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O Pagador de Promessas Dias Gomes httpgroupsgooglecomgroupdigitalsource Copyright c Ediouro Publicações SA Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9610 de 190298 É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização prévia por escrito da editora CIP Brasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Gomes Dias 1922 O pagador de promessas Alfredo Dias Gomes 36ª ed Rio de Janeiro Ediouro 2002 Coleção Prestígio ISBN 8500913916 Teatro brasileiro Literatura CDD 86992 CDU8690812 EDIOURO PUBLICAÇÕES SA Rio de Janeiro Sede Dept de vendas e expedição Rua Nova Jerusalém 345 CEP 21042230 Rio de Janeiro RJ Tel 21 38828240 8323 8284 Fax 21 38828212 8313 Email livrosediourocombr São Paulo Av Bosque da Saúde 1432 Jardim da Saúde CEP 04142082 São Paulo SP Tel 11 55893300 Fax vendas 11 55893300 ramal 233 Email ediouroediourocombr Email Vendas vendaspediourocombr Internet wwwediourocombr Dias Gomes Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em Salvador Bahia a 19 de outubro de 1922 Aí realizou seus primeiros estudos passando a residir no Rio de Janeiro a partir de 1935 Cursou várias carreiras entre as quais Direito e Engenharia sem concluir nenhuma delas Escreveu sua primeira peça teatral aos 15 anos A Comédia dos Moralistas obtendo com ela o prêmio do Serviço Nacional do Teatro Mais tarde aos 19 anos viu sua primeira obra encenada PédeCabra com sucesso de público e de crítica sendo saudado por Viriato Corrêa o mais importante crítico da época como aquele que seria mais cedo ou mais tarde o autor mais importante do teatro brasileiro Nessa sua primeira fase como dramaturgo Dias Gomes escreveu ainda Amanhã Será Outro Dia Doutor Ninguém Zeca Diabo João Cambão quase todas encenadas por Procópio Ferreira Alguns textos desta fase permanecem inéditos no teatro como O Pobre Gênio Eu Acuso o Céu Sinhazinha O Homem que não Era Seu e Beco sem Saída que foram apresentados apenas pelo rádio anos mais tarde Em todos eles Dias revela já a preocupação de questionar a realidade brasileira ou como diria Anoto Rosenfeld de oferecer uma imagem crítica da realidade brasileira naquilo que é caracteristicamente brasileiro e naquilo que é tipicamente humano A partir de 1944 Dias Gomes estendeu suas atividades ao rádio para o qual foi levado por Oduvaldo Vianna pai tendo atuado em várias emissoras de São Paulo e do Rio escrevendo e dirigindo programas Foi diretor artístico da Rádio Bandeirantes de São Paulo da Rádio Clube do Brasil Rio e da Rádio Nacional Rio Nessa fase publicou quatro romances Amanhã será Outro Dia Um Amor e Sete Pecados A Dama da Noite e Quando É Amanhã Em 1954 após nove anos de ausência do teatro fez nova experiência cênica com Os Cinco Fugitivos do Juízo Final produzida por Jaime Costa com direção de Bibi Ferreira Mas foi em 1960 com O Pagador de Promessas que retornou definitivamente ao teatro O estrondoso sucesso nacional e internacional desta peça fez com que seu nome atravessasse as fronteiras do país sendo hoje Dias Gomes talvez o nosso dramaturgo mais conhecido e mais representado no exterior Vertido para o cinema O Pagador de Promessas conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1962 além de vários outros prêmios nacionais e internacionais Seu texto está traduzido para os seguintes idiomas inglês francês russo polonês espanhol italiano vietnamita hebraico grego e servo croata tendo sido encenado nos Estados Unidos seis produções Polônia quatro produções União Soviética Cuba Espanha Itália Grécia Israel Argentina Uruguai Equador Peru México Vietnã do Norte durante a guerra e Marrocos Na década de sessenta Dias Gomes escreveu ainda as seguintes peças A Invasão A Revolução dos Beatos Odorico O BemAmado O Berço do Herói proibida pela censura O Santo Inquérito O Túnel Dr Getúlio Sua Vida e Sua Glória e Vamos Soltar os Demônios Em 1969 pressionado pela censura que vetara vários textos seus e sentindo que dificilmente poderia continuar sua obra teatral a menos que se adaptasse às novas limitações impostas pelo regime vigente preferiu experimentar um novo meio de expressão a televisão Sem trair a sua temática levou para a TV suas preocupações políticas e sociais escrevendo uma série de telenovelas que deram ao gênero um alto nível artístico e uma linguagem própria Verão Vermelho Assim na Terra Como no Céu Bandeira 2 O BemAmado O Espigão Roque Santeiro proibida pela censura Saramandaia e Sinal de Alerta constituem um ciclo que repete na TV a tentativa de pintar um vasto painel de nossa realidade levando ao espectador a consciência da necessidade de transformála A partir de 1978 após novo período de afastamento durante o qual apenas se preocupou com reencenações de suas peças em todo o mundo Dias Gomes voltou a escrever para o teatro As Primícias foi publicada em livro e O Rei de Ramos foi encenada com enorme sucesso Segundo Anotol Rosenfeld autor de um dos mais inteligentes estudos sobre a sua obra esta no seu todo se apresenta repleta de esplêndidas invenções povoada de uma humanidade exemplar na glória e na miséria Distinguemna a imaginação rica a variedade de caracteres vivos a extraordinária latitude da escala emocional indo dos comoventes destinos de Zé do Burro e Branca Dias ao riso amargo de O Berço do Herói e Dr Getúlio e à franca gargalhada de Odorico Aberta ao sublime sensível à grandeza trágica a obra recorre ao mesmo tempo aos variados enfoques do humor do sarcasmo e da ironia para lidar com os aspectos frágeis ou menos nobres da espécie humana Por isso a obra é amorável e respira futuro Prêmios Prêmio Nacional de Teatro INL 1960 Prêmio Governador do Estado SP 1960 Prêmio Melhor Peça Brasileira APCT 1960 Prêmio Padre Ventura CICT 1962 Prêmio Melhor Autor Brasileiro ABCT 1962 Prêmio Governador do Estado da Guanabara 1962 Laureada no III Festival Internacional de Teatro em Kalsz Polônia Em Versão Cinematográfica Palma de Ouro do Festival de Cannes 1962 1 Prêmio do Festival de S Francisco EUA 1962 Critics Award do Festival de Edimburgo Escócia 1962 I Prêmio do Festival da Venezuela 1962 Laureada no Festival de Acapulco México 1962 Prêmio Saci S Paulo 1962 Prêmio Governador do Estado SP 1962 Prêmio Cidade de S Paulo 1962 Prêmio Humberto Mauro Para Janete com amor Para Páscoal Longo e Edison Carneiro Personagens ZédoBurro Rosa Marli Bonitão Padre Sacristão Guarda Beata Galego Minha Tia Repórter Fotógrafo Dedé CospeRima Secreta Delegado Mestre Coca Monsenhor Manoelzinho SuaMãe e a Roda de Capoeira Ação Salvador Época Atual Primeiro Ato Primeiro Quadro Ao subir o pano a cena está quase às escuras Apenas um jato de luz da direita lança alguma claridade sobre o cenário Mesmo assim após habituar a vista o espectador identificará facilmente uma pequena praça onde desembocam duas ruas Uma à direita seguindo a linha da ribalta outra à esquerda ao fundo de frente para a platéia subindo encadeirada e sinuosa no perfil de velhos sobrados coloniais Na esquina da rua da direita vemos a fachada de uma igreja relativamente modesta com uma escadaria de quatro ou cinco degraus Numa das esquinas da ladeira do lado oposto há uma vendola onde também se vende café refresco cachaça etc a outra esquina da ladeira é ocupada por um sobrado cuja fachada forma ligeira barriga pelo acúmulo de andares não previsto inicialmente O calçamento da ladeira é irregular e na fachada dos sobrados vêem se alguns azulejos estragados pelo tempo Enfim é uma paisagem tipicamente baiana da Bahia velha e colonial que ainda hoje resiste à avalancha urbanística moderna Devem ser aproximadamente quatro e meia da manhã Tanto a igreja como a vendola estão com suas portas cerradas Vem de longe o som dos atabaques dum candomblé distante no toque de Iansan Decorrem alguns segundos até que ZédoBurro surja pela rua da direita carregando nas costas uma enorme e pesada cruz de madeira A passos lentos cansado entra na praça seguido de Rosa sua mulher Ele é um homem ainda moço de 30 anos presumíveis magro de estatura média Seu olhar é morto contemplativo Suas feições transmitem bondade tolerância e há em seu rosto um quê de infantilidade Seus gestos são lentos preguiçosos bem como sua maneira de falar Tem barba de dois ou três dias e trajase decentemente embora sua roupa seja mal talhada e esteja amarrotada e suja de poeira Rosa parece pouco ter de comum com ele É uma bela mulher embora seus traços sejam um tanto grosseiros tal como suas maneiras Ao contrário do marido tem sangue quente É agressiva em seu sexy revelando logo à primeira vista uma insatisfação sexual e uma ânsia recalcada de romper com o ambiente em que se sente sufocar Vestese como uma provinciana que vem à cidade mas também como uma mulher que não deseja ocultar os encantos que possui ZédoBurro vai até o centro da praça e aí pousa a sua cruz equilibrandoa na base e num dos braços como um cavalete Está exausto Enxuga o suor da testa ZÉ Olhando a igreja É essa Só pode ser essa Rosa pára também junto aos degraus cansada enfastiada e deixando já entrever uma revolta que se avoluma ROSA E agora Está fechada ZÉ É cedo ainda Vamos esperar que abra ROSA Esperar Aqui ZÉ Não tem outro jeito ROSA Olhao com raiva e vai sentarse num dos degraus Tira o sapato Estou com cada bolha dágua no pé que dá medo ZÉ Eu também Contorcese num ritus de dor Despe uma das mangas do paletó Acho que os meus ombros estão em carne viva ROSA Bem feito Você não quis botar almofadinhas como eu disse ZÉ Convicto Não era direito Quando eu fiz a promessa não falei em almofadinhas ROSA Então se você não falou podia ter botado a santa não ia dizer nada ZÉ Não era direito Eu prometi trazer a cruz nas costas como Jesus E Jesus não usou almofadinhas ROSA Não usou porque não deixaram ZÉ Não nesse negócio de milagres é preciso ser honesto Se a gente embrulha o santo perde o crédito De outra vez o santo olha consulta lá os seus assentamentos e diz Ah você é o Zédo Burro aquele que já me passou a perna E agora vem me fazer nova promessa Pois vá fazer promessa pro diabo que o carregue seu caloteiro duma figa E tem mais santo é como gringo passou calote num todos os outros ficam sabendo ROSA Será que você ainda pretende fazer outra promessa depois desta Já não chega ZÉ Sei não a gente nunca sabe se vai precisar Por isso é bom ter sempre as contas em dia Ele sobe um ou dois degraus Examina a fachada da igreja à procura de uma inscrição ROSA Que é que você está procurando ZÉ Qualquer coisa escrita pra a gente saber se essa é mesmo a igreja de Santa Bárbara ROSA E você já viu igreja com letreiro na porta homem ZÉ É que pode não ser essa ROSA Claro que é essa Não lembra o que o vigário disse Uma igreja pequena numa praça perto duma ladeira ZÉ Corre os olhos em volta Se a gente pudesse perguntar a alguém ROSA Essa hora está todo o mundo dormindo Olhao quase com raiva Todo o mundo menos eu que tive a infelicidade de me casar com um pagador de promessas Levantase e procura convencêlo Escute Zé já que a igreja está fechada a gente podia ir procurar um lugar pra dormir Você já pensou que beleza agora uma cama ZÉ E a cruz ROSA Você deixava a cruz aí e amanhã de dia ZÉ Podem roubar ROSA Quem é que vai roubar uma cruz homem de Deus Pra que serve uma cruz ZÉ Tem tanta maldade no mundo Era correr um risco muito grande depois de ter quase cumprido a promessa E você já pensou se me roubassem a cruz eu ia ter que fazer outra e vir de novo com ela nas costas da roça até aqui Sete léguas ROSA Pra quê Você explicava à santa que tinha sido roubado ela não ia fazer questão ZÉ É o que você pensa Quando você vai pagar uma conta no armarinho e perde o dinheiro no caminho o turco perdoa a dívida Uma ova ROSA Mas você já pagou a sua promessa já trouxe uma cruz de madeira da roça até à igreja de Santa Bárbara Está aí a igreja de Santa Bárbara está aí a cruz Pronto Agora vamos embora ZÉ Mas aqui não é a igreja de Santa Bárbara A igreja é da porta pra dentro ROSA Oxente Mas a porta está fechada e a culpa não é sua Santa Bárbara deve saber disso que diabo ZÉ Pensativo Só se eu falasse com ela e explicasse a situação ROSA Pois então fale ZÉ Ergue os olhos para o céu medrosamente e chega a entreabrir os lábios como se fosse dirigirse à santa Mas perde a coragem Não não posso ROSA Por que homem Santa Bárbara é tão sua amiga Você não está em dia com ela ZÉ Estou mas esse negócio de falar com santo é muito complicado Santo nunca responde em língua da gente não se pode saber o que ele pensa E além do mais isso também não é direito Eu prometi levar a cruz até dentro da igreja tenho que levar Andei sete léguas Não vou me sujar com a santa por causa de meio metro ROSA E pra você não se sujar com a santa eu vou ter que dormir no chão no hotel do padre Olhao com raiva e vai deitarse num dos degraus da escada da igreja E se tudo isso ainda fosse por alguma coisa que valesse a pena ZÉ Você podia não ter vindo Quando eu fiz a promessa não falei em você só na cruz ROSA Agora você diz isso Dissesse antes ZÉ Não me lembrei Você também não reclamou ROSA Sou sua mulher Tenho que ir pra onde você for ZÉ Então Rosa ajeitase da melhor maneira possível no degrau enquanto ZédoBurro não menos cansado do que ela faz um esforço sobrehumano para não adormecer Cochila montando guarda à sua cruz Subitamente irrompem na praça Marli e Bonitão Ela tem na realidade vinte e oito anos mas aparenta mais dez Pintase com algum exagero mas mesmo assim não consegue esconder a tez amarelo esverdeada Possui alguns traços de uma beleza doentia uma beleza triste e suicida Usa um vestido muito curto e decotado já um tanto gasto e fora de moda mas ainda de bom efeito visual Seus gestos e atitudes refletem o conflito da mulher que quer libertarse de uma tirania que no entanto é necessária ao seu equilíbrio psíquico a exploração de que é vítima por parte de Bonitão vem em parte satisfazer um instinto maternal frustrado Há em seu amor e em seu aviltamento em sua degradação voluntária muito de sacrifício maternal ao qual não falta inclusive um certo orgulho Bonitão é insensível a tudo isso Ele é frio e brutal em sua profissão Encara a exploração a que submete Marli e outras mulheres como um direito que lhe assiste ou melhor um dom que a natureza lhe concedeu juntamente com seus atributos físicos Em seu entender sua beleza máscula e seu vigor sexual aliados a um direito natural de subsistir justificam plenamente seu modo de vida É de estatura um pouco acima da média forte e de pele trigueira amulatada A ascendência negra é visível embora os cabelos sejam lisos reluzentes de gomalina e os traços regulares com exceção dos lábios grossos e sensuais e das narinas um tanto dilatadas Vestese sempre de branco colarinho alto sapatos de duas cores Descem a ladeira ela na frente a passos rápidos Ele a segue como se viessem já de uma discussão BONITÃO Espere Não adianta andar depressa MARLI É melhor discutirmos isso em casa BONITÃO Alcançaa e obriga a parar torcendolhe violentamente o braço Não vamos resolver aqui mesmo Não tenho nada que discutir com você MARLI Livrase dele com um safanão mas seu rosto se contrai dolorosamente Estúpido BONITÃO Ande vamos deixar de masmas Passe pra cá o dinheiro MARLI Tira do bolso do vestido um maço de notas e entrega a ele Não podia esperar até chegar em casa BONITÃO Chega mais para perto do jato de luz e conta as notas rapidamente Só deu isto MARLI Só A noite hoje não foi boa Você viu o castelo estava vazio BONITÃO E aquele galego que estava conversando com você quando cheguei MARLI Uma boa conversa Queria se fretar comigo Ficou mangando a noite toda e não se resolveu BONITÃO Mete subitamente a mão no decote de Marli e tira de entre os seios uma nota Sua vaca Ele faz menção de darlhe um bofetão ela corre e refugiase atrás da cruz ZédoBurro desperta de sua semi sonolência MARLI Eu precisava desse dinheiro Pra pagar o quarto você sabe BONITÃO Não gosto de ser tapeado Por que não pediu MARLI E você dava BONITÃO Claro que não Guarda o dinheiro na carteira Isso ia fazer falta no meu orçamento Tenho compromissos e você bem sabe que não gosto de pedir dinheiro emprestado É uma questão de feitio MARLI E eu que faço pra pagar o quarto Já devo dois meses e a dona anda me olhando atravessado BONITÃO Indiferente É um problema seu Tenho muita coisa em que pensar MARLI Eu sei eu sei no que você pensa BONITÃO Sorri e há em seu sorriso uma sombra de ameaça Penso por exemplo que você de três meses pra cá está fazendo muito pouco A Matilde está fazendo quase o dobro MARLI Compreende a ameaça avança para ele sacudida pelo ciúme e pelo pavor de perdêlo Eu sei você está dando em cima daquela arreganhada Ela mesma anda dizendo BONITÃO Eu não dou em cima de mulher nenhuma você sabe disso É uma questão de princípios MARLI Quer dizer que é ela quem está dando em cima de você BONITÃO Ela perguntou se eu estava precisando de dinheiro MARLI Ansiosamente E você BONITÃO Eu só pedi umas informações de ordem técnica arrecadação diária etc MARLI Agarrao freneticamente pelos braços Bonitão você não aceitou o dinheiro dela aceitou Você não aceitou o dinheiro daquela vagabunda BONITÃO Olhaa friamente E que tinha se aceitasse Eu também preciso viver MARLI Mas o que eu lhe dou não chega BONITÃO Você compreende eu também tenho ambições Se eu não tivesse qualidades bem Mas eu sei que tenho qualidades É justo que viva de acordo com essas qualidades MARLI Mas o que lhe falta Eu não tenho lhe dado tudo que você me pede Se for preciso dou mais ainda Não pense que é por medo de que você me largue pela Matilde não Alisa sua roupa e admirao maternalmente É porque tenho prazer em ver você vestido com a roupa que eu dei com os sapatos que eu comprei e com a carteira recheada de notas que eu ganhei pra você Tenho orgulho sabe BONITÃO Desvencilhase dela Pois então veja se na próxima vez não esconde dinheiro no decote Tenho certeza de que a Matilde não é capaz de um gesto feio desses MARLI Ela é capaz de coisas muito piores Se você quiser eu lhe conto BONITÃO Bruscamente Não quero ouvir nada Quero é que você vá pra casa MARLI Decepcionada Você não vai comigo BONITÃO Não vou ficar um pouco mais por aqui Vá na frente que daqui a pouco eu apareço por lá MARLI Enciumada E o que é que você vai ficar fazendo na rua a uma hora dessas BONITÃO Com muita seriedade Ora mulher eu preciso trabalhar Acende um cigarro abstraindose da presença de Marli que o fita como um cão escorraçado pelo dono Só então este se mostra intrigado com a cruz no meio da praça Examinaa curiosamente e por fim dirigese a ZédoBurro É sua Zé balança a cabeça em sinal afirmativo Marli vai até à escada da igreja sentase num degrau sem se incomodar com Rosa deitada mais acima tira os sapatos e movimenta os dedos doloridos BONITÃO Nota a igreja faz uma associação de idéias Encomenda ZÉ Não promessa BONITÃO A princípio parece não entender depois ri Gozado ZÉ Não acho BONITÃO Não falei por mal Eu também sou meio devoto Até uma vez fiz promessa pra Santo Antônio ZÉ Casamento BONITÃO Não ela era casada ZÉ E conseguiu a graça BONITÃO Consegui O marido passou uma semana viajando ZÉ E o senhor pagou a promessa BONITÃO Não pra não comprometer o santo ZÉ Nunca se deve deixar de pagar uma promessa Mesmo quando é dessas de comprometer o santo Garanto que da próxima vez Santo Antônio vai se fingir de surdo E tem razão BONITÃO O senhor compreende Santo Antônio ia ficar mal se soubessem que foi ele quem fez o trouxa viajar Nota que Marli ainda não se foi Que é que você ainda está fazendo aí MARLI Esperando você BONITÃO Vai a ela Já lhe disse que vou depois Vai ficar agora grudada em mim MARLI Levantase Escute Bonitão você não podia deixar eu ficar ao menos com aquela nota BONITÃO Já lhe disse que não Não insista MARLI Mas eu preciso pagar o quarto BONITÃO O quarto é seu não é meu MARLI Mas o dinheiro é meu É justo que eu fique ao menos com algum BONITÃO É justo por quê MARLI Porque fui eu que trabalhei BONITÃO E desde quando trabalhar dá direito a alguma coisa Quem lhe meteu na cabeça essas idéias Olhaa de cima a baixo com desconfiança Está virando comunista Marli fitao com ódio e sai bruscamente pela direita Bonitão acompanhaa com o olhar e depois sorri tira o dinheiro do bolso e torna a contálo ZÉ Candidamente Esse dinheiro é dela mesmo BONITÃO Guarda o dinheiro Bem esta é uma maneira de olhar as coisas E toda coisa tem pelo menos duas maneiras de ser olhada Uma de lá pra cá outra de cá pra lá Entendeu ZÉ Não BONITÃO Não vale a pena explicar É uma questão de sensibilidade ZÉ O senhor é marido dela BONITÃO Não sou assim uma espécie de fiscal do imposto de renda Sobe como se fosse sair mas se detém diante de Rosa cujo vestido levantado deixa ver um palmo de coxa ROSA Abre os olhos sentindo que está sendo observada Que é BONITÃO Nada estava só olhando Rosa conserta o vestido BONITÃO Não deve ser lá muito confortável essa cama Rosa olhao com raiva BONITÃO Olhaa mais detidamente E olhe que você bem merece coisa melhor ROSA Diga isso a ele Aponta ZédoBurro BONITÃO A ele ROSA Meu marido BONITÃO Ah você também veio pagar promessa ROSA Eu não ele E por causa dele estou dormindo aqui no batente de uma igreja como qualquer mendiga Sentase ZÉ Não deve faltar muito para abrir a igreja O senhor sabe que horas são BONITÃO Consulta o relógio Um quarto para as cinco ZÉ Sabe a que horas abre a igreja BONITÃO Não não é bem o meu ramo ZÉ Mas às seis horas deve ter missa Hoje é o dia de Santa Bárbara ROSA Ressentida Às seis horas Tenho que agüentar mais de uma hora ainda neste batente duro E a promessa não é minha BONITÃO É capaz da porta da sacristia já estar aberta ZÉ O senhor acha BONITÃO Padre acorda cedo ZÉ Às cinco horas BONITÃO Então tem que se preparar para a missa das seis ZÉ É verdade BONITÃO Por que o senhor não vai ver ZÉ É Hesita um pouco BONITÃO A porta é do lado de lá ZÉ Rosa você vigia a cruz eu vou dar a volta não demoro Sai BONITÃO Pode ir sem susto que eu ajudo a tomar conta de sua cruz Depois que ZédoBurro sai das duas ROSA Só que uma ele carrega nas costas e a outra se quiser que vá atrás dele Levantase BONITÃO E você não é mulher para andar atrás de qualquer homem ao contrário é uma cruz que qualquer um carrega com prazer ROSA Com recato mas no fundo envaidecida Ora me deixe BONITÃO Palavra Seu marido não lhe faz justiça Isso não é trato que se dê a uma mulher mesmo sendo mulher da gente ROSA Se ele faz pouco de mim faz pouco do que é dele BONITÃO Não discuto Só acho que você não é mulher para dormir em batente de igreja Tem qualidades para exigir mais boa cama com colchão e melhor companhia ROSA Não fale em cama pra quem tem o corpo moído como eu BONITÃO Tão cansada assim ROSA Duas noites sem dormir sete léguas no calcanho BONITÃO Sete léguas Quantos quilômetros ROSA Sei lá só sei que sete vezes amaldiçoei aquele dia em que fui roubar caju com ele na roça dos padres BONITÃO Ah foi assim ROSA A gente faz cada besteira BONITÃO Quanto tempo faz ROSA Oito anos BONITÃO E você casou com ele ROSA Casei BONITÃO Sem gostar ROSA Depois de um tempo Gostava sim Sabe na roça o homem é feio magro sujo e mal vestido Ele até que era dos melhores Tinha um sítio BONITÃO E daí ROSA Daí eu achei que ele garantia tudo que eu queria da vida homem e casa A gente quando é franga com licença da palavra tem merda na cabeça BONITÃO Algo interessado Ele tem um sítio é ROSA Tinha agora tem só um pedaço Dividiu o resto com os lavradores pobres BONITÃO Por quê ROSA Fazia parte da promessa BONITÃO Que é que está esperando Virar santo ROSA Não brinque Pelo caminho tinha uma porção de gente querendo que ele fizesse milagre E não duvide Ele é capaz de acabar fazendo Se não fosse a hora garanto que tinha uma romaria aqui atrás dele BONITÃO Depois de cumprir a promessa ele vai voltar pra roça ROSA Vai BONITÃO E você ROSA Também Por quê BONITÃO Se você viesse pra cidade eu podia lhe garantir um bonito futuro ROSA Fazendo o quê BONITÃO Isso depois se via ROSA Eu não sei fazer nada BONITÃO Seguraa por um braço Mulheres como você não precisam saber coisa alguma a não ser o que a natureza ensinou Rosa puxa o braço bruscamente depois de manter por alguns segundos um olhar de desafio ROSA Não faça isso Ele pode voltar de repente BONITÃO Ele deve ter ido acordar o padre Volta a aproximarse dela ROSA Desvencilhase dele novamente Me solte Volta a sentarse na escada Eu queria era dormir Dava a vida por uma cama com um lençol branco e uma bacia dágua quente onde meter os pés BONITÃO Eu posso lhe arranjar um hotelzinho aqui perto Rosa lançalhe um olhar hostil BONITÃO Isso sem segundas intenções só pra você dormir descansar dessa romaria ROSA Não quero me meter em encrencas BONITÃO Não há nenhum perigo de encrenca Sou muito cotado com o porteiro do hotel e tenho boas relações com a polícia Nesta zona todos respeitam o Bonitão ROSA Quase sensualmente Bonitão BONITÃO Vaidoso É um apelido ROSA Olhao de cima a baixo BONITÃO Sentase junto dela ROSA Não chegue perto estou muito suada BONITÃO No hotel tem banheiro para quem andou sete léguas um banho de chuveiro e depois uma cama com colchão de mola ROSA Colchão de mola mesmo BONITÃO Então ROSA Nunca dormi num colchão de mola Deve ser bom BONITÃO Uma delícia Entra ZédoBurro pela direita Bonitão levantase ZÉ Tudo fechado Tem jeito não ROSA Revoltada E eu que agüente este batente duro até Deus sabe lá que horas ZÉ Paciência Rosa Seu sacrifício fica valendo ROSA Pra quem Pra Santa Bárbara Eu não fiz promessa nenhuma ZÉ Oxente Melhor ainda Amanhã quando você fizer a santa já está lhe devendo ROSA Nunca vi santo pagar dívida Volta a deitarse no degrau BONITÃO Assumindo um ar tão eclesiástico quanto possível A senhora faz mal em ser tão descrente Quem sabe se Santa Bárbara já não está providenciando o pagamento dessa dívida E quem sabe se não escolheu a mim pra pagador ZÉ Muito ingenuamente O senhor não era fiscal do imposto de renda Agora é pagador de Santa Bárbara BONITÃO Meu caro com o custo de vida aumentando dia a dia a gente tem que se virar Mas não é esse o caso Digo que Santa Bárbara já deve estar tratando de liquidar o débito hoje contraído com sua senhora porque me fez passar por aqui esta noite ZÉ Não vejo nada de mais nisso BONITÃO Porque o senhor não sabe que eu posso em cinco minutos arranjar uma boa cama com colchão de mola num hotel perto daqui ZÉ Pra ela BONITÃO E pro senhor também ZÉ Eu não posso Tenho que esperar abrir a igreja Se soubesse que não iam roubar a cruz BONITÃO Rapidamente Oh não a cruz não deve ficar sozinha Esta zona está cheia de ladrões A cruz é de madeira e a madeira está caríssima ZÉ É o que eu acho Não devo sair daqui BONITÃO Mas eu posso ficar tomando conta enquanto o senhor e sua senhora vão descansar ZÉ O senhor BONITÃO E por que não ZÉ Mas a igreja pode demorar a abrir Pelo menos uma hora ainda BONITÃO Eu espero Sua esposa me contou a caminhada que fizeram o senhor carregando nas costas essa cruz através de léguas e léguas para cumprir uma promessa Isso me comoveu ZÉ Mas não é justo Não foi o senhor quem fez a promessa ROSA Ele está querendo ajudar Zé ZÉ Mas não é direito Eu prometi cumprir a promessa sozinho sem ajuda de ninguém E essa história de dormir no hotel não está no trato BONITÃO E sua senhora está no trato ZÉ Rosa Não ela pode ir BONITÃO Nesse caso se quiser que eu leve sua senhora ao menos ela descansa enquanto espera pelo senhor ZÉ Você quer Rosa Quer ir esperar por mim no hotel Voltase para Bonitão É hotel decente BONITÃO Fingindose ofendido Ora o senhor acha que ia indicar ZÉ Desculpe é que sempre ouvi dizer que aqui na cidade BONITÃO Pode confiar em mim ZÉ É longe daqui BONITÃO Não basta subir aquela ladeira ZÉ Que é que você diz Rosa ROSA Percebendo o jogo de Bonitão Quero não Zé Prefiro ficar aqui com você ZÉ Ainda agora mesmo você estava se queixando BONITÃO Não é pra menos Deve estar exausta Sete léguas ZÉ Afinal de contas você tem razão a promessa é minha não é sua Vá com o moço não tenha acanhamento BONITÃO Eu vou com ela até lá apresento ao porteiro que é meu conhecido sim porque uma mulher sozinha o senhor sabe eles não deixam entrar depois volto para lhe dizer o número do quarto Daqui a pouco depois de cumprir a sua promessa o senhor vai pra lá ZÉ Se o senhor fizesse isso era um grande favor Eu não posso me afastar daqui BONITÃO Nem deve Primeiro Santa Bárbara ROSA Zé é melhor eu ficar com você ZÉ Pra que Rosa Assim você vai logo descansar numa boa cama não precisa ficar aí deitada nesse batente frio BONITÃO Um perigo Pode pegar uma pneumonia ROSA Inicia a saída Pára hesitante Pressente o perigo que vai correr Procura com o olhar fazer ZédoBurro compreender o seu receio Zé ZÉ Ahn sim Enfia a mão no bolso tira um maço de notas Pode ser que precise pagar adiantado ROSA Recebe o dinheiro Encara o marido Talvez seja melhor depois de entregar a cruz você mandar também rezar uma missa em ação de graças ZÉ Sem entender o alcance da sugestão É não é má idéia Rosa sobe a ladeira e Bonitão a segue BONITÃO Saindo Volto num minuto ZÉ Está bem Sentase ao pé da cruz e procura uma maneira de apoiar o corpo sobre ela Aos poucos é vencido pelo sono As luzes se apagam em resistência Segundo Quadro As luzes voltam a acenderse