera e objeto filmado temos os seguintes planos11 9 O termo plano pode ser substituído por tomada e quadro 10 Mais adiante alertaremos para o risco de se tentar prever uma gramática das formas 11 Considerando a variação da nomenclatura dos planos dentro do universo de cinema e vídeo apontamos os tipos de planificação com base não apenas em nossas próprias experiências em produções audiovisuais mas também apoiandonos em textos dos seguintes autores MARTINS 2008 LUNA 2009 BETTON 1987 BERNARDET 1996 BRITO 1995 e RODRIGUES 2005 75 Grande Plano Geral GPG quadro amplamente aberto situando o espectador em qual lugar ocorrerá a ação como uma paisagem ou uma cidade desvalorizando as personagens Plano Geral PG a proporção de distanciamento deste quadro é menor do que o Grande Plano Geral sendo utilizado para enquadrar não apenas um prédio ou casa onde a cena será desenvolvida como também pessoas ou objetos Plano Inteiro PI enquadra a personagem da cabeça aos pés deixando um pequeno espaço acima da cabeça teto e abaixo dos pés piso Plano Americano PA originase dos westerns americanos com a finalidade de mostrar a cartucheira do revólver na cintura enquadrando a personagem do joelho para cima Plano Médio PM permite a visualização da cintura para cima Seu emprego é comum quando se deseja apontar o movimento das mãos da personagem Primeiro Plano PP evidencia melhor o ator enquadrado do busto para cima possibilitando a demonstração de características intenções e atitudes da personagem Close ou Primeiríssimo Plano PPP exibe todo o rosto do ator do ombro para cima Este plano é considerado como importante elemento da linguagem cinematográfica por focalizar uma parte significativa do ator rosto Este plano ao revelar ou trair uma expressão pode alcançar efeitos psicológicos e dramáticos ou intensificar os efeitos já obtidos Superclose Close fechado do rosto da personagem suprimindo parte do queixo e da testa Plano Detalhe PD permite a visualização de apenas uma parte do corpo como detalhes da boca mão olhos etc ou empregado também para mostrar objetos Plano Conjunto Fechado PCF mostra dois atores com a mesma função dramática Plano Conjunto Aberto PCA três ou mais atores com a mesma carga dramática são enquadrados 76 Quanto ao ângulo de um plano este nunca é usado por acaso mas sempre justificado pela configuração do cenário pela iluminação pela valorização desse ou daquele aspecto do assunto pelo ângulo do plano procedente e do seguinte mas também pelo desejo de mostrar fenômenos afetivos suscitar determinados sentimentos determinadas emoções Cada ângulo implica uma escolha cada arte é escolha uma postura intelectual e por vezes afetiva do diretor BETTON 1987 p 34 No referente à angulação destacamse os seguintes tipos Plongée enquadramento em que personagem ou objeto é visto de cima para baixo isto é a câmera em posição de mergulho Comumente utilizado para diminuir esmagar a figura dramática sugerindo o sufocamento a insensibilidade a angústia a sujeição das personagens que se tornam joguetes de um destino inexorável ou da vontade divina BETTON 1987 p 34 Contraplongée ao contrário do Plongée a câmera enquadra o ator ou objeto de baixo para cima Freqüentemente empregado para evocar a superioridade e dignificar a personagem Câmera Subjetiva permite que o espectador ou ator tenha o ponto de vista da câmera movimentandose no lugar dela Não podemos esquecer que a duração do plano também tem participação no discurso fílmico Sendo assim o plano pode caracterizarse das seguintes formas Plano Relâmpago são flashes ou seja duram poucos segundos quase um piscar de olhos Plano Longo pode durar muitos minutos Plano Seqüência demasiadamente extenso correspondendo a toda uma seqüência narrativa O valor do plano também pode variar conforme a existência ou não de movimento da câmera que não tem função apenas descritiva mas também dramática ou psicológica podendo ser decodificado como mecanismos utilizados estrategicamente 77 para realçar ou mudar sentidos na construção fílmica de adaptações de textos teatrais Sobre o movimento distinguese a existência dos movimentos interno e externo O interno ocorre quando somente o objeto filmado se move enquanto a câmera permanece estática Inicialmente os únicos movimentos existentes no cinema eram aqueles que aconteciam dentro da tela visto ser a câmera posicionada diante de um cenário no qual ocorriam todos os fatos como em um palco teatral Já o movimento externo é aquele em que o objeto filmado fica parado enquanto a câmera se move Entretanto também é possível que a câmera e o material filmado se movimentem ou permaneçam ambos estáticos Os movimentos de câmera podem ser físicos ou ópticos Os movimentos físicos se dão no próprio eixo isto é com a câmera fixada em um tripé que servirá de base para a movimentação da câmera da direita para esquerda da esquerda para a direita de cima para baixo ou de baixo para cima Por exemplo Panorâmica horizontal movimento de câmera da esquerda para a direita ou viceversa Se feito muito rapidamente recebe o nome de chicote Panorâmica Vertical ou Tilt a câmera se movimenta de cima para baixo tilt down ou de baixo para cima tilt up Também há movimentos físicos fora do eixo aqueles em que a câmera desloca seu eixo Para isso é comum fazer uso de aparelhos que dão maior estabilidade durante o movimento como gruas dollys steadycam e carrinhos No entanto esses equipamentos não são obrigatórios para a mudança de eixo É possível movimentar a câmera sem necessidade de nenhum aparelho de sustentação como ocorre no travelling com a câmera na mão O travelling é o movimento de câmera com mudança de eixo mais utilizado dividindose em Travelling horizontal esquerdadireita direitaesquerda travelling in movimento para frente e travelling back movimento para trás Travelling circular centrípeto quando a câmera gira em função de um ponto do cenário e centrífugo quando a câmera gira em torno de si mesma BRITO 1995 p 213 78 Por sua vez os movimentos ópticos obedecem aos recursos da própria câmera Zoom inZoom out Movimento de aproximação zoom in ou afastamento zoom out do objeto filmado Focofora de foco Presença ou ausência de nitidez total ou parcial da imagem A diferença entre o zoom e o travelling é que o primeiro aproxima ou afasta o objeto no espaço cênico em relação à câmera enquanto o segundo deslocase no espaço cênico em direção ao objeto em questão ou dele se afastando RODRIGUES 2005 p 36 De acordo com Jean Claude Bernardet teóricos haviam tentado escrever gramáticas cinematográficas codificando por exemplo os planos e atribuindolhes significações Vejamos o que ilustra o citado autor Assim o PP e o PPP seriam mais voltados para a vida interior para as reações emocionais dos personagens enquanto o PA é melhor para descrever os personagens agindo um plano relativamente próximo não suficientemente para que predomine a expressão emocional do ator mas suficientemente para que ele seja isolado do meio e que a tônica seja colocada no que ele faz Já no PM são valorizadas as relações entre o personagem e o meio ou entre os personagens Enquanto o PP e PPP seriam mais líricos o PG por mostrar amplas paisagens seria mais bucólico ou panteísta Do mesmo modo atribuiu se significações aos ângulos a posição horizontal seria sempre preferível para as cenas de ação ou as cenas de aproximação emocional já a câmara baixa tende a enaltecer o personagem dando lhe um tom mais heróico enquanto a câmara alta que olha de cima para baixo diminuiria o personagem expressaria uma situação de opressão BERNARDET 1981 p 39 Contudo essa tentativa de padronizar e convencionar significações aos planos e ângulos não se tornou definitiva devido à carga de significação do plano que depende de sua relação com o conteúdo fílmico Justificamos essa nossa ênfase aos tipos de planos por notarse que diferentemente do cinema o teatro não compartilha as mesmas potencialidades para o tratamento do contexto visual de modo que o espectador focaliza e enquadra o que quer dentro da cena dramatizada em uma perspectiva única compreendendo as ênfases na produção de significados a partir dos diálogos e destaques no palco Para Martin Esslin 79 o uso do microfone e da câmera de cinema seriam a extensão dos ouvidos e dos olhos do diretor permitindolhe controlar o ponto de vista da plateia através de Planos Gerais Closes Planos Detalhes etc cortes de um lugar para outro e movimentos de câmera Ou seja o espectador vê apenas o que o diretor deseja mostrar e da forma como quer mostrar Embora o plano corresponda à instância primária dos processos estruturais da lingüística cinematográfica sendo compreendido como uma unidade em si carregada de significações o plano pode ser empregado em outros sentidos através dos recursos da montagem técnica especializada em três operações seleção agrupamento e junção cujo objetivo é obter a totalidade de um filme a partir de elementos a princípio separados AUMONT 1995 p 54 O objeto da montagem é o plano e para alcançar a totalidade do filme a montagem não só organiza os planos como estabelece a duração de cada um deles Sobre a carga semântica existente na construção do texto fílmico a partir do encadeamento dos planos parecenos válido lembrar que no começo dos anos 20 o cineasta russo Lev Kuleshov demonstrou como a montagem pode suscitar emoções e criar associações que vão além do conteúdo dos planos individuais através de experimentos entre eles o efeito Kuleshov no qual era feita a justaposição de planos Isto é após filmar em um determinado quadro o rosto inexpressivo do ator Mosjoukine e depois três tomadas de imagens diferentes um prato de sopa uma mulher morta e um bebê sorridente Kuleshov montou diante de uma plateia cobaia cada uma dessas imagens ao lado do plano do rosto de Mosjoukine Todo o público compreendeu a sequência como demonstração da grande competência daquele ator em expressar respectivamente fome tristeza e ternura Só que os três planos de Mosjukin eram exatamente o mesmo Os sentimentos lidos na cara do ator foram interpretações dos espectadores as quais nascem de seus valores a fome diante da comida a ternura diante da criança mas valores provocados naquele momento pela aproximação das imagens Ternura ou tristeza não são expressas pelo filme elas resultam da reação do espectador diante da justaposição de duas imagens É como se não se pudesse ver duas imagens seguidas sem estabelecer entre elas uma relação significativa BERNARDET 1981 p 49 Isso confirmou que a emoção dos espectadores não era despertada pela realidade e sim pela técnica cinematográfica marcando a criação do domínio do 80 fílmico o efeito do que se vê na tela sobre o cinematográfico os procedimentos técnicos da filmagem BRITO 1995 p 183 A montagem pode ser rítmica intelectual ou ideológica e narrativa A montagem rítmica resulta da convergência entre a duração de cada plano e a atenção suscitada Melhor dizendo quando um plano é exposto ocorre o momento de atenção máxima no qual o espectador compreende a significação e razão de ser daquele plano No entanto se este plano se prolongar o momento de impaciência e aborrecimento ocorre demonstrando a baixa de atenção O filme ganha ritmo mantendo a atenção da plateia quando cortase o plano e o substitui por outro no exato momento em que aconteceria a baixa de atenção A montagem intelectual ou ideológica é mais ou menos descritiva trabalhando a aproximação dos planos com a finalidade de lançar ao espectador um sentimento ponto de vista ou conteúdo ideológico Esse tipo de montagem reconstrói intelectualmente uma visão da realidade Quanto à montagem narrativa esta é descritiva e conta uma ação por meio de vários fragmentos de realidade reunidos de modo que a sucessão destes fragmentos forma uma totalidade significativa Dividese em quatro tipos conforme a sucessão dos fragmentos Montagem Linear considerada a mais simples e clássica já que as cenas são dispostas uma após a outra seguindo uma ordem lógica e cronológica de uma única ação Podemos dizer que o filme O Pagador de Promessas encaixase nesse tipo de montagem narrativa pois a narração fílmica é simples obedecendo à cronologia dos fatos que levam Zé do Burro ao seu trágico fim Montagem Invertida não obedece à ordem cronológica da ação Empregando uma ou várias regressões chamadas de flashback misturando cenas do passado com cenas do presente Montagem alternada nela as imagens são justapostas para mostrar de forma alternada por exemplo personagens discutindo ou um perseguindo o outro Quando estas imagens são alternadas de forma rápida intensificam a emoção e mantém o suspense na plateia Podemos citar como exemplo desse tipo de montagem o plano de uma jovem amarrada nos trilhos de um trem que se aproxima rapidamente e em outra tomada o herói recebe o aviso de que a mocinha está em perigo Temos aí uma alternância de planos mostrando simultaneamente à plateia o desespero da jovem a aproximação do trem e a corrida do herói contra o tempo 81 Montagem Paralela diversas ações são aproximadas simbolicamente para fazer surgir de sua justaposição de quadros uma determinada significação não sendo necessária a sincronia temporal destas ações mostradas Segundo Betton encontramos um exemplo típico de montagem paralela em Intolerance de Griffith quatro episódios a tomada de Babilônia por Ciro o massacre de São Bartolomeu a Paixão de Cristo e um drama moderno a condenação à morte de um inocente nos Estados Unidos tudo conduz a um único tema a intolerância social e religiosa através das eras BETTON 1987 p 80 Consideramos importante tratar da montagem por estar diretamente ligada à construção da textualidade fílmica levandonos a tocar em uma fundamental diferença conceitual entre diegese e discurso Segundo Brito a diegese introduzida à teoria do cinema por Étienne Sourieal denota todo o universo fictício temporal e espacialmente concebido manifestado ou implícito num filme o que inclui portanto não só a sua narração como também os seus aspectos descritivos subentendidos ou não BRITO 1995 p 204 Já o discurso designa as escolhas do realizador isto é o grau de influência do diretor na estrutura do filme Logo a maneira como uma cena é construída a partir das escolhas de utilização dos tipos de planos ângulos e movimentos da câmera faz com que esses recursos empregados sejam interpretados como sinais das intervenções do diretor enquanto autor sendo compreendidas como marcas do discurso sobre a diegese LUNA 2009 p 109 Essa distinção entre diegese e discurso é de grande valor para nossa pesquisa que tem por objetivo analisar a maneira como o discurso de Anselmo Duarte diretor do filme O Pagador de Promessas causa intensificações mudanças transformações desvios ou rupturas na interpretação que faremos da ação dramática no texto original de Dias Gomes Retornando à diegese esta pode ter elementos heterodiegéticos e homodiegéticos Se pensarmos em uma música ouvida apenas pelos espectadores sem que seja ouvida também pelas personagens do filme então essa música é heterodiegética pois se encontra fora do universo ficcional diegético mesmo fazendo parte do efeito de conjunto provocado pelo filme Porém se a personagem ouve a mesma música que o público está ouvindo então essa música é homodiegética visto fazer parte do universo ficcional dramatizado pela diegese 82 Outros elementos como o som a música os diálogos cenários iluminação cor entre outros fazem parte da composição do texto fílmico A começar pelo som este tem grande importância no cinema transformando profundamente sua estética com o advento da música e do diálogo O som não só cria atmosferas como facilita a compreensão da narrativa além de aumentar a capacidade de expressão fílmica Imagem e som podem ser combinados complementandose Entretanto também podem ser usados em contraste tendo seus conteúdos antagônicos Essa prática todavia é bem delicada em decorrência do risco de contrasenso na interpretação de duas mensagens diferentes apresentadas simultaneamente Referente à palavra Betton declara o seguinte A simples audição de uma voz pode dar uma imagem incrivelmente exata da maior parte das características físicas e mentais de uma pessoa e particularmente de um ator O poder de convencimento da palavra humana não está unicamente nas palavras pronunciadas e nas idéias que estas sugerem ele reside também no próprio som da voz e esta não somente tem um poder de sugestão mas também um valor psicológico incontestável ela exalta a emotividade Na verdade a entonação o ritmo e o timbre são mais importantes que a sintaxe BETTON 1987 p 44 Quanto ao diálogo este pode conservar a verossimilhança da realidade vivida através de falas claras eficazes simples e espontâneas que surjam da situação ou ao contrário pode variar em graus distintos de elaboração poética e retórica Como o cinema conforme sugerido anteriormente tem uma vocação acentuada para o realismo a utilização de uma linguagem excessivamente poética ou retórica produz efeitos contrastivos que podem ou não ser eficazes Respeitante à música sua função além de ser estética é também psicológica pois exalta a emotividade através de choques de afetividade criando atmosfera emocional A música no cinema não é um mero elemento de preenchimento de espaços vazios Pelo contrário a música é prevista desde a pré produção do filme e a ela é atribuído um papel considerável obtendo um alto poder dramático quando o silêncio é empregado de maneira estratégica Com relação ao cenário este é outro importante elemento da linguagem cinematográfica Podendo ser real paisagem ou construção humana ou artificial ambiente construído em estúdio o cenário tem funções além de sua própria materialidade pois também possui significações Gérard Betton diz que apesar da grande importância do cenário ele deve no entanto ecliparse por trás da ação e contribuir para formar um todo 83 harmonioso sob pena de a atenção do espectador deterse num detalhe desviandose assim da idéia principal do filme 1987 p 52 Claro que se essa for a intenção proposital do diretor ao invés de constituir defeito de produção tal recurso pode render significação extra ao texto fílmico Outros recursos técnicos muito utilizados como pontuações no cinema são os escurecimentos de imagem entre um plano e outro chamados de fade out as aberturas ou fade in as substituições graduais de uma imagem por outra conhecidas como fusões as superposições ou seja a coexistência de dois ou mais planos ao mesmo tempo as cortinas quando uma imagem substitui a outra empurrandoa Há ainda inversão de movimento cortes paragens ou congelamento de um fragmento da imagem aceleração da imagem e câmera lenta Com base em todas as questões levantadas nesse capítulo podemos dizer que o cinema mesmo sendo uma arte narrativa compartilha com o teatro a essência da arte dramática podendo através do emprego de seus recursos particulares realçar a dramaticidade e a tragicidade da ação em consequência de suas potencialidades para amplificar efeitos em relação às categorias do drama apontadas nesta pesquisa Por isso todas as categorias dramáticas e fílmicas que discutimos até aqui servirão de elementos basilares para nosso estudo da adaptação fílmica do texto teatral O Pagador de Promessas realizada por Anselmo Duarte em 1962 cuja análise apresentaremos logo após a leitura interpretativa do texto dramático que originou o citado filme 84 CAPÍTULO IV O Pagador de Promessas dramaticidade e tragicidade da literatura ao cinema Tudo pode ser tirado de uma pessoa exceto uma coisa a liberdade de escolher sua atitude em qualquer circunstância da vida Victor Frankl 1 Em cena a ação trágica de O Pagador de Promessas Podese imaginar o impacto visual de um espetáculo baseado em um texto dramático cujo início coloca em cena um homem de feições simples carregando sobre as costas uma enorme e pesada cruz Signo ambíguo por excelência evocando a só um tempo a glória e o martírio a cruz em O Pagador de Promessas também se oferece como signo emblemático antecipando numa imagem cênica proléptica a coragem daquele ser simples que virá a ser sacrificado justamente por sua elevação por sua dignidade No entanto a tragicidade desse drama somente começará a se evidenciar com mais nitidez quando em meio à trama a cruz assumir seus significados mais penosos de dor e sofrimento à medida que os conflitos entre o herói e seus antagonistas progridam até que finalmente a mesma cruz se torne como a de Cristo um emblema de morte Logo seguir Zé do Burro em seu calvário retratado no drama social O Pagador de Promessas é sujeitarse aos espinhos de um universo trágico marcado pela intolerância e por desigualdades sociais um universo que apesar de todos os açoites não consegue impedir o homem de alcançar a ascensão Ao final a mesma cruz que martiriza é a que elevará o simplório Zé à ascensão no universo da moderna dramaturgia brasileira Pretendemos neste capítulo observar como as categorias dramáticas antigas e modernas foram trabalhadas por Dias Gomes na construção desse universo trágico tão estranhamente simples profundo e comovente Nossa análise parte da maneira como o autor apresenta sua peça um texto em três atos tendo sido o primeiro e o segundo ato dividido em dois quadros cada enquanto o terceiro ato possui apenas um quadro A cada quadro além das indicações 85 de cenário gestos e falas do elenco e movimentos cênicos o dramaturgo dá detalhes físicos e psicológicos dos personagens através das rubricas Esse artifício é um elemento típico do drama moderno pois nos textos clássicos que nos foram legados não há por exemplo descrições das personagens como se vê na rubrica inicial do texto analisado que também prima por detalhes na apresentação do cenário outra especialidade do teatro moderno Uma pequena praça onde desembocam duas ruas Uma à direita seguindo a linha da ribalta outra à esquerda ao fundo de frente para a platéia subindo enladeirada e sinuosa no perfil de velhos sobrados coloniais Na esquina da rua da direita vemos a fachada de uma igreja relativamente modesta com uma escadaria de quatro ou cinco degraus Numa das esquinas da ladeira do lado oposto há uma vendola onde também se vende café refresco cachaça etc a outra esquina da ladeira é ocupada por um sobrado cuja fachada forma ligeira barriga pelo acúmulo de andares não previsto inicialmente O calçamento da ladeira é irregular e na fachada dos sobrados vêemse alguns azulejos estragados pelo tempo Enfim é uma paisagem tipicamente baiana da Bahia velha e colonial que ainda hoje resiste à avalanche urbanística moderna Devem ser aproximadamente quatro e meia da manhã Tanto a igreja como a vendola estão com suas portas cerradas Vem de longe o som dos atabaques dum candomblé distante no toque de Iansã GOMES 2003 p 9 A rubrica que abre o primeiro quadro do primeiro ato como veremos adiante não termina nesse ponto Entretanto escolhemos dividila em duas partes para facilitar a compreensão de nossos comentários Como é possível perceber neste primeiro momento da rubrica temos basicamente