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Risco Conceito Básico da Epidemiologia Naomar de Almeida Filho Luis David Castiel e José Ricardo Ayres Há ciências que estudam objetos voltados ao passado como a paleontologia a arqueologia a história Há ciências que dirigem seus esforços para o entendimento de estruturas e formas como a química a biologia sistemática a anatomia Outras têm como objetivo a explicação de processos e fenômenos em curso como a física mecânica a biologia molecular a fisiologia Em geral tais ciências não foram construídas para a previsibilidade ou antecipação temporal de eventos e fenômenos o que ao con trário caracteriza outras disciplinas científicas muito peculiares como a meteorologia a economia e a epidemiologia Estas úl timas não por coincidência operam diferentes versões do con ceito de risco Por diversas razões analistas sociais contemporâneos con sideram que a preocupação futurológica se acentuou significa tivamente no perfil de muitas áreas de pesquisa Uma delas seria a necessidade de lidar com o encolhimento do presente e a ampliação das incertezas e os correspondentes sintomas de desassossego que rondam as sociedades modernas Bauman 2005 Esta sensação de grande insegurança que acompanha nossa época se combina com alguns juízos denunciatórios do descontrole da técnica Paradoxalmente os tempos atuais se caracterizam pelos efei tos de muitos objetos resultantes da vertente tecnológica ense jada pela ciência moderna a partir de seus cânones de raciona lidade No entanto estamos testemunhando que a racionalidade não traz obrigatoriamente certeza consistência confiança tranquilidade Innerarity 2004 A disponibilidade de ferramentas de modelagem e simulação e a grande ênfase em técnicas estatísticas prospectivas parecem ser manifestações emblemáticas desse estado de coisas como resultado da busca de satisfação de uma necessidade ou como sintoma do espírito de uma época vertiginosa Inegavelmente o afã antecipatório se acentuou bastante nos tempos atuais a ponto de algumas ciências incorporarem presentemente uma forte aura futurista que as aproxima grandemente das narrativas de ficção científica Nos processos concretos de produção de conhecimento as explicações sobre as relações entre fenômenos podem deixar o terreno firme dos objetos precisos e delimitados sob o regime da causalidade e adentrar em domínios mais incertos Aqui os instrumentos de construção do conhecimento passam a adotar perspectivas para lidar com a incerteza A probabilidade é um dispositivo com esta fmalidade De um modo geral as afirma ções baseadas em probabilidades são dependentes de contin gências eventualmente fora do controle dos observadores em seus intentos de especificar causas e efeitos Assim no âmbito da saúde as intenções de prevenção começam a depender de definições com variadas doses de incerteza Uma delas é a do objeto incerto denominado risco Sentidos do risco Risco é um vocábulo especialmente polissêmico e portanto dá margem a ambiguidades Como foi desenvolvido em outro lugar Castiel 1994 o referido termo possui conotações no chamado senso comum Nesta perspectiva há controvérsias quanto a suas origens no idioma português tanto pode provir diretamente do baixolatim riscu risicu como do espanhol risco penhasco escarpado Na segunda acepção excluindo os ter mos relacionados com o verbo riscar indica por um lado a própria ideia de perigo e por outro sua possibilidade de ocor rência Ferreira 1999 Etimologicamente em ambas as acep ções o termo risco originase do latim resecum o que cortâ derivado do verbo resecare ato de dividir cortar separando Designava o estilete empregado pelos romanos para marcar as tabuletas de cera que eram usadas para escrever antes da adoção do papiro Mais tarde na época medieval em linguagem náu tica riscum veio a significar penhasco perigo no mar peri go oculto o que poderá explicar o significado finalmente esta belecido na teoria epidemiológica Rey 1993 No século passado na maioria dos idiomas da Europa Oci dental seu sentido já se encontrava relacionado com apostas e chances de ganhos e perdas em certas modalidades de jogos ditos de azar Em épocas mais recentes adquiriu significados referidos a desenlaces negativos Douglas 1986 No decorrer da Segunda Grande Guerra no campo da engenharia o tema recebeu um forte impulso em função da necessidade de estimar danos decorrentes do manuseio de materiais perigosos radio ativos explosivos combustíveis Na Biomedicina estas análises serviram para dimensionar os possíveis riscos na utilização de tecnologias e procedimentos médicos Skolbekken 1995 Uma leitura inicial que transita pela obviedade esquemática revela superposições semânticas dicionarizadas entre perigo e 43 44 Capítulo 5 1 Risco Conceito Básico da Epidemiologia risco como aparece por exemplo no Dicionário Houaiss Hou aiss Vilar 2001 Se por um lado perigo se define como situação em que se encontra sob ameaça a existência ou a in tegridade de uma pessoa um animal um objeto etc ao mesmo tempo é sinônimo de risco e assim deixa de ser causâ evi dente e direta no sentido do que faz com que algo exista ou aconteçâ Por sua vez risco é probabilidade de perigo geral mente com ameaça física para o homem e ou para o meio am biente dentro de uma perspectiva favorável de que algo venha a ocorrer possibilidade chance Em termos conceituais o risco se constitui em uma forma presente de descrever o futuro sob o pressuposto de que se pode decidir qual o futuro desejável Seguindo Luhmann 1998 o conceito de risco considera uma diferença de tempo isto é a dife rença entre o julgamento anterior e o julgamento posterior à ocor rência da perda E se dirige diretamente a esta diferença um paradoxo da simultaneidade de visões opostas de tempo Luh mann 1998 p 72 Paradoxo que por sua vez está também en volvido em uma dimensão temporal À medida que o tempo pas sa em cada momento somente há um julgamento plausível O conceito de risco homogeneíza as contradições no pre sente estabelecendo que só se pode administrar o risco o fu turo de modo racional ou seja através da consideração crite riosa da probabilidade de ganhos e perdas conforme decisões tomadas Bernstein 1996 Mesmo nesta perspectiva que Sen nett 1999 p 8 chama de econométrica o risco se tornou des norteante e deprimente pois falta matematicamente ao risco a qualidade de uma narrativa em que um acontecimento leva ao seguinte e o condiciona Sennett 1999 p 97 O que são ganhos e perdas no terreno do vivermorrer humanos Esta indagação reflete a preocupação exacerbada com a procrasti nação da morte e dos sinais de envelhecimento que o mundo ocidental persegue na atualidade paradoxo cruel em uma épo ca onde grupos populacionais atingem altos índices de longe vidade E para isto no dito senso comum fuga dos riscos se tornou sinônimo de estilo de vida sadio F0rde 1998 pleno de temperança prudência gestão criteriosaponderada de ris cos quando estes não puderem ser sumariamente evitados Por outro lado os discursos sobre a saúde cada vez menos se referem tão somente a dimensões da saúde Se tais discursos significam modos de pensar escrever falar sobre a saúde e suas práticas é preciso situálos em determinados momentos histó ricos e saber as razões por que se legitimam ao acompanharem e se ajustarem à ordem econômica política e social onde são gerados sustentados e replicados Discursos sobre a saúde e mais especificamente sobre riscos à saúde consistem em cons truções contingentes de caráter normativo inapelavelmente vinculadas a outros interesses Dependem explicitamente ou não de definições do que é ser humano o tipo de sociedade que se almeja e os modos de atingila Robertson 2001 Inegavelmente as estimativas de risco produzidas pelos epi demiologistas transcendem aspectos intrínsecos à pertinência da construção técnicometodológica e respectivas adequações na interpretação dos achados É imprescindível considerar também correspondentes aspectos morais políticos e culturais Em espe cial cabe destacar a interface com a mídia e a indústria da an siedade F0rde 1998 Entre nós riscos múltiplos e exóticos re cebem atenção de programas de TV de matérias de periódicos leigos e a consequente oferta de bens produtos serviços direcio nados ao suposto controleminimização de tais riscos conforme analisado pelo interessante artigo de Paulo Vaz et al 2007 Nestas circunstâncias a ideia de predição não costuma ser de terminista como o termo poderia sugerir mas sim probabilista Como veremos mesmo com o avanço da testagem genética as predições na acepção proféticâ da medicina só são válidas no atual estado da arte para algumas doenças específicas como a co reia de Huntington Predições do risco probabilidades a partir dos conhecimentos disponíveis sobre as relações entre exposições agravos na maioria das doenças adquirem relevância a posteriori após a ocorrência do agravo Isto confirmaria as relações de cau sação mesmo que se desconheçam os mecanismos precisos deste processo Para alguns autores no entanto a ciência só se legitima de fato com a descoberta dos mecanismos Atlan Bousquet 1994 Com o surgimento de estudos de medicina experimental e de epidemiologia baseados na biologia molecular a determinação dos riscos vai em algumas circunstâncias se tornar mais bem de marcada permitindo predições com menores margens de erro O conceito de risco aparece nos textos básicos do campo epidemiológico como um constructo operacional uma defmi ção técnica portanto Nesse discurso o conceito de risco privi legia o componente menos importante da reserva semântica agregada ao risco no discurso social comum que é a dimensão da probabilidade O sentido secundário de possibilidade de ocorrência de eventos se traduz como a probabilidade de ocor rência de eventos ou fenômenos ligados à saúde integrado como dimensão fundamental do conceito neste campo Apenas sub sidiariamente na sua origem o conceito de risco na Epidemio logia envolvia a ideia de dano tanto que cada vez mais se fala em risco também se referindo a prognósticos positivos O conceito epidemiológico de risco Risco em Epidemiologia equivale a efeito probabilidade de ocorrência de patologia em uma dada população expresso pelo indicador paradigmático de incidência Esta formulação se deve a Olin Miettinen autor de um clássico da literatura epidemioló gica intitulado Epidemiologia Teórica Aí se encontra a primeira referência explícita na literatura anglosaxônica à questão do es tabelecimento do objeto na disciplina da seguinte forma a re lação de uma medida da ocorrência a um determinante ou uma série de determinantes é denominada de relação ou função da ocorrência Tais relações são em geral o objeto de investigação da epidemiologiâ Miettinen 1985 p 6 Esta proposta é meto dologicamente fundada em princípios de rigor e coerência inter na propiciando uma conexão lógica entre seus princípios e apli cações imediatas às técnicas de análise epidemiológica mais usadas modernamente Entretanto não é qualquer proporção ou probabilidade que pode indicar uma estimativa de risco É preciso observar apre sença de três elementos que sempre compõem a definição epi demiológica do risco ocorrência de casos de óbitodoençasaúde numerador base de referência populacional denominador base de referência temporal período Tecnicamente o que é uma população É um conjunto ou uma série homogênea de elementos formado por membros de uma mesma classe No caso da Epidemiologia tais elementos são seres humanos capazes de adoecer ou sofrer algum proble ma de saúde Uma população pode ser representada na lingua gem da teoria dos conjuntos desta maneira 1 2 3 4 5 6 7 n P Dentro deste conjunto P ou população de referência é pre ciso criar uma função de diferenciação já que se trata da refe Boxe S1 Hermenêutica do conceito de risco Uma hermenêutica do conceito epidemiológico de risco mostra que o termo risco surge na linguagem epidemioló gica britânica já no início do século XX Hamer 1908 Topley 1919 Já com uma conotação mais especificamente concei tuai o risco pode ser identificado em um estudo sobre mor talidade materna conduzido por William Howard Jr professor de Biometria da Escola de Higiene e Saúde Pública da Johns Hopkins University publicado no primeiro número doAmerican Journal of Hygiene que posteriormente se tornaria o American Journal of Epidemiology com data de 1921 Nesse artigo o con ceito já se apresenta com um espantoso grau de formalização heurística e matemática expresso em termos de proporções entre o número de afetados e o número de expostos Howard Jr 1921 Uma nova menção mais consistente ao conceito de risco só vai aparecer nesse periódico em 1925 em um estudo de Doull e Lara sobre difteria e depois em 1928 em um artigo de Fales analisando dados secundários sobre várias doenças infec ciosas Este último artigo também introduz a expressão risco relativo já indicando a natureza comparativa dos indicadores de associação Entretanto de fato somente com a publicação em 1933 no American Journal of Pubic Health de um trabalho de Frost intitulado Risk of Persons in Familiai Contact with PulmonaryTuberculosis Risco de Pessoas em Contato Familiar com Tuberculose Pulmonar o conceito de risco assume plena mente um caráter técnicoinstrumental Fonte Ayres 2008 rência essencial que preserva a especificidade do objeto Nesse aspecto a atribuição desta diferença crucial tem sido aceita na pesquisa epidemiológica como dada pela Clínica resultando no estabelecimento de um subconjunto portador da ocorrên cia dano doença óbito cura etc do tipo 1234D contido no conjunto população 1 2 3 4 5 6 7 n D e P Graficamente podemos traduzir tal expressão de acordo com a Figura 51 Este esquema deve ser entendido como uma representação do objeto epidemiológico primitivo aqui no sentido de fundamental Encontrase aí evidenciado o postu lado básico da lógica epidemiológica o objeto da Epidemio logia é de natureza probabilística Obtemos então dois conjuntos formados por indivíduos membros de uma dada população P representada pelo conjun to maior Alguns dos elementos deste conjunto se distinguem como portadores ou acometidos de uma doençaagravopro blema D formando um subconjunto contido no conjunto maior P A razão subconjuntoconjunto DP expressa a proba D Figura 51 Representação do objeto epidemiológico primitivo Epidemiologia Saúde 45 bilidade de que membros de P sejam também elementos do subconjunto D Em outras palavras indicará a probabilidade de ocorrência do atributo d doença ou fenômeno correlato referida a modelos de distribuição demográfica de eventos de saúde em conjuntos de indivíduos Agora temos acesso aos elementos mínimos necessários para compreender a lógica dos indicadores epidemiológicos Às ve zes por dificuldades na definição precisa do denominador é necessário usar aproximações ou sucedâneos da medida do risco que a rigor não assumem a forma de uma proporção ou seja o numerador é parte do denominador De qualquer modo dentro dos seus limites todo indicador epidemiológico aspira assumir a forma geral DP 1 Tempo no sentido de uma medida prototípicâ do risco Em todos os casos a dimensão temporal deve sempre ser indicada não importa o tipo ou nível da me dida epidemiológica No tradicional Dicionário de Epidemiologia Last 1989 o verbete risco faz menção a à probabilidade de ocorrência de um evento mórbido ou fatal b como um termo não técnico que inclui diversas medidas de probabilidade quanto a desfe chos desfavoráveis A própria ideia de probabilidade pode ser lida de dois modos a intuitivo subjetivo vago ligado a algum grau de crença isto é uma incerteza não mensurável b obje tivo racional precisável mediante técnicas probabilísticas in certeza mensurável Gifford 1986 Nesta segunda acepção está calcada a abordagem dos fatores de risco isto é marcadores que visam à predição de morbimor talidade futura Deste modo poderseia identificar contabilizar e comparar indivíduos grupos familiares ou comunidades em relação a exposições a ditos fatores já estabelecidos por estudos prévios e proporcionar intervenções preventivas Como já afir mado antes a particularidade que permite identificar a discur sividade própria da epidemiologia pode ser sinteticamente des crita pelo conjunto indissociável de três características que nos levarão à interrelação elucidadora entre a epidemiologia do ris co e seus antecessores uma pragmática do controle técnico uma sintaxe do comportamento coletivo e uma semântica da varia ção quantitativa Ayres 2008 p 110 Na Epidemiologia como veremos na Parte 2 deste volume há três formulações básicas de risco absoluto relativo e atribuí vel É importante aqui fazer dois comentários Em primeiro lugar é comum dizerse que a taxa expressa o risco Segundo Last 1989 isto é pertinente caso seja aplicado às situações apresentadas no sentido mais restrito de taxa ou seja como quocientes que representem mudanças no decorrer do tempo Além disto o próprio conceito de taxa também é polissêmico mesmo no interior da epidemiologia Desta forma para ele nas situações a seguir taxa não expressa risco quando sinônimo de quociente referindose a proporções Por exemplo taxa de prevalência quando quociente que representa mudanças relativas reais ou potenciais em duas quantidades numerador e denominador Por exemplo taxa de colesterol no sangue Last 1989 No entanto estas distinções não são consensuais Alguns epidemiologistas diferenciam claramente taxa de incidênciâ e risco de adoecer tanto em termos conceituais como nos métodos de estimação A primeira estaria referida ao potencial instantâneo de mudança na situação de saúde casos novos por unidade de tempo no tempo t relativo ao tamanho da popu lação de interesse sem agravos no tempo t a medida é ex pressa em unidades de 1tempo O segundo se defmiria como a probabilidade de que um indivíduo sem doença desenvolvaa 46 Capítulo 5 1 Risco Conceito Básico da Epidemiologia no decorrer de um período especificado de tempo desde que o in divíduo não morra por outra causa durante tal período Klein baum et al 1982 p 99 Sendo probabilidade condicional varia de zero a um e não possui unidades de medida As discordâncias permanecem nas tentativas de distinguir entre os enfoques individualcoletivo do risco e suas correspon dentes estimativas Deste modo haveria métodos que encaram risco como medida teórica de probabilidade individual de ocorrência de agravo 1 os atuariais e aqueles que dimensio nam a força de morbidade em populações razões de densi dade de incidência Czeresnia Albuquerque 1995 Tomamos posição a favor da segunda interpretação concordando que não se pode aplicar modelos de risco para estabelecer o diagnóstico ou prognóstico de um indivíduo em particular porque o con ceito de risco referese exclusivamente ao grupo como um todo Em segundo lugar como não é possível observar simulta neamente o efeito da exposição e não exposição no mesmo in divíduo Czeresnia Albuquerque 1995 o dispositivo esta tísticoepidemiológico opera com grupos populacionais baseado no pressuposto de que a diversidade dos indivíduos distribuirseá de modo homogêneo nas amostras devidamen te selecionadas Os cálculos produzem taxas médias que refle tem portanto valores referentes aos agregados efeitos causais médios Se porventura quisermos representar a unidade atra vés do quociente relativo à quantidade observada pelo mesmo valor é óbvio que esta não representa nenhum indivíduo que assim se torna uma abstração Portanto o risco é um achado relativo à dimensão agregada Sua validade para o ní vel individual dá margem a erros lógicos Estas questões são estudadas na epidemiologia e na sociologia sob a rubrica das falácias ecológicas de dois tipos conforme a operação atomís tica ou agregativa Susser 1973 o que é válido para o nível agregado pode não o ser para o nível do indivíduo ou vice versa Eixos epistemológicos do conceito de risco Os modelos operados no paradigma dominante na epide miologia moderna são construídos como modelos de risco O termo riscd designa diretamente uma probabilidade de adoecer que se desvia das probabilidades puramente aleatórias O obje to da Epidemiologia nessa perspectiva não pode ser propria mente definido como um objeto probabilístico porque o que constitui sua validade conceitua não é convalidado por mode los de probabilidade Vineis 1999 O método epidemiológico opera avaliando em primeiro lugar proposições determinísticas sob a forma de hipóteses causais em confronto com distribui ções teóricas estocásticas Caso tais proposições sejam satisfa toriamente explicadas por um modelo de distribuição aleatória em geral chamado de hipótese nula rejeitarseá a hipótese do estudo A Estatística nesse sentido não teria uma função explicati va e sim uma função de depuração do objetd o que implica dizer que o objeto epidemiológico constituise em resíduo de objetos probabilísticos operando com um tipo de determinação sugeneris Apesar da crítica da epidemiologia popperiana a Es tatística justificaria uma expectativa de generalização por pro cedimentos indutivos através de um conjunto condicional de probabilidades de adoecer que não seriam explicáveis por mo delos aleatórios Em outras palavras o que não é explicado pela estocasticidade modelos de distribuição aleatória o é pela de terminação atribuída como epidemiológica A proposição de risco como conceito fundamental do cam po científico da Epidemiologia repousa sobre três pressupostos epistemológicos básicos O primeiro é a identidade entre o pos sível e o provável ou seja que a possibilidade de um evento pode ser reconhecida na sua probabilidade de ocorrência Essa probabilidade se constitui como unidimensional variável e por extensão quantificável Dessa forma o conceito de risco traz na raiz uma proposta de quantificação dos eventos da saúde doen ça MacMahon Pugh 1970 Lilienfeld 1976 O segundo pressuposto consiste na introdução de um prin cípio de homogeneidade na natureza da morbidade ou seja as particularidades dos eventos se retraem perante uma dimensão unificadora resultando em uma unidade dos elementos de aná lise propiciada pelo conceito de risco As diferenças expressas na singularidade dos processos concretos saúdedoença desa parecem no conceito unidimensional de risco e suas proprie dades permitindo aproximações e apropriações próprias do discurso científico epidemiológico Almeida Filho 2000 As incidências de distintos eventos de saúde ou doença indicado res dos respectivos riscos entendidos como probabilidades de ocorrência são postas em um mesmo registro Em terceiro lugar destacase o pressuposto da recorrência dos eventos em série implicando a expectativa de estabilidade dos padrões de ocorrência seriada dos fatos epidemiológicos Através desse pressuposto podese então justificar a aplicação do conceito de risco em modelos de prevenção propondose o conhecimento dos seus determinantes para intervir no seu pro cesso buscandose a prevenção do risco MacMahon Pugh 1970 Tais pressupostos revelam claramente o caráter indutivista da Epidemiologia Buck 1975 Susser Susser 1996 dada a fun damentalidade e a natureza das expectativas generalizadoras embutidas no conceito Desse modo o risco é produzido no cam po da Epidemiologia pela observação sistemática e disciplinada de uma série de eventos Enquanto conceito o risco opera pela via da predição com base no terceiro pressuposto Nesse aspec to devemos distinguir dois tipos de generalização a predição propriamente dita no sentido de uma expectativa de recorrên cia no tempo em relação a casos novos esperados e a predição equivalente à extrapolação para casos e eventos não incluídos na amostra ou população estudada Em relação a esta última temos uma inferência de natureza horizontal no sentido de amplitude populacional e uma inferência vertical buscando a convergência para os casos individuais Por um lado é possível a predição no tempo componente propriamente antecipatório do conceito de risco Quando enun ciamos o risco de ocorrência de uma doença D em uma dada população empregamos uma série sucessiva de observações pregressas mensurações tomadas na melhor das hipóteses em uma série temporal padronizada para fazer uma predição do passado por suposto conhecido para o momento presente ou mesmo para o futuro aplicada à população objeto daquela série de observações Temos aqui o emprego do risco enquanto pre ditor temporal ou preditor verdadeiro Por outro lado na Epidemiologia observase também o uso do componente indutivo do risco para instrumentalizar pseu dopredições ou predições no espaço Neste segundo caso em vez de uma mesma população em momentos distintos no tem po extrapolase uma série finita de observações em popula ções estudadas para populações não observadas Isso quer dizer que a partir do conhecimento da incidência da doença D em um conjunto de populações conhecidas pretendese predizer com o auxílio de testes estatísticos intervalos de confiança média de incidências ou qualquer outro quantifi cador matemático qual será o risco da doença D na população em geral ou em grupos populacionais não incluídos na série observada Tratase nesse caso do emprego do risco como um pseudopreditor Analisando comparativamente os usos da indução no dis curso epidemiológico constatamos basicamente sentidos dis tintos da noção da predição que concedem ao conceito de risco a ambiguidade que é própria do projeto da Epidemiolo gia enquanto campo discursivo científico Esta ambiguidade é a principal característica do uso epidemiológico do concei to de risco um preditor simultaneamente temporal e espacial ou mais rigorosamente como preditor e pseudopreditor Esse conceito de risco permite o rompimento dos limites temporais e dos limites geográficos do processo de produção do dado dotando o conhecimento epidemiológico de propriedades ge neralizadoras nem sempre legitimadas pela lógica que o con substancia E onde se situa o risco no discurso epidemiológico Para além e para fora do sujeito o risco é localizado no âmbito da população produzido no ou atribuído ao âmbito dos coletivos humanos Risco é enfim uma propriedade das populações e a sua referência legítima será exclusivamente coletiva Hayes 1992 Nos primórdios da constituição da Epidemiologia en quanto ciência havia uma proposta implícita de conceituação do risco absoluto daí a derivação da ideia de risco relativo Lilienfeld 1976 Apesar de equivocadamente tomado como expressão individual em alguns manuais Jenicek Cleroux 1985 o risco absoluto sempre teve como referência fundamen tal o coletivo populacional Não obstante há grande margem para confusões oriundas da indistinção entre risco relativo e absoluto O risco relativo mesmo sendo um relevante indicador de força de associação entre um presumível fator e um evento indesejado não pode ser relacionado com a probabilidade de que determinado indi víduo será atingido por tal evento Skrabanek e McCormick 1990 apresentam um exemplo ilustrativo Pilotos aéreos pos suem riscos relativos mais elevados de sofrerem acidentes des te tipo se comparados com passageiros eventuais como a maio ria de nós No entanto mesmo sendo elevado o risco relativo na comparação o risco absoluto de acidentes para pilotos é bastante baixo A ideia de risco relativo permite a construção do conceito derivado fator de risco Em algumas das aplicações específicas do discurso epidemiológico mais forte em certas subáreas pela constituição de um campo semântico próprio notase uma in coerência no mínimo curiosa Tratase da transferência para o campo epidemiológico formação discursiva de base científica e portanto com pretensões de coerência precisão e consistên cia daquela inconsistência que se observa no discurso social comum de confusão de designação entre risco e fator de risco ou entre efeito e sua causa potencial Ora se no campo epide miológico risco é predição fator de risco será então um predi tor de uma predição ou risco de risco Por meio dessa opera ção terminase atribuindo à ideia de fator de risco o estatuto do conceito de risco propriamente Na subárea da Saúde Ocu pacional por exemplo está cada vez mais estabelecido chamar de risco ocupacional fatores de risco presentes no ambiente ou no processo de trabalho Entretanto em geral epidemiologistas não costumam co locar em questão aspectos que problematizam a construção dos conhecimentos sobre os riscos em especial do ponto de vista de suas pretensões preditivas Neste sentido Hayes Epidemiologia Saúde 4 7 1991 faz uma aguda análise de limitações implícitas nesta abordagem Para ele é essencial estarse atento a determinados tópicos regularidade dos efeitos empíricos não pode haver al terações nas relações entre os marcadores de risco e os eventos de interesse Como os mecanismos causadores dos agravos na maioria das vezes são desconhecidos estes não devem variar de modo inesperado Tratase em suma da metáfora da caixa preta Aliás a dita epi demiologia dos fatores de risco também é chamada de epidemiologia da caixa preta Greenland GagoDo minguez Castelao 2004 Em outras palavras é essen cial a estabilidade das condições de existência do ob jeto para que o sujeito investigador o apreenda com fidedignidade nem o objeto de estudo pode variar em suas características atributos propriedades nem suas interrelações com o meio circundante em termoses paçotemporais definição do estatuto dos fatores de risco específicos é fundamental saber claramente se o fator é determinan te ou predisponente em relação àqueles tão somente con tribuintes ou incidentalmente associados E isto não cos tuma ser facilmente discernível em muitas situações especialmente naquelas que envolvem a participação de aspectos ditos psicogênicos ou então na controvérsia causada por estudos onde não se observaram efeitos da hipercolesterolemia na eclosão de doenças cardiovascu lares em mulheres Lupton Chapman 1995 fatores de risco pertencentes a níveis de organização distintos social x natural há dificuldades para estabe lecer precisamente os mecanismos e mediações entreva riáveis consideradas sociais p ex desemprego analfa betismo pobreza etc e aquelas ditas biológicas idade estado imunológico características genéticas apesar de em certos casos aparentemente não haver dúvidas quan to às relações entre elas Por exemplo miséria e mortali dade por causas perinatais período de tempo considerado válido para a predição é problemático lidar com exposições ocorridas há longo tempo mais de 15 20 anos por exemplo eou em quan tidades reduzidas no decorrer de longos intervalos cro nológicos de modo que não se torna possível garantir a relação causal no caso de ocorrência do agravo Isto é es pecialmente relevante em exposições ocupacionais onde não chega a geraremse danos imediatos só ocorrendo eventualmente após muitos anos Hayes 1991 Uma das importantes críticas feitas ao enfoque quantitati vista do risco consiste no fato de instituir uma entidade que possuiria uma existência autônoma objetivável indepen dente dos complexos contextos socioculturais nos quais as pessoas se encontram Em outras palavras o risco adquire um estatuto ontológico que acompanha de certa forma aquele produzido pelo discurso biomédico para as doenças mas pos suidor de características próprias ou seja atributos de virtua lidade fantasmáticos Pois a existência dos riscos pode ser invisível uma vez que nem sempre é perceptível por seus si nais sintomas objetos dos tradicionais instrumentos da se miologia médica Muitas vezes são necessários sofisticados exames laboratoriais para localizar este arisco ser capaz de se desenvolver de modo silente e traiçoeiro e tornarse presen te de modo ameaçador Se por um lado a retórica do risco pode servir de veículo para reforçar conteúdos morais e conservadores Lupton 1993 48 Capítulo 5 1 Risco Conceito Básico da Epidemiologia por outro redimensiona o papel da configuração espaçotem poral na compreensão do adoecer a biomedicina incorpora como sua tarefa a localização e a identificação nos sadios de seus possíveis riscos oriun dos de modalidades de exposição ambiental eou de sus cetibilidades biológicas mediante técnicas diagnósticas cada vez mais refinadas surge uma infmdável rede de riscos em que comportamen tos sinais sintomas e doenças podem confluir para setor narem fatores de risco para outras afecções p ex hiper tensão arterial como risco para doenças cardíacas o eixo temporal assume maior importância nos modelos explicativos dos processos de adoecer Armstrong 1995 Vemos então surgir no discurso e na intervenção biomédi ca uma nova condição medicalizável o estado de saúde sob ris co Kenen 1996 que traz importantes implicações a como substrato gerador de preceitos comportamentais voltados à promoção e prevenção à saúde em última análise base do projeto de estender a longevidade huma na ao máximo possível b no estabelecimento de laços com a produção tecnológica biomédica c na ampliação das tarefas da clínica médica em outros termos o aparecimento de uma vigilância médica como sugere Armstrong 1995 d na criação de demanda por novos produtos serviços e especialistas voltados à prevenção dos múltiplos riscos e no reforço do poder e prestígio dos profissionais respon sáveis por atividades dirigidas a novas técnicasprogra mas de controle ou à pesquisa de fatores de risco Kenen 1996 Nesse contexto neomedicalizador há visível predomínio de discursos sobre saúde subsidiados por uma perspectiva meto dológica denominada medicina baseada em evidências Essa abordagem fundamentase na ideia de que a verdade só pode ser obtida mediante buscas quase paroxísticas pelo que se con vencionou chamar de conhecimento factual ou evidências emblemas deste discurso de verdade empiricamente correto ou seja do que é tangível pois o que não é retido por este fil tro tem importância secundária ou pior ainda não existe Entretanto a definição de evidência mesmo possuindo ine gáveis níveis de pertinência tem suas limitações É passível de excluir informações relevantes ao conhecimento e à compre ensão da situação de saúde podendo colaborar com mecanis mos culpabilizantes As abordagens baseadas em evidências costumam hierar quizar os resultados dos estudos de acordo com os métodos de coleta com prioridade para estudos experimentais aleato rizados e metanálises E assim tendem a considerar de im portância secundária as informações de caráter qualitativo de caráter sociocultural e psicológico quando não a consideram supérfluas e aquelas referidas a esferas sociopolíticas que se mostram menos amigáveis aos dispositivos quantitativos nu méricos Uma das críticas a que mais nos interessa assinala que as premissas filosóficas vinculadas ao empiricismo evi denciológico que em sua forma extrema situa os resultados de estudos experimentais como sendo primordiais em relação a outra formas de conhecimento assumem a impossível pro posição de que observações possam ser feitas de modo total mente objetivo independentemente de teorias e da visão de mundo do observador Curiosamente a avaliação da própria medicina baseada em evidências padece de um aparente paradoxo Conforme suas premissas metodológicas para legitimar determinada ação em saúde são necessários ensaios clínicos aleatorizados e estudos de metanálise que mostrem eficácia superior dos efeitos estu dados em relação aos gruposcontrole Pois não há evidências originárias mediante esta ordem de estudos que assegurem em piricamente a eficácia superior das decisões clínicas provenien tes da medicina baseada em evidências em comparação à assis tência de saúde a pacientes através de outros enfoques clínicos não evidenciológicos Cohen et al 2004 Conceitos de risco e concepções de saúde Ainda que a epidemiologia contemporânea seja bastante versátil na eleição das variáveis cuja associação estuda é evi dente o predomínio especialmente entre as variáveis de efeito dos agravos disfunções ou doenças isto é das condições posi tivamente aferíveis pelas demais ciências biomédicas já que este é um requisito para seu manuseio e validação em termos de especulação causal Pearce 1996 Embora já sejam evidentes algumas contribuições para uma conceituação positiva da saúde essa discussão ainda não foi consistentemente trazida para o âmbito mais particular da epi demiologia Nas discussões acerca da promoção da saúde e mais ainda naquelas sobre vigilância à saúde a epidemiologia tem sido apontada como um instrumento não apenas útil mas mesmo imprescindível Contudo permanecem à margem das discussões as mudanças necessárias para o trânsito teórico para as novas proposições De fato ao se organizar fundamental mente em torno às análises de risco o instrumental epidemio lógico tem sua contribuição restrita à prevenção de agravos Para se questionar epidemiologicamente sobre o que produz saúde e portanto deva ser promovido ao invés do que produz doença e enquanto tal deva ser evitado será preciso definir o que e com que fundamentação deverá ser considerado o efei to saúde É possível ao modo de pura especulação imaginar que há diversas experiências objetivas de onde se podem extrair variáveis de efeito relacionadas à saúde Desde a ideia veiculada na famosa definição de saúde como bemestar físico mental e social até as recentes discussões sobre qualidade de vida há todo um elenco de condições e situações avaliadas positivamen te entendidas como bens a que os indivíduos podem e devem aspirar para o seu bem viver Há porém duas ordens de questões metodológicas de difí cil solução nessa proposição A primeira delas diz respeito a essa própria valorização positiva Quem define o que é o bem viver ou dito de outra forma quem define o efeito saúde Será pos sível alcançar nas formulações positivas de saúde o mesmo grau e tipo de consenso que possibilitou a formalização do discurso do risco em torno das doenças infecciosas e consolidado na epidemiologia das doenças crônicodegenerativas Sabese como foi fundamental para o desenvolvimento de uma linguagem formal em epidemiologia o estreitamento das relações entre o raciocínio epidemiológico e a conceituação de agravo em prestada da microbiologia da virologia da imunologia e de outras disciplinas Ayres 2008 A passagem da epidemiologia das doen ças infecciosas para as crônicas degenerativas já apresentou uma série de desafios epistemológicos uma vez que os critérios de cau salidade de HenleKoch não se aplicavam a estes novos objetos O caráter multicausal e não unívoco das associações entre expo sição e agravo no caso dessas doenças levou a um debate que estendendose por mais de dez anos acabou por desembocar nos critérios de associação causal de Bradford Hill 1965 Nesse caso o controle estatístico da incerteza das inferências o refmamento das técnicas de análise da probabilidade das associações e muito especialmente a definição morfofuncional dos critérios de agravo garantindo a verificação da associação não apenas permitiram a sobrevivência das análises de risco como fizeram delas um dos mais importantes acontecimentos no campo das ciências da saú de na contemporaneidade Há que se indagar contudo onde se apoiará no caso desse trânsito ao efeito saúde a possibilidade de verificação das as sociações Há algum substrato positivamente verificável para o efeito saúde Se a saúde é por defmição entendida como um bemestar físico mental e social não será de caráter extrema mente subjetivo e interpretativo a qualificação do efeito saúde Não será por outro lado uma condição complexa tanto no efeito quanto na exposição exigindo um movimento de síntese refratário portanto às decomposições analíticas necessárias aos testes de associação A segunda ordem de questões metodológicas relacionadas à busca do efeito saúde diz respeito à questão da extensão de suas indagações e inferências Todo discurso científico forma lizado busca no maior grau possível a universalidade de seus constructos Com efeito em um sistema de linguagem que bus ca basear sua argumentação e verificação em relações necessa riamente implicadas entre si a universalidade não é apenas um ideal mas uma exigência mesmo O máximo que se admite aí é a limitação da certeza sobre quão universal é uma proposição ou constatação aceita somente como provisória e inerentemen te ligada à incompletude do conhecimento humano O impacto pragmático do tipo e grau de incerteza com que se precisa lidar e a existência ou não de outras alternativas me nos imprecisas para tratar do mesmo campo de interesses cien tíficos são em última análise os critérios que decidirão até que ponto um dado discurso formal será aceito ou não pela comu nidade científica O que se coloca com a conceituação positiva de saúde é porém a assunção ativa de que estaremos tão mais próximos de uma defmição precisa de efeito quanto mais nos aproximarmos da totalidade particularizadora da situação fí sica mental e social dos indivíduos em questão Ou seja o rigor necessário à definição das variáveis a serem estudadas varia na relação inversa da sua universalidade Não se trata de um limi te provisório e controlável Tratase de uma contradição insta lada no cerne da validade proposicional desse discurso Esses impasses metodológicos obrigam como se pode ver a reflexões que não se restringem apenas ao plano metodoló gico mas atingem a própria dimensão epistemológica Se as análises de risco têm dificuldade de sustentar seu rigor frente à plurivocidade e contingência das categorias relacionadas com a especulação causal sobre o efeito saúde possivelmente esse tipo de investigação precisará abandonar o modelo heurístico atualmente dominante Assumindose que a defmição de saúde é refratária à sua de composição analítica em elementos de menor complexidade e subjetividade e que a facticidade dos fenômenos da saúde vin cula a validade das proposições a seu respeito a graus elevados de contingência é forçoso admitir que uma epidemiologia da saúde é uma proposição internamente contraditória É possível estudar associações entre variáveis que não podem ser clara e distintamente implicadas entre si É possível atribuir valores quantitativos a variáveis cuja identidade é em tão alto grau de pendente das circunstâncias e dos sujeitos que as formulam Existirá uma epidemiologia sem números Há epidemiologia Epidemiologia Saúde 49 sem risco Se o metodológico remeteu ao epistemológico este conduz a uma questão puramente filosófica Devese trabalhar a saúde epidemiologicamente Esta parece ser a pergunta que deve ser feita diante dos desafios acima colocados Valores preciosos permitiram construir historicamente pro posições de práticas assistenciais centradas na saúde quais sejam a politização a democratização a desburocratização a participa ção a humanização a pluralidade a equidade entre outros Não faria qualquer sentido abrir mão desses valores em função das dificuldades de manipulálos epidemiologicamente Isto parece óbvio O que não parece tão óbvio mas que seria igualmente ab surdo seria cobrar da epidemiologia uma correção de rumos como se o descompasso entre a promoção da saúde e a epidemio logia fosse um acidente ou uma insuficiência dessa ciência Na verdade há sempre motivações e escolhas que subjazem a qualquer discurso racional mesmo aqueles com alto grau de for malização como é o caso do discurso do risco O que foge ao discurso do risco não é aquilo que lhe escapou mas aquilo que de alguma forma não lhe diz respeito não esteve entre as exigên cias condições normativas proposicionais ou expressivas Ha bermas 1987 que o conformaram Por isso a pergunta que cabe fazer neste ponto não é tanto sobre a necessidade de trabalhar a saúde epidemiologicamente nem tanto sobre a possibilidade de fazêloA pergunta fundamental aqui é sobre o interesse em fazê lo É desejável trabalhar a saúde epidemiologicamente Da res posta a essa pergunta dependem as conformações futuras tanto dos discursos epidemiológicos quanto das propostas de promo ção da saúde Tanto uma quanto outra são racionalidades abertas e só o ativo diálogo entre elas norteado pelas pretensões e exi gências de validade de que vão sendo socialmente investidas poderá definir seus destinos Perspectivas para o conceito de risco Risco é mais do que um conceito interdisciplinar precisamos nos preparar para cada vez mais compreendêlo e construílo como um conceito indisciplinado Castiel 1997 No percurso argumentativo deste texto identificamos e avaliamos as seguin tes formas de apresentação do conceito a Risco como perigo latente ou oculto no discurso social comum b Risco individual como conceito prático da clínica c Risco populacional como conceito epidemiológico stric to sensu d Risco estrutural nos campos da saúde ambientalocu pacional O conceito de risco necessita atualizarse incorporando a dimensão contingente dos processos de ocorrência de proble mas de saúde em populações humanas O futuro do conceito de risco dependerá da sua capacidade de articularse aos de senvolvimentos conceituais e metodológicos deste novo campo ideológico conceitua e metodológico que tem sido denomina do saúde coletiva contribuindo com modelos teóricos e estra tégias metodológicas capazes de abordar objetos complexos emergentes Nesse sentido propomos incorporar mais uma de fmição à lista dos conceitos de risco previamente citada e Risco contingencial como operador do recémconstituído campo de práticas deno minado promoção da saúde 50 Capítulo 5 1 Risco Conceito Básico da Epidemiologia A ideia de um campo geral de práticas com o nome de pro moção da saúde contendo tanto a prevenção quanto a proteção e a promoção stricto sensu da saúde individual e coletiva supõe um repertório social de ações preventivas de morbida de riscos doenças etc protetoras e fomentadoras da salubri dade que de certo modo contribui para a redução dos sofri mentos causados por problemas de saúdedoença na comuni dade Isso determina uma integração teórica e filosófica da rede de conceitos correlatos à saúde vida risco doença cui dado ao conjunto de práticas discursivas e operacionais dos novos campos de saberes e de práticas que cada vez com mais intensidade e frequência se formam em torno do objeto saúde Com esse objetivo os conceitos de risco e as práticas que lhe correspondem no campo da saúde podem ser agrupados em três grupos 1 Risco como indicador de causalidade ou resíduo da pro babilidade Tratase de reconhecer e reafirmar sua base indutiva frequentista fisheriana a partir do referencial exposto na Parte 3 deste ensaio Esse conceito particular de risco subsidia modelos de prevenção de doenças ou eventos mórbidos com as seguintes variantes a modelos de prevenção individual conceito clínico de risco b modelos de prevenção populacional teorema de Rose 2 Risco como perigo estruturado Tal conceito subsidia larga mente modelos de intervenção nos campos da Saúde am biental e ocupacional OPAS 1976 Nesse caso é preciso explorar sua base dedutiva descritiva estrutural tarefa que evidentemente extrapola os objetivos do presente ensaio 3 Risco como emergência Tratase nesse caso de explici tar a base filosófica da contingência articulada como pro cessos de emergência em modelos de complexidade Este conceito subsidia a modelos de vigilância em saúde b modelos de promoção da saúde O Quadro 51 ilustra comparativamente os principais ele mentos conceituais envolvidos nessa articulação O Quadro 52 ilustra os principais elementos de atuação comparativos dessas estratégias Os dispositivos signos e ações apontados no esquema são característicos de cada estratégia porém não se propõe aí uma relação de exclusividade nem biunívoca ponto a ponto Para uma compreensão mais clara dos quadros propostos explicita remos a seguir seus termos A estratégia de prevenção em saúde há muito se converteu à ordem da necessidade assentada no modelo da causalidade e cuja intervenção mais específica seria a modelagem da reali dade Como vimos no capítulo anterior Aristóteles define o real como aquilo que é Se o real se caracteriza como o que já estava ali a realidade ou melhor as realidades são construídas para tentar dar conta deste real que não fala antes se mostra como limite à simbolização O regime da necessidade é solidário ao registro simbólico de acordo com a formulação que permite retomar os termos modais de Aristóteles Tratase na necessi dade humana daqueles eventos imprescindíveis ao mundo de linguagem pois ao constituirse como ser de linguagem o hu mano instaura um movimento peculiar o simbólico discurso humano separa a realidade do real ao promover pela mediação da palavra uma cisão entre coisa e símbolo Por outro lado a proteção à saúde como estratégia por vários ângulos de análise é logicamente impossível apesar de histori camente ter sido construída como campo de prática plausível Seu modelo é o controle e a intervenção requerida o experimen to Tal modalidade o impossível deve ser tomada em sua estrutura lógica não significando com isso que não exista Ape nas que controle e experimento não são realidades em si mas realidades linguísticas não encontráveis nas condições efetivas da pesquisa ou da intervenção tal como os eventos contingentes são realizados e somente então reconhecidos por seus efeitos Rigorosamente um experimento nunca pode ser reprodu zido é único podendo sim ao ser replicado constituir série Ademais tal replicação nunca se dá conforme o planejado pos Quadro S1 Elementos conceituais na articulação de estratégias de intervenção em saúde Estratégias Modelos de intervenção Tipologias de intervenção Registros Modais Prevenção Causalidade Modelagem Simbólico Necessidade Proteção Controle Experimento Real Impossibilidade Precaução Estrutura Regulação Imaginário Possibilidade Promoção Emergência Vigilância Objeto a Contingência Quadro S2 Elementos de atuação comparativos das estratégias de intervenção em saúde Estratégias Dispositivos Signos Alvos Ações Prevenção Riscos Fatores de risco Grupos de risco Redução Remoção Proteção Marcadores Defesas Sujeitos Imunização Comunidades Reforço Precaução Sensores Eventos sentinela Ambientes Legislação Cenários Controle Promoção Monitores Tendências Ambientes Monitoramento Padrões Produtos Fomento to que a situação do laboratório não tem com a vida outra re lação senão de verossimilhança Por mais que ensaiemos jamais a realidade do experimento corresponderá ao real do evento Por outro lado no caso da prevenção dos riscos em saúde dian te das imponderabilidades que envolvem a determinação e a presentificação de agravos à saúde mesmo tomandose as me didas preventivas não temos certeza de que os resultados de proteção estejam garantidos em função das medidas tomadas A possibilidade modo lógico da estratégia de precaução é o registro referente ao imaginário que longe de ter um caráter negativo de algo imaginado ou ilusório como comumente se diz só pode ser pensado no entrelaçamento com os níveis sim bólico e real A utilização das estratégias de precaução no cam po da saúde Grandjean 2004 como construção de cenários antecipatórios possíveis a danos existentes ou projetados de sempenha um papel não negligenciável de também antecipar e nesse caso conter reações de pânico ou inquietação generali zados que muitas vezes o imaginário social desenvolve frente ao desconhecido Na formalização proposta o registro do imaginário dá con sistência ao mundo humano povoando com cenários as pos sibilidades de existir Assim a consistência dos limites im postos por cenários imaginados não é incompatível pelo contrário com a abertura de possíveis e imagináveis medidas de precaução contra riscos à saúde Entretanto é esta tela ima ginária este limite com sua função ao mesmo tempo forma dora e alienante que organiza não o mundo em si mas o mun do em questão Os princípios de prevenção e precaução vem se tornando cada vez mais imperiosos em tempos nos quais a consideração de cenários futuros se torna uma constante nas propostas de gestão de vários aspectos da vida A prevenção de riscos tem suas ambivalências segundo juízos eventualmente imponderá veis podem envolver medidas procrastinatórias ou interven ções urgentes Innerarity 2004 Neste caso o princípio da pre venção ou precaução pode ser usado de modo manipulativo de acordo com as circunstâncias e também com os interesses en volvidos O exemplo da justificativa da guerra preventiva ao Iraque por parte dos EUA é um triste emblema da política a partir desta racionalidade Mas nesta trágica contingência a constatação da insuficiência de evidências só se confirma a posteriori Aliás como de resto depois que o futuro se torna presente é possível saber se as especulações antecipatórias se confirmaram Por fun associamos a estratégia de promoção à saúde aos modelos de imprevisibilidade de eventos incorporados nas ciên cias como emergência e na filosofia como contingência De todas as modalidades lógicas esta é seguramente a que mais resiste a uma apreensão direta de sentido Em outras palavras tratase da ocorrência de um evento que faz cessar interrompe bruscamente um estado anterior mas que em conformidade com o real não se escreve como fato Poderá ser retroativamen te integrado à cadeia significante como suporte para estratégias fomentadoras de ações globais de supervisão e vigilância como as práticas atualmente denominadas de promoção da saúde destinadas a detectar compreender e significar emergências ocorrênciascontingências para com isso reconhecer para fa zer cessar seus efeitos eventos similares futuros Levy 1996 Como o nome indica os conceitos de emergência ou con tingência articulam acontecimentos dos quais podemos apenas constatar efeitos e na impossibilidade de propor medidas de ação retroativas indicar formas precaucionárias de base analó gica Em geral são acontecimentos desencadeados por fatores múltiplos e interconectados estruturados em redes abertas o Epidemiologia Saúde 51 que impossibilita estabelecer entre eles relações lineares de causalidade Na esfera dos acontecimentos contingentes pen samos ser de especial valor como tipologia de intervenção mais adequada a utilização de teoria de redes como mapa conceitua não somente explicativo no caso como modelagem de sobre determinação mas também como desenho metodológico para programas de promoção da saúde Não obstante tais aberturas e possibilidades cabem algumas perguntas Será que cada vez mais se irá conceber a ideia de saúde a partir da noção de segurança E que esta será mediada por métodos estratégias e técnicas de vigilância em saúde Ou será que por meio de exercícios de autovigilância Mas onde estão os sujeitos que sofrem E os agentes que operam as prá ticas E os gestores que se responsabilizam Como deslocar enfun o foco de uma gestão das doenças e seus riscos para uma política de saúde Sentidos políticos do conceito de risco De fato se levarmos a consequências práticas uma defmição de estratégias para promoção da saúde orientadas exclusiva mente ou predominantemente por uma renovação do concei to de risco como fazemos acima ao propor uma quarta cate goria de risco o risco contingencial estaremos priorizando talvez indevidamente uma visão unidimensional e mecanicis ta do processo saúdedoençacuidado Esta solução traz o risco de um novo panopticon agora alimentado pelas novas tecno logias de vigilância epidemiológica seus sensores e monitores conforme assinalam Castiel AlvarezDardet 2007 Devemos então avaliar como alternativa ou complemento o fomento de práticas de promoção da saúde com base em pro cessos geridos pelos sujeitos e grupos afetados pelos agravos à saúde focalizando conceitos como vulnerabilidade Ayres et ai 2006 por exemplo Tal perspectiva nos permitirá superar ou considerar problemas conceituais metodológicos e práticos advindos da mera atualização do conceito de risco sem consi derar os sentidos políticos da gestão dos riscos isto é suas ori gens e consequências políticas O desenvolvimento em curso de um quadro teórico tendo como base a noção de vulnerabilidade tem como pretensão produzir saberes mediadores que sem desprezar as contribui ções positivas da epidemiologia e das outras ciências da saúde possam aproximar seus constructos da apreensão das situações sociais determinantes da epidemia e das suas possibilidades efetivas de controle A Epidemiologia pode nos mostrar quem onde e quando está sendo ou pode vir a ser mais envolvido em situações de risco à saúde Mas para poder entender por que e apontar caminhos para intervir sobre esse processo também se fazem necessários saberes mediadores sínteses nas quais os aspectos políticos éticos culturais e psicoafetivos possam se mostrar na concretude de sua complexidade social Ayres et al 2006 Assim a vulnerabilidade pode ser defmida como uma sín tese compreensiva das dimensões comportamentais sociais e políticoinstitucionais implicadas nas diferentes suscetibilidades de indivíduos e grupos populacionais a um agravo à saúde e suas consequências indesejáveis sofrimento limitação e morte A adoção da perspectiva da vulnerabilidade tem implicações de diversas ordens Como forma de conhecer aponta para a necessidade de procedimentos sintéticos e interpretativos com preensivos de caráter transdisciplinar Como recurso para o 52 Capítulo 5 1 Risco Conceito Básico da Epidemiologia planejamento a noção de vulnerabilidade reforça a importância da politização radical desta prática já que sempre remeterá a aspectos relacionais valorativos e de visões de mundo na defi nição dos quê olhar quê fazer Assume também o caráter sem pre processual nunca finalista desta prática já que a cada nova situação alcançada novos horizontes de interesses concepções e valores se colocarão em cena Dois pressupostos são portanto indissociáveis da construção do quadro da vulnerabilidade Como elemento mediador volta do para sínteses de saberes pragmaticamente voltados para a ação numa perspectiva sociossanitária os diagnósticos de vulnerabi lidade pressupõem intersubjetividade e construcionismo O pressuposto da intersubjetividade tem a ver com a assun ção do caráter interativo de toda prática com implicações sobre o processo saúdedoençacuidado Ou seja para além da posi ção filosófica que adotamos de que nossas identidades discur sos nossa racionalidade são sempre originários de encontros entre sujeitos e sempre voltados para esses encontros é coeren te assumirmos que quanto mais busquemos um saber pragmá tico voltado para práticas que envolvem de modo imediato relações interpessoais como as relações sexuais na AIDS si tuações de conflito na violência etc mais o foco de nossas atenções deve se voltar para a intersubjetividade O que torna as pessoas vulneráveis são sempre interações relações que pre cisam ser identificadas problematizadas e transformadas Como decorrência necessária da assunção radical de inter subjetividades como foco de problematizações da vulnerabili dade tornase essencial que qualquer movimento de superação das situaçõesproblema das situações de vulnerabilidade im pliquem uma atitude construcionista Não é possível que nós como profissionais cientistas e técnicos possamos unilateral mente encontrar soluções de superação embora tenhamos como dever participar delas É preciso que os sujeitos direta mente envolvidos nas situações participem ativamente desse processo e os reconstruam conosco Qualquer tentativa de apreender uma situaçãoproblema desde uma perspectiva que não inclua de algum modo os par ticipantes da situaçãoproblema estará produzindo um saber que caminhará sempre no sentido da abstração requerendo como vimos saberes que o reconduzam a sínteses mais prag máticas Por outro lado um saber puramente pragmático ime diatista incapaz de distanciarse a níveis mais abstratos para dar nova inteligibilidade às situações nas quais são gerados perde também em capacidade crítica em potencial de enxergar regularidades tendências e mecanismos que podem ser de fun damental interesse como o conceito epidemiológico de risco Cabe ressaltar que não se trata aqui de desconsiderar o poder do conhecimento disponível sobre risco importante nas técni cas e conjuntos de práticas com vistas à prevenção de doenças em nível populacional Mas sim tanto sinalizar sobre possíveis efeitos de exageros em sua utilização como ressaltar sua vincu lação com aspectos indesejáveis das correntes configurações socioculturais que devem ser aperfeiçoadas Inegavelmente o cálculo do risco em termos de sua orientação temporal futu rológica desempenha um importante papel no sentido de via bilizar o delineamento de regularidades e padrões até que se possa ordenar as aparências de modo a produzirse algum sen so de previsibilidade com vistas ao controle e à prevenção dos agravos e à proteção e promoção da saúde A metáfora do panóptico de Bentham proposta por autores foucaultianos para analisar a problemática conceitua da saúde na sociedade veio a alcançar enorme influência no campo teó rico da Saúde Para alguns críticos na atualidade tal metáfora não é mais adequada para lidar com os elementos tecnológicos comunicacionais presentes na produção da subjetividade nas sociedades contemporâneas Mathiesen 1997 No caso da au tovigilância são perceptíveis outros sinais que podem ser mais bem representados pela noção de sinóptico Se no panóptico muitos eram observados e controlados por poucos através de postos privilegiados de observação supostamente ativa no si nóptico muitos observam passivamente a poucos e se autocon trolam por efeito de demonstração e convencimento algo pró ximo ao outro Big Brother o dos espetáculos de realidade televisiva Para compreender a dominância da noção de risco no ima ginário contemporâneo outra noção foucaultiana governa mentalidade justaposição de governo com mentalidade tem sido bastante utilizada Não vamos aqui entrar no detalhamen to das origens da noção de governamentalidade Segundo Lemke 2002 o aspecto que nos interessa é aquele desenvolvido por Foucault para abordar a capacidade do indivíduo autônomo de autorregularse e como isto se vincula a dimensões políticas e econômicas de exploração Muitas das críticas à ideia de pro moção de saúde e ao neoliberalismo e como estes se relacionam de modo recursivo se ancoram neste ponto de vista Bunton Burrows 1995 A governamentalidade diz respeito a formas de poder que transcendem o exercício direto de dominação mediante a pro dução de subjetividade Para isto segue uma racionalidade que defme finalidades de ação e modos apropriados de alcançála As formas de controle via autogoverno são denominadas tec nologias de si mesmo Em síntese o autocuidado é uma estra tégia de tornar indivíduos pessoalmente responsáveis pela ges tão de riscos socialmente gerados Um traço marcante da racionalidade neoliberal consiste na justaposição que ela pro cura estabelecer entre o indivíduo moral e responsável e o indi víduo econômico e racional A noção de livre arbítrio se escora tanto no sentido do direito de decidir como no da liberdade da escolha Esta é necessária na equação que desemboca na res ponsabilidade das ações e de suas consequências para este indi víduo Neste ponto importa delinear a noção de responsabilidade perante o risco Sabemos que tal tema permite complexas abor dagens éticofilosóficas jurídicolegais que decerto não cabem aqui Por enquanto basta considerarmos que a ideia de respon sabilidade em termos gerais envolve primordialmente a noção de dever ou obrigação de indivíduosinstituições prestarem con tas a instâncias de regulação concretas ou simbólicas por de terminadas ações sejam próprias sejam de outrem ou relativas a objetos que através de algum compromisso lhes foram confia dos Cabe destacar que se está nestas circunstâncias sujeito às dimensões da lei dos usos e costumes eou da consciência De qualquer forma há que levar em conta a ênfase moralis ta nas complexas sociedades modernas e sua correspondente preocupação com responsabilidade e culpabilização Innerarity 2004 Responsabilidade consiste em uma ideia normativa que enseja e sustenta ordenações essenciais à organização dos co letivos humanos É inevitável a associação de responsabilidade com culpà especialmente no que se refere ao descumprimento das obrigações A visão moralista a partir de raciocínios que visam a estabelecer causas bem definidas procura localizar e punir responsáveisculpados por correspondentes faltas Não é comum nestas circunstâncias existir muita disponibilidade para benefícios da dúvida em relação à indefinição das causas efetivas ou da culpabilidade dos réus Sabidamente a perspec tiva moralista além de inclinarse para o maniqueísmo não costuma reconhecerse como tal Epílogo politizar as relações entre epidemiologia doença risco e saúde Nossas ciências como constructos rac1ona1s sao mensagens que nos enviamos acerca da facticidade de nossa vida discurss capazes de interferir sobre as condições que regulam nossa exis tência material e práticomoral perguntas e respostas com que reagimos às interpelações de nossas experiências Gadamer 2004 Seguindo Canguilhem 1982 é possível aceitar que nossos discursos científicos sobre o adoecimento são como dispositi vos vitais que buscam manter uma organização aberta uma permanência que se dá pela capacidade de perceber e responder ao imponderável que é nosso meio socialmente biológico biologicamente social Somos seres criadores e até por isso mes mo vivemos num meio em constante mutação A mudança é nossa marca de origem condição de possibilidade da nossa existência e elemento necessariamente incluído em nossa per manência Ora por isso mesmo toda a normatividade que cria mos por intermédio da razão toda a adequação que fazemos em nós nos nossos modos de viver em comum e no nosso meio de forma a seguir vivendo e para viver melhor jamais pode ser concebida a priori de modo unívoco e permanente A vida hu mana só percebe algo de que precisa quando de alguma forma esse algo se lhe apresenta como carecimento como falta É esta percepção que leva Canguilhem a afirmar que embo ra epistemologicamente o fisiológico o funcionamento normal da economia orgânica humana dê base à enunciação científica do fenômeno patológico este antecede aquele ontologicamen te O patológico precede o normal e o defme Os obstáculos à vida humana é que a tornam a si mesma inteligível em suas exigências e preferências Nesse sentido cabe perguntar até que ponto é desejável racional prático buscar apreender cientifica mente a saúde Será o ideal de organizar as práticas de saúde em torno de aspectos não restritos ao tratamento de patologias ou prevenção de agravos dependente mesmo de uma conceitu ação positiva de saúde A resposta talvez não esteja na oposição entre saúde e do ença A construção da saúde possivelmente precisará sempre dos problemas obstáculos dos agravos para que possa se aper ceber de seus próprios interesses e meios de alcançálos mas essa apercepção poderá ser favorecida e potencializada se tais problemas e obstáculos forem tratados como objetos contra fáticos Isto é não é preciso abandonar a conceituação das do enças para se produzir conhecimento sobre saúde mas certa mente é preciso interpretar e tematizar ativamente que valores estão sendo obstaculizados pelas patologias e riscos no modo tal como os percebemos conceituamos e transformamos Se considerada como um fato em si mesma a doença ou seus riscos se absolutiza essencializa e enquanto tal perma nece reproduzindo respostas em uma mesma direção e sentido constrangendo os potenciais criativos da vida inibindo a ma nifestação de formas mais ricas e ativas de saúde Sob uma com preensão contrafática a doença obriga a pensar sobre aquilo que estando de um modo poderia estar de outro obriga a re fletir sobre outros modos em que a vida poderia estar correndo motivando e organizando mudanças buscando enriquecer suas qualidades Uma consequente assunção do caráter contrafático do ob jeto doença conduz por sua vez à necessidade de transforma ção do tipo de resposta a ser dada à positividade do agravo de Epidemiologia Saúde 53 uma tentativa sempre voltada para sua supressão ou prevenção à sua incorporação em um movimento interpretativo que faça emergir e criticar os conteúdos valorativos normativos que estão na base da sua positividade Este movimento implica um ativo trânsito interdisciplinar Senão de que forma identificar interpretar e validar de modo autêntico verdadeiro e legítimo as diferentes dimensões da vida negadas pelos agravos e adoe cimentos A fusão dos horizontes discursivos das diversas dis ciplinas científicas requer não o abandono de um discurso em prol de outro mas a criação de categorias que expressem os novos contornos que adquirem seus constructos a partir das luzes que sobre ele projetam os discursos de outras disciplinas além dos discursos não disciplinados Assim há que se buscar quadros e categorias teóricas que permitam fazer dialogar os instrumentos e achados da epide miologia Tais categorias ao oferecer a releituras transdiscipli nares a positividade que a Epidemiologia confere aos riscos e agravos podem potencializar a contribuição desta ciência ao desafio de promover saúde tanto quanto de protegerse e recu perarse dos agravos Claro que essa transdisciplinaridade não se constrói da noi te para o dia nem por decreto mas implica arranjos técnicos e institucionais que permitam um efetivo trânsito de sujeitos en tre diferentes áreas e grupos de produção científica Almeida Filho 1997 Este trânsito por seu lado encontra sérios obstá culos nas rígidas e poderosas fronteiras disciplinares que deli mitam não apenas áreas de competência científica mas sólidos interesses e poderes socialmente consusbstanciados e que não se deixam remover ingenuamente sem resistência Ayres 1997 Há portanto significativos esforços a serem empreendidos no plano político para que epidemiologia e outros saberes pos sam efetivamente dialogar resumidos na necessidade de dissol ver a feudalização das ciências e suas instituições Quanto a isso não parece haver solventé mais eficaz que o poder da so lução isto é a autoridade e a legitimidade que advêm da capa cidade de se oferecerem respostas convenientes e efetivas para situações que obstaculizam o bom curso da vida no seu coti diano Na capacidade de identificar problemas práticos que agre guem o maior número possível de interesses sociais e de orga nizar em torno desses problemas e não de áreas abstratas de expertise esforços transdisciplinares e intersetoriais de várias ordens caráter público e privado diferentes áreas de compe tência pesquisa e serviços etc encontrase com efeito um irresistível impulso à efetividade e legitimidade de diálogos transdisciplinares Temos todas as razões para sermos otimistas quanto a estes rearranjos no campo da saúde uma vez que as propostas de promoção da saúde como também as de vigilân cia da saúde por força do caráter politizado democratizado e regionalizado que querem imprimir à organização das práticas assistenciais constroem um novo e muito favorável cenário para que prevaleça o poder da solução o que se estivermos corretos será essencial para a sobrevivência diversificação e aperfeiço amento do conceito de risco Referências bibliográficas Almeida Filho N Transdisciplinaridade e saúde coletiva Ciência Saúde Co letiva 212520 1997 Almeida Filho N A ciência da saúde São Paulo Hucitec 2000 Armstrong D The rise of surveillance medicine Sociology of Health and Illness 173393404 1995 54 Capítulo 5 1 Risco Conceito Básico da Epidemiologia Atlan H Bousquet C Questions de vie Entre le savoir et lopinion Paris Seuil 1994 Ayres JRCM Devese definir transdisciplinaridade Ciência Saúde Coletiva 2123638 1997 Ayres JRCM Sobre o risco para compreender a epidemiologia São Paulo Hu citec 2008 3ª ed 328 p Ayres JRCM Calazans GJ Saletti Filho HC França Jr I Risco vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde ln Campos GWS Minayo MCS Akerman M Drumond Júnior M Carvalho YM Orgs Tratado de Saúde Coletiva São Paulo Hucitec Rio de Janeiro Fiocruz 2006 p 375418 Bauman Z Vidas desperdiciadas La modernidad y sus parias Barcelona Paidós 2005 Bernstein P Against the gods The remarkable story of risk Nova York John Wiley Sons 1996 Buck C Poppers philosophy for epidemiologists 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Epidemiologia campo científico que emerge no final do século XIX e se consolida em meados do século XX não escapa das tensões e questionamentos da sua história e das transformações conjunturais da ciência de sua época Neste capítulo propomonos a trazer uma breve apresenta ção das raízes históricas deste intrigante campo de conhecimen to chamado Epidemiologia atualizando e ampliando textos an teriores sobre a história dessa disciplina Almeida Filho 2000 Scliar 2002 Almeida Filho 2003 Scliar 2007 Esta breve his tória da ciência epidemiológica e seus saberes correlatos vem ilustrada com narrativas e referências literárias e cinematográ ficas que nos parecem pertinentes Primeiro focalizaremos os principais elementos precursores da sua constituição no seio da cultura ocidental moderna Em seguida vamos expor algu mas das circunstâncias que cercaram a emergência dos três pilares fundamentais da Epidemiologia a clínica a estatística e a medicina social Depois analisaremos sua consolidação como disciplina científica como espaço institucional e como eixo fundamental do campo de práticas da saúde coletiva Conclui remos o capítulo comentando sobre a fase atual de desenvolvi mento da Epidemiologia momento privilegiado de sua afirma ção como ciência geral da informação em saúde Primórdios de Hipócrates a Avicena A Epidemiologia estruturase historicamente sobre uma con tradição recorrente em distintos lugares épocas e conjunturas entre abordagens individualistas e enfoques coletivos da saúde Uma tensão essencial entre medicina individual e saúde cole tiva ou medicina curativa e medicina preventiva pode ser en contrada desde os primórdios do pensamento ocidental na Gré cia antiga A mitologia grega capta esse antagonismo ancestral na figura das filhas e herdeiras de Asclépios deus da saúde A ftlha mais velha de Asclépios Panaceia tornouse a pa droeirà da medicina individual curativa prática terapêutica baseada em intervenções sobre indivíduos doentes através de manobras físicas encantamentos preces e uso de fármacos Ainda hoje se fala em panaceia universal para designar algum medicamento ou procedimento de poder curativo excepcional e obviamente com certa ironia duvidoso Sua rival e irmã Higeia era venerada por aqueles que con sideravam a saúde como resultante da harmonia entre o ser humano e o ambiente Os higeus pretendiam promover a saúde por meio de ações que mantendo o equilíbrio entre os elemen tos fundamentais terra fogo ar água evitassem doenças Da sobrevivência dessas crenças e práticas através dos tempos de Figura 21 Higeia Asclépios e sua filha s 6 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia riva o conceito de higiene sempre no sentido de promoção da saúde principalmente no âmbito coletivo Por ter sido o criador do termo epidemià e pelo conteúdo da obra a ele atribuída autores clássicos da Epidemiologia MacMahon Pugh Ipsen 1960 Lilienfeld 1970 veem em Hipócrates o precursor da Epidemiologia Pouco se sabe sobre a vida de Hipócrates de Cós c 460 a 377 aC Poderia ter sido uma figura imaginária como tantas na Antiguidade mas há referências à sua existência em textos de Platão e Aristóteles Os vários escritos que lhe são atribuídos e que formam o Corpus Hippocraticus provavelmente foram o trabalho de várias pessoas talvez em um longo período de tem po O importante é que tais escritos traduzem uma visão racio nal da medicina bem diferente da concepção mágicoreligiosa predominante na Antiguidade O texto hipocrático intitulado A doença sagrada começa com a seguinte afirmação A doença chamada sagrada não é em minha opinião mais divina ou mais sagrada que qualquer outra doença tem uma causa natural e sua origem supostamente divina reflete a ignorância humanà Hipócrates postulou a existência de quatro fluidos humores no corpo humano bile amarela e negra fleugma linfa e san gue correspondentes aos elementos fundamentais terra água e fogo O ser humano constituiria uma entidade organizada pelo equilíbrio e sua saúde dependeria da harmonia entre os humo res e do balanceamento destes com os elementos naturais A obra hipocrática caracterizase pela valorização da observação empírica como o demonstram os casos clínicos nela registra dos reveladores de uma visão original do problema de saúde enfermidade A apoplexia dizem esses textos é mais comum entre as idades de 40 e 60 anos a tísica ocorre mais frequente mente entre os 18 e os 35 anos As observações hipocráticas não se limitavam ao paciente em si O texto conhecido como Ares águas lugares discute os fatores ambientais ligados à doença defendendo um conceito ecológico de saúdeenfermidade Daí emergirá a ideia do mias ma emanações de regiões insalubres seriam capazes de causar doenças como a malária muito comum no sul da Europa e uma das causas da derrocada do Império Romano O nome aliás vem do latim e significa maus ares lembrar que os romanos incorporaram os princípios da medicina grega Na tradição de Higeia a estrutura e o conteúdo dos textos hipocráticos sobre as epidemias e sobre o meio ambiente sem dúvida antecipam o raciocínio epidemiológico Não obstante parece que os herdeiros de Hipócrates não cultivaram a prima zia do coletivo Ao contrário talvez preferindo garantir sua he gemonia frente às inúmeras seitas que na Antiguidade prome tiam a saúde para os crentes revelaram eficiente senso Figura 22 Hipócrates de Cós mercadológico rapidamente adaptandose aos tempos pós helênicos e tornando a cura individual uma referência para sua prática Clavreul 1983 Os primeiros médicos de Roma em geral escravos gregos vendidos a preços comparáveis aos de gladiadores e eunucos segundo o renomado historiador da medicina Henry Sigerist 1941 trabalhavam para a corte o exército ou com certa ex clusividade para as famílias nobres receitando muitos fármacos para poucos enfermos LaínEntralgo 1978 Particularmente famoso foi Galeno ou Claudius Galenus 129216 natural de Pérgamon