lentamente até dia claro Ouvemse distante ruídos esparsos da cidade que acorda Um ou outro buzinar foguetes estouram saudando Iansan a Santa Bárbara nagô e o sino da igreja começa a chamar para a missa das seis Mas nada disso acorda ZédoBurro Entra pela ladeira a Beata Toda de preto véu na cabeça passinho miúdo vem apressada como se temesse chegar atrasada Passa por Zédo Burro e a cruz sem notálos Pára diante da escada e resmunga Fica a critério da direção utilizar neste quadro figurantes que descerão a ladeira e entrarão na igreja BEATA Porta fechada É sempre assim A gente corre com medo de chegar atrasada e quando chega aqui a porta está fechada Por que não abrem primeiro a porta pra depois tocar o sino Não primeiro tocam o sino depois abrem a porta Isso é esse sacristão Pára de resmungar ao ver a cruz Ajeita os óculos como se não acreditasse no que está vendo Aproximase e examina detalhadamente a cruz e o seu dono adormecido Sua expressão é da maior estranheza Virgem Santíssima Neste momento abrese a porta da igreja e surge o Sacristão É um homem de perto de 50 anos Sua mentalidade porém anda aí pelos quatorze Usa óculos de grossas lentes é míope O cabelo teima em cairlhe na testa acentuando a aparência de retardado mental Ele parece bêbedo de sono Boceja largamente ruidosamente depois de abrir a primeira banda da porta Espreguiçase e solta um longo gemido Depois que abre toda a porta encostase por um momento no portal e cochila sem dar pela Beata que se aproxima BEATA Dálhe uma leve cotovelada Ei rapaz SACRISTÃO Desperta muito assustado Sim Padre já vou BEATA Que padre coisa nenhuma SACRISTÃO Ah é a senhora BEATA Vou me queixar ao Padre Olavo dessa mania de bater o sino antes de abrir a porta da igreja Eu ouço o toque venho pondo as tripas pela boca chego aqui e a porta ainda está fechada SACRISTÃO Também por que a senhora vem logo na missa das seis Por que não vem mais tarde BEATA Malcriada Porque quero Porque não é da sua conta Aponta para a cruz Que é isso SACRISTÃO Isso o quê BEATA Está vendo não Uma cruz enorme no meio da praça SACRISTÃO Apura a vista Ah sim agora percebo é uma cruz de madeira e parece que há um homem dormindo junto dela BEATA Vista prodigiosa a sua Claro que é uma cruz de madeira e que há um homem junto dela O que eu quero saber é a razão disso SACRISTÃO Não sei como quer que eu saiba Por que a senhora não pergunta a ele BEATA Bruscamente Eu é que não vou perguntar coisa nenhuma SACRISTÃO Talvez ele tenha desgarrado da procissão BEATA Que procissão De Santa Bárbara A procissão ainda não saiu E já viu alguém carregar cruz em procissão Nem na do Senhor Morto Benzese e entra apressadamente na igreja O Sacristão aproximase de ZédoBurro curioso E quando entra Bonitão pela ladeira Ele vê a igreja aberta estranha BONITÃO Oxente SACRISTÃO Olhao aparvalhado É uma cruz mesmo BONITÃO E que pensou você que fosse Um canhão Aproximase de ZédoBurro Sono de pedra não acordou nem com os foguetes de Santa Bárbara Dizem que é assim que dormem as pessoas que têm a consciência tranqüila e a alma leve Cínico Eu também sou assim quando caio na cama é um sono só Sacode ZédoBurro Camarado oh meu camarado ZÉ Desperta Oh já é dia BONITÃO Já E a igreja já está aberta você pode entregar o carreto ZÉ Levantase com dificuldade os músculos adormecidos e doloridos É verdade BONITÃO Eu voltei aqui pra lhe dizer o número do quarto de sua mulher É o 27 Um bom quarto no segundo andar Apressadamente Pelo menos foi o que o porteiro me garantiu ZÉ Ah obrigado BONITÃO O hotel é aquele ali o primeiro logo depois de subir a ladeira e dobrar à direita Hotel Ideal Eu demorei um pouco porque fiquei jogando damas com o porteiro SACRISTÃO Vivamente interessado Ganhou BONITÃO Empatamos SACRISTÃO Ah eu também sou louco por damas BONITÃO Examinao de cima a baixo Francamente ninguém diz Padre Olavo surge na porta da igreja SACRISTÃO Como se tivesse sido surpreendido em falta Padre Olavo ZÉ Preciso falar com ele Sacristão dirigese apressadamente à igreja Pára na porta ante o olhar intimidador de Padre Olavo É um padre moço ainda Deve contar no máximo quarenta anos Sua convicção religiosa aproximase do fanatismo Talvez no fundo isto seja uma prova de falta de convicção e autodefesa Sua intolerância que o leva por vezes a chocarse contra princípios de sua própria religião e a confundir com inimigos aqueles que estão ao seu lado não passa talvez de uma couraça com que se mune contra uma fraqueza consciente PADRE Para o Sacristão Que está fazendo aí SACRISTÃO À guisa de defesa Estava conversando com aqueles homens PADRE E eu lá dentro à sua espera para ajudar à missa Repara em Bonitão e ZédoBurro Quem são SACRISTÃO Não sei Um deles quer falar com o senhor ZÉ Adiantase Sou eu Padre Inclinase respeitoso e beijalhe a mão PADRE Agora está na hora da missa Mais tarde se quiser ZÉ É que eu vim de muito longe Padre Andei sete léguas PADRE Sete léguas Para falar comigo ZÉ Não pra trazer esta cruz PADRE Olha a cruz detidamente E como a trouxe num caminhão ZÉ Não Padre nas costas SACRISTÃO Expandindo infantilmente a sua admiração Menino PADRE Lançalhe um olhar enérgico Psiu Cale a boca Seu interesse por ZédoBurro cresce Sete léguas com essa cruz nas costas Deixe ver seu ombro Zédo Burro despe um lado do paletó abre a camisa e mostra o ombro Sacristão espichase todo para ver e não esconde a sua impressão SACRISTÃO Está em carne viva PADRE Parece satisfeito com o exame Promessa ZÉ Balança afirmativamente a cabeça Pra Santa Bárbara Estava esperando abrir a igreja SACRISTÃO Deve ter recebido dela uma graça muito grande Padre faz um gesto nervoso para que o Sacristão se cale ZÉ Graças a Santa Bárbara a morte não levou o meu melhor amigo PADRE Padre parece meditar profundamente sobre a questão Mesmo assim não lhe parece um tanto exagerada a promessa E um tanto pretensiosa também ZÉ Nada disso seu Padre Promessa é promessa É como um negócio Se a gente oferece um preço recebe a mercadoria tem que pagar Eu sei que tem muito caloteiro por aí Mas comigo não É toma lá dá cá Quando Nicolau adoeceu o senhor não calcula como eu fiquei PADRE Foi por causa desse Nicolau que você fez a promessa ZÉ Foi Nicolau foi ferido seu Padre por uma árvore que caiu num dia de tempestade SACRISTÃO Santa Bárbara A árvore caiu em cima dele ZÉ Só um galho que bateu de raspão na cabeça Ele chegou em casa escorrendo sangue de meter medo Eu e minha mulher tratamos dele mas o sangue não havia meio de estancar PADRE Uma hemorragia ZÉ Só estancou quando eu fui no curral peguei um bocado de bosta de vaca e taquei em cima do ferimento PADRE Enojado Mas meu filho isso é atraso Uma porcaria ZÉ Foi o que o doutor disse quando chegou Mandou que tirasse aquela porcaria de cima da ferida que senão Nicolau ia morrer PADRE Sem dúvida ZÉ Eu tirei Ele limpou bem a ferida e o sangue voltou que parecia uma cachoeira E que de que o doutor fazia o sangue parar Ensopava algodão e mais algodão e nada Era uma sangueira que não acaba mais Lá pelas tantas o homenzinho virou pra mim e gritou corre homem de Deus vai buscar mais bosta de vaca senão ele morre PADRE E o sangue estancou ZÉ Na hora Pois é um santo remédio Seu vigário sabia Não sendo de vaca de cavalo castrado também serve Mas há quem prefira teia de aranha PADRE Adiante adiante Não estou interessado nessa medicina ZÉ Bem o sangue estancou Mas Nicolau começou a tremer de febre e no dia seguinte aconteceu uma coisa que nunca tinha acontecido eu saí de casa e Nicolau ficou Não pôde se levantar Foi a primeira vez que isso aconteceu em seis anos eu saí fui fazer compras na cidade entrei no Bar do Jacob pra tomar uma cachacinha passei na farmácia de seu Zequinha pra saber das novidades tudo isso sem Nicolau Todo mundo reparou porque quem quisesse saber onde eu estava era só procurar Nicolau Se eu ia na missa ele ficava esperando na porta da igreja PADRE Na porta Por que ele não entrava Não é católico ZÉ Tendo uma alma tão boa Nicolau não pode deixar de ser católico Mas não é por isso que ele não entra na igreja É porque o vigário não deixa Com grande tristeza Nicolau teve o azar de nascer burro de quatro patas PADRE Burro Então esse que você chama de Nicolau é um burro Um animal ZÉ Meu burro sim senhor PADRE E foi por ele por um burro que fez essa promessa ZÉ Foi é bem verdade que eu não sabia que era tão difícil achar uma igreja de Santa Bárbara que ia precisar andar sete léguas pra encontrar uma aqui na Bahia BONITÃO Que assistiu a toda a cena um pouco afastado solta uma gargalhada grosseira Ele se estrepou Padre Olavo olhao surpreso como se só agora tivesse notada a sua presença Bonitão pára de rir quase de súbito desarmado pelo olhar enérgico do padre ZÉ Mas mesmo que soubesse eu não deixava de fazer a promessa Porque quando vi que nem as rezas do preto Zeferino davam jeito PADRE Rezas Que rezas ZÉ Seu vigário me disculpe mas eu tentei tudo Preto Zeferino é rezador afamado na minha zona Sarna de cachorro bicheira de animal peste de gado tudo isso ele cura com duas rezas e três rabiscos no chão Todo o mundo diz e eu mesmo uma vez estava com uma dor de cabeça danada que não havia meio de passar Chamei preto Zeferino ele disse que eu estava com o Sol dentro da cabeça Botou uma toalha na minha testa derramou uma garrafa dágua rezou uma oração o sol saiu e eu fiquei bom PADRE Você fez mal meu filho Essas rezas são orações do demo ZÉ Do demo não senhor PADRE Do demo sim Você não soube distinguir o bem do mal Todo homem é assim Vive atrás do milagre em vez de viver atrás de Deus E não sabe se caminha para o céu ou para o inferno ZÉ Para o inferno Como pode ser Padre se a oração fala em Deus Recita Deus fez o Sol Deus fez a luz Deus fez toda a claridade do Universo grandioso Com sua Graça eu te benzo te curo Vaite Sol da cabeça desta criatura para as ondas do Mar Sagrado com os santos poderes do Padre do Filho e do Espírito Santo Depois rezou um Padre Nosso e a dor de cabeça sumiu no mesmo instante SACRISTÃO Incrível PADRE Meu filho esse homem era um feiticeiro ZÉ Como feiticeiro se a reza é pra curar PADRE Não é pra curar é para tentar E você caiu em tentação ZÉ Bem eu só sei que fiquei bom Noutro tom Mas com o Nicolau não houve reza que fizesse ele levantar Preto Zeferino botou o pé na cabeça do coitado disse uma porção de orações e nada Eu já estava começando a perder a esperança Nicolau de orelhas murchas magro de se contar as costelas Não comia não bebia nem mexia mais com o rabo para espantar as moscas Eu vi que nunca mais ia ouvir os passos dele me seguindo por toda a parte como um cão Até me puseram um apelido por causa disso ZédoBurro Eu não me importo Não acho que seja ofensa Nicolau não é um burro como os outros É um burro com alma de gente E faz isso por amizade por dedicação Eu nunca monto nele prefiro andar a pé ou a cavalo Mas de um modo ou de outro ele vem atrás Se eu entrar numa casa e me demorar duas horas duas horas ele espera por mim plantado na porta Um burro desses seu padre não vale uma promessa PADRE Secamente contendo ainda a sua indignação Adiante ZÉ Foi então que comadre Miúda me lembrou por que eu não ia no candomblé de Maria de Iansan PADRE Candomblé ZÉ Sim é um candomblé que tem duas léguas adiante da minha roça Com a consciência de quem cometeu uma falta mas não muito grave Eu sei que seu vigário vai ralhar comigo Eu também nunca fui muito de freqüentar terreiro de candomblé Mas o pobre Nicolau estava morrendo Não custava tentar Se não fizesse bem mal não fazia E eu fui Contei pra MãedeSanto o meu caso Ela disse que era mesmo com Iansan dona dos raios e das trovoadas Iansan tinha ferido Nicolau pra ela eu devia fazer uma obrigação quer dizer uma promessa Mas tinha que ser uma promessa bem grande porque Iansan que tinha ferido Nicolau com um raio não ia voltar atrás por qualquer bobagem E eu me lembrei então que Iansan é Santa Bárbara e prometi que se Nicolau ficasse bom eu carregava uma cruz de madeira de minha roça até a Igreja dela no dia de sua festa uma cruz tão pesada como a de Cristo PADRE Como se anotasse as palavras Tão pesada como a de Cristo O senhor prometeu isso a ZÉ A Santa Bárbara PADRE A Iansan ZÉ É a mesma coisa PADRE Grita Não é a mesma coisa Controlase Mas continue ZÉ Prometi também dividir minhas terras com os lavradores pobres mais pobres que eu PADRE Dividir Igualmente ZÉ Sim padre igualmente SACRISTÃO E Nicolau quero dizer o burro ficou bom ZÉ Sarou em dois tempos Milagre Milagre mesmo No outro dia já estava de orelha em pé relinchando E uma semana depois todo o mundo me apontava na rua Lá vai ZédoBurro com o burro de novo atrás Ri E eu nem dava confiança E Nicolau muito menos Só eu e ele sabíamos do milagre Como que retificando Eu ele e Santa Bárbara PADRE Procurando inicialmente controlarse Em primeiro lugar mesmo admitindo a intervenção de Santa Bárbara não se trataria de um milagre mas apenas de uma graça O burro podia terse curado sem intervenção divina ZÉ Como Padre se ele sarou de um dia pro outro PADRE Como se não o ouvisse E além disso Santa Bárbara se tivesse de lhe conceder uma graça não iria fazêlo num terreiro de candomblé ZÉ É que na capela do meu povoado não tem uma imagem de Santa Bárbara Mas no candomblé tem uma imagem de Iansan que é Santa Bárbara PADRE Explodindo Não é Santa Bárbara Santa Bárbara é uma santa católica O senhor foi a um ritual fetichista Invocou uma falsa divindade e foi a ela que prometeu esse sacrifício ZÉ Não Padre foi a Santa Bárbara Foi até a igreja de Santa Bárbara que prometi vir com a minha cruz E é diante do altar de Santa Bárbara que vou cair de joelhos daqui a pouco pra agradecer o que ela fez por mim PADRE Dá alguns passos de um lado para outro de mão no queixo e por fim detémse diante de ZédoBurro em atitude inquisitorial Muito bem E que pretende fazer depois depois de cumprir a sua promessa ZÉ Não entendeu a pergunta Que pretendo Voltar pra minha roça em paz com a minha consciência e quite com a santa PADRE Só isso ZÉ Só PADRE Tem certeza Não vai pretender ser olhado como um novo Cristo ZÉ Eu PADRE Sim você que acaba de repetir a Via Crucis sofrendo o martírio de Jesus Você que presunçosamente pretende imitar o Filho de Deus ZÉ Humildemente Padre eu não quis imitar Jesus PADRE Corta terrível Mentira Eu gravei suas palavras Você mesmo disse que prometeu carregar uma cruz tão pesada quanto a de Cristo ZÉ Sim mas isso PADRE Isso prova que você está sendo submetido a uma tentação ainda maior ZÉ Qual Padre PADRE A de igualarse ao Filho de Deus ZÉ Não Padre PADRE Por que então repete a Divina Paixão Para salvar a humanidade Não para salvar um burro ZÉ Padre Nicolau PADRE É um burro com nome cristão Um quadrúpede um irracional A Beata sai da igreja e fica assistindo à cena do alto da escada ZÉ Mas Padre não foi Deus quem fez também os burros PADRE Mas não à Sua semelhança E não foi para salválos que mandou seu Filho Foi por nós por você por mim pela Humanidade ZÉ Angustiadamente tenta explicarse Padre é preciso explicar que Nicolau não é um burro comum o senhor não conhece Nicolau por isso é um burro com alma de gente PADRE Pois nem que tenha alma de anjo nesta igreja você não entrará com essa cruz Dá as costas e dirigese à igreja O sacristão trata logo de segui lo ZÉ Em desespero Mas Padre eu prometi levar a cruz até o altarmor Preciso cumprir a minha promessa PADRE Fizessea então numa igreja Ou em qualquer parte menos num antro de feitiçaria ZÉ Eu já expliquei PADRE Não se pode servir a dois senhores a Deus e ao diabo ZÉ Padre PADRE Um ritual pagão que começou num terreiro de candomblé não pode terminar na nave de uma igreja ZÉ Mas Padre a igreja PADRE A igreja é a casa de Deus Candomblé é o culto do diabo ZÉ Padre eu não andei sete léguas para voltar daqui O senhor não pode impedir a minha entrada A igreja não é sua é de Deus PADRE Vai desrespeitar a minha autoridade ZÉ Padre entre o senhor e Santa Bárbara eu fico com Santa Bárbara PADRE Para o Sacristão Feche a porta Quem quiser assistir à missa que entre pela porta da sacristia Lá não dá para passar essa cruz Entra na igreja A Beata entra também apressadamente atrás do padre O Sacristão prontamente começa a fechar a porta da igreja enquanto ZédoBurro no meio da praça nervos tensos olhos dilatados numa atitude de incompreensão e revolta parece disposto a não arredar pé dali Bonitão um pouco afastado observa tendo nos lábios um sorriso irônico A porta da igreja se fecha de todo enquanto um foguetório tremendo saúda Iansan CAI O PANO LENTAMENTE Segundo Ato Primeiro Quadro Aproximadamente duas horas depois Abriuse a vendola e o Galego aparece trepado num caixote amarrando um cordão com bandeirolas vermelhas e brancas que vai da porta da venda ao sobrado do lado oposto Zé e sua cruz continuam no meio da praça Ouvese um pregão Beiju olha o beiju Logo após surge no alto da ladeira uma preta em trajes típicos com um tabuleiro na cabeça Ela desce a ladeira e ao passar pelo Galego saúda MINHA TIA Iansan lhe dê um bomdia GALEGO Espanhol Gracias Minha Tia Minha Tia vai até à igreja e aí junto dos degraus pára A critério da direção e em momentos em que não prejudiquem a ação transeuntes cruzarão a praça durante todo o ato MINHA TIA Para o Galego Quer vir aqui dar uma mãozinha pra sua tia meu branco Galego apressase a ir ajudála Retira primeiro o cavalete que está sobre o tabuleiro abreo depois ajudaa a tirar o tabuleiro da cabeça e colocálo em cima do cavalete MINHA TIA Santa Bárbara lhe pague Nota ZédoBurro Oxente Que é aquilo GALEGO Não sei Já estava acá quando abri a venda Parece maluco Volta a pregar as bandeirolas enquanto Minha Tia põese a arrumar o fogareiro procura acendêlo Desce a ladeira passo mole preguiçoso Dedé CospeRima Mulato cabeleira pixaim sob o surrado chapéu de coco um adorno necessário à sua profissão de poeta comerciante Traz embaixo do braço uma enorme pilha de folhetos abecês romances populares em versos E dois cartazes um no peito outro nas costas Num se lê ABC da Mulata Esmeralda uma obraprima e no outro Saiu agora tá fresco ainda O que o cego Jeremias viu na Lua DEDÉ declama Bom dia Galego amigo dia assim eu nunca vi para saudar Iansan não repare eu lhe pedi me empreste por obséquio dois dedos de parati GALEGO É com esta história de hacer versos usted sempre me leva na conversa entra na venda e dá a volta por trás do balcão É boa mesmo essa do cego Jeremias Serve o parati DEDÉ Bombástico teatral Uma epopéia Uma nova Ilíada onde Tróia é a Lua e o cavalo de Tróia é o cavalo de São Jorge Tira um exemplar e coloca sobre o balcão Em paga do parati GALEGO Si pêro yo prefiro la otra la da mulata Esmeralda DEDÉ Uma prova de bom gosto Galego Troca os folhetos É também uma obraprima Lembra Castro Alves modéstia à parte Bebe o parati de um trago Referese às bandeirinhas Bandeirinhas vermelhas e brancas as cores de Iansan Depois diz que não crê em candomblé GALEGO Yo no creo pêro hay quem crea E yo soy um comerciante DEDÉ Somos dois Estende novamente o cálice Mais uma dose Esta eu pago amanhã Galego faz cara feia mas enche de novo o cálice A Beata entra da direita e detémse junto a Minha Tia ao ver ZédoBurro Mostrase surpresa e indignada BEATA É o cúmulo Ainda está aí MINHA TIA Não vai abrir a igreja hoje Iaiá Dia de Santa Bárbara BEATA Lança um olhar acusador a ZédoBurro Não enquanto esse indivíduo não for embora MINHA TIA Que foi que ele fez BEATA Quer entrar com essa cruz na igreja MINHA TIA Só isso BEATA E você acha pouco Acha que Padre Olavo ia permitir MINHA TIA Oxente Por que não Foi promessa que ele fez BEATA Foi Mas promessa de candomblé Pra uma tal de Iansan que Deus me perdoe Benzese Dirigese para a esquerda e ao passar por ZédoBurro insultao Herege Sobe a ladeira seguida do olhar de comovedora incompreensão de ZédoBurro DEDÉ Que ouviu a conversa Para o Galego Vou ver se Minha Tia me dá um abará Atravessa a praça Não sem mostrarse intrigado e curioso ao passar por ZédoBurro Bom dia Minha Tia MINHA TIA Bom dia seu Dedé Oferece Acarajé abará beiju Vem benzer DEDÉ Aponta Um abará Pago daqui a pouco quando entrar o primeiro dinheiro MINHA TIA Eu já sabia Entrega o abará embrulhado numa folha de bananeira DEDÉ Referindose a ZédoBurro Que história é essa MINHA TIA O Senhor ouviu DEDÉ Ouvi MINHA TIA Com respeito Obrigação pra Iansan Toca com as pontas dos dedos o chão e a testa DEDÉ Por isso o Padre não deixou ele entrar MINHA TIA É coitado DEDÉ Chegou a fechar a porta MINHA TIA O senhor entende DEDÉ Entendo não MINHA TIA O Padre é um homem tão bom DEDÉ A senhora acha MINHA TIA Então Ele é tão amigo dos pobres faz tanta caridade Sei não O Guarda entra pela direita Vai direto a ZédoBurro É um homem que procura safarse dos problemas que se lhe apresentam Sua noção do dever coincide exatamente com o seu temor à responsabilidade Seu maior desejo é que nada aconteça a fim de que a nada ele tenha que impor a sua autoridade No fundo essa autoridade o constrange terrivelmente e mais ainda o dever de exercêla GUARDA Olá amigo ZÉ Olá GUARDA Referese à cruz É para a procissão de Santa Bárbara ZÉ Não GUARDA Porque a procissão não sai daqui sai do Mercado aqui perto e vai até à igreja da Saúde ZÉ Não tenho nada com essa procissão GUARDA E o senhor está aqui fazendo o quê Esperando a festa Ainda é muito cedo São oito e meia da manhã Só na parte da tarde é que isso pega fogo ZÉ Estou aqui desde quatro e meia da manhã GUARDA Quatro e meia Coça a cabeça preocupado O senhor deve ser um devoto e tanto Mas acontece que escolheu um mau lugar ZÉ A culpa não é minha GUARDA Sim eu sei não foi o senhor quem inventou a festa de Santa Bárbara Mas eu também não tenho culpa de ser guarda Minha obrigação é facilitar o trânsito tanto quanto possível ZÉ Sinto muito mas não posso sair daqui GUARDA Sua paciência começa a esgotarse Ai ai ai ai ai eu estou querendo me entender com o senhor ZÉ Irritandose também um pouco Eu também estou querendo me entender com o senhor e com todo o mundo Mas acho que ninguém me entende Dedé CospeRima que assistiu a toda a cena não resiste à curiosidade e vem presenciála mais de perto Minha Tia também acompanha tudo com interesse ZÉ Aquela mulher me chamou de herege o Padre fechou a porta da igreja como se eu fosse Satanás em pessoa Eu ZédoBurro devoto de Santa Bárbara DEDÉ Mas afinal o que é que o senhor quer ZÉ Que me deixem colocar esta cruz dentro da igreja nada mais Depois prometo ir embora E já estou vexado mesmo por isto DEDÉ Foi promessa Promessa que ele fez GUARDA Raciocina operação que lhe parece custar tremendo esforço físico Promessa colocar a cruz dentro da igreja Não vejo dificuldade nenhuma nisso Falase com o padre e ZÉ Se o senhor conseguir que ele abra a porta e me deixe entrar está tudo resolvido GUARDA Pensa mais um pouco vê que não há outra maneira de resolver o problema decidese Pois bem eu vou falar com ele Dirigese para a porta da igreja Ante os olhares de grande expectativa do Galego de Dedé de Minha Tia DEDÉ Não vou lá ajudar também porque eu e esse padre estamos de relações cortadas Sai GUARDA Bate na porta várias vezes sem resultado encosta o rosto na porta e chama Padre Abra um instante por favor Segundos após abrese uma fresta e surge por ela a cabeça do Sacristão receoso GUARDA Quero falar com o padre SACRISTÃO Certificase de que não há perigo abre um pouco mais a porta Entre Guarda tira o quepe e entra Sacristão fecha a porta rapidamente Rosa desce a ladeira Vem um pouco apressada como se temesse não mais encontrálo ali Mas quando vê ZédoBurro diminui o passo tranqüilizase em parte Não perde entretanto um certo ar culposo procura disfarçar ROSA Você ainda está aí Nota a igreja fechada A igreja não abriu ZÉ Abriu sim Mas o Padre não quer me deixar entrar com a cruz ROSA Por quê ZÉ Balança a cabeça na maior infelicidade Não sei Rosa não sei Há duas horas que tento compreender mas estou tonto tonto como se tivesse levado um coice no meio da testa Já não entendo nada parece que me viraram pelo avesso e estou vendo as coisas ao contrário do que elas são O céu no lugar do inferno o demônio no lugar dos santos ROSA Refletindo na própria experiência É isso mesmo de repente a gente percebe que é outra pessoa Que sempre foi outra pessoa é horrível ZÉ Mas não é possível Rosa Eu sempre fui um homem de bem Sempre temi a Deus ROSA Concentrada em seu problema Zé isso está parecendo castigo ZÉ Castigo Castigo por quê Por eu ter feito uma promessa tão grande Por ter sido no terreiro de Maria de Iansan Mas se santa Bárbara não estivesse de acordo com tudo isso não tinha feito o milagre ROSA Zé esqueça Santa Bárbara Pense um pouco em nós ZÉ Em nós ROSA Em mim Zé ZÉ Em você ROSA Sim Zé em mim sua mulher ZÉ Que é que você quer Não dormiu não descansou ROSA Sem fitálo Zé vamos embora daqui ZÉ Agora ROSA Sim agora mesmo ZÉ Não posso Você sabe que eu não posso voltar antes de chegar ao fim da promessa Não ia ter sossego o resto da vida ROSA Você acredita demais nas coisas Zé É porque você não pensa no que pode acontecer ROSA Mais do que já aconteceu ZÉ Que aconteceu A caminhada as noites sem dormir e agora ser xingado como a figura do diabo Tudo isso é nada comparado com o castigo que pode vir ROSA Mas se o Padre não quer deixar você entrar com a cruz que é que você ainda vai ficar fazendo aqui ZÉ O Guarda foi falar com ele Estou esperando Como que desculpandose por não pensar na situação dela Você se quiser pode ir comer qualquer coisa ROSA Ante a impossibilidade de comunicar a ele o seu problema Já tomei café no hotel ZÉ Não era bom o hotel que aquele camarada arranjou ROSA Muito bom Tinha até pia no quarto e colchão de mola ZÉ Fiquei um pouco preocupado ROSA Ferida pela falta de ciúmes dele Comigo ZÉ Você num hotel sozinha Cidade grande a gente nunca sabe Se bem que o moço garantiu que era hotel de família ROSA Não tinha então que ter cuidado O moço era de toda confiança Tão amável tão prestativo REPÓRTER Entra acompanhado do Fotógrafo Lá está ele Vai a Zé enquanto o Fotógrafo circula à procura de ângulos O Repórter é vivo e perspicaz Dirige um cumprimento entusiasta a ZédoBurro Bom dia amigo Aperta efusivamente a mão de ZédoBurro Parabéns O senhor é um herói ZÉ com estranheza Herói REPÓRTER Com entusiasmo Sim sete léguas carregando esta cruz Calcula o peso Pesada hem Sete léguas quarenta e dois quilômetros A maior marcha que eu fiz foi de vinte e quatro quilômetros no Serviço Militar E o fuzil não pesava tanto assim Ri mas seu riso murcha como um balão ante o ar de desconfiança de Rosa e ZédoBurro Oh desculpe eu sei que o senhor fez uma promessa A comparação não foi muito feliz Para o Fotógrafo Carijó pode bater uma chapa Posa de frente para ZédoBurro de caderno e lápis em punho Finja que está falando comigo ZÉ Começa a impacientarse Fingir que estou falando pra quê REPÓRTER E dentro de algumas horas o Brasil inteiro vai saber O senhor vai ficar famoso ZÉ Contrariado Mas eu não quero ficar famoso eu quero ROSA Interrompe em tom de repreensão Que é isso Zé Seja mais delicado com o moço Ele é da gazeta REPÓRTER Mulher dele ROSA Sou Também andei sete léguas meu pé tem cada calo dágua deste tamanho REPÓRTER Maravilhoso E em quanto tempo cobriram o percurso ROSA Não entendeu Como REPÓRTER Quero dizer quando saíram de lá de sua cidade ROSA Da roça Saímos ontem de manhãzinha Cinco horas da manhã REPÓRTER A que horas chegaram aqui ROSA Antes das cinco REPÓRTER Fizeram o percurso então em 24 horas Com uma cruz que deve pesar Olha interrogativamente para ZédoBurro ZÉ Contrariado Não sei não pesei REPÓRTER Por menos que pese é um record Sob este aspecto podemos considerar um grande feito esportivo Uma prova de resistência física para Rosa e de dedicação Rosa sorri envaidecida sentindose heroína também REPÓRTER Mas como nasceu a idéia dessa peregrinação As perguntas são feitas a ZédoBurro mas este recusase a respondêlas ROSA Não nasceu idéia nenhuma O burro adoeceu ia morrer ele fez promessa pra Santa Bárbara REPÓRTER O burro Que burro ROSA O Nicolau ZÉ Irritado Por quê O senhor também vai achar que o meu burro não vale uma promessa REPÓRTER Não de modo algum eu eu apenas não sabia então tudo isso quarenta e dois quilômetros a cruz tudo por causa de um burro Repentinamente antevendo o interesse que despertará a reportagem Fabuloso ROSA E não foi só isso Ele prometeu também repartir o sítio com aquela cambada de preguiçosos ZÉ Que preguiçosos Gente que quer trabalhar e não tem terra REPÓRTER Repartir o sítio digame o senhor é a favor da reforma agrária ZÉ Não entende Reforma agrária Que é isso REPÓRTER É o que o senhor acaba de fazer em seu sítio Redistribuição das terras entre aqueles que não as possuem ZÉ E não estou arrependido moço Fiz a felicidade de um bocado de gente e o que restou pra mim dá e sobra REPÓRTER Toma notas É a favor da reforma agrária ZÉ É bem verdade que se o meu burro não tivesse ficado doente eu não tinha feito isso REPÓRTER Mas e se todos os proprietários de terra fizessem o mesmo Se o governo resolvesse desapropriar as terras e dividilas entre os camponeses ZÉ Seria muito bem feito Cada um deve trabalhar o que é seu REPÓRTER Ofensiva É contra a exploração do homem pelo homem O senhor pertence a algum partido político ZÉ Com