a projeção do cenário onde ocorrerá toda a ação O autor enriquece o texto detalhando minuciosamente o ambiente chegando ao ponto de descrever até mesmo o que é comercializado na vendola existente na praça assim como a irregularidade no calçamento da ladeira e o estrago na fachada dos sobrados causado pela ação do tempo Em seguida há uma indicação temporal ou seja a hora exata da chegada do herói no local onde será desenvolvida a trama O som distante dos atabaques de candomblé dá pistas da temática da peça o sincretismo religioso Decorrem alguns segundos até que ZédoBurro surja pela rua da direita carregando nas costas uma enorme e pesada cruz de madeira A passos lentos cansados entra na praça seguido de Rosa sua mulher Ele é um homem ainda moço de 30 anos presumíveis magro 86 de estatura média Seu olhar é morto contemplativo Suas feições transmitem bondade tolerância e há em seu rosto um quê de infantilidade Seus gestos são lentos preguiçosos bem como sua maneira de falar Tem barba de dois ou três dias e trajase decentemente embora sua roupa seja mal talhada e esteja amarrotada e suja de poeira Rosa parece pouco ter de comum com ele É uma bela mulher embora seus traços sejam um tanto grosseiros tal como suas maneiras Ao contrário do marido tem sangue quente revelando logo à primeira vista uma insatisfação sexual e uma ânsia recalcada de romper com o ambiente em que se sente sufocar Vestese como uma provinciana que vem à cidade mas também como uma mulher que não deseja ocultar os encantos que possui ZédoBurro vai até o centro da praça e aí pousa a sua cruz equilibrandoa na base e num dos braços como um cavalete Está exausto Enxuga o suor da testa GOMES 2003 p 910 Neste segundo trecho da rubrica inicial além das indicações de gestos dos atores em cena Dias Gomes se dedica à descrição das personagens Zé do Burro e Rosa sua mulher Temos aí características físicas idade altura aparência sociais forma de se vestir e psicológicas ingenuidade desejo insatisfações O detalhamento da aparência da personagem é determinado pela necessidade de explicar a importância dessa aparência na ação da figura dramática mesmo em casos onde a aparência não influa tão decisivamente sobre as ações do personagem informações nítidas a respeito de sua constituição física podem ser fundamentais Assim o Zé do Burro de O Pagador de Promessas de Dias Gomes tem de ser um homem rústico talvez seco mas forte resistente Um homem débil e delicado de mãos suaves e pés finos não convenceria dentro de uma hipótese de teatro realista que é a daquela peça como capaz de carregar uma cruz a pé por tantas léguas Sic PALLOTTINI 1989 p 64 Nas tragédias clássicas segundo Aristotéles são as ações que nos permitem discernir as caracterizações das figuras dramáticas mas sendo na peça estudada as personagens descritas antes de agirem a ação vem para confirmar o que já foi dito sendo esta uma das mais marcantes características da dramaturgia moderna que realça a subjetividade na representação da ação Assim não é através das ações cometidas por todos ao longo da trama que descobrimos os caracteres pois estes já nos foram ditos pelo autor Obviamente que tal interpretação só se verifica na leitura do texto e não em sua dramatização visto não termos acesso às rubricas durante a performance Contudo o uso das rubricas seja como texto literário ou guia para o diretor da montagem dramática indicia a caracterização das personagens enfatizando a maneira como agem 87 Se nas rubricas que os descrevem Zé do Burro infantil lento contemplativo aparece como contraste em relação a sua mulher de sangue quente já nos primeiros diálogos entre Zé e Rosa confirmamse suas diferenças físicas e psicológicas palavras gestos e ações de cada um atualizando em cena o ethos que movem seus atos ZÉ Olhando a igreja É essa Só pode ser essa Rosa pára também junto aos degraus cansada enfastiada e deixando já entrever uma revolta que se avoluma ROSA E agora Está fechada ZÉ É cedo ainda Vamos esperar que abra ROSA Esperar Aqui ZÉ Não tem outro jeito ROSA Olhao com raiva e vai sentarse num dos degraus Tira o sapato Estou com cada bolha dágua no pé que dá medo ZÉ Eu também Num ricto de dor despe uma das mangas do paletó Acho que os meus ombros estão em carne viva ROSA Bem feito Você não quis botar almofadinhas como eu disse ZÉ Convicto Não era direito Quando eu fiz a promessa não falei em almofadinhas GOMES 2003 p 10 Ambos estão feridos e muito cansados entretanto Zé revela sua sujeição e paciência enquanto Rosa não consegue abafar sua irritação Apesar dessa clara diferença de temperamento dos dois a própria circunstância justifica a forma como Rosa reage ao momento dramatizado visto nesse primeiro momento a rispidez dessa personagem criar no espectador uma impressão negativa a seu respeito causando talvez afastamento por parte da plateia Contudo essa atitude de Rosa é compreensível se levarmos em consideração seu desgaste físico por caminhar uma longa distância ao lado do esposo para pagar uma promessa sequer feita por ela A princípio Rosa parece não alcançar com profundidade o sentido do ato de Zé do Burro porém é preciso lembrar que segundo Dias Gomes ela é uma mulher rústica de maneiras grosseiras logo não é de se estranhar a rudeza presente até em suas demonstrações de cuidado como se percebe na fala referente ao uso de almofadinhas Quando Rosa recupera da memória sua sugestão ao marido de amortecer o peso da cruz protegendo os ombros com almofadas fica evidente sua atenção ao esposo deixando claro que embora ela já tenha chegado ao seu limite e sintase irritada com a atual condição em que se encontra não quer dizer que Rosa não tenha dado importância à promessa de Zé do Burro Ao contrário Ela não só se importa como ainda tenta amenizar o peso da tal promessa seja através de artifícios que diminuam a dor física seja por meio de sua companhia apoiando o esposo e dividindo com ele senão todo ao 88 menos parte do calvário que ele tem pela frente Talvez o que não convença Rosa seja o excesso implicado na devoção extrema do pagador isto é para ela não haveria necessidade de tantos sacrifícios como ferimentos no corpo e dormir no chão a espera do momento em que a igreja abriria suas portas Não por acaso ela tenta convencer Zé do Burro a descansar um pouco antes de pagar definitivamente sua promessa ROSA Essa hora tá todo mundo dormindo Olhao quase com raiva Todo mundo menos eu que tive a infelicidade de me casar com um pagador de promessa Levantase e procura convencêlo Escute Zé já que a igreja está fechada a gente podia ir procurar um lugar pra dormir Você já pensou que beleza agora uma cama ZÉ E a cruz ROSA Você deixava a cruz aí e amanhã de dia ZÉ Podem roubar ROSA Quem é que vai roubar uma cruz homem de Deus Pra que serve uma cruz ZÉ Tem tanta maldade no mundo Era correr um risco muito grande depois de ter quase cumprido a promessa E você já pensou se me roubassem a cruz eu ia ter que fazer outra e vir de novo com ela nas costas da roça até aqui Sessenta léguas ROSA Pra quê Você explicava à santa que tinha sido roubado ela não ia fazer questão ZÉ É o que você pensa Quando você vai pagar uma conta no armarinho e perde o dinheiro no caminho o turco perdoa a dívida Uma ova ROSA Mas você já pagou a sua promessa já trouxe uma cruz de madeira da roça até a Igreja de Santa Bárbara Está aí a Igreja de Santa Bárbara está aí a cruz Pronto Agora vamos embora Sic GOMES 2003 p 11 Nesse trecho as falas de Rosa evidenciam outro contraste entre ela e o marido atinente ao universo religioso Ambos representam pontos de vista opostos diante do ato de pagar a promessa Podemos dizer que a mulher apresenta certa descrença enquanto Zé demonstra um pouco de exagero em sua devoção pois notase certo descaso por parte de Rosa em relação à cruz enquanto Zé a ela se apega com devoção inamovível Rosa parece ver a cruz de forma concreta material ao contrário de Zé do Burro que somente enxerga o valor simbólico Para ele não seria roubado o objeto feito de madeira e sim o seu agradecimento banhado de suor sangue e sacrifício elementos que tornam essa cruz uma peça única e de grande valor A infelicidade de se casar com um pagador de promessas citada por Rosa não deve ser uma desvalorização nem ao marido nem ao ato de pagar promessas mas uma crítica à forma excessiva heróica de se fazer o referido pagamento Sob outra perspectiva contudo podese considerar que 89 esse excesso de Zé do Burro explicase em grande medida como consequência de sua ingenuidade quase pueril embora a profundidade de sua fé não deva ser descartada Pelo discurso de Rosa a promessa já teria sido paga logo não haveria motivos para qualquer queixa divina se o prometido era apenas levar uma pesada cruz até uma Igreja de Santa Bárbara A santa não faria nenhuma questão caso a cruz sumisse da porta da igreja se Zé do Burro já havia feito o que devia Entretanto para Zé as coisas não funcionam de maneira tão racionalizada embora ele próprio interprete questões de fé sob perspectivas bem concretas Sua alusão ao dono do armarinho é uma forma de dizer que a promessa é também um negócio o qual deve ser tratado com honestidade visto haver uma relação de troca a ser respeitada Quem deve paga Somente isso interessa ao negociante não importando qualquer tipo de imprevisto ocorrido com o devedor Nessa comparação entre comércio e religião feita por Zé do Burro percebese a maneira irônica de Dias Gomes apontar a comercialização da fé instituindo também o parâmetro para a leitura crítica dessa relação em uma fala de Zé anterior ao trecho citado pronunciada em resposta ao discurso de Rosa sobre a possibilidade que o marido teria de usar almofadinhas para proteger os ombros O pagador considera tal atitude como desonestidade uma forma de enganar a santa suas palavras apontando para a recusa ao engodo ZÉ Não nesse negócio de milagres é preciso ser honesto Se a gente embrulha o santo perde o crédito De outra vez o santo olha consulta lá os seus assentamentos e diz Ah você é o ZédoBurro aquele que já me passou a perna E agora vem me fazer nova promessa Pois vá fazer promessa pro diabo que o carregue seu caloteiro duma figa E tem mais santo é como gringo passou calote num todos os outros ficam sabendo GOMES 2003 p 10 Para Zé do Burro os santos não esquecem seus devedores Nesse trecho no entender do pagador o cumprimento de uma promessa é uma prova de honestidade uma prestação de contas cuja falha no pagamento sujaria seu nome não apenas no caderno do santo a quem deve como na praça isto é perderia o crédito diante de todas as divindades que ficassem sabendo de sua atitude desonesta Quando Zé do Burro diz que nesse negócio de milagres é preciso ser honesto embora ofereça uma visão da religião enquanto um tipo de comércio instaura uma lógica de pensamento movida por incontornável honestidade e um sentimento religioso que não o permitem 90 falhar O herói deseja pagar sua promessa sem cometer erros por isso busca provas de estar à porta da igreja correta Ele sobe um ou dois degraus Examina a fachada da igreja à procura de uma inscrição ROSA Que é que você está procurando ZÉ Qualquer coisa escrita pra gente saber se essa é mesmo a Igreja de Santa Bárbara ROSA Claro que é essa Não lembra o que o vigário disse Uma igreja pequena numa praça perto duma ladeira ZÉ Corre os olhos em volta Se a gente pudesse perguntar a alguém GOMES 2003 p 1011 Essa demonstração de dúvida quanto a estar no lugar certo revela todo o cuidado de Zé do Burro para que tudo ocorra bem no pagamento de sua promessa além de dar pistas da excessiva vontade da personagem Já se nota que o pagador está muito centrado em seu objetivo e não desistirá facilmente do planejado Nada pode dar errado nem pode ele dar motivo para suscitar qualquer mal entendido por parte da santa como vemos quando Rosa tenta convencêlo a deixar a cruz na porta da igreja ZÉ Mas aqui não é a Igreja de Santa Bárbara A igreja é da porta pra dentro ROSA Oxente Mas a porta está fechada e a culpa não é sua Santa Bárbara deve saber disso que diabo ZÉ Pensativo Só se eu falasse com ela e explicasse a situação ROSA Pois então fale ZÉ Ergue os olhos para o céu medrosamente e chega a entreabrir os lábios como se fosse dirigirse à santa Mas perde a coragem Não não posso ROSA Por quê homem Santa Bárbara é tão sua amiga Você não está em dia com ela ZÉ Estou mas esse negócio de falar com santo é muito complicado Santo nunca responde em língua de gente não se pode saber o que ele pensa E além do mais isso também não é direito Eu prometi levar a cruz até dentro da igreja tenho que levar Andei sessenta léguas Não vou me sujar com a santa por causa de meio metro ROSA E pra você não se sujar com a santa eu vou ter que dormir no chão no hotel do padre Olhao com raiva e vai deitarse num dos degraus da escada da igreja E se tudo isso ainda fosse por alguma coisa que valesse a pena ZÉ Você podia não ter vindo Quando eu fiz a promessa não falei em você só na cruz ROSA Agora você diz isso Dissesse antes ZÉ Não me lembrei Você também não reclamou ROSA Sou sua mulher Tenho que ir pra onde você for ZÉ Então Sic GOMES 2003 p 1112 91 Ressaltase nesse trecho a maneira como Rosa partindo da ingenuidade e fé do esposo tenta convencêlo a acabar logo com toda aquela situação Vendo o temor do marido de que algo saia errado e ciente da necessidade dele em ter a aprovação divina para fazer qualquer coisa diferente Rosa o incentiva a consultar a santa Apesar de toda sua determinação o pagador quase cede ao conselho da esposa No entanto o herói de Dias Gomes se mostra temeroso à reação da santa caso sugira uma reformulação do acordo feito anteriormente Há uma espécie de submissão de pequenez diante da santa demonstrada nesse fragmento que impede Zé do Burro de ir adiante no diálogo com Santa Bárbara visto o risco de não conseguir interpretar corretamente a resposta dada pela divindade Desse modo o pagador colocase de volta no caminho traçado desde o início mais uma vez dandonos evidências de sua determinada vontade que não o permitirá retroceder Tal atitude deixa Rosa ainda mais revoltada Devido à fadiga a mulher não consegue mais conter sua insatisfação por ter de sacrificarse um pouco mais para que a santa não se decepcione com o pagador Apesar da rispidez mostrada por Rosa até aqui não devemos esquecer que ela deixou o lar para seguir o marido mesmo não tendo sido convocada por todo o árduo trajeto à cidade simplesmente por aceitar este ato como seu dever de esposa Não importa para onde o marido vá Rosa se sente obrigada a ir com ele seja chamada ou não Protestando Rosa desvaloriza a tal promessa E se tudo isso ainda fosse por alguma coisa que valesse a pena GOMES 2003 p 12 A forma como Zé do Burro reage a essa fala da esposa descartando sua presença traz comoção à situação de Rosa cujo ato parece não ser reconhecido e apreciado pelo pagador o que mais adiante pode ser lembrado como um dos motivos desencadeadores da traição de Rosa Até esse momento temos certeza de quem é o herói conhecemos suas características físicas e psicológicas assim como as de sua esposa temos um conflito evidenciado pelas diferenças entre o casal e sabemos de uma promessa feita por Zé Todavia desconhecemos que promessa é essa por quê ele a fez assim como desconhecemos os acontecimentos ocorridos durante o trajeto até a igreja Isso significa dizer que a obra foi iniciada in media res em meio a eventos importantes para o seguimento da trama rumo ao fim trágico Obviamente o passado de Zé do Burro esconde elementos desencadeadores do destino que o aguarda ao final do texto contudo estes somente serão revelados com o desenrolar da trama através de falas do próprio herói e sua esposa Rosa Conforme já comentado anteriormente o início in 92 medias res é um artifício estratégico utilizado não só para culminar a produção do efeito catártico acentuando a tragicidade devido à impossibilidade de reverter o que já teria acontecido no passado anterior à ação assim como também colabora para a diminuição da extensão da obra adequandoa ao tamanho ideal a um espetáculo teatral contribuindo para a concentração de efeitos tão recomendada por Aristóteles em relação ao gênero dramático Em O Pagador de Promessas Dias Gomes mantém as unidades de tempo e espaço conforme as tragédias clássicas Toda a trama se passa em um mesmo lugar na frente da igreja e em um único dia melhor dizendo o drama de Zé do Burro inicia de madrugada e termina ao entardecer tempo suficiente para os acontecimentos se desenvolverem verossimilmente e mudarem a fortuna do herói da felicidade para o infortúnio segundo as leis de causa e efeito Não se respeita apenas as unidades de lugar e tempo mas também a categoria básica do teatro trágico clássico a unidade de ação tal como sugeridas por Aristóteles em sua Poética Embora ainda estejamos no início da ação dramatizada já se sabe que o eixo central da trama é a tentativa de Zé do Burro de pagar sua promessa feita à Santa BárbaraIansã tudo ocorrendo em volta dele e de seu objetivo Definida a linha norteadora do drama a ela se prendem os episódios que darão corpo à construção dramática garantindo assim a unidade de ação De volta à forma como Dias Gomes constrói seu texto observamos que o autor faz uso freqüente das rubricas para apresentar as personagens independentemente do grau de importância de cada uma para a trama demonstrando profunda preocupação com a coerência entre o ethos e suas motivações para a ação Aliás de acordo com Sebastiana Siqueira e Silva 2009 p81 nenhuma das rubricas que descrevem personagens secundários é tão longa quanto a que apresenta Marli e Bonitão conforme mostrado abaixo Subitamente irrompem na praça Marli e Bonitão Ela tem na realidade vinte e oito anos mas aparenta mais dez Pintase com algum exagero mas mesmo assim não consegue esconder a tez amareloesverdeada Possui alguns traços de uma beleza doentia uma beleza triste e suicida Usa um vestido muito curto e decotado já um tanto gasto e fora de moda mas ainda de bom efeito visual Seus gestos e atitudes refletem o conflito da mulher que quer libertarse de uma tirania que no entanto é necessária ao seu equilíbrio psíquico a exploração de que é vítima por parte de Bonitão vem em parte satisfazer um instinto maternal frustrado Há em seu amor e em seu aviltamento em sua degradação voluntária muito de sacrifício 93 maternal ao qual não falta inclusive um certo orgulho Bonitão é insensível a tudo isso Ele é frio e brutal em sua profissão Encara a exploração a que submete Marli e outras mulheres como um direito que lhe assiste ou melhor um dom que a natureza lhe concedeu juntamente com seus atributos físicos Em seu entender sua beleza máscula e seu vigor sexual aliados a um direito natural de subsistir justificam plenamente seu modo de vida É de estatura um pouco acima da média forte e de pele trigueira amulatada A ascendência negra é visível embora os cabelos sejam lisos reluzentes de gomalina e os traços regulares com exceção dos lábios grossos e sensuais e das narinas um tanto dilatadas Vestese sempre de branco colarinho alto sapatos de duas cores Descem a ladeira ela na frente a passos rápidos Ele a segue como se viessem já de uma discussão GOMES 2003 p 1213 As primeiras falas destas personagens revelam a peculiaridade de sua relação Já se sabe que Bonitão é um cafetão e Marli uma prostituta sentimentalmente envolvida mesmo não havendo demonstrações de reciprocidade por parte de Bonitão Temos no início do diálogo dessa dupla uma representação do mundo marginalizado em que vivem A relação de Marli e Bonitão é de mera prestação de contas ao menos por parte do cafetão A forma violenta como Bonitão trata Marli confirma sua indiferença aos sentimentos e necessidades da prostituta que apesar de subordinada seja como amante apaixonada ou como um meio de Bonitão conseguir dinheiro também sabe enganar dando mostras de sua esperteza quando esconde dinheiro no decote ainda que não tenha escapado da astúcia de seu interlocutor Essas ações das duas personagens realçam a ideia de mentiras e artimanhas que envolve esse lado do universo civilizado com o qual o casal de caipiras vai se deparar Chamanos atenção também o momento quando escondendose atrás da cruz de Zé do Burro Marli acha proteção contra o mundo opressor representado por Bonitão do qual deseja desvencilharse numa atualização da figura bíblica de Maria Madalena a pecadora arrependida que encontra aos pés do Cristo o caminho para a libertação das explorações às quais era submetida muito embora diferentemente de Madalena Marli permaneça cativa no mundo obscuro onde vive O pagador por sua vez ao ser despertado observa a discussão do casal No entanto diferentemente do público Zé do Burro ainda não tem noção de quem sejam aquelas pessoas Marli vai tentar convencer Bonitão a lhe devolver o dinheiro retirado de seu decote visto ser a quantia necessária para pagar o aluguel do quarto onde dorme O cafetão não se comove dizendo ter outras coisas para pensar 94 BONITÃO Sorri e há em seu sorriso uma sombra de ameaça Penso por exemplo que você de três meses pra cá está fazendo muito pouco A Matilde está fazendo quase o dobro GOMES 2003 p 14 Quando cita o nome da outra prostituta Matilde não há como ter dúvidas de que Bonitão enxerga essas mulheres como máquinas de fazer dinheiro Além disso tocar no nome de Matilde parece ser uma forma de garantir a lealdade de Marli completamente cega pelo ciúme A comparação entre o rendimento das duas prostitutas pode ser lida como uma alusão ao capitalismo através da desumanização confirmando o que já foi dito na rubrica sobre Bonitão que acredita ter o direito de explorar as mulheres ao seu redor isentandose de qualquer culpabilidade o que empresta um grau efetivo de dramaticidade ao fato Observando a detalhada descrição de Marli e Bonitão na rubrica encontramos evidências que constituem parâmetros possíveis de comparação A começar pelo emprego de casais como representação dos dois mundos que se embatem nesta trama num sentido mais amplo o universo da simplicidade rural e o mundo civilizado urbano Todavia a questão do choque entre dois mundos é ainda mais complexa quando se considera os conflitos vividos por cada casal devido à diferença de pensamento de cada uma das pessoas afinal segundo o dito popular cada pessoa um mundo Até aqui já está bem claro que Zé e Rosa são representativos do universo simples da zona rural enquanto Bonitão e Marli simbolizam a zona urbana Entretanto as quatro personagens são todas representações de classes sociais marginalizadas e menos favorecidas Podemos avançar ainda mais na observação dos casais descritos mas dessa vez fazendo comparações entre as personagens femininas e em seguida entre as masculinas Dias Gomes dá destaque às características que mais chamam atenção nas mulheres a beleza física Segundo ele Rosa é uma bela mulher embora não carregue uma beleza delicada como é tão comum entre as mocinhas protagonistas de ficções Dizemos isso porém em alguns momentos da