atualmente Bergama Turquia um importante centro urbano vinculado às duas principais civilizações da épo ca ali a cultura era grega e a lei romana Pérgamon é o lugar onde foi inventado o pergaminho e não por acaso a cidade se diava uma biblioteca capaz de rivalizar com a de Alexandria considerada a maior do mundo à época Por último mas não menos importante havia ali um grande templo dedicado a As clépios ao qual o pai de Galeno Nicon eminente astrônomo e matemático estava ligado Nicon cedo encaminhou o filho para a medicina naquela época um aprendizado informal depen dente da relação mestrediscípulo Dos 16 aos 20 anos Galeno foi atendente ou therapeutes no templo de Asclépios Depois da morte do pai morou em Smirna Corinto e Alexandria final mente foi para Roma onde ganhou fama pelo conhecimento habilidade e arrojo fazia até cirurgia ocular e cerebral Tornou se médico de celebridades incluindo imperadores Adriano Marco Aurélio Lucius Verus Commodus e Septimus Severus isto apesar da desconfiança que parte da sociedade romana nu tria em relação a médicos sobretudo os gregos Galeno sustentou e ampliou a teoria humoral de Hipócrates Em De temperamentis estabeleceu uma relação entre humores e temperamentos Criou o conceito de faculdades referentes ao funcionamento do corpo e do qual ficou a expressão faculda des mentais Galeno também era adepto da ideia do pneuma uma sutil e vital substância não exatamente o ar tal como hoje o concebemos que entrava no corpo através dos pulmões e depois transformada era distribuída pelo corpo através das artérias o pneuma controlava o funcionamento dos órgãos vi tais cérebro coração fígado Galeno acreditava que o cérebro regulava as faculdades racionais tais como o julgamento a ima ginação a memória mas que as emoções seriam controladas pelo coração e pelo fígado E o fígado estaria para o estômago esse era o raciocínio galênico como o fogo para a panela Na panela ocorre a cocção no fígado a concocção Da concocção dos alimentos resulta o quilo a expressão fazer o quilo até hoje significa estimular a digestão por meio de por exemplo caminhadas O quilo iria para o fígado ali uma segunda con Figura 23 Claudius Galenus cocção produziria os humores O fígado era considerado aliás o órgão principal do corpo humano e não é de admirar que até hoje seja grande o número de pessoas que atribuem seus sofri mentos quaisquer que sejam ao fígado A bile negra diziase é feita das partes menos puras e nutritivas do quilo É espessa pesada tende a descer enquanto o sangue que é mais vivo mais energético tende a subir precipita o envelhecimento e a morte É função do baço absorver a bile negra do sangue re distribuindoa quando o baço não executa essa função trans formase em um reservatório de humor estagnado do qual ema na o vapor negro que provocará a melancolia A influência de Galeno foi enorme para não poucos autores o título de pai da medicina se aplicaria melhor a ele do que ao lendário Hipócrates e dessa influência ele estava muito cons ciente A palavragalenos em grego quer dizer calmo sereno mas o doutor Galeno era orgulhoso arrogante um fanfarrão que nas suas obras mais de 300 calculase das quais 100 foram preser vadas não hesitava em falar mal dos rivais neutralidade cien tífica não era bem um característico da época Mas em matéria de terapêutica Galeno não diferia muito de seus contemporâ neos inclusive no que se refere ao uso de produtos vegetais que fazia importar de diferentes lugares do mundo Algumas destas substâncias como o ópio chegaram ao nosso tempo Além da medicina galênica o império romano tinha também algo que poderíamos chamar de infraestrutura sanitária e que se expressava na construção de aquedutos para trazer água de melhor qualidade a Roma e esgotos a Cloaca Maxima até hoje preservada é famosa De interesse para o estudo das ori gens da Epidemiologia o governo romano realizava censos perió dicos um deles levou o carpinteiro José e sua esposa Maria a Belém com as consequências que todos conhecemos e o Im perador Marco Aurélio introduziu um registro compulsório de nascimentos e óbitos Tais censos e registros medidas original mente de cunho político e administrativo antecipam o que mais tarde viria a ser conhecido como estatística vital No início da Idade Média o domínio do cristianismo e as invasões bárbaras determinaram um retorno a práticas de saú de de caráter mágicoreligioso que incluíam amuletos orações e o culto a santos protetores da saúde Não muito valorizadas aliás importante era a salvação da alma para a qual o corpo era um simples e desprezível invólucro Starobinski 1967A prá tica médica para os pobres era exercida principalmente por religiosos como caridade ou por leigos barbeiros boticários e cirurgiões como profissão Sigerist 1941 Nesse contexto não havia lugar para ações coletivas no campo da saúde exceto em momentos críticos não infrequentes de pragas e epidemias Cada família da aristocracia tinha seu médico privado que em muitos casos era um cortesão especialista também na arte de matar por envenenamento Uma referência cinematográfica na película A Rainha Margot dirigida por Patrice Chéreau o mé dicoenvenenador da família Médici faz Carlos IX herdeiro do trono francês e irmão de Margot suar sangue até a morte Curiosamente os historiadores da Epidemiologia não enfa tizam suficientemente o avanço tecnológico e o caráter coletivo da medicina árabe que alcançou seu apogeu nos califados de Bagdá e Córdoba no século X Preservando os textos hipocrá ticos originais médicos muçulmanos adotaram os princípios de uma prática precursora da higiene e da saúde pública com alto grau de organização social estabelecendo registros de in formações demográficas e sanitárias e até sistemas de vigilância epidemiológica Na história dessa medicina individual e cole tiva destacamse as lendárias figuras de Avicena IbnSina 980 a 1037 e Averróis Ibn Rushid 11261198 Apesar de terem vivido em épocas distintas e em pontos opostos do império Epidemiologia Saúde 7 muçulmano ambos compartilhavam uma filosofia precursora do pensamento científico moderno que evidentemente reper cutia nas suas obras sobre saúde LaínEntralgo 1978 Pérez Tamayo 1988 Além de médico e matemático precursor na introdução dos algarismos arábicos e da álgebra no Ocidente Avicena é consi derado o maior filósofo do islamismo Atribuemse a Avicena cerca de 200 obras várias na área da medicina destacandose O Livro da Cura enciclopédia composta de 18 volumes abran gendo metafísica matemática psicologia física astronomia e lógica e o Cânon de Medicina em 5 volumes que trata dos princípios gerais da medicina abordando etiologia sintomas diagnose prognose e terapêutica Neste último pregava registro sistemático e abordagem numérica da ocorrência de doenças dessa forma antecipando a epidemiologia O Cânon foi tradu zido para o latim no fmal do século XII e adotado nas univer sidades europeias até o século XVII O livro de Noah Gordon O Físico é interessante como ilus tração romanceada dessa fase tardia da Idade Média tanto no que se refere a uma descrição do cotidiano quanto ao panorama do cuidado à saúde Gordon 1996 Naquela época os médicos eram chamados físicos na língua inglesa o termo que ainda hoje designa o clínico é physician Nesse livro destacase a per sonagem real de Avicena como mentor do protagonista Robert Cole um fictício barbeirocirurgião londrino que tanto ambi cionava tornarse um físico efetivamente capaz de curar doen ças e aliviar o sofrimento humano que se disfarçou de judeu para ser aceito na escola médica de Ispahan capital da Pérsia A conservação nas bibliotecas árabes e difusão durante a era medieval tardia dos textos clássicos hipocráticos e galênicos importantes na instituição das primeiras escolas médicas oci dentais e dos escritos aristotélicos permitiu que no Renasci mento a tradição racionalista grega pudesse ser recuperada e revalorizada desempenhando assim papel fundamental na emergência da ciência moderna Neste aspecto é marcante a figura de Averróis médico jurista filósofo e conselheiro polí tico do Califado de Córdoba último bastião da dominação is lâmica na Península IbéricaAverróis exerceu influência direta sobre a filosofia escolástica e a ética naturalista do Renascimen to em razão de sua exegese do pensamento de Aristóteles para elaborar uma teoria do conhecimento defendendo que a per ca Figura 24 Gravura de Avicena 8 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia cepção depende tanto da realidade dos objetos conhecidos quanto dos processos mentais de construção lógica sobre eles Behmakhlouf 2006 Manifesto em numerosas e profundas transformações em todos os campos da vida social o Renascimento foi essencial mente um movimento de resgate dos elementos filosóficos es téticos e ideológicos mais avançados da cultura grecolatina Articulado à emergência de um novo modo de produção que posteriormente veio a ser chamado de capitalismo o pensa mento renascentista propiciou as bases para uma compreensão racional da realidade que resultaria na constituição das ciências modernas Rensoli 1987 Desse entendimento do mundo como efeito de processos naturais e históricos superando a metafísi ca religiosa medieval desencadeouse entre os séculos XVI e XVIII gigantesco e complexo esforço de produção de dados informações e conhecimento em todos os saberes e lugares ao alcance da expansiva civilização ocidental Nos distintos campos de ciência então em formação busca vase febrilmente demarcar objetos de conhecimento empírico desenvolvendose métodos e técnicas para produção de conhe cimento sistematizado e de tecnologias e práticas de intervenção visando a ampliar a capacidade humana de transformar o mun do em que vivemos Nesse contexto de inegável riqueza e dina mismo as raízes históricas das ciências contemporâneas podem ser identificadas em termos de objeto de conhecimento de ba lizamento metodológico e de campo de práticas sociais Nas seções que seguem trataremos do impacto desse movi mento na formação das raízes históricas da Epidemiologia ex plorando os principais eixos de constituição da ciência epide miológica na tríade Clínica saberes sobre saúdedoença Estatística diretrizes metodológicas quantitativas e Medicina Social práticas de transformação da sociedade Raízes da Epidemiologia na clínica e na estatística Na constituição do saber clínico naturalizado racionalista moderno pilar fundamental para a formação histórica da Epi demiologia podemos distinguir três etapas Na primeira etapa leigos e religiosos envolvidos no pro cesso saúdedoença buscavam a legitimação científica e política de uma prática clínica adequada à nova raciona lidade que então surgia e que se contrapunha à medicina dos antigos físicos medievais não havia ainda uma dis tinção muito clara entre as dimensões individual e cole tiva da saúde Na segunda etapa a medicina já se consolidava como corporação com um saber técnico próprio e uma rede de instituições de prática profissional Nessa fase a arteciên cia da clínica reforçou o estudo do caso a partir da inves tigação sistemática dos enfermos nos hospitais A terceira etapa vinculase à emergência da medicina científica quando já em meados do século XIX a revo lução industrial propiciava espaço e poder para a ascen são do saber científico e tecnológico como ideologia do minante nos países ocidentais Realmente o hospital nem sempre foi um lugar de cura para os enfermos Foucault 1979 O termo hospital de onde vem hospitalidade etimologicamente denota simplesmente um lo cal para abrigo ou acolhimento como os hotéis hospedarias ou albergues Os hospitais eram locais protegidos sob mandato de ordens religiosas a primeira delas foi a dos Cavaleiros Hospita lários que remontava às Cruzadas e da qual se originou o termo destinados a receber viajantes necessitados aqueles que não ti nham casa e só eventualmente doentes sem família O hospital não era primariamente um lugar para tratar ou estudar doenças mesmo porque a medicina pouco podia fazer pelos pacientes sobretudo graves tratavase portanto de dar apoio espiritual a essas pessoas Só aos poucos e em um processo que não excluía conflito de poderes entre poder médico e poder religioso o ca ráter dos nosocômios foi mudando com a introdução nestes de uma prática médica de base científica Trostle 1986 O processo de medicalização do hospital não ocorreu da mesma maneira em todos os tipos de instituição os manicô mios até meados do século XX destinavamse fundamental mente a isolar os doentes mentais Foram diz Michel Foucault 1979 uma criação da modernidade substituindo os leprosá rios que na Idade Média eram muito comuns Isto porque a hanseníase notandose que neste diagnóstico poderiam estar incluídos muitos problemas de pele era considerada tanto pelo judaísmo como pelo cristianismo como sinal de impureza de conduta pecaminosa e fazia com que a pessoa fosse isolada Para o capitalismo regime econômico que então se instaurava o doente mental que não trabalhava que vagava pelas ruas era um mau exemplo e tinha de ser isolado da sociedade Dizse que Philippe Pinel alienista francês que fez parte do governo instaurado pela Revolução Francesa teria libertado os loucos Na verdade Pinel determinou que os pacientes mentais não fossem mais acorrentados como antes era praxe e libertou al gumas pessoas desempregados mendigos presos políticos que estavam internadas em hospitais Mas os loucos conti nuaram no hospício Na sua fase de constituição como prática profissional a me dicina precisou afirmarse mediante a unificação do saber téc nico próprio da cirurgia com a base conceitua científicofilo sófica da clínicaA eterna disputa franceses versus ingleses pela hegemonia intelectual no Ocidente repercute nesse momento da história da ciência médica De acordo com a escola historiográfica francesa os primeiros passos para uma medicina dos tempos modernos conectamse a uma questão veterinária ocorrida na França naturalmente Michel Foucault 1979 conta que a Sociedade de Medicina de Paris fundadora da clínica moderna no século XVIII organi zouse a partir da Ordem Real para que os médicos investigas sem uma epizootia que periodicamente dizimava o rebanho ovino com graves perdas para a nascente indústria têxtil fran cesa A investigação incluía o que era novidade a contagem de casos o que representou uma importante contribuição para a introdução da metodologia epidemiológica ainda que não em humanos Uma interessante referência cinematográfica a esses primórdios encontrase no filme 11 Viaggio di Capitan Fracassa de Ettore Scola onde o narrador é um inspetor sanitário O filme alude ao nascimento da Comedia dellarte na França e demons tra o papel fundamental do Estado moderno no controle das epidemias nos últimos anos do século XVII Para os anglosaxões o fundador da clínica médica foi Tho mas Sydenham 16241689 médico e líder político londrino Sydenham foi também um precursor da ciência epidemiológica com a sua teoria da constituição epidêmica de inspiração dire tamente hipocrática Pearce 1995 Formado em medicina na Universidade de Oxford Sydenham estabeleceu as diferenças entre escarlatina e sarampo e entre gota e reumatismo articular propôs tratamentos para doenças como a malária a varíola e também para a dependência do ópio Precursor da moderna neurologiaSydenham foi o primeiro a descrever detalhadamen te a coreia doença neurológica que hoje leva seu nome Des creveu a mania e a histeria por ele considerada doença exclusi vamente feminina Seu primeiro livro foi Methodus Curandi Febres Método de Cura das Febres de 1666 Publicou em 1680 dois opúsculos de interesse epidemiológico o primeiro intitu lado On Epidemies e o segundo On the Lues Venerea O compên dio Processus Integri 1692 publicado postumamente tornouse texto padrão na literatura médica e é hoje considerado o para digma pioneiro da integração entre patologia e clínica A terceira etapa de constituição da medicina como prática científica ocorreu em paralelo e às vezes em antagonismo aos primeiros movimentos de constituição da Epidemiologia Como veremos com a teoria microbiana e a fisiopatologia a chamada medicina científica viria a desempenhar importante papel na institucionalização das práticas médicas contemporâneas O microscópio já era conhecido desde o século XVII nos Países Baixos onde a fabricação de lentes tinhase desenvolvi do bastante o filósofo Espinosa ganhava a vida nessa atividade A invenção do instrumento é atribuída aos irmãos Johannes e Zacharias Jansen Já o homem que popularizou o microscópio nada tinha a ver com medicina ou com as ciências biológicas era um comerciante de Delft chamado Anthoni van Leeuwe nhoek pronunciase lêuenrruk que viveu de 163 2 a 1723 Para examinar melhor os tecidos que comprava e vendia teve a ideia de colocar lentes em um tubo No entanto não ficou nisso ho mem curioso começou a examinar ao microscópio tudo o que estivesse a sua volta foi assim que se surpreendeu ao ver em uma gota de água estagnada milhões de criaturinhas muito pequenas mais numerosas segundo sua maravilhada descri ção que os habitantes dos Países Baixos Com o mesmo instru mento Louis de Ham contemporâneo de Van Leeuwenhoek e estudante de medicina em Leyden também na Holanda des cobriu os espermatozoides Não obstante os aperfeiçoamentos técnicos e vidraria terem propiciado a confecção de instrumentos óticos de potência razoá vel a identificação dos microrganismos foi um passo prévio ao reconhecimento do seu papel como agente etiológico de enfer midades A investigação científica sobre as doenças e suas causas à época gerou situações não raro dramáticas vividas por perso nagens dignos de textos ficcionais Foi o caso de Ignaz Semmelweis 18181865 cuja vida foi objeto de um livro do médico e es critor norteamericano Sherwin Nuland 2005 Nascido na Hungria Semmelweis era de família modesta O pai merceeiro enviouo aos 19 anos para estudar Direito em Viena então ca Figura 25 Thomas Sydenham Epidemiologia Saúde 9 Figura 26 lgnaz de Semmelweis pital do império austrohúngaro Semmelweis porém mudou bruscamente de rumo quando acompanhando um amigo es tudante de medicina assistiu a uma aula de anatomia dada por um carismático professor Decidiu estudar medicina fez o cur so parte em Viena e parte em Budapeste A capital austríaca era um centro de excelência médica graças a nomes como o de Karl von Rokitansky grande especialista em anatomia patológica de seu colaborador Jakob Kolletschka patologista forense de Jo seph Skoda notável clínico que sabia como poucos correlacio nar os dados de ausculta e percussão com achados patológicos e de Ferdinand van Hebra pioneiro na dermatologia E aí começaram as decepções para Semmelweis Formado quis trabalhar com Kolletschka mas não conseguiu Tentou Skoda de novo sem sucesso Frustrado encaminhouse para a obstetrícia que era então uma especialidade de importância secundária na qual médicos disputavam espaço com parteiras Semmelweis foi trabalhar na maternidade do Allgemeine Krankenhaus o hospital geral de Viena cujo chefe era Johann Klein autoritário sucessor do não menos autoritário Johann Boer Os dois diferiam em várias orientações uma das quais teria importância decisiva na carreira e na vida de Semmelweis Boer não permitia que os corpos das parturientes mortas fos sem necropsiados para fins de ensino Klein ao contrário tor nou isto obrigatório Uma doença dizimava as parturientes de então e ainda faz vítimas se bem que muito raramente a febre puerperal uma infecção de origem à época desconhecida hoje sabemos que é causada por uma bactéria o estreptococo A ma ternidade tinha dois setores o primeiro atendido por médicos e estudantes de medicina o segundo por parteiras Os óbitos por febre puerperal eram dez vezes mais frequentes no primei ro setor E isto só acontecia ali Não havia nenhuma epidemia da doença em Viena as parturientes que davam à luz em casa aparentemente não corriam um risco superior ao habitual Por quê Esta era a pergunta que intrigava Semmelweis Um dramático episódio estimulouo a buscar uma resposta Em 1847 seu ídolo Kolletschka depois de ferirse acidental mente em uma necropsia morreu de infecção maciça Ao exa me constataramse em seu cadáver as lesões e o pus que se encontravam nas mulheres mortas por febre puerperal Ele con cluiu que a doença das parturientes e aquela que matara Kol letschka eram a mesma e que o médico a tinha contraído atra vés da inoculação de partículas cadavéricas palavras do próprio Semmelweis Estas eram as partículas que infectavam as parturientes Como A distribuição da doença nos dois se tores dava a resposta através dos médicos que todos os dias de manhã procediam às necropsias nas pacientes falecidas como 1 O Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia o determinara Klein depois iam fazer os partos sem luvas que então não eram usadas e sem sequer lavar as mãos Sem melweis determinou que antes dos partos os profissionais la vassem as mãos com uma solução de cloro No ano seguinte a mortalidade nos dois serviços era praticamente igual Podese pensar que isto significou um triunfo para Semmelweis De maneira alguma Para começar Klein discordava dele e achava que a melhora na situação deviase a um sistema de ventilação que mandara instalar e que removia o miasmà Mas havia ou tros problemas A Hungria era então uma região subdesenvolvida do impé rio austrohúngaro e os húngaros eram desprezados pelos austríacos Além disso Semmelweis como um bom contesta dor apoiava revoluções socialistas que no ano de 1848 sacu diram a Europa Ocidental O pior é que Semmelweis não era muito hábil na defesa de suas ideias Não publicou qualquer trabalho científico referente a elas não as apoiou em experiên cias com animais de laboratório o que já estava se tornando rotina Em 1850 candidatouse ao cargo de docente na univer sidade Primeiro foi recusado depois aceito com uma restrição não poderia usar cadáveres para dar aulas uma evidente repre sália por causa de seu posicionamento na questão da febre puer peral Ofendido decidiu voltar para Budapeste onde passou a trabalhar em um hospital e onde finalmente escreveu um com plexo e obscuro livro sobre a febre puerperal Começou a mos trar sinais de perturbação mental e foi internado em um hos pício onde veio a morrer de uma infecção provavelmente agravada pelos espancamentos então habituais nos nosocômios psiquiátricos Nessa fase no plano institucional do establishment médico a medicina clínica renovavase com a emergência da fisiologia moderna e da microbiologia a partir principalmente das con tribuições de Claude Bernard 18131878 e de Louis Pasteur 18281895 O primeiro fez uma importante descoberta a fun ção glicogênica do fígado o que lhe valeu inclusive um prêmio da Academia Francesa Responsável por algumas das principais noções da medicina como meio interno e secreção interna Ber nard 1972 sua influência no campo da fisiologia chega ao século XX por meio de seus discípulos Ao lado de descobertas relevantes na área de biologia possibilitando a unificação da zoologia e da botânica Bernard desenvolveu importantes re flexões teóricas sobre os próprios fundamentos da medicina e da biologia em particular da fisiologia experimental da qual é considerado o fundador das ciências e do saber humano em geral Dutra 2001 Figura 27 Claude Bernard A microbiologia no entanto só começou a se desenvolver quando Pasteur a pedido das indústrias do vinho estudou em 1863 o processo de fermentação alcoólica evidenciando apre sença das leveduras que o causam Demonstrou também que o vinho fica azedo pela ação de um microrganismo que pode ser destruído pelo aquecimento método que depois seria co nhecido como pasteurização No ano seguinte a pedido do Mi nistério da Agricultura isolou os germes causadores da doença em bichosdaseda estudou depois o carbúnculo do gado e a cólera aviária A partir de 1880 Pasteur que era químico não médico ou biólogo começou a investigar doenças que afeta vam os seres humanos Seu prestígio científico já estava defini tivamente consolidado e influenciava numerosos pesquisadores entre eles o cirurgião inglês Lord Lister 18271912 Os traba lhos de Pasteur sobre putrefação e fermentação sugeriram a Lister que a infecção operatória podia ser causada por micror ganismosPassouse a usar fenol como antisséptico e se conse guiu reduzir de modo significativo os óbitos pósoperatórios que ocorriam então em número bastante elevado A trajetória de Pasteur é um exemplo clássico de como o desenvolvimento científico depende da demanda das forças econômicas e de como contribuições à medicina e à saúde pú blica podem ser feitas por alguém que não é originariamente da área O Instituto Pasteur tornouse um modelo que viria a ser reproduzido em muitos países inclusive o Brasil graças a Oswaldo Cruz que em sua viagem a Paris estagiou brevemen te no Instituto Scliar 2002 Em 1882 Robert Koch 1843191 O descobriu o agente cau sador da tuberculose e estabeleceu os postulados da teoria mi crobiana da doença em relação a esse agente ou seja ele teria de ser demonstrado em cada caso da doença por isolamento em cultura pura não poderia ser encontrado em nenhuma ou tra doença uma vez isolado deveria ser capaz de reproduzir a doença em animais de experimentação deveria ser recuperado dos animais nos quais a doença fosse produzida Scliar 2002 Entre 1880 e 1898 aplicandose os métodos de Koch foram descobertos os germes causadores da febre tifoide da hansenía se da malária da tuberculose do mormo da cólera da erisipe la o estreptococo responsável também por outras infecções da difteria da febre de Malta do cancro mole da pneumonia pneumocócica das infecções estafilocócicas do tétano da pes te do botulismo da disenteria Shigella Passemos agora ao segundo eixo de constituição histórica da Epidemiologia a metodologia estatística Figura 28 Louis Pasteur Para muitos autores o projeto de quantificação das enfer midades representa um elemento metodológico distintivo da nova ciência da saúde que ao mesmo tempo poderia servir como garantia da sua neutralidade científica Dada essa expec tativa é até irônico verificar que dos pilares da ciência epide miológica aqui considerados a estatística comparece como aquele em que a raiz política mais claramente se evidencia Ha cking 1991 Mais ainda apesar de pouco perceptível a politi zação encontrase inscrita no próprio nome daquela disciplina De fato o termo estatísticà Statistik neologismo criado por Hermann Conring 16061681 médico e cientista político ale mão designava originalmente o conjunto dos poderes políticos de uma nação deriva do vocábulo Staat Estado conjunto dos poderes políticos de uma nação e que por sua vez vem do la tim status oriundo de stare ficar de pé Foi Gottfried Achenwall professor na Universidade de Gõttingen quem primeiro em 1750 empregou o termo Estatística com um sentido numérico Hacking 1991 A palavra não surgiu por acaso O fim da Idade Média vê o surgimento do Estado moderno afirmamse então os conceitos de governo nação e povo O Estado moderno precisava contar avaliar numericamente a população e o exército a população porque é fonte de riqueza o exército porque é fonte de poder Para que o povo funcionasse como elemento produtivo e o exército como elemento beligerante necessitavase não apenas de disciplina como também de saúde E para avaliar a situação de saúde de novo números eram necessários Métodos numéricos no estudo da sociedade e de sua situação de saúde já haviam sido introduzidos no século XVII Os con ceitos e pesquisas de William Petty 16231697 e os registros populacionais de John Graunt 16201674 são frequentemen te mencionados como precursores da demografia da estatísti ca e da epidemiologia Last 2001 John Graunt 16201674 comerciante de profissão mas membro da Royal Society havia conduzido com base nos dados de obituário os primeiros es tudos analíticos de estatística vital identificando diferenças na mortalidade de diferentes grupos populacionais e correlacio nando sexo e lugar de residência O médico e rico proprietário rural William Petty 16231687 abandonou uma cátedra de Anatomia em Oxford para estudar o que denominava de ana tomia políticà coletando dados sobre população educação produção e também doenças Plebeu dos primeiros a enrique cer com a nascente ordem burguesa e que veio a se tornar Sir Figura 29 William Petty Epidemiologia Saúde 11 Figura 21 O Daniel Bernouilli gênio matemático e organizacional Petty introduziu o concei to de almoxarifado estudou o fluxo de mercadorias nos arma zéns portuários inventou a contabilidade e fez aprovar leis acer ca de registros vitais A valorização da matemática no nascente campo científico da saúde muito deve à genial família Bernouilli Fernandez Castro 2001 Nicolau Bernouilli 16531708 foi um comer ciante próspero de Basileia cuja descendência incluiu matemá ticos ilustres dois filhos Jakob 16541705 e Johann 1667 1748 e um neto Daniel 17001782 filho de Johann Contemporâneos de gênios como Newton Leibniz e Euler os irmãos Bernouilli desenvolveram importantes trabalhos mate máticos Jakob foi professor de matemática na Universidade de Basileia desde 1683 até sua morte Sua obra mais original é um tratado sobre a teoria das probabilidades o Ars Conjectandi A Arte da Conjectura Jakob defendeu Leibniz na famosa dis puta deste com Newton acerca de quem tinha descoberto o cálculo diferencial e integral Johann estudou medicina contra o desejo do pai que queria ver o talento matemático do jovem aplicado aos negócios da família Após séria disputa com o irmão Jakob Johann autoe xilouse na Holanda aceitando o cargo de professor na Univer sidade de Grõningen Só retornou à Suíça após a morte do irmão para substituílo como professor universitário Em 1666 a Aca demia de Ciências de Paris passou a instituir prêmios para a solução de problemas científicos considerados como desafios Johann Bernouilli ganhou três vezes o cobiçado prêmio que além de dinheiro significava enorme prestígio na comunidade científica Na terceira vez teve que dividir o prêmio com seu ftlho Daniel e por isso expulsouo de casa Embora tenha estu dado medicina a pedido do seu pai Johann Daniel Bernouilli destacouse como genial físico e matemático Adepto da nas cente corrente experimentalista da ciência estabeleceu em ca ráter pioneiro fórmulas para estimar anos de vida ganhos pela vacinação contra varíola e para avaliação do custobenefício em intervenções clínicas Daniel veio a ganhar dez vezes o pres tigioso prêmio da Academia de Ciências de Paris Fernandez Castro 2001 Contar os súditos sadios de um Estado parecia ter algo a ver com contar estrelas brilhantes Hacking 1991 Dois astrôno mos dessa época merecem destaque Halley e Laplace Médico de formação o inglês Sir Edmund Halley 165617 42 descobriu o cometa que leva seu nome Nas horas vagas desenvolvia téc nicas de análise de dados que resultaram nas famosas tábuas de 12 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia Figura 211 Lambert Quetelet vida primeiro instrumento metodológico da estatística vital PierreSimon Laplace 17491827 matemático e astrônomo francês além de consolidar a teoria das probabilidades aper feiçoou métodos de análise de grandes números aplicandoos a questões de mortalidade e outros fenômenos em saúde Aluno de Laplace LambertAdolphe Jacques Quetelet 1796 1874 astrônomo e matemático belga além de criador dopo pular índice de superfície corporal que leva seu nome foi o principal defensor da estatística aplicada sobretudo a fenôme nos biológicos e sociais o que incluía dados de morbidade e mortalidade Seus estudos sobre a consistência numérica dos crimes estimularam grandes discussões sobre o livre arbítrio versus o determinismo social Trabalhando para o governo bel ga implantou um centro de estudos estatísticos geográficos e meteorológicos em Bruxelas lá coletava e analisava dados re ferentes à mortalidade em geral e ao crime em particular de senvolvendo técnicas de realização de censos Suas áreas de interesse eram variadas além de criar métodos para compara ção e avaliação dos dados estudou fenômenos como a chuva de meteoros Em 1835 Quetelet apresentou sua proposta de uma física social baseada na concepção do homem médio a partir do valor central das medidas de atributos humanos agru pados de acordo com a curva normal Seu trabalho produziu grandes controvérsias entre os cientistas sociais do século XIX e gerou intensos debates políticos Hacking 1991 Médico e matemático PierreCharles Alexandre Louis 178 7 1872 é considerado um dos fundadores da Epidemiologia Li lienfeld 1970 Louis também foi o precursor da avaliação da eficácia dos tratamentos clínicos utilizando os métodos da nas cente estatística Starobinski 1967 Louis foi inicialmente des prezado e depois fortemente agredido por ter demonstrado o caráter nocivo de tratamentos muito usados à época com provou por exemplo que a sangria praticada desde os tempos hipocráticos para reduzir a febre supostamente causada pelo excesso do elemento fogo no sangue não tinha efeitos terapêu ticos e pior resultava em aumento da mortalidade por febre tifoide Posto no ostracismo pela poderosa corporação médica francesa criou uma escola médica em sua própria casa atrain do mais alunos estrangeiros clandestinos na opinião dos do centes da Faculdade de Medicina do que compatriotas Lilien feld 1970 A pesquisa da origem das doenças com auxílio da matemá tica em muito influenciou o desenvolvimento dos primeiros estudos de morbidade na Inglaterra através de três discípulos de Louis por coincidência todos com o mesmo prenome William Farr William Budd e William Guy e nos EUA com Lemuel Shattuck Lilienfeld 1979 Caráter pioneiro nas esta Figura 212 Pierre Louis tísticas de saúde é atribuído a William Farr 18071883 Médi co Farr tornouse em 1839 diretorgeral do recémestabelecido General Register Office da Inglaterra e aí permaneceu por mais de 40 anos Seus Annual Reports nos quais os números de mor talidade se combinavam com vívidos relatos chamaram a aten ção para as desigualdades entre distritos sadios e não sadios do país Last 2001 Com o método numérico de Louis e a estatística médica de Farr alcançavase uma razoável integração entre a clínica e a estatística Contudo para que dessa combinação resultasse uma nova ciência da saúde de caráter essencialmente coletivo era necessário partir do princípio segundo o qual a saúde é uma questão social e política princípio este aliado a uma preocupa ção e a um compromisso com os processos de transformação da situação de saúde na sociedade Medicina social No final do século XVIII o poder político da burguesia emer gente consolidase pela cooptação do regime monárquico como na Inglaterra e na Alemanha ou pela ruptura revolucionária como na França e nos EUA As bases doutrinárias dos discursos políticos sobre a saúde emergem nessa época na Europa Oci dental em um processo histórico de disciplinamento dos corpos e constituição das intervenções sobre os sujeitos Por um lado a Higiene enquanto conjunto de normatizações e preceitos a serem seguidos e aplicados em âmbito individual produz um discurso sobre a boa saúde francamente circunscrito à esfera moral Por outro lado as propostas de uma Política ou Polícia Médica estabelecem a responsabilidade do Estado como defi nidor de políticas leis e regulamentos referentes à saúde no coletivo e como agente fiscalizador da sua aplicação social des ta forma remetendo os discursos e as práticas de saúde às ins tâncias jurídicopolíticas Nessa fase sucedemse diferentes tipos de intervenção es tatal sobre a questão da saúde das populações Rosen 1980 Na França com a Revolução de 1789 implantase uma medi cina urbana com a finalidade de sanear os espaços das cidades isolando áreas consideradas miasmáticas Foucault 1979 Na Alemanha em 1779 emergem propostas de uma política mé dica baseada em medidas compulsórias de controle e vigilân cia das enfermidades sob a responsabilidade do Estado jun tamente com a imposição de regras de higiene individual para o povo Naquele ano começava a ser publicado o System einer Vollstiindigen Medizinischen Polizei obra monumental com a qual Johann Peter Frank 17451821 lançava o conceito pa ternalista e autoritário de polícia médica ou sanitária Rosen 1980 No século seguinte registrase nos países europeus um pro cesso macrossocial da maior importância histórica a Revolução Industrial que produz um tremendo impacto sobre as condições de vida e de saúde das suas populações Com a organização das classes trabalhadoras e o aumento da sua participação política principalmente nos países que atingiram um maior desenvolvi mento das relações produtivas como Inglaterra França e Ale manha rapidamente incorporamse temas relativos à saúde na pauta das reivindicações dos movimentos sociais do período Surgem nesses países propostas de compreensão da crise sani tária como um processo fundamentalmente político que em seu conjunto recebeu a denominação de Medicina Social A Revolução Industrial fez emergir o fenômeno concreto do proletariado e o conceito de força de trabalho A brutal opressão da massa trabalhadora motivou lutas políticas orientadas por diferentes doutrinas sociais incluídas na denominação geral de socialismo utópico Entre 1830 e 1850 uma dessas correntes defendeu o conceito da política como medicina da sociedade e reciprocamente da medicina como prática política Iniciase então um movimento organizado para a politização da medi cina na França e na Alemanha As adesões a esse movimento e às práticas dele decorrentes resultam naquilo que veio a ser co nhecido como Medicina Social Rosen 1980 expressão pro posta em 1838 por Jules Guérin médico e jornalista francês Para Guérin e outros líderes a medicina deveria ser um instru mento de transformação social Um objetivo que tinha e tem razão de ser Em síntese postulavase nesse movimento que a medicina é política aplicada no campo da saúde individual e que a polí tica nada mais é que a aplicação da medicina no âmbito social curandose os males da sociedade A participação política é a principal estratégia de transformação da realidade de saúde na expectativa de que das revoluções populares deveria resultar democracia justiça e igualdade principais determinantes da saúde social Segundo demonstravam vários relatórios dos discípulos de Louis como Villermé na França e Edwin Chadwick na Inglater ra as duras condições de vida da classe trabalhadora resultavam na deterioração de seus níveis de saúde Em 1826 Louis René Villermé 17821863 médico publicou um relatório analisando a mortalidade nos diferentes bairros de Paris Tableau de l État Physique et Morale des Ouvriers concluindo que era condicio nada sobretudo pela renda Na Inglaterra berço da Revolução Industrial também surgiram estudos desse tipo ali se faziam sentir com mais força os efeitos sobre a saúde da urbanização da proletarização e da miséria Esta situação inspirou Friedrich Engels 1972 a escrever o célebre livro As Condições da Classe Trabalhadora na Inglaterra em 1844 que além de seu aspecto social e político foi uma contribuição importante para a formu lação da epidemiologia científica Breilh 1991 Em 1850 nos EUA Lemuel Shattuck livreiro escreveu um relato sobre as con dições sanitárias em Massachusetts e como consequência uma diretoria de saúde pública reunindo médicos e leigos foi pionei ramente criada naquele Estado norteamericano O século XIX foi uma época de sangrentas revoluções como as rebeliões urbanas de 1848 e a Comuna de Paris em 1871 Karl Marx já diagnosticava os males do capitalismo e propunha pro fundas modificações na sociedade Mesmo os que não concor davam com Marx constatavam que alguma coisa precisava ser feita para evitar um grau de deterioração social capaz de com prometer o próprio sistema e de por assim dizer matar a ga linha dos ovos de ouro Foi o que levou Otto von Bismarck o Epidemiologia Saúde 1 3 chanceler de ferro da Prússia a dizer aos latifundiários e ca pitalistas que reclamavam do sistema de seguridade social e de saúde sob muitos aspectos pioneiro por ele criado em 1883 Os senhores têm de ser salvos dos senhores mesmos As sombrias condições sociais foram muito bem retratadas pelos escritores do período que faziam uma literatura crua re alista objetiva Disso dão exemplo três grandes romancistas Victor Hugo Émile Zola Charles Dickens O romance de Victor Hugo 18021889 cobre um período de vinte anos a partir de 1815 O personagem principal de Os Miseráveis Hugo 2002 é Jean Valjean aprisionado por ter roubado pão para alimentar sua faminta família e depois libertado mas implacavelmente perseguido pelo inspetor de polícia Javert Há uma grande ga leria de personagens como Cosette adotada por Jean Valjean filha de uma operária que despedida do emprego se prostitui e morre e o estudante Marius que luta nas barricadas contra o governo francês Desta obra a frase mais conhecida talvez seja Quem rouba um pão é ladrão quem rouba um milhão é barão um protesto contra a desigualdade e a injustiça feito contudo por alguém que não tinha ideais socialistas Outra obraprima da literatura realista francesa foi o romance Germinal Zola 2000 que tem como cenário o norte da França ali mineiros entram em greve por melhores salários e melhores condições de vida uma situação que Zola conhecia bem para familiarizarse com o tema de seu livro ele trabalhou 2 meses como mineiro Charles Dickens 18121870 um dos mais famosos escri tores da era vitoriana era um homem de grande sensibilidade social explicável pelas penosas circunstâncias de sua infância tendo seu pai sido preso por dívidas o menino Charles então com 12 anos teve de trabalhar dez horas por dia como ferroviá rio Aos 22 anos enveredou pelo jornalismo carreira na qual teve enorme êxito graças à sua notável capacidade de empatia com a população Começou também a publicar ficção e de sua obra o segundo romance escrito em 1838 Oliver Twist 2007 dá uma boa amostra Nela o escritor retrata a sordidez e a hi pocrisia de seu tempo denunciando vários problemas sociais nestes incluída a Poor Law Lei dos Pobres segundo a qual os pobres deveriam trabalhar obrigatoriamente nas workhouses em regime semiprisional É o caso de Oliver Twist Filho de pai desconhecido e de uma mãe que morre logo após o parto Oli ver passa a infância em um orfanato onde é severamente mal tratado depois vai para uma workhouse da qual foge dirigin dose para Londres No caminho conhece John Dawkins The Artful Dodger um jovem delinquente que o apresenta a Fagin líder de uma quadrilha de garotos criminosos Acompanhaos e vêos surpreso roubar a carteira de um senhor É preso li bertado graças ao testemunho de um livreiro que vê a cena é recolhido pelo homem que foi vítima do roubo Sucedese uma série de aventuras que fascinavam o público tornando Dickens um escritor extremamente popular Oliver Twist até hoje é lido ir Figura 213 Charles Dickens e uma gravura de época 14 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia e recentemente transformado em um musical no palco e na tela fez grande sucesso Na Inglaterra para superar as terríveis condições sociais des sa fase histórica do capitalismo o movimento assistencialista promovia uma medicina dos pobres parcialmente sustentada pelo Estado Rosen 1994 Em uma perspectiva mais técnica teve início um longo trabalho de constituição oficial da saúde pública na GrãBretanha Dessa forma a partir de 1840 apare cem inquéritos estatísticos e relatórios oficiais técnicos os fa mosos Blue Books Em 1842 Edwin Chadwick 18001890 escreveu um relatório que depois se tornaria famoso As Con dições Sanitárias da População Trabalhadora da GrãBretanha Chadwick que não era médico nem sanitarista mas advogado tanto impressionou o Parlamento com o seu trabalho que este em 1848 promulgou uma lei de saúde pública Public Health Act criando a Diretoria Geral de Saúde encarregada princi palmente de propor medidas de saúde pública e de recrutar médicos sanitaristas Rosen 1994 Um lendário personagem da Medicina Social é Rudolf Lu dwig Karl Virchow 18211902 médico patologista antropó logo ativista da saúde pública e político Scliar 2002 De mo desta família de agricultores da Pomerânia Virchow queria estudar teologia mas achando que não se sairia bem como pregador no que como veremos talvez estivesse enganado mudou de ideia e graças a uma bolsa de estudos pôde cursar a escola de medicina da Academia Militar da Prússia em Ber lim o FriedrichWilhelms Institut que formava médicos para o exército prussiano A disciplina ali era dura mas isto não era problema para o dedicado jovem que se entregava com afmco a seus estudos seu objetivo como escreveu ao pai era adquirir um universal conhecimento da natureza Diplomado abandonou a carreira militar e foi trabalhar no Hospital Charité em Berlim Logo se tornou conhecido por suas posições políticas contestadoras Em 1847 aos 26 anos foi enviado pelo legislativo de Berlim para estudar um surto de tifo na Alta Silésia onde uma população de origem polonesa a mesma origem da família de Virchow vivia em deploráveis condições O relatório que escreveu a respeito é um documen to histórico uma candente denúncia do capitalismo A preven ção de epidemias não dependia apenas de remédios ou medidas higiênicas mas exigia uma ampla reforma das condições socio econômicas uma posição que o tornou um pioneiro da medi cina social coisa que resumiu em uma frase Os médicos são os naturais defensores dos pobres As recomendações de Vir chow incluíam a democratização da Silésia a separação entre Igreja e Estado o aumento da taxação para os ricos e diminui ção desta para os pobres construção de estradas estímulo à agricultura estabelecimento de cooperativas agrícolas Virchow foi criticado pelos aspectos políticos de seu documento e res pondeu com uma frase famosa A medicina é ciência social política não é mais que a medicina com visão alargadà Mais tarde acrescentaria Se a doença é uma expressão da vida indi vidual sob circunstâncias desfavoráveis a epidemia deve ser a expressão de problemas sociais Virchow não ficou só no pronunciamento 8 dias depois de seu regresso lá estava ele nas ruas de Berlim ajudando os re volucionários de 1848 a construir suas barricadas Depois da revolução abraçou a causa da reforma médica Editava um jor nal Die Medizinische Reform em grande parte escrito por ele próprio Resultado foi suspenso de seu cargo no Hospital Cha rité mas graças aos protestos de médicos e estudantes voltou É verdade que aí pesou certa dose de pragmatismo do próprio Virchow assinou uma declaração prometendo não expressar abertamente suas opiniões políticas Foi então para Würzburg em uma espécie de exílio interno onde trabalhou como anato mista e começou a formular suas ideias sobre patologia celular Em 1856 voltou para Berlim como professor de anatomia pa tológica área na qual desempenhou papel pioneiro Tornouse então diretor do recémcriado Instituto de Patologia Virchow era um verdadeiro dínamo um homem que desen volvia intensa e criativa atividade e em várias áreas Scliar 2002 Na medicina o seu trabalho desbravou caminhos Já aos 26 anos formulou um conceito revolucionário a doença seria não um fenômeno estranho ao corpo mas a vida em condições alteradas Foi o primeiro a reconhecer a leucemia como entida de mórbida Também estudou o fenômeno da trombose e a for mação de êmbolos termo por ele criado que depois obstruirão os vasos por exemplo no pulmão e no cérebro E foi o fundador da patologia celular Ajudou muito o fato de ser um entusiasta da microscopia na qual seus alunos eram obrigatoriamente ini ciados pois deveriam pensar microscopicamente Mas Virchow não se restringia ao laboratório é considerado um dos iniciadores da antropologia e da geografia médicas Trostle 1986 A teoria que mais o popularizou ficou sinteti zada no dito latino que no entanto não era de sua autoria e sim do francês FrançoisVincent Raspail Omnis cellula e cellu la toda célula provém de outra célula um golpe na ideia da geração espontânea segundo a qual vermes por exemplo po deriam ser gerados por carne em decomposição O princípio básico da patologia celular é de que nas células se originam as doenças Nada de humores nada de miasmas Virchow não estava imune a erros Opôsse às ideias de Sem melweis sobre a transmissão da febre puerperal para ele a con taminação do canal genital seria apenas um dos fatores causa dores da doença junto com condições atmosféricas distúrbios nervosos doenças infecciosas concomitantes problemas na lac tação Baseado nisto opôsse também à recomendação de Sem melweis quanto à lavagem das mãos como forma de prevenção da febre puerperal Na verdade seu posicionamento ainda era uma repercussão da polêmica epidemiológica básica durante o século XIX miasma versus contágio Essa controvérsia não compreendia apenas um problema científico teórico era um problema social e político de caráter eminentemente prático Contágio implicava quarentena limi tação de liberdade individual e de comércio eram pois anti contagionistas a classe burguesa em ascensão e os liberais Tam bém estavam entre os anticontagionistas reformadores sociais ingleses como Edwin Chadwick que buscavam explicações para o surgimento de doenças nas péssimas condições de vida Figura 214 Rudolf Vi rchow e trabalho da época Os contagionistas eram em geral mem bros da oficialidade do Exército e da Marinha A teoria infec ciosa veio trazer um considerável reforço aos contagionistas mas foi recebida com ceticismo Quando Pasteur atribuiu a fer mentação a microrganismos o famoso químico alemão Justus von Liebig comentou irônico Isto é o mesmo que dizer que a correnteza do Reno é causada pelo movimento das rodas dos moinhos Contudo os êxitos de Pasteur e de seus seguidores entre eles Oswaldo Cruz aparentemente não deixavam dúvidas sobre o acerto de suas teorias Pela primeira vez na história da medi cina identificavase com elevado grau de certeza a causa de doenças Mais que isso era possível produzir agentes imunizan tes capazes de evitálas Ao fim e ao cabo a polêmica parecia superada a enfermidade mesmo infecciosa resulta da conjun ção de vários fatores o agente bactéria vírus o meio ambien te a pessoa que contrai a doença Parecia decretado o fim da Medicina Social De fato o for midável avanço da fisiologia da patologia e da bacteriologia no século XIX devido principalmente a Bernard Virchow e Pas teur representou um inegável fortalecimento da medicina cien tífica inclusive e principalmente a medicina de caráter indivi dual curativo superando o enfoque coletivo higienista na abordagem da questão da saúde e seus determinantes Entretanto como veremos em seguida nem a bemsucedida cooptação dos movimentos médicosociais da Inglaterra e da França pelo Estado burguês impediu a difusão do conjunto clí nica científicamétodo numéricovisão sanitária nem a hege monia da chamada medicina científica representou obstáculo para o projeto científico da Epidemiologia Assim nos EUA vários exalunos de Pierre Louis alcançaram posições políticas e acadêmicas importantes e continuaram engajados no ensino da estatística médica como fomentadora de uma potencial re forma sanitária o que resultou na organização do National Pu blic Health Service Papel de destaque teve aí Oliver Wendell Holmes 18091894 professor de Medicina na Harvard con siderado o primeiro epidemiologista norteamericano Na Grã Bretanha e por causa da teoria microbiana a medicina social evoluiu para uma vertente supostamente apenas técnica fo mentando a organização de uma saúde pública estreitamente vinculada ao aparelho burocrático do Estado Scliar 2002 Já a medicina social germânica sobreviveu através de dois movimentos complementares Por um lado influenciada e apoiada por Virchow surgiu em Berlim uma escola de patologia geográfica e histórica liderada por August Hirsch 1817 1894 Considerado como o fundador da moderna geografia médica Hirsch foi também um precursor da epidemiologia ecológica antecipando as análises de tempolugar que atualmente reemer gem no campo epidemiológico Por outro lado merece destaque e será melhor detalhado adiante o trabalho de von Pettenkoffer à frente do Instituto de Higiene de Munique que conseguiu ar Figura 215 Oliver Wendell Holmes Epidemiologia Saúde 1 S ticular as ciências biológicas da saúde práticas de saúde públi ca oficial e movimentos de participação política orientada por ideias da Medicina Social John Snow e a síntese epidemiológica Os sanitaristas britânicos que não haviam participado das revoltas urbanas do período buscaram como saída a integração de preocupações filantrópicas e sociais com o conhecimento científico e tecnológico propondo transformações políticas pela via legislativa Tentavam à sua maneira institucionalizar uma nova ciência síntese da clínica médica da estatística e da me dicina social que viria a se tornar a Epidemiologia Assim em 1850 sob a presidência de Lord AshleyCooper e tendo Chadwick como vicepresidente organizouse na In glaterra a London Epidemiological Society fundada por jovens simpatizantes das ideias médicosociais juntamente com pro fissionais de saúde pública e membros da Real Sociedade Mé dica White 1991 Entre os membros daquela sociedade cien tífica pioneira encontravase Florence Nightingale 1820191 O que mais tarde seria considerada a fundadora da moderna en fermagem Williamson 1999 Os estudos pioneiros de Nightin gale sobre a mortalidade por infecção póscirúrgica nos hospi tais militares na Guerra da Crimeia confirmaram em escala maior os estudos clínicos de Semelweiss A ela atribuise a in trodução do gráfico setorial e o aperfeiçoamento dos estudos comparativos controlados originalmente concebidos por Louis Winkel Jr 2009 Entre os membros da London Epidemiological Society en contravase John Snow 18131858 por muitos considerado o pai fundador da Epidemiologia Cameron Jones 1983 Van denbroucke et al 1991 Sua vida relativamente curta mas in tensa foi marcada pelo pioneirismo Filho mais velho de um trabalhador de York tornouse aos 14 anos aprendiz de William Hardcastle um cirurgião de NewcastleonTyne a cirurgia não era então considerada exatamente medicina o título de Doctor só era usado pelos clínicos o cirurgião era Mister de modo que o aprendizado era feito pelo sistema mestrediscípulo Ocor reu então na Inglaterra 18311832 uma violenta epidemia de cólera doença que era muito comum e que se manifesta por vômitos e diarreia profusa e capaz de levar à morte por desi dratação A bactéria causadora o vibrião colérico Vi brio cho lerae ainda não tinha sido identificada a enfermidade era como outras atribuída a miasmas Eram tantos os casos que Hardcastle delegava ao jovem Snow o atendimento de muitos deles Foi a primeira experiência do futuro médico com a doen ça que o celebrizaria Snow depois estudou medicina em Londres graduouse em 1844 tornandose um licenciado pelo Royal College of Physi cians e começou a clinicar na capital britânica Tinha interesse pela anestesiologia e foi pioneiro no uso de éter e clorofórmio anestesiando inclusive a rainha Vitória em um de seus partos Solteirão de hábitos regulares vegetariano Snow restringia sua vida social às reuniões científicas da Royal Medical and Chi rurgical Society Em 1848 ocorreu novo surto de cólera desta vez em Lon dres já então uma megalópole de 25 milhões de habitantes A cidade de Edmund Burke Percy Shelley William Hogarth Char les Dickens dos cafés dos teatros dos museus das lojas era também uma cidade precaríssima do ponto de vista de higiene e saneamento Os dejetos se acumulavam por toda parte e eram jogados no Tâmisa cuja água era utilizada no abastecimento Completavase assim o ciclo oralfecal responsável pela trans 16 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia Figura 216 Florence Nightingale missão da doença Para enfrentar este desafio a medicina vito riana estava completamente desamparada e em grande parte dominada pela charlatanice De novo Snowviuse confrontado com o desafio o que causava aquela e outras doenças O mias ma era como vimos a resposta habitual mas havia outras ideias algumas datando da antiguidade Tucídides atribuía a epidemia de Atenas em 430 aC peste bubônica ao envenenamento dos reservatórios pelos inimigos da cidade No século I aC Marcus Terentius Varro amigo de Cícero falava em invisíveis animalí culos que entram no corpo pelo nariz e pela boca causando enfermidade mas essa não era uma ideia disseminada A noção de contágio era bastante difundida e explicava por exemplo o horror à hanseníase Uma nova teoria surgiu quando no século XVI a lista das doenças que atemorizavam a Europa sofreu um importante acréscimo sífilis O nome vem do poema publicado em 1530 pelo médico Girolamo Fracastoro 14781553 Syphilus sive Morbus Gallicus Sífilis ou a Doença Francesa Syphilus é o nome de um pastor que contrai a doença como castigo dos deuses Era chamada doença francesa porque segundo Fracastoro ti nha aparecido na Itália à época da ocupação francesa em Ná poles Para os franceses porém era a doença italiana como para os portugueses era a doença castelhana para os poloneses a doença alemã para os russos a doença polonesa No poema Fracastoro atribui a disseminação da sífilis às seminaria conta gium sementes do contágio pequenas entidades que passa vam de uma pessoa a outra pelo contato direto ou por meio das roupas ou pelo ar uma ideia formulada 130 anos antes que van Leeuwenhoek visse ao microscópio as pequenas cria turas que tanto o maravilharam Para Snow a teoria do miasma não podia explicar a epidemia de cólera já no surto de 1831 tinha anotado que mineiros tra balhando no interior da terra portanto longe de regiões panta nosas miasmáticas haviam adoecido Em agosto de 1849 du rante o segundo ano da epidemia publicou um panfleto 39 páginas intitulado On the Mode of Communication of Cholera Sobre a Maneira de Transmissão da Cólera Nele defendia a ideia de que a doença era transmitida pela água E citava o exem plo de duas fileiras de casas fronteiras em uma das quais os casos de cólera eram mais frequentes Por quê Porque dizia os moradores destas casas despejavam águas servidas em um valo que contaminava o poço do qual as mesmas pessoas obti nham a água para beber Mas e para não polemizar com os adeptos da teoria do miasma Snow não falava em germes e sim em um veneno que tinha a capacidade de se multiplicar no intestino O texto de Snow teve escassa repercussão Uma resenha no London Medical Journal setembro de 1849 cumprimentavao por seu empenho em tentar resolver o mistério da transmissão da cólera mas dizia que ele não tinha fornecido qualquer pro va do acerto de seu ponto de vistâ o que em um certo sentido era verdade faltava ainda comprovar a teoria com dados nu mer1cos Em 1854 a cólera chegou ao distrito londrino em que Snow trabalhava A distribuição da doença contudo era desigual ocorrendo mais em certos lugares Uma teoria divulgada pelo jornal Times era de que se tratava de solo impregnado com os restos mortais de pessoas enterradas durante a Grande Praga de 16651666 uma epidemia de peste bubônica não de cólera solo este que tendo sido remexido para uma construção emitia miasma envenenando a atmosfera Ou talvez se tratasse de más condições de higiene domiciliar No entanto inspetores do Board of Health órgão de saúde pública concluíram que as casas eram relativamente limpas Os casos eram mais frequentes entre pessoas que diante da inexistência de rede pública de abastecimento usavam a água fornecida pela empresa Southwark and Vauxhall Water Com pany colhida em um poço de Broad Street Duas mulheres que tinham tomado água desse poço estavam entre as primeiras vítimas da doença mas os operários de uma cervejaria dos ar redores que dispunha de abastecimento próprio de água não adoeceram E também em uma workhouse das redondezas e que tinha seu próprio poço só 5 dos 535 internos mesmo desnutridos e vivendo em más condições de higiene tinham morrido Snow visitou um café perto do poço de Broad Street cuja água era usada pelo dono no preparo de refeições nove fregueses tinham morrido de cólera e o mesmo acontecera com os sete empregados de uma loja de artigos dentários E ainda havia o trágico e curioso caso de Susannah Eley uma viúva re sidente em Hampstead a algumas milhas dali que por alguma razão fazia questão de beber a água do poço de Broad Street e que acabou adoecendo de cólera Sua sobrinha que visitandoa tomou a mesma água igualmente adoeceu e morreu Snow colheu uma amostra da água do poço e levoua ao microscopista Dr Arthur Hill Hassall que reportou um exces so de matéria orgânica na água acrescentando que tal não era inusitado Foi então que Snow decidiu reunir evidências esta tísticas sobre a doença Preparou um mapa mostrando onde as vítimas viviam e de quem recebiam a água Constatou então que na região abastecida pela Southwark and Vauxhall o nú mero de casos era cerca de 14 vezes maior do que em uma re gião abastecida por outra companhia Propôs ao conselho ad ministrativo da região remover o braço da bomba do poço de Broad Street o que foi feito e os casos de cólera começaram a diminuir Este episódio aliás é o tema de O Mapa Fantasma livro de Steven Johnson 2008 que conta esta história como se fosse uma narrativa de suspense Snow publicou a segunda edição de On the Mode of Com munication of Cholera acrescentando suas observações sobre os casos ligados ao uso da água de Broad Street Morreu em 1858 sem ver sua teoria reconhecida o miasma ainda era con siderado a causa da cólera Ironicamente e sem que Snow disso tivesse tomado conhecimento o germe causador da cólera tinha sido identificado em 1854 pelo anatomista italiano Fillipo Pacini ao examinar o intestino de pacientes falecidos da doen ça um achado que não teve repercussão Finalmente em 1884 Robert Koch redescobriu isolou e cultivou o Vibrio cholerae Figura 217 John Snow Mas com sua modelar investigação Snow antecipou os funda mentos da teoria microbiana antes mesmo de Pasteur Cameron Jones 1983 Pioneiro foi também o bávaro Max Josef von Pettenkofer 18181901 Depois de estudar farmácia e medicina em Mu nique von Pettenkofer encaminhouse para a química tornan dose discípulo de Justus von Liebig Criou um amálgama de cobre usado na obturação de dentes e isolou da urina a crea tinina substância que é resíduo do metabolismo proteico e é usada na avaliação da função renal Passou a interessarse pelo que então se chamava Higiene e que já era o embrião da saúde pública A pedido do rei da Baviera Max li muito preocupado com a qualidade do ar em seu palácio estudou a questão da ventilação domiciliar Também pesquisou a relação entre vestuá rio e saúde Até então higiene era basicamente uma coleção de opiniões avulsas e em geral incorretas sobre vários assuntos Pettenkofer estabeleceu métodos conceitos e teorias que ajudaram a trans formar esta área em uma ciência e atraíram a admiração do rei Ludwig II Scliar 2002 Foi nomeado catedrático de Higiene na Universidade de Munique e em 1872 fundou naquela cidade o Instituto de Higiene que tinha como projeto uma síntese en tre as disciplinas biológicas da saúde pública patologia e bac teriologia e uma ação política inspirada na medicina social Foi dos primeiros a fazer cálculos do tipo custobenefício em saú de quantificando o número de dias perdidos por doença e es tabelecendo metas de redução Durante sua gestão o saneamen to básico da cidade melhorou muito Finalmente dedicouse a estudar o que fez por 40 anos a cóleraE aí seu raciocínio revelouse equivocado Embora mui tos de seus estudos fossem modelares em termos de investiga ção epidemiológica ele acreditava que a fermentação de maté ria orgânica no subsolo liberava no ar os germes da cólera que então infectavam as pessoas mais suscetíveis Era pois uma variação da teoria do miasma conhecida como teoria telúricà outras teorias da época atribuíam a doença à eletricidade do ar ou ao ozônio Mas como se explicaria então os casos de cólera ocorrendo em navios onde não havia solo Pettenkofer envolviase nestas polêmicas com teimosa persistência Nem mesmo a descoberta da bactéria causadora da cólera por Robert Koch fêlo mudar de ideia O vibrião era um fator mas não causaria a doença sem o fator telúrico isto é sem o solo Tama nha era sua confiança nesta ideia que já com 7 4 anos obteve Epidemiologia Saúde 1 7 Figura 218 Max Von Pettenkoffer uma cultura desta bactéria com o grande pesquisador Robert Koch e engoliua vários de seus estudantes imitaram o mestre fazendo a mesma coisa Teve uma leve diarreia e o Vibrio cho lerae apareceu em suas fezes mas sem maiores consequências o que para ele e seus seguidores era prova de que a bactéria não era suficiente para causar doença Entre parênteses não era a primeira vez que Pettenkofer submetiase a uma autoexperimentação ao estudar os efeitos farmacológicos de uma planta sulamericana Mikania guaco ele ingeriua constatando que seu pulso se acelerava que teve vômitos e sudorese profusa Seu lado anticontagionistà tinha um aspecto positivo a crítica ao monocausalismo microbiano e a defesa da integração bioecológica em saúde Foi portanto precursor de conceitos como os de cidade saudável e de pro moção da saúde pioneiro da economia da saúde e da ciência da nutrição Ayres 1997 131143 considerao e não a Snow ou Louis o criador da matriz conceitua da epidemiologia mo derna Em suma principalmente na Inglaterra Alemanha e EUA a resposta à problemática política da saúde resultou estreita mente integrada à ação do Estado constituindo um movimen to conhecido como sanitarismo Em sua maioria funcionários de agências oficiais de controle de doenças os sanitaristas pro duziram um discurso e uma prática sobre as questões da saúde fundamentalmente baseados em aplicação de tecnologia e em princípios de organização racional para atividades proftláticas saneamento imunização e controle de vetores destinadas prin cipalmente aos pobres e setores excluídos da população O advento do paradigma microbiano nas ciências básicas da saúde representou um grande reforço ao movimento sanitaris ta que em processo de hegemonização e já então batizado de Saúde Pública praticamente redefiniu as diretrizes da teoria e prática no campo social da saúde no mundo ocidental Este foi o contexto em cujo seio aninhouse a Epidemiologia nos seus passos iniciais de constituição como campo científico Consolidação da Epidemiologia A e como c1enc1a Apesar do insuspeitado desenvolvimento paralelo da Medi cina Social a sua rival medicina científicà consolidava no fi nal do século passado uma duradoura hegemonia como subs trato conceitua da saúde Este processo teve como clímax o 18 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia Figura 219 Abraham Flexner famoso relatório Medical Education in the United States and Canada coordenado por Abraham Flexner 18661959 e pu blicado em 1910 Tomey 2002 No Brasil por muitos anos considerouse que o relatório Flexner preconizava um enfoque reducionista para o ensino médico sacramentando o âmbito subindividual e individual e fomentando a fragmentação do cuidado médico Tomando por base o conhecimento experi mental de base laboratorial o modelo flexneriano reforçaria a separação entre individual e coletivo privado e público bioló gico e social curativo e preventivo Recentemente essa formu lação foi denunciada como mito e o caráter inovador de Flexner e da reforma da educação superior por ele promovida foi reco nhecido Almeida Filho 2010 Inspirada nos princípios do relatório Flexner uma escola de saúde pública pioneira foi inaugurada em 1918 na Universidade Johns Hopkins em Baltimore EUA tendo como primeiro di retor William Welch 18501934 exaluno de von Pettenkoffer Fee 1987 A convite de Welch Wade Hampton Frost 1880 1938 sanitarista do National Public Health Service especiali zado em doenças respiratórias assumiu a nova cátedra de Epi demiologia tornandose o primeiro professor desta disciplina em todo o mundo Daniel 2004 Como investigador seus tra balhos utilizavam novas técnicas estatísticas para o estudo das variações na incidência e prevalência de enfermidades transmis síveis como a tuberculose pulmonar com a intenção de avaliar seus determinantes genéticos e sociais Lilienfeld 1983 O modelo escola de saúde públicâ foi então difundido por todo o mundo com apoio integral da recémnascida Fundação Rockefeller White 1991 Figura 220 Wade Frost Figura 221 Gravura de Tempos Modernos A London School of Hygiene and Tropical Medicine surgiu pela fusão da antiga Escola de Medicina Tropical com o Depar tamento de Higiene do University College Major Greenwood 18801949 discípulo de Karl Pearson fundador da estatística moderna foi o primeiro professor da Epidemiologia e Estatís tica Vital na nova escola Principal responsável pela introdução do raciocínio estatístico na pesquisa epidemiológica além de desenvolver uma importante produção teórica e histórica Gre enwood rejeitava o caráter fundamentalmente descritivo do que na época se chamava de epidemiologia experimental Gre enwood 1932 A crise econômica mundial de 1929 precipitou uma crise social intensa que abalou os pilares da medicina científica na década seguinte O clássico Tempos Modernos obraprima de Charles Chaplin concluído em 1935 satiriza de modo magistral e sensível a grave crise social desencadeada nos EUA após a quebra da Bolsa de Nova York de 1929 O avanço tecnológico e a tendência à especialização do cui dado em saúde produziam elevação de custos e elitização da prática médica provocando uma redução de seu alcance social Isto ocorreu justamente quando o sistema político do capitalis mo mais necessitava da assistência à saúde como mecanismo de controle social Donnangelo 1976 Neste cenário redesco briuse o caráter social e cultural das doenças e da medicina assim como suas articulações com a estrutura e a superestru tura da sociedade Buscavase então a consolidação de um dis curso sobre o social capaz de dar conta dos processos culturais econômicos e políticos que pareciam levantar resistências à competência técnica da medicina Arouca 2003 O retorno do social se fez pelo recurso à Epidemiologia su postamente despojada da politização assumida pelo movimen to da medicina social Realmente o desenvolvimento da disci plina se havia dado de modo cada vez mais integrado ao padrão positivista das ciências naturais refletido no modelo da biolo gia À fisiologia humana que se aplica aos processos normais do organismo contrapunhase a demografia vinculada aos pro cessos normais da sociedade qual verdadeira fisiologia social À fisiopatologia que se ocupa dos processos patológicos do organismo correspondia uma epidemiologia tomada como pa tologia social Davis 1980 As investigações de Joseph Goldberger 18741929 sobre a pelagra desde 1915 haviam estabelecido a natureza carencial dessa doença Encarregado pelo governo americano de estudar esta doença endêmica do sul dos EUA Goldberger mostrou que não se tratava de uma infecção como então se pensava mas sim Figura 222 Joseph Goldberger de um problema alimentar eram pessoas que se alimentavam quase exclusivamente de milho e de derivados do milho o que gerava déficit de nutrientes especialmente de vitamina B Ou seja a Epidemiologia ampliava seu campo indo além das doen ças infectocontagiosas Apesar disso o primeiro aporte sistemá tico ao conhecimento epidemiológico o livro The Principies of Epidemiology Stallybrass 1931 escrito no final dos anos 1920 ainda se referia exclusivamente às enfermidades infecciosas A Epidemiologia buscava nessa época retomar a tradição médicosocial de privilegiar o coletivo ou seja resgatar Higeia visto como algo mais do que um conjunto de indivíduos ao tem po em que ampliava seu objeto de intervenção para além das enfermidades transmissíveis superando a medicina científica pasteuriana Entretanto tal movimento provocou no seu próprio seio um profundo impasse conceitua e metodológico posto que como sabemos a nova ciência epidemiológica havia sido gestada de dentro do paradigma de uma medicina experimental A saída para tal impasse foi inicialmente técnica Afortuna damente para seus fundadores já se produzia um avanço inde pendente da estatística que reapresentava a velha novidade da teoria das probabilidades propiciando a formalização do objeto privilegiado da Epidemiologia o conceito de risco Em outra vertente buscavase também uma saída conceitua para o impasse da ideologia dominante na medicina Foi justamen te um clínico britânico John Ryle 18891950 que renunciara à cátedra médica em Cambridge para se tornar o primeiro Di retor do Instituto de Medicina Social da Universidade de Oxford quem atualizou e sistematizou em 1936 o modelo de história natural das doenças Ryle 1948 No segundo quartil do século XX como consequência de processos externos e internos ao campo da saúde assinalados acima articulavamse nos EUA propostas de implantação de um sistema nacional de saúde Arouca 2003 Pela ação direta do poderoso lobby das corporações médicas daquele país no lugar de uma reforma setorial da saúde nos moldes da maioria dos países europeus foram propostas mudanças no ensino mé dico incorporando uma vaga ênfase na prevenção O ponto de partida para uma ampla reforma dos currículos no sentido de inculcar uma atitude preventiva nos futuros médicos focali zando o ensino da Epidemiologia como essencial ocorreu em 1952 quando se realizou em Colorado Springs uma reunião de representantes das principais escolas médicas dos EUA e Ca nadá No nível da estrutura organizacional propunhase a aber tura de departamentos de medicina preventiva substituindo as tradicionais cátedras de higiene capazes de atuar como elemen Epidemiologia Saúde 19 tos de difusão dos conteúdos de epidemiologia administração de saúde e ciências da conduta até então restritos às escolas de saúde pública Silva 1973 Leavell Clark 1976 Nesta proposta o conceito de saúde era representado por metáforas gradualistas do processo saúdeenfermidade que justificavam conceitualmente intervenções prévias à ocorrência concreta de sinais e sintomas em uma fase préclínica A própria noção de prevenção foi radicalmente redefinida por meio de ousada manobra semântica ampliação de sentido pela adjeti vação da prevenção como primária secundária e terciária que terminou por incorporar a totalidade da prática médica ao novo campo discursivo O sucesso desse movimento no seu país de origem é inegável os EUA constituem a única nação industria lizada que até hoje não dispõe de um sistema de assistência à saúde com algum grau de socialização Com entusiasmo compreensível organismos internacionais do campo da saúde aderiram de imediato à nova doutrina or questrando uma internacionalização da Medicina Preventiva já francamente como movimento ideológico Na Europa reali zaramse congressos no modelo Colorado Springs em Nancy França no mesmo ano de 1952 e em Gotemburgo Suécia no ano seguinte patrocinados pela OMS na América Latina sob o patrocínio da OPS foram organizadas os Seminários de Vifta del Mar Chile em 1955 e de Tehuacán México em 1956 Na Europa ocidental onde o pósguerra propiciou o estabele cimento do chamado estado de bemestar social welfare sta te a assistência à saúde integrouse mais claramente às políti cas sociais prescindindo de formulações mais visivelmente ideológicas para a consolidação do discurso do social na me dicina Paim Almeida Filho 2000 Nesses países falavase ensinavase e se praticava uma versão da medicina social atu alizada pela socialdemocracia Na América Latina apesar das expectativas e investimentos de organismos e fundações inter nacionais o único efeito deste movimento parece ser a implan tação de departamentos acadêmicos de medicina preventiva em países que já na década de 1960 passavam por processos de reforma universitária Em ambos os casos a epidemiologia impunhase aos pro gramas de ensino médico e de saúde pública como um dos se tores da investigação médicosocial mais dinâmicos e frutíferos Esta fase que coincidiu com um pósguerra associado à inten sa expansão do sistema econômico capitalista caracterizouse pela realização de grandes inquéritos epidemiológicos princi palmente a respeito de enfermidades não infecciosas Susser 1987 que se haviam revelado como importantes problemas de saúde pública durante o esforço de guerra Depois da importante contribuição da sociologia médica parsoniana as ciências sociais aplicadas à saúde experimenta vam um esgotamento As disciplinas de administração em saúde passavam por uma crise de identidade questionadas pelo avan ço do estudo das instituições e pelo crescimento do nascente movimento do planejamento social Consolidavase aí uma cla ra hegemonia do conhecimento epidemiológico em relação às outras disciplinas da medicina preventiva Teixeira 2001 O processo de institucionalização da disciplina culminou com a fundação da International Epidemiological Association em 1954 IEA 1984 e com a transformação do tradicional Ame rican f ournal of Hygiene em American fournal of Epidemiology em 1964 Ayres 1997 Na década de 1950 programas de investigação e departamen tos de epidemiologia começaram a desenvolver novos desenhos de investigação como os estudos de coorte inaugurados a partir do famoso experimento de Framingham Susser 1987 É tam bém a época dos primeiros ensaios clínicos controlados cuja 20 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia Figura 223 Sir Bradford Hill formalização metodológica é atribuída a Sir Austin Bradford Hill 18971991 sucessor da cátedra de Major Greenwood White 1991 No plano teórico novos modelos explicativos foram propos tos para dar conta dos impasses gerados pela teoria monocau salista da enfermidade reforçando o paradigma da história natural das doenças Emergiu nessa época uma forte tendência ecológica na epidemiologia com uma versão ocidental da epi demiologia do meio ambienté OPAS 1976 contraposta a uma versão soviética a epidemiologia da paisagem Pavlovsky 1963 A partir daí estabeleceramse as regras básicas da análise epidemiológica sobretudo pela fixação dos indicadores