alguma vaidade dissimulada num sorriso modesto Já quiseram me fazer vereador qual ROSA O que atrapalhou foi o burro REPÓRTER O burro Por quê ROSA Aonde ele vai o burro vai atrás Se ele fosse eleito o burro também tinha que ser REPÓRTER É mas desta vez seu ZÉ ZédoBurro seu criado REPÓRTER seu ZédoBurro o senhor será eleito com burro e tudo Confidencial Escute aqui será que essa história da promessa não é um golpe para impressionar o eleitorado ZÉ Ofendido Golpe REPÓRTER E de mestre Avalio a agitação que o senhor fez com isso Pelas estradas no caminho até aqui deve terse juntado uma verdadeira multidão para vêlo passar ZÉ É tinha ROSA Muito moleque também REPÓRTER E imaginem a volta A chegada à sua cidade em carro aberto banda de música foguetes ZÉ O senhor está maluco Não vai haver nada disso REPÓRTER Vai Vai porque o meu jornal vai promover Só faço questão de uma coisa que o senhor nos dê a exclusividade Que não conceda entrevistas a mais ninguém Noutro tom É claro que o senhor terá uma compensação Faz com o indicador e o polegar um gesto característico e também a publicidade Primeira página com fotografias o senhor e sua senhora mandaremos fotografar também o burro em poucas horas o senhor será um herói nacional ZÉ Profundamente contrariado Moço eu acho que o senhor não me entendeu ninguém ainda me entendeu REPÓRTER Sem lhe dar atenção O diabo foi o senhor ter escolhido um dia como o de hoje Sábado Amanhã é domingo o jornal não sai Só segundafeira E o nosso Departamento de Promoções precisaria preparar a coisa Podemos dar o furo na edição de hoje mas o barulho mesmo só segundafeira Quando o senhor pretende voltar ZÉ Por mim já estava de volta Abrese parcialmente a porta da igreja O Sacristão deixa o Guarda passar e torna a fechála O Guarda vem ao encontro de ZédoBurro que o aguarda sem muita esperança GUARDA Balança a cabeça desanimado Não consegui nada ZÉ O senhor falou com o padre GUARDA Falei argumentei não adiantou E ainda tive que ouvir um sermão deste tamanho Ele acha que em vez de ir pedir para deixar o senhor entrar na igreja eu devia era leválo preso Claro que eu não vou fazer isso mas o senhor bem que podia ter arranjado uma promessinha menos complicada ROSA Também acho GUARDA Porque não adianta o senhor ficar aqui o padre já disse que não abre a porta e não abre mesmo eu conheço ele REPÓRTER Ótimo Mas isso é ótimo Assim temos um pretexto para adiar a entrega da cruz para segundafeira Dará tempo então de organizarmos tudo As entrevistas as apresentações no rádio e a sua volta triunfal com batedores e banda de música ZÉ Cada vez mais contrariado e mais infeliz Moço eu vim a pé e vou voltar a pé ROSA Ela vislumbrou nas palavras do Repórter uma possibilidade confusa de libertação ouviuas num entusiasmo crescente Oxente Não seja estúpido homem O moço está querendo ajudar a gente ZÉ Então ele que me ajude a convencer o vigário a abrir a porta REPÓRTER Eu vou já entrevistar o vigário Mas fique certo de uma coisa seja qual for o seu objetivo uma publicidadezinha não fará mal algum Pisca o olho para ZédoBurro que não percebe a insinuação Carijó bata mais uma chapa Para ZédoBurro Quer fazer o favor de carregar a cruz Para Rosa A senhora também ZédoBurro fica indeciso sem palavras para traduzir a sua indignação ROSA Vamos Zé Empurrao para baixo da cruz e colocase a seu lado numa atitude forçada O Guarda também procura discretamente aparecer na fotografia A cena é caricatural com Rosa escancarandose num sorriso de dentifrício ZédoBurro vergado ao peso da cruz e de sua imensa infelicidade E o Guarda de peito estufado disputando honrosamente a sua participação no acontecimento GALEGO Sai da venda apressado e dirigese ao Fotógrafo Um momento O senhor não podia fazer aparecer também o meu estabelecimento Sabe uma publicidadezinha Fotógrafo colocase de molde a aparecer no fundo a venda Galego corre para junto do balcão e posa REPÓRTER Ótimo Pode bater Carijó O Fotógrafo bate a chapa REPÓRTER Obrigado Esta vai sair hoje na primeira página Para o Fotógrafo Vamos agora entrevistar o vigário GUARDA É melhor o senhor ir pela porta da sacristia ZÉ Eu levo o senhor até lá REPÓRTER Não gosta da idéia Não acho melhor o senhor esperar aqui ZÉ Com decisão Mas eu quero ir com o senhor REPÓRTER Cede de má vontade Está bem Sai com ZédoBurro e o Fotógrafo Ouvemse buzinas insistentes GUARDA Garanto que agora o padre vai abrir a igreja Não há quem não tenha medo da imprensa Olha na direção da direita Eu vou pra lá que a coisa está piorando Sai pela direita Bonitão desce a ladeira e pára na vendola Rosa o vê e não esconde a sua emoção BONITÃO Para o Galego Uma dupla GALEGO Olá Bonitão Usted por aqui de madrugada Serve a cachaça ROSA Vai à venda e encostase no balcão ao lado de Bonitão Um café moço BONITÃO Ainda ROSA Ainda BONITÃO Não sei como você agüenta ROSA Eu também não BONITÃO Ele desconfiou de alguma coisa ROSA Nada Ele só pensa na cruz e na promessa BONITÃO Sabe que eu fui pra casa dormir e não consegui ROSA Por quê BONITÃO Fiquei pensando em você ROSA Melhor que não pense BONITÃO Está arrependida ROSA Estou BONITÃO Agora é um pouco tarde ROSA Não é não Uma noite a gente pode apagar BONITÃO A gente pode apagar uma porção de noites Isso não deixa marca ROSA Em mim deixou Nem sei como ele não vê Dá até raiva Dá vontade de contar tudo BONITÃO Não é má idéia Ele não é homem violento Podia era largar você aqui na cidade e voltar sozinho pra roça Isso resolvia tudo ROSA Resolvia o quê BONITÃO Sua vida Você tem futuro ROSA Adianta não Minha sina é essa mesma Às vezes eu tenho vontade sim de arrumar a trouxa e ganhar a estrada Mas não tenho coragem E se tivesse não ia saber pra onde ir BONITÃO Quando eu era menino fui guia de cego ROSA Não estou cega E sabia muito bem o que estava fazendo Como sei também que sou capaz de fazer de novo se ele não me levar daqui Mesmo sem querer BONITÃO Se você não se livrar dele vai acabar idiota como ele ROSA Procurando uma justificativa para sua falta de coragem Ele precisa de mim BONITÃO Ele tem o burro ROSA Estúpido BONITÃO Não quis comparar ROSA Ele é muito homem fique sabendo BONITÃO Se é assim por que você tem tanta sede ROSA Ela se sente cada vez mais empurrada para ele como para um abismo e não há nela precisamente um desejo de resistir ao salto definitivo Há apenas a imensa fraqueza da pessoa humana no momento das grandes decisões Que tinha você de aparecer aqui de novo BONITÃO Foi você quem veio falar comigo ROSA Você me obriga a fazer o que eu não quero BONITÃO Ri cônscio de seu poder de sedução Que culpa tenho eu de ter nascido com tantas qualidades Ela vai voltar ao centro da praça Ele a segura pelo braço BONITÃO Baixo Espere ROSA Idem Está louco BONITÃO Pelo jeito ele ainda vai ficar muito tempo aí Entendeu ROSA Soltase dele com um safanão Não entendo nada Você é doido e eu estou ficando doida também BONITÃO Ele não pode sair de junto da cruz Mas você pode pode ir descansar no hotel ou mesmo ir rezar em outra igreja pedir a outro santo pra ajudar a convencer o padre a abrir a porta Um reforço sempre é bom Entra ZédoBurro Rosa e Bonitão disfarçam MINHA TIA Detendoo E então ZÉ Eles não quiseram que eu entrasse Acham melhor falar com o Padre em particular MINHA TIA Assume uma atitude de extrema cumplicidade Meu filho eu sou ekédi no candomblé da Menininha Mais logo o terreiro está em festa Você fez obrigação pra Iansan Iansan está lá pra receber ZÉ Ele não entende Como MINHA TIA Eu levo você lá Você leva a cruz e a santa recebe Você fica em paz com ela ZÉ Iansan MINHA TIA Foi ela quem lhe atendeu ZÉ Mas a igreja MINHA TIA Mande o padre pro inferno Leve a sua cruz no terreiro Eu vou com você ZÉ Hesita um pouco e por fim reage com veemência Não não foi num terreiro que eu disse que ia levar a cruz foi numa igreja Numa igreja de Santa Bárbara MINHA TIA Santa Bárbara é Iansan E Iansan está lá Vai baixar nos seus cavalos Vamos ZÉ Não Não é a mesma coisa Não é a mesma coisa Abrese a porta da igreja e surgem Repórter Fotógrafo e Sacristão REPÓRTER Para o Sacristão O senhor acha que o padre não deixa mesmo ele entrar SACRISTÃO O senhor não ouviu ele dizer É Satanás Satanás sob um dos seus múltiplos disfarces REPÓRTER Satanás disfarçado em Jesus Cristo acho que é um pouco forte Em todo caso isso é lá com ele Eu confesso que não sou muito entendido na matéria O que interessa é mantêlo aqui pelo menos até segundafeira Se for preciso mandarei vir comida e bebida Contanto que ele não vá embora antes de segundafeira ZédoBurro dá um passo em direção à igreja Sacristão assusta se SACRISTÃO Com licença senhores com licença Entra e fecha a porta precipitadamente Fotógrafo vai à vendola REPÓRTER Vindo a ZédoBurro Nada feito meu camarada O padre é uma rocha Procura estimulálo a resistir Mas ele vai acabar cedendo Se você não arredar pé daqui ele vai ter que abrir a igreja Eu lhe garanto Agora a causa não é somente sua é também do nosso jornal E sendo do nosso jornal é do povo ZédoBurro olhao como se procurasse inutilmente entender um ser vindo de outro planeta REPÓRTER Eu o aconselho a resistir Afinal de contas é um direito Direito que o senhor adquiriu em 42 quilômetros de via crucis Eu confio no senhor Para Rosa Leia o meu jornal hoje à tarde Vai ser um estouro Sai seguido do Fotógrafo BONITÃO Jornalistas é ROSA É Com vaidade Tiraram o meu retrato Será que vão publicar mesmo BONITÃO Se estivesse nua eu garantia Assim não sei Neste momento entra Marli pela direita Ao ver Bonitão junto a Rosa avança para ele em atitude agressiva MARLI Eu sabia Tinha que estar atrás de algum rabodesaia BONITÃO Que é que você vem fazer aqui MARLI Venho saber por que o senhor não apareceu em casa esta noite BONITÃO Que casa MARLI A minha casa BONITÃO Estava indisposto Fui para o meu hotel MARLI Mede Rosa de alto a baixo Sim eu estou vendo a sua indisposição BONITÃO Em voz contida mas enérgico Não faça escândalo MARLI Por quê Está com medo do marido dela BONITÃO Não estou com medo de ninguém mas não vou deixar você fazer a senhora passar vexame MARLI Irônica A senhora se ela é senhora eu sou donzela BONITÃO Autoritário Marli me obedeça MARLI Está querendo bancar o machão na frente dela é BONITÃO Eu não tenho nada com ela MARLI Você passou a noite com ela O rosto de ZédoBurro se cobre de sombras e ele busca nos olhos de Rosa uma explicação Ela não o fita BONITÃO Segura Marli por um braço violentamente Vamos para casa MARLI Não Primeiro quero tirar isso a limpo Quero que essa vaca saiba que você é meu Com orgulho Meu Grita para Rosa Esta roupa foi comprada com o meu dinheiro Esta e todas as que ele tem BONITÃO Perde a paciência ameaçador Se você não for para casa imediatamente nunca mais eu deixo você me dar nada MARLI Deixandose arrastar por ele na direção da direita Ele é meu ouviu Fique com seu beato e deixe ele em paz É meu homem É meu homem Há uma pausa terrivelmente longa na qual ZédoBurro apenas fita Rosa silenciosamente sob o impacto da cena Em seu olhar lêse a dúvida a incredulidade e sobretudo o pavor diante de um mundo que começa a desmoronar As luzes se apagam em resistência Segundo Quadro Três horas da tarde ZédoBurro e Rosa continuam no meio da praça Minha Tia com seu tabuleiro na porta da igreja o Galego na venda Dedé CospeRima entra da direita ABC da Mulata Esmeralda romance completo contando toda a vida de Esmeralda desde o nascimento no Beco das Inocências até a morte por trinta facadas na Rua da Perdição Oferece a ZédoBurro 10 cruzeiros ZédoBurro recusa com um gesto DEDÉ Lê declamando Ai meu Senhor do Bonfim daime muita inspiração daime rima e muita métrica pra fazer a descrição das penas de Esmeralda na Rua da Perdição Para ZédoBurro Estava pensando sabe que essa sua briga com o Padre dava um abecê Quer eu escrevo ZÉ Com decisão Não DEDÉ Por que não quer Abecê em versos ficava bonito ZÉ Não DEDÉ Versos que modéstia à parte são lidos pela Bahia inteira Com intenção Inclusive pelo Padre Olavo e não é por me gabar meu camarada mas aqui como me vê poeta pela graça da Virgem e do Senhor do Bonfim eu sou um homem temido Quando eu anuncio que vou escrever um folheto contando as bandalheiras desse ou daquele deputado ah menino não tarda o fulano me procurar pra adoçar meus versos Faz com os dedos um sinal característico de dinheiro Se eu anunciar nesta tabuleta que vou escrever o ABC de Zédo Burro tenho certeza de que o Padre abre logo a porta e vem ele mesmo carregar a cruz Zé olhao com desconfiança ROSA Que é preciso pra isso DEDÉ Bem o consentimento dele em primeiro lugar E em segundo sabe papel está pela hora da morte a tipografia está cobrando os olhos da cara ROSA Ah é preciso pagar DEDÉ Aí uns cinco contos pra ajudar Vai a Zé Mas garanto o resultado ZÉ Vigorosamente Não quero que faça nada DEDÉ Olhe que o senhor se arrepende Garanto que basta anunciar o Padre se borra todo ZÉ Corta irritado Não quero já disse DEDÉ Está bem Quem perde é o senhor O senhor e a Poesia nacional Mestre Coca desce a ladeira gingando e pára na vendola É um mulato alto musculoso e ágil Veste calças brancas boca de sino e camisa de meia COCA Buenas GALEGO Opa DEDÉ Boa tarde Mestre Coca COCA Dedé CospeRima precisa arranjar um serviço de homem meu camarada Para o Galego Me dá um porongo Galego serve a cachaça Ouvemse trovões longínquos Dia de Santa Bárbara tem que roncar trovoada DEDÉ Já largou a estiva Mestre Coca COCA Já Descarreguei um cargueiro holandês até à uma hora e caí no mundo Hoje dia de Iansan não é dia de carregar peso é dia de vadiar DEDÉ Vamos ter capoeira hoje COCA Mais logo Mais logo vamos ter vadiação Vou jogar com Manoelzinho SuaMãe Nota ZédoBurro Me disseram que tinha aqui um homem querendo entrar na igreja com uma cruz e o Padre não queria deixar GALEGO É esse aí COCA Mas lugar de cruz não é dentro da igreja DEDÉ É mais parece que a cruz é pra Iansan e o Padre não gostou da história COCA E fechou a porta DEDÉ Não é de admirar Outro dia ele não quis proibir que eu vendesse meus livros aqui na porta da igreja COCA Por quê DEDÉ Disse que o ABC da Mulata Esmeralda era indecente Falou isso num sermão E de lá pra cá essas beatas quando passam por mim viram a cara como se eu fosse a pintura do Cão GALEGO No me gustan los padres Pero esse está haciendo um buen servido Por causa dele a freguesia aumentou e já fui até fotografado DEDÉ Se ele quisesse eu fazia o Padre abrir a porta em dois tempos GALEGO Nada Deixa el hombre aí Quanto mais demorar mejor DEDÉ Vou dar um pulo até o Mercado de Santa Bárbara COCA Ah lá a festança já começou é de hoje Capoeira roda de samba está bom que está danado DEDÉ Tem turista COCA Vi uns gringos DEDÉ Vou até lá Sobe a ladeira com os folhetos embaixo do braço ROSA Para o marido Sabe que horas são Três horas da tarde Você não está com fome ZÉ Não Vá ali na mulher no tabuleiro compre qualquer coisa pra você Tira do bolso uma nota Rosa toma a nota e vai a Minha Tia MINHA TIA Que é Iaiá ROSA Qualquer coisa pra matar a fome MINHA TIA Precisa mesmo É de hoje que vosmincês estão aí ROSA Desde manhã cedo MINHA TIA Fitando Zé do Burro com simpatia e incredulidade E ele parece um homem tão bom SECRETA O tira clássico Chapéu enterrado até os olhos mãos nos bolsos inspira mais receio que respeito À primeira vista tanto pode ser o representante da lei como o fugitivo da lei Entra pela direita e atravessa a cena lentamente em direção à vendola Ao passar por Zé do Burro demora nele um olhar de desabusada curiosidade Uma dupla Olha em torno procurando alguém consulta o relógio ROSA Durante a entrada do Secreta esteve escolhendo alguns quitutes no tabuleiro da baiana Recebe os agora embrulhados em folha de banana das mãos da preta Paga MINHA TIA Diga a ele que não desanime Iansan tem força Rosa leva os quitutes para Zé do Burro Este recusa com um gesto Entra da direita o Guarda com um jornal na mão GUARDA Vejam a Primeira página com retrato e tudo Mostra o jornal a Rosa que corre ansiosamente ROSA Meu retrato GUARDA Eu também saí ROSA Examina o retrato Hum o senhor saiu muito bem é cópia fiel GUARDA Sorri vaidoso É eu acho que saí bem vou levar pra minha mulher ROSA Quem saiu mal fui eu Faz uma careta de desagrado Horrível GUARDA Não ligue Fotografia de gazeta é assim mesmo ZÉ Sua atitude para com Rosa é agora de recalcada e surda revolta Embora ele não pareça ter certeza ainda de sua infidelidade instintivamente começa a perceber que ela se encontra do outro lado do lado daqueles que por este ou aquele motivo não o compreendem ou fingem não compreendêlo Afinal que é que diz aí GUARDA Como se só agora lhe ocorresse ler a reportagem Ah sim lê O novo Messias prega a revolução ZÉ Estranha Revolução Espicha o pescoço e lê por cima do ombro do guarda GUARDA É revolução Está aqui Continua Sete léguas carregando uma cruz pela reforma agrária e contra a exploração do homem pelo homem Entreolhamse sem entender ZÉ Eu bem achei que aquele camarada não era certo da bola GUARDA Continuando a ler Para o vigário da paróquia de Santa Bárbara é Satanás disfarçado Quem será afinal Zé do Burro Um místico ou um agitador O povo o olha com admiração e respeito pelos caminhos por onde passa com sua cruz mas o vigário expulsa o do templo No entanto ZédoBurro está disposto a lutar até o fim Acho que o moço não entendeu bem o seu caso Olhao com certa desconfiança Ou então fui eu que não entendi Dá o jornal a ZédoBurro Podem ler mas não joguem fora Iniciando a saída Quero levar pra casa Sai ROSA Zé não estou gostando disso ZÉ Nem eu ROSA Não entendi bem o que botaram na gazeta mas uma coisa me diz que isso não é bom ZÉ Não esconde o ressentimento que guarda dela Bem Maria de Iansan disse que a promessa tinha que ser bem grande Com certeza Santa Bárbara achou que não era bastante o que eu prometi e está cobrando o restante Fita Rosa Ou está me castigando por eu ter prometido tão pouco ROSA Então eu também estou sendo castigada ZÉ Ou pode ser que esteja me fazendo passar por tudo isso pra me experimentar Pra ver se eu desisto da promessa Santa Bárbara esta me tentando e ainda há pouco quase que eu caio ROSA Quando ZÉ Quando aquela sujeita disse tudo aquilo O sangue me subiu na cabeça e se eu me deixo tentar tinha matado um homem ou uma mulher Ia preso e não podia cumprir a promessa Pensei nisso naquela hora e agüentei tudo calado Foi uma prova Tudo isso é uma provação ROSA Agarrandose a uma justificativa para sua própria falta Deve ser sim É a única explicação pra tudo que aconteceu Santa Bárbara me usou pra pôr você à prova ZÉ Mas Santa Bárbara não teria feito isso se não conhecesse você melhor que eu ROSA Veemente Eu senti Zé senti que havia uma vontade mais forte do que a minha me empurrando pra lá E você ajudando Você também é culpado Eu não queria ir e você insistia Não é pra me desculpar mas se tudo é obra de Santa Bárbara o que é que eu podia fazer ZÉ Podia resistir à tentação como eu tenho resistido ROSA Era diferente Não era a mim que ela estava pondo à prova Era a você E se ela é santa se ela pode fazer milagre pode me obrigar a fazer o que eu não quero como obrigou Pode botar o diabo no meu corpo como botou Mas isso não vai acontecer mais Acho até que isso nem aconteceu Pois se foi uma provação divina ZÉ Não muito convencido Esse assunto nós vamos resolver depois na volta Lê o jornal Entra Bonitão pela direita e vai diretamente à vendola Aproximase do Secreta Traz um jornal embaixo do braço BONITÃO Em voz baixa disfarçadamente Você veio depressa Para o Galego Uma dose Galego serve SECRETA Idem Que é que você quer falar comigo Se é sobre a sua volta à Polícia BONITÃO Corta sorrindo Não nada disso Nem estou pensando mais em voltar Estou muito bem de vida SECRETA Mas tome cuidado Estão com sua ficha em dia BONITÃO Ri Não acredito Vocês vivem comendo mosca Olha aí Indica com o olhar ZédoBurro No meu tempo esse cabra já estava no xilindró Noutro tom E vocês me expulsaram SECRETA Quem é ele BONITÃO Mostrando o jornal Tome leia Vocês nem lêem gazeta e querem estar em dia O Secreta põese a ler o jornal atentamente dando de vez em quando uma mirada para ZédoBurro como a comprovar as afirmativas Bonitão atira uma nota sobre o balcão SECRETA Você já conversou com ele BONITÃO Já O homem é perigoso Banca o anjo de procissão mas não é à toa que o padreco dali de frente fechou a igreja e jurou que ele não entra SECRETA É mas a coisa é esquisita BONITÃO Eu se fosse você guardava ele por uns dias SECRETA Também não pode ser assim Tenho que investigar depois comunicar ao Comissário BONITÃO Qual vocês não sabem trabalhar Dá o flagra no homem SECRETA Flagra de quê Ele não está fazendo nada BONITÃO Como não Agitação social SECRETA Venha comigo BONITÃO Iniciando a passagem Ele vai lhe contar a história de um burro mas não vá nessa conversa GALEGO Para Mestre Coca Polícia estão querendo prender el hombre COCA Está certo não Fazer promessa não é crime ZédoBurro recebe Bonitão e Secreta com desconfiança Rosa mostra certo constrangimento diante de Bonitão Este apresenta o Secreta BONITÃO Um amigo Quer conversar com vocês quer ajudar SECRETA Olá Zé Dentro dele uma revolta de proporções imprevisíveis começa a crescer Ajudar todo o mundo quer ajudar Arrebata o jornal das mãos de Rosa e o faz em pedaços ROSA Assustada Não faça isso homem É do Guarda Ele pediu pra guardar ZÉ O Guarda também quer ajudar Repete como uma obsessão Todos querem ajudar Seu olhar que começa a ser agora um olhar de fera acuada cai sobre Bonitão Todos SECRETA O senhor sabe que suas idéias são muito perigosas ZÉ Perigosas SECRETA O senhor não devia dizer isso no jornal E muito menos aqui em praça pública Porque isso pode lhe dar muita aporrinhação ZÉ Mais do que já tive SECRETA Por muito menos tenho visto muita gente ir parar no xadrez ROSA Xadrez SECRETA Estou avisando como amigo ZÉ Amigo Já vi que estou cercado de amigos É amigo por todo lado Cada qual querendo ajudar mais do que o outro SECRETA O senhor é um revoltado ZÉ Não era não Mas estou ficando SECRETA É por isso que está aqui desde esta madrugada ZÉ É Inflamandose E daqui não saio enquanto não fizer com que todo mundo me entenda Todo mundo SECRETA Como pretende fazer isso ZÉ Como sei lá mas tem de haver um jeito tem de haver um jeito Desesperado A vontade que eu tenho é de jogar uma bomba Inicia um gesto como se atirasse uma bomba contra a igreja mas o braço se imobiliza no ar ele percebe a heresia que ia proferir deixa o braço cair e ergue os olhos para o céu Que Deus me perdoe Secreta e Bonitão trocam olhares significativos ZédoBurro avança dois ou três passos em direção à igreja isolase do grupo e grita a plenos pulmões Padre Padre Dedé desce a ladeira e fica assistindo à cena curioso Padre eu andei sete léguas pra vir até aqui Deus é testemunha Ainda não comi hoje e não vou comer até que abra a porta Um dia dois um mês vou morrer de fome na porta da sua igreja padre Galego deixa a vendola e vem para o meio da praça no momento em que surgem também na ladeira dois tocadores de berimbau de instrumento em punho Colocamse ao lado de Mestre Coca e ficam apreciando ZÉ Gritando alucinadamente Padre é preciso que me ouça padre Abrese de súbito a porta da igreja e entra o Padre O Sacristão atrás dele amedrontado Grande silêncio O Padre avança até o começo da escada PADRE Que pretende com essa gritaria Desrespeitar esta casa que é a casa de Deus ZÉ Não Padre lembrar somente que ainda estou aqui com a minha cruz PADRE Estou vendo E essa insistência na heresia mostra o quanto está afastado da igreja ZÉ Está bem Padre Se for assim Deus vai me castigar E o senhor não tem culpa PADRE Tenho sim Sou um sacerdote Devo zelar pela glória do Senhor e pela felicidade dos homens ZÉ Mas o senhor está me fazendo tão infeliz padre PADRE Sinceramente convicto Não Estou defendendo a sua felicidade impedindo que se perca nas trevas da bruxaria ZÉ Padre eu não tenho parte com o Diabo tenho com Santa Bárbara PADRE Agora para toda a praça Estive o dia todo estudando este caso Consultei livros textos sagrados Naquele burro está a explicação de tudo É Satanás Só mesmo Satanás podia levar alguém a ridicularizar o sacrifício de Jesus ROSA Não Padre não PADRE Por que não ROSA Porque eu conheço ele É um bom homem Até hoje só fez o bem PADRE Lúcifer também foi anjo ROSA É até bom demais Nunca fez mal a ninguém nem mesmo a um passarinho É capaz de repartir o que é dele com os outros De deixar de comer até pra dar de comer a um burro É um homem bom isso eu garanto PADRE Como pode garantir ROSA Sou mulher dele Vivo com ele Durmo na mesma cama como na mesma mesa PADRE Isso não quer dizer nada ROSA Com mais veemência Como é que não Entra o Guarda da direita e se detém no meio da praça PADRE Lúcifer iludiu o Senhor até o último momento Leva o dedo em riste Mas eu conheço seus adeptos Mesmo quando se disfarçam sob a pele do cordeiro Mesmo quando se escondem atrás da cruz de Cristo A mesma cruz que querem destruir Mas não destruirão Não destruirão Neste momento entra Monsenhor O Padre está no auge de sua cólera Ao ver Monsenhor seu braço se imobiliza no ar como ante uma aparição sobrenatural PADRE Monsenhor SACRISTÃO Monsenhor Otaviano PADRE Grita para a praça Deixem passar Monsenhor Todos abrem passagem e se curvam respeitosamente Monsenhor avança para a igreja Ao passar por Zédo Burro este lhe cai aos pés e beijalhe a mão MONSENHOR Paternal magnânimo Já sei Estou tratando do seu caso Entra na igreja seguido dos seminaristas do Padre e do Sacristão Fechase a porta GUARDA É Monsenhor Otaviano Deve ter vindo a mando do Arcebispo ROSA E o Padre ficou apavorado quando viu ele reparou DEDÉ Com certeza o Arcebispo mandou puxar as orelhas do Padre MINHA TIA Bem feito GALEGO Se deixam el hombre entrar prejudicam nuestro negócio ZÉ Com esperança Será será que o Arcebispo chegou a saber GUARDA Ora a cidade inteira já sabe O rádio já deu COCA Não se fala noutra coisa da Cidade Baixa até a Cidade Alta ZÉ E ele vir até aqui por causa disso ROSA É porque veio trazer alguma ordem E ordem do Arcebispo DEDÉ Mandou o Padre deixar de ser besta COCA Mandou abrir a porta MINHA TIA Eu disse Iansan tem força Agora ele vai entrar Vai entrar ZÉ Eu sabia que Santa Bárbara não ia me desamparar Abrese a porta da igreja Surgem Monsenhor e Padre seguidos do Sacristão Há um grande silêncio de expectativa MONSENHOR Venho aqui a pedido de Monsenhor Arcebispo S Excia está muito preocupado com o vulto que está tomando este incidente e incumbiume pessoalmente de resolver a questão A fim de dar uma prova da tolerância da igreja para com aqueles que se desviam dos cânones sagrados ZÉ Interrompe Padre eu sou católico Não entendo muita coisa do que dizem mas queria que o senhor entendesse que eu sou católico Pode ser que eu tenha errado mas sou católico MONSENHOR Pois bem Vamos lhe dar uma oportunidade Se é católico renegue todos os atos que praticou por inspiração do Diabo e volte ao seio da Santa Madre Igreja ZÉ Sem entender Como Padre MONSENHOR Abjure a promessa que fez reconheça que foi feita ao Demônio atire fora essa cruz e venha sozinho pedir perdão a Deus ZÉ Cai num terrível conflito de consciência O senhor acha mesmo que eu devia fazer isso MONSENHOR É sua única maneira de salvarse A igreja católica concede a nós sacerdotes o direito de trocar uma promessa por outra ROSA Incitandoo a ceder Zé talvez fosse melhor ZÉ Angustiado Mas Rosa se eu faço isso estou faltando à minha promessa seja Iansan seja Santa Bárbara estou faltando MONSENHOR Com a autoridade de que estou investido eu o liberto dessa promessa já disse Venha fazer outra PADRE Monsenhor está dando uma prova de tolerância cristã Resta agora você escolher entre a tolerância da Igreja e a sua própria intransigência ZÉ Pausa O senhor me liberta mas não foi ao senhor que eu fiz a promessa foi a Santa Bárbara E quem me garante que como castigo quando eu voltar pra minha roça não vou encontrar meu burro morto MONSENHOR Decida Renega ou não renega MINHA TIA Êparrei Maleme pra ele minha mãe COCA Maleme ZÉ Não Não posso fazer isso Não posso arriscar a vida do meu burro PADRE Então é porque você acredita mais na força do demônio do que na força de Deus É porque tudo que fez foi mesmo por inspiração do diabo MONSENHOR Nada mais posso fazer então Atravessa a praça e sai ZÉ Corre na direção de Monsenhor Monsenhor Me deixe explicar No auge do desespero Me deixe explicar PADRE Que ninguém agora nos acuse de intolerantes E que todos se lembrem das palavras de Jesus Porque surgirão falsos cristos e falsos profetas e farão tão grandes sinais e prodígios que se possível fora enganariam a muitos ZÉ Padre eu não quero enganar ninguém PADRE Enganaria a muitos sim E muitos o seguiriam ao sair daqui ZÉ Eu não quero que ninguém me siga PADRE Mas seguiriam como já o seguiram pelas estradas sem saber que seguiam a Satanás ZÉ Subitamente fora de si corre para a cruz levantaa nos braços como um aríete e grita Padre Por Santa Bárbara ou por Satanás vou colocar esta cruz dentro da igreja custe o que custar PADRE Ante a decisão que vê estampada no rosto de ZédoBurro recua amedrontado Eis a prova um católico não ameaça invadir a casa de Deus Guarda Prenda esse homem E ante a investida de ZédoBurro que caminha