trama veremos que Rosa não faz o gênero heroína por colocarse em oposição ao objetivo de seu esposo Entretanto essa beleza áspera descrita pelo autor não causa surpresa afinal Rosa é uma mulher do campo por isso sem tempo eou condições para certas vaidades embora ciente de seus encantos busque valorizálos apesar da simplicidade 95 Enquanto não é dada nenhuma indicação sobre a idade de Rosa o dramaturgo inicia a descrição de Marli pela idade Ela tem vinte e oito anos embora aparente ser dez anos mais velha Outra vez considerando os ditos e crenças populares comumente se diz que o sofrimento envelhece fazendonos imaginar que a aparência de mais idade da prostituta Marli seja reflexo de sua dura e difícil realidade A maquiagem pesada de Marli não deve ser apenas uma exigência de sua profissão e simples vaidade mas também uma forma de mascarar o sofrimento que sua cara lavada poderia denunciar Do mesmo modo seu vestido curto e decotado velho mas de bom efeito visual serve para mostrar que ela ainda é uma mulher desejável apesar de sua beleza apontada como triste doentia suicida Não há como enxergarmos Marli como alguém feliz com a vida que tem Na verdade nem Rosa nem Marli são felizes em seus mundos Parece até que tiveram seus papéis trocados pois enquanto Rosa tem o sangue quente buscando saciar sua insatisfação sexual Marli deseja libertarse do mundo onde vive para satisfazer sua natural mas frustrada tendência para a maternidade Rosa consegue mesmo por pouco tempo desvencilharse de seu universo e adentrar o mundo de Marli Esta no entanto permanece cativa de seu ambiente possivelmente por vontade própria pois comparada a Rosa Marli teria mais chances de romper com seu ambiente do que a outra visto seu compromisso com Bonitão não ser formal nem preso a determinados valores como no caso de Rosa e Zé Quanto a Zé do Burro e Bonitão é possível fazer algumas considerações também Sobre o pagador Dias Gomes inicia dando indicações de sua idade um homem jovem de aproximadamente trinta anos movido unicamente pelo desejo de pagar sua promessa sem preocuparse com a aparência vestindose de maneira decente mas com certo desleixo Não há contudo nesta personagem indícios de comportamento falso manipulador desonesto ao contrário é patente sua ingenuidade quase pueril retocada apenas por uma vontade férrea que desvela o homem por trás da criança Em relação a Bonitão a insensibilidade e brutalidade destacadas por Dias Gomes revelam que essa personagem simboliza a figura do macho conquistador Ele é da cidade do núcleo civilizado apoiando seu machismo em uma esperteza típica dos malandros No respeitante à aparência o cafetão procura fazer jus ao nome ou apelido que tem reconhecendo e valorizando seus atributos físicos Diferentemente de Zé Bonitão se veste com esmero A ascendência negra de Bonitão pode ser entendida como indicação da mistura de culturas presente neste drama 96 Bonitão e Marli são as primeiros personagens a ver Rosa e Zé do Burro Porém Marli não lhes dá atenção ignorandoos enquanto Bonitão os observa e aproximase iniciando uma conversa com Zé A princípio o rufião acha a promessa engraçada embora ainda não saiba qual a graça alcançada pelo pagador que se coloca na defensiva ao perceber certo deboche por parte de Bonitão Notando a presença de Marli ainda ali mesmo a tendo mandado embora Bonitão tem uma nova discussão com a prostituta Rosa continua dormindo nos degraus enquanto Zé do Burro observa a conversa do casal Marli insiste em que o rufião lhe dê dinheiro para pagar o aluguel do quarto afinal ela trabalhou e por isso é justo ter algum lucro também Contudo para Bonitão o trabalho não dá direito nenhum a ninguém satirizando traços de comunismo Desse modo Dias Gomes mesmo dizendo que O Pagador de Promessas não é um texto que aborda questões políticas deixa uma brecha para a reflexão sobre as desigualdades sociais a partir de perspectivas políticoideológicas Com a partida de Marli Zé do Burro tenta entender a cena desenrolada a sua frente perguntando a Bonitão se o dinheiro realmente pertencia àquela mulher Bonitão guardando o dinheiro dá uma resposta para nós emblemática do conflito que moverá essa trama Vejamos ZÉ Candidamente Esse dinheiro é dela mesmo BONITÃO Guarda o dinheiro Bem esta é uma maneira de olhar as coisas E toda coisa tem pelo menos duas maneiras de ser olhada Uma de lá pra cá outra de cá pra lá Entendeu ZÉ Não BONITÃO Não vale a pena explicar É uma questão de sensibilidade GOMES 2003 p 16 De acordo com Hegel os conflitos são gerados por forças opostas igualmente justificáveis mas movidas por paixões individuais Desse modo consideramos o trecho citado como uma referência proléptica ao embate entre Zé do Burro e Padre Olavo quando cada um enxerga a promessa feita de uma maneira diferente Na verdade a promessa de Zé é vista não apenas de duas formas mas de várias conforme a visão e objetivo de cada grupo representado no texto Para o padre a promessa é vista como um sacrilégio um erro cometido por um homem que se deixou levar pela tentação O Repórter enxerga o ato de Zé do Burro como um golpe político O Secreta após ser convencido por Bonitão considera a ação do agricultor como um ato de agitação social Cada uma dessas personagens simboliza um grupo ou instituição agindo de acordo com 97 o esperado a partir daquilo que representam Isto é não podemos imaginar a igreja permitindo o cumprimento de uma promessa feita em um culto que vai de encontro à doutrina cristã Tal ação certamente seria uma ruptura em relação às leis de verossimilhança Sendo assim entendemos a fala de Bonitão não apenas como uma indicação de que a situação de Zé do Burro vai receber diversos olhares mas também nos parece uma forma de dizer ao público que é preciso ter sensibilidade suficiente para se colocar no lugar de cada ponto de vista dramatizado e assim entender os motivos de cada um antes de se fazer qualquer julgamento afinal o drama é sempre o lugar por excelência do ágon um tribunal ao qual os espectadores submetem aqueles envolvidos nas tramas trágicas Na movência dramática acionada pela lógica da causalidade o diálogo entre Zé do Burro e Bonitão engatilha nova instância de embate entre as personagens isto porque após sua conversa com Zé do Burro Bonitão nota a presença de Rosa interessandose imediatamente por ela admirandolhe as pernas enquanto dorme na escada da praça Rosa desperta reagindo com desagrado ao modo como Bonitão se aproxima dela Nesse momento perguntamonos o que estaria distraindo Zé do Burro para ele não notar a forma como Bonitão aborda sua esposa Seria Zé tão ingênuo a ponto de não perceber outro homem insinuandose para sua mulher Pela forma como segue o texto parece que sim Rosa no entanto percebe as intenções do rufião logo de início ao dizerlhe ser uma mulher comprometida cujo marido está ao lado causando surpresa em Bonitão e evidenciando mais uma vez o contraste entre ela e Zé do Burro BONITÃO Ah você também veio pagar promessa ROSA Eu não ele E por causa dele estou dormindo aqui no batente de uma igreja como qualquer mendiga Sentase GOMES 2003 p 17 Rosa reage mal à ideia de ser também uma pagadora de promessas deixando escapar sua revolta com a situação Sentese inferiorizada ao dormir na rua por conta da teimosia do marido em querer esperar a igreja abrir para depositar a cruz no altar mor A comparação com o morador de rua soa como outro indicativo das desigualdades denunciadas nessa obra Para amenizar a revolta de Rosa Zé tenta convencêla de que seu estado de mendicância não vai durar muito afirmando que a igreja abrirá as portas em pouco tempo E a promessa não é minha GOMES 2003 p 17 diz a 98 mulher sem suportar mais aquela condição pois ficar esperando ali mesmo por apenas uma hora é tempo demais para Rosa que já está no seu limite Intencionando se aproximar ainda mais de Rosa Bonitão convence Zé do Burro a sair de cena para verificar se a sacristia já está aberta O pagador hesita um pouco antes de ir não pelo fato de deixar a esposa só ao lado de um estranho mas por medo de alguém roubar a cruz ZÉ Rosa você vigia a cruz eu vou dar a volta não demoro Sai BONITÃO Pode ir sem susto que eu ajudo a tomar conta de sua cruz Depois que ZédoBurro sai Das duas ROSA Só que uma ele carrega nas costas e a outra se quiser que vá atrás dele Levantase BONITÃO E você não é mulher para andar atrás de qualquer homem Ao contrário é uma cruz que qualquer um carrega com prazer ROSA Com recato mas no fundo envaidecida Ora me deixe GOMES 2003 p 1718 Interessante ver Rosa aceitando ser enxergada como uma das cruzes de Zé do Burro quando Bonitão se dispõe a vigiálas Percebese em seu desabafo que a mulher se sente inferiorizada trocada pela cruz de madeira que tem muito mais atenção e cuidado por parte de Zé Talvez por sentirse magoada e enraivecida Rosa não perceba que o zelo excessivo do marido é uma tentativa de evitar sofrer todo esse calvário novamente caso algo dê errado Justamente esse excesso de cuidado pela cruz e pela promessa traduzse como a dignidade que a um só tempo eleva e fragiliza Zé do Burro tornandoo míope em relação a tudo o mais que o rodeia É daí que Bonitão intervém interessandose em seduzir Rosa diz à mulher o que ela demonstra ter necessidade de ouvir A princípio Rosa vai agir com rudeza mas aos poucos vai cedendo aos encantos do rufião comprovando como Dias Gomes construiu de forma muito encadeada os episódios que preenchem essa trama e contribuem para o desfecho trágico de Zé do Burro A simplicidade e o despreparo do casal de agricultores os levam a fornecer informações aos citadinos muito mais desenvoltos que fortalecem suas finalidades individuais Tomando o exemplo de Bonitão Rosa ao evidenciar sua insatisfação com a circunstância em que se vê inserida fornece ao cafetão pontos de apoio para alcançar seu objetivo de seduzila e convencêla a trabalhar para ele tornando a situação ainda mais dramática aos olhos do público que diferentemente de Rosa já conhece Bonitão e suas finalidades Todavia há uma parte do passado de Zé e sua esposa desconhecida tanto pelo público quanto pelo rufião Será nesse longo diálogo 99 entre Rosa e Bonitão que ocorrerá um flashback trazendo à tona informações sobre o tempo em que Zé e Rosa estão casados o fato de ser ele dono de um sítio que repartiu com lavradores mais pobres como parte da promessa feita Vaza também da fala de Rosa o relato sobre como durante o trajeto foram seguidos por uma porção de gente querendo que ele fizesse milagre GOMES 2003 p 1819 Essa alusão ao misticismo popular empresta fundamento à apreensão do padre no momento em que ele acusará Zé do Burro de estar a tentar imitar o Cristo O padre certamente conhece os perigos dos processos messiânicos produzidos pelo misticismo das populações carentes Com a volta de Zé do Burro à cena Bonitão se dispõe a ajudar o casal levando os a um hotel próximo para descansarem enquanto ele mesmo vigiaria a cruz enquanto a igreja estivesse fechada Porém o alto sentimento religioso de Zé do Burro não o permite aceitar a ajuda oferecida ZÉ Mas não é justo Não foi o senhor que fez a promessa ROSA Ele está querendo ajudar Zé ZÉ Mas não é direito Eu prometi cumprir a promessa sozinho sem ajuda de ninguém E essa história de dormir no hotel não está no trato BONITÃO E sua senhora está no trato ZÉ Rosa Não ela pode ir BONITÃO Nesse caso se quiser que eu leve sua senhora Ao menos ela descansa enquanto espera pelo senhor GOMES 2003 p 21 Esse trecho evidencia que Zé do Burro encara sua promessa como uma missão que só pode ser cumprida por ele não sendo justa nem aceitável a participação de mais ninguém Ao afirmar que a esposa não está no trato podendo seguir com o rufião o pagador abre caminho para o estranho alcançar seu objetivo de atrair a camponesa que a essa altura já se deu conta da sedução e sabe que embora receosa e presa aos valores do matrimônio que a fizeram acompanhar o marido até ali está prestes a seguir um caminho sem volta por isso diz preferir continuar ao lado de Zé Este porém sem perceber a situação amparase nas reclamações feitas antes por Rosa para convencêla de ir com Bonitão Afinal de contas você tem razão a promessa é minha não sua Vá com o moço não tenha acanhamento GOMES 2003 p 22 finaliza Zé do Burro com um discurso ambíguo não para ele mas para o público que entende nessa fala uma quase autorização à traição ROSA Zé é melhor eu ficar com você ZÉ Pra quê Rosa Assim você vai logo descansar numa boa cama não precisa ficar aí deitada nesse batente frio 100 BONITÃO Um perigo Pode pegar uma pneumonia ROSA Inicia a saída Pára hesitante Pressente o perigo que vai correr Procura com o olhar fazer ZédoBurro compreender o seu receio Zé ZÉ Ah sim Enfia a mão no bolso tira um maço de notas Pode ser que precise pagar adiantado ROSA Recebe o dinheiro Magoada com a falta de ciúmes do marido Talvez seja melhor depois de entregar a cruz você mandar também rezar uma missa em ação de graças ZÉ Levando a serio a sugestão É não é má idéia Rosa sobe a ladeira e Bonitão a segue GOMES 2003 p 22 A insistência de Zé do Burro para Rosa seguir com Bonitão rumo ao hotel parece ser uma forma de dar à esposa o reconhecimento e atenção merecida por sua cumplicidade e companheirismo nessa jornada Essa é a forma de premiála pela esposa leal que se mostra ser Entretanto o pagador não consegue intuir que está entregando a mulher para outro no momento desse reconhecimento Rosa também não compreende que aquilo por ela considerado como falta de ciúmes do marido é na verdade a forma dele se redimir pela falta de atenção durante o trajeto até ali Percebese a comicidade sempre presente nos textos de Dias Gomes na ironia da fala de Bonitão na qual se encontra a inversão da situação de perigo isto é o rufião diz ser perigoso para a saúde dormir no chão frio quando na verdade a sombra de perigo que paira nessa cena está justamente nele ou melhor dizendo em seguir com ele e quando o primeiro quadro do primeiro ato termina o público já sabe que a ação de Zé do Burro resultará na traição de Rosa Entendemos que a desatenção do pagador à esposa acaba dando a ela oportunidade para traílo Essa falha de Rosa influencia na produção de empatia e comoção referentes a ela e a Zé do Burro tendo em vista que interpretamos esse caso como um erro involuntário do pagador no sentido aristotélico mesmo de uma ação que se desdobra em sua própria ruína uma ação cujo resultado não coincide com o esperado A nosso ver a traição de Rosa não chega a ser na verdade uma falha de caráter Embora ela seja uma mulher de sangue quente ela parece antes vítima de uma situação favorecedora do erro do que uma vilã Afirmamos isso com base na recusa de Rosa em partir com Bonitão Ela tentou alertar o marido de que o melhor seria ficar ali onde estavam apesar de todo seu cansaço pois sabia o que aconteceria se fosse com o rufião No entanto o marido por sua característica ingenuidade e desatenção não entendeu os sinais da mulher e insistiu para que ela fosse com o outro Sendo assim identificamos nessa ação um erro que se desdobrou em outro erro sem contudo haver 101 exatamente culpados Ou seja não podemos culpar Zé do Burro pela falha de Rosa porque ele agiu de boa vontade desejando apenas recompensar a esposa depois da árdua jornada Porém Rosa também precisa ter sua ação atenuada senão por sua própria caracterização como mulher de sangue quente certamente pela fragilização decorrente dessa exposição pública de sacrifício irritada como estava com a situação e com o marido vulnerável portanto aos encantos de Bonitão Esse julgamento antes estético que moral visa compreender os caminhos para a construção da empatia em relação aos personagens Ainda que Zé do Burro seja o herói trágico por excelência a atmosfera traiçoeira da vida citadina conta muito também para a vitimização de Rosa e isso lhe angaria adesão empática a despeito da traição ao herói Partindo para o segundo quadro do segundo ato serão apresentados os personagens representativos do universo religioso a começar pela Beata Entra pela ladeira a Beata Toda de preto véu na cabeça passinho miúdo vem apressada como se temesse chegar atrasada Passa por ZédoBurro e a cruz sem notálos Pára diante da escada e resmunga BEATA Porta fechada É sempre assim A gente corre com medo de chegar atrasada e quando chega aqui a porta está fechada Por que não abrem primeiro a porta pra depois tocar o sino Não primeiro tocam o sino depois abrem a porta Isso é esse sacristão Pára de resmungar ao ver a cruz Ajeita os óculos como se não acreditasse no que está vendo Aproximase e examina detalhadamente a cruz e o seu dono adormecido Sua expressão é da maior estranheza Virgem Santíssima GOMES 2003 p 23 Dias Gomes não descreve traços físicos nem psicológicos da personagem citada dando apenas indicações de características comuns das carolas somente para povoar esse universo religioso que começa a ser apresentado à plateia Aliás essa opção por uma caracterização tipificada é muito significativa não apenas em relação à Beata mas a outras personagens como o Repórter o Monsenhor o Guarda Minha Tia Dedé CospeRima Mestre Coca etc Cada uma dessas figuras dramáticas são tipos que apontam para o grupo social ou instituição que representam Retornando à Beata sua insatisfação ao chegar ao templo e encontrar as portas ainda fechadas evidencia sua recusa a certas atitudes da Igreja e as questiona Desse modo temos os primeiros sinais de que a Igreja também comete erros Ao perceber a cruz a Beata assume uma posição de descrente e sua reação de surpresa aponta um assombro a princípio não aceitável dentro de uma lógica em que a cruz recortase 102 como um dos objetos mais simbólicos da religião católica A segunda personagem descrita é o Sacristão figura mais simpática apresentado em traços que autorizam uma descrição mais completa Vejamos Neste momento abrese a porta da igreja e surge o Sacristão É um homem de perto de cinqüenta anos Sua mentalidade porém anda aí pelos quatorze Usa óculos de grossas lentes é míope O cabelo teima em cairlhe na testa acentuando a aparência de retardado mental Ele parece bêbedo de sono Boceja largamente ruidosamente depois de abrir a primeira banda da porta Espreguiçase e solta um longo gemido Depois que abre toda a porta encostase por um momento no portal e cochila sem dar pela Beata que se aproxima Sic GOMES 2003 p 23 Diferentemente da rubrica que apresenta a Beata nesta Dias Gomes dá mais detalhes do sacristão Tomamos conhecimento de sua aparência idade e somos informados de sua mentalidade adolescente Além disso sabemos que não enxerga bem chamando nossa atenção para esse apontamento já que o sacristão é o único do universo religioso representado nesse quadro a enxergar Zé do Burro com outros olhos vendoo com mais humanidade dandonos uma leve impressão de proximidade e empatia entre as duas personagens De fato essa proximidade existe pois o sacristão é até mais ingênuo e infantil que Zé do Burro A rispidez da Beata para com o Sacristão cria uma imagem negativa da Igreja representada pelas duas personagens em cena O interessante é que a forma como a Beata trata o Sacristão antecipa a intolerância dentro do próprio território religioso As personagens não se vêem com igualdade e irmandade Curiosa a Beata quer entender o motivo de alguém estar com uma cruz no meio da praça no entanto o Sacristão assim como ela só enxerga o óbvio ainda que levante a hipótese de se tratar de um fiel separado da procissão Essa ideia é para a carola absurda sem nenhum sentido pois a prática de carregar cruzes em procissões não é comum nem mesmo em cortejos de festividades voltadas ao próprio Jesus Cristo A atitude da Beata em benzerse é uma forma de pedir proteção a Deus diante de algo que para ela está fora do universo religioso curiosamente fugindo de um dos principais símbolos da igreja a cruz Por outro lado o Sacristão ao contrário da Beata é atraído pelo objeto e se aproxima surpreendendose ao constatar que de fato tratase de uma cruz Nesse momento chega Bonitão encontrando Zé do Burro ainda dormindo 103 BONITÃO Sono de pedra Não acordou nem com os foguetes de Santa Bárbara Dizem que é assim que dormem as pessoas que têm a consciência tranqüila e a alma leve Cínico Eu também sou assim quando caio na cama é um sono só Sacode ZédoBurro Camarado oh meu camarado GOMES 2003 p 24 Apesar do cinismo o comentário de Bonitão é uma confirmação para o espectador acerca do caráter de Zé do Burro um homem bom e digno O pagador pode até não ser perfeito mas comparado às demais personagens do drama suas qualidades se destacam provocando empatia na recepção Quando o Padre Olavo entra em cena Dias Gomes através da rubrica dános importantes informações a respeito dessa personagem contribuindo para a compreensão de suas ações na trama O sacristão dirigese apressadamente à igreja Pára na porta ante o olhar intimidador de Padre Olavo É um padre moço ainda Deve contar no máximo quarenta anos Sua convicção religiosa aproxima se do fanatismo Talvez no fundo isto seja uma prova de falta de convicção e uma autodefesa Sua intolerância que o leva por vezes a chocarse contra princípios de sua própria religião e a confundir com inimigos aqueles que estão de seu lado não passa talvez de uma couraça com que se mune contra uma fraqueza consciente GOMES 2003 p 25 Padre Olavo representa a força contra a qual Zé do Burro terá de lutar até o fim desse drama Pelo que diz o autor nesta rubrica o oponente do pagador de promessas não é fácil de ser derrotado Contudo Dias Gomes justifica futuras ações do personagem ao insinuar que o padre esconde sua fraqueza por traz de uma fachada de poder Assim é possível dizer que Padre Olavo vive um conflito interior pois o mesmo poder que lhe é dado para ser compreensível amável e solícito é também o motivo que o fará enxergar as ações de Zé do Burro de forma distorcida agindo com rudeza e intolerância Iniciandose o diálogo entre o pagador e o padre este a princípio não dá muita atenção a Zé dizendolhe para conversarem somente após a missa ZÉ É que eu vim de muito longe padre Andei sessenta léguas PADRE Sessenta léguas Para falar comigo ZÉ Não pra trazer esta cruz PADRE Olha a cruz detidamente E como a trouxe num caminhão ZÉ Não padre nas costas SACRISTÃO Expandindo infantilidade a sua admiração Menino PADRE Lançalhe um olhar enérgico Psiu Cale a boca Seu interesse por ZédoBurro cresce Sessenta léguas com essa cruz nas costas Deixe ver seu ombro 104 ZédoBurro despe um lado do paletó abre a camisa e mostra o ombro O Sacristão espichase todo para ver e não esconde a sua impressão SACRISTÃO Está em carne viva PADRE Parece satisfeito com o exame Promessa ZÉ Balança afirmativamente a cabeça Pra Santa Bárbara Estava esperando abrir a igreja Sic GOMES 2003 p 2526 Padre Olavo começa a interessarse pela história de Zé do Burro principalmente depois de ver seu ombro Na verdade o pedido do sacerdote para ver o ferimento do pagador nos lembra o apóstolo Tomé que só acreditava no que via e a satisfação