típicos da área incidência e prevalência e pela delimitação do con ceito de risco Ayres 1997 fundamental para a adoção da bio estatística como instrumental analítico de escolha Estabelecem se os principais desenhos de estudos observacionais destacandose os estudos de coorte MacMahon Pugh 1960 e os desenhos de casocontrole Cole 1979 formatos típicos do campo metodológico da Epidemiologia Nesta fase devemos destacar a contribuição de Jerome Cornfield 19121979 ao desenvolvimento de formas de estimar o risco relativo além de introduzir técnicas de regressão logística na análise epidemio lógica Last 2001 Também ocorre neste período um intenso desenvolvimento de técnicas de identificação de casos em pra ticamente todos os setores da medicina adequadas à aplicação em grandes amostras e a descrição dos principais tipos de bias na investigação epidemiológica Sackett 1979 Atualidade da Epidemiologia Os célebres anos 1960 marcaram em todo o mundo uma conjuntura de intensa mobilização popular e intelectual em torno de importantes questões sociais como os direitos huma nos a guerra do Vietnã a pobreza urbana e o racismo A partir dos EUA diversos modelos de intervenção social foram testa dos e institucionalizados sob a forma de movimentos organi zados no âmbito local das comunidades urbanas destinados principalmente à ampliação da ação social nos setores de habi tação educação e saúde particularmente saúde mental redu zindo tensões sociais nos guetos das principais metrópoles norteamericanas No campo da saúde organizouse então o movimento da Medicina Comunitária baseado na implantação de centros co munitários de saúde em geral administrados por organizações sociais porém subsidiados pelos governos destinados a efetuar ações preventivas e prestar cuidados básicos de saúde à popu lação residente em áreas geograficamente delimitadas Paim Almeida Filho 2000 A proposta da Medicina Comunitária inegavelmente recupe ra parte importante do arsenal discursivo da Medicina Preven tiva particularmente a ênfase na Epidemiologia e nas então denominadas ciências da condutâ sociologia antropologia e psicologia aplicadas a problemas de saúde Nesse caso entre tanto o conhecimento de dados epidemiológicos e processos socioculturais e psicossociais destinavase não a facilitar ages tão institucional em saúde ou a relação médicopaciente como no movimento precedente mas sim possibilitar a integração das equipes de saúde em comunidades problemáticas por meio da identificação e cooptação dos agentes e forças sociais locais para os programas de educação em saúde Em um certo sentido o movimento da Medicina Comunitária conseguiu colocar em prática alguns dos princípios preventivistas Teixeira 2000 evidentemente focalizando setores sociais minoritários e dei xando mais uma vez intocado o mandato social da assistência médica convencional Nessa década além dos Beatles Cuba Woodstock Vietnã e Maio de 68 houve uma verdadeira revolução na Epidemiologia com a introdução da computação eletrônica Nesse período a investigação epidemiológica experimentou a mais profunda transformação de sua curta história tendo como resultado uma forte matematização da área A ampliação real dos bancos de dados fomentou um grau de eficiência precisão e especificida de de técnicas analíticas inimaginável na era da análise mecâ nica de dados As análises multivariadas trouxeram uma pers pectiva de solução ao problema das variáveis de confundimento intrínseco aos desenhos observacionais que praticamente determinam a especificidade da epidemiologia em relação às demais ciências básicas da área médica Com tantos avanços metodológicos o debate epistemológi co sobre a científicidade da disciplina foi virtualmente reprimi do durante a década seguinte A ideia de que se trata de um ramo da ecologia humana Leriche 1972 ou de que a epide miologia se constitui em segmento de uma ciência mais geral Stallones 1971 ou ainda de que constitui essencialmente uma disciplina empírica sem maiores demandas teóricas Feinstein 1988 resultou na crença de que a epidemiologia não seria uma ciência De todo modo a epidemiologia dos anos 1970 não com preendia somente aperfeiçoamento de tecnologia para trata mento e análise de dados Havia por outro lado também um forte movimento de siste matização do conhecimento epidemiológico produzido exem plificado pela obra de John Cassel 19151978 líder da escola de epidemiologia social de Chapel Hill Ibrahim et al 1980 Tros tle 1986 A contribuição conceitua casseliana foi construída no sentido da integração dos modelos biológicos neuroendócrinos e socioantropológicos em uma teoria compreensiva da doença Cassel 1974 unificada pelo toqué da epidemiologia A tendência à matematização da Epidemiologia recebeu um considerável reforço nas décadas seguintes com propostas de modelos matemáticos de distribuição de inúmeras patologias Frauenthal 1980 Miettinen 1985 Ayres 1997 considera que na fase de constituição da Epidemiologia antes da Segunda Guerra Mundial a matemática havia experimentado uma fun ção estruturante passando posteriormente a uma função va lidante com a investigação científica dos riscos seus fatores e seus efeitos Em qualquer caso para a Epidemiologia a mate mática serviu ideologicamente como poderoso mito de razão Figura 224 John Cassei epidemiologista social indispensável para a confrontação com a experiência clínica ou com a demonstração experimental pressupostos fundamentais da pesquisa médica naquela época O campo epidemiológico encontrava assim uma identidade provisória justificando a con solidação de sua autonomia enquanto disciplina A epidemiologia da década de 1980 caracterizase por duas tendências Primeiro consolidase a proposta de uma epide miologia clínica Feinstein 1983 Sackett Haynes Tugwell 1985 como projeto de uso pragmático da metodologia epide miológica fora dos contextos coletivos mais ampliados A con sequência principal dessa variante da epidemiologia parece ser uma maior ênfase metodológica nos procedimentos de identi ficação de caso e na avaliação da eficácia terapêutica confor mando o que recentemente se tem chamado de medicina basea da em evidências Sackett et al 1996 Em segundo lugar durante a década de 1980 abordagens mais críticas da epide miologia emergem na Europa e na América Latina como reação à tendência à biologização da saúde pública reafirmando a historicidade dos processos saúdeenfermidadeatenção e a raiz econômica e política de seus determinantes Goldberg 1982 Laurell Noriega 1989 Breilh Granda 1985 Breilh 1991 Ao mesmo tempo novos desafios se colocavam sob a forma de doenças antigas que ressurgiam e de novas patologias que ganharam o nome de doenças emergentes Há que considerar nessa época principalmente o efeito devastador e ao mesmo tempo redentor da pandemia de síndrome de imunodeficiência adquirida SIDA ou AIDS a mais conhecida das doenças emer gentesAdmitese que a doença foi primeiro relatada em 1981 resultante da ocorrência inusitada de casos de pneumonia e do raro sarcoma de Kaposi O vírus causador foi identificado em 1983A doença hoje é uma pandemia atingindo mais de 30 mi lhões de pessoas principalmente na África Subsaariana É uma doença grave e estigmatizante mas exatamente por isso obri gou pessoas e organizações a reexaminarem suas atitudes não raro preconceituosas Como muitas vezes aconteceu na história da humanidade disso resultou um processo de amadurecimen to pessoal e coletivo Os dramas associados à pandemia de AIDS foram retratados em ftlmes em livros em peças teatrais Exemplo é o docudrama de tevêAnd the Band Played On 1993 dirigido por Roger Spot tiswoode e com um elenco famoso Matthew Modine no papel do Dr Don Francis Alan Alda como o Dr Robert Gallo e ainda Lily Tomlin Steve Martin Richard Gere Anjelica Huston o Epidemiologia Saúde 21 ftlme conta a história do epidemiologista Don Francis na sua luta para descobrir a causa da doença Já Angels in America dirigido por Mike Nichols foi adaptado da peça de mesmo nome escrita por Tony Kushner Mas o ftlme mais famoso sobre AIDS talvez seja Philadelphia dirigido por Jonathan Demme e no qual Den zel Washington faz o papel de um advogado homofóbico defen dendo um colega homossexual Tom Hanks despedido de uma frrma de advocacia por ter contraído a doença O cast inclui Jason Robards Joanne Woodward e Antonio Banderas No Brasil recebeu muito destaque o filme Carandiru extraí do do livro de mesmo nome de Drauzio Varela baseado na experiência de um médico que voluntariamente se dispõe a rea lizar um trabalho de prevenção da AIDS no maior presídio da América Latina De novo temos um elenco famoso Rodrigo Santoro Floriano Peixoto Milton Gonçalves Robson Nunes Lázaro Ramos Gero Camilo Luiz Carlos Vasconcelos Ricardo Blat Wagner Moura E registramos também uma peça de teatro Zona Contaminada de Caio Fernando Abreu que foi vitimado pela doença Falanos sobre uma terrível peste que contamina a humanidade inteira O caráter metafórico da obra é mais que evidente A epidemiologia dos anos 1990 buscava com empenho abor dagens de síntese ou integração fomentando novas tendências desde uma epidemiologia molecular Hulka Wilcosky Gri ffith 1990 Schulte Perera 1993 para uma crítica ver Loomis Wing 1991 Castiel 1994 até uma etnoepidemiologia Al meidaFilho 1992 Massé 1995 No plano metodológico ob servouse renovado interesse pelo desenho e aperfeiçoamento dos estudos agregados ditos ecológicos reavaliandose as suas bases epistemológicas e metodológicas Susser 1994 Schwarz 1994 Castellanos 1998 como etapa inicial de um processo de exploração de novas técnicas analíticas Morgens tern 1998 Ademais o processo de alargamento de horizontes da disciplina se deu mediante a ampliação do seu objeto de co nhecimento com a abertura de novos territórios de pesquisa e de prática como por exemplo a farmacoepidemiologia Lapor te Tognoni Rozenfeld 1989 a epidemiologia genética Khoury 1998 e a epidemiologia de serviços de saúde Cas tellanos 1993 Barreto et al 1998 Epílogo Na primeira década do século XXI constatamos que a pes quisa e a prática epidemiológicas mantêm o foco sobre doenças não transmissíveis Gripe pneumonia tuberculose e gastrente rite foram outrora as principais causas de óbito no mundo in teiro Hoje o lugar de destaque é ocupado por doenças do cora ção câncer doenças cerebrovasculares acidentes e violência Nas sociedades pósindustriais principal matriz da ciência epide miológica doenças crônicas não infecciosas constituem foco de interesse devido ao prejuízo social trazido pela invalidez parcial ou total dos acometidos e pelo número potencial de anos de vida produtiva perdidos Não obstante mesmo nesses países pande mias como AIDS gripe aviária e influenza tipo A epidemias de doenças emergentes como hantavírus e febre do Nilo doenças reemergentes como dengue e tuberculose ameaças de bioterro rismo como antraz e varíola têm recentemente provocado maior interesse pela epidemiologia de doenças transmissíveis Em vários trabalhos recentes encontramos reflexões sobre o futuro da Epidemiologia Wing 1994 Susser Susser 1999 e propostas de sua desconstrução como campo científico Al meida Filho 2000 enfocando obstáculos e limites Davey Smith 2001 novos usos Szklo 2001 e perspectivas teórico 22 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia metodológicas Krieger 2000 2001 Breilh 2003 Como tendências atuais esses autores constatam a superação da mul ticausalidade por modelos de determinação multinível criticam padrões metodológicos rígidos como o delineamento experi mental preconizam maior intercâmbio com campos discipli nares correlatos principalmente biologia e ciências sociais propõem modelos teóricos ecossistêmicos antecipam conexões mais estreitas com políticas de saúde e defendem mais militân cia e responsabilidade social Nossa posição é em geral simpá tica a tal conjunto de proposições porém acreditamos que pou co se avançará nessa direção caso se mantenha e se reforce a epidemiologia da doença e dos riscos ainda vigente A evolução desta agenda de pesquisa demonstra com clare za que a Epidemiologia continua vinculada a modelos de doen ça Portanto no momento atual o problema de uma teoria ge ral de saúdeenfermidade impõese como a questão mais fundamental da ciência epidemiológica É um grande desafio que precisa ser superado para que a Epidemiologia à altura do papel não raro heroico desempenhado pelos pioneiros do pas sado possa prosseguir em sua trajetória como disciplina cien tífica autônoma dinâmica e cada vez mais socialmente rele vante Referências bibliográficas Almeida Filho N Hacia una etnoepidemiología esbozo de un nuevo paradigma epidemiológico Revista de laEscuela de Salud Pública Córdoba 111133 40 1992 Almeida Filho N Uma breve história da epidemiologia ln Rouquayrol MZ Almeida Filho N Epidemiologia saúde 6ª ed Rio de Janeiro MEDSI 2003 Almeida Filho N Reconhecer Flexner Inquérito sobre produção de mitos na educação médica no Brasil contemporâneo Cadernos de Saúde Pública 261222342250 2010 Arouca AS O dilema preventivista contribuição para a compreensão e 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antropologia geografia demografia etc CAPÍTULO 1 Uma Breve História da Epidemiologia Naomar de Almeida Filho Neste capítulo pretendo contar uma pequena história da Epidemiologia focalizando a sua estruturação enquanto campo científico Para isso vou falar primeiro dos seus primórdios e antepassados repassando rapidamente alguns dos principais elementos precursores da sua constituição no seio da cultura ocidental Em seguida apresento uma breve exposição das circunstâncias que cercaram a emergência dos seus três eixos fundamentais a Clínica a Estatística e a Medicina Social Depois pretendo comentar sobre a sua evolução como disciplina científica já no início deste século e sobre a sua consolidação como eixo fundamental do campo da Saúde chegando ao momento atual de afirmação como ciência privilegiada da informação em saúde PRIMÓRDIOS A tensão essencial entre a medicina individual e a medicina coletiva desde os primórdios do pensamento ocidental na Grécia Antiga refletia um antagonismo ancestral entre as duas filhas do deus Asclépios Panacéia e Higéia Panacéia era a padroeira da medicina curativa prática terapêutica baseada em intervenções sobre indivíduos doentes através de manobras físicas encantamentos preces e uso de pharmakon medicamentos ainda hoje se fala da panacéia universal para designar um poder excepcionalmente curativo Sua irmã Higéia era adorada por aqueles que consideravam a saúde como resultante da harmonia dos homens e dos ambientes e buscavam promovêla por meio de ações preventivas mantenedoras do perfeito equilíbrio entre os elementos fundamentais terra fogo ar água Da sobrevivência dessas crenças e práticas através dos tempos derivam os conceitos de higiene e higiênico sempre no sentido de promoção da saúde principalmente no âmbito coletivo Muitos autores acreditam que a Epidemiologia nasceu com Hipócrates De fato a estrutura e conteúdo dos textos hipocráticos sobre as epidemias e sobre a distribuição de enfermidades nos ambientes por sua clara adesão à tradição higiênica sem dúvida antecipam o chamado raciocínio epidemiológico como o reconhece a maioria dos textos que fundam o campo da Epidemiologia desde MacMahon Pugh e Ipsen 1960 até Lilienfeld 1970 Não obstante os herdeiros de Hipócrates trataram de reprimir o espírito da primazia do coletivo e estabeleceram o individualismo na Ilha de Cós Dessa forma buscavam garantir a hegemonia de sua prática frente às inúmeras seitas que na Antiguidade prometiam a saúde para os homens Clavreul 1983 Nesse sentido a protoepidemiologia morreu com os filhos de Hipócrates que revelaram um eficiente senso mercadológico e rapidamente se adaptaram aos tempos póshelênicos através de um conveniente resgate de Panacéia a zelosa deusa da cura individual como referência para sua prática Os primeiros médicos ecléticos de Roma em geral escravos gregos de grande valor monetário quase tão caros quanto os gladiadores e eunucos segundo o renomado historiador da medicina Henry Sigerist 1941 trabalhavam para a corte o exército ou com uma certa exclusividade para as famílias nobres Sigerist nos conta ainda que com o passar do tempo escravos libertos e estrangeiros imigrados dominavam o mercado de trabalho médico em uma Roma que se cristianizava criando uma prática privada onde a competição era feroz e sem escrúpulos Modelos médicos de Galeno 201130 aC se espalhavam antes de tudo receitadores de muitos fármacos para poucos enfermos LaínEntralgo 1978 De interessante para qualquer estudo das raízes da Epidemiologia a era romana aparentemente contribuiu somente com a realização de censos periódicos um deles levou o carpinteiro José e sua esposa Maria a Belém com as consequências que todos conhecemos e com a introdução pelo Imperador Marco Aurélio de um registro compulsório de nascimentos e óbitos antecipando algo do que mais tarde viria a ser conhecido como estatísticas vitais As diferentes formações ideológicas que se sucederam no mundo ocidental de fato não chegaram a propiciar as condições para uma medicina do coletivo No início da Idade Média tanto a hegemonia do catolicismo romano quanto as invasões dos bárbaros trouxeram um predomínio de práticas de saúde de caráter mágicoreligioso Amuletos orações e cultos a santos protetores da saúde materializavam a ideologia religiosa caracteristicamente medieval de salvação da alma mesmo com a perdição do corpo individual Starobinski 1967 Nesse contexto a prática médica para os pobres era exercida principalmente por religiosos como caridade ou por leigos barbeiros boticários e cirurgiões como profissão Sigerist 1941 Cada família da aristocracia teria seu médico privado que em muitos casos era um cortesão especialista também na arte de matar por envenenamento Entretanto nenhum dos historiadores da Epidemiologia enfatiza suficientemente o avanço tecnológico e o caráter coletivo da medicina árabe que alcançou seu apogeu no século X nos califados de Bagdá e Córdoba Com acesso aos textos gregos originais médicos muçulmanos adotaram os princípios hipocráticos fundamentando uma prática precursora da saúde pública com alto grau de organização social consolidando desde registros de informações demográficas e sanitárias a sistemas de vigilância epidemiológica até atos ritualizados de higiene individual centrais para a cultura religiosa do Islam Os epígonos dessa medicina do coletivo são as figuras quase míticas de Avicena e Averrões LaínEntralgo 1978 PérezTamayo 1988 AbuAli alHussein IbnSina 9801037 conhecido no Ocidente como Avicena médico e filósofo persa autor do Cânon da Medicina principal tratado clínico da época medieval tardia reintroduziu Hipócrates e Galeno na medicina ocidental Averróes AbuKhalid Muhammad IbnAhmad IbnRushd 11261198 notável magistrado filósofo e médico do Califado de Córdoba além de precursor do higienismo foi um dos principais tradutores e comentadores da obra de Aristóteles Apesar de terem vivido em épocas distintas e em pontos opostos do império muçulmano ambos compartilhavam uma modalidade de filosofia materialista e racionalista Russel 1941 com uma tendência ao empirismo precursora do pensamento científico de Bacon e Galileu e uma crítica ao individualismo que antecipava a economia política do Estado moderno Tais fundamentos filosóficos evidentemente repercutiam nas suas obras sobre saúde LaínEntralgo 1978 PérezTamayo 1988 Incidentalmente a conservação dos textos médicos clássicos nas bibliotecas árabes durante toda a noite medieval permitiu que no Renascimento a tradição racionalista grega pudesse ser revalorizada desempenhando importante papel na emergência da ciência moderna Rensoli 1987 A CLÍNICA E A ESTATÍSTICA Para a tradição anglosaxônica Thomas Sydenham 16241689 médico e líder político londrino deve ser considerado o fundador da clínica moderna bem como o precursor da ciência epidemiológica com a sua teoria da constituição epidêmica de inspiração diretamente hipocrática Além de ter sido responsável por meticulosas observações antecipadoras da chamada medicina científica por analogia à noção baconiana de história natural Sydenham elaborou o conceito de história natural das enfermidades que posteriormente já nos meados do século 20 seria retomada pela doutrina preventivista Para a tradição historiográfica francesa os primeiros passos para uma medicina dos tempos modernos se conecta a uma questão veterinária Foucault 1979 nos refere que a Societé de Médecine de Paris fundadora da clínica moderna no século XVIII organizase a partir da Ordem Real para que os médicos investiguem uma epizootia que periodicamente vinha dizimando o rebanho ovino com graves perdas para a nascente indústria têxtil francesa Pela primeira vez se contam enfermos mesmo que não humanos em busca da eliminação das doenças Foucault não nos esclarece se os insignes doutores obtiveram algum resultado De todo modo a conquista do mandato político sobre a gestão dos hospitais pelos médicos em substituição às ordens religiosas é um indício de que algo havia sido alcançado Pode parecer estranho para nós contemporâneos mas é importante assimilar que nem sempre o hospital foi um lugar de cura para os enfermos Foucault 1979 Hospital e seu correlato hospitalidade etimologicamente denota simplesmente um local para asilo ou acolhimento como os hotéis hospedarias ou abrigos Tratavase de locais protegidos sob o mandato de ordens religiosas sendo a primeira delas a dos Cavaleiros Hospitalários que remontava às Cruzadas e que originou o termo hospital destinados a receber viajantes necessitados aqueles que não tinham casa e eventualmente doentes sem família A conquista do espaço político dos hospitais que se deu em momentos históricos distintos e de maneiras diversas nos vários países europeus foi determinante para o desenvolvimento da clínica moderna de base naturalista e sistematizante Conforme analisa Trostle 1986 Os médicos em hospitais podiam pela primeira vez ver além das particularidades da sua prática privada podiam examinar muitos pacientes com as mesmas enfermidades fosse esta rara ou epidêmica Na constituição deste primeiro eixo fundamental para a formação histórica da Epidemiologia um saber clínico naturalizado racionalista moderno podemos observar três etapas distintas Primeiro nos seus momentos iniciais de luta contra os físicos leigos e religiosos encarregados do corposaúdedoença buscando a legitimação do projeto políticocientífico de uma clínica integrada às novas racionalidades não se verificava uma distinção muito clara entre as dimensões individual e coletiva da saúde Em uma segunda etapa já consolidada como corporação e no processo de construção de um saber técnico e de uma rede de instituições de prática a arteciência clínica terminava por reforçar ainda mais o estudo do unitário o caso a partir da investigação sistemática dos enfermos enfim recolhidos aos hospitais Foucault 1979 Uma terceira etapa vinculase à emergência da Fisiologia moderna a partir principalmente da obra de Claude Bernard 18131878 estruturada a partir da definição das patologias e suas lesões no nível subindividual Com a hegemonia da biologia experimental e com o advento da teoria microbiana esta medicina científica viria a desempenhar importante papel na institucionalização das práticas médicas contemporâneas por meio do famoso Relatório Flexner como veremos adiante Passemos agora rapidamente ao segundo eixo de constituição histórica da Epidemiologia a Estatística Para muitos o projeto de quantificação das enfermidades representaria um elemento metodológico distintivo da nova ciência servindo ao mesmo tempo como garantia da sua neutralidade epistemológica Dada essa expectativa é mesmo irônico verificar que de todos os três eixos aqui considerados a estatística aparece como aquele alicerce da ciência epidemiológica em que a raiz política mais claramente se evidencia Hacking 1991 melhor ainda como veremos a seguir a politização encontrase inscrita no próprio nome da disciplina Em paralelo à emergência do modo de produção capitalista no âmbito político a conjuntura pósRenascimento testemunha a aparição do Estado moderno quando se especificam os conceitos de governo nação e povo A idéia de que a riqueza principal de uma nação é seu povo aliada ao fato objetivo de que naquele momento de transição o poder político era o poder dos exércitos tornou necessário contar o povo e o exército ou seja o Estado O povo como elemento produtivo o exército como elemento beligerante precisavam não só do número mas também da disciplina e da saúde Este foi o conceito da Aritmética política de William Petty 16231697 e dos levantamentos populacionais de John Graunt 16201674 freqüentemente mencionados como precursores da Epidemiologia da Demografia e da Estatística Last 1983 Estatística em sua origem significa justamente a medida do Estado Tratase de um neologismo criado por Hermann Conring 16061681 médico e cientista político alemão especialmente para referirse ao conjunto de atributos de uma nação porém foi Gottfried Achenwall professor na Universidade de Göttingen na Prússia quem em 1750 primeiro o empregou com um sentido numérico Segundo Hacking 1991 o termo Statistik deriva do vocábulo Staat diretamente traduzido como Estado conjunto dos poderes políticos de uma nação Staat por sua vez vem do latim staus oriundo de stare ficar de pé Para operacionalizar o conceito de que o Estado poderia ser objeto de mensuração contar súditos sadios parecia ter algo a ver com contar estrelas brilhantes Sir Edmund Halley 16561742 astrônomo britânico nas horas vagas quando não estudava cometas desenvolvia técnicas de análise de dados que resultaram nas famosas táboas de vida primeiro instrumento metodológico da estatística atuarial Daniel Bernouilli 17001782 físico matemático e médico suíço membro de uma das famílias mais geniais da história da ciência foi um dos criadores da teoria das probabilidades Aficionado da nascente corrente experimentalista derivou fórmulas para estimar anos de vida ganhos pela vacinação contra varíola e para realizar análises de custobenefício de intervenções clínicas PierreSimon Laplace 17491827 matemático e astrônomo francês além de consolidar teoria das probabilidades aperfeiçoou métodos de análise de grandes números aplicados questões de mortalidade e outros fenômenos em saúde Segundo White 1991 Laplace também antecipou os conceitos de eficácia randomização e mesmo o desenho e a análise dos estudos de casocontrole Finalmente Lambert Adolph Quetelet 17961874 cientista belga também astrônomo e matemático além de criador do popular índice de superfície corporal foi o principal defensor do caráter aplicado da Estatística demonstrando a sua capacidade de descrição de fenômenos biológicos e sociais inclusive dados de morbidade e mortalidade Hacking 1991 Em 1825 PierreCharles Alexandre Louis 17871872 publicou em Paris um estudo estatístico de 1960 casos de tuberculose para alguns autores Lilienfeld 1979 PérezTamayo 1988 inaugurando a própria Epidemiologia Médico e matemático Louis também é o precursor da avaliação da eficácia dos tratamentos clínicos utilizando os métodos da nascente Estatística Starobinski 1967 A pesquisa da origem das doenças com la méthode numérique em muito influíu no desenvolvimento dos primeiros estudos de morbidade na Inglaterra através de três discípulos de Louis por coincidência todos chamados William Farr Budd e Guy e nos Estados Unidos com Lemuel Shattuck Lilienfeld 1979 Sem surpresa registramos que ó notável trabalho de William Farr 18071883 que em 1839 criara um registro anual de mortalidade e morbidade para a Inglaterra e o País de Gales marca uma institucionalização precoce dos sistemas de informação em saúde Last 1983 Com a aritmética médica de Louis e a estatística médica de Farr alcançavase uma razoável integração entre a Clínica moderna e a Estatística porém ainda faltava algo essencial para que dessa combinação resultasse uma nova ciência da saúde de caráter eminentemente coletivo Refirome à adesão ao princípio de que a saúde é uma questão eminentemente social e política aliada a uma preocupação sociológica e a um profundo engajamento nos processos de transformação da situação de saúde A essa atitude ativa e comprometedda White 1991 chama de idéia sanitária sanitary idea designação a meu ver inadequada na medida em que não apenas uma idéia mas sim toda uma prática encontravase em questão Os próprios atores desse movimento preferiram batizálo de Medicina Social Um breve relato do seu desenvolvimento é o que veremos a seguir O TERCEIRO ELEMENTO No final do século XVIII o poder político da burguesia emergente consolidouse com a restauração como na Inglaterra ou pela revolução como na França e nos Estados Unidos Nessa fase sucederamse diferentes tipos de intervenção estatal sobre a questão da saúde das populações Rosen 1975 Na Inglaterra o movimento hospitalário e o assistencialismo precedem uma medicina da força de trabalho já parcialmente sustentada pelo Estado em áreas urbanas Na França com a Revolução de 1789 implantouse uma Medicina urbana com a finalidade de sanear os espaços das cidades ventilando as ruas e as construções públicas e isolando áreas consideradas miasmáticas Foucault 1979 Na Alemanha Johann Peter Frank 17451821 sistematizava as propostas de uma Política médica baseada em medidas compulsórias de controle e vigilância das enfermidades sob a responsabilidade do Estado junto com a imposição de regras de higiene individual para o povo Rosen 1975 A revolução industrial e sua economia política trouxeram a noção e o fenômeno concreto da força de trabalho O desgaste da classe trabalhadora deteriorava profundamente suas condições de vida e de saúde segundo demonstram vários relatórios dos discípulos de Louis René Villemé 17821863 na França e Edwin Chadwick 18001890 na Inglaterra Nesta mesma linha posteriormente Friedrich Engels escreveu o célebre livro As Condições da Classe Trabalhadora na Inglaterra em 1844 reconhecido por Breilh 1989 como um dos trabalhos com assinalamentos mais decisivos para a formulação da epidemiologia científica A formação de um proletariado urbano submetido a intensos níveis de exploração expressavase como luta política sob a forma de diferentes socialismos chamados utópicos porque eram talvez apenas precoces Um desses socialismos passou a interpretar a política como medicina da sociedade e a medicina como prática política iniciando um movimento organizado para a politização da medicina na França circa 1830 Desde então o termo Medicina Social proposto por Guérin em 1838 tem servido para designar de uma forma genérica modos de tomar coletivamente a questão da saúde Na Alemanha um jovem médico sanitarista chamado Rudolf Virchow 18211902 após investigar uma epidemia de tifo na Silésia e identificar que suas causas eram fundamentalmente sociais e políticas liderou o movimento médicosocial naquele país juntamente com Neumann e Leubuscher O projeto original da medicina social parecia ter morrido nas barricadas de Paris e Berlim em 1850 Virchow foi condenado a um exílio interno e posteriormente entre outras coi sas tornouse o mais importante nome da patologia moderna além de iniciar a antropologia física e influenciar a geografia médica Trostle 1986 De sua parte Engels não pretendia ser médico e muito menos inaugurar a Epidemiologia Entretanto por outro lado os sanitaristas britânicos que não tiveram oportunidade de participar das revoltas urbanas do período pretendiam integrar suas preocupações filantrópicas e sociais aos conhecimentos científicos e práticas técnicas buscando transformações políticas pela via legislativa Tentariam à sua maneira inaugurar a Epidemiologia Em 1850 sob a presidência de Lord AshleyCooper e tendo Chadwick como VicePresidente organizouse na Inglaterra a London Epidemiological Society fundada por jovens simpatizantes das idéias médicosociais juntamente com oficiais da saúde pública e membros da Royal Medical Society Entre eles encontravase John Snow 18131858 considerado por muitos como o herói fundador da Epidemiologia Cameron Jones 1983 Vandenbroucke et al 1991 O título inicialmente proposto para a nova sociedade seria Epidemic Medical Society White 1991 porém por algum motivo que aparentemente não ficou registrado a série significante epidemiology e epidemiological terminou prevalecendo Segundo Nájera 1988 o termo epidemiología havia sido empregado pela primeira vez como título de um trabalho sobre a peste escrito por Angelerio na Espanha na segunda metade do século XVI Trezentos anos mais tarde Juan de Villalba recuperou o termo como título de sua obra Epidemiología Española uma compilação de todas as epidemias conhecidas até aquela data publicada em 1802 Por que considerando que finalmente se uniam saber clínico método numérico e engajamento social juntamente com um embrião de organização institucional e com um designativo bastante atraente ainda assim não se constituiu a ciência epidemiológica nessa época Seria carência de prática científica Mas o esforço de investigação de Louis Farr Panum e Snow não tem sido constantemente avaliado como de alta qualidade metodológica mesmo para os padrões contemporâneos Este é para mim um grande enigma na história da Epidemiologia MEDICINA CIENTÍFICA IDADE MÉDIA EPIDEMIOLÓGICA Muitos autores consideram que o formidável avanço da fisiologia da patologia e da bacteriologia devidos principalmente a Claude Bernard Rudolf Virchow Louis Pasteur e Robert Koch que se seguiu nas décadas seguintes teria dispensado o conhecimento sobre a vertente social e política da saúde Realmente a descoberta de microorganismos causadores de doenças representou um inegável fortalecimento da medicina organicista As enfermidades de maior prevalência na época de natureza infectocontagiosa favoreceram a hegemonia desse modelo explicativo Então outra vez a abordagem curativa individual nova panacéia agora cientificizada teria suplantado o enfoque coletivo higiênico no tratamento da questão da saúde e seus determinantes Não deixa de ser irônico que os estudos pioneiros de John Snow entre 1850 e 1854 iniciados no contexto da medicina social terminaram antecipando uma demonstração da teoria microbiana antes mesmo de Pasteur no caso da transmissão do cólera morbo Cameron Jones 1983 Assim vencida pela poderosa teoria microbiana a versão britânica da medicina social evoluiu para uma vertente supostamente apenas técnica constituindo a chamada State Medicine intensamente vinculada aos aparelhos burocráticos do Estado Ayres 1997 Por essas razões houve um retardo no processo de constituição da Epidemiologia como ciência autônoma Essa interpretação parece muito evidente justa e simples e é a que os livrostexto da área admitem Porém não concordo com esta explicação pelos motivos que já passo a expor De fato o conhecimento básico sobre as doenças transmissíveis cresceu muito rapidamente entre 1860 e 1900 monopolizando o avanço do conhecimento epidemiológico dirigindoo para os processos de transmissão ou controle das epidemias de enfermidades infectocontagiosas Data dessa época o ensino dos primeiros conhecimentos sobre a distribuição populacional das doenças nas escolas médicas da França Inglaterra e Alemanha no bojo de uma medicina social do colonialismo Nesse período obtémse o controle da varíola malária febre amarela e outras doenças chamadas tropicais principalmente nos portos dos países colonizados e das excolônias como o Brasil desenvolvendose uma saúde pública que tinha como características principais um intenso pragmatismo e uma subordinação às ciências básicas da área médica como a parasitologia e a microbiologia É nesse contexto circa 1890 que se inauguraram o Instituto Pasteur Paris e a School of Tropical Medicine de Lond patrocinda por Sir Richard Manson o preço da legitimação fácil em uma fase de intensa expansão institucional o progresso conceitual da disciplina restringese quase que exclusivamente aos aspectos tecnometodológicos que no entanto alcançam marcante versatilidade e penetração Nas décadas de 30 e 40 como uma consequência dos processos externos e internos ao campo da saúde assinalados acima articulavamse nos Estados Unidos propostas de implantação de um sistema nacional de saúde Arouca 1975 Pela ação direta do poderoso lobby das corporações médicas daquele país no lugar de uma reforma setorial da saúde nos moldes da maioria dos países europeus foram propostas mudanças no ensino médico incorporando uma vaga ênfase na prevenção No nível da estrutura organizacional propunhase a abertura de departamentos de medicina preventiva substituindo as tradicionais cátedras de higiene capazes de atuar como elementos de difusão dos conteúdos de epidemiologia administração de saúde e ciências da conduta até então abrigados nas escolas de saúde pública Silva 1973 Leavell Clark 1976 Nesta proposta o conceito de saúde era representado por metáforas gradualistas do processo saúdeenfermidade que justificavam conceitualmente intervenções prévias à ocorrência concreta de sinais e sintomas em uma fase préclínica A própria noção de prevenção foi radicalmente redefinida através de uma ousada manobra semântica ampliação de sentido pela adjetivação da prevenção como primária secundária e terciária que terminou por incorporar a totalidade da prática médica ao novo campo discursivo Que isto tenha ocorrido somente no nível da retórica indica apenas a limitada pretensão transformadora do movimento em pauta efetivamente preso no que Sérgio Arouca 1975 com muita perspicácia denominou dilema preventivista Em 1952 realizouse em Colorado Springs uma reunião de representantes das principais escolas de medicina norteamericanas incluindo Canadá ponto de partida para uma ampla reforma dos currículos de cursos médicos no sentido de inculcar uma atitude preventiva nos futuros praticantes Desrosiers 1996 Com entusiasmo compreensível organismos internacionais do campo da saúde de imediato aderiram à nova doutrina orquestrando uma internacionalização da Medicina Preventiva já francamente como movimento ideológico Na Europa realizaramse congressos no modelo Colorado Springs em Nancy França no mesmo ano de 1952 e em Gotemburgo Suécia no ano seguinte patrocinados pela Organização Mundial da Saúde Grundy Mackintosh 1958 Na América Latina sob o patrocínio da Organização Panamericana da Saúde foram promovidos os Seminários de Viña del Mar Chile em 1955 e de Tehuacán México em 1956 Arouca 1975 O sucesso deste movimento no seu país de origem é inegável os Estados Unidos constituem a única nação industrializada que até hoje não dispõe de um sistema de assistência à saúde com algum grau de socialização Na Europa ocidental onde o pósguerra propicia o estabelecimento dos chamados estados de bemestar social welfare states a assistência à saúde integrouse mais claramente às políticas sociais prescindindo de formulações mais visivelmente ideológicas para a consolidação do discurso do social na medicina Nesses países falavase ensinavase e se praticava uma versão da medicina social atualizada pela socialdemocracia Em ambos os casos a Epidemiologia impunhase aos programas de ensino médico e de saúde pública como um dos setores da investigação médicosocial mais dinâmicos e frutíferos A organização dos exércitos para a Segunda Guerra Mundial havia se defrontado com a questão da saúde física e mental dos recrutas e combatentes representando uma demanda concreta para o desenvolvimento de métodos mais eficientes para medila O aperfeiçoamento de tais métodos resultou na possibilidade de sua aplicação a populações civis Esta fase que coincidiu com um pósguerra associado a uma intensa expansão do sistema econômico capitalista caracterizavase pela realização de grandes inquéritos epidemiológicos principalmente a respeito de enfermidades nãoinfecciosas Susser 1987 que se haviam revelado como importantes problemas de saúde pública durante o esforço de guerra As ciências sociais aplicadas à saúde experimentavam um esgotamento depois da importante contribuição da sociologia médica parsoniana e a administração e organização da saúde passavam por uma crise de identidade questionada pelo avanço do estudo das instituições e pelo crescimento do nascente movimento do planejamento social Consolidavase ai uma clara hegemonia do conhecimento epidemiológico em relação às outras disciplinas da medicina preventiva O processo de institucionalização da disciplina culminou com a fundação da International Epidemiological Association em 1954 IEA 1984 e com a transformação do tradicional American Journal of Hygiene no American Journal of Epidemiology em 1964 Ayres 1997 ATUALIDADE DA EPIDEMIOLO NA Na década de 50 programas de departamentos de Epidemiologia feiçoam febrilmente novos desenhos de investigação como os estudos de coorte desenvolvidos a partir do famoso experimento de Framingham Susser 1987 e os ensaios clínicos controlados atribuídos a Sir Austin Bradford Hill 18971991 sucessor da cátedra de Major Greenwood na London School of Hygiene and Tropical Medicine White 1991 No plano teórico novos modelos explicativos são propostos para dar conta dos impasses gerados pela teoria monocausalista da enfermidade reforçando o paradigma da história natural das doenças Emerge então uma forte tendência ecológica na Epidemiologia com uma versão ocidental da epidemiologia do meio ambiente OPAS 1976 contraposta a uma versão soviética a epidemiologia da paisagem Pavlovsky 1963 A partir daí estabeleceramse as regras básicas da análise epidemiológica sobretudo pela fixação dos indicadores típicos da área incidência e prevalência e pela delimitação formalizada do conceito de risco Ayres 1997 fundamental para a adoção da bioestatística como instrumental analítico de escolha Nesta fase devemos destacar a contribuição de Jerome Cornfield 19121979 ao desenvolvimento de estimadores do risco relativo além de introduzir técnicas de regressão logística na análise epidemiológica Last 1983 Também sucede neste período um intenso desenvolvimento de técnicas de identificação de casos em praticamente todos os setores da medicina adequadas à aplicação em grandes amostras e a descrição dos principais tipos de bias na investigação epidemiológica Sackett 1979 Nos anos 60 além dos Beatles ocorreu uma verdadeira revolução na Epidemiologia a introdução da computação eletrônica Neste período a investigação epidemiológica experimentou a mais profunda transformação de sua curta história tendo como resultado uma cada vez mais forte matematização da área A ampliação real dos bancos de dados somada às potencialidades obviamente ainda não esgotadas de criação de técnicas analíticas e uma especificação inimaginável na era da análise mecânica de dados As análises multivariadas trouxeram uma perspectiva de solução ao problema das variáveis de confundimento intrínseco aos desenhos observacionais que praticamente determinam a especificidade da Epidemiologia em relação às demais ciências básicas da área médica MacMahon Pugh 1970 Mais ainda a computação tornou possível a realização de pareamentos múltiplos estratificação de variáveis sumarização do efeitomodificação e controle do bias entre outros procedimentos mais complexos além de propiciar o aperfeiçoamento e a disponibilidade de testes de significância estatística cada vez mais precisos e poderosos Durante a década de 70 em paralelo a um notável desenvolvimento de técnicas de coleta e análise de dados epidemiológicos Susser 1987 o debate epistemológico sobre a cientificidade da disciplina foi virtualmente reprimido A idéia de que a Epidemiologia é uma variante da ecologia médica Leriche 1972 ou apenas um ramo da Ecologia Humana será talvez a única contribuição teórica dessa fase A posição de que a Epidemiologia se constitui em um segmento de uma ciência mais geral Stallones 1971 ou ainda de que se trata essencialmente de uma disciplina empírica sem maiores demandas teóricas Feinstein 1988 resultou na crença de que a Epidemiologia não seria uma ciência Do todo modo a epidemiologia dos anos 70 não consiste somente em um aperfeiçoamento de tecnologia para tratamento e análise de dados Há também um forte movimento de sistematização do conhecimento epidemiológico produzido talvez mais bem exemplificado pela obra de John Cassel 19151978 no sentido da integração dos modelos biológicos e sociológicos em uma teoria compreensiva da doença unificada pelo toque da Epidemiologia Cassel 1975 A tendência à matematização da Epidemiologia recebe um considerável reforço nas décadas seguintes São propostos então modelos matemáticos de distribuição de inúmeras patologias Frauenthal 1980 O campo da Epidemiologia encontra assim uma identidade provisória justificando a consolidação de sua autonomia enquanto disciplina impondose no terreno da investigação sobre o complexo saúdedoençacuidado com o recurso à matemática Ayres 1997 propõe que na fase de constituição da Epidemiologia antes da Segunda Guerra Mundial a matemática teve uma função estruturante logo passando para uma função validante da investigação dos riscos Em qualquer caso para a Epidemiologia a matemática serve ideologicamente como poderoso mito de razão indispensável para a confrontação com a experiência clínica ou com a demonstração experimental enquanto supostos fundamentais da pesquisa científica médica Resulta que afinal os epidemiologos também se afirmam como metodólogos da investigação na área médica abrindo a possibilidade de uma Epidemiologia clínica Feinstein 1985 compelida em muitos casos à negação do caráter social da disciplina Podemos considerar que a Epidemiologia das décadas de 70 e 80 caracterizase por três tendên cias principais Primeiro seguramente facilitado pela ampliação do uso de microcomputadores e pelo desenvolvimento de softwares específicos para análises epidemiológicas observase um aprofundamento das bases matemáticas da disciplina com importantes repercussões sobre os processos de formalização do objeto epidemiológico Segundo consolidase a proposta de uma Epidemiologia clínica como projeto de uso pragmático da metodologia epidemiológica fora dos contextos coletivos mais ampliados A consequência principal dessa variante da Epidemiologia parece ser uma maior ênfase metodológica nos procedimentos de identificação de caso e na avaliação da eficácia terapêutica conformando o que se tem chamado de medicina embasada em evidências Em terceiro lugar durante a década de 80 emergem na América Latina e na Europa abordagens mais críticas da Epidemiologia como reação à tendência à biologização da saúde pública reafirmando a historicidade dos processos saúdeenfermidadeatenção e a raiz econômica e política de seus determinantes Goldberg 1982 Laurell Noriega 1989 Breilh Granda 1986 Breilh 1989 A fase contemporânea da Epidemiologia parece apontar para abordagens de síntese ou integração indicando novas tendências como a Epidemiologia Molecular Vandenbroucke 1990 Hulka Wilcosky Griffith 1990 Schulte Perera 1993 para uma crítica ver Loomis Wing 1991 Castiel 1996 e a Etnoepidemiologia AlmeidaFilho 1993 Massé 1995 que ao contrário de certas leituras críticas anteriores não são necessariamente antagônicas No plano metodológico observamos recentemente um interesse pelo desenho e aperfeiçoamento dos estudos agregados ditos ecológicos reavaliandose as suas bases epistemológicas e metodológicas Susser 1994 Schwarz 1994 como etapa inicial de um processo de exploração de novas técnicas analíticas Morgenstern 1998 Ademais prossegue firme o processo de alargamento de horizontes da disciplina através da ampliação do seu objeto de conhecimento no sentido da abertura de novos territórios de pesquisa e de prática como por exemplo a Farmacoepidemiologia Laporte Tognoni Sozenfeld 1989 a Epidemiologia Genética Khoury Beaty Cohen 1993 Khoury 1998 e a Epidemiologia de Serviços de Saúde Castellanos 1993 Barreto et al 1998 O problema da teoria continua a ser no entanto a questão mais fundamental da Epidemiologia no presente momento verdadeiro impasse que poderá caso não resolvido implicar uma barreira impenetrável para seu próprio desenvolvimento enquanto campo científico autônomo Perspectivas epistemológicas mais modernas reconhecem o esgotamento dos modelos formais de delimitação dos campos científicos indicando o papel fundamental dos paradigmas e seus processos históricos macro e microssociais na construção institucional das ciências através da prática técnica e teórica Neste momento crucial de superação da timidez epistemológica da Epidemiologia não se devem economizar esforços no sentido da conquista do paradigma com a construção do objeto epidemiológico tanto propositivamente quanto na prática cotidiana de produção de conhecimento científico A demarcação de um campo próprio de aplicação será então uma conseqüência histórica e não meramente lógica desse processo de maturação de uma disciplina que desde suas raízes tem sempre reafirmado a força dos processos sociais na determinação da Saúde Coletiva REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 Almeida Filho N Hacia una Etnoepidemiología Esbozo de un nuevo paradigma epidemiológico Revista de la Escuela de Salud Pública Córdoba III13340 1992 2 Arouca A S O Dilema Preventivista Contribuição para a Compreensão e Crítica da Medicina Preventiva UNICAMP 1975 Tese de Doutoramento 3 Ayres JR Sobre o Risco Para compreender a Epidemiologia São Paulo Hucitec 1997 4 Barreto M Almeida Filho N Veras R Barata R orgs Epidemiologia Serviços e Tecnologias em Saúde Rio Editora FiocruzAbrasco 1998 5 Bernard C Introdução à Medicina Experimental Lisboa Guimarães Editores 1972 1865 6 Breilh J Epidemiologia Economia Medicina y Política Mexico Fontamara 1989 7 Breilh J Hacia una epidemiología dura Retos y Avances Quito Casa de la Cultura Ecuatoriana 1997 8 Breilh J Granda E Os novos rumos da Epidemiologia In Nunes E org As Ciências Sociais em Saúde na América Latina Tendências e Perspectivas Brasília OPAS 1985 p 24153 9 Cameron D Jones C John Snow the Broad Pump and modern epidemiology International Journal of 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polêmicos e presente em todos os textos Nessa coletânea a evidência dessas divergências provocam uma série de questionamentos É possível uma só teoria dar conta da totalidade Como elaborar teorias e desenhos investigativos que possam ser trabalhados interdisciplinarmente Como conciliar a interdisciplinaridade com os interesses corporativos e as relações de poder que interferem e condicionam a produção científica É minha hipótese que a atualidade e a importância destas questões para a atividade científica reforçam o lugar da reflexão acerca da teoria do conhecimento O confronto de idéias o aprofundamento do conhecimento de diferentes pensamentos e a abertura para o enfrentamento de novos desafios ampliam a possibilidade de soluções criativas na prática de investigação Pretendemos com esta publicação contribuir para estimular este processo A EPIDEMIOLOGIA SUA HISTÓRIA E CRISES NOTAS PARA PENSAR O FUTURO MAURICIO LIMA BARRETO A Epidemiologia vive no momento atual sua afirmação como disciplina científica na medida em que tem demonstrado ser capaz de produzir conhecimentos substanciais sobre os fatores determinantes das doenças e de outros agravos à saúde Entretanto esta maturidade científica é frequentemente abalada por crises profundas quanto a questões centrais na definição da disciplina com consequentes e sérios reflexos em sua evolução e nas estratégias de sua organização 2 15 90 No decorrer das duas últimas décadas temos assistido a importantes debates sobre o papel da Epidemiologia e sobre a necessidade ou não de adjetivála Novas denominações surgem a cada momento clássica social clínica ou molecular gerando uma imensa dificuldade de entendimento mesmo entre os iniciados nos segredos da disciplina Neste embate é nítido um ponto de corte que passa pelo Equador Ao Norte o esforço da disciplina dirigese cada vez mais à procura de fundamentos que justifiquem e desenvolvam a racionalidade das práticas médicas dominantes e ao Sul os esforços concentramse na busca de explicações e de soluções para o fosso que separa a maioria da população esfomeada e doente de uma minoria saciada e sadia Entendemos que fatores externos sejam os determinantes em última instância do que ocorre com a Epidemiologia Porém as explicações para estas crises podem ser buscadas em parte no seu próprio interior e nos elementos que entraram em sua com 20 MAURICIO LIMA BARRETO posição sem desprezar as suas interdependências com o movimento social em geral e com o movimento de reorganização dos serviços de saúde e principalmente das práticas médicas em particular Assim o objetivo deste texto é buscar através de uma revisão do processo de formação da disciplina responder a algumas indagações sobre o porquê de tais crises esperando contribuir para o pensar do seu futuro entre nós UMA BREVE CRONOLOGIA O século XIX as bases Ainda que seja possível buscar raízes da Epidemiologia em passado remoto como nos escritos hipocráticos vários autores que têm contribuído para a construção da história da disciplina enfatizam o século XIX como o momento em que se estabeleceram suas bases 32 40 57 59 Nesse período como consequência da Revolução Industrial às cidades cresciam e as condições de vida se agravavam A grande massa da população vivia em ambientes pútridos e insalubres de modo similar às condições encontradas hoje na maioria das cidades do terceiro mundo 23 O Estado tornavase cada vez mais forte e ampliava sua atuação no cotidiano das pessoas Os movimentos sociais e revolucionários buscavam soluções para a crise É neste panorama que os estudos sobre as condições de saúde se intensificam como em nenhum outro período anterior Uma revisão dos acontecimentos desta época permite identificar diferentes correntes de conhecimento relativamente autônomas de cuja agregação irá nascer em futuro próximo a nova disciplina Esta diversidade na sua origem é de fundamental importância já que nessas correntes encontramse as sementes para os diferentes movimentos que surgirão no interior da disciplina em diferentes momentos do curso da sua história O paradigma dominante no estudo das doenças era a teoria miasmática pela qual as doenças provinham das emanações resultantes do acúmulo de dejetos A maioria dos estudiosos das condições de saúde se alinhavam a esta teoria A possibilidade de existência do micróbio não era aceita pela maioria das mentes progressistas daquele tempo Snow nos seus estudos sobre o cólera 22 MAURICIO LIMA BARRETO cos têm seu desenvolvimento esstimulado chegandose inclusive a um conjunto de formulações táricas mais consistentes denominado palometria 77 Período entre as guerras a maturidade acadêmica Os conhecimentos acumulados até então conduzem à cristalização do modelo ecológico multicausal 39 modelo este que também teria influências sobre as ciências sociais constituindo o novo substrato teórico para os estudos de sociologia urbana de tradição funcionalista 72 79 Neste período ocorrem uma série de fatos relevantes para a maturidade metodológica da Epidemiologia A criação da primeira cadeira dessa disciplina na Escola de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins nos Estados Unidos em 1921 simboliza o início de sua afirmação no espaço acadêmico Na Inglaterra em diferentes universidades são criados departamentos de Medicina Social em geral dirigidos por epidemiologistas os quais terão influência marcante na criação do sistema nacional de saúde daquele país No plano científico foi necessário reafirmar a importância de estratégia observacional no espaço aberto pelas insuficiências da alternativa experimental incapaz de encontrar explicações para um semnúmero de fenômenos científicos 35 Os inquéritos de morbidade passam a ser sistematicamente realizados e as bases dos estudos de coorte são concebidas A evolução da estatística leva a avanços em toda a metodologia de quantificação e o desenvolvimento dos testes de inferências descortina um mundo de novas possibilidades para avaliação de hipóteses sobre dados empíricos Dos anos 40 aos 60 a afirmação do método e das técnicas No pósguerra a Epidemiologia passa por um processo de consolidação dos seus métodos e os principais desenhos de estudos coorte e casocontrole são definitivamente constituídos 86 Os primeiros grandes estudos de coorte são realizados possibilitando que suas técnicas sejam aprimoradas Não havia dúvida de que este seria o método de escolha para o estudo das doenças crônicas Entretanto os seus altos custos e a demora na obtenção dos seus resultados impulsionam o desenvolvimento e a consolidação 24 MAURICIO LIMA BARRETO prática clínica redefinindo suas bases de modo a colocála no mesmo patamar de outras disciplinas biomédicas referenciadas no modelo experimental 34 45 70 84 Nos países subdesenvolvidos mais especificamente na América Latina em um momento de profunda crise econômica e social associada à intensa repressão política e ideológica renasce o interesse pela determinação social das doenças Este movimento denominado de Epidemiologia social pretende explicar com elementos científicos o porquê das condições de vida e de saúde da grande maioria das populações desses países comparáveis ou talvez piores do que aquelas existentes em países europeus no século XIX 10 24 53 54 Estes dois movimentos ocorrem no momento em que a biologia em sua vertente molecular estimula um retorno às atividades experimentais no interior dos laboratórios fazendo renascer com um novo ímpeto a ideologia do predomínio da biologia sobre o social e o cultural 3 80 99 No tocante à Epidemiologia isto se traduz em críticas severas à toda tradição de estudos sobre a influência de fatores ambientais na ocorrência de doenças comparandoos à uma abordagem miasmática modernizada Defendese que somente com o entendimento pleno dos mecanismos biológicomoleculares será possível a compreensão do processo saúde e doença 37 61 94 95 96 SOBRE AS CORRENTES DE ESTUDOS QUE COMPÕEM A EPIDEMIOLOGIA Conforme comentamos antes a Epidemiologia não nasce como uma disciplina uma mas a partir da confluência de uma série de correntes que se encontravam dispersas e paulatinamente se agregam Acreditamos que a existência destas correntes possuidoras de paradigmas autônomos explicam a ocorrência de uma série de movimentos e crises que terão curso ao longo da história da Epidemiologia Retornando aos meados do século XIX momento de intensas atividades em torno de questões relacionadas à saúde coletiva identificaremos estas correntes em clara formação Sem ter o objetivo de esgotar o assunto bem como entendendo que devido à própria dinâmica da disciplina as interrelações entre estas correntes fazem seus contornos nem sempre nítidos acreditamos que pelo menos quatro delas possuidoras de autonomia duto do modelo ecológico a teoria da história natural das doenças Esta ao definir períodos présintomáticos retira as doenças de sua dimensão unicamente clínica e viabiliza o desenvolvimento dos testes de triagem criando assim as precondições para que no âmbito da prática médica surja o movimento denominado Medicina Preventiva 4 5 55 As dificuldades metodológicas de se testar os modelos multicausais concebidos em redes de causalidade colocam em época mais recente o desenvolvimento destes modelos caudatário ao desenvolvimento da estatística A preocupação agora passa a ser com a identificação de fatores de risco entidades isoláveis com o uso de técnicas estatísticas multivariadas O debate teórico empobrece O importante então será encontrar o fator estatisticamente relacionado com a ocorrência da doença para dirigir as estratégias de prevenção 38 O novo modelo é um retrocesso em termos da possibilidade de elaboração de teorias mais estruturadas relativas à ocorrência das doenças Porém se visto na perspectiva da prática médica especializada com alto grau de aporte tecnológico o modelo ou não modelo é coerente e produtivo Estudos sobre a determinação social das doenças No século XIX as condições de vida e de saúde das populações dos países onde ocorria a Revolução Industrial passam a ser incompatíveis com a riqueza até então acumulada No seio de movimentos reformistas e revolucionários surgem importantes estudos que buscam demonstrar como as condições de saúde eram determinadas pelas condições de vida destas populações 30 43 88 97 O objetivo de tais estudos era pressionar mediante reformas que modificassem as condições sanitárias ou mesmo através de mudanças mais profundas na organização social O desenvolvimento desta vertente não resiste ao impacto da teoria microbiana e do positivismo e praticamente desaparece É interessante observar que renomados autores de textos sobre a história da Epidemiologia não reconhecem esta linhagem como parte das origens da disciplina 60 Os estudos com enfoque social e econômico na Epidemiologia por um longo tempo ficam dependentes dos vínculos maiores que essa disciplina estabelece com a sociologia funcionalista Não deixam contudo de ter a sua importância pois foram capazes de demonstrar as grandes diferenças sociais na ocorrência de eventos mórbidos como parte do processo de desenvolvimento do capitalismo 68 87 92 Alguns estudos diferenciados ocorrem na Inglaterra ao final da primeira metade deste século 88 e um pouco mais tarde nos Estados Unidos 19 A teoria do estresse tenta criar com pouco sucesso uma ponte entre os fatos sociais e os efeitos no nível do biológico 18 20 91 Entretanto será na América Latina que no decorrer da década de 70 este movimento renascerá com intensidade Rompe os vínculos tradicionais da Epidemiologia com a sociologia funcionalista e busca reconstruir o seu processo de produção do conhecimento referenciandose na sociologia marxista Utilizandose de abordagens até então não utilizadas na Epidemiologia tem contribuído para a compreensão dos problemas de saúde latinoamericanos 7 11 41 66 75 81 Nos últimos anos a produção científica relacionada com este movimento tem decrescido e no geral suas contribuições têm sido limitadas Embora as razões para tal não sejam claras podem ser imputadas de um lado a problemas conceituais e metodológicos não solucionados que dificultam o teste dos seus modelos teóricos em situações empíricas concretas e de outro lado a fatores externos à disciplina relacionados a mudanças no balanço político da América Latina incluindose restrições ao financiamento de pesquisas com este referencial Estudos de avaliação da eficácia de ações terapêuticas e profiláticas As origens dos estudos de avaliação podem ser encontradas em tempos remotos 69 Entretanto o primeiro estudo de eficácia utilizando grupocontrole foi reportado em 1747 tendose demonstrado que os sucos de limão e de laranja curavam o escorbuto No século seguinte é demonstrada a eficácia da inoculação de vírus da varíola bovina na profilaxia da varíola humana iniciandose o controle imunobiológico desta doença No mesmo período data a demonstração da ineficácia da sangria em pacientes com infecção pulmonar o que terá profundo impacto sobre o conhecimento e as práticas terapêuticas do período Embora nesta área estejam também contidos estudos de avaliação não experimentais estes terão importância menor De fato os modelos de avaliação consensualmente reconhecidos têm base experimental Na atualidade o método de estudo randomizado é o mais valorizado dentre os desenhos experimentais e seus resultados servem de referência para a liberação ao mercado de novos agentes terapêuticos e profiláticos Apesar da autonomia de tais estudos no interior da Epidemiologia e da sua importância no desenvolvimento das tecnologias de saúde eles têm pouca influência sobre seus paradigmas isso se traduz na ausência de referência a eles nas definições correntes da disciplina 58 Contudo em épocas mais recentes eles têm fornecido os principais fundamentos ao movimento da Epidemiologia clínica Estudos de modelagem matemática e bioestatística A possibilidade de modelagem matemática de eventos empíricos sempre exerceu um profundo magnetismo sobre os mais variados setores da ciência No decorrer do século XIX alguns países já haviam adotado sistemas para coleta sistemática de dados de nascimentos de óbitos e mesmo de doenças Este grande acúmulo de informações estimulou a aplicação dos conhecimentos matemáticos na análise de eventos vitais Assim nesse mesmo século aparecem as tábuas de vida e os primeiros modelos de predição das curvas epidêmicas 32 Os avanços da microbiologia e um pouco mais tarde da ecologia levam a elaboração de modelos determinísticos complexos O entendimento de que elementos de chance influenciavam a dinâmica do cotidiano leva à necessidade de elaboração de modelos que considerassem estas perturbações Esta nova geração será composta dos denominados modelos estocásticos 8 A formulação da teoria das probabilidades e os progressos da estatística em geral permitem a estimação da variabilidade dos eventos quantificáveis o desenvolvimento das técnicas de amostragem e dos testes de inferência 64 Agora seria possível não só definir e mensurar variáveis como também testar associações entre elas Os estudos causais entram em uma nova era pois a causa dos eventos pode ser empiricamente verificada A análise multivariada mesmo depois de ter sua teoria e suas técnicas desenvolvidas teve por muito tempo o seu uso limitado pela falta do computador porém havia também sérias questões metodológicas na medida em que os dados epidemiológicos em geral apresentam qualidades que fogem aos pressupostos básicos para utilização da estatística paramétrica Importante fato acontecerá nesta área ao final da década de 50 quando uma nova técnica o teste de MantelHaenszel para controle de variáveis intervenientes é descrito 65 Porém serão as regressões logísticas que representarão o grande momento do desenvolvimento da Epidemiologia e em torno delas têm ocorrido importantes mudanças na abordagem da disciplina com fortalecimento do seu conteúdo quantitativo 1 50 OS ENFRENTAMENTOS NO INTERIOR DA EPIDEMIOLOGIA Uma série de importantes embates tem permeado toda a história da Epidemiologia alguns dos quais já foram apresentados anteriormente Devese destacar que muitos destes enfrentamentos são consequentes a atritos resultantes da falta de unidade interna da disciplina Assim questões como a da causalidade central em qualquer das vertentes da Epidemiologia é com frequência razão de embates tanto no que diz respeito à sua dimensão epistemológica quanto da sua utilização na análise de situações empíricas concretas A falta de conceitos que limitem com nitida precisão o que seja saúde e o que seja doença tem trazido sérias questões para o interior da disciplina Aceitando a importância dos diversos embates na evolução da Epidemiologia propomos a discussão sobre dois deles que nos parecem centrais O primeiro diz respeito a como os binômios individual versus coletivo e biológico versus social vêm sendo utilizados e interrelacionados O segundo diz respeito à perspectiva com que o método epidemiológico estuda os fenômenos relativos ao processo saúdedoença se de uma maneira integral mesmo sendo objetos particulares ou fracionandoos em partes perdendo a perspectiva do todo O individual versus o coletivo e o biológico versus o social A Epidemiologia pelas próprias características do seu objeto de trabalho tem uma necessidade peculiar de criar interfaces com uma série de outras disciplinas retirandolhes conceitos métodos e técnicas A análise destas articulações interdisciplinares permitirá entender de que modo conceitos tão vitais para a disciplina como os de individual coletivo biológico e social vêm sendo abordados utilizados e interrelacionados Desde as origens da Epidemiologia três disciplinas tiveram papel vital na sua constituição a clínica a sociologia e a estatística O vínculo com a clínica vem da sua gênese na medida em que os principais fundadores da disciplina eram médicos deslocados de sua preocupação clínica para questões referentes à saúde coletiva A clínica e as ciências biológicas a ela associadas oferecem o paradigma do modelo biomédico 17 o conceito de doença e os sistemas para classificação das entidades mórbidas A responsabilidade pelo amadurecimento da Epidemiologia como disciplina apesar de ter sido em grande parte de profissionais médicos ocorre fora do ambiente clínico quer nos serviços de saúde coletiva quer nas escolas de saúde pública A primeira grande convergência na clínica se dá com a medicina preventiva A teoria da história natural das doenças que estabelece a idéia de níveis de prevenção é a primeira grande ponte criada entre os epidemiologistas e os clínicos A concepção de que o odds ratio gerado pelos estudos casocontrole com base em populações selecionadas nos serviços de saúde é uma estimativa razoável do risco relativo fornecido pelo estudo de coorte viabiliza a pesquisa epidemiológica causal no ambiente clínico 25 Porém o mais intenso desses vínculos se dará com a Epidemiologia clínica nascida dentro dos departamentos de clínica médica e que vem tentando romper o caráter tradicional da Epidemiologia como disciplina da saúde coletiva para redefinila como disciplina clínica e portanto da saúde individual Pelo fato de ser uma disciplina aplicada e assim sendo com ênfase em questões empíricas a Epidemiologia sempre teve o problema da quantificação como central Assim ela tem acompanhado de maneira próxima a evolução da estatística estando inclusive entre os patrocinadores de um de seus ramos a bioestatística Entretanto a forma como a estatística aborda o coletivo é bastante peculiar 64 O principal pressuposto da teoria estatística é a noção de independência entre os indivíduos que compõem a população estudada tornandose assim impossível o estudo de relações interindividuais Podese perceber da análise estatística os componentes de variação inter ou intragrupos contudo os atributos de grupo ou de subgrupo serão sempre a soma dos atributos individuais Mesmo quando se comparam grupos entre si como no caso dos estudos ecológicos o grupo passa à condição de caso sem possibilidade de serem discernidas as suas relações internas O máximo que se consegue da análise do coletivo é subdividilo de acordo com atributos definidos a priori ou a posteriori para testar diferenças ou associações entre eles O fato de ser uma disciplina que trata do coletivo define a necessidade da Epidemiologia ter vínculos com as ciências da sociedade Estes vínculos aparecem e são bastante fortes nos estudos de determinação social das doenças no século XIX 32 88 No início desse século a linha de estudos de doenças e agravos específicos absorve os pressupostos teóricos fundamentais da sociologia funcionalista e no plano empírico os métodos e as técnicas do inquérito social Ambas as disciplinas compartilham relações comuns com a estatística e com a ecologia Desta última advêm conceitos fundamentais como o de coletivo comunidade e a abordagem sistêmica das relações sociais Como consequência compartilham o mesmo modelo básico de multicausalidade 9 42 O todo versus a parte a questão da integralidade na observação dos fenômenos científicos A Epidemiologia por sua natureza privilegia o estudo de fenômenos particulares No entanto durante um longo tempo na história da disciplina estes fenômenos ainda que particulares foram estudados na sua integralidade mesmo que muitas vezes carecessem da dimensão histórica O já referido estudo de Snow sobre o cólera 82 o de Virchow sobre a febre tifoide 88 ou entre nós os estudos de Carlos Chagas sobre a doença que levaria o seu nome 22 são exemplos clássicos desta abordagem holística sobre fenômenos particulares Esta forma de observação dos fenômenos é que pode explicar o fato de terem sido gerados conceitos teóricos relevantes a partir do modelo ecológico Como já vimos a intensificação do estudo das doenças crônicas e a soci a introdução no modelo ecológico original de um novo paradigma o fator de risco O modelo multicausal ecológico é travestido em um novo tipo de unicausalismo Não há mais a possibilidade de observar o fenômeno particular na sua integralidade somente como partes isoladas COMENTÁRIOS FINAIS A Epidemiologia apesar dos seus problemas epistemológicos tem dado importantes contribuições não só para o conhecimento do processo saúdedoença como também para a formulação de alternativas direcionadas ao combate de diversos problemas mórbidos que afligem a sociedade humana Pensar sobre o futuro da Epidemiologia pode se iniciar com a tentativa de resposta a algumas questões relevantes que nos ajude a antever como se comportarão as diversas correntes da disciplina quanto à construção da unidade interna Uma primeira questão diz respeito à revisão de suas articulações com a clínica a estatística e a sociologia O afastamento da clínica implica a ruptura com o modelo biomédico em torno de um movimento ainda embrionário denominado Epidemiologia da saúde 36 89 Esta ruptura encontra sérias dificuldades pois os avanços da biologia molecular aprofundando o conhecimento sobre a organização do corpo humano contribui para o fortalecimento do modelo biomédico aumentando como conseqüência as resistências contra a ruptura Porém talvez o mais grave seja a falta de conceitos universais que definam a saúde o que se constitui em obstáculo para o desenvolvimento de tecnologias que possibilitem sua mensuração 78 Por outro lado a proposta da Epidemiologia da saúde tem sido elaborada por setores isolados da disciplina não partindo de suas correntes centrais O movimento de Epidemiologia clínica ao contrário preconiza uma maior dependência com relação ao modelo biomédico enquanto na Epidemiologia social esta ruptura não tem sido sequer posta como relevante Cabe portanto perguntar se é possível a unificação da disciplina Os fatos sugerem ser pouco provável O mais frequentemente observado tem sido as tentativas de suplantação de uma corrente pela outra A Epidemiologia clínica tenta impor o seu paradigma sobre a Epidemiologia da doença e dos agravos específicos 44 a qual por sua vez sob a influência dos modelos estatísticos amplia suas possibilidades de quantificação dos fenômenos que estuda embora como já vimos fracionandoos cada vez mais A Epidemiologia social na busca de soluções estruturais para os problemas da saúde tem desprezado o grande acúmulo de conhecimentos EPIDEMIOLOGIA SUA HISTÓRIA E CRISES gerados pelas outras correntes Além disso já vimos que os fundamentos teóricos sobre os quais as várias correntes se referenciam apresentam diferenças suficientes para tornar pouco provável a unificação de seus paradigmas Neste emaranhado epistemológico o que restará para aqueles envolvidos com a prática epidemiológica Que saídas terão aqueles que defendem a disciplina unificada porém sabem que isto se encontra em um horizonte longínquo Como conduzir pesquisas que permitam aproximarmonos de cada fenômeno na sua integralidade e ao mesmo tempo contribuam para a melhoria das condições e das práticas da saúde Como abordar os fatos coletivos para que tenham um significado maior do que a simples soma dos fatos individuais A confusão epistemológica e a falta de unidade da disciplina são questões complexas e cuja solução só poderá vir a ser encontrada no futuro não se sabe quando Uma alternativa pode ser aquela que vem sendo silenciosamente construída por indivíduos que mantêm sua prática científica continuada no interior da disciplina e que buscam alternativas para contornar as questões epistemológicas Estas ações têm levado à construção de novas pontes que vinculem a Epidemiologia com outras dimensões do conhecimento humano tomando emprestados os seus modelos conceituais os seus métodos e as suas técnicas para superação de impasses epistemológicos e solução de suas questões empíricas Assim podemos citar as ligações com a antropologia que oferece novos caminhos no entendimento do individual 48 e com a geografia que expande a compreensão sobre as relações do homem com a natureza trazendolhe uma nova dimensão do coletivo 6 29 33 67 81 Em outra direção as articulações com as práticas sanitárias que resultam no movimento denominado de Epidemiologia dos serviços de saúde dãolhe a chance de dar efetividade aos novos conhecimentos produzidos 13 21 46 51 52 56 71 76 BIBLIOGRAFIA 1 Adena M A Wilson S R Generalised Linear Models in Epidemiologic Research Case Control Studies Sidney Instat Foundation 1982 2 Almeida Filho N Epidemiologia sem números Uma introdução crítica à ciência epidemiológica Rio de Janeiro Editora Campus 1989 3 Aloisi M Orientaciones y insuficiencias metodológicas de la biología contemporanea in Aloisi M et alii Medicina y sociedad Barcelona Fontanella 1972 4 Arouca A S O dilema preventivista Campinas UNICAMP tese de doutoramento 1975 5 Arouca A S A história natural das doenças Saúde em Debate 1159 1976 6 Barreto M L Esquistossomose mansônica Distribuição da doença e organização social do espaço Salvador SESAB Série de Estudos em Saúde nº 6 1984 7 Barros M B A A utilização do conceito de classe social nos estudos de perfis 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Enquanto alguns destacam as questões teóricas outros destacam as questões empíricas Em seu conjunto no entanto expõem as insuficiências da epidemiologia de resolver problemas relacionadas à saúde das populações que contemporaneamente lhes são postas O objetivo deste ensaio foi de em um primeiro momento apresentar e sistematizar as críticas à epidemiologia moderna para em seguida delinear um conjunto de proposições que contribuam para a discussão sobre o papel da epidemiologia na constituição do campo da saúde coletiva Agruparamse em cinco categorias as formas em que se interpreta a crise da epidemiologia uma crise do seu paradigma dominante uma crise na sua capacidade de formulação teórica uma crise