para a igreja corre seguido do Sacristão e cerra a porta no momento mesmo em que Zé sobe os degraus Este revoltado e vencido atira a cruz contra a porta A cruz tomba estrondosamente sobre a escada ZédoBurro sentase num dos degraus e esconde o rosto entre as mãos COCA Para os tocadores de berimbau Fiquem aqui Vou chamar o resto do pessoal Sobe a ladeira BONITÃO Para o Secreta Que está esperando Não está convencido ainda SECRETA Faz um sinal afirmativo com a cabeça Espere Sai pela direita ROSA Que percebeu a troca de palavras entre o Secreta e Bonitão Espere o quê Quem é ele BONITÃO Um secreta ROSA Começando a compreender Polícia Você Você denunciou BONITÃO Daqui a pouco você vai ficar livre desse idiota ROSA Horrorizase ante a idéia da traição Você não devia ter feito isso Não devia BONITÃO É pro seu bem Pro nosso bem ROSA Angustiada pelo conflito de consciência que se apossa dela Não assim não Eu não queria assim BONITÃO Agora está feito Rosa se debate em seu conflito de um lado sua noção de lealdade gerando um repúdio natural à delação Do outro todos os seus recalques sexuais sua ânsia de libertação de realização mesmo como mulher que Bonitão veio despertar Enquanto isso ZédoBurro sentado nos degraus da igreja sofre uma crise nervosa Soluça convulsivamente Os tocadores de berimbau fazem gemer a corda de seus instrumentos E lentamente enquanto as luzes de cena se apagam CAI O PANO Terceiro Ato Entardecer A praça está cheia de gente Na escadaria da igreja ZédoBurro e Rosa Na vendola o Galego À frente da vendola formouse uma roda de capoeira Dois tocadores de berimbau um de pandeiro e um de recoreco sentados num banco e os camaradas formando um círculo ao centro do qual de cócoras diante dos músicos estão Mestre Coca e Manoelzinho SuaMãe Dedé CospeRima está entre os componentes da roda e Minha Tia não se encontra em cena Choram os berimbaus e Rosa dominada pela curiosidade aproximase da roda MESTRE DO CORO Canta Sinhazinha que vende aí Vendo arroz do Maranhão Meu sinhô mando vende Na terra do Salomão Aruandê Camarado CORO É É Aruandê Camarado MESTRE Galo canto CORO Ê ê Aruandê Camarado MESTRE Cocorocó CORO Ê ê Aruandê Camarado MESTRE Goma de goma CORO Ê ê Goma de goma Camarado MESTRE Ferro de mata CORO Ê ê Ferro de mata Camarado MESTRE É faca de ponta CORO Ê ê Faca de ponta Camarado MESTRE Vamos embora CORO Ê ê Vamos embora Camarado MESTRE Pro mundo afora CORO Ê ê Pro mundo afora Camarado MESTRE Dá volta ao mundo CORO Ê ê Volta do mundo Camarado E tem início o jogo Mestre Coca e Manoelzinho SuaMãe percorrem a roda virando o corpo sobre as mãos e começam a lutadança cuja coreografia é ditada pelo toque do berimbau DEDÉ Grita Quero ver um rabodarraia Mestre Coca UMA VOZ Manoelzinho SuaMãe é porreta no aú OUTRA VOZ Eu queria vê isso à vera MESTRE DO CORO Quem te ensino essa mandinga Foi o nego de sinhá O nego custo dinhero dinhero custo ganha Camarado CORO Cai cai Catarina sarta de má vem vê Dalina MESTRE DO CORO Amanhã é dia santo dia de corpo de Deus Quem tem roupa vai na missa quem não tem faz como eu CORO Cai cai Catarina sarta de má vem vê Dalina MESTRE DO CORO Minino quem foi teu mestre quem te ensino a joga Só discipo que aprendo meu mestre foi Mangangá na roda que ele esteve outro mestre lá não há Camarado CORO Cai cai Catarina sarta de má vem vê Dalina Rosa apreensiva nervosa desinteressase da capoeira vai até a ladeira olha para o alto ansiosamente como se esperasse alguém depois volta pra junto do marido Muda o ritmo do jogo MESTRE DO CORO Panha a laranja no chão ticotico ai se meu amo fô simbora eu não fico CORO Panha a laranja no chão ticotico MESTRE DO CORO Minha camisa é de renda de bico CORO Panha a laranja no chão ticotico MESTRE DO CORO Ai se meu amo fô simbora eu não fico E novamente muda o jogo agora rápido com os dois jogadores empenhandose em golpes de espantosa agilidade no ritmo cada vez mais acelerado da música MESTRE DO CORO Santa Bárbara que relampuê Santa Bárbara que relampuá CORO Santa Bárbara que relampuê Santa Bárbara que relampuá MESTRE DO CORO Vou pidi a Santa Bárbara Pra ela me ajudá CORO Santa Bárbara que relampuê Santa Bárbara que relampuá Esse estribilho é repetido várias vezes em ritmo cada vez mais rápido até que Minha Tia surge no alto da ladeira e marca num canto sonoro MINHA TIA Óia o caruru Cessa de repente o canto e o acompanhamento Os jogadores param de jogar MINHA TIA É o caruru de Santa Bárbara minha gente A roda de capoeira se desfaz alegremente Todos cercam Minha Tia que vai instalar seu tabuleiro no local costumeiro ajudada pelos capoeiristas Apenas os músicos continuam nos seus bancos e Mestre Coca vai à vendola Rosa também permanece junto do marido demonstrando um nervosismo uma ansiedade crescente A capoeira não deve durar mais que dois minutos a fim de não quebrar a continuidade dramática da peça DEDÉ O primeiro caruru é meu Minha Tia Minha Tia enche um prato e colocao de lado no chão DEDÉ Pra quem é esse MINHA TIA É pra Santa Enche outro prato dá a Dedé Agora sim é seu Dedé recebe o prato e dirigese à vendola COCA Tira do bolso uma nota e colocaa sobre o balcão Aposto cem GALEGO Coloca uma nota sobre a de Mestre Coca Casado COCA Fica na mão de quem Dedé vem se aproximando De Dedé CospeRima DEDÉ Também quero entrar nessa aposta COCA O Galego diz que o padreco não deixa o homem entrar Eu digo que vai acabar entrando hoje mesmo com cruz e tudo GALEGO Entra nada Yo conheço esse padre Moça com vestido decotado no entra nesta igreja Yo mismo já vi ele parar la missa até que uma turista americana de calças compridas se retirasse DEDÉ E eu digo que o homem entra mas não hoje amanhã O Padre quer humilhar ele primeiro mas depois vai ficar com medo dele ir se queixar pra Santa Bárbara e vai abrir a porta GALEGO Pero usteds no entenderam la cosa Ele no fez promessa pra Santa Bárbara Fez para Iansan num candomblé COCA E que tem isso GALEGO Tem que candomblé és candomblé e igreja és igreja COCA E a Santa não é a mesma DEDÉ Não o Galego tem razão A santa pode ser a mesma mas o Padre tem medo da concorrência e quer defender o seu negócio COCA Mas não adianta Iansan tem força O homem entra GALEGO Nem Iansan nem todos os orixás do candomblé fazem ele entrar DEDÉ Entra sim Amanhã ele entra Num tom de mistério E não se admirem se for eu que fizer ele entrar GALEGO Usted DEDÉ Sim eu Dedé CospeRima COCA E como DEDÉ Ah isso é segredo profissional COCA Então se ele entrar hoje ganho eu Se entrar amanhã ganha você Se não entrar ganha o Galego DEDÉ Fechado COCA Bota cem pratas Estende a mão DEDÉ Segura o prato com ua mão com a outra remexe os bolsos Não tenho ainda não mas de noite eu lhe dou COCA Desconfiado Vê lá hem Dá o dinheiro ao Galego Por via das dúvidas fica com o dinheiro Galego MANOELZINHO Aproximase de Mestre Coca Tu tá um bicho na capoeira Mestre Coca COCA Você é quem diz MANOELZINHO Tinha ido lá pro mercado pensando que ia ser lá a vadiação Lá me disseram que tinha vindo todo mundo pra cá COCA Por causa do homem da cruz MANOELZINHO Diz que ele quer cumprir obrigação pra Iansan UM CAPOEIRA Quer botar essa cruz lá dentro da igreja OUTRO CAPOEIRA E já quiseram até prender ele MANOELZINHO Só por causa disso UM CAPOEIRA Então MANOELZINHO Não pode COCA Não pode e não vão fazer O homem não fez nada DEDÉ Aproximase de ZédoBurro Amanhã amanhã você entra meu camarada Lhe garanto Vou hoje pra casa escrever a história desse padre Sei umas coisas dele e se precisar a gente inventa Amanhã vou chegar aqui com uma tabuleta Aguardem O padre que fechou a casa de Deus Vai ver se ele abre ou não abre a porta Ou abre ou vai ter que me passar uma gaita pra não publicar os versos Pisca o olho e afastase MINHA TIA Para Rosa Não quer também Iaiá ROSA Não MINHA TIA Caruru de Santa Bárbara Antigamente a gente fazia isso e era de graça Hoje com a vida do jeito que está a gente tem mesmo é que cobrar GALEGO Atravessa a praça com um prato de sanduíches na mão e vai a ZédoBurro Pero yo no cobro nada Oferece Oferta da casa ZÉ Pra mim GALEGO Si para usted Cachorroquente Después trarê un cafezito ZÉ Não obrigado GALEGO Pode aceitar sin constrangimento E podemos até hacer um negócio Se usted promete no arredar pé de cá yo me comprometo a fornecer comida e bebida gratuitamente para los dos ZÉ Não não tenho fome GALEGO Muito preocupado Pero asi usted no poderá resistir ZÉ Não importa GALEGO Oferece a Rosa A senhora não quer ROSA Não estou com vontade GALEGO Encolhe os ombros conformado Bien Volta à venda ZÉ Ele observa a intranqüilidade indisfarçável de Rosa que a todo o momento olha assustada para a ladeira ou para a rua esperando ver surgir a polícia Que é que você tem ROSA Nada Queria era ir embora ZÉ Sozinha ROSA Não com você ZÉ Com intenção Pensei que estivesse farta de mim ROSA Nervosamente Estou farta é dessa palhaçada Estamos aqui bancando os bobos Toda essa gente está rindo de nós Zé Quem não está rindo está querendo se aproveitar É uma gente má que só pensa em fazer mal Sacodeo pelos ombros como para chamálo à realidade Largue a cruz onde está Zé e vamos embora pra nossa roça antes que seja tarde demais ZÉ De que é que você está com medo ROSA De tudo ZÉ Não é de você mesma ROSA Também Mas já não sou eu quem corre perigo é você ZÉ Que perigo ROSA Você não vê Não sente Não respira Está no ar E cada minuto que passa aumenta o perigo Olha para todos os lados como fera acuada Esta praça está ficando cada vez menor como se eles estivessem fechando todas as saídas Voltase para ele com veemência Vamos embora Zé enquanto é tempo ZÉ Desconfiado Que deu em você assim de repente ROSA Não é de repente desde que chegamos que eu estou querendo voltar Você foi que teimou em ficar Por mim você tinha largado aí essa cruz e voltado no mesmo pé Com intenção A esta hora já estava na estrada longe daqui e nada tinha acontecido ZÉ Você acha que depois de andar sete léguas eu ia voltar sem cumprir a promessa ROSA Você já pagou essa promessa Zé Não é sua culpa se há gente sempre disposta a ver demônios em toda a parte até mesmo naqueles que estão do seu lado e que odeiam também o demônio É gente que vai acabar enxergando na própria sombra a figura do diabo Entreabrese a porta da igreja e surge na fresta a cabeça do Sacristão que ao ver ZédoBurro torna a entrar e fechar a porta ROSA Está vendo O Padre mandou ver se você ainda estava aqui não vai abrir a porta enquanto a gente não for embora Vamos Zé ZÉ Reage com irritação procurando combater em si mesmo o desejo de ir Não já disse que não Só arredo pé daqui depois de levar a cruz lá dentro da igreja Secreta entra na direita e atravessa a praça em direção à vendola observando dissimuladamente ZédoBurro Ao vêlo Rosa não esconde a sua inquietação Acompanhao com um olhar amedrontado até a vendola SECRETA Para o Galego Uma meladinha Galego serve a cachaça com mel ZÉ Notando a apreensão de Rosa Que há ROSA Ele não é nosso amigo ZÉ E que tem isso ROSA Ouvi dizer que é da polícia ZÉ Não sou nenhum criminoso não fiz mal a ninguém ROSA Por isso mesmo que eu tenho medo porque você não sabe fazer mal e eles sabem Mestre Coca e Manoelzinho vão à vendola encostamse no balcão junto do Secreta GALEGO Que van hacer com o homem SECRETA Deixe que eu cuido disso COCA Mas ele não fez nada SECRETA Lança a Mestre Coca um olhar de intimidação E é melhor não se meterem onde não são chamados Secreta bebe a cachaça de um trago coloca uma moeda sobre o balcão e volta a atravessar a cena com ar misterioso saindo pela rua da direita Mestre Coca e Manoelzinho trocam um olhar de solidariedade ROSA Ele só veio ver se a gente ainda estava aqui vamos aproveitar antes que ele volte ZÉ Deixe de bobagem Não sou menino que quando brinca com fogo mija na cama Põese a picar fumo com uma faquinha MARLI Entra da direita atravessa a cena lentamente num andar provocante DEDÉ Referindose a Marli Boa moça Só que casou com a humanidade Mestre Coca ri MARLI Na vendola para o Galego Viu Bonitão GALEGO Já esteve aqui várias vezes hoy MARLI Referindose a Rosa Eu sei e sei também o motivo GALEGO Festa de Iansan MARLI Não é bem Iansan é outro orixá ROSA Para ZédoBurro Vou ali preciso falar com aquela mulher ZÉ Que é que você ainda tem que falar com ela Não lhe basta a vergonha que ela lhe fez passar ROSA Mas eu preciso Zé Eu preciso Vai à vendola ZédoBurro a segue com um olhar de profunda desilusão Preciso falar com você MARLI Hostil estranhando Comigo ROSA Ou melhor com ele Bonitão Onde está ele MARLI Sujeita sem vergonha Dá em cima do meu homem e ainda tem o descaramento de vir me pedir pra dizer onde ele está Não lhe basta o seu Precisa do meu pra se contentar ROSA Não preciso do seu homem pra nada Quero só falar com ele pra evitar uma desgraça MARLI Ameaçadora Se você quer mesmo evitar uma desgraça o melhor é deixar ele em paz ROSA Mas eu tenho que falar com ele Juro que é assunto sério MARLI Você pode enganar o trouxa do seu marido Mas a mim não ROSA Onde ele mora MARLI Mora comigo ROSA Mentira Eu sei que ele mora num hotel MARLI Pois vá lá atrás dele pra ver o que lhe acontece ROSA Reagindo Pare com isso que eu não tenho medo de você MARLI Nem eu de você As duas se olham desafiadoramente a ponto de quase se atracarem ZédoBurro que ouviu a discussão aproxima se ZÉ Rosa você perdeu a cabeça Não sabe qual é o seu lugar Discutindo na rua com uma completa a frase com um gesto de desprezo MARLI Com uma o quê seu beato pamonha Carola duma figa A mulher dando em cima do homem da gente e ele agarrado aí com essa cruz Isso também faz parte da promessa ROSA Cale essa boca Não se meta com ele Ele não tem nada com isso MARLI Não tem Não é seu marido ROSA É mas não se rebaixa a discutir com você MARLI Medeo de cima a baixo com mais desprezo ainda Corno manso Dálhe as costas bruscamente e sobe a ladeira Galego solta uma gargalhada que corta de súbito ante o olhar ameaçador de ZédoBurro Este num gesto instintivo ergue a pequena faca de picar fumo ROSA Zé GALEGO Intimidado Perdon no se puede dar confiança a essas mujeres ZÉ Para Rosa num tom que revela sua desilusão sua revolta e sua decisão de não mais deixarse iludir Esta noite a gente vai embora ROSA E por que não agora ZÉ Vamos deixar passar o dia de Santa Bárbara ROSA De noite talvez seja tarde ZÉ Tarde pra quê ROSA Pra voltar ZÉ O que você ainda queria falar com aquele sujeito ROSA Pedir pra ele deixar você em paz ZÉ A mim ROSA Ele denunciou você à polícia ZÉ Mas eu sou um homem de bem Nunca tive nada com a polícia ROSA Eu sei Mas eles torcem as coisas Confundem tudo Angustiada Zé Ouça o que eu digo A gente devia ganhar a estrada agora mesmo Neste minuto O Repórter e o Fotógrafo entram pela direita a tempo de ouvirem a última fala de Rosa REPÓRTER Eh que é isso Já estão pensando em ir embora ZÉ Hostil Vou embora quando quiser não tenho que dar conta disso a ninguém Dá as costas ao Repórter ostensivamente e volta para junto da cruz na escadaria da igreja O Fotógrafo conversa qualquer coisa com os componentes da roda de capoeira e sai seguido de Mestre Coca e mais três ou quatro REPÓRTER Vocês não estão falando sério não Sim porque eu espero que vocês cumpram o que prometeram Meu jornal está cumprindo Já tomei todas as providências para que sua estada aqui até segundafeira seja a mais agradável possível ROSA Como Neste instante entram os capoeiristas conduzindo primeiro uma tenda de pano já armada e em seguida um colchão de molas Na tenda há um letreiro Oferta da Casa da Lona No colchão há outro Gentileza da Loja Sonho Azul Com enorme espanto de ZédoBurro e Rosa eles colocam a barraca no meio da praça e o colchão dentro da barraca REPÓRTER Fomos aos nossos clientes e eles se dispuseram prontamente a colaborar conosco Entra o Fotógrafo trazendo uma mesinha e um aparelho de rádio de pilha que coloca também na barraca ZÉ Surpreso O senhor trouxe essas coisas pra nós REPÓRTER Bem julgamos que um pouco de conforto durante esses dias não reduzirá também o valor de sua promessa Além disso segunda feira depois da entrada triunfal na igreja o senhor percorrerá a cidade em carro aberto com batedores num percurso que irá daqui até a redação do nosso jornal De lá irá ao Palácio do Governo onde será recebido pelo Governador Zé vai dizer qualquer coisa e ele o interrompe Já sei vai dizer que se o vigário de Santa Bárbara não o deixar entrar em sua igreja o Governador vai também lhe bater com a porta na cara Não se preocupe Já estamos mexendo os pausinhos E se o senhor puder dizer uma palavrinha a favor do candidato oficial nas próximas eleições estará tudo arranjado ROSA Por favor leve tudo isso daqui Nós estamos de partida REPÓRTER De partida Não não pode ser isso seria um desastre para mim O jornal já fez despesas já compramos foguetes contratamos uma banda de música para a volta ROSA A volta vai ser hoje mesmo REPÓRTER Hoje Mas não dá tempo Não está nada preparado O que é que a senhora pensa Que é assim tão simples organizar uma promoção de venda É muito fácil pegar uma cruz jogar nas costas e andar sete léguas Mas um jornal é uma coisa muito complexa Mobilizar todos os departamentos para dar cobertura e depois eu já lhe disse amanhã é domingo não tem jornal ROSA Irritandose E qual é o meu Que se dane o seu jornal Eu quero é ir embora daqui O Zé tem razão vocês todos querem ajudar ajudar ajudam mas é a desgraçar a vida da gente REPÓRTER Está precisando de alguma ajuda particular ROSA Estou A Polícia anda rondando a praça REPÓRTER A Polícia ROSA Um secreta Estão querendo levar ele preso REPÓRTER Por quê ROSA Pensa um pouco Talvez porque ele é bom demais E o resto é gente safada REPÓRTER Hum bem me pareceu que por trás dessa história do burro da promessa havia qualquer coisa uma intenção oculta e um objetivo político A polícia naturalmente percebeu também ROSA Mas ele não tem nenhuma intenção a não ser a de pagar a promessa REPÓRTER Sorri descrente É claro que a senhora não vai dizer Nem ele também Mas podem contar comigo e com o meu jornal Se ele for preso daremos toda a cobertura Abriremos manchetes na primeira página Será uma maravilha para ele ROSA Maravilha Maravilha ser preso REPÓRTER Todo líder precisa ser preso pelo menos uma vez ROSA Líder eu acho que o senhor é maluco O senhor esse padre a polícia todos E eu também se não me cuidar vou acabar ficando Olha ansiosamente para o alto da ladeira REPÓRTER Chama de parte o Fotógrafo Preparese daqui a pouco é capaz de haver um bafafá Rosa angustiada volta para junto do marido ROSA Desista Zé Desista ZÉ Por que você não senta aqui e espera até a hora de ir embora ROSA Sentase num degrau É o jeito é esperar DEDÉ Vai a eles com seus folhetos E enquanto espera deve aproveitar para melhorar sua cultura O ABC da Mulata Esmeralda modéstia à parte é uma verdadeira jóia da literatura brasileira Por 10 Cruzeiros apenas o senhor poderá ler os mais inspirados versos que uma mulata jamais inspirou ZédoBurro balança negativamente a cabeça Dedé vai a Minha Tia DEDÉ Poesia está muito por baixo Minha Tia Quem está por cima é o caruru Aproximase da roda de capoeira ZédoBurro sobe um ou dois degraus fita revoltado a porta cerrada MINHA TIA Para ZédoBurro Não desanime moço Hoje é dia de Iansan mulher de Xangô Orixá dos raios e das tempestades Mais nos terreiros ela está descendo no corpo dos seus cavalos Vai falar com ela moço vai pedir a proteção de Iansan que tudo quanto é porta há de se abrir Ouvemse trovões mais fortes que da vez anterior Óia Aponta para o céu Iansan está falando Abaixase toca o chão com a ponta dos dedos depois a testa e saúda Iansan Eparrei minha mãe Neste momento surge Bonitão na ladeira Rosa levantase movida por uma mola ZédoBurro com os olhos pregados na porta da igreja não o vê Não vê que os olhares de Rosa e Bonitão se cruzam de um extremo a outro da praça É que ele da ladeira faz para ela um gesto convidandoa a acompanhálo Rosa hesita presa de tremendo conflito Olha para ZédoBurro para Bonitão Este a espera certo de que ela acabará por ir ao seu encontro Minha Tia Galego e Dedé percebem o que se passa e aguardam atentamente Vendo que ela não se decide Bonitão dá de ombros sorri e acena num gesto curto de despedida Inicia a subida da ladeira mas pára depois de dar dois ou três passos fora do ângulo visual de Rosa e ZédoBurro Ela como que atraída por um ímã inicia o movimento para seguilo quando ZédoBurro voltase ZÉ Aonde vai Rosa ROSA Detémse Vou ali já volto ZÉ Ali aonde ROSA No hotel onde dormi Lembrei agora que esqueci lá o meu lenço Avança mais na direção da ladeira ZÉ Rosa ROSA Pára já na altura da ladeira vê Bonitão à sua espera Que é ZÉ Num apelo e numa advertência que é quase uma súplica Deixe esse lenço pra lá ROSA Hesita ainda um pouco Não posso Zé Eu preciso dele ZÉ Compro outro pra você Rosa ROSA Pra quê Zé gastar dinheiro à toa é daquele que eu gosto Sobe a ladeira Bonitão passa o braço pela cintura dela e os dois sobem a ladeira Galego e Dedé CospeRima trocam olhares significativos DEDÉ Canta Quem corta e prepara o pau quem cava e faz a gamela toma a si todo o trabalho e depois fica sem ela O sino da igreja começa a tocar as AveMarias A Beata surge no alto da ladeira apressada Ao passar pela roda de capoeira que novamente se anima tem um ar de repulsa e indignação BEATA Falta de respeito Bem em frente da igreja Este mundo está perdido MINHA TIA Oferece Caruru Iaiá BEATA Pára junto a ela Quê MINHA TIA Caruru de Iansan BEATA Como se ouvisse o nome do diabo Iansan E que é que eu tenho com dona Iansan Sou católica apostólica romana não acredito em bruxarias MINHA TIA Adiscurpe Iaiá mas Iansan e Santa Bárbara não é a mesma coisa BEATA Não é não senhora Santa Bárbara é uma santa E Iansan é é coisa de candomblé que Deus me perdoe benzese repetidas vezes e sai CORO Quem corta e prepara o pau Quem cava e faz a gamela Toma a si todo o trabalho E depois fica sem ela Mestre Coca entra correndo COCA A ZédoBurro Meu camarada trate de ir embora Estão lhe arrumando uma patota ZÉ O quê COCA Chegou um carro da Polícia Eles estão com o Padre na sacristia MINHA TIA Vieram por causa dele COCA Então ZÉ Mas eu não roubei não matei ninguém DEDÉ Quer um conselho Experiência própria com a polícia é melhor fugir do que discutir COCA Ande depressa que nós agüentamos eles aqui até você ganhar o mundo ZÉ Não eu não vou fugir como qualquer criminoso se estou com a minha consciência tranqüila DEDÉ Ele não se separa da cruz COCA A gente esconde a cruz MINHA TIA E de noite ele leva ela pra Iansan COCA Vamos todo mundo levar Todos os capoeiras da Bahia MINHA TIA É a mesma coisa meu filho Iansan é Santa Bárbara Eu lhe mostro lá no peji a imagem da santa COCA É preciso se decidir meu camarada Antes que seja tarde ZÉ Balança a cabeça sentindose perdido e abandonado Santa Bárbara me abandonou Por quê eu não sei não sei ROSA Desce a ladeira correndo Zé Não adianta não adianta mais Falei com ele mas não adianta A Polícia já está aí Vem cercar a praça COCA Eu não disse DEDÉ É preciso andar depressa meu irmão MINHA TIA Some daqui meu filho ROSA Vamos Zé ZÉ Santa Bárbara me abandonou Rosa ROSA Se ela abandonou você abandone também a promessa Quem sabe se não é ela mesma que não quer que você cumpra o prometido ZÉ Não mesmo que ela me abandone eu preciso ir até o fim ainda que já não seja por ela que seja só pra ficar em paz comigo mesmo Subitamente abrese a porta da igreja e entram o Delegado o Secreta o Guarda o Padre e o Sacristão SECRETA Aponta para ZédoBurro É esse aí Avança para ZédoBurro seguido do Delegado e do Guarda GUARDA Como que se desculpando Eu já cansei de pedir a ele pra sair daqui seu Delegado não adiantou DELEGADO Faz o Guarda calar com um gesto autoritário Seus documentos ZÉ Estranha Documentos DELEGADO Carteira de identidade ZÉ Tenho não DELEGADO Outra carteira outro documento qualquer ZÉ Moço eu vim só pagar uma promessa A Santa me conhece não precisava trazer carteira de identidade DELEGADO Sorri irônico Pagar uma promessa pensa que nós somos idiotas SECRETA Não demora e ele conta a história do burro DELEGADO Ele vai contar essas histórias todas mas é na Delegacia Vamos acompanheme ZÉ Seu olhar vai do Delegado ao Secreta e ao Guarda sem entender o que se passa Acompanhar o senhor pra quê DELEGADO Mais tarde você verá Sou delegado deste distrito Obedeça ZÉ Não posso Não posso sair daqui DELEGADO Não pode por quê COCA Promessa seu Delegado Ele é crente DELEGADO O Padre disse que ele ameaçou invadir a igreja Pediu garantias SECRETA Eu mesmo ouvi ele dizer que ia jogar uma bomba Todo mundo aqui é testemunha DELEGADO Uma bomba hem Vamos à Delegacia quero que o senhor me explique isso tudo direitinho SECRETA Vamos Segura ZédoBurro por um braço mas este se desvencilha Que é Vai reagir GUARDA Apaziguador Acho melhor o senhor obedecer DELEGADO Se ele reagir pior para ele Não estou disposto a perder tempo e conheço de sobra esses tipos Só se entregam mesmo é a bala ROSA Não ZÉ Os senhores devem estar enganados Devem estar me confundindo com outra pessoa Sou um homem pacato vim só pagar uma promessa que fiz a Santa Bárbara Aponta para o Padre Aí esta o vigário para dizer se é mentira minha PADRE É mentira sim E não somente mentira também um sacrilégio ZÉ Padre o senhor não pode dizer que é mentira que eu não fiz essa promessa PADRE Sim talvez tenha feito por inspiração de Satanás Há quem diga que não estamos mais em época de acreditar em bruxas No entanto elas ainda existem Mudaram talvez de aspecto como Satanás mudou de métodos É mais difícil combatêlas agora porque são inúmeros os seus disfarces Mas o objetivo de todas continua a ser um só a destruição da Santa Madre Igreja DELEGADO Padre este homem PADRE Este homem teve todas as oportunidades para arrependerse Deus é testemunha de que fiz todo o possível para salválo Mas ele não quer ser salvo Pior para ele DELEGADO Que ganhou decisão com o sermão do Padre Sim pior para ele Avança um passo na direção de ZédoBurro que recua e fica encurralado contra a parede ZÉ Decidido a resistir Não Ninguém vai me levar preso Não fiz nada pra ser preso DELEGADO Se não fez não tem o que temer será solto depois Vamos à Delegacia ROSA Não Zé não vá GUARDA É melhor na Delegacia o senhor explica tudo DEDÉ Não caia nessa meu camarado ZÉ Agora eu decidi só morto me levam daqui Juro por Santa Bárbara só morto SECRETA Vê a faca na mão de ZédoBurro Tome cuidado Chefe que ele está armado Observa a atitude hostil dos capoeiras E essa gente está do lado dele COCA Estamos mesmo E aqui vocês não vão prender ninguém DELEGADO Não vamos por quê MANOELZINHO Porque não está direito DELEGADO Estão querendo comprar barulho COCA Vocês que sabem DELEGADO Não se metam senão vão se dar mal SECRETA E é melhor que se afastem ROSA Zé ZÉ Me deixe Rosa Não venha pra cá ZédoBurro de faca em punho recua em direção à igreja Sobe um ou dois degraus de costas O Padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço fazendo com que a faca vá cair no meio da praça ZédoBurro corre e abaixase para apanhála Os policiais aproveitam e caem sobre ele para subjugálo E os capoeiros caem sobre os policiais para defendêlo ZédoBurro desapareceu na onda humana Ouvese um tiro A multidão se dispersa como num estouro de boiada Fica apenas ZédoBurro no meio da praça com as mãos sobre o ventre Ele dá ainda um passo em direção à igreja e cai morto ROSA Num grito Zé corre para ele PADRE Num começo de reconhecimento de culpa Virgem Santíssima DELEGADO Para o Secreta Vamos buscar reforço Sai seguido do Secreta e do Guarda O Padre desce os degraus da igreja em direção do corpo de ZédoBurro ROSA Com rancor Não chegue perto PADRE Queria encomendar a alma dele ROSA Encomendar a quem Ao Demônio O Padre baixa a cabeça e volta ao alto da escada Bonitão surge na ladeira Mestre Coca consulta os companheiros com o olhar Todos compreendem a sua intenção e respondem afirmativamente com a cabeça Mestre Coca inclinase diante de ZédoBurro segurao pelos braços os outros capoeiras se aproximam também e ajudam a carregar o corpo Colocamno sobre a cruz de costas com os braços estendidos como um crucificado Carregamno assim como numa padiola e avançam para a igreja Bonitão segura Rosa por um braço tentando levála dali Mas Rosa o repele com um safanão e segue os capoeiras Bonitão dá de ombros e sobe a ladeira Intimidados o Padre e o Sacristão recuam a Beata foge e os capoeiras entram na igreja com a cruz sobre ela o corpo de ZédoBurro O Galego Dedé e Rosa fecham o cortejo Só Minha Tia permanece em cena Quando uma trovoada tremenda desaba sobre a praça MINHA TIA Encolhese toda amedrontada toca com as pontas dos dedos o chão e a testa Êparrei minha mãe E O PANO CAI LENTAMENTE Fim do livro Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprála ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler Dessa forma a venda deste ebook ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância A generosidade e a humildade é a marca da distribuição portanto distribua este livro livremente Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras Se quiser outros títulos nos procure httpgroupsgooglecomgroupViciadosemLivros será um prazer recebêlo em nosso grupo httpgroupsgooglecomgroupViciadosemLivros httpgroupsgooglecomgroupdigitalsource