citada pelo dramaturgo parece nos dizer que em parte para a Igreja o sacrifício apenas se torna concreto e válido com o flagelo da carne A princípio o pagador contará sua história ao padre acreditando estar fazendo o correto como se fosse sua obrigação explicar tudo ao sacerdote responsável por aquela igreja No entanto a atmosfera amena criada no início do contato entre esses dois personagens será quebrada acionando o desencadeamento do conflito que conduzirá ao trágico fim de Zé do Burro ZÉ Graças a Santa Bárbara a morte não levou o meu melhor amigo PADRE O Padre parece meditar profundamente sobre a questão Mesmo assim não lhe parece um tanto exagerada a promessa E um tanto pretensiosa também ZÉ Nada disso seu padre Promessa é promessa É como um negócio Se a gente oferece um preço recebe a mercadoria tem que pagar Eu sei que tem muito caloteiro por aí Mas comigo não É toma lá dá cá Quando Nicolau adoeceu o senhor não calcula como eu fiquei GOMES 2003 p 26 Até aqui o padre assim como o público ainda não faz ideia de quem seja o tal amigo de Zé do Burro Os questionamentos levantados pelo sacerdote após certa meditação sobre o assunto servem para indicar que o padre a princípio busca agir apoiandose na ponderação Quanto a Zé mais uma vez vai se referir à promessa como uma transação comercial que ele encara com a máxima honestidade A partir do interesse de Padre Olavo acerca do real motivo daquela promessa temos através das falas de Zé do Burro acesso a momentos anteriores a sua chegada na igreja Agora estamos cientes de que Zé do Burro recorreu à santa por causa de um amigo acidentado Sabese que o agricultor e a esposa haviam tentado tratar do tal amigo Não obtendo sucesso recorreram à medicina popular fazendo uso de estrume para estancar o sangramento do ferido relato que engatilha a demonstração de nojo por 105 parte do padre evidenciando a diferença de mundos existentes nesse drama ou seja denunciando o quanto o universo civilizado representado pelo padre e outros citadinos se distancia do mundo primitivo e simplório de Zé e sua esposa Assim Dias Gomes deixa o receptor a par do passado de Zé do Burro através de um longo e detalhado flashback Pela camaradagem de seis anos descrita pelo agricultor não é de se admirar que ele tente ajudar o amigo de todas as formas possíveis Ingenuamente Zé conta tudo ao Padre Olavo sem omitir um único detalhe e ao afirmar que o amigo Nicolau na verdade é um animal não percebe que está acionando a engrenagem que o conduzirá a um trágico fim Sem querer ele vai dar ao padre motivos suficientes para impedilo de cumprir a promessa ZÉ Nicolau teve o azar de nascer burro de quatro patas PADRE Burro Então esse que você chama de Nicolau é um burro Um animal ZÉ Meu burro sim senhor PADRE E foi por ele por um burro que fez essa promessa GOMES 2003 p 2728 Mesmo com a indignação do padre Zé continua sua fala justificando todo o seu esforço para curar Nicolau por considerálo um animal incomum Numa postura de sincera humildade e reconhecimento de que o ato praticado não é do agrado da Igreja Zé assume ter recorrido a práticas consideradas pelos católicos como pagãs isto é o agricultor confessa ter ido a um terreiro de candomblé É nesse momento que o pagador dá a Padre Olavo as informações que serão usadas para impedilo de entrar na igreja e cumprir sua promessa Terminado seu relato Zé do Burro confirma a satisfação de ter conseguido evitar a morte de seu burro ter cumprido parte da promessa ao dividir suas terras e agora encontrarse diante da igreja para finalizar o pagamento da dívida à santa O Sacristão através de sua curiosidade mostrase convencido dos motivos de Zé e parece não encontrar nenhuma conotação negativa nas ações do pagador Está acionada a máquina que levará Zé do Burro ao desfecho trágico Aquele que lhe deveria abrir as portas para a quitação de sua promessa é o mesmo que criou um abismo entre Zé e a igreja Isso nos parece uma inversão da situação uma peripeteia pois ao contar detalhadamente ao padre o motivo pelo qual fez a promessa Zé acredita estar cumprindo um dever dar satisfação ao dirigente espiritual local e assim receber permissão de finalizar a paga de sua promessa Porém essa satisfação que no imaginário simplório do pagador não poderia deixar de ocorrer causa o contrário do que 106 ele esperava a proibição de entrar na igreja Essa peripeteia atende ao mesmo tempo os parâmetros da tragédia antiga pois se revela como momento de inversão da ação apresentandose também como adequada ao culto da subjetividade que caracteriza o drama moderno ao ser também um interdito que busca reverter a intenção da personagem Notando a ingenuidade de Zé do Burro Padre Olavo busca cumprir com seu papel de pastor dando início a esclarecimentos na tentativa de mostrar ao pagador o caminho certo a seguir PADRE Procurando inicialmente controlarse Em primeiro lugar mesmo admitindo a intervenção de Santa Bárbara não se trataria de um milagre mas apenas de uma graça O burro podia terse curado sem intervenção divina ZÉ Como padre se ele sarou de um dia pro outro PADRE Como se não o ouvisse E além disso Santa Bárbara se tivesse de lhe conceder uma graça não iria fazêlo num terreiro de candomblé GOMES 2003 p 30 A ingenuidade de Zé o faz insistir na ideia de que a imagem existente no terreiro corresponde à mesma Santa Bárbara católica o que leva o padre a se aborrecer cada vez mais com o pobre agricultor Apesar disso Zé continua firme em sua decisão e não desiste de seu objetivo Haverá momentos em que essa insistência de Zé do Burro em pagar sua promessa demonstrará pura teimosia o que poderia levar o espectador a afastarse da personagem Entretanto percebemos que sua vontade não é suficientemente irritante a ponto de causar o afastamento pois a ingenuidade do herói acompanhada de sua extrema honestidade leva o público à comoção revelando como Dias Gomes soube modelar uma personagem empática favorecendo o efeito catártico de sua obra construída sob as leis de causa e efeito O encontro de Zé do Burro com Padre Olavo é o principal conflito da trama acentuando a disparidade entre a posição dessas duas personagens quando são consideradas suas linguagens e pensamentos implicados em suas ações conforme Silva 2009 p 83 assinala demonstrando a riqueza do texto e sua profunda dimensão trágica como pode ser observado no diálogo abaixo PADRE Explodindo Não é Santa Bárbara Santa Bárbara é uma santa católica O senhor foi a um ritual fetichista Invocou uma falsa divindade e foi a ela que prometeu esse sacrifício 107 ZÉ Não padre foi a Santa Bárbara Foi até a Igreja de Santa Bárbara que prometi vir com a minha cruz E é diante do altar de Santa Bárbara que vou cair de joelhos daqui a pouco pra agradecer o que ela fez por mim PADRE Dá alguns passos de um lado para outro de mão no queixo e por fim detémse diante de ZédoBurro em atitude inquisitorial Muito bem E que pretende fazer depois depois de cumprir a sua promessa ZÉ Que pretendo Voltar pra minha roça em paz com a minha consciência e quite com a santa PADRE Só isso ZÉ Só PADRE Tem certeza Não vai pretender ser olhado como um novo Cristo ZÉ Eu PADRE Sim você Você que acaba de repetir a via crucis sofrendo o martírio de Jesus Você que presunçosamente pretende imitar o Filho de Deus ZÉ Humildemente Padre eu não quis imitar Jesus PADRE Mentira Eu gravei suas palavras Você mesmo disse que prometeu carregar uma cruz tão pesada quanto a de Cristo ZÉ Sim mas isso PADRE Isso prova que você está sendo submetido a uma tentação ainda maior ZÉ Qual padre PADRE A de igualarse ao Filho de Deus ZÉ Não padre PADRE Por que então repete a Divina Paixão Para salvar a humanidade Não para salvar um burro ZÉ Padre Nicolau PADRE É um burro com nome cristão Um quadrúpede um irracional GOMES 2003 p 3031 Interpretamos o gesto do sacerdote de caminhar de um lado a outro de mão no queixo aludindo à ponderação como se procurasse a justa medida da situação em que se encontra Não se deve perder de vista essa postura gestual como significativa ao entrecho dramático sobretudo considerandose a efetividade cênica dos gestos e da movimentação das personagens em situação de conflito Por outro lado a forma como se coloca diante de Zé do Burro demonstra que o padre abusa do poder a ele concedido pela maneira desviante como interpreta todas as respostas do pagador projetando intenções que em momento algum foram detectadas nas ações de Zé ZÉ Mas padre não foi Deus quem fez também os burros PADRE Mas não à Sua semelhança E não foi para salválos que mandou Seu Filho Foi por nós por você por mim pela Humanidade ZÉ Angustiadamente tenta explicarse Padre é preciso explicar que Nicolau não é um burro comum O senhor não conhece Nicolau por isso É um burro com alma de gente 108 PADRE Pois nem que tenha alma de anjo nesta igreja não entrará com essa cruz Dá as costas e dirigese à igreja O Sacristão trata logo de seguilo GOMES 2003 p 3132 Respaldandose na doutrina cristã os argumentos de Padre Olavo são demasiadamente fortes e cheios de sentido No entanto respondem à uma interpretação completamente desviante das reais intenções de Zé do Burro Apesar disso não contestamos que as dois personagens desse conflito têm igualmente razão no respeitante aos seus objetivos o que dá ao texto uma enorme carga dramática no entender de Hegel Porém ainda que as razões para o sacerdote impedir a entrada de Zé do Burro na igreja sejam compreensíveis e aceitáveis é importante salientar que ele é colocado em uma posição antipática sempre realçada por seus gestos grosseiros como no trecho citado dar as costas ao pagador em um claro sinal de abandono Sendo assim o dramaturgo através das ações das demais personagens realça a caracterização de Zé do Burro como homem simples humilde honesto persistente elevandoo e intensificando cada vez mais a empatia do público No final do segundo quadro do primeiro ato Zé do Burro deixa claro para o padre e a recepção que não vai voltar atrás dando provas de que apesar de sua ingenuidade seu ar infantil ele é um homem de palavra e pretende dar continuidade a seu intento não importa a quem enfrentará O padre manda fechar a entrada da igreja deixando Zé do Burro na praça desnorteado com o acontecido Mas a escolha do pagador já foi feita e ainda que não consiga entender o ocorrido vai se manter firme até o fim da trama cumprindo o destino que ele mesmo faz questão de traçar em direção ao trágico Com o fim do primeiro ato parecenos muito significativo o que diz Sebastiana Siqueira e Silva a respeito das personagens que encontraram Zé do Burro até esse momento Segundo a autora Marli e Bonitão são representativos do pecado da vida mundana enquanto a Beata o Sacristão e o Padre representam ao menos sob o ponto de vista do que Zé e Rosa em sua simplicidade e ingenuidade poderiam esperar o perdão a santidade e a salvação SILVA 2009 p 8283 Além de concordarmos com as concepções da citada autora observamos que o encontro de Zé do Burro e Rosa com o casal Marli e Bonitão acontece na madrugada quando ainda está escuro Isso fortalece a ideia de pecado e do mal Ao afastarse da esposa Zé deixa Rosa indefesa diante de Bonitão que age como um predador e a persuade como a serpente o fez com Eva 109 Por outro lado o encontro de Zé do Burro com as figuras representativas da santidade acontece no início da manhã quando o dia já é tomado pela luz Zé está sozinho e desprotegido perante aqueles de quem se espera apoio No entanto em plena luz o pagador é esmagado e lançado ao escuro mundo dos incompreendidos tornando se para essas personagens representativas da salvação um símbolo do pecado O primeiro quadro do segundo ato inicia com uma rubrica que descreve o despertar da cidade para as festividades do dia de Santa Bárbara É dada uma indicação temporal informando que o movimento ao redor de Zé do Burro começa aproximadamente duas horas depois de seu embate com Padre Olavo Novas personagens vão entrando em cena e o autor não se dedica a muitos detalhes em suas descrições Estes sujeitos que aos poucos vão preenchendo a trama são típicos do drama moderno as chamadas personagens baixos representadas por indivíduos comuns que usam uma linguagem prosaica e vivem conflitos baseados em diferenças políticas e sociais No drama O Pagador de Promessas os apelidos que identificam as personagens já as caracterizam como populares a exemplo de Zé do Burro Minha Tia Dedé Cospe Rima Mestre Coca Galego Bonitão enquanto as personagens dentre os quais destacamos o Monsenhor o Delegado e o Repórter são figuras representativas das classes dominantes referidas apenas por seus papéis institucionais dando sentido à ausência de nomes próprios e ressaltando que a luta de Zé do Burro é travada contra o poder da Igreja do Estado e a Mídia Ademais conforme diz Silva 2009 p 86 o anonimato generalizado ao mesmo tempo em que enfatiza os tipos e instituições sociais históricas também dá a este drama uma dimensão universal se considerarmos alegoricamente a representação dos tipos de opressão de todos os tempos Desse modo entendese que os antagonistas de Zé do Burro não são propriamente as personagens citadas mas as instituições detentoras de poder refletindo experiências cotidianas próximas do público espectador aludindo às adversidades que sempre estiveram presentes ao longo da história das lutas entre o indivíduo e as forças sociais de seu contexto O envolvimento do espectador com o protagonista é uma estratégia importantíssima para a obtenção do efeito catártico Sendo assim Dias Gomes intensifica a empatia do público em relação a Zé do Burro colocandoo de encontro a personagens que o desprezam humilham e o traem após toda a descrição confirmada em suas ações de que ele é um homem simples mas de bom caráter extremamente 110 cansado após um longo trajeto com uma cruz nas costas para pagar uma promessa Desse modo o contraste entre o caráter do protagonista e das demais personagens ganha uma enorme significação empática tornando a tragédia de Zé do Burro cada vez mais dignificadora Principalmente quando as personagens ligadas à Igreja se encontram com o pagador pois elas o enxergam e tratam de uma maneira não esperada Vejamos por exemplo que na volta da missa a Beata vê Zé do Burro como um tipo de incômodo e sua presença é tomada como um ato de desrespeito à autoridade da Igreja A Beata entra da direita e detémse junto a Minha Tia Ao ver Zédo Burro mostrase surpresa e indignada BEATA É o cúmulo Ainda está aí MINHA TIA Não vai abrir a igreja hoje Iaiá Dia de Santa Bárbara BEATA Lança um olhar acusador a ZédoBurro Não enquanto esse indivíduo não for embora MINHA TIA Que foi que ele fez BEATA Quer entrar com essa cruz na igreja MINHA TIA Só isso BEATA E você acha pouco Acha que o Padre Olavo ia permitir MINHA TIA Oxente Por que não Foi promessa que ele fez BEATA Foi Mas promessa de candomblé Pra uma tal de Iansã que Deus me perdoe Benzese Dirigese para a esquerda e ao passar por ZédoBurro insultao Herege Sobe a ladeira seguida do olhar de comovedora incompreensão de ZédoBurro GOMES 2003 p 3435 Percebese como a questão da perseverança é vista sob um ponto de vista negativo Sabese que a persistência é uma qualidade muito defendida dentro das doutrinas religiosas Entretanto nesse caso a perseverança do pagador é encarada como uma falha algo que causa indignação ao universo religioso representado na obra como demonstrado no olhar acusador da Beata ao dizer que a igreja não abre suas portas por conta da insistência do pagador Considerando o significado da persistência dentro do universo religioso que dá a seus seguidores a ideia de que uma das formas para alcançar seus objetivos é a fé e a perseverança ver as portas se fecharem para Zé do Burro justamente por essas qualidades torna essa cena muito comovente Outro ponto que nos chama atenção nesse trecho é o diálogo entre a Beata e Minha Tia quando esta pergunta à religiosa o que Zé do Burro fez e fica sabendo que ele deseja entrar na igreja A maneira como a Beata questiona Minha Tia faz crer que o sacerdote tem um gênio difícil e por isso não se pode esperar outra atitude dele Contudo em seguida veremos que essa imagem negativa do padre é posta abaixo em uma fala da própria Minha Tia 111 MINHA TIA O senhor entende DEDÉ Entendo não MINHA TIA O padre é um homem tão bom DEDÉ A senhora acha MINHA TIA Então Ele é tão amigo dos pobres faz tanta caridade Sei não GOMES 2003 p 35 De acordo com a fala de Minha Tia o sacerdote é um homem bom de modo a pensarmos que sua atitude para com Zé do Burro não é comum de sua personalidade visto ser o Padre Olavo um homem solidário e generoso com os menos favorecidos por isso a dificuldade da senhora em compreender a maneira como ele tratou Zé do Burro O interessante é que Dias Gomes coloca essa visão referente à personalidade do sacerdote em uma personagem representativa do universo pagão ao qual o padre se opõe Logo entendese que o dramaturgo usa esse trecho como uma ferramenta para fazer o público não olhar Padre Olavo apenas como mero antagonista de Zé do Burro mas como um sujeito que é bom e respeitado inclusive por aqueles que não seguem a instituição por ele representada mas que apesar disso vive um grande conflito que o coloca em uma posição não favorecedora da empatia do espectador Por outro lado Minha Tia é colocada como mais generosa do que o padre mostrando como o paganismo pode ser mais caridoso que o cristianismo institucionalizado Outro ponto importante de ser comentado é a maneira como o Estado é representado nesse drama Primeiro temos a aparição de um guarda Vejamos O Guarda entra pela direita Vai direto a ZédoBurro É um homem que procura safarse dos problemas que lhe apresentem Sua noção do dever coincide exatamente com o seu temor à responsabilidade Seu maior desejo é de que nada aconteça a fim de que a nada ele tenha que impor a sua autoridade No fundo essa autoridade o constrange terrivelmente e mais ainda o dever de exercêla GOMES 2003 p 35 Percebese que nesse caso a lei é representada de forma amena tanto que o guarda tenta realmente ajudar Zé do Burro dispondose a conversar com o padre e convencêlo a deixar o pagador entrar na igreja Arriscamos dizer que o Guarda é uma representação da lei a favor do povo Já o Secreta é outra forma de representação da lei na qual a descrição da personagem levanos a enxergar tal autoridade como um símbolo da opressão ou uma indicação da desconfiança em relação às autoridades legais dando a entender que esta tem duas caras 112 SECRETA O tira clássico Óculos escuros mãos no bolso inspira mais receio que respeito À primeira vista tanto pode ser o representante da lei como o fugitivo da lei Entra pela direita e atravessa a cena lentamente em direção à vendola Ao passar por ZédoBurro demora nele um olhar de desabusada curiosidade Uma dupla Olha em torno procurando alguém consulta o relógio GOMES 2003 p 51 Sempre que possível o dramaturgo vai apresentar na trama informações que farão o receptor olhar as personagens de duas maneiras num jogo de afastamento e proximidade que lembranos muito a passagem em que Bonitão diz ao pagador que tudo tem no mínimo duas maneiras de ser visto Tal estratégia é muito usada no caso de Rosa Em alguns momentos ficamos tentados a julgar as atitudes de Rosa sua forma pouco solidária às ações do marido e principalmente sua traição Porém Dias Gomes dá a essa personagem uma carga de humanidade muito significativa que a faz ficar muito próxima do público de modo que este também a enxergue como vítima dentro dessa trama Obviamente comparada a Zé do Burro o nível de piedade voltada à esposa do pagador é bem menor contudo o suficiente para que suas ações sejam aceitáveis e até certo ponto comoventes De acordo com a descrição da cena na rubrica Rosa volta do hotel às pressas temendo não encontrar mais o marido onde o havia deixado Ao vêlo aliviase um pouco mesmo tentando disfarçar um certo ar culposo Surpresa em ver a porta da igreja ainda fechada Rosa pergunta a Zé o motivo disso e tem como resposta um desabafo desesperado do marido que não consegue compreender a situação a que se vê submetido Nesse momento pensando no seu próprio ato Rosa tenta mais uma vez convencer o marido a voltar para casa ROSA Sem fitálo Zé vamos embora daqui ZÉ Agora ROSA Sim agora mesmo ZÉ Não posso Você sabe que eu não posso voltar antes de chegar ao fim da promessa Não ia ter sossego o resto da vida ROSA Você acredita demais nas coisas ZÉ É porque você não pensa no que pode acontecer ROSA Mais do que já aconteceu ZÉ Que aconteceu A caminhada as noites sem dormir e agora ser xingado como a figura do diabo Tudo isso é nada comparado com o castigo que pode vir GOMES 2003 p 38 Rosa não tem coragem de fitar o marido provavelmente por vergonha de encará lo depois de têlo traído Esse gesto da mulher já dá mostras de seu arrependimento o 113 que não causa surpresa visto que no universo desse casal fidelidade tem muito valor E foi justamente por fidelidade que Rosa seguiu o marido nessa jornada Interessante notar a ambigüidade presente nesse diálogo A começar pela fala da esposa afirmando que o marido acredita demais nas coisas Ela pode até estar se referindo apenas ao fato de Zé do Burro levar muito a sério as forças sobrenaturais castigos divinos etc no entanto essa fala também tem uma forte indicação de que o pagador não apenas acredita demais nas coisas como também nas pessoas Isso ficou muito claro no momento em que ele confiou a esposa a Bonitão A ambigüidade fica ainda mais nítida quando o pagador diz que a mulher não pensa no que pode acontecer e ela diz Mais do que já aconteceu A princípio parece mesmo que para Rosa já aconteceram coisas demais e que não é possível que a situação fique pior do que já está Porém não se pode negar que essa fala é um rastro da traição de Rosa ou seja ela se refere à sua falha uma forma indireta de sinalizar ao marido que algo grave já ocorreu e pior que isso não pode ficar Essa fala de Rosa também aponta o seu desejo de contar ao marido o que fez intensificando o seu remorso fazendo o público olhála de forma mais piedosa Por outro lado Zé não consegue captar a mensagem da esposa e pensa apenas no que ocorreu diretamente a ele Sendo assim o pagador demonstra temor em sua última fala Mas não temor dos que o cercam Seu medo é justamente de uma força superior aos homens da divindade por quem ele se sacrifica fazendonos pensar que ainda que o herói moderno tenha as ações movidas por razões suas sem a intervenção de forças externas divinas Zé do Burro apóiase no sagrado embora seja sua própria vontade e não o divino o motor de sua tragédia Durante o diálogo de Zé e Rosa surgem mais duas personagens São elas o Repórter e o Fotógrafo Não há rubricas anteriores ao diálogo para apresentálos como aconteceu com outras personagens porém isso não faz falta visto que as pequenas rubricas incluídas dentro do diálogo concomitantes às próprias falas do comunicador já são suficientes para se conhecer o caráter e as intenções da personagem em questão