resultante da ruptura dos seus compromissos históricos uma crise da relação com a prática da saúde pública e uma crise da capacidade explicativa em consequência do conflito de resultados gerados por diferentes estudos sobre um mesmo tópico Estas críticas têm estimulado a produção de conhecimentos epidemiológicos alternativos importantes mesmo que em muitos momentos isto aconteça fora do núcleo central da disciplina Estas alternativas são organizadas em torno de três eixos a as desigualdades em saúde b o ambiente a qualidade de vida os conceitos e as medidas de saúde c a avaliação e a escolha das tecnologias e intervenções em saúde Entendese que em torno destes três eixos podese a recuperar muitas das experiências relevantes acumuladas na história da epidemiologia e de outras disciplinas populacionais que vêm contribuindo para o conhecimento da saúde e de seus determinantes b redirecionar o desenvolvimento teórico metodológico e operacional da disciplina c deslocar o atual modus operandi da prática científica da epidemiologia para centrálo em torno das questões da prevenção e para o desenvolvimento de novas bases éticas em consonância com os seus compromissos sociais e políticos Palavraschave Epidemiologia classificação Saúde Pública Fatores socioeconômicos Condições sociais Abstract Criticism regarding the socalled modern epidemiology has been present in the LatinAmerican epidemiological literature for quite some time More recently however similar criticism has increasingly been present in the international literature These criticisms differ in their diagnosis and as a consequence in the alternatives proposed While some stress the theoretical aspects others stress the empirical ones As a whole however authors state the inadequacies of epidemiology in solving the health problems of populations that currently challenge it The aim of this essay was first to present these criticisms in a systematic way and second to delineate a group of propositions that could contribute to the discussion of the role of epidemiology in forming the field of collective health The criticisms were organized in five categories according to their views on the epidemiology crisis a crisis of its dominant paradigm a crisis in its ability of theoretical formulation a crisis resulting from the rupture of its historical commitments a crisis in its relationship with the public health practice and a crisis in its explanatory skills as a consequence of the conflict of results generated by studies in similar topics It is understandable that such criticisms have stimulated the development of alternative and useful epidemiological knowledge even so very often this happens out of the central core of epidemiology The possible alternatives are organized around three axes 1 the inequalities in health 2 the environment the quality of life and the concepts and the measurements of health 3 the evaluation and choice of health technologies and interventions From these axes it is possible a to recover many of the important experiences accumulated in the history of epidemiology and many other subjects that focus on the different aspects of health and its determinants b to redirect the theoretical methodological and operational development of epidemiology c to move the current modus operandi of the scientific practice of epidemiology to orient it towards prevention and the development of new ethical bases in consonance with its social and political commitment Keywords Epidemiology classification Public Health Socioeconomic factors Social conditions Introdução A epidemiologia tem uma posição peculiar e ainda pouco explorada pelos epistemólogos de conciliar o papel de disciplina científica portanto produtora de conhecimentos originais sobre o processo saúde e doença e ao mesmo tempo de campo profissional participante dos esforços pelo cuidado da saúde das populações Esta dupla inserção é o que define algumas das características peculiares da epidemiologia e de onde advém a sua diversidade e as possibilidades de ser pensada e repensada em tantos diferentes ângulos e perspectivas Esta dupla inserção é reafirmada em algumas das definições clássicas da disciplina como aquela referida por Last1 1988 o estudo da distribuição e determinantes de estados e eventos relacionados à saúde em populações definidas e a aplicação deste conhecimento para a resolução dos problemas de saúde As considerações que aqui serão desenvolvidas partem do pressuposto de que existem indivíduos com uma base biológica e genética complexa que habitam espaços geográficos socialmente organizados em cujo in terior os indivíduos agrupamse em populações Estas ao se deslocarem no tempo constroem uma história base para algo maior e mais fundamental que é o de desenhar as trajetórias por onde percorrerão o seu futuro Nesta profunda e complexa dialética multidimensional entre a biologia o espaço e o tempo é que os indivíduos se definem e em seu conjunto definem algo mais complexo do que a mera soma destes as sociedades Os eventos mórbidos não são meros acidentes mas intercorrências que enquanto possam ser percebidas no nível individual seja no plano biológico seja no plano psíquico têm sua configuração populacional definida na confluência destas três dimensões e como consequência resultante da forma de organização das sociedades Este artigo não tem o objetivo de introduzirse nos grandes desafios epistemológicos que hoje estão postos para a epidemiologia porém o de tentar através da análise e da discussão de alguns dos dilemas que esta disciplina atravessa esboçar algumas proposições para a comunidade de epidemiologistas que atuam seja no âmbito acadêmico seja nos serviços de saúde ou correlatos e que compartilham da idéia do caráter imprescindível da epidemiologia na compreensão dos eventos de saúde nas populações humanas e como consequência na constituição do campo da saúde coletiva Buscase reorganizar um conjunto de questões fundamentais no esforço de contribuir para as reflexões e possíveis reorientações na pesquisa nas aplicações para a prevenção e de não menos importância no compromisso social dos epidemiologistas para com a saúde da sociedade Fazse necessário estabelecer um ponto de equilíbrio entre os desejos possibilidades e competências de intervenção no mundo real e os limites que estão definidos tanto pelos conhecimentos científicos e tecnológicos disponíveis ou que se podem produzir como pelo conjunto de forças sociais e políticas que se conformam na conjuntura em que atuamos Partindose desta premissa são apresentadas a seguir em forma concisa as questões e dilemas que em última instância estão na base destas reflexões 1 Questões relacionadas às insuficiências do conhecimento epidemiológico disponível no sentido de suas contribuições para definir o conjunto de intervenções e mudanças que se fazem necessárias com relação a melhorias na situação de saúde Ao ser definida como a disciplina básica da saúde pública a epidemiologia passa a ter como responsabilidade gerar conhecimentos informações e tecnologias que embasem as políticas de prevenção e controle das doenças e outros eventos na saúde 2 Questões geradas pelo reconhecimento da necessidade da epidemiologia continuar contribuindo de forma mais completa para o entendimento das causas determinantes e raízes históricas e sociais das doenças e outros eventos na saúde bem como dos efeitos gerados em consequência dos esforços desenvolvidos para a sua prevenção e controle Isto permitiria uma maior interferência das sociedades sobre os fatores que modificam o curso histórico desses eventos e em última instância ampliaria a capacidade de prever e modificar as suas tendências 3 Questões relacionadas à necessidade de ampliarse a compreensão dos eventos mórbidos para além das suas dimensões biológicas reforçando o desenvolvimento de medidas que registrem não somente os níveis das doenças mas também outras dimensões do sofrimento humano contribuindo para que consolidamos a idéia de saúde como parte do complexo da qualidade de vida e do bem estar social e não simplesmente como a ausência ou a presença da doença 4 Questões relacionadas a sua ainda limitada influência nos sistemas de decisão sobre o uso indiscriminado e muitas vezes iatrogênico de uma série de tecnologias inúteis ao lado evidentemente de outras tantas úteis que muito pouco têm contribuído para mudar a situação de saúde das sociedades e que mais atuam como tótens modernos produtores de ilusões que desperdiçam recursos e expectativas das sociedades e dos indivíduos Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L Rev Bras Epidemiol Vol 1 n 2 1998 106 5 Dilemas do pesquisador que busca caminhos por onde seja possível a produção de conhecimentos que reflitam as preocupações apresentadas nos 4 itens listados acima e que acredita que relativamente a diversos temas cruciais por razões muitas vezes alheias à sua vontade em lugar de buscar respostas mesmo que incompletas para as questões corretas em muitos momentos faz um enorme esforço certamente sincero de dar respostas certíssimas para questões irrelevantes 6 Dilemas do professor que busca passar para seus alunos não somente conhecimentos coerentes e instrumentos que os capacitem técnica e cientificamente para o cumprimento das suas obrigações profissionais mas também inquietações pois ao lidar com uma questão tão sensível como a saúde das sociedades obrigatoriamente se situa na confluência entre o ser profissional e o ser político A epidemiologia moderna e suas crises São antigas as observações críticas de autores latinoamericanos sobre a epidemiologia na sua forma contemporânea por alguns denominada de epidemiologia moderna Rothman2 1986 Estas críticas enfatizam as insuficiências no que concerne à produção de conhecimentos coerentes com o propósito de compreender e explicar a ocorrência das doenças e de outros agravos à saúde das populações como consequência reduzindose as suas possibilidades de contribuir para a prevenção e o controle destes eventos AlmeidaFilho3 1992 Barata e Barreto4 1997 Breilh5 1997 Porém o mais interessante é que críticas similares se fazem crescentes na literatura epidemiológica internacional principalmente na de origem norteamericana Em anos recentes uma série de artigos de autores influentes publicados em revistas científicas de saúde pública e particularmente da epidemiologia têm levantado questões e críticas importantes Long6 1993 Krieger7 1994 McMichael8 1995 Pearce9 1996 Susser e Susser10 1996 Susser e Susser11 1996 Shy12 1997 Apesar de muitas destas críticas terem conteúdo similar àquelas já feitas por autores latinoamericanos no novo contexto ganham especial ressonância É importante precisar o que entendemos pelo núcleo de idéias que conformam a epidemiologia moderna Tendo por epicentro o ambiente acadêmico norteamericano esta corrente consolidouse em décadas recentes tornandose a tendência dominante na produção científica internacional na epidemiologia Susser13 1985 Barreto14 1990 No esforço de diferenciála das outras epidemiologias é essencial compreender como no seu interior constroemse os problemas científicos Na sua vertente mais radical seria problema epidemiológico aquele que embora relativo à ocorrência de eventos mórbidos em populações tenha a sua observação e sua análise realizadas no nível individual As implicações desta abordagem são surpreendentes Assim Miettinem15 1985 em seu importante livro que sintetiza as formulações fundamentais desta vertente da epidemiologia chega a afirmar que a ocorrência de epidemias a preocupação central da epidemiologia clássica não é um problema da forma característica da pesquisa epidemiológica moderna p 45 e ainda que o paradigma para a epidemiologia moderna não é o estudo da ocorrência da doença em sua forma epidêmica mas sim da forma endêmica p 5 Assim ao retirar a noção de população como a fonte geradora dos problemas epidemiológicos também o retira como central na formulação das propostas de prevenção Despreza as definições mais clássicas da disciplina e conforme observou Rose16 1992 desloca o interesse para os determinantes dos casos não os determinantes da incidência Não é por acaso o fato de que a denominada epidemiologia clínica centrada no estudo de casos derivouse do seu interior Após um vertiginoso desenvolvimento nas décadas de 1970 e 1980 a epidemiologia moderna começa a apresentar sinais de esgotamento reduzindo sua capacidade de apresentar contribuições mais significati Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L 107 Rev Bras Epidemiol Vol 1 N 2 1998 vas no sentido de entender e solucionar os complexos problemas sanitários mesmo das sociedades desenvolvidas Críticas começam a emergir nos próprios núcleos acadêmicos onde esta vertente da epidemiologia teve sua origem Neste contexto o que inicialmente era apenas a identificação de problemas e insuficiências paulatinamente evoluiu para críticas mais contundentes que explícitam a necessidade de mudanças mais profundas no curso da disciplina Apesar de apresentarem pontos em comum estas críticas vêm de diferentes contextos e são fundadas em diferentes motivações e percepções sobre o papel da epidemiologia Evidentemente também apresentam diferenças no que diz respeito às soluções que propõem ou às tendências que anteveem Como este debate ainda parcialmente codificado tende a confundir os menos iniciados na disciplina apresentase a seguir um sistematização das diversas maneiras como na literatura científica tem sido apresentada a crise ou as crises da epidemiologia moderna a Uma crise do seu paradigma dominante Susser e Susser10 1996 periodizam a evolução da epidemiologia em três eras sucessivas cada uma das quais tendo o seu paradigma dominante Em cada era estruturase também uma abordagem preventiva que se torna hegemônica A primeira a era das estatísticas sanitárias teve como paradigma dominante o miasma sendo seguida pela era das doenças infecciosas com a teoria dos germes e por fim a era atual quando predominam as doenças crônicas com o paradigma da caixa preta No entendimento destes autores este último paradigma será necessariamente superada por um novo o qual se caracterizaria por responder aos novos desafios postos para a epidemiologia e pela integração das várias dimensões da realidade que os conhecimentos recentes têm desvendado b Uma crise de formulações teóricas entendese que falta à epidemiologia estabelecer novos fundamentos teóricos que venham permitir avanços em sua prática de investigação Apesar da pequena importância conferida às questões teóricas ao interior da epidemiologia moderna elas têm sido sempre fundamentais para guiar o trabalho dos epidemiologistas Krieger e Zierler17 1996 observam que a epidemiologia diferenciase de outras disciplinas populacionais pela sua base teórica e não pelos seus métodos e técnicas Avançando na questão distinguem três componentes das teorias epidemiológicas as teorias epidemiológicas propriamente ditas que buscam explicar a saúde na população as teorias causais que formam a base para os modelos de causalidade das doenças e as teorias do erro que guiam o desenho análise e interpretação dos estudos epidemiológicos A aplicação dos dois últimos componentes gera o núcleo metodológico da disciplina enquanto o primeiro organiza as bases filosóficas e ideológicas da nossa compreensão da saúde das populações c Uma crise resultante da ruptura dos compromissos históricos da epidemiologia a epidemiologia moderna é acusada de não exercer a contento seu papel de disciplina básica da saúde pública tendo direcionado os seus esforços para o estudo das dimensões individuais e clínicas da saúde A epidemiologia não estaria cumprindo sua missão de desenvolver o método científico necessário para construir os conhecimentos que devem fundamentar a missão básica da saúde pública de prevenção das doenças e promoção da saúde das populações Shy12 1997 O ponto fundamental desta mudança é identificado na transferência do nível de análise da população para o indivíduo Wing18 1994 observa que o conceito de população desapareceu de algumas definições da epidemiologia que passa a centrar seus objetivos nas relações de ocorrência das doenças A população passa a ser apenas uma série de indivíduos enumerados com o objetivo de dar poder e significância aos testes estatísticos Contraditoriamente o conceito de risco que emerge embora não possa ser medido no nível individual passa conceitualmente a ser uma propriedade dos indivíduos O método científico de referência passa a ser o ensaio clínico Fundamentase no individualismo pois tem nítida ten Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L 108 Rev Bras Epidemiol Vol 1 N 2 1998 dência à responsabilização do indivíduo pela ocorrência dos eventos mórbidos e pela prevenção dos fatores de risco Os fatores sociais e econômicos passam a ser minimizados e as relações entre a saúde e a política tendem a ser desprezadas Há aqui a idéia de que a epidemiologia tradicional mesmo que carente dos recursos analíticos disponíveis na atualidade foi capaz de formular idéias e acumular evidências sobre as causas da ocorrência das doenças as quais resultaram em políticas de prevenção eficientes e radicais Pearce9 1996 d Uma crise da sua relação com a prática da saúde pública em uma perspectiva mais pragmática que a anterior identificase a inadequação de grande parte do conhecimento produzido sobre a saúde das populações assim como as proposições relativas à prevenção derivadas deste conhecimento Apesar de reconhecer o papel primordial da epidemiologia na pesquisa sobre a saúde da população entende que o desenvolvimento do conhecimento realmente necessário para fundamentar as práticas de promoção à saúde e para a condução das mudanças necessárias na organização dos serviços de saúde necessita de abordagens multidisciplinares Dean e Hunter19 1996 Os modelos quantitativos de risco têm explicado apenas parte dos determinantes dos problemas de saúde que afligem as populações Fatores que não são nem podem vir a ser detectados por esta estratégia de investigação muitas vezes respondem por uma parte substancial do risco Em consequência grandes frustrações podem ocorrer com relação à efetividade de medidas preventivas derivadas de estimativas de riscos que apenas explicam uma parte menor do processo causal Evans e Stoddart20 1994 e Uma crise da capacidade explicativa de cunho empirista e utilitarista que identifica o problema na frequente discordância entre os valores das medidas de risco de um mesmo fator em diferentes estudos Angel21 1990 Taubes22 1995 Nos pressupostos clássicos da epidemiologia para a aceitação de um fator como causal está a idéia da força da associação medida pela magnitude do risco relativo Alto grau de concordância entre os resultados de estudos que envolvam a análise de fatores associados a seus respectivos efeitos através de altos riscos relativos é esperado e com frequência ocorre Entretanto como a maioria dos fatores de risco são vinculados aos seus respectivos efeitos através de riscos relativos baixos a discordância entre estudos é frequente São clássicos na literatura epidemiológica os exemplos do cigarro ou de algumas radiações ionizantes que se associam aos seus efeitos por altos riscos relativos Resultados que são consistentemente reproduzidos em estudos realizados em diferentes locais e em diferentes épocas Em muitos outros casos a controvérsia é o mais comum produzindose resultados falsos negativos ou falsos positivos Como conseqüência geramse dúvidas e ansiedades como por exemplo entre profissionais e leigos ao avaliarem a importância ou não de um dado fator de risco e a consequente necessidade de esforços para o seu controle Taubes22 1995 ou entre técnicos e legisladores quando da normatização de padrões de exposição ambiental McMichael23 1989 Algumas proposições Ao lado do reconhecimento da importância que a discussão dos impasses da epidemiologia tem para o seu desenvolvimento como disciplina científica devemos também chamar a atenção para um conjunto de esforços paralelos que buscam a superação de questões conceituais ou o desenvolvimento de novas abordagens metodológicas com vistas à produção de novos conhecimentos Muitas destas atividades estão sendo praticadas em outras disciplinas nem sempre próximas à saúde pública gerando entretanto subprodutos que podem ser aplicados aos estudos sobre as condições de saúde e os seus determinantes Em toda fase transicional da produção dos conhecimentos ou das práticas como tem acontecido em diferentes momentos na história da epidemiologia e Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L 109 Rev Bras Epidemiol Vol 1 N 2 1998 da saúde pública são processos de desenvolvimento de conhecimentos e experiências em permanente sintonia com as necessidades presentes e futuras das sociedades que em seu conjunto estimulam a construção de inovações teóricas metodológicas ou operacionais Neste sentido é importante ressaltar os esforços feitos por alguns que em consonância com o contexto as indefinições e as necessidades atuais muitas vezes marchando fora do núcleo central de epidemiologia moderna contribuem para a construção seja de novos conhecimentos seja de novas estratégias que transformem os conhecimentos disponíveis em ações positivas de saúde Tais movimentos são prenúncios de tendências que despontam ou sinalizam o renascimento de tradições epidemiológicas que foram secundarizadas no passado recente No sentido de organizar estes esforços os mesmos foram agrupados em torno de três eixos básicos desigualdades em saúde ambiente qualidade de vida e medições da saúde e avaliação e escolha das intervenções em saúde Em conjunto estes eixos cobrem grande parte se não a totalidade das questões colocadas para uma epidemiologia da saúde coletiva Desigualdades em saúde Enquanto se identifica a necessidade do desenvolvimento teórico da epidemiologia devese chamar a atenção para o fato de que a sua estratégia fundamental de produção de conhecimentos continuará tendo por base os estudos empíricos Essa vocação para a análise empírica se de um lado tem levado a epidemiologia a relativizar os debates sobre as questões teóricas por outro lado tem trazido muitas contribuições inovadoras inclusive no que diz respeito às novas formas de mensuração dos fenômenos que aborda Especificamente no que concerne à mensuração das variáveis sociais e ambientais existe uma rica experiência acumulada Não é por acaso que discussões sobre a questão das classes sociais e de outras variáveis sociais em suas diversas abordagens teóricas têm perpassado tão intensamente a epidemiologia Por exemplo vale a pena notar que entre as poucas tentativas de transformar o conceito marxista de classe social em algo mensurável algumas foram feitas como parte de estudos epidemiológicos Solla24 1996 Isto significa que a partir de referências teóricas no caso da sociologia marxista desenvolveuse um sistema de medidas supostamente capaz de ser operado empiricamente e mais do que isto quantitativamente que classifica cada indivíduo de uma população em sua classe social A questão da desigualdade na distribuição da doença tem sido tratada mais enfaticamente com relação à dimensão socioeconômica Uma vasta literatura tem sido desenvolvida sobre a utilização de indicadores proxy de grupos ou classes sociais Muitos destes estudos apesar da clara descontextualização ou desteorização das categorias sociais e econômicas que utilizam em seu conjunto constituemse em um imenso patrimônio para o conhecimento das desigualdades sociais em saúde Liberatos e col25 1988 Porém na atualidade o entendimento das desigualdades tem se tornado mais complexo tanto no que diz respeito às formas empíricas de observálas como também em relação à forma como os diversos grupos estratos e classes sociais posicionamse na relação uns com os outros Novas compreensões do fenômeno das desigualdades são geradas tanto a partir de percepções acadêmicas como a partir de reflexões e ações no interior dos próprios grupos sociais Estes ao se organizarem como movimentos sociais ou culturais em busca de identidade e caráter próprios elaboram sobre as diferenças e as desigualdades com relação aos grupos hegemônicos da sociedade Assim além das classes sociais definidas de diferentes maneiras em acordo com as diferentes teorias sociais desigualdades são identificadas com relação ao gênero à raça aos grupos religiosos ou culturais etc Cochrane e col26 1982 Krieger e Fee27 1994 Mesmo que tenham a sua usina geradora na estrutura produtiva da sociedade as desigualdades espraiamse e assumem dife rentes configurações nos mais diversos planos da organização social e nos diversos momentos históricos de cada sociedade Há razoáveis evidências empíricas de que as condições de saúde observáveis nas populações acompanham a forma com que estas desigualdades se apresentam Wilkinson28 1996 Além das particularidades que assumem as desigualdades nas condições de saúde é também importante entender os enfoques fundamentais que têm guiado o entendimento dessas desigualdades Revendo os debates desta questão desde o século XIX até o presente podemos identificar dois paradigmas fundamentais O primeiro que tem sido o mais influente mesmo em tempos atuais foi desenvolvido no século XIX e fundamentase nas observações de que em sociedades desiguais determinados grupos populacionais não atingem patamares mínimos que lhes permitam acesso a bens e serviços fundamentais o que gera deprivações tanto de bens materiaissaneamento alimentação etc como de bens culturaiseducação informação etc Este paradigma principalmente no que se refere a deprivações de bens materiais tem servido para o entendimento das desigualdades observadas na ocorrência das doenças infecciosas e das deficiências nutricionais Engels29 1977 Taylor e Rieger30 1984 Diferenças notadas no plano cultural ou seja em elementos despojados de materialidade têm sido utilizadas para explicar desigualdades observadas na ocorrência das doenças cardiovasculares dos cânceres da violência da obesidade da exposição a agentes químicos etc já que carências materiais conquanto se apresentem associadas a esses problemas nem sempre satisfazem outros pressupostos de causalidade epidemiológica No decorrer da primeira metade do presente século foi verificado nos atuais países desenvolvidos o aumento crescente de muitas doenças crônicas mesmo em períodos em que políticas sociais permitiram reduzir a pobreza absoluta Assim tornavase necessário um novo paradigma que explicasse este aumento na ocorrência destas doenças e as desigualdades que em paralelo eram observadas As primeiras elaborações encontramse em torno da epidemiologia social desenvolvida por Casse3132 1964 1976 que utilizandose da teoria do stress elabora o conceito de fatores estressores gerados por processos adaptativos sociais que determinariam o perfil de saúde de uma população Não seria mais a carência absoluta mas sim a forma de inserção e de relação do indivíduo em seu meio social que desencadearia a doença Este núcleo de idéias tem evoluído no sentido de hoje se entender que a desigualdade mesmo não gerando deficiências absolutas é em si só um fator gerador de doenças Há evidências de que entre sociedades com níveis econômicos similares aquelas mais igualitárias no que concerne à distribuição de suas riquezas tendem a apresentar mais altos níveis de saúde Wilkinson2833 1996 1997 Entre as consequências do conhecimento sobre as desigualdades no risco de adoecer estão os impasses que emergem nos momentos em que se busca transformar estes conhecimentos em ações voltadas à promoção e à prevenção em saúde As experiências acumuladas no curso da história mostram que esta não é uma tarefa fácil e com frequência servem para definir os limites da saúde coletiva e da epidemiologia enquanto campos profissionais Entretanto alguns desenvolvimentos são exemplares e mostram as potencialidades da investigação epidemiológica fundada no marco das desigualdades As desigualdades existentes mas nem sempre observáveis no nível dos indivíduos transferemse para a dimensão espacial sendo detectáveis quando se comparam países regiões cidades ou mesmo zonas de uma mesma cidade Não é por menos que as relações entre os padrões espaciais e os fenômenos de saúde constituemse em um significativo exemplo da importância do desenvolvimento do conhecimento das desigualdades em saúde A demonstração da existência de extremas desigualdades espaciais nos níveis de saúde a vinculação deste fenômeno com os padrões das desigualda des sociais Stephens34 1996 e a disponibilidade de informações sobre unidades espaciais nos sistemas rotineiros de informações de muitos países têm estimulado esforços para a construção de categorizações espaciais dos eventos de saúde que sejam proxys das categorizações sociais Paim35 1997 b desenvolvimento de novas técnicas analíticas que permitam o manejo mais eficiente dessas informações e a produção de novos conhecimentos Akerman36 1997 Borell37 1997 Swar cwald e Leal38 1997 c desenvolvimento de estratégias que aumentem a precisão no que diz respeito às prioridades para a prevenção e promoção da saúde bem como para as políticas sociais em geral Stephens34 1996 Como seria de esperar desafios conceituais metodológicos e técnicocooperacionais permanecem e necessitam ser superados Entre estes podese citar a tão propalada falácia ecológica relacionada a conhecimentos gerados sobre dados agregados Schwartz29 1994 Barreto e Carmo40 1995 No terreno da aplicação Slogett e Joshi41 1994 observam na Inglaterra onde existe uma longa tradição do uso de pequenos setores espaciais como unidades na investigação epidemiológica e na definição de prioridades em saúde que políticas fundadas apenas em conhecimentos gerados a partir de agregados espaciais mesmo quando operacionalmente convenientes podem conter graus importantes de iniquidades As desigualdades em saúde têm sido apresentadas sob duas diferentes formas Vagero42 1995 A primeira relativa à chance de ficar doente que reflete a distribuição desigual dos determinantes sociais culturais e ambientais das doenças e a segunda em estando doente relativa ao acesso ao cuidado que em uma sociedade de mercado reflete a capacidade de consumo dos diferentes grupos desta sociedade Contemporaneamente muitas sociedades incluindo o Brasil adotam entre os seus direitos sociais nem sempre respeitados o acesso igualitário do indivíduo doente aos serviços de saúde Isto significa que a sociedade deveria por princípio assumir a responsabilidade pela cura de qualquer indivíduo doente independente da sua origem no sistema social No tocante à proteção relacionada com a chance de ficar doente ou seja à prevenção existe um menor grau de consenso sobre sua constituição como um direito social Portanto se há um crescente grau de consenso de que as desigualdades no acesso aos serviços de saúde sejam percebidas como iniqüidades o mesmo não acontece com relação ao risco de adoecer a despeito de que a Constituição Brasileira de uma forma bastante avançada neste aspecto assegure no seu artigo 196 proteção aos riscos para todos os cidadãos do país Avanços no conhecimento ainda que necessários não têm sido suficientes para provocar reduções nas desigualdades relativas ao risco de adoecer É próprio das utopias propor a extinção pura e simples de tais desigualdades Porém no mundo real fazse necessário transformações e intervenções complexas em esferas que em geral estão fora da capacidade de intervenção dos epidemiologistas ou de outros profissionais da saúde coletiva Neste contexto cabe à epidemiologia através do seu patrimônio conceitual e metodológico desnudar as desigualdades em saúde transformando o conhecimento produzido em fundamentos para estratégias que possam reduzilas Goldbaum43 1997 Em decorrência do seu compromisso com mudanças efetivas nos níveis de saúde da população cabe a tarefa não menos importante de em forma convincente informar aos diversos agentes sociais sobre as implicações humanas morais e éticas consequentes à manutenção de tais desigualdades Não há dúvida de que uma posição com relação a este dilema é central para de um lado evitar a transformação da epidemiologia em uma disciplina em busca apenas de soluções tecnicistas e naturalistas para os seus achados e do outro lado retirar a justificativa para a sua existência como disciplina autônoma pela perda da especificidade do seu objeto quando se dilui com outras disciplinas que estudam o social Ambiente qualidade de vida conceitos e medidas da saúde Em suas origens o conhecimento epidemiológico ainda sob a égide do paradigma miasmático percebeu o entrelaçamento da ocorrência das doenças com as questões ambientais e sociais Conhecimento que foi indispensável para embasar as grandes reformas urbanas e sanitárias ocorridas no século XIX e que signiticou nos países hoje desenvolvidos um intenso processo de transformações ambientais e sociais que tiveram um imenso impacto na saúde e na qualidade de vida das suas populações Rosen44 1994 Após um retrocesso ao início do período microbiano a noção de ambiente ressurge na epidemiologia como parte da tríade ecológica Assim na maior parte da história da investigação epidemiológica a busca das causas das doenças tem sido centrada nos fatores externos ao organismo Mesmo a denominada epidemiologia molecular traz implícita a idéia de que marcadores biológicos definem padrões orgânicos de maior ou menor susceptibilidade a fatores externos ao organismo McMichael45 1994 Isto se justifica porque a epidemiologia moderna dentro dos seus limites mostra diferenças essenciais com relação à abordagem causal de outras disciplinas que centram o entendimento dos eventos mórbidos apenas no plano das alterações e anormalidades biológicas A revisão dos conceitos e das medições da saúde que a epidemiologia utiliza na sua prática de disciplina científica ajuda a entender alguns dos seus impasses O conceito sobre o que é saúde tem variado desde noções operativas a mais primária delas como a simples ausência da doença até aquelas não operacionalizáveis tendo como exemplo mais extremado e de profundo conteúdo utópico a clássica definição da Organização Mundial da Saúde saúde como o estado de completo bem estar físico mental e social No tocante à medição etapa imprescindível no processo de produção de conhecimento de uma disciplina que tem suas referências no mundo empírico os instrumentos atualmente utilizados para mensurar a saúde das populações estão mais próximos das perspectivas operativas e centradas em torno da frequência das doenças Patrick e Bergner5 1990 Ware47 1995 Esta opção pela indisponibilidade de outros recursos para medição da saúde tem várias implicações Em um processo tautológico de um lado contribui para a manutenção das referências da epidemiologia centradas em torno da doença do outro é a demonstração de que a epidemiologia não conseguiu introduzir nas medidas da saúde das populações o seu patrimônio de conhecimentos sobre o papel causal dos fatores ambientais culturais e sociais Esforços têm sido feitos no sentido de romper com esta abordagem centrada no conceito de doença No plano das idéias propostas de uma epidemiologia da saúde em substituição à epidemiologia da doença Terris48 1987 ou de um modelo salutogênico em substituição ao modelo patogênico dominante Antonovsky49 1979 têm sido apresentadas No plano da prática podese citar um exemplo recente Mackenback e col30 1994 que fazendo uso de um desenho da epidemiologia moderna em uma população holandesa estudou os fatores associados ao estado de saúde auto referido como excelente A ênfase analítica no estudo das associações causais que é uma das marcas da epidemiologia moderna fundamentase entre outros equívocos na idéia de que os problemas de saúde estão cristalizados em sistemas classificatórios inquestionáveis e que as doenças são definidas de forma neutra e objetiva Questões relacionadas com os sistemas classificatórios dos fenômenos com que opera não recebem maior atenção na epidemiologia moderna Eventualmente a questão da classificação é discutida com relação ao diagnóstico das doenças não se percebendo a importância que o processo de classificar tem na organização do pensamento humano É evidente que a forma com que classificamos os eventos tem implicações fundamentais sobre o modo pelo qual intervimos no mundo pois é através dele que organizamos e agrupamos os fe nômenos que percebemos já que em geral somos incapazes de compreendelos isoladamente As classificações são produtos resultantes da forma com que agrupamos os fenômenos que nos circundam e refletem o entendimento das suas semelhanças e das suas diferenças Segundo Tort51 1989 as classificações são sempre construídas sobre dois pressupostos básicos as similaridades metáforas ou as conectividades sejam contiguidades associações ou genealogias metonímias Para agrupamos as doenças temse utilizado por décadas classificações sobre as quais se têm elaborado muito poucas críticas Dos sistemas classificatórios disponíveis o mais utilizado é a Classificação Internacional das Doenças CID já em sua décima versão Esta foi gerada a partir de concepções biomédicas com o princípio classificatório oscilando entre similaridades anatômicas e associações etiológicas Se entendemos que as doenças são problemas socialmente produzidos e social e historicamente construídos e não apenas problemas biológicos verificamos que estes sistemas classificatórios não incluem várias dimensões que fazem parte deste entendimento das doenças destacandose os aspectos sociais culturais e ambientais Esta preocupação já está presente em Cassel311964 quando por exemplo questiona o porquê das classificações de doenças colocarem a esquizofrenia ao lado da psicose maníacodepressiva e não ao lado da tuberculose e do suicídio já que a esquizofrenia tem com a tuberculose e o suicídio similaridades em termos dos seus determinantes sociais enquanto que com a psicose maníacodepressiva tem apenas vinculação topográfica Outra característica não menos importante desses sistemas classificatórios é o fato de excluírem vários eventos de saúde apesar de percebidos por aqueles que os sofrem Este é um problema enfrentado quotidianamente por todos aqueles que trabalham no cuidado direto com os usuários nos serviços de saúde ou pelos próprios usuários Uma série de sintomas percebidos por não ganharem o status de doença e como conseqüência não serem incluídos em tais classificações permanecem não diagnosticados A despeito do acúmulo de evidên cias demonstrando no plano individual relações entre modo de vida psique e sintomas físicos nem sempre classificáveis como doenças e no plano populacional a importância da saúde percebida como preditor de eventos de doença e de morte Mossey e Shapiro52 1982 Kaplan e Camacho53 1983 queixas e sintomas percebidos que não encontram abrigo nestes sistemas classificatórios são desqualificados como problemas de saúde A integração dos conhecimentos sobre a determinação ambiental cultural e social das doenças e da saúde acumulados na história da epidemiologia aos conhecimentos sobre as formas como os indivíduos e as sociedades percebem seus problemas de saúde e seus sofrimentos acumulados pela antropologia da saúde pode servir de base para avanços conceituais sobre a saúde Etapa fundamental no desenvolvimento de novos sistemas classificatórios que através de novas metáforas e novas metonímias expressem o nosso entendimento do processo saúdedoença para além do sistema de referência biológico e no desenvolvimento de novos indicadores que tenham a capacidade de medir dimensões ainda não mensuráveis do processo saúdedoença Reencontrar o elo perdido das preocupações da epidemiologia com o ambiente e com a qualidade da vida e atualizar estes vínculos à luz dos imensos conhecimentos acumulados e das necessidades das sociedades contemporâneas é uma tarefa que tem como conseqüência não somente reforçar a disciplina no que se refere às suas preocupações com a população mas também equacionar desafios teóricos metodológicos e tecnológicos que a reforçam enquanto disciplina científica Avaliação e escolha das intervenções em saúde A capacidade de produzir e colocar em uso novas tecnologias voltadas para o cuidado à saúde drogas aparelhos procedimentos e sistemas organizacionais para a atenção à saúde tem crescido exponencialmente Ao lado do potencial de cura ou de prevenção nem sempre confirmado e dos efeitos indesejáveis destas tecnologias estão seus altos e crescentes custos razão de preocupação de todos aqueles com alguma responsabilidade sobre a saúde dos indivíduos ou das populações A visão dominante de progresso social traz consigo a idéia equivocada de que este progresso ocorre em conseqüência da assimilação de novas tecnologias Cipolla54 1964 Germani35 1974 No campo da saúde desde pelo menos os clássicos trabalhos de Illich561975 e principalmente os trabalhos de McKeown57 1979 paira sobre nossas consciências uma profunda dúvida sobre a real importância destas tecnologias como modificadoras das condições de saúde das populações De não menos importância como marco neste campo temos o trabalho de Cochrane58 1971 Este autor ao constatar que a maioria das tecnologias médicas utilizadas até aquele momento não havia passado por processos de avaliação de sua eficácia alertou sobre os riscos dessas tecnologias provocando um imenso impacto sobre o que se concebia até aquele momento como avaliação das mesmas A importância histórica da posição de Cochrane devese ao seu clamor pela obtenção de garantias da eficácia de qualquer intervenção e serviu para estimular o uso dos ensaios aleatorizados nessas avaliações Os trabalhos de McKeown57 e Cochrane58 podem ser considerados como abordagens representativas de duas visões extremas sobre as concepções da saúde das doenças e das formas de modificálas A primeira representando a visão da doença como um processo fundamentalmente social e histórico e enquanto tal apenas secundariamente modificáveil pelas intervenções médicas e a segunda a visão do corpo como uma máquina biológica que pode ser afetada por problemas disfuncionais a doença cuja proteção depende primariamente de intervenções efetivas sobre os seus mecanismos geradores Temse buscado várias estratégias para demonstrar o quanto as tecnologias ações e serviços de saúde podem ser eficazes ou efetivos porém há evidências de que uma parte importante das mesmas apesar de em uso corrente não foi adequadamente avaliada Podemse apontar como fatores que contribuem para isso a imensa e exponencialmente crescente quantidade de tecnologias disponíveis os altos custos de um adequado processo de avaliação a falta de interesse dos produtores as incertezas sobre a extrapolação dos estudos de eficácia para outras populações as insuficiências de ordem metodológicas como a falta de desenhos que permitam avaliações objetivas de certas tecnologias por exemplo as cirurgias ou os métodos psicoterápicos59 Os ensaios aleatorizados a forma mais elaborada de avaliação disponível Power e col60 1994 para alguns o modelo de referência na investigação epidemiológica Horwitz61 1987 Miettinen62 1989 apresentam com freqüência resultados discordantes mesmo quando baseados em desenhos e tamanhos amostrais que lhes garantiriam validade Como conseqüência mesmo no caso de tecnologias que tenham os ensaios aleatorizados como o mais indicado para suas avaliações a exemplo dos medicamentos e das vacinas há dificuldades para a formação de consensos que norteiem decisões seguras sobre o uso de cada uma delas Para compensar as insuficiências dos estudos aleatorizados novos recursos de avaliação têm sido desenvolvidos e utilizados Como exemplos podemse citar as metanálises e os ensaios com grandes amostras e desenhos simplificados large sample randomized trials A metanálise tem por objetivo agregar os resultados de vários estudos sobre uma mesma tecnologia o que significa pela soma das amostras de cada estudo isolado aumentar a amostra global para em seguida através de artifícios de análise estimar seus efeitos médios Greenland63 1987 Os ensaios com grandes amostras possibilitam uma maior eficiência do estudo e a observação de fenômenos que não seriam observados em estudos com amostras convencionais como muitos dos efeitos indesejáveis Porém para que tenham viabilidade operacional utilizam desenhos mais simplificados o que pode eventualmente afetar a qualidade dos resultados Peto e col64 1993 Barreto e col65 1996 Se todo o esforço de avaliação não tem superado os problemas inerentes à definição da eficácia das tecnologias maiores ainda são as limitações com relação à avaliação da efetividade Pois mesmo tendo níveis aceitáveis de eficácia quando analisadas isoladamente muitas das tecnologias são pouco efetivas quando utilizadas como parte rotineira de ações programas e serviços de saúde A questão tornase mais complexa e real embora menos aparente quando nos deparamos com o problema da efetividade dos programas e serviços de saúde Estes se constituem em estruturas organizacionais que agregam uma ou mais tecnologias e que em seu conjunto formam o complexo prestador de serviços de saúde Este complexo atua segundo regras de mercado nem sempre sujeito a normas reguladoras e ao controle social e que dificilmente poderá vir a ser globalmente avaliado Entretanto avaliar a eficácia e a efetividade de pelo menos parte das tecnologias ações ou programas direcionados à cura ou prevenção em saúde é uma tarefa para a qual a epidemiologia dispõe de recursos Inclusive ainda que de forma incipiente temse experimentado a aplicação de estudos aleatorizados na avaliação de serviços completos firm trials em lugar da avaliação de tecnologias isoladas A documentação da baixa efetividade de muitas dessas intervenções e o alto custo dos seus limitados benefícios são uma contribuição científica e socialmente relevante da epidemiologia para a melhoria da qualidade e o controle de custos da assistência e da prevenção em saúde Como exemplo podese citar estudo que avaliou o papel do sistema hospitalar na atenção à diarréia infantil na Região Nordeste do Brasil Barreto e col66 1997 Por problemas relacionados à acessibilidade e à qualidade da assistência prestada observouse muito baixa efetividade no que concerne à diminuição dos óbitos por esta doença Isto eleva para níveis proibitivos e injustificáveis o seu custoefetividade desperdiçando recursos que poderiam estar direcionados para programas de prevenção com efetividade já demonstrada Causa versus prevenção algumas conclusões Na epidemiologia moderna a medida de risco mais utilizada é o risco relativo o que mede a força da associação ou seja a chance de um grupo populacional vir a ter o evento mórbido relativamente a um grupo de referência Outras medidas destacandose o risco atribuível de maior interesse para a mensuração populacional do risco e para estimar a sua importância para uma população definida têm sido secundarizadas Um fator com baixo risco relativo pode ter grande importância populacional assim como um fator com alto risco relativo pode ter pequena importância populacional Os métodos e desenhos de estudo desenvolvidos pela epidemiologia moderna têmse mostrado extremamente eficientes no estudo de fatores causais com grande força de associação ou com alto grau de especificidade em relação ao seu efeito Porém grande parte dos fatores de risco associamse aos efeitos através de baixos riscos relativos ou de forma pouco específica razões que contribuem para as inconsistências dos resultados encontradas em diferentes estudos sobre a mesma questão Na epidemiologia a causa é entendida como um fator ou um conjunto de fatores vinculado à ocorrência de um evento mórbido Por analogia concluise que a retirada da causa ou a introdução de algo que a neutralize reduzirá a ocorrência do evento Ação que genericamente se denomina de medida de prevenção Apesar do caráter empirista da epidemiologia a causa por mais real que seja situase no campo do conhecimento enquanto que a prevenção resultante do conhecimento sobre as causas encontrase no campo da práxis Aqui ficam definidos dois espaços interdependentes e nem sempre claramente delimitados o do conhecimento e o da ação Rev Bras Epidemiol Vol 1 Nº 2 1998 116 Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L a epidemiologia como disciplina científica que estuda a saúde a doença e os seus determinantes e como campo profissional da saúde coletiva que desenvolve tecnologias e estratégias de prevenção Paim e AlmeidaFilho67 1998 No primeiro espaço elaboramse teorias desenhamse estudos analisamse dados produzemse informações e conhecimentos No segundo a partir do anterior produzemse novos conhecimentos delineiamse estratégias concretizamse ações No primeiro os erros são de ordem teórica e metodológica No segundo os erros significam vidas doenças sofrimentos ou ainda custos sociais econômicos ou políticos Enquanto se tenha consolidado a idéia de que grande parte dos fenômenos relacionados à saúde tem múltiplas causas a construção de modelos multicausais a exemplo das redes de causalidade carece não só de qualquer consistência teórica assim como tem sido de baixa utilidade operacional por insuficiências no campo metodológico Krieger67 1994 McCormick e Skrabanek68 1988 discutindo esta questão concluem que a qualificação de uma etiologia como multifatorial tem significado na prática o desconhecimento da causa Estes autores sugerem que muitos dos fatores de risco conhecidos venham a ser denominados marcadores de risco com o sentido de se evitar expectativas não realistas de prevenção As estratégias de prevenção que efetivamente são utilizadas organizamse a partir de concepções unicasuais No sentido de reafirmar essa perspectiva reducionista Tesh69 1988 destaca que as práticas atuais de prevenção giram em torno de apenas três modelos fundamentais o do germe o do estilo de vida e o ambiental Para cada um destes modelos existem estratégias de intervenções preventivas correspondentes vacinas educação em saúde e normas reguladoras respectivamente A idéia primária que se opera na epidemiologia é de que o achado causal gera a prevenção e somente pelo acúmulo de conhecimentos causais se poderão elaborar novas estratégias de prevenção Observandose a história do desenvolvimento do conhecimento sobre algumas causas isoladas e o consequente desenvolvimento das ações para a prevenção das mesmas este processo linear pode eventualmente ocorrer Entretanto revendose na história da saúde pública as relações entre os modelos causais e os modelos preventivos concluise que esta premissa dificilmente poderá ser generalizada Se o conhecimento da causa antecede a formulação da estratégia de prevenção os limites preestabelecidos para as estratégias de prevenção têm definido em uma aparente contradição o espectro de relações causais a serem objeto de investigação A desqualificação da determinação social cultural e ambiental da doença ou de outras teorias causais não ocorreu pelos conhecimentos que produziram mas sim pelas suas potenciais consequências em termos das estratégias de prevenção que produziram ou poderiam vir a dar origem Não há dúvida de que a crise pressentida da epidemiologia moderna é antes de tudo uma crise de esgotamento já que a as possibilidades de novos conhecimentos sobre fatores de risco com forças associativas muito altas ou com altos graus de especificidade com relação ao seus efeitos estão esgotadas b as propostas de prevenção fator a fator têmse mostrado de limitada eficiência e de difícil implementação c com frequência a avaliação das tecnologias não fornece um quadro completo dos efeitos previstos e imprevistos e principalmente os seus efeitos quando utilizadas como parte de complexos programas de intervenção na saúde d por melhor que sejam as intenções e por mais consistente que sejam os conhecimentos disponíveis a capacidade de se prever o resultado das intervenções que se implementam é em geral baixa Porém têmse algumas convicções Uma delas é de que sínteses feitas a partir dos conhecimentos existentes têm produzido algumas categorizações lógicas e consistentes que aplicadas em populações definem estratos que se diferenciam de outros com relação ao risco de ocorrência de um ou mais eventos mórbidos de im Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L 117 Rev Bras Epidemiol Vol 1 Nº 2 1998 portância Essas categorias quando utilizadas como ponto de partida para reorganizar políticas populacionais de prevenção podem ser de grande utilidade Assim podemse entender os esforços como os de Castellanos7071 1992 1997 desenvolvidos por outros Paim35 1997 de demonstrar que a categorização de populações de acordo com os níveis de condições de vida definem subpopulações com diferentes níveis de saúde e podem servir de base para a definição de prioridades nas ações de proteção e promoção à saúde Porém outros recortes também podem definir subgrupos populacionais com relação à ocorrência de eventos de saúde Como exemplo podese utilizar o caso de um recente e denso relatório sobre as relações entre alimentos nutrição e câncer produzido com o objetivo de intensificar a prevenção deste grupo complexo de patologias World Cancer Research Found72 1997 A análise detalhada das evidências científicas existentes advindas principalmente de estudos epidemiológicos que suportam ou não possíveis associações casuais entre os vários alimentos e fatores nutricionais e os vários tipos de câncer resultou na proposição de intervenções organizadas em torno de apenas 14 recomendações cada uma delas definindo ações em nível populacional e correspondentes orientações em nível individual Estas recomendações são produto do esforço de sistematização das infinitas possibilidades de prevenção que resultam do conhecimento ou desconhecimento existentes sobre as associações causais entre fatores nutricionais e alimentares específicos e cancers específicos Estimouse que o seguimento dessas recomendações poderia levar à redução de 3040 do total de casos de câncer no mundo 34 milhões de casos por ano além de ter repercussões positivas sobre a ocorrência de uma série de outras patologias relacionadas à alimentação e fatores nutricionais A opção pela prevenção centrada em fatores específicos além da baixa viabilidade enquanto política de saúde seria de difícil entendimento e utilização por indivíduos e por populações Susser e Susser11 1996 previram o advento de uma nova era na epidemiologia que a partir da ruptura com a visão simplista dicotômica que se construiu será estruturada sobre os elos relacionais entre os vários níveis da realidade A esta nova era denominaram de ecoepidemiologia a ser constituída sobre um novo paradigma as caixas chinesas Este novo paradigma seria resultante da síntese de conhecimentos gerados em dois níveis O macro com o estudo dos fenômenos em nível da população e das sociedades e o micro com o estudo dos fenômenos que ocorrem no nível molecular O novo paradigma seria essencialmente integrador e harmonizador destes níveis do conhecimento Os métodos e técnicas que permitirão concretizar tais possibilidades estão apenas enunciados o que segundo os autores não se constitui em problema pois de maneira similar no início da era da epidemiologia das doenças crônicas os desenhos de estudos e recursos de análise hoje rotineiramente utilizados apenas despontavam A crítica na ciência não tem em geral a pretensão de extinguir o velho e substituílo por algo novo Pretende sim superar as referências paradigmáticas existentes no momento em que estas não se mostram capazes de resolver questões que lhes são apresentadas Neste sentido o que aqui se denominou de epidemiologia moderna continuará tendo por muito tempo papel importante no desenvolvimento de conhecimento sobre as causas das doenças Savitz73 1994 Porém da mesma forma que aconteceu em outras disciplinas científicas a superação da epidemiologia moderna implica obrigatoriamente em retirarlhe a capacidade de continuar sendo o eixo estruturante da produção do conhecimento epidemiológico É difícil acreditar que em um tempo observável a epidemiologia poderá responder a todas as questões e problemas postos para ela por mais que seus paradigmas sejam atualizados Isso não diminui a sua importância e mostra a pertinência de se continuar elaborando e reelaborando questões perplexidades e críticas Tam Rev Bras Epidemiol Vol 1 Nº 2 1998 118 Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L bém não concede o direito da ignorância com relação ao conhecimento existente ou da postergação de in tervençőes e outras açoes que em um dado momento apre sentemse como necessárias Neste con texto é que se situam os pragmáticos no momento em que com conhecimentos deficientes e em condiçőes adversas conseguem propor melhorias nas condiçőes de saúde da populaçăo Na sua tensão entre disciplina científica e campo profissional a epidemiologia traz à tona para os seus praticantes independente de onde e sejam situados os desafios da dialéctica entre o sonhar e o fazer entre a utopia e a realida de entre a técnica e a política Repensar a forma de conceber a pre vençăo constituise um dos grandes desa fios de uma epidemiologia da saúde cole tiva No processo de produçăo científica quando faltam recursos analíticos mais adequados ou quando se quer aprofundar a análise de um fator podese isolálo e testálo fora do seu sistema original Po rém no momento da intervençâo já não se opera com modelos mas sim com a reali dade em toda a sua complexidade Na transmutação de conhecimentos gerados a partir de bases conceituais deficientes e de modelos reducionistas para açoes e in tervençőes em realidades por natureza complexas ocorrem muitos erros e frus tramse expectativas com relaçăo aos efei tos ou mudanças esperadas Dorner74 1996 Para tornar mais intricada a ques tăo devese ter em conta o fato de que na prevençâo atuase sobre indivíduos e po pulaçőes que em geral não săo os mesmos a partir das quais os riscos foram estima dos É operaçâo frequente a utilizaçăo de riscos estimados em um dado contexto para projetarse estimativas do impacto das intervençőes na reduçăo dos riscos em um outro contexto Esta passagem provo ca o aumento das incertezas e mesmo im plicam no aumento dos limites de confi ança originalmente estimados Vivese em um momento de grandes tensőes epistemológicas Na história do co nhecimento idealizouse um mundo line ar visão que felizmente está em declínio As relaçőes causais estabelecidas em bases dicotômicas lineares unidirecionais exclu sivamente quantitativas e com baixa capa cidade preditiva săo questionadas Muitos sentem a necessidade de percepçăo regis tro e análise dos elementos năo mensurá veis ou qualitativos da saúde Trostle75 1986 Baum76 1995 Pela dinâmica do conheci mento e no prenúncio de uma nova era e năo por simples modismo tópicos como estudos ecológicos Morgenstern77 1995 quaseexperimentos Behi e Nolan78 1996 caos Philippe79 1992 transdisciplinarida de AlmeidaFilho80 1997 lógica fuzzy Corson81 1996 fractais Anderson e col82 1997 complexidade Schramm e Castiel83 1992 Marques84 1995 Castiel85 1996 estatística Bayesiana Etzioni e Kadane86 1995 modelos em múltiplos níveis Von Korf e col87 1992 Fucks e Victora88 1997 redes neurais Hammad e col89 1996 etc começam a ter cada vez mais usuários e adeptos na comunidade epidemiológica Em uma área tradicional que é a epidemio logia das doenças infecciosas e parasitári as com base em conceitos como dinâmica de populaçőes e razăo de reproduçăo bási ca constroemse modelos matemáticos cada vez mais complexos e pouco acessí veis aos năo iniciados que incluem número crescente de fatores na busca de simulaçőes mais aproximadas da realidade onde a doença ocorre Scott e Smith90 1994 O epidemiologista adequado ao pre sente deve transitar entre as definiçőes e usos tradicionais da disciplina e uma série de novos conceitos que vêm sendo conti nuamente decodificados e assimilados deve dialogar com as experiências inova doras que se constituam em contribuiçőes no fortalecimento dos vínculos da epide miologia com seus propósitos fundamen tais e com a saúde coletiva deve participar da construçăo das novas bases conceituais e metodológicas que irăo permitir o desen volvimento de conhecimentos e novas pos sibilidades de prevenir os eventos mórbi dos e amenizar os sofrimentos humanos Para intervir no presente deve buscar no conhecimento epidemiológico até entăo produzido evidências que tomem possível Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L Rev Bras Epidemiol Vol 1 Nº 2 1998 119 o desenvolvimento de alternativas de prevenção tecnicamente viáveis de grande impacto populacional e efetivas sobre o maior número possível de problemas de saúde Porém que também sejam social e individualmente aceitáveis e politicamente realizáveis A implementação de muitas intervenções somente é possível após mudanças ou redefinições no campo político As vinculações com outros profissionais da saúde coletiva devem se dar pela construção de afinidades em torno de tudo aquilo que diga respeito à prevenção Nesta direção a epidemiologia reconstituirá suas bases teóricas e metodológicas fundadas em princípios éticos e em justificativas morais que direcionem seus esforços para entender e contribuir na redução das desigualdades na saúde na melhoria da qualidade de vida dos indivíduos e das populações e na seleção das tecnologias de saúde evitando a exposição indiscriminada dos indivíduos e das populações a intervenções com baixa efetividade ou que induzam novas doenças e novos sofrimentos Tudo isto porém ganhará um maior sentido quando articulado a um outro arcabouço que está sendo paulatinamente construído o qual busca compreender as razões da intensa dinâmica temporal dos eventos de saúde nas populações humanas bem como dos seus determinantes e mesmo da efetividade das intervenções Omran 1971 McKeown 1979 Caldwell 1993 Barreto e col 1994 Esta articulação tende a relativizar o papel dos conhecimentos obtidos em momentos isolados e colocálos em uma perspectiva histórica possibilitando a produção de muitos dos conhecimentos que necessitamos Agradecimentos Gostaria de agradecer aos colegas Jailnisonm Paim Carmen Teixeira Naomar Almeida e Estela Aquino por seus comentários em aspectos importantes do texto A apresentação de versões préminares no V Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva em 1997 em Águas de LindóiaSP e no IV Congresso Brasileiro de Epidemiologia em 1998 no Rio de Janeiro serviram de estímulo e foram vitais no amadurecimento da versão aqui apresentada Referências 1 Last JM editor Dictionary of epidemiology New York Oxford University Press 1988 2 Rothman KJ Modern epidemiology Boston Little Brown 1986 3 Almeida Filho N A clínica e a epidemiologia Salvador APCEABRASCO 1992 4 Barata RB Barreto ML Algumas questões sobre o desenvolvimento da epidemiologia na América Latina Ciênc Saúde Coletiva 1997 1 709 5 Breilh J A epidemiologia na humanização da vida convergências e desencontros das correntes In Barata RB Barreto ML Almeida Filho N Veras RP editores Equidade e 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Epidemiologia como Ciência Naomar de Almeida Filho Maurício L Barreto e Maria Zélia Rouquayrol A Epidemiologia se constitui atualmente na principal ciência da informação em saúde base da medicina da saúde coletiva e das outras formações profissionais em saúde Podese definila como a abordagem dos fenômenos da saúdedoençacuidado por meio da quantificação usando bastante o cálculo matemático e as téc nicas estatísticas de amostragem e de análise Entretanto apesar do uso e até abuso da numerologià a moderna Epidemiologia não se restringe à quantificação Cada vez mais emprega técnicas diversificadas para o estudo científico da saúde individual e co letiva De fato todas as fontes de dados e de informação podem ser válidas para o conhecimento sintético e totalizante das situa ções de saúde das populações humanas Tradicionalmente a Epidemiologia tem sido definida como a ciência que estuda a distribuição das doenças e suas causas em populações humanas Segundo Jénicek 1995 um dos ob jetivos principais da Epidemiologia deve ser identificar fatores etiológicos na gênese das enfermidades De fato muitas doen ças cujas origens até recentemente não encontravam explicação têm sido estudadas em suas associações pela metodologia epi demiológica que aplica o método científico da maneira mais abrangente possível a problemas de saúde da comunidade A International Epidemiological Association IEA Last 1983 define Epidemiologia como o estudo dos fatores que determinam a frequência e a distribuição das doenças nas co letividades humanas Enquanto a clínica dedicase ao estudo da doença no indivíduo analisando caso a caso a Epidemiologia debruçase sobre os problemas de saúde em grupos de pessoas na maioria das vezes envolvendo populações numerosas Susser 1987 eminente epidemiologista social sulafricano radicado nos EUA escreveu que a Epidemiologia é essencial mente uma ciência populacional que se baseia nas ciências sociais para compreensão da estrutura e da dinâmica sociais na matemática para noções estatísticas de probabilidade inferência e estimação e nas ciências biológicas para o co nhecimento do substrato orgânico humano onde as manifesta ções observadas encontrarão expressão individual Devido à complexidade crescente e considerando a abran gência da sua prática atual não é possível uma definição única e precisa da Epidemiologia enquanto campo científico De ma neira simplificada propusemos conceituála como ciência que estuda o processo saúdeenfermidade na sociedade ana lisando a distribuição populacional e fatores determinantes do risco de doenças agravos e eventos associados à saúde propondo medidas específicas de prevenção controle ou erradicação de enfermidades danos ou problemas de saúde e de proteção promoção ou recuperação da saúde individual e coletiva produzindo informação e conheci mento para apoiar a tomada de decisão no planejamento adminis tração e avaliação de sistemas programas serviços e ações de saúde Almeida Filho Rouquayrol 2006 p 4 Como se pode inferir desta definição desde seus primórdios no século XIX a Epidemiologia tem revelado uma forte vocação de ciência aplicada dirigida para a solução dos problemas de saúde Tratase sem dúvida de uma poderosa ferramenta cien tífica de grande utilidade para a área da Saúde justamente por seu caráter pragmático Nesse aspecto há uma curiosidade a destacar o primeiro tratado da ciência epidemiológica moderna escrito por Jeremy Morris em 1956 intitulavase justamente Os Usos da Epidemio logia Morris 1957 Essa obra compreendia sete capítulos cada um analisando uma utilidade potencial para a então recém nascida ciência A Epidemiologia cada vez mais ocupa o lugar privilegiado de fonte de desenvolvimento metodológico para todas as ciên cias da saúde Hoje a ciência epidemiológica continua amplian do seu importante papel na consolidação de um saber científi co sobre a saúde humana sua determinação e consequências subsidiando largamente as práticas de saúde Compreende três aspectos principais 1 Estudo dos determinantes de saúdeenfermidade A in vestigação epidemiológica possibilita o avanço do conhe cimento sobre os determinantes do processo saúdedoen ça tal como ocorre em contextos coletivos contribuindo para o avanço correspondente no conhecimento etioló gicoclínico 2 Análise das situações de saúde A disciplina epidemioló gica desenvolve e aplica metodologias efetivas para des crição e análise das situações de saúde fornecendo sub sídios para o planejamento e organização das ações de saúde isto corresponde ao que antigamente se chamava diagnóstico de saúde da comunidade 3 Avaliação de tecnologias e processos no campo da saúde A metodologia epidemiológica pode ser empregada na avaliação de programas atividades e procedimentos pre 3 4 Capítulo 1 1 A Epidemiologia como Ciência ventivos e terapêuticos tanto no que se refere a sistemas de prestação de serviços quanto ao impacto das medidas de saúde na população Aqui consideramos desde estudos de eficiência e efetividade de programas e serviços de saú de até ensaios clínicos de eficácia de processos diagnós ticos e terapêuticos preventivos e curativos individuais e coletivos Como se criou tão importante disciplina científica hoje es sencial para todas as ciências básicas clínicas e sociais da saúde Qual é a sua história Que relações entretêm com outros cam pos de conhecimento Quais as bases epistemológicas e meto dológicas que sustentam e legitimam seu estatuto científico Que princípios filosóficos éticos e políticos conformam e re gulam sua inegável utilidade para nossas vidas A resposta a essas questões compreende a Parte 1 do presente volume As raízes históricas da ciência epidemiológica podem ser iden tificadas em uma trilogia de elementos conceituais metodológi cos e ideológicos representados pela clínica pela esttítca e pela medicina social A articulação desses elementos historicos que resultou na institucionalização da ciência epidemiológica na se gunda metade do século XX é arrda de modo esumido no Capítulo 2 Considerando o significativo desenvolvimento desse campo em nosso país o Capítulo 3 acrescenta uma breve nota complementar sobre a história da Epidemiologia no Brasil Para cumprir seu papel de fonte de dados informação e co nhecimento para subsidiar o planejamento gestão e avaliação de políticas programas e ações de proteção promoção ou recupe ração da saúde a Epidemiologia precisa repnsar seus víncos com o modelo da prevenção e sua dependencia dos conceitos de causalidade e determinação Tais conceitos eixos basilares do raciocínio epidemiológico convencional são avaliados em seus aspectos formais e aplicados no Capítulo 4 onde além dis so as categorias de contingência e sobredeterminação são pro postas como estruturantes de novas modalidades de compre ensão da dinâmica de determinação epidemiológica Do ponto de vista teóricometodológico o objeto da Epide miologia tem sido construído através do conceito de risco O conceito epidemiológico de risco implica relações de ocorrên cia de saúdeenfermidade em massa envolvendo número ex pressivo de seres humanos agregados em sociedades coletivi dades comunidades grupos demográficos classes sociais ou outros coletivos humanos No Capítulo 5 avaliase a reserva semântica do conceito de risco em sua capacidade de articular se aos desenvolvimentos conceituais e metodológicos do cam po ideológico conceitua e metodológico que tem sido deno minado de saúde coletiva O futuro do conceito de risco dependerá da capacidade de a Epidemiologia atualizarse con tribuindo com modelos teóricos e estratégias metodológicas sensíveis a objetos complexos emergentes incorporando adi mensão contingente dos processos de ocorrência de problemas de saúde em populações humanas A Epidemiologia constitui um dos eixos estruturantes do cam po científico da Saúde Destaue o ceno contr1preode práticas acadêmicas e profissionais nossa Jovem ciencia impoe se cada vez mais como principal marco metodológico da pes quisa clínica e social em saúde Como disciplina científica a Epi demiologia depende de categorias epistemológicas para a construção de modelos teóricos de saúdeenfermidade que por sua vez organizam o conhecimento produzido e contribuem para orientar as práticas e técnicas As interfaces disciplinares da Epi demiologia tanto no campo de práticas e de ação tecnológica quanto no âmbito intersetorial da saúde são iscutidas no Cpí tulo 6 Como eixo de argumentação o conceito de campo cien tífico é empregado no sentido de reconhecer a ciência e todas as ciências como prática social uma construção histórica por tanto permitindo repensar a Epidemiologia como protagonista em um campo de produção científica e em uma esfera particular de aplicação da tecnociência Finalmente a Parte 1 se conclui com dois capitulos adicio nais complementares à discussão das bases e princípios da Epi demiologia O Capítulo 7 compreende um texto sobre aspectos éticos e deontológicos da pesquisa epidemiológica e das práti cas técnicas e ações dela decorrentes Dada a crescente impor tância e significado do conhecimento epidemiológico sobre as práticas de saúde e sobre o modo de vida contemporâneo tais questões têm grandes repercussões sobre outros campos de sa beres cada vez mais atravessados por demandas filosóficas morais e políticas Referências bibliográficas Almeida Filho N Rouquayrol MZ Introdução à epidemiologia 4ª ed Rio de Janeiro Guanabara Koogan 2006 Jenicek M Epidemiology the logic of modem medicine Montreal EPIMED International 1995 Last JM A dictionary of epidemiology 4ª ed Nova York Oxford University Press 2001 Morris J Uses of epidemiology Edinburgh and London E S Livingstone 1957 Susser M Epidemiology health society selected papers Nova York Oxford University Press 1987 1 Identifique e defina os principais conceitos básicos que fundamentam a epidemiologia A epidemiologia se utiliza da compreensão de padrões da ocorrência das doenças em populações específicas com características definidas em espaço e tempo Além do padrão se vale da definição do risco para a ocorrência de um determinado agravo em uma pessoa ou grupo populacional utilizando as dimensões anteriormente citadas Em muitas situações provoca a determinação da causalidade a partir de determinantes e fatores de risco que podem indicar uma exposição que leva à um determinado desfecho buscando associação entre os conceitos 2 Quais são os principais usos e aplicações da epidemiologia A epidemiologia é uma ciência que se utiliza de dados específicos para determinar e descrever o estado de saúde de uma população definida em tempo e espaço suas variações ao longo do tempo e a forma de distribuição das doenças e agravos identificar os determinantes e os fatores de risco para uma determinada doença ou agravo de saúde permitir a fomentação explicação e permanência de políticas de saúde e avaliar o impacto das mesmas além de apoiar a realização de pesquisas em saúde 3 Discuta as articulações da epidemiologia com outras disciplinas clínica estatística sociologia antropologia geografia demografia etc Apesar de ser considerada uma ciência com suas características bem esclarecidas a epidemiologia necessita de conhecimentos adquiridos de outras áreas do saber para substanciar a sua prática Como um exemplo simples temse o uso de dados oriundos de censos demográficos para a realização de pesquisas epidemiológicas que analisem a ocorrência e distribuição de um determinado agravo Ao utilizar os conceitos de determinantes em saúde e fatores de risco para a determinação de agravos se vale da sociologia e antropologia que permeiam as transformações sociais ocorridas ao longo do tempo culminantes nos determinantes sociais
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Texto de pré-visualização