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O Pagador de Promessas Dias Gomes httpgroupsgooglecomgroupdigitalsource Copyright c Ediouro Publicações SA Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9610 de 190298 É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização prévia por escrito da editora CIP Brasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Gomes Dias 1922 O pagador de promessas Alfredo Dias Gomes 36ª ed Rio de Janeiro Ediouro 2002 Coleção Prestígio ISBN 8500913916 Teatro brasileiro Literatura CDD 86992 CDU8690812 EDIOURO PUBLICAÇÕES SA Rio de Janeiro Sede Dept de vendas e expedição Rua Nova Jerusalém 345 CEP 21042230 Rio de Janeiro RJ Tel 21 38828240 8323 8284 Fax 21 38828212 8313 Email livrosediourocombr São Paulo Av Bosque da Saúde 1432 Jardim da Saúde CEP 04142082 São Paulo SP Tel 11 55893300 Fax vendas 11 55893300 ramal 233 Email ediouroediourocombr Email Vendas vendaspediourocombr Internet wwwediourocombr Dias Gomes Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em Salvador Bahia a 19 de outubro de 1922 Aí realizou seus primeiros estudos passando a residir no Rio de Janeiro a partir de 1935 Cursou várias carreiras entre as quais Direito e Engenharia sem concluir nenhuma delas Escreveu sua primeira peça teatral aos 15 anos A Comédia dos Moralistas obtendo com ela o prêmio do Serviço Nacional do Teatro Mais tarde aos 19 anos viu sua primeira obra encenada PédeCabra com sucesso de público e de crítica sendo saudado por Viriato Corrêa o mais importante crítico da época como aquele que seria mais cedo ou mais tarde o autor mais importante do teatro brasileiro Nessa sua primeira fase como dramaturgo Dias Gomes escreveu ainda Amanhã Será Outro Dia Doutor Ninguém Zeca Diabo João Cambão quase todas encenadas por Procópio Ferreira Alguns textos desta fase permanecem inéditos no teatro como O Pobre Gênio Eu Acuso o Céu Sinhazinha O Homem que não Era Seu e Beco sem Saída que foram apresentados apenas pelo rádio anos mais tarde Em todos eles Dias revela já a preocupação de questionar a realidade brasileira ou como diria Anoto Rosenfeld de oferecer uma imagem crítica da realidade brasileira naquilo que é caracteristicamente brasileiro e naquilo que é tipicamente humano A partir de 1944 Dias Gomes estendeu suas atividades ao rádio para o qual foi levado por Oduvaldo Vianna pai tendo atuado em várias emissoras de São Paulo e do Rio escrevendo e dirigindo programas Foi diretor artístico da Rádio Bandeirantes de São Paulo da Rádio Clube do Brasil Rio e da Rádio Nacional Rio Nessa fase publicou quatro romances Amanhã será Outro Dia Um Amor e Sete Pecados A Dama da Noite e Quando É Amanhã Em 1954 após nove anos de ausência do teatro fez nova experiência cênica com Os Cinco Fugitivos do Juízo Final produzida por Jaime Costa com direção de Bibi Ferreira Mas foi em 1960 com O Pagador de Promessas que retornou definitivamente ao teatro O estrondoso sucesso nacional e internacional desta peça fez com que seu nome atravessasse as fronteiras do país sendo hoje Dias Gomes talvez o nosso dramaturgo mais conhecido e mais representado no exterior Vertido para o cinema O Pagador de Promessas conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1962 além de vários outros prêmios nacionais e internacionais Seu texto está traduzido para os seguintes idiomas inglês francês russo polonês espanhol italiano vietnamita hebraico grego e servo croata tendo sido encenado nos Estados Unidos seis produções Polônia quatro produções União Soviética Cuba Espanha Itália Grécia Israel Argentina Uruguai Equador Peru México Vietnã do Norte durante a guerra e Marrocos Na década de sessenta Dias Gomes escreveu ainda as seguintes peças A Invasão A Revolução dos Beatos Odorico O BemAmado O Berço do Herói proibida pela censura O Santo Inquérito O Túnel Dr Getúlio Sua Vida e Sua Glória e Vamos Soltar os Demônios Em 1969 pressionado pela censura que vetara vários textos seus e sentindo que dificilmente poderia continuar sua obra teatral a menos que se adaptasse às novas limitações impostas pelo regime vigente preferiu experimentar um novo meio de expressão a televisão Sem trair a sua temática levou para a TV suas preocupações políticas e sociais escrevendo uma série de telenovelas que deram ao gênero um alto nível artístico e uma linguagem própria Verão Vermelho Assim na Terra Como no Céu Bandeira 2 O BemAmado O Espigão Roque Santeiro proibida pela censura Saramandaia e Sinal de Alerta constituem um ciclo que repete na TV a tentativa de pintar um vasto painel de nossa realidade levando ao espectador a consciência da necessidade de transformála A partir de 1978 após novo período de afastamento durante o qual apenas se preocupou com reencenações de suas peças em todo o mundo Dias Gomes voltou a escrever para o teatro As Primícias foi publicada em livro e O Rei de Ramos foi encenada com enorme sucesso Segundo Anotol Rosenfeld autor de um dos mais inteligentes estudos sobre a sua obra esta no seu todo se apresenta repleta de esplêndidas invenções povoada de uma humanidade exemplar na glória e na miséria Distinguemna a imaginação rica a variedade de caracteres vivos a extraordinária latitude da escala emocional indo dos comoventes destinos de Zé do Burro e Branca Dias ao riso amargo de O Berço do Herói e Dr Getúlio e à franca gargalhada de Odorico Aberta ao sublime sensível à grandeza trágica a obra recorre ao mesmo tempo aos variados enfoques do humor do sarcasmo e da ironia para lidar com os aspectos frágeis ou menos nobres da espécie humana Por isso a obra é amorável e respira futuro Prêmios Prêmio Nacional de Teatro INL 1960 Prêmio Governador do Estado SP 1960 Prêmio Melhor Peça Brasileira APCT 1960 Prêmio Padre Ventura CICT 1962 Prêmio Melhor Autor Brasileiro ABCT 1962 Prêmio Governador do Estado da Guanabara 1962 Laureada no III Festival Internacional de Teatro em Kalsz Polônia Em Versão Cinematográfica Palma de Ouro do Festival de Cannes 1962 1 Prêmio do Festival de S Francisco EUA 1962 Critics Award do Festival de Edimburgo Escócia 1962 I Prêmio do Festival da Venezuela 1962 Laureada no Festival de Acapulco México 1962 Prêmio Saci S Paulo 1962 Prêmio Governador do Estado SP 1962 Prêmio Cidade de S Paulo 1962 Prêmio Humberto Mauro Para Janete com amor Para Páscoal Longo e Edison Carneiro Personagens ZédoBurro Rosa Marli Bonitão Padre Sacristão Guarda Beata Galego Minha Tia Repórter Fotógrafo Dedé CospeRima Secreta Delegado Mestre Coca Monsenhor Manoelzinho SuaMãe e a Roda de Capoeira Ação Salvador Época Atual Primeiro Ato Primeiro Quadro Ao subir o pano a cena está quase às escuras Apenas um jato de luz da direita lança alguma claridade sobre o cenário Mesmo assim após habituar a vista o espectador identificará facilmente uma pequena praça onde desembocam duas ruas Uma à direita seguindo a linha da ribalta outra à esquerda ao fundo de frente para a platéia subindo encadeirada e sinuosa no perfil de velhos sobrados coloniais Na esquina da rua da direita vemos a fachada de uma igreja relativamente modesta com uma escadaria de quatro ou cinco degraus Numa das esquinas da ladeira do lado oposto há uma vendola onde também se vende café refresco cachaça etc a outra esquina da ladeira é ocupada por um sobrado cuja fachada forma ligeira barriga pelo acúmulo de andares não previsto inicialmente O calçamento da ladeira é irregular e na fachada dos sobrados vêem se alguns azulejos estragados pelo tempo Enfim é uma paisagem tipicamente baiana da Bahia velha e colonial que ainda hoje resiste à avalancha urbanística moderna Devem ser aproximadamente quatro e meia da manhã Tanto a igreja como a vendola estão com suas portas cerradas Vem de longe o som dos atabaques dum candomblé distante no toque de Iansan Decorrem alguns segundos até que ZédoBurro surja pela rua da direita carregando nas costas uma enorme e pesada cruz de madeira A passos lentos cansado entra na praça seguido de Rosa sua mulher Ele é um homem ainda moço de 30 anos presumíveis magro de estatura média Seu olhar é morto contemplativo Suas feições transmitem bondade tolerância e há em seu rosto um quê de infantilidade Seus gestos são lentos preguiçosos bem como sua maneira de falar Tem barba de dois ou três dias e trajase decentemente embora sua roupa seja mal talhada e esteja amarrotada e suja de poeira Rosa parece pouco ter de comum com ele É uma bela mulher embora seus traços sejam um tanto grosseiros tal como suas maneiras Ao contrário do marido tem sangue quente É agressiva em seu sexy revelando logo à primeira vista uma insatisfação sexual e uma ânsia recalcada de romper com o ambiente em que se sente sufocar Vestese como uma provinciana que vem à cidade mas também como uma mulher que não deseja ocultar os encantos que possui ZédoBurro vai até o centro da praça e aí pousa a sua cruz equilibrandoa na base e num dos braços como um cavalete Está exausto Enxuga o suor da testa ZÉ Olhando a igreja É essa Só pode ser essa Rosa pára também junto aos degraus cansada enfastiada e deixando já entrever uma revolta que se avoluma ROSA E agora Está fechada ZÉ É cedo ainda Vamos esperar que abra ROSA Esperar Aqui ZÉ Não tem outro jeito ROSA Olhao com raiva e vai sentarse num dos degraus Tira o sapato Estou com cada bolha dágua no pé que dá medo ZÉ Eu também Contorcese num ritus de dor Despe uma das mangas do paletó Acho que os meus ombros estão em carne viva ROSA Bem feito Você não quis botar almofadinhas como eu disse ZÉ Convicto Não era direito Quando eu fiz a promessa não falei em almofadinhas ROSA Então se você não falou podia ter botado a santa não ia dizer nada ZÉ Não era direito Eu prometi trazer a cruz nas costas como Jesus E Jesus não usou almofadinhas ROSA Não usou porque não deixaram ZÉ Não nesse negócio de milagres é preciso ser honesto Se a gente embrulha o santo perde o crédito De outra vez o santo olha consulta lá os seus assentamentos e diz Ah você é o Zédo Burro aquele que já me passou a perna E agora vem me fazer nova promessa Pois vá fazer promessa pro diabo que o carregue seu caloteiro duma figa E tem mais santo é como gringo passou calote num todos os outros ficam sabendo ROSA Será que você ainda pretende fazer outra promessa depois desta Já não chega ZÉ Sei não a gente nunca sabe se vai precisar Por isso é bom ter sempre as contas em dia Ele sobe um ou dois degraus Examina a fachada da igreja à procura de uma inscrição ROSA Que é que você está procurando ZÉ Qualquer coisa escrita pra a gente saber se essa é mesmo a igreja de Santa Bárbara ROSA E você já viu igreja com letreiro na porta homem ZÉ É que pode não ser essa ROSA Claro que é essa Não lembra o que o vigário disse Uma igreja pequena numa praça perto duma ladeira ZÉ Corre os olhos em volta Se a gente pudesse perguntar a alguém ROSA Essa hora está todo o mundo dormindo Olhao quase com raiva Todo o mundo menos eu que tive a infelicidade de me casar com um pagador de promessas Levantase e procura convencêlo Escute Zé já que a igreja está fechada a gente podia ir procurar um lugar pra dormir Você já pensou que beleza agora uma cama ZÉ E a cruz ROSA Você deixava a cruz aí e amanhã de dia ZÉ Podem roubar ROSA Quem é que vai roubar uma cruz homem de Deus Pra que serve uma cruz ZÉ Tem tanta maldade no mundo Era correr um risco muito grande depois de ter quase cumprido a promessa E você já pensou se me roubassem a cruz eu ia ter que fazer outra e vir de novo com ela nas costas da roça até aqui Sete léguas ROSA Pra quê Você explicava à santa que tinha sido roubado ela não ia fazer questão ZÉ É o que você pensa Quando você vai pagar uma conta no armarinho e perde o dinheiro no caminho o turco perdoa a dívida Uma ova ROSA Mas você já pagou a sua promessa já trouxe uma cruz de madeira da roça até à igreja de Santa Bárbara Está aí a igreja de Santa Bárbara está aí a cruz Pronto Agora vamos embora ZÉ Mas aqui não é a igreja de Santa Bárbara A igreja é da porta pra dentro ROSA Oxente Mas a porta está fechada e a culpa não é sua Santa Bárbara deve saber disso que diabo ZÉ Pensativo Só se eu falasse com ela e explicasse a situação ROSA Pois então fale ZÉ Ergue os olhos para o céu medrosamente e chega a entreabrir os lábios como se fosse dirigirse à santa Mas perde a coragem Não não posso ROSA Por que homem Santa Bárbara é tão sua amiga Você não está em dia com ela ZÉ Estou mas esse negócio de falar com santo é muito complicado Santo nunca responde em língua da gente não se pode saber o que ele pensa E além do mais isso também não é direito Eu prometi levar a cruz até dentro da igreja tenho que levar Andei sete léguas Não vou me sujar com a santa por causa de meio metro ROSA E pra você não se sujar com a santa eu vou ter que dormir no chão no hotel do padre Olhao com raiva e vai deitarse num dos degraus da escada da igreja E se tudo isso ainda fosse por alguma coisa que valesse a pena ZÉ Você podia não ter vindo Quando eu fiz a promessa não falei em você só na cruz ROSA Agora você diz isso Dissesse antes ZÉ Não me lembrei Você também não reclamou ROSA Sou sua mulher Tenho que ir pra onde você for ZÉ Então Rosa ajeitase da melhor maneira possível no degrau enquanto ZédoBurro não menos cansado do que ela faz um esforço sobrehumano para não adormecer Cochila montando guarda à sua cruz Subitamente irrompem na praça Marli e Bonitão Ela tem na realidade vinte e oito anos mas aparenta mais dez Pintase com algum exagero mas mesmo assim não consegue esconder a tez amarelo esverdeada Possui alguns traços de uma beleza doentia uma beleza triste e suicida Usa um vestido muito curto e decotado já um tanto gasto e fora de moda mas ainda de bom efeito visual Seus gestos e atitudes refletem o conflito da mulher que quer libertarse de uma tirania que no entanto é necessária ao seu equilíbrio psíquico a exploração de que é vítima por parte de Bonitão vem em parte satisfazer um instinto maternal frustrado Há em seu amor e em seu aviltamento em sua degradação voluntária muito de sacrifício maternal ao qual não falta inclusive um certo orgulho Bonitão é insensível a tudo isso Ele é frio e brutal em sua profissão Encara a exploração a que submete Marli e outras mulheres como um direito que lhe assiste ou melhor um dom que a natureza lhe concedeu juntamente com seus atributos físicos Em seu entender sua beleza máscula e seu vigor sexual aliados a um direito natural de subsistir justificam plenamente seu modo de vida É de estatura um pouco acima da média forte e de pele trigueira amulatada A ascendência negra é visível embora os cabelos sejam lisos reluzentes de gomalina e os traços regulares com exceção dos lábios grossos e sensuais e das narinas um tanto dilatadas Vestese sempre de branco colarinho alto sapatos de duas cores Descem a ladeira ela na frente a passos rápidos Ele a segue como se viessem já de uma discussão BONITÃO Espere Não adianta andar depressa MARLI É melhor discutirmos isso em casa BONITÃO Alcançaa e obriga a parar torcendolhe violentamente o braço Não vamos resolver aqui mesmo Não tenho nada que discutir com você MARLI Livrase dele com um safanão mas seu rosto se contrai dolorosamente Estúpido BONITÃO Ande vamos deixar de masmas Passe pra cá o dinheiro MARLI Tira do bolso do vestido um maço de notas e entrega a ele Não podia esperar até chegar em casa BONITÃO Chega mais para perto do jato de luz e conta as notas rapidamente Só deu isto MARLI Só A noite hoje não foi boa Você viu o castelo estava vazio BONITÃO E aquele galego que estava conversando com você quando cheguei MARLI Uma boa conversa Queria se fretar comigo Ficou mangando a noite toda e não se resolveu BONITÃO Mete subitamente a mão no decote de Marli e tira de entre os seios uma nota Sua vaca Ele faz menção de darlhe um bofetão ela corre e refugiase atrás da cruz ZédoBurro desperta de sua semi sonolência MARLI Eu precisava desse dinheiro Pra pagar o quarto você sabe BONITÃO Não gosto de ser tapeado Por que não pediu MARLI E você dava BONITÃO Claro que não Guarda o dinheiro na carteira Isso ia fazer falta no meu orçamento Tenho compromissos e você bem sabe que não gosto de pedir dinheiro emprestado É uma questão de feitio MARLI E eu que faço pra pagar o quarto Já devo dois meses e a dona anda me olhando atravessado BONITÃO Indiferente É um problema seu Tenho muita coisa em que pensar MARLI Eu sei eu sei no que você pensa BONITÃO Sorri e há em seu sorriso uma sombra de ameaça Penso por exemplo que você de três meses pra cá está fazendo muito pouco A Matilde está fazendo quase o dobro MARLI Compreende a ameaça avança para ele sacudida pelo ciúme e pelo pavor de perdêlo Eu sei você está dando em cima daquela arreganhada Ela mesma anda dizendo BONITÃO Eu não dou em cima de mulher nenhuma você sabe disso É uma questão de princípios MARLI Quer dizer que é ela quem está dando em cima de você BONITÃO Ela perguntou se eu estava precisando de dinheiro MARLI Ansiosamente E você BONITÃO Eu só pedi umas informações de ordem técnica arrecadação diária etc MARLI Agarrao freneticamente pelos braços Bonitão você não aceitou o dinheiro dela aceitou Você não aceitou o dinheiro daquela vagabunda BONITÃO Olhaa friamente E que tinha se aceitasse Eu também preciso viver MARLI Mas o que eu lhe dou não chega BONITÃO Você compreende eu também tenho ambições Se eu não tivesse qualidades bem Mas eu sei que tenho qualidades É justo que viva de acordo com essas qualidades MARLI Mas o que lhe falta Eu não tenho lhe dado tudo que você me pede Se for preciso dou mais ainda Não pense que é por medo de que você me largue pela Matilde não Alisa sua roupa e admirao maternalmente É porque tenho prazer em ver você vestido com a roupa que eu dei com os sapatos que eu comprei e com a carteira recheada de notas que eu ganhei pra você Tenho orgulho sabe BONITÃO Desvencilhase dela Pois então veja se na próxima vez não esconde dinheiro no decote Tenho certeza de que a Matilde não é capaz de um gesto feio desses MARLI Ela é capaz de coisas muito piores Se você quiser eu lhe conto BONITÃO Bruscamente Não quero ouvir nada Quero é que você vá pra casa MARLI Decepcionada Você não vai comigo BONITÃO Não vou ficar um pouco mais por aqui Vá na frente que daqui a pouco eu apareço por lá MARLI Enciumada E o que é que você vai ficar fazendo na rua a uma hora dessas BONITÃO Com muita seriedade Ora mulher eu preciso trabalhar Acende um cigarro abstraindose da presença de Marli que o fita como um cão escorraçado pelo dono Só então este se mostra intrigado com a cruz no meio da praça Examinaa curiosamente e por fim dirigese a ZédoBurro É sua Zé balança a cabeça em sinal afirmativo Marli vai até à escada da igreja sentase num degrau sem se incomodar com Rosa deitada mais acima tira os sapatos e movimenta os dedos doloridos BONITÃO Nota a igreja faz uma associação de idéias Encomenda ZÉ Não promessa BONITÃO A princípio parece não entender depois ri Gozado ZÉ Não acho BONITÃO Não falei por mal Eu também sou meio devoto Até uma vez fiz promessa pra Santo Antônio ZÉ Casamento BONITÃO Não ela era casada ZÉ E conseguiu a graça BONITÃO Consegui O marido passou uma semana viajando ZÉ E o senhor pagou a promessa BONITÃO Não pra não comprometer o santo ZÉ Nunca se deve deixar de pagar uma promessa Mesmo quando é dessas de comprometer o santo Garanto que da próxima vez Santo Antônio vai se fingir de surdo E tem razão BONITÃO O senhor compreende Santo Antônio ia ficar mal se soubessem que foi ele quem fez o trouxa viajar Nota que Marli ainda não se foi Que é que você ainda está fazendo aí MARLI Esperando você BONITÃO Vai a ela Já lhe disse que vou depois Vai ficar agora grudada em mim MARLI Levantase Escute Bonitão você não podia deixar eu ficar ao menos com aquela nota BONITÃO Já lhe disse que não Não insista MARLI Mas eu preciso pagar o quarto BONITÃO O quarto é seu não é meu MARLI Mas o dinheiro é meu É justo que eu fique ao menos com algum BONITÃO É justo por quê MARLI Porque fui eu que trabalhei BONITÃO E desde quando trabalhar dá direito a alguma coisa Quem lhe meteu na cabeça essas idéias Olhaa de cima a baixo com desconfiança Está virando comunista Marli fitao com ódio e sai bruscamente pela direita Bonitão acompanhaa com o olhar e depois sorri tira o dinheiro do bolso e torna a contálo ZÉ Candidamente Esse dinheiro é dela mesmo BONITÃO Guarda o dinheiro Bem esta é uma maneira de olhar as coisas E toda coisa tem pelo menos duas maneiras de ser olhada Uma de lá pra cá outra de cá pra lá Entendeu ZÉ Não BONITÃO Não vale a pena explicar É uma questão de sensibilidade ZÉ O senhor é marido dela BONITÃO Não sou assim uma espécie de fiscal do imposto de renda Sobe como se fosse sair mas se detém diante de Rosa cujo vestido levantado deixa ver um palmo de coxa ROSA Abre os olhos sentindo que está sendo observada Que é BONITÃO Nada estava só olhando Rosa conserta o vestido BONITÃO Não deve ser lá muito confortável essa cama Rosa olhao com raiva BONITÃO Olhaa mais detidamente E olhe que você bem merece coisa melhor ROSA Diga isso a ele Aponta ZédoBurro BONITÃO A ele ROSA Meu marido BONITÃO Ah você também veio pagar promessa ROSA Eu não ele E por causa dele estou dormindo aqui no batente de uma igreja como qualquer mendiga Sentase ZÉ Não deve faltar muito para abrir a igreja O senhor sabe que horas são BONITÃO Consulta o relógio Um quarto para as cinco ZÉ Sabe a que horas abre a igreja BONITÃO Não não é bem o meu ramo ZÉ Mas às seis horas deve ter missa Hoje é o dia de Santa Bárbara ROSA Ressentida Às seis horas Tenho que agüentar mais de uma hora ainda neste batente duro E a promessa não é minha BONITÃO É capaz da porta da sacristia já estar aberta ZÉ O senhor acha BONITÃO Padre acorda cedo ZÉ Às cinco horas BONITÃO Então tem que se preparar para a missa das seis ZÉ É verdade BONITÃO Por que o senhor não vai ver ZÉ É Hesita um pouco BONITÃO A porta é do lado de lá ZÉ Rosa você vigia a cruz eu vou dar a volta não demoro Sai BONITÃO Pode ir sem susto que eu ajudo a tomar conta de sua cruz Depois que ZédoBurro sai das duas ROSA Só que uma ele carrega nas costas e a outra se quiser que vá atrás dele Levantase BONITÃO E você não é mulher para andar atrás de qualquer homem ao contrário é uma cruz que qualquer um carrega com prazer ROSA Com recato mas no fundo envaidecida Ora me deixe BONITÃO Palavra Seu marido não lhe faz justiça Isso não é trato que se dê a uma mulher mesmo sendo mulher da gente ROSA Se ele faz pouco de mim faz pouco do que é dele BONITÃO Não discuto Só acho que você não é mulher para dormir em batente de igreja Tem qualidades para exigir mais boa cama com colchão e melhor companhia ROSA Não fale em cama pra quem tem o corpo moído como eu BONITÃO Tão cansada assim ROSA Duas noites sem dormir sete léguas no calcanho BONITÃO Sete léguas Quantos quilômetros ROSA Sei lá só sei que sete vezes amaldiçoei aquele dia em que fui roubar caju com ele na roça dos padres BONITÃO Ah foi assim ROSA A gente faz cada besteira BONITÃO Quanto tempo faz ROSA Oito anos BONITÃO E você casou com ele ROSA Casei BONITÃO Sem gostar ROSA Depois de um tempo Gostava sim Sabe na roça o homem é feio magro sujo e mal vestido Ele até que era dos melhores Tinha um sítio BONITÃO E daí ROSA Daí eu achei que ele garantia tudo que eu queria da vida homem e casa A gente quando é franga com licença da palavra tem merda na cabeça BONITÃO Algo interessado Ele tem um sítio é ROSA Tinha agora tem só um pedaço Dividiu o resto com os lavradores pobres BONITÃO Por quê ROSA Fazia parte da promessa BONITÃO Que é que está esperando Virar santo ROSA Não brinque Pelo caminho tinha uma porção de gente querendo que ele fizesse milagre E não duvide Ele é capaz de acabar fazendo Se não fosse a hora garanto que tinha uma romaria aqui atrás dele BONITÃO Depois de cumprir a promessa ele vai voltar pra roça ROSA Vai BONITÃO E você ROSA Também Por quê BONITÃO Se você viesse pra cidade eu podia lhe garantir um bonito futuro ROSA Fazendo o quê BONITÃO Isso depois se via ROSA Eu não sei fazer nada BONITÃO Seguraa por um braço Mulheres como você não precisam saber coisa alguma a não ser o que a natureza ensinou Rosa puxa o braço bruscamente depois de manter por alguns segundos um olhar de desafio ROSA Não faça isso Ele pode voltar de repente BONITÃO Ele deve ter ido acordar o padre Volta a aproximarse dela ROSA Desvencilhase dele novamente Me solte Volta a sentarse na escada Eu queria era dormir Dava a vida por uma cama com um lençol branco e uma bacia dágua quente onde meter os pés BONITÃO Eu posso lhe arranjar um hotelzinho aqui perto Rosa lançalhe um olhar hostil BONITÃO Isso sem segundas intenções só pra você dormir descansar dessa romaria ROSA Não quero me meter em encrencas BONITÃO Não há nenhum perigo de encrenca Sou muito cotado com o porteiro do hotel e tenho boas relações com a polícia Nesta zona todos respeitam o Bonitão ROSA Quase sensualmente Bonitão BONITÃO Vaidoso É um apelido ROSA Olhao de cima a baixo BONITÃO Sentase junto dela ROSA Não chegue perto estou muito suada BONITÃO No hotel tem banheiro para quem andou sete léguas um banho de chuveiro e depois uma cama com colchão de mola ROSA Colchão de mola mesmo BONITÃO Então ROSA Nunca dormi num colchão de mola Deve ser bom BONITÃO Uma delícia Entra ZédoBurro pela direita Bonitão levantase ZÉ Tudo fechado Tem jeito não ROSA Revoltada E eu que agüente este batente duro até Deus sabe lá que horas ZÉ Paciência Rosa Seu sacrifício fica valendo ROSA Pra quem Pra Santa Bárbara Eu não fiz promessa nenhuma ZÉ Oxente Melhor ainda Amanhã quando você fizer a santa já está lhe devendo ROSA Nunca vi santo pagar dívida Volta a deitarse no degrau BONITÃO Assumindo um ar tão eclesiástico quanto possível A senhora faz mal em ser tão descrente Quem sabe se Santa Bárbara já não está providenciando o pagamento dessa dívida E quem sabe se não escolheu a mim pra pagador ZÉ Muito ingenuamente O senhor não era fiscal do imposto de renda Agora é pagador de Santa Bárbara BONITÃO Meu caro com o custo de vida aumentando dia a dia a gente tem que se virar Mas não é esse o caso Digo que Santa Bárbara já deve estar tratando de liquidar o débito hoje contraído com sua senhora porque me fez passar por aqui esta noite ZÉ Não vejo nada de mais nisso BONITÃO Porque o senhor não sabe que eu posso em cinco minutos arranjar uma boa cama com colchão de mola num hotel perto daqui ZÉ Pra ela BONITÃO E pro senhor também ZÉ Eu não posso Tenho que esperar abrir a igreja Se soubesse que não iam roubar a cruz BONITÃO Rapidamente Oh não a cruz não deve ficar sozinha Esta zona está cheia de ladrões A cruz é de madeira e a madeira está caríssima ZÉ É o que eu acho Não devo sair daqui BONITÃO Mas eu posso ficar tomando conta enquanto o senhor e sua senhora vão descansar ZÉ O senhor BONITÃO E por que não ZÉ Mas a igreja pode demorar a abrir Pelo menos uma hora ainda BONITÃO Eu espero Sua esposa me contou a caminhada que fizeram o senhor carregando nas costas essa cruz através de léguas e léguas para cumprir uma promessa Isso me comoveu ZÉ Mas não é justo Não foi o senhor quem fez a promessa ROSA Ele está querendo ajudar Zé ZÉ Mas não é direito Eu prometi cumprir a promessa sozinho sem ajuda de ninguém E essa história de dormir no hotel não está no trato BONITÃO E sua senhora está no trato ZÉ Rosa Não ela pode ir BONITÃO Nesse caso se quiser que eu leve sua senhora ao menos ela descansa enquanto espera pelo senhor ZÉ Você quer Rosa Quer ir esperar por mim no hotel Voltase para Bonitão É hotel decente BONITÃO Fingindose ofendido Ora o senhor acha que ia indicar ZÉ Desculpe é que sempre ouvi dizer que aqui na cidade BONITÃO Pode confiar em mim ZÉ É longe daqui BONITÃO Não basta subir aquela ladeira ZÉ Que é que você diz Rosa ROSA Percebendo o jogo de Bonitão Quero não Zé Prefiro ficar aqui com você ZÉ Ainda agora mesmo você estava se queixando BONITÃO Não é pra menos Deve estar exausta Sete léguas ZÉ Afinal de contas você tem razão a promessa é minha não é sua Vá com o moço não tenha acanhamento BONITÃO Eu vou com ela até lá apresento ao porteiro que é meu conhecido sim porque uma mulher sozinha o senhor sabe eles não deixam entrar depois volto para lhe dizer o número do quarto Daqui a pouco depois de cumprir a sua promessa o senhor vai pra lá ZÉ Se o senhor fizesse isso era um grande favor Eu não posso me afastar daqui BONITÃO Nem deve Primeiro Santa Bárbara ROSA Zé é melhor eu ficar com você ZÉ Pra que Rosa Assim você vai logo descansar numa boa cama não precisa ficar aí deitada nesse batente frio BONITÃO Um perigo Pode pegar uma pneumonia ROSA Inicia a saída Pára hesitante Pressente o perigo que vai correr Procura com o olhar fazer ZédoBurro compreender o seu receio Zé ZÉ Ahn sim Enfia a mão no bolso tira um maço de notas Pode ser que precise pagar adiantado ROSA Recebe o dinheiro Encara o marido Talvez seja melhor depois de entregar a cruz você mandar também rezar uma missa em ação de graças ZÉ Sem entender o alcance da sugestão É não é má idéia Rosa sobe a ladeira e Bonitão a segue BONITÃO Saindo Volto num minuto ZÉ Está bem Sentase ao pé da cruz e procura uma maneira de apoiar o corpo sobre ela Aos poucos é vencido pelo sono As luzes se apagam em resistência Segundo Quadro As luzes voltam a acenderse