Para dar mostras de sua esperteza o Repórter se aproxima de Zé do Burro parabenizandoo e enaltecendoo como se tentando despertar a vaidade do agricultor fosse uma forma eficaz de ganhar sua confiança Além disso ao contar de sua experiência no Serviço Militar o Repórter busca se aproximar do pagador através da identificação Contudo Zé do Burro não se deixa influenciar estranhando todo aquele jogo de faz de conta criado pelo repórter recusandose a participar de toda a cena Por 114 outro lado Rosa mais uma vez dará mostras de sua fraqueza caindo facilmente na conversa do repórter ROSA Interrompe em tom de repreensão Que é isso Zé Seja mais delicado com o moço Ele é da gazeta REPÓRTER Mulher dele ROSA Sou Também andei sessenta léguas meu pé tem cada calo dágua deste tamanho REPÓRTER Maravilhoso E em quanto tempo cobriram o percurso ROSA Não entendeu Como REPÓRTER Quero dizer quando saíram de lá de sua cidade ROSA Da roça Tem pra mais de uma semana REPÓRTER Chegaram hoje aqui ROSA Antes das cinco da madrugada REPÓRTER Mais de uma semana carregando uma cruz que deve pesar Olha interrogativamente para ZédoBurro ZÉ Contrariado Não sei não pesei REPÓRTER Por menos que pese é um Record Sob este aspecto podemos considerar um grande feito esportivo Uma prova de resistência física Para Rosa e de dedicação Rosa sorri envaidecida sentindose heroína também GOMES 2003 p 3940 Rapidamente Rosa se esquece de suas lamentações quanto à desgastante peregrinação e orgulhase de também ter feito a longa jornada e os calos no pé parecem não apenas provas de seu sacrifício mas verdadeiros troféus O Repórter como é típico do universo sensacionalista não se importa com a exatidão de certas informações como por exemplo o peso da cruz já que na produção de um texto sensacionalista o importante não é O QUÊ será divulgado mas COMO será contado Percebendo a facilidade com que Rosa se deixa manipular o Repórter usa com ela a mesma tática que tentara aplicar no início de sua conversa com Zé o despertar da vaidade garantindo a confiança da mulher que lhe dará todas as respostas desejadas ainda que as perguntas sejam voltadas para o pagador Nesse momento o discurso de Zé do Burro será distorcido mostrando como Dias Gomes explorou de forma eficaz a construção dos diálogos para produzir tensão dramática nessa obra A linguagem e cultura de cada uma das partes são nitidamente representadas pelas falas das personagens SILVA 2009 p 89 revelando um abismo cada vez mais profundo entre Zé e os citadinos que ainda se apropriam de suas palavras para distorcêlas e aproveitarse de sua situação 115 REPÓRTER Mas como nasceu a idéia dessa peregrinação As perguntas são feitas a ZédoBurro mas este recusase a respondê las ROSA Não nasceu idéia nenhuma O burro adoeceu ia morrer ele fez promessa para Santa Bárbara REPÓRTER O burro Que burro ROSA O Nicolau ZÉ Irritado Por quê O senhor também vai achar que o meu burro não vale uma promessa REPÓRTER Não de modo algum eu eu apenas não sabia Então tudo isso trezentos e sessenta quilômetros a cruz tudo por causa de um burro Repentinamente antevendo o interesse que despertará a reportagem Fabuloso ROSA E não foi só isso Ele prometeu também repartir o sítio com aquela cambada de preguiçosos ZÉ Que preguiçosos Gente que quer trabalhar e não tem terra REPÓRTER Repartir o sítio Digame o senhor é a favor da reforma agrária ZÉ Não entende Reforma agrária Que é isso REPÓRTER É o que o senhor acaba de fazer em seu sítio Redistribuição das terras entre os lavradores pobres ZÉ E não estou arrependido moço Fiz a felicidade de um bocado de gente e o que restou pra mim dá e sobra REPÓRTER Toma notas É a favor dos semterra ZÉ É bem verdade que se o meu burro não tivesse ficado doente eu não tinha feito isso REPÓRTER Mas e se os semterra resolvessem se apossar das terras não cultivadas ZÉ Ah era muito bem feito A terra deve ser de quem trabalha GOMES 2003 p 41 Cada vez mais o casal dá informações suficientes para o Repórter transformar o drama de Zé do Burro em um furo de reportagem com conotações políticas ou seja completamente diferente do real motivo que os levou até ali A diferença entre o mundo simples e limitado de Zé do Burro e o conhecimento e intenções do Repórter é muito grande representada pelas expressões usadas pelo jornalista que o agricultor desconhece como reforma agrária Sua ignorância dá liberdade ao Repórter de subverter à vontade o discurso de Zé do Burro já que este nem sequer sabe ao certo sobre o que está conversando REPÓRTER seu ZédoBurro o senhor será eleito com burro e tudo Confidencial Escute aqui será que essa história de promessa não é um golpe para impressionar o eleitorado ZÉ Ofendido Golpe REPÓRTER E de mestre Avalio a agitação que o senhor fez com isso Pelas estradas no caminho até aqui deve terse juntado uma verdadeira multidão para vêlo passar ZÉ É tinha 116 ROSA Muito moleque também REPÓRTER E imagina a volta A chegada à sua cidade em carro aberto banda de música foguetes ZÉ O senhor está maluco Não vai haver nada disso REPÓRTER Vai Vai porque o meu jornal vai promover Só faço questão de uma coisa que o senhor nos dê a exclusividade Que não conceda entrevistas a mais ninguém Noutro tom É claro que o senhor terá uma compensação Faz com o indicador e o polegar o gesto característico e também a publicidade Primeira página com fotografia do senhor e sua senhora mandaremos fotografar também o burro em poucas horas o senhor será um herói nacional GOMES 2003 p 41 Nesse momento iniciamse as demonstrações de interesse mercantil por parte das personagens que cercam Zé do Burro Notese nesse trecho como a questão da comunicação com o quarto poder é fortemente apontada Há claramente uma demonstração do poder de dar novos significados aos fatos quando o Repórter além de sugerir que a ação do pagador é um golpe político para garantir o furo de reportagem imagina um final para toda a história Então ele recria a situação vivida por Zé e sua esposa e dá a esse evento uma nova significação Comovedoramente Zé do Burro se mostra contrariado Moço eu acho que o senhor não me entendeu Ninguém ainda me entendeu GOMES 2003 p 41 mas sua vontade é completamente ignorada e o Repórter dá continuidade a sua reconstrução do fato a ser noticiado como se percebe no trecho abaixo em que ele obriga o pagador a posar para a fotografia da matéria REPÓRTER Eu vou já entrevistar o vigário Mas fique certo de uma coisa seja qual for o seu objetivo uma publicidadezinha não fará mal algum Pisca o olho para ZédoBurro que não percebe a insinuação Carijó bata mais uma chapa Para ZédoBurro Quer fazer o favor de carregar a cruz Para Rosa A senhora também ZédoBurro fica indeciso sem palavras para traduzir a sua indignação ROSA Vamos Zé Empurrao para debaixo da cruz e colocase a seu lado numa atitude forçada O Guarda também procura discretamente aparecer na fotografia A cena é caricatural com Rosa escancarandose num sorriso de dentifrício ZédoBurro vergado ao peso da cruz e de sua imersa infelicidade E o Guarda de peito estufado disputando honrosamente a sua participação no acontecimento GALEGO Sai da venda apressado e dirigese ao Fotógrafo Um momento O senhor não podia fazer aparecer também o meu estabelecimento Sabe uma publicidadezinha O Fotógrafo colocase de molde a aparecer no fundo a venda Galego corre para junto do balcão e posa REPÓRTER Ótimo Pode bater Carijó O Fotógrafo bate a chapa GOMES 2003 p 4243 117 Neste trecho é evidente que Zé do Burro está sozinho cercado por pessoas que só pensam em si mesmas interessadas apenas em tirar proveito de alguma forma de sua situação No lugar de apoiar o marido Rosa o abandona para entrar no mundo fictício criado pelo repórter Já que se sacrificou tanto até ali que ao menos tire alguma vantagem de todo o martírio recebendo o título de heroína acompanhada de uma fotografia na primeira página de um jornal Discretamente o guarda tenta destacar sua importante participação naquele fato como autoridade que é Enquanto o Galego dá mostras de seu espírito empreendedor não perdendo uma oportunidade de valorizar o seu estabelecimento Em O Pagador de Promessas as falas de Zé do Burro o mostram como um homem que não é facilmente convencido por outros argumentos nem se deixa influenciar pelas circunstâncias em que se encontra evidenciando um dos pontos recomendados por Aristóteles na caracterização das personagens ou sejaa coerência O pagador não dissolve sua individualidade e mesmo quando chega perto de ser persuadido pelo outro o protagonista volta atrás e mantêm sua opinião como no trecho em que Rosa tenta convencêlo a encontrarem um lugar para dormir e deixarem a cruz na porta da igreja ainda fechada e Zé do Burro temendo que roubem a cruz não cede aos argumentos da esposa Outro exemplo em que o pagador tem um momento de hesitação em sua decisão de continuar insistindo em entrar na igreja acontece quando Minha Tia tenta motiválo de pagar a promessa em outro terreiro MINHA TIA Assume uma atitude de extrema cumplicidade Meu filho eu sou ekédi no candomblé da Menininha Mas logo o terreiro está em festa Você fez obrigação pra Iansã Iansã está lá pra receber ZÉ Ele não entende Como MINHA TIA Eu levo você lá Você leva a cruz e a santa recebe Você fica em paz com ela ZÉ Iansã MINHA TIA Foi ela quem lhe atendeu ZÉ Mas a igreja MINHA TIA Mande o padre pro inferno Leve a sua cruz no terreiro Eu vou com você ZÉ Hesita um pouco e por fim reage com veemência Não não foi num terreiro que eu disse que ia levar a cruz foi numa igreja de Santa Bárbara MINHA TIA Santa Bárbara é Iansã E Iansã está lá Vai baixar nos seus cavalos Vamos ZÉ Não Não é a mesma coisa Não é a mesma coisa GOMES 2003 p 4546 118 Estes exemplos ilustram o que para Hegel seria o desenho do verdadeiro caráter trágico que torna a personagem capaz de tomar suas decisões e em seguida partir para a ação sem se deter por qualquer coisa menor No referente ao conflito entre Rosa e Zé do Burro este ainda não parece ter notado a sombra de remorso que envolve a esposa Para despertar a desconfiança do pagador Dias Gomes traz Marli de volta à cena Vendo Bonitão ao lado de Rosa Marli exige satisfações Isso é muito interessante sob o ponto de vista da troca de papéis dessas duas mulheres Nesta cena Marli age como a mulher traída vendo Rosa como a outra aquela que tenta tomarlhe o companheiro Essa ideia será fortalecida mais à frente em um segundo encontro das duas personagens no qual ambas quase se agridem mas Zé se aproxima e dá fim à discussão ZÉ Rosa você perdeu a cabeça Não sabe qual é o seu lugar Discutindo na rua com uma Completa a frase com um gesto de desprezo MARLI Com uma o quê seu beato pamonha Carola duma figa A mulher dando em cima do homem da gente e ele aí agarrado com essa cruz Isso também faz parte da promessa GOMES 2003 p 69 A pergunta de Zé do Burro oferece duas interpretações Comecemos pela possibilidade de uma troca de papéis entre as duas mulheres Sabese que pelo gesto do pagador embora este já tenha dúvidas a respeito da fidelidade da esposa ainda assim ele a vê como uma mulher direita comparada à Marli Por outro lado a resposta da prostituta claramente mostra que o pagador não está vendo ou ao menos não quer ver que quem merece seu desprezo é a própria esposa interessada como está em outro homem por sinal comprometido A segunda interpretação possível está relacionada ao próprio conflito interior vivido por Rosa Qual é mesmo o seu lugar Pois mesmo sentindose culpada tentando evitar algum mal ao esposo Rosa não consegue resistir aos encantos de Bonitão e o mundo por ele representado Ela está perdida sem saber em que lado ficar Voltando ao momento em que Marli encontra Rosa e Bonitão juntos iniciando uma discussão ela planta em Zé do Burro a semente da desconfiança não apenas em relação à fidelidade da esposa mas de todos que o cercam dando início ao processo de anagnorisis ou seja o pagador começa a tomar conhecimento de algo que o público já sabe mas o herói vai reconhecendo aos poucos 119 Há uma pausa terrivelmente longa na qual ZédoBurro apenas fita Rosa silenciosamente sob o impacto da cena Em seu olhar lêse a dúvida a incredulidade e sobretudo o pavor diante de um mundo que começa a desmoronar As luzes se apagam em resistência GOMES 2003 p 48 Assim termina o primeiro quadro do segundo ato do texto de Dias Gomes que apaga as luzes para intensificar a sensação de recusa do protagonista em aceitar os fatos que vêm se revelando até ali Ele ainda não tem completa certeza da traição de Rosa mas a dúvida provocada é suficiente para amedrontar o pagador que agora começa a enxergar a possibilidade de não ter mais ninguém ao seu lado para apoiálo naquele universo que teima em não compreendêlo Desse modo traços de sua personalidade começam a sofrer alterações A partir do segundo quadro do segundo ato a calma e a ingenuidade de Zé do Burro parecem começar a se dissipar ZÉ Sua atitude para com Rosa é agora de recalcada e surda revolta Embora ele não pareça ter certeza ainda de sua infidelidade instintivamente começa a perceber que ela se encontra do outro lado do lado daqueles que por este ou por aquele motivo não o compreendem ou fingem não compreendêlo GOMES 2003 p 51 Nessa rubrica podemos dizer que a anagnorisis se presentifica embora não no sentido aristotélico de provocar uma peripécia mas revelase suficientemente para notarmos que o reconhecimento de não ser entendido por ninguém ao seu redor nem mesmo por sua esposa tornase um fator influenciador da ação do herói que devido à incompreensão da qual é vítima vê sua paciência dar lugar a uma grande irritação e revolta Dessa forma acaba confirmando o que o Secreta ouve de Bonitão que Zé do Burro é um agitador social perigoso que se finge de anjo criando uma imagem contrária à natureza de Zé que neste momento já não é o mesmo do início da obra antes um homem calmo e ingênuo e agora um ser desconfiado e agressivo embora essa modificação porquanto lógica e causalmente motivada não se traduz como incoerência na construção da personagem Na cena abaixo transcrita a irritação de Zé toma ares de revolta BONITÃO Um amigo Quer conversar com vocês Quer ajudar SECRETA Olá ZÉ Dentro dele uma revolta de proporções imprevisíveis começa a crescer Ajudar todo mundo quer ajudar Arrebenta o jornal das mãos de Rosa e o faz em pedaços 120 ROSA Assustada Não faça isso homem É do guarda Ele pediu pra guardar ZÉ O guarda também quer ajudar Repete como uma obsessão Todos querem ajudar Seu olhar que começa a ser agora um olhar de fera acuada cai sobre Bonitão Todos GOMES 2003 p 54 Em O Pagador de Promessas a opinião das outras personagens sobre Zé do Burro se divide Algumas acreditam que Zé é um maluco outras um coitado mas na verdade as ações das demais personagens começam a influenciar na individualidade de Zé do Burro SECRETA Estou avisando como amigo ZÉ Amigo Já vi que estou cercado de amigos É amigo por todo lado Cada qual querendo ajudar mais do que o outro SECRETA O senhor é um revoltado ZÉ Não era não Mas estou ficando GOMES 2003 p 55 Com a chegada do Monsenhor todas as personagens presentes acreditam que o drama de Zé do Burro chegou ao fim e possivelmente o padre será ordenado a abrir a porta da igreja para Zé deixandoo pagar sua promessa A maior parte das personagens e talvez o próprio receptor torce para que realmente seja dada a vitória ao pagador O discurso do Monsenhor é uma clara expressão de que sua presença ali não é ato legítimo de tolerância e perdão É na verdade uma forma de manter a imagem de solidariedade e santidade da Igreja É muito mais por uma questão política que o Monsenhor oferece outra saída a Zé do Burro Seu interesse é que a Igreja continue sendo prestigiada e respeitada pela comunidade para que não fique aos olhos do povo com uma imagem de intolerância Podemos perceber no momento de escolha entre desistir da promessa ou seguir em frente com sua vontade que Zé do Burro ainda que outras personagens procurem fazêlo optar pela desistência da promessa e mesmo cedendo à revolta o pagador não desiste de seu objetivo MONSENHOR Abjure a promessa que fez reconheça que foi feita ao Demônio atire fora essa cruz e venha sozinho pedir perdão a Deus ZÉ Cai num terrível conflito de consciência O senhor acha mesmo que eu devia fazer isso MONSENHOR É a sua única maneira de salvarse A igreja Católica concede a nós sacerdotes o direito de trocar uma promessa por outra ROSA Incitandoo a ceder Zé talvez fosse melhor ZÉ Angustiado Mas Rosa se eu faço isso estou faltando à minha promessa Seja Iansã seja Santa Bárbara estou faltando 121 MONSENMHOR Com a autoridade de que estou investido eu o liberto dessa promessa já disse Venha fazer outra PADRE Monsenhor está dando uma prova de tolerância cristã Resta agora você escolher entre a tolerância da Igreja e a sua própria intransigência ZÉ Pausa O senhor me liberta mas não foi ao senhor que eu fiz a promessa foi a Santa Bárbara E quem me garante que como castigo quando eu voltar pra minha roça não vou encontrar meu burro morto MONSENHOR Decida Renega ou não renega ZÉ Não Não posso fazer isso Não posso arriscar a vida do meu burro PADRE Então é porque você acredita mais na força do Demônio do que na força de Deus É porque tudo que fez foi mesmo por inspiração do Diabo MONSENHOR Nada mais posso fazer então Atravessa a praça e sai ZÉ Corre na direção do Monsenhor Monsenhor Me deixe explicar No auge do desespero Me deixe explicar GOMES 2003 p 5859 O trecho citado parecenos ser o momento em que ocorre o erro trágico Sabe se que nas tragédias sempre há um momento em que são dadas oportunidades ao herói para evitar o trágico Notese como somente nessa citação várias personagens tentaram convencer Zé do Burro a voltar atrás em sua vontade e contudo ele não retrocedeu É justamente essa opção de escolha que faz a ação do pagador tornarse dramática visto que a personagem não admitiu imposição alguma O que ocorreu foi uma evidência de sua própria determinação e vontade havendo nesse trecho a presença do livre arbítrio de modo que o pagador faz sua escolha conscientemente Entretanto mais adiante essa decisão se revelará catastrófica Com a recusa de Zé em renegar a promessa ele dá a igreja a absolvição pois toma para si toda a culpa do que possa ocorrer dali para frente e sem querer fortalece a imagem de pecador criada pela Igreja Assim nesse embate a igreja parece ter vencido esse conflito pois o Padre Olavo aproveita a deixa para dizer ao povo que ali está a prova da tentativa da Santa Igreja em fazer com que aquela ovelha voltasse ao rebanho porém ela se recusou a retornar Desse modo isentase de qualquer culpa dizendo que ninguém poderá acusar a autoridade religiosa de não ter buscado a salvação daquele filho ZÉ Subitamente fora de si corre para a cruz levantaa nos braços como um aríete e grita Padre Por Santa Bárbara ou por Satanás vou colocar esta cruz dentro da igreja custe o que custar 122 PADRE Ante a decisão que vê estampada no rosto de ZédoBurro recua amedrontado Eis a prova um católico não ameaça invadir a casa de Deus Guarda Prenda esse homem E ante a investida de Zé doBurro que caminha para a igreja corre seguido do Sacristão e cerra a porta no momento mesmo em que Zé sobe os degraus Este revoltado e vencido atira a cruz contra a porta A cruz tomba estrondosamente sobre a escada ZédoBurro sentase num dos degraus e esconde o rosto entre as mãos BONITÃO Para o Secreta Que está esperando Não está convencido ainda GOMES 2003 p 59 Zé do Burro continua firme em sua decisão e no auge de seu desespero deixa claro para todos que realmente não vai voltar atrás no que disse Nesse momento o pagador já não discute com o padre aceitando a ideia de estar sendo usado por Satanás A ação do padre denota fraqueza por parte da Igreja dissolvendo sua autoridade Em diversos pontos desse drama são empregados recursos prolépticos elementos que antecipam eventos futuros Para nós a queda da cruz é uma alusão à queda do pagador Porém na mesma cena quando Zé chora desesperadamente os tocadores de berimbau fazem gemer a corda de seus instrumentos GOMES 2003 p 60 gemido esse que não só acompanha o sofrimento de Zé do Burro como serve de presságio a um evento doloroso a se aproximar O terceiro ato é iniciado com o entardecer período anunciador do fim fim do dia fim do drama fim do martírio de nosso herói O palco é preenchido por personagens populares cuja ação representada lembranos os ritos antigos devido à música e o círculo formado pelos atores enquanto os berimbaus choram a aproximação de uma fatalidade A roda de capoeira faz menção ao coro das antigas tragédias gregas embora não se dirija diretamente ao protagonista nem faça nenhum comentário sobre a trama Apesar de tratarse apenas de uma manifestação cultural para dar maior verossimilhança ao drama desenrolado em um dia festivo na Bahia notamos que em um trecho da música entoada pelo grupo de capoeiristas há informações que também podem ser entendidas como prolepses MESTRE Ferro de matá CORO Ê ê Goma de goma Camarado MESTRE Ferro de matá CORO Ê ê Ferro de matá Camarado 123 MESTRE É faca de ponta CORO Ê ê Faca de ponta Camarado MESTRE Vamos embora CORO Ê ê Vamos embora Camarado GOMES 2003 p 6162 As três falas do Mestre que puxam a canção serão dramatizadas nos momentos finais do texto Adiantando essa nossa interpretação para tornar mais clara a participação desse trecho citado o ferro de matá pode facilmente ser entendido como uma indicação do revólver usado para matar Zé do Burro A faca de ponta seria a faquinha usada pelo pagador para se defender quando se vê cercado pela polícia Por fim o vamos embora é o apelo de Rosa ao marido quase lhe suplicando para deixarem o local quando ela percebe a aproximação do perigo O jogo de capoeira vai mudando o ritmo acelerando cada vez mais com os jogadores dando golpes de maior agilidade acompanhando a cadência da música Dessa maneira o som vai marcando a dramaticidade do texto dando maior carga de emoção à trama que já se aproxima do fim Entre as prolepses encontrase a fala de Coca que aposta na entrada de Zé do Burro com cruz e tudo De fato Coca ganha a aposta mas de forma inesperada De acordo com Elri Bandeira Sousa 2005 p 150 a intuição de Rosa contém presságios ROSA Você não vê Não sente Não respira Está no ar e cada minuto que passa aumenta o perigo Olha para todos os lados como fera acuada esta praça está ficando cada vez menor como se eles estivessem fechando todas as saídas Voltase para ele com veemência Vamos embora Zé enquanto é tempo ZÉ Desconfiado Que deu em você assim de repente GOMES 2003 p 67 Os gestos de Rosa olhando para um lado e outro denotam o fechamento do círculo O casal está preso sem saída só lhes restando seguir em frente e esperar o resultado de tudo o que já se passou até ali Quanto à pergunta de Zé do Burro sua esposa não mudou de ideia de repente Ao contrário em nenhum momento ela desejou ficar Desde o início da trama que Rosa insistia para ir embora Nem mesmo quando a mulher confessou a Bonitão que às vezes tinha