Risco Conceito Básico da Epidemiologia Naomar de Almeida Filho Luis David Castiel e José Ricardo Ayres Há ciências que estudam objetos voltados ao passado como a paleontologia a arqueologia a história Há ciências que dirigem seus esforços para o entendimento de estruturas e formas como a química a biologia sistemática a anatomia Outras têm como objetivo a explicação de processos e fenômenos em curso como a física mecânica a biologia molecular a fisiologia Em geral tais ciências não foram construídas para a previsibilidade ou antecipação temporal de eventos e fenômenos o que ao con trário caracteriza outras disciplinas científicas muito peculiares como a meteorologia a economia e a epidemiologia Estas úl timas não por coincidência operam diferentes versões do con ceito de risco Por diversas razões analistas sociais contemporâneos con sideram que a preocupação futurológica se acentuou significa tivamente no perfil de muitas áreas de pesquisa Uma delas seria a necessidade de lidar com o encolhimento do presente e a ampliação das incertezas e os correspondentes sintomas de desassossego que rondam as sociedades modernas Bauman 2005 Esta sensação de grande insegurança que acompanha nossa época se combina com alguns juízos denunciatórios do descontrole da técnica Paradoxalmente os tempos atuais se caracterizam pelos efei tos de muitos objetos resultantes da vertente tecnológica ense jada pela ciência moderna a partir de seus cânones de raciona lidade No entanto estamos testemunhando que a racionalidade não traz obrigatoriamente certeza consistência confiança tranquilidade Innerarity 2004 A disponibilidade de ferramentas de modelagem e simulação e a grande ênfase em técnicas estatísticas prospectivas parecem ser manifestações emblemáticas desse estado de coisas como resultado da busca de satisfação de uma necessidade ou como sintoma do espírito de uma época vertiginosa Inegavelmente o afã antecipatório se acentuou bastante nos tempos atuais a ponto de algumas ciências incorporarem presentemente uma forte aura futurista que as aproxima grandemente das narrativas de ficção científica Nos processos concretos de produção de conhecimento as explicações sobre as relações entre fenômenos podem deixar o terreno firme dos objetos precisos e delimitados sob o regime da causalidade e adentrar em domínios mais incertos Aqui os instrumentos de construção do conhecimento passam a adotar perspectivas para lidar com a incerteza A probabilidade é um dispositivo com esta fmalidade De um modo geral as afirma ções baseadas em probabilidades são dependentes de contin gências eventualmente fora do controle dos observadores em seus intentos de especificar causas e efeitos Assim no âmbito da saúde as intenções de prevenção começam a depender de definições com variadas doses de incerteza Uma delas é a do objeto incerto denominado risco Sentidos do risco Risco é um vocábulo especialmente polissêmico e portanto dá margem a ambiguidades Como foi desenvolvido em outro lugar Castiel 1994 o referido termo possui conotações no chamado senso comum Nesta perspectiva há controvérsias quanto a suas origens no idioma português tanto pode provir diretamente do baixolatim riscu risicu como do espanhol risco penhasco escarpado Na segunda acepção excluindo os ter mos relacionados com o verbo riscar indica por um lado a própria ideia de perigo e por outro sua possibilidade de ocor rência Ferreira 1999 Etimologicamente em ambas as acep ções o termo risco originase do latim resecum o que cortâ derivado do verbo resecare ato de dividir cortar separando Designava o estilete empregado pelos romanos para marcar as tabuletas de cera que eram usadas para escrever antes da adoção do papiro Mais tarde na época medieval em linguagem náu tica riscum veio a significar penhasco perigo no mar peri go oculto o que poderá explicar o significado finalmente esta belecido na teoria epidemiológica Rey 1993 No século passado na maioria dos idiomas da Europa Oci dental seu sentido já se encontrava relacionado com apostas e chances de ganhos e perdas em certas modalidades de jogos ditos de azar Em épocas mais recentes adquiriu significados referidos a desenlaces negativos Douglas 1986 No decorrer da Segunda Grande Guerra no campo da engenharia o tema recebeu um forte impulso em função da necessidade de estimar danos decorrentes do manuseio de materiais perigosos radio ativos explosivos combustíveis Na Biomedicina estas análises serviram para dimensionar os possíveis riscos na utilização de tecnologias e procedimentos médicos Skolbekken 1995 Uma leitura inicial que transita pela obviedade esquemática revela superposições semânticas dicionarizadas entre perigo e 43 44 Capítulo 5 1 Risco Conceito Básico da Epidemiologia risco como aparece por exemplo no Dicionário Houaiss Hou aiss Vilar 2001 Se por um lado perigo se define como situação em que se encontra sob ameaça a existência ou a in tegridade de uma pessoa um animal um objeto etc ao mesmo tempo é sinônimo de risco e assim deixa de ser causâ evi dente e direta no sentido do que faz com que algo exista ou aconteçâ Por sua vez risco é probabilidade de perigo geral mente com ameaça física para o homem e ou para o meio am biente dentro de uma perspectiva favorável de que algo venha a ocorrer possibilidade chance Em termos conceituais o risco se constitui em uma forma presente de descrever o futuro sob o pressuposto de que se pode decidir qual o futuro desejável Seguindo Luhmann 1998 o conceito de risco considera uma diferença de tempo isto é a dife rença entre o julgamento anterior e o julgamento posterior à ocor rência da perda E se dirige diretamente a esta diferença um paradoxo da simultaneidade de visões opostas de tempo Luh mann 1998 p 72 Paradoxo que por sua vez está também en volvido em uma dimensão temporal À medida que o tempo pas sa em cada momento somente há um julgamento plausível O conceito de risco homogeneíza as contradições no pre sente estabelecendo que só se pode administrar o risco o fu turo de modo racional ou seja através da consideração crite riosa da probabilidade de ganhos e perdas conforme decisões tomadas Bernstein 1996 Mesmo nesta perspectiva que Sen nett 1999 p 8 chama de econométrica o risco se tornou des norteante e deprimente pois falta matematicamente ao risco a qualidade de uma narrativa em que um acontecimento leva ao seguinte e o condiciona Sennett 1999 p 97 O que são ganhos e perdas no terreno do vivermorrer humanos Esta indagação reflete a preocupação exacerbada com a procrasti nação da morte e dos sinais de envelhecimento que o mundo ocidental persegue na atualidade paradoxo cruel em uma épo ca onde grupos populacionais atingem altos índices de longe vidade E para isto no dito senso comum fuga dos riscos se tornou sinônimo de estilo de vida sadio F0rde 1998 pleno de temperança prudência gestão criteriosaponderada de ris cos quando estes não puderem ser sumariamente evitados Por outro lado os discursos sobre a saúde cada vez menos se referem tão somente a dimensões da saúde Se tais discursos significam modos de pensar escrever falar sobre a saúde e suas práticas é preciso situálos em determinados momentos histó ricos e saber as razões por que se legitimam ao acompanharem e se ajustarem à ordem econômica política e social onde são gerados sustentados e replicados Discursos sobre a saúde e mais especificamente sobre riscos à saúde consistem em cons truções contingentes de caráter normativo inapelavelmente vinculadas a outros interesses Dependem explicitamente ou não de definições do que é ser humano o tipo de sociedade que se almeja e os modos de atingila Robertson 2001 Inegavelmente as estimativas de risco produzidas pelos epi demiologistas transcendem aspectos intrínsecos à pertinência da construção técnicometodológica e respectivas adequações na interpretação dos achados É imprescindível considerar também correspondentes aspectos morais políticos e culturais Em espe cial cabe destacar a interface com a mídia e a indústria da an siedade F0rde 1998 Entre nós riscos múltiplos e exóticos re cebem atenção de programas de TV de matérias de periódicos leigos e a consequente oferta de bens produtos serviços direcio nados ao suposto controleminimização de tais riscos conforme analisado pelo interessante artigo de Paulo Vaz et al 2007 Nestas circunstâncias a ideia de predição não costuma ser de terminista como o termo poderia sugerir mas sim probabilista Como veremos mesmo com o avanço da testagem genética as predições na acepção proféticâ da medicina só são válidas no atual estado da arte para algumas doenças específicas como a co reia de Huntington Predições do risco probabilidades a partir dos conhecimentos disponíveis sobre as relações entre exposições agravos na maioria das doenças adquirem relevância a posteriori após a ocorrência do agravo Isto confirmaria as relações de cau sação mesmo que se desconheçam os mecanismos precisos deste processo Para alguns autores no entanto a ciência só se legitima de fato com a descoberta dos mecanismos Atlan Bousquet 1994 Com o surgimento de estudos de medicina experimental e de epidemiologia baseados na biologia molecular a determinação dos riscos vai em algumas circunstâncias se tornar mais bem de marcada permitindo predições com menores margens de erro O conceito de risco aparece nos textos básicos do campo epidemiológico como um constructo operacional uma defmi ção técnica portanto Nesse discurso o conceito de risco privi legia o componente menos importante da reserva semântica agregada ao risco no discurso social comum que é a dimensão da probabilidade O sentido secundário de possibilidade de ocorrência de eventos se traduz como a probabilidade de ocor rência de eventos ou fenômenos ligados à saúde integrado como dimensão fundamental do conceito neste campo Apenas sub sidiariamente na sua origem o conceito de risco na Epidemio logia envolvia a ideia de dano tanto que cada vez mais se fala em risco também se referindo a prognósticos positivos O conceito epidemiológico de risco Risco em Epidemiologia equivale a efeito probabilidade de ocorrência de patologia em uma dada população expresso pelo indicador paradigmático de incidência Esta formulação se deve a Olin Miettinen autor de um clássico da literatura epidemioló gica intitulado Epidemiologia Teórica Aí se encontra a primeira referência explícita na literatura anglosaxônica à questão do es tabelecimento do objeto na disciplina da seguinte forma a re lação de uma medida da ocorrência a um determinante ou uma série de determinantes é denominada de relação ou função da ocorrência Tais relações são em geral o objeto de investigação da epidemiologiâ Miettinen 1985 p 6 Esta proposta é meto dologicamente fundada em princípios de rigor e coerência inter na propiciando uma conexão lógica entre seus princípios e apli cações imediatas às técnicas de análise epidemiológica mais usadas modernamente Entretanto não é qualquer proporção ou probabilidade que pode indicar uma estimativa de risco É preciso observar apre sença de três elementos que sempre compõem a definição epi demiológica do risco ocorrência de casos de óbitodoençasaúde numerador base de referência populacional denominador base de referência temporal período Tecnicamente o que é uma população É um conjunto ou uma série homogênea de elementos formado por membros de uma mesma classe No caso da Epidemiologia tais elementos são seres humanos capazes de adoecer ou sofrer algum proble ma de saúde Uma população pode ser representada na lingua gem da teoria dos conjuntos desta maneira 1 2 3 4 5 6 7 n P Dentro deste conjunto P ou população de referência é pre ciso criar uma função de diferenciação já que se trata da refe Boxe S1 Hermenêutica do conceito de risco Uma hermenêutica do conceito epidemiológico de risco mostra que o termo risco surge na linguagem epidemioló gica britânica já no início do século XX Hamer 1908 Topley 1919 Já com uma conotação mais especificamente concei tuai o risco pode ser identificado em um estudo sobre mor talidade materna conduzido por William Howard Jr professor de Biometria da Escola de Higiene e Saúde Pública da Johns Hopkins University publicado no primeiro número doAmerican Journal of Hygiene que posteriormente se tornaria o American Journal of Epidemiology com data de 1921 Nesse artigo o con ceito já se apresenta com um espantoso grau de formalização heurística e matemática expresso em termos de proporções entre o número de afetados e o número de expostos Howard Jr 1921 Uma nova menção mais consistente ao conceito de risco só vai aparecer nesse periódico em 1925 em um estudo de Doull e Lara sobre difteria e depois em 1928 em um artigo de Fales analisando dados secundários sobre várias doenças infec ciosas Este último artigo também introduz a expressão risco relativo já indicando a natureza comparativa dos indicadores de associação Entretanto de fato somente com a publicação em 1933 no American Journal of Pubic Health de um trabalho de Frost intitulado Risk of Persons in Familiai Contact with PulmonaryTuberculosis Risco de Pessoas em Contato Familiar com Tuberculose Pulmonar o conceito de risco assume plena mente um caráter técnicoinstrumental Fonte Ayres 2008 rência essencial que preserva a especificidade do objeto Nesse aspecto a atribuição desta diferença crucial tem sido aceita na pesquisa epidemiológica como dada pela Clínica resultando no estabelecimento de um subconjunto portador da ocorrên cia dano doença óbito cura etc do tipo 1234D contido no conjunto população 1 2 3 4 5 6 7 n D e P Graficamente podemos traduzir tal expressão de acordo com a Figura 51 Este esquema deve ser entendido como uma representação do objeto epidemiológico primitivo aqui no sentido de fundamental Encontrase aí evidenciado o postu lado básico da lógica epidemiológica o objeto da Epidemio logia é de natureza probabilística Obtemos então dois conjuntos formados por indivíduos membros de uma dada população P representada pelo conjun to maior Alguns dos elementos deste conjunto se distinguem como portadores ou acometidos de uma doençaagravopro blema D formando um subconjunto contido no conjunto maior P A razão subconjuntoconjunto DP expressa a proba D Figura 51 Representação do objeto epidemiológico primitivo Epidemiologia Saúde 45 bilidade de que membros de P sejam também elementos do subconjunto D Em outras palavras indicará a probabilidade de ocorrência do atributo d doença ou fenômeno correlato referida a modelos de distribuição demográfica de eventos de saúde em conjuntos de indivíduos Agora temos acesso aos elementos mínimos necessários para compreender a lógica dos indicadores epidemiológicos Às ve zes por dificuldades na definição precisa do denominador é necessário usar aproximações ou sucedâneos da medida do risco que a rigor não assumem a forma de uma proporção ou seja o numerador é parte do denominador De qualquer modo dentro dos seus limites todo indicador epidemiológico aspira assumir a forma geral DP 1 Tempo no sentido de uma medida prototípicâ do risco Em todos os casos a dimensão temporal deve sempre ser indicada não importa o tipo ou nível da me dida epidemiológica No tradicional Dicionário de Epidemiologia Last 1989 o verbete risco faz menção a à probabilidade de ocorrência de um evento mórbido ou fatal b como um termo não técnico que inclui diversas medidas de probabilidade quanto a desfe chos desfavoráveis A própria ideia de probabilidade pode ser lida de dois modos a intuitivo subjetivo vago ligado a algum grau de crença isto é uma incerteza não mensurável b obje tivo racional precisável mediante técnicas probabilísticas in certeza mensurável Gifford 1986 Nesta segunda acepção está calcada a abordagem dos fatores de risco isto é marcadores que visam à predição de morbimor talidade futura Deste modo poderseia identificar contabilizar e comparar indivíduos grupos familiares ou comunidades em relação a exposições a ditos fatores já estabelecidos por estudos prévios e proporcionar intervenções preventivas Como já afir mado antes a particularidade que permite identificar a discur sividade própria da epidemiologia pode ser sinteticamente des crita pelo conjunto indissociável de três características que nos levarão à interrelação elucidadora entre a epidemiologia do ris co e seus antecessores uma pragmática do controle técnico uma sintaxe do comportamento coletivo e uma semântica da varia ção quantitativa Ayres 2008 p 110 Na Epidemiologia como veremos na Parte 2 deste volume há três formulações básicas de risco absoluto relativo e atribuí vel É importante aqui fazer dois comentários Em primeiro lugar é comum dizerse que a taxa expressa o risco Segundo Last 1989 isto é pertinente caso seja aplicado às situações apresentadas no sentido mais restrito de taxa ou seja como quocientes que representem mudanças no decorrer do tempo Além disto o próprio conceito de taxa também é polissêmico mesmo no interior da epidemiologia Desta forma para ele nas situações a seguir taxa não expressa risco quando sinônimo de quociente referindose a proporções Por exemplo taxa de prevalência quando quociente que representa mudanças relativas reais ou potenciais em duas quantidades numerador e denominador Por exemplo taxa de colesterol no sangue Last 1989 No entanto estas distinções não são consensuais Alguns epidemiologistas diferenciam claramente taxa de incidênciâ e risco de adoecer tanto em termos conceituais como nos métodos de estimação A primeira estaria referida ao potencial instantâneo de mudança na situação de saúde casos novos por unidade de tempo no tempo t relativo ao tamanho da popu lação de interesse sem agravos no tempo t a medida é ex pressa em unidades de 1tempo O segundo se defmiria como a probabilidade de que um indivíduo sem doença desenvolvaa 46 Capítulo 5 1 Risco Conceito Básico da Epidemiologia no decorrer de um período especificado de tempo desde que o in divíduo não morra por outra causa durante tal período Klein baum et al 1982 p 99 Sendo probabilidade condicional varia de zero a um e não possui unidades de medida As discordâncias permanecem nas tentativas de distinguir entre os enfoques individualcoletivo do risco e suas correspon dentes estimativas Deste modo haveria métodos que encaram risco como medida teórica de probabilidade individual de ocorrência de agravo 1 os atuariais e aqueles que dimensio nam a força de morbidade em populações razões de densi dade de incidência Czeresnia Albuquerque 1995 Tomamos posição a favor da segunda interpretação concordando que não se pode aplicar modelos de risco para estabelecer o diagnóstico ou prognóstico de um indivíduo em particular porque o con ceito de risco referese exclusivamente ao grupo como um todo Em segundo lugar como não é possível observar simulta neamente o efeito da exposição e não exposição no mesmo in divíduo Czeresnia Albuquerque 1995 o dispositivo esta tísticoepidemiológico opera com grupos populacionais baseado no pressuposto de que a diversidade dos indivíduos distribuirseá de modo homogêneo nas amostras devidamen te selecionadas Os cálculos produzem taxas médias que refle tem portanto valores referentes aos agregados efeitos causais médios Se porventura quisermos representar a unidade atra vés do quociente relativo à quantidade observada pelo mesmo valor é óbvio que esta não representa nenhum indivíduo que assim se torna uma abstração Portanto o risco é um achado relativo à dimensão agregada Sua validade para o ní vel individual dá margem a erros lógicos Estas questões são estudadas na epidemiologia e na sociologia sob a rubrica das falácias ecológicas de dois tipos conforme a operação atomís tica ou agregativa Susser 1973 o que é válido para o nível agregado pode não o ser para o nível do indivíduo ou vice versa Eixos epistemológicos do conceito de risco Os modelos operados no paradigma dominante na epide miologia moderna são construídos como modelos de risco O termo riscd designa diretamente uma probabilidade de adoecer que se desvia das probabilidades puramente aleatórias O obje to da Epidemiologia nessa perspectiva não pode ser propria mente definido como um objeto probabilístico porque o que constitui sua validade conceitua não é convalidado por mode los de probabilidade Vineis 1999 O método epidemiológico opera avaliando em primeiro lugar proposições determinísticas sob a forma de hipóteses causais em confronto com distribui ções teóricas estocásticas Caso tais proposições sejam satisfa toriamente explicadas por um modelo de distribuição aleatória em geral chamado de hipótese nula rejeitarseá a hipótese do estudo A Estatística nesse sentido não teria uma função explicati va e sim uma função de depuração do objetd o que implica dizer que o objeto epidemiológico constituise em resíduo de objetos probabilísticos operando com um tipo de determinação sugeneris Apesar da crítica da epidemiologia popperiana a Es tatística justificaria uma expectativa de generalização por pro cedimentos indutivos através de um conjunto condicional de probabilidades de adoecer que não seriam explicáveis por mo delos aleatórios Em outras palavras o que não é explicado pela estocasticidade modelos de distribuição aleatória o é pela de terminação atribuída como epidemiológica A proposição de risco como conceito fundamental do cam po científico da Epidemiologia repousa sobre três pressupostos epistemológicos básicos O primeiro é a identidade entre o pos sível e o provável ou seja que a possibilidade de um evento pode ser reconhecida na sua probabilidade de ocorrência Essa probabilidade se constitui como unidimensional variável e por extensão quantificável Dessa forma o conceito de risco traz na raiz uma proposta de quantificação dos eventos da saúde doen ça MacMahon Pugh 1970 Lilienfeld 1976 O segundo pressuposto consiste na introdução de um prin cípio de homogeneidade na natureza da morbidade ou seja as particularidades dos eventos se retraem perante uma dimensão unificadora resultando em uma unidade dos elementos de aná lise propiciada pelo conceito de risco As diferenças expressas na singularidade dos processos concretos saúdedoença desa parecem no conceito unidimensional de risco e suas proprie dades permitindo aproximações e apropriações próprias do discurso científico epidemiológico Almeida Filho 2000 As incidências de distintos eventos de saúde ou doença indicado res dos respectivos riscos entendidos como probabilidades de ocorrência são postas em um mesmo registro Em terceiro lugar destacase o pressuposto da recorrência dos eventos em série implicando a expectativa de estabilidade dos padrões de ocorrência seriada dos fatos epidemiológicos Através desse pressuposto podese então justificar a aplicação do conceito de risco em modelos de prevenção propondose o conhecimento dos seus determinantes para intervir no seu pro cesso buscandose a prevenção do risco MacMahon Pugh 1970 Tais pressupostos revelam claramente o caráter indutivista da Epidemiologia Buck 1975 Susser Susser 1996 dada a fun damentalidade e a natureza das expectativas generalizadoras embutidas no conceito Desse modo o risco é produzido no cam po da Epidemiologia pela observação sistemática e disciplinada de uma série de eventos Enquanto conceito o risco opera pela via da predição com base no terceiro pressuposto Nesse aspec to devemos distinguir dois tipos de generalização a predição propriamente dita no sentido de uma expectativa de recorrên cia no tempo em relação a casos novos esperados e a predição equivalente à extrapolação para casos e eventos não incluídos na amostra ou população estudada Em relação a esta última temos uma inferência de natureza horizontal no sentido de amplitude populacional e uma inferência vertical buscando a convergência para os casos individuais Por um lado é possível a predição no tempo componente propriamente antecipatório do conceito de risco Quando enun ciamos o risco de ocorrência de uma doença D em uma dada população empregamos uma série sucessiva de observações pregressas mensurações tomadas na melhor das hipóteses em uma série temporal padronizada para fazer uma predição do passado por suposto conhecido para o momento presente ou mesmo para o futuro aplicada à população objeto daquela série de observações Temos aqui o emprego do risco enquanto pre ditor temporal ou preditor verdadeiro Por outro lado na Epidemiologia observase também o uso do componente indutivo do risco para instrumentalizar pseu dopredições ou predições no espaço Neste segundo caso em vez de uma mesma população em momentos distintos no tem po extrapolase uma série finita de observações em popula ções estudadas para populações não observadas Isso quer dizer que a partir do conhecimento da incidência da doença D em um conjunto de populações conhecidas pretendese predizer com o auxílio de testes estatísticos intervalos de confiança média de incidências ou qualquer outro quantifi cador matemático qual será o risco da doença D na população em geral ou em grupos populacionais não incluídos na série observada Tratase nesse caso do emprego do risco como um pseudopreditor Analisando comparativamente os usos da indução no dis curso epidemiológico constatamos basicamente sentidos dis tintos da noção da predição que concedem ao conceito de risco a ambiguidade que é própria do projeto da Epidemiolo gia enquanto campo discursivo científico Esta ambiguidade é a principal característica do uso epidemiológico do concei to de risco um preditor simultaneamente temporal e espacial ou mais rigorosamente como preditor e pseudopreditor Esse conceito de risco permite o rompimento dos limites temporais e dos limites geográficos do processo de produção do dado dotando o conhecimento epidemiológico de propriedades ge neralizadoras nem sempre legitimadas pela lógica que o con substancia E onde se situa o risco no discurso epidemiológico Para além e para fora do sujeito o risco é localizado no âmbito da população produzido no ou atribuído ao âmbito dos coletivos humanos Risco é enfim uma propriedade das populações e a sua referência legítima será exclusivamente coletiva Hayes 1992 Nos primórdios da constituição da Epidemiologia en quanto ciência havia uma proposta implícita de conceituação do risco absoluto daí a derivação da ideia de risco relativo Lilienfeld 1976 Apesar de equivocadamente tomado como expressão individual em alguns manuais Jenicek Cleroux 1985 o risco absoluto sempre teve como referência fundamen tal o coletivo populacional Não obstante há grande margem para confusões oriundas da indistinção entre risco relativo e absoluto O risco relativo mesmo sendo um relevante indicador de força de associação entre um presumível fator e um evento indesejado não pode ser relacionado com a probabilidade de que determinado indi víduo será atingido por tal evento Skrabanek e McCormick 1990 apresentam um exemplo ilustrativo Pilotos aéreos pos suem riscos relativos mais elevados de sofrerem acidentes des te tipo se comparados com passageiros eventuais como a maio ria de nós No entanto mesmo sendo elevado o risco relativo na comparação o risco absoluto de acidentes para pilotos é bastante baixo A ideia de risco relativo permite a construção do conceito derivado fator de risco Em algumas das aplicações específicas do discurso epidemiológico mais forte em certas subáreas pela constituição de um campo semântico próprio notase uma in coerência no mínimo curiosa Tratase da transferência para o campo epidemiológico formação discursiva de base científica e portanto com pretensões de coerência precisão e consistên cia daquela inconsistência que se observa no discurso social comum de confusão de designação entre risco e fator de risco ou entre efeito e sua causa potencial Ora se no campo epide miológico risco é predição fator de risco será então um predi tor de uma predição ou risco de risco Por meio dessa opera ção terminase atribuindo à ideia de fator de risco o estatuto do conceito de risco propriamente Na subárea da Saúde Ocu pacional por exemplo está cada vez mais estabelecido chamar de risco ocupacional fatores de risco presentes no ambiente ou no processo de trabalho Entretanto em geral epidemiologistas não costumam co locar em questão aspectos que problematizam a construção dos conhecimentos sobre os riscos em especial do ponto de vista de suas pretensões preditivas Neste sentido Hayes Epidemiologia Saúde 4 7 1991 faz uma aguda análise de limitações implícitas nesta abordagem Para ele é essencial estarse atento a determinados tópicos regularidade dos efeitos empíricos não pode haver al terações nas relações entre os marcadores de risco e os eventos de interesse Como os mecanismos causadores dos agravos na maioria das vezes são desconhecidos estes não devem variar de modo inesperado Tratase em suma da metáfora da caixa preta Aliás a dita epi demiologia dos fatores de risco também é chamada de epidemiologia da caixa preta Greenland GagoDo minguez Castelao 2004 Em outras palavras é essen cial a estabilidade das condições de existência do ob jeto para que o sujeito investigador o apreenda com fidedignidade nem o objeto de estudo pode variar em suas características atributos propriedades nem suas interrelações com o meio circundante em termoses paçotemporais definição do estatuto dos fatores de risco específicos é fundamental saber claramente se o fator é determinan te ou predisponente em relação àqueles tão somente con tribuintes ou incidentalmente associados E isto não cos tuma ser facilmente discernível em muitas situações especialmente naquelas que envolvem a participação de aspectos ditos psicogênicos ou então na controvérsia causada por estudos onde não se observaram efeitos da hipercolesterolemia na eclosão de doenças cardiovascu lares em mulheres Lupton Chapman 1995 fatores de risco pertencentes a níveis de organização distintos social x natural há dificuldades para estabe lecer precisamente os mecanismos e mediações entreva riáveis consideradas sociais p ex desemprego analfa betismo pobreza etc e aquelas ditas biológicas idade estado imunológico características genéticas apesar de em certos casos aparentemente não haver dúvidas quan to às relações entre elas Por exemplo miséria e mortali dade por causas perinatais período de tempo considerado válido para a predição é problemático lidar com exposições ocorridas há longo tempo mais de 15 20 anos por exemplo eou em quan tidades reduzidas no decorrer de longos intervalos cro nológicos de modo que não se torna possível garantir a relação causal no caso de ocorrência do agravo Isto é es pecialmente relevante em exposições ocupacionais onde não chega a geraremse danos imediatos só ocorrendo eventualmente após muitos anos Hayes 1991 Uma das importantes críticas feitas ao enfoque quantitati vista do risco consiste no fato de instituir uma entidade que possuiria uma existência autônoma objetivável indepen dente dos complexos contextos socioculturais nos quais as pessoas se encontram Em outras palavras o risco adquire um estatuto ontológico que acompanha de certa forma aquele produzido pelo discurso biomédico para as doenças mas pos suidor de características próprias ou seja atributos de virtua lidade fantasmáticos Pois a existência dos riscos pode ser invisível uma vez que nem sempre é perceptível por seus si nais sintomas objetos dos tradicionais instrumentos da se miologia médica Muitas vezes são necessários sofisticados exames laboratoriais para localizar este arisco ser capaz de se desenvolver de modo silente e traiçoeiro e tornarse presen te de modo ameaçador Se por um lado a retórica do risco pode servir de veículo para reforçar conteúdos morais e conservadores Lupton 1993 48 Capítulo 5 1 Risco Conceito Básico da Epidemiologia por outro redimensiona o papel da configuração espaçotem poral na compreensão do adoecer a biomedicina incorpora como sua tarefa a localização e a identificação nos sadios de seus possíveis riscos oriun dos de modalidades de exposição ambiental eou de sus cetibilidades biológicas mediante técnicas diagnósticas cada vez mais refinadas surge uma infmdável rede de riscos em que comportamen tos sinais sintomas e doenças podem confluir para setor narem fatores de risco para outras afecções p ex hiper tensão arterial como risco para doenças cardíacas o eixo temporal assume maior importância nos modelos explicativos dos processos de adoecer Armstrong 1995 Vemos então surgir no discurso e na intervenção biomédi ca uma nova condição medicalizável o estado de saúde sob ris co Kenen 1996 que traz importantes implicações a como substrato gerador de preceitos comportamentais voltados à promoção e prevenção à saúde em última análise base do projeto de estender a longevidade huma na ao máximo possível b no estabelecimento de laços com a produção tecnológica biomédica c na ampliação das tarefas da clínica médica em outros termos o aparecimento de uma vigilância médica como sugere Armstrong 1995 d na criação de demanda por novos produtos serviços e especialistas voltados à prevenção dos múltiplos riscos e no reforço do poder e prestígio dos profissionais respon sáveis por atividades dirigidas a novas técnicasprogra mas de controle ou à pesquisa de fatores de risco Kenen 1996 Nesse contexto neomedicalizador há visível predomínio de discursos sobre saúde subsidiados por uma perspectiva meto dológica denominada medicina baseada em evidências Essa abordagem fundamentase na ideia de que a verdade só pode ser obtida mediante buscas quase paroxísticas pelo que se con vencionou chamar de conhecimento factual ou evidências emblemas deste discurso de verdade empiricamente correto ou seja do que é tangível pois o que não é retido por este fil tro tem importância secundária ou pior ainda não existe Entretanto a definição de evidência mesmo possuindo ine gáveis níveis de pertinência tem suas limitações É passível de excluir informações relevantes ao conhecimento e à compre ensão da situação de saúde podendo colaborar com mecanis mos culpabilizantes As abordagens baseadas em evidências costumam hierar quizar os resultados dos estudos de acordo com os métodos de coleta com prioridade para estudos experimentais aleato rizados e metanálises E assim tendem a considerar de im portância secundária as informações de caráter qualitativo de caráter sociocultural e psicológico quando não a consideram supérfluas e aquelas referidas a esferas sociopolíticas que se mostram menos amigáveis aos dispositivos quantitativos nu méricos Uma das críticas a que mais nos interessa assinala que as premissas filosóficas vinculadas ao empiricismo evi denciológico que em sua forma extrema situa os resultados de estudos experimentais como sendo primordiais em relação a outra formas de conhecimento assumem a impossível pro posição de que observações possam ser feitas de modo total mente objetivo independentemente de teorias e da visão de mundo do observador Curiosamente a avaliação da própria medicina baseada em evidências padece de um aparente paradoxo Conforme suas premissas metodológicas para legitimar determinada ação em saúde são necessários ensaios clínicos aleatorizados e estudos de metanálise que mostrem eficácia superior dos efeitos estu dados em relação aos gruposcontrole Pois não há evidências originárias mediante esta ordem de estudos que assegurem em piricamente a eficácia superior das decisões clínicas provenien tes da medicina baseada em evidências em comparação à assis tência de saúde a pacientes através de outros enfoques clínicos não evidenciológicos Cohen et al 2004 Conceitos de risco e concepções de saúde Ainda que a epidemiologia contemporânea seja bastante versátil na eleição das variáveis cuja associação estuda é evi dente o predomínio especialmente entre as variáveis de efeito dos agravos disfunções ou doenças isto é das condições posi tivamente aferíveis pelas demais ciências biomédicas já que este é um requisito para seu manuseio e validação em termos de especulação causal Pearce 1996 Embora já sejam evidentes algumas contribuições para uma conceituação positiva da saúde essa discussão ainda não foi consistentemente trazida para o âmbito mais particular da epi demiologia Nas discussões acerca da promoção da saúde e mais ainda naquelas sobre vigilância à saúde a epidemiologia tem sido apontada como um instrumento não apenas útil mas mesmo imprescindível Contudo permanecem à margem das discussões as mudanças necessárias para o trânsito teórico para as novas proposições De fato ao se organizar fundamental mente em torno às análises de risco o instrumental epidemio lógico tem sua contribuição restrita à prevenção de agravos Para se questionar epidemiologicamente sobre o que produz saúde e portanto deva ser promovido ao invés do que produz doença e enquanto tal deva ser evitado será preciso definir o que e com que fundamentação deverá ser considerado o efei to saúde É possível ao modo de pura especulação imaginar que há diversas experiências objetivas de onde se podem extrair variáveis de efeito relacionadas à saúde Desde a ideia veiculada na famosa definição de saúde como bemestar físico mental e social até as recentes discussões sobre qualidade de vida há todo um elenco de condições e situações avaliadas positivamen te entendidas como bens a que os indivíduos podem e devem aspirar para o seu bem viver Há porém duas ordens de questões metodológicas de difí cil solução nessa proposição A primeira delas diz respeito a essa própria valorização positiva Quem define o que é o bem viver ou dito de outra forma quem define o efeito saúde Será pos sível alcançar nas formulações positivas de saúde o mesmo grau e tipo de consenso que possibilitou a formalização do discurso do risco em torno das doenças infecciosas e consolidado na epidemiologia das doenças crônicodegenerativas Sabese como foi fundamental para o desenvolvimento de uma linguagem formal em epidemiologia o estreitamento das relações entre o raciocínio epidemiológico e a conceituação de agravo em prestada da microbiologia da virologia da imunologia e de outras disciplinas Ayres 2008 A passagem da epidemiologia das doen ças infecciosas para as crônicas degenerativas já apresentou uma série de desafios epistemológicos uma vez que os critérios de cau salidade de HenleKoch não se aplicavam a estes novos objetos O caráter multicausal e não unívoco das associações entre expo sição e agravo no caso dessas doenças levou a um debate que estendendose por mais de dez anos acabou por desembocar nos critérios de associação causal de Bradford Hill 1965 Nesse caso o controle estatístico da incerteza das inferências o refmamento das técnicas de análise da probabilidade das associações e muito especialmente a definição morfofuncional dos critérios de agravo garantindo a verificação da associação não apenas permitiram a sobrevivência das análises de risco como fizeram delas um dos mais importantes acontecimentos no campo das ciências da saú de na contemporaneidade Há que se indagar contudo onde se apoiará no caso desse trânsito ao efeito saúde a possibilidade de verificação das as sociações Há algum substrato positivamente verificável para o efeito saúde Se a saúde é por defmição entendida como um bemestar físico mental e social não será de caráter extrema mente subjetivo e interpretativo a qualificação do efeito saúde Não será por outro lado uma condição complexa tanto no efeito quanto na exposição exigindo um movimento de síntese refratário portanto às decomposições analíticas necessárias aos testes de associação A segunda ordem de questões metodológicas relacionadas à busca do efeito saúde diz respeito à questão da extensão de suas indagações e inferências Todo discurso científico forma lizado busca no maior grau possível a universalidade de seus constructos Com efeito em um sistema de linguagem que bus ca basear sua argumentação e verificação em relações necessa riamente implicadas entre si a universalidade não é apenas um ideal mas uma exigência mesmo O máximo que se admite aí é a limitação da certeza sobre quão universal é uma proposição ou constatação aceita somente como provisória e inerentemen te ligada à incompletude do conhecimento humano O impacto pragmático do tipo e grau de incerteza com que se precisa lidar e a existência ou não de outras alternativas me nos imprecisas para tratar do mesmo campo de interesses cien tíficos são em última análise os critérios que decidirão até que ponto um dado discurso formal será aceito ou não pela comu nidade científica O que se coloca com a conceituação positiva de saúde é porém a assunção ativa de que estaremos tão mais próximos de uma defmição precisa de efeito quanto mais nos aproximarmos da totalidade particularizadora da situação fí sica mental e social dos indivíduos em questão Ou seja o rigor necessário à definição das variáveis a serem estudadas varia na relação inversa da sua universalidade Não se trata de um limi te provisório e controlável Tratase de uma contradição insta lada no cerne da validade proposicional desse discurso Esses impasses metodológicos obrigam como se pode ver a reflexões que não se restringem apenas ao plano metodoló gico mas atingem a própria dimensão epistemológica Se as análises de risco têm dificuldade de sustentar seu rigor frente à plurivocidade e contingência das categorias relacionadas com a especulação causal sobre o efeito saúde possivelmente esse tipo de investigação precisará abandonar o modelo heurístico atualmente dominante Assumindose que a defmição de saúde é refratária à sua de composição analítica em elementos de menor complexidade e subjetividade e que a facticidade dos fenômenos da saúde vin cula a validade das proposições a seu respeito a graus elevados de contingência é forçoso admitir que uma epidemiologia da saúde é uma proposição internamente contraditória É possível estudar associações entre variáveis que não podem ser clara e distintamente implicadas entre si É possível atribuir valores quantitativos a variáveis cuja identidade é em tão alto grau de pendente das circunstâncias e dos sujeitos que as formulam Existirá uma epidemiologia sem números Há epidemiologia Epidemiologia Saúde 49 sem risco Se o metodológico remeteu ao epistemológico este conduz a uma questão puramente filosófica Devese trabalhar a saúde epidemiologicamente Esta parece ser a pergunta que deve ser feita diante dos desafios acima colocados Valores preciosos permitiram construir historicamente pro posições de práticas assistenciais centradas na saúde quais sejam a politização a democratização a desburocratização a participa ção a humanização a pluralidade a equidade entre outros Não faria qualquer sentido abrir mão desses valores em função das dificuldades de manipulálos epidemiologicamente Isto parece óbvio O que não parece tão óbvio mas que seria igualmente ab surdo seria cobrar da epidemiologia uma correção de rumos como se o descompasso entre a promoção da saúde e a epidemio logia fosse um acidente ou uma insuficiência dessa ciência Na verdade há sempre motivações e escolhas que subjazem a qualquer discurso racional mesmo aqueles com alto grau de for malização como é o caso do discurso do risco O que foge ao discurso do risco não é aquilo que lhe escapou mas aquilo que de alguma forma não lhe diz respeito não esteve entre as exigên cias condições normativas proposicionais ou expressivas Ha bermas 1987 que o conformaram Por isso a pergunta que cabe fazer neste ponto não é tanto sobre a necessidade de trabalhar a saúde epidemiologicamente nem tanto sobre a possibilidade de fazêloA pergunta fundamental aqui é sobre o interesse em fazê lo É desejável trabalhar a saúde epidemiologicamente Da res posta a essa pergunta dependem as conformações futuras tanto dos discursos epidemiológicos quanto das propostas de promo ção da saúde Tanto uma quanto outra são racionalidades abertas e só o ativo diálogo entre elas norteado pelas pretensões e exi gências de validade de que vão sendo socialmente investidas poderá definir seus destinos Perspectivas para o conceito de risco Risco é mais do que um conceito interdisciplinar precisamos nos preparar para cada vez mais compreendêlo e construílo como um conceito indisciplinado Castiel 1997 No percurso argumentativo deste texto identificamos e avaliamos as seguin tes formas de apresentação do conceito a Risco como perigo latente ou oculto no discurso social comum b Risco individual como conceito prático da clínica c Risco populacional como conceito epidemiológico stric to sensu d Risco estrutural nos campos da saúde ambientalocu pacional O conceito de risco necessita atualizarse incorporando a dimensão contingente dos processos de ocorrência de proble mas de saúde em populações humanas O futuro do conceito de risco dependerá da sua capacidade de articularse aos de senvolvimentos conceituais e metodológicos deste novo campo ideológico conceitua e metodológico que tem sido denomina do saúde coletiva contribuindo com modelos teóricos e estra tégias metodológicas capazes de abordar objetos complexos emergentes Nesse sentido propomos incorporar mais uma de fmição à lista dos conceitos de risco previamente citada e Risco contingencial como operador do recémconstituído campo de práticas deno minado promoção da saúde 50 Capítulo 5 1 Risco Conceito Básico da Epidemiologia A ideia de um campo geral de práticas com o nome de pro moção da saúde contendo tanto a prevenção quanto a proteção e a promoção stricto sensu da saúde individual e coletiva supõe um repertório social de ações preventivas de morbida de riscos doenças etc protetoras e fomentadoras da salubri dade que de certo modo contribui para a redução dos sofri mentos causados por problemas de saúdedoença na comuni dade Isso determina uma integração teórica e filosófica da rede de conceitos correlatos à saúde vida risco doença cui dado ao conjunto de práticas discursivas e operacionais dos novos campos de saberes e de práticas que cada vez com mais intensidade e frequência se formam em torno do objeto saúde Com esse objetivo os conceitos de risco e as práticas que lhe correspondem no campo da saúde podem ser agrupados em três grupos 1 Risco como indicador de causalidade ou resíduo da pro babilidade Tratase de reconhecer e reafirmar sua base indutiva frequentista fisheriana a partir do referencial exposto na Parte 3 deste ensaio Esse conceito particular de risco subsidia modelos de prevenção de doenças ou eventos mórbidos com as seguintes variantes a modelos de prevenção individual conceito clínico de risco b modelos de prevenção populacional teorema de Rose 2 Risco como perigo estruturado Tal conceito subsidia larga mente modelos de intervenção nos campos da Saúde am biental e ocupacional OPAS 1976 Nesse caso é preciso explorar sua base dedutiva descritiva estrutural tarefa que evidentemente extrapola os objetivos do presente ensaio 3 Risco como emergência Tratase nesse caso de explici tar a base filosófica da contingência articulada como pro cessos de emergência em modelos de complexidade Este conceito subsidia a modelos de vigilância em saúde b modelos de promoção da saúde O Quadro 51 ilustra comparativamente os principais ele mentos conceituais envolvidos nessa articulação O Quadro 52 ilustra os principais elementos de atuação comparativos dessas estratégias Os dispositivos signos e ações apontados no esquema são característicos de cada estratégia porém não se propõe aí uma relação de exclusividade nem biunívoca ponto a ponto Para uma compreensão mais clara dos quadros propostos explicita remos a seguir seus termos A estratégia de prevenção em saúde há muito se converteu à ordem da necessidade assentada no modelo da causalidade e cuja intervenção mais específica seria a modelagem da reali dade Como vimos no capítulo anterior Aristóteles define o real como aquilo que é Se o real se caracteriza como o que já estava ali a realidade ou melhor as realidades são construídas para tentar dar conta deste real que não fala antes se mostra como limite à simbolização O regime da necessidade é solidário ao registro simbólico de acordo com a formulação que permite retomar os termos modais de Aristóteles Tratase na necessi dade humana daqueles eventos imprescindíveis ao mundo de linguagem pois ao constituirse como ser de linguagem o hu mano instaura um movimento peculiar o simbólico discurso humano separa a realidade do real ao promover pela mediação da palavra uma cisão entre coisa e símbolo Por outro lado a proteção à saúde como estratégia por vários ângulos de análise é logicamente impossível apesar de histori camente ter sido construída como campo de prática plausível Seu modelo é o controle e a intervenção requerida o experimen to Tal modalidade o impossível deve ser tomada em sua estrutura lógica não significando com isso que não exista Ape nas que controle e experimento não são realidades em si mas realidades linguísticas não encontráveis nas condições efetivas da pesquisa ou da intervenção tal como os eventos contingentes são realizados e somente então reconhecidos por seus efeitos Rigorosamente um experimento nunca pode ser reprodu zido é único podendo sim ao ser replicado constituir série Ademais tal replicação nunca se dá conforme o planejado pos Quadro S1 Elementos conceituais na articulação de estratégias de intervenção em saúde Estratégias Modelos de intervenção Tipologias de intervenção Registros Modais Prevenção Causalidade Modelagem Simbólico Necessidade Proteção Controle Experimento Real Impossibilidade Precaução Estrutura Regulação Imaginário Possibilidade Promoção Emergência Vigilância Objeto a Contingência Quadro S2 Elementos de atuação comparativos das estratégias de intervenção em saúde Estratégias Dispositivos Signos Alvos Ações Prevenção Riscos Fatores de risco Grupos de risco Redução Remoção Proteção Marcadores Defesas Sujeitos Imunização Comunidades Reforço Precaução Sensores Eventos sentinela Ambientes Legislação Cenários Controle Promoção Monitores Tendências Ambientes Monitoramento Padrões Produtos Fomento to que a situação do laboratório não tem com a vida outra re lação senão de verossimilhança Por mais que ensaiemos jamais a realidade do experimento corresponderá ao real do evento Por outro lado no caso da prevenção dos riscos em saúde dian te das imponderabilidades que envolvem a determinação e a presentificação de agravos à saúde mesmo tomandose as me didas preventivas não temos certeza de que os resultados de proteção estejam garantidos em função das medidas tomadas A possibilidade modo lógico da estratégia de precaução é o registro referente ao imaginário que longe de ter um caráter negativo de algo imaginado ou ilusório como comumente se diz só pode ser pensado no entrelaçamento com os níveis sim bólico e real A utilização das estratégias de precaução no cam po da saúde Grandjean 2004 como construção de cenários antecipatórios possíveis a danos existentes ou projetados de sempenha um papel não negligenciável de também antecipar e nesse caso conter reações de pânico ou inquietação generali zados que muitas vezes o imaginário social desenvolve frente ao desconhecido Na formalização proposta o registro do imaginário dá con sistência ao mundo humano povoando com cenários as pos sibilidades de existir Assim a consistência dos limites im postos por cenários imaginados não é incompatível pelo contrário com a abertura de possíveis e imagináveis medidas de precaução contra riscos à saúde Entretanto é esta tela ima ginária este limite com sua função ao mesmo tempo forma dora e alienante que organiza não o mundo em si mas o mun do em questão Os princípios de prevenção e precaução vem se tornando cada vez mais imperiosos em tempos nos quais a consideração de cenários futuros se torna uma constante nas propostas de gestão de vários aspectos da vida A prevenção de riscos tem suas ambivalências segundo juízos eventualmente imponderá veis podem envolver medidas procrastinatórias ou interven ções urgentes Innerarity 2004 Neste caso o princípio da pre venção ou precaução pode ser usado de modo manipulativo de acordo com as circunstâncias e também com os interesses en volvidos O exemplo da justificativa da guerra preventiva ao Iraque por parte dos EUA é um triste emblema da política a partir desta racionalidade Mas nesta trágica contingência a constatação da insuficiência de evidências só se confirma a posteriori Aliás como de resto depois que o futuro se torna presente é possível saber se as especulações antecipatórias se confirmaram Por fun associamos a estratégia de promoção à saúde aos modelos de imprevisibilidade de eventos incorporados nas ciên cias como emergência e na filosofia como contingência De todas as modalidades lógicas esta é seguramente a que mais resiste a uma apreensão direta de sentido Em outras palavras tratase da ocorrência de um evento que faz cessar interrompe bruscamente um estado anterior mas que em conformidade com o real não se escreve como fato Poderá ser retroativamen te integrado à cadeia significante como suporte para estratégias fomentadoras de ações globais de supervisão e vigilância como as práticas atualmente denominadas de promoção da saúde destinadas a detectar compreender e significar emergências ocorrênciascontingências para com isso reconhecer para fa zer cessar seus efeitos eventos similares futuros Levy 1996 Como o nome indica os conceitos de emergência ou con tingência articulam acontecimentos dos quais podemos apenas constatar efeitos e na impossibilidade de propor medidas de ação retroativas indicar formas precaucionárias de base analó gica Em geral são acontecimentos desencadeados por fatores múltiplos e interconectados estruturados em redes abertas o Epidemiologia Saúde 51 que impossibilita estabelecer entre eles relações lineares de causalidade Na esfera dos acontecimentos contingentes pen samos ser de especial valor como tipologia de intervenção mais adequada a utilização de teoria de redes como mapa conceitua não somente explicativo no caso como modelagem de sobre determinação mas também como desenho metodológico para programas de promoção da saúde Não obstante tais aberturas e possibilidades cabem algumas perguntas Será que cada vez mais se irá conceber a ideia de saúde a partir da noção de segurança E que esta será mediada por métodos estratégias e técnicas de vigilância em saúde Ou será que por meio de exercícios de autovigilância Mas onde estão os sujeitos que sofrem E os agentes que operam as prá ticas E os gestores que se responsabilizam Como deslocar enfun o foco de uma gestão das doenças e seus riscos para uma política de saúde Sentidos políticos do conceito de risco De fato se levarmos a consequências práticas uma defmição de estratégias para promoção da saúde orientadas exclusiva mente ou predominantemente por uma renovação do concei to de risco como fazemos acima ao propor uma quarta cate goria de risco o risco contingencial estaremos priorizando talvez indevidamente uma visão unidimensional e mecanicis ta do processo saúdedoençacuidado Esta solução traz o risco de um novo panopticon agora alimentado pelas novas tecno logias de vigilância epidemiológica seus sensores e monitores conforme assinalam Castiel AlvarezDardet 2007 Devemos então avaliar como alternativa ou complemento o fomento de práticas de promoção da saúde com base em pro cessos geridos pelos sujeitos e grupos afetados pelos agravos à saúde focalizando conceitos como vulnerabilidade Ayres et ai 2006 por exemplo Tal perspectiva nos permitirá superar ou considerar problemas conceituais metodológicos e práticos advindos da mera atualização do conceito de risco sem consi derar os sentidos políticos da gestão dos riscos isto é suas ori gens e consequências políticas O desenvolvimento em curso de um quadro teórico tendo como base a noção de vulnerabilidade tem como pretensão produzir saberes mediadores que sem desprezar as contribui ções positivas da epidemiologia e das outras ciências da saúde possam aproximar seus constructos da apreensão das situações sociais determinantes da epidemia e das suas possibilidades efetivas de controle A Epidemiologia pode nos mostrar quem onde e quando está sendo ou pode vir a ser mais envolvido em situações de risco à saúde Mas para poder entender por que e apontar caminhos para intervir sobre esse processo também se fazem necessários saberes mediadores sínteses nas quais os aspectos políticos éticos culturais e psicoafetivos possam se mostrar na concretude de sua complexidade social Ayres et al 2006 Assim a vulnerabilidade pode ser defmida como uma sín tese compreensiva das dimensões comportamentais sociais e políticoinstitucionais implicadas nas diferentes suscetibilidades de indivíduos e grupos populacionais a um agravo à saúde e suas consequências indesejáveis sofrimento limitação e morte A adoção da perspectiva da vulnerabilidade tem implicações de diversas ordens Como forma de conhecer aponta para a necessidade de procedimentos sintéticos e interpretativos com preensivos de caráter transdisciplinar Como recurso para o 52 Capítulo 5 1 Risco Conceito Básico da Epidemiologia planejamento a noção de vulnerabilidade reforça a importância da politização radical desta prática já que sempre remeterá a aspectos relacionais valorativos e de visões de mundo na defi nição dos quê olhar quê fazer Assume também o caráter sem pre processual nunca finalista desta prática já que a cada nova situação alcançada novos horizontes de interesses concepções e valores se colocarão em cena Dois pressupostos são portanto indissociáveis da construção do quadro da vulnerabilidade Como elemento mediador volta do para sínteses de saberes pragmaticamente voltados para a ação numa perspectiva sociossanitária os diagnósticos de vulnerabi lidade pressupõem intersubjetividade e construcionismo O pressuposto da intersubjetividade tem a ver com a assun ção do caráter interativo de toda prática com implicações sobre o processo saúdedoençacuidado Ou seja para além da posi ção filosófica que adotamos de que nossas identidades discur sos nossa racionalidade são sempre originários de encontros entre sujeitos e sempre voltados para esses encontros é coeren te assumirmos que quanto mais busquemos um saber pragmá tico voltado para práticas que envolvem de modo imediato relações interpessoais como as relações sexuais na AIDS si tuações de conflito na violência etc mais o foco de nossas atenções deve se voltar para a intersubjetividade O que torna as pessoas vulneráveis são sempre interações relações que pre cisam ser identificadas problematizadas e transformadas Como decorrência necessária da assunção radical de inter subjetividades como foco de problematizações da vulnerabili dade tornase essencial que qualquer movimento de superação das situaçõesproblema das situações de vulnerabilidade im pliquem uma atitude construcionista Não é possível que nós como profissionais cientistas e técnicos possamos unilateral mente encontrar soluções de superação embora tenhamos como dever participar delas É preciso que os sujeitos direta mente envolvidos nas situações participem ativamente desse processo e os reconstruam conosco Qualquer tentativa de apreender uma situaçãoproblema desde uma perspectiva que não inclua de algum modo os par ticipantes da situaçãoproblema estará produzindo um saber que caminhará sempre no sentido da abstração requerendo como vimos saberes que o reconduzam a sínteses mais prag máticas Por outro lado um saber puramente pragmático ime diatista incapaz de distanciarse a níveis mais abstratos para dar nova inteligibilidade às situações nas quais são gerados perde também em capacidade crítica em potencial de enxergar regularidades tendências e mecanismos que podem ser de fun damental interesse como o conceito epidemiológico de risco Cabe ressaltar que não se trata aqui de desconsiderar o poder do conhecimento disponível sobre risco importante nas técni cas e conjuntos de práticas com vistas à prevenção de doenças em nível populacional Mas sim tanto sinalizar sobre possíveis efeitos de exageros em sua utilização como ressaltar sua vincu lação com aspectos indesejáveis das correntes configurações socioculturais que devem ser aperfeiçoadas Inegavelmente o cálculo do risco em termos de sua orientação temporal futu rológica desempenha um importante papel no sentido de via bilizar o delineamento de regularidades e padrões até que se possa ordenar as aparências de modo a produzirse algum sen so de previsibilidade com vistas ao controle e à prevenção dos agravos e à proteção e promoção da saúde A metáfora do panóptico de Bentham proposta por autores foucaultianos para analisar a problemática conceitua da saúde na sociedade veio a alcançar enorme influência no campo teó rico da Saúde Para alguns críticos na atualidade tal metáfora não é mais adequada para lidar com os elementos tecnológicos comunicacionais presentes na produção da subjetividade nas sociedades contemporâneas Mathiesen 1997 No caso da au tovigilância são perceptíveis outros sinais que podem ser mais bem representados pela noção de sinóptico Se no panóptico muitos eram observados e controlados por poucos através de postos privilegiados de observação supostamente ativa no si nóptico muitos observam passivamente a poucos e se autocon trolam por efeito de demonstração e convencimento algo pró ximo ao outro Big Brother o dos espetáculos de realidade televisiva Para compreender a dominância da noção de risco no ima ginário contemporâneo outra noção foucaultiana governa mentalidade justaposição de governo com mentalidade tem sido bastante utilizada Não vamos aqui entrar no detalhamen to das origens da noção de governamentalidade Segundo Lemke 2002 o aspecto que nos interessa é aquele desenvolvido por Foucault para abordar a capacidade do indivíduo autônomo de autorregularse e como isto se vincula a dimensões políticas e econômicas de exploração Muitas das críticas à ideia de pro moção de saúde e ao neoliberalismo e como estes se relacionam de modo recursivo se ancoram neste ponto de vista Bunton Burrows 1995 A governamentalidade diz respeito a formas de poder que transcendem o exercício direto de dominação mediante a pro dução de subjetividade Para isto segue uma racionalidade que defme finalidades de ação e modos apropriados de alcançála As formas de controle via autogoverno são denominadas tec nologias de si mesmo Em síntese o autocuidado é uma estra tégia de tornar indivíduos pessoalmente responsáveis pela ges tão de riscos socialmente gerados Um traço marcante da racionalidade neoliberal consiste na justaposição que ela pro cura estabelecer entre o indivíduo moral e responsável e o indi víduo econômico e racional A noção de livre arbítrio se escora tanto no sentido do direito de decidir como no da liberdade da escolha Esta é necessária na equação que desemboca na res ponsabilidade das ações e de suas consequências para este indi víduo Neste ponto importa delinear a noção de responsabilidade perante o risco Sabemos que tal tema permite complexas abor dagens éticofilosóficas jurídicolegais que decerto não cabem aqui Por enquanto basta considerarmos que a ideia de respon sabilidade em termos gerais envolve primordialmente a noção de dever ou obrigação de indivíduosinstituições prestarem con tas a instâncias de regulação concretas ou simbólicas por de terminadas ações sejam próprias sejam de outrem ou relativas a objetos que através de algum compromisso lhes foram confia dos Cabe destacar que se está nestas circunstâncias sujeito às dimensões da lei dos usos e costumes eou da consciência De qualquer forma há que levar em conta a ênfase moralis ta nas complexas sociedades modernas e sua correspondente preocupação com responsabilidade e culpabilização Innerarity 2004 Responsabilidade consiste em uma ideia normativa que enseja e sustenta ordenações essenciais à organização dos co letivos humanos É inevitável a associação de responsabilidade com culpà especialmente no que se refere ao descumprimento das obrigações A visão moralista a partir de raciocínios que visam a estabelecer causas bem definidas procura localizar e punir responsáveisculpados por correspondentes faltas Não é comum nestas circunstâncias existir muita disponibilidade para benefícios da dúvida em relação à indefinição das causas efetivas ou da culpabilidade dos réus Sabidamente a perspec tiva moralista além de inclinarse para o maniqueísmo não costuma reconhecerse como tal Epílogo politizar as relações entre epidemiologia doença risco e saúde Nossas ciências como constructos rac1ona1s sao mensagens que nos enviamos acerca da facticidade de nossa vida discurss capazes de interferir sobre as condições que regulam nossa exis tência material e práticomoral perguntas e respostas com que reagimos às interpelações de nossas experiências Gadamer 2004 Seguindo Canguilhem 1982 é possível aceitar que nossos discursos científicos sobre o adoecimento são como dispositi vos vitais que buscam manter uma organização aberta uma permanência que se dá pela capacidade de perceber e responder ao imponderável que é nosso meio socialmente biológico biologicamente social Somos seres criadores e até por isso mes mo vivemos num meio em constante mutação A mudança é nossa marca de origem condição de possibilidade da nossa existência e elemento necessariamente incluído em nossa per manência Ora por isso mesmo toda a normatividade que cria mos por intermédio da razão toda a adequação que fazemos em nós nos nossos modos de viver em comum e no nosso meio de forma a seguir vivendo e para viver melhor jamais pode ser concebida a priori de modo unívoco e permanente A vida hu mana só percebe algo de que precisa quando de alguma forma esse algo se lhe apresenta como carecimento como falta É esta percepção que leva Canguilhem a afirmar que embo ra epistemologicamente o fisiológico o funcionamento normal da economia orgânica humana dê base à enunciação científica do fenômeno patológico este antecede aquele ontologicamen te O patológico precede o normal e o defme Os obstáculos à vida humana é que a tornam a si mesma inteligível em suas exigências e preferências Nesse sentido cabe perguntar até que ponto é desejável racional prático buscar apreender cientifica mente a saúde Será o ideal de organizar as práticas de saúde em torno de aspectos não restritos ao tratamento de patologias ou prevenção de agravos dependente mesmo de uma conceitu ação positiva de saúde A resposta talvez não esteja na oposição entre saúde e do ença A construção da saúde possivelmente precisará sempre dos problemas obstáculos dos agravos para que possa se aper ceber de seus próprios interesses e meios de alcançálos mas essa apercepção poderá ser favorecida e potencializada se tais problemas e obstáculos forem tratados como objetos contra fáticos Isto é não é preciso abandonar a conceituação das do enças para se produzir conhecimento sobre saúde mas certa mente é preciso interpretar e tematizar ativamente que valores estão sendo obstaculizados pelas patologias e riscos no modo tal como os percebemos conceituamos e transformamos Se considerada como um fato em si mesma a doença ou seus riscos se absolutiza essencializa e enquanto tal perma nece reproduzindo respostas em uma mesma direção e sentido constrangendo os potenciais criativos da vida inibindo a ma nifestação de formas mais ricas e ativas de saúde Sob uma com preensão contrafática a doença obriga a pensar sobre aquilo que estando de um modo poderia estar de outro obriga a re fletir sobre outros modos em que a vida poderia estar correndo motivando e organizando mudanças buscando enriquecer suas qualidades Uma consequente assunção do caráter contrafático do ob jeto doença conduz por sua vez à necessidade de transforma ção do tipo de resposta a ser dada à positividade do agravo de Epidemiologia Saúde 53 uma tentativa sempre voltada para sua supressão ou prevenção à sua incorporação em um movimento interpretativo que faça emergir e criticar os conteúdos valorativos normativos que estão na base da sua positividade Este movimento implica um ativo trânsito interdisciplinar Senão de que forma identificar interpretar e validar de modo autêntico verdadeiro e legítimo as diferentes dimensões da vida negadas pelos agravos e adoe cimentos A fusão dos horizontes discursivos das diversas dis ciplinas científicas requer não o abandono de um discurso em prol de outro mas a criação de categorias que expressem os novos contornos que adquirem seus constructos a partir das luzes que sobre ele projetam os discursos de outras disciplinas além dos discursos não disciplinados Assim há que se buscar quadros e categorias teóricas que permitam fazer dialogar os instrumentos e achados da epide miologia Tais categorias ao oferecer a releituras transdiscipli nares a positividade que a Epidemiologia confere aos riscos e agravos podem potencializar a contribuição desta ciência ao desafio de promover saúde tanto quanto de protegerse e recu perarse dos agravos Claro que essa transdisciplinaridade não se constrói da noi te para o dia nem por decreto mas implica arranjos técnicos e institucionais que permitam um efetivo trânsito de sujeitos en tre diferentes áreas e grupos de produção científica Almeida Filho 1997 Este trânsito por seu lado encontra sérios obstá culos nas rígidas e poderosas fronteiras disciplinares que deli mitam não apenas áreas de competência científica mas sólidos interesses e poderes socialmente consusbstanciados e que não se deixam remover ingenuamente sem resistência Ayres 1997 Há portanto significativos esforços a serem empreendidos no plano político para que epidemiologia e outros saberes pos sam efetivamente dialogar resumidos na necessidade de dissol ver a feudalização das ciências e suas instituições Quanto a isso não parece haver solventé mais eficaz que o poder da so lução isto é a autoridade e a legitimidade que advêm da capa cidade de se oferecerem respostas convenientes e efetivas para situações que obstaculizam o bom curso da vida no seu coti diano Na capacidade de identificar problemas práticos que agre guem o maior número possível de interesses sociais e de orga nizar em torno desses problemas e não de áreas abstratas de expertise esforços transdisciplinares e intersetoriais de várias ordens caráter público e privado diferentes áreas de compe tência pesquisa e serviços etc encontrase com efeito um irresistível impulso à efetividade e legitimidade de diálogos transdisciplinares Temos todas as razões para sermos otimistas quanto a estes rearranjos no campo da saúde uma vez que as propostas de promoção da saúde como também as de vigilân cia da saúde por força do caráter politizado democratizado e regionalizado que querem imprimir à organização das práticas assistenciais constroem um novo e muito favorável cenário para que prevaleça o poder da solução o que se estivermos corretos será essencial para a sobrevivência diversificação e aperfeiço amento do conceito de risco Referências bibliográficas Almeida Filho N Transdisciplinaridade e saúde coletiva Ciência Saúde Co letiva 212520 1997 Almeida Filho N A ciência da saúde São Paulo Hucitec 2000 Armstrong D The rise of surveillance medicine Sociology of Health and Illness 173393404 1995 54 Capítulo 5 1 Risco Conceito Básico da Epidemiologia Atlan H Bousquet C Questions de vie Entre le savoir et lopinion Paris Seuil 1994 Ayres JRCM Devese definir transdisciplinaridade Ciência Saúde Coletiva 2123638 1997 Ayres JRCM Sobre o risco para compreender a epidemiologia São Paulo Hu citec 2008 3ª ed 328 p Ayres JRCM Calazans GJ Saletti Filho HC França Jr I Risco vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde ln Campos GWS Minayo MCS Akerman M Drumond Júnior M Carvalho YM Orgs Tratado de Saúde Coletiva São Paulo Hucitec Rio de Janeiro Fiocruz 2006 p 375418 Bauman Z Vidas desperdiciadas La modernidad y sus parias Barcelona Paidós 2005 Bernstein P Against the gods The remarkable story of risk Nova York John Wiley Sons 1996 Buck C Poppers philosophy for epidemiologists International ournal of Epi demiology 415968 1975 Bunton R Burrows R Consumption and health in the epidemiological clinic of late modern medicine ln Bunton R Nettleton S Burrows R eds The sociology of health promotion Criticai analyses of consumption lifestyle and risk Nova York Routledge 1995 p 206222 Canguilhem G O normal e o patológico Rio de Janeiro ForenseUniversitária 1982 2ª ed 270 p Castiel LD O buraco e o avestruz A singularidade do adoecer humano Cam pinas Papirus 1994 Castiel LD Debate sobre o artigo de AlmeidaFilho Transdisciplinaridade e Saúde Coletivà Ciência Saúde Coletiva 2122730 1997 Castiel LD ÁlvarezDardet C A saúde persecutória os limites da responsabili dade Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2007 136 p Cohen AM Stavri PZ Hersh WR A categorization and analysis of the criticisms of evidencebased medicine International fournal of Medical Informatics 73 135432004 Czeresnia D Albuquerque MFM Modelos de inferência causal análise críti ca da utilização da estatística na epidemiologia Revista de Saúde Pública 295415423 1995 Douglas M Risk acceptability according to the social sciences London Routledge and Kegan Paul 1986 Ferreira ABH Novo Aurélio Século XXI o dicionário da língua portuguesa 3ª ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 F0rde OH Is imposing risk awareness cultural imperialism Social Science and Medicine 47911551159 1998 Gadamer HG Verdade e método I traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica Petrópolis Vozes Bragança Paulista Ed Universitária São Fran cisco 2004 6ª ed 631 p Gifford SM The meaning of lumps a case study of the ambiguities of risk ln Craig RJ Stall R Gifford SM Anthropology and epidemiology interdiscipli nary approaches to the study of health and disease Boston D Reidel pp 213246 1986 Grandjean P Implications of the precautionary principie for public health prac tice and research Annu Rev Public Health 25199223 2004 Greenland S GagoDominguez M Castelao J The value of riskfactor black box epidemiology Epidemiology 15552935 2004 Habermas J Teoría de la acción comunicativa I racionalidad de la acción y ra cionalización social Madrid Taurus 1987 517 p Hayes MV The risk approach unassailable logic Social Science and Medicine 3315570 1991 Hill AB The environment and disease association or causation Proceedings of the Royal Society of Medicine 585295300 1965 Houaiss A Vilar M Dicionário Houaiss da língua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001 Innerarity D La sociedad invisible Madrid Editorial Espasa Calpe 2004 Jenicek M Cléroux R Épidémiologie clinique Québec Edisen Inc 1985 Kenen RH1996 The atrisk health status and technology a diagnostic invita tion and the gift of knowing Social Science and Medicine 42111545 1553 1996 Kleinbaum DG Kupper LL Morgenstern H Epidemiologic research principles and quantitative methods Belmont Lifetime Learning Publ 1982 Last JM ed A dictionary of epidemiology Nova York Oxford University Press 1989 Lemke T Foucault govemmentality and critique ln Rethinking Marxism 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de risco na mídia Interface Comunicação Saúde Educação 1121145163 2007 Vineis P Nel crepuscolo della probabilità La medicina tra scienza ed etica To rino Einaudi 1999 Raízes Históricas da Epidemiologia Moacyr Scliar Naomar de Almeida Filho e Roberto Medronho A Epidemiologia é mais que uma ciência É uma verdadeira aven tura do espírito humano uma busca de resposta para questões transcendentes sobre a vida a saúde o sofrimento e a morte E como toda aventura de seres humanos criativos e conscientes no campo do conhecimento e das práticas sociais muda sem cessar Tais mudanças conformam uma fascinante história com eventos e personagens que tomamos como tema deste texto Perspectivas epistemológicas contemporâneas reconhecem o esgotamento dos campos científicos convencionais indicando o papel fundamental dos processos históricos e dos paradigmas que tanto na esfera macro como microssocial geram sua cons trução institucional por meio da produção cotidiana de saberes e práticas E a Epidemiologia campo científico que emerge no final do século XIX e se consolida em meados do século XX não escapa das tensões e questionamentos da sua história e das transformações conjunturais da ciência de sua época Neste capítulo propomonos a trazer uma breve apresenta ção das raízes históricas deste intrigante campo de conhecimen to chamado Epidemiologia atualizando e ampliando textos an teriores sobre a história dessa disciplina Almeida Filho 2000 Scliar 2002 Almeida Filho 2003 Scliar 2007 Esta breve his tória da ciência epidemiológica e seus saberes correlatos vem ilustrada com narrativas e referências literárias e cinematográ ficas que nos parecem pertinentes Primeiro focalizaremos os principais elementos precursores da sua constituição no seio da cultura ocidental moderna Em seguida vamos expor algu mas das circunstâncias que cercaram a emergência dos três pilares fundamentais da Epidemiologia a clínica a estatística e a medicina social Depois analisaremos sua consolidação como disciplina científica como espaço institucional e como eixo fundamental do campo de práticas da saúde coletiva Conclui remos o capítulo comentando sobre a fase atual de desenvolvi mento da Epidemiologia momento privilegiado de sua afirma ção como ciência geral da informação em saúde Primórdios de Hipócrates a Avicena A Epidemiologia estruturase historicamente sobre uma con tradição recorrente em distintos lugares épocas e conjunturas entre abordagens individualistas e enfoques coletivos da saúde Uma tensão essencial entre medicina individual e saúde cole tiva ou medicina curativa e medicina preventiva pode ser en contrada desde os primórdios do pensamento ocidental na Gré cia antiga A mitologia grega capta esse antagonismo ancestral na figura das filhas e herdeiras de Asclépios deus da saúde A ftlha mais velha de Asclépios Panaceia tornouse a pa droeirà da medicina individual curativa prática terapêutica baseada em intervenções sobre indivíduos doentes através de manobras físicas encantamentos preces e uso de fármacos Ainda hoje se fala em panaceia universal para designar algum medicamento ou procedimento de poder curativo excepcional e obviamente com certa ironia duvidoso Sua rival e irmã Higeia era venerada por aqueles que con sideravam a saúde como resultante da harmonia entre o ser humano e o ambiente Os higeus pretendiam promover a saúde por meio de ações que mantendo o equilíbrio entre os elemen tos fundamentais terra fogo ar água evitassem doenças Da sobrevivência dessas crenças e práticas através dos tempos de Figura 21 Higeia Asclépios e sua filha s 6 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia riva o conceito de higiene sempre no sentido de promoção da saúde principalmente no âmbito coletivo Por ter sido o criador do termo epidemià e pelo conteúdo da obra a ele atribuída autores clássicos da Epidemiologia MacMahon Pugh Ipsen 1960 Lilienfeld 1970 veem em Hipócrates o precursor da Epidemiologia Pouco se sabe sobre a vida de Hipócrates de Cós c 460 a 377 aC Poderia ter sido uma figura imaginária como tantas na Antiguidade mas há referências à sua existência em textos de Platão e Aristóteles Os vários escritos que lhe são atribuídos e que formam o Corpus Hippocraticus provavelmente foram o trabalho de várias pessoas talvez em um longo período de tem po O importante é que tais escritos traduzem uma visão racio nal da medicina bem diferente da concepção mágicoreligiosa predominante na Antiguidade O texto hipocrático intitulado A doença sagrada começa com a seguinte afirmação A doença chamada sagrada não é em minha opinião mais divina ou mais sagrada que qualquer outra doença tem uma causa natural e sua origem supostamente divina reflete a ignorância humanà Hipócrates postulou a existência de quatro fluidos humores no corpo humano bile amarela e negra fleugma linfa e san gue correspondentes aos elementos fundamentais terra água e fogo O ser humano constituiria uma entidade organizada pelo equilíbrio e sua saúde dependeria da harmonia entre os humo res e do balanceamento destes com os elementos naturais A obra hipocrática caracterizase pela valorização da observação empírica como o demonstram os casos clínicos nela registra dos reveladores de uma visão original do problema de saúde enfermidade A apoplexia dizem esses textos é mais comum entre as idades de 40 e 60 anos a tísica ocorre mais frequente mente entre os 18 e os 35 anos As observações hipocráticas não se limitavam ao paciente em si O texto conhecido como Ares águas lugares discute os fatores ambientais ligados à doença defendendo um conceito ecológico de saúdeenfermidade Daí emergirá a ideia do mias ma emanações de regiões insalubres seriam capazes de causar doenças como a malária muito comum no sul da Europa e uma das causas da derrocada do Império Romano O nome aliás vem do latim e significa maus ares lembrar que os