lentamente até dia claro Ouvemse distante ruídos esparsos da cidade que acorda Um ou outro buzinar foguetes estouram saudando Iansan a Santa Bárbara nagô e o sino da igreja começa a chamar para a missa das seis Mas nada disso acorda ZédoBurro Entra pela ladeira a Beata Toda de preto véu na cabeça passinho miúdo vem apressada como se temesse chegar atrasada Passa por Zédo Burro e a cruz sem notálos Pára diante da escada e resmunga Fica a critério da direção utilizar neste quadro figurantes que descerão a ladeira e entrarão na igreja BEATA Porta fechada É sempre assim A gente corre com medo de chegar atrasada e quando chega aqui a porta está fechada Por que não abrem primeiro a porta pra depois tocar o sino Não primeiro tocam o sino depois abrem a porta Isso é esse sacristão Pára de resmungar ao ver a cruz Ajeita os óculos como se não acreditasse no que está vendo Aproximase e examina detalhadamente a cruz e o seu dono adormecido Sua expressão é da maior estranheza Virgem Santíssima Neste momento abrese a porta da igreja e surge o Sacristão É um homem de perto de 50 anos Sua mentalidade porém anda aí pelos quatorze Usa óculos de grossas lentes é míope O cabelo teima em cairlhe na testa acentuando a aparência de retardado mental Ele parece bêbedo de sono Boceja largamente ruidosamente depois de abrir a primeira banda da porta Espreguiçase e solta um longo gemido Depois que abre toda a porta encostase por um momento no portal e cochila sem dar pela Beata que se aproxima BEATA Dálhe uma leve cotovelada Ei rapaz SACRISTÃO Desperta muito assustado Sim Padre já vou BEATA Que padre coisa nenhuma SACRISTÃO Ah é a senhora BEATA Vou me queixar ao Padre Olavo dessa mania de bater o sino antes de abrir a porta da igreja Eu ouço o toque venho pondo as tripas pela boca chego aqui e a porta ainda está fechada SACRISTÃO Também por que a senhora vem logo na missa das seis Por que não vem mais tarde BEATA Malcriada Porque quero Porque não é da sua conta Aponta para a cruz Que é isso SACRISTÃO Isso o quê BEATA Está vendo não Uma cruz enorme no meio da praça SACRISTÃO Apura a vista Ah sim agora percebo é uma cruz de madeira e parece que há um homem dormindo junto dela BEATA Vista prodigiosa a sua Claro que é uma cruz de madeira e que há um homem junto dela O que eu quero saber é a razão disso SACRISTÃO Não sei como quer que eu saiba Por que a senhora não pergunta a ele BEATA Bruscamente Eu é que não vou perguntar coisa nenhuma SACRISTÃO Talvez ele tenha desgarrado da procissão BEATA Que procissão De Santa Bárbara A procissão ainda não saiu E já viu alguém carregar cruz em procissão Nem na do Senhor Morto Benzese e entra apressadamente na igreja O Sacristão aproximase de ZédoBurro curioso E quando entra Bonitão pela ladeira Ele vê a igreja aberta estranha BONITÃO Oxente SACRISTÃO Olhao aparvalhado É uma cruz mesmo BONITÃO E que pensou você que fosse Um canhão Aproximase de ZédoBurro Sono de pedra não acordou nem com os foguetes de Santa Bárbara Dizem que é assim que dormem as pessoas que têm a consciência tranqüila e a alma leve Cínico Eu também sou assim quando caio na cama é um sono só Sacode ZédoBurro Camarado oh meu camarado ZÉ Desperta Oh já é dia BONITÃO Já E a igreja já está aberta você pode entregar o carreto ZÉ Levantase com dificuldade os músculos adormecidos e doloridos É verdade BONITÃO Eu voltei aqui pra lhe dizer o número do quarto de sua mulher É o 27 Um bom quarto no segundo andar Apressadamente Pelo menos foi o que o porteiro me garantiu ZÉ Ah obrigado BONITÃO O hotel é aquele ali o primeiro logo depois de subir a ladeira e dobrar à direita Hotel Ideal Eu demorei um pouco porque fiquei jogando damas com o porteiro SACRISTÃO Vivamente interessado Ganhou BONITÃO Empatamos SACRISTÃO Ah eu também sou louco por damas BONITÃO Examinao de cima a baixo Francamente ninguém diz Padre Olavo surge na porta da igreja SACRISTÃO Como se tivesse sido surpreendido em falta Padre Olavo ZÉ Preciso falar com ele Sacristão dirigese apressadamente à igreja Pára na porta ante o olhar intimidador de Padre Olavo É um padre moço ainda Deve contar no máximo quarenta anos Sua convicção religiosa aproximase do fanatismo Talvez no fundo isto seja uma prova de falta de convicção e autodefesa Sua intolerância que o leva por vezes a chocarse contra princípios de sua própria religião e a confundir com inimigos aqueles que estão ao seu lado não passa talvez de uma couraça com que se mune contra uma fraqueza consciente PADRE Para o Sacristão Que está fazendo aí SACRISTÃO À guisa de defesa Estava conversando com aqueles homens PADRE E eu lá dentro à sua espera para ajudar à missa Repara em Bonitão e ZédoBurro Quem são SACRISTÃO Não sei Um deles quer falar com o senhor ZÉ Adiantase Sou eu Padre Inclinase respeitoso e beijalhe a mão PADRE Agora está na hora da missa Mais tarde se quiser ZÉ É que eu vim de muito longe Padre Andei sete léguas PADRE Sete léguas Para falar comigo ZÉ Não pra trazer esta cruz PADRE Olha a cruz detidamente E como a trouxe num caminhão ZÉ Não Padre nas costas SACRISTÃO Expandindo infantilmente a sua admiração Menino PADRE Lançalhe um olhar enérgico Psiu Cale a boca Seu interesse por ZédoBurro cresce Sete léguas com essa cruz nas costas Deixe ver seu ombro Zédo Burro despe um lado do paletó abre a camisa e mostra o ombro Sacristão espichase todo para ver e não esconde a sua impressão SACRISTÃO Está em carne viva PADRE Parece satisfeito com o exame Promessa ZÉ Balança afirmativamente a cabeça Pra Santa Bárbara Estava esperando abrir a igreja SACRISTÃO Deve ter recebido dela uma graça muito grande Padre faz um gesto nervoso para que o Sacristão se cale ZÉ Graças a Santa Bárbara a morte não levou o meu melhor amigo PADRE Padre parece meditar profundamente sobre a questão Mesmo assim não lhe parece um tanto exagerada a promessa E um tanto pretensiosa também ZÉ Nada disso seu Padre Promessa é promessa É como um negócio Se a gente oferece um preço recebe a mercadoria tem que pagar Eu sei que tem muito caloteiro por aí Mas comigo não É toma lá dá cá Quando Nicolau adoeceu o senhor não calcula como eu fiquei PADRE Foi por causa desse Nicolau que você fez a promessa ZÉ Foi Nicolau foi ferido seu Padre por uma árvore que caiu num dia de tempestade SACRISTÃO Santa Bárbara A árvore caiu em cima dele ZÉ Só um galho que bateu de raspão na cabeça Ele chegou em casa escorrendo sangue de meter medo Eu e minha mulher tratamos dele mas o sangue não havia meio de estancar PADRE Uma hemorragia ZÉ Só estancou quando eu fui no curral peguei um bocado de bosta de vaca e taquei em cima do ferimento PADRE Enojado Mas meu filho isso é atraso Uma porcaria ZÉ Foi o que o doutor disse quando chegou Mandou que tirasse aquela porcaria de cima da ferida que senão Nicolau ia morrer PADRE Sem dúvida ZÉ Eu tirei Ele limpou bem a ferida e o sangue voltou que parecia uma cachoeira E que de que o doutor fazia o sangue parar Ensopava algodão e mais algodão e nada Era uma sangueira que não acaba mais Lá pelas tantas o homenzinho virou pra mim e gritou corre homem de Deus vai buscar mais bosta de vaca senão ele morre PADRE E o sangue estancou ZÉ Na hora Pois é um santo remédio Seu vigário sabia Não sendo de vaca de cavalo castrado também serve Mas há quem prefira teia de aranha PADRE Adiante adiante Não estou interessado nessa medicina ZÉ Bem o sangue estancou Mas Nicolau começou a tremer de febre e no dia seguinte aconteceu uma coisa que nunca tinha acontecido eu saí de casa e Nicolau ficou Não pôde se levantar Foi a primeira vez que isso aconteceu em seis anos eu saí fui fazer compras na cidade entrei no Bar do Jacob pra tomar uma cachacinha passei na farmácia de seu Zequinha pra saber das novidades tudo isso sem Nicolau Todo mundo reparou porque quem quisesse saber onde eu estava era só procurar Nicolau Se eu ia na missa ele ficava esperando na porta da igreja PADRE Na porta Por que ele não entrava Não é católico ZÉ Tendo uma alma tão boa Nicolau não pode deixar de ser católico Mas não é por isso que ele não entra na igreja É porque o vigário não deixa Com grande tristeza Nicolau teve o azar de nascer burro de quatro patas PADRE Burro Então esse que você chama de Nicolau é um burro Um animal ZÉ Meu burro sim senhor PADRE E foi por ele por um burro que fez essa promessa ZÉ Foi é bem verdade que eu não sabia que era tão difícil achar uma igreja de Santa Bárbara que ia precisar andar sete léguas pra encontrar uma aqui na Bahia BONITÃO Que assistiu a toda a cena um pouco afastado solta uma gargalhada grosseira Ele se estrepou Padre Olavo olhao surpreso como se só agora tivesse notada a sua presença Bonitão pára de rir quase de súbito desarmado pelo olhar enérgico do padre ZÉ Mas mesmo que soubesse eu não deixava de fazer a promessa Porque quando vi que nem as rezas do preto Zeferino davam jeito PADRE Rezas Que rezas ZÉ Seu vigário me disculpe mas eu tentei tudo Preto Zeferino é rezador afamado na minha zona Sarna de cachorro bicheira de animal peste de gado tudo isso ele cura com duas rezas e três rabiscos no chão Todo o mundo diz e eu mesmo uma vez estava com uma dor de cabeça danada que não havia meio de passar Chamei preto Zeferino ele disse que eu estava com o Sol dentro da cabeça Botou uma toalha na minha testa derramou uma garrafa dágua rezou uma oração o sol saiu e eu fiquei bom PADRE Você fez mal meu filho Essas rezas são orações do demo ZÉ Do demo não senhor PADRE Do demo sim Você não soube distinguir o bem do mal Todo homem é assim Vive atrás do milagre em vez de viver atrás de Deus E não sabe se caminha para o céu ou para o inferno ZÉ Para o inferno Como pode ser Padre se a oração fala em Deus Recita Deus fez o Sol Deus fez a luz Deus fez toda a claridade do Universo grandioso Com sua Graça eu te benzo te curo Vaite Sol da cabeça desta criatura para as ondas do Mar Sagrado com os santos poderes do Padre do Filho e do Espírito Santo Depois rezou um Padre Nosso e a dor de cabeça sumiu no mesmo instante SACRISTÃO Incrível PADRE Meu filho esse homem era um feiticeiro ZÉ Como feiticeiro se a reza é pra curar PADRE Não é pra curar é para tentar E você caiu em tentação ZÉ Bem eu só sei que fiquei bom Noutro tom Mas com o Nicolau não houve reza que fizesse ele levantar Preto Zeferino botou o pé na cabeça do coitado disse uma porção de orações e nada Eu já estava começando a perder a esperança Nicolau de orelhas murchas magro de se contar as costelas Não comia não bebia nem mexia mais com o rabo para espantar as moscas Eu vi que nunca mais ia ouvir os passos dele me seguindo por toda a parte como um cão Até me puseram um apelido por causa disso ZédoBurro Eu não me importo Não acho que seja ofensa Nicolau não é um burro como os outros É um burro com alma de gente E faz isso por amizade por dedicação Eu nunca monto nele prefiro andar a pé ou a cavalo Mas de um modo ou de outro ele vem atrás Se eu entrar numa casa e me demorar duas horas duas horas ele espera por mim plantado na porta Um burro desses seu padre não vale uma promessa PADRE Secamente contendo ainda a sua indignação Adiante ZÉ Foi então que comadre Miúda me lembrou por que eu não ia no candomblé de Maria de Iansan PADRE Candomblé ZÉ Sim é um candomblé que tem duas léguas adiante da minha roça Com a consciência de quem cometeu uma falta mas não muito grave Eu sei que seu vigário vai ralhar comigo Eu também nunca fui muito de freqüentar terreiro de candomblé Mas o pobre Nicolau estava morrendo Não custava tentar Se não fizesse bem mal não fazia E eu fui Contei pra MãedeSanto o meu caso Ela disse que era mesmo com Iansan dona dos raios e das trovoadas Iansan tinha ferido Nicolau pra ela eu devia fazer uma obrigação quer dizer uma promessa Mas tinha que ser uma promessa bem grande porque Iansan que tinha ferido Nicolau com um raio não ia voltar atrás por qualquer bobagem E eu me lembrei então que Iansan é Santa Bárbara e prometi que se Nicolau ficasse bom eu carregava uma cruz de madeira de minha roça até a Igreja dela no dia de sua festa uma cruz tão pesada como a de Cristo PADRE Como se anotasse as palavras Tão pesada como a de Cristo O senhor prometeu isso a ZÉ A Santa Bárbara PADRE A Iansan ZÉ É a mesma coisa PADRE Grita Não é a mesma coisa Controlase Mas continue ZÉ Prometi também dividir minhas terras com os lavradores pobres mais pobres que eu PADRE Dividir Igualmente ZÉ Sim padre igualmente SACRISTÃO E Nicolau quero dizer o burro ficou bom ZÉ Sarou em dois tempos Milagre Milagre mesmo No outro dia já estava de orelha em pé relinchando E uma semana depois todo o mundo me apontava na rua Lá vai ZédoBurro com o burro de novo atrás Ri E eu nem dava confiança E Nicolau muito menos Só eu e ele sabíamos do milagre Como que retificando Eu ele e Santa Bárbara PADRE Procurando inicialmente controlarse Em primeiro lugar mesmo admitindo a intervenção de Santa Bárbara não se trataria de um milagre mas apenas de uma graça O burro podia terse curado sem intervenção divina ZÉ Como Padre se ele sarou de um dia pro outro PADRE Como se não o ouvisse E além disso Santa Bárbara se tivesse de lhe conceder uma graça não iria fazêlo num terreiro de candomblé ZÉ É que na capela do meu povoado não tem uma imagem de Santa Bárbara Mas no candomblé tem uma imagem de Iansan que é Santa Bárbara PADRE Explodindo Não é Santa Bárbara Santa Bárbara é uma santa católica O senhor foi a um ritual fetichista Invocou uma falsa divindade e foi a ela que prometeu esse sacrifício ZÉ Não Padre foi a Santa Bárbara Foi até a igreja de Santa Bárbara que prometi vir com a minha cruz E é diante do altar de Santa Bárbara que vou cair de joelhos daqui a pouco pra agradecer o que ela fez por mim PADRE Dá alguns passos de um lado para outro de mão no queixo e por fim detémse diante de ZédoBurro em atitude inquisitorial Muito bem E que pretende fazer depois depois de cumprir a sua promessa ZÉ Não entendeu a pergunta Que pretendo Voltar pra minha roça em paz com a minha consciência e quite com a santa PADRE Só isso ZÉ Só PADRE Tem certeza Não vai pretender ser olhado como um novo Cristo ZÉ Eu PADRE Sim você que acaba de repetir a Via Crucis sofrendo o martírio de Jesus Você que presunçosamente pretende imitar o Filho de Deus ZÉ Humildemente Padre eu não quis imitar Jesus PADRE Corta terrível Mentira Eu gravei suas palavras Você mesmo disse que prometeu carregar uma cruz tão pesada quanto a de Cristo ZÉ Sim mas isso PADRE Isso prova que você está sendo submetido a uma tentação ainda maior ZÉ Qual Padre PADRE A de igualarse ao Filho de Deus ZÉ Não Padre PADRE Por que então repete a Divina Paixão Para salvar a humanidade Não para salvar um burro ZÉ Padre Nicolau PADRE É um burro com nome cristão Um quadrúpede um irracional A Beata sai da igreja e fica assistindo à cena do alto da escada ZÉ Mas Padre não foi Deus quem fez também os burros PADRE Mas não à Sua semelhança E não foi para salválos que mandou seu Filho Foi por nós por você por mim pela Humanidade ZÉ Angustiadamente tenta explicarse Padre é preciso explicar que Nicolau não é um burro comum o senhor não conhece Nicolau por isso é um burro com alma de gente PADRE Pois nem que tenha alma de anjo nesta igreja você não entrará com essa cruz Dá as costas e dirigese à igreja O sacristão trata logo de segui lo ZÉ Em desespero Mas Padre eu prometi levar a cruz até o altarmor Preciso cumprir a minha promessa PADRE Fizessea então numa igreja Ou em qualquer parte menos num antro de feitiçaria ZÉ Eu já expliquei PADRE Não se pode servir a dois senhores a Deus e ao diabo ZÉ Padre PADRE Um ritual pagão que começou num terreiro de candomblé não pode terminar na nave de uma igreja ZÉ Mas Padre a igreja PADRE A igreja é a casa de Deus Candomblé é o culto do diabo ZÉ Padre eu não andei sete léguas para voltar daqui O senhor não pode impedir a minha entrada A igreja não é sua é de Deus PADRE Vai desrespeitar a minha autoridade ZÉ Padre entre o senhor e Santa Bárbara eu fico com Santa Bárbara PADRE Para o Sacristão Feche a porta Quem quiser assistir à missa que entre pela porta da sacristia Lá não dá para passar essa cruz Entra na igreja A Beata entra também apressadamente atrás do padre O Sacristão prontamente começa a fechar a porta da igreja enquanto ZédoBurro no meio da praça nervos tensos olhos dilatados numa atitude de incompreensão e revolta parece disposto a não arredar pé dali Bonitão um pouco afastado observa tendo nos lábios um sorriso irônico A porta da igreja se fecha de todo enquanto um foguetório tremendo saúda Iansan CAI O PANO LENTAMENTE Segundo Ato Primeiro Quadro Aproximadamente duas horas depois Abriuse a vendola e o Galego aparece trepado num caixote amarrando um cordão com bandeirolas vermelhas e brancas que vai da porta da venda ao sobrado do lado oposto Zé e sua cruz continuam no meio da praça Ouvese um pregão Beiju olha o beiju Logo após surge no alto da ladeira uma preta em trajes típicos com um tabuleiro na cabeça Ela desce a ladeira e ao passar pelo Galego saúda MINHA TIA Iansan lhe dê um bomdia GALEGO Espanhol Gracias Minha Tia Minha Tia vai até à igreja e aí junto dos degraus pára A critério da direção e em momentos em que não prejudiquem a ação transeuntes cruzarão a praça durante todo o ato MINHA TIA Para o Galego Quer vir aqui dar uma mãozinha pra sua tia meu branco Galego apressase a ir ajudála Retira primeiro o cavalete que está sobre o tabuleiro abreo depois ajudaa a tirar o tabuleiro da cabeça e colocálo em cima do cavalete MINHA TIA Santa Bárbara lhe pague Nota ZédoBurro Oxente Que é aquilo GALEGO Não sei Já estava acá quando abri a venda Parece maluco Volta a pregar as bandeirolas enquanto Minha Tia põese a arrumar o fogareiro procura acendêlo Desce a ladeira passo mole preguiçoso Dedé CospeRima Mulato cabeleira pixaim sob o surrado chapéu de coco um adorno necessário à sua profissão de poeta comerciante Traz embaixo do braço uma enorme pilha de folhetos abecês romances populares em versos E dois cartazes um no peito outro nas costas Num se lê ABC da Mulata Esmeralda uma obraprima e no outro Saiu agora tá fresco ainda O que o cego Jeremias viu na Lua DEDÉ declama Bom dia Galego amigo dia assim eu nunca vi para saudar Iansan não repare eu lhe pedi me empreste por obséquio dois dedos de parati GALEGO É com esta história de hacer versos usted sempre me leva na conversa entra na venda e dá a volta por trás do balcão É boa mesmo essa do cego Jeremias Serve o parati DEDÉ Bombástico teatral Uma epopéia Uma nova Ilíada onde Tróia é a Lua e o cavalo de Tróia é o cavalo de São Jorge Tira um exemplar e coloca sobre o balcão Em paga do parati GALEGO Si pêro yo prefiro la otra la da mulata Esmeralda DEDÉ Uma prova de bom gosto Galego Troca os folhetos É também uma obraprima Lembra Castro Alves modéstia à parte Bebe o parati de um trago Referese às bandeirinhas Bandeirinhas vermelhas e brancas as cores de Iansan Depois diz que não crê em candomblé GALEGO Yo no creo pêro hay quem crea E yo soy um comerciante DEDÉ Somos dois Estende novamente o cálice Mais uma dose Esta eu pago amanhã Galego faz cara feia mas enche de novo o cálice A Beata entra da direita e detémse junto a Minha Tia ao ver ZédoBurro Mostrase surpresa e indignada BEATA É o cúmulo Ainda está aí MINHA TIA Não vai abrir a igreja hoje Iaiá Dia de Santa Bárbara BEATA Lança um olhar acusador a ZédoBurro Não enquanto esse indivíduo não for embora MINHA TIA Que foi que ele fez BEATA Quer entrar com essa cruz na igreja MINHA TIA Só isso BEATA E você acha pouco Acha que Padre Olavo ia permitir MINHA TIA Oxente Por que não Foi promessa que ele fez BEATA Foi Mas promessa de candomblé Pra uma tal de Iansan que Deus me perdoe Benzese Dirigese para a esquerda e ao passar por ZédoBurro insultao Herege Sobe a ladeira seguida do olhar de comovedora incompreensão de ZédoBurro DEDÉ Que ouviu a conversa Para o Galego Vou ver se Minha Tia me dá um abará Atravessa a praça Não sem mostrarse intrigado e curioso ao passar por ZédoBurro Bom dia Minha Tia MINHA TIA Bom dia seu Dedé Oferece Acarajé abará beiju Vem benzer DEDÉ Aponta Um abará Pago daqui a pouco quando entrar o primeiro dinheiro MINHA TIA Eu já sabia Entrega o abará embrulhado numa folha de bananeira DEDÉ Referindose a ZédoBurro Que história é essa MINHA TIA O Senhor ouviu DEDÉ Ouvi MINHA TIA Com respeito Obrigação pra Iansan Toca com as pontas dos dedos o chão e a testa DEDÉ Por isso o Padre não deixou ele entrar MINHA TIA É coitado DEDÉ Chegou a fechar a porta MINHA TIA O senhor entende DEDÉ Entendo não MINHA TIA O Padre é um homem tão bom DEDÉ A senhora acha MINHA TIA Então Ele é tão amigo dos pobres faz tanta caridade Sei não O Guarda entra pela direita Vai direto a ZédoBurro É um homem que procura safarse dos problemas que se lhe apresentam Sua noção do dever coincide exatamente com o seu temor à responsabilidade Seu maior desejo é que nada aconteça a fim de que a nada ele tenha que impor a sua autoridade No fundo essa autoridade o constrange terrivelmente e mais ainda o dever de exercêla GUARDA Olá amigo ZÉ Olá GUARDA Referese à cruz É para a procissão de Santa Bárbara ZÉ Não GUARDA Porque a procissão não sai daqui sai do Mercado aqui perto e vai até à igreja da Saúde ZÉ Não tenho nada com essa procissão GUARDA E o senhor está aqui fazendo o quê Esperando a festa Ainda é muito cedo São oito e meia da manhã Só na parte da tarde é que isso pega fogo ZÉ Estou aqui desde quatro e meia da manhã GUARDA Quatro e meia Coça a cabeça preocupado O senhor deve ser um devoto e tanto Mas acontece que escolheu um mau lugar ZÉ A culpa não é minha GUARDA Sim eu sei não foi o senhor quem inventou a festa de Santa Bárbara Mas eu também não tenho culpa de ser guarda Minha obrigação é facilitar o trânsito tanto quanto possível ZÉ Sinto muito mas não posso sair daqui GUARDA Sua paciência começa a esgotarse Ai ai ai ai ai eu estou querendo me entender com o senhor ZÉ Irritandose também um pouco Eu também estou querendo me entender com o senhor e com todo o mundo Mas acho que ninguém me entende Dedé CospeRima que assistiu a toda a cena não resiste à curiosidade e vem presenciála mais de perto Minha Tia também acompanha tudo com interesse ZÉ Aquela mulher me chamou de herege o Padre fechou a porta da igreja como se eu fosse Satanás em pessoa Eu ZédoBurro devoto de Santa Bárbara DEDÉ Mas afinal o que é que o senhor quer ZÉ Que me deixem colocar esta cruz dentro da igreja nada mais Depois prometo ir embora E já estou vexado mesmo por isto DEDÉ Foi promessa Promessa que ele fez GUARDA Raciocina operação que lhe parece custar tremendo esforço físico Promessa colocar a cruz dentro da igreja Não vejo dificuldade nenhuma nisso Falase com o padre e ZÉ Se o senhor conseguir que ele abra a porta e me deixe entrar está tudo resolvido GUARDA Pensa mais um pouco vê que não há outra maneira de resolver o problema decidese Pois bem eu vou falar com ele Dirigese para a porta da igreja Ante os olhares de grande expectativa do Galego de Dedé de Minha Tia DEDÉ Não vou lá ajudar também porque eu e esse padre estamos de relações cortadas Sai GUARDA Bate na porta várias vezes sem resultado encosta o rosto na porta e chama Padre Abra um instante por favor Segundos após abrese uma fresta e surge por ela a cabeça do Sacristão receoso GUARDA Quero falar com o padre SACRISTÃO Certificase de que não há perigo abre um pouco mais a porta Entre Guarda tira o quepe e entra Sacristão fecha a porta rapidamente Rosa desce a ladeira Vem um pouco apressada como se temesse não mais encontrálo ali Mas quando vê ZédoBurro diminui o passo tranqüilizase em parte Não perde entretanto um certo ar culposo procura disfarçar ROSA Você ainda está aí Nota a igreja fechada A igreja não abriu ZÉ Abriu sim Mas o Padre não quer me deixar entrar com a cruz ROSA Por quê ZÉ Balança a cabeça na maior infelicidade Não sei Rosa não sei Há duas horas que tento compreender mas estou tonto tonto como se tivesse levado um coice no meio da testa Já não entendo nada parece que me viraram pelo avesso e estou vendo as coisas ao contrário do que elas são O céu no lugar do inferno o demônio no lugar dos santos ROSA Refletindo na própria experiência É isso mesmo de repente a gente percebe que é outra pessoa Que sempre foi outra pessoa é horrível ZÉ Mas não é possível Rosa Eu sempre fui um homem de bem Sempre temi a Deus ROSA Concentrada em seu problema Zé isso está parecendo castigo ZÉ Castigo Castigo por quê Por eu ter feito uma promessa tão grande Por ter sido no terreiro de Maria de Iansan Mas se santa Bárbara não estivesse de acordo com tudo isso não tinha feito o milagre ROSA Zé esqueça Santa Bárbara Pense um pouco em nós ZÉ Em nós ROSA Em mim Zé ZÉ Em você ROSA Sim Zé em mim sua mulher ZÉ Que é que você quer Não dormiu não descansou ROSA Sem fitálo Zé vamos embora daqui ZÉ Agora ROSA Sim agora mesmo ZÉ Não posso Você sabe que eu não posso voltar antes de chegar ao fim da promessa Não ia ter sossego o resto da vida ROSA Você acredita demais nas coisas Zé É porque você não pensa no que pode acontecer ROSA Mais do que já aconteceu ZÉ Que aconteceu A caminhada as noites sem dormir e agora ser xingado como a figura do diabo Tudo isso é nada comparado com o castigo que pode vir ROSA Mas se o Padre não quer deixar você entrar com a cruz que é que você ainda vai ficar fazendo aqui ZÉ O Guarda foi falar com ele Estou esperando Como que desculpandose por não pensar na situação dela Você se quiser pode ir comer qualquer coisa ROSA Ante a impossibilidade de comunicar a ele o seu problema Já tomei café no hotel ZÉ Não era bom o hotel que aquele camarada arranjou ROSA Muito bom Tinha até pia no quarto e colchão de mola ZÉ Fiquei um pouco preocupado ROSA Ferida pela falta de ciúmes dele Comigo ZÉ Você num hotel sozinha Cidade grande a gente nunca sabe Se bem que o moço garantiu que era hotel de família ROSA Não tinha então que ter cuidado O moço era de toda confiança Tão amável tão prestativo REPÓRTER Entra acompanhado do Fotógrafo Lá está ele Vai a Zé enquanto o Fotógrafo circula à procura de ângulos O Repórter é vivo e perspicaz Dirige um cumprimento entusiasta a ZédoBurro Bom dia amigo Aperta efusivamente a mão de ZédoBurro Parabéns O senhor é um herói ZÉ com estranheza Herói REPÓRTER Com entusiasmo Sim sete léguas carregando esta cruz Calcula o peso Pesada hem Sete léguas quarenta e dois quilômetros A maior marcha que eu fiz foi de vinte e quatro quilômetros no Serviço Militar E o fuzil não pesava tanto assim Ri mas seu riso murcha como um balão ante o ar de desconfiança de Rosa e ZédoBurro Oh desculpe eu sei que o senhor fez uma promessa A comparação não foi muito feliz Para o Fotógrafo Carijó pode bater uma chapa Posa de frente para ZédoBurro de caderno e lápis em punho Finja que está falando comigo ZÉ Começa a impacientarse Fingir que estou falando pra quê REPÓRTER E dentro de algumas horas o Brasil inteiro vai saber O senhor vai ficar famoso ZÉ Contrariado Mas eu não quero ficar famoso eu quero ROSA Interrompe em tom de repreensão Que é isso Zé Seja mais delicado com o moço Ele é da gazeta REPÓRTER Mulher dele ROSA Sou Também andei sete léguas meu pé tem cada calo dágua deste tamanho REPÓRTER Maravilhoso E em quanto tempo cobriram o percurso ROSA Não entendeu Como REPÓRTER Quero dizer quando saíram de lá de sua cidade ROSA Da roça Saímos ontem de manhãzinha Cinco horas da manhã REPÓRTER A que horas chegaram aqui ROSA Antes das cinco REPÓRTER Fizeram o percurso então em 24 horas Com uma cruz que deve pesar Olha interrogativamente para ZédoBurro ZÉ Contrariado Não sei não pesei REPÓRTER Por menos que pese é um record Sob este aspecto podemos considerar um grande feito esportivo Uma prova de resistência física para Rosa e de dedicação Rosa sorri envaidecida sentindose heroína também REPÓRTER Mas como nasceu a idéia dessa peregrinação As perguntas são feitas a ZédoBurro mas este recusase a respondêlas ROSA Não nasceu idéia nenhuma O burro adoeceu ia morrer ele fez promessa pra Santa Bárbara REPÓRTER O burro Que burro ROSA O Nicolau ZÉ Irritado Por quê O senhor também vai achar que o meu burro não vale uma promessa REPÓRTER Não de modo algum eu eu apenas não sabia então tudo isso quarenta e dois quilômetros a cruz tudo por causa de um burro Repentinamente antevendo o interesse que despertará a reportagem Fabuloso ROSA E não foi só isso Ele prometeu também repartir o sítio com aquela cambada de preguiçosos ZÉ Que preguiçosos Gente que quer trabalhar e não tem terra REPÓRTER Repartir o sítio digame o senhor é a favor da reforma agrária ZÉ Não entende Reforma agrária Que é isso REPÓRTER É o que o senhor acaba de fazer em seu sítio Redistribuição das terras entre aqueles que não as possuem ZÉ E não estou arrependido moço Fiz a felicidade de um bocado de gente e o que restou pra mim dá e sobra REPÓRTER Toma notas É a favor da reforma agrária ZÉ É bem verdade que se o meu burro não tivesse ficado doente eu não tinha feito isso REPÓRTER Mas e se todos os proprietários de terra fizessem o mesmo Se o governo resolvesse desapropriar as terras e dividilas entre os camponeses ZÉ Seria muito bem feito Cada um deve trabalhar o que é seu REPÓRTER Ofensiva É contra a exploração do homem pelo homem O senhor pertence a algum partido político ZÉ Com