vontade de deixar o marido e partir esboçou interesse em permanecer na cidade Pelo contrário assim que o cafetão sugeriu 124 que ela ficasse ali e deixasse o esposo voltar sozinho a camponesa voltou atrás e recusouse a ficar alegando ser aquela sua sina Assim podemos dizer que Rosa é tão merecedora da empatia do público quanto Zé do Burro pois ela é a personagem mais representativa do ser humano nessa trama devido à sua complexidade fraqueza e propensão à falha ao contrário de Zé do Burro que é excessivamente heróico para representar o humano Ao perceber que o Secreta está rondando Rosa pede mais uma vez a Zé para irem embora Nesse momento Dias Gomes colocará em cena um objeto que será empregado como último elemento desencadeador da catástrofe que aguarda o pagador Esse objeto é uma faquinha que Zé usa para picar fumo e que mais adiante no seu último encontro com Marli aparece em cena outra vez MARLI Medeo de cima a baixo com mais deprezo ainda Corno manso Dálhe as costa bruscamente e sobe a ladeira Galego solta uma gargalhada que corta de súbito ante o olhar ameaçador de ZédoBurro Este num gesto instintivo ergue a pequena faca de picar fumo ROSA Zé GOMES 2003 p 70 Aproximandose do desfecho da trama no momento em que a polícia se encaminha para a praça onde se encontra Zé do Burro Dias Gomes faz outro aproveitamento das personagens que dão respaldo ao pagador dando às falas de Minha Tia Coca e Dedé uma funcionalidade semelhante ao coro das antigas tragédias gregas Mestre Coca entra correndo COCA A ZédoBurro Meu camarado trate de ir embora Estão lhe arrumando uma patota ZÉ O quê COCA Chegou um carro da Polícia Eles estão com o padre na sacristia MINHA TIA Vieram por causa dele COCA Então ZÉ Mas eu não roubei não matei ninguém DEDÉ Quer um conselho Experiência própria com a Polícia é melhor fugir do que discutir COCA Ande depressa que nós agüentamos eles aqui até você ganhar o mundo ZÉ Não eu não vou fugir como qualquer criminoso se estou com a minha consciência tranqüila GOMES 2003 p 75 Como nos coros do antigo teatro grego o citado trecho mostra as personagens aconselhando o pagador mais uma vez tentando abrirlhe os olhos e convencêlo a 125 partir evitando que algo ruim aconteça Sentidose completamente perdido ainda assim Zé do Burro não se desfaz de suas ideias de sua vontade e decisão mesmo acreditando ter sido abandonado por Santa Bárbara A decisão final de Zé é tomada e sua vida já não lhe importa ZÉ Não mesmo que ela me abandone eu preciso ir até o fim Ainda que já não seja por ela que seja só pra ficar em paz comigo mesmo Subitamente abrese a porta da igreja e entram o Delegado o Secreta o Guarda o Padre e o Sacristão ZÉ Agora eu decidi só morto me levam daqui Juro por Santa Bárbara só morto GOMES 2003 p 7678 Podemos dizer que Zé do Burro cometeu vários erros trágicos nesse drama erros de cálculo sem má intencionalidade Um desses erros é reagir à polícia uma reação impensada como na cena em que discutiu com Marli por isso entendida como um erro involuntário Dizemos ser involuntário porque Zé agiu movido pelo instinto muito embora se saiba que reagir à polícia lhe dá motivos suficientes para fazer uso de sua autoridade além do risco das coisas não terminarem bem Um segundo erro da mesma espécie se dá no momento em que ele se abaixa para pegar a faca caída no chão outra ação instintiva Iniciase assim uma grande confusão na praça Os capoeiristas tomam parte da briga a favor de Zé do Burro entretanto não conseguem evitar o trágico fim do pagador de promessas A cena da morte de Zé nos lembra o teatro clássico grego no respeitante à representação da violência Ou seja no teatro antigo as cenas de morte não eram representadas no palco mas ocorriam por trás do cenário longe da visão da plateia e somente depois o corpo da personagem era trazido e exibido em uma espécie de carrinho Em O Pagador de Promessas a morte de Zé do Burro ocorre no palco mas não é vista pelo público isto é os espectadores não vêem quando Zé é baleado porque ele está no meio de um grupo de pessoas que impedem a plateia de ver o herói Somente após o som do tiro o grupo se afasta e deixa Zé ferido aos olhos do público Sabemos que essa cena foi assim constituída para fortalecer a ideia de que toda a cidade é responsável pela morte do pagador de promessas ZédoBurro de faca em punho recua em direção à igreja Sobe um ou dois degraus de costa O padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço fazendo com que a faca vá cair no meio da praça Zédo Burro corre e abaixase para apanhála Os policiais aproveitam e caem sobre ele para subjugálo E os capoeiras caem sobre os 126 policiais para defendêlo ZédoBurro desaparece na onda humana Ouvese um tiro A multidão se dispersa como num estouro de boiada Fica apenas ZédoBurro no meio da praça com as mãos sobre o ventre Ele dá ainda um passo em direção à igreja e cai morto GOMES 2003 p 78 Mesmo ferido Zé dá um passo em direção à igreja mostrando que ainda à beira da morte não tem intenção de desistir de seu objetivo É uma prova de que sua individualidade não foi perdida e de que não se arrepende das decisões tomadas Sua vontade compreendida pelos capoeiristas é atendida no fim da peça quando o corpo de Zé do Burro é carregado sobre a cruz para dentro da igreja O Padre baixa a cabeça e volta ao alto da escada Bonitão surge na ladeira Mestre Coca consulta os companheiros com o olhar Todos compreendem a sua intenção e respondem afirmativamente com a cabeça Mestre Coca inclinase diante de ZédoBurro segurao pelos braços os outros capoeiras se aproximam também e ajudam a carregar o corpo Colocamno sobre a cruz de costas com os braços estendidos como um crucificado Carregamno assim como numa padiola e avançam para a igreja Bonitão segura Rosa por um braço tentando levála dali Mas Rosa o repele com um safanão e segue os capoeiras Bonitão dá de ombros e sobe a ladeira Intimidados o Padre e o Sacristão recuam a Beata foge e os capoeiras entram na igreja com a cruz sobre ela o corpo de ZédoBurro O Galego Dedé e Rosa fecham o cortejo Só Minha Tia permanece em cena Quando uma trovoada tremenda desaba sobre a praça MINHA TIA Encolhese toda amedrontada toca com as pontas dos dedos o chão e a testa Êparrei minha mãe E O PANO CAI LENTAMENTE GOMES 2003 p 79 A maneira como Zé do Burro entra na igreja morto sobre a cruz é um elemento surpresa da trama que provoca ao final o efeito catártico A ação dos capoeiristas de colocálo na cruz e carregar o corpo do pagador até o interior do templo ao mesmo tempo que representa o desejo realizado do herói também simboliza a vitória do sincretismo do povo que ergue sua bandeira e a coloca no território conquistado Ademais é interessante ver as reações de outras personagens no fim desse drama Rosa finalmente faz sua escolha repelindo Bonitão o padre e o sacristão recuam em reconhecimento à vitória do adversário além de nos fazer lembrar mais uma vez da cena em que a cruz de Zé do Burro cai evento que agora também se encaixa perfeitamente na ideia de representar a queda não do pagador mas da própria autoridade religiosa A fuga da beata diante do crucificado parece uma forma irônica de comparála ao diabo fugindo da cruz Finalmente as trovoadas indicam a presença da 127 divindade espectadora de todo o drama recebendo da reverente Minha Tia as boas vindas para sua festa agora iniciada para comemorar a vitória da santa ou melhor a vitória de Iansã Para encerrar nossa análise do texto dramático podemos dizer que embora Zé do Burro seja um herói moderno livre e movido por suas paixões caminhando em direção ao trágico sem a intervenção de deuses ou de qualquer outra força sobrenatural ainda assim o personagem por seu forte sentimento religioso busca justificativas para parte da situação em que se envolve na vontade divina Mas é bastante claro seu destino não resultou de outra vontade que não a dele próprio Dias Gomes constrói essa belíssima obra de forma magistral atualizando categorias clássicas do drama reportandoas ao teatro moderno confirmando que a tragédia de ontem como o drama de hoje mantémse nos parâmetros elevados em que colocou Aristóteles o gênero dramático como uma arte dignificadora 2 O Pagador de Promessas dramaticidade e tragicidade em tela De acordo com Gerárd Betton 1987 p 84 o texto fílmico é uma obra figurativa original não relacionada com a obra literária Para comprovar essa sua concepção o autor exemplifica dizendo que um roteiro filmado por dois diretores diferentes resultará em dois filmes distintos Logo o diretor não é um mero serviçal de um texto préexistente romance ou peça mas um artista criativo de pleno direito STAM 2003 p 103 Ao dirigir um filme o diretor revela traços de sua personalidade expondo suas ideias emoções e seus pontos de vista sobre determinados temas como qualquer outro artista afinal autoria existe no cinema como na literatura ou outras artes diz Jean Claude Bernardet 1981 p 153 afirmando que sem dúvida alguma o cineasta é ou pode ser autor Partindo desse princípio observaremos neste capítulo como o discurso autoral de Anselmo Duarte através das peculiaridades da linguagem cinematográfica dialoga com o texto original de Dias Gomes e trabalha os elementos dramáticos na construção de seu texto fílmico Ao refazermos o caminho deixado pelo pagador de Dias Gomes agora sob o ponto de vista de Anselmo Duarte notamos que a trilha não sofreu muitas alterações 128 Ao menos nada que mudasse o original sentido do drama vivido por Zé do Burro Mesmo havendo poucas exclusões tanto de falas quanto de cenas Anselmo Duarte talvez pelas exigências de Dias Gomes mantevese muito próximo ao texto original Claro que não temos aqui o interesse de fazer um estudo comparativo relacionado à fidelidade do texto fílmico ao dramático Sabemos que essa questão há muito já foi resolvida devido às diferenças óbvias entre essas duas linguagens Porém achamos necessário dizer que tocamos nessa questão porque percebemos em nosso estudo que nossas interpretações acerca da construção da ação dramática no teatro não sofreu grandes modificações no texto fílmico Embora na versão cinematográfica haja o acréscimo de cenas não encontradas no texto dramático estas além de servirem como amplificações de determinadas caracterizações das personagens também operam como elementos de causa e efeito intensificando alguns significados Realizado em 1962 sob direção de Anselmo Duarte o filme O Pagador de Promessas inicia com imagens do terreiro de candomblé onde Zé do Burro fez a promessa à Santa Bárbara Enquanto Dias Gomes começa seu texto mostrando o pagador prestes a finalizar sua obrigação chegando à porta da igreja que se revelará uma força oposta ao seu objetivo Anselmo Duarte decide iniciar o texto fílmico com Zé e Rosa ainda fazendo a promessa mostrando assim o motivo que leva a Igreja a se opor ao ingênuo agricultor Se no teatro o público só tem conhecimento da causa da promessa e o motivo pelo qual foi feita em um terreiro de candomblé através do discurso do próprio Zé do Burro no momento em que este conta sua história ao padre Olavo Anselmo Duarte se aproveita da capacidade do cinema em mostrar vários cenários oferecendo ao público já no início do filme a possibilidade de ver o pagador ajoelhado diante de uma imagem de Santa Bárbara idêntica à imagem carregada pelos fiéis católicos na cena da procissão exibida bem depois Assim não há como o público ter dúvidas das palavras de Zé quando este justificar que embora tenha feito a promessa num terreiro de candomblé a santa a quem se dirigiu havia sido Santa Bárbara pois os espectadores testemunharam o fato relatado É notório que o filme inicia in medias res mas de um ponto bem anterior ao do início do texto original seguindo cronologicamente a ordem dos fatos dando ao público a oportunidade de acompanhar de perto toda a árdua caminhada do pagador até ali levando o espectador a enxergar o herói mais empaticamente Apesar de iniciar sua obra expondo Zé e sua esposa no terreiro de candomblé Anselmo deixa muito claro que o 129 casal não participa efetivamente do culto Enquanto Rosa apenas olha o que acontece sem esboçar qualquer demonstração de interesse ou curiosidade Zé do Burro está ajoelhado diante da santa inteiramente alheio ao movimento que o cerca dando mostras evidentes de que a presença do casal ali não tem relação direta com o candomblé inclusive pelo seu gesto ajoelhado e de mãos postas perante a imagem da santa Durante a exibição dos créditos iniciais do filme o espectador vê todo o trajeto do pagador e sua esposa até a igreja Há momentos nessa sequência em que apenas os pés das personagens são enquadrados ressaltando o sacrifício de se deslocar a pé em tamanha distância Chamamos atenção para um plano muito significativo no qual a forma como a câmera se posiciona além de mostrar os pés de Zé do Burro pisando em um chão rachado de tão seco que interpretamos como uma representação da dura realidade do homem sertanejo ainda projeta um ângulo no qual a sombra do pagador fundese com a sombra da cruz funcionando como artifício proléptico isto é temos um adiantamento da crucificação do pagador É interessante notar como Rosa faz o percurso até a cidade Ela segue sempre atrás do marido nunca a seu lado Para sermos mais específicos a personagem em questão se posiciona bem atrás da cruz ressaltando sua caracterização de esposa submissa Não obstante tal cena serve para ilustrar e confirmar nossa interpretação relativa à revolta de Rosa provavelmente sentindose inferiorizada com a ideia de o marido dar mais atenção à cruz do que a ela sua mulher Numa das últimas cenas da peregrinação do casal vêse um grupo de romeiros seguindo o pagador Entre essas pessoas destacase um homem de batina ou seja uma personagem representativa da Igreja indicando que em um primeiro momento a Igreja não se opõe a Zé do Burro mas o observa e segue No texto dramático não há indícios da presença de outras pessoas na rua quando Rosa e seu marido chegam à cidade No filme o casal ao descer a ladeira deparase com um grupo de pessoas à porta de uma boate que zomba do protagonista Já nessa cena as opiniões começam a dividirse pois algumas pessoas enxergam aquele homem e sua cruz com surpresa ou demonstram respeito benzendose Outras riem e chamam o pagador de palhaço Temos nessa sequência a antecipação do choque entre o mundo simples e o universo civilizado através da recepção feita pelos citadinos Esta é a maneira escolhida por Anselmo Duarte para destacar o embate entre esses dois universos e a divisão de opiniões dentro do próprio mundo urbano Esse embate entre os 130 citados universos é revelado aos poucos por Dias Gomes no entanto fica muito mais explícito na versão fílmica Logo após essa cena ocorre a antecipação do encontro entre Rosa e Bonitão A uma determinada distância do grupo de zombadores Bonitão observa a camponesa que o encara sem esboçar interesse ou vaidade A princípio a mulher parece estar encarando mais um que ri de seu esposo Em seguida abaixa a cabeça ao perceber que o olhar daquele homem não é para Zé do Burro e sim para ela O gesto da camponesa abaixar a cabeça e seguir seu caminho sem olhar para trás demonstra uma Rosa mais simples e próxima do marido Até aqui não conseguimos identificar na Rosa construída por Anselmo Duarte as mesmas características apontadas por Dias Gomes na sua rubrica inicial uma mulher de sangue quente sexualmente insatisfeita que se veste sem pretensão de esconder os encantos que possui apesar da simplicidade A Rosa de Anselmo Duarte parecenos uma típica mulher do campo que não possui vaidades preocupandose apenas em vestirse com decência No referente às características de Zé do Burro até agora não há nenhuma alteração da caracterização original dessa personagem No texto de Dias Gomes o ambiente em que se desenrola o drama de Zé do Burro é uma praça em frente a uma pequena igreja Todavia na versão fílmica o cenário é uma igreja enorme em estilo barroco À frente do templo há quatro lances de escada cada um com 14 degraus ladeados por muros altos Este cenário não é compatível ao cenário descrito no texto original no qual segundo Dias Gomes vemos a fachada de uma igreja relativamente modesta com uma escadaria de quatro ou cinco degraus GOMES 2003 p 9 Conforme dissemos anteriormente em nossa pesquisa a escolha desse cenário por Anselmo Duarte deuse devido à ideia de sufocamento sugerida pelos altos muros que ladeiam a longa escadaria De fato essa característica do cenário não só intensifica o aniquilamento do protagonista como ainda concentra a dramaticidade da obra dando nos a sensação de que não há outras saídas para o herói senão insistir em sua causa e esperar o desfecho Ademais o cenário representa o poder da Igreja católica e a pequenez de Zé do Burro perante a autoridade religiosa além do número de degraus diante do templo fazernos enxergálos como obstáculos a serem enfrentados pelo pagador até conseguir levar sua cruz para dentro da igreja Mais que isso como diz Janilton Andrade 2001 p 268 essas escadas se revelarão como a ascensão de Zé do Burro à queda Realmente degrau a degrau o pagador segue em direção à morte 131 fazendo de sua chegada à igreja não a última etapa de sua promessa mas o cumprimento de sua missão na terra se pensarmos conforme as doutrinas religiosas Tais ideias são fortalecidas pela própria composição do quadro e movimentos de câmera A cena na qual Zé e Rosa chegam à igreja é mostrada em Plano Geral com a câmera em uma lenta Panorâmica de baixo para cima fazendo o espectador enxergar as personagens bem pequenininhas dentro do quadro praticamente preenchido pela escadaria e pela igreja Parados em frente à porta da igreja Zé sorri satisfeito por chegar ao fim de sua jornada visto ter encontrado o que procurava Rosa entretanto tem um semblante irritado É nesse momento que reconhecemos a oposição entre Zé e Rosa citada por Dias Gomes Porém se na interpretação do texto dramático é possível compreender as atitudes antipáticas de Rosa considerando sua fadiga desgaste físico e desejo de descansar depois de tão árdua caminhada no texto fílmico suas atitudes tornamse ainda mais compreensíveis pois o público não só tem conhecimento de sua peregrinação como testemunhou sua lealdade ao marido desde a feitura da promessa até a chegada à porta da igreja Desse modo a Rosa dramatizada no filme tornase ainda mais empática Ela não exige do marido não o trata com indiferença Pelo contrário Rosa por respeitar a atitude de Zé muito embora não a aceite completamente de bom grado suplica para ir embora ou descansar em um lugar confortável E ao receber a recusa do esposo a irritação de Rosa beira a infantilidade Amparandonos no que diz Gérard Betton sobre a palavra e a voz como elementos caracterizadores da personagem podemos dizer que as vozes de Rosa e Zé do Burro e a maneira como falam fortalecem os contrastes entre eles pois enquanto o pagador se expressa de modo ameno calmo e lentamente sua esposa comunicase de maneira rústica e com impaciência Ainda nessa cena curiosamente uma fala de Rosa não corresponde ao cenário Assim como no texto dramático Zé do Burro examina a fachada da igreja à procura de alguma identificação Rosa o questiona e ele responde que busca qualquer coisa para confirmar se aquela é mesmo a igreja de Santa Bárbara No texto original a mulher rebate ROSA E você já viu igreja com letreiro na porta homem ZÉ É que pode não ser essa 132 ROSA Claro que é essa Não lembra o que o vigário disse Uma igreja pequena numa praça perto duma ladeira GOMES 2003 p 11 grifo nosso Na versão cinematográfica o texto mantém a ideia original mudando poucas palavras Claro que é essa Não lembra o que o vigário disse Igreja pequena defronte de uma escadaria Como afirmar que esta é a igreja certa se eles buscam um templo pequeno enquanto encontramse em frente a um muito grande Será que esta fala é uma mera falha no roteiro Ou podemos interpretar o tamanho da igreja como um recurso metafórico Ou seja a igreja de Santa Bárbara não é vista pelas personagens na mesma proporção em que é vista pelo espectador para fortalecer a autoridade da Igreja Afinal a escolha de tal cenário não pode realmente ter sido feita por acaso visto que locações de características semelhantes às indicadas por Dias Gomes são facilmente encontradas em pequenas cidades do sertão nordestino São questões deste tipo que nos fazem compreender como as escolhas do diretor a forma como este demonstra seu ponto de vista sobre determinados temas ou interpretação de alguma obra dependem da maneira como emprega os elementos da linguagem cinematográfica podendo tornar a versão fílmica de uma peça muito mais envolvente que o texto original pois devido à sua própria linguagem e montagem o cinema representa com maior realismo que o teatro por este ser limitado pelo próprio espaço físico O Bonitão da versão cinematográfica é fisicamente o oposto do rufião apresentado no texto dramático pois não parece ser muito alto é magro não tendo acentuadas a beleza máscula e vigor sexual descritas no Bonitão teatral Contudo esses traços físicos menos realçados no filme não impedem que o cafetão construído por Anselmo Duarte opere de acordo com a personagem do texto original Na verdade essas características do Bonitão fílmico o tornam mais próximo do típico malandro da noite citadina que conquista não pelas qualidades físicas mas pela lábia Anselmo Duarte amplifica a indiferença de Bonitão em relação às mulheres permitindo que o rufião ao encontrar dinheiro no decote de Marli não ameace esbofeteála mas passe direto para a agressão física batendo no rosto da prostituta Em seguida Bonitão vai à igreja intencionalmente pois sabe que ali vai encontrar Rosa Marli o segue sem se dar conta de Zé do Burro e sua esposa pois antes de percebêlos Bonitão a manda embora Marli não vê o casal porque seus olhos estão completamente voltados para o cafetão evidenciando sua submissão 133 A comparação que fizemos entre as quatro personagens Zé do Burro Bonitão Rosa e Marli na análise do texto dramático permanece válida exceto em relação à troca de papéis que sugerimos entre Rosa e Marli já que as características que usamos como justificativas para a citada troca não são identificadas em Rosa no texto fílmico No texto dramático Bonitão se intriga com a cruz sendo esta o motivo de sua aproximação a Zé Anselmo Duarte prefere que o rufião se aproxime e use a cruz como apoio para melhor observar Rosa Enquanto Zé e Bonitão conversam Rosa abre os olhos e espia o interlocutor de seu marido depois volta a dormir sem dar importância à presença de Bonitão Originalmente no texto de Dias Gomes Rosa acorda por sentir que está sendo observada já na adaptação fílmica ela desperta porque Bonitão além de se aproximar puxa sua saia para cobrirlhe a perna que está à mostra gesto que faz do rufião um sujeito muito mais atrevido Quando Zé do Burro vai até a sacristia para ver se o padre já está acordado deixando Rosa sozinha com Bonitão Anselmo Duarte não permite