romanos incorporaram os princípios da medicina grega Na tradição de Higeia a estrutura e o conteúdo dos textos hipocráticos sobre as epidemias e sobre o meio ambiente sem dúvida antecipam o raciocínio epidemiológico Não obstante parece que os herdeiros de Hipócrates não cultivaram a prima zia do coletivo Ao contrário talvez preferindo garantir sua he gemonia frente às inúmeras seitas que na Antiguidade prome tiam a saúde para os crentes revelaram eficiente senso Figura 22 Hipócrates de Cós mercadológico rapidamente adaptandose aos tempos pós helênicos e tornando a cura individual uma referência para sua prática Clavreul 1983 Os primeiros médicos de Roma em geral escravos gregos vendidos a preços comparáveis aos de gladiadores e eunucos segundo o renomado historiador da medicina Henry Sigerist 1941 trabalhavam para a corte o exército ou com certa ex clusividade para as famílias nobres receitando muitos fármacos para poucos enfermos LaínEntralgo 1978 Particularmente famoso foi Galeno ou Claudius Galenus 129216 natural de Pérgamon atualmente Bergama Turquia um importante centro urbano vinculado às duas principais civilizações da épo ca ali a cultura era grega e a lei romana Pérgamon é o lugar onde foi inventado o pergaminho e não por acaso a cidade se diava uma biblioteca capaz de rivalizar com a de Alexandria considerada a maior do mundo à época Por último mas não menos importante havia ali um grande templo dedicado a As clépios ao qual o pai de Galeno Nicon eminente astrônomo e matemático estava ligado Nicon cedo encaminhou o filho para a medicina naquela época um aprendizado informal depen dente da relação mestrediscípulo Dos 16 aos 20 anos Galeno foi atendente ou therapeutes no templo de Asclépios Depois da morte do pai morou em Smirna Corinto e Alexandria final mente foi para Roma onde ganhou fama pelo conhecimento habilidade e arrojo fazia até cirurgia ocular e cerebral Tornou se médico de celebridades incluindo imperadores Adriano Marco Aurélio Lucius Verus Commodus e Septimus Severus isto apesar da desconfiança que parte da sociedade romana nu tria em relação a médicos sobretudo os gregos Galeno sustentou e ampliou a teoria humoral de Hipócrates Em De temperamentis estabeleceu uma relação entre humores e temperamentos Criou o conceito de faculdades referentes ao funcionamento do corpo e do qual ficou a expressão faculda des mentais Galeno também era adepto da ideia do pneuma uma sutil e vital substância não exatamente o ar tal como hoje o concebemos que entrava no corpo através dos pulmões e depois transformada era distribuída pelo corpo através das artérias o pneuma controlava o funcionamento dos órgãos vi tais cérebro coração fígado Galeno acreditava que o cérebro regulava as faculdades racionais tais como o julgamento a ima ginação a memória mas que as emoções seriam controladas pelo coração e pelo fígado E o fígado estaria para o estômago esse era o raciocínio galênico como o fogo para a panela Na panela ocorre a cocção no fígado a concocção Da concocção dos alimentos resulta o quilo a expressão fazer o quilo até hoje significa estimular a digestão por meio de por exemplo caminhadas O quilo iria para o fígado ali uma segunda con Figura 23 Claudius Galenus cocção produziria os humores O fígado era considerado aliás o órgão principal do corpo humano e não é de admirar que até hoje seja grande o número de pessoas que atribuem seus sofri mentos quaisquer que sejam ao fígado A bile negra diziase é feita das partes menos puras e nutritivas do quilo É espessa pesada tende a descer enquanto o sangue que é mais vivo mais energético tende a subir precipita o envelhecimento e a morte É função do baço absorver a bile negra do sangue re distribuindoa quando o baço não executa essa função trans formase em um reservatório de humor estagnado do qual ema na o vapor negro que provocará a melancolia A influência de Galeno foi enorme para não poucos autores o título de pai da medicina se aplicaria melhor a ele do que ao lendário Hipócrates e dessa influência ele estava muito cons ciente A palavragalenos em grego quer dizer calmo sereno mas o doutor Galeno era orgulhoso arrogante um fanfarrão que nas suas obras mais de 300 calculase das quais 100 foram preser vadas não hesitava em falar mal dos rivais neutralidade cien tífica não era bem um característico da época Mas em matéria de terapêutica Galeno não diferia muito de seus contemporâ neos inclusive no que se refere ao uso de produtos vegetais que fazia importar de diferentes lugares do mundo Algumas destas substâncias como o ópio chegaram ao nosso tempo Além da medicina galênica o império romano tinha também algo que poderíamos chamar de infraestrutura sanitária e que se expressava na construção de aquedutos para trazer água de melhor qualidade a Roma e esgotos a Cloaca Maxima até hoje preservada é famosa De interesse para o estudo das ori gens da Epidemiologia o governo romano realizava censos perió dicos um deles levou o carpinteiro José e sua esposa Maria a Belém com as consequências que todos conhecemos e o Im perador Marco Aurélio introduziu um registro compulsório de nascimentos e óbitos Tais censos e registros medidas original mente de cunho político e administrativo antecipam o que mais tarde viria a ser conhecido como estatística vital No início da Idade Média o domínio do cristianismo e as invasões bárbaras determinaram um retorno a práticas de saú de de caráter mágicoreligioso que incluíam amuletos orações e o culto a santos protetores da saúde Não muito valorizadas aliás importante era a salvação da alma para a qual o corpo era um simples e desprezível invólucro Starobinski 1967A prá tica médica para os pobres era exercida principalmente por religiosos como caridade ou por leigos barbeiros boticários e cirurgiões como profissão Sigerist 1941 Nesse contexto não havia lugar para ações coletivas no campo da saúde exceto em momentos críticos não infrequentes de pragas e epidemias Cada família da aristocracia tinha seu médico privado que em muitos casos era um cortesão especialista também na arte de matar por envenenamento Uma referência cinematográfica na película A Rainha Margot dirigida por Patrice Chéreau o mé dicoenvenenador da família Médici faz Carlos IX herdeiro do trono francês e irmão de Margot suar sangue até a morte Curiosamente os historiadores da Epidemiologia não enfa tizam suficientemente o avanço tecnológico e o caráter coletivo da medicina árabe que alcançou seu apogeu nos califados de Bagdá e Córdoba no século X Preservando os textos hipocrá ticos originais médicos muçulmanos adotaram os princípios de uma prática precursora da higiene e da saúde pública com alto grau de organização social estabelecendo registros de in formações demográficas e sanitárias e até sistemas de vigilância epidemiológica Na história dessa medicina individual e cole tiva destacamse as lendárias figuras de Avicena IbnSina 980 a 1037 e Averróis Ibn Rushid 11261198 Apesar de terem vivido em épocas distintas e em pontos opostos do império Epidemiologia Saúde 7 muçulmano ambos compartilhavam uma filosofia precursora do pensamento científico moderno que evidentemente reper cutia nas suas obras sobre saúde LaínEntralgo 1978 Pérez Tamayo 1988 Além de médico e matemático precursor na introdução dos algarismos arábicos e da álgebra no Ocidente Avicena é consi derado o maior filósofo do islamismo Atribuemse a Avicena cerca de 200 obras várias na área da medicina destacandose O Livro da Cura enciclopédia composta de 18 volumes abran gendo metafísica matemática psicologia física astronomia e lógica e o Cânon de Medicina em 5 volumes que trata dos princípios gerais da medicina abordando etiologia sintomas diagnose prognose e terapêutica Neste último pregava registro sistemático e abordagem numérica da ocorrência de doenças dessa forma antecipando a epidemiologia O Cânon foi tradu zido para o latim no fmal do século XII e adotado nas univer sidades europeias até o século XVII O livro de Noah Gordon O Físico é interessante como ilus tração romanceada dessa fase tardia da Idade Média tanto no que se refere a uma descrição do cotidiano quanto ao panorama do cuidado à saúde Gordon 1996 Naquela época os médicos eram chamados físicos na língua inglesa o termo que ainda hoje designa o clínico é physician Nesse livro destacase a per sonagem real de Avicena como mentor do protagonista Robert Cole um fictício barbeirocirurgião londrino que tanto ambi cionava tornarse um físico efetivamente capaz de curar doen ças e aliviar o sofrimento humano que se disfarçou de judeu para ser aceito na escola médica de Ispahan capital da Pérsia A conservação nas bibliotecas árabes e difusão durante a era medieval tardia dos textos clássicos hipocráticos e galênicos importantes na instituição das primeiras escolas médicas oci dentais e dos escritos aristotélicos permitiu que no Renasci mento a tradição racionalista grega pudesse ser recuperada e revalorizada desempenhando assim papel fundamental na emergência da ciência moderna Neste aspecto é marcante a figura de Averróis médico jurista filósofo e conselheiro polí tico do Califado de Córdoba último bastião da dominação is lâmica na Península IbéricaAverróis exerceu influência direta sobre a filosofia escolástica e a ética naturalista do Renascimen to em razão de sua exegese do pensamento de Aristóteles para elaborar uma teoria do conhecimento defendendo que a per ca Figura 24 Gravura de Avicena 8 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia cepção depende tanto da realidade dos objetos conhecidos quanto dos processos mentais de construção lógica sobre eles Behmakhlouf 2006 Manifesto em numerosas e profundas transformações em todos os campos da vida social o Renascimento foi essencial mente um movimento de resgate dos elementos filosóficos es téticos e ideológicos mais avançados da cultura grecolatina Articulado à emergência de um novo modo de produção que posteriormente veio a ser chamado de capitalismo o pensa mento renascentista propiciou as bases para uma compreensão racional da realidade que resultaria na constituição das ciências modernas Rensoli 1987 Desse entendimento do mundo como efeito de processos naturais e históricos superando a metafísi ca religiosa medieval desencadeouse entre os séculos XVI e XVIII gigantesco e complexo esforço de produção de dados informações e conhecimento em todos os saberes e lugares ao alcance da expansiva civilização ocidental Nos distintos campos de ciência então em formação busca vase febrilmente demarcar objetos de conhecimento empírico desenvolvendose métodos e técnicas para produção de conhe cimento sistematizado e de tecnologias e práticas de intervenção visando a ampliar a capacidade humana de transformar o mun do em que vivemos Nesse contexto de inegável riqueza e dina mismo as raízes históricas das ciências contemporâneas podem ser identificadas em termos de objeto de conhecimento de ba lizamento metodológico e de campo de práticas sociais Nas seções que seguem trataremos do impacto desse movi mento na formação das raízes históricas da Epidemiologia ex plorando os principais eixos de constituição da ciência epide miológica na tríade Clínica saberes sobre saúdedoença Estatística diretrizes metodológicas quantitativas e Medicina Social práticas de transformação da sociedade Raízes da Epidemiologia na clínica e na estatística Na constituição do saber clínico naturalizado racionalista moderno pilar fundamental para a formação histórica da Epi demiologia podemos distinguir três etapas Na primeira etapa leigos e religiosos envolvidos no pro cesso saúdedoença buscavam a legitimação científica e política de uma prática clínica adequada à nova raciona lidade que então surgia e que se contrapunha à medicina dos antigos físicos medievais não havia ainda uma dis tinção muito clara entre as dimensões individual e cole tiva da saúde Na segunda etapa a medicina já se consolidava como corporação com um saber técnico próprio e uma rede de instituições de prática profissional Nessa fase a arteciên cia da clínica reforçou o estudo do caso a partir da inves tigação sistemática dos enfermos nos hospitais A terceira etapa vinculase à emergência da medicina científica quando já em meados do século XIX a revo lução industrial propiciava espaço e poder para a ascen são do saber científico e tecnológico como ideologia do minante nos países ocidentais Realmente o hospital nem sempre foi um lugar de cura para os enfermos Foucault 1979 O termo hospital de onde vem hospitalidade etimologicamente denota simplesmente um lo cal para abrigo ou acolhimento como os hotéis hospedarias ou albergues Os hospitais eram locais protegidos sob mandato de ordens religiosas a primeira delas foi a dos Cavaleiros Hospita lários que remontava às Cruzadas e da qual se originou o termo destinados a receber viajantes necessitados aqueles que não ti nham casa e só eventualmente doentes sem família O hospital não era primariamente um lugar para tratar ou estudar doenças mesmo porque a medicina pouco podia fazer pelos pacientes sobretudo graves tratavase portanto de dar apoio espiritual a essas pessoas Só aos poucos e em um processo que não excluía conflito de poderes entre poder médico e poder religioso o ca ráter dos nosocômios foi mudando com a introdução nestes de uma prática médica de base científica Trostle 1986 O processo de medicalização do hospital não ocorreu da mesma maneira em todos os tipos de instituição os manicô mios até meados do século XX destinavamse fundamental mente a isolar os doentes mentais Foram diz Michel Foucault 1979 uma criação da modernidade substituindo os leprosá rios que na Idade Média eram muito comuns Isto porque a hanseníase notandose que neste diagnóstico poderiam estar incluídos muitos problemas de pele era considerada tanto pelo judaísmo como pelo cristianismo como sinal de impureza de conduta pecaminosa e fazia com que a pessoa fosse isolada Para o capitalismo regime econômico que então se instaurava o doente mental que não trabalhava que vagava pelas ruas era um mau exemplo e tinha de ser isolado da sociedade Dizse que Philippe Pinel alienista francês que fez parte do governo instaurado pela Revolução Francesa teria libertado os loucos Na verdade Pinel determinou que os pacientes mentais não fossem mais acorrentados como antes era praxe e libertou al gumas pessoas desempregados mendigos presos políticos que estavam internadas em hospitais Mas os loucos conti nuaram no hospício Na sua fase de constituição como prática profissional a me dicina precisou afirmarse mediante a unificação do saber téc nico próprio da cirurgia com a base conceitua científicofilo sófica da clínicaA eterna disputa franceses versus ingleses pela hegemonia intelectual no Ocidente repercute nesse momento da história da ciência médica De acordo com a escola historiográfica francesa os primeiros passos para uma medicina dos tempos modernos conectamse a uma questão veterinária ocorrida na França naturalmente Michel Foucault 1979 conta que a Sociedade de Medicina de Paris fundadora da clínica moderna no século XVIII organi zouse a partir da Ordem Real para que os médicos investigas sem uma epizootia que periodicamente dizimava o rebanho ovino com graves perdas para a nascente indústria têxtil fran cesa A investigação incluía o que era novidade a contagem de casos o que representou uma importante contribuição para a introdução da metodologia epidemiológica ainda que não em humanos Uma interessante referência cinematográfica a esses primórdios encontrase no filme 11 Viaggio di Capitan Fracassa de Ettore Scola onde o narrador é um inspetor sanitário O filme alude ao nascimento da Comedia dellarte na França e demons tra o papel fundamental do Estado moderno no controle das epidemias nos últimos anos do século XVII Para os anglosaxões o fundador da clínica médica foi Tho mas Sydenham 16241689 médico e líder político londrino Sydenham foi também um precursor da ciência epidemiológica com a sua teoria da constituição epidêmica de inspiração dire tamente hipocrática Pearce 1995 Formado em medicina na Universidade de Oxford Sydenham estabeleceu as diferenças entre escarlatina e sarampo e entre gota e reumatismo articular propôs tratamentos para doenças como a malária a varíola e também para a dependência do ópio Precursor da moderna neurologiaSydenham foi o primeiro a descrever detalhadamen te a coreia doença neurológica que hoje leva seu nome Des creveu a mania e a histeria por ele considerada doença exclusi vamente feminina Seu primeiro livro foi Methodus Curandi Febres Método de Cura das Febres de 1666 Publicou em 1680 dois opúsculos de interesse epidemiológico o primeiro intitu lado On Epidemies e o segundo On the Lues Venerea O compên dio Processus Integri 1692 publicado postumamente tornouse texto padrão na literatura médica e é hoje considerado o para digma pioneiro da integração entre patologia e clínica A terceira etapa de constituição da medicina como prática científica ocorreu em paralelo e às vezes em antagonismo aos primeiros movimentos de constituição da Epidemiologia Como veremos com a teoria microbiana e a fisiopatologia a chamada medicina científica viria a desempenhar importante papel na institucionalização das práticas médicas contemporâneas O microscópio já era conhecido desde o século XVII nos Países Baixos onde a fabricação de lentes tinhase desenvolvi do bastante o filósofo Espinosa ganhava a vida nessa atividade A invenção do instrumento é atribuída aos irmãos Johannes e Zacharias Jansen Já o homem que popularizou o microscópio nada tinha a ver com medicina ou com as ciências biológicas era um comerciante de Delft chamado Anthoni van Leeuwe nhoek pronunciase lêuenrruk que viveu de 163 2 a 1723 Para examinar melhor os tecidos que comprava e vendia teve a ideia de colocar lentes em um tubo No entanto não ficou nisso ho mem curioso começou a examinar ao microscópio tudo o que estivesse a sua volta foi assim que se surpreendeu ao ver em uma gota de água estagnada milhões de criaturinhas muito pequenas mais numerosas segundo sua maravilhada descri ção que os habitantes dos Países Baixos Com o mesmo instru mento Louis de Ham contemporâneo de Van Leeuwenhoek e estudante de medicina em Leyden também na Holanda des cobriu os espermatozoides Não obstante os aperfeiçoamentos técnicos e vidraria terem propiciado a confecção de instrumentos óticos de potência razoá vel a identificação dos microrganismos foi um passo prévio ao reconhecimento do seu papel como agente etiológico de enfer midades A investigação científica sobre as doenças e suas causas à época gerou situações não raro dramáticas vividas por perso nagens dignos de textos ficcionais Foi o caso de Ignaz Semmelweis 18181865 cuja vida foi objeto de um livro do médico e es critor norteamericano Sherwin Nuland 2005 Nascido na Hungria Semmelweis era de família modesta O pai merceeiro enviouo aos 19 anos para estudar Direito em Viena então ca Figura 25 Thomas Sydenham Epidemiologia Saúde 9 Figura 26 lgnaz de Semmelweis pital do império austrohúngaro Semmelweis porém mudou bruscamente de rumo quando acompanhando um amigo es tudante de medicina assistiu a uma aula de anatomia dada por um carismático professor Decidiu estudar medicina fez o cur so parte em Viena e parte em Budapeste A capital austríaca era um centro de excelência médica graças a nomes como o de Karl von Rokitansky grande especialista em anatomia patológica de seu colaborador Jakob Kolletschka patologista forense de Jo seph Skoda notável clínico que sabia como poucos correlacio nar os dados de ausculta e percussão com achados patológicos e de Ferdinand van Hebra pioneiro na dermatologia E aí começaram as decepções para Semmelweis Formado quis trabalhar com Kolletschka mas não conseguiu Tentou Skoda de novo sem sucesso Frustrado encaminhouse para a obstetrícia que era então uma especialidade de importância secundária na qual médicos disputavam espaço com parteiras Semmelweis foi trabalhar na maternidade do Allgemeine Krankenhaus o hospital geral de Viena cujo chefe era Johann Klein autoritário sucessor do não menos autoritário Johann Boer Os dois diferiam em várias orientações uma das quais teria importância decisiva na carreira e na vida de Semmelweis Boer não permitia que os corpos das parturientes mortas fos sem necropsiados para fins de ensino Klein ao contrário tor nou isto obrigatório Uma doença dizimava as parturientes de então e ainda faz vítimas se bem que muito raramente a febre puerperal uma infecção de origem à época desconhecida hoje sabemos que é causada por uma bactéria o estreptococo A ma ternidade tinha dois setores o primeiro atendido por médicos e estudantes de medicina o segundo por parteiras Os óbitos por febre puerperal eram dez vezes mais frequentes no primei ro setor E isto só acontecia ali Não havia nenhuma epidemia da doença em Viena as parturientes que davam à luz em casa aparentemente não corriam um risco superior ao habitual Por quê Esta era a pergunta que intrigava Semmelweis Um dramático episódio estimulouo a buscar uma resposta Em 1847 seu ídolo Kolletschka depois de ferirse acidental mente em uma necropsia morreu de infecção maciça Ao exa me constataramse em seu cadáver as lesões e o pus que se encontravam nas mulheres mortas por febre puerperal Ele con cluiu que a doença das parturientes e aquela que matara Kol letschka eram a mesma e que o médico a tinha contraído atra vés da inoculação de partículas cadavéricas palavras do próprio Semmelweis Estas eram as partículas que infectavam as parturientes Como A distribuição da doença nos dois se tores dava a resposta através dos médicos que todos os dias de manhã procediam às necropsias nas pacientes falecidas como 1 O Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia o determinara Klein depois iam fazer os partos sem luvas que então não eram usadas e sem sequer lavar as mãos Sem melweis determinou que antes dos partos os profissionais la vassem as mãos com uma solução de cloro No ano seguinte a mortalidade nos dois serviços era praticamente igual Podese pensar que isto significou um triunfo para Semmelweis De maneira alguma Para começar Klein discordava dele e achava que a melhora na situação deviase a um sistema de ventilação que mandara instalar e que removia o miasmà Mas havia ou tros problemas A Hungria era então uma região subdesenvolvida do impé rio austrohúngaro e os húngaros eram desprezados pelos austríacos Além disso Semmelweis como um bom contesta dor apoiava revoluções socialistas que no ano de 1848 sacu diram a Europa Ocidental O pior é que Semmelweis não era muito hábil na defesa de suas ideias Não publicou qualquer trabalho científico referente a elas não as apoiou em experiên cias com animais de laboratório o que já estava se tornando rotina Em 1850 candidatouse ao cargo de docente na univer sidade Primeiro foi recusado depois aceito com uma restrição não poderia usar cadáveres para dar aulas uma evidente repre sália por causa de seu posicionamento na questão da febre puer peral Ofendido decidiu voltar para Budapeste onde passou a trabalhar em um hospital e onde finalmente escreveu um com plexo e obscuro livro sobre a febre puerperal Começou a mos trar sinais de perturbação mental e foi internado em um hos pício onde veio a morrer de uma infecção provavelmente agravada pelos espancamentos então habituais nos nosocômios psiquiátricos Nessa fase no plano institucional do establishment médico a medicina clínica renovavase com a emergência da fisiologia moderna e da microbiologia a partir principalmente das con tribuições de Claude Bernard 18131878 e de Louis Pasteur 18281895 O primeiro fez uma importante descoberta a fun ção glicogênica do fígado o que lhe valeu inclusive um prêmio da Academia Francesa Responsável por algumas das principais noções da medicina como meio interno e secreção interna Ber nard 1972 sua influência no campo da fisiologia chega ao século XX por meio de seus discípulos Ao lado de descobertas relevantes na área de biologia possibilitando a unificação da zoologia e da botânica Bernard desenvolveu importantes re flexões teóricas sobre os próprios fundamentos da medicina e da biologia em particular da fisiologia experimental da qual é considerado o fundador das ciências e do saber humano em geral Dutra 2001 Figura 27 Claude Bernard A microbiologia no entanto só começou a se desenvolver quando Pasteur a pedido das indústrias do vinho estudou em 1863 o processo de fermentação alcoólica evidenciando apre sença das leveduras que o causam Demonstrou também que o vinho fica azedo pela ação de um microrganismo que pode ser destruído pelo aquecimento método que depois seria co nhecido como pasteurização No ano seguinte a pedido do Mi nistério da Agricultura isolou os germes causadores da doença em bichosdaseda estudou depois o carbúnculo do gado e a cólera aviária A partir de 1880 Pasteur que era químico não médico ou biólogo começou a investigar doenças que afeta vam os seres humanos Seu prestígio científico já estava defini tivamente consolidado e influenciava numerosos pesquisadores entre eles o cirurgião inglês Lord Lister 18271912 Os traba lhos de Pasteur sobre putrefação e fermentação sugeriram a Lister que a infecção operatória podia ser causada por micror ganismosPassouse a usar fenol como antisséptico e se conse guiu reduzir de modo significativo os óbitos pósoperatórios que ocorriam então em número bastante elevado A trajetória de Pasteur é um exemplo clássico de como o desenvolvimento científico depende da demanda das forças econômicas e de como contribuições à medicina e à saúde pú blica podem ser feitas por alguém que não é originariamente da área O Instituto Pasteur tornouse um modelo que viria a ser reproduzido em muitos países inclusive o Brasil graças a Oswaldo Cruz que em sua viagem a Paris estagiou brevemen te no Instituto Scliar 2002 Em 1882 Robert Koch 1843191 O descobriu o agente cau sador da tuberculose e estabeleceu os postulados da teoria mi crobiana da doença em relação a esse agente ou seja ele teria de ser demonstrado em cada caso da doença por isolamento em cultura pura não poderia ser encontrado em nenhuma ou tra doença uma vez isolado deveria ser capaz de reproduzir a doença em animais de experimentação deveria ser recuperado dos animais nos quais a doença fosse produzida Scliar 2002 Entre 1880 e 1898 aplicandose os métodos de Koch foram descobertos os germes causadores da febre tifoide da hansenía se da malária da tuberculose do mormo da cólera da erisipe la o estreptococo responsável também por outras infecções da difteria da febre de Malta do cancro mole da pneumonia pneumocócica das infecções estafilocócicas do tétano da pes te do botulismo da disenteria Shigella Passemos agora ao segundo eixo de constituição histórica da Epidemiologia a metodologia estatística Figura 28 Louis Pasteur Para muitos autores o projeto de quantificação das enfer midades representa um elemento metodológico distintivo da nova ciência da saúde que ao mesmo tempo poderia servir como garantia da sua neutralidade científica Dada essa expec tativa é até irônico verificar que dos pilares da ciência epide miológica aqui considerados a estatística comparece como aquele em que a raiz política mais claramente se evidencia Ha cking 1991 Mais ainda apesar de pouco perceptível a politi zação encontrase inscrita no próprio nome daquela disciplina De fato o termo estatísticà Statistik neologismo criado por Hermann Conring 16061681 médico e cientista político ale mão designava originalmente o conjunto dos poderes políticos de uma nação deriva do vocábulo Staat Estado conjunto dos poderes políticos de uma nação e que por sua vez vem do la tim status oriundo de stare ficar de pé Foi Gottfried Achenwall professor na Universidade de Gõttingen quem primeiro em 1750 empregou o termo Estatística com um sentido numérico Hacking 1991 A palavra não surgiu por acaso O fim da Idade Média vê o surgimento do Estado moderno afirmamse então os conceitos de governo nação e povo O Estado moderno precisava contar avaliar numericamente a população e o exército a população porque é fonte de riqueza o exército porque é fonte de poder Para que o povo funcionasse como elemento produtivo e o exército como elemento beligerante necessitavase não apenas de disciplina como também de saúde E para avaliar a situação de saúde de novo números eram necessários Métodos numéricos no estudo da sociedade e de sua situação de saúde já haviam sido introduzidos no século XVII Os con ceitos e pesquisas de William Petty 16231697 e os registros populacionais de John Graunt 16201674 são frequentemen te mencionados como precursores da demografia da estatísti ca e da epidemiologia Last 2001 John Graunt 16201674 comerciante de profissão mas membro da Royal Society havia conduzido com base nos dados de obituário os primeiros es tudos analíticos de estatística vital identificando diferenças na mortalidade de diferentes grupos populacionais e correlacio nando sexo e lugar de residência O médico e rico proprietário rural William Petty 16231687 abandonou uma cátedra de Anatomia em Oxford para estudar o que denominava de ana tomia políticà coletando dados sobre população educação produção e também doenças Plebeu dos primeiros a enrique cer com a nascente ordem burguesa e que veio a se tornar Sir Figura 29 William Petty Epidemiologia Saúde 11 Figura 21 O Daniel Bernouilli gênio matemático e organizacional Petty introduziu o concei to de almoxarifado estudou o fluxo de mercadorias nos arma zéns portuários inventou a contabilidade e fez aprovar leis acer ca de registros vitais A valorização da matemática no nascente campo científico da saúde muito deve à genial família Bernouilli Fernandez Castro 2001 Nicolau Bernouilli 16531708 foi um comer ciante próspero de Basileia cuja descendência incluiu matemá ticos ilustres dois filhos Jakob 16541705 e Johann 1667 1748 e um neto Daniel 17001782 filho de Johann Contemporâneos de gênios como Newton Leibniz e Euler os irmãos Bernouilli desenvolveram importantes trabalhos mate máticos Jakob foi professor de matemática na Universidade de Basileia desde 1683 até sua morte Sua obra mais original é um tratado sobre a teoria das probabilidades o Ars Conjectandi A Arte da Conjectura Jakob defendeu Leibniz na famosa dis puta deste com Newton acerca de quem tinha descoberto o cálculo diferencial e integral Johann estudou medicina contra o desejo do pai que queria ver o talento matemático do jovem aplicado aos negócios da família Após séria disputa com o irmão Jakob Johann autoe xilouse na Holanda aceitando o cargo de professor na Univer sidade de Grõningen Só retornou à Suíça após a morte do irmão para substituílo como professor universitário Em 1666 a Aca demia de Ciências de Paris passou a instituir prêmios para a solução de problemas científicos considerados como desafios Johann Bernouilli ganhou três vezes o cobiçado prêmio que além de dinheiro significava enorme prestígio na comunidade científica Na terceira vez teve que dividir o prêmio com seu ftlho Daniel e por isso expulsouo de casa Embora tenha estu dado medicina a pedido do seu pai Johann Daniel Bernouilli destacouse como genial físico e matemático Adepto da nas cente corrente experimentalista da ciência estabeleceu em ca ráter pioneiro fórmulas para estimar anos de vida ganhos pela vacinação contra varíola e para avaliação do custobenefício em intervenções clínicas Daniel veio a ganhar dez vezes o pres tigioso prêmio da Academia de Ciências de Paris Fernandez Castro 2001 Contar os súditos sadios de um Estado parecia ter algo a ver com contar estrelas brilhantes Hacking 1991 Dois astrôno mos dessa época merecem destaque Halley e Laplace Médico de formação o inglês Sir Edmund Halley 165617 42 descobriu o cometa que leva seu nome Nas horas vagas desenvolvia téc nicas de análise de dados que resultaram nas famosas tábuas de 12 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia Figura 211 Lambert Quetelet vida primeiro instrumento metodológico da estatística vital PierreSimon Laplace 17491827 matemático e astrônomo francês além de consolidar a teoria das probabilidades aper feiçoou métodos de análise de grandes números aplicandoos a questões de mortalidade e outros fenômenos em saúde Aluno de Laplace LambertAdolphe Jacques Quetelet 1796 1874 astrônomo e matemático belga além de criador dopo pular índice de superfície corporal que leva seu nome foi o principal defensor da estatística aplicada sobretudo a fenôme nos biológicos e sociais o que incluía dados de morbidade e mortalidade Seus estudos sobre a consistência numérica dos crimes estimularam grandes discussões sobre o livre arbítrio versus o determinismo social Trabalhando para o governo bel ga implantou um centro de estudos estatísticos geográficos e meteorológicos em Bruxelas lá coletava e analisava dados re ferentes à mortalidade em geral e ao crime em particular de senvolvendo técnicas de realização de censos Suas áreas de interesse eram variadas além de criar métodos para compara ção e avaliação dos dados estudou fenômenos como a chuva de meteoros Em 1835 Quetelet apresentou sua proposta de uma física social baseada na concepção do homem médio a partir do valor central das medidas de atributos humanos agru pados de acordo com a curva normal Seu trabalho produziu grandes controvérsias entre os cientistas sociais do século XIX e gerou intensos debates políticos Hacking 1991 Médico e matemático PierreCharles Alexandre Louis 178 7 1872 é considerado um dos fundadores da Epidemiologia Li lienfeld 1970 Louis também foi o precursor da avaliação da eficácia dos tratamentos clínicos utilizando os métodos da nas cente estatística Starobinski 1967 Louis foi inicialmente des prezado e depois fortemente agredido por ter demonstrado o caráter nocivo de tratamentos muito usados à época com provou por exemplo que a sangria praticada desde os tempos hipocráticos para reduzir a febre supostamente causada pelo excesso do elemento fogo no sangue não tinha efeitos terapêu ticos e pior resultava em aumento da mortalidade por febre tifoide Posto no ostracismo pela poderosa corporação médica francesa criou uma escola médica em sua própria casa atrain do mais alunos estrangeiros clandestinos na opinião dos do centes da Faculdade de Medicina do que compatriotas Lilien feld 1970 A pesquisa da origem das doenças com auxílio da matemá tica em muito influenciou o desenvolvimento dos primeiros estudos de morbidade na Inglaterra através de três discípulos de Louis por coincidência todos com o mesmo prenome William Farr William Budd e William Guy e nos EUA com Lemuel Shattuck Lilienfeld 1979 Caráter pioneiro nas esta Figura 212 Pierre Louis tísticas de saúde é atribuído a William Farr 18071883 Médi co Farr tornouse em 1839 diretorgeral do recémestabelecido General Register Office da Inglaterra e aí permaneceu por mais de 40 anos Seus Annual Reports nos quais os números de mor talidade se combinavam com vívidos relatos chamaram a aten ção para as desigualdades entre distritos sadios e não sadios do país Last 2001 Com o método numérico de Louis e a estatística médica de Farr alcançavase uma razoável integração entre a clínica e a estatística Contudo para que dessa combinação resultasse uma nova ciência da saúde de caráter essencialmente coletivo era necessário partir do princípio segundo o qual a saúde é uma questão social e política princípio este aliado a uma preocupa ção e a um compromisso com os processos de transformação da situação de saúde na sociedade Medicina social No final do século XVIII o poder político da burguesia emer gente consolidase pela cooptação do regime monárquico como na Inglaterra e na Alemanha ou pela ruptura revolucionária como na França e nos EUA As bases doutrinárias dos discursos políticos sobre a saúde emergem nessa época na Europa Oci dental em um processo histórico de disciplinamento dos corpos e constituição das intervenções sobre os sujeitos Por um lado a Higiene enquanto conjunto de normatizações e preceitos a serem seguidos e aplicados em âmbito individual produz um discurso sobre a boa saúde francamente circunscrito à esfera moral Por outro lado as propostas de uma Política ou Polícia Médica estabelecem a responsabilidade do Estado como defi nidor de políticas leis e regulamentos referentes à saúde no coletivo e como agente fiscalizador da sua aplicação social des ta forma remetendo os discursos e as práticas de saúde às ins tâncias jurídicopolíticas Nessa fase sucedemse diferentes tipos de intervenção es tatal sobre a questão da saúde das populações Rosen 1980 Na França com a Revolução de 1789 implantase uma medi cina urbana com a finalidade de sanear os espaços das cidades isolando áreas consideradas miasmáticas Foucault 1979 Na Alemanha em 1779 emergem propostas de uma política mé dica baseada em medidas compulsórias de controle e vigilân cia das enfermidades sob a responsabilidade do Estado jun tamente com a imposição de regras de higiene individual para o povo Naquele ano começava a ser publicado o System einer Vollstiindigen Medizinischen Polizei obra monumental com a qual Johann Peter Frank 17451821 lançava o conceito pa ternalista e autoritário de polícia médica ou sanitária Rosen 1980 No século seguinte registrase nos países europeus um pro cesso macrossocial da maior importância histórica a Revolução Industrial que produz um tremendo impacto sobre as condições de vida e de saúde das suas populações Com a organização das classes trabalhadoras e o aumento da sua participação política principalmente nos países que atingiram um maior desenvolvi mento das relações produtivas como Inglaterra França e Ale manha rapidamente incorporamse temas relativos à saúde na pauta das reivindicações dos movimentos sociais do período Surgem nesses países propostas de compreensão da crise sani tária como um processo fundamentalmente político que em seu conjunto recebeu a denominação de Medicina Social A Revolução Industrial fez emergir o fenômeno concreto do proletariado e o conceito de força de trabalho A brutal opressão da massa trabalhadora motivou lutas políticas orientadas por diferentes doutrinas sociais incluídas na denominação geral de socialismo utópico Entre 1830 e 1850 uma dessas correntes defendeu o conceito da política como medicina da sociedade e reciprocamente da medicina como prática política Iniciase então um movimento organizado para a politização da medi cina na França e na Alemanha As adesões a esse movimento e às práticas dele decorrentes resultam naquilo que veio a ser co nhecido como Medicina Social Rosen 1980 expressão pro posta em 1838 por Jules Guérin médico e jornalista francês Para Guérin e outros líderes a medicina deveria ser um instru mento de transformação social Um objetivo que tinha e tem razão de ser Em síntese postulavase nesse movimento que a medicina é política aplicada no campo da saúde individual e que a polí tica nada mais é que a aplicação da medicina no âmbito social curandose os males da sociedade A participação política é a principal estratégia de transformação da realidade de saúde na expectativa de que das revoluções populares deveria resultar democracia justiça e igualdade principais determinantes da saúde social Segundo demonstravam vários relatórios dos discípulos de Louis como Villermé na França e Edwin Chadwick na Inglater ra as duras condições de vida da classe trabalhadora resultavam na deterioração de seus níveis de saúde Em 1826 Louis René Villermé 17821863 médico publicou um relatório analisando a mortalidade nos diferentes bairros de Paris Tableau de l État Physique et Morale des Ouvriers concluindo que era condicio nada sobretudo pela renda Na Inglaterra berço da Revolução Industrial também surgiram estudos desse tipo ali se faziam sentir com mais força os efeitos sobre a saúde da urbanização da proletarização e da miséria Esta situação inspirou Friedrich Engels 1972 a escrever o célebre livro As Condições da Classe Trabalhadora na Inglaterra em 1844 que além de seu aspecto social e político foi uma contribuição importante para a formu lação da epidemiologia científica Breilh 1991 Em 1850 nos EUA Lemuel Shattuck livreiro escreveu um relato sobre as con dições sanitárias em Massachusetts e como consequência uma diretoria de saúde pública reunindo médicos e leigos foi pionei ramente criada naquele Estado norteamericano O século XIX foi uma época de sangrentas revoluções como as rebeliões urbanas de 1848 e a Comuna de Paris em 1871 Karl Marx já diagnosticava os males do capitalismo e propunha pro fundas modificações na sociedade Mesmo os que não concor davam com Marx constatavam que alguma coisa precisava ser feita para evitar um grau de deterioração social capaz de com prometer o próprio sistema e de por assim dizer matar a ga linha dos ovos de ouro Foi o que levou Otto von Bismarck o Epidemiologia Saúde 1 3 chanceler de ferro da Prússia a dizer aos latifundiários e ca pitalistas que reclamavam do sistema de seguridade social e de saúde sob muitos aspectos pioneiro por ele criado em 1883 Os senhores têm de ser salvos dos senhores mesmos As sombrias condições sociais foram muito bem retratadas pelos escritores do período que faziam uma literatura crua re alista objetiva Disso dão exemplo três grandes romancistas Victor Hugo Émile Zola Charles Dickens O romance de Victor Hugo 18021889 cobre um período de vinte anos a partir de 1815 O personagem principal de Os Miseráveis Hugo 2002 é Jean Valjean aprisionado por ter roubado pão para alimentar sua faminta família e depois libertado mas implacavelmente perseguido pelo inspetor de polícia Javert Há uma grande ga leria de personagens como Cosette adotada por Jean Valjean filha de uma operária que despedida do emprego se prostitui e morre e o estudante Marius que luta nas barricadas contra o governo francês Desta obra a frase mais conhecida talvez seja Quem rouba um pão é ladrão quem rouba um milhão é barão um protesto contra a desigualdade e a injustiça feito contudo por alguém que não tinha ideais socialistas Outra obraprima da literatura realista francesa foi o romance Germinal Zola 2000 que tem como cenário o norte da França ali mineiros entram em greve por melhores salários e melhores condições de vida uma situação que Zola conhecia bem para familiarizarse com o tema de seu livro ele trabalhou 2 meses como mineiro Charles Dickens 18121870 um dos mais famosos escri tores da era vitoriana era um homem de grande sensibilidade social explicável pelas penosas circunstâncias de sua infância tendo seu pai sido preso por dívidas o menino Charles então com 12 anos teve de trabalhar dez horas por dia como ferroviá rio Aos 22 anos enveredou pelo jornalismo carreira na qual teve enorme êxito graças à sua notável capacidade de empatia com a população Começou também a publicar ficção e de sua obra o segundo romance escrito em 1838 Oliver Twist 2007 dá uma boa amostra Nela o escritor retrata a sordidez e a hi pocrisia de seu tempo denunciando vários problemas sociais nestes incluída a Poor Law Lei dos Pobres segundo a qual os pobres deveriam trabalhar obrigatoriamente nas workhouses em regime semiprisional É o caso de Oliver Twist Filho de pai desconhecido e de uma mãe que morre logo após o parto Oli ver passa a infância em um orfanato onde é severamente mal tratado depois vai para uma workhouse da qual foge dirigin dose para Londres No caminho conhece John Dawkins The Artful Dodger um jovem delinquente que o apresenta a Fagin líder de uma quadrilha de garotos criminosos Acompanhaos e vêos surpreso roubar a carteira de um senhor É preso li bertado graças ao testemunho de um livreiro que vê a cena é recolhido pelo homem que foi vítima do roubo Sucedese uma série de aventuras que fascinavam o público tornando Dickens um escritor extremamente popular Oliver Twist até hoje é lido ir Figura 213 Charles Dickens e uma gravura de época 14 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia e recentemente transformado em um musical no palco e na tela fez grande sucesso Na Inglaterra para superar as terríveis condições sociais des sa fase histórica do capitalismo o movimento assistencialista promovia uma medicina dos pobres parcialmente sustentada pelo Estado Rosen 1994 Em uma perspectiva mais técnica teve início um longo trabalho de constituição oficial da saúde pública na GrãBretanha Dessa forma a partir de 1840 apare cem inquéritos estatísticos e relatórios oficiais técnicos os fa mosos Blue Books Em 1842 Edwin Chadwick 18001890 escreveu um relatório que depois se tornaria famoso As Con dições Sanitárias da População Trabalhadora da GrãBretanha Chadwick que não era médico nem sanitarista mas advogado tanto impressionou o Parlamento com o seu trabalho que este em 1848 promulgou uma lei de saúde pública Public Health Act criando a Diretoria Geral de Saúde encarregada princi palmente de propor medidas de saúde pública e de recrutar médicos sanitaristas Rosen 1994 Um lendário personagem da Medicina Social é Rudolf Lu dwig Karl Virchow 18211902 médico patologista antropó logo ativista da saúde pública e político Scliar 2002 De mo desta família de agricultores da Pomerânia Virchow queria estudar teologia mas achando que não se sairia bem como pregador no que como veremos talvez estivesse enganado mudou de ideia e graças a uma bolsa de estudos pôde cursar a escola de medicina da Academia Militar da Prússia em Ber lim o FriedrichWilhelms Institut que formava médicos para o exército prussiano A disciplina ali era dura mas isto não era problema para o dedicado jovem que se entregava com afmco a seus estudos seu objetivo como escreveu ao pai era adquirir um universal conhecimento da natureza Diplomado abandonou a carreira militar e foi trabalhar no Hospital Charité em Berlim Logo se tornou conhecido por suas posições políticas contestadoras Em 1847 aos 26 anos foi enviado pelo legislativo de Berlim para estudar um surto de tifo na Alta Silésia onde uma população de origem polonesa a mesma origem da família de Virchow vivia em deploráveis condições O relatório que escreveu a respeito é um documen to histórico uma candente denúncia do capitalismo A preven ção de epidemias não dependia apenas de remédios ou medidas higiênicas mas exigia uma ampla reforma das condições socio econômicas uma posição que o tornou um pioneiro da medi cina social coisa que resumiu em uma frase Os médicos são os naturais defensores dos pobres As recomendações de Vir chow incluíam a democratização da Silésia a separação entre Igreja e Estado o aumento da taxação para os ricos e diminui ção desta para os pobres construção de estradas estímulo à agricultura estabelecimento de cooperativas agrícolas Virchow foi criticado pelos aspectos políticos de seu documento e res pondeu com uma frase famosa A medicina é ciência social política não é mais que a medicina com visão alargadà Mais tarde acrescentaria Se a doença é uma expressão da vida indi vidual sob circunstâncias desfavoráveis a epidemia deve ser a expressão de problemas sociais Virchow não ficou só no pronunciamento 8 dias depois de seu regresso lá estava ele nas ruas de Berlim ajudando os re volucionários de 1848 a construir suas barricadas Depois da revolução abraçou a causa da reforma médica Editava um jor nal Die Medizinische Reform em grande parte escrito por ele próprio Resultado foi suspenso de seu cargo no Hospital Cha rité mas graças aos protestos de médicos e estudantes voltou É verdade que aí pesou certa dose de pragmatismo do próprio Virchow assinou uma declaração prometendo não expressar abertamente suas opiniões políticas Foi então para Würzburg em uma espécie de exílio interno onde trabalhou como anato mista e começou a formular suas ideias sobre patologia celular Em 1856 voltou para Berlim como professor de anatomia pa tológica área na qual desempenhou papel pioneiro Tornouse então diretor do recémcriado Instituto de Patologia Virchow era um verdadeiro dínamo um homem que desen volvia intensa e criativa atividade e em várias áreas Scliar 2002 Na medicina o seu trabalho desbravou caminhos Já aos 26 anos formulou um conceito revolucionário a doença seria não um fenômeno estranho ao corpo mas a vida em condições alteradas Foi o primeiro a reconhecer a leucemia como entida de mórbida Também estudou o fenômeno da trombose e a for mação de êmbolos termo por ele criado que depois obstruirão os vasos por exemplo no pulmão e no cérebro E foi o fundador da patologia celular Ajudou muito o fato de ser um entusiasta da microscopia na qual seus alunos eram obrigatoriamente ini ciados pois deveriam pensar microscopicamente Mas Virchow não se restringia ao laboratório é considerado um dos iniciadores da antropologia e da geografia médicas Trostle 1986 A teoria que mais o popularizou ficou sinteti zada no dito latino que no entanto não era de sua autoria e sim do francês FrançoisVincent Raspail Omnis cellula e cellu la toda célula provém de outra célula um golpe na ideia da geração espontânea segundo a qual vermes por exemplo po deriam ser gerados por carne em decomposição O princípio básico da patologia celular é de que nas células se originam as doenças Nada de humores nada de miasmas Virchow não estava imune a erros Opôsse às ideias de Sem melweis sobre a transmissão da febre puerperal para ele a con taminação do canal genital seria apenas um dos fatores causa dores da doença junto com condições atmosféricas distúrbios nervosos doenças infecciosas concomitantes problemas na lac tação Baseado nisto opôsse também à recomendação de Sem melweis quanto à lavagem das mãos como forma de prevenção da febre puerperal Na verdade seu posicionamento ainda era uma repercussão da polêmica epidemiológica básica durante o século XIX miasma versus contágio Essa controvérsia não compreendia apenas um problema científico teórico era um problema social e político de caráter eminentemente prático Contágio implicava quarentena limi tação de liberdade individual e de comércio eram pois anti contagionistas a classe burguesa em ascensão e os liberais Tam bém estavam entre os anticontagionistas reformadores sociais ingleses como Edwin Chadwick que buscavam explicações para o surgimento de doenças nas péssimas condições de vida Figura 214 Rudolf Vi rchow e trabalho da época Os contagionistas eram em geral mem bros da oficialidade do Exército e da Marinha A teoria infec ciosa veio trazer um considerável reforço aos contagionistas mas foi recebida com ceticismo Quando Pasteur atribuiu a fer mentação a microrganismos o famoso químico alemão Justus von Liebig comentou irônico Isto é o mesmo que dizer que a correnteza do Reno é causada pelo movimento das rodas dos moinhos Contudo os êxitos de Pasteur e de seus seguidores entre eles Oswaldo Cruz aparentemente não deixavam dúvidas sobre o acerto de suas teorias Pela primeira vez na história da medi cina identificavase com elevado grau de certeza a causa de doenças Mais que isso era possível produzir agentes imunizan tes capazes de evitálas Ao fim e ao cabo a polêmica parecia superada a enfermidade mesmo infecciosa resulta da conjun ção de vários fatores o agente bactéria vírus o meio ambien te a pessoa que contrai a doença Parecia decretado o fim da Medicina Social De fato o for midável avanço da fisiologia da patologia e da bacteriologia no século XIX devido principalmente a Bernard Virchow e Pas teur representou um inegável fortalecimento da medicina cien tífica inclusive e principalmente a medicina de caráter indivi dual curativo superando o enfoque coletivo higienista na abordagem da questão da saúde e seus determinantes Entretanto como veremos em seguida nem a bemsucedida cooptação dos movimentos médicosociais da Inglaterra e da França pelo Estado burguês impediu a difusão do conjunto clí nica científicamétodo numéricovisão sanitária nem a hege monia da chamada medicina científica representou obstáculo para o projeto científico da Epidemiologia Assim nos EUA vários exalunos de Pierre Louis alcançaram posições políticas e acadêmicas importantes e continuaram engajados no ensino da estatística médica como fomentadora de uma potencial re forma sanitária o que resultou na organização do National Pu blic Health Service Papel de destaque teve aí Oliver Wendell Holmes 18091894 professor de Medicina na Harvard con siderado o primeiro epidemiologista norteamericano Na Grã Bretanha e por causa da teoria microbiana a medicina social evoluiu para uma vertente supostamente apenas técnica fo mentando a organização de uma saúde pública estreitamente vinculada ao aparelho burocrático do Estado Scliar 2002 Já a medicina social germânica sobreviveu através de dois movimentos complementares Por um lado influenciada e apoiada por Virchow surgiu em Berlim uma escola de patologia geográfica e histórica liderada por August Hirsch 1817 1894 Considerado como o fundador da moderna geografia médica Hirsch foi também um precursor da epidemiologia ecológica antecipando as análises de tempolugar que atualmente reemer gem no campo epidemiológico Por outro lado merece destaque e será melhor detalhado adiante o trabalho de von Pettenkoffer à frente do Instituto de Higiene de Munique que conseguiu ar Figura 215 Oliver Wendell Holmes Epidemiologia Saúde 1 S ticular as ciências biológicas da saúde práticas de saúde públi ca oficial e movimentos de participação política orientada por ideias da Medicina Social John Snow e a síntese epidemiológica Os sanitaristas britânicos que não haviam participado das revoltas urbanas do período buscaram como saída a integração de preocupações filantrópicas e sociais com o conhecimento científico e tecnológico propondo transformações políticas pela via legislativa Tentavam à sua maneira institucionalizar uma nova ciência síntese da clínica médica da estatística e da me dicina social que viria a se tornar a Epidemiologia Assim em 1850 sob a presidência de Lord AshleyCooper e tendo Chadwick como vicepresidente organizouse na In glaterra a London Epidemiological Society fundada por jovens simpatizantes das ideias médicosociais juntamente com pro fissionais de saúde pública e membros da Real Sociedade Mé dica White 1991 Entre os membros daquela sociedade cien tífica pioneira encontravase Florence Nightingale 1820191 O que mais tarde seria considerada a fundadora da moderna en fermagem Williamson 1999 Os estudos pioneiros de Nightin gale sobre a mortalidade por infecção póscirúrgica nos hospi tais militares na Guerra da Crimeia confirmaram em escala maior os estudos clínicos de Semelweiss A ela atribuise a in trodução do gráfico setorial e o aperfeiçoamento dos estudos comparativos controlados originalmente concebidos por Louis Winkel Jr 2009 Entre os membros da London Epidemiological Society en contravase John Snow 18131858 por muitos considerado o pai fundador da Epidemiologia Cameron Jones 1983 Van denbroucke et al 1991 Sua vida relativamente curta mas in tensa foi marcada pelo pioneirismo Filho mais velho de um trabalhador de York tornouse aos 14 anos aprendiz de William Hardcastle um cirurgião de NewcastleonTyne a cirurgia não era então considerada exatamente medicina o título de Doctor só era usado pelos clínicos o cirurgião era Mister de modo que o aprendizado era feito pelo sistema mestrediscípulo Ocor reu então na Inglaterra 18311832 uma violenta epidemia de cólera doença que era muito comum e que se manifesta por vômitos e diarreia profusa e capaz de levar à morte por desi dratação A bactéria causadora o vibrião colérico Vi brio cho lerae ainda não tinha sido identificada a enfermidade era como outras atribuída a miasmas Eram tantos os casos que Hardcastle delegava ao jovem Snow o atendimento de muitos deles Foi a primeira experiência do futuro médico com a doen ça que o celebrizaria Snow depois estudou medicina em Londres graduouse em 1844 tornandose um licenciado pelo Royal College of Physi cians e começou a clinicar na capital britânica Tinha interesse pela anestesiologia e foi pioneiro no uso de éter e clorofórmio anestesiando inclusive a rainha Vitória em um de seus partos Solteirão de hábitos regulares vegetariano Snow restringia sua vida social às reuniões científicas da Royal Medical and Chi rurgical Society Em 1848 ocorreu novo surto de cólera desta vez em Lon dres já então uma megalópole de 25 milhões de habitantes A cidade de Edmund Burke Percy Shelley William Hogarth Char les Dickens dos cafés dos teatros dos museus das lojas era também uma cidade precaríssima do ponto de vista de higiene e saneamento Os dejetos se acumulavam por toda parte e eram jogados no Tâmisa cuja água era utilizada no abastecimento Completavase assim o ciclo oralfecal responsável pela trans 16 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia Figura 216 Florence Nightingale missão da doença Para enfrentar este desafio a medicina vito riana estava completamente desamparada e em grande parte dominada pela charlatanice De novo Snowviuse confrontado com o desafio o que causava aquela e outras doenças O mias ma era como vimos a resposta habitual mas havia outras ideias algumas datando da antiguidade Tucídides atribuía a epidemia de Atenas em 430 aC peste bubônica ao envenenamento dos reservatórios pelos inimigos da cidade No século I aC Marcus Terentius Varro amigo de Cícero falava em invisíveis animalí culos que entram no corpo pelo nariz e pela boca causando enfermidade mas essa não era uma ideia disseminada A noção de contágio era bastante difundida e explicava por exemplo o horror à hanseníase Uma nova teoria surgiu quando no século XVI a lista das doenças que atemorizavam a Europa sofreu um importante acréscimo sífilis O nome vem do poema publicado em 1530 pelo médico Girolamo Fracastoro 14781553 Syphilus sive Morbus Gallicus Sífilis ou a Doença Francesa Syphilus é o nome de um pastor que contrai a doença como castigo dos deuses Era chamada doença francesa porque segundo Fracastoro ti nha aparecido na Itália à época da ocupação francesa em Ná poles Para os franceses porém era a doença italiana como para os portugueses era a doença castelhana para os poloneses a doença alemã para os russos a doença polonesa No poema Fracastoro atribui a disseminação da sífilis às seminaria conta gium sementes do contágio pequenas entidades que passa vam de uma pessoa a outra pelo contato direto ou por meio das roupas ou pelo ar uma ideia formulada 130 anos antes que van Leeuwenhoek visse ao microscópio as pequenas cria turas que tanto o maravilharam Para Snow a teoria do miasma não podia explicar a epidemia de cólera já no surto de 1831 tinha anotado que mineiros tra balhando no interior da terra portanto longe de regiões panta nosas miasmáticas haviam adoecido Em agosto de 1849 du rante o segundo ano da epidemia publicou um panfleto 39 páginas intitulado On the Mode of Communication of Cholera Sobre a Maneira de Transmissão da Cólera Nele defendia a ideia de que a doença era transmitida pela água E citava o exem plo de duas fileiras de casas fronteiras em uma das quais os casos de cólera eram mais frequentes Por quê Porque dizia os moradores destas casas despejavam águas servidas em um valo que contaminava o poço do qual as mesmas pessoas obti nham a água para beber Mas e para não polemizar com os adeptos da teoria do miasma Snow não falava em germes e sim em um veneno que tinha a capacidade de se multiplicar no intestino O texto de Snow teve escassa repercussão Uma resenha no London Medical Journal setembro de 1849 cumprimentavao por seu empenho em tentar resolver o mistério da transmissão da cólera mas dizia que ele não tinha fornecido qualquer pro va do acerto de seu ponto de vistâ o que em um certo sentido era verdade faltava ainda comprovar a teoria com dados nu mer1cos Em 1854 a cólera chegou ao distrito londrino em que Snow trabalhava A distribuição da doença contudo era desigual ocorrendo mais em certos lugares Uma teoria divulgada pelo jornal Times era de que se tratava de solo impregnado com os restos mortais de pessoas enterradas durante a Grande Praga de 16651666 uma epidemia de peste bubônica não de cólera solo este que tendo sido remexido para uma construção emitia miasma envenenando a atmosfera Ou talvez se tratasse de más condições de higiene domiciliar No entanto inspetores do Board of Health órgão de saúde pública concluíram que as casas eram relativamente limpas Os casos eram mais frequentes entre pessoas que diante da inexistência de rede pública de abastecimento usavam a água fornecida pela empresa Southwark and Vauxhall Water Com pany colhida em um poço de Broad Street Duas mulheres que tinham tomado água desse poço estavam entre as primeiras vítimas da doença mas os operários de uma cervejaria dos ar redores que dispunha de abastecimento próprio de água não adoeceram E também em uma workhouse das redondezas e que tinha seu próprio poço só 5 dos 535 internos mesmo desnutridos e vivendo em más condições de higiene tinham morrido Snow visitou um café perto do poço de Broad Street cuja água era usada pelo dono no preparo de refeições nove fregueses tinham morrido de cólera e o mesmo acontecera com os sete empregados de uma loja de artigos dentários E ainda havia o trágico e curioso caso de Susannah Eley uma viúva re sidente em Hampstead a algumas milhas dali que por alguma razão fazia questão de beber a água do poço de Broad Street e que acabou adoecendo de cólera Sua sobrinha que visitandoa tomou a mesma água igualmente adoeceu e morreu Snow colheu uma amostra da água do poço e levoua ao microscopista Dr Arthur Hill Hassall que reportou um exces so de matéria orgânica na água acrescentando que tal não era inusitado Foi então que Snow decidiu reunir evidências esta tísticas sobre a doença Preparou um mapa mostrando onde as vítimas viviam e de quem recebiam a água Constatou então que na região abastecida pela Southwark and Vauxhall o nú mero de casos era cerca de 14 vezes maior do que em uma re gião abastecida por outra companhia Propôs ao conselho ad ministrativo da região remover o braço da bomba do poço de Broad Street o que foi feito e os casos de cólera começaram a diminuir Este episódio aliás é o tema de O Mapa Fantasma livro de Steven Johnson 2008 que conta esta história como se fosse uma narrativa de suspense Snow publicou a segunda edição de On the Mode of Com munication of Cholera acrescentando suas observações sobre os casos ligados ao uso da água de Broad Street Morreu em 1858 sem ver sua teoria reconhecida o miasma ainda era con siderado a causa da cólera Ironicamente e sem que Snow disso tivesse tomado conhecimento o germe causador da cólera tinha sido identificado em 1854 pelo anatomista italiano Fillipo Pacini ao examinar o intestino de pacientes falecidos da doen ça um achado que não teve repercussão Finalmente em 1884 Robert Koch redescobriu isolou e cultivou o Vibrio cholerae Figura 217 John Snow Mas com sua modelar investigação Snow antecipou os funda mentos da teoria microbiana antes mesmo de Pasteur Cameron Jones 1983 Pioneiro foi também o bávaro Max Josef von Pettenkofer 18181901 Depois de estudar farmácia e medicina em Mu nique von Pettenkofer encaminhouse para a química tornan dose discípulo de Justus von Liebig Criou um amálgama de cobre usado na obturação de dentes e isolou da urina a crea tinina substância que é resíduo do metabolismo proteico e é usada na avaliação da função renal Passou a interessarse pelo que então se chamava Higiene e que já era o embrião da saúde pública A pedido do rei da Baviera Max li muito preocupado com a qualidade do ar em seu palácio estudou a questão da ventilação domiciliar Também pesquisou a relação entre vestuá rio e saúde Até então higiene era basicamente uma coleção de opiniões avulsas e em geral incorretas sobre vários assuntos Pettenkofer estabeleceu métodos conceitos e teorias que ajudaram a trans formar esta área em uma ciência e atraíram a admiração do rei Ludwig II Scliar 2002 Foi nomeado catedrático de Higiene na Universidade de Munique e em 1872 fundou naquela cidade o Instituto de Higiene que tinha como projeto uma síntese en tre as disciplinas biológicas da saúde pública patologia e bac teriologia e uma ação política inspirada na medicina social Foi dos primeiros a fazer cálculos do tipo custobenefício em saú de quantificando o número de dias perdidos por doença e es tabelecendo metas de redução Durante sua gestão o saneamen to básico da cidade melhorou muito Finalmente dedicouse a estudar o que fez por 40 anos a cóleraE aí seu raciocínio revelouse equivocado Embora mui tos de seus estudos fossem modelares em termos de investiga ção epidemiológica ele acreditava que a fermentação de maté ria orgânica no subsolo liberava no ar os germes da cólera que então infectavam as pessoas mais suscetíveis Era pois uma variação da teoria do miasma conhecida como teoria telúricà outras teorias da época atribuíam a doença à eletricidade do ar ou ao ozônio Mas como se explicaria então os casos de cólera ocorrendo em navios onde não havia solo Pettenkofer envolviase nestas polêmicas com teimosa persistência Nem mesmo a descoberta da bactéria causadora da cólera por Robert Koch fêlo mudar de ideia O vibrião era um fator mas não causaria a doença sem o fator telúrico isto é sem o solo Tama nha era sua confiança nesta ideia que já com 7 4 anos obteve Epidemiologia Saúde 1 7 Figura 218 Max Von Pettenkoffer uma cultura desta bactéria com o grande pesquisador Robert Koch e engoliua vários de seus estudantes imitaram o mestre fazendo a mesma coisa Teve uma leve diarreia e o Vibrio cho lerae apareceu em suas fezes mas sem maiores consequências o que para ele e seus seguidores era prova de que a bactéria não era suficiente para causar doença Entre parênteses não era a primeira vez que Pettenkofer submetiase a uma autoexperimentação ao estudar os efeitos farmacológicos de uma planta sulamericana Mikania guaco ele ingeriua constatando que seu pulso se acelerava que teve vômitos e sudorese profusa Seu lado anticontagionistà tinha um aspecto positivo a crítica ao monocausalismo microbiano e a defesa da integração bioecológica em saúde Foi portanto precursor de conceitos como os de cidade saudável e de pro moção da saúde pioneiro da economia da saúde e da ciência da nutrição Ayres 1997 131143 considerao e não a Snow ou Louis o criador da matriz conceitua da epidemiologia mo derna Em suma principalmente na Inglaterra Alemanha e EUA a resposta à problemática política da saúde resultou estreita mente integrada à ação do Estado constituindo um movimen to conhecido como sanitarismo Em sua maioria funcionários de agências oficiais de controle de doenças os sanitaristas pro duziram um discurso e uma prática sobre as questões da saúde fundamentalmente baseados em aplicação de tecnologia e em princípios de organização racional para atividades proftláticas saneamento imunização e controle de vetores destinadas prin cipalmente aos pobres e setores excluídos da população O advento do paradigma microbiano nas ciências básicas da saúde representou um grande reforço ao movimento sanitaris ta que em processo de hegemonização e já então batizado de Saúde Pública praticamente redefiniu as diretrizes da teoria e prática no campo social da saúde no mundo ocidental Este foi o contexto em cujo seio aninhouse a Epidemiologia nos seus passos iniciais de constituição como campo científico Consolidação da Epidemiologia A e como c1enc1a Apesar do insuspeitado desenvolvimento paralelo da Medi cina Social a sua rival medicina científicà consolidava no fi nal do século passado uma duradoura hegemonia como subs trato conceitua da saúde Este processo teve como clímax o 18 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia Figura 219 Abraham Flexner famoso relatório Medical Education in the United States and Canada coordenado por Abraham Flexner 18661959 e pu blicado em 1910 Tomey 2002 No Brasil por muitos anos considerouse que o relatório Flexner preconizava um enfoque reducionista para o ensino médico sacramentando o âmbito subindividual e individual e fomentando a fragmentação do cuidado médico Tomando por base o conhecimento experi mental de base laboratorial o modelo flexneriano reforçaria a separação entre individual e coletivo privado e público bioló gico e social curativo e preventivo Recentemente essa formu lação foi denunciada como mito e o caráter inovador de Flexner e da reforma da educação superior por ele promovida foi reco nhecido Almeida Filho 2010 Inspirada nos princípios do relatório Flexner uma escola de saúde pública pioneira foi inaugurada em 1918 na Universidade Johns Hopkins em Baltimore EUA tendo como primeiro di retor William Welch 18501934 exaluno de von Pettenkoffer Fee 1987 A convite de Welch Wade Hampton Frost 1880 1938 sanitarista do National Public Health Service especiali zado em doenças respiratórias assumiu a nova cátedra de Epi demiologia tornandose o primeiro professor desta disciplina em todo o mundo Daniel 2004 Como investigador seus tra balhos utilizavam novas técnicas estatísticas para o estudo das variações na incidência e prevalência de enfermidades transmis síveis como a tuberculose pulmonar com a intenção de avaliar seus determinantes genéticos e sociais Lilienfeld 1983 O modelo escola de saúde públicâ foi então difundido por todo o mundo com apoio integral da recémnascida Fundação Rockefeller White 1991 Figura 220 Wade Frost Figura 221 Gravura de Tempos Modernos A London School of Hygiene and Tropical Medicine surgiu pela fusão da antiga Escola de Medicina Tropical com o Depar tamento de Higiene do University College Major Greenwood 18801949 discípulo de Karl Pearson fundador da estatística moderna foi o primeiro professor da Epidemiologia e Estatís tica Vital na nova escola Principal responsável pela introdução do raciocínio estatístico na pesquisa epidemiológica além de desenvolver uma importante produção teórica e histórica Gre enwood rejeitava o caráter fundamentalmente descritivo do que na época se chamava de epidemiologia experimental Gre enwood 1932 A crise econômica mundial de 1929 precipitou uma crise social intensa que abalou os pilares da medicina científica na década seguinte O clássico Tempos Modernos obraprima de Charles Chaplin concluído em 1935 satiriza de modo magistral e sensível a grave crise social desencadeada nos EUA após a quebra da Bolsa de Nova York de 1929 O avanço tecnológico e a tendência à especialização do cui dado em saúde produziam elevação de custos e elitização da prática médica provocando uma redução de seu alcance social Isto ocorreu justamente quando o sistema político do capitalis mo mais necessitava da assistência à saúde como mecanismo de controle social Donnangelo 1976 Neste cenário redesco briuse o caráter social e cultural das doenças e da medicina assim como suas articulações com a estrutura e a superestru tura da sociedade Buscavase então a consolidação de um dis curso sobre o social capaz de dar conta dos processos culturais econômicos e políticos que pareciam levantar resistências à competência técnica da medicina Arouca 2003 O retorno do social se fez pelo recurso à Epidemiologia su postamente despojada da politização assumida pelo movimen to da medicina social Realmente o desenvolvimento da disci plina se havia dado de modo cada vez mais integrado ao padrão positivista das ciências naturais refletido no modelo da biolo gia À fisiologia humana que se aplica aos processos normais do organismo contrapunhase a demografia vinculada aos pro cessos normais da sociedade qual verdadeira fisiologia social À fisiopatologia que se ocupa dos processos patológicos do organismo correspondia uma epidemiologia tomada como pa tologia social Davis 1980 As investigações de Joseph Goldberger 18741929 sobre a pelagra desde 1915 haviam estabelecido a natureza carencial dessa doença Encarregado pelo governo americano de estudar esta doença endêmica do sul dos EUA Goldberger mostrou que não se tratava de uma infecção como então se pensava mas sim Figura 222 Joseph Goldberger de um problema alimentar eram pessoas que se alimentavam quase exclusivamente de milho e de derivados do milho o que gerava déficit de nutrientes especialmente de vitamina B Ou seja a Epidemiologia ampliava seu campo indo além das doen ças infectocontagiosas Apesar disso o primeiro aporte sistemá tico ao conhecimento epidemiológico o livro The Principies of Epidemiology Stallybrass 1931 escrito no final dos anos 1920 ainda se referia exclusivamente às enfermidades infecciosas A Epidemiologia buscava nessa época retomar a tradição médicosocial de privilegiar o coletivo ou seja resgatar Higeia visto como algo mais do que um conjunto de indivíduos ao tem po em que ampliava seu objeto de intervenção para além das enfermidades transmissíveis superando a medicina científica pasteuriana Entretanto tal movimento provocou no seu próprio seio um profundo impasse conceitua e metodológico posto que como sabemos a nova ciência epidemiológica havia sido gestada de dentro do paradigma de uma medicina experimental A saída para tal impasse foi inicialmente técnica Afortuna damente para seus fundadores já se produzia um avanço inde pendente da estatística que reapresentava a velha novidade da teoria das probabilidades propiciando a formalização do objeto privilegiado da Epidemiologia o conceito de risco Em outra vertente buscavase também uma saída conceitua para o impasse da ideologia dominante na medicina Foi justamen te um clínico britânico John Ryle 18891950 que renunciara à cátedra médica em Cambridge para se tornar o primeiro Di retor do Instituto de Medicina Social da Universidade de Oxford quem atualizou e sistematizou em 1936 o modelo de história natural das doenças Ryle 1948 No segundo quartil do século XX como consequência de processos externos e internos ao campo da saúde assinalados acima articulavamse nos EUA propostas de implantação de um sistema nacional de saúde Arouca 2003 Pela ação direta do poderoso lobby das corporações médicas daquele país no lugar de uma reforma setorial da saúde nos moldes da maioria dos países europeus foram propostas mudanças no ensino mé dico incorporando uma vaga ênfase na prevenção O ponto de partida para uma ampla reforma dos currículos no sentido de inculcar uma atitude preventiva nos futuros médicos focali zando o ensino da Epidemiologia como essencial ocorreu em 1952 quando se realizou em Colorado Springs uma reunião de representantes das principais escolas médicas dos EUA e Ca nadá No nível da estrutura organizacional propunhase a aber tura de departamentos de medicina preventiva substituindo as tradicionais cátedras de higiene capazes de atuar como elemen Epidemiologia Saúde 19 tos de difusão dos conteúdos de epidemiologia administração de saúde e ciências da conduta até então restritos às escolas de saúde pública Silva 1973 Leavell Clark 1976 Nesta proposta o conceito de saúde era representado por metáforas gradualistas do processo saúdeenfermidade que justificavam conceitualmente intervenções prévias à ocorrência concreta de sinais e sintomas em uma fase préclínica A própria noção de prevenção foi radicalmente redefinida por meio de ousada manobra semântica ampliação de sentido pela adjeti vação da prevenção como primária secundária e terciária que terminou por incorporar a totalidade da prática médica ao novo campo discursivo O sucesso desse movimento no seu país de origem é inegável os EUA constituem a única nação industria lizada que até hoje não dispõe de um sistema de assistência à saúde com algum grau de socialização Com entusiasmo compreensível organismos internacionais do campo da saúde aderiram de imediato à nova doutrina or questrando uma internacionalização da Medicina Preventiva já francamente como movimento ideológico Na Europa reali zaramse congressos no modelo Colorado Springs em Nancy França no mesmo ano de 1952 e em Gotemburgo Suécia no ano seguinte patrocinados pela OMS na América Latina sob o patrocínio da OPS foram organizadas os Seminários de Vifta del Mar Chile em 1955 e de Tehuacán México em 1956 Na Europa ocidental onde o pósguerra propiciou o estabele cimento do chamado estado de bemestar social welfare sta te a assistência à saúde integrouse mais claramente às políti cas sociais prescindindo de formulações mais visivelmente ideológicas para a consolidação do discurso do social na me dicina Paim Almeida Filho 2000 Nesses países falavase ensinavase e se praticava uma versão da medicina social atu alizada pela socialdemocracia Na América Latina apesar das expectativas e investimentos de organismos e fundações inter nacionais o único efeito deste movimento parece ser a implan tação de departamentos acadêmicos de medicina preventiva em países que já na década de 1960 passavam por processos de reforma universitária Em ambos os casos a epidemiologia impunhase aos pro gramas de ensino médico e de saúde pública como um dos se tores da investigação médicosocial mais dinâmicos e frutíferos Esta fase que coincidiu com um pósguerra associado à inten sa expansão do sistema econômico capitalista caracterizouse pela realização de grandes inquéritos epidemiológicos princi palmente a respeito de enfermidades não infecciosas Susser 1987 que se haviam revelado como importantes problemas de saúde pública durante o esforço de guerra Depois da importante contribuição da sociologia médica parsoniana as ciências sociais aplicadas à saúde experimenta vam um esgotamento As disciplinas de administração em saúde passavam por uma crise de identidade questionadas pelo avan ço do estudo das instituições e pelo crescimento do nascente movimento do planejamento social Consolidavase aí uma cla ra hegemonia do conhecimento epidemiológico em relação às outras disciplinas da medicina preventiva Teixeira 2001 O processo de institucionalização da disciplina culminou com a fundação da International Epidemiological Association em 1954 IEA 1984 e com a transformação do tradicional Ame rican f ournal of Hygiene em American fournal of Epidemiology