alguma vaidade dissimulada num sorriso modesto Já quiseram me fazer vereador qual ROSA O que atrapalhou foi o burro REPÓRTER O burro Por quê ROSA Aonde ele vai o burro vai atrás Se ele fosse eleito o burro também tinha que ser REPÓRTER É mas desta vez seu ZÉ ZédoBurro seu criado REPÓRTER seu ZédoBurro o senhor será eleito com burro e tudo Confidencial Escute aqui será que essa história da promessa não é um golpe para impressionar o eleitorado ZÉ Ofendido Golpe REPÓRTER E de mestre Avalio a agitação que o senhor fez com isso Pelas estradas no caminho até aqui deve terse juntado uma verdadeira multidão para vêlo passar ZÉ É tinha ROSA Muito moleque também REPÓRTER E imaginem a volta A chegada à sua cidade em carro aberto banda de música foguetes ZÉ O senhor está maluco Não vai haver nada disso REPÓRTER Vai Vai porque o meu jornal vai promover Só faço questão de uma coisa que o senhor nos dê a exclusividade Que não conceda entrevistas a mais ninguém Noutro tom É claro que o senhor terá uma compensação Faz com o indicador e o polegar um gesto característico e também a publicidade Primeira página com fotografias o senhor e sua senhora mandaremos fotografar também o burro em poucas horas o senhor será um herói nacional ZÉ Profundamente contrariado Moço eu acho que o senhor não me entendeu ninguém ainda me entendeu REPÓRTER Sem lhe dar atenção O diabo foi o senhor ter escolhido um dia como o de hoje Sábado Amanhã é domingo o jornal não sai Só segundafeira E o nosso Departamento de Promoções precisaria preparar a coisa Podemos dar o furo na edição de hoje mas o barulho mesmo só segundafeira Quando o senhor pretende voltar ZÉ Por mim já estava de volta Abrese parcialmente a porta da igreja O Sacristão deixa o Guarda passar e torna a fechála O Guarda vem ao encontro de ZédoBurro que o aguarda sem muita esperança GUARDA Balança a cabeça desanimado Não consegui nada ZÉ O senhor falou com o padre GUARDA Falei argumentei não adiantou E ainda tive que ouvir um sermão deste tamanho Ele acha que em vez de ir pedir para deixar o senhor entrar na igreja eu devia era leválo preso Claro que eu não vou fazer isso mas o senhor bem que podia ter arranjado uma promessinha menos complicada ROSA Também acho GUARDA Porque não adianta o senhor ficar aqui o padre já disse que não abre a porta e não abre mesmo eu conheço ele REPÓRTER Ótimo Mas isso é ótimo Assim temos um pretexto para adiar a entrega da cruz para segundafeira Dará tempo então de organizarmos tudo As entrevistas as apresentações no rádio e a sua volta triunfal com batedores e banda de música ZÉ Cada vez mais contrariado e mais infeliz Moço eu vim a pé e vou voltar a pé ROSA Ela vislumbrou nas palavras do Repórter uma possibilidade confusa de libertação ouviuas num entusiasmo crescente Oxente Não seja estúpido homem O moço está querendo ajudar a gente ZÉ Então ele que me ajude a convencer o vigário a abrir a porta REPÓRTER Eu vou já entrevistar o vigário Mas fique certo de uma coisa seja qual for o seu objetivo uma publicidadezinha não fará mal algum Pisca o olho para ZédoBurro que não percebe a insinuação Carijó bata mais uma chapa Para ZédoBurro Quer fazer o favor de carregar a cruz Para Rosa A senhora também ZédoBurro fica indeciso sem palavras para traduzir a sua indignação ROSA Vamos Zé Empurrao para baixo da cruz e colocase a seu lado numa atitude forçada O Guarda também procura discretamente aparecer na fotografia A cena é caricatural com Rosa escancarandose num sorriso de dentifrício ZédoBurro vergado ao peso da cruz e de sua imensa infelicidade E o Guarda de peito estufado disputando honrosamente a sua participação no acontecimento GALEGO Sai da venda apressado e dirigese ao Fotógrafo Um momento O senhor não podia fazer aparecer também o meu estabelecimento Sabe uma publicidadezinha Fotógrafo colocase de molde a aparecer no fundo a venda Galego corre para junto do balcão e posa REPÓRTER Ótimo Pode bater Carijó O Fotógrafo bate a chapa REPÓRTER Obrigado Esta vai sair hoje na primeira página Para o Fotógrafo Vamos agora entrevistar o vigário GUARDA É melhor o senhor ir pela porta da sacristia ZÉ Eu levo o senhor até lá REPÓRTER Não gosta da idéia Não acho melhor o senhor esperar aqui ZÉ Com decisão Mas eu quero ir com o senhor REPÓRTER Cede de má vontade Está bem Sai com ZédoBurro e o Fotógrafo Ouvemse buzinas insistentes GUARDA Garanto que agora o padre vai abrir a igreja Não há quem não tenha medo da imprensa Olha na direção da direita Eu vou pra lá que a coisa está piorando Sai pela direita Bonitão desce a ladeira e pára na vendola Rosa o vê e não esconde a sua emoção BONITÃO Para o Galego Uma dupla GALEGO Olá Bonitão Usted por aqui de madrugada Serve a cachaça ROSA Vai à venda e encostase no balcão ao lado de Bonitão Um café moço BONITÃO Ainda ROSA Ainda BONITÃO Não sei como você agüenta ROSA Eu também não BONITÃO Ele desconfiou de alguma coisa ROSA Nada Ele só pensa na cruz e na promessa BONITÃO Sabe que eu fui pra casa dormir e não consegui ROSA Por quê BONITÃO Fiquei pensando em você ROSA Melhor que não pense BONITÃO Está arrependida ROSA Estou BONITÃO Agora é um pouco tarde ROSA Não é não Uma noite a gente pode apagar BONITÃO A gente pode apagar uma porção de noites Isso não deixa marca ROSA Em mim deixou Nem sei como ele não vê Dá até raiva Dá vontade de contar tudo BONITÃO Não é má idéia Ele não é homem violento Podia era largar você aqui na cidade e voltar sozinho pra roça Isso resolvia tudo ROSA Resolvia o quê BONITÃO Sua vida Você tem futuro ROSA Adianta não Minha sina é essa mesma Às vezes eu tenho vontade sim de arrumar a trouxa e ganhar a estrada Mas não tenho coragem E se tivesse não ia saber pra onde ir BONITÃO Quando eu era menino fui guia de cego ROSA Não estou cega E sabia muito bem o que estava fazendo Como sei também que sou capaz de fazer de novo se ele não me levar daqui Mesmo sem querer BONITÃO Se você não se livrar dele vai acabar idiota como ele ROSA Procurando uma justificativa para sua falta de coragem Ele precisa de mim BONITÃO Ele tem o burro ROSA Estúpido BONITÃO Não quis comparar ROSA Ele é muito homem fique sabendo BONITÃO Se é assim por que você tem tanta sede ROSA Ela se sente cada vez mais empurrada para ele como para um abismo e não há nela precisamente um desejo de resistir ao salto definitivo Há apenas a imensa fraqueza da pessoa humana no momento das grandes decisões Que tinha você de aparecer aqui de novo BONITÃO Foi você quem veio falar comigo ROSA Você me obriga a fazer o que eu não quero BONITÃO Ri cônscio de seu poder de sedução Que culpa tenho eu de ter nascido com tantas qualidades Ela vai voltar ao centro da praça Ele a segura pelo braço BONITÃO Baixo Espere ROSA Idem Está louco BONITÃO Pelo jeito ele ainda vai ficar muito tempo aí Entendeu ROSA Soltase dele com um safanão Não entendo nada Você é doido e eu estou ficando doida também BONITÃO Ele não pode sair de junto da cruz Mas você pode pode ir descansar no hotel ou mesmo ir rezar em outra igreja pedir a outro santo pra ajudar a convencer o padre a abrir a porta Um reforço sempre é bom Entra ZédoBurro Rosa e Bonitão disfarçam MINHA TIA Detendoo E então ZÉ Eles não quiseram que eu entrasse Acham melhor falar com o Padre em particular MINHA TIA Assume uma atitude de extrema cumplicidade Meu filho eu sou ekédi no candomblé da Menininha Mais logo o terreiro está em festa Você fez obrigação pra Iansan Iansan está lá pra receber ZÉ Ele não entende Como MINHA TIA Eu levo você lá Você leva a cruz e a santa recebe Você fica em paz com ela ZÉ Iansan MINHA TIA Foi ela quem lhe atendeu ZÉ Mas a igreja MINHA TIA Mande o padre pro inferno Leve a sua cruz no terreiro Eu vou com você ZÉ Hesita um pouco e por fim reage com veemência Não não foi num terreiro que eu disse que ia levar a cruz foi numa igreja Numa igreja de Santa Bárbara MINHA TIA Santa Bárbara é Iansan E Iansan está lá Vai baixar nos seus cavalos Vamos ZÉ Não Não é a mesma coisa Não é a mesma coisa Abrese a porta da igreja e surgem Repórter Fotógrafo e Sacristão REPÓRTER Para o Sacristão O senhor acha que o padre não deixa mesmo ele entrar SACRISTÃO O senhor não ouviu ele dizer É Satanás Satanás sob um dos seus múltiplos disfarces REPÓRTER Satanás disfarçado em Jesus Cristo acho que é um pouco forte Em todo caso isso é lá com ele Eu confesso que não sou muito entendido na matéria O que interessa é mantêlo aqui pelo menos até segundafeira Se for preciso mandarei vir comida e bebida Contanto que ele não vá embora antes de segundafeira ZédoBurro dá um passo em direção à igreja Sacristão assusta se SACRISTÃO Com licença senhores com licença Entra e fecha a porta precipitadamente Fotógrafo vai à vendola REPÓRTER Vindo a ZédoBurro Nada feito meu camarada O padre é uma rocha Procura estimulálo a resistir Mas ele vai acabar cedendo Se você não arredar pé daqui ele vai ter que abrir a igreja Eu lhe garanto Agora a causa não é somente sua é também do nosso jornal E sendo do nosso jornal é do povo ZédoBurro olhao como se procurasse inutilmente entender um ser vindo de outro planeta REPÓRTER Eu o aconselho a resistir Afinal de contas é um direito Direito que o senhor adquiriu em 42 quilômetros de via crucis Eu confio no senhor Para Rosa Leia o meu jornal hoje à tarde Vai ser um estouro Sai seguido do Fotógrafo BONITÃO Jornalistas é ROSA É Com vaidade Tiraram o meu retrato Será que vão publicar mesmo BONITÃO Se estivesse nua eu garantia Assim não sei Neste momento entra Marli pela direita Ao ver Bonitão junto a Rosa avança para ele em atitude agressiva MARLI Eu sabia Tinha que estar atrás de algum rabodesaia BONITÃO Que é que você vem fazer aqui MARLI Venho saber por que o senhor não apareceu em casa esta noite BONITÃO Que casa MARLI A minha casa BONITÃO Estava indisposto Fui para o meu hotel MARLI Mede Rosa de alto a baixo Sim eu estou vendo a sua indisposição BONITÃO Em voz contida mas enérgico Não faça escândalo MARLI Por quê Está com medo do marido dela BONITÃO Não estou com medo de ninguém mas não vou deixar você fazer a senhora passar vexame MARLI Irônica A senhora se ela é senhora eu sou donzela BONITÃO Autoritário Marli me obedeça MARLI Está querendo bancar o machão na frente dela é BONITÃO Eu não tenho nada com ela MARLI Você passou a noite com ela O rosto de ZédoBurro se cobre de sombras e ele busca nos olhos de Rosa uma explicação Ela não o fita BONITÃO Segura Marli por um braço violentamente Vamos para casa MARLI Não Primeiro quero tirar isso a limpo Quero que essa vaca saiba que você é meu Com orgulho Meu Grita para Rosa Esta roupa foi comprada com o meu dinheiro Esta e todas as que ele tem BONITÃO Perde a paciência ameaçador Se você não for para casa imediatamente nunca mais eu deixo você me dar nada MARLI Deixandose arrastar por ele na direção da direita Ele é meu ouviu Fique com seu beato e deixe ele em paz É meu homem É meu homem Há uma pausa terrivelmente longa na qual ZédoBurro apenas fita Rosa silenciosamente sob o impacto da cena Em seu olhar lêse a dúvida a incredulidade e sobretudo o pavor diante de um mundo que começa a desmoronar As luzes se apagam em resistência Segundo Quadro Três horas da tarde ZédoBurro e Rosa continuam no meio da praça Minha Tia com seu tabuleiro na porta da igreja o Galego na venda Dedé CospeRima entra da direita ABC da Mulata Esmeralda romance completo contando toda a vida de Esmeralda desde o nascimento no Beco das Inocências até a morte por trinta facadas na Rua da Perdição Oferece a ZédoBurro 10 cruzeiros ZédoBurro recusa com um gesto DEDÉ Lê declamando Ai meu Senhor do Bonfim daime muita inspiração daime rima e muita métrica pra fazer a descrição das penas de Esmeralda na Rua da Perdição Para ZédoBurro Estava pensando sabe que essa sua briga com o Padre dava um abecê Quer eu escrevo ZÉ Com decisão Não DEDÉ Por que não quer Abecê em versos ficava bonito ZÉ Não DEDÉ Versos que modéstia à parte são lidos pela Bahia inteira Com intenção Inclusive pelo Padre Olavo e não é por me gabar meu camarada mas aqui como me vê poeta pela graça da Virgem e do Senhor do Bonfim eu sou um homem temido Quando eu anuncio que vou escrever um folheto contando as bandalheiras desse ou daquele deputado ah menino não tarda o fulano me procurar pra adoçar meus versos Faz com os dedos um sinal característico de dinheiro Se eu anunciar nesta tabuleta que vou escrever o ABC de Zédo Burro tenho certeza de que o Padre abre logo a porta e vem ele mesmo carregar a cruz Zé olhao com desconfiança ROSA Que é preciso pra isso DEDÉ Bem o consentimento dele em primeiro lugar E em segundo sabe papel está pela hora da morte a tipografia está cobrando os olhos da cara ROSA Ah é preciso pagar DEDÉ Aí uns cinco contos pra ajudar Vai a Zé Mas garanto o resultado ZÉ Vigorosamente Não quero que faça nada DEDÉ Olhe que o senhor se arrepende Garanto que basta anunciar o Padre se borra todo ZÉ Corta irritado Não quero já disse DEDÉ Está bem Quem perde é o senhor O senhor e a Poesia nacional Mestre Coca desce a ladeira gingando e pára na vendola É um mulato alto musculoso e ágil Veste calças brancas boca de sino e camisa de meia COCA Buenas GALEGO Opa DEDÉ Boa tarde Mestre Coca COCA Dedé CospeRima precisa arranjar um serviço de homem meu camarada Para o Galego Me dá um porongo Galego serve a cachaça Ouvemse trovões longínquos Dia de Santa Bárbara tem que roncar trovoada DEDÉ Já largou a estiva Mestre Coca COCA Já Descarreguei um cargueiro holandês até à uma hora e caí no mundo Hoje dia de Iansan não é dia de carregar peso é dia de vadiar DEDÉ Vamos ter capoeira hoje COCA Mais logo Mais logo vamos ter vadiação Vou jogar com Manoelzinho SuaMãe Nota ZédoBurro Me disseram que tinha aqui um homem querendo entrar na igreja com uma cruz e o Padre não queria deixar GALEGO É esse aí COCA Mas lugar de cruz não é dentro da igreja DEDÉ É mais parece que a cruz é pra Iansan e o Padre não gostou da história COCA E fechou a porta DEDÉ Não é de admirar Outro dia ele não quis proibir que eu vendesse meus livros aqui na porta da igreja COCA Por quê DEDÉ Disse que o ABC da Mulata Esmeralda era indecente Falou isso num sermão E de lá pra cá essas beatas quando passam por mim viram a cara como se eu fosse a pintura do Cão GALEGO No me gustan los padres Pero esse está haciendo um buen servido Por causa dele a freguesia aumentou e já fui até fotografado DEDÉ Se ele quisesse eu fazia o Padre abrir a porta em dois tempos GALEGO Nada Deixa el hombre aí Quanto mais demorar mejor DEDÉ Vou dar um pulo até o Mercado de Santa Bárbara COCA Ah lá a festança já começou é de hoje Capoeira roda de samba está bom que está danado DEDÉ Tem turista COCA Vi uns gringos DEDÉ Vou até lá Sobe a ladeira com os folhetos embaixo do braço ROSA Para o marido Sabe que horas são Três horas da tarde Você não está com fome ZÉ Não Vá ali na mulher no tabuleiro compre qualquer coisa pra você Tira do bolso uma nota Rosa toma a nota e vai a Minha Tia MINHA TIA Que é Iaiá ROSA Qualquer coisa pra matar a fome MINHA TIA Precisa mesmo É de hoje que vosmincês estão aí ROSA Desde manhã cedo MINHA TIA Fitando Zé do Burro com simpatia e incredulidade E ele parece um homem tão bom SECRETA O tira clássico Chapéu enterrado até os olhos mãos nos bolsos inspira mais receio que respeito À primeira vista tanto pode ser o representante da lei como o fugitivo da lei Entra pela direita e atravessa a cena lentamente em direção à vendola Ao passar por Zé do Burro demora nele um olhar de desabusada curiosidade Uma dupla Olha em torno procurando alguém consulta o relógio ROSA Durante a entrada do Secreta esteve escolhendo alguns quitutes no tabuleiro da baiana Recebe os agora embrulhados em folha de banana das mãos da preta Paga MINHA TIA Diga a ele que não desanime Iansan tem força Rosa leva os quitutes para Zé do Burro Este recusa com um gesto Entra da direita o Guarda com um jornal na mão GUARDA Vejam a Primeira página com retrato e tudo Mostra o jornal a Rosa que corre ansiosamente ROSA Meu retrato GUARDA Eu também saí ROSA Examina o retrato Hum o senhor saiu muito bem é cópia fiel GUARDA Sorri vaidoso É eu acho que saí bem vou levar pra minha mulher ROSA Quem saiu mal fui eu Faz uma careta de desagrado Horrível GUARDA Não ligue Fotografia de gazeta é assim mesmo ZÉ Sua atitude para com Rosa é agora de recalcada e surda revolta Embora ele não pareça ter certeza ainda de sua infidelidade instintivamente começa a perceber que ela se encontra do outro lado do lado daqueles que por este ou aquele motivo não o compreendem ou fingem não compreendêlo Afinal que é que diz aí GUARDA Como se só agora lhe ocorresse ler a reportagem Ah sim lê O novo Messias prega a revolução ZÉ Estranha Revolução Espicha o pescoço e lê por cima do ombro do guarda GUARDA É revolução Está aqui Continua Sete léguas carregando uma cruz pela reforma agrária e contra a exploração do homem pelo homem Entreolhamse sem entender ZÉ Eu bem achei que aquele camarada não era certo da bola GUARDA Continuando a ler Para o vigário da paróquia de Santa Bárbara é Satanás disfarçado Quem será afinal Zé do Burro Um místico ou um agitador O povo o olha com admiração e respeito pelos caminhos por onde passa com sua cruz mas o vigário expulsa o do templo No entanto ZédoBurro está disposto a lutar até o fim Acho que o moço não entendeu bem o seu caso Olhao com certa desconfiança Ou então fui eu que não entendi Dá o jornal a ZédoBurro Podem ler mas não joguem fora Iniciando a saída Quero levar pra casa Sai ROSA Zé não estou gostando disso ZÉ Nem eu ROSA Não entendi bem o que botaram na gazeta mas uma coisa me diz que isso não é bom ZÉ Não esconde o ressentimento que guarda dela Bem Maria de Iansan disse que a promessa tinha que ser bem grande Com certeza Santa Bárbara achou que não era bastante o que eu prometi e está cobrando o restante Fita Rosa Ou está me castigando por eu ter prometido tão pouco ROSA Então eu também estou sendo castigada ZÉ Ou pode ser que esteja me fazendo passar por tudo isso pra me experimentar Pra ver se eu desisto da promessa Santa Bárbara esta me tentando e ainda há pouco quase que eu caio ROSA Quando ZÉ Quando aquela sujeita disse tudo aquilo O sangue me subiu na cabeça e se eu me deixo tentar tinha matado um homem ou uma mulher Ia preso e não podia cumprir a promessa Pensei nisso naquela hora e agüentei tudo calado Foi uma prova Tudo isso é uma provação ROSA Agarrandose a uma justificativa para sua própria falta Deve ser sim É a única explicação pra tudo que aconteceu Santa Bárbara me usou pra pôr você à prova ZÉ Mas Santa Bárbara não teria feito isso se não conhecesse você melhor que eu ROSA Veemente Eu senti Zé senti que havia uma vontade mais forte do que a minha me empurrando pra lá E você ajudando Você também é culpado Eu não queria ir e você insistia Não é pra me desculpar mas se tudo é obra de Santa Bárbara o que é que eu podia fazer ZÉ Podia resistir à tentação como eu tenho resistido ROSA Era diferente Não era a mim que ela estava pondo à prova Era a você E se ela é santa se ela pode fazer milagre pode me obrigar a fazer o que eu não quero como obrigou Pode botar o diabo no meu corpo como botou Mas isso não vai acontecer mais Acho até que isso nem aconteceu Pois se foi uma provação divina ZÉ Não muito convencido Esse assunto nós vamos resolver depois na volta Lê o jornal Entra Bonitão pela direita e vai diretamente à vendola Aproximase do Secreta Traz um jornal embaixo do braço BONITÃO Em voz baixa disfarçadamente Você veio depressa Para o Galego Uma dose Galego serve SECRETA Idem Que é que você quer falar comigo Se é sobre a sua volta à Polícia BONITÃO Corta sorrindo Não nada disso Nem estou pensando mais em voltar Estou muito bem de vida SECRETA Mas tome cuidado Estão com sua ficha em dia BONITÃO Ri Não acredito Vocês vivem comendo mosca Olha aí Indica com o olhar ZédoBurro No meu tempo esse cabra já estava no xilindró Noutro tom E vocês me expulsaram SECRETA Quem é ele BONITÃO Mostrando o jornal Tome leia Vocês nem lêem gazeta e querem estar em dia O Secreta põese a ler o jornal atentamente dando de vez em quando uma mirada para ZédoBurro como a comprovar as afirmativas Bonitão atira uma nota sobre o balcão SECRETA Você já conversou com ele BONITÃO Já O homem é perigoso Banca o anjo de procissão mas não é à toa que o padreco dali de frente fechou a igreja e jurou que ele não entra SECRETA É mas a coisa é esquisita BONITÃO Eu se fosse você guardava ele por uns dias SECRETA Também não pode ser assim Tenho que investigar depois comunicar ao Comissário BONITÃO Qual vocês não sabem trabalhar Dá o flagra no homem SECRETA Flagra de quê Ele não está fazendo nada BONITÃO Como não Agitação social SECRETA Venha comigo BONITÃO Iniciando a passagem Ele vai lhe contar a história de um burro mas não vá nessa conversa GALEGO Para Mestre Coca Polícia estão querendo prender el hombre COCA Está certo não Fazer promessa não é crime ZédoBurro recebe Bonitão e Secreta com desconfiança Rosa mostra certo constrangimento diante de Bonitão Este apresenta o Secreta BONITÃO Um amigo Quer conversar com vocês quer ajudar SECRETA Olá Zé Dentro dele uma revolta de proporções imprevisíveis começa a crescer Ajudar todo o mundo quer ajudar Arrebata o jornal das mãos de Rosa e o faz em pedaços ROSA Assustada Não faça isso homem É do Guarda Ele pediu pra guardar ZÉ O Guarda também quer ajudar Repete como uma obsessão Todos querem ajudar Seu olhar que começa a ser agora um olhar de fera acuada cai sobre Bonitão Todos SECRETA O senhor sabe que suas idéias são muito perigosas ZÉ Perigosas SECRETA O senhor não devia dizer isso no jornal E muito menos aqui em praça pública Porque isso pode lhe dar muita aporrinhação ZÉ Mais do que já tive SECRETA Por muito menos tenho visto muita gente ir parar no xadrez ROSA Xadrez SECRETA Estou avisando como amigo ZÉ Amigo Já vi que estou cercado de amigos É amigo por todo lado Cada qual querendo ajudar mais do que o outro SECRETA O senhor é um revoltado ZÉ Não era não Mas estou ficando SECRETA É por isso que está aqui desde esta madrugada ZÉ É Inflamandose E daqui não saio enquanto não fizer com que todo mundo me entenda Todo mundo SECRETA Como pretende fazer isso ZÉ Como sei lá mas tem de haver um jeito tem de haver um jeito Desesperado A vontade que eu tenho é de jogar uma bomba Inicia um gesto como se atirasse uma bomba contra a igreja mas o braço se imobiliza no ar ele percebe a heresia que ia proferir deixa o braço cair e ergue os olhos para o céu Que Deus me perdoe Secreta e Bonitão trocam olhares significativos ZédoBurro avança dois ou três passos em direção à igreja isolase do grupo e grita a plenos pulmões Padre Padre Dedé desce a ladeira e fica assistindo à cena curioso Padre eu andei sete léguas pra vir até aqui Deus é testemunha Ainda não comi hoje e não vou comer até que abra a porta Um dia dois um mês vou morrer de fome na porta da sua igreja padre Galego deixa a vendola e vem para o meio da praça no momento em que surgem também na ladeira dois tocadores de berimbau de instrumento em punho Colocamse ao lado de Mestre Coca e ficam apreciando ZÉ Gritando alucinadamente Padre é preciso que me ouça padre Abrese de súbito a porta da igreja e entra o Padre O Sacristão atrás dele amedrontado Grande silêncio O Padre avança até o começo da escada PADRE Que pretende com essa gritaria Desrespeitar esta casa que é a casa de Deus ZÉ Não Padre lembrar somente que ainda estou aqui com a minha cruz PADRE Estou vendo E essa insistência na heresia mostra o quanto está afastado da igreja ZÉ Está bem Padre Se for assim Deus vai me castigar E o senhor não tem culpa PADRE Tenho sim Sou um sacerdote Devo zelar pela glória do Senhor e pela felicidade dos homens ZÉ Mas o senhor está me fazendo tão infeliz padre PADRE Sinceramente convicto Não Estou defendendo a sua felicidade impedindo que se perca nas trevas da bruxaria ZÉ Padre eu não tenho parte com o Diabo tenho com Santa Bárbara PADRE Agora para toda a praça Estive o dia todo estudando este caso Consultei livros textos sagrados Naquele burro está a explicação de tudo É Satanás Só mesmo Satanás podia levar alguém a ridicularizar o sacrifício de Jesus ROSA Não Padre não PADRE Por que não ROSA Porque eu conheço ele É um bom homem Até hoje só fez o bem PADRE Lúcifer também foi anjo ROSA É até bom demais Nunca fez mal a ninguém nem mesmo a um passarinho É capaz de repartir o que é dele com os outros De deixar de comer até pra dar de comer a um burro É um homem bom isso eu garanto PADRE Como pode garantir ROSA Sou mulher dele Vivo com ele Durmo na mesma cama como na mesma mesa PADRE Isso não quer dizer nada ROSA Com mais veemência Como é que não Entra o Guarda da direita e se detém no meio da praça PADRE Lúcifer iludiu o Senhor até o último momento Leva o dedo em riste Mas eu conheço seus adeptos Mesmo quando se disfarçam sob a pele do cordeiro Mesmo quando se escondem atrás da cruz de Cristo A mesma cruz que querem destruir Mas não destruirão Não destruirão Neste momento entra Monsenhor O Padre está no auge de sua cólera Ao ver Monsenhor seu braço se imobiliza no ar como ante uma aparição sobrenatural PADRE Monsenhor SACRISTÃO Monsenhor Otaviano PADRE Grita para a praça Deixem passar Monsenhor Todos abrem passagem e se curvam respeitosamente Monsenhor avança para a igreja Ao passar por Zédo Burro este lhe cai aos pés e beijalhe a mão MONSENHOR Paternal magnânimo Já sei Estou tratando do seu caso Entra na igreja seguido dos seminaristas do Padre e do Sacristão Fechase a porta GUARDA É Monsenhor Otaviano Deve ter vindo a mando do Arcebispo ROSA E o Padre ficou apavorado quando viu ele reparou DEDÉ Com certeza o Arcebispo mandou puxar as orelhas do Padre MINHA TIA Bem feito GALEGO Se deixam el hombre entrar prejudicam nuestro negócio ZÉ Com esperança Será será que o Arcebispo chegou a saber GUARDA Ora a cidade inteira já sabe O rádio já deu COCA Não se fala noutra coisa da Cidade Baixa até a Cidade Alta ZÉ E ele vir até aqui por causa disso ROSA É porque veio trazer alguma ordem E ordem do Arcebispo DEDÉ Mandou o Padre deixar de ser besta COCA Mandou abrir a porta MINHA TIA Eu disse Iansan tem força Agora ele vai entrar Vai entrar ZÉ Eu sabia que Santa Bárbara não ia me desamparar Abrese a porta da igreja Surgem Monsenhor e Padre seguidos do Sacristão Há um grande silêncio de expectativa MONSENHOR Venho aqui a pedido de Monsenhor Arcebispo S Excia está muito preocupado com o vulto que está tomando este incidente e incumbiume pessoalmente de resolver a questão A fim de dar uma prova da tolerância da igreja para com aqueles que se desviam dos cânones sagrados ZÉ Interrompe Padre eu sou católico Não entendo muita coisa do que dizem mas queria que o senhor entendesse que eu sou católico Pode ser que eu tenha errado mas sou católico MONSENHOR Pois bem Vamos lhe dar uma oportunidade Se é católico renegue todos os atos que praticou por inspiração do Diabo e volte ao seio da Santa Madre Igreja ZÉ Sem entender Como Padre MONSENHOR Abjure a promessa que fez reconheça que foi feita ao Demônio atire fora essa cruz e venha sozinho pedir perdão a Deus ZÉ Cai num terrível conflito de consciência O senhor acha mesmo que eu devia fazer isso MONSENHOR É sua única maneira de salvarse A igreja católica concede a nós sacerdotes o direito de trocar uma promessa por outra ROSA Incitandoo a ceder Zé talvez fosse melhor ZÉ Angustiado Mas Rosa se eu faço isso estou faltando à minha promessa seja Iansan seja Santa Bárbara estou faltando MONSENHOR Com a autoridade de que estou investido eu o liberto dessa promessa já disse Venha fazer outra PADRE Monsenhor está dando uma prova de tolerância cristã Resta agora você escolher entre a tolerância da Igreja e a sua própria intransigência ZÉ Pausa O senhor me liberta mas não foi ao senhor que eu fiz a promessa foi a Santa Bárbara E quem me garante que como castigo quando eu voltar pra minha roça não vou encontrar meu burro morto MONSENHOR Decida Renega ou não renega MINHA TIA Êparrei Maleme pra ele minha mãe COCA Maleme ZÉ Não Não posso fazer isso Não posso arriscar a vida do meu burro PADRE Então é porque você acredita mais na força do demônio do que na força de Deus É porque tudo que fez foi mesmo por inspiração do diabo MONSENHOR Nada mais posso fazer então Atravessa a praça e sai ZÉ Corre na direção de Monsenhor Monsenhor Me deixe explicar No auge do desespero Me deixe explicar PADRE Que ninguém agora nos acuse de intolerantes E que todos se lembrem das palavras de Jesus Porque surgirão falsos cristos e falsos profetas e farão tão grandes sinais e prodígios que se possível fora enganariam a muitos ZÉ Padre eu não quero enganar ninguém PADRE Enganaria a muitos sim E muitos o seguiriam ao sair daqui ZÉ Eu não quero que ninguém me siga PADRE Mas seguiriam como já o seguiram pelas estradas sem saber que seguiam a Satanás ZÉ Subitamente fora de si corre para a cruz levantaa nos braços como um aríete e grita Padre Por Santa Bárbara ou por Satanás vou colocar esta cruz dentro da igreja custe o que custar PADRE Ante a decisão que vê estampada no rosto de ZédoBurro recua amedrontado Eis a prova um católico não ameaça invadir a casa de Deus Guarda Prenda esse homem E ante a investida de ZédoBurro que caminha