ainda que Rosa conte ao rufião os acontecimentos anteriores à chegada do casal na igreja O trecho referente ao passado de Zé do Burro será aproveitado em outro momento como veremos a seguir Porém os diálogos relativos às verdadeiras intenções de Bonitão são excluídos embora isso em nada altere o sentido da ação dessa personagem uma vez que suas insinuações são gestuais isto é o cafetão durante suas falas não perde a oportunidade de se aproximar de Rosa e tocála com certo atrevimento Por outro lado Rosa somente esboça seu desejo de descansar confortavelmente A mulher percebe todas as investidas de Bonitão mas não demonstra qualquer atração nem mesmo quando este lhe diz ser conhecido nas redondezas como Bonitão De acordo com o texto de Dias Gomes Rosa repete o nome do cafetão quase sensualmente o que não acontece no filme Anselmo Duarte prefere que Rosa apenas demonstre surpresa ao ouvir as palavras de Bonitão e com ingênua curiosidade a respeito do conforto oferecido por Bonitão como por exemplo um colchão de mola Para intensificar ainda mais as segundas intenções de Bonitão Anselmo suprime parte das falas do cafetão dirigidas a Zé do Burro quando este retorna à cena dizendo que a sacristia ainda está fechada despertando a revolta da esposa Fica suprimido no texto fílmico tudo o que vem em negrito na citação a seguir 134 BONITÃO Assumindo um ar tão eclesiástico quanto possível A senhora faz mal em ser tão descrente Quem sabe se Santa Bárbara já está providenciando o pagamento dessa dívida E quem sabe se não escolheu a mim pra pagador ZÉ Muito ingenuamente O senhor não era fiscal do imposto de renda Agora é pagador de Santa Bárbara BONITÃO Meu caro com o custo de vida aumentando dia a dia a gente tem que se virar Mas não é esse o caso Digo que Santa Bárbara já deve estar tratando de liquidar o débito hoje contraído com sua senhora porque me fez passar aqui esta noite ZÉ Não vejo nada demais nisso BONITÃO Porque o senhor não sabe que eu posso em cinco minutos arranjar uma boa cama com colchão de mola num hotel perto daqui ZÉ Pra ela BONITÃO E pro senhor também ZÉ Eu não posso Tenho que esperar abrir a igreja Se soubesse que não iam roubar a cruz BONITÃO Rapidamente Oh não a cruz não deve ficar sozinha Esta zona está cheia de ladrões A cruz é de madeira e a madeira está caríssima ZÉ É o que eu acho Não devo sair daqui BONITÃO Mas eu posso ficar tomando conta enquanto o senhor e sua senhora vão descansar ZÉ O senhor BONITÃO E por que não ZÉ Mas a igreja pode demorar a abrir Pelo menos uma hora ainda BONITÃO Eu espero Sua esposa me contou a caminhada que fizeram o senhor carregando nas costas essa cruz através de léguas e léguas para cumprir uma promessa Isso me comoveu ZÉ Mas não é justo Não foi o senhor que fez a promessa ROSA Ele está querendo ajudar Zé ZÉ Mas não é direito Eu prometi cumprir a promessa sozinho sem ajuda de ninguém E essa história de dormir no hotel não está no trato BONITÃO E sua senhora está no trato ZÉ Rosa Não ela pode ir BONITÃO Nesse caso se quiser que eu leve sua senhora Ao menos ela descansa enquanto espera pelo senhor ZÉ Você quer Rosa Quer ir esperar por mim no hotel Voltase para Bonitão É hotel decente BONITÃO Fingindose ofendido Ora o senhor acha que eu ia indicar ZÉ Desculpe é que sempre ouvi dizer que aqui na cidade BONITÃO Pode confiar em mim ZÉ É longe daqui BONITÃO Não basta subir aquela ladeira ZÉ Que é que você diz Rosa ROSA Percebendo o jogo de Bonitão Quero não Zé Prefiro ficar aqui com você ZÉ Inda agora mesmo você estava se queixando BONITÃO Não é pra menos Deve estar exausta Sessenta léguas ZÉ Afinal de contas você tem razão a promessa é minha não é sua Vá com o moço não tenha acanhamento 135 BONITÃO Eu vou com ela até lá apresento ao porteiro que é meu conhecido sim porque uma mulher sozinha o senhor sabe eles não deixam entrar depois volto para lhe dizer o número do quarto Daqui a pouco depois de cumprir a sua promessa o senhor vai pra lá ZÉ Se o senhor fizesse isso era um grande favor Eu não posso me afastar daqui BONITÃO Nem deve Primeiro Santa Bárbara ROSA Zé é melhor eu ficar como você ZÉ Pra quê Rosa Assim você vai logo descansar numa boa cama não precisa ficar aí deitada nesse batente frio BONITÃO Um perigo Pode pegar uma pneumonia ROSA Inicia a saída Pára hesitante Pressente o perigo que vai correr Procura com o olhar fazer ZédoBurro compreender o seu receio Zé ZÉ Ah sim Enfia a mão no bolso tira um maço de notas Pode ser que precise pagar adiantado ROSA Recebe o dinheiro Magoada com a falta de ciúmes do marido Talvez seja melhor depois de entregar a cruz você mandar também rezar uma missa em ação de graças ZÉ Levando a sério a sugestão É não é má idéia Rosa sobe a ladeira e Bonitão a segue BONITÃO Saindo Volto num minuto ZÉ Está bem Sic GOMES 2003 p 2022 grifo nosso Com esses cortes Anselmo Duarte anula a possibilidade de Rosa acreditar que Bonitão quer ajudar o casal ficando claro desde o início para ela qual a verdadeira intenção de Bonitão cujo discurso confirma nossa suspeita de ser ele um malandro de boa conversa com grande poder de persuasão que rapidamente convence Zé do Burro Claro que o pagador continua naturalmente ingênuo no filme contudo o corte de certas falas minimiza o ar de ingenuidade patética do pagador de maneira que no texto fílmico seu convencimento se dá não por sua ingenuidade excessiva mas pelo alto poder de convencimento de Bonitão Assim como no texto dramático essa cena ressalta a visão de Zé do Burro a respeito do pagamento da promessa isto é uma obrigação dele que dispensa a ajuda de qualquer outra pessoa Apesar das supressões no trecho citado permanece válida a interpretação que fizemos no texto teatral sobre Zé entregar a esposa ao rufião quando age com intenção de recompensála por sua mostra de lealdade Importante salientar que suprimindo parte do diálogo Anselmo Duarte não permite Rosa sinalizar ao marido que é melhor mantêla ao seu lado A mulher chega a dizer que prefere ficar onde está mas aceita a quase autorização do marido obedecendoo quando este mandalhe seguir Bonitão sem acanhamento Não podemos deixar passar despercebido que ao ouvir o rufião dizer que pode arranjar um 136 hotel ali perto Rosa é enquadrada ainda sentada no degrau aos pés do marido erguendo a cabeça para mirar Bonitão O olhar lançado pela mulher expressa sua certeza das reais intenções do rufião Quando Zé pergunta a Rosa se quer esperálo no hotel ela que ainda olhava para Bonitão desvia os olhos para o chão e permanece em silêncio deixando nas mãos do marido a decisão de permitirlhe seguir com o outro ou não Ainda nessa cena Anselmo Duarte acrescenta um detalhe não existente na peça No momento em que Rosa declara achar melhor ficar ao lado do marido um forte vento começa a soprar seguido de trovões e relâmpagos Este detalhe pode ser entendido como uma alusão ao poder de Santa Bárbara a senhora dos raios e trovoadas sinalizando também a vinda de uma tempestade que abalará interiormente o casal protagonista Este abalo já começa na ida ao hotel quando a tentativa de Rosa de se proteger da chuva representa também sua tentativa de protegerse de si mesma e de Bonitão Ela está sempre passos à frente de Bonitão que a cerca de todas as formas como se ela fosse uma presa É durante o trajeto até o hotel que Rosa vai narrar como conheceu o marido e como a promessa foi feita A imagem de intolerância dentro do próprio universo religioso apresentada na cena em que a Beata dirigese grosseiramente ao Sacristão não é destacada no filme porque Anselmo Duarte descarta as reclamações da carola Assim toda e qualquer reprovação por parte da igreja ou postura negativa desta passa a ser representada apenas por Padre Olavo Entretanto o diretor mantém o diálogo da Beata referente à presença de Zé do Burro e sua cruz dividindo o texto entre mais duas outras beatas À porta da igreja as mulheres questionam o sacristão sobre aquela curiosa cena BEATA 1 Escute o que é aquilo lá SACRISTÃO Não sei Talvez tenha desgarrado da procissão Sai em direção a Zé do Burro BEATA 2 Que procissão De Santa Bárbara BEATA 1 A procissão de Santa Bárbara ainda não saiu BEATA 3 E já viu alguém carregar uma cruz em procissão Nem na do Senhor Morto Em seguida num misto de incredulidade e reprovação as três mulheres adentram o templo junto de outros fiéis O Sacristão no filme não demonstra a infantilidade indicada por Dias Gomes porém não escapa do tratamento rude de Padre Olavo que em sua primeira aparição mostrase impaciente dirigindose ao seu 137 subordinado aos gritos ação que o faz ser visto pelo público de maneira bastante negativa Mas para sustentar essa personagem conforme sua caracterização no texto dramático Anselmo Duarte inclui cenas nas quais se percebe a fraqueza do sacerdote encoberta por uma couraça de indelicadeza como se só assim pudesse manter o respeito de todos No entanto o sacerdote é um homem dividido como se observa na cena em que após a missa pergunta ao sacristão se Zé do Burro permanece do lado de fora da igreja tentando justificar sua atitude de proibilo de entrar no templo PADRE Aquele homem continua na escadaria SACRISTÃO Continua E parece disposto a não sair enquanto o senhor não deixar ele entrar PADRE Mas eu não posso deixar ele entrar Você sabe que eu não posso Amanhã isso aqui não seria mais uma casa de Deus mas a casa de todos os falsos ídolos pagãos Seria o caos O fim da religião Ele andou sete léguas com aquela cruz SACRISTÃO O senhor viu o ombro dele Está em carne viva Essa cena marca o conflito interior do padre Ele está abalado com o trajeto feito pelo pagador porém está preso ao dever de cumprir o papel que lhe foi dado pela Igreja No filme perdemos o diálogo da Beata com Minha Tia que conversando com Dedé dá pistas da generosidade do padre um homem caridoso amigo dos pobres Apesar da exclusão dessa cena Anselmo não deixa de mostrar o sofrimento que o evento causa ao padre através da inclusão de outras cenas como aquela na qual vemos Padre Olavo falando com o Guarda e logo após sozinho ajoelhase em oração certamente recorrendo à intervenção divina para agir de maneira correta Para amplificar a dramaticidade em O Pagador de Promessas Anselmo Duarte explora bastante os recursos de angulação empregando principalmente Plongée e Contraplongée O primeiro tipo de angulação é utilizado para diminuir esmagar a personagem sugerindo o sufocamento a insensibilidade a angústia a sujeição das personagens que se tornam joguetes de um destino inexorável ou da vontade divina BETTON 1987 p 34 Logo Zé do Burro é a figura dramática mais enquadrada em Plongée ângulo intensificador de sua pequenez diante da autoridade religiosa O Contraplongée ao contrário é empregado para evocar a superioridade magnificando a personagem Sendo assim na sequência em que Zé do Burro e Padre Olavo encontram se pela primeira vez estes dois ângulos são utilizados A princípio o sacerdote demonstrou toda sua rudeza do alto da escadaria como já dissemos há pouco Entretanto ao descer a escada e aproximarse de Zé do Burro vendo seus ferimentos no 138 ombro o padre ao lado do pagador tem sua imagem agressiva dissolvida colocandose em igualdade com o simplório Zé No início do diálogo entre o sacerdote e o pagador Anselmo Duarte os enquadra em Primeiro Plano favorecendo a visão de suas expressões faciais através das quais se percebe a amenidade entres ambos O padre tem um semblante acolhedor amigável enquanto ouve as primeiras falas de Zé do Burro que se expressa com tocante simplicidade Conforme diz Janilton Andrade 2001 p 271 a imagem de Zé carregando sua cruz enquanto o padre segura um terço apresenta as duas figuras movidas pelas mesmas convicções religiosas nivelandose pelas mesmas crenças e práticas místicas Tanto é assim que padre Olavo interessado pela história do pagador o escuta e sobe os degraus a seu lado com a mão pousada no ombro de Zé num gesto de apoio e acolhimento Entretanto no momento da peripécia em que Zé conta ter procurado ajuda em um terreiro de candomblé o padre o interrompe o impede de continuar subindo a escadaria sobe alguns degraus adiante disparando um sermão logo em seguida Para realçar o poder religioso do qual está investido padre Olavo é enquadrado em Contra plongée enquanto Zé do Burro é diminuído em uma Plongée iniciando daí o seu esmagamento Notese que a partir dessa cena todos os encontros de Zé com padre Olavo ou outras autoridades são empregados Plongée e Contraplongée de modo a destacar a diferença de forças entre as personagens envolvidos na cena Mas nos arriscamos dizer que mesmo sendo comum a esse tipo de angulação esmagar inferiorizar a personagem em relação a Zé do Burro a Plongée acaba por dignificálo pois intensifica a incompreensão da qual ele é vítima e o eleva afinal apesar de toda a humilhação sofrida Zé permanece fiel aos seus ideais agindo com honestidade e retidão até cumprir seu fatídico destino Desse modo entendemos que nesse filme por meio da Plongée ocorre elevação da personagem através do esmagamento Anselmo Duarte faz inclusões de cenas não existentes no texto original que não só justificam como fortalecem as intenções e funções das personagens que cercam Zé do Burro Por exemplo o caso do Repórter Anselmo inclui uma cena desenrolada em uma sala de redação do jornal onde o comunicador trabalha Ao entrar na sala a personagem recebe a pauta do dia um beato que atravessou a cidade carregando uma cruz De acordo com o chefe do Repórter o jornal quer reportagens que vendam numa despudorada declaração de que na falta de bons assuntos é preciso inventar afinal um bom repórter tem que ter imaginação Logo ao entrevistar Zé do Burro e dar novos 139 sentidos às falas do pagador o Repórter simplesmente está cumprindo ordens até mesmo para conseguir se manter no emprego Fato é que no filme as ações do repórter parecemnos fruto de uma intenção muito mais individual do que apenas a representação do papel e objetivo dos meios de comunicação Saindo do hotel Rosa caminha pelas ruas da Bahia O sentimento de culpa se evidencia na sombra projetada em seu rosto Ela parece perdida afinal seu trajeto de volta é mais difícil que a ida para o hotel Ao mesmo tempo essa ideia de perderse na cidade denota não apenas o fato de não conseguir encontrar o caminho de volta para o local onde deixou Zé do Burro como a sua própria perdição resultante da ação cometida ao sair de perto do marido A trilha que preenche essa cena é heterodiegética começando suave segue o ritmo dos passos de Rosa aumentando o volume até que o som de sinos badalando irrompe Neste momento Rosa parece ter ouvido o barulho dos sinos pois olha para os lados assustada pondose a correr o que ao mesmo tempo pode ser entendido como fuga de algum tipo de julgamento visto que algumas pessoas da rua olham para Rosa ao passar por ela Seu conflito interior é realçado com o aumento do volume e a cadência da música Ainda referente à música Anselmo Duarte explora bastante esse recurso usandoo como elemento participativo do processo de caracterização A trilha não só preenche vazios dinamizando a trama ou realçando momentos de tensão como ajuda a caracterizar personagens como Dedé CospeRima e o Repórter Quando ambos entram em cena à primeira vez são acompanhados por músicas que indiciam comicidade dando pistas de certa malandragem eou esperteza características deles A musicalidade é muito presente nesse filme sejam intervenções musicais diegéticas ou heterodiegéticas produzidas por instrumentos musicais ou cantadas pelas personagens como parte da composição do universo de cada um a exemplo do terreiro de candomblé no qual seus participantes cantam dançam e tocam durante o culto a Iansã as baianas que cantam enquanto lavam a escadaria da igreja os hinos e louvores entoados durante a procissão o gemido dos berimbaus durante as festividades Sem esquecer de figuras como Minha Tia que assim como ocorre no texto dramático canta seu pregão Beiju olha o abará para vender os seus quitutes enquanto o vendedor de frutas avisa com musicalidade que o araçá tá madurinho e Dedé recita os seus versos de forma ritmada Todos esses exemplos entre outros dão beleza vida e dinamismo a uma obra que se propõe realista por buscar retratar da maneira mais verossímil possível a realidade do povo brasileiro e suas manifestações culturais 140 Nas falas entre Zé do Burro o Secreta e Bonitão a música é homodiegética ou seja está dentro da cena e por isso é ouvida pelas personagens A música ouvida tanto pelo telespectador quanto por Zé e seus interlocutores é tocada por capoeiristas que numa grande roda cercam as três personagens O som dos berimbaus elevase conforme aumenta a ira de Zé do Burro destacando assim a sua revolta Na longa sequência dos festejos de Santa Bárbara há o jogo de capoeira porém a canção encontrada no texto dramático é suprimida no filme de modo que nossas interpretações a respeito desse trecho se perdem no texto fílmico Encontrando o marido apoiado na cruz Rosa tomada de culpa não o fita Arrependida implora chorando para irem embora Teremos um pequeno corte no trecho desse diálogo Vejamos ZÉ Não posso Você sabe que eu não posso voltar antes de chegar ao fim da promessa Não ia ter sossego o resto da vida ROSA Você acredita demais nas coisas ZÉ É porque você não pensa no que pode acontecer ROSA Mais do que já aconteceu ZÉ Que aconteceu A caminhada as noites sem dormir e agora ser xingado como a figura do diabo Tudo isso é nada comparado com o castigo que pode vir GOMES 2003 p 38 O que está destacado foi excluído do texto dramático Quando se aproxima do marido Rosa também se apóia na cruz como se procurasse amparo no objeto Mais ainda Ao dizer mais do que já aconteceu Rosa levantase e abraça a cruz como se buscasse proteção não do mundo em que vive como fez Marli no texto dramático mas de si mesma diante da situação em que se vê da culpa que sente da tentação que a abala Pelo texto de Dias Gomes percebese que Zé do Burro não entendeu o que Rosa quis dizer com mais do que já aconteceu Por outro lado no filme além de não dizer o que está em negrito Zé olha para Rosa enquadrado em Primeiro Plano quadro que destaca o semblante do pagador possibilitando ao público observar a reação de Zé percebendo que algo não está bem Assim o Zé do Burro construído por Anselmo Duarte demonstra não ser tão ingênuo quanto o pagador caracterizado por Dias Gomes Enquanto no texto dramático a desconfiança de Zé em relação à esposa é despertada na cena em que esta tem o primeiro conflito com Marli no texto fílmico a desconfiança se confirma pois no trecho acima citado a suspeita de infidelidade da esposa já é semeada no pagador 141 A chegada do Repórter não causa ansiedade em Rosa como ocorre no texto dramático Talvez porque o comunicador vai direto ao ponto que lhe interessa perguntando como nasceu a ideia de tal peregrinação obtendo de Rosa a resposta O burro adoeceu então ele fez a promessa de carregar a cruz e dividir o sítio com aquela cambada de preguiçosos Seguese do mesmo modo do texto original a distorção do discurso de Zé feita pelo Repórter que praticamente impõe a maneira como Zé voltará para casa Mais uma vez Zé é enquadrado em Primeiro Plano numa câmera mergulhada Plongée intensificando seu desespero em não ser compreendido Rosa observa tudo calada pois Anselmo não a deslumbra com a presença da mídia embora não consiga perceber a ação manipulativa do Repórter deixandose participar do espetáculo criado pelo jornalista no momento em que aceita posar para a fotografia Uma das inclusões de cena mais comentadas por todos que se debruçam sobre essa obra de Anselmo Duarte é a sequência da procissão Nesta cena a imagem de Santa Bárbara é carregada por fiéis em procissão subindo a escadaria da igreja Zé do Burro fica tão distraído olhando para a santa que mal percebe Rosa saindo para a venda do Galego onde se encontrará com Bonitão Anselmo Duarte mostra a cumplicidade entre Zé e a santa fazendo Primeiros Planos intercalados ora do pagador ora da santa como se estes estivessem se olhando Cada vez que a câmera volta para Zé do Burro este é enquadrado em um plano mais fechado significando a aproximação entre Santa Bárbara e o pagador Nessa sequência temos um Close de Zé do Burro que enfatiza sua expressão de maravilhamento diante da imagem católica demonstrando seu total alheamento em relação a tudo ao seu redor Zé segue a procissão carregando sua cruz caminhando ao lado do andor sem tirar os olhos de Santa Bárbara sempre enquadrada em Contra plongée enquanto o pagador é visto em Plongée enfatizando a ideia de pequenez do homem perante o sagrado Curiosamente chegando a procissão à porta da igreja a imagem da santa voltase para Zé do Burro que não pode ultrapassar o umbral do templo Virandose completamente para Zé a santa entra no templo de costas para o altar sendo Zé do Burro a única testemunha desse fenômeno Tal cena designa a proteção de Santa Bárbara que dando as costas para a autoridade da Igreja parece dizer de que lado está ou seja a favor de Zé do Burro Na porta da igreja o padre gesticula para as baianas afastaremse dando passagem aos fiéis impedindo as mulheres do candomblé de entrarem na igreja Este gesto do sacerdote lembranos a parábola da separação do joio e do trigo como se os pagãos hereges e promíscuos respectivamente 142 representados pelas baianas Zé do Burro e Marli fossem os grãos ruins que não podem se misturar aos bons isto é aos fiéis católicos intensificando a dramaticidade da obra Um ponto muito interessante no filme é a forma como Anselmo Duarte mostra a construção da imagem de Zé do Burro pelos meios de comunicação Quando o pagador vai até Rosa na intenção de verificar o que ocorreu para Marli agredila ao se ver cercado de fotógrafos o pagador ergue as mãos com o objetivo de pedir que parem de fotografar e se afastem No entanto seu gesto é frizado12 e transformado em uma foto da primeira página de um jornal lido por Mestre Coca Nessa foto o gesto de Zé do Burro ganha um ar de agressividade e protesto complementando o título da manchete Novo Cristo prega a revolução A nosso ver essa cena é muito dramática no sentido de distorção da intencionalidade do protagonista através da imagem O jornal chega às mãos do Monsenhor que em reunião com outros sacerdotes busca uma solução para o caso Quando um dos padres diz que nada autoriza o julgamento de Zé do Burro como um homem de bem ao mesmo tempo em que o acusa de ser um mistificador o Monsenhor assume que sua preocupação não é com o pagador e sim com a Igreja Desse modo o conflito de Padre Olavo parece se presentificar na conversa entre os padres visto que a cena mostra a divisão de opinião sobre a ação da Igreja naquele evento Há quem defenda a ideia de a Igreja permanecer intransigente e assim manter o poder e o prestígio de sempre Por outro lado há quem considere errado que antigos métodos da religião católica se repitam no caso de Zé do Burro como ilustrado no diálogo abaixo extraído do texto fílmico PADRE 1 Acho que o padre