em 1964 Ayres 1997 Na década de 1950 programas de investigação e departamen tos de epidemiologia começaram a desenvolver novos desenhos de investigação como os estudos de coorte inaugurados a partir do famoso experimento de Framingham Susser 1987 É tam bém a época dos primeiros ensaios clínicos controlados cuja 20 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia Figura 223 Sir Bradford Hill formalização metodológica é atribuída a Sir Austin Bradford Hill 18971991 sucessor da cátedra de Major Greenwood White 1991 No plano teórico novos modelos explicativos foram propos tos para dar conta dos impasses gerados pela teoria monocau salista da enfermidade reforçando o paradigma da história natural das doenças Emergiu nessa época uma forte tendência ecológica na epidemiologia com uma versão ocidental da epi demiologia do meio ambienté OPAS 1976 contraposta a uma versão soviética a epidemiologia da paisagem Pavlovsky 1963 A partir daí estabeleceramse as regras básicas da análise epidemiológica sobretudo pela fixação dos indicadores típicos da área incidência e prevalência e pela delimitação do con ceito de risco Ayres 1997 fundamental para a adoção da bio estatística como instrumental analítico de escolha Estabelecem se os principais desenhos de estudos observacionais destacandose os estudos de coorte MacMahon Pugh 1960 e os desenhos de casocontrole Cole 1979 formatos típicos do campo metodológico da Epidemiologia Nesta fase devemos destacar a contribuição de Jerome Cornfield 19121979 ao desenvolvimento de formas de estimar o risco relativo além de introduzir técnicas de regressão logística na análise epidemio lógica Last 2001 Também ocorre neste período um intenso desenvolvimento de técnicas de identificação de casos em pra ticamente todos os setores da medicina adequadas à aplicação em grandes amostras e a descrição dos principais tipos de bias na investigação epidemiológica Sackett 1979 Atualidade da Epidemiologia Os célebres anos 1960 marcaram em todo o mundo uma conjuntura de intensa mobilização popular e intelectual em torno de importantes questões sociais como os direitos huma nos a guerra do Vietnã a pobreza urbana e o racismo A partir dos EUA diversos modelos de intervenção social foram testa dos e institucionalizados sob a forma de movimentos organi zados no âmbito local das comunidades urbanas destinados principalmente à ampliação da ação social nos setores de habi tação educação e saúde particularmente saúde mental redu zindo tensões sociais nos guetos das principais metrópoles norteamericanas No campo da saúde organizouse então o movimento da Medicina Comunitária baseado na implantação de centros co munitários de saúde em geral administrados por organizações sociais porém subsidiados pelos governos destinados a efetuar ações preventivas e prestar cuidados básicos de saúde à popu lação residente em áreas geograficamente delimitadas Paim Almeida Filho 2000 A proposta da Medicina Comunitária inegavelmente recupe ra parte importante do arsenal discursivo da Medicina Preven tiva particularmente a ênfase na Epidemiologia e nas então denominadas ciências da condutâ sociologia antropologia e psicologia aplicadas a problemas de saúde Nesse caso entre tanto o conhecimento de dados epidemiológicos e processos socioculturais e psicossociais destinavase não a facilitar ages tão institucional em saúde ou a relação médicopaciente como no movimento precedente mas sim possibilitar a integração das equipes de saúde em comunidades problemáticas por meio da identificação e cooptação dos agentes e forças sociais locais para os programas de educação em saúde Em um certo sentido o movimento da Medicina Comunitária conseguiu colocar em prática alguns dos princípios preventivistas Teixeira 2000 evidentemente focalizando setores sociais minoritários e dei xando mais uma vez intocado o mandato social da assistência médica convencional Nessa década além dos Beatles Cuba Woodstock Vietnã e Maio de 68 houve uma verdadeira revolução na Epidemiologia com a introdução da computação eletrônica Nesse período a investigação epidemiológica experimentou a mais profunda transformação de sua curta história tendo como resultado uma forte matematização da área A ampliação real dos bancos de dados fomentou um grau de eficiência precisão e especificida de de técnicas analíticas inimaginável na era da análise mecâ nica de dados As análises multivariadas trouxeram uma pers pectiva de solução ao problema das variáveis de confundimento intrínseco aos desenhos observacionais que praticamente determinam a especificidade da epidemiologia em relação às demais ciências básicas da área médica Com tantos avanços metodológicos o debate epistemológi co sobre a científicidade da disciplina foi virtualmente reprimi do durante a década seguinte A ideia de que se trata de um ramo da ecologia humana Leriche 1972 ou de que a epide miologia se constitui em segmento de uma ciência mais geral Stallones 1971 ou ainda de que constitui essencialmente uma disciplina empírica sem maiores demandas teóricas Feinstein 1988 resultou na crença de que a epidemiologia não seria uma ciência De todo modo a epidemiologia dos anos 1970 não com preendia somente aperfeiçoamento de tecnologia para trata mento e análise de dados Havia por outro lado também um forte movimento de siste matização do conhecimento epidemiológico produzido exem plificado pela obra de John Cassel 19151978 líder da escola de epidemiologia social de Chapel Hill Ibrahim et al 1980 Tros tle 1986 A contribuição conceitua casseliana foi construída no sentido da integração dos modelos biológicos neuroendócrinos e socioantropológicos em uma teoria compreensiva da doença Cassel 1974 unificada pelo toqué da epidemiologia A tendência à matematização da Epidemiologia recebeu um considerável reforço nas décadas seguintes com propostas de modelos matemáticos de distribuição de inúmeras patologias Frauenthal 1980 Miettinen 1985 Ayres 1997 considera que na fase de constituição da Epidemiologia antes da Segunda Guerra Mundial a matemática havia experimentado uma fun ção estruturante passando posteriormente a uma função va lidante com a investigação científica dos riscos seus fatores e seus efeitos Em qualquer caso para a Epidemiologia a mate mática serviu ideologicamente como poderoso mito de razão Figura 224 John Cassei epidemiologista social indispensável para a confrontação com a experiência clínica ou com a demonstração experimental pressupostos fundamentais da pesquisa médica naquela época O campo epidemiológico encontrava assim uma identidade provisória justificando a con solidação de sua autonomia enquanto disciplina A epidemiologia da década de 1980 caracterizase por duas tendências Primeiro consolidase a proposta de uma epide miologia clínica Feinstein 1983 Sackett Haynes Tugwell 1985 como projeto de uso pragmático da metodologia epide miológica fora dos contextos coletivos mais ampliados A con sequência principal dessa variante da epidemiologia parece ser uma maior ênfase metodológica nos procedimentos de identi ficação de caso e na avaliação da eficácia terapêutica confor mando o que recentemente se tem chamado de medicina basea da em evidências Sackett et al 1996 Em segundo lugar durante a década de 1980 abordagens mais críticas da epide miologia emergem na Europa e na América Latina como reação à tendência à biologização da saúde pública reafirmando a historicidade dos processos saúdeenfermidadeatenção e a raiz econômica e política de seus determinantes Goldberg 1982 Laurell Noriega 1989 Breilh Granda 1985 Breilh 1991 Ao mesmo tempo novos desafios se colocavam sob a forma de doenças antigas que ressurgiam e de novas patologias que ganharam o nome de doenças emergentes Há que considerar nessa época principalmente o efeito devastador e ao mesmo tempo redentor da pandemia de síndrome de imunodeficiência adquirida SIDA ou AIDS a mais conhecida das doenças emer gentesAdmitese que a doença foi primeiro relatada em 1981 resultante da ocorrência inusitada de casos de pneumonia e do raro sarcoma de Kaposi O vírus causador foi identificado em 1983A doença hoje é uma pandemia atingindo mais de 30 mi lhões de pessoas principalmente na África Subsaariana É uma doença grave e estigmatizante mas exatamente por isso obri gou pessoas e organizações a reexaminarem suas atitudes não raro preconceituosas Como muitas vezes aconteceu na história da humanidade disso resultou um processo de amadurecimen to pessoal e coletivo Os dramas associados à pandemia de AIDS foram retratados em ftlmes em livros em peças teatrais Exemplo é o docudrama de tevêAnd the Band Played On 1993 dirigido por Roger Spot tiswoode e com um elenco famoso Matthew Modine no papel do Dr Don Francis Alan Alda como o Dr Robert Gallo e ainda Lily Tomlin Steve Martin Richard Gere Anjelica Huston o Epidemiologia Saúde 21 ftlme conta a história do epidemiologista Don Francis na sua luta para descobrir a causa da doença Já Angels in America dirigido por Mike Nichols foi adaptado da peça de mesmo nome escrita por Tony Kushner Mas o ftlme mais famoso sobre AIDS talvez seja Philadelphia dirigido por Jonathan Demme e no qual Den zel Washington faz o papel de um advogado homofóbico defen dendo um colega homossexual Tom Hanks despedido de uma frrma de advocacia por ter contraído a doença O cast inclui Jason Robards Joanne Woodward e Antonio Banderas No Brasil recebeu muito destaque o filme Carandiru extraí do do livro de mesmo nome de Drauzio Varela baseado na experiência de um médico que voluntariamente se dispõe a rea lizar um trabalho de prevenção da AIDS no maior presídio da América Latina De novo temos um elenco famoso Rodrigo Santoro Floriano Peixoto Milton Gonçalves Robson Nunes Lázaro Ramos Gero Camilo Luiz Carlos Vasconcelos Ricardo Blat Wagner Moura E registramos também uma peça de teatro Zona Contaminada de Caio Fernando Abreu que foi vitimado pela doença Falanos sobre uma terrível peste que contamina a humanidade inteira O caráter metafórico da obra é mais que evidente A epidemiologia dos anos 1990 buscava com empenho abor dagens de síntese ou integração fomentando novas tendências desde uma epidemiologia molecular Hulka Wilcosky Gri ffith 1990 Schulte Perera 1993 para uma crítica ver Loomis Wing 1991 Castiel 1994 até uma etnoepidemiologia Al meidaFilho 1992 Massé 1995 No plano metodológico ob servouse renovado interesse pelo desenho e aperfeiçoamento dos estudos agregados ditos ecológicos reavaliandose as suas bases epistemológicas e metodológicas Susser 1994 Schwarz 1994 Castellanos 1998 como etapa inicial de um processo de exploração de novas técnicas analíticas Morgens tern 1998 Ademais o processo de alargamento de horizontes da disciplina se deu mediante a ampliação do seu objeto de co nhecimento com a abertura de novos territórios de pesquisa e de prática como por exemplo a farmacoepidemiologia Lapor te Tognoni Rozenfeld 1989 a epidemiologia genética Khoury 1998 e a epidemiologia de serviços de saúde Cas tellanos 1993 Barreto et al 1998 Epílogo Na primeira década do século XXI constatamos que a pes quisa e a prática epidemiológicas mantêm o foco sobre doenças não transmissíveis Gripe pneumonia tuberculose e gastrente rite foram outrora as principais causas de óbito no mundo in teiro Hoje o lugar de destaque é ocupado por doenças do cora ção câncer doenças cerebrovasculares acidentes e violência Nas sociedades pósindustriais principal matriz da ciência epide miológica doenças crônicas não infecciosas constituem foco de interesse devido ao prejuízo social trazido pela invalidez parcial ou total dos acometidos e pelo número potencial de anos de vida produtiva perdidos Não obstante mesmo nesses países pande mias como AIDS gripe aviária e influenza tipo A epidemias de doenças emergentes como hantavírus e febre do Nilo doenças reemergentes como dengue e tuberculose ameaças de bioterro rismo como antraz e varíola têm recentemente provocado maior interesse pela epidemiologia de doenças transmissíveis Em vários trabalhos recentes encontramos reflexões sobre o futuro da Epidemiologia Wing 1994 Susser Susser 1999 e propostas de sua desconstrução como campo científico Al meida Filho 2000 enfocando obstáculos e limites Davey Smith 2001 novos usos Szklo 2001 e perspectivas teórico 22 Capítulo 2 1 Raízes Históricas da Epidemiologia metodológicas Krieger 2000 2001 Breilh 2003 Como tendências atuais esses autores constatam a superação da mul ticausalidade por modelos de determinação multinível criticam padrões metodológicos rígidos como o delineamento experi mental preconizam maior intercâmbio com campos discipli nares correlatos principalmente biologia e ciências sociais propõem modelos teóricos ecossistêmicos antecipam conexões mais estreitas com políticas de saúde e defendem mais militân cia e responsabilidade social Nossa posição é em geral simpá tica a tal conjunto de proposições porém acreditamos que pou co se avançará nessa direção caso se mantenha e se reforce a epidemiologia da doença e dos riscos ainda vigente A evolução desta agenda de pesquisa demonstra com clare za que a Epidemiologia continua vinculada a modelos de doen ça Portanto no momento atual o problema de uma teoria ge ral de saúdeenfermidade impõese como a questão mais fundamental da ciência epidemiológica É um grande desafio que precisa ser superado para que a Epidemiologia à altura do papel não raro heroico desempenhado pelos pioneiros do pas sado possa prosseguir em sua trajetória como disciplina cien tífica autônoma dinâmica e cada vez mais socialmente rele vante Referências bibliográficas Almeida Filho N Hacia una etnoepidemiología esbozo de un nuevo paradigma epidemiológico Revista de laEscuela de Salud Pública Córdoba 111133 40 1992 Almeida Filho N Uma breve história da epidemiologia ln Rouquayrol MZ Almeida Filho N Epidemiologia saúde 6ª ed Rio de Janeiro MEDSI 2003 Almeida Filho N Reconhecer Flexner Inquérito sobre produção de mitos na educação médica no Brasil contemporâneo Cadernos de Saúde Pública 261222342250 2010 Arouca AS O dilema preventivista contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva Rio de JaneiroSão Paulo Editora FiocruzEditora UNESP 2003 Ayres JR Sobre o risco para compreender a epidemiologia São Paulo Huci tec 1997 Barreto MAlmeida Filho N Veras R Barata R orgs Epidemiologia serviços e tecnologias em saúde Rio de Janeiro Editora FiocruzAbrasco 1998 Behmakhlouf A Averróis São Paulo Estação Liberdade 2006 Bernard C Introdução à medicina experimental Lisboa Guimarães Editores 1972 1865 Breilh J Granda E Os novos rumos da epidemiologia ln Nunes E org As ciências sociais em saúde na América Latina Tendências e perspectivas Bra sília OPAS 1985 p 241253 Breilh J Epidemiologia economia política e saúde São Paulo Hucitec 1991 Cameron D Jones C John Snow the broad pump and modern epidemiology International Journal of Epidemiology 12393396 1983 Cassel J Psychosocial processes and stress theoretical formulation International Journal of Health Services 43471482 1974 Castellanos PL A epidemiologia e a organização dos serviços de saúde ln Rouquayrol MZ Epidemiologia saúde Rio de Janeiro Medsi 1993 p 477 483 Castellanos PL O ecológico na epidemiologia ln Almeida Filho N Barre to M Veras R Barata R orgs Teoria epidemiológica hoje fundamen tos interfaces e tendências Rio de Janeiro Editora Fiocruz Abrasco 1998 p 129148 Castiel LD O buraco e o avestruz a singularidade do adoecer humano Cam pinas Papirus 1994 Clavreul J A ordem médica São Paulo Brasiliense 1983 Cole P The evolving casecontrol study Journal of Chronic Diseases 32 1527 1979 Daniel TM Wade Hampton Frost pioneer epidemiologist 18801938 Rochester University of Rochester Press 2004 Davis N Sociological constructions of deviance Iowa C Brown 1980 Dickens C Oliver Twist São Paulo Companhia das Letrinhas 2007 Donnangelo MCF Saúde e sociedade São Paulo Duas Cidades 1976 Dutra LHA A epistemologia de Claude Bernard Campinas CLEUnicamp 2001 Engels F The origin of the family private property and the state Nova York In ternational Publishers 1972 Fee E Disease and 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antropologia geografia demografia etc CAPÍTULO 1 Uma Breve História da Epidemiologia Naomar de Almeida Filho Neste capítulo pretendo contar uma pequena história da Epidemiologia focalizando a sua estruturação enquanto campo científico Para isso vou falar primeiro dos seus primórdios e antepassados repassando rapidamente alguns dos principais elementos precursores da sua constituição no seio da cultura ocidental Em seguida apresento uma breve exposição das circunstâncias que cercaram a emergência dos seus três eixos fundamentais a Clínica a Estatística e a Medicina Social Depois pretendo comentar sobre a sua evolução como disciplina científica já no início deste século e sobre a sua consolidação como eixo fundamental do campo da Saúde chegando ao momento atual de afirmação como ciência privilegiada da informação em saúde PRIMÓRDIOS A tensão essencial entre a medicina individual e a medicina coletiva desde os primórdios do pensamento ocidental na Grécia Antiga refletia um antagonismo ancestral entre as duas filhas do deus Asclépios Panacéia e Higéia Panacéia era a padroeira da medicina curativa prática terapêutica baseada em intervenções sobre indivíduos doentes através de manobras físicas encantamentos preces e uso de pharmakon medicamentos ainda hoje se fala da panacéia universal para designar um poder excepcionalmente curativo Sua irmã Higéia era adorada por aqueles que consideravam a saúde como resultante da harmonia dos homens e dos ambientes e buscavam promovêla por meio de ações preventivas mantenedoras do perfeito equilíbrio entre os elementos fundamentais terra fogo ar água Da sobrevivência dessas crenças e práticas através dos tempos derivam os conceitos de higiene e higiênico sempre no sentido de promoção da saúde principalmente no âmbito coletivo Muitos autores acreditam que a Epidemiologia nasceu com Hipócrates De fato a estrutura e conteúdo dos textos hipocráticos sobre as epidemias e sobre a distribuição de enfermidades nos ambientes por sua clara adesão à tradição higiênica sem dúvida antecipam o chamado raciocínio epidemiológico como o reconhece a maioria dos textos que fundam o campo da Epidemiologia desde MacMahon Pugh e Ipsen 1960 até Lilienfeld 1970 Não obstante os herdeiros de Hipócrates trataram de reprimir o espírito da primazia do coletivo e estabeleceram o individualismo na Ilha de Cós Dessa forma buscavam garantir a hegemonia de sua prática frente às inúmeras seitas que na Antiguidade prometiam a saúde para os homens Clavreul 1983 Nesse sentido a protoepidemiologia morreu com os filhos de Hipócrates que revelaram um eficiente senso mercadológico e rapidamente se adaptaram aos tempos póshelênicos através de um conveniente resgate de Panacéia a zelosa deusa da cura individual como referência para sua prática Os primeiros médicos ecléticos de Roma em geral escravos gregos de grande valor monetário quase tão caros quanto os gladiadores e eunucos segundo o renomado historiador da medicina Henry Sigerist 1941 trabalhavam para a corte o exército ou com uma certa exclusividade para as famílias nobres Sigerist nos conta ainda que com o passar do tempo escravos libertos e estrangeiros imigrados dominavam o mercado de trabalho médico em uma Roma que se cristianizava criando uma prática privada onde a competição era feroz e sem escrúpulos Modelos médicos de Galeno 201130 aC se espalhavam antes de tudo receitadores de muitos fármacos para poucos enfermos LaínEntralgo 1978 De interessante para qualquer estudo das raízes da Epidemiologia a era romana aparentemente contribuiu somente com a realização de censos periódicos um deles levou o carpinteiro José e sua esposa Maria a Belém com as consequências que todos conhecemos e com a introdução pelo Imperador Marco Aurélio de um registro compulsório de nascimentos e óbitos antecipando algo do que mais tarde viria a ser conhecido como estatísticas vitais As diferentes formações ideológicas que se sucederam no mundo ocidental de fato não chegaram a propiciar as condições para uma medicina do coletivo No início da Idade Média tanto a hegemonia do catolicismo romano quanto as invasões dos bárbaros trouxeram um predomínio de práticas de saúde de caráter mágicoreligioso Amuletos orações e cultos a santos protetores da saúde materializavam a ideologia religiosa caracteristicamente medieval de salvação da alma mesmo com a perdição do corpo individual Starobinski 1967 Nesse contexto a prática médica para os pobres era exercida principalmente por religiosos como caridade ou por leigos barbeiros boticários e cirurgiões como profissão Sigerist 1941 Cada família da aristocracia teria seu médico privado que em muitos casos era um cortesão especialista também na arte de matar por envenenamento Entretanto nenhum dos historiadores da Epidemiologia enfatiza suficientemente o avanço tecnológico e o caráter coletivo da medicina árabe que alcançou seu apogeu no século X nos califados de Bagdá e Córdoba Com acesso aos textos gregos originais médicos muçulmanos adotaram os princípios hipocráticos fundamentando uma prática precursora da saúde pública com alto grau de organização social consolidando desde registros de informações demográficas e sanitárias a sistemas de vigilância epidemiológica até atos ritualizados de higiene individual centrais para a cultura religiosa do Islam Os epígonos dessa medicina do coletivo são as figuras quase míticas de Avicena e Averrões LaínEntralgo 1978 PérezTamayo 1988 AbuAli alHussein IbnSina 9801037 conhecido no Ocidente como Avicena médico e filósofo persa autor do Cânon da Medicina principal tratado clínico da época medieval tardia reintroduziu Hipócrates e Galeno na medicina ocidental Averróes AbuKhalid Muhammad IbnAhmad IbnRushd 11261198 notável magistrado filósofo e médico do Califado de Córdoba além de precursor do higienismo foi um dos principais tradutores e comentadores da obra de Aristóteles Apesar de terem vivido em épocas distintas e em pontos opostos do império muçulmano ambos compartilhavam uma modalidade de filosofia materialista e racionalista Russel 1941 com uma tendência ao empirismo precursora do pensamento científico de Bacon e Galileu e uma crítica ao individualismo que antecipava a economia política do Estado moderno Tais fundamentos filosóficos evidentemente repercutiam nas suas obras sobre saúde LaínEntralgo 1978 PérezTamayo 1988 Incidentalmente a conservação dos textos médicos clássicos nas bibliotecas árabes durante toda a noite medieval permitiu que no Renascimento a tradição racionalista grega pudesse ser revalorizada desempenhando importante papel na emergência da ciência moderna Rensoli 1987 A CLÍNICA E A ESTATÍSTICA Para a tradição anglosaxônica Thomas Sydenham 16241689 médico e líder político londrino deve ser considerado o fundador da clínica moderna bem como o precursor da ciência epidemiológica com a sua teoria da constituição epidêmica de inspiração diretamente hipocrática Além de ter sido responsável por meticulosas observações antecipadoras da chamada medicina científica por analogia à noção baconiana de história natural Sydenham elaborou o conceito de história natural das enfermidades que posteriormente já nos meados do século 20 seria retomada pela doutrina preventivista Para a tradição historiográfica francesa os primeiros passos para uma medicina dos tempos modernos se conecta a uma questão veterinária Foucault 1979 nos refere que a Societé de Médecine de Paris fundadora da clínica moderna no século XVIII organizase a partir da Ordem Real para que os médicos investiguem uma epizootia que periodicamente vinha dizimando o rebanho ovino com graves perdas para a nascente indústria têxtil francesa Pela primeira vez se contam enfermos mesmo que não humanos em busca da eliminação das doenças Foucault não nos esclarece se os insignes doutores obtiveram algum resultado De todo modo a conquista do mandato político sobre a gestão dos hospitais pelos médicos em substituição às ordens religiosas é um indício de que algo havia sido alcançado Pode parecer estranho para nós contemporâneos mas é importante assimilar que nem sempre o hospital foi um lugar de cura para os enfermos Foucault 1979 Hospital e seu correlato hospitalidade etimologicamente denota simplesmente um local para asilo ou acolhimento como os hotéis hospedarias ou abrigos Tratavase de locais protegidos sob o mandato de ordens religiosas sendo a primeira delas a dos Cavaleiros Hospitalários que remontava às Cruzadas e que originou o termo hospital destinados a receber viajantes necessitados aqueles que não tinham casa e eventualmente doentes sem família A conquista do espaço político dos hospitais que se deu em momentos históricos distintos e de maneiras diversas nos vários países europeus foi determinante para o desenvolvimento da clínica moderna de base naturalista e sistematizante Conforme analisa Trostle 1986 Os médicos em hospitais podiam pela primeira vez ver além das particularidades da sua prática privada podiam examinar muitos pacientes com as mesmas enfermidades fosse esta rara ou epidêmica Na constituição deste primeiro eixo fundamental para a formação histórica da Epidemiologia um saber clínico naturalizado racionalista moderno podemos observar três etapas distintas Primeiro nos seus momentos iniciais de luta contra os físicos leigos e religiosos encarregados do corposaúdedoença buscando a legitimação do projeto políticocientífico de uma clínica integrada às novas racionalidades não se verificava uma distinção muito clara entre as dimensões individual e coletiva da saúde Em uma segunda etapa já consolidada como corporação e no processo de construção de um saber técnico e de uma rede de instituições de prática a arteciência clínica terminava por reforçar ainda mais o estudo do unitário o caso a partir da investigação sistemática dos enfermos enfim recolhidos aos hospitais Foucault 1979 Uma terceira etapa vinculase à emergência da Fisiologia moderna a partir principalmente da obra de Claude Bernard 18131878 estruturada a partir da definição das patologias e suas lesões no nível subindividual Com a hegemonia da biologia experimental e com o advento da teoria microbiana esta medicina científica viria a desempenhar importante papel na institucionalização das práticas médicas contemporâneas por meio do famoso Relatório Flexner como veremos adiante Passemos agora rapidamente ao segundo eixo de constituição histórica da Epidemiologia a Estatística Para muitos o projeto de quantificação das enfermidades representaria um elemento metodológico distintivo da nova ciência servindo ao mesmo tempo como garantia da sua neutralidade epistemológica Dada essa expectativa é mesmo irônico verificar que de todos os três eixos aqui considerados a estatística aparece como aquele alicerce da ciência epidemiológica em que a raiz política mais claramente se evidencia Hacking 1991 melhor ainda como veremos a seguir a politização encontrase inscrita no próprio nome da disciplina Em paralelo à emergência do modo de produção capitalista no âmbito político a conjuntura pósRenascimento testemunha a aparição do Estado moderno quando se especificam os conceitos de governo nação e povo A idéia de que a riqueza principal de uma nação é seu povo aliada ao fato objetivo de que naquele momento de transição o poder político era o poder dos exércitos tornou necessário contar o povo e o exército ou seja o Estado O povo como elemento produtivo o exército como elemento beligerante precisavam não só do número mas também da disciplina e da saúde Este foi o conceito da Aritmética política de William Petty 16231697 e dos levantamentos populacionais de John Graunt 16201674 freqüentemente mencionados como precursores da Epidemiologia da Demografia e da Estatística Last 1983 Estatística em sua origem significa justamente a medida do Estado Tratase de um neologismo criado por Hermann Conring 16061681 médico e cientista político alemão especialmente para referirse ao conjunto de atributos de uma nação porém foi Gottfried Achenwall professor na Universidade de Göttingen na Prússia quem em 1750 primeiro o empregou com um sentido numérico Segundo Hacking 1991 o termo Statistik deriva do vocábulo Staat diretamente traduzido como Estado conjunto dos poderes políticos de uma nação Staat por sua vez vem do latim staus oriundo de stare ficar de pé Para operacionalizar o conceito de que o Estado poderia ser objeto de mensuração contar súditos sadios parecia ter algo a ver com contar estrelas brilhantes Sir Edmund Halley 16561742 astrônomo britânico nas horas vagas quando não estudava cometas desenvolvia técnicas de análise de dados que resultaram nas famosas táboas de vida primeiro instrumento metodológico da estatística atuarial Daniel Bernouilli 17001782 físico matemático e médico suíço membro de uma das famílias mais geniais da história da ciência foi um dos criadores da teoria das probabilidades Aficionado da nascente corrente experimentalista derivou fórmulas para estimar anos de vida ganhos pela vacinação contra varíola e para realizar análises de custobenefício de intervenções clínicas PierreSimon Laplace 17491827 matemático e astrônomo francês além de consolidar teoria das probabilidades aperfeiçoou métodos de análise de grandes números aplicados questões de mortalidade e outros fenômenos em saúde Segundo White 1991 Laplace também antecipou os conceitos de eficácia randomização e mesmo o desenho e a análise dos estudos de casocontrole Finalmente Lambert Adolph Quetelet 17961874 cientista belga também astrônomo e matemático além de criador do popular índice de superfície corporal foi o principal defensor do caráter aplicado da Estatística demonstrando a sua capacidade de descrição de fenômenos biológicos e sociais inclusive dados de morbidade e mortalidade Hacking 1991 Em 1825 PierreCharles Alexandre Louis 17871872 publicou em Paris um estudo estatístico de 1960 casos de tuberculose para alguns autores Lilienfeld 1979 PérezTamayo 1988 inaugurando a própria Epidemiologia Médico e matemático Louis também é o precursor da avaliação da eficácia dos tratamentos clínicos utilizando os métodos da nascente Estatística Starobinski 1967 A pesquisa da origem das doenças com la méthode numérique em muito influíu no desenvolvimento dos primeiros estudos de morbidade na Inglaterra através de três discípulos de Louis por coincidência todos chamados William Farr Budd e Guy e nos Estados Unidos com Lemuel Shattuck Lilienfeld 1979 Sem surpresa registramos que ó notável trabalho de William Farr 18071883 que em 1839 criara um registro anual de mortalidade e morbidade para a Inglaterra e o País de Gales marca uma institucionalização precoce dos sistemas de informação em saúde Last 1983 Com a aritmética médica de Louis e a estatística médica de Farr alcançavase uma razoável integração entre a Clínica moderna e a Estatística porém ainda faltava algo essencial para que dessa combinação resultasse uma nova ciência da saúde de caráter eminentemente coletivo Refirome à adesão ao princípio de que a saúde é uma questão eminentemente social e política aliada a uma preocupação sociológica e a um profundo engajamento nos processos de transformação da situação de saúde A essa atitude ativa e comprometedda White 1991 chama de idéia sanitária sanitary idea designação a meu ver inadequada na medida em que não apenas uma idéia mas sim toda uma prática encontravase em questão Os próprios atores desse movimento preferiram batizálo de Medicina Social Um breve relato do seu desenvolvimento é o que veremos a seguir O TERCEIRO ELEMENTO No final do século XVIII o poder político da burguesia emergente consolidouse com a restauração como na Inglaterra ou pela revolução como na França e nos Estados Unidos Nessa fase sucederamse diferentes tipos de intervenção estatal sobre a questão da saúde das populações Rosen 1975 Na Inglaterra o movimento hospitalário e o assistencialismo precedem uma medicina da força de trabalho já parcialmente sustentada pelo Estado em áreas urbanas Na França com a Revolução de 1789 implantouse uma Medicina urbana com a finalidade de sanear os espaços das cidades ventilando as ruas e as construções públicas e isolando áreas consideradas miasmáticas Foucault 1979 Na Alemanha Johann Peter Frank 17451821 sistematizava as propostas de uma Política médica baseada em medidas compulsórias de controle e vigilância das enfermidades sob a responsabilidade do Estado junto com a imposição de regras de higiene individual para o povo Rosen 1975 A revolução industrial e sua economia política trouxeram a noção e o fenômeno concreto da força de trabalho O desgaste da classe trabalhadora deteriorava profundamente suas condições de vida e de saúde segundo demonstram vários relatórios dos discípulos de Louis René Villemé 17821863 na França e Edwin Chadwick 18001890 na Inglaterra Nesta mesma linha posteriormente Friedrich Engels escreveu o célebre livro As Condições da Classe Trabalhadora na Inglaterra em 1844 reconhecido por Breilh 1989 como um dos trabalhos com assinalamentos mais decisivos para a formulação da epidemiologia científica A formação de um proletariado urbano submetido a intensos níveis de exploração expressavase como luta política sob a forma de diferentes socialismos chamados utópicos porque eram talvez apenas precoces Um desses socialismos passou a interpretar a política como medicina da sociedade e a medicina como prática política iniciando um movimento organizado para a politização da medicina na França circa 1830 Desde então o termo Medicina Social proposto por Guérin em 1838 tem servido para designar de uma forma genérica modos de tomar coletivamente a questão da saúde Na Alemanha um jovem médico sanitarista chamado Rudolf Virchow 18211902 após investigar uma epidemia de tifo na Silésia e identificar que suas causas eram fundamentalmente sociais e políticas liderou o movimento médicosocial naquele país juntamente com Neumann e Leubuscher O projeto original da medicina social parecia ter morrido nas barricadas de Paris e Berlim em 1850 Virchow foi condenado a um exílio interno e posteriormente entre outras coi sas tornouse o mais importante nome da patologia moderna além de iniciar a antropologia física e influenciar a geografia médica Trostle 1986 De sua parte Engels não pretendia ser médico e muito menos inaugurar a Epidemiologia Entretanto por outro lado os sanitaristas britânicos que não tiveram oportunidade de participar das revoltas urbanas do período pretendiam integrar suas preocupações filantrópicas e sociais aos conhecimentos científicos e práticas técnicas buscando transformações políticas pela via legislativa Tentariam à sua maneira inaugurar a Epidemiologia Em 1850 sob a presidência de Lord AshleyCooper e tendo Chadwick como VicePresidente organizouse na Inglaterra a London Epidemiological Society fundada por jovens simpatizantes das idéias médicosociais juntamente com oficiais da saúde pública e membros da Royal Medical Society Entre eles encontravase John Snow 18131858 considerado por muitos como o herói fundador da Epidemiologia Cameron Jones 1983 Vandenbroucke et al 1991 O título inicialmente proposto para a nova sociedade seria Epidemic Medical Society White 1991 porém por algum motivo que aparentemente não ficou registrado a série significante epidemiology e epidemiological terminou prevalecendo Segundo Nájera 1988 o termo epidemiología havia sido empregado pela primeira vez como título de um trabalho sobre a peste escrito por Angelerio na Espanha na segunda metade do século XVI Trezentos anos mais tarde Juan de Villalba recuperou o termo como título de sua obra Epidemiología Española uma compilação de todas as epidemias conhecidas até aquela data publicada em 1802 Por que considerando que finalmente se uniam saber clínico método numérico e engajamento social juntamente com um embrião de organização institucional e com um designativo bastante atraente ainda assim não se constituiu a ciência epidemiológica nessa época Seria carência de prática científica Mas o esforço de investigação de Louis Farr Panum e Snow não tem sido constantemente avaliado como de alta qualidade metodológica mesmo para os padrões contemporâneos Este é para mim um grande enigma na história da Epidemiologia MEDICINA CIENTÍFICA IDADE MÉDIA EPIDEMIOLÓGICA Muitos autores consideram que o formidável avanço da fisiologia da patologia e da bacteriologia devidos principalmente a Claude Bernard Rudolf Virchow Louis Pasteur e Robert Koch que se seguiu nas décadas seguintes teria dispensado o conhecimento sobre a vertente social e política da saúde Realmente a descoberta de microorganismos causadores de doenças representou um inegável fortalecimento da medicina organicista As enfermidades de maior prevalência na época de natureza infectocontagiosa favoreceram a hegemonia desse modelo explicativo Então outra vez a abordagem curativa individual nova panacéia agora cientificizada teria suplantado o enfoque coletivo higiênico no tratamento da questão da saúde e seus determinantes Não deixa de ser irônico que os estudos pioneiros de John Snow entre 1850 e 1854 iniciados no contexto da medicina social terminaram antecipando uma demonstração da teoria microbiana antes mesmo de Pasteur no caso da transmissão do cólera morbo Cameron Jones 1983 Assim vencida pela poderosa teoria microbiana a versão britânica da medicina social evoluiu para uma vertente supostamente apenas técnica constituindo a chamada State Medicine intensamente vinculada aos aparelhos burocráticos do Estado Ayres 1997 Por essas razões houve um retardo no processo de constituição da Epidemiologia como ciência autônoma Essa interpretação parece muito evidente justa e simples e é a que os livrostexto da área admitem Porém não concordo com esta explicação pelos motivos que já passo a expor De fato o conhecimento básico sobre as doenças transmissíveis cresceu muito rapidamente entre 1860 e 1900 monopolizando o avanço do conhecimento epidemiológico dirigindoo para os processos de transmissão ou controle das epidemias de enfermidades infectocontagiosas Data dessa época o ensino dos primeiros conhecimentos sobre a distribuição populacional das doenças nas escolas médicas da França Inglaterra e Alemanha no bojo de uma medicina social do colonialismo Nesse período obtémse o controle da varíola malária febre amarela e outras doenças chamadas tropicais principalmente nos portos dos países colonizados e das excolônias como o Brasil desenvolvendose uma saúde pública que tinha como características principais um intenso pragmatismo e uma subordinação às ciências básicas da área médica como a parasitologia e a microbiologia É nesse contexto circa 1890 que se inauguraram o Instituto Pasteur Paris e a School of Tropical Medicine de Lond patrocinda por Sir Richard Manson o preço da legitimação fácil em uma fase de intensa expansão institucional o progresso conceitual da disciplina restringese quase que exclusivamente aos aspectos tecnometodológicos que no entanto alcançam marcante versatilidade e penetração Nas décadas de 30 e 40 como uma consequência dos processos externos e internos ao campo da saúde assinalados acima articulavamse nos Estados Unidos propostas de implantação de um sistema nacional de saúde Arouca 1975 Pela ação direta do poderoso lobby das corporações médicas daquele país no lugar de uma reforma setorial da saúde nos moldes da maioria dos países europeus foram propostas mudanças no ensino médico incorporando uma vaga ênfase na prevenção No nível da estrutura organizacional propunhase a abertura de departamentos de medicina preventiva substituindo as tradicionais cátedras de higiene capazes de atuar como elementos de difusão dos conteúdos de epidemiologia administração de saúde e ciências da conduta até então abrigados nas escolas de saúde pública Silva 1973 Leavell Clark 1976 Nesta proposta o conceito de saúde era representado por metáforas gradualistas do processo saúdeenfermidade que justificavam conceitualmente intervenções prévias à ocorrência concreta de sinais e sintomas em uma fase préclínica A própria noção de prevenção foi radicalmente redefinida através de uma ousada manobra semântica ampliação de sentido pela adjetivação da prevenção como primária secundária e terciária que terminou por incorporar a totalidade da prática médica ao novo campo discursivo Que isto tenha ocorrido somente no nível da retórica indica apenas a limitada pretensão transformadora do movimento em pauta efetivamente preso no que Sérgio Arouca 1975 com muita perspicácia denominou dilema preventivista Em 1952 realizouse em Colorado Springs uma reunião de representantes das principais escolas de medicina norteamericanas incluindo Canadá ponto de partida para uma ampla reforma dos currículos de cursos médicos no sentido de inculcar uma atitude preventiva nos futuros praticantes Desrosiers 1996 Com entusiasmo compreensível organismos internacionais do campo da saúde de imediato aderiram à nova doutrina orquestrando uma internacionalização da Medicina Preventiva já francamente como movimento ideológico Na Europa realizaramse congressos no modelo Colorado Springs em Nancy França no mesmo ano de 1952 e em Gotemburgo Suécia no ano seguinte patrocinados pela Organização Mundial da Saúde Grundy Mackintosh 1958 Na América Latina sob o patrocínio da Organização Panamericana da Saúde foram promovidos os Seminários de Viña del Mar Chile em 1955 e de Tehuacán México em 1956 Arouca 1975 O sucesso deste movimento no seu país de origem é inegável os Estados Unidos constituem a única nação industrializada que até hoje não dispõe de um sistema de assistência à saúde com algum grau de socialização Na Europa ocidental onde o pósguerra propicia o estabelecimento dos chamados estados de bemestar social welfare states a assistência à saúde integrouse mais claramente às políticas sociais prescindindo de formulações mais visivelmente ideológicas para a consolidação do discurso do social na medicina Nesses países falavase ensinavase e se praticava uma versão da medicina social atualizada pela socialdemocracia Em ambos os casos a Epidemiologia impunhase aos programas de ensino médico e de saúde pública como um dos setores da investigação médicosocial mais dinâmicos e frutíferos A organização dos exércitos para a Segunda Guerra Mundial havia se defrontado com a questão da saúde física e mental dos recrutas e combatentes representando uma demanda concreta para o desenvolvimento de métodos mais eficientes para medila O aperfeiçoamento de tais métodos resultou na possibilidade de sua aplicação a populações civis Esta fase que coincidiu com um pósguerra associado a uma intensa expansão do sistema econômico capitalista caracterizavase pela realização de grandes inquéritos epidemiológicos principalmente a respeito de enfermidades nãoinfecciosas Susser 1987 que se haviam revelado como importantes problemas de saúde pública durante o esforço de guerra As ciências sociais aplicadas à saúde experimentavam um esgotamento depois da importante contribuição da sociologia médica parsoniana e a administração e organização da saúde passavam por uma crise de identidade questionada pelo avanço do estudo das instituições e pelo crescimento do nascente movimento do planejamento social Consolidavase ai uma clara hegemonia do conhecimento epidemiológico em relação às outras disciplinas da medicina preventiva O processo de institucionalização da disciplina culminou com a fundação da International Epidemiological Association em 1954 IEA 1984 e com a transformação do tradicional American Journal of Hygiene no American Journal of Epidemiology em 1964 Ayres 1997 ATUALIDADE DA EPIDEMIOLO NA Na década de 50 programas de departamentos de Epidemiologia feiçoam febrilmente novos desenhos de investigação como os estudos de coorte desenvolvidos a partir do famoso experimento de Framingham Susser 1987 e os ensaios clínicos controlados atribuídos a Sir Austin Bradford Hill 18971991 sucessor da cátedra de Major Greenwood na London School of Hygiene and Tropical Medicine White 1991 No plano teórico novos modelos explicativos são propostos para dar conta dos impasses gerados pela teoria monocausalista da enfermidade reforçando o paradigma da história natural das doenças Emerge então uma forte tendência ecológica na Epidemiologia com uma versão ocidental da epidemiologia do meio ambiente OPAS 1976 contraposta a uma versão soviética a epidemiologia da paisagem Pavlovsky 1963 A partir daí estabeleceramse as regras básicas da análise epidemiológica sobretudo pela fixação dos indicadores típicos da área incidência e prevalência e pela delimitação formalizada do conceito de risco Ayres 1997 fundamental para a adoção da bioestatística como instrumental analítico de escolha Nesta fase devemos destacar a contribuição de Jerome Cornfield 19121979 ao desenvolvimento de estimadores do risco relativo além de introduzir técnicas de regressão logística na análise epidemiológica Last 1983 Também sucede neste período um intenso desenvolvimento de técnicas de identificação de casos em praticamente todos os setores da medicina adequadas à aplicação em grandes amostras e a descrição dos principais tipos de bias na investigação epidemiológica Sackett 1979 Nos anos 60 além dos Beatles ocorreu uma verdadeira revolução na Epidemiologia a introdução da computação eletrônica Neste período a investigação epidemiológica experimentou a mais profunda transformação de sua curta história tendo como resultado uma cada vez mais forte matematização da área A ampliação real dos bancos de dados somada às potencialidades obviamente ainda não esgotadas de criação de técnicas analíticas e uma especificação inimaginável na era da análise mecânica de dados As análises multivariadas trouxeram uma perspectiva de solução ao problema das variáveis de confundimento intrínseco aos desenhos observacionais que praticamente determinam a especificidade da Epidemiologia em relação às demais ciências básicas da área médica MacMahon Pugh 1970 Mais ainda a computação tornou possível a realização de pareamentos múltiplos estratificação de variáveis sumarização do efeitomodificação e controle do bias entre outros procedimentos mais complexos além de propiciar o aperfeiçoamento e a disponibilidade de testes de significância estatística cada vez mais precisos e poderosos Durante a década de 70 em paralelo a um notável desenvolvimento de técnicas de coleta e análise de dados epidemiológicos Susser 1987 o debate epistemológico sobre a cientificidade da disciplina foi virtualmente reprimido A idéia de que a Epidemiologia é uma variante da ecologia médica Leriche 1972 ou apenas um ramo da Ecologia Humana será talvez a única contribuição teórica dessa fase A posição de que a Epidemiologia se constitui em um segmento de uma ciência mais geral Stallones 1971 ou ainda de que se trata essencialmente de uma disciplina empírica sem maiores demandas teóricas Feinstein 1988 resultou na crença de que a Epidemiologia não seria uma ciência Do todo modo a epidemiologia dos anos 70 não consiste somente em um aperfeiçoamento de tecnologia para tratamento e análise de dados Há também um forte movimento de sistematização do conhecimento epidemiológico produzido talvez mais bem exemplificado pela obra de John Cassel 19151978 no sentido da integração dos modelos biológicos e sociológicos em uma teoria compreensiva da doença unificada pelo toque da Epidemiologia Cassel 1975 A tendência à matematização da Epidemiologia recebe um considerável reforço nas décadas seguintes São propostos então modelos matemáticos de distribuição de inúmeras patologias Frauenthal 1980 O campo da Epidemiologia encontra assim uma identidade provisória justificando a consolidação de sua autonomia enquanto disciplina impondose no terreno da investigação sobre o complexo saúdedoençacuidado com o recurso à matemática Ayres 1997 propõe que na fase de constituição da Epidemiologia antes da Segunda Guerra Mundial a matemática teve uma função estruturante logo passando para uma função validante da investigação dos riscos Em qualquer caso para a Epidemiologia a matemática serve ideologicamente como poderoso mito de razão indispensável para a confrontação com a experiência clínica ou com a demonstração experimental enquanto supostos fundamentais da pesquisa científica médica Resulta que afinal os epidemiologos também se afirmam como metodólogos da investigação na área médica abrindo a possibilidade de uma Epidemiologia clínica Feinstein 1985 compelida em muitos casos à negação do caráter social da disciplina Podemos considerar que a Epidemiologia das décadas de 70 e 80 caracterizase por três tendên cias principais Primeiro seguramente facilitado pela ampliação do uso de microcomputadores e pelo desenvolvimento de softwares específicos para análises epidemiológicas observase um aprofundamento das bases matemáticas da disciplina com importantes repercussões sobre os processos de formalização do objeto epidemiológico Segundo consolidase a proposta de uma Epidemiologia clínica como projeto de uso pragmático da metodologia epidemiológica fora dos contextos coletivos mais ampliados A consequência principal dessa variante da Epidemiologia parece ser uma maior ênfase metodológica nos procedimentos de identificação de caso e na avaliação da eficácia terapêutica conformando o que se tem chamado de medicina embasada em evidências Em terceiro lugar durante a década de 80 emergem na América Latina e na Europa abordagens mais críticas da Epidemiologia como reação à tendência à biologização da saúde pública reafirmando a historicidade dos processos saúdeenfermidadeatenção e a raiz econômica e política de seus determinantes Goldberg 1982 Laurell Noriega 1989 Breilh Granda 1986 Breilh 1989 A fase contemporânea da Epidemiologia parece apontar para abordagens de síntese ou integração indicando novas tendências como a Epidemiologia Molecular Vandenbroucke 1990 Hulka Wilcosky Griffith 1990 Schulte Perera 1993 para uma crítica ver Loomis Wing 1991 Castiel 1996 e a Etnoepidemiologia AlmeidaFilho 1993 Massé 1995 que ao contrário de certas leituras críticas anteriores não são necessariamente antagônicas No plano metodológico observamos recentemente um interesse pelo desenho e aperfeiçoamento dos estudos agregados ditos ecológicos reavaliandose as suas bases epistemológicas e metodológicas Susser 1994 Schwarz 1994 como etapa inicial de um processo de exploração de novas técnicas analíticas Morgenstern 1998 Ademais prossegue firme o processo de alargamento de horizontes da disciplina através da ampliação do seu objeto de conhecimento no sentido da abertura de novos territórios de pesquisa e de prática como por exemplo a Farmacoepidemiologia Laporte Tognoni Sozenfeld 1989 a Epidemiologia Genética Khoury Beaty Cohen 1993 Khoury 1998 e a Epidemiologia de Serviços de Saúde Castellanos 1993 Barreto et al 1998 O problema da teoria continua a ser no entanto a questão mais fundamental da Epidemiologia no presente momento verdadeiro impasse que poderá caso não resolvido implicar uma barreira impenetrável para seu próprio desenvolvimento enquanto campo científico autônomo Perspectivas epistemológicas mais modernas reconhecem o esgotamento dos modelos formais de delimitação dos campos científicos indicando o papel fundamental dos paradigmas e seus processos históricos macro e microssociais na construção institucional das ciências através da prática técnica e teórica Neste momento crucial de superação da timidez epistemológica da Epidemiologia não se devem economizar esforços no sentido da conquista do paradigma com a construção do objeto epidemiológico tanto propositivamente quanto na prática cotidiana de produção de conhecimento científico A demarcação de um campo próprio de aplicação será então uma conseqüência histórica e não meramente lógica desse processo de maturação de uma disciplina que desde suas raízes tem sempre reafirmado a força dos processos sociais na determinação da Saúde Coletiva REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 Almeida Filho 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polêmicos e presente em todos os textos Nessa coletânea a evidência dessas divergências provocam uma série de questionamentos É possível uma só teoria dar conta da totalidade Como elaborar teorias e desenhos investigativos que possam ser trabalhados interdisciplinarmente Como conciliar a interdisciplinaridade com os interesses corporativos e as relações de poder que interferem e condicionam a produção científica É minha hipótese que a atualidade e a importância destas questões para a atividade científica reforçam o lugar da reflexão acerca da teoria do conhecimento O confronto de idéias o aprofundamento do conhecimento de diferentes pensamentos e a abertura para o enfrentamento de novos desafios ampliam a possibilidade de soluções criativas na prática de investigação Pretendemos com esta publicação contribuir para estimular este processo A EPIDEMIOLOGIA SUA HISTÓRIA E CRISES NOTAS PARA PENSAR O FUTURO MAURICIO LIMA BARRETO A Epidemiologia vive no momento atual sua afirmação como disciplina científica na medida em que tem demonstrado ser capaz de produzir conhecimentos substanciais sobre os fatores determinantes das doenças e de outros agravos à saúde Entretanto esta maturidade científica é frequentemente abalada por crises profundas quanto a questões centrais na definição da disciplina com consequentes e sérios reflexos em sua evolução e nas estratégias de sua organização 2 15 90 No decorrer das duas últimas décadas temos assistido a importantes debates sobre o papel da Epidemiologia e sobre a necessidade ou não de adjetivála Novas denominações surgem a cada momento clássica social clínica ou molecular gerando uma imensa dificuldade de entendimento mesmo entre os iniciados nos segredos da disciplina Neste embate é nítido um ponto de corte que passa pelo Equador Ao Norte o esforço da disciplina dirigese cada vez mais à procura de fundamentos que justifiquem e desenvolvam a racionalidade das práticas médicas dominantes e ao Sul os esforços concentramse na busca de explicações e de soluções para o fosso que separa a maioria da população esfomeada e doente de uma minoria saciada e sadia Entendemos que fatores externos sejam os determinantes em última instância do que ocorre com a Epidemiologia Porém as explicações para estas crises podem ser buscadas em parte no seu próprio interior e nos elementos que entraram em sua com 20 MAURICIO LIMA BARRETO posição sem desprezar as suas interdependências com o movimento social em geral e com o movimento de reorganização dos serviços de saúde e principalmente das práticas médicas em particular Assim o objetivo deste texto é buscar através de uma revisão do processo de formação da disciplina responder a algumas indagações sobre o porquê de tais crises esperando contribuir para o pensar do seu futuro entre nós UMA BREVE CRONOLOGIA O século XIX as bases Ainda que seja possível buscar raízes da Epidemiologia em passado remoto como nos escritos hipocráticos vários autores que têm contribuído para a construção da história da disciplina enfatizam o século XIX como o momento em que se estabeleceram suas bases 32 40 57 59 Nesse período como consequência da Revolução Industrial às cidades cresciam e as condições de vida se agravavam A grande massa da população vivia em ambientes pútridos e insalubres de modo similar às condições encontradas hoje na maioria das cidades do terceiro mundo 23 O Estado tornavase cada vez mais forte e ampliava sua atuação no cotidiano das pessoas Os movimentos sociais e revolucionários buscavam soluções para a crise É neste panorama que os estudos sobre as condições de saúde se intensificam como em nenhum outro período anterior Uma revisão dos acontecimentos desta época permite identificar diferentes correntes de conhecimento relativamente autônomas de cuja agregação irá nascer em futuro próximo a nova disciplina Esta diversidade na sua origem é de fundamental importância já que nessas correntes encontramse as sementes para os diferentes movimentos que surgirão no interior da disciplina em diferentes momentos do curso da sua história O paradigma dominante no estudo das doenças era a teoria miasmática pela qual as doenças provinham das emanações resultantes do acúmulo de dejetos A maioria dos estudiosos das condições de saúde se alinhavam a esta teoria A possibilidade de existência do micróbio não era aceita pela maioria das mentes progressistas daquele tempo Snow nos seus estudos sobre o cólera 22 MAURICIO LIMA BARRETO cos têm seu desenvolvimento esstimulado chegandose inclusive a um conjunto de formulações táricas mais consistentes denominado palometria 77 Período entre as guerras a maturidade acadêmica Os conhecimentos acumulados até então conduzem à cristalização do modelo ecológico multicausal 39 modelo este que também teria influências sobre as ciências sociais constituindo o novo substrato teórico para os estudos de sociologia urbana de tradição funcionalista 72 79 Neste período ocorrem uma série de fatos relevantes para a maturidade metodológica da Epidemiologia A criação da primeira cadeira dessa disciplina na Escola de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins nos Estados Unidos em 1921 simboliza o início de sua afirmação no espaço acadêmico Na Inglaterra em diferentes universidades são criados departamentos de Medicina Social em geral dirigidos por epidemiologistas os quais terão influência marcante na criação do sistema nacional de saúde daquele país No plano científico foi necessário reafirmar a importância de estratégia observacional no espaço aberto pelas insuficiências da alternativa experimental incapaz de encontrar explicações para um semnúmero de fenômenos científicos 35 Os inquéritos de morbidade passam a ser sistematicamente realizados e as bases dos estudos de coorte são concebidas A evolução da estatística leva a avanços em toda a metodologia de quantificação e o desenvolvimento dos testes de inferências descortina um mundo de novas possibilidades para avaliação de hipóteses sobre dados empíricos Dos anos 40 aos 60 a afirmação do método e das técnicas No pósguerra a Epidemiologia passa por um processo de consolidação dos seus métodos e os principais desenhos de estudos coorte e casocontrole são definitivamente constituídos 86 Os primeiros grandes estudos de coorte são realizados possibilitando que suas técnicas sejam aprimoradas Não havia dúvida de que este seria o método de escolha para o estudo das doenças crônicas Entretanto os seus altos custos e a demora na obtenção dos seus resultados impulsionam o desenvolvimento e a consolidação 24 MAURICIO LIMA BARRETO prática clínica redefinindo suas bases de modo a colocála no mesmo patamar de outras disciplinas biomédicas referenciadas no modelo experimental 34 45 70 84 Nos países subdesenvolvidos mais especificamente na América Latina em um momento de profunda crise econômica e social associada à intensa repressão política e ideológica renasce o interesse pela determinação social das doenças Este movimento denominado de Epidemiologia social pretende explicar com elementos científicos o porquê das condições de vida e de saúde da grande maioria das populações desses países comparáveis ou talvez piores do que aquelas existentes em países europeus no século XIX 10 24 53 54 Estes dois movimentos ocorrem no momento em que a biologia em sua vertente molecular estimula um retorno às atividades experimentais no interior dos laboratórios fazendo renascer com um novo ímpeto a ideologia do predomínio da biologia sobre o social e o cultural 3 80 99 No tocante à Epidemiologia isto se traduz em críticas severas à toda tradição de estudos sobre a influência de fatores ambientais na ocorrência de doenças comparandoos à uma abordagem miasmática modernizada Defendese que somente com o entendimento pleno dos mecanismos biológicomoleculares será possível a compreensão do processo saúde e doença 37 61 94 95 96 SOBRE AS CORRENTES DE ESTUDOS QUE COMPÕEM A EPIDEMIOLOGIA Conforme comentamos antes a Epidemiologia não nasce como uma disciplina uma mas a partir da confluência de uma série de correntes que se encontravam dispersas e paulatinamente se agregam Acreditamos que a existência destas correntes possuidoras de paradigmas autônomos explicam a ocorrência de uma série de movimentos e crises que terão curso ao longo da história da Epidemiologia Retornando aos meados do século XIX momento de intensas atividades em torno de questões relacionadas à saúde coletiva identificaremos estas correntes em clara formação Sem ter o objetivo de esgotar o assunto bem como entendendo que devido à própria dinâmica da disciplina as interrelações entre estas correntes fazem seus contornos nem sempre nítidos acreditamos que pelo menos quatro delas possuidoras de autonomia duto do modelo ecológico a teoria da história natural das doenças Esta ao definir períodos présintomáticos retira as doenças de sua dimensão unicamente clínica e viabiliza o desenvolvimento dos testes de triagem criando assim as precondições para que no âmbito da prática médica surja o movimento denominado Medicina Preventiva 4 5 55 As dificuldades metodológicas de se testar os modelos multicausais concebidos em redes de causalidade colocam em época mais recente o desenvolvimento destes modelos caudatário ao desenvolvimento da estatística A preocupação agora passa a ser com a identificação de fatores de risco entidades isoláveis com o uso de técnicas estatísticas multivariadas O debate teórico empobrece O importante então será encontrar o fator estatisticamente relacionado com a ocorrência da doença para dirigir as estratégias de prevenção 38 O novo modelo é um retrocesso em termos da possibilidade de elaboração de teorias mais estruturadas relativas à ocorrência das doenças Porém se visto na perspectiva da prática médica especializada com alto grau de aporte tecnológico o modelo ou não modelo é coerente e produtivo Estudos sobre a determinação social das doenças No século XIX as condições de vida e de saúde das populações dos países onde ocorria a Revolução Industrial passam a ser incompatíveis com a riqueza até então acumulada No seio de movimentos reformistas e revolucionários surgem importantes estudos que buscam demonstrar como as condições de saúde eram determinadas pelas condições de vida destas populações 30 43 88 97 O objetivo de tais estudos era pressionar mediante reformas que modificassem as condições sanitárias ou mesmo através de mudanças mais profundas na organização social O desenvolvimento desta vertente não resiste ao impacto da teoria microbiana e do positivismo e praticamente desaparece É interessante observar que renomados autores de textos sobre a história da Epidemiologia não reconhecem esta linhagem como parte das origens da disciplina 60 Os estudos com enfoque social e econômico na Epidemiologia por um longo tempo ficam dependentes dos vínculos maiores que essa disciplina estabelece com a sociologia funcionalista Não deixam contudo de ter a sua importância pois foram capazes de demonstrar as grandes diferenças sociais na ocorrência de eventos mórbidos como parte do processo de desenvolvimento do capitalismo 68 87 92 Alguns estudos diferenciados ocorrem na Inglaterra ao final da primeira metade deste século 88 e um pouco mais tarde nos Estados Unidos 19 A teoria do estresse tenta criar com pouco sucesso uma ponte entre os fatos sociais e os efeitos no nível do biológico 18 20 91 Entretanto será na América Latina que no decorrer da década de 70 este movimento renascerá com intensidade Rompe os vínculos tradicionais da Epidemiologia com a sociologia funcionalista e busca reconstruir o seu processo de produção do conhecimento referenciandose na sociologia marxista Utilizandose de abordagens até então não utilizadas na Epidemiologia tem contribuído para a compreensão dos problemas de saúde latinoamericanos 7 11 41 66 75 81 Nos últimos anos a produção científica relacionada com este movimento tem decrescido e no geral suas contribuições têm sido limitadas Embora as razões para tal não sejam claras podem ser imputadas de um lado a problemas conceituais e metodológicos não solucionados que dificultam o teste dos seus modelos teóricos em situações empíricas concretas e de outro lado a fatores externos à disciplina relacionados a mudanças no balanço político da América Latina incluindose restrições ao financiamento de pesquisas com este referencial Estudos de avaliação da eficácia de ações terapêuticas e profiláticas As origens dos estudos de avaliação podem ser encontradas em tempos remotos 69 Entretanto o primeiro estudo de eficácia utilizando grupocontrole foi reportado em 1747 tendose demonstrado que os sucos de limão e de laranja curavam o escorbuto No século seguinte é demonstrada a eficácia da inoculação de vírus da varíola bovina na profilaxia da varíola humana iniciandose o controle imunobiológico desta doença No mesmo período data a demonstração da ineficácia da sangria em pacientes com infecção pulmonar o que terá profundo impacto sobre o conhecimento e as práticas terapêuticas do período Embora nesta área estejam também contidos estudos de avaliação não experimentais estes terão importância menor De fato os modelos de avaliação consensualmente reconhecidos têm base experimental Na atualidade o método de estudo randomizado é o mais valorizado dentre os desenhos experimentais e seus resultados servem de referência para a liberação ao mercado de novos agentes terapêuticos e profiláticos Apesar da autonomia de tais estudos no interior da Epidemiologia e da sua importância no desenvolvimento das tecnologias de saúde eles têm pouca influência sobre seus paradigmas isso se traduz na ausência de referência a eles nas definições correntes da disciplina 58 Contudo em épocas mais recentes eles têm fornecido os principais fundamentos ao movimento da Epidemiologia clínica Estudos de modelagem matemática e bioestatística A possibilidade de modelagem matemática de eventos empíricos sempre exerceu um profundo magnetismo sobre os mais variados setores da ciência No decorrer do século XIX alguns países já haviam adotado sistemas para coleta sistemática de dados de nascimentos de óbitos e mesmo de doenças Este grande acúmulo de informações estimulou a aplicação dos conhecimentos matemáticos na análise de eventos vitais Assim nesse mesmo século aparecem as tábuas de vida e os primeiros modelos de predição das curvas epidêmicas 32 Os avanços da microbiologia e um pouco mais tarde da ecologia levam a elaboração de modelos determinísticos complexos O entendimento de que elementos de chance influenciavam a dinâmica do cotidiano leva à necessidade de elaboração de modelos que considerassem estas perturbações Esta nova geração será composta dos denominados modelos estocásticos 8 A formulação da teoria das probabilidades e os progressos da estatística em geral permitem a estimação da variabilidade dos eventos quantificáveis o desenvolvimento das técnicas de amostragem e dos testes de inferência 64 Agora seria possível não só definir e mensurar variáveis como também testar associações entre elas Os estudos causais entram em uma nova era pois a causa dos eventos pode ser empiricamente verificada A análise multivariada mesmo depois de ter sua teoria e suas técnicas desenvolvidas teve por muito tempo o seu uso limitado pela falta do computador porém havia também sérias questões metodológicas na medida em que os dados epidemiológicos em geral apresentam qualidades que fogem aos pressupostos básicos para utilização da estatística paramétrica Importante fato acontecerá nesta área ao final da década de 50 quando uma nova técnica o teste de MantelHaenszel para controle de variáveis intervenientes é descrito 65 Porém serão as regressões logísticas que representarão o grande momento do desenvolvimento da Epidemiologia e em torno delas têm ocorrido importantes mudanças na abordagem da disciplina com fortalecimento do seu conteúdo quantitativo 1 50 OS ENFRENTAMENTOS NO INTERIOR DA EPIDEMIOLOGIA Uma série de importantes embates tem permeado toda a história da Epidemiologia alguns dos quais já foram apresentados anteriormente Devese destacar que muitos destes enfrentamentos são consequentes a atritos resultantes da falta de unidade interna da disciplina Assim questões como a da causalidade central em qualquer das vertentes da Epidemiologia é com frequência razão de embates tanto no que diz respeito à sua dimensão epistemológica quanto da sua utilização na análise de situações empíricas concretas A falta de conceitos que limitem com nitida precisão o que seja saúde e o que seja doença tem trazido sérias questões para o interior da disciplina Aceitando a importância dos diversos embates na evolução da Epidemiologia propomos a discussão sobre dois deles que nos parecem centrais O primeiro diz respeito a como os binômios individual versus coletivo e biológico versus social vêm sendo utilizados e interrelacionados O segundo diz respeito à perspectiva com que o método epidemiológico estuda os fenômenos relativos ao processo saúdedoença se de uma maneira integral mesmo sendo objetos particulares ou fracionandoos em partes perdendo a perspectiva do todo O individual versus o coletivo e o biológico versus o social A Epidemiologia pelas próprias características do seu objeto de trabalho tem uma necessidade peculiar de criar interfaces com uma série de outras disciplinas retirandolhes conceitos métodos e técnicas A análise destas articulações interdisciplinares permitirá entender de que modo conceitos tão vitais para a disciplina como os de individual coletivo biológico e social vêm sendo abordados utilizados e interrelacionados Desde as origens da Epidemiologia três disciplinas tiveram papel vital na sua constituição a clínica a sociologia e a estatística O vínculo com a clínica vem da sua gênese na medida em que os principais fundadores da disciplina eram médicos deslocados de sua preocupação clínica para questões referentes à saúde coletiva A clínica e as ciências biológicas a ela associadas oferecem o paradigma do modelo biomédico 17 o conceito de doença e os sistemas para classificação das entidades mórbidas A responsabilidade pelo amadurecimento da Epidemiologia como disciplina apesar de ter sido em grande parte de profissionais médicos ocorre fora do ambiente clínico quer nos serviços de saúde coletiva quer nas escolas de saúde pública A primeira grande convergência na clínica se dá com a medicina preventiva A teoria da história natural das doenças que estabelece a idéia de níveis de prevenção é a primeira grande ponte criada entre os epidemiologistas e os clínicos A concepção de que o odds ratio gerado pelos estudos casocontrole com base em populações selecionadas nos serviços de saúde é uma estimativa razoável do risco relativo fornecido pelo estudo de coorte viabiliza a pesquisa epidemiológica causal no ambiente clínico 25 Porém o mais intenso desses vínculos se dará com a Epidemiologia clínica nascida dentro dos departamentos de clínica médica e que vem tentando romper o caráter tradicional da Epidemiologia como disciplina da saúde coletiva para redefinila como disciplina clínica e portanto da saúde individual Pelo fato de ser uma disciplina aplicada e assim sendo com ênfase em questões empíricas a Epidemiologia sempre teve o problema da quantificação como central Assim ela tem acompanhado de maneira próxima a evolução da estatística estando inclusive entre os patrocinadores de um de seus ramos a bioestatística Entretanto a forma como a estatística aborda o coletivo é bastante peculiar 64 O principal pressuposto da teoria estatística é a noção de independência entre os indivíduos que compõem a população estudada tornandose assim impossível o estudo de relações interindividuais Podese perceber da análise estatística os componentes de variação inter ou intragrupos contudo os atributos de grupo ou de subgrupo serão sempre a soma dos atributos individuais Mesmo quando se comparam grupos entre si como no caso dos estudos ecológicos o grupo passa à condição de caso sem possibilidade de serem discernidas as suas relações internas O máximo que se consegue da análise do coletivo é subdividilo de acordo com atributos definidos a priori ou a posteriori para testar diferenças ou associações entre eles O fato de ser uma disciplina que trata do coletivo define a necessidade da Epidemiologia ter vínculos com as ciências da sociedade Estes vínculos aparecem e são bastante fortes nos estudos de determinação social das doenças no século XIX 32 88 No início desse século a linha de estudos de doenças e agravos específicos absorve os pressupostos teóricos fundamentais da sociologia funcionalista e no plano empírico os métodos e as técnicas do inquérito social Ambas as disciplinas compartilham relações comuns com a estatística e com a ecologia Desta última advêm conceitos fundamentais como o de coletivo comunidade e a abordagem sistêmica das relações sociais Como consequência compartilham o mesmo modelo básico de multicausalidade 9 42 O todo versus a parte a questão da integralidade na observação dos fenômenos científicos A Epidemiologia por sua natureza privilegia o estudo de fenômenos particulares No entanto durante um longo tempo na história da disciplina estes fenômenos ainda que particulares foram estudados na sua integralidade mesmo que muitas vezes carecessem da dimensão histórica O já referido estudo de Snow sobre o cólera 82 o de Virchow sobre a febre tifoide 88 ou entre nós os estudos de Carlos Chagas sobre a doença que levaria o seu nome 22 são exemplos clássicos desta abordagem holística sobre fenômenos particulares Esta forma de observação dos fenômenos é que pode explicar o fato de terem sido gerados conceitos teóricos relevantes a partir do modelo ecológico Como já vimos a intensificação do estudo das doenças crônicas e a soci a introdução no modelo ecológico original de um novo paradigma o fator de risco O modelo multicausal ecológico é travestido em um novo tipo de unicausalismo Não há mais a possibilidade de observar o fenômeno particular na sua integralidade somente como partes isoladas COMENTÁRIOS FINAIS A Epidemiologia apesar dos seus problemas epistemológicos tem dado importantes contribuições não só para o conhecimento do processo saúdedoença como também para a formulação de alternativas direcionadas ao combate de diversos problemas mórbidos que afligem a sociedade humana Pensar sobre o futuro da Epidemiologia pode se iniciar com a tentativa de resposta a algumas questões relevantes que nos ajude a antever como se comportarão as diversas correntes da disciplina quanto à construção da unidade interna Uma primeira questão diz respeito à revisão de suas articulações com a clínica a estatística e a sociologia O afastamento da clínica implica a ruptura com o modelo biomédico em torno de um movimento ainda embrionário denominado Epidemiologia da saúde 36 89 Esta ruptura encontra sérias dificuldades pois os avanços da biologia molecular aprofundando o conhecimento sobre a organização do corpo humano contribui para o fortalecimento do modelo biomédico aumentando como conseqüência as resistências contra a ruptura Porém talvez o mais grave seja a falta de conceitos universais que definam a saúde o que se constitui em obstáculo para o desenvolvimento de tecnologias que possibilitem sua mensuração 78 Por outro lado a proposta da Epidemiologia da saúde tem sido elaborada por setores isolados da disciplina não partindo de suas correntes centrais O movimento de Epidemiologia clínica ao contrário preconiza uma maior dependência com relação ao modelo biomédico enquanto na Epidemiologia social esta ruptura não tem sido sequer posta como relevante Cabe portanto perguntar se é possível a unificação da disciplina Os fatos sugerem ser pouco provável O mais frequentemente observado tem sido as tentativas de suplantação de uma corrente pela outra A Epidemiologia clínica tenta impor o seu paradigma sobre a Epidemiologia da doença e dos agravos específicos 44 a qual por sua vez sob a influência dos modelos estatísticos amplia suas possibilidades de quantificação dos fenômenos que estuda embora como já vimos fracionandoos cada vez mais A Epidemiologia social na busca de soluções estruturais para os problemas da saúde tem desprezado o grande acúmulo de conhecimentos EPIDEMIOLOGIA SUA HISTÓRIA E CRISES gerados pelas outras correntes Além disso já vimos que os fundamentos teóricos sobre os quais as várias correntes se referenciam apresentam diferenças suficientes para tornar pouco provável a unificação de seus paradigmas Neste emaranhado epistemológico o que restará para aqueles envolvidos com a prática epidemiológica Que saídas terão aqueles que defendem a disciplina unificada porém sabem que isto se encontra em um horizonte longínquo Como conduzir pesquisas que permitam aproximarmonos de cada fenômeno na sua integralidade e ao mesmo tempo contribuam para a melhoria das condições e das práticas da saúde Como abordar os fatos coletivos para que tenham um significado maior do que a simples soma dos fatos individuais A confusão epistemológica e a falta de unidade da disciplina são questões complexas e cuja solução só poderá vir a ser encontrada no futuro não se sabe quando Uma alternativa pode ser aquela que vem sendo silenciosamente construída por indivíduos que mantêm sua prática científica continuada no interior da disciplina e que buscam alternativas para contornar as questões epistemológicas Estas ações têm levado à construção de novas pontes que vinculem a Epidemiologia com outras dimensões do conhecimento humano tomando emprestados os seus modelos conceituais os seus métodos e as suas técnicas para superação de impasses epistemológicos e solução de suas questões empíricas Assim podemos