para a igreja corre seguido do Sacristão e cerra a porta no momento mesmo em que Zé sobe os degraus Este revoltado e vencido atira a cruz contra a porta A cruz tomba estrondosamente sobre a escada ZédoBurro sentase num dos degraus e esconde o rosto entre as mãos COCA Para os tocadores de berimbau Fiquem aqui Vou chamar o resto do pessoal Sobe a ladeira BONITÃO Para o Secreta Que está esperando Não está convencido ainda SECRETA Faz um sinal afirmativo com a cabeça Espere Sai pela direita ROSA Que percebeu a troca de palavras entre o Secreta e Bonitão Espere o quê Quem é ele BONITÃO Um secreta ROSA Começando a compreender Polícia Você Você denunciou BONITÃO Daqui a pouco você vai ficar livre desse idiota ROSA Horrorizase ante a idéia da traição Você não devia ter feito isso Não devia BONITÃO É pro seu bem Pro nosso bem ROSA Angustiada pelo conflito de consciência que se apossa dela Não assim não Eu não queria assim BONITÃO Agora está feito Rosa se debate em seu conflito de um lado sua noção de lealdade gerando um repúdio natural à delação Do outro todos os seus recalques sexuais sua ânsia de libertação de realização mesmo como mulher que Bonitão veio despertar Enquanto isso ZédoBurro sentado nos degraus da igreja sofre uma crise nervosa Soluça convulsivamente Os tocadores de berimbau fazem gemer a corda de seus instrumentos E lentamente enquanto as luzes de cena se apagam CAI O PANO Terceiro Ato Entardecer A praça está cheia de gente Na escadaria da igreja ZédoBurro e Rosa Na vendola o Galego À frente da vendola formouse uma roda de capoeira Dois tocadores de berimbau um de pandeiro e um de recoreco sentados num banco e os camaradas formando um círculo ao centro do qual de cócoras diante dos músicos estão Mestre Coca e Manoelzinho SuaMãe Dedé CospeRima está entre os componentes da roda e Minha Tia não se encontra em cena Choram os berimbaus e Rosa dominada pela curiosidade aproximase da roda MESTRE DO CORO Canta Sinhazinha que vende aí Vendo arroz do Maranhão Meu sinhô mando vende Na terra do Salomão Aruandê Camarado CORO É É Aruandê Camarado MESTRE Galo canto CORO Ê ê Aruandê Camarado MESTRE Cocorocó CORO Ê ê Aruandê Camarado MESTRE Goma de goma CORO Ê ê Goma de goma Camarado MESTRE Ferro de mata CORO Ê ê Ferro de mata Camarado MESTRE É faca de ponta CORO Ê ê Faca de ponta Camarado MESTRE Vamos embora CORO Ê ê Vamos embora Camarado MESTRE Pro mundo afora CORO Ê ê Pro mundo afora Camarado MESTRE Dá volta ao mundo CORO Ê ê Volta do mundo Camarado E tem início o jogo Mestre Coca e Manoelzinho SuaMãe percorrem a roda virando o corpo sobre as mãos e começam a lutadança cuja coreografia é ditada pelo toque do berimbau DEDÉ Grita Quero ver um rabodarraia Mestre Coca UMA VOZ Manoelzinho SuaMãe é porreta no aú OUTRA VOZ Eu queria vê isso à vera MESTRE DO CORO Quem te ensino essa mandinga Foi o nego de sinhá O nego custo dinhero dinhero custo ganha Camarado CORO Cai cai Catarina sarta de má vem vê Dalina MESTRE DO CORO Amanhã é dia santo dia de corpo de Deus Quem tem roupa vai na missa quem não tem faz como eu CORO Cai cai Catarina sarta de má vem vê Dalina MESTRE DO CORO Minino quem foi teu mestre quem te ensino a joga Só discipo que aprendo meu mestre foi Mangangá na roda que ele esteve outro mestre lá não há Camarado CORO Cai cai Catarina sarta de má vem vê Dalina Rosa apreensiva nervosa desinteressase da capoeira vai até a ladeira olha para o alto ansiosamente como se esperasse alguém depois volta pra junto do marido Muda o ritmo do jogo MESTRE DO CORO Panha a laranja no chão ticotico ai se meu amo fô simbora eu não fico CORO Panha a laranja no chão ticotico MESTRE DO CORO Minha camisa é de renda de bico CORO Panha a laranja no chão ticotico MESTRE DO CORO Ai se meu amo fô simbora eu não fico E novamente muda o jogo agora rápido com os dois jogadores empenhandose em golpes de espantosa agilidade no ritmo cada vez mais acelerado da música MESTRE DO CORO Santa Bárbara que relampuê Santa Bárbara que relampuá CORO Santa Bárbara que relampuê Santa Bárbara que relampuá MESTRE DO CORO Vou pidi a Santa Bárbara Pra ela me ajudá CORO Santa Bárbara que relampuê Santa Bárbara que relampuá Esse estribilho é repetido várias vezes em ritmo cada vez mais rápido até que Minha Tia surge no alto da ladeira e marca num canto sonoro MINHA TIA Óia o caruru Cessa de repente o canto e o acompanhamento Os jogadores param de jogar MINHA TIA É o caruru de Santa Bárbara minha gente A roda de capoeira se desfaz alegremente Todos cercam Minha Tia que vai instalar seu tabuleiro no local costumeiro ajudada pelos capoeiristas Apenas os músicos continuam nos seus bancos e Mestre Coca vai à vendola Rosa também permanece junto do marido demonstrando um nervosismo uma ansiedade crescente A capoeira não deve durar mais que dois minutos a fim de não quebrar a continuidade dramática da peça DEDÉ O primeiro caruru é meu Minha Tia Minha Tia enche um prato e colocao de lado no chão DEDÉ Pra quem é esse MINHA TIA É pra Santa Enche outro prato dá a Dedé Agora sim é seu Dedé recebe o prato e dirigese à vendola COCA Tira do bolso uma nota e colocaa sobre o balcão Aposto cem GALEGO Coloca uma nota sobre a de Mestre Coca Casado COCA Fica na mão de quem Dedé vem se aproximando De Dedé CospeRima DEDÉ Também quero entrar nessa aposta COCA O Galego diz que o padreco não deixa o homem entrar Eu digo que vai acabar entrando hoje mesmo com cruz e tudo GALEGO Entra nada Yo conheço esse padre Moça com vestido decotado no entra nesta igreja Yo mismo já vi ele parar la missa até que uma turista americana de calças compridas se retirasse DEDÉ E eu digo que o homem entra mas não hoje amanhã O Padre quer humilhar ele primeiro mas depois vai ficar com medo dele ir se queixar pra Santa Bárbara e vai abrir a porta GALEGO Pero usteds no entenderam la cosa Ele no fez promessa pra Santa Bárbara Fez para Iansan num candomblé COCA E que tem isso GALEGO Tem que candomblé és candomblé e igreja és igreja COCA E a Santa não é a mesma DEDÉ Não o Galego tem razão A santa pode ser a mesma mas o Padre tem medo da concorrência e quer defender o seu negócio COCA Mas não adianta Iansan tem força O homem entra GALEGO Nem Iansan nem todos os orixás do candomblé fazem ele entrar DEDÉ Entra sim Amanhã ele entra Num tom de mistério E não se admirem se for eu que fizer ele entrar GALEGO Usted DEDÉ Sim eu Dedé CospeRima COCA E como DEDÉ Ah isso é segredo profissional COCA Então se ele entrar hoje ganho eu Se entrar amanhã ganha você Se não entrar ganha o Galego DEDÉ Fechado COCA Bota cem pratas Estende a mão DEDÉ Segura o prato com ua mão com a outra remexe os bolsos Não tenho ainda não mas de noite eu lhe dou COCA Desconfiado Vê lá hem Dá o dinheiro ao Galego Por via das dúvidas fica com o dinheiro Galego MANOELZINHO Aproximase de Mestre Coca Tu tá um bicho na capoeira Mestre Coca COCA Você é quem diz MANOELZINHO Tinha ido lá pro mercado pensando que ia ser lá a vadiação Lá me disseram que tinha vindo todo mundo pra cá COCA Por causa do homem da cruz MANOELZINHO Diz que ele quer cumprir obrigação pra Iansan UM CAPOEIRA Quer botar essa cruz lá dentro da igreja OUTRO CAPOEIRA E já quiseram até prender ele MANOELZINHO Só por causa disso UM CAPOEIRA Então MANOELZINHO Não pode COCA Não pode e não vão fazer O homem não fez nada DEDÉ Aproximase de ZédoBurro Amanhã amanhã você entra meu camarada Lhe garanto Vou hoje pra casa escrever a história desse padre Sei umas coisas dele e se precisar a gente inventa Amanhã vou chegar aqui com uma tabuleta Aguardem O padre que fechou a casa de Deus Vai ver se ele abre ou não abre a porta Ou abre ou vai ter que me passar uma gaita pra não publicar os versos Pisca o olho e afastase MINHA TIA Para Rosa Não quer também Iaiá ROSA Não MINHA TIA Caruru de Santa Bárbara Antigamente a gente fazia isso e era de graça Hoje com a vida do jeito que está a gente tem mesmo é que cobrar GALEGO Atravessa a praça com um prato de sanduíches na mão e vai a ZédoBurro Pero yo no cobro nada Oferece Oferta da casa ZÉ Pra mim GALEGO Si para usted Cachorroquente Después trarê un cafezito ZÉ Não obrigado GALEGO Pode aceitar sin constrangimento E podemos até hacer um negócio Se usted promete no arredar pé de cá yo me comprometo a fornecer comida e bebida gratuitamente para los dos ZÉ Não não tenho fome GALEGO Muito preocupado Pero asi usted no poderá resistir ZÉ Não importa GALEGO Oferece a Rosa A senhora não quer ROSA Não estou com vontade GALEGO Encolhe os ombros conformado Bien Volta à venda ZÉ Ele observa a intranqüilidade indisfarçável de Rosa que a todo o momento olha assustada para a ladeira ou para a rua esperando ver surgir a polícia Que é que você tem ROSA Nada Queria era ir embora ZÉ Sozinha ROSA Não com você ZÉ Com intenção Pensei que estivesse farta de mim ROSA Nervosamente Estou farta é dessa palhaçada Estamos aqui bancando os bobos Toda essa gente está rindo de nós Zé Quem não está rindo está querendo se aproveitar É uma gente má que só pensa em fazer mal Sacodeo pelos ombros como para chamálo à realidade Largue a cruz onde está Zé e vamos embora pra nossa roça antes que seja tarde demais ZÉ De que é que você está com medo ROSA De tudo ZÉ Não é de você mesma ROSA Também Mas já não sou eu quem corre perigo é você ZÉ Que perigo ROSA Você não vê Não sente Não respira Está no ar E cada minuto que passa aumenta o perigo Olha para todos os lados como fera acuada Esta praça está ficando cada vez menor como se eles estivessem fechando todas as saídas Voltase para ele com veemência Vamos embora Zé enquanto é tempo ZÉ Desconfiado Que deu em você assim de repente ROSA Não é de repente desde que chegamos que eu estou querendo voltar Você foi que teimou em ficar Por mim você tinha largado aí essa cruz e voltado no mesmo pé Com intenção A esta hora já estava na estrada longe daqui e nada tinha acontecido ZÉ Você acha que depois de andar sete léguas eu ia voltar sem cumprir a promessa ROSA Você já pagou essa promessa Zé Não é sua culpa se há gente sempre disposta a ver demônios em toda a parte até mesmo naqueles que estão do seu lado e que odeiam também o demônio É gente que vai acabar enxergando na própria sombra a figura do diabo Entreabrese a porta da igreja e surge na fresta a cabeça do Sacristão que ao ver ZédoBurro torna a entrar e fechar a porta ROSA Está vendo O Padre mandou ver se você ainda estava aqui não vai abrir a porta enquanto a gente não for embora Vamos Zé ZÉ Reage com irritação procurando combater em si mesmo o desejo de ir Não já disse que não Só arredo pé daqui depois de levar a cruz lá dentro da igreja Secreta entra na direita e atravessa a praça em direção à vendola observando dissimuladamente ZédoBurro Ao vêlo Rosa não esconde a sua inquietação Acompanhao com um olhar amedrontado até a vendola SECRETA Para o Galego Uma meladinha Galego serve a cachaça com mel ZÉ Notando a apreensão de Rosa Que há ROSA Ele não é nosso amigo ZÉ E que tem isso ROSA Ouvi dizer que é da polícia ZÉ Não sou nenhum criminoso não fiz mal a ninguém ROSA Por isso mesmo que eu tenho medo porque você não sabe fazer mal e eles sabem Mestre Coca e Manoelzinho vão à vendola encostamse no balcão junto do Secreta GALEGO Que van hacer com o homem SECRETA Deixe que eu cuido disso COCA Mas ele não fez nada SECRETA Lança a Mestre Coca um olhar de intimidação E é melhor não se meterem onde não são chamados Secreta bebe a cachaça de um trago coloca uma moeda sobre o balcão e volta a atravessar a cena com ar misterioso saindo pela rua da direita Mestre Coca e Manoelzinho trocam um olhar de solidariedade ROSA Ele só veio ver se a gente ainda estava aqui vamos aproveitar antes que ele volte ZÉ Deixe de bobagem Não sou menino que quando brinca com fogo mija na cama Põese a picar fumo com uma faquinha MARLI Entra da direita atravessa a cena lentamente num andar provocante DEDÉ Referindose a Marli Boa moça Só que casou com a humanidade Mestre Coca ri MARLI Na vendola para o Galego Viu Bonitão GALEGO Já esteve aqui várias vezes hoy MARLI Referindose a Rosa Eu sei e sei também o motivo GALEGO Festa de Iansan MARLI Não é bem Iansan é outro orixá ROSA Para ZédoBurro Vou ali preciso falar com aquela mulher ZÉ Que é que você ainda tem que falar com ela Não lhe basta a vergonha que ela lhe fez passar ROSA Mas eu preciso Zé Eu preciso Vai à vendola ZédoBurro a segue com um olhar de profunda desilusão Preciso falar com você MARLI Hostil estranhando Comigo ROSA Ou melhor com ele Bonitão Onde está ele MARLI Sujeita sem vergonha Dá em cima do meu homem e ainda tem o descaramento de vir me pedir pra dizer onde ele está Não lhe basta o seu Precisa do meu pra se contentar ROSA Não preciso do seu homem pra nada Quero só falar com ele pra evitar uma desgraça MARLI Ameaçadora Se você quer mesmo evitar uma desgraça o melhor é deixar ele em paz ROSA Mas eu tenho que falar com ele Juro que é assunto sério MARLI Você pode enganar o trouxa do seu marido Mas a mim não ROSA Onde ele mora MARLI Mora comigo ROSA Mentira Eu sei que ele mora num hotel MARLI Pois vá lá atrás dele pra ver o que lhe acontece ROSA Reagindo Pare com isso que eu não tenho medo de você MARLI Nem eu de você As duas se olham desafiadoramente a ponto de quase se atracarem ZédoBurro que ouviu a discussão aproxima se ZÉ Rosa você perdeu a cabeça Não sabe qual é o seu lugar Discutindo na rua com uma completa a frase com um gesto de desprezo MARLI Com uma o quê seu beato pamonha Carola duma figa A mulher dando em cima do homem da gente e ele agarrado aí com essa cruz Isso também faz parte da promessa ROSA Cale essa boca Não se meta com ele Ele não tem nada com isso MARLI Não tem Não é seu marido ROSA É mas não se rebaixa a discutir com você MARLI Medeo de cima a baixo com mais desprezo ainda Corno manso Dálhe as costas bruscamente e sobe a ladeira Galego solta uma gargalhada que corta de súbito ante o olhar ameaçador de ZédoBurro Este num gesto instintivo ergue a pequena faca de picar fumo ROSA Zé GALEGO Intimidado Perdon no se puede dar confiança a essas mujeres ZÉ Para Rosa num tom que revela sua desilusão sua revolta e sua decisão de não mais deixarse iludir Esta noite a gente vai embora ROSA E por que não agora ZÉ Vamos deixar passar o dia de Santa Bárbara ROSA De noite talvez seja tarde ZÉ Tarde pra quê ROSA Pra voltar ZÉ O que você ainda queria falar com aquele sujeito ROSA Pedir pra ele deixar você em paz ZÉ A mim ROSA Ele denunciou você à polícia ZÉ Mas eu sou um homem de bem Nunca tive nada com a polícia ROSA Eu sei Mas eles torcem as coisas Confundem tudo Angustiada Zé Ouça o que eu digo A gente devia ganhar a estrada agora mesmo Neste minuto O Repórter e o Fotógrafo entram pela direita a tempo de ouvirem a última fala de Rosa REPÓRTER Eh que é isso Já estão pensando em ir embora ZÉ Hostil Vou embora quando quiser não tenho que dar conta disso a ninguém Dá as costas ao Repórter ostensivamente e volta para junto da cruz na escadaria da igreja O Fotógrafo conversa qualquer coisa com os componentes da roda de capoeira e sai seguido de Mestre Coca e mais três ou quatro REPÓRTER Vocês não estão falando sério não Sim porque eu espero que vocês cumpram o que prometeram Meu jornal está cumprindo Já tomei todas as providências para que sua estada aqui até segundafeira seja a mais agradável possível ROSA Como Neste instante entram os capoeiristas conduzindo primeiro uma tenda de pano já armada e em seguida um colchão de molas Na tenda há um letreiro Oferta da Casa da Lona No colchão há outro Gentileza da Loja Sonho Azul Com enorme espanto de ZédoBurro e Rosa eles colocam a barraca no meio da praça e o colchão dentro da barraca REPÓRTER Fomos aos nossos clientes e eles se dispuseram prontamente a colaborar conosco Entra o Fotógrafo trazendo uma mesinha e um aparelho de rádio de pilha que coloca também na barraca ZÉ Surpreso O senhor trouxe essas coisas pra nós REPÓRTER Bem julgamos que um pouco de conforto durante esses dias não reduzirá também o valor de sua promessa Além disso segunda feira depois da entrada triunfal na igreja o senhor percorrerá a cidade em carro aberto com batedores num percurso que irá daqui até a redação do nosso jornal De lá irá ao Palácio do Governo onde será recebido pelo Governador Zé vai dizer qualquer coisa e ele o interrompe Já sei vai dizer que se o vigário de Santa Bárbara não o deixar entrar em sua igreja o Governador vai também lhe bater com a porta na cara Não se preocupe Já estamos mexendo os pausinhos E se o senhor puder dizer uma palavrinha a favor do candidato oficial nas próximas eleições estará tudo arranjado ROSA Por favor leve tudo isso daqui Nós estamos de partida REPÓRTER De partida Não não pode ser isso seria um desastre para mim O jornal já fez despesas já compramos foguetes contratamos uma banda de música para a volta ROSA A volta vai ser hoje mesmo REPÓRTER Hoje Mas não dá tempo Não está nada preparado O que é que a senhora pensa Que é assim tão simples organizar uma promoção de venda É muito fácil pegar uma cruz jogar nas costas e andar sete léguas Mas um jornal é uma coisa muito complexa Mobilizar todos os departamentos para dar cobertura e depois eu já lhe disse amanhã é domingo não tem jornal ROSA Irritandose E qual é o meu Que se dane o seu jornal Eu quero é ir embora daqui O Zé tem razão vocês todos querem ajudar ajudar ajudam mas é a desgraçar a vida da gente REPÓRTER Está precisando de alguma ajuda particular ROSA Estou A Polícia anda rondando a praça REPÓRTER A Polícia ROSA Um secreta Estão querendo levar ele preso REPÓRTER Por quê ROSA Pensa um pouco Talvez porque ele é bom demais E o resto é gente safada REPÓRTER Hum bem me pareceu que por trás dessa história do burro da promessa havia qualquer coisa uma intenção oculta e um objetivo político A polícia naturalmente percebeu também ROSA Mas ele não tem nenhuma intenção a não ser a de pagar a promessa REPÓRTER Sorri descrente É claro que a senhora não vai dizer Nem ele também Mas podem contar comigo e com o meu jornal Se ele for preso daremos toda a cobertura Abriremos manchetes na primeira página Será uma maravilha para ele ROSA Maravilha Maravilha ser preso REPÓRTER Todo líder precisa ser preso pelo menos uma vez ROSA Líder eu acho que o senhor é maluco O senhor esse padre a polícia todos E eu também se não me cuidar vou acabar ficando Olha ansiosamente para o alto da ladeira REPÓRTER Chama de parte o Fotógrafo Preparese daqui a pouco é capaz de haver um bafafá Rosa angustiada volta para junto do marido ROSA Desista Zé Desista ZÉ Por que você não senta aqui e espera até a hora de ir embora ROSA Sentase num degrau É o jeito é esperar DEDÉ Vai a eles com seus folhetos E enquanto espera deve aproveitar para melhorar sua cultura O ABC da Mulata Esmeralda modéstia à parte é uma verdadeira jóia da literatura brasileira Por 10 Cruzeiros apenas o senhor poderá ler os mais inspirados versos que uma mulata jamais inspirou ZédoBurro balança negativamente a cabeça Dedé vai a Minha Tia DEDÉ Poesia está muito por baixo Minha Tia Quem está por cima é o caruru Aproximase da roda de capoeira ZédoBurro sobe um ou dois degraus fita revoltado a porta cerrada MINHA TIA Para ZédoBurro Não desanime moço Hoje é dia de Iansan mulher de Xangô Orixá dos raios e das tempestades Mais nos terreiros ela está descendo no corpo dos seus cavalos Vai falar com ela moço vai pedir a proteção de Iansan que tudo quanto é porta há de se abrir Ouvemse trovões mais fortes que da vez anterior Óia Aponta para o céu Iansan está falando Abaixase toca o chão com a ponta dos dedos depois a testa e saúda Iansan Eparrei minha mãe Neste momento surge Bonitão na ladeira Rosa levantase movida por uma mola ZédoBurro com os olhos pregados na porta da igreja não o vê Não vê que os olhares de Rosa e Bonitão se cruzam de um extremo a outro da praça É que ele da ladeira faz para ela um gesto convidandoa a acompanhálo Rosa hesita presa de tremendo conflito Olha para ZédoBurro para Bonitão Este a espera certo de que ela acabará por ir ao seu encontro Minha Tia Galego e Dedé percebem o que se passa e aguardam atentamente Vendo que ela não se decide Bonitão dá de ombros sorri e acena num gesto curto de despedida Inicia a subida da ladeira mas pára depois de dar dois ou três passos fora do ângulo visual de Rosa e ZédoBurro Ela como que atraída por um ímã inicia o movimento para seguilo quando ZédoBurro voltase ZÉ Aonde vai Rosa ROSA Detémse Vou ali já volto ZÉ Ali aonde ROSA No hotel onde dormi Lembrei agora que esqueci lá o meu lenço Avança mais na direção da ladeira ZÉ Rosa ROSA Pára já na altura da ladeira vê Bonitão à sua espera Que é ZÉ Num apelo e numa advertência que é quase uma súplica Deixe esse lenço pra lá ROSA Hesita ainda um pouco Não posso Zé Eu preciso dele ZÉ Compro outro pra você Rosa ROSA Pra quê Zé gastar dinheiro à toa é daquele que eu gosto Sobe a ladeira Bonitão passa o braço pela cintura dela e os dois sobem a ladeira Galego e Dedé CospeRima trocam olhares significativos DEDÉ Canta Quem corta e prepara o pau quem cava e faz a gamela toma a si todo o trabalho e depois fica sem ela O sino da igreja começa a tocar as AveMarias A Beata surge no alto da ladeira apressada Ao passar pela roda de capoeira que novamente se anima tem um ar de repulsa e indignação BEATA Falta de respeito Bem em frente da igreja Este mundo está perdido MINHA TIA Oferece Caruru Iaiá BEATA Pára junto a ela Quê MINHA TIA Caruru de Iansan BEATA Como se ouvisse o nome do diabo Iansan E que é que eu tenho com dona Iansan Sou católica apostólica romana não acredito em bruxarias MINHA TIA Adiscurpe Iaiá mas Iansan e Santa Bárbara não é a mesma coisa BEATA Não é não senhora Santa Bárbara é uma santa E Iansan é é coisa de candomblé que Deus me perdoe benzese repetidas vezes e sai CORO Quem corta e prepara o pau Quem cava e faz a gamela Toma a si todo o trabalho E depois fica sem ela Mestre Coca entra correndo COCA A ZédoBurro Meu camarada trate de ir embora Estão lhe arrumando uma patota ZÉ O quê COCA Chegou um carro da Polícia Eles estão com o Padre na sacristia MINHA TIA Vieram por causa dele COCA Então ZÉ Mas eu não roubei não matei ninguém DEDÉ Quer um conselho Experiência própria com a polícia é melhor fugir do que discutir COCA Ande depressa que nós agüentamos eles aqui até você ganhar o mundo ZÉ Não eu não vou fugir como qualquer criminoso se estou com a minha consciência tranqüila DEDÉ Ele não se separa da cruz COCA A gente esconde a cruz MINHA TIA E de noite ele leva ela pra Iansan COCA Vamos todo mundo levar Todos os capoeiras da Bahia MINHA TIA É a mesma coisa meu filho Iansan é Santa Bárbara Eu lhe mostro lá no peji a imagem da santa COCA É preciso se decidir meu camarada Antes que seja tarde ZÉ Balança a cabeça sentindose perdido e abandonado Santa Bárbara me abandonou Por quê eu não sei não sei ROSA Desce a ladeira correndo Zé Não adianta não adianta mais Falei com ele mas não adianta A Polícia já está aí Vem cercar a praça COCA Eu não disse DEDÉ É preciso andar depressa meu irmão MINHA TIA Some daqui meu filho ROSA Vamos Zé ZÉ Santa Bárbara me abandonou Rosa ROSA Se ela abandonou você abandone também a promessa Quem sabe se não é ela mesma que não quer que você cumpra o prometido ZÉ Não mesmo que ela me abandone eu preciso ir até o fim ainda que já não seja por ela que seja só pra ficar em paz comigo mesmo Subitamente abrese a porta da igreja e entram o Delegado o Secreta o Guarda o Padre e o Sacristão SECRETA Aponta para ZédoBurro É esse aí Avança para ZédoBurro seguido do Delegado e do Guarda GUARDA Como que se desculpando Eu já cansei de pedir a ele pra sair daqui seu Delegado não adiantou DELEGADO Faz o Guarda calar com um gesto autoritário Seus documentos ZÉ Estranha Documentos DELEGADO Carteira de identidade ZÉ Tenho não DELEGADO Outra carteira outro documento qualquer ZÉ Moço eu vim só pagar uma promessa A Santa me conhece não precisava trazer carteira de identidade DELEGADO Sorri irônico Pagar uma promessa pensa que nós somos idiotas SECRETA Não demora e ele conta a história do burro DELEGADO Ele vai contar essas histórias todas mas é na Delegacia Vamos acompanheme ZÉ Seu olhar vai do Delegado ao Secreta e ao Guarda sem entender o que se passa Acompanhar o senhor pra quê DELEGADO Mais tarde você verá Sou delegado deste distrito Obedeça ZÉ Não posso Não posso sair daqui DELEGADO Não pode por quê COCA Promessa seu Delegado Ele é crente DELEGADO O Padre disse que ele ameaçou invadir a igreja Pediu garantias SECRETA Eu mesmo ouvi ele dizer que ia jogar uma bomba Todo mundo aqui é testemunha DELEGADO Uma bomba hem Vamos à Delegacia quero que o senhor me explique isso tudo direitinho SECRETA Vamos Segura ZédoBurro por um braço mas este se desvencilha Que é Vai reagir GUARDA Apaziguador Acho melhor o senhor obedecer DELEGADO Se ele reagir pior para ele Não estou disposto a perder tempo e conheço de sobra esses tipos Só se entregam mesmo é a bala ROSA Não ZÉ Os senhores devem estar enganados Devem estar me confundindo com outra pessoa Sou um homem pacato vim só pagar uma promessa que fiz a Santa Bárbara Aponta para o Padre Aí esta o vigário para dizer se é mentira minha PADRE É mentira sim E não somente mentira também um sacrilégio ZÉ Padre o senhor não pode dizer que é mentira que eu não fiz essa promessa PADRE Sim talvez tenha feito por inspiração de Satanás Há quem diga que não estamos mais em época de acreditar em bruxas No entanto elas ainda existem Mudaram talvez de aspecto como Satanás mudou de métodos É mais difícil combatêlas agora porque são inúmeros os seus disfarces Mas o objetivo de todas continua a ser um só a destruição da Santa Madre Igreja DELEGADO Padre este homem PADRE Este homem teve todas as oportunidades para arrependerse Deus é testemunha de que fiz todo o possível para salválo Mas ele não quer ser salvo Pior para ele DELEGADO Que ganhou decisão com o sermão do Padre Sim pior para ele Avança um passo na direção de ZédoBurro que recua e fica encurralado contra a parede ZÉ Decidido a resistir Não Ninguém vai me levar preso Não fiz nada pra ser preso DELEGADO Se não fez não tem o que temer será solto depois Vamos à Delegacia ROSA Não Zé não vá GUARDA É melhor na Delegacia o senhor explica tudo DEDÉ Não caia nessa meu camarado ZÉ Agora eu decidi só morto me levam daqui Juro por Santa Bárbara só morto SECRETA Vê a faca na mão de ZédoBurro Tome cuidado Chefe que ele está armado Observa a atitude hostil dos capoeiras E essa gente está do lado dele COCA Estamos mesmo E aqui vocês não vão prender ninguém DELEGADO Não vamos por quê MANOELZINHO Porque não está direito DELEGADO Estão querendo comprar barulho COCA Vocês que sabem DELEGADO Não se metam senão vão se dar mal SECRETA E é melhor que se afastem ROSA Zé ZÉ Me deixe Rosa Não venha pra cá ZédoBurro de faca em punho recua em direção à igreja Sobe um ou dois degraus de costas O Padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço fazendo com que a faca vá cair no meio da praça ZédoBurro corre e abaixase para apanhála Os policiais aproveitam e caem sobre ele para subjugálo E os capoeiros caem sobre os policiais para defendêlo ZédoBurro desapareceu na onda humana Ouvese um tiro A multidão se dispersa como num estouro de boiada Fica apenas ZédoBurro no meio da praça com as mãos sobre o ventre Ele dá ainda um passo em direção à igreja e cai morto ROSA Num grito Zé corre para ele PADRE Num começo de reconhecimento de culpa Virgem Santíssima DELEGADO Para o Secreta Vamos buscar reforço Sai seguido do Secreta e do Guarda O Padre desce os degraus da igreja em direção do corpo de ZédoBurro ROSA Com rancor Não chegue perto PADRE Queria encomendar a alma dele ROSA Encomendar a quem Ao Demônio O Padre baixa a cabeça e volta ao alto da escada Bonitão surge na ladeira Mestre Coca consulta os companheiros com o olhar Todos compreendem a sua intenção e respondem afirmativamente com a cabeça Mestre Coca inclinase diante de ZédoBurro segurao pelos braços os outros capoeiras se aproximam também e ajudam a carregar o corpo Colocamno sobre a cruz de costas com os braços estendidos como um crucificado Carregamno assim como numa padiola e avançam para a igreja Bonitão segura Rosa por um braço tentando levála dali Mas Rosa o repele com um safanão e segue os capoeiras Bonitão dá de ombros e sobe a ladeira Intimidados o Padre e o Sacristão recuam a Beata foge e os capoeiras entram na igreja com a cruz sobre ela o corpo de ZédoBurro O Galego Dedé e Rosa fecham o cortejo Só Minha Tia permanece em cena Quando uma trovoada tremenda desaba sobre a praça MINHA TIA Encolhese toda amedrontada toca com as pontas dos dedos o chão e a testa Êparrei minha mãe E O PANO CAI LENTAMENTE Fim do livro Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprála ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler Dessa forma a venda deste ebook ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância A generosidade e a humildade é a marca da distribuição portanto distribua este livro livremente Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras Se quiser outros títulos nos procure httpgroupsgooglecomgroupViciadosemLivros será um prazer recebêlo em nosso grupo httpgroupsgooglecomgroupViciadosemLivros httpgroupsgooglecomgroupdigitalsource