Olavo vem agindo bem MONSENHOR Embora em princípio eu acredite na justeza do procedimento do padre Olavo temo que para o povo ele pareça injusto e cruel PADRE 2 A Igreja ficaria em uma posição antipática PADRE 1 Às vezes é necessário ter a coragem de assumir atitudes antipáticas PADE 2 O monsenhor sugere que se interceda junto ao padre Olavo para que permita a MONSENHOR Oh não De modo algum Mas acho que devíamos encontrar alguma solução que nos colocasse em melhor situação perante a opinião pública sem contudo termos que ceder em questões que considerarmos vitais para o prestígio e a sobrevivência da igreja católica 12 Frizado é um termo técnico utilizado por profissionais do audiovisual referente ao processo de transformar uma determinada imagem do vídeo ou filme em foto 143 PADRE 2 De acordo Seria crônico e ridículo que procedêssemos com esse homem hoje com a mesma severidade dos inquisidores de Santa Joana MONSENHOR Sim Os tempos são outros PADRE 1 Muito embora os tempos sejam outros a igreja católica não se modernizou ao ponto de admitir a intromissão de outros cultos MONSENHOR É claro que nesse particular temos que ser inflexíveis Com essa sequência Anselmo Duarte dá ao público a possibilidade de testemunhar que embora pense principalmente em sua própria imagem e reputação a Igreja ponderou sobre o caso de Zé do Burro e tentou encontrar uma solução adequada para as duas partes envolvidas no tal conflito Chegado o momento do diálogo entre Zé do Burro e o Monsenhor notamos que comparada ao texto teatral essa sequência tem sua carga dramática intensificada visto que todas as personagens ao redor de Zé são enquadradas em Primeiro Plano ressaltando a ansiedade pela posição do pagador e ficam calados à espera de sua decisão contrastando com o excesso de sons barulhos e toda a agitação da festividade O silêncio geral provoca tensão O olhar de Zé para Rosa procurando a resposta que deveria dar causa no telespectador ansiedade e piedade já que o pagador não encontra nos olhos da esposa o apoio que busca De acordo com nossas interpretações do texto original esse momento em que o Monsenhor encontra Zé marca a hamartia do pagador ou seja decidir não renegar o prometido se configura em um erro trágico que conduzirá Zé do Burro ao fim catastrófico Porém no texto fílmico Anselmo Duarte não interfere em nada nesse elemento apenas narrando o acontecido sem grandes investimentos dos recursos técnicos do cinema Da mesma forma ocorre com a peripeteia durante o diálogo entre Zé e Padre Olavo Além da maneira como enquadra as duas personagens Anselmo não acrescenta nem suprime nada que possa amplificar ou modificar essas categorias dramáticas Entretanto parecenos que uma supressão feita pelo diretor muda a anagnorisis de lugar no texto fílmico Em nossa leitura do texto dramático consideramos como anagnorisis o momento em que o Guarda entra em cena com o jornal na mão e Rosa corre ansiosa para ver sua fotografia na primeira página Seria nessa ocasião que Zé do Burro se reconheceria sozinho diante de forças antagônicas que desejam esmagálo percebendo que nem mesmo a própria esposa independente de sua fidelidade está do seu lado 144 ZÉ Sua atitude para com Rosa é agora de recalcada e surda revolta Embora ele não pareça ter certeza ainda de sua infidelidade instintivamente começa a perceber que ela se encontra do outro lado do lado daqueles que por este ou aquele motivo não o compreendem ou fingem não compreendêlo GOMES 2003 p 51 No filme como já dissemos Rosa não se mostrou encantada com a presença da imprensa Pelo contrário mantevese em silêncio e recuada na maior parte do tempo Em seguida vimos que a fotografia utilizada no jornal foi justamente aquela feita no momento em que Zé separou Rosa de Marli e ambos foram cercados por jornalistas e fotógrafos Desse modo acreditamos que a anagnorisis tenha sido antecipada no diálogo entre o Repórter e Zé quando este diz ao jornalista de maneira quase desesperada que ele o Repórter e ninguém ainda o entendeu Nesse sentido acreditamos que já nesse momento o pagador toma conhecimento de que está sozinho perdido entre a incompreensão de todos que o cercam reconhecimento esse que se torna mais dramático quando nos momentos finais da trama Zé do Burro se vê abandonado até mesmo por Santa Bárbara Após tentar forçar sua entrada no templo Zé do Burro caído à porta da igreja é cercado por diversos comunicadores e doentes que buscam junto ao pagador visto realmente como um novo Cristo a cura de suas enfermidades Numa clara referência às passagens bíblicas respeitantes aos milagres feitos por Jesus Anselmo Duarte coloca em cena uma mulher com um bebê nos braços suplicando a Zé do Burro que toque a criança para curála Por pouco o pagador não atende ao pedido da mulher desse modo livrandose a tempo de não permitir fosse confirmada a acusação de padre Olavo sobre Zé querer realmente igualarse ao filho de Deus Erguendose e saindo da porta da igreja o pagador é seguido por fiéis doentes e deficientes que passam por trás de um grupo de capoeiristas a tocar seus instrumentos de percussão Esta cena evidencia o encontro das culturas misturadas e confundidas unidas no mesmo contexto Aliás o filme explora muito a questão dos cultos danças e suas músicas específicas Na sequência em que o som dos berimbaus intensifica o conflito interno de padre Olavo este bate os sinos da igreja mas o badalar é abafado pelo som dos capoeiristas cena seguida de um plano que mostra a queda da cruz de Zé do Burro no chão indicando não só o enfraquecimento do poder da Igreja como a queda do próprio herói Esta interpretação referente à queda da cruz como se nota é idêntica à leitura feita em relação ao texto dramático Contudo tendo a cruz no texto fílmico caído após 145 as batidas do sino a ideia de que esta cena representa a queda de Zé do Burro fica muito mais evidente No desfecho da trama consideramos o efeito catártico produzido no filme muito mais intensificado através de uma inversão de papéis em uma única Contraplongée Isto ocorre quando dois capoeiristas carregam o corpo de Zé do Burro sobre a grande cruz de madeira O plano é visto em Contraplongée dignificando o crucificado carregado para dentro da igreja Quando a cruz de Zé do Burro sai do quadro no mesmo ângulo vemos a pequena cruz do alto da igreja que pela posição da câmera é vista de cabeça para baixo Entendemos esta tomada como representação da inversão de poderes além é claro de fazer um contraponto entre a cruz de Zé e a cruz do Cristo Em seguida padre Olavo é enquadrado em Plongée enfraquecido arruinado e praticamente esmagado pela cruz do pagador que entrando no quadro preenche toda a tela embora ainda haja tempo de se ver o sacerdote fugindo e dando passagem ao cortejo que carrega o corpo do novo Cristo criado pela própria Igreja Diferentemente do texto dramático é Rosa a última personagem a entrar no templo enquadrada sozinha com o paletó do esposo na mão em um Plano Geral Aberto em Plongée que ressalta sua ruína porque não dizer o seu também trágico destino afinal depois de tudo que passou Rosa acaba viúva sem o apoio de ninguém Para finalizar nossa análise do texto fílmico podemos dizer que a adaptação cinematográfica de O Pagador de Promessas não sofreu grandes modificações a ponto de fugir do texto original e que as escolhas do cineasta Anselmo Duarte e a utilização dos elementos técnicos característicos do cinema na leitura que se pode fazer sobre as personagens do drama de Dias Gomes não invalidam o que foi definido pelo dramaturgo Percebemos que a caracterização de algumas personagens foi intensificada como o Zé do Burro do cinema que é mais desconfiado que na peça mas provoca o mesmo nível de empatia independentemente de ser o drama teatral ou cinematográfico Rosa mais submissa e arrependida enquanto Bonitão é demasiadamente atrevido Quanto ao padre este se mostra mais inseguro fraco temeroso em relação às decisões que deve tomar embora na versão fílmica seja sempre aos olhos de seus inimigos visto como alguém forte superior poderoso enquanto Zé é muito mais enfraquecido diminuído Embora Anselmo Duarte tenha acrescentado alguns eventos estes só enriqueceram o drama ainda que parte desses acréscimos sejam mencionados no texto original através de falas das personagens 146 CONCLUSÃO A arte não reproduz o que vemos Ela nos faz ver Paul Klee Após todo o percurso feito em busca de conceitos e teorias do drama clássico e moderno para embasar nossos estudos da dramaturgia de Dias Gomes em O Pagador de Promessas sob a perspectiva trágica podemos dizer que a referida obra de fato constróise como um drama moderno que mantém características do antigo teatro trágico a exemplo das unidades de ação tempo e lugar Ademais no texto escolhido como corpus de nossa pesquisa são apresentados outros elementos desencadeadores do desfecho trágico do herói dentre eles hamartia peripeteia anagnorisis elementos que segundo Aristóteles suscitam na plateia os sentimentos de piedade e temor favorecendo pelo menos do ponto de vista da produção textual o cumprimento do objetivo final da tragédia tal como definido na Poética aristotélica pela noção de katarsis Claro que embora já no início desse trabalho tenhamos afirmado a existência dessa dimensão de tragédia clássica no texto de Dias Gomes não se pode negar seu status de drama social devido à presença de personagens baixos linguagem prosaica adoção da vontade consciente como móvel da ação entre outros subsídios que colocam Zé do Burro dentre heróis modernos cujos destinos são traçados não por forças exteriores como divindades fatalidade ou destino mas pela própria trajetória da personagem desenhada por suas escolhas Ainda assim seria necessário retroceder aos fundamentos do teatro antigo através dos estudos aristotélicos para termos a necessária carga de conhecimento que nos daria argumentos suficientes para confirmar nossas hipóteses Desse modo recorremos a Aristóteles cientes de que embora o filósofo tenha teorizado os espetáculos de seu tempo formulou em sua Poética conceitos que atravessaram os séculos permanecendo válidos até hoje presentificandose em obras que habitam o teatro da modernidade Durante nossas pesquisas compreendemos que as formulações aristotélicas aparecem diversamente atualizadas e reelaboradas dentro da tradição dramática nos seus diferentes momentos históricos 147 No teatro secularizado da modernidade os deuses senhores do destino humano na antiguidade saem de cena para dar espaço a personagens cujos fins resultam dos conflitos travados contra outros homens ou de lutas interiores deflagradas no íntimo das próprias personagens Embora as tragédias clássicas fossem protagonizadas por príncipes e reis numa demonstração comovente de que qualquer indivíduo estaria sujeito a um desfecho catastrófico o século XVIII deu ao povo a oportunidade de enxergarse também no palco como num espelho no qual são refletidas cenas do cotidiano interpretadas por personagens representativas das classes sociais menos favorecidas Graças a esse rebaixamento em que os aristocráticos são substituídos por pessoas comuns falando uma linguagem prosaica sujeitos como Zé do Burro puderam protagonizar tramas comoventes trazendo para a dramaturgia um novo modelo de herói trágico Passando a representar os processos sociais considerando os sujeitos isoladamente vivenciando choques configurados como embates entre classes representativas da sociedade capitalista a arte dramática demarca suas novas formas de expressão Daí nossa necessidade de nos debruçarmos em formulações teóricas referentes ao drama moderno Assim amparamonos nas proposições de Lessing Hegel Peter Szondi Rosenfeld e Sandra Luna Os textos de Dias Gomes procuram chamar a atenção do público sobre determinadas questões sociais sem a intenção de propagar mensagens Entretanto em relação ao teatro moderno nacional sabemos que povoar os palcos com representantes de diversas classes sociais não foi uma contribuição exclusiva de Dias Gomes Outros dramaturgos como Plínio Marcos e Chico Buarque constroem textos que encenam as diferenças sociais através de personagens representativas das classes mais baixas Contudo a escolha por temas referentes a tais diferenças é uma forte característica das composições de Dias Gomes de modo que pela maneira como constrói seus textos tão representativos da nossa realidade o citado autor facilita o sentimento de identificação por parte do público e fornece um aparato literário muito apelativo à leituras críticas da nossa realidade Não é apenas a verossimilhança apontada por Aristóteles que se faz presente na obra do dramaturgo baiano mas também a complexidade da ação na qual são empregadas hamartia peripeteia e anagnorisis esta que pode ser encontrada no momento em que Zé do Burro finalmente compreende que está sozinho em sua luta quando se vê abandonado por todos por sua esposa e pela santa Apesar disso o nosso 148 herói não desiste e insiste em seu objetivo movido pela excessiva vontade que não pode ser confundida com hybris visto não haver o sentido de soberba nas ações de Zé do Burro Pelo contrário com a atualização do conceito o componente excessivo da hybris que é marca do herói aparece em Zé do Burro como uma vontade excessiva de devoção à santa O pagador não é arrogante Ele é excessivamente humilde Por outro lado o seu excesso é compreendido pelo Padre Olavo como soberba ou seja a ação de Zé recebe o real sentido de huybris apenas pela interpretação do sacerdote que acredita ser desejo do pagador igualarse ao filho de Deus Ademais Dias Gomes permite que o pagador cometa não apenas um erro que o leva a catástrofe mas vários erros acionadores da máquina trágica embora o erro trágico por excelência se presentifique no momento decisivo entre persistir na promessa ou renegála Zé do Burro não é movido por uma causa grandiosa não sendo classificado como um herói representativo do coletivo Ele é um personagem individual uma vez que seu destino não se vincula ao destino de um povo como na tragédia sofocleana de Édipo na qual o protagonista representa sua cidade Tudo o que acontece a Zé do Burro repercute apenas nele e não na coletividade Por sua individualidade Zé é responsável por seus atos e sua vontade o conduz ao trágico fim de morrer na porta da igreja onde pretendia pagar sua promessa Zé do Burro classificase portanto insistimos como um herói moderno Nesse sentido considerese a condição secularizada do drama moderno Zé não conta com a proteção dos deuses como os antigos heróis clássicos mesmo havendo momentos em que acredite ter a proteção de Santa Bárbara Na verdade quando se inicia o conflito o pagador sentese abandonado por todos que o cercam inclusive pela santa Contudo sua vontade não o abandona levandoo a demonstrar sua certeza do que deseja fazer Ele quer pagar sua promessa custe o que custar embora não tenha consciência de seu destino desenhado conforme suas decisões O embate entre Zé do Burro e Padre Olavo confirma as proposições de Hegel no referente aos conflitos entre duas forças que embora neguem os objetivos uma da outra ambas tem igualmente razão Ou seja não se pode julgar negativamente a ação de Padre Olavo sem antes considerar a instituição e valores que ele representa Não seria verossímil se ele após tomar conhecimento de que Zé do Burro fez uma promessa em um culto não aceito pela Igreja católica permitisse a entrada do camponês no templo A entrada de Zé do Burro na igreja se dá não porque o sacerdote a permitiu mas porque 149 ele sozinho embora represente a autoridade religiosa não tem poder sobre a coletividade se esta resolver mostrar suas forças Após fazermos essa análise do texto dramático e chegarmos a essas conclusões conforme havíamos nos disposto partimos para a observância da adaptação fílmica dessa obra amparandonos principalmente na maneira como o cinema fazendo uso de suas peculiaridades constrói ou reconstrói uma ação trágica baseada nas categorias dramáticas Para conseguirmos comprovar nossas hipóteses iniciamos uma viagem pelos conceitos e teorias do universo cinematográfico e pudemos constatar que as especificidades da linguagem do cinema proporcionaram ao texto O Pagador de Promessas a transposição de seus elementos dramáticos e trágicos para o texto fílmico Ressaltamos que para a realização dessa análise interdisciplinar consideramos questões estéticas e semióticas no respeitante ao discurso dessas duas formas distintas de linguagem Ademais observamos os distanciamentos e aproximações entre teatro e cinema na tentativa de responder a possíveis questionamentos relacionados à amplificação da dramaticidade em tela visto que o cinema é possuidor de recursos técnicos capazes de intensificar os significados das obras produzidas Quanto à adaptação fílmica de O Pagador de Promessas constatamos que a partir da peça de Dias Gomes Anselmo Duarte traçou uma narrativa coerente tratando de temas como sincretismo religioso e manipulação ideológica mantendose muito próximo do texto original sem arriscarse a fazer alterações mais significativas sobretudo nos momentos cruciais nos quais ocorrem a hamartia e a peripeteia Entretanto é possível perceber que Anselmo Duarte realçou as caracterizações das personagens que cercam Zé do Burro embora este tenha sua ingenuidade diminuída de modo que comparando as caracterizações dessa personagem nas duas versões consideramos patética a ingenuidade do herói no texto dramático enquanto que no filme o pagador percebe mais rapidamente a incompreensão da qual é vítima a ponto de antecipar a anagnorisis Contudo o nosso herói independentemente da versão em que seja representado mantém o mesmo nível de empatia e a trama alcança o objetivo último da tragédia provocando o efeito catártico esperado Embora a obra de Anselmo Duarte mereça ser reconhecida como uma obra de grande beleza podemos dizer que concordamos com os críticos cinematográficos que julgam a montagem de O Pagador de Promessas como uma produção simples De fato não notamos muito investimento por exemplo da linguagem cinematográfica referente aos tipos de planos e seus possíveis significados porém seja em cena ou em tela a 150 tragédia de Zé do Burro constitui uma trama de grande beleza e comoção refletindo não só as diferenças sócioculturais de um povo mas o grito dos excluídos que erguendo o corpo do pagador como uma bandeira reivindicam direito e respeito a todos em igual medida Chegando ao final de nossa jornada pelas diversas leituras feitas ao longo desse trabalho acreditamos que nossa dissertação alcançou os objetivos almejados Através dos conceitos estudados construímos um quadro teórico e analisamos a tragicidade de uma ação dramática em expressões de arte distintas Pudemos verificar os conceitos de drama e tragédia em relação ao texto dramático escolhido como objeto de estudo Não obstante conferimos como o cinema adapta essa obra visto que aproximandose do gênero dramático através da ostentação presentifica as ações da mesma forma que o drama Se a dramaticidade diz respeito à própria estrutura conflituosa do gênero dramático sendo acentuada a cada momento em que os conflitos atingem grau mais elevado de dissensão na dramaturgia ou no cinema não importa em ambas as formas de expressão artística também a tragicidade se manifesta com maior comoção à medida em que se testemunha o descompasso entre o desejo do herói objetivado na sua luta e a impossibilidade de realização desse mesmo desejo Contra a vontade humana livre e consciente o trágico permanece na modernidade obstaculando o sentido da própria vida 151 REFERÊNCIAS Fontes primárias GOMES Dias O pagador de promessas Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2003 Os heróis vencidos Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1989 Coleção Dias Gomes v1 Os falsos mitos Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1990 Coleção Dias Gomes v2 Os caminhos da revolução Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1991 Coleção Dias Gomes v3 Espetáculos musicais Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1992 Coleção Dias Gomes v4 Peças da juventude Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1994 Coleção Dias Gomes v 5 O rei de ramos comédia musical Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1979 Campeões do mundo Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005 A invasão peça em três atos e cinco quadros 6 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2004 Apenas um subversivo Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1998a Roque Santeiro ou o berço do herói 3 ed Rio de Janeiro Ediouro 1998b Coleção Prestígio O santo inquérito Rio de Janeiro Ediouro 199 Coleção Prestígio Derrocada Rio de Janeiro Record 1993 Decadência ou o procurador de Jesus Cristo Romance Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1995 152 Sucupira amea ou deixea 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Miziara Jece Valadão e Harry Zalkowistch Produção Harry Zalkowistch Intérpretes Luis Carlos Miele Jorge Doria Vera Gimenez Denis Carvalho e outros Roteiro José Miziara Estúdio Silvio Santos Cinedistri 1975 Revela SA 105 min Son Color 35mm O DESCARTE Direção Anselmo Duarte Produção Tarcísio Meira e Anselmo Duarte Intérpretes Glória Menezes Ronnie Von Fernando Torres Mauro Mendonça e outros Roteiro Anselmo Duarte Cinedistri 1973 95 min Son 35mm UM CERTO Capitão Rodrigo Direção Anselmo Duarte Produção William Khouri Intérpretes Francisco di Franco Elza de Castro Newton Prado Sônia Dutra e outros Roteiro Anselmo Duarte Cinedistri 1971 106 min Son 35mm 153 VEREDA de Salvação Direção Anselmo Duarte Produção Anselmo Duarte Intérpretes Raul Cortez José Parisi Lélia Abramo Esther Mellinger e outros Roteiro Jorge Andrade e Anselmo Duarte Cinedistri 1964 100 min Son PB 35mm ABSOLUTAMENTE Certo Direção Anselmo Duarte Produção Oswaldo Massaini e Cinesdistri Intérpretes Anselmo Duarte Dercy Gonçalves Odete Lara Aurélio Teixeira e outros Roteiro Anselmo Duarte Vera Cruz Unida Filmes e Cinedistri 1957 95 min Son 35mm Fontes secundárias ANDRADE Janilton Da beleza à poética Rio de Janeiro Imago Ed 2001 ANDREW James Dudley As principais teorias do cinema Trad Tereza Ottoni Rio de Janeiro Zahar 1989 ARISTÓTELES Poética Tradução Eudoro de Souza São Paulo Ars Poetica 1993 Arte retórica e arte poética Tradução de Antonio Pinto de Carvalho 17 ed Rio de Janeiro Ediouro 2005 AUERBACH Erich Mimesis a representação da realidade na literatura ocidental 4 ed São Paulo Perspectiva 2002 AUMONT Jacques et al A estética do filme Trad Marina Appenzeller Campinas Papirus 1995 Coleção Ofício de Arte e Forma BARBARO Umberto Elementos de estética cinematográfica Trad Fátima de Sousa Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1965 BERNARDET JeanClaude O que é cinema 4 ed São Paulo Editora Brasiliense 1981 Brasil em tempo de cinema ensaios sobre o cinema brasileiro 3 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1978 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