citar as ligações com a antropologia que oferece novos caminhos no entendimento do individual 48 e com a geografia que expande a compreensão sobre as relações do homem com a natureza trazendolhe uma nova dimensão do coletivo 6 29 33 67 81 Em outra direção as articulações com as práticas sanitárias que resultam no movimento denominado de Epidemiologia dos serviços de saúde dãolhe a chance de dar efetividade aos novos conhecimentos produzidos 13 21 46 51 52 56 71 76 BIBLIOGRAFIA 1 Adena M A Wilson S R Generalised Linear Models in Epidemiologic Research Case Control Studies Sidney Instat Foundation 1982 2 Almeida Filho N Epidemiologia sem números Uma introdução crítica à ciência epidemiológica Rio de Janeiro Editora Campus 1989 3 Aloisi M Orientaciones y insuficiencias metodológicas de la biología contemporanea in Aloisi M et alii Medicina y sociedad Barcelona Fontanella 1972 4 Arouca A S O dilema preventivista Campinas UNICAMP tese de doutoramento 1975 5 Arouca A S A história natural das doenças Saúde em Debate 1159 1976 6 Barreto M L Esquistossomose mansônica Distribuição da doença e organização social do espaço Salvador SESAB Série de Estudos em Saúde nº 6 1984 7 Barros M B A A utilização do conceito de classe social nos estudos de perfis 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Enquanto alguns destacam as questões teóricas outros destacam as questões empíricas Em seu conjunto no entanto expõem as insuficiências da epidemiologia de resolver problemas relacionadas à saúde das populações que contemporaneamente lhes são postas O objetivo deste ensaio foi de em um primeiro momento apresentar e sistematizar as críticas à epidemiologia moderna para em seguida delinear um conjunto de proposições que contribuam para a discussão sobre o papel da epidemiologia na constituição do campo da saúde coletiva Agruparamse em cinco categorias as formas em que se interpreta a crise da epidemiologia uma crise do seu paradigma dominante uma crise na sua capacidade de formulação teórica uma crise resultante da ruptura dos seus compromissos históricos uma crise da relação com a prática da saúde pública e uma crise da capacidade explicativa em consequência do conflito de resultados gerados por diferentes estudos sobre um mesmo tópico Estas críticas têm estimulado a produção de conhecimentos epidemiológicos alternativos importantes mesmo que em muitos momentos isto aconteça fora do núcleo central da disciplina Estas alternativas são organizadas em torno de três eixos a as desigualdades em saúde b o ambiente a qualidade de vida os conceitos e as medidas de saúde c a avaliação e a escolha das tecnologias e intervenções em saúde Entendese que em torno destes três eixos podese a recuperar muitas das experiências relevantes acumuladas na história da epidemiologia e de outras disciplinas populacionais que vêm contribuindo para o conhecimento da saúde e de seus determinantes b redirecionar o desenvolvimento teórico metodológico e operacional da disciplina c deslocar o atual modus operandi da prática científica da epidemiologia para centrálo em torno das questões da prevenção e para o desenvolvimento de novas bases éticas em consonância com os seus compromissos sociais e políticos Palavraschave Epidemiologia classificação Saúde Pública Fatores socioeconômicos Condições sociais Abstract Criticism regarding the socalled modern epidemiology has been present in the LatinAmerican epidemiological literature for quite some time More recently however similar criticism has increasingly been present in the international literature These criticisms differ in their diagnosis and as a consequence in the alternatives proposed While some stress the theoretical aspects others stress the empirical ones As a whole however authors state the inadequacies of epidemiology in solving the health problems of populations that currently challenge it The aim of this essay was first to present these criticisms in a systematic way and second to delineate a group of propositions that could contribute to the discussion of the role of epidemiology in forming the field of collective health The criticisms were organized in five categories according to their views on the epidemiology crisis a crisis of its dominant paradigm a crisis in its ability of theoretical formulation a crisis resulting from the rupture of its historical commitments a crisis in its relationship with the public health practice and a crisis in its explanatory skills as a consequence of the conflict of results generated by studies in similar topics It is understandable that such criticisms have stimulated the development of alternative and useful epidemiological knowledge even so very often this happens out of the central core of epidemiology The possible alternatives are organized around three axes 1 the inequalities in health 2 the environment the quality of life and the concepts and the measurements of health 3 the evaluation and choice of health technologies and interventions From these axes it is possible a to recover many of the important experiences accumulated in the history of epidemiology and many other subjects that focus on the different aspects of health and its determinants b to redirect the theoretical methodological and operational development of epidemiology c to move the current modus operandi of the scientific practice of epidemiology to orient it towards prevention and the development of new ethical bases in consonance with its social and political commitment Keywords Epidemiology classification Public Health Socioeconomic factors Social conditions Introdução A epidemiologia tem uma posição peculiar e ainda pouco explorada pelos epistemólogos de conciliar o papel de disciplina científica portanto produtora de conhecimentos originais sobre o processo saúde e doença e ao mesmo tempo de campo profissional participante dos esforços pelo cuidado da saúde das populações Esta dupla inserção é o que define algumas das características peculiares da epidemiologia e de onde advém a sua diversidade e as possibilidades de ser pensada e repensada em tantos diferentes ângulos e perspectivas Esta dupla inserção é reafirmada em algumas das definições clássicas da disciplina como aquela referida por Last1 1988 o estudo da distribuição e determinantes de estados e eventos relacionados à saúde em populações definidas e a aplicação deste conhecimento para a resolução dos problemas de saúde As considerações que aqui serão desenvolvidas partem do pressuposto de que existem indivíduos com uma base biológica e genética complexa que habitam espaços geográficos socialmente organizados em cujo in terior os indivíduos agrupamse em populações Estas ao se deslocarem no tempo constroem uma história base para algo maior e mais fundamental que é o de desenhar as trajetórias por onde percorrerão o seu futuro Nesta profunda e complexa dialética multidimensional entre a biologia o espaço e o tempo é que os indivíduos se definem e em seu conjunto definem algo mais complexo do que a mera soma destes as sociedades Os eventos mórbidos não são meros acidentes mas intercorrências que enquanto possam ser percebidas no nível individual seja no plano biológico seja no plano psíquico têm sua configuração populacional definida na confluência destas três dimensões e como consequência resultante da forma de organização das sociedades Este artigo não tem o objetivo de introduzirse nos grandes desafios epistemológicos que hoje estão postos para a epidemiologia porém o de tentar através da análise e da discussão de alguns dos dilemas que esta disciplina atravessa esboçar algumas proposições para a comunidade de epidemiologistas que atuam seja no âmbito acadêmico seja nos serviços de saúde ou correlatos e que compartilham da idéia do caráter imprescindível da epidemiologia na compreensão dos eventos de saúde nas populações humanas e como consequência na constituição do campo da saúde coletiva Buscase reorganizar um conjunto de questões fundamentais no esforço de contribuir para as reflexões e possíveis reorientações na pesquisa nas aplicações para a prevenção e de não menos importância no compromisso social dos epidemiologistas para com a saúde da sociedade Fazse necessário estabelecer um ponto de equilíbrio entre os desejos possibilidades e competências de intervenção no mundo real e os limites que estão definidos tanto pelos conhecimentos científicos e tecnológicos disponíveis ou que se podem produzir como pelo conjunto de forças sociais e políticas que se conformam na conjuntura em que atuamos Partindose desta premissa são apresentadas a seguir em forma concisa as questões e dilemas que em última instância estão na base destas reflexões 1 Questões relacionadas às insuficiências do conhecimento epidemiológico disponível no sentido de suas contribuições para definir o conjunto de intervenções e mudanças que se fazem necessárias com relação a melhorias na situação de saúde Ao ser definida como a disciplina básica da saúde pública a epidemiologia passa a ter como responsabilidade gerar conhecimentos informações e tecnologias que embasem as políticas de prevenção e controle das doenças e outros eventos na saúde 2 Questões geradas pelo reconhecimento da necessidade da epidemiologia continuar contribuindo de forma mais completa para o entendimento das causas determinantes e raízes históricas e sociais das doenças e outros eventos na saúde bem como dos efeitos gerados em consequência dos esforços desenvolvidos para a sua prevenção e controle Isto permitiria uma maior interferência das sociedades sobre os fatores que modificam o curso histórico desses eventos e em última instância ampliaria a capacidade de prever e modificar as suas tendências 3 Questões relacionadas à necessidade de ampliarse a compreensão dos eventos mórbidos para além das suas dimensões biológicas reforçando o desenvolvimento de medidas que registrem não somente os níveis das doenças mas também outras dimensões do sofrimento humano contribuindo para que consolidamos a idéia de saúde como parte do complexo da qualidade de vida e do bem estar social e não simplesmente como a ausência ou a presença da doença 4 Questões relacionadas a sua ainda limitada influência nos sistemas de decisão sobre o uso indiscriminado e muitas vezes iatrogênico de uma série de tecnologias inúteis ao lado evidentemente de outras tantas úteis que muito pouco têm contribuído para mudar a situação de saúde das sociedades e que mais atuam como tótens modernos produtores de ilusões que desperdiçam recursos e expectativas das sociedades e dos indivíduos Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L Rev Bras Epidemiol Vol 1 n 2 1998 106 5 Dilemas do pesquisador que busca caminhos por onde seja possível a produção de conhecimentos que reflitam as preocupações apresentadas nos 4 itens listados acima e que acredita que relativamente a diversos temas cruciais por razões muitas vezes alheias à sua vontade em lugar de buscar respostas mesmo que incompletas para as questões corretas em muitos momentos faz um enorme esforço certamente sincero de dar respostas certíssimas para questões irrelevantes 6 Dilemas do professor que busca passar para seus alunos não somente conhecimentos coerentes e instrumentos que os capacitem técnica e cientificamente para o cumprimento das suas obrigações profissionais mas também inquietações pois ao lidar com uma questão tão sensível como a saúde das sociedades obrigatoriamente se situa na confluência entre o ser profissional e o ser político A epidemiologia moderna e suas crises São antigas as observações críticas de autores latinoamericanos sobre a epidemiologia na sua forma contemporânea por alguns denominada de epidemiologia moderna Rothman2 1986 Estas críticas enfatizam as insuficiências no que concerne à produção de conhecimentos coerentes com o propósito de compreender e explicar a ocorrência das doenças e de outros agravos à saúde das populações como consequência reduzindose as suas possibilidades de contribuir para a prevenção e o controle destes eventos AlmeidaFilho3 1992 Barata e Barreto4 1997 Breilh5 1997 Porém o mais interessante é que críticas similares se fazem crescentes na literatura epidemiológica internacional principalmente na de origem norteamericana Em anos recentes uma série de artigos de autores influentes publicados em revistas científicas de saúde pública e particularmente da epidemiologia têm levantado questões e críticas importantes Long6 1993 Krieger7 1994 McMichael8 1995 Pearce9 1996 Susser e Susser10 1996 Susser e Susser11 1996 Shy12 1997 Apesar de muitas destas críticas terem conteúdo similar àquelas já feitas por autores latinoamericanos no novo contexto ganham especial ressonância É importante precisar o que entendemos pelo núcleo de idéias que conformam a epidemiologia moderna Tendo por epicentro o ambiente acadêmico norteamericano esta corrente consolidouse em décadas recentes tornandose a tendência dominante na produção científica internacional na epidemiologia Susser13 1985 Barreto14 1990 No esforço de diferenciála das outras epidemiologias é essencial compreender como no seu interior constroemse os problemas científicos Na sua vertente mais radical seria problema epidemiológico aquele que embora relativo à ocorrência de eventos mórbidos em populações tenha a sua observação e sua análise realizadas no nível individual As implicações desta abordagem são surpreendentes Assim Miettinem15 1985 em seu importante livro que sintetiza as formulações fundamentais desta vertente da epidemiologia chega a afirmar que a ocorrência de epidemias a preocupação central da epidemiologia clássica não é um problema da forma característica da pesquisa epidemiológica moderna p 45 e ainda que o paradigma para a epidemiologia moderna não é o estudo da ocorrência da doença em sua forma epidêmica mas sim da forma endêmica p 5 Assim ao retirar a noção de população como a fonte geradora dos problemas epidemiológicos também o retira como central na formulação das propostas de prevenção Despreza as definições mais clássicas da disciplina e conforme observou Rose16 1992 desloca o interesse para os determinantes dos casos não os determinantes da incidência Não é por acaso o fato de que a denominada epidemiologia clínica centrada no estudo de casos derivouse do seu interior Após um vertiginoso desenvolvimento nas décadas de 1970 e 1980 a epidemiologia moderna começa a apresentar sinais de esgotamento reduzindo sua capacidade de apresentar contribuições mais significati Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L 107 Rev Bras Epidemiol Vol 1 N 2 1998 vas no sentido de entender e solucionar os complexos problemas sanitários mesmo das sociedades desenvolvidas Críticas começam a emergir nos próprios núcleos acadêmicos onde esta vertente da epidemiologia teve sua origem Neste contexto o que inicialmente era apenas a identificação de problemas e insuficiências paulatinamente evoluiu para críticas mais contundentes que explícitam a necessidade de mudanças mais profundas no curso da disciplina Apesar de apresentarem pontos em comum estas críticas vêm de diferentes contextos e são fundadas em diferentes motivações e percepções sobre o papel da epidemiologia Evidentemente também apresentam diferenças no que diz respeito às soluções que propõem ou às tendências que anteveem Como este debate ainda parcialmente codificado tende a confundir os menos iniciados na disciplina apresentase a seguir um sistematização das diversas maneiras como na literatura científica tem sido apresentada a crise ou as crises da epidemiologia moderna a Uma crise do seu paradigma dominante Susser e Susser10 1996 periodizam a evolução da epidemiologia em três eras sucessivas cada uma das quais tendo o seu paradigma dominante Em cada era estruturase também uma abordagem preventiva que se torna hegemônica A primeira a era das estatísticas sanitárias teve como paradigma dominante o miasma sendo seguida pela era das doenças infecciosas com a teoria dos germes e por fim a era atual quando predominam as doenças crônicas com o paradigma da caixa preta No entendimento destes autores este último paradigma será necessariamente superada por um novo o qual se caracterizaria por responder aos novos desafios postos para a epidemiologia e pela integração das várias dimensões da realidade que os conhecimentos recentes têm desvendado b Uma crise de formulações teóricas entendese que falta à epidemiologia estabelecer novos fundamentos teóricos que venham permitir avanços em sua prática de investigação Apesar da pequena importância conferida às questões teóricas ao interior da epidemiologia moderna elas têm sido sempre fundamentais para guiar o trabalho dos epidemiologistas Krieger e Zierler17 1996 observam que a epidemiologia diferenciase de outras disciplinas populacionais pela sua base teórica e não pelos seus métodos e técnicas Avançando na questão distinguem três componentes das teorias epidemiológicas as teorias epidemiológicas propriamente ditas que buscam explicar a saúde na população as teorias causais que formam a base para os modelos de causalidade das doenças e as teorias do erro que guiam o desenho análise e interpretação dos estudos epidemiológicos A aplicação dos dois últimos componentes gera o núcleo metodológico da disciplina enquanto o primeiro organiza as bases filosóficas e ideológicas da nossa compreensão da saúde das populações c Uma crise resultante da ruptura dos compromissos históricos da epidemiologia a epidemiologia moderna é acusada de não exercer a contento seu papel de disciplina básica da saúde pública tendo direcionado os seus esforços para o estudo das dimensões individuais e clínicas da saúde A epidemiologia não estaria cumprindo sua missão de desenvolver o método científico necessário para construir os conhecimentos que devem fundamentar a missão básica da saúde pública de prevenção das doenças e promoção da saúde das populações Shy12 1997 O ponto fundamental desta mudança é identificado na transferência do nível de análise da população para o indivíduo Wing18 1994 observa que o conceito de população desapareceu de algumas definições da epidemiologia que passa a centrar seus objetivos nas relações de ocorrência das doenças A população passa a ser apenas uma série de indivíduos enumerados com o objetivo de dar poder e significância aos testes estatísticos Contraditoriamente o conceito de risco que emerge embora não possa ser medido no nível individual passa conceitualmente a ser uma propriedade dos indivíduos O método científico de referência passa a ser o ensaio clínico Fundamentase no individualismo pois tem nítida ten Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L 108 Rev Bras Epidemiol Vol 1 N 2 1998 dência à responsabilização do indivíduo pela ocorrência dos eventos mórbidos e pela prevenção dos fatores de risco Os fatores sociais e econômicos passam a ser minimizados e as relações entre a saúde e a política tendem a ser desprezadas Há aqui a idéia de que a epidemiologia tradicional mesmo que carente dos recursos analíticos disponíveis na atualidade foi capaz de formular idéias e acumular evidências sobre as causas da ocorrência das doenças as quais resultaram em políticas de prevenção eficientes e radicais Pearce9 1996 d Uma crise da sua relação com a prática da saúde pública em uma perspectiva mais pragmática que a anterior identificase a inadequação de grande parte do conhecimento produzido sobre a saúde das populações assim como as proposições relativas à prevenção derivadas deste conhecimento Apesar de reconhecer o papel primordial da epidemiologia na pesquisa sobre a saúde da população entende que o desenvolvimento do conhecimento realmente necessário para fundamentar as práticas de promoção à saúde e para a condução das mudanças necessárias na organização dos serviços de saúde necessita de abordagens multidisciplinares Dean e Hunter19 1996 Os modelos quantitativos de risco têm explicado apenas parte dos determinantes dos problemas de saúde que afligem as populações Fatores que não são nem podem vir a ser detectados por esta estratégia de investigação muitas vezes respondem por uma parte substancial do risco Em consequência grandes frustrações podem ocorrer com relação à efetividade de medidas preventivas derivadas de estimativas de riscos que apenas explicam uma parte menor do processo causal Evans e Stoddart20 1994 e Uma crise da capacidade explicativa de cunho empirista e utilitarista que identifica o problema na frequente discordância entre os valores das medidas de risco de um mesmo fator em diferentes estudos Angel21 1990 Taubes22 1995 Nos pressupostos clássicos da epidemiologia para a aceitação de um fator como causal está a idéia da força da associação medida pela magnitude do risco relativo Alto grau de concordância entre os resultados de estudos que envolvam a análise de fatores associados a seus respectivos efeitos através de altos riscos relativos é esperado e com frequência ocorre Entretanto como a maioria dos fatores de risco são vinculados aos seus respectivos efeitos através de riscos relativos baixos a discordância entre estudos é frequente São clássicos na literatura epidemiológica os exemplos do cigarro ou de algumas radiações ionizantes que se associam aos seus efeitos por altos riscos relativos Resultados que são consistentemente reproduzidos em estudos realizados em diferentes locais e em diferentes épocas Em muitos outros casos a controvérsia é o mais comum produzindose resultados falsos negativos ou falsos positivos Como conseqüência geramse dúvidas e ansiedades como por exemplo entre profissionais e leigos ao avaliarem a importância ou não de um dado fator de risco e a consequente necessidade de esforços para o seu controle Taubes22 1995 ou entre técnicos e legisladores quando da normatização de padrões de exposição ambiental McMichael23 1989 Algumas proposições Ao lado do reconhecimento da importância que a discussão dos impasses da epidemiologia tem para o seu desenvolvimento como disciplina científica devemos também chamar a atenção para um conjunto de esforços paralelos que buscam a superação de questões conceituais ou o desenvolvimento de novas abordagens metodológicas com vistas à produção de novos conhecimentos Muitas destas atividades estão sendo praticadas em outras disciplinas nem sempre próximas à saúde pública gerando entretanto subprodutos que podem ser aplicados aos estudos sobre as condições de saúde e os seus determinantes Em toda fase transicional da produção dos conhecimentos ou das práticas como tem acontecido em diferentes momentos na história da epidemiologia e Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L 109 Rev Bras Epidemiol Vol 1 N 2 1998 da saúde pública são processos de desenvolvimento de conhecimentos e experiências em permanente sintonia com as necessidades presentes e futuras das sociedades que em seu conjunto estimulam a construção de inovações teóricas metodológicas ou operacionais Neste sentido é importante ressaltar os esforços feitos por alguns que em consonância com o contexto as indefinições e as necessidades atuais muitas vezes marchando fora do núcleo central de epidemiologia moderna contribuem para a construção seja de novos conhecimentos seja de novas estratégias que transformem os conhecimentos disponíveis em ações positivas de saúde Tais movimentos são prenúncios de tendências que despontam ou sinalizam o renascimento de tradições epidemiológicas que foram secundarizadas no passado recente No sentido de organizar estes esforços os mesmos foram agrupados em torno de três eixos básicos desigualdades em saúde ambiente qualidade de vida e medições da saúde e avaliação e escolha das intervenções em saúde Em conjunto estes eixos cobrem grande parte se não a totalidade das questões colocadas para uma epidemiologia da saúde coletiva Desigualdades em saúde Enquanto se identifica a necessidade do desenvolvimento teórico da epidemiologia devese chamar a atenção para o fato de que a sua estratégia fundamental de produção de conhecimentos continuará tendo por base os estudos empíricos Essa vocação para a análise empírica se de um lado tem levado a epidemiologia a relativizar os debates sobre as questões teóricas por outro lado tem trazido muitas contribuições inovadoras inclusive no que diz respeito às novas formas de mensuração dos fenômenos que aborda Especificamente no que concerne à mensuração das variáveis sociais e ambientais existe uma rica experiência acumulada Não é por acaso que discussões sobre a questão das classes sociais e de outras variáveis sociais em suas diversas abordagens teóricas têm perpassado tão intensamente a epidemiologia Por exemplo vale a pena notar que entre as poucas tentativas de transformar o conceito marxista de classe social em algo mensurável algumas foram feitas como parte de estudos epidemiológicos Solla24 1996 Isto significa que a partir de referências teóricas no caso da sociologia marxista desenvolveuse um sistema de medidas supostamente capaz de ser operado empiricamente e mais do que isto quantitativamente que classifica cada indivíduo de uma população em sua classe social A questão da desigualdade na distribuição da doença tem sido tratada mais enfaticamente com relação à dimensão socioeconômica Uma vasta literatura tem sido desenvolvida sobre a utilização de indicadores proxy de grupos ou classes sociais Muitos destes estudos apesar da clara descontextualização ou desteorização das categorias sociais e econômicas que utilizam em seu conjunto constituemse em um imenso patrimônio para o conhecimento das desigualdades sociais em saúde Liberatos e col25 1988 Porém na atualidade o entendimento das desigualdades tem se tornado mais complexo tanto no que diz respeito às formas empíricas de observálas como também em relação à forma como os diversos grupos estratos e classes sociais posicionamse na relação uns com os outros Novas compreensões do fenômeno das desigualdades são geradas tanto a partir de percepções acadêmicas como a partir de reflexões e ações no interior dos próprios grupos sociais Estes ao se organizarem como movimentos sociais ou culturais em busca de identidade e caráter próprios elaboram sobre as diferenças e as desigualdades com relação aos grupos hegemônicos da sociedade Assim além das classes sociais definidas de diferentes maneiras em acordo com as diferentes teorias sociais desigualdades são identificadas com relação ao gênero à raça aos grupos religiosos ou culturais etc Cochrane e col26 1982 Krieger e Fee27 1994 Mesmo que tenham a sua usina geradora na estrutura produtiva da sociedade as desigualdades espraiamse e assumem dife rentes configurações nos mais diversos planos da organização social e nos diversos momentos históricos de cada sociedade Há razoáveis evidências empíricas de que as condições de saúde observáveis nas populações acompanham a forma com que estas desigualdades se apresentam Wilkinson28 1996 Além das particularidades que assumem as desigualdades nas condições de saúde é também importante entender os enfoques fundamentais que têm guiado o entendimento dessas desigualdades Revendo os debates desta questão desde o século XIX até o presente podemos identificar dois paradigmas fundamentais O primeiro que tem sido o mais influente mesmo em tempos atuais foi desenvolvido no século XIX e fundamentase nas observações de que em sociedades desiguais determinados grupos populacionais não atingem patamares mínimos que lhes permitam acesso a bens e serviços fundamentais o que gera deprivações tanto de bens materiaissaneamento alimentação etc como de bens culturaiseducação informação etc Este paradigma principalmente no que se refere a deprivações de bens materiais tem servido para o entendimento das desigualdades observadas na ocorrência das doenças infecciosas e das deficiências nutricionais Engels29 1977 Taylor e Rieger30 1984 Diferenças notadas no plano cultural ou seja em elementos despojados de materialidade têm sido utilizadas para explicar desigualdades observadas na ocorrência das doenças cardiovasculares dos cânceres da violência da obesidade da exposição a agentes químicos etc já que carências materiais conquanto se apresentem associadas a esses problemas nem sempre satisfazem outros pressupostos de causalidade epidemiológica No decorrer da primeira metade do presente século foi verificado nos atuais países desenvolvidos o aumento crescente de muitas doenças crônicas mesmo em períodos em que políticas sociais permitiram reduzir a pobreza absoluta Assim tornavase necessário um novo paradigma que explicasse este aumento na ocorrência destas doenças e as desigualdades que em paralelo eram observadas As primeiras elaborações encontramse em torno da epidemiologia social desenvolvida por Casse3132 1964 1976 que utilizandose da teoria do stress elabora o conceito de fatores estressores gerados por processos adaptativos sociais que determinariam o perfil de saúde de uma população Não seria mais a carência absoluta mas sim a forma de inserção e de relação do indivíduo em seu meio social que desencadearia a doença Este núcleo de idéias tem evoluído no sentido de hoje se entender que a desigualdade mesmo não gerando deficiências absolutas é em si só um fator gerador de doenças Há evidências de que entre sociedades com níveis econômicos similares aquelas mais igualitárias no que concerne à distribuição de suas riquezas tendem a apresentar mais altos níveis de saúde Wilkinson2833 1996 1997 Entre as consequências do conhecimento sobre as desigualdades no risco de adoecer estão os impasses que emergem nos momentos em que se busca transformar estes conhecimentos em ações voltadas à promoção e à prevenção em saúde As experiências acumuladas no curso da história mostram que esta não é uma tarefa fácil e com frequência servem para definir os limites da saúde coletiva e da epidemiologia enquanto campos profissionais Entretanto alguns desenvolvimentos são exemplares e mostram as potencialidades da investigação epidemiológica fundada no marco das desigualdades As desigualdades existentes mas nem sempre observáveis no nível dos indivíduos transferemse para a dimensão espacial sendo detectáveis quando se comparam países regiões cidades ou mesmo zonas de uma mesma cidade Não é por menos que as relações entre os padrões espaciais e os fenômenos de saúde constituemse em um significativo exemplo da importância do desenvolvimento do conhecimento das desigualdades em saúde A demonstração da existência de extremas desigualdades espaciais nos níveis de saúde a vinculação deste fenômeno com os padrões das desigualda des sociais Stephens34 1996 e a disponibilidade de informações sobre unidades espaciais nos sistemas rotineiros de informações de muitos países têm estimulado esforços para a construção de categorizações espaciais dos eventos de saúde que sejam proxys das categorizações sociais Paim35 1997 b desenvolvimento de novas técnicas analíticas que permitam o manejo mais eficiente dessas informações e a produção de novos conhecimentos Akerman36 1997 Borell37 1997 Swar cwald e Leal38 1997 c desenvolvimento de estratégias que aumentem a precisão no que diz respeito às prioridades para a prevenção e promoção da saúde bem como para as políticas sociais em geral Stephens34 1996 Como seria de esperar desafios conceituais metodológicos e técnicocooperacionais permanecem e necessitam ser superados Entre estes podese citar a tão propalada falácia ecológica relacionada a conhecimentos gerados sobre dados agregados Schwartz29 1994 Barreto e Carmo40 1995 No terreno da aplicação Slogett e Joshi41 1994 observam na Inglaterra onde existe uma longa tradição do uso de pequenos setores espaciais como unidades na investigação epidemiológica e na definição de prioridades em saúde que políticas fundadas apenas em conhecimentos gerados a partir de agregados espaciais mesmo quando operacionalmente convenientes podem conter graus importantes de iniquidades As desigualdades em saúde têm sido apresentadas sob duas diferentes formas Vagero42 1995 A primeira relativa à chance de ficar doente que reflete a distribuição desigual dos determinantes sociais culturais e ambientais das doenças e a segunda em estando doente relativa ao acesso ao cuidado que em uma sociedade de mercado reflete a capacidade de consumo dos diferentes grupos desta sociedade Contemporaneamente muitas sociedades incluindo o Brasil adotam entre os seus direitos sociais nem sempre respeitados o acesso igualitário do indivíduo doente aos serviços de saúde Isto significa que a sociedade deveria por princípio assumir a responsabilidade pela cura de qualquer indivíduo doente independente da sua origem no sistema social No tocante à proteção relacionada com a chance de ficar doente ou seja à prevenção existe um menor grau de consenso sobre sua constituição como um direito social Portanto se há um crescente grau de consenso de que as desigualdades no acesso aos serviços de saúde sejam percebidas como iniqüidades o mesmo não acontece com relação ao risco de adoecer a despeito de que a Constituição Brasileira de uma forma bastante avançada neste aspecto assegure no seu artigo 196 proteção aos riscos para todos os cidadãos do país Avanços no conhecimento ainda que necessários não têm sido suficientes para provocar reduções nas desigualdades relativas ao risco de adoecer É próprio das utopias propor a extinção pura e simples de tais desigualdades Porém no mundo real fazse necessário transformações e intervenções complexas em esferas que em geral estão fora da capacidade de intervenção dos epidemiologistas ou de outros profissionais da saúde coletiva Neste contexto cabe à epidemiologia através do seu patrimônio conceitual e metodológico desnudar as desigualdades em saúde transformando o conhecimento produzido em fundamentos para estratégias que possam reduzilas Goldbaum43 1997 Em decorrência do seu compromisso com mudanças efetivas nos níveis de saúde da população cabe a tarefa não menos importante de em forma convincente informar aos diversos agentes sociais sobre as implicações humanas morais e éticas consequentes à manutenção de tais desigualdades Não há dúvida de que uma posição com relação a este dilema é central para de um lado evitar a transformação da epidemiologia em uma disciplina em busca apenas de soluções tecnicistas e naturalistas para os seus achados e do outro lado retirar a justificativa para a sua existência como disciplina autônoma pela perda da especificidade do seu objeto quando se dilui com outras disciplinas que estudam o social Ambiente qualidade de vida conceitos e medidas da saúde Em suas origens o conhecimento epidemiológico ainda sob a égide do paradigma miasmático percebeu o entrelaçamento da ocorrência das doenças com as questões ambientais e sociais Conhecimento que foi indispensável para embasar as grandes reformas urbanas e sanitárias ocorridas no século XIX e que signiticou nos países hoje desenvolvidos um intenso processo de transformações ambientais e sociais que tiveram um imenso impacto na saúde e na qualidade de vida das suas populações Rosen44 1994 Após um retrocesso ao início do período microbiano a noção de ambiente ressurge na epidemiologia como parte da tríade ecológica Assim na maior parte da história da investigação epidemiológica a busca das causas das doenças tem sido centrada nos fatores externos ao organismo Mesmo a denominada epidemiologia molecular traz implícita a idéia de que marcadores biológicos definem padrões orgânicos de maior ou menor susceptibilidade a fatores externos ao organismo McMichael45 1994 Isto se justifica porque a epidemiologia moderna dentro dos seus limites mostra diferenças essenciais com relação à abordagem causal de outras disciplinas que centram o entendimento dos eventos mórbidos apenas no plano das alterações e anormalidades biológicas A revisão dos conceitos e das medições da saúde que a epidemiologia utiliza na sua prática de disciplina científica ajuda a entender alguns dos seus impasses O conceito sobre o que é saúde tem variado desde noções operativas a mais primária delas como a simples ausência da doença até aquelas não operacionalizáveis tendo como exemplo mais extremado e de profundo conteúdo utópico a clássica definição da Organização Mundial da Saúde saúde como o estado de completo bem estar físico mental e social No tocante à medição etapa imprescindível no processo de produção de conhecimento de uma disciplina que tem suas referências no mundo empírico os instrumentos atualmente utilizados para mensurar a saúde das populações estão mais próximos das perspectivas operativas e centradas em torno da frequência das doenças Patrick e Bergner5 1990 Ware47 1995 Esta opção pela indisponibilidade de outros recursos para medição da saúde tem várias implicações Em um processo tautológico de um lado contribui para a manutenção das referências da epidemiologia centradas em torno da doença do outro é a demonstração de que a epidemiologia não conseguiu introduzir nas medidas da saúde das populações o seu patrimônio de conhecimentos sobre o papel causal dos fatores ambientais culturais e sociais Esforços têm sido feitos no sentido de romper com esta abordagem centrada no conceito de doença No plano das idéias propostas de uma epidemiologia da saúde em substituição à epidemiologia da doença Terris48 1987 ou de um modelo salutogênico em substituição ao modelo patogênico dominante Antonovsky49 1979 têm sido apresentadas No plano da prática podese citar um exemplo recente Mackenback e col30 1994 que fazendo uso de um desenho da epidemiologia moderna em uma população holandesa estudou os fatores associados ao estado de saúde auto referido como excelente A ênfase analítica no estudo das associações causais que é uma das marcas da epidemiologia moderna fundamentase entre outros equívocos na idéia de que os problemas de saúde estão cristalizados em sistemas classificatórios inquestionáveis e que as doenças são definidas de forma neutra e objetiva Questões relacionadas com os sistemas classificatórios dos fenômenos com que opera não recebem maior atenção na epidemiologia moderna Eventualmente a questão da classificação é discutida com relação ao diagnóstico das doenças não se percebendo a importância que o processo de classificar tem na organização do pensamento humano É evidente que a forma com que classificamos os eventos tem implicações fundamentais sobre o modo pelo qual intervimos no mundo pois é através dele que organizamos e agrupamos os fe nômenos que percebemos já que em geral somos incapazes de compreendelos isoladamente As classificações são produtos resultantes da forma com que agrupamos os fenômenos que nos circundam e refletem o entendimento das suas semelhanças e das suas diferenças Segundo Tort51 1989 as classificações são sempre construídas sobre dois pressupostos básicos as similaridades metáforas ou as conectividades sejam contiguidades associações ou genealogias metonímias Para agrupamos as doenças temse utilizado por décadas classificações sobre as quais se têm elaborado muito poucas críticas Dos sistemas classificatórios disponíveis o mais utilizado é a Classificação Internacional das Doenças CID já em sua décima versão Esta foi gerada a partir de concepções biomédicas com o princípio classificatório oscilando entre similaridades anatômicas e associações etiológicas Se entendemos que as doenças são problemas socialmente produzidos e social e historicamente construídos e não apenas problemas biológicos verificamos que estes sistemas classificatórios não incluem várias dimensões que fazem parte deste entendimento das doenças destacandose os aspectos sociais culturais e ambientais Esta preocupação já está presente em Cassel311964 quando por exemplo questiona o porquê das classificações de doenças colocarem a esquizofrenia ao lado da psicose maníacodepressiva e não ao lado da tuberculose e do suicídio já que a esquizofrenia tem com a tuberculose e o suicídio similaridades em termos dos seus determinantes sociais enquanto que com a psicose maníacodepressiva tem apenas vinculação topográfica Outra característica não menos importante desses sistemas classificatórios é o fato de excluírem vários eventos de saúde apesar de percebidos por aqueles que os sofrem Este é um problema enfrentado quotidianamente por todos aqueles que trabalham no cuidado direto com os usuários nos serviços de saúde ou pelos próprios usuários Uma série de sintomas percebidos por não ganharem o status de doença e como conseqüência não serem incluídos em tais classificações permanecem não diagnosticados A despeito do acúmulo de evidên cias demonstrando no plano individual relações entre modo de vida psique e sintomas físicos nem sempre classificáveis como doenças e no plano populacional a importância da saúde percebida como preditor de eventos de doença e de morte Mossey e Shapiro52 1982 Kaplan e Camacho53 1983 queixas e sintomas percebidos que não encontram abrigo nestes sistemas classificatórios são desqualificados como problemas de saúde A integração dos conhecimentos sobre a determinação ambiental cultural e social das doenças e da saúde acumulados na história da epidemiologia aos conhecimentos sobre as formas como os indivíduos e as sociedades percebem seus problemas de saúde e seus sofrimentos acumulados pela antropologia da saúde pode servir de base para avanços conceituais sobre a saúde Etapa fundamental no desenvolvimento de novos sistemas classificatórios que através de novas metáforas e novas metonímias expressem o nosso entendimento do processo saúdedoença para além do sistema de referência biológico e no desenvolvimento de novos indicadores que tenham a capacidade de medir dimensões ainda não mensuráveis do processo saúdedoença Reencontrar o elo perdido das preocupações da epidemiologia com o ambiente e com a qualidade da vida e atualizar estes vínculos à luz dos imensos conhecimentos acumulados e das necessidades das sociedades contemporâneas é uma tarefa que tem como conseqüência não somente reforçar a disciplina no que se refere às suas preocupações com a população mas também equacionar desafios teóricos metodológicos e tecnológicos que a reforçam enquanto disciplina científica Avaliação e escolha das intervenções em saúde A capacidade de produzir e colocar em uso novas tecnologias voltadas para o cuidado à saúde drogas aparelhos procedimentos e sistemas organizacionais para a atenção à saúde tem crescido exponencialmente Ao lado do potencial de cura ou de prevenção nem sempre confirmado e dos efeitos indesejáveis destas tecnologias estão seus altos e crescentes custos razão de preocupação de todos aqueles com alguma responsabilidade sobre a saúde dos indivíduos ou das populações A visão dominante de progresso social traz consigo a idéia equivocada de que este progresso ocorre em conseqüência da assimilação de novas tecnologias Cipolla54 1964 Germani35 1974 No campo da saúde desde pelo menos os clássicos trabalhos de Illich561975 e principalmente os trabalhos de McKeown57 1979 paira sobre nossas consciências uma profunda dúvida sobre a real importância destas tecnologias como modificadoras das condições de saúde das populações De não menos importância como marco neste campo temos o trabalho de Cochrane58 1971 Este autor ao constatar que a maioria das tecnologias médicas utilizadas até aquele momento não havia passado por processos de avaliação de sua eficácia alertou sobre os riscos dessas tecnologias provocando um imenso impacto sobre o que se concebia até aquele momento como avaliação das mesmas A importância histórica da posição de Cochrane devese ao seu clamor pela obtenção de garantias da eficácia de qualquer intervenção e serviu para estimular o uso dos ensaios aleatorizados nessas avaliações Os trabalhos de McKeown57 e Cochrane58 podem ser considerados como abordagens representativas de duas visões extremas sobre as concepções da saúde das doenças e das formas de modificálas A primeira representando a visão da doença como um processo fundamentalmente social e histórico e enquanto tal apenas secundariamente modificáveil pelas intervenções médicas e a segunda a visão do corpo como uma máquina biológica que pode ser afetada por problemas disfuncionais a doença cuja proteção depende primariamente de intervenções efetivas sobre os seus mecanismos geradores Temse buscado várias estratégias para demonstrar o quanto as tecnologias ações e serviços de saúde podem ser eficazes ou efetivos porém há evidências de que uma parte importante das mesmas apesar de em uso corrente não foi adequadamente avaliada Podemse apontar como fatores que contribuem para isso a imensa e exponencialmente crescente quantidade de tecnologias disponíveis os altos custos de um adequado processo de avaliação a falta de interesse dos produtores as incertezas sobre a extrapolação dos estudos de eficácia para outras populações as insuficiências de ordem metodológicas como a falta de desenhos que permitam avaliações objetivas de certas tecnologias por exemplo as cirurgias ou os métodos psicoterápicos59 Os ensaios aleatorizados a forma mais elaborada de avaliação disponível Power e col60 1994 para alguns o modelo de referência na investigação epidemiológica Horwitz61 1987 Miettinen62 1989 apresentam com freqüência resultados discordantes mesmo quando baseados em desenhos e tamanhos amostrais que lhes garantiriam validade Como conseqüência mesmo no caso de tecnologias que tenham os ensaios aleatorizados como o mais indicado para suas avaliações a exemplo dos medicamentos e das vacinas há dificuldades para a formação de consensos que norteiem decisões seguras sobre o uso de cada uma delas Para compensar as insuficiências dos estudos aleatorizados novos recursos de avaliação têm sido desenvolvidos e utilizados Como exemplos podemse citar as metanálises e os ensaios com grandes amostras e desenhos simplificados large sample randomized trials A metanálise tem por objetivo agregar os resultados de vários estudos sobre uma mesma tecnologia o que significa pela soma das amostras de cada estudo isolado aumentar a amostra global para em seguida através de artifícios de análise estimar seus efeitos médios Greenland63 1987 Os ensaios com grandes amostras possibilitam uma maior eficiência do estudo e a observação de fenômenos que não seriam observados em estudos com amostras convencionais como muitos dos efeitos indesejáveis Porém para que tenham viabilidade operacional utilizam desenhos mais simplificados o que pode eventualmente afetar a qualidade dos resultados Peto e col64 1993 Barreto e col65 1996 Se todo o esforço de avaliação não tem superado os problemas inerentes à definição da eficácia das tecnologias maiores ainda são as limitações com relação à avaliação da efetividade Pois mesmo tendo níveis aceitáveis de eficácia quando analisadas isoladamente muitas das tecnologias são pouco efetivas quando utilizadas como parte rotineira de ações programas e serviços de saúde A questão tornase mais complexa e real embora menos aparente quando nos deparamos com o problema da efetividade dos programas e serviços de saúde Estes se constituem em estruturas organizacionais que agregam uma ou mais tecnologias e que em seu conjunto formam o complexo prestador de serviços de saúde Este complexo atua segundo regras de mercado nem sempre sujeito a normas reguladoras e ao controle social e que dificilmente poderá vir a ser globalmente avaliado Entretanto avaliar a eficácia e a efetividade de pelo menos parte das tecnologias ações ou programas direcionados à cura ou prevenção em saúde é uma tarefa para a qual a epidemiologia dispõe de recursos Inclusive ainda que de forma incipiente temse experimentado a aplicação de estudos aleatorizados na avaliação de serviços completos firm trials em lugar da avaliação de tecnologias isoladas A documentação da baixa efetividade de muitas dessas intervenções e o alto custo dos seus limitados benefícios são uma contribuição científica e socialmente relevante da epidemiologia para a melhoria da qualidade e o controle de custos da assistência e da prevenção em saúde Como exemplo podese citar estudo que avaliou o papel do sistema hospitalar na atenção à diarréia infantil na Região Nordeste do Brasil Barreto e col66 1997 Por problemas relacionados à acessibilidade e à qualidade da assistência prestada observouse muito baixa efetividade no que concerne à diminuição dos óbitos por esta doença Isto eleva para níveis proibitivos e injustificáveis o seu custoefetividade desperdiçando recursos que poderiam estar direcionados para programas de prevenção com efetividade já demonstrada Causa versus prevenção algumas conclusões Na epidemiologia moderna a medida de risco mais utilizada é o risco relativo o que mede a força da associação ou seja a chance de um grupo populacional vir a ter o evento mórbido relativamente a um grupo de referência Outras medidas destacandose o risco atribuível de maior interesse para a mensuração populacional do risco e para estimar a sua importância para uma população definida têm sido secundarizadas Um fator com baixo risco relativo pode ter grande importância populacional assim como um fator com alto risco relativo pode ter pequena importância populacional Os métodos e desenhos de estudo desenvolvidos pela epidemiologia moderna têmse mostrado extremamente eficientes no estudo de fatores causais com grande força de associação ou com alto grau de especificidade em relação ao seu efeito Porém grande parte dos fatores de risco associamse aos efeitos através de baixos riscos relativos ou de forma pouco específica razões que contribuem para as inconsistências dos resultados encontradas em diferentes estudos sobre a mesma questão Na epidemiologia a causa é entendida como um fator ou um conjunto de fatores vinculado à ocorrência de um evento mórbido Por analogia concluise que a retirada da causa ou a introdução de algo que a neutralize reduzirá a ocorrência do evento Ação que genericamente se denomina de medida de prevenção Apesar do caráter empirista da epidemiologia a causa por mais real que seja situase no campo do conhecimento enquanto que a prevenção resultante do conhecimento sobre as causas encontrase no campo da práxis Aqui ficam definidos dois espaços interdependentes e nem sempre claramente delimitados o do conhecimento e o da ação Rev Bras Epidemiol Vol 1 Nº 2 1998 116 Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L a epidemiologia como disciplina científica que estuda a saúde a doença e os seus determinantes e como campo profissional da saúde coletiva que desenvolve tecnologias e estratégias de prevenção Paim e AlmeidaFilho67 1998 No primeiro espaço elaboramse teorias desenhamse estudos analisamse dados produzemse informações e conhecimentos No segundo a partir do anterior produzemse novos conhecimentos delineiamse estratégias concretizamse ações No primeiro os erros são de ordem teórica e metodológica No segundo os erros significam vidas doenças sofrimentos ou ainda custos sociais econômicos ou políticos Enquanto se tenha consolidado a idéia de que grande parte dos fenômenos relacionados à saúde tem múltiplas causas a construção de modelos multicausais a exemplo das redes de causalidade carece não só de qualquer consistência teórica assim como tem sido de baixa utilidade operacional por insuficiências no campo metodológico Krieger67 1994 McCormick e Skrabanek68 1988 discutindo esta questão concluem que a qualificação de uma etiologia como multifatorial tem significado na prática o desconhecimento da causa Estes autores sugerem que muitos dos fatores de risco conhecidos venham a ser denominados marcadores de risco com o sentido de se evitar expectativas não realistas de prevenção As estratégias de prevenção que efetivamente são utilizadas organizamse a partir de concepções unicasuais No sentido de reafirmar essa perspectiva reducionista Tesh69 1988 destaca que as práticas atuais de prevenção giram em torno de apenas três modelos fundamentais o do germe o do estilo de vida e o ambiental Para cada um destes modelos existem estratégias de intervenções preventivas correspondentes vacinas educação em saúde e normas reguladoras respectivamente A idéia primária que se opera na epidemiologia é de que o achado causal gera a prevenção e somente pelo acúmulo de conhecimentos causais se poderão elaborar novas estratégias de prevenção Observandose a história do desenvolvimento do conhecimento sobre algumas causas isoladas e o consequente desenvolvimento das ações para a prevenção das mesmas este processo linear pode eventualmente ocorrer Entretanto revendose na história da saúde pública as relações entre os modelos causais e os modelos preventivos concluise que esta premissa dificilmente poderá ser generalizada Se o conhecimento da causa antecede a formulação da estratégia de prevenção os limites preestabelecidos para as estratégias de prevenção têm definido em uma aparente contradição o espectro de relações causais a serem objeto de investigação A desqualificação da determinação social cultural e ambiental da doença ou de outras teorias causais não ocorreu pelos conhecimentos que produziram mas sim pelas suas potenciais consequências em termos das estratégias de prevenção que produziram ou poderiam vir a dar origem Não há dúvida de que a crise pressentida da epidemiologia moderna é antes de tudo uma crise de esgotamento já que a as possibilidades de novos conhecimentos sobre fatores de risco com forças associativas muito altas ou com altos graus de especificidade com relação ao seus efeitos estão esgotadas b as propostas de prevenção fator a fator têmse mostrado de limitada eficiência e de difícil implementação c com frequência a avaliação das tecnologias não fornece um quadro completo dos efeitos previstos e imprevistos e principalmente os seus efeitos quando utilizadas como parte de complexos programas de intervenção na saúde d por melhor que sejam as intenções e por mais consistente que sejam os conhecimentos disponíveis a capacidade de se prever o resultado das intervenções que se implementam é em geral baixa Porém têmse algumas convicções Uma delas é de que sínteses feitas a partir dos conhecimentos existentes têm produzido algumas categorizações lógicas e consistentes que aplicadas em populações definem estratos que se diferenciam de outros com relação ao risco de ocorrência de um ou mais eventos mórbidos de im Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L 117 Rev Bras Epidemiol Vol 1 Nº 2 1998 portância Essas categorias quando utilizadas como ponto de partida para reorganizar políticas populacionais de prevenção podem ser de grande utilidade Assim podemse entender os esforços como os de Castellanos7071 1992 1997 desenvolvidos por outros Paim35 1997 de demonstrar que a categorização de populações de acordo com os níveis de condições de vida definem subpopulações com diferentes níveis de saúde e podem servir de base para a definição de prioridades nas ações de proteção e promoção à saúde Porém outros recortes também podem definir subgrupos populacionais com relação à ocorrência de eventos de saúde Como exemplo podese utilizar o caso de um recente e denso relatório sobre as relações entre alimentos nutrição e câncer produzido com o objetivo de intensificar a prevenção deste grupo complexo de patologias World Cancer Research Found72 1997 A análise detalhada das evidências científicas existentes advindas principalmente de estudos epidemiológicos que suportam ou não possíveis associações casuais entre os vários alimentos e fatores nutricionais e os vários tipos de câncer resultou na proposição de intervenções organizadas em torno de apenas 14 recomendações cada uma delas definindo ações em nível populacional e correspondentes orientações em nível individual Estas recomendações são produto do esforço de sistematização das infinitas possibilidades de prevenção que resultam do conhecimento ou desconhecimento existentes sobre as associações causais entre fatores nutricionais e alimentares específicos e cancers específicos Estimouse que o seguimento dessas recomendações poderia levar à redução de 3040 do total de casos de câncer no mundo 34 milhões de casos por ano além de ter repercussões positivas sobre a ocorrência de uma série de outras patologias relacionadas à alimentação e fatores nutricionais A opção pela prevenção centrada em fatores específicos além da baixa viabilidade enquanto política de saúde seria de difícil entendimento e utilização por indivíduos e por populações Susser e Susser11 1996 previram o advento de uma nova era na epidemiologia que a partir da ruptura com a visão simplista dicotômica que se construiu será estruturada sobre os elos relacionais entre os vários níveis da realidade A esta nova era denominaram de ecoepidemiologia a ser constituída sobre um novo paradigma as caixas chinesas Este novo paradigma seria resultante da síntese de conhecimentos gerados em dois níveis O macro com o estudo dos fenômenos em nível da população e das sociedades e o micro com o estudo dos fenômenos que ocorrem no nível molecular O novo paradigma seria essencialmente integrador e harmonizador destes níveis do conhecimento Os métodos e técnicas que permitirão concretizar tais possibilidades estão apenas enunciados o que segundo os autores não se constitui em problema pois de maneira similar no início da era da epidemiologia das doenças crônicas os desenhos de estudos e recursos de análise hoje rotineiramente utilizados apenas despontavam A crítica na ciência não tem em geral a pretensão de extinguir o velho e substituílo por algo novo Pretende sim superar as referências paradigmáticas existentes no momento em que estas não se mostram capazes de resolver questões que lhes são apresentadas Neste sentido o que aqui se denominou de epidemiologia moderna continuará tendo por muito tempo papel importante no desenvolvimento de conhecimento sobre as causas das doenças Savitz73 1994 Porém da mesma forma que aconteceu em outras disciplinas científicas a superação da epidemiologia moderna implica obrigatoriamente em retirarlhe a capacidade de continuar sendo o eixo estruturante da produção do conhecimento epidemiológico É difícil acreditar que em um tempo observável a epidemiologia poderá responder a todas as questões e problemas postos para ela por mais que seus paradigmas sejam atualizados Isso não diminui a sua importância e mostra a pertinência de se continuar elaborando e reelaborando questões perplexidades e críticas Tam Rev Bras Epidemiol Vol 1 Nº 2 1998 118 Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L bém não concede o direito da ignorância com relação ao conhecimento existente ou da postergação de in tervençőes e outras açoes que em um dado momento apre sentemse como necessárias Neste con texto é que se situam os pragmáticos no momento em que com conhecimentos deficientes e em condiçőes adversas conseguem propor melhorias nas condiçőes de saúde da populaçăo Na sua tensão entre disciplina científica e campo profissional a epidemiologia traz à tona para os seus praticantes independente de onde e sejam situados os desafios da dialéctica entre o sonhar e o fazer entre a utopia e a realida de entre a técnica e a política Repensar a forma de conceber a pre vençăo constituise um dos grandes desa fios de uma epidemiologia da saúde cole tiva No processo de produçăo científica quando faltam recursos analíticos mais adequados ou quando se quer aprofundar a análise de um fator podese isolálo e testálo fora do seu sistema original Po rém no momento da intervençâo já não se opera com modelos mas sim com a reali dade em toda a sua complexidade Na transmutação de conhecimentos gerados a partir de bases conceituais deficientes e de modelos reducionistas para açoes e in tervençőes em realidades por natureza complexas ocorrem muitos erros e frus tramse expectativas com relaçăo aos efei tos ou mudanças esperadas Dorner74 1996 Para tornar mais intricada a ques tăo devese ter em conta o fato de que na prevençâo atuase sobre indivíduos e po pulaçőes que em geral não săo os mesmos a partir das quais os riscos foram estima dos É operaçâo frequente a utilizaçăo de riscos estimados em um dado contexto para projetarse estimativas do impacto das intervençőes na reduçăo dos riscos em um outro contexto Esta passagem provo ca o aumento das incertezas e mesmo im plicam no aumento dos limites de confi ança originalmente estimados Vivese em um momento de grandes tensőes epistemológicas Na história do co nhecimento idealizouse um mundo line ar visão que felizmente está em declínio As relaçőes causais estabelecidas em bases dicotômicas lineares unidirecionais exclu sivamente quantitativas e com baixa capa cidade preditiva săo questionadas Muitos sentem a necessidade de percepçăo regis tro e análise dos elementos năo mensurá veis ou qualitativos da saúde Trostle75 1986 Baum76 1995 Pela dinâmica do conheci mento e no prenúncio de uma nova era e năo por simples modismo tópicos como estudos ecológicos Morgenstern77 1995 quaseexperimentos Behi e Nolan78 1996 caos Philippe79 1992 transdisciplinarida de AlmeidaFilho80 1997 lógica fuzzy Corson81 1996 fractais Anderson e col82 1997 complexidade Schramm e Castiel83 1992 Marques84 1995 Castiel85 1996 estatística Bayesiana Etzioni e Kadane86 1995 modelos em múltiplos níveis Von Korf e col87 1992 Fucks e Victora88 1997 redes neurais Hammad e col89 1996 etc começam a ter cada vez mais usuários e adeptos na comunidade epidemiológica Em uma área tradicional que é a epidemio logia das doenças infecciosas e parasitári as com base em conceitos como dinâmica de populaçőes e razăo de reproduçăo bási ca constroemse modelos matemáticos cada vez mais complexos e pouco acessí veis aos năo iniciados que incluem número crescente de fatores na busca de simulaçőes mais aproximadas da realidade onde a doença ocorre Scott e Smith90 1994 O epidemiologista adequado ao pre sente deve transitar entre as definiçőes e usos tradicionais da disciplina e uma série de novos conceitos que vêm sendo conti nuamente decodificados e assimilados deve dialogar com as experiências inova doras que se constituam em contribuiçőes no fortalecimento dos vínculos da epide miologia com seus propósitos fundamen tais e com a saúde coletiva deve participar da construçăo das novas bases conceituais e metodológicas que irăo permitir o desen volvimento de conhecimentos e novas pos sibilidades de prevenir os eventos mórbi dos e amenizar os sofrimentos humanos Para intervir no presente deve buscar no conhecimento epidemiológico até entăo produzido evidências que tomem possível Por uma epidemiologia da saúde coletiva Barreto M L Rev Bras Epidemiol Vol 1 Nº 2 1998 119 o desenvolvimento de alternativas de prevenção tecnicamente viáveis de grande impacto populacional e efetivas sobre o maior número possível de problemas de saúde Porém que também sejam social e individualmente aceitáveis e politicamente realizáveis A implementação de muitas intervenções somente é possível após mudanças ou redefinições no campo político As vinculações com outros profissionais da saúde coletiva devem se dar pela construção de afinidades em torno de tudo aquilo que diga respeito à prevenção Nesta direção a epidemiologia reconstituirá suas bases teóricas e metodológicas fundadas em princípios éticos e em justificativas morais que direcionem seus esforços para entender e contribuir na redução das desigualdades na saúde na melhoria da qualidade de vida dos indivíduos e das populações e na seleção das tecnologias de saúde evitando a exposição indiscriminada dos indivíduos e das populações a intervenções com baixa efetividade ou que induzam novas doenças e novos sofrimentos Tudo isto porém ganhará um maior sentido quando articulado a um outro arcabouço que está sendo paulatinamente construído o qual busca compreender as razões da intensa dinâmica temporal dos eventos de saúde nas populações humanas bem como dos seus determinantes e mesmo da efetividade das intervenções Omran 1971 McKeown 1979 Caldwell 1993 Barreto e col 1994 Esta articulação tende a relativizar o papel dos conhecimentos obtidos em momentos isolados e colocálos em uma perspectiva histórica possibilitando a produção de muitos dos conhecimentos que necessitamos Agradecimentos Gostaria de agradecer aos colegas Jailnisonm Paim Carmen Teixeira Naomar Almeida e Estela Aquino por seus comentários em aspectos importantes do texto A apresentação de versões préminares no V Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva em 1997 em Águas de LindóiaSP e no IV Congresso Brasileiro de Epidemiologia em 1998 no Rio de Janeiro serviram de estímulo e foram vitais no amadurecimento da versão aqui apresentada Referências 1 Last JM editor Dictionary of epidemiology New York Oxford University Press 1988 2 Rothman KJ Modern epidemiology Boston Little Brown 1986 3 Almeida Filho N A clínica e a epidemiologia Salvador APCEABRASCO 1992 4 Barata RB Barreto ML Algumas questões sobre o desenvolvimento da epidemiologia na América Latina Ciênc Saúde Coletiva 1997 1 709 5 Breilh J A epidemiologia na humanização da vida convergências e desencontros das correntes In Barata RB Barreto ML Almeida Filho N Veras RP editores Equidade e 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de saúde Análise hierarquizada aplicada a investigação de fatores de risco para agravos à saúde infantil In Barata RB editor Condições de vida e situação de saúde Rio de Janeiro ABRASCO 1997 p 2716 89 Hammad TA AbdelWahab MF DeClaris N ElSahly A ElKady N Strickind G T Comparative evaluation of the use of artificial neural networks for modelling the epidemiology of schistosomiasis mansoni Trans R Soc Trop Med Hyg 1996 90 3726 90 Scott ME Smith G editors Parasitic and infectious disease epidemiology and ecology San Diego Academic Press 1994 91 Omran AR The epidemiologic transition a theory of the epidemiology of population change Milbank Mem Fund Q 1971 49 50983 92 Caldwell J Health transition the cultural social and behavioural determinants of health in the third world Soc Sci Med 1993 36 12535 93 Barreto ML Carmo EH Noronha CV Neves RBP Alves PC Mudanças dos padrões de morbimortalidade uma revisão crítica das abordagens epidemiológicas Physis Rev Saúde Coletiva 1994 3 12746 A Epidemiologia como Ciência Naomar de Almeida Filho Maurício L Barreto e Maria Zélia Rouquayrol A Epidemiologia se constitui atualmente na principal ciência da informação em saúde base da medicina da saúde coletiva e das outras formações profissionais em saúde Podese definila como a abordagem dos fenômenos da saúdedoençacuidado por meio da quantificação usando bastante o cálculo matemático e as téc nicas estatísticas de amostragem e de análise Entretanto apesar do uso e até abuso da numerologià a moderna Epidemiologia não se restringe à quantificação Cada vez mais emprega técnicas diversificadas para o estudo científico da saúde individual e co letiva De fato todas as fontes de dados e de informação podem ser válidas para o conhecimento sintético e totalizante das situa ções de saúde das populações humanas Tradicionalmente a Epidemiologia tem sido definida como a ciência que estuda a distribuição das doenças e suas causas em populações humanas Segundo Jénicek 1995 um dos ob jetivos principais da Epidemiologia deve ser identificar fatores etiológicos na gênese das enfermidades De fato muitas doen ças cujas origens até recentemente não encontravam explicação têm sido estudadas em suas associações pela metodologia epi demiológica que aplica o método científico da maneira mais abrangente possível a problemas de saúde da comunidade A International Epidemiological Association IEA Last 1983 define Epidemiologia como o estudo dos fatores que determinam a frequência e a distribuição das doenças nas co letividades humanas Enquanto a clínica dedicase ao estudo da doença no indivíduo analisando caso a caso a Epidemiologia debruçase sobre os problemas de saúde em grupos de pessoas na maioria das vezes envolvendo populações numerosas Susser 1987 eminente epidemiologista social sulafricano radicado nos EUA escreveu que a Epidemiologia é essencial mente uma ciência populacional que se baseia nas ciências sociais para compreensão da estrutura e da dinâmica sociais na matemática para noções estatísticas de probabilidade inferência e estimação e nas ciências biológicas para o co nhecimento do substrato orgânico humano onde as manifesta ções observadas encontrarão expressão individual Devido à complexidade crescente e considerando a abran gência da sua prática atual não é possível uma definição única e precisa da Epidemiologia enquanto campo científico De ma neira simplificada propusemos conceituála como ciência que estuda o processo saúdeenfermidade na sociedade ana lisando a distribuição populacional e fatores determinantes do risco de doenças agravos e eventos associados à saúde propondo medidas específicas de prevenção controle ou erradicação de enfermidades danos ou problemas de saúde e de proteção promoção ou recuperação da saúde individual e coletiva produzindo informação e conheci mento para apoiar a tomada de decisão no planejamento adminis tração e avaliação de sistemas programas serviços e ações de saúde Almeida Filho Rouquayrol 2006 p 4 Como se pode inferir desta definição desde seus primórdios no século XIX a Epidemiologia tem revelado uma forte vocação de ciência aplicada dirigida para a solução dos problemas de saúde Tratase sem dúvida de uma poderosa ferramenta cien tífica de grande utilidade para a área da Saúde justamente por seu caráter pragmático Nesse aspecto há uma curiosidade a destacar o primeiro tratado da ciência epidemiológica moderna escrito por Jeremy Morris em 1956 intitulavase justamente Os Usos da Epidemio logia Morris 1957 Essa obra compreendia sete capítulos cada um analisando uma utilidade potencial para a então recém nascida ciência A Epidemiologia cada vez mais ocupa o lugar privilegiado de fonte de desenvolvimento metodológico para todas as ciên cias da saúde Hoje a ciência epidemiológica continua amplian do seu importante papel na consolidação de um saber científi co sobre a saúde humana sua determinação e consequências subsidiando largamente as práticas de saúde Compreende três aspectos principais 1 Estudo dos determinantes de saúdeenfermidade A in vestigação epidemiológica possibilita o avanço do conhe cimento sobre os determinantes do processo saúdedoen ça tal como ocorre em contextos coletivos contribuindo para o avanço correspondente no conhecimento etioló gicoclínico 2 Análise das situações de saúde A disciplina epidemioló gica desenvolve e aplica metodologias efetivas para des crição e análise das situações de saúde fornecendo sub sídios para o planejamento e organização das ações de saúde isto corresponde ao que antigamente se chamava diagnóstico de saúde da comunidade 3 Avaliação de tecnologias e processos no campo da saúde A metodologia epidemiológica pode ser empregada na avaliação de programas atividades e procedimentos pre 3 4 Capítulo 1 1 A Epidemiologia como Ciência ventivos e terapêuticos tanto no que se refere a sistemas de prestação de serviços quanto ao impacto das medidas de saúde na população Aqui consideramos desde estudos de eficiência e efetividade de programas e serviços de saú de até ensaios clínicos de eficácia de processos diagnós ticos e terapêuticos preventivos e curativos individuais e coletivos Como se criou tão importante disciplina científica hoje es sencial para todas as ciências básicas clínicas e sociais da saúde Qual é a sua história Que relações entretêm com outros cam pos de conhecimento Quais as bases epistemológicas e meto dológicas que sustentam e legitimam seu estatuto científico Que princípios filosóficos éticos e políticos conformam e re gulam sua inegável utilidade para nossas vidas A resposta a essas questões compreende a Parte 1 do presente volume As raízes históricas da ciência epidemiológica podem ser iden tificadas em uma trilogia de elementos conceituais metodológi cos e ideológicos representados pela clínica pela esttítca e pela medicina social A articulação desses elementos historicos que resultou na institucionalização da ciência epidemiológica na se gunda metade do século XX é arrda de modo esumido no Capítulo 2 Considerando o significativo desenvolvimento desse campo em nosso país o Capítulo 3 acrescenta uma breve nota complementar sobre a história da Epidemiologia no Brasil Para cumprir seu papel de fonte de dados informação e co nhecimento para subsidiar o planejamento gestão e avaliação de políticas programas e ações de proteção promoção ou recupe ração da saúde a Epidemiologia precisa repnsar seus víncos com o modelo da prevenção e sua dependencia dos conceitos de causalidade e determinação Tais conceitos eixos basilares do raciocínio epidemiológico convencional são avaliados em seus aspectos formais e aplicados no Capítulo 4 onde além dis so as categorias de contingência e sobredeterminação são pro postas como estruturantes de novas modalidades de compre ensão da dinâmica de determinação epidemiológica Do ponto de vista teóricometodológico o objeto da Epide miologia tem sido construído através do conceito de risco O conceito epidemiológico de risco implica relações de ocorrên cia de saúdeenfermidade em massa envolvendo número ex pressivo de seres humanos agregados em sociedades coletivi dades comunidades grupos demográficos classes sociais ou outros coletivos humanos No Capítulo 5 avaliase a reserva semântica do conceito de risco em sua capacidade de articular se aos desenvolvimentos conceituais e metodológicos do cam po ideológico conceitua e metodológico que tem sido deno minado de saúde coletiva O futuro do conceito de risco dependerá da capacidade de a Epidemiologia atualizarse con tribuindo com modelos teóricos e estratégias metodológicas sensíveis a objetos complexos emergentes incorporando adi mensão contingente dos processos de ocorrência de problemas de saúde em populações humanas A Epidemiologia constitui um dos eixos estruturantes do cam po científico da Saúde Destaue o ceno contr1preode práticas acadêmicas e profissionais nossa Jovem ciencia impoe se cada vez mais como principal marco metodológico da pes quisa clínica e social em saúde Como disciplina científica a Epi demiologia depende de categorias epistemológicas para a construção de modelos teóricos de saúdeenfermidade que por sua vez organizam o conhecimento produzido e contribuem para orientar as práticas e técnicas As interfaces disciplinares da Epi demiologia tanto no campo de práticas e de ação tecnológica quanto no âmbito intersetorial da saúde são iscutidas no Cpí tulo 6 Como eixo de argumentação o conceito de campo cien tífico é empregado no sentido de reconhecer a ciência e todas as ciências como prática social uma construção histórica por tanto permitindo repensar a Epidemiologia como protagonista em um campo de produção científica e em uma esfera particular de aplicação da tecnociência Finalmente a Parte 1 se conclui com dois capitulos adicio nais complementares à discussão das bases e princípios da Epi demiologia O Capítulo 7 compreende um texto sobre aspectos éticos e deontológicos da pesquisa epidemiológica e das práti cas técnicas e ações dela decorrentes Dada a crescente impor tância e significado do conhecimento epidemiológico sobre as práticas de saúde e sobre o modo de vida contemporâneo tais questões têm grandes repercussões sobre outros campos de sa beres cada vez mais atravessados por demandas filosóficas morais e políticas Referências bibliográficas Almeida Filho N Rouquayrol MZ Introdução à epidemiologia 4ª ed Rio de Janeiro Guanabara Koogan 2006 Jenicek M Epidemiology the logic of modem medicine Montreal EPIMED International 1995 Last JM A dictionary of epidemiology 4ª ed Nova York Oxford University Press 2001 Morris J Uses of epidemiology Edinburgh and London E S Livingstone 1957 Susser M Epidemiology health society selected papers Nova York Oxford University Press 1987 1 Identifique e defina os principais conceitos básicos que fundamentam a epidemiologia A epidemiologia se utiliza da compreensão de padrões da ocorrência das doenças em populações específicas com características definidas em espaço e tempo Além do padrão se vale da definição do risco para a ocorrência de um determinado agravo em uma pessoa ou grupo populacional utilizando as dimensões anteriormente citadas Em muitas situações provoca a determinação da causalidade a partir de determinantes e fatores de risco que podem indicar uma exposição que leva à um determinado desfecho buscando associação entre os conceitos 2 Quais são os principais usos e aplicações da epidemiologia A epidemiologia é uma ciência que se utiliza de dados específicos para determinar e descrever o estado de saúde de uma população definida em tempo e espaço suas variações ao longo do tempo e a forma de distribuição das doenças e agravos identificar os determinantes e os fatores de risco para uma determinada doença ou agravo de saúde permitir a fomentação explicação e permanência de políticas de saúde e avaliar o impacto das mesmas além de apoiar a realização de pesquisas em saúde 3 Discuta as articulações da epidemiologia com outras disciplinas clínica estatística sociologia antropologia geografia demografia etc Apesar de ser considerada uma ciência com suas características bem esclarecidas a epidemiologia necessita de conhecimentos adquiridos de outras áreas do saber para substanciar a sua prática Como um exemplo simples temse o uso de dados oriundos de censos demográficos para a realização de pesquisas epidemiológicas que analisem a ocorrência e distribuição de um determinado agravo Ao utilizar os conceitos de determinantes em saúde e fatores de risco para a determinação de agravos se vale da sociologia e antropologia que permeiam as transformações sociais ocorridas ao